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ESTADO, CRISE POLÍTICA, ECONÔMICA

E PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO
COMISSÃO CIENTÍFICA DO I SEMINÁRIO SOBRE ESTADO CRISE POLÍTICA, ECONÔMICA E PERSPECTIVAS
DE DESENVOLVIMENTO.

Comissão científica para avaliar os trabalhos.


Dr. Sandro Luiz Bazzanella (UnC) Comissão Organizadora
Dr. Gilmar Luis Mazurkievicz (UnC) Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Dr. Alexandre Assis Tomporoski (UnC) Dr. Alexandre Assis Tomporoski
Dr. Jairo Marchesan (UnC) Dr. Jairo Marchezan
Dr. Argos Gumbowski (UnC) Me. Maria Benedita da Silva (UnC)
Dr. Reinaldo Knorek (UnC) Me. Jonas Fábio Maciel (UnC)
Drª Maria Luiza Milani (UnC) Me. Alceu Júnior Maciel (UnC)
Dr. Valdir Roque Dallabrida (UnC) Me. Jean Carlos Machado (UnC)
Dr. Carlos Eduardo Carvalho (UnC) Me. Danielly Borguesan (UnC)
Drª Daniela Pedrassani (UnC) Me. Terezinha de Fátima Juraczky Scziminski sczi
Dr. José Ernesto de Fáveri (UNIDAVI) Mestrando Patricia Finamori (UnC)
Dr. Everaldo da Silva (UNIARP) Mestrando Felipe Onisto (UnC)
Dr. Wellington Amorin (UFMA) Mestranda Cleuza Dalazuana (UnC)
Dr. Joel José de Souza (IFSC Canoinhas) Mestranda Valquíria Batista da Rocha (PUC - PR)
Dr. Armindo Longhi (UNESPAR) Especialista Andressa Carla Metzger (UnC)
Dr. Antonio Charles Santiago Almeida (UNESPAR)
Dr. Vilson Cesar Schenato (IFSC Canoinhas) Douto- Comissão Técnica
rando Leandro Rocha (UFSC) Dr. Sandro Luiz Bazzanella (UnC)
Doutorando Adwaldo Peixoto (Uniderp Anhanguera) Me. Maria Benedita da Silva (UnC)
Me. Cícero Santiago de Oliveira - IFSC-Canoinhas Me. Alceu Junior Maciel (UnC)
Me. Maria Benedita da Silva (UnC) Me. Jonas Fábio Maciel (UnC)
Me. Jonas Fábio Maciel (UnC) Me. Danielly Borguesan (UnC)
Me. Alceu Junior Maciel (UnC)
Me. Jean Carlos Machado (UnC) -
Me. Danielly Borguesan (UnC)
Me. Terezinha de Fátima Juraczky Scziminski
Me. Ricardo Pereira da Silva
Mestranda Patricia Finamori (UnC)
Mestrando Felipe Onisto (UnC)
Mestranda Cleuza Dalazuana (UnC)
Especialista Andressa Carla Metzger (UnC)
ESTADO, CRISE POLÍTICA, ECONÔMICA
E PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO

Sandro Luiz Bazzanella


(organizador)

1ª edição

LiberArs
São Paulo – 2018
Estado crise política, econômica e perspectivas de desenvolvimento.
© 2018, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-85-9459-110-4

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisão técnica
Cesar Lima

Editoração e capa
Editora LiberArs
Pedro Henrique Lima Andrade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

Bazzanella, Sandro Luiz (org.)


B349e Estado, crise política, econômica e perspectivas de
desenvolvimento / Sandro Luiz Bazzanella (organizador) -
São Paulo: LiberArs, 2018.

ISBN 978-85-9459-110-4

1. Política Econômica 2. Gestão Pública 3. Ciência Política


4. Crise – Estado Democrático de Direito I. Título

CDD 320.1
CDU 321

Bibliotecária responsável:

Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio,
das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos,
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.

Editora LiberArs Ltda


www.liberars.com.br
contato@liberars.com.br
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 9

ESTADO, CRISE POLÍTICA, JURÍDICA,


ECONÔMICA E PERSPECTIVAS DE DESENVOLVIMENTO
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Dr. Alexandre Assis Tomporoski
Ms. Danielly Borguesan........................................................................................................... 17

NOTAS SOBRE O ESGOTAMENTO DA


FORMA ESTATAL E O FORTALECIMENTO
DO ESTADO SECURITÁRIO
Daniel Arruda Nascimento .................................................................................................... 33

ECONOMIA E POLÍTICA EM AGAMBEN


Marcos Nalli ................................................................................................................................. 41

ESTADO DE EXCEÇÃO: O REINO DO IMPREVISÍVEL


Ésio Francisco Salvetti ............................................................................................................ 51

AS CATEGORIAS FILOSÓFICAS PARA


O DESENVOLVIMENTO NACIONALISTA
A PARTIR DAS OBRAS DE ÁLVARO VIEIRA PINTO
Dr. José Ernesto de Fáveri
Dr. Sandro Luiz Bazzanella
Ms. Marilei Kroetz ..................................................................................................................... 71

CAPITALISMO, CRISES E DESENVOLVIMENTO:


REFLETINDO COM A SOCIOLOGIA
Vilson Cesar Schenato .......................................................................................................... 117

LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO? REFLEXÕES A PARTIR DO


CONSENSO DE WASHINGTON
Everaldo da Silva
Wellington Lima Amorim
Marialva Moog Pinto ............................................................................................................. 133

ANARCOCAPITALISMO E LIBERDADE
Wellington Lima Amorim
Matheus Raposo
Everaldo da Silva .................................................................................................................... 149
O ORGULHO DA VERGONHA NA CRISE DA
CONTEMPORANEIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DE “O LEITOR”, DE
STEPHEN DALDRY
Fransmar Costa Lima ............................................................................................................ 165

O CINEMA NOVO: NA TRILOGIA


DO SERTÃO HÁ VIDA NUA?
Prof. Dr. Augusto Sarmento-Pantoja .............................................................................. 173

O MEIO AMBIENTE ENTRE DIVERGÊNCIAS


E INTERESSES: AS PRÁTICAS DE
REFLORESTAMENTO EM SANTA CATARINA
Samira Peruchi Moretto ....................................................................................................... 191

CONSELHO MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO


MUNICÍPIO DE CONCÓRDIA (SC): POSSIBILIDADES PARA O
DESENVOLVIMENTO LOCAL
Jairo Marchesan
Eduardo Lando Bernardo
Sandro Luiz Bazzanella ........................................................................................................ 209

INSTITUIÇÕES, GOVERNANÇA E
DESENVOLVIMENTO REGIONAL:
O DEBA-TE SOBRE A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA NO
ESTADO DE SANTA CATARINA
Leonardo Furtado da Silva
Patrícia Luiza Kegel ................................................................................................................ 229

DESCENTRALIZAÇÃO, GOVERNANÇA E
DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL
UMA ABORDAGEM AUTOBIOGRÁFICA
Valdir Roque Dallabrida ....................................................................................................... 251

O EXTRATIVISMO ESTATAL E OS LIMITES


DO ESTADO SOCIAL BRASILEIRO
Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner
Dr. Marcos Antônio Mattedi ............................................................................................... 267

ANEXO I
ÁLVARO VIEIRA PINTO: O INTELECTUAL
QUE NÃO TEVE MEDO DE SER FILÓSOFO
Dr. José Ernesto de Fáveri ................................................................................................... 328
INTRODUÇÃO

O que é o Estado brasileiro? Existe um Estado brasileiro? Se existe um Es-


tado brasileiro o mesmo se alinha a tradição político-jurídica constitutiva dos
estados modernos, surgidos entre os séculos XVII a XIX? O Estado brasileiro fez
a transição de sua condição absolutista de matriz lusitana (Ancien Regime)
para os estados liberais burgueses. Há um contrato social que articula a pátria,
a nação representada na razão de Estado brasileira?
Em momentos de instabilidade política e econômica questões desta or-
dem se apresentam em toda sua intensidade, na medida em que lança a socie-
dade brasileira diante da inconsistência de suas instituições, sejam elas: insti-
tuições do espectro representativo, instituições de ordem executiva e, institui-
ções moderadoras constitutivas do poder judiciário.
Mas, sobretudo, aflora neste contexto de instabilidade acirrados debates
que se manifestam em maior, ou menor grau intolerantes em relação a visões
progressistas que concebem o Estado como protagonista em relação ao desen-
volvimento da sociedade. O debate, ou talvez mais propriamente o embate
polariza-se entre a perspectiva de grupos que defendem a diminuição do Esta-
do em relação à condução da política econômica, argumentando que tal condi-
ção limita e impede a livre iniciativa e o mercado em conduzir os rumos da
economia e do desenvolvimento nacional integrado ao mercado mundial e, a
perspectiva de grupos que defendem o protagonismo e a soberania do Estado
na definição dos rumos do desenvolvimento.
Assim, para os defensores da lógica do mercado máximo é fundamental
que o Estado seja mínimo, limitando-se a fornecer serviços públicos básicos,
garantindo o direito de propriedade e, a remuneração dos contratos com ren-
tistas locais e globais. Para os progressistas o Estado se apresenta como o pro-
tagonista da dinâmica do desenvolvimento nacional. Nesta visão, a sociedade
brasileira é marcada por injustiças históricas, por profundas desigualdades
sociais, por contingentes de minorias alijadas de cidadania e compete ao Esta-
do promover e viabilizar distribuição de renda, reconhecer direitos e promo-
ver a cidadania. Neste contexto, o Estado é concebido e operacionalizado na
condição de mediador das relações entre capital e trabalho, como regulador da
dinâmica econômica e, como investidor e financiador do desenvolvimento
nacional.
É no âmbito deste debate que se realizou entre os dias 22 a 25 de feverei-
ro de 2017 o “I Seminário sobre Estado, Crise Política, Econômica e Perspecti-
vas de Desenvolvimento”. O referido seminário foi promovido pelo Programa

9
de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado
(UnC) vinculado a linha de pesquisa: “Políticas Públicas e Desenvolvimento
Regional” as pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Interdisciplinar
em Ciências Humanas (NCPq) vinculado ao programa de mestrado e a UnC. O
I Seminário também é o resultado de debates e interlocuções resultantes de
três edições anteriores do Simpósio Nacional sobre Estado, Descentralização e
Gestão Pública entre os anos de 2013 a 2015 e conduzidos pelo pesquisador
Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner, no âmbito do Programa de Mestrado em
desenvolvimento Regional.
Porém, em função da crise política, jurídica e econômica cujos primeiros
sinais se apresentaram nas manifestações de rua em 2013 e, que culminaram
com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 31 agosto de 2016 e, que
se instalou nas instituições do Estado brasileiro atingindo a dinâmica do de-
senvolvimento social, político econômico nos últimos anos considerou-se ne-
cessário e urgente o I Seminário dedicar-se a análise teórica e conceitual, bem
como a compreensão dos desdobramentos da crise em suas mais diversas
variáveis institucionais, sociais, políticas e econômicas, bem como, seu impacto
sobre as condições de possibilidade do desenvolvimento local, regional e naci-
onal.
Sob tais pressupostos, o título do I Seminário sobre Estado, Crise Política,
Econômica e Perspectivas de Desenvolvimento aponta para os eixos que cons-
tituíram e justificaram as diversas mesas temáticas realizadas durante o even-
to. Tratava-se, portanto, de colocar em análise a crise do Estado Democrático e,
do Estado de Direito - ou se preferirem - do Estado Democrático de Direito, sob
égide da perda da capacidade de representatividade política e econômica, fren-
te às demandas sociais por serviços públicos de qualidade e, sobretudo de
conduzir de forma soberana um projeto de desenvolvimento, que a partir dos
âmbitos locais e regionais pudesse se constituir em estratégias de desenvolvi-
mento nacional frente aos imperativos do estado de emergência econômico
alicerçado no estado de exceção permanente como técnica de governo em cur-
so e âmbito mundial. Sob tais condições, de crise de discursos e práticas que se
apresentam impositivas, a partir dos governos marcadamente ilegítimos pre-
sentes no atual contexto mundial e brasileiro, cuja ação é marcada pelo corte
de direitos sociais, de desemprego, de desmonte do estado de bem-estar social,
de aumento da concentração de riqueza global faz-se necessário retomar em
caráter de urgência o que ainda podemos compreender por desenvolvimento
humano, social, político, econômico e cultural de comunidades, regiões e po-
vos.

10
Sob tais pressupostos a centralidade dos debates que ocorreram no I Se-
minário Nacional gravitaram em torno da palavra “Crise”. Talvez se possa
afirmar com certa segurança (mesmo vivendo em tempos de insegurança) que
uma das palavras mais pronunciadas em conversas cotidianas, em discursos
políticos, em análises científicas, na imprensa falada e escrita é a palavra “cri-
se”. Esta intensidade discursiva em torno do vocábulo crise é sintomática.
Aponta para a intensidade de acontecimentos políticos, econômicos e jurídicos
nos quais estamos inseridos. Mais do que isto, indica que o Estado e suas insti-
tuições e, por extensão o tecido social que os legitima não andam bem, encon-
tram-se limitados, em desalinho, ou até mesmo carecem de legitimidade em
relação aos interesses e aos desafios que se apresentam aos povos e, neste
caso, ao povo brasileiro, frente aos desafios de um mundo economicamente
financeirizado.
O uso intensivo de um vocábulo, de um conceito não significa que o te-
nhamos compreendido em sua extensão e profundidade. Em certos casos o
contrário apresenta-se verdadeiro. A intensidade de sua manifestação revela a
perda da compreensão de seu real significado. Ou ainda, o que se apresenta tão
dramático quanto às possibilidades anteriores, sua naturalização consideran-
do-o algo normal e definitivo, gratuito e espontâneo, óbvio e meramente cícli-
co. Nesta direção, torna-se fundamental retomar a definição do vocábulo crise.
Vejamos a forma como se apresenta a palavra crise no dicionário de filosofia (é
em momentos de crise permeado, sobretudo pela racionalidade instrumental
que se recorre a filosofia, afinal ela é a guardiã dos preceitos e conceitos civili-
zatórios nos quais estamos inseridos) de autoria do filósofo italiano Nicola
Abbgnano (p. 259). “Crise (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it. Crisi). Termo de ori-
gem médica que, na medicina hipocrática, indicava a transformação decisiva
que ocorre no ponto culminante de uma doença e orienta o seu curso em sen-
tido favorável ou não (...). Em época recente, esse termo foi estendido, passan-
do a significar transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social.”
O referido dicionário ainda apresenta outros elementos constitutivos do
vocábulo entre eles: 1º O conceito esta presente no percurso civilizatório oci-
dental; 2º Inicialmente vinculado a medicina transita na modernidade para
questões de ordem social. 3º Em ambas dimensões (médica e social) o termo
crise pressupõem movimento, passagem, transição de uma condição vital, ou
social, a outra condição de manutenção da vida, ou mesmo de sua negação pela
morte, da ordem social, ou de sua alteração e conformação sobre novas bases
societárias. 4º Em todas estas situações o termo crise denota seu sentido onto-
lógico (forma do ser no mundo, de ser e participar dele), político (decisão so-
bre a manutenção ou não da vida, da ordem social), ética (a tomada de decisões

11
requer a clareza de critérios, entre eles o da garantia do bem comum) e, estéti-
ca (decisões amparadas por critérios podem apresentar-se equilibradas, har-
mônicas , belas).
A partir do exposto e sugerido até o presente momento, pode-se argu-
mentar que o conceito “crise” apresenta duas outras variáveis. 1ª Crise como
expressão dialética; 2ª Crise como expressão entrópica. Encontramos as duas
formas presentes na vida dos indivíduos e das sociedades ocidentais. No pri-
meiro caso a crise se revela como movimento que desestabiliza a ordem vital,
ou social. Segue-se a esta condição período de incertezas, de insegurança que
exigem esforços significativos para sua superação. A superação apresenta-se
como novo estágio, como nova ordem vital ou social. No segundo caso a crise
(entropia) leva ao definhamento do paciente ou da ordem social, na medida em
que expõem a dura e traumática realidade da falência vital ou social em curso.
São exemplos da crise em sua versão dialética: a Reforma Protestante (Lutero)
e a Contrarreforma Católica (Concilio de Trento), a Revolução Americana, a
Revolução Francesa, as revoluções científicas. São exemplos da crise em sua
versão entrópica: a falência do mundo antigo, a derrocada do Império Romano,
a falência da cosmovisão judaico-cristã medieval, a Revolução Russa de outu-
bro de 1917.
Talvez se possa afirmar mesmo correndo riscos, que a crise política, eco-
nômica e jurídica na qual estamos inseridos indica para o modelo entrópico
pelos seguintes motivos: a) Sistema político partidário desacreditado, desmo-
ralizado pela evidência de loteamento da máquina estatal e, por derivação de
atos corruptos; b) Percepção de que a democracia representativa representa
exclusivamente os interesses específicos do capital financeiro e das corpora-
ções que ocupam postos na máquina pública beneficiando-se, senão justifican-
do regalias as expensas dos recursos públicos; c) redução do poder legislativo
a balcão de negócios com o poder executivo em certa medida com o judiciário;
d) Poder executivo que legisla freneticamente por medidas de provisórias
cumprindo contratos que remuneram generosamente o capital, justificado na
lei de responsabilidade fiscal, que em certa medida se apresenta como lei de
irresponsabilidade social, uma vez que a riqueza da nação (Adam Smith) é
resultado do trabalho coletivo e, não da mera especulação de mercados finan-
ceiros; f) Poder executivo que em nome da governabilidade alicia membros do
poder legislativo e, concede generosos e imorais aumentos salariais ao judiciá-
rio; g) Poder judiciário que assume a condição de “terceiro gigante” sobrepon-
do-se aos poderes legislativo e executivo, tomando decisões (atribuição do
executivo) e legislando (atribuição do legislativo); h) Magistrados que se apre-
sentam cada vez mais criativos e proativos abandonando a condição de guar-

12
diões da lei, da constituição para dizer o que a lei é caracterizando a vigência
de um estado de exceção permanente. k) Normalização da imoralidade dos
representantes políticos e da sanha pecuniária do judiciário com seus aumen-
tos salariais estratosféricos; l) População apática (sociedade de massas), alheia
aos mandos e desmandos jurídicos e políticos em curso; n) Sistema jurídico e
político que representa somente a si mesmo e uma população descrente no
sistema.
Sob tais pressupostos, em nome de um suposto estado de emergência
econômico justifica-se o estado de exceção em que estamos inseridos. Para o
filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben o estado de exceção apresenta-se na
forma jurídico-política da suspensão do ordenamento jurídico vigente como
condição de sua preservação. Nestes últimos anos, “assistimos” por meio do
“ativismo jurídico” do STF, bem como dos acordos entre poder legislativo, exe-
cutivo e judiciário, a efetivação do estado de exceção, corroborado pelo argu-
mento do jurista alemão Carl Schmitt de que o direito e a aplicabilidade da lei
não se apresentam como fins em si mesmos, mas obedecem a lógica das deci-
sões políticas. “A ordem jurídica, como toda ordem repousa em uma decisão e
não em uma norma”1
Numa cristalina distorção dos preceitos constitutivos do Estado moderno
fundado sobre um sistema de pesos e contrapesos situados na interdependên-
cia dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), o poder judiciário
assumiu condição de poder soberano tomando decisões de competência do
legislativo, ou mesmo do executivo. Ou seja, o STF abandona a natureza de sua
condição de guardião e intérprete da carta constitucional, para decidir e impor
suas decisões aos demais poderes legitimamente constituídos. O exercício do
poder soberano por parte do poder judiciário se constitui pela fragilidade do
poder legislativo, mas, também como justificativa e argumento de autoridade
(legal) vinculado a vontade política de membros do legislativo e de outros
grupos políticos em relação ao afastamento do chefe do poder executivo para
que supostamente se alcance o estado de normalidade. Aqui é preciso ter pre-
sente a máxima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “tudo deve mudar para que
tudo fique como está”.
Para Montesquieu o poder legislativo se apresentava como o mais impor-
tante dos três poderes, na medida em que tem a responsabilidade de represen-
tar os interesses dos cidadãos. Porém, novamente o que estamos “assistindo”
no caso brasileiro é um poder legislativo, que em maior ou menor medida se
especializou na defesa de interesses particulares, de grupos, ou mesmo, na
defesa de uma ordem econômica imposta pela financeirização e pelo rentismo,

1
SCMITT, Carl. Teologia Política. Tradução Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 11

13
locupletando-se com os recursos públicos, exercendo tráfico de influência para
benefício de fins privados, em detrimento de questões de interesses estratégi-
cos em âmbito público e social.
A efetivação do estado de exceção em que estamos inseridos demonstra
de forma inequívoca os paradoxos em que se encontram inseridos os poderes
de estado. Com os Estados reduzidos em sua soberania a condição de agências
garantidoras dos contratos com a economia financeirizada global, resta como
tarefa aos governos nacionais instaurar um estado de segurança, de controle,
de plena gestão da vida dos indivíduos e da população como forma de conferir
e de apresentar as garantias necessárias de rentabilidade e segurança do capi-
tal investido. “A expressão “por razões de segurança” funciona como um argu-
mento de autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite im-
por perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise
de um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer
outra noção política: a segurança”.2 Na esteira destes paradoxos assistimos nos
últimos anos o poder executivo governar por meio da proliferação de medidas
provisórias (MPs) usurpando ao poder legislativo sua principal atribuição de
legislar em garantida dos interesses públicos.
Porém, a instauração e a vigência do estado de exceção em que estamos
inseridos conta ainda com a parcimônia dos cidadãos inseridos na lógica de
uma sociedade de plena produção e consumo. Nesta direção, Agamben aponta
para “o fato de que ser cidadão é algo indiferente”. 3 Ou ainda, na perspectiva
do filósofo, “Atualmente, o poder tende a uma despolitização do status de cida-
dão”4. Estamos diante do fenômeno da redução da cidadania a condição da
opinião pública. O esvaziamento do debate político como efetivação do espaço
público e garantia do bem comum remete a conformação da opinião pública
ansiosa por segurança em relação à sobrevivência advinda das necessidades da
vida privada, de garantias de subsistência à condição de indivíduos inseridos

2
AGAMBEN, Giorgio. UMA CIDADANIA REDUZIDA A DADOS BIOMÉTRICOS: Como a
obsessão por segurança muda a democracia. Artigo publicado no Jornal Le Monde Diplomatique
Brasil na edição 78 de 6 de janeiro de 2014. Disponível no link: https://diplomatique.org.br/como-a-
obsessao-por-seguranca-muda-a-democracia/
3
AGAMBEN, Giorgio. A Democracia é um conceito ambíguo. Artigo Publicado No Blog Da Editora
Boitempo Em 04 De Julho De 2014. Disponível no link:
https://blogdaboitempo.com.br/2014/07/04/agamben-a-democracia-e-um-conceito-ambiguo/
4
Idem.

14
na esfera da produção e do consumo, conformando as bases da dinâmica finan-
ceirizada das formas de vida na contemporaneidade.
Sob este conjunto de variáveis e, outras tantas que podem ser contempla-
das justificam-se os argumentos que apontam para o fato de que estamos inse-
ridos em pleno estado de exceção e, que na interinidade dos governos de plan-
tão “assiste-se” cotidianamente a discursos que anunciam ameaças aos direitos
sociais, como único caminho possível de conferir garantias de rentabilidade e
segurança ao capital financeiro global. E uma vez mais, nesta direção, mostra-
se pertinente o argumento de Agamben (2018) no que se refere a polifonia
profusa de discursos em defesa da democracia. “A democracia é uma ideia
incerta, porque significa, em primeiro lugar, a constituição de um corpo políti-
co, mas significa também e simplesmente a tecnologia da administração – o
que temos hoje em dia. Atualmente, a democracia é uma técnica do poder –
uma entre outras.”5
Esclarece ainda Agamben, que “A crise atual se tornou um instrumento de
dominação. Ela serve para legitimar decisões políticas e econômicas que de
fato desapropriam cidadãos e os desprovêem de qualquer possibilidade de
decisão”,6 o que significa ter presente a luz da perspectiva analítica agambeni-
ana que estamos diante de inúmeros desafios, entre eles: a) reconhecer que
estamos imersos em pleno estado de exceção, que em sua condição de suspen-
são da ordem jurídica como garantia da mesma promove na contramão dos
discursos dos operadores do judiciário e, da crença socialmente difundida a
insegurança jurídica. Ou seja, neste momento somos todos homni sacri, vida
nua; b) é tarefa de nosso tempo profanar as categorias e concepção políticas
nas quais estamos inseridos como condição sine qua non da política que vem.
Talvez se possa considerar que estamos diante de uma “Crise entrópica”
do sistema. Constata-se a ilegitimidade representativa do sistema, que desmo-
rona a passos lentos em nome da “defesa da democracia”. Aqui uma vez mais é
preciso considerar a perspectiva analítica de Agamben que considera o fato de
que todos os governos do mundo são neste contexto ilegítimos.
Sob tais pressupostos é possível constatar que estamos num interregno,
em que o Estado moderno burguês liberal, ou seu oposto no contexto histórico
em curso de matiz socialista e, que em ambos os casos se caracterizam pela

5
Ibidem
6
Ibid.

15
implementação técnicas administrativas, burocráticas, disciplinadoras, norma-
lizadoras apresenta seus limites frente as novas formas de vida quem e, o que
vem ainda não se apresenta como condição de possibilidade. Estamos em crise,
neste compasso entre o velho que definha e o novo que não se apresenta.
É neste contexto que se realizaram os debates constitutivos do I SEMINÁ-
RIO NACIONAL SOBRE ESTADO, CRISE POLÍTICA, ECONÔMICA E PERSPECTI-
VAS DE DESENVOLVIMENTO em suas diversas perspectivas e tendências analí-
ticas.
Agradecimentos:
Aos pesquisadores que compuseram as mesas temáticas pela receptivida-
de com que receberam a proposta do seminário e o aceite em dele participar
dispondo de tempo e recursos. Esta ação comprova a importância da esfera
ativa da vida comprometida com o interesse público.
À FAPESC (Fundação de Apoio a Pesquisa Científica e Tecnológica do Es-
tado de Santa Catarina), Universidade do Contestado e, AMPLANORTE (Associ-
ação dos Municípios do Planalto Norte Catarinense), instituições que disponi-
bilizaram recursos e apoio para a realização do I Seminário

Canoinhas, 05 de dezembro de 2018.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella


Professor de filosofia na graduação e no Programa de Mestrado em
Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado.
Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas
(CNPq)

16
ESTADO, CRISE POLÍTICA, JURÍDICA,
ECONÔMICA E PERSPECTIVAS DE
DESENVOLVIMENTO1
Dr. Sandro Luiz Bazzanella2
Dr. Alexandre Assis Tomporoski3
Ms. Danielly Borguesan4

01. Aspectos Introdutórios

Afinal, o que está acontecendo? Como compreender as diversas variáveis


constitutivas da “crise política, jurídica e econômica” em que estamos inseri-
dos? A crise política foi desencadeada pela crise econômica? A crise política
conduz e aprofunda a crise econômica? Estaríamos diante da crise da econo-
mia-política contemporânea? No caso brasileiro, a crise política e econômica
em curso é uma característica do modo de ser “tupiniquim” que vive de insta-
bilidades políticas, econômicas e, institucionais desde sua descoberta pelos
portugueses?
Trata-se, portanto, de colocar em análise a crise do Estado Democrático e,
do Estado de Direito, ou na forma composta do Estado Democrático de Direito
sob a égide do esvaziamento de sua capacidade de representatividade política,
frente aos imperativos do estado de emergência da economia financeira global,
justificada pelo estado de exceção permanente como técnica de governo em
curso. Sob tais condições de crise, de discursos e práticas impositivas de go-
vernos de plantão, presentes no atual contexto mundial e brasileiro, marcados
pelo corte de direitos sociais, de desemprego, de desmonte do estado de bem-
estar social, de aumento da concentração da riqueza global, é que se faz neces-
sário retomar analiticamente o que se compreende neste contexto por desen-
volvimento humano, social, político, econômico e cultural de povos, regiões e
comunidades.

1
O presente capítulo foi publicado na forma de artigo científico na Revista Profanações da Universidade
do Contestado, ISSNe 2358-6125, Ano 4, Nº 1, p. 76 a 69, Jan/jul. 2017. Link de acesso à Revista Profa-
nações: http://www.periodicos.unc.br/index.php/prof
2
Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado
(UnC), Santa Catarina, Brasil. Doutor em Ciências Humanas Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
3
Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado
(UnC), Santa Catarina, Brasil. Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
4
Coordenadora do Curso de Direito da Universidade do Contestado (UnC), Santa Catarina, Brasil.
Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado.

17
Sob tais pressupostos, as centralidades dos debates em curso gravitam em
torno da palavra “crise”. Talvez se possa afirmar com certa segurança (mesmo
vivendo em tempos de insegurança) que uma das palavras mais pronunciadas
em conversas cotidianas, em discursos políticos, em análises científicas, na
imprensa falada e escrita é a palavra “crise”. Esta intensidade discursiva em
torno do vocábulo “crise” é sintomática. Aponta para a intensidade de aconte-
cimentos políticos, econômicos e jurídicos nos quais estamos inseridos. Mais
do que isto, indica que o Estado e suas instituições e, por extensão o tecido
social que os legitima não andam bem, encontram-se limitados, em desalinho,
ou mesmo carecem de legitimidade em relação aos interesses públicos, aos
desafios do desenvolvimento que se apresentam aos povos e, neste caso ao
povo brasileiro, frente aos imperativos de um mundo economicamente finan-
ceirizado.
O uso intensivo de um vocábulo, de um conceito não significa que o te-
nhamos compreendido em sua extensão e profundidade. Em certos casos o
contrário apresenta-se verdadeiro. No entanto, por vezes a intensidade de sua
manifestação pode revelar a perda da compreensão de seu real significado. Ou
ainda, o que se apresenta tão dramático quanto às possibilidades anteriores, é
a sua naturalização considerando-a algo normal e definitivo, gratuito e espon-
tâneo, óbvio e meramente cíclico.

Lo peor que le puede pasar a cualquier cosa que sea valiosa para los seres
humanos es su naturalización, (...) que se considere algo normal y definitivo,
gratuito y espontâneo, algo obvio y garantizado para siempre. Tal peligro es
especialmente grave cuando atañe a conquistas sociales y políticas como los
derechos humanos, la libertad o la igualdad y el progresso econômico, entre
otras muchas. (GALINDO; UJALDÓN, 2016, p. 13)

Nesta direção, torna-se fundamental retomar a definição do vocábulo


“crise”. Os conceitos se caracterizam por guardar e exprimir em sua condição
as variáveis constitutivas de fenômenos correlatos, o que permite a precisão
do discurso potencializando a capacidade de apreensão e compreensão dos
acontecimentos. Na perspectiva do filósofo e jurista Giorgio Agamben (1942 -):
“1. As questões terminológicas são importantes na filosofia. Como disse uma
vez um filósofo pelo qual tenho o maior respeito, a terminologia é o momento
poético do pensamento”. (AGAMBEN, 2009, p. 27). Vejamos a forma como se
apresenta a palavra “crise” no dicionário de filosofia, pois em momentos de
crise permeado, sobretudo pela racionalidade instrumental é oportuno que se
recorra à filosofia. Afinal ela é a guardiã dos preceitos e conceitos civilizatórios
nos quais estamos inseridos.

Crise (in. Crisis; fr. Crise; al. Krisis; it. Crisi). Termo de origem médica que, na

18
medicina hipocrática, indicava a transformação decisiva que ocorre no ponto
culminante de uma doença e orienta o seu curso em sentido favorável ou não
(...). Em época recente, esse termo foi estendido, passando a significar
transformações decisivas em qualquer aspecto da vida social.”
(ABBAGNANO, 2007, p. 259)

O referido dicionário ainda apresenta outros elementos constitutivos do


vocábulo entre eles: 1º O conceito esta presente no percurso civilizatório oci-
dental; 2º Inicialmente vinculado a medicina transita na modernidade para
questões de ordem social. 3º Em ambas dimensões (médica e social), o termo
“crise” pressupõem movimento, passagem, transição de uma condição vital, ou
social, a outra condição de manutenção da vida, ou mesmo de sua negação pela
morte, da ordem social, ou de sua alteração e conformação sobre novas bases
societárias. 4º Em todas estas situações, o termo “crise” denota seu sentido
ontológico (forma do ser no mundo, de ser e participar dele), político (decisão
sobre a manutenção ou não da vida, da ordem social), ética (a tomada de deci-
sões requer a clareza de critérios, entre eles o da garantia do bem comum) e,
estética (decisões amparadas por critérios podem apresentar-se equilibradas,
harmônicas, belas). (ABBAGNANO, 2007).
A partir do exposto e sugerido até o presente momento, pode-se argumen-
tar que o conceito “crise” apresenta duas outras variáveis. A crise pode ser
pensada e compreendida como expressão dialética, ou a crise pode se apresen-
tar como expressão de movimento entrópico. De certo modo, podem-se reco-
nhecer as duas formas presentes na vida dos indivíduos e das sociedades oci-
dentais. No primeiro caso, a crise como expressão dialética se revela como
movimento que desestabiliza a ordem vital individual, ou social. Segue-se a
esta condição de instabilidade período de incertezas, de insegurança que exi-
gem esforços significativos para sua superação. A superação apresenta-se
como novo estágio, como síntese que marca a nova ordem vital ou social.
No segundo caso a crise em sua condição entrópica leva ao definhamento
do indivíduo convalescente, ou da ordem social acometida pela instabilidade
irrevogável de suas instituições. Sob tais circunstâncias, se expõem a dura e
traumática realidade da falência vital ou social em curso. Assim, podem ser
arrolados como exemplos da crise em sua versão dialética: a Reforma Protes-
tante (Lutero) e a Contrarreforma Católica (Concilio de Trento), a Revolução
Americana (1776), a Revolução Francesa (1789), as Revoluções Científicas. Por
outro lado, podem se apresentar como exemplos da crise em sua versão entró-
pica, a falência do mundo antigo, a derrocada do Império Romano, a falência da
cosmovisão judaico-cristã medieval, a Revolução Russa de outubro de 1917,
entre outras.

19
02. A Crise Política, Econômica e Jurídica.

Talvez se possa afirmar mesmo correndo riscos, que a crise política, eco-
nômica e jurídica na qual estamos inseridos indica para o modelo entrópico.
Esta condição entrópica apresenta-se nas seguintes perspectivas. O sistema
político partidário encontra-se desacreditado, desmoralizado pela evidência de
loteamento da máquina estatal e, por derivação de atos corruptos. O argumen-
to da corrupção é de ordem da moral e, ao moralizá-la promove e potencializa
na opinião pública o argumento de que a política tem íntima relação com sujei-
ra, desonestidade, com o mal. O indivíduo passa a desenvolver repulsa pela
política e, em seu insulamento desconsidera sua condição política por excelên-
cia, o fato de que o reconhecimento de sua condição humana está ontologica-
mente vinculado à coexistência com outros seres humanos no espaço público.
Esta condição entrópica da crise também se manifesta na percepção de
que a democracia representativa, representa exclusivamente os interesses do
capital financeiro global e de seus operadores nacionais, amparados por parte
da classe política comprometida com tais interesses. Ainda nesta direção, cons-
tata-se o reducionismo da ação do poder legislativo à casa de jogatina com
recursos públicos e, balcão de negócios com empreiteiras, com o poder execu-
tivo. Por seu turno, o poder executivo legisla freneticamente por medidas pro-
visórias cumprindo contratos que remuneram generosamente o capital, justifi-
cado na lei de responsabilidade fiscal, que em certa medida se apresenta como
lei de irresponsabilidade social, uma vez que a riqueza da nação (Adam Smith) é
resultado do trabalho coletivo e, não da mera especulação de mercados finan-
ceiros. O mesmo poder executivo que em nome da governabilidade alicia
membros do poder legislativo e, concede generosos e imorais aumentos salari-
ais ao judiciário.
Neste contexto, o poder judiciário assume a condição de “terceiro gigante”
sobrepondo-se ao poder legislativo e ao poder executivo, tomando decisões
(atribuição do executivo) e legislando (atribuição do legislativo). Ou ainda,
magistrados que se apresentam cada vez mais criativos e proativos, abando-
nando a condição de guardiões da lei e da constituição, para dizer o que a lei é,
caracterizando a vigência de um estado de exceção permanente.
Fatos e decisões que afirmam a normalização da imoralidade dos repre-
sentantes do legislativo e do executivo e, por extensão a sanha pecuniária do
judiciário com seus aumentos salariais estratosféricos. No bojo da crise encon-
tra-se uma sociedade apática, caracterizada pela individualidade massificada
de seus cidadãos, alheios aos mandos e desmandos jurídicos e políticos em
curso. Ou seja, estamos diante de um sistema jurídico e político que representa
somente a si mesmo e uma população desacreditada na eficiência, na eficácia,
senão na viabilidade do sistema. A partir do conjunto das questões acima apre-

20
sentadas e, que demarcam certos aspectos da crise entrópica em que estamos
inseridos, o filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben, nos apresenta um pri-
meiro argumento:

(...) a política parece, hoje, atravessar um eclipse permanente, no qual se


apresenta em posição subalterna à religião, à economia e até mesmo ao
direito, isto porque, na medida em que perdia consciência de seu estatuto
ontológico, ela deixou de confrontar com as transformações que
progressivamente esvaziaram de dentro suas categorias e conceitos
(AGAMBEN, 2015, p. 9).

Este argumento nos conduz a seguinte constatação: em nossas sociedades


contemporâneas de massas, pautadas num modo de vida de plena produção e
consumo, a economia alcança condição hegemônica, senão inquestionável na
condução dos rumos da política. O Estado Nação é governado na forma redu-
zida de agência reguladora dos interesses do capital financeiro de circunscri-
ção global. Medidas econômicas governamentais que incidem sobre popula-
ções, se apresentam subservientes aos humores do mercado, dos especulado-
res que controlam e dinamizam as demandas da economia financeirizada glo-
bal. Assim, na medida em que a economia (oikos-nomia) se impõe sobre a polí-
tica, fenômenos se apresentam diretamente na esfera política, entre eles: 1º A
retração do espaço público, locus por excelência do debate político em que
indivíduos no exercício de sua cidadania e, comprometidos com sua comuni-
dade/cidade, debatem e se envolvem com as questões de interesse comum. 2º
O isolamento dos indivíduos à esfera privada reduzindo a política à gestão
administrativa e jurídica dos interesses públicos.
Desta forma, sob a égide do esvaziamento da esfera pública, do fim das
utopias e dos projetos políticos de desenvolvimento regionais e nacionais e,
por reverso pelo avanço da sociedade individualizada 5, em nome de um supos-
to estado de emergência econômico, justifica-se o estado de exceção em que
estamos inseridos. Para Agamben, o estado de exceção apresenta-se na forma
jurídico-política da suspensão do ordenamento jurídico vigente como condição
de sua preservação. Ou dito de outro modo, a suspensão da ordem jurídica
vigente, permite que o poder soberano aja em estado de exceção como condi-

5
Publicado no Brasil no de 2008, pela editora Jorge Zahar o livro de Zygmunt Bauman intitulado: “A
Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias vividas”, aborda as questões estruturantes das
sociedade de indivíduos em que estamos inseridos. “Dispor os membros como indivíduos é a marca
registrada da sociedade moderna. Essa atribuição, porém, não foi um ato único como a Criação divina; é
uma atividade reencenada todos os dias. A sociedade moderna existe em sua atividade de “individuali-
zar”, assim como as atividades dos indivíduos consistem na remodelação e renegociação, dia a dia, da
rede de seus emaranhados mútuos chamada “sociedade”. (2008, p. 62)

21
ção de preservação de sua manutenção e dos interesses que representa, sem
com isto ser acusado de ilegalidade.

O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento


planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente
eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar o
âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um
estado de exceção permanente, pretende, no entanto ainda aplicar o direito.
(AGAMBEN, 2004, p. 131)

Sob tais perspectivas, nestes últimos anos, “assistimos” por meio do “ati-
vismo jurídico”6 do STF, bem como dos acordos entre poder legislativo, execu-
tivo e judiciário, a efetivação do estado de exceção, corroborado pelo argu-
mento do jurista alemão Carl Schmitt (1888 - 1985) de que o direito e a aplica-
bilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas obedecem a
lógica das decisões políticas. “A ordem jurídica, como toda ordem repousa em
uma decisão e não em uma norma”. (SCHMITT, 2006, p. 11). Este pressuposto
permite ao jurista alemão ir mais longe e afirmar que a existência da norma
somente é possível a partir de uma determinada decisão que justifique o senti-
do do ordenamento jurídico. Não há sentido e nem aplicabilidade possíveis da
norma em situação de caos. Assim, a partir do pressuposto de Carl Schmitt,
Agamben afirma: “o direito ‘não possui por si nenhuma existência, mas o seu
ser é a própria vida dos homens’ a decisão soberana traço e de tanto em tanto
renova este limiar de indiferença entre o externo e interno, exclusão e inclusão,
nomos e physis, em que a vida é originariamente excepcionada do direito”.
(AGAMBEN, 2002, p. 34)

Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas
quais ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais e os quais
ela submete à sua regulamentação normativa. A norma necessita de um meio
homogêneo. Essa normalidade fática não é somente um “mero pressuposto”
que o jurista pode ignorar. Ao contrário pertence à sua validade imanente.
Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida
para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação
normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação
normal é realmente dominante. (SCHMITT, 2006, p. 13).

6
A expressão “ativismo judicial” (judicial activism), segundo Brilhante (2012) foi utilizada pela primei-
ra vez nos Estados Unidos da América, devidamente acompanhada de sua correspondente antagônica
“judicial self-restraint” ou autocontenção, a partir de um artigo jornalístico em 1947. O termo substituiu
aquele de “governo dos juízes” por sua vez cunhado nos anos 20 do século passado. (...)O ativismo
judicial trata-se de uma ultra-atividade do Judiciário, especialmente quando os tribunais interferem nas
atividades dos demais órgãos estatais, intervindo na separação dos poderes e no exercício da soberania
popular. (MAIA, 2015, p.26).

22
Numa clara distorção dos preceitos constitutivos do Estado moderno fun-
dado sobre um sistema de pesos e contrapesos situados na interdependência
dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), o poder judiciário assu-
miu condição de poder soberano tomando decisões de competência do legisla-
tivo, ou mesmo do executivo. Ou seja, o STF abandona a natureza de sua con-
dição tripartite, que se constitui num primeiro momento como de guardião e
intérprete da carta constitucional. Num segundo momento como corte de ape-
lação diante de decisões de magistrados das demais instâncias do judiciário e,
por fim como tribunal de julgamento de autoridades públicas com foro privile-
giado, para decidir e impor suas decisões aos demais poderes legitimamente
constituídos. O exercício do poder soberano por parte do poder judiciário se
constitui pela fragilidade do poder legislativo, mas também como justificativa e
argumento de autoridade (legal) vinculado a vontade política de membros do
legislativo e de outros grupos políticos em relação às concepções e necessida-
des de afirmação e manutenção de um estado de normalidade. Aqui é preciso
ter presente a máxima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957): “tudo
deve mudar para que tudo fique como está”.
Para Montesquieu (1689 - 1755) o poder legislativo se apresentava como
o mais importante dos três poderes, na medida em que tem a responsabilidade
de representar os interesses dos cidadãos. “Só o legislativo cabe a faculdade de
estatuir, isto é, de ordenar e de corrigir, em matéria de legislação. (...). Ao legis-
lativo cabe a faculdade, não de deter o executivo, mas de examinar como forma
executadas as leis que fez”. (CHEVALLIER, 1999, p. 144). Porém, novamente o
que estamos “assistindo” no caso brasileiro é um poder legislativo que em
maior ou menor medida se especializou na defesa de interesses particulares,
de grupos, locupletando-se com os recursos públicos, exercendo tráfico de
influência para benefício de fins privados em detrimento de questões de inte-
resses estratégicos em âmbito público e social.
A efetivação do estado de exceção em que estamos inseridos, demonstra
de forma inequívoca os paradoxos em que se encontram inseridos os poderes
de estado. Com os Estados reduzidos em sua soberania a condição de agências
garantidoras dos contratos com a economia financeirizada global, resta como
tarefa aos governos nacionais instaurar internamente um estado policial de
segurança, de controle, de plena gestão da vida dos indivíduos e da população,
como forma de conferir e de apresentar as garantias necessárias de rentabili-
dade e segurança do capital investido.

A expressão “por razões de segurança” funciona como um argumento de


autoridade que, cortando qualquer discussão pela raiz, permite impor
perspectivas e medidas inaceitáveis sem ela. É preciso opor-lhe a análise de
um conceito de aparência banal, mas que parece ter suplantado qualquer
outra noção política: a segurança”. (AGAMBEN, 2014, p. 01).

23
Na esteira destes paradoxos, assistimos nos últimos anos o poder executi-
vo governar por meio da proliferação de medidas provisórias (MPs 7) usurpan-
do do poder legislativo sua principal atribuição de legislar em garantida dos
interesses públicos. Ao poder executivo, que opera em estado de exceção, cabe
a condição de legislar e, ato contínuo negociar com o legislativo a afirmação de
suas ações na instauração e manutenção da ordem social exigida pelos interes-
ses do capital financeiro global. Esta é uma das formas a partir das quais se
pode compreender que sob os pressupostos da hegemonia da economia se
estabelece o fenômeno da judicialização da política e, mesmo das relações
humanas em sua totalidade. Compreender o fenômeno da judicialização8 re-
quer constatar os fundamentos da economia e, por extensão seus desdobra-
mentos nas sociedades financeirizadas globais contemporâneas.

03. A legitimidade dos governos comprometidos com os contratos da


economia financeirizada.

Contrariamente ao senso comum, que paira inclusive sobre parte da inte-


lectualidade, o cumprimento por parte dos governos de plantão dos contratos
com a economia global, não confere segurança a governos, povos, comunida-
des, cidadãos e indivíduos. O cumprimento dos contratos com a economia fi-
nanceirizada, requer que o governo de plantão abandone políticas públicas de
desenvolvimento nacional e regional, pois é na insegurança social, na precarie-
dade do trabalho, das condições de vida, no crescente endividamento dos indi-
víduos que a economia de crédito se multiplica financeiramente. Assim, o fun-
damento “ontológico” da economia financeirizada, paradoxalmente anunciada
como economia de crédito se apresenta em seu modo de ser na forma do débi-
to.

7
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisó-
rias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
(...)
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se
não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por
igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas
delas decorrentes.
(...)
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de
eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante
sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
§ 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-
se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. (BRASIL, CF/1988)
8
O termo “judicialização”, esclarece a professora Gretha Leite Maia (2015, p. 27), “não possui um
contorno muito preciso na literatura jurídica brasileira. Seu emprego foi difundido principalmente a
partir do livro de Luiz Werneck Vianna – A judicialização da política e das relações sociais no Brasil,
publicado em 1999.

24
O débito é lei universal da economia em seus diversos âmbitos. A econo-
mia que se impõe a vida dos povos e dos indivíduos requer que todo e qual-
quer vivente reconheça e aja cotidianamente em relação a débito biológico
originário. A vida está visceralmente em débito com a morte, pagando cotidia-
namente os juros para manter-se viva. A economia da salvação requer que se
reconheça o débito com o criador. O sacrifício cotidiano da manutenção da fé é
o juro a ser pago para o alcance da salvação. Assim, a economia financeira glo-
bal que se assenta no débito de trabalho não pago, no constante deslocamento
das formas materiais de sua reprodução e, na afirmação de sua condição com
um fim em si mesma, está pautada na promoção constante da insegurança
econômica a que estão submetidos indivíduos e nações. A promoção constante
da insegurança econômica (débito) é a condição da reprodução do capital que
se apresenta na forma financeirizada.

Isso significa, por outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os bancos


que são seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito – ou seja,
sobre a fé dos homens (...). O Banco – com seus pardos funcionários e
especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o
crédito, manipula e gerencia a fé (...). Dessa maneira ao governar o crédito,
governa não só o mundo, mas também o futuro dos homens, um futuro que a
crise torna cada vez mais curto e a prazo determinado. E só hoje a política já
não parece possível, isso se deve ao fato de que o poder financeiro de fato
sequestrou toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.
(AGAMBEN, 2012, p. 2).

A paradoxalidade desta conformação econômica de mundo em que esta-


mos inseridos apresenta-se no discurso da segurança. O capital a despeito de
seu mecanismo de funcionamento visceral, o débito, exige segurança social e
políticas públicas que viabilizem na forma da estabilidade social o cumprimen-
to dos contratos. Os Estados promovem junto a população a sensação de segu-
rança, por meio da ampliação do acesso a direitos e, sobretudo ao crédito e,
por consequência do endividamento social. Por outro lado, os indivíduos cida-
dãos submetidos ao culto ao crédito, que lhes imputa a condição de seres em
débito, anseiam por segurança profissional, material, vital. Assim, a busca por
segurança exige a restrição da liberdade e a aceitação de uma forma-de-vida
sempre em débito. É neste contexto de mundo caracterizado pela insegurança
e pelo crescente endividamento que se multiplicam os discursos e a ansiedade
pela segurança.

“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como
palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem
medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar.

25
”Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que
seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais
é senão o modo normal como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se
trata de um funcionamento que nada tem de racional. (AGAMBEN, 2012, p. 01)

Assim, com a política transformada em puro meio a serviço da economia


financeirizada, como fim em si mesma, promotora do discurso da segurança e,
responsável pela promoção da insegurança, o direito passa a ser sobrevalori-
zado, senão como mecanismo determinante perpassando todas as esferas das
relações políticas e sociais. A crescente judicialização da vida e das relações
justifica-se num mundo caracterizado pela insegurança. Potencializa-se a cren-
ça na justiça do direito. A legislação invade, cristaliza na forma da lei a totali-
dade dos direitos e deveres. O exercício da cidadania é substituído pela afir-
mação e garantida jurídica da mesma. Assim, quanto mais intensa se apresenta
a crença, a vontade da judicialização das esferas políticas, sociais e econômicas,
menor a possibilidade do debate, da experiência do pensamento na busca de
consensos entre indivíduos na liberdade de ação cidadã. Mais do que isto, é
preciso ter presente, que quanto maior a judicialização das relações humanas
em sua totalidade, maiores serão as condições de controle e vigilância e de
ação do judiciário, ou de qualquer outra forma de relação de poder que se so-
breponha ao judiciário, na forma do estado de exceção.
Sob tais pressupostos, a instauração e a vigência do estado de exceção em
curso conta com a parcimônia dos cidadãos inseridos na lógica de uma socie-
dade de plena produção e consumo. Nesta direção, Agamben aponta para “o
fato de que ser cidadão é algo indiferente” (AGAMBEN, 2014, p. 01). Ou ainda,
na perspectiva do filósofo, “Atualmente, o poder tende a uma despolitização do
status de cidadão”. (AGAMBEN, 2014, p. 01). Estamos diante do fenômeno da
redução da cidadania a condição da opinião pública. O esvaziamento do debate
político como efetivação do espaço público e garantia do bem comum remete a
conformação da opinião pública ansiosa por segurança em relação à sobrevi-
vência advinda das necessidades da vida privada, de garantias de subsistência
à condição de indivíduos inseridos na esfera da produção e do consumo, con-
formando as bases da dinâmica financeirizada das formas de vida na contem-
poraneidade.

Paradoxalmente o que se tem verificado é uma confusão entre a condição de


cidadão e a condição de consumidor. Para a ampliação da cidadania é
necessário incentivar formas associativas de organização social, de caráter
coletivo, fomentando práticas comunitárias. Por outro lado, o indivíduo que é
amparado pelo Estado, por meio de políticas de transferência de renda que
lhe assegure uma dignidade como consumidor, perde a dimensão da força
das lutas sociais para a conquista de direitos, contribuindo muitas vezes para
o isolamento social. (MAIA, 2015, p. 39)

26
Sob todos estes aspectos, a crise política, jurídica e econômica em que es-
tamos inseridos intensifica-se a percepção de que não sabemos do que esta-
mos falando, quando falamos que vivemos numa democracia. Nos mais diver-
sos discursos do executivo, do legislativo, do judiciário, o que se constata é a
defesa da democracia. A defesa da democracia também se apresenta como
mote dos diversos movimentos sociais antagônicos em suas leituras e posicio-
namentos diante da crise política em curso. Assim, a partir das perspectivas
analíticas de Agamben, pode-se inferir que os múltiplos discursos em defesa da
democracia a concebem como técnica de governo. Ou seja, o anseio que se
expressa em tais discursos é a necessidade de afirmação de sociedades demo-
cráticas seguras, mesmo que tal condição signifique o aumento do controle, da
vigilância, da invasão da privacidade, da retirada de direitos, da segregação de
determinados refugos sociais indesejados. Nesta direção, os refugiados sírios
se apresentam como refugos indesejáveis das sociedades democráticas e segu-
ras europeias. No caso brasileiro, no cenário de crise em curso, mas, de certa
forma anterior ao cenário da crise, os refugos indesejáveis, alvos de críticas são
os beneficiários dos programas sociais, entre outros segmentos sociais outrora
marginalizados. Categorias sociais excluídas que de alguma forma pela ação da
agência estatal foram incluídos num certo segmento social, econômico, de con-
sumo e de produção, prerrogativa e exigência da dinâmica de acumulação do
capital.

O que procurei evidenciar é o aspecto totalmente novo da situação. Acredito


que, para entendermos o que estamos habituados a chamar de “situação
política”, devemos levar em conta o fato de que a sociedade em que vivemos
talvez já não seja uma sociedade política. Um fato como esse nos obriga a
mudar completamente nossa semântica. Assim, tentei mostrar que, na Atenas
do século V a.C., a democracia começa com uma politização do status de
cidadão. O fato de alguém ser cidadão em Atenas é um modo ativo de vida.
Hoje, em muitos países da Europa, assim como nos Estados Unidos, onde as
pessoas não vão votar, o fato de ser cidadão é algo indiferente. Talvez na
Grécia isso valha em menor medida, pois, pelo que sei, aqui ainda existe algo
que se assemelha a uma vida política. Atualmente, o poder tende a uma
despolitização do status de cidadão. O que é interessante numa situação tão
despolitizada é a possibilidade de uma nova abordagem da política. Não
podemos ficar presos às velhas categorias do pensamento político. Urge
arriscar, propor categorias novas. Sendo assim, se no final se verificar uma
mudança política, talvez ela será mais radical do que antes. (AGAMBEN, 2014,
p. 01)

A análise de Agamben prossegue aponta para o fato de que vivemos inse-


ridos em sociedades democrático-espetaculares, caracterizadas pela produção
e o consumo instantâneo de informações, de produtos, de serviços e de rela-

27
ções humanas. As sociedades democrático-espetaculares movem-se pela opi-
nião pública formada pela ininterrupta, massiva e seletiva produção de infor-
mações. Tais prerrogativas fazem com que em certos momentos a opinião
pública se apresente sob nuances, ditatoriais, fascistas e, até totalitárias. Esta
condição também se expressa na opinião pública brasileira em diversas dire-
ções, entre elas: Em segmentos sociais que apregoam a volta dos militares ao
poder. Na agressividade que se apresenta em debates nas redes sociais. Em
propostas políticas oportunistas e desvinculadas de amplo debate político e
social, entre elas: a instauração do parlamentarismo, a realização de novas
eleições gerais, o impeachment presidencial por ferir a ordem constitucional
vigente. Na crença em relação ao poder judiciário e na exigência de maior
judicialização, controle e segurança das relações humanas, políticas e econô-
micas.

No novo percurso do espetáculo, como uma vitória da democracia. Apesar


das aparências, a organização democrático-espetacular-mundial que vai,
portanto, se delineando corre o risco de ser, na realidade, a pior tirania que
jamais se viu na história da humanidade, em relação à qual resistência e
dissenso serão, de fato sempre difíceis (...). (AGAMBEN, 2015, p. 83)

Agamben demonstra que as sociedades democrático-espetaculares des-


consideram o problema central da democracia transformada em técnica de
governo. Espetacularmente a democracia foi transformada em técnica de go-
verno vinculada a centralidade e inquestionabilidade dos pressupostos da
economia financeirizada. Neste contexto, a democracia é apresentada como
valor absoluto que deve ser assumido integralmente pelos indivíduos corrobo-
rando com o definhamento da política que entre outras possibilidades se ca-
racteriza pela ação livre entre seres humanos em função da constituição e da
garantia do espaço público. Sob tais perspectivas argumentativas Agamben
chama atenção para o problema da democracia apresentado desde as origens
da Grécia Antiga por Platão na obra: “A República”, aos nossos dias, retomado
por Hannah Arendt, ao longo de sua obra e, situado de forma lapidar pelo filó-
sofo francês Jacques Ranciére (1940 -):

É óbvio que o ódio à democracia não é novidade. É tão velho quando a


democracia, e por uma razão muito simples: a própria palavra é a expressão
de um ódio. Foi primeiro um insulto inventado na Grécia Antiga por aqueles
que viam a ruína de toda ordem legítima no inominável governo da multidão.
Continuou como sinônimo de abominação para todos os que acreditavam que
o poder cabia de direito aos que a ele eram destinados por nascimento ou
eleitos por suas competências. Ainda hoje é uma abominação para aqueles
que fazem da lei divina revelada o único fundamento legítimo da organização

28
das comunidades humanas. A violência desse ódio é atual, não há dúvida”.
(RANCIÉRE, 2014, p. 8).

Assim, no atual contexto de crise política, jurídica e econômica nacional e


global, democracia e estado de exceção se apresentam como condição de técni-
cas de governo comprometidos com os interesses da lógica de acumulação do
capital, da economia financeirizada global. “E não há Estado dito democrático
que não esteja atualmente comprometido até o pescoço com essa fabricação
maciça da miséria humana. (AGAMBEN, 2015, p. 120).

04. Considerações finais

Sob este conjunto de variáveis e, outras tantas que podem ser contempla-
das justificam-se o argumento de que estamos vivendo em pleno estado de
exceção e, que na interinidade dos governos de plantão “assiste-se” cotidiana-
mente a discursos que anunciam ameaças aos direitos sociais, como único
caminho possível de conferir garantias de rentabilidade e segurança ao capital
financeiro global. E uma vez mais, nesta direção, mostra-se pertinente o argu-
mento de Agamben no que se refere à polifonia profusa de discursos em defesa
da democracia. “A democracia é uma ideia incerta, porque significa, em pri-
meiro lugar, a constituição de um corpo político, mas significa também e sim-
plesmente a tecnologia da administração – o que temos hoje em dia. Atualmen-
te, a democracia é uma técnica do poder – uma entre outras.” (AGAMBEN,
2014, p. 01)
Esclarece ainda Agamben, que “A crise atual tornou-se um instrumento de
dominação. Ela serve para legitimar decisões políticas e econômicas que de
fato desapropriam cidadãos e os desprovêem de qualquer possibilidade de
decisão” (AGAMBEN, 2013, p. 01), o que significa ter presente a luz da perspec-
tiva analítica agambeniana que estamos diante de inúmeros desafios, entre
eles: a) reconhecer que estamos imersos em pleno estado de exceção, que em
sua condição de suspensão da ordem jurídica como garantia da mesma promo-
ve na contramão dos discursos dos operadores do judiciário e, da crença soci-
almente difundida a insegurança jurídica. Ou seja, neste momento somos todos
homni sacri, vida nua; b) é tarefa de nosso tempo profanar as categorias e as
concepções políticas nas quais estamos inseridos como condição sine qua non
da política que vem.
A partir do conjunto de argumentos situados ao longo do debate, constata-
se que a crise pode ser pensada como infindável instrumento de poder em sua
condição entrópica de desmonte da ordem social, política e econômica consti-
tuída, por um lado, a partir do pós-guerra pela própria democracia liberal no

29
chamado “Estado Democrático de Direito” e, em certo sentido derivado das
lutas de grupos, minorias e movimentos sociais. Ou seja, estamos diante da
provocada “auto-ilegitimidade” representativa do sistema. As garantias sociais
e de direitos desmoronam a passos lentos em nome da “defesa da democracia”.
Estamos diante de governos que não se reconhecem em sua ilegitimidade fren-
te ao descaso com demandas sociais de suas populações. É sob estes pressu-
postos que é preciso apresentar os questionamentos: o que significa desenvol-
vimento neste contexto? O desenvolvimento pode ser pensado como o desafio
diante de uma ordem social, política e jurídica em que o velho que definha e o
novo que ainda não se apresenta?

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30
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31
NOTAS SOBRE O ESGOTAMENTO
DA FORMA ESTATAL E O FORTALECIMENTO DO
ESTADO SECURITÁRIO
Daniel Arruda Nascimento1

1. Estas notas que agora se iniciam procuram responder ao provocativo


texto que dá suporte à apresentação do I Seminário Nacional sobre Estado,
Crise Política, Econômica e Perspectivas de Desenvolvimento, realizado em
fevereiro de 2017 na Universidade do Contestado, na medida em que têm a
intenção de contribuir com uma reflexão em torno dos limites e potencialida-
des da ação da Razão do Estado brasileira diante das crises econômicas e polí-
ticas que ciclicamente investem sobre ele em âmbito global. Optei por reter as
minhas falas dentro do escopo dos temas propostos, de modo a favorecer um
encontro frutuoso e de algum modo conclusivo. Para orientar o debate em
meio a um público tão diverso, considerei ser de bom tom ancorar as minhas
falas em torno das questões já suscitadas. Estão aqui apenas algumas notas que
reúnem os apontamentos das minhas duas participações, enquanto expositor
convidado para a mesa de abertura do evento e na mesa quatro, que inclui no
horizonte da discussão a crise jurídica a partir do conceito de estado de exce-
ção. O título aqui escolhido pretende, portanto, fazer jus à ideia do evento,
trazendo dois elementos que podem nos ajudar a alavancar o exercício reflexi-
vo, quais sejam, o esgotamento da forma estatal como estrutura que garante o
convívio humano e o agigantamento do assim chamado Estado Securitário. Em
relação às referências que adoto, escolhi privilegiar a recente produção de
Giorgio Agamben, com o objetivo de corresponder às expectativas e ampliar o
diálogo com o importante grupo de pesquisa criado nesta universidade sobre a
sua obra, liderado pelo professor Sandro Luiz Bazzanella, a quem agradeço
publicamente o convite.
2. Temos notado que são crescentes as dúvidas no que diz respeito à capa-
cidade do Estado Moderno de responder aos desafios que lhe são impostos
pelo cenário político contemporâneo. Não são poucos os autores que interpe-
lam a tríade soberania, território, população, para considerar que, embora seja
difícil imaginar outro modo de organização política humana fora da forma
estatal, conjecturar possibilidades outras é muitíssimo necessário. Recente-

1
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto do Instituto de Ciên-
cias da Sociedade da Universidade Federal Fluminense. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: danielarrudanascimento@id.uff.br.

33
mente, observei que “com uma frequência cada vez maior e com uma solicita-
ção que reúne teóricos e ativistas políticos, alguns autores têm esboçado a
preocupação com o esgotamento da forma estatal para a organização do conví-
vio e dos negócios humanos, bem como levantado questões sobre a possibili-
dade de se conceber formas outras que ajudem a solucionar antigos e novos
problemas políticos” (NASCIMENTO, 2016, pp. 96-97). Entre esses autores,
está o filósofo italiano Giorgio Agamben, ainda vivo e vivamente contemporâ-
neo. Já em 1990, uma mesma frase publicada com uma mínima variação em
dois lugares distintos, no livro La comunitàcheviene e na revista francesa Multi-
tudes sob o título Gloses marginalesau x Commentaires sur las ociété Du specta-
cle (em referência à obra de Guy Debord), coloca a questão nesses termos: “o
fato novo da política que vem é que ela não será mais a luta pela conquista e
controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado (a humanidade)”
(AGAMBEN, 2001, p. 67, grifado no original). O último capítulo de La comunità
cheviene nos informa que o regime democrático-espetacular em que atualmen-
te vivemos, um regime pretensamente democrático que se revela como o lugar
da acumulação de imagens que expropriam e alienam, é o cumprimento da
forma Estado. Nele, a sociabilidade humana está expropriada e alienada (ali, o
principal inimigo do Estado será identificado como a singularidade qualquer,
cuja potência está na recusa de toda identidade e de toda condição de perten-
cimento). Uma política que vem, que ainda não está entre nós e resta ser con-
cebida, de contornos ainda indeterminados, será a portadora da crise mais
profunda do Estado, da crise na qual a sua própria razão será posta em xeque.
Somos levados a nos perguntar se o Estado é realmente necessário, se é o úni-
co modo de organização política da sociedade, se é a única forma possível para
associação dos homens e a criação da vida social, para a distribuição territorial
estável, para sediar o ordenamento jurídico e o sistema imperativo legítimo. O
mundial problema dos refugiados, por exemplo, que infelizmente não é novo e
dura pelo menos desde o declínio do Estado-nação, é apenas um sintoma do
esgotamento da forma estatal. As enormes massas de gentes que de deslocam
de um lado para o outro, atravessando fronteiras, sem encontrar conforto, ou
um estatuto político-jurídico digno de confiança, são testemunhas desse esgo-
tamento. Não estamos falando de um mau funcionamento, como se bastasse
corrigir pequenos erros que estamos cometendo na regulação do Estado. Es-
tamos falando de esgotamento, de crise estrutural, que se refere ao modo de
ser do Estado, a exigir de nós alternativas inovadoras.
3. Por outro ângulo, não é surpresa que a reação do Estado à sua crise seja
o seu recrudescimento. Como se comportaria o Estado Moderno frente à crise?
Com a defesa de sua própria existência e manutenção, com o seu fortalecimen-

34
to, com o apelo à Razão de Estado. Desde Thomas Hobbes, o Estado existe para
tornar possível o convívio humano, para pôr fim às hostilidades mútuas e ga-
rantir a segurança e a paz social (cf. HOBBES, 1979, p. 106). Sem o Estado, seria
impossível impedir que os homens se matassem ao disputar os mesmos obje-
tos de desejo e de consumo. Pois bem, como se não bastasse essa crença, ve-
mos no nosso tempo a definitiva consagração do argumento da segurança. Em
quase todas as suas últimas entrevistas e conferências públicas, Giorgio Agam-
ben tem chamado a nossa atenção para esse fato: as razões de segurança toma-
ram o lugar da razão de Estado. Assistimos a “um processo em curso que faz as
democracias ocidentais evoluírem para algo que se pode chamar de Estado
Securitário [...]. A palavra ‘segurança’ entrou tão definitivamente no discurso
político que se pode afirmar, sem receios, que as ‘razões de segurança’ toma-
ram o lugar do que se chamava anteriormente de ‘razão de Estado’. Uma análi-
se desta nova forma de governo, entretanto, ainda faz falta” (AGAMBEN, 2015).
A expressão por razões de segurança é largamente usada para justificar todo
tipo de ação estatal. Se a segurança sempre foi algo relevante na formação dos
Estados, atinge um lugar privilegiado no Estado Securitário, um Estado ontolo-
gicamente fundamentado na segurança e na sua majoração, um Estado que tem
a segurança como princípio, como valor e como necessidade. De modo geral,
em contexto muito atual, o Estado Securitário apresenta três características
podem ser facilmente divisadas: a manutenção do medo generalizado, a despo-
litização dos cidadãos, a renúncia à efetividade ou certeza da lei (cf. AGAMBEN,
2015). A tradição filosófica que havia sustentado a formação dos Estados Mo-
dernos já havia deixado claro que “os pactos sem a espada não passam de pa-
lavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (HOBBES, 1979, p.
103). Coloca-se em relevo agora o elemento segurança e a necessidade de ga-
ranti-la custe o que custar. A preocupação com a segurança tem o condão de
modificar a relação entre os homens que vivem em sociedade e autorizar o
controle ilimitado, pelo governo, por instituições públicas e privadas que atu-
am paralelamente, e até pelos vizinhos. Produz-se o medo, dissemina-se o me-
do, para tornar o processo mais efetivo. Para se auferir a extensão dos danos,
basta observar quanto se gasta no mundo civilizado com todo tipo de equipa-
mento e serviço de segurança, tais como cercas, câmeras, sistemas etc. O medo
paralisa, tem como resultado a passividade dos cidadãos. O que contribuirá
para o quadro geral de despolitização, embora não seja dela o único motivo. O
Estado Securitário prescinde de participação política, contanto que a seguran-
ça esteja na ordem do dia. Desenvolve-se então um ambiente político no qual a
participação política é reduzida às urnas, o que fulmina a ideia de democracia,
especialmente em um sistema ditado inteiramente por regras e interesses

35
econômicos, que se estabeleceram legal ou ilegalmente, isto pouco importa. O
sistema representativo está em ruínas. A representação política é um escudo,
impede a participação popular, distancia os representados, revela ser uma
representação pro forma. Associado à crise do Estado opera o avanço de um
estado não político, um cenário político no qual os cidadãos estão despolitiza-
dos, refugiados em seus próprios negócios privados. Cuida-se de mais uma
faceta da vitória do animal laborans, para usar uma expressão de Hannah
Arendt, o homem moderno em um mundo menos confiável foi arremessado
não ao encontro do mundo que o rodeava, mas para dentro de si mesmo (cf.
ARENDT, 2004, p. 333), o homem político do nosso tempo está cada vez mais
somente a serviço de seu metabolismo. A falsa impressão que nos dão as redes
sociais virtuais, à primeira vista um novo espaço de socialização e troca de
ideias, supostamente democrático, desaparece rapidamente, na medida em que
demonstram ser mais um fármaco inebriante, cheio de limitações, absoluta-
mente autoritário. Como terceira característica, o Estado Securitário conta
ainda com a relativização jurídica. A certeza jurídica é substituída pela inde-
terminação, não se sabe o que é garantido ou não, permitido ou não. Este é o
modo mais suave de se retirar direitos sem reconhecê-lo diretamente. Alimen-
tando a cortina de fumaça, os poderes republicanos entram em um conflito
orquestrado. Em terras tupiniquins, o avanço do Executivo sobre as atribuições
dos outros poderes convive com a tentativa de autoempoderamento do Con-
gresso Nacional e a judicialização da política, especialmente deflagrada pelo
ativismo do Supremo Tribunal Federal. No mundo ocidental como um todo, a
incerteza jurídica tem como efeito a entrega das responsabilidades do decidir e
do dizer a verdade à polícia e aos meios de comunicação. Paradoxalmente, o
Estado de Segurança não cumpre o que promete e o resultado é o contrário do
que se esperava, isto é, menor segurança para todos, até mesmo para os mais
ricos que se escondem em condomínios fechados. O Estado social se converte
em Estado penal. O espírito do neoliberalismo esquizofrênico “pretende reme-
diar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico
e social” (WACQUANT, 2001, p. 04). Não é raro, por exemplo, assistirmos a
autoridades públicas da envergadura de um Ministro da Justiça prestar decla-
rações na grande mídia apontando, como solução para a crise do sistema peni-
tenciário e para o clima de insegurança geral nas grandes cidades, a construção
de mais penitenciárias. A imagem do Leviatã é hoje a imagem de um policial
fortemente armado. Esta é a aparição fenomênica do Estado para grande parte
da população mundial.
4. Sob a ótica do conceito de estado de exceção, é preciso acrescentar al-
gumas coisas e fazer algumas distinções. É verdade que Giorgio Agamben é um

36
autor polêmico. Mas dentre as teses levantadas pelo filósofo na sua leitura do
nosso contemporâneo político, uma delas não causa tanta estranheza, uma vez
que pode ser comprovada historicamente sem grandes dificuldades: a tese de
que o estado de exceção tenha se tornado uma técnica de governo cada vez
mais presente entre nós (cf. AGAMBEN, 2004, p. 11). Do ponto de vista concei-
tual, o instituto do estado de exceção consiste na suspensão no todo ou em
parte da ordem constitucional e de direitos que lhe são inerentes por quem
exerce o poder soberano. Jurídico, suspende direitos e garantias individuais e
coletivos. Territorial, circunscreve-se a um determinado território geográfico.
Temporal, destina-se a ser provisório, enquanto perdurar o estado de anorma-
lidade. Na sua origem histórica, revela uma contradição do Direito: o reconhe-
cimento de ser insuficiente, o reconhecimento de ser incapaz de solucionar o
mundo sem lançar mão de sua própria suspensão quando uma necessidade se
impõe. Mais, o reconhecimento de sua gênese e cumplicidade com a violência.
Não nos esqueçamos que Friedrich Nietzsche já havia nos convencido, no afo-
rismo onze da segunda dissertação da sua Genealogia da moral, que “do mais
alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser esta-
dos de exceção” (NIETZSCHE, 1998, p. 65, grifos do original). Exemplo maior
recente no Brasil é a nova ordem instaurada pela ditadura empresarial-militar
que se iniciou em 1964, na qual os direitos foram sendo sistematicamente
suspensos pelos Atos Institucionais especialmente até 1969. Por outro lado, a
exceção é também um dispositivo disseminado no sistema, indeterminado em
sua forma, que atua independentemente da deflagração formal do estado de
exceção. Um dispositivo que captura, que restringe a nossa liberdade de ação,
que a orienta e a controla. Um dispositivo que pode tomar a forma de uma
norma, uma prática, uma interpretação, um modo de empregar a linguagem,
um objeto, um lugar, entre muitas outras (cf. AGAMBEN, 2006, pp. 21-22).
Talvez seja este o sentido aludido por Walter Benjamin na oitava das Teses
sobre o conceito de história, endossadas em grande parte pelo filósofo italiano,
para além das manifestações jurídicas do estado de exceção, ao afirmar que “a
tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é
na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 1994, p. 226). As aspas na frase indicam
que o filósofo alemão toma por empréstimo a imagem do estado de exceção,
sem se referir simplesmente ao regime excepcional do seu país à época, para
mostrar que a excepcionalidade permanente convive com o Estado Constituci-
onal.
5. Antes de finalizar a minha participação, não posso me furtar a sondar o
contexto brasileiro. Esta é também a intenção deste seminário, segundo a ex-
posição de motivos divulgada junto à programação. Todos concordam que

37
estamos vivendo uma crise política, embora as opiniões costumem divergir em
relação às suas causas. Os mais lúcidos reconhecem que ela não é tão recente
quanto parece. Há um fato recentíssimo, no entanto, que abriu como uma feri-
da no nosso corpo político. O que aconteceu no ano de 2016, o que a grande
mídia e alguns políticos de carreira com interesses bem identificáveis chama-
ram de impeachment¸ foi um golpe institucional. A dinâmica e a linguagem
empregadas nos atos que retiraram a presidenta eleita do cargo foram cons-
truídas sob o patrocínio da exceção. Tudo aconteceu de modo excepcional para
tornar palatável o golpe. Assistimos à alteração das regras do jogo no meio do
processo para se encontrar um crime de responsabilidade que não ocorreu.
Condutas que não eram antes consideradas como crime de responsabilidade
passaram, excepcionalmente, ou seja, por meio da aplicação de dispositivos
excepcionais, a ser consideradas como crimes de responsabilidade, com o obje-
tivo manifesto de trocar a chefia de governo sem a consulta popular. Estamos
diante de um golpe orquestrado e blindado pelas instituições. Além de incons-
titucional, o governo que temos neste momento é ilegítimo, não foi escolhido
pelo voto popular e não se mantém com o seu apoio. Alguém que acordasse
hoje de um sono longo e profundo no nosso país, poderia se espantar e mani-
festar o seu estarrecimento com a seguinte indagação sonora: como é possível
que um Chefe do Poder Executivo de um governo inconstitucional, ilegal, ilegí-
timo, com tamanha rejeição popular, permaneça no cargo?
6. Diante que um quadro apresentado nestes termos, nada mais natural do
que perguntar se existe saída. Esta é costumeiramente a pergunta que se faz
quando apresento o diagnóstico avençado por Giorgio Agamben sobre o nosso
atual estado político. Penso que a saída possível não está no reforço das insti-
tuições estatais, ou jurídicas, que trazem em si a simbiose da relação entre
Direito e violência. Muito menos no fortalecimento dos partidos políticos que,
como alertou Hannah Arendt em Crises da república, tendem a funcionar como
facções, a representar unicamente os seus próprios interesses no jogo do po-
der, a “não representar ninguém exceto as máquinas dos partidos” (ARENDT,
2013, p. 79). Quando se trata de saídas, penso também não ser possível limitar
os nossos horizontes, a política que vem compreende coisas que não conhece-
mos ainda. Todavia, se tivesse que me arriscar entre aquilo que já conhecemos,
diria que a saída passa pela radicalização da experiência democrática, pela real
ampliação dos espaços de discussão e decisão coletivas, com a subversão do
Estado e do Direito se necessário for. Está claro, com a derrocada das institui-
ções supostamente democráticas que dispomos hoje em dia, se for este o caso.
Sem recusar as conquistas históricas que nos acompanham nesse caminho,
levar a sério os princípios de autodeterminação, de participação popular e de

38
consideração fraterna. Essa é a minha aposta, correndo, evidentemente, o risco
de errar. Apenas uma aposta, entre as alternativas que atualmente se apresen-
tam e são viáveis. E assim, nada me parece mais relevante para nós professores
do que educar para a democracia.
7. Post-scriptum. Acrescento um último comentário, no interesse da lin-
guagem comum. O livro de Sandro Luiz Bazzanella e Selvino José Assmann
sobre A vida como potência a partir de Nietzsche e Agamben surge de outra
perspectiva mas nutre uma intensa proximidade com o que aqui procuramos
desenvolver brevemente. Lá, a centralidade da vida no pensamento dos auto-
res de referência dá azo à ontologia da potência, sem descuidar da oportunida-
de de esmiuçar o diagnóstico do presente. Em um mundo de indivíduos torna-
dos consumidores vorazes, todos estão “ansiosos em torno da contínua busca
de maior segurança em todas as esferas de suas vidas, sejam elas, segurança
econômica na esfera profissional, segurança nos investimentos financeiros,
segurança pessoal frente à constante ameaça à violência, dos vírus e das bacté-
rias que podem assaltá-los de forma imprevista. Enfim, busca-se sempre mais
segurança como garantia de se estar seguro num mundo inseguro, mesmo que
isso signifique a perda da liberdade de se confrontar em espaço público com
outros seres humanos em torno de discussões de interesse coletivo” (BAZZA-
NELLA; ASSMANN, 2013, p. 187). Como já relatado, ao passo da despolitização
dos cidadãos, assistimos à escalada da segurança pública, do trabalho, jurídica,
médica, alimentar, policial, informacional, digital, estrutural, imobiliária, fami-
liar, religiosa, soteriológica. O Estado em crise se movimenta monstruosamen-
te para satisfazer a essa demanda por segurança, alimentando-se dela para
tornar-se cada vez mais securitário. Nesse sentido, ressaltemos que a aposta na
democracia parece ser a melhor escolha mesmo que se reconheça como pres-
suposto a hipótese de que “a potencialização democrática do Estado é também
a possibilidade de acelerar o definhamento do próprio Estado” (BAZZANELLA;
ASSMANN, 2013, p. 176). Aliás, melhor ainda se assim o for. Se a radicalização
da experiência democrática fará emergir outros modos de comunidades hu-
manas, talvez mais justas e livres, não temos nada a temer. Depois da apresen-
tação oral destas notas, encontrei uma passagem que vem a calhar para finali-
zar este registro e animar o diálogo: “o Estado, enquanto manifestação de uma
determinada racionalidade que se constitui na forma de organização política,
social, econômica e cultural presente na modernidade, é marcado pela transi-
toriedade temporal, pela contingência inerente a toda e qualquer obra humana.
O que significa ter presente que outras formas de ordenamento político apre-
sentar-se-ão no curso da existência e das relações que os seres humanos esta-
belecem entre si neste planeta de quinta grandeza, perdido em algum remoto
rincão do universo” (BAZZANELLA; ASSMANN, 2013, pp. 174-175). Outros
modos de comunidades humanas surgirão, ao arrepio do grande Leviatã. Para
que sejamos convencidos disso, não seria nem indispensável o apelo à dimen-

39
são nânica do planeta e à nossa incapacidade de ver. Como uma vez disse o
“nosso querido Hamlet”, em período que antecede a nossa atual “sofrência”, há
mais coisas no céu e na terra do que as que foram sonhadas pela nossa filoso-
fia.

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40
ECONOMIA E POLÍTICA EM AGAMBEN1
Marcos Nalli2

Advertência preliminar: Na exposição que segue, apresentarei uma leitura


que, a despeito de suas imperfeições, busca ter alguma fidelidade teórico-
conceitual com os textos de Giorgio Agamben. Apesar de meu interesse pela
obra agambeniana, sou-lhe apenas um leitor curioso e diletante, não lhe devo-
tando de fato qualquer pesquisa ou investigação, ainda que leve a sério suas
reflexões como poderosas ferramentas conceituais e argumentativas para pen-
sar o presente, assim como as tomo como provocadoras o suficiente, não ape-
nas para o debate e exposição de minhas próprias reflexões e sim, também,
para pensar a ação, em especial a ação política. Portanto, o que faço aqui está
mais próximo de uma caricatura, uma caricatura filosófica, que se assenta num
paradoxo fundamental: a de buscar cumprir seu objetivo de fornecer uma re-
presentação fiel a partir, sempre, de um esforço de torná-lo exagerado e gro-
tesco. É com base no grotesco que tecerei minhas considerações.*
Quando nos deparamos com o tema do econômico em Giorgio Agamben o
que mais prontamente nos lembramos são suas reflexões em torno de seu livro
O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo, publi-
cado originalmente em 2007 (e no Brasil em 2011, com tradução de Selvino J.
Assmann). Este livro, que compõe o projeto Homo sacer, recebendo para tanto
a condição topológica de volume II,2, se justifica desde sua premissa como uma
pesquisa sobre “os modos e os motivos pelos quais o poder foi assumindo no
Ocidente a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo dos homens”
(AGAMBEN, 2011, p. 9). Sua tese consiste em mostrar e demonstrar como da
teologia cristã se derivou dois paradigmas bem distintos ainda que bem cone-
xos, dos quais se pôde erigir historicamente a política: da teologia política se
originou a teoria e a filosofia política, e da teologia econômica se tem a emer-
gência da biopolítica, da economia propriamente dita e do governo (AGAM-
BEN, 2011, p. 13).
Em que consiste exatamente esses dois paradigmas? Do paradigma teoló-
gico-político, Agamben observa que sua primeira formulação fora enunciada

1
O presente texto é fruto de palestra sob o mesmo título proferida na Universidade do Contestado –
Canoinhas/SC, durante o I Seminário sobre Estado, Crise Política, Econômica e Perspectivas de Desen-
volvimento, proferida em 22 de fevereiro de 2017. Agradeço imensamente ao Prof. Dr. Sandro Bazzanel-
la e toda a equipe coordenadora do evento pelo convite e acolhida das ideias aqui presentes.
2
Pesquisador 2 do CNPq; Professor de Filosofia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná.

41
por Carl Schmitt em 1922, em sua Teologia Política: “Todos os conceitos conci-
sos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”
(SCHMITT, 2006, p. 35; cf. AGAMBEN, 2011, p. 14). Como é sabido, Carl Schmitt
é um dos pensadores mais estudados por Agamben em seus livros que com-
põem o Homo Sacer, sendo que provavelmente seu livro sobre o Estado de
exceção seja seu estudo mais detalhado sobre o jurista alemão, principalmente
em sua relação polêmica com Walter Benjamin – este que, por sua vez, pron-
tamente identificou o estado de exceção como regra. Ao que Agamben inter-
preta a afirmação benjaminiana de que o estado de exceção “não só sempre se
apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida
excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitu-
tivo da ordem jurídica” (AGAMBEN, 2004, p. 18). Por outro lado, mas acredito
que em estreita conexão com sua afirmação sobre Benjamin, Agamben comen-
ta como segue a tese de Schmitt:

Se nossa hipótese de um duplo paradigma é exata, tal afirmação deveria ser


integrada em um sentido que estenderia sua validade para bem além dos
limites do direito público, a ponto de envolver também os conceitos
fundamentais da economia e a própria concepção da vida reprodutiva das
sociedades humanas. Contudo, a tese segundo a qual a economia poderia ser
um paradigma teológico secularizado retroage sobre a própria teologia,
porque implica que a vida divina e a história da humanidade sejam
concebidas desde o início desta como uma oikonomia, ou seja, que a teologia
seja ela própria “econômica” e não se torne tal apenas em um segundo
momento por meio da secularização. Que no fim o ser vivo que foi criado à
imagem de Deus se revele capaz não de uma política, mas apenas de uma
economia, ou seja, que em última instância a história seja um problema não
político, mas “gerencial” e “governamental”, não é, nessa perspectiva, senão
uma consequência lógica da teologia econômica. (AGAMBEN, 2011, p. 14-15;
grifo nosso)

Ora, estas duas citações nas quais Agamben comenta Benjamin e Schmitt
sugerem diversos aspectos a serem considerados.
Primeiramente sobre o uso, quase abusivo, da noção de paradigma. Como
bem sabemos. O termo paradigma ganha um uso técnico apesar de semantica-
mente polifacetado com o filósofo Thomas Kuhn, sempre articulado com o
problema e a história da ciência. Em Agamben, talvez seja possível também
reconhecer um uso técnico que vai além de sua vulgarização, mas isto não está
prontamente garantido. De qualquer modo, o termo paradigma é como que
moeda corrente nos textos de Agamben, a ponto de uma estudiosa de seu pen-
samento político – Natalia Taccetta (2011, p. 49-51) – discorrer sobre a noção.
Aliás, há um texto de Agamben chamado exatamente “Que é um paradigma?”,
no qual compara contrastivamente Foucault e Kuhn.

42
Em linhas muito gerais é possível sustentar que o paradigma preenche di-
versas condições e funções dentre as quais vale a pena destacar, inicialmente,
que o paradigma se realiza como um exemplar no qual traz em si a marca de
sua singularidade distintiva do conjunto a que pertence ao mesmo tempo que o
evidencia em sua singularidade, isto é, o conjunto se revela pelo exemplo sem
necessariamente se confundir com o ele, ainda que lhe seja imanente.
Um segundo aspecto a se destacar é que o paradigma não indica uma ori-
gem ou um arquétipo: não há entre o conjunto e o exemplo uma relação de
anterioridade causal, mas de uma relação complexa que se explica por uma
leitura um tanto deleuziana entre conjunção e disjunção, que ele apenas cita en
passant em Homo sacer (AGAMBEN, 1997, p. 26) para pensar o que chamou de
mecanismo da exceção: “enquanto o exemplo está excluído do conjunto a que
pertence, a exceção está inclusa no caso normal precisamente por que ela não
faz parte dele” (AGAMBEN, 1997, p. 30).E que na verdade Agamben resolve a
partir da distinção entre pertença e inclusão na teoria dos conjuntos, em con-
formidade com a leitura política de Alain Badiou, que traduz pertença em pre-
sentação e inclusão em representação. Ora, chama a atenção como Agamben
translada o paradoxo que Deleuze arma entre conjunção e disjunção – conjun-
ção disjuntiva vs. disjunção conjuntiva – para um problema aparentemente
mais técnico e “simples” de resolver em termos de distinção por precisão con-
ceitual em teoria dos conjuntos entre pertença e inclusão. O paradigma como
exemplar apresenta, mostra o conjunto a que faz parte, ao mesmo tempo que
como exemplo singular e único, acaba por representar o conjunto no qual está
incluso, sem necessariamente lhe fazer parte. Esta ideia corresponde à noção
kuhniana de paradigma, ou mesmo àquela que crê encontrar em Foucault? Se
nos mantermos fiel à leitura apresentada por Taccetta, a resposta que inevita-
velmente teremos é simplesmente não. O paradigma em Kuhn, e mesmo a no-
ção foucaultiana que parece mais se aproximar deste termo, isto é, a noção de
episteme, compartilham um traço que não aparece até então, que é o que me-
lhor define os dois termos – paradigma e episteme – que é o de que designam
sistemas de regras ou de referências de condutas, de pensamento e de “dicibi-
lidade” veraz. O que Agamben busca encontrar na comparação contrastiva
entre Thomas Kuhn e Michel Foucault parece ter mais a ver com seu modo
todo próprio de pensar e, principalmente, de utilizar a noção de paradigma de
tal forma que adquire toda uma especificidade técnica; e neste sentido, sua
definição de paradigma é ao menos invulgar, embora talvez tenhamos que
admitir que seu uso é abusivo, uma vez que impede qualquer discernibilidade
apreensível, qualquer notabilidade na multiplicidade de eventos distintos en-

43
tre si que simplesmente o filósofo italiano se permite a indiscriminadamente
chamar de paradigma.
Por fim, um último aspecto a assinalar, ainda acompanhando a exposição
de Taccetta, é de que a historicidade do paradigma está no cruzamento entre
diacronia e sincronia, iluminando o passado e o presente ao investigador. Não
à toa Agamben reconhece e atribui à sua abordagem a alcunha de uma investi-
gação arqueológica, numa aparente filiação foucaultiana. No entanto, talvez
para além (ou aquém) do tracejado filial, o que Agamben esteja realçando seja
apenas a analogia que se pode estabelecer entre os dois pensadores, no sentido
que a investigação agambeniana tenha mais a ver com o resgate e evidenciação
paradigmática de uma arché, enquanto Foucault tem provavelmente um proje-
to menos ambicioso e, por isso, singelo, a saber o de escarafunchar e trazer à
tona os arquivos empoeirados da história: em Agamben a arqueologia parece
remeter a uma busca dos fundamentos mais recônditos de nossa existência
presente, enquanto em Foucault, a pesquisa parece caminhar em busca dos
movimentos de nossa proveniência histórica, sem se permitir tomá-los como
fundamentais, ainda que sejam reconhecidamente transcendentais (numa
referência clara a Kant), mas também empíricos (ainda numa referência a
Kant, mas não só, também a Husserl). Claro que, de uma forma ou de outra, são
dois procedimentos investigativos cujo traço marcante é o desvelamento histó-
rico de nosso passado se fazendo ainda hoje presente em todos nós, sendo que,
entretanto, a arqueologia agambeniana está devotada a uma investigação dos
fundamentos arquetípicos de nosso tempo presente.
Dito isto, é possível compreender que a sobreposição econômica à nossa
vida política não é algo decorrente do movimento de secularização. Não é por
que nossa cultura e nosso tempo se secularizaram que nossa política, nosso
modo de viver politicamente se transmutou em um modo de vida econômico. A
transmutação da política em economia se deve a um movimento bem mais
antigo e, para ser mais correto, arcaico – no sentido de se remeter à arché, aos
fundamentos de nosso presente – que remonta à adoção e construção da teolo-
gia cristã como econômica. Curiosamente, esta não se trata nem de uma inves-
tigação cristológica ou pneumatológica, mas realmente teológica, tendo como
cena problematológica inicial o ortodoxo entendimento da relação da tríplice
personalidade divina – isto é, sua oikonomia – e de sua monarquia divina, ainda
que toda a discussão não verse sobre a natureza divina, mas como a trindade
funciona em Deus, ou como a divindade se presenta funcionalmente em sua
personificação trinitária. Como observa Agamben, ao comentar Gregório di
Naziano,

O logos da “economia” encontra, assim, em Gregório, a função específica de

44
evitar que, através da Trindade, seja introduzida em Deus uma fratura
estasiológica, ou seja, política. Dado que também uma monarquia pode
ocasionar uma guerra civil, uma stasis interna, só o deslocamento de uma
racionalidade política para uma “econômica” [...] pode proteger contra esse
perigo. (AGAMBEN, 2011, p. 26)

Eis o que parece ser a descoberta da investigação arqueológica de Agam-


ben: a transmutação, o deslocamento da política para a economia, propiciada
não pela secularização moderna, mas pela adoção de uma lógica que tem sua
origem na teologia dos primeiros séculos da era cristã, não tem outra finalida-
de senão apenas esta: a de proteger contra o perigo político por excelência, a
saber a estase (stasis), chamada por ele aqui ou de fratura, ou de guerra civil –
quando o estancamento, a paralização do sistema político se dá internamente.
Ou dito de modo mais sumário: adota-se uma racionalidade econômica cuja
finalidade não é outra senão proteger a vida política soberana de qualquer
evento irruptivo que possa interromper sua existência e potência (dynamis)
política, ou seja, sua glória.
O que a mim chama à atenção nas citações escolhidas de Agamben – talvez
resida nisso a caricatura que busco alinhavar aqui – é sua insistência na de-
marcação clara e talvez até mesmo na fratura entre governo e vida política,
entre economia e política, de modo que para o tipo de trabalho e investigação
que venho me empenhando há que se reconhecer que o modo mesmo de atua-
ção da biopolítica não é da ordem da política, mas de uma racionalidade pecu-
liarmente econômica, de gestão e governo das vidas dos indivíduos. Vidas es-
sas que se deixadas soltas entre si, tendem potencialmente, dinamicamente,
perigosamente, para uma stasis política, para uma ingovernabilidade como
destino. Não à toa, Agamben observa que a teologia econômica se especializa
no tema da salvação da humanidade, não mais discorrendo, sobre o problema
da Trindade e de sua glória monárquica diante do mundo quando esta se re-
solve como dogma de fé: a salvação só pode se dar quando se neutraliza – na
impossibilidade de acabar (talvez até de aniquilar) – toda e qualquer sorte de
perigo; mais, a formulação econômica de gestão e controle das condutas se
coloca diante de toda e qualquer sombra, da ínfima possibilidade de perigo,
posto que a práxis é anárquica por excelência.

Nesse significado genuinamente “governamental”, o paradigma impolítico3 da


economia mostra igualmente suas implicações políticas. A fratura entre
teologia e oikonomia, entre ser e ação, na medida em que torna livre e
“anárquica” a práxis, estabelece ao mesmo tempo a possibilidade e a

3
Agamben faz aqui uma referência inegável ao trabalho de seu compatriota Roberto Esposito, Categori-
edell’impolitico, originalmente publicado em 1988 (remeto à edição de 1999).

45
necessidade de seu governo. [...] o problema do “governo” do mundo e de sua
legitimação torna-se, em todos os sentidos, o problema político decisivo.
(AGAMBEN, 2011, p. 81; grifos nossos)

Como é sabido, após sua exposição sobre a cesura e paradoxal relação en-
tre reino e governo, Agamben abre o capítulo seguinte – A máquina providen-
cial – observando como Foucault, em Securité, territoire et population (2004),
seu curso de 1977-1978 no Collège de France, trata já da temática do governo
moderno, da governamentalidade moderna. Ora, como Agamben reconhece,
Foucault situa bem esse nova e moderna forma de governar “segundo o mode-
lo da economia” (FOUCAULT, 2004, p. 98; 2008, p. 127; AGAMBEN, 2011, p.
126). No entanto, ainda segundo Agamben, Foucault não toma para si a adver-
tência metodológica de base à arqueologia – mas que também poderia ser apli-
cada à genealogia – que é a de que “devemos ser capazes de seguir as assinatu-
ras que deslocam os conceitos ou orientam sua interpretação para âmbitos
diversos “ (AGAMBEN, 2011, p. 128). Por isso, ainda segundo Agamben, Fou-
cault não fornece uma leitura convincente e profunda sobre a governamentali-
dade, bem como comprometeu as valiosas pesquisas de Michel Sennelart, seu
discípulo e responsável pela edição do citado curso.

O conceito moderno de governo não continua a história do regimen medieval,


que representa, por assim dizer, uma espécie de trilho fora de uso na história
do pensamento ocidental, mas a história, de resto bem mais vasta e
articulada, da tratadística providencial, que, por sua vez, tem origem na
oikonomia trinitária (AGAMBEN, 2011, p. 128-129).

Portanto, é para a providência e toda a teoria teológica que a cerca que se


deve arqueologicamente voltar para poder se formular uma “ontologia dos
atos de governo”, tal como expressa em seus traços essenciais no limiar do
capítulo sobre a máquina providencial (cf. AGAMBEN, 2011, p. 157-159).
É aqui que gostaria de me deter um pouco mais para obter o efeito grotes-
co de minha caricatura. Já salientei antes que ao menos aparentemente Agam-
ben insiste na diferenciação radical e na cesura mesma entre economia e polí-
tica, entre governo e vida política. Ainda que se possa concordar com a crítica
de Agamben deferida contra Foucault, é interessante notar como o primeiro
negligencia um dado que a meu ver é importante: Foucault não estava interes-
sado em demarcar de modo contundente a diferença entre economia e política,
mas entender como, a partir da ideia de governo, o exercício político se dá por
meio de uma racionalidade econômica que lhe serve de modelo e de força mo-
triz, ou nas palavras de Foucault, “a introdução da economia no interior do
exercício político, é isto, creio, que será a questão essencial do governo” (FOU-
CAULT, 2004, p. 98; 2008, p. 126) e que fazendo menção ao famoso verbete de

46
Rousseau sobre economia política para a Enciclopédia, se pergunta como o
modelo de sábio governo da família poderá ser introduzido e aplicado na “ges-
tão geral do Estado” (Ibid.).
Agamben não nos conta, mas parece que ele segue uma distinção já posta
por Aristóteles em Política 1252a 26-35, que ele havia citado em Homo sacer
(AGAMBEM, 1997, p. 10), entre o político e o oikonomos e o despotes, obser-
vando que a diferença não é de grau, mas de espécie. De fato, parece que Aris-
tóteles insiste inicialmente que a diferença se deve a uma diferença lógica en-
tre o todo (a cidade) e as partes que a compõem e integram de tal modo que
um não pode se confundir nas outras e vice-versa. No entanto o estagirita
prossegue em seu esforço de diferenciação por meio de uma teoria natural das
necessidades: a partir da junção entre a necessidade da preservação da espécie
(tem-se, pois, a união entre o homem e a mulher) e a necessidade da preserva-
ção recíproca (isto é, a união entre quem prevê – o senhor – e quem provê – o
escravo), tem-se a primeira comunidade “formada naturalmente”, a casa, cujo
fim é a satisfação das necessidades diárias. Desta se segue em termos de inten-
sificação da complexidade de organização, que é o povoado, a “primeira comu-
nidade de várias famílias para satisfação de algo mais que as simples necessi-
dades diárias” (ARISTÓTELES, Política, 1252b). E, por fim, Aristóteles prosse-
gue apresentando uma primeira definição de cidade (polis):

A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade [polis]


definitiva, após atingir o ponto de uma auto-suficiência praticamente
completa; assim, ao mesmo tempo que já tem condições para assegurar a vida
de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma
vida melhor. Toda cidade, portanto, existe naturalmente, da mesma forma
que as primeiras comunidades: aquela é o estágio final destas, pois a natureza
de uma coisa é seu estágio final [...] Mais ainda: o objetivo para o qual cada
coisa foi criada – sua finalidade – é o que há de melhor para ela, e a auto-
suficiência é uma finalidade e o que há de melhor. (ARISTÓTELES, Política,
1253a; grifo nosso)

Portanto, neste ponto do texto, Aristóteles não parece mais construir uma
diferença em termos absolutos, de espécie e “natureza”, mas de graus de com-
plexidade no que tange à satisfação das necessidades e numa perspectiva de
sua teoria das quatro causas, pela qual reconhece a cidade (polis) como a causa
final, a finalidade para a qual se volta todas as formas de associação entre os
indivíduos e tipos de comunidade, “e toda comunidade se forma com vista a
algum bem” (ARISTÓTELES, Política, 1252a). O que jamais o autoriza a confun-
dir o modo de ser do político com outros modos do homem se relacionar com
os seus semelhantes, mas nem sempre iguais e livres, o que é uma exclusivida-
de da comunidade política (cf. ARISTÓTELES, Política, 1255b18). Esta, por sua
vez, se caracteriza por, ao mesmo tempo, suprir de modo completo e auto-

47
suficiente as necessidades vitais assim como ensejar meios pelos quais se pode
proporcionar uma vida melhor. Neste sentido, ainda segundo Aristóteles, uma
vida política não apenas é uma vida auto-suficiente em suas necessidades; é
também com tudo isso e além, uma vida com vistas a ser melhor vivida. Por
isso a distinção aristotélica entre o chefe de família (despotes), o senhor
(ekonomos), o soberano ou rei (basileus), e o homem político (politikos) propri-
amente dito (ARISTÓTELES, Política, 1253b18). Estas várias formas de autori-
dade não são idênticas, e é na identificação que reside o erro (Cf. ARISTÓTE-
LES, Política, 1252a).
Mas da admoestação para que não se identifique a econômica com a polí-
tica que faz Aristóteles para o quadro opositivo que Agamben firma entre eco-
nomia e política parece haver uma distância bastante considerável, ainda que o
filósofo italiano admita que o governo se tornou o problema político decisivo.
Não é de oposição que trata Aristóteles mas de tipos de autoridade que podem
ser exercidas pelo homem no espaço da oikos – como marido, pai ou senhor –
ou como membro da polis, onde o princípio da liberdade e da igualdade, mas
também da voz (logos) há de prevalecer (Cf. SAMARANCH, 1991, p. 193). E tais
tipos de autoridade se relacionam àquela propriamente política como partes
exemplares que lhe pertencem, e que, portanto, se fazem necessárias para
permitir ao menos a realização da cidade em sua missão de autossuficiência;
ou como modos de ser e de exercer a autoridade que se voltam teleologica-
mente à realização de sua natureza que não é outra senão a autoridade, o exer-
cício, o ser e a vida política.
Quando Agamben afirma que o ser vivo, à semelhança de Deus, não é ca-
paz de política, mas apenas de economia, é na direção de uma relação opositiva
que ele se dirige. Ao formular em tais termos, não apenas Agamben estabelece
uma oposição; também estabelece um fenômeno relacional que pode ser inter-
pretado ou como uma deriva de degradação – a política se reduz à economia –
ou de insuficiência impossibilitadora de sua realização teleológica – a econo-
mia só pode se realizar apenas como economia, jamais podendo cumprir sua
finalidade política.
Em verdade, é preciso resgatar o que Agamben observava como o parado-
xo mesmo da transmutação econômica da política: há de se reconhecer que por
isto o problema do governo se tornou o problema político decisivo.E essa ques-
tão não parece ser outra coisa senão o fenômeno complexo e perturbador da
despolitização, isto é, a deriva depreciativa da vida humana que deixa de ser
vivida em sua potência, em sua dynamis ao melhor, para ser apenas uma forma
de sobrevivência, símile a dos animais: “manter-se vivo, apesar das necessida-
des que devem ser satisfeitas e dos perigos que atravessam os caminhos, não é
justamente o que fazem os animais? Obedecer com obstinação a um instinto,
ao instinto de sobrevivência, custe o que custar? Ter uma vida despolitizada?”

48
– pergunta-se Daniel Arruda Nascimento (2014, p. 44) em dada altura de seu
livros sobre os umbrais de Agamben.
Em que sentido parece haver alguma culminância no problema do gover-
no, do paradigma teológico-econômico de nosso modo atual de fazer política
com o problema da despolitização? O sentido se dá a partir daquela afirmação
de que o homem, como criatura de Deus, e à semelhança d’Ele, não é capaz de
política, mas apenas de economia. Apenas. A passagem teleologicamente po-
tencial do econômico ao político, preconizada por Aristóteles é negada por
Agamben. E desse modo, a exclusiva capacidade econômica do homem é a ou-
tra face da moeda, isto é, da incapacidade, da impotência política; portanto de
sua despolitização. É nesse sentido que parece que Agamben usa o termo “im-
político” para adjetivar o paradigma econômico do governo, ainda que admita
a ele implicações políticas. Mas não parece residir aí o sentido usual do termo,
pelo menos como ficou consagrado pelo trabalho de seu compatriota Roberto
Esposito. O impolítico não é o contrário de político, mas uma forma sofisticada
de antipolítica. Ora, a antipolítica também não é o contrário da política, mas
“sua imagem revogada: uma maneira de fazer política exatamente contrapon-
do-se a ela” (ESPOSITO, 1999, p. XVIII). Dito de outro modo, um jeito sofistica-
do de fazer política, valendo-se de seus fundamentos e reflexões, para fazer
uma política contra ela mesma, levando-a até seus confins, até seus limites. É
com vistas a tal escopo que Esposito poderá se referir à teologia política de
Carl Schmitt como sendo também uma política da despolitização, e por isso a
crítica impolítica que se lhe desfere:

Naturalmente, esta nova forma deduzida disso que quebrou a velha unidade
substancial da comunidade (transformando-a em mera societas) só pode ser
mito. Essa é teológica, por assim dizer, a segunda potência: enquanto nascida
da desteologização moderna. Teologia da laicização. É a teologia política
hobbesiana-schmittiana. Teologia política, mas política da despolitização.
Contradição ou paradoxo insolúvel que ‘teologiza’ a despolitização em nova
forma política. Copresença dos opostos que transforma um na sombra
contrafactual do outro. Técnica em Ética, direito em Justiça, poder em Bem
(ESPOSITO, 1999, p. 14)

Assim, é possível sustentar que, num primeiro momento, Agamben faz


coincidir o impolítico com a despolitização, contra Esposito, mas numa tal rela-
ção de paradoxo que, noutro momento, volta a concordar com a crítica de seu
conterrâneo a Schmitt, reconhecendo sua teologia política como uma teologia
da despolitização, despolitização esta que há de ser, teologicamente, nova for-
ma de política. E a exploração paradoxal segue: se é possível acatar a tese sch-
mittiana de que os conceitos políticos (ou melhor, da teoria do Estado, ou ain-
da de modo mais preciso, do “governamento” estatal) nada mais são do que

49
conceitos teológicos secularizados, é preciso reconhecer na teologia trinitária a
declinação econômica da política atual, da qual a secularização moderna ape-
nas tenta encobrir.
Para concluir minha caricatura de Agamben, se a política atual se clivou
numa econômica governamental e gerencial das condutas e da vida mesma, ela
o fez para neutralizar, paradoxalmente, o que resta em nós de dynamis política.
A nossa potência política – aplacada economicamente – ainda persiste como
resíduo, como resto, pronta para rebulir as estruturas gloriosas do Estado e da
gestão governamental: é o perigo da estase política, seja como fratura do status
quo ou como guerra civil. A importância do resgate desse fundo arquetípico
(daí o sentido de arqueologia em Agamben), desse húmus imemorial da teolo-
gia trinitária e da providência divina se faz então capital para reencontrar não
o Estado, mas para contribuir para o reencantamento da imanência subversiva
da ação política: há que se fazer uma nova teologia, só que agora da politização,
do reavivamento da politização; perigosa sim, mas fundamentalmente maravi-
lhosa como possibilidade vindoura, mas imantentemente presente nos tempos
atuais.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção (homo sacer, II, 1). Trad. de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boi-
tempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: le pouvoir souverain et la vie nue. Trad. par Marilène Raiola. Paris:
Seuil, 1997.

AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo (homo
sacer, II, 2). Trad. de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

ESPOSITO, Roberto. Categorie dell’impolitico. Bologna: Il Mulino,1999.

FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Paris: Gallimard; Seuil, 2004.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.

SAMARANCH, Franciso. Cuatro ensayos sobre Aristoteles. México: Fondo de Cultura Económica,
1991.

SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

TACCETTA, Natalia. Agamben y lo político. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011.

NASCIMENTO, Daniel Arruda. Umbrais de Giorgio Agamben: Para onde nos conduz o homo sacer?
São Paulo: LiberArs, 2014.

50
ESTADO DE EXCEÇÃO: O REINO DO IMPREVISÍVEL
Ésio Francisco Salvetti1

Introdução

O objetivo deste capítulo é apresentar uma visão crítica da democracia e


do direito fundamentado no pensador contemporâneo Giorgio Agamben. Este
pensador italiano traz importantes contribuições para a compreensão da rela-
ção entre direito e democracia e também entre política e vida. Permanecerá
como pano de fundo o seguinte questionamento: a defesa da democracia é
suficiente para segurança dos direitos fundamentais? Para responder essa
questão e levar a cabo nossos objetivos, procuraremos no desenvolvimento do
trabalho, dar destaque e desenvolver detalhadamente cinco teses que demons-
tram qual a concepção política e jurídica de Agamben. A Primeira tese publica-
da na obra "Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua"o pensador destaca que
a política assumiu o encargo de gestão da vida (Biopolítica). Numa perspectiva
foucaultiana procuraremos reforçar a ideia, que vivemos sob a égide da biopo-
lítica, ou seja, da gestão biológica da vida. A segunda tese é a afirmação de que
todos somos potencialmente homo sacer, e é essa figura do direito romano que
tem todas as condições de explicar a situação do homem político contemporâ-
neo, a saber: de uma vida exposta à morte. A terceira tese, extraída da obra de
Giorgio Agamben, é a afirmação de que existe uma íntima solidariedade entre
democracia e totalitarismo. Essa afirmação pode parecer estranha, no entanto,
entendemos que sem um olhar sério para a íntima solidariedade entre demo-
cracia e totalitarismo estaremos distantes de um verdadeiro diagnósticos das
sociedades contemporâneas. A quarta tese é a defesa que o campo é o para-
digma da atualidade. Certamente essa tese é a mais emblemática e difícil de ser
defendida, no entanto, o aprofundamento deste tema se torna indispensável no
momento em que testemunhamos acontecimentos como os da prisão de Guan-
tánamo, onde supostos terroristas árabes foram martirizados, o extermínio da
população palestina na Faixa de Gaza, além das atuais políticas de segurança
que alguns Estados vêm adotando frente essa onda de imigração em massa. Na
quinta e última tese, influenciado por Walter Benjamin, Agamben destaca que
o Estado de Exceção se tornou regra de governo. Essas teses, pouco otimistas

1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em cotutela com Università
Degli Studi di Padova – Itália (UNIPD). Bacharel em Filosofia no IFIBE. Estudante de direito da IMED
e Professor de Filosofia no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE).

51
com os “avanços” ocorridos no século XX, reforçam a compreensão, que não há
garantias políticas e jurídicas que assegurem os direitos fundamentais, pois,
como destaca Agamben, o Estado de Exceção se coloca como técnica de gover-
no dominante na política contemporânea. Quando a lei é suspensa, seja pelo
motivo que for, reina o imprevisível, tudo pode acontecer com o ser humano
que ali se encontra.

1. A Política Assumiu O Encargo De Gestão Biológica Da Vida

Com a tese que a política assumiu o encargo de gestão biológica da vida


Agamben quer reforçar a ideia, já postulada por Foucault que vivemos sob a
égide da biopolítica, ou seja, mais do que nunca a política assumiu o encargo da
gestão biológica da vida. Nesse último século presenciamos um acelerado de-
senvolvimento de uma racionalidade administrativa, científica e técnica em
relação à vida. Paira na política, no direito, na economia e na medicina, um
discurso do cuidado da vida, mas ao mesmo tempo, esse discurso vem camu-
flado de práticas que tornam a vida matável. Paradoxalmente proliferam em
nossas sociedades contemporâneas discursos biologicistas que autorizam a
morte de alguns grupos, com a justificação de proteção e purificação da vida.
Como destaca Candiotto: “A época contemporânea, na qual a vida parece ter
sido objeto de maior cuidado pelo Estado e pela medicina, é paradoxalmente a
que mais tem sido acometida por genocídios outrora inimagináveis, ao lançar
mão de pretextos racistas e incitação à violência, em razão da xenofobia. O
cuidado da vida tem sido correlato da sua manipulação” (CANDIOTO, 2010,
p.171). Esse parece ser o maior perigo na atualidade e que precisa de uma
análise mais aprofundada.
No início do Século XX a medicina adquiriu um caráter autoritário, pas-
sando a exercer suas ações sobre os corpos dos indivíduos sem que fosse ne-
cessária uma autorização, sempre em nome de uma pretensa melhoria da saú-
de de todos aqueles que passam a ser obrigados a receber cuidados de Saúde
com vista ao melhoramento do corpo social. Ao mesmo tempo que a medicina
foi se tornando necessária para a intervenção estatal na saúde das populações,
ela foi se configurando como uma ciência cada vez mais poderosa e simultane-
amente perigosa, com um extenso horizonte de possibilidades e um crescente
autoritarismo nas suas formas de exercício.
O caminho entre o poder de correção de anormalidades assumido pela
medicina até ao poder de aniquilação do corpo, em nome dessa pretensa nor-
malidade do corpo social,está separado por um fio tênue: à medida que a me-
dicina do século XX foi se transformando e constituindo-se como uma arma de

52
normalização do corpo social, a mando de alguns Estados,que colocam em
marcha políticas de saúde cada vez mais autoritárias e impositivas, esses
mesmos Estados foram também sofrendo uma transformação política funda-
mental em direção ao totalitarismo. O Estado totalitário tinha a seu serviço um
exercício da medicina cada vez mais autoritário, com isso, foi possível fazer
dela a ciência da correção de anormalidades do corpo social. Isso inaugurou
uma nova etapa no processo histórico de politização do corpo: o poder do Es-
tado, unido ao poder da medicina, em contextos totalitários, assumem-se não
só como um poder de proteção da vida, mas também como um poder de ani-
quilação da mesma, precisamente em nome da manutenção autoritária da
normalidade do corpo social, eliminando tudo que se classifica como “anor-
mais” num contexto de obsessão pela normalidade.
Esta obsessão pela normalidade do corpo populacional no contexto dos
Estados totalitários do século XX, que veio unir a política e a medicina na mis-
são comum de melhorar o capital humano das sociedades, veio assim protago-
nizar o triunfo definitivo da biopolítica, isto é, do poder político que agora inci-
de sobre a vida biológica não só com capacidade de proteção da mesma, mas
também com possibilidade de exterminar a vida e o corpo em nome da boa
gestão do patrimônio vivo de um povo e para que este se mantenha dentro dos
parâmetros da normalidade e da qualidade.
Ora, este carácter progressivamente autoritário da medicina, unido ao ca-
rácter também ele progressivamente totalitário de alguns Estados do século
XX, veio assim criar um cenário ideal para o incremento de práticas biopolíti-
cas e para uma profunda mudança no processo histórico de politização do
corpo. Esta mudança aconteceu, obviamente, de uma forma particularmente
visível no contexto do regime nazista, que foi a grande força motriz deste au-
mento do poder de proteção da vida para um poder de aniquilação da mesma.
Aliás, o regime nazista incorporou em si todas as características necessárias
para que nele se tivesse dado o florescimento descontrolado de práticas biopo-
líticas: ele foi a mais perfeita união de um regime político totalitário a um exer-
cício da medicina autoritária, união esta que deu origem a uma nova forma de
gestão política do patrimônio vivo de um povo, o povo alemão, com vista ao
melhoramento do seu capital humano, em grande parte à custa de uma elimi-
nação massiva daqueles que foram classificados como sobras de anormalidade
no contexto de um corpo social que pretendia ser cada vez mais perfeito. Neste
sentido, foi precisamente em solo alemão que, na primeira metade do século
XX, se operou esta grande transformação na intensidade da incidência do po-
der político sobre o corpo e a vida biológica, precisamente a partir da união
declaradamente perigosa entre política e medicina. Neste sentido, no contexto

53
biopoliticamente moldado da Alemanha nazista, mais do que nunca o médico
configurou-se como um soberano com poder de decisão sobre a vida e a morte
em nome da manutenção da pureza racial, e inversamente o soberano, Hitler,
parece ter encarnado historicamente a figura do médico, justamente na medi-
da em que tomou como principal tarefa a tentativa de curar a anormalidade do
corpo social alemão como um todo, tentando eliminar dele os eventuais focos
com tendência de degeneração, aqueles que especificamente foram seleciona-
dos como alvos para eliminação. Fundamentalmente, o nazismo fundiu política
e biologia, pois o biológico passou a ter predominância política e o político
integrou o biológico, justamente na medida em que a política se assumiu como
instrumento para dar forma à vida e à saúde de um povo e assumiu a herança
biológica como missão política por excelência. Por isso Agamben destaca que:

Se em todo o estado moderno, existe uma linha que assinala o ponto em que a
decisão sobre a morte, e a biopolítica pode deste modo converter-se em
tanatopolítica, tal linha não mais se apresenta hoje como um confim fixo a
dividir duas zonas claramente distintas; ela é, ao contrário, uma linha em
movimento que se desloca para zonas sempre mais amplas da vida social, nas
quais o soberano entra em simbiose cada vez mais íntima não só com o
jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o perito, com o
sacerdote (HS, p. 135).

Uma análise ingênua pode concluir que todos esses processos paradoxais
da gestão biológica da vida tenham morrido junto com o regime nazista, mas
não, ele está vivo e presente na atualidade. Para ressaltar a atualidade da bio-
política e a sua presença, vejamos alguns casos ocorridos neste início do século
XXI:
Roberto Espósito, em Bios: biopolítica e filosofia (2010), inicia a obra com
uma análise de cinco casos impactantes, ocorridos entre os anos de 2000 e
2004. O primeiro, ocorreu na França, no ano de 2000, é o caso da decisão da
justiça francesa que reconheceu a uma criança, nascida com graves lesões ge-
néticas, o direito de interpor queixa contra o médico que não tinha devidamen-
te diagnosticado a rubéola da mãe durante a gravidez, impedindo-a de abortar
como era sua vontade expressa. A controvérsia que esse caso traz à tona é a
atribuição a este menino (bebê) do direito de não nascer. A base da discussão
não é o erro médico, mas sim o estatuto de sujeito de quem contesta. O pro-
blema posto é de ordem lógica e ontológica. Como pode um não ser reclamar o
direito de continuar como tal e assim a não entrar na esfera do ser? O caso
quer expor a impossibilidade de decidir em termos legais a relação entre vida
biológica (vida natural) e personalidade jurídica.

54
Outro caso analisado pelo autor ocorreu no Afeganistão, no ano de 2001.
Nesse período se configura o que conhecemos hoje como guerra humanitária:
sobre o mesmo território que se detonaram bombas de alto potencial destruti-
vo se lançava alimentos e medicamentos. O problema não é só a dúvida sobre a
legitimidade jurídica de guerras conduzidas em nome de direitos universais. O
paradoxo do bombardeamento humanitário está sobretudo na sobreposição
que nele se manifesta entre a defesa da vida e a produção efetiva da morte.
O terceiro caso ocorreu na Rússia, em 2002, quando grupos especiais da
polícia entram no teatro Dubrovska de Moscou, onde um grupo de checheno
mantinha reféns quase mil pessoas. A intervenção da polícia provocou a morte,
com gás paralisante de efeito letal, de 128 reféns além de praticamente todos
os terroristas. Mesmo que nesse caso não se tenha feito uso do termo humani-
tário a lógica de fundo não é diferente: a morte de dezenas de pessoas nasceu
da mesma vontade de salvar o maior número possível de vidas.
O quarto caso ocorreu na china, em 2003. Descobre-se que em uma pro-
víncia chinesa havia mais de um milhão e meio de soros positivos. Ao contrário
do que ocorre em alguns países de terceiro mundo, o contágio, na china não
tem causas naturais ou sócio-culturais, mas sim diretamente econômicas e
políticas. A causa central foi o comércio de sangue, em grande escala, gerido
pelo governo central.
O quinto caso analisado por Espósito ocorreu em Ruanda, em 2004, quan-
do um relatório da ONU informou que cerca de dez mil crianças constituem o
fruto biológico das violações étnicas levadas a cabo por dez anos, no decurso
do genocídio consumado pelos Hutus nos confrontos com os Tutsis. Tais práti-
cas modificam de modo inédito a relação entre vida e morte. Nas guerras tradi-
cionais morte vem da vida no ato de violação étnica é a vida que procede da
morte, da violência, do terror das mulheres tornadas grávidas quando estavam
inconscientes ou imobilizadas por uma arma.
Qual a relação existente entre esses casos descritos por Esposito? No cen-
tro de todos esses casos está a noção de biopolítica. O que está em jogo é uma
complexa estratégia para regular e controlar os momentos mais fundamentais
da vida, tarefa da biopolítica que se aproveita da medicina e de outras ciências
como economia, direito, estatística para governar a vida. Todos esses fenôme-
nos, em si complexos, têm em comum o fato de serem fenômenos políticos nos
quais tem uma implicação direta na vida biológica do ser humano, enquanto
ser vivente. São fenômenos que nos mostram como a política assumiu o encar-
go de gestão biológica da vida. Foi esse encargo político que Foucault intitulou
de biopolítica. Um conceito que cada vez mais está em uso, porém, ainda trata-

55
do com generalidade, muitas vezes mal compreendido, principalmente as con-
sequências éticas.
Neste contexto, a vida da população passa a ser submetida a um conjunto
de técnicas e procedimentos de potencialização da vida, ou da morte, de acor-
do com os cálculos de custo e benefício determinados pela racionalidade admi-
nistrativa do Estado no exercício de seu poder soberano. Sob tais pressupostos,
a vida humana passa a ser conformada pela dinâmica de um biopoder, que
incide na disciplinarização e normalização dos corpos e da subjetividade dos
indivíduos concebidos como recursos humanos, necessários à potencialização
da dinâmica jurídica, econômica e política em curso na contemporaneidade.
Por isso Agamben pode afirmar que a política assumiu o encargo da ges-
tão biológica da vida. Uma das consequências deste processo é a transformação
dos cidadãos em potenciais homo sacer. Adentramos, portanto em outra im-
portante tese de Agamben.

2. Somos Todos Potencialmente Homo Sacer

Quem é o Homo sacer e porque ele tem tanta importância para Giorgio
Agamben?
Pompeu Festo, gramático romano do Século II d. C., em seu De verborum
significatu, descreve nestes termos:

[...] homem sacro é, portanto aquele que o povo julgou por um delito; e não é
lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio, na
verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que se alguém matar aquele
que por plebiscito é sacro, não será condenado homicida. Disso advém que
um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro (HS, p. 79).

Agamben acredita encontrar na figura do homo sacer os elementos que


podem explicar ou indicar como o homem contemporâneo permanece preso à
esta estrutura política originária. No fundo toda sociedade, em cada novo perí-
odo cria ou decide sobre seus inimigos, seus homo sacer, decide qual vida é
digna de ser vivida e qual vida é lícita eliminá-la. Assim que a ideia do inimigo é
criada está legitimada a sua exclusão da humanidade civil. Se considerado um
criminoso, este é eliminado sem respeitar nenhuma regra jurídica. Nesta pers-
pectiva, novos protótipos de homo sacer podem ser vistos para onde quer que
olhemos. O típico exemplo de homo sacer foram os detentos dos campos de
concentrações, no entanto, a exposição à morte não é uma barbaridade ineren-
te somente ao homem dos campos de concentração nazistas, mas também dos
refugiados, do sujeito da eutanásia programada. Nos anos da ditadura militar

56
no Brasil, o homo sacer eram os supostos comunistas enquanto hoje nos EUA
ele tem fisionomia Árabe e são denominados de terrorista, e mais recentemen-
te, com o atual presidente, (Donald Trump), qualquer estrangeiro é potencial-
mente homo sacer. Enfim, todos estão expostos à morte incondicionada.
Por esses motivos que entendemos que a figura do homo sacer, possui to-
das as condições para explicar a situação do homem político contemporâneo.
Entendendo que todos somos virtualmente homo sacer, nossa vida está expos-
ta à morte, e é esta vida que constitui o elemento político originário. Se Agam-
ben está certo e de fato todos somos virtualmente homo sacer é porque a rela-
ção de bando constitui desde a origem a estrutura própria do poder soberano,
constrangendo a vida a ingressar nos cálculos do poder, através de múltiplos
modos de controle, inaugurando o que Foucault definiu de Biopolítica. Mas,
infelizmente, como destaca Agamben, Foucault “não transferiu suas próprias
escavações [...] ao que poderia apresentar-se como o local por excelência da
biopolítica moderna: a política dos grandes Estados totalitários do Novecen-
tos” (HS, p. 131). De certo modo, a mesma crítica é feita à Hannah Arendt, con-
tudo, ela dedicou-se a uma análise das estruturas dos Estados totalitários, mas
não a estendeu a uma perspectiva biopolítica. O problema em Arendt é que ela
não entendeu que “a radical transformação da política em espaço da vida nua
(ou seja, em um campo) legitimou e tornou necessário o domínio total” (HS, p.
132). Ou seja, é pelo fato da política ter se transformado em biopolítica que ela
pode se constituir como política totalitária.
Como podemos perceber, Agamben se embrenha numa investigação filo-
sófica que nem Foucault e Arendt alcançaram, o que demonstra uma certa
complexidade teórica, isso porque a política moderna, uma vez que entrou em
simbiose com a vida nua, perde a inteligibilidade que nos parece ainda caracte-
rizar o edifício jurídico-político da política clássica.

3. Íntima Solidariedade Entre Democracia E Totalitarismo

Essa radical politização da vida, e transformação dos cidadãos em homo


sacer, levou Agamben a postular uma das teses que mais gerou críticas ao seu
projeto que é a “contiguidade entre democracia de massa e Estados totalitá-
rios” (HS, p. 133). Isso se deve, pelo fato da política ter se tornado integralmen-
te biopolítica, por isso a política pôde constituir-se em política totalitária. À
primeira vista, essa tese parece absurda e muitos teóricos lançaram críticas à
Agamben tachando-o de antidemocrático: quem de boa-fé não admite que a
democracia é uma forma de governo melhor que governos absolutistas, totali-
tários? Obviamente que Agamben não nega todos os avanços que a humanida-

57
de alcançou através da democracia, mas por outro lado, nos abre os olhos dian-
te de tamanhas contradições.
Para Agamben a defesa da democracia é uma estratégia aceitável, mas to-
do o otimismo que muitos intelectuais guardam em relação às conquistas e
avanços da democracia pouco contribuem para um verdadeiro diagnóstico das
patologias das sociedades contemporâneas. Sem um olhar sério para a íntima
solidariedade entre democracia e totalitarismo, estaremos distantes de um
verdadeiro diagnósticos das sociedades contemporâneas.
Em uma entrevista concedida para Juliette Cerf, Agamben assevera uma
clara contradição das democracias atuais. Para ele, os atuais acontecimentos
na política, demonstram que o poder público está perdendo legitimidade e as
democracias estão muito preocupadas: “de que outra forma se poderia explicar
que elas têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo itali-
ano teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. Nun-
ca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será inserido na
carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar, foi criado para con-
trolar os criminosos reincidentes” (CERF, 2014).
Mas, mesmo havendo contradições na democracia ela foi tida como uma
resposta eficaz a todo sistema de opressão. Um de seus pilares fundamentais é
a liberdade e através dela há a possibilidade da participação, ao contrário do
totalitarismo que é um sistema político no qual o Estado, não reconhece limites
à sua autoridade e se esforça para regulamentar todos os aspectos da vida
pública e privada. Definido dessa maneira, parece clara as diferenças, ocorre
que se observamos a fundo as características e instrumentos utilizados pelo
totalitarismo para operar, teremos dificuldade de dizer quais deles não fazem
parte das atuais democracias. Daniel Nascimento, extrai de uma das principais
pesquisadoras do fenômeno totalitário, Hannah Arendt, especificamente da
obra Origens do totalitarismo, uma série de características deste fenômeno, que
são:

Se baseia no apoio das massas e no processo de massificação; no


convencimento de que há um destino para a história e que este destino se
cumpre na noção de progresso; no culto da personalidade do líder e na
centralização do poder em suas mãos; na formação de uma elite fiel e de
sociedades secretas; na multiplicação dos aparelhos burocráticos; possui
pretensão de universalidade; se estrutura sobre um sistema coerente de
argumentação; sobre o império das estatísticas e do argumento científico; se
utiliza do elogio da organização como ideologia; da superioridade dos fins
sobre os meios; confia firmemente na onipotência do homem; gera o
sentimento do fanatismo para os integrados em suas fileiras e torna os
funcionários do governo cúmplices dos abusos cometidos; abusa do uso da
propaganda e da doutrinação, que prosperam no clima de fuga da realidade

58
para a ficção e na criação de mitos; do constante uso de mentiras; de
elementos de ameaça e de terror; se funda na supremacia do poder de polícia;
na confusão entre poder real e poder aparente; não respeita sequer suas
próprias leis; alimenta o desprezo pela individualidade e pela nacionalidade;
a divisao dos tipos humanos em categorias; a privaçao de direitos e a
exclusao da proteçao da lei; provoca a solidao humana; reduz as suas vítimas
à completa passividade; elimina a possibilidade de açao humana; nao apenas
a liberdade humana, mas a espontaneidade; destrói os vestígios da dignidade
humana; realiza a manipulação do corpo humano; a animalização do homem;
a fabricação em massa de cadáveres (NASCIMENTO, 2010, p. 154-155).

Percebe-se que uma boa quantidade destas características é perfeitamen-


te encontrada também nos regimes democráticos. Por isso, para Agamben, a
passagem do regime de governo totalitário para a democracia não suscitou
uma reviravolta real na vida dos sujeitos, o que ocorre é uma verdadeira ilusão
e mascaramento do verdadeiro cenário, isso porque: “o rio da biopolítica, que
arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contí-
nuo” (HS, p. 133). Dessa forma, os eventos políticos têm sempre uma dupla
face; a ideia de liberdade e de direitos que os indivíduos adquirem são na ver-
dade uma tácita, porém crescentes inscrições de suas vidas na ordem estatal,
oferecendo uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual de-
sejavam libertar-se. Agamben destaca que

[...] uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias


burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades
individuais sobre os deveres coletivos, e torna-se, ao contrário, nos estados
totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões
soberanas (HS, p. 134).

Objetivando explicar os motivos da decisão de cancelar os compromissos


e não entrar mais nos Estados Unidos da América Agamben nos mostra que
por mais que se entenda que o totalitarismo nazista e fascista tenha inovado
profundamente suas técnicas de controle e formas de opressão políticas, há
muitos desses elementos, por mais que maquiados, atuantes no atual cenário
político. E o principal é a necessidade que, ambos os regimes, têm de tornar a
vida biológica dos sujeitos como fato politicamente decisivo. Isso é o bastante
para Agamben declarar que há uma solidariedade entre ambos os regimes
políticos. Só desta forma é possível compreender porque no século XX as de-
mocracias parlamentares puderam virar Estados totalitários, e os Estados
Totalitários em democracias parlamentares. É importante compreender que
essas transformações só foram possíveis porque ocorreram em um contexto
em que a política já havia se transformado, fazia tempo, em biopolítica, por isso
a aposta que está em jogo entre democracia e totalitarismo consistia apenas

59
em determinar qual desses dois regimes era o mais eficaz para assegurar o
cuidado e o controle da vida nua. Rancière em seu livro “Ódio à Democracia”,
aponta uma mutação ideológica, a democracia não mais opõe-se ao horror
totalitário, ela é, atualmente, exportada pelos governos pela força das armas,
ao passo que reina silencioso um “individualismo democrático”, que sob as
injúrias do “igualitarismo”, esvazia os valores coletivos e forja um novo totali-
tarismo.
O desenvolvimento dos regimes totalitários não seria possível de se de-
senvolver se não encontrasse um espaço propício para se enraizar. O grande
perigo existente é que as mesmas condições que serviram como base para o
advento do nazismo, ainda são percebidas atualmente, e com ainda mais força.
Auschwitz mudou as noções de barbárie e mostrou, objetivamente, do que o
ser humano é capaz.
Tanto os governos democráticos quanto os totalitários, sempre empunha-
ram o discurso da necessidade para combater algum mal iminente para justifi-
car a adoção de atos normativos claramente contrários à ordem constitucional.
É através do discurso da crise, da necessidade, da ordem, que os governos,
implantam suas pautas, na qual a primeira é o corte das garantias e direitos
fundamentais, conquistados com muito “suor”. Os Estados autoritários, em
determinadas situações emergenciais, com o discurso da provisoriedade, não
extinguem os direitos fundamentais, mas os suspendem em nome da sobrevi-
vência do Estado. Se olharmos para a história veremos que a justificativa da
emergência não é recente. Segundo Zaffaroni (2011, p. 14), tanto na Europa
como na América Latina essas leis vêm sendo sancionadas, tornando-se ordi-
nárias e convertendo-se na exceção perpétua. Mas o fundamental é nos darmos
conta que essa construção discursiva sobre a necessidade sempre se dá por
meio da construção de uma figura que logo se torna o inimigo número um da
nação. A construção do inimigo é tão bem-feita que logo a nação clama pela
figura de um Estado autoritário, pelo medo que o dito inimigo ocasiona na
sociedade.
No século XX e início do século XXI, foram vários os inimigos que conhe-
cemos. Até a Segunda Guerra Mundial o inimigo era étnico, por isso estava
justificada a suspensão de direitos de um grupo de determinada etnia. Hoje, os
Estados Unidos construíram a ideia do inimigo com feição muçulmana. Portan-
to, a ideia de inimigo passa por uma religião. Serrano acrescenta:

Na ditadura militar brasileira, o inimigo era comunista. Neste caso, o inimigo


está disperso pela sociedade, o que dificulta o combate individual e leva a
suspensão dos direitos de todos os indivíduos. (...) No Brasil contemporâneo,
o inimigo é a figura mítica do bandido, o agente da violência que pretende

60
destruir a sociedade. O bandido inimigo da sociedade não é o cidadão que
erra, mas o sujeito que deve ter seus direitos suspensos, inclusive o direito à
vida. Esses inimigos vivem sob a égide permanente de um estado de polícia
(SERRANO, 2016, p. 99-100).

Restam poucos espaços e motivos para demonstrações de otimismos dian-


te dos desafios, novidades e rumos que se apresentam como soluções nas de-
mocracias atuais. A tese de Giorgio Agamben, lançada no final da obra Homo
Sacer I: “o campo é o paradigma biopolítico do moderno” (HS, p. 185), reforça a
ideia de que vivemos um momento delicado da história da humanidade.

4. O campo é o paradigma da atualidade: o estado de exceção tornou-


se a regra.

Nos campos de concentração, as pessoas estavam desprovidas de qual-


quer segurança jurídica, não tinham sequer nome, sendo identificadas por um
número e estavam sujeitas à imprevisibilidade constante quanto à própria
existência. Um exemplo atual é a situação vivida pelos estrangeiros nos Esta-
dos Unidos. Diante das posições políticas assumidas por Donald Trump, a vida
dos estrangeiros é de total insegurança e imprevisibilidade quanto ao futuro.
Não é que Agamben entenda que as pessoas estejam vivendo em um campo de
concentração formal, se bem que se considerarmos as cadeias e as favelas bra-
sileiras a diferença não é tão brutal assim. Em entrevista Agamben destaca:

O que procuro fazer em meu livro sobre Auschwitz, sobre o campo de


concentração e a contemporaneidade, não é um juízo histórico. Procuro, sim,
delinear um paradigma, com o objetivo de compreender a política em nossos
dias. Não quero dizer, portanto, que vivemos num campo de extermínio –
muitos dizem: “Agamben diz que vivemos num campo de concentração”. Não.
Mas se tomarmos o campo de concentração como paradigma para
compreender o poder hoje, isso pode ser útil (AGAMBEN, 2013).

Acontecimentos como os da prisão de Guantánamo, onde supostos terro-


ristas árabes foram martirizados, o extermínio da população palestina na Faixa
de Gaza, além das atuais políticas de segurança, que alguns estados vêm ado-
tando frente a onda de imigração em massa, endossam a tese de que “o campo,
e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do ocidente” (HS, p. 202).
Para chegar a esta tese, Agamben percorreu um longo caminho: na pri-
meira parte da obra, interpretou a noção de soberania em termos de bando; na
segunda parte, analisa o significado do homo sacer, a vida que é o objeto do
bando, ou vida abandonada. Na terceira parte, para abordar o nexo entre bio-
política e totalitarismo, Agamben se ocupa de três argumentos centrais: os

61
direitos do homem, a política eugenista do nacional-socialismo e o debate em
torno da noção da morte. Feito esse caminho o pensador chega à conclusão de
que o campo é o paradigma político da modernidade.
Antes de fazer uma análise apurada dos campos (quer de concentração, ou
de extermínio) como o local onde se realizou a condição inumana mais absolu-
ta que teve lugar na face da terra, Agamben se pergunta: o que é um campo?
Qual sua estrutura jurídica-política? Por que semelhantes eventos puderam
ocorrer ali? São essas questões que o leva a olhar o campo não como um fato
histórico ou uma anomalia atinente ao passado, mas sim “como a matriz oculta,
o nómos do espaço político em que ainda vivemos” (HS, p. 185).
Na verdade, não ficamos surpresos que os nazistas, ao chegarem ao poder
tenham suspendido por tempo indeterminado os artigos da constituição que
concerniam à liberdade pessoal, a liberdade de expressão e de reunião etc. Mas
o que poucos querem ver é que os nazistas, seguiram uma práxis consolidada
nos governos precedentes.2 O problema é que no caso nazista a exceção durou
12 anos. Por isso, se faz importante a pergunta: qual o nexo entre estado de
exceção e campo de concentração? Como o Estado de Exceção se apresenta
neste início do século XXI, em especial nos países de modernidade tardia, como
os da América latina?
Agamben é enfático ao afirmar que os campos nascem, não do direito or-
dinário, mas do estado de exceção. Por exceção ele entende o momento em que
se sai do Estado Democrático de Direito para se instaurar ações excepcionais,
ações de exceção. O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção
começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente
uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de
perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente. (HS. p. 188).
Na compreensão de Castro:

A primeira observação a respeito é que a existência dos campos deve ser


situada, de um ponto de vista jurídico, no contexto do estado de exceção, e
não das leis marciais. A novidade do nazismo consiste em que a decisão sobre
a excepcionalidade, sobre a suspensão das garantias constitucionais, deixa de
estar vinculada a uma situação concreta de ameaça externa e tende a
converter-se na regra (CASTRO, 2012b, p. 73).

2
Fazendo uma análise histórica, Agamben nos lembra que “os primeiros campos de concentração na
Alemanha não foram obra do regime nazista, e sim dos governos social-democráticos que, em 1923,
após a proclamação do estado de exceção, não apenas internaram com base na Schutzbaft milhares de
militantes comunistas, mas criaram também em Cottbus-Sielow um KonzentrationslagerfurAuslander
que hospedava sobretudo refugiados hebreus orientais e que pode, portanto, ser considerado o primeiro
campo para os hebreus do nosso século (século XX)” (HS, p. 186).

62
O fato é que depois de março de 1933 quando o campo de concentração de
Dachau foi criado e outros foram se juntando a este eles permaneceram sem-
pre em função, tornando-se na Alemanha uma realidade permanente. Enquan-
to, muitos se questionavam sobre o fato de existir pessoas com capacidade de
cometer tamanha atrocidade com outros seres humanos, seria mais prudente
primeiro questionarmos sobre quais procedimentos jurídicos e quais disposi-
tivos políticos permitiram que seres humanos fossem privados de seus direi-
tos? Como pode ser possível cometer qualquer ato, contra vidas humanas, sem
que se apresentasse como delito?
Essa questão revela o estatuto paradoxal do campo enquanto espaço por
excelência da exceção. Pois ele é, como descreve Agamben: “um pedaço de
território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é por
causa disso, simplesmente um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é,
segundo o significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído
através da sua própria exclusão” (HS, p. 189-190).
Portanto, o campo é a materialização do estado de exceção e consequen-
temente a criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um
limiar de indistinção. Por isso, Agamben destaca que “nos encontramos virtu-
almente na presença de um campo toda vez que é criada uma tal estrutura,
independente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja
a sua denominação ou topografia específica” (HS, p. 195). Toda vez que os di-
reitos fundamentais são suspensos cria-se a estrutura do campo. Seguindo esse
argumento, Agamben destaca que o campo é tanto o estádio de Bari, onde a
polícia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albane-
ses, quanto o velódromo de inverno no qual as autoridades de Vichy recolhe-
ram os hebreus antes de entregá-los aos alemães, assim como as áreas de es-
pera dos aeroportos internacionais, nos quais são retidos os estrangeiros que
pedem o reconhecimento do estatuto de refugiados. Analisando a realidade da
América Latina, acrescentaríamos nossas periferias, em que as políticas públi-
cas são inexistentes. Estes são espaços que o ordenamento normal é suspenso,
por isso, tudo pode acontecer, depende da civilidade e do senso ético da polícia
que age provisoriamente como soberana.
O campo como estado permanente de exceção, no qual a lei é suspensa e o
indivíduo, despojado de toda humanidade, apresenta agora uma localização
deslocante, em que toda forma de vida e toda norma podem ser virtualmente
capturadas, por isso Agamben destaca: “O campo como localização deslocante
é a matriz oculta da política, que devemos aprender a reconhecer através de
todas as suas metamorfoses, desde as zones d’attente de nossos aeroportos até
a certas periferias de nossas cidades” (HS, p. 197).
Todo o esforço de Agamben consiste em mostrar que a suspensão demo-
crática da lei não é um fenômeno localizado, mas uma tendência hegemônica

63
da modernidade; um fenômeno planetário, que cada vez mais vem sendo utili-
zado como uma técnica de governo. A principal referência deste fenômeno é
sem dúvida o Estado nazista. Hitler, por meio do decreto para a proteção do
povo e do Estado, promulgado em fevereiro de 1933, suspendeu os artigos da
constituição de Weimar3, acionou, após a situação emergencial o artigo 48 da
Constituição, que previa, em caso de perturbação da ordem pública, o uso de
medidas necessárias para restabelecer a segurança. Como tal ato nunca foi
revogado, sua aplicação durou cerca de 12 anos, até o fim da guerra, permitin-
do a eliminação da vida não apenas dos adversários políticos, mas de categori-
as inteiras de cidadãos.
Importante destacar que a Exceção não se classifica nem como apenas fa-
to, nem como apenas direito, mas, sobretudo, como uma decisão própria do
soberano diante da medida de emergência. As situações emergenciais são
sempre os principais motivos pelo qual o governo usa das medidas de exceções
para garantir a ordem e a legalidade. O fato que a necessidade é sempre subje-
tiva. O que existe objetivamente é um dizer subjetivo sobre a necessidade. Nos
Estados absolutos é o rei quem diz o que é a necessidade, numa ditadura são os
militares, no Estado de direito é o congresso e o poder executivo. Independen-
te de quem diz, o fato é que a decisão soberana para invocar o mecanismo da
exceção é puramente subjetiva. O que nos impressiona é que nas democracias
contemporâneas esse mecanismo permanece inalterado, violando princípios
básicos da democracia, fazendo com que o autoritarismo permaneça vivo como
técnica de governo. O Estado Democrático de Direito, reconhece que todos os
indivíduos têm a garantia de uma série de direitos mínimos, entretanto, sob a
justificativa de que há uma grave ameaça (necessidade) esses direitos são fre-
quentemente suspensos.
Segundo Zaffaroni:

O certo, porém, é que a invocação de emergências justificadoras de Estado de


exceção não é de modo algum recente. Se nos limitarmos à etapa posterior à
Segunda Guerra Mundial, constataremos que há mais de três décadas essas
leis vêm sendo sancionadas na Europa - tornando-se ordinárias e tornando-
se na exceção perpétua -, tendo sido amplamente superadas pela legislação
de segurança latino-americana.

3
O artigo 48 da constituição de Weimar destacava: “Quando um Estado não cumpre os deveres que lhe
são impostos pela constituição ou pelas leis do Reich, o Presidente do Reich pode obrigá-lo com a ajuda
da força armada. Quando, no Reich alemão, a ordem e a segurança públicas estão consideravelmente
alteradas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode adotar as medidas necessárias para o restabeleci-
mento da segurança e ordem públicas, inclusive com ajuda da força armada, caso necessário. Para tanto,
pode suspender temporariamente, em todo ou em parte, os direitos fundamentais consignados nos arts.
114, 115, 117, 118, 123, 124, 153. De todas as medidas que adote com fundamento nos parágrafos 1 e 2
deste artigo, o presidente do Reich deverá dar conhecimento ao Parlamento.

64
A identificação da emergência está estritamente ligada à noção do inimigo.
Nesse sentido, o Estado de exceção é instaurado quando o inimigo é identifica-
do. Com isso, suspendem-se os direitos diante da necessidade de confrontar o
inimigo e de defender a sobrevivência do Estado. O problema desse argumento
é que a identificação do inimigo é uma construção subjetiva. Se olharmos para
o Século XX, veremos que o inimigo assumiu várias feições. Segundo Serrano:
“Conhecemos na primeira metade do século XX, até a Segunda Guerra mundial,
a figura do inimigo étnico que justificou a suspensão de direitos de um grupo
de determinada etnia. O inimigo é identificado fisicamente. Hoje por exemplo,
nos Estados Unidos, o inimigo tem feições muçulmanas, diante da ameaça ter-
rorista que se instaurou naquele país. [...] Portanto, neste contexto atual norte-
americano, o inimigo tem também feições religiosas” (SERRANO, 2016, p. 97-
98). Na ditadura militar brasileira, o inimigo era comunista, portanto, disperso
pela sociedade.
Com isso, queremos afirmar que não podemos cometer o erro de pensar
que o estado de exceção, como prática política-jurídico, foi uma peculiaridade
da segunda guerra mundial. Agamben é claro ao afirmar que “o estado de exce-
ção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma do governo domi-
nante na política contemporânea”. Prova disso foram as reações desencadea-
das pelo governo norte-americano diante dos atentados de 11 de setembro?
Numa investida global, contra os chamados inimigos da civilização ocidental o
governo norte americano sistematizou e tornou lei, em 26 de outubro de 2001,
um documento que autoriza invasão de lares, espionagem de cidadãos, inter-
rogações e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem
direito a defesa ou julgamento.
O Jurista Pedro Estavam Alves Serrano vai além e destaca que atualmente
outro possibilitador do Estado de exceção é o chamado “ativismo judicial”.
Contemporaneamente estamos presenciando cada vez mais, o poder judiciário
ingressando radicalmente na esfera de competência do legislativo implicando
naquilo que chamamos de jurisdicionalização da política. Sobre isso nos alerta
Lenio Luiz Streck: “O problema do ativismo surge exatamente no momento em
que a Corte extrapola os limites impostos pela Constituição e passa a fazer
política judiciária, seja para o “bem”, seja para o “mal” (2013, p.22).
Serrano procura deixar claro que exceção na jurisdição é quando as deci-
sões de um juiz se apresentam como mecanismos de desconstrução do direito
com finalidade eminentemente política, seja pela suspensão da própria demo-
cracia, seja pela suspensão de direitos da sociedade ou parcela dela. A jurisdi-
ção como fonte de decisões de exceção pode ocorrer quando o juiz decide pela
interrupção inconstitucional da normalidade democrática ou como decisão

65
suspensiva de direitos fundamentais do ser humano. Todos sabemos que cabe
ao poder judiciário a interpretação da ordem jurídica, portanto cabe ao poder
judiciário o alcance dos direitos fundamentais.
Nos países de modernidade tardia e capitalismo periférico a negação dos
direitos fundamentais são perceptíveis. A causa disso parece ser a presença de
um estado de exceção permanente, convivendo disfarçadamente com uma
democracia formal que se realiza apenas na constituição. Outra razão, para a
negação dos direitos fundamentais de uma grande parcela dos cidadãos é que
o poder legislativo é parcialmente dominado pela expressão do conservado-
rismo.
Vejamos o que isso significa: na América Latina, o estado de exceção é uma
presença constante convivendo com o Estado Democrático de Direito, e o judi-
ciário legitima medidas de exceção que atingem grande parte da população.
Esse é o verdadeiro "modus operandis" da justiça. Aquele Estado Democrático,
como o formulado na constituição, se realiza concretamente, apenas a uma
pequena parcela da população, a economicamente incluída. Quando uma pes-
soa comete um crime (bandido) e lhe é imputada uma conduta de forma públi-
ca, consensos sociais são criados em torno dele, logo se vê, objetivamente, uma
espécie de exclusão de sua proteção mínima. Os consensos que a mídia cria em
torno de supostos bandidos (inimigos), faz com que, em muitos processos, o
resultado seja conhecido antecipadamente, independente do que o processo
venha a produzir. Nesse caso o poder judiciário é o soberano, na definição de
Carl Schmitt, é ele o titular da definição última, é ele quem declara o inimigo.
Casos assim demonstram que a jurisdição funciona como fonte legitimadora e
realizadora da exceção.
Para Pedro Estevam Alves Pinto Serrano, a segunda forma de exceção
exercida pela jurisdição na América Latina é a suspensão de governos eleitos
democraticamente. Isso começou a ocorrer com ascensão ao poder de gover-
nos de esquerda democrática. Para combater esses governos, o legislativo e o
judiciário (espaços de expressão do conservadorismos e defesa do capital)
começaram a produzir atos formais com o intuito de combater esses governos,
que de algum modo afrontavam as elites conservadoras. Com isso, começou a
se tornar normal, na América latina, a interrupção inconstitucional da demo-
cracia representativa, legitimada pela Corte constitucional, como foi o caso de
Honduras, Paraguai e Brasil.4

4
Em Honduras, o presidente Manoel Zelaya foi deposto por uma decisão do Parlamento, onde não lhe foi
oferecido qualquer direito de defesa, e por uma ordem liminar da Corte Suprema daquele país que de-
terminou sua prisão sem prévia oitiva. Tal ordem judicial poderia até ser aceita como compatível com a
Constituição não fosse o presidente preso pelas Forças Armadas e não pela força de segurança pública,
como ordenado pela Carta Magna hondurenha, e não tivesse sido expulso do país, em flagrante desres-

66
O discurso que legitima a instauração de um Estado de exceção se legitima
com a construção da figura de um inimigo do estado. Na ditadura nazista, por
exemplo, o estado de exceção foi declarado para combater o inimigo judeu e
comunista, nas ditaduras militares da América latina os direitos fundamentais
foram suspensos para combater o inimigo comunista. O fato é que os inimigos
da sociedade são construções políticas. Ao se construir consensos sobre quem
é o inimigo, logo a pauta passa a ser o combate e para combatê-lo uma massa
passa a clamar por ações autoritárias do estado, que passa a ser o controlador
dos avanços de direitos e conquistas sociais daquela maioria que sempre viveu
marginalizada.5Os defensores do estado de exceção acreditam que o direito é
uma boa forma de administrar as sociedades em tempos de paz. Mas quando a
sociedade é ameaçada por inimigos, é lícito e legítimo aceitar Estados de Exce-
ção para restabelecer a ordem. É uma lógica que se aplica às guerras externas.
Em muitos momentos, houve a tendência de trazer a lógica da guerra para a
lógica interna. O argumento para esses casos é: identificado o inimigo, este não
deve ter os mesmos direitos dos demais cidadãos. É a convalidação do chama-
do direito penal do inimigo.
Segundo Serrano:

Nesse cenário político, portanto, a jurisdição acaba funcionando como agente


legitimador das práticas antidemocráticas e autoritárias. Isso porque com a
assunção do processo democrático, as lideranças políticas que contestam os
interesses da elite, passam a ocupar espaços no executivo, sendo perseguida
por mecanismos judiciais de exceção, assim como os movimentos sociais de
reivindicação, normalmente caracterizado por meio de signos
desumanizantes como “terroristas”, bandidos, corruptos etc. (SERRANO,
2016, p. 146).

peito a dispositivo específico da referida Constituição que impede a expulsão de cidadão hondurenho. A
nulidade da ordem judicial só foi reconhecida pela Corte Suprema após o término do que deveria ter sido
seu mandato. No Paraguai, o desrespeito cometido pela sala constitucional da Corte Suprema de Justiça à
Carta Magna foi ainda mais grosseiro. A Corte negou vigência ao artigo 17 da Constituição, que garante
defesa “no processo penal, ou em qualquer outro que possa derivar pena ou sanção”. Obviamente, a
cassação de mandato eletivo é uma sanção grave, mesmo se realizada em processo político. É bizarro
juridicamente imaginar como adequado ao Estado de Direito a realização de um processo político de
impedimento sem direito a ampla defesa, como ocorreu no caso de Fernando Lugo.
5
O caso emblemático vivido nos Brasil nos últimos meses é a investigação denominada de “Lava-Jato”.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a “Lava
Jato” estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às
normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Este é o caso emblemático em que a justiça declara que
devido a magnitude do caso a ordem jurídica é suspensa para assim poder combater o inimigo. Em nome
do combate ao inimigo usa-se do judiciário para perseguir adversários políticos. Não queremos entrar
nas minúcias do caso, mas vários especialistas demonstraram que a operação cometeu várias transgres-
são à literalidade da lei, mas a Corte não toma as medidas para conter a exceção. Qualquer crítica que é
feita à operação o argumento é de que o crítico não passa de um defensor dos corruptos.

67
Portanto, diferente de como imaginava Carl Schmitt, na contemporanei-
dade, a exceção não se localiza apenas no âmbito da crise política ou na situa-
ção excepcional e temporária. A exceção está se transformando em regra no
interior da rotina de nossas sociedades democráticas, como espaço de sobera-
nia absolutista, suspensivo do direito. No século XXI assistimos à exceção se
apresentar como instrumento político para conter os processos democráticos e
os consequentes avanços sociais. Se no início do Século XX, o estado de exce-
ção, quando invocado, interrompia o Estado Democrático, o que presenciamos
nesse início do século XX é uma mudança de natureza. Os mecanismos de exce-
ções são inseridos no Estado de Direito Democrático transformando-se em
uma técnica de governo. Um exemplo de estado de exceção sem a interrupção
da democracia representativa é o Patriot Act6, mas nesse caso o inimigo é iden-
tificado como o estrangeiro, ou seja, não é o cidadão americano. No caso da
América Latina a identificação da exceção como técnica de governo é mais
complexa de ser identificada, mas o fato é que nessa parte do mundo, como é o
caso do Brasil, o Estado Democrático de direito é apenas formal, acessível para
uma pequena parcela dos cidadãos, os chamados consumidores ativos. A outra
maioria absoluta da sociedade vive sob a égide de um estado autoritário, de
exceção permanente, com os direitos fundamentais negados diariamente. É um
estado de exceção sem que haja a suspensão da ordem jurídica vigente, legiti-
mado pelo discurso do combate ao inimigo.
Para concluir, é importante lembrarmos das teses de Todorov que afirma-
va que ao contrário do ocorrido em grande parte do século XX, quando o totali-
tarismo era seu principal inimigo, as ameaças que hoje pesam sobre a demo-
cracia não vêm de fora, mas são cultivadas em seu interior. A democracia triun-
fou no século XX como forma de organização política dos governos. Havia uma
expectativa, além da sua expansão, de que ela pudesse despertar o entusiasmo
dos diversos povos, mas o que podemos observar é uma verdadeira ilusão e
em quase todos os lugares, verifica-se uma verdadeira apatia.

Referências Bibliográficas

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res: Anastasia Giamali; Dimosthenis Papadatos-Anagnostopulos. Atenas. Disponível em:

6
Patriot Act foi um decreto assinado pelo presidente George W. Bush logo depois dos atentados de 11
de setembro de 2001. O decreto permitia, entre outras medidas, que órgãos de segurança e de inteligên-
cia dos EUA interceptassem ligações telefônicas e e-mails de organizações e pessoas supostamente
envolvidas com o terrorismo, sem necessidade de qualquer autorização da Justiça, sejam elas estrangei-
ras ou americanas.

68
<http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/04/agamben-a-democracia-e-um-conceito-ambiguo/>.
Acesso em: 01 ago. 2014.

AGAMBEN, G. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.

AGAMBEN, Giorgio. Stato di Eccezione. Homo sacer II/1. Torino: Bollati Boringhieri, 2003.

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CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Trad. Beatriz de
Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

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ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Trad. M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

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sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2013.

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2010. 2010. Tese (Doutorado em Filosofia) -Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, UNICAMP, São Paulo. 2010.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010.

TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. ed. Rio de
Janeiro: Revan. 2011.

69
AS CATEGORIAS FILOSÓFICAS PARA O DESENVOLVI
MENTO NACIONALISTA A PARTIR DAS OBRAS DE
ÁLVARO VIEIRA PINTO
Dr. José Ernesto de Fáveri1
Dr. Sandro Luiz Bazzanella2
Ms. Marilei Kroetz3

1. O Contexto Da Abordagem: considerações iniciais

Vieira Pinto é um personagem do pensamento filosófico brasileiro que se


preocupou em pensar a realidade subdesenvolvida no Brasil, objetivando colo-
car as bases filosóficas para o desenvolvimento nacional autônomo e soberano.
Viveu no Rio de Janeiro e foi um dos pensadores do movimento nacionalista
desenvolvimentista não xenófobo.
Identificar e apresentar as categorias filosóficas do pensamento de Vieira
Pinto através das obras é um desafio complexo, dada a importância e relevân-
cia das ideias e análises que realiza sobre a realidade nacional. Essa é a grande
contribuição do autor em questão, na construção do pensamento filosófico
brasileiro. A melhor forma de conhecer esse pensador foi dar voz aos persona-
gens que viveram e conviveram com ele4, enquanto testemunhas de uma vida
dedicada ao pensar a realidade nacional para despertar uma consciência social
da necessidade de construir um país melhor para todos, isto é, uma nação de-
senvolvida.
O conjunto de suas obras foram produzidas ao longo das décadas de 60 e
70, com uma atualidade incrível, mediante o retrocesso da concepção de Esta-
do, políticas econômicas e sociais que estão sendo implementadas pelo atual
governo de Michel Temer. Dessa forma, é possível deduzir o tamanho do retro-
cesso que esse governo representa para o país na atualidade. Se considerarmos

1
Natural de Cocal do Sul (SC). Graduado em Filosofia e Pedagogia, especialização Orientação educaci-
onal, Mestrado em Educação: Ensino Superior (FURB), doutorado na área da Educação (UFSCar).
2
Natural de Ascurra/SC. Graduado em filosofia (IFCLDB); Especialização em gestão colegiada das
escolas católicas (PUC/PR); Mestre em Educação e Cultura (UDESC); Doutorado em Ciências Humanas
(UFSC).
3
Natural de Itapiranga/SC; Graduado em Economia pela UFSC; Mestre em Mestre em Economia pela
UEM; Doutoranda em Economia pelo ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), da Universidade
Técnica de Lisboa (UTL).
4
Para ter acesso aos depoimentos desses personagens que viveram e conviveram com Álvaro Vieira
Pinto consultar, FAVERI, José Ernesto de (Org.). O legado de Álvaro Vieira Pinto na voz de seus
contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2012. Segunda edição no E-book da Amazon.com.br.

71
que para cada ano de retrocesso serão necessários três para alcançar o estágio
atual das conquistas e avanços nos setores sociais, econômicos e culturais,
estima-se que necessitaremos em torno de um século para ser recuperado o
atual estado de retrocesso. Na atualidade, Vieira Pinto é um dos teóricos capaz
de contribuir com os estudiosos, pesquisadores e intelectuais brasileiros para
realizar uma análise crítica da realidade nacional e, dessa forma, reiniciar a
luta para alcançar a médio e em longo prazo, o que se perdeu, de conquistas e
de avanços, com o atual governo neoliberalista.
Foi no conjunto de obras do pensador Vieira Pinto que se realizou o resga-
te de algumas categorias filosóficas que possibilita sustentar, solidamente, uma
análise crítica da atual realidade e apontar alguns pressupostos orientadores
do desenvolvimento nacionalista não xenófobo.
Obviamente que este trabalho está longe de querer esgotar o estudo sobre
o pensamento do autor em pauta e, muito menos, não possui a pretensão de
resolver os problemas nacionais. Como um dos objetivos, pretendo o debate e
motivar estudiosos, pesquisadores e intelectuais para resgatar as ideias bri-
lhantes e realistas desse pensador, como forma, embora tardia, de reconheci-
mento.
Esse breve ensaio está organizado em dois momentos interligados: no
primeiro, são identificados os temas geradores dispersos na vasta obra que o
autor nos deixou; e, no segundo serão abordadas as categorias filosóficas, en-
quanto fio condutor do seu pensamento sobre a proposta de desenvolvimento,
fundado na realidade nacional.
Finalmente, pelo que li e ouvi nos depoimentos sobre esse grande pensa-
dor em estudo, posso afirmar, sem sombra de dúvida, que Vieira Pinto, em vez
de ensinar filosofia pela repetição de enunciados e conceitos gerais, inspira a
filosofar, isto é, desperta no leitor um pensar interconectado com a cultura e a
realidade nacional.

2. Os Temas Geradores Do Pensamento De Vieira Pinto

Antes de elencar os temas geradores 5, é impresendível definir o que se en-


tende por essa expressão. De acordo com o pensamento de Paulo Freire, tema
gerador significa uma visão central geradora de uma organização provisória do
conhecimento, resultante da representação da realidade no pensamento para
construir conceitos e enunciados gerais produtores de uma dinâmica visão de
totalidade. A realidade representada no pensamento como fonte de informa-
ções para compreendê-la no seu real estado, da qual resulta em enunciados
metodicamente organizados sobre o real, define um modo específico de apro-

5
Ver FAVERI, José Ernesto de. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: o ensino de filosofia na perspectiva
freireana. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 147.

72
priação e produção do conhecimento vinculado à realidade. Ou seja, um pro-
cesso de pensar dinâmico sobre o real como inesgotável fonte de saber. O tema
gerador constrói os enunciados gerais sobre os diferentes setores da realidade
ligados às dimensões da existência individual e coletiva em que o ser humano
está inserido. O tema gerador, necessariamente, gera análises e conhecimentos
em torno da realidade mais próxima do indivíduo para pensá-la criticamente.
O tema gerador, liga e religa, reversivelmente, ideia e realidade, pensamento e
ação, e assim por diante. Por isso, é “a ideia-força”, enquanto representação
dinâmica do real no pensamento, produzindo uma visão crítica da realidade6.
Os temas geradores desdobram-se em categorias filosóficas que orientam
o pensar e agir sobre o projeto de desenvolvimento, cujo fim é emancipar a
nação da condição de subdesenvolvimento, isto é, situação real de desumani-
zação do ser humano e do ser da nação.
Depois de muitas leituras e análises chegou-se à conclusão que os princi-
pais temas geradores do pensamento de Vieira Pinto são:

2.1 Nacionalismo desenvolvimentista e desenvolvimentismo


nacionalista

O desenvolvimento do país será sempre direcionado para a nação e não


para a classe econômica mais rica. A nação significa um organismo vivo que,
através da autonomia nacional e a soberania internacional, produz o desenvol-
vimento integral dos indivíduos e da sociedade, gerando “o bem comum” e
“bem-estar” entre os indivíduos. Esse nacionalismo desenvolvimentista só é
possível quando se tem uma forte presença do Estado, atuando contra a desna-
cionalização e a internacionalização dos bens e serviços nacionais, através de
políticas para garantir que a função desse possa consolidar e promover o bem-
estar para a nação.

2.2 – A realidade nacional e as modalidades de consciência: ingênua


e crítica

Esse tema gerador abrange a análise da realidade nacional para construir


a consciência social, capaz de compreender as mais profundas contradições
entre os fatores e as condições que determinam o estágio da nação subdesen-
volvida. Isso implica em construir uma sólida e coerente visão crítica da reali-

6
Quando usarmos as expressões “pensar crítico” e “consciência crítica” o sentido que queremos dar é: a
construção de uma visão de totalidade sobre a realidade ou a questão em análise.

73
dade nacional como fundamento pelo qual a classe intelectual, oriunda das
massas, produz a ideologia do desenvolvimento nacional.

2.3 – A concepção do ser humano, trabalho e cultura

A base comum desse tema gerador é o conceito de ser humano. Esse está
intimamente ligado à questão do trabalho e da teoria da cultura. A visão de
homem que se adota nesse ensaio está ligada às condições reais em que esse
ser vive, sob pena de construir uma visão puramente abstrata e metafisica. O
que define o ser da nação subdesenvolvida é perceber que o homem não traba-
lha para si, mas esse é para o trabalho. Essa contradição define a alienação do
ser humano em sociedade numa dada condição concreta. Assim sendo, pensar
sobre o fazer do homem é ponto de partida para manter o pensamento ligado à
realidade para decodificá-la, cuja consequência é produzir uma visão crítica da
nação para a sua emancipação. É baseado na concepção de ser humano que a
questão do trabalho e a cultura tem de ser analisada e compreendida para se
adquirir uma visão de totalidade do pensamento nacionalista de Vieira Pinto.

2.4 - A produção nacional da própria ciência

A própria ciência está embasada nas pesquisas científicas comprometidas


em investigar e superar os problemas nacionais, isto é, satisfazer, de forma
cada vez mais elaborada, as necessidades da nação para que as massas oprimi-
das tenham melhor qualidade de vida. Esse desafio remete-nos a pensar a ne-
cessidade de superar os ranços dos discursos metafísicos sobre a pesquisa,
bem como a importação de métodos e técnicas para reproduzir, na sociedade
subdesenvolvida, a ciência metropolitana, externa e alheia, aos interesses na-
cionais. A finalidade de se submeter aos ditames da ciência externa é apenas
satisfazer as necessidades e os interesses da sociedade de origem, isto é, dos
países desenvolvidos. Nessa condição, o pesquisador apenas presta um serviço
alheio à realidade nacional e favorece a ciência global. Com essa prática, os
pesquisadores postergam para um segundo plano a resolução dos problemas
nacionais. Por isso, os resultados das pesquisas, não aplicados à realidade
nacional, emperram o surgimento da própria ciência. Essa ciência, de origem
metropolitana, passa a configurar como instrumento de produção do conheci-
mento e da ciência alienada. Em vez de essa ciência estar a serviço do desen-
volvimento das nações menos desenvolvidas, produz a opressão nacional de
um povo. Portanto, a produção nacional da própria ciência tem como finalida-
de e compromisso de responder, positivamente, aos problemas sociais nacio-

74
nais, através da aplicação dos resultados das pesquisas, A própria ciência pos-
sui um caráter nacionalista quando contribui para se libertar do subjugo da
ciência global. Dessa forma, o conhecimento local contribui, decisivamente,
para responder aos problemas da realidade. A realidade será sempre o ponto
de partida das práticas da pesquisa científica, pois a própria ciência tem ori-
gem social, cujo resultado possui uma finalidade, também social, porque tanto
a origem quanto a finalidade desse tipo de ciência estão comprometidas com o
desenvolvimento da coletividade local.

2.5 - A teoria da educação: suporte e orientação na formação da


consciência crítica nacional

A educação é o processo pelo qual faz a ideologia do desenvolvimento sair


da pura intelecção metafísica para entrar na vida cotidiana das massas, em
condição de opressão e desumanização em que vivem. A finalidade da educa-
ção nacional desenvolvimentista consiste em formar a consciência crítica para
que o oprimido perceba a necessidade de superar a condição de objeto para
sujeito. Como consequência, o indivíduo terá, em suas práticas cotidianas, um
agir e um interagir, capazes de atribuir finalidade ao que vive e o que produz
em sociedade. Por isso, a educação não muda a realidade, mas muda o pensar
e, consequentemente, muda o agir do ser humano em sociedade. Como conse-
quência, assume o papel de sujeito na mudança da condição social e material
desumanizante em que esse ser vive.

2.6 - A tecnologia como instrumento de libertação do ser humano e


do ser da nação

A produção nacional da própria ciência, compatível com o nível de desen-


volvimento e as necessidades da sociedade, vai definir a finalidade da tecnolo-
gia. A tecnologia pode se transformar no instrumento de opressão, exploração,
controle do ser humano e da própria nação, quando usada para fins alheios à
emancipação do ser humano. Dessa forma, origina-se o colonialismo tecnológi-
co. Esse aprofunda ainda mais o nível de subdesenvolvimento da nação pelo
fato de que a tecnologia se torna um meio pelo qual uma nação desenvolvida
sufoca e estrangula a nação subdesenvolvida, pelo uso de uma tecnologia ape-
nas compatível com os interesses das grandes metrópoles e ignorando os inte-
resses nacionais das sociedades subdesenvolvidas.

75
3 As Categorias Filosóficas Para O Desenvolvimento A Partir Do
Pensamento De Álvaro Vieira Pinto
A leitura das obras de Vieira Pinto possibilitou identificar algumas catego-
rias, imbricadas entre si. Esse estudo centra a atenção sobre as categorias que
servem de base para compreender o que significa um processo de desenvolvi-
mento emancipatório da nação subdesenvolvida.
A prioridade deste ensaio é construir um referencial teórico capaz, entre
outras contribuições, de realizar uma análise crítica em torno da concepção de
Estado e o conceito de desenvolvimento implementado pelo atual governo.
As categorias aqui abordadas, podem não ser as únicas, pois, dependendo
do ponto que se coloca a vista sobre os setores da realidade, pode-se descobrir
e acrescentar outras categorias que não tenham sido aqui analisadas. Entretan-
to, isso não invalida este estudo porque passa a ser um ponto de partida e não
um ponto de chegada. As ideias e o pensamento de Vieira Pinto têm de ser
tomado como instrumental teórico de análise crítica da atual realidade brasi-
leira.

3.1 - O conceito de nação

A nação, neste estudo, significa uma grande dimensão de massa humana


contínua, que o pensador denomina de massas oprimidas, pois, refere-se a um
conjunto de indivíduos que forma a nação subdesenvolvida.
Esse dado assume uma importância ímpar nesse contexto, porque além da
contradição entre homem x natureza, capital x trabalho, para Vieira Pinto,
existe uma contradição ainda mais ampla e fundamental entre: as nações de-
senvolvidas x as nações subdesenvolvidas.
Superação da contradição fundamental reside na elaboração de um proje-
to nacional de libertação das massas, através de um processo de pensar dialéti-
co e cuidadoso sobre a realidade subdesenvolvida, enquanto ponto de partida
para organizar a ideologia do desenvolvimento nacional. A superação da con-
tradição entre nações reside na radical defesa no despertar a “autopercepção”
da massa oprimida sobre a realidade nacional em que se desenvolve a sua vida.
Esta é a origem e o sentido do conceito de nacionalismo, não xenófobo, em
Vieira Pinto.
O nacionalismo caracteriza-se como um movimento intelectual que procu-
ra construir, entre a massa oprimida, um pensar crítico e dialético, do qual se
configura como processo que excita o ser para elevar o nível da consciência
ingênua para a autoconsciência, como resultado de uma cuidadosa análise e
interpretação coerente e fiel da realidade nacional. Esse será o ponto de parti-

76
da e o contexto no processo de produção da ideologia do desenvolvimento que
trataremos mais adiante. A ideia de processo que nos referimos, anteriormen-
te, é diferente daquela defendida por Hegel no plano da racionalidade teórica
da pura abstração. A ideia de processo, para o nosso pensador, sustenta-se no
plano real e histórico onde o pensamento encontra-se interconecto com a rea-
lidade do ser vivo da nação. O nacionalismo significa a tendência de pensamen-
to organizado por um conjunto de pensadores nacionais, cuja finalidade é de-
fender a libertação da nação, duplamente oprimida: pela imposição das condi-
ções materiais de vida ao povo e pela importação de ideias e teorias das me-
trópoles que forja a perda da autonomia e compromete a soberania em dife-
rentes direções. Entre outras podemos citar: os processos de pensamento e os
processos de pesquisa científica nacional que visa produzir a própria ciência,
não estão ligados ao processo produtivo local, e, por isso, estão alheios aos
interesses nacionais. Portanto, produz-se uma ciência alienada aos interesses e
a realidade metropolitana. A perda da autonomia e soberania da nação dá-se
em base às duas direções apontadas porque trabalha-se e se produz com fim
alheios aos interesses nacionais.
Cabe aos intelectuais nacionais assumir a tarefa importante de produzir
uma coerente compreensão da realidade para a formação de uma consciência
nacional crítica, orientadora das ações e relações libertadoras da nação opri-
mida. Isto é, cabe os intelectuais, que vivem na realidade nacional, construir a
ideologia para o desenvolvimento, cuja centralidade reside no encontro do
intelectual com a autêntica realidade do povo e com o homem brasileiro pobre,
do qual nasce o conjunto de “ideias-força”, que vão conduzir o desenvolvimen-
to. A ideia de nação está ligada à noção de essência do ser humano, enquanto
partícipe do ser da nação. Nessa perspectiva, o homem produz a sua própria
existência mediante as relações com a realidade e com os outros para manter-
se vivo. A ideia de nação surge a partir dessas relações, que irão definir o ser da
nação e seu nível de desenvolvimento em que se encontra o país.
Portanto, somente quando a totalidade de uma nação alcança o nível de
consciência crítica, construído pela educação nacionalista, estava madura para
realizar um amplo pacto de luta pelo desenvolvimento integral do país.

3.2 – O significado de “amanualidade”

O significado de amanualidade reside no pensar e estudar o fazer do ho-


mem para recompor a história de uma civilização específica. Significa resgatar
a história de manusear o mundo para transformá-lo, de forma cada vez mais
elaborada, em benefício próprio. O grande desafio reside no resgate da origem

77
e a história da civilização. Com essa ideia, o autor encaminha uma concepção
ativa e não contemplativa da realidade, porque o trabalho exercido sobre o
real, além de transformá-lo, produz a capacidade ideativa que, simultaneamen-
te, muda a forma de pensar e do fazer humano, melhorando, qualitativamente,
as condições de sua sobrevivência.
Ao considerar a experiência de manusear o mundo com as próprias mãos,
Vieira Pinto rompe com a o discurso filosófico institucionalizado, como docen-
te da UFRJ, e, se encontra com homem brasileiro pobre, ser constitutivo da
nação subdesenvolvida. Nessa condição, as análises e interpretações da reali-
dade nacional não podem estar ancoradas em ideias e conceitos prontos de
origem abstrata e estranha à realidade local; mas é o desafio a ser enfrentado
pelos intelectuais nacionais, com seriedade e comprometimento objetivando
interpretar, coerentemente, as condições reais das massas oprimidas.
A experiência comum, entre os indivíduos, pelo trabalho constitui o ser da
nação oprimida, ou seja, o manuseio do mundo com as próprias mãos indica o
nível de desenvolvimento da nação. Nesse sentido, desenvolvimento é diferen-
te de progresso. Assim como, o analfabeto não é apenas aquele indivíduo que
se encontra na escala zero no domínio do alfabeto. O conceito de analfabetismo
pode ser identificado quando o indivíduo se situa num grau de cultura mais ou
menos elaborada, que embora não tendo o domínio do alfabeto e da escrita,
domina para si, o processo e o sentido das ações que realiza, transformando a
natureza em seu benefício. Essa ideia, de pensar a partir da experiência do
homem sobre a realidade, assume um papel fundamental para a elaboração da
teoria da educação nacionalista.
Amanualidade está ligada ao desenvolvimento e não ao progresso, que
significa dar ao homem o que não tem. O desenvolvimento consiste em dar,
além do que tem, o que ainda não tem, por algo mais elaborado, capaz de me-
lhorar as condições da vida pessoal e social.
Manusear o mundo com as próprias mãos implica, entre muitas outras
coisas:

a) construção da memória social, enquanto o jeito de manusear e


tocar o mundo que constrói a cultura;
b) avaliar a qualidade técnica cada vez mais elaborada, na trans-
formação do mundo pelo trabalho, onde se circunscreve a vida de um
povo e produz a cultura, que permite caracterizar uma etapa histórica
da civilização;
c) manusear o mundo com as mãos desperta o manuseio do pensar
fundado no fazer humano. Isso dá ao pensar um caráter dialético so-

78
bre o fazer do homem, na construção de uma racionalidade do real
dentro da condição histórica e social, como principal fundamento de
construção da ideologia do desenvolvimento nacional;
d) A amanualidade, pensada nessa perspectiva, contribui na supera-
ção do subdesenvolvimento pelo desenvolvimento. Isso acontece
quando o homem, ao manusear o mundo, tecnicamente cada vez mais
elaborado, compreende o que faz pelo trabalho e para quem o faz. Es-
sa forma de pensar constrói a consciência crítica, isto é, produz a vi-
são de totalidade do que somos e fazemos. Como consequência, gera,
no seio da nação, uma cultura generalizada em torno da necessidade
de emancipação da condição atual de vida para outra superior;
e) finalmente, amanualidade implica que o fazer do homem consti-
tui a história dos objetos. A história dos objetos possibilita perceber o
nível de desenvolvimento da civilização, no momento e no contexto,
em que esses foram criados.

Portanto, a amanualidade está na base do pensamento de Vieira Pinto, no


sentido de buscar uma compreensão da realidade para se construir uma visão
de totalidade de si e da nação em que se desenvolve a vida de cada indivíduo.

3.3 - A ideologia do desenvolvimento nacional: a filosofia e o fio


condutor do projeto de emancipação da nação

Antes de abordar as teses centrais para a construção da ideologia do


desenvolvimento nacional, algumas observações são necessárias para orientar
a análise que se pretende realizar.
A ideologia que o autor defende é aquela que se constitui como consciên-
cia da sociedade brasileira sobre as condições subdesenvolvidas para ascender
num dinâmico processo de desenvolvimento emancipatória da nação. O desen-
volvimento significa a humanização do ser humano e do ser da nação em geral.
O subdesenvolvimento é a condição de vida precária A qual os indivíduos se
encontram, por isso, é um processo de desumanização.
Esse desafio de produzir a ideologia do desenvolvimento é tarefa dos inte-
lectuais nacionais. Somente eles podem realizar “o alargamento quantitativo”
da área cultural, necessariamente, acompanhado por “um movimento qualita-
tivo” na transformação da consciência das massas populares sobre a realidade
nacional. Isso implica em superar o pensar abstrato para um pensar histórico e
social, com o objetivo de analisar o passado, compreender o presente e vislum-
brar um novo futuro. Essa tarefa cabe aos intelectuais que vivem na realidade

79
do país subdesenvolvido, cujo fim é realizar a correta e coerente interpretação
dos problemas nacionais, onde se origina o conjunto das “ideias-força”7, isto é,
a ideologia, para sustentar e direcionar o projeto de desenvolvimento nacional
autônomo e soberano. Um grave equívoco que se pode cometer quando da
construção da ideologia do desenvolvimento é delegar essa tarefa aos intelec-
tuais alheios a nossa realidade para interpretá-la. Ou seja, essa tarefa de dele-
gar aos intelectuais metropolitanos para interpretar a realidade nacional, além
de uma atitude absurda, constitui-se na estratégia de inviabilizar a produção
da autêntica ideologia do desenvolvimento nacional. Isso compromete a inte-
pretação correta e coerente da realidade pelo fato do analista não estar imerso
nela.
Quando um pensador alheio a nossa realidade se aventura a interpretá-la,
apenas consolida o colonialismo intelectual externo sobre a realidade interna
do país. Isto é, produz uma ideologia alheia e incompatível com a realidade
local, desviando o pensar para impedir o surgimento dos movimentos de
emancipação do povo e consolidar a manutenção do subdesenvolvimento do
país, pela construção da consciência ingênua8 entre a massa oprimida.
O intelectual estranho à realidade nacional contribui para o surgimento e
consolidação social da consciência ingênua, porque as ideias que produz não
representam fielmente os problemas e a realidade em que vive o homem pobre
da nação subdesenvolvida. Dessa forma, o pensar assume um caráter ingênuo
porque não leva o indivíduo a compreender a realidade em seu entorno por ser
incapaz de representá-la, na forma de ideia, no seu pensamento.
São as ideias que produzem a consciência coletiva da nação, ou seja, a ide-
ologia, como representação da realidade no pensamento, provoca, nas massas
populares oprimidas, a metamorfose da consciência ingênua para a crítica.
Essa realiza a mudança de postura do indivíduo no coletivo. Dessa forma, passa
a integrar-se na luta pela implementação do projeto de desenvolvimento naci-
onal. Para se ter êxito na implementação da ideologia com vistas ao desenvol-
vimento é necessário construir a unidade entre os indivíduos da nação opri-
mida para que as mudanças no seio da sociedade progressivamente possam
acontecer. Isto só é possível quando a massa oprimida tiver uma visão crítica
das condições desumanas em que vive. O movimento nacional de luta para que
as mudanças possam acontecer é imprescindível um planejamento de ações

7
Segundo o pensamento de Ernani Maria Fiori, “a ideologia é um conjunto de ideias-força, com que o
grupo social interpreta a situação histórica que vive e formula seus projetos relativos a sociedade”.
(FIORI, 1991, p.145).
8
O conceito e a caracterização desse tipo de consciência serão abordados, com maior profundidade, na
sexta categoria.

80
comuns, voltadas para implantar a ideologia, implica comprometer-se na luta
social para emancipar a nação oprimida.
Para construir a ideologia nacional do desenvolvimento, cinco são as teses
que devem orientar a execução dessa tarefa:

a) Sem ideologia do desenvolvimento, não há desenvolvimento;


b) A ideologia do desenvolvimento tem, necessariamente, de ser fenô-
meno de massa;
c) O processo de desenvolvimento é função da consciência de massa;
d) A ideologia do desenvolvimento deve proceder da consciência das
massas;
e) A teoria da educação nacionalista libertadora, instrumentalizada para
contribuir com o desenvolvimento, possui como desafio a formação
da consciência crítica do homem “em situação” para superar a opres-
são que vive a nação9.

A produção da ideologia do desenvolvimento, conforme entende Vieira Pin-


to, tem de ser produzida por intelectuais que vivem a realidade nacional. Pois,
a ideologia se origina das massas e para elas se volta. Esse processo é orienta-
do pela consciência crítica condutora do agir e do interagir emancipatório das
massas oprimidas.

3. 4 - Visão antropológica: a concepção de ser humano como base


constitutiva da nação

O conceito de ser humano, na visão do autor, tem como ponto de par-


tida a produção da existência pelo trabalho. Para analisar a questão, é necessá-
rio tomar o ser humano na mais absoluta dimensão concreta. Pois, é na concre-
tude de sua vida que se mantém o pensamento antropológico enraizado na
situação mais real em que o homem vive. Esse ponto de partida interliga essa
categoria filosófica com as demais e serve como ponto de partida e como base
para conceituar o ser humano. Essa convergência entre as categorias só é pos-
sível porque o ponto de partida comum entre elas é a produção da existência.
Somente um pensar dessa natureza supera as visões metafísicas de compreen-
são da essência do homem.
Ao longo da história do pensamento humano, inúmeras concepções filosó-
ficas foram elaboradas para explicar a essência do homem. A grande maioria

9
FAVERI, José Ernesto de. Álvaro Vieira Pinto: contribuições à educação libertadora de Paulo Freire.
São Paulo, LiberArs, 2014, p. 116-117.

81
pensa o ser humano como uma ideia fora dele próprio, ou seja, além ou aquém
do contexto atual e real em que produz a existência. Nessa perspectiva de aná-
lise, temos a construção de um pensar antropológico metafísico, onde o pensar
fica descolado da real situação em que o ser humano se encontra. Há muito
tempo que a essência do homem era pensada como razão, alma, espírito, eu,
consciência, enfim, categorias de pensamento que nos remetem para uma aná-
lise idealista do homem, da qual se origina um pensar metafísico e alienado
pelo fato de ser pensado fora do contexto em que vive. A consequência dessa
postura separa o mundo humano do mundo material, gerando um fosso entre
os dois extremos. Enfim, a concepção metafísica do homem retira a possibili-
dade de autopercepção de que ele é um ser no e com o mundo em que se de-
senvolve a existência.
A ideia de essência do ser humano que se defende está alicerçada na visão
de que é um ser que está no mundo, e, simultaneamente, é um ser no mundo,
na luta para conquistar o mais-ser, como superação do menos-ser. Estar no
mundo é simples pertencimento a ele, como outro ser qualquer. Entretanto, o
estar no mundo requer, simultaneamente o ser no mundo. O homem concebi-
do, simultaneamente, nessas duas dimensões constitui-se num sujeito de rela-
ções que supera o simples pertencimento à realidade e consegue transformá-la
para si, a fim de melhorar sua existência. Somente o ser humano consegue
superar o pertencimento ao mundo e, ao buscar a sobrevivência, constrói a
relação para adaptá-lo a si, cujo fim é melhorar, progressivamente, a qualidade
do seu existir.
A capacidade de o homem operar sobre a realidade produz as coisas ne-
cessárias para manter-se vivo, com uma qualidade de vida superior, ao mesmo
tempo e nas mesmas condições, constrói seu potencial ideativo. O ser humano,
ao transformar o mundo para si, também produz o pensamento ideativo e
desalienado que dá origem à consciência crítica. O pensamento crítico atribui
finalidade às ações e relações que o homem empreende sobre o mundo para
torná-lo um sujeito desalienado. É isso que potencializa o pensar e o agir, onde
dinamicamente, vai aperfeiçoando o seu modus operandi sobre a realidade e
desenvolve sempre melhor o próprio potencial de pensamento.
Uma análise antropológica dessa natureza acaba por exigir a elaboração
de uma teoria pedagógica. Isto é, a antropologia transforma-se em base para a
construção da pedagogia nacionalista desenvolvimentista. Uma análise do
homem em situação, conforme está se propondo, forja a necessidade de uma
teoria da educação, sustentada e circunscrita a partir da ideologia do desen-
volvimento, oriunda de uma correta e coerente compreensão crítica da reali-
dade nacional, cuja finalidade da educação é ser libertadora das massas. Dessa

82
forma, supera-se a educação como algo imposto de fora para dentro, para se
transformação como processo construído de dentro para fora. Isto é, uma con-
cepção de educação endógena e não exógena. Seu compromisso é formar a
consciência crítica orientadora do agir e interagir da nação rumo ao desenvol-
vimento nacional para a humanização da massa oprimida.

3. 5 - A humanização e desumanização do ser humano e do ser da


nação pela produção da existência

3.5.1- As condições sociais e materiais da humanização e desumanização


do ser humano estão vinculadas ao nível de desenvolvimento em que a socie-
dade se encontra. Quando a sociedade se encontra num nível de desenvolvi-
mento razoável, o homem encontra-se numa posição mais humana porque,
mediante ao resultado de seu trabalho, tem acesso as coisas materiais de que
precisa para manter-se vivo com dignidade. Por outro lado, quando o ser hu-
mano se encontra numa sociedade subdesenvolvida, a possibilidade de uma
vida desumana é muito provável e real. Porque o resultado do seu trabalho não
lhe permite ter acesso a coisas materiais para manter-se vivo com uma quali-
dade de vida cada vez mais superior. Ou seja, o lugar que o homem ocupa na
escala da produção das coisas materiais de que necessita para manter-se vivo é
sempre uma relação desigual entre rico e pobre, gerando a dominação e a ex-
ploração transformando o homem em objeto e não sujeito de sua existência.
A questão do trabalho como fator de humanização e desumanização tor-
na-se fundamental para essa análise e está, diretamente, vinculada à concepção
de ser humano. O trabalho, de um lado, humaniza o ser humano quando a pro-
dução das coisas materiais se desloca no plano dos objetos fabricados para dar
destaque e compromisso com a vida do sujeito produtor. Agora, o trabalho
desumaniza quando a produção fica somente centrada na fabricação dos obje-
tos, sem se importar com a vida do sujeito que os produz. É isso que comumen-
te ocorre com a produção capitalista dos bens materiais. A consequência que
isso traz é a separação do sujeito da produção dos objetos, provocando a alie-
nação e consequente desumanização, porque o trabalho vira mercadoria com-
prada por outro, sendo que o limitado resultado do seu trabalho não lhe permi-
te ter acesso ao que produz. Essa é uma contradição no mundo produtivo do
capitalismo que gera a desumanização do homem. O que causa essa contradi-
ção é que o resultado do seu trabalho está submetido a interesses alheios a si e
à nação. Por isso, quando se aproximam o sujeito e o objeto produzido pelo
fazer pensando e o pensar fazendo, define-se um processo dialético de cons-
trução de si, do próprio pensar e do mundo. Pois, no mesmo processo de pro-
dução da existência, o ser humano consegue, simultaneamente, ter acesso às
coisas materiais para manter-se vivo e desenvolve sua capacidade de pensar.

83
Aí reside a plena humanização. Com o que se tem abordado até aqui, percebe-
se que o trabalho tanto pode humanizar quanto desumanizar o ser humano,
dependendo em que nível de desenvolvimento se encontra a nação. Se a nação
é subdesenvolvida, o ser humano encontra-se numa situação real de desuma-
nização e se a nação encontra numa situação real de desenvolvimento, o ser
humano encontra-se numa situação real de humanização. O nível em que se
encontra a nação, opressora ou oprimida, da mesma forma o trabalhador na
relação social, recebe tratamento diferente e desigual, isto é, de oprimido por-
que sempre tem alguém que o oprime. Por isso, o processo de desumanização
reside na dupla e recíproca relação desigual. A primeira, entre as nações de-
senvolvidas e subdesenvolvidas como consolidação dessa contradição maior. A
segunda contradição reside na relação entre capital e trabalho, isto é, entre os
donos dos meios de produção e o trabalhador. O primeiro domina o segundo,
dessa forma instala-se uma relação de senhor e escravo. O segundo é explora-
do porque com o resultado do seu trabalho não consegue ter acesso aos bens
materiais que produz. Nesse sentido, torna-se objeto explorado duplamente.
Ele próprio vira mercadoria como ser vivo e sua força de trabalho, uma vez que
esse não mais lhe pertence. Por outro lado, a desumanização é sempre uma
condição desfavorável à vida porque limita o acesso às condições de viver com
decência.
Portanto, para compreender o fenômeno da humanização e a desumaniza-
ção do homem é necessário entender o real estado em que esse se situa no
processo produtivo. Essa atitude conduz a formação do pensamento e a auto-
percepção pela compreensão da posição, de sujeito ou de objeto, que ocupa no
processo social de produção material da existência. Por isso, o trabalho é o
ponto central para definir o nível de humanização e desumanização do ser
humano, e, do ser da nação. O pertencimento a uma nação, seja opressora ou
oprimida, faz circular, no seu interior, a cultura que reforça e cristaliza a cons-
ciência de opressor ou de oprimido, gerando do mesmo modo, atitudes contra-
ditórias entre as classes antagônicas, opressor-oprimido, no interior de uma
nação. Por isso, a contradição maior situa-se entre nações. Outras contradições
de menor porte, mas nem por isso menos desumanas, podem ser percebidas
no interior de uma nação. Por exemplo, a contradição entre os setores diferen-
tes de uma mesma sociedade, gera as classes sociais e institucionais antagôni-
cas. Essas caracterizam-se pelas relações desiguais entre indivíduos que ocu-
pam cargos e outros que apenas desempenham funções subalternas na hierar-
quia da instituição. Essas relações institucionais desiguais geram a relação
opressor-oprimido, porque é sempre uma relação pouco democrática e muito
autoritária. Isto é, um manda e outro obedece docilmente. Nesse sentido, uma
nação que pretende superar o seu estado de subdesenvolvimento, enquanto
processo de desumanização, deve iniciar pela formação da consciência crítica,

84
para produzir nos indivíduos uma visão de totalidade unitária. Com isso, o
indivíduo autopercebe e compreende a sua situação real e se engaja no proces-
so de luta pela emancipação pessoal e social. Quero ainda, nessa linha de pen-
samento, ressaltar que é na contradição entre classes institucionais que se
situa a relação opressor-oprimido, preconizada nas práticas pedagógicas esco-
lares de ensino. É nesse sentido que Paulo Freire dá a sua fantástica contribui-
ção para uma educação nacionalista emancipatória da nação e das classes
oprimidas sejam, elas socioeconômica ou institucionais. Sempre que, numa
dada sociedade, existir qualquer contradição acompanhada pela desigualdade
na relação e venha favorecer uma classe e desfavorecer outra, instala-se aí o
processo de desumanização, por se tratar de relações desiguais, transforman-
do um indivíduo em sujeito e outro em objeto. O mesmo processo se instala em
nível de: nações, classes sociais no interior da mesma nação e, de modo mais
específico, nas classes institucionais. A desumanização é um fenômeno que se
manifesta em três níveis, internacional, nacional e pontualmente.
3.5.2- A humanização é coetânea à produção material da existência, isso
significa ter acesso aos bens necessários para viver e manter-se vivo com dig-
nidade; nesse processo concreto, o pensamento se constrói de forma crítica,
porque representa as operações concretas que o indivíduo realiza sobre a rea-
lidade material, no pensamento, em forma de ideia, produzindo a visão de tota-
lidade de si e do seu real estado de pertencimento à sociedade/nação.
Dentro desse contexto, a humanização do ser humano e da nação reside
na fronteira entre o ser e o mais ser. A humanidade é um modo de existir de
tal sociedade, definida por determinado grau de desenvolvimento. Isto é, o
estado de efetivação das possiblidades está vinculado ao progresso da comu-
nidade, porque do modo como ela se organiza, permite ao indivíduo ter acesso
aos bens materiais e aos bens de pensamento. Assim sendo, o ser humano con-
segue alcançar o mais ser. Consequentemente, a nação humaniza-se porque a
massa encontra-se em condições de ter uma situação existencial mais digna,
pois consegue acessar a coisas materiais e promove, para si, a organização do
pensamento, que é a organização do mundo. Enfim, a humanização se constrói
numa relação recíproca entre o indivíduo e a sociedade, que é a base de uma
nação humanizada, porque o desenvolvimento nacional cria a condição fun-
damental e condição de humanização reversível entre o ser do homem e o ser
da nação. O indivíduo está imbricado na sociedade e vice-versa, que produz de
forma reversível a humanização do homem e da nação a que pertence.
3.5.3 A desumanização do ser humano e do ser da nação reside na frontei-
ra entre o ser e o menos ser.

85
A desumanização do homem reside no nível de subdesenvolvimento do
país. A condição de país subdesenvolvido impõe condições desfavoráveis para
o ser humano. Nessa perspectiva, o mundo da produção, analisado dialetica-
mente, é o mundo da opressão, onde o país desenvolvido submete, ao país
subdesenvolvido, as condições desumanas da existência pelo trabalho alienado
e submetido aos interesses das nações metropolitanas, excluindo os interesses
nacionais da nação subdesenvolvida. Aqui, a desumanização realiza-se dupla-
mente: da nação e do indivíduo. As condições em que produzem a existência
dos indivíduos e da nação a que pertencem são subumanas e alienadas. Essa
situação desumana no interior da nação subdesenvolvida tem origem na des-
nacionalização e internacionalização do país, entregue ao império econômico
externo, que submete a nação para produzir, tomando como referência os seus
interesses e excluindo os interesses internos das massas produtoras nos países
subdesenvolvidos10. O ser vivo da nação está alienado pelas forças externas e,
por consequência, alheias aos interesses da nação subdesenvolvida. As condi-
ções dos indivíduos que produzem a sua existência são subumanas, pois com o
resultado do seu trabalho não consegue ter acessos aos bens materiais para
viver com dignidade. Por isso, a condição de país subdesenvolvido desencadeia
o processo de desumanização dos indivíduos e da nação como um todo. O tra-
balho em vez de ser para o homem, esse é para o trabalho, com vistas a satisfa-
zer apenas os interesses dos países metropolitanos. Enfim, existe uma intima
correlação entre subdesenvolvimento e desumanização, tanto nos indivíduos
quanto da nação. Tanto a relação entre indivíduos quanto entre nações, quan-
do desigual é sempre a manifestação concreta do fenômeno de desumanização
de ambos.

10
Chamo atenção que este estado de coisas vem acontecendo hoje no Brasil com o governo brasileiro de
Michel Temer. A internacionalização está em franco processo de implementação. Entre outras ações do
governo, temos a venda entreguista do pré-sal, dos aeroportos nacionais, da Petrobrás, da privatização
das universidades matando a pesquisa científica entre outros setores de prestação de serviços à socieda-
de. Enfim, os aumentos privilegiados à justiça (Juízes federais, ministros do supremo, políticos etc..). Em
nome de superar a crise fantasiosa, tudo é vendido a preço de banana, inclusive setores estratégicos do
país são vendidos com base a política de internacionalização. Essa filosofia de governar compromete a
autonomia e soberania do país. Enfim, a corrupção que antes se encontrava centrada no partido dos
trabalhadores, hoje migrou para os partidos de direita, onde as elites políticas e empresariais fazem a
farra com o dinheiro do povo, que vem sendo obrigado a pagar a crise e manutenção dos privilégios para
os ricos. Com tudo isso, há o deslocamento dos interesses nacionais para favorecer grupos econômicos
internos e externos em conluio com os governos nacionalistas xenófobos, tanto das sociedades subde-
senvolvidas quanto das metrópoles desenvolvidas.

86
3. 6 – A produção nacional da própria ciência
3.6.1 O significado do termo

A expressão “própria ciência” é usada como necessidade de se criar um


pensamento teórico e condições para realizar as práticas da pesquisa cientifica
com espírito nacionalista, gerando um tipo de ciência nacional que possa fazer
o enfrentamento da ciência global, hegemônica e opressora, construída nos
países desenvolvidos para submeter as pesquisas científicas, realizadas em
nosso país, aos seus interesses, alimentando, com isso, o subdesenvolvimento.
A ciência nacional, nessa condição, torna-se refém e subalterna da ciência pro-
duzida nos países metropolitanos e imposta para os países subdesenvolvidos,
impedindo, dessa forma, o surgimento de um pensamento e práticas científicas
para criar a própria ciência, como suporte para direcionar o desenvolvimento
nacional. Quando os países desenvolvidos não conseguem realizar esta imposi-
ção, “sequestram” os cérebros dos cientistas e pesquisadores nacionais das
nações menos desenvolvidas para entregar seus projetos, experimentos e prá-
ticas científicas aos países desenvolvidos, fortalecendo o desenvolvimento da
ciência metropolitana opressora, em troca de melhores condições de vida e de
trabalho. Se isso não bastasse também, sequestram os conhecimentos e o po-
tencial criador do pesquisador. Assim sendo, os países desenvolvidos contri-
buem e promovem a implementação do colonialismo científico e tecnológico
nas sociedades subdesenvolvidas.
Para iniciar a análise dessa categoria, a tese central que se defende é criar
um tipo de ciência regional compatível e comprometida com o desenvolvimen-
to nacional da qual resultaria a humanização do homem e do ser da nação.
Portanto, a origem dessa ciência está nas relações entre o homem e o meio em
que vive, isto é, a realidade nacional, mais próxima de si, cuja finalidade consis-
te em responder de forma eficiente e eficaz aos problemas do ser humano pela
aplicação dos resultados da própria ciência, na realidade local. Essa aplicação
dos resultados das práticas de pesquisa abrange a dimensão individual e cole-
tiva das massas e, de maneira nenhuma, podem favorecer apenas os interesses
econômicos neoliberalistas das metrópoles, bem como favorecer, unilateral-
mente, a elite dominante do país subdesenvolvido.

3.6.2- A necessidade de compreensão filosófica da pesquisa científica reside na


aproximação entre a ciência e a existência para impulsionar o desenvolvimento
nacional, objetivando a humanização do ser humano e o ser da nação.

A prática de pesquisa científica não pode estar baseada na visão unilateral


e fragmentada do processo de investigação. Por isso, o pesquisador, necessari-

87
amente, tem de ter uma visão global de todo o processo investigatório sob
pena de assumir posturas ingênuas. Basicamente, essas posturas ingênuas são
três. A primeira, dominar apenas procedimentos práticos e se autorizar a fazer
as considerações teóricas; a segunda consiste em fazer considerações sobre a
prática pelo domínio apenas teórico dos projetos e objetos de investigação e a
terceira consiste em considerar que a orientação teórica do processo de pes-
quisa é coisa de filósofos e uma perda de tempo.
Qualquer uma das posturas anteriores, adotadas por um pesquisador de
forma isolada, jamais alcançará uma visão de totalidade do processo investiga-
tório. Porque pela visão parcial e restrita não se consegue visualizar a origem
do projeto e muito menos a destinação das descobertas realizadas pela pesqui-
sa. O pesquisador, adotando uma das posturas ingênuas, estará sujeito a criar
obras sem correspondência nenhuma com a realidade e fortalece as condições
de produzir conhecimento alienado. Enfim, decepa o vínculo entre o teórico
com o prático no processo de pesquisa e na aplicação dos resultados.
A necessidade de compreensão filosófica da pesquisa científica contribui,
decisivamente, para que o investigador alcance a plenitude do seu rendimento
intelectual, que consiste em casar a teoria com a prática, gerando um novo
conhecimento para resolver os problemas levantados a partir da realidade em
que o pesquisador se insere.
O grande desafio da pesquisa científica consiste em transformar a realida-
de para colocá-la a serviço da melhoria da vida de cada um e, simultaneamente,
produzir o desenvolvimento integral do indivíduo e da espécie naquele mo-
mento. Isso possibilita a identificação dos reais problemas que a pesquisa tem
de enfrentar naquela sociedade em um dado momento da história. Assentada
nessa base, a pesquisa produz o avanço do conhecimento e alavanca o desen-
volvimento do país, porque a investigação, através de seus resultados, respon-
de de forma positiva aos problemas nacionais e locais.
Portanto, a reflexão filosófica da pesquisa científica é necessária porque se
realiza dentro de determinado momento do processo evolutivo, tanto da maté-
ria/realidade, quanto na possibilidade da construção de um novo conhecimen-
to para resolver os problemas de uma determinada sociedade. Daí que a visão
de totalidade conduz as pesquisas científicas não só como um momento isola-
do de produção do conhecimento, mas como um processo integrado na evolu-
ção da vida e da espécie para continuar o aperfeiçoamento de ambos, ou seja,
da realidade e do conhecimento.

88
3.6.3 A concepção e os fundamentos do conhecimento apropriado para a
produção nacional da própria ciência

Segundo as análises de Vieira Pinto, a concepção de conhecimento para a


produção da própria ciência consiste numa reação interna de um sujeito frente
ao meio que o cerca, dotando a consciência de novas ideias. A ideia será sem-
pre uma representação da realidade no pensamento, que produz a inovação
científica nos mais diferentes campos das ciências e o avanço na resolução de
problemas em diferentes setores da sociedade, tendo como objetivo manter-se
vivo e melhorar, progressiva e dinamicamente, a qualidade da vida
do indivíduo e da nação.
O conhecimento representa uma propriedade geral da matéria, organizada nas
condições de matéria viva. Dessa forma, o conhecimento identifica-se com a
vida e nos mais diferentes contextos que se origina. Diversifica-se em vários
graus evolutivos porque vai adquirindo formas sempre mais perfeitas. O co-
nhecimento, assim concebido, gera a ciência vinculada à existência. Dialetica-
mente, uma vai melhorando a outra pela aplicação dos resultados sobre a rea-
lidade, num processo sem fim.
A inovação científica para a construção de um novo conhecimento, que
inspira e organiza a própria ciência nacional, direciona e conduz o desenvolvi-
mento autônomo e soberano de um país. Inovação significa uma ideia de re-
presentação da realidade no pensamento que impulsiona o pesquisador para a
ação. Essa ação representada no pensamento gera uma nova ideia que produz
um novo e avançado conhecimento. Desse processo, entre ideias e ações, origi-
na-se, o aperfeiçoamento simultâneo, uma e a outra, porque as ideias e as
ações entram num processo dialético, teoria e prática, aperfeiçoando-se, reci-
proca e progressivamente, ao longo da história da ciência. Nessa perspectiva,
há um simultâneo aperfeiçoamento do conhecimento em graus e formas mais
perfeitas e, como consequência, o aperfeiçoamento da existência dos indiví-
duos e da coletividade ao longo da história. Portanto, a inovação realiza o vín-
culo entre ciência e existência, porque exige que a teoria e a prática, nas ativi-
dades do pesquisador, estejam imbricadas ao longo do processo de produzir
um novo conhecimento. É no bojo desse contexto de análise que um conheci-
mento, ao gerar avanços na ciência e na existência, pela pesquisa científica,
constrói a própria ciência nacional que impulsiona o desenvolvimento autô-
nomo e soberano da nação. A própria ciência nacional, nessa perspectiva, tem
como finalidade a emancipação da nação oprimida. A ciência global, oriunda
das metrópoles e imposta à realidade nacional, impede o surgimento da pró-
pria ciência nos países subdesenvolvidos. Isso configura o colonialismo cientí-

89
fico na relação entre nação desenvolvida com a nação subdesenvolvida, geran-
do a contradição maior entre elas, consolidando a exploração e a dominação da
primeira sobre a segunda, a nação subdesenvolvida. Portanto, inovação é fazer
a ideia funcionar na prática para avançar na qualidade do pensamento, geran-
do qualidade de vida nas pessoas pelo desenvolvimento do país.
Essa concepção de pesquisa científica gera o conhecimento com o mesmo
caráter que consiste em concebê-lo como elo que liga as ciências individuais ao
conjunto total da produção científica. O momento atual da pesquisa e cada
pequena descoberta que se realiza no cotidiano está diretamente relacionado
com o conjunto geral dos conhecimentos, produzidos dentro de um determino
momento. Por isso, não podemos assinalar a primazia de um momento sobre o
outro e, nem tampouco, a primazia de uma ciência particular sobre a outra. Se
isso acontecer, incorre-se no risco de produzir uma visão restrita/unilateral da
pesquisa, compromete a visão de totalidade do pesquisador sobre o processo
investigatório. O que importa é o pesquisador possuir, ao mesmo tempo, uma
compreensão específica do seu projeto e do experimento, jamais se desvincu-
lar de uma visão mais ampla, tanto na busca dos resultados quando na aplica-
ção dos mesmos. É isso que se entende por visão de totalidade do pesquisador.
Assim, a pesquisa e a ciência deixam de ser subalterna das ciências externas
para se transformar numa ciência que venha contribuir para a emancipação
das massas, porque a elas indicará os caminhos da solução dos problemas lo-
cais e nacionais. Eis, aí, o vínculo entre ciência e existência. Enfim, não pode-
mos priorizar uma ciência particular e suas descobertas, nem priorizar a tota-
lidade dos conhecimentos sobre as descobertas particulares, pois o todo de um
momento se constitui de um grande número de descobertas particulares e
essas constituem o todo. Daí, a parte e o todo do conhecimento se relacionam
mutuamente quando o pesquisador produz um novo conhecimento. Cada nova
descoberta individual acontece em função e a partir da totalidade do conheci-
mento existente até aquele momento. Um influencia, reciprocamente, o outro.
A totalidade dos conhecimentos já produzidos, de alguma forma, contribui
para realizar novas descobertas de uma ciência particular, onde a totalidade do
conhecimento daquela etapa vai se reconstituir pela incorporação de um novo
conhecimento específico para formar uma nova totalidade. Por isso, as desco-
bertas de uma ciência particular influem e reorganizam, dinâmica e evolutiva-
mente, a totalidade do conhecimento já produzido. Isso liga as descobertas
particulares à totalidade do conhecimento e vice-versa. Nesse movimento,
entre parte e o todo do conhecimento, constrói- se a visão crítica do processo
de pesquisa científica, incluindo a aplicação dos resultados ao contexto social.
Enfim, quando se valoriza, demasiadamente, o conhecimento da ciência global,

90
destrói-se a possibilidade de construir a ciência local, ou seja, a própria ciência.
A ciência local fica refém da ideologia da ciência dominante externa. Quando
abordamos a necessidade de a pesquisa científica construir um conhecimento
local, para responder positivamente aos problemas, não significa separá-lo do
conhecimento global. Contudo, ligar e religar o local ao global de modo rever-
sível é a condição fundamental para produzir a própria ciência. Entretanto,
quando se refere à busca do conhecimento global, necessariamente, é preciso
que o intelectual e o pesquisador metabolizem, reinventem as teorias e os
enunciados importados para que se torne um reforço compatível e eficiente
para a ciência local desempenhar, com eficácia e eficiência, os processos de
investigação científica. Cabe ao pesquisador ter o cuidado, mediante os pro-
blemas locais de pesquisa, de não produzir resultados incompatíveis com a
realidade em que está inserido. Assim sendo, a ciência nacional ganha força e
se liberta do subjugo da ciência metropolitana, que é incompatível com a nossa
realidade. Pois, a ciência de origem externa atende aos interesses externos e
não se preocupa com os interesses e a realidade nacional da nação subdesen-
volvida.
Enfim, o que se quer afirmar é que a produção de um novo conhecimento
realiza três contribuições para a constituição da própria ciência: a) a origem e
a aplicação dos resultados da pesquisa científica, prioritariamente, devem ser
aplicados na realidade local e nacional para resolver os problemas pertinentes
ao nível de subdesenvolvimento em que se encontra a nação; b) todo o traba-
lho de pesquisa tem o compromisso ético de produzir um novo conhecimento
que se aplique a realidade local, contribuindo para reorganizar a totalidade do
conhecimento, com o objetivo de melhorar a vida individual e coletiva da na-
ção; c) a pesquisa científica, comprometida com a realidade regional, contribui
com o desenvolvimento nacional quando gera um novo conhecimento e, com
isso, organiza a própria ciência de caráter emancipatório, porque supera a
submissão à ciência externa pelo fato de produzir, intencionalmente, avanços
quantitativos e qualitativos, na resolução dos problemas regionais e nacionais.
Para produzir o conhecimento voltado para impulsionar a produção naci-
onal da própria ciência, devem ser consideradas três dimensões intercomple-
mentares: a realidade objetiva, o conhecimento como um fato histórico e o
conhecimento como um fato social.
O primeiro e o mais básico fundamento para produção do conhecimento
têm como ponto de partida a realidade objetiva. A fundação do conhecimen-
to, sendo algo real, está afirmando que a matéria viva constitui a realidade
como um sistema em evolução permanente. Somente assim concebendo, o
conhecimento resolve racionalmente o problema epistemológico. Nessa pers-

91
pectiva, temos que tomar uma posição menos subjetiva e mais dialética no
seguinte sentido: “uma coisa é o conhecimento como ato vivo de apreensão de
um conteúdo da realidade, outra é a sua formulação mental e depois verbal” 11.
Aqui não vamos tentar definir o que seja conhecimento, mas ele mesmo tem
que se definir ao longo do processo de pesquisa que o produz enquanto ato
concreto. Somente com uma radical posição dessa natureza, abandona-se a
postura de especulações metafísicas sobre o conhecimento e se reconhece
como dialético o processo de produzir um novo conhecimento de acordo com a
dinâmica evolutiva da realidade e útil ao processo de desenvolvimento do país.
Tendo o conhecimento essa base, supera-se o “eu penso” como ato subjetivo,
abstrato no processo de conhecer, pelo “nós pensamos”, como atitude concreta
dos pesquisadores para se debruçar, metodicamente, sobre os problemas re-
ais, a fim de gerar novos conhecimentos compatíveis com a realidade para
solucionar os problemas nacionais e locais. Assim, produz-se a própria ciência
com os fundamentos apropriados para constituí-la como instrumento necessá-
rio para a emancipação da nação oprimida e libertar-se do subjugo da ciência
externa, produtora da dominação científica para consolidar o subdesenvolvi-
mento das nações pobres.
O segundo fundamento, tomando como ponto de referência que a realida-
de é evolutiva, o conhecimento, assume o mesmo caráter. Nessa perspectiva, o
ato de conhecer é um fato histórico. O conhecimento origina-se da matéria
que sempre existiu em estado de transformação permanente, que constitui a
evolução biológica de todos os seres vivos. Nesse sentido, a base para se pro-
duzir um conhecimento instrumental para a emancipação dos povos e nações é
tomá-lo como inerente à evolução dos seres vivos e, principalmente, da espécie
humana. Por isso, o conhecimento é um ato vivo, vinculado à existência indivi-
dual e coletiva, tanto por quem o produz, quanto para aqueles que se benefici-
am com aplicação dos resultados.
O conhecimento é um fato histórico, progressivo por essência, porque ao
longo do processo evolutivo, através de contradições, avanços e retrocessos,
busca, pela lógica dialética12, penetrar no íntimo da operação viva do ato cog-

11
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Existência: Os problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de
Janeiro: Paz e terra, 1979, p. 15.
12
O significado da lógica dialética consiste na exigência de passar do raciocínio formal ao dialético. O
raciocínio formal se aplica a objetos, fenômenos e casos particulares como expressão da lógica clássica
na formulação dos conceitos e enunciados em uma escala humana primária na formação do pensamento
metafísico e abstrato. A dialética tem a sua própria lógica que é a lógica aplicada ao dinamismo do real
como fato histórico e social na evolução da realidade e da espécie humana. A lógica dialética significa a
presença racional do homem na realidade, exige um raciocínio que supere a sucessividade das ideias e os
acontecimentos, e incorpore, no seu pensar, a possibilidade da emergência do novo, afim de realizar as
transformações no conteúdo e na forma de elaborar os conceitos e os enunciados como potencializadores
da capacidade transformadora que o homem possui. Para aprofundar sobre a temática, ver:PINTO,

92
noscitivo, enquanto apreensão de um conteúdo da realidade. Assim, o conhe-
cimento é percebido como resultado histórico, que vai se construindo e recons-
truindo com o próprio desenvolvimento da matéria viva. Nesse processo, o
pesquisador procura extrair os conhecimentos, via projetos e objeto das pes-
quisas científicas, sobre a realidade material onde a vida se manifesta e se
aperfeiçoa.
O terceiro fundamento consiste em conceber o conhecimento como um fa-
to social, tanto na origem quanto na sua aplicação concreta. A finalidade de
produzir novos conhecimentos é também social, pois a aplicação dos resulta-
dos das pesquisas sempre acontece no âmbito da coletividade, visando superar
as condições desumanas e impulsionar o desenvolvimento da nação para supe-
rar o nível de atraso em que se encontra.
A dimensão social do conhecimento é consequência de um ato de pensa-
mento sobre o real estado do indivíduo e suas condições materiais de sobrevi-
vência. Isso precisa ser entendido como um “eu penso”, enquanto pesquisador
e cientista, mas também admite a possibilidade do “eu sou pensado”, enquanto
produtor de uma ciência, capaz de contribuir para elevar o nível de conheci-
mento geral da população e, necessariamente, transforma-se em instrumento
de superação das condições desumanas que a sociedade se encontra. Colocada
essa base social do conhecimento, a própria ciência se constitui num instru-
mento de transformação da sociedade, porque muda a vida das pessoas e das
condições coletivas desumanas em que as massas oprimidas se encontram.
Talvez, aqui esteja o vínculo mais forte, profundo e íntimo entre a ciência e a
existência, tanto do ser humano quanto do ser da nação como um todo.
O conhecimento justifica-se como um fato social, porque tendo em vista
que a carga dos conhecimentos acumulados em cada estágio evolutivo é algo
comum a todos os indivíduos nos mais diferentes momentos da história da
civilização. Esses indivíduos encontram-se no mesmo grau médio de desenvol-
vimento, todos estão na mesma etapa evolutiva. Todos, cada qual com seu
modo de pensar e agir, são capazes de dar respostas semelhantes e eficazes na
interação do homem com o meio, produzindo o que necessita para sobreviver e
manter-se vivo. Nessa perspectiva, o conjunto de conhecimentos acumulados
não pode ser acessível e estar a serviço de alguns membros privilegiados, na
conjuntura da sociedade. Essa forma de destinar o conhecimento é colocá-lo
como instrumento da submissão e dominação de poucos, os ricos, bem como,
nações ricas, sobre a massa oprimida e as nações subdesenvolvidas. É um tipo

Álvaro Vieira. Ciência e Existência: Os problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 1979, p.175-215.

93
de conhecimento que produz a opressão e desumanização da maioria numa
determinada sociedade e nas nações pobres. Portanto, o conhecimento é um
ato e processo social quando vai ao encontro da resolução dos problemas indi-
viduais e coletivos do ser humano. Isto significa construir conhecimentos no-
vos para humanizar o homem e a nação, pela aplicação prática do mesmo, cujo
fim último consiste em melhorar as condições de vida para todos. Finalmente,
se o conhecimento é construído historicamente, da mesma forma deve ser
aplicado socialmente em benefício de todos. O caráter histórico e o social do
conhecimento estão interligados, reciprocamente, quando da sua aplicação
concreta.
Esse tripé, na forma de conceber o conhecimento como algo real, histórico
e social, torna-se o fundamento para criar e desenvolver a própria ciência,
apropriada para contribuir com o projeto de desenvolvimento nacional do
país. Isto é, a compreensão da pesquisa científica, como trabalho social de
emancipação da nação, será possível pela produção de um conhecimento ins-
trumental, cuja finalidade é a libertação das massas oprimidas. Isto é, o conhe-
cimento possui uma dimensão social libertadora pela origem e pela aplicação
concreta. Finalmente, os intelectuais e os cientistas nacionais ao produzirem a
própria ciência, através de um conhecimento desalienado, libertam a ciência
nacional da submissão à ciência externa.

3 6.4 O papel da prática na pesquisa científica

O papel da prática na pesquisa científica está vinculado ao fazer dos ho-


mens em sociedade para a produção da existência. A prática, na pesquisa, con-
siste em colar as ideias em ação e, das ações, constituir novas ideias no pensa-
mento para gerar novos conhecimentos com estreitos vínculos na realidade em
que acontece a investigação. É a prática do pesquisador que realiza a intencio-
nalidade da pesquisa, transformando-se em critério de verdade científica. Isto
é, o potencial de conhecimento do pesquisador supõe a capacidade de agir,
conscientemente, de acordo com as finalidades a que atribui ao processo de
pesquisa, pois não existe outra forma de adquirir novos conhecimentos senão
pela prática e pela ação do investigador em conformidade com a sua intencio-
nalidade. A prática sempre gera uma situação nova e, consequentemente, ori-
gina novas ideias, que produzem novos conhecimentos, cujo fim consiste em
fazer a teoria avançar, acrescentando-lhe algo de novo. Esse processo faz o
homem conhecer o mundo de forma mais extensa, aprofundada e exata. Da
mesma forma, produz um novo potencial intelectual para gerar novas inter-
venções sobre a realidade, na perspectiva de superar os problemas e fazer o
conhecimento avançar num processo dialético sem fim.

94
A prática, como fio condutor do processo de pesquisa científica capaz de
contribuir para a produção nacional da própria ciência, está assentada em
quatro dimensões fundamentais: a) toda a prática é motivada por uma inten-
cionalidade que indicará a finalidade da mesma. O fundamento da prática
reside na necessidade de inclusão do homem no processo em que produz aqui-
lo que precisa para resolver os problemas reais, e, simultaneamente, produz-se
a si próprio, pelo acúmulo de conhecimento que vai adquirindo na medida em
que realiza os processos de pesquisa; b) a prática assume sempre uma dimen-
são social. A qualidade social da prática significa o fundamento do saber sob
dois aspectos: o primeiro defende que a pesquisa científica tem origem em
alguma necessidade social. Nesse sentido, converte o pesquisador e sua equipe
em executores do processo. O segundo consiste em que o pesquisador repre-
senta a sociedade como especialista, cujo compromisso de seu trabalho é in-
vestigar a realidade na qual subsiste o ser da nação, para dar uma resposta
razoável às necessidades da sociedade em que está inserido. Portanto, a práti-
ca na pesquisa científica sempre terá uma dimensão social, porque as exigên-
cias para ser realizada são de caráter social, mas, também, essas práticas fazem
parte de um processo histórico de acumulação do saber; c) a terceira dimensão
da prática consiste em que a pesquisa científica possui um significado de pro-
duto social. E, qualquer campo do saber, a pesquisa requer um trabalho de
equipe. Penetrar no âmago do processo de extrema complexidade do real exige
o domínio de instrumentos, técnicas e conceitos, desafio quase impossível por
um pesquisador isolado. Por isso, reunir esforços de múltiplos pesquisadores
para se chegar aos resultados desejados é tarefa de muitos personagens envol-
vidos no mesmo processo de pesquisa. Daí que o pesquisador tem que apren-
der a pensar junto para fazer em conjunto. Pois o processo de pesquisa, para
alcançar os objetivos pretendidos, requer esforços e comprometimento coleti-
vo dos personagens envolvidos. Enfim, “a pesquisa científica, como trabalho de
equipe, é hoje condição generalizada e irreversível na produção de novos co-
nhecimentos. Isso requer conversão para a realidade e a introdução de um
novo modo de pensar sobre ela. Isso exige a criação de nova correlação entre a
consciência com o mundo, ou seja, o modo coletivo de pensar (o cogitamus)”13,
gerando um grupo de sábios para responder, satisfatoriamente, aos problemas
que o meio impõe aos pesquisadores; d) a quarta dimensão da prática é tomá-
la como uma ação conjunta dos homens sobre a realidade para transformá-la,
mediante o trabalho, como ação coletiva sobre o meio, extraindo novos conhe-
cimentos, que melhora sua ação sobre a realidade, e coetaneamente, melhora

13
Idem, p. 225

95
da mesma forma o pensamento pela compreensão mais ampla e profunda do
real.
A partir da análise sobre a importância da prática na pesquisa, não é difícil
deduzir que a pesquisa científica é uma modalidade de trabalho social
especial. Pois, o cientista faz parte da sociedade e, por isso, possui um com-
promisso ético a cumprir que é a destinação social do resultado da pesquisa. A
finalidade dessa modalidade de trabalho social é produzir uma existência mais
digna e humana no sentido de melhorar, progressivamente, o avanço do co-
nhecimento, da ciência, com fim de melhorar as condições materiais dos indi-
víduos e ampliar o potencial intelectual do pesquisador. Enfim, isso faz impul-
sionar o desenvolvimento nacional enquanto processo de humanização do ser
humano e do ser da nação.
Para que se cumpra essa finalidade é imprescindível a desalienação da
consciência do pesquisador. Esse tem que converter-se, debruçar-se sobre a
realidade nacional, a fim de compreendê-la para construir a consciência crítica,
enquanto uma visão de totalidade sobre o que e como realizar a pesquisa
científica. Como resultado dessa visão de totalidade, o pesquisador consegue
realizar a conexão entre o saber e a realidade, que determina a finalidade soci-
al dos resultados desse processo de investigação e esse novo conhecimento
integra-se ao conjunto total dos saberes já produzido, simultaneamente.
A base para que o pesquisador possa desalienar a sua consciência reside
na atribuição de finalidade sobre suas ações e, com isso, assume o compromis-
so ético, no sentido de que os resultados da pesquisa sejam aplicados à socie-
dade para resolver os problemas que atravancam o desenvolvimento nacional.
Paulo Freire, em um depoimento, critica radicalmente o equívoco diabóli-
co de compreender que educação é treino, afirmando: Diabolicamente existe
uma ideologia voando e sobrevoando o mundo, num discurso pós-moderno que
insiste em dizer que a utopia morreu. Ou seja, insiste em afirmar que o sonho na
educação sumiu e que a tarefa do educador (a) termina exatamente no treino e
não na formação. Há um certo diabolismo nessa ideologia fatalista neoliberal
afirmando que o desemprego no mundo, para não falar só do nosso país, é uma
fatalidade do final do século XX. Fatalidade, coisíssima nenhuma, é um momento
da diabolização do século, mas não uma fatalidade a quem não se possa aferir.
Por exemplo: quando se sabe que a quantidade de “marias” e “pedros” que mor-
rem de fome, por dia, nesse país é impossível não ficar repugnado, de ficar em
permanente protesto, quando se sabe que a quantidade da produção capitalista
do alimento daria comida para duas vezes a população do mundo, isso é uma
vergonha14. Nesse depoimento, Paulo realiza a crítica da atual reforma da edu-

14
Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wwMQCz2xoE0

96
cação no Brasil e os absurdos do retrocesso nas políticas sociais implementa-
das pelo atual governo neoliberalista. Sem dúvida, o treino na educação mata a
pesquisa científica e gera a crise social do conhecimento.
Enfim, em decorrência da pesquisa científica, produz-se a própria ciência
vinculada à produção da existência. Pois, na medida em que o homem aperfei-
çoa o mundo com sua capacidade operativa, melhora, simultaneamente, suas
operações lógicas de pensamento, estabelecendo uma dupla e complementar
relação. De um lado, a relação do homem com a realidade, melhorando sua
capacidade criadora tanto no fazer quanto na capacidade de aprimorar o seu
pensamento. Por outro, a relação com os outros aperfeiçoa o seu potencial de
inteligência pela intersubjetivação da experiência comum de produzir a exis-
tência15.

6.6.5 A formação e as condições de trabalho do pesquisador no desafio de


criar e desenvolver a própria ciência

A produção nacional da própria ciência requer uma política científica vol-


tada, prioritariamente, para a realidade nacional do país subdesenvolvido, mas
requer também apoio de toda ordem, desde o material/financeiro até o incen-
tivo pessoal, para o pesquisador conseguir desenvolver seu trabalho de pes-
quisa. A superação da condição desumana das massas exige uma contribuição
fundamental do sistema de ensino em todos os níveis, para superar a repetição
da ciência externa, oriunda dos países desenvolvidos. O ensino, nessa perspec-
tiva, constitui-se num ritual de reprodução mecânica do conhecimento no país
subdesenvolvido, sufocando qualquer iniciativa da pesquisa científica no terri-
tório nacional. Como consequência produz-se a crise social do conhecimento,
porque os novos conhecimentos que deveriam ser produzidos para responder,
de forma positiva, a realidade problemática do contexto nacional não são gera-
dos. Nessa prática repetitiva do conhecimento alheio à realidade, o aluno se
limita a aprender a copiar e o professor ensina os alunos a copiar. O ensino,
nessa perspectiva, não passa de um treinamento adestrador do ser humano,
objetivando prepará-lo a ocupar um lugar no processo produtivo atrelado aos
interesses dos capitalistas internos e externos dos países desenvolvidos.
A crise social do conhecimento, que mencionei anteriormente, é decorrên-
cia direta e imediata do uso inadequado da tecnologia. Pelo fato de que, no
território nacional, não há uma epistemologia consolidada por uma ciência

15
Ver para ampliar a compressão dessa categoria, FAVERI, José Ernesto de. Álvaro Vieira Pinto:
contribuições à educação libertadora de Paulo Freire. São Paulo, LiberArs, 2014; p. 136-150.

97
própria, a tecnologia é usada pela grande maioria da sociedade para fins alheio
à produção de novos conhecimentos. Essa passa a ter o papel de controle e
manipulação das massas, bem como, serve para submeter o indivíduo a reali-
zar tarefas mecânicas, como por exemplo, o processo de ensinar e aprender
repetitivo e adestrador, sem ter a possibilidade de ampliar as operações lógi-
cas de pensamento. Isso produz uma visão unilateral das ações e relações que
o homem empreende para produzir as coisas materiais necessárias para man-
ter-se vivo, produzindo, uma visão fatalista e fanática do mundo. A tecnologia,
em vez de ser instrumento para melhorar e produzir novos conhecimentos,
serve apenas para o controle das pessoas pelo uso inadequado da mesma. O
uso equivocado da tecnologia gera a crise social do conhecimento, porque não
há uma efetiva consolidação de uma epistemologia nacional. Por conta disso, o
nível médio de conhecimento da população é baixo. Ou seja, o ser humano que
trabalha e manuseia o mundo com as mãos não é capaz de representar, no seu
pensamento, a ação e as relações de trabalho, atribuindo finalidade individual
e social sobre o seu fazer. Pois lhe falta a habilidade de pensar o que faz. A es-
cola não foi capaz de desenvolver essa habilidade, apenas adestrou o homem
para o trabalho mecânico. Aí origina-se a alienação da consciência, que efetiva
o processo mecânico do trabalho, no ato de produzir os bens materiais, sem
produzir os bens de pensamento para melhor compreender o que faz e atribuir
finalidade a sua ação. As massas, tendo esse comportamento de não conseguir
representar a ação no pensamento, na forma de ideia, apenas alimentam o
surgimento e efetivação da consciência ingênua. Torna-se uma consciência que
condiciona o indivíduo à passividade no ser da nação, diante dos problemas
que a sociedade venha a ter. A consciência ingênua impede o surgimento da
consciência crítica entre a classe oprimida. Isso acontece, em decorrência dire-
ta de que o indivíduo não é estimulado a pensar sobre o que faz. A formação do
pensamento não faz parte do processo de educar as novas gerações, no atual
sistema de ensino brasileiro. O que de fato importa no sistema de ensino hoje,
e com as reformas propostas, é adestrar o homem para executar mecanica-
mente funções no setor produtivo, a fim de satisfazer a exigência do mercado
de trabalho. Por ora, basta-nos essa noção, pois a questão da consciência ingê-
nua e critica será abordada numa categoria a parte, pelo papel importante que
ela exerce na execução do projeto de desenvolvimento nacional.
Diante dessa realidade, a produção nacional da própria ciência tem de le-
var em consideração dois aspectos fundamentais: a) primeiro, a questão da
formação do pesquisador; b) o segundo, as condições reais que esse tem para
desenvolver suas atividades no contexto em que está inserido. Portanto, tanto
o primeiro como o segundo aspecto indicam as precárias condições reais para

98
que o pesquisador possa desenvolver seu trabalho com eficiência e eficácia, a
serviço do desenvolvimento nacional.
a) A formação do pesquisador tem como desafio central construir a au-
toconsciência do seu potencial intelectual, visando obter o máximo de rendi-
mento nas atividades de pesquisa, com o fim último de se libertar da submis-
são à ciência metropolitana. A libertação da sujeição do intelectual brasileiro
consiste em superar o rito do ensino como transmissão mecânica de conheci-
mentos, como se fosse uma mercadoria que transita da grande metrópole para
emperrar o desenvolvimento da própria ciência. Esse argumento é de funda-
mental importância porque requer uma formação capaz de desalienar a cons-
ciência do pesquisador da dependência da ciência alheia à realidade nacional.
Em decorrência desse processo, surge a consciência crítica orientadora das
práticas de pesquisas científicas, potencializadores do desenvolvimento nacio-
nal. Enfim, criar uma ciência com base na realidade nacional significa colocar o
fundamento para o desenvolvimento. Então, a ciência está a serviço da nação
como instrumento eficaz na formação da consciência crítica, comprometida
com a sociedade para a superação do subdesenvolvimento da nação, através da
produção de novos conhecimentos. Portanto, é a ciência que produz a consci-
ência e, essa produz a decência na vida nacional. A ciência, a consciência e a
decência são resultados de um longo processo de produção e aplicação dos
conhecimentos vinculados à realidade local. Nessa perspectiva, o conhecimen-
to útil à construção da própria ciência é regional/local.
A formação do pesquisador tem como desafio a formação da consciência
crítica da realidade. Isso representa a conexão de sentidos reversíveis entre o
saber local e o saber geral/metropolitano. Isto é, a ciência é própria quando se
torna responsável por remover os problemas que consolidam o subdesenvol-
vimento e promove o desenvolvimento integral da nação. Por isso, o conheci-
mento sempre terá uma dimensão social, porque se origina da realidade e os
seus resultados são aplicados sobre ela para resolver os problemas nacionais e
direcionar o desenvolvimento.
No atual contexto nacional, a formação dos pesquisadores, através da
maioria dos programas de pós-graduação, salvaguardando as exceções, em vez
de estarem a serviço do desenvolvimento nacional, alimentam a formação de
pesquisadores alienados, cujas pesquisas e resultados alimentam a condição
de país subdesenvolvido. Os pesquisadores, com as devidas exceções, assu-
mindo essa postura, tornam-se eficientes reprodutores da ciência metropolita-
na, executores de projetos alheios a nossa realidade local por não terem condi-
ções mínimas e razoáveis para realizar a pesquisa necessária ao país subde-
senvolvido. Assim, submetem-se à transposição dos referenciais teóricos e

99
reproduzem, nacionalmente, a ciência externa e os interesses internacionais
por motivos diversos. Por isso, tornam-se prestadores de serviços às grandes
empresas que representam os interesses das nações desenvolvidas, ignorando
a nossa realidade nacional, onde a pesquisa assume um caráter de pesquisa
científica alienada. Os profissionais, assim formados, com referenciais estra-
nhos a nossa realidade, transformam-se em prestadores de serviço, nas insti-
tuições nacionais, com todos os avanços e ranços trazidos de fora. Com essa
prática alienada aos interesses externos, a universidade passa a ter uma nova
função: ser uma instituição portadora e desciminadora da ideologia neoliberal
xenófoba, por que preserva toda a ordem de contradições, desigualdades soci-
ais e, apenas, assessora os empresários para salvaguardar seus interesses. Essa
é a universidade de resultado, porque está atrelada e comprometida com a
ideologia neoliberal e aos interesses internacionais das nações mais ricas. Em
decorrência dessa situação, liquida-se, sumariamente, a pesquisa voltada para
o desenvolvimento nacional e, em contrapartida, fortalece a importação de
uma ciência alheia a nossa realidade, que provoca a morte sumária da ciência
nacional. Pode-se denominar isso de colonialismo científico, quando se destrói
ou se impede o surgimento da própria ciência. Com isso, contribui para destru-
ir a autonomia nacional e a soberania internacional do país. Portanto, é absolu-
tamente necessário, para o pesquisador nacionalista, a conversão ideológica
voltada para contribuir com o desenvolvimento do país. O ponto de partida da
pesquisa, voltada para o desenvolvimento da própria ciência, é a realidade
nacional, sustentada e orientada por teorias nacionais e/ou princípios gerais,
metabolizados, quando trazidos de fora, para se tornarem o fundamento de
produção dos resultados, melhorando, qualitativamente, o nível de desenvol-
vimento que se encontra o país.
A produção nacional da própria ciência não é tarefa para a universidade
produtora de resultados para o setor produtivo. Não é aquela ciência que pro-
duz o desenvolvimento míope que apenas favorece um setor da sociedade e
exclui outros; não é aquela que favorece uma classe social e exclui outras; en-
fim, não é aquela universidade para todos; mas, a autêntica universidade é
aquela que venha a contribuir para a produção da própria ciência, que serve de
sustentáculo para o processo de desenvolvimento nacional, porque produz
novos conhecimentos que definem o caminho da superação do nível de subde-
senvolvimento do país. Ou seja, a universidade, ao gerar resultados de pesqui-
sas compatível com a realidade do país, cumpre com sua finalidade social. Nes-
sa perspectiva, a universidade tem um compromisso social de contribuir para a
superação da contradição entre opressor-oprimido. Dessa forma, a universida-
de tem a responsabilidade social de produzir a ciência que faz parte da produ-

100
ção da existência. Pois, na medida em que o homem aperfeiçoa o mundo para si
com a capacidade operativa, melhora, simultaneamente, as operações lógicas
de pensamento, através de uma dupla relação complementar. De um lado, a
relação do homem com a realidade, que melhora sua capacidade criadora e,
por outro, a relação do ser humano com os outros aperfeiçoa o seu potencial de
inteligência, pela intersubjetivação da experiência comum de produzir a exis-
tência. Isso faz avançar o pensamento que dinamiza a produção da própria
ciência, impulsionando o desenvolvimento. Portanto, a ciência melhora a exis-
tência quando os resultados da pesquisa científica melhoram as condições de
vida da sociedade como um todo e a existência provoca o avanço da ciência
quando essa busca seus objetos de experiência e os projetos de pesquisa na
própria existência individual e coletiva do ser humano. Somente uma universi-
dade que produz conhecimentos novos, pela pesquisa, conquista a autonomia e
competência de fundamentar e direcionar, conscientemente, a produção da
própria ciência para a libertação nacional. Ao contrário, estará ela, a universi-
dade, comprometida com a elaboração de discursos que estimulam as práticas
que apenas favorecem a dominação ideológica neoliberal e a exploração das
massas pela disseminação da consciência ingênua com o objetivo de consolidar
os interesses dos ricos, na sociedade subdesenvolvida, e manter o atual estado
de desumanidade da nação.
Portanto, a formação do pesquisador com vistas à produção nacional da
própria ciência, reside na base ética de se comprometer que a criação científica
realizada por ele, vinculada à realidade para que se cumpra as finalidades soci-
ais da ciência que consistem em fazer os resultados incidirem sobre os pro-
blemas nacionais, com o desafio de resolvê-los e, dessa forma, superar as con-
dições desumanas da nação subdesenvolvida.
b) O que compromete o trabalho do pesquisador, para alcançar os resul-
tados desejados e exigidos pela realidade subdesenvolvida, são as condições
adversas e impróprias para produzir um conhecimento que vai gerar a pró-
pria ciência, cuja a finalidade é impulsionar o desenvolvimento nacional. Essas
condições estão ligadas à universidade de resultados. Essa se satisfaz apenas
com a prestação de serviços aos setores produtivos. Entre outras condições
desfavoráveis ao desenvolvimento da pesquisa científica, podemos apontar:
falta de financiamento; falta de condições de toda a ordem: laboratórios, equi-
pamentos, instalações imobiliárias; má remuneração pelo trabalho do pesqui-
sador e a realização da pesquisa de “cabresto”, isto é, pesquisas sob encomen-
da para o setor produtivo. Todos temos consciência que a pesquisa é um traba-
lho raro e caro. Por isso, o compromisso do pesquisador e da própria universi-
dade consiste em estar comprometidos com a produção interdisciplinar de

101
novos conhecimentos para contribuir no processo de humanização das condi-
ções de vida do indivíduo e da sociedade em que está inserido. Ao melhorar
qualitativamente a vida do indivíduo, coloca-se o fundamento sólido para me-
lhorar a qualidade de vida no coletivo. Do contrário, quando o pesquisa-
dor/docente e a universidade não cumprem com a finalidade social da ciência
e se limitam ao precário ensino repetitivo, além de manter o atual status quo da
sociedade desigual, consolida, simultaneamente, a pobreza intelectual e mate-
rial na formação das novas gerações. Nessa linha de pensamento, quando há
pesquisa na universidade, o pesquisador as realiza sob encomenda, cujo os
resultados sempre favorecem aos grupos econômicos mais ricos em consenso
com os dirigentes das universidades para consolidar, localmente, os interesses
neoliberalistas. Dessa forma, tolhe a liberdade, a autonomia e a capacidade
criativa do pesquisador. O pesquisador perde o controle de sua produção cien-
tífica e deixa-se corromper, no sentido de abandonar o compromisso ético que
ele tem em relação às finalidades sociais da pesquisa científica, por estar a
serviço dos interesses de pequenas minorias sociais ricas que, de alguma for-
ma, usam os resultados da pesquisa para satisfazer interesses próprios e pri-
vados, desvirtuando, dessa forma, a intencionalidade da pesquisa e do com-
promisso ético que o pesquisador assumiu perante a sociedade. Nessa condi-
ção, o pesquisador vê-se obrigado a vender a sua força de trabalho criador, sob
pena de desperdiçar sua capacidade ou de ficar no anonimato com suas cria-
ções, por falta de recursos financeiros e, quando realiza a pesquisa, falta divul-
gação dos resultados. Por fim, quando o pesquisador não cumpre “obediente-
mente” aos interesses de quem encomenda a pesquisa, pela classe economica-
mente mais favorecida, é exonerado por ser acusado, equivocamente, de não
estar produzindo via “pesquisa de cabresto” 16. A instituição e a sociedade, em
vez de incentivar a produção própria da ciência, emperra a atividade de pes-
quisa nessa direção, pelo desprezo e pela falta de condições de toda a ordem
para que os processos de investigação avancem e tenha reflexos positivos no
local em que está sendo realizada.
Outra condição desfavorável para produzir a própria ciência é quando o
cientista/intelectual realiza pesquisas não por iniciativa própria, mas por im-
posição dos dirigentes da universidade em conluio com a classe dos ricos onde

16
Pesquisa de cabresto significa a submissão do trabalho do pesquisador aos interesses escusos aos
problemas da realidade em que ele está inserido. O pesquisador é obrigado a aceitar e desenvolver pro-
cessos de pesquisa para satisfazer os interesses da iniciativa privada, favorecendo a classes sociais e os
grupos locais mais ricos. Com essa postura no desenvolvimento das atividades científicas na universida-
de, o intelectual e o pesquisador não conseguem definir a finalidade social do seu trabalho e muito
menos aplicar localmente os seus resultados para contribuir na resolução dos problemas da coletividade.
Pesquisa de cabresto é uma pesquisa sujeitada com resultados direcionados para satisfazer interesses das
pequenas minorias sociais locais.

102
está inserida. A classe social dominante, no contexto em que a universidade
está inserida, representa os opressores nacionais, vinculados e alinhavados aos
interesses internacionais. Essa realidade fere a função da universidade, que
consiste no tripé da pesquisa, ensino e extensão, comprometendo a autonomia
dos pesquisadores que acabam se subtendo aos interesses dominantes externo
em detrimento dos interesses da sociedade local e nacional. Dessa forma, o
pesquisador, em vez de se comprometer com a pesquisa nacionalista para
produzir a própria ciência, fica atrelado aos interesses da classe social domi-
nante no contexto local, nacional e internacional. Isso destrói qualquer iniciati-
va para se produzir a própria ciência como instrumento de desenvolvimento
nacional e de libertação das massas oprimidas.
Nessas condições, o pesquisador aliena-se duplamente. Primeiro, porque
os resultados do processo investigatório não lhe pertencem e são encomenda-
dos para beneficiar pequena porções de indivíduos na sociedade; segundo, o
pesquisador não consegue fazer com que os resultados da pesquisa atinjam a
finalidade social. O pesquisador e a pesquisa, nessa condição, são reduzidos à
mercadoria com preço e prazo determinado pelos interessados em manter o
atual estado em que se encontra a sociedade e a universidade. Isto é, a manu-
tenção da contradição social, no contexto nacional, entre classe opressora e
massa oprimida, para consolidar o subdesenvolvimento. Num contexto mais
amplo, a contradição é para submeter a nação subdesenvolvida às nações me-
tropolitanas desenvolvidas. Diante dessa situação contraditória, impede-se que
a ciência nacionalista se desenvolva. A consequência é produzir uma ciência
alienada em relação à realidade nacional. Aí tem origem a ciência submetida,
que lhe tira o caráter e a possibilidade de ser “própria e apropriada” para o
desenvolvimento nacional.

3.6.6 A finalidade social da ciência nacionalista

A finalidade social da ciência significa cumprir o compromisso ético do


pesquisador com relação à aplicação social dos resultados de seus experimen-
tos e projetos, ao contexto nacional/local. Para realizar essa tarefa com eficiên-
cia, temos que levar em consideração duas dimensões:
a) a primeira dimensão reside na necessidade da formação de um pensar
crítico do pesquisador. Somente um pensar dessa natureza gera uma ciência
comprometida para o desenvolvimento, porque produz avanços na melhoria
das condições existenciais do homem e da nação, através da produção de no-
vos conhecimentos.
O processo formativo do pesquisador tem de estar vinculado à sociedade a
que pertence, a fim de que seu trabalho intelectual contribua, de alguma forma,

103
na transformação da realidade em que está inserido. Em contrapartida, o pen-
sar ingênuo do pesquisador contribui apenas para consolidar o atual contexto
e estágio de subdesenvolvimento, através da produção de uma ciência alheia à
realidade nacional.
Para se construir o pensar crítico do pesquisador são necessário estes
quesitos: a) capacidade de escolher os problemas que dão origem aos objetos
de pesquisa, compatíveis com o contexto em que está inserido; b) converter-se
à realidade nacional cujos resultados venham contribuir para a superação do
atual estado de subdesenvolvimento da sociedade; c) definir as finalidades do
seu trabalho de investigação; d) possuir autoconsciência de que a ciência é
produto da consciência, onde o vínculo entre ambas, ciência e existência, gera,
no seio da vida social, a decência nas condições materiais da coletividade. O
tipo de consciência ingênua ou crítica, é que define a produção de um tipo es-
pecífico de ciência, alienada ou desalienada. A ciência assume o caráter aliena-
do quando a finalidade do conhecimento que produz está vinculada aos inte-
resses dominantes nacionais e internacionais. Por outro lado, a ciência assume
um caráter desalienado quando produz um conhecimento vinculado à realida-
de nacional, para superar as condições desumanas em que vive a nação no país
subdesenvolvido e da mesma forma se liberta do subjugo da ciência externa
dos países desenvolvidos. Nessa perspectiva, a formação do pensamento do
pesquisador está diretamente vinculada a um dos dois modos de produção da
ciência. Se o pensar é crítico, a ciência passa a possuir um caráter desalienado e
está diretamente comprometida com a elaboração da própria ciência, como
fundamento do desenvolvimento nacional. Se o pensar é ingênuo, produz uma
ciência de caráter alienada, sem vínculos com a realidade nacional. Isso contri-
bui apenas para consolidar o atual nível de desenvolvimento em que se encon-
tra o país. Da mesma forma, consolida a consciência ingênua da massa oprimi-
da, para reificar o status quo do atual estado e condições em que se encontra a
nação.
b) a finalidade social da ciência consiste em ser sustentáculo e promoto-
ra do desenvolvimento humano da sociedade, sob dois enfoques: o primei-
ro refere-se à capacidade do cientista e do pesquisador em criar ideias para
ampliar e aprofundar a intervenção do homem sobre a realidade, através do
aperfeiçoamento de técnicas e, como consequência, aperfeiçoa as operações
sobre o mundo, produzindo transformações para melhorar, qualitativamente, a
existência. O segundo, a ciência, pela pesquisa desalienada, impulsiona o avan-
ço do conhecimento, intencionalmente planejado, metodicamente produzido
sob uma área de interesse social do pesquisador, para melhorar as condições
concretas da sociedade e, com isso, potencializar o desenvolvimento nacional.

104
O grande desafio social da ciência apropriada para o desenvolvimento na-
cional é buscar a superação da desumanização da nação subdesenvolvida pela
imposição de interesses alheios a ela, onde as massas trabalham e produzem
para satisfazer as necessidades estrangeiras, ao invés de trabalhar para a satis-
fação do bem-estar da nação e indivíduos que aqui vivem e trabalham. É exa-
tamente essa condição que justifica a necessidade de produzir, nacionalmente,
a própria ciência com o caráter nacionalista e comprometida com o desenvol-
vimento para emancipar as massas oprimidas.

3.7 – A teoria da cultura

A teoria da cultura é a base da pesquisa científica e o fio condutor na pro-


dução nacional da própria ciência. A ideia central, para compreender a cultura,
reside no vínculo entre a produção da existência e a produção de si próprio. A
produção da existência está centrada na capacidade que esse ser tem de operar
sobre o mundo para produzir os bens materiais que necessita para manter-se
vivo, dentro de uma crescente e persistente busca da qualidade superior de
vida. Mas, simultaneamente, a esse processo, o homem é um bem de produção
de si próprio, porque, na medida em que opera sobre o mundo a fim de conse-
guir as coisas materiais para a sua sobrevivência, estrutura o pensamento pelo
fato de representar tais operações concretas, em forma de ideias cada vez mais
perfeitas no seu pensamento.
Nessa perspectiva, a cultura concebida por Vieira Pinto está inserida no
modo como o ser humano manuseia a realidade, isto é, a amanualidade, no
sentido exposto anteriormente. Entenda-se por cultura, o resultado da produ-
ção da existência vinculada à produção da ciência e vice-versa. A pesquisa cien-
tífica circunscreve-se na realidade local e, simultaneamente, numa cultura com
o mesmo caráter. Embora os problemas e objetos da pesquisa abrangem aspec-
tos particulares, de alguma forma estão vinculados à totalidade do real e do
saber produzido até então. Por isso, a pesquisa científica e a ciência são um
modo de ser particular da cultura, interligada, de forma reversível, entre a
totalidade do real e do saber em geral.
O ponto de partida para realizar a análise da cultura é concebê-la como
um processo de criação do homem, resultante da complexidade crescente das
operações concretas para manter-se vivo e melhorar, progressivamente, suas
condições de vida. É a somatória das criações locais que se circunscreve o tra-
balho científico do cientista e do pesquisador, com ações e criações desaliena-
das. Pois, na medida em que o homem opera sobre a realidade, além de produ-
zir o que necessita para sobreviver, produz, também, os bens de pensamento

105
no sentido de construir a visão de totalidade de si e do mundo. Nesse sentido, a
cultura é consequência da capacidade do homem de operar de forma cada vez
mais complexa, tecnicamente mais elaborada, sobre a realidade, desenvolven-
do, simultaneamente, o poder de ideação17.
A cultura representa tudo o que o ser humano foi capaz de criar ao longo
do processo de hominização,18 isto é, a cultura possui um caráter histórico e
social. O caráter histórico da cultura está vinculado no modo como o ser hu-
mano produziu a existência desde os primórdios até os tempos atuais, nos
diferentes contexto e momento da evolução da espécie. O caráter social da
cultura reside no fato de que o homem produz a existência no coletivo e, por
ter esse caráter, uma nova criação está ligada a outra. Consequentemente, uma
criação realizada no momento atual está ligada às criações anteriores, por
conta disso, a produção da cultura caracteriza-se como “processo real” da ca-
pacidade de agir e interagir do ser humano sobre o meio. Enfim, a característi-
ca fundamental da cultura alicerça-se na criação dos instrumentos cada vez
mais perfeitos e, de forma simultânea, aperfeiçoa progressivamente o manu-
seio deles, gerando a tecnologia que caracteriza a forma própria de agir e de
interagir, cada vez mais preciso e perfeito, do homem sobre o mundo numa
determinada época e contexto. Dito de outra forma, a noção de técnica está
diretamente vinculada à correta preparação intencional do instrumento. O seu
uso eficiente para operar sobre a realidade está vinculado ao manuseio cada
vez mais perfeito, gerando a conceito de tecnologia.
Nessa perspectiva, a cultura assume duplo caráter intercomplementar. O
primeiro é concebido como um bem de consumo, enquanto resultado da ação
eficaz do homem sobre a natureza, produzindo os bem materiais para a sua
sobrevivência. O segundo caráter da cultura é tomado como um bem de pro-
dução, compreendido como representação da sua criação no pensamento, na
forma de ideia, para idealizar nova prospecção de novos atos ou ações a reali-
zar sobre a realidade, de forma cada vez mais complexa e perfeita.
A cultura é consequência das realizações do homem sobre a realidade e,
por conta disso, manifesta-se de diferentes formas ao longo da história e dos
processos sociais de produção da existência: a) capacidade do homem de ope-
rar sobre a realidade e produzir, materialmente, o necessário para se manter

17
Ver PINTO, Álvaro Vieira. CIÊNCIA E EXISTÊNCIA: os problemas filosóficos da pesquisa cientí-
fica. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.121-122.
18
Significa o processo de construção da humanidade do homem pela formação de seu psiquismo medi-
ante a produção dos bens de que necessita para sobreviver e manter-se vivo. Como consequência, cria-se
a si próprio pela estruturação do pensamento, que melhora o agir e o interagir, intencionalmente, plane-
jado sobre o mundo para melhorar sua condição de vida e sua condição de sujeito pensante num processo
sem fim, onde um, melhora o outro ao longo da evolução da espécie.

106
vivo; b) produção da ciência como resultante do processo de pesquisa científica
sobre a realidade em que se desenvolve a vida para melhorá-la qualitativamen-
te; c) criação da arte enquanto manifestação do espírito e o sentimento de uma
nação; d) vivência dos princípios e valores que orientam a conduta individual e
coletiva do homem, do qual resulta a formação do espírito da nação, pela for-
mação da subjetividade do indivíduo. Enfim, a cultura se manifesta, fundamen-
talmente, em quatro dimensões: material, científica, estética e ética.
A teoria da cultura assume duas dimensões. A primeira refere-se à cultu-
ra alienada, quando as criações que o homem realiza sobre realidade estão
desvinculadas das reais necessidades da coletividade. Portanto, as criações,
embora realizadas num contexto determinado, representam uma realidade
inacessível para a massa oprimida. Para elas, essas criações não significam
nada, porque não decodificam o seu cotidiano. Isto é, ressoa para essas massas
como um discurso metafísico da realidade, porque a criação não possui ne-
nhum vínculo com o seu contexto de vida. A segunda dimensão abrange a cul-
tura desalienada. É essa que nos interessa, neste ensaio, porque supera o
caráter metafísico. Isto é, concebe a cultura como resultado do processo histó-
rico de criações inéditas que o ser humano realiza para satisfazer as suas ne-
cessidades e da nação. Por isso, está vinculada à modalidade de trabalho. Por
outro lado, um aspecto particularmente importante da cultura é perceber que
está vinculada à classe social a qual o indivíduo pertence. Por isso, o acesso e
distribuição da cultura entre uma classe à outra é desigual, porque vivemos
numa sociedade constituída de classes sociais antagônicas entre ricos e pobres,
de onde o poder aquisitivo é brutalmente desigual, como consequência, por
parte da classe mais pobre, existe a dificuldade de acesso aos bens culturais
produzidos em sociedade.
Finalmente, se há uma brutal desigualdade entre nação desenvolvida em
relação à nação subdesenvolvida, onde a primeira se sobrepõe e se impõe de
diversos formas, sobre a segunda, da mesma forma, existe uma brutal desi-
gualdade na distribuição interna da cultura, nas nações subdesenvolvidas. Isto
é, para as minorias que mais têm, maior é o acesso à cultura. Com isso, reifica
as condições socioeconômicas da classe dos ricos. Para a maioria da população
que menos tem, o acesso à cultura é restrito. O acesso precário à cultura com-
promete as condições de igualdade do acesso, pela classe social mais pobre. Se
o acesso à cultura para as massas é restrito, consequentemente constrói um
pensar ingênuo e parcial da realidade. Nesse sentido, são facilmente manipulá-
veis e servem de manobras para impedir a superação da consciência ingênua e
da situação de subdesenvolvimento. De forma antagônica, quanto maior o
acesso que um povo oprimido tem à cultura desalienada, maior e mais profun-

107
do será a formação do espírito crítico da nação e, como consequência, melhora
o comprometimento do indivíduo para superar o atual nível de desenvolvi-
mento nacional. Portanto, quanto mais a massa oprimida tiver acesso à cultura,
melhores condições terão para construir a visão de totalidade e se engajar na
construção do projeto emancipatório pelo desenvolvimento do país. Por isso,
um povo com um pensar crítico, através do pleno acesso à cultura, enquanto
meio de compreender a realidade, gera a consciência crítica como motor que
move as massas para dinamizar a luta pela emancipação da nação subdesen-
volvida. Enfim, a massa oprimida pode mais, tanto quanto maior é o acesso à
cultura, porque gera, para si e a para classe social a que pertence, mais saber,
em consequência, gera possibilidade de mais ser no mundo em que vive e
convive. Portanto, uma nação tanto mais pode quanto mais o sabe sobre si e a
realidade em sua volta.

3.8 – A formação da consciência crítica


3.8.1. Algumas observações gerais

Segundo Vieira Pinto, existe duas formas de pensar, a ingênua e a crítica


que definem duas modalidades de consciência com o mesmo caráter. O pensar
ingênuo determina o surgimento de uma consciência nacional ingênua e o
pensar crítico determina o surgimento de uma consciência nacional crítica. A
primeira modalidade de consciência consolida a condição da sociedade subde-
senvolvida, porque se torna obstáculo para a mudança da realidade. A segunda
penetra na essência da realidade que representada na subjetividade do ser
humano e no ser da nação. Dessa forma, o homem se compromete a participar
das transformações necessárias do real, afim de potencializar o processo de
desenvolvimento.
Numa sociedade subdesenvolvida, onde a grande massa humana é opri-
mida e alienada, a formação da consciência crítica sobre a realidade torna-se o
fundamento para implementar o projeto de desenvolvimento nacional, en-
quanto forma de superação da condição desumana.
A formação da consciência crítica tem como ponto de partida a realidade
nacional subdesenvolvida, fundamento para a elaboração da ideologia do de-
senvolvimento, que impulsiona o planejamento e a execução do projeto de
emancipação da nação.
Para abordar o que se entende por consciência crítica é necessário, antes
de mais nada, compreender o que se entende por consciência ingênua da na-
ção. É essa modalidade de consciência nacional que precisa ser compreendida
e superada, no atual contexto e momento que passa a nação brasileira. Essa
encontra-se sufocada e estrangulada pelas condições materiais e sociais impos-

108
tas pelo atual governo brasileiro. Entretanto, percebe-se que esse fenômeno
social da consciência ingênua se manifesta também no contexto internacional.
Por isso, não é somente um problema local de xenofobia das classes políticas e
jurídica de extrema direita, mas é, também, um fenômeno próprio das classes
sociais mais ricas dos países desenvolvidos. Por tudo o que foi dito, o rico é um
ser agressivo porque é regressivo, pois suas relações e comportamentos são
xenófobos em relação à classe pobre, estimulando a consolidação da consciên-
cia ingênua da nação oprimida.

3.8.2 A consciência ingênua

A consciência nacional está relacionada diretamente com o ser da nação.


Se a nação se encontra num estado de subdesenvolvimento, produz a desuma-
nização do homem. Isso caracteriza o estado da sociedade oprimida e alienada,
totalmente submetida aos interesses das classes sociais internas dominantes e
aos interesses externos das sociedades metropolitanas desenvolvidas. Nessa
condição, a nação é portadora de uma consciência nacional ingênua, porque,
em vez de reagir mediante à situação de submissão que lhe é imposta, confor-
ma-se com a passividade aceitando a condição de oprimida como algo natural.
A Consciência nacional ingênua é aquela que não tem compreensão pro-
funda dos fatores e das condições objetivas que a determina. Os indivíduos que
pertencem à nação, com esse caráter, são facilmente manipulados e reféns de
uma ideologia dominadora e exploratória, que desqualifica qualquer possibili-
dade de se tornar sujeito na construção da própria história e das necessárias
mudanças sociais.
As condições que a determina são o nível de desenvolvimento em que se
encontra a nação. Uma nação torna-se passiva porque está conformada com a
situação presente de subumanidade e sujeição em que vive o homem no interi-
or da mesma. Por isso, o ser humano, nessa condição, não tem perspectiva de
melhorar a qualidade de vida no coletivo e não consegue projetar-se para fren-
te. O indivíduo constrói, para si, uma visão fatalista de que a realidade nacional
subdesenvolvida é aquela que está presenta na sua vida cotidiana. Por isso, não
consegue perceber uma alternativa. Somente resta-lhe aceitar, passivamente, a
sujeição como algo natural para justificar a imobilismo e permanecer naquele
estágio de subdesenvolvimento. O modo de pensar do indivíduo portador des-
sa modalidade de consciência é um pensar fechado em si mesmo, acabado,
universalmente válido, verdadeiro em qualquer tempo e contexto. O pensar
ingênuo concebe a realidade e o ser humano como se fossem uma entidade
abstrata, sem nenhum nexo com a realidade existencial. Dessa forma, o homem

109
apenas tem uma relação de pertencimento ao mundo, por isso, sem possibili-
dade de melhorar as condições pessoais e sociais da nação. O pensar ingênuo
define, no indivíduo, a postura de covardia diante da luta para se libertar e
invoca, sempre, a confiança de um salvador da pátria 19. Como consequência
dessa situação, o homem, entra na paranoia da visão fatalista de si e do mundo,
destruindo qualquer percepção e possibilidade de mudança, tanto na realidade
quanto na consciência do ser humano. Consequentemente, gera uma espécie
de cegueira em torno dos atuais fatos e das condições que oprimem a nação,
consolidando, nas massas, que a alternativa de mudança é algo impossível. A
única alternativa é “conformar-se” com o atual estágio desumanizador da sub-
missão da nação pobre às nações ricas, isto é, a sujeição dos países subdesen-
volvidos aos países desenvolvidos e, internamente, a sujeição do oprimido ao
opressor.
Algumas características20 que determinam o perfil da consciência ingênua
dos indivíduos e do ser da nação podem ser assim elencadas: possui um cará-
ter sensitivo e impressionista; condicionamento pelo âmbito individual; abso-
lutização da sua posição; incoerência lógica; irascibilidade; incapacidade de
diálogo; pedantismo; ausência de compreensão unitária; incapacidade de atua-
ção ordenada; moralismo; idealização dos dados concretos; apelo à violência;
desprezo à massa; culto do herói salvador21; messianismo da revolução; preci-
pitação de julgamento; crença na imutabilidade dos padrões de valor; desprezo
pela liberdade; intelectualismo na concepção dos problemas sociais; culto ao
bom-senso; pessimismo; saudosismo; primarismo político.
A ingenuidade não deve ser interpretada como deficiência intelectual, mas
do ângulo da analítica existencial. Por isso, é necessário tomar o problema da
consciência no campo da existência social. Enfim, “o pensar ingênuo não mere-
ce ser somente aquilatado como mal para o indivíduo, mais grave ainda é o
dano causado à comunidade, que nele enfrenta um obstáculo realmente preju-

19
No momento e no contexto da realidade brasileira, a confiança cega e fanática numa polícia federal e
num judiciário míope onde para alguns se aplica a lei, mas para outros, a mesma lei não é aplicada.
Quando se invoca os fatos golpistas do passado para justificar o golpe no momento presente. Isso não
passa de posturas brutais que ferem o estado de direito sob todos os sentidos. Para manter esse tipo de
contradição dos golpistas atuais e todos os seus apoiadores de diferentes setores institucionais e nacio-
nais, invoca-se a força repressiva do Estrado, que apelando para ameaça da violência, para intimidar e
conter as manifestações democráticas origina-se o terrorismo do Estado que gera medo para manter a
opressão nacional.
20
Neste ensaio, limitaremo-nos apenas citar as características da consciência ingênua. Entretanto, se há
algum interesse em aprofundar o entendimento de cada uma delas, o mesmo poderá ser feito através de
leitura da seguinte obra; PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro:
MEC/lSEB, 1960. v.1, p. 163-432.
21
Os juízes e investigadores da lava jato produzindo a miopia da caçada aos corruptos. Agindo de forma
parcial, produzindo a imagem de salvadores da pátria e de autoridade mal-intencionada com fins ideoló-
gicos e políticos.

110
dicial ao processo de desenvolvimento. [...] a ingenuidade da consciência cria
séria resistência à ação dos que, compreendendo de modo verdadeiro, o signi-
ficado dos acontecimentos, lutam por intensificar aquele processo”. 22 Por isso,
a consciência ingênua não procede, racionalmente, diante da realidade, porque
não dispõe de princípios racionais que conduzem o pensar para a descoberta
da verdade em torno dos acontecimentos existenciais e sociais. A consciência
ingênua, ao invés de buscar a essência da verdade sobre a realidade do ser da
nação, apenas se debruça sobre ela de forma que, em vez da racionalidade
conduzir sua forma de pensar, é conduzida pela emocionalidade que conduz o
pensamento de modo superficial sobre o real para reificar o modo submisso e
obediente, quando da análise dos problemas reais da sociedade subdesenvol-
vida.

3.8.3 A consciência crítica

A modalidade crítica da consciência resulta de um pensar sistemático, fo-


cado na representação da realidade, em forma de ideia, no pensamento do
indivíduo. O grau de criticidade da consciência está vinculado ao nível de com-
preensão do contexto social em que o ser humano está inserido. É isso que a
torna consciência social, porque seu pensar, fundado na realidade, produz a
consciência crítica, isto é, produz uma visão de totalidade sobre si e a realidade
em que o indivíduo está inserido. Enfim, a realidade nacional, uma vez pensa-
da, sistematicamente, e, compreendida, realmente, como se manifesta, gera a
consciência socialmente crítica da nação. Quanto mais visão de totalidade o
indivíduo possui da realidade mais próxima, maior é a possibilidade de supe-
ração da consciência ingênua pela consciência crítica. Portanto, o nível crítico
da consciência entra na dinâmica de construção da visão de totalidade sobre o
estado, existencial e social, em que se encontra o indivíduo e a nação pobre.
A consciência crítica é o tipo de consciência que possui uma ampla e pro-
funda compreensão esclarecedora sobre os fatores, condições reais e sociais
que a determina.
O papel da consciência é sempre ativo, porque supera o pensar metafisico
e se consubstancia na representação coerente da realidade e da verdade em
torno da existência objetiva da sociedade. Por isso, o espaço social alcança a
consciência crítica da realidade por se tornar uma autêntica representação
reversível entre o real e o ideal, entre o social e o intelectual, enquanto caráter
dinâmico do pensar, radicalmente, crítico. A consciência crítica, por ter esse

22
PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: MEC/lSEB, 1960. v.1, p.
161.

111
caráter dinâmico de representar o mundo, no seu pensamento, constrói uma
visão de totalidade de si e da realidade. Essa visão de totalidade não é um ato
isolado do pensamento sobre a situação social, mas um processo representati-
vo do real que passa a perceber a realidade de forma mais coerente e abran-
gente. Essa combinação perfeita entre as representações da realidade no pen-
samento e o pensamento inferindo sobre a situação representada, faz com que
o ser humano consiga realizar a ampliação do conteúdo da representação,
donde produz a explicação mais profunda da realidade nacional. Essas repre-
sentações são dinâmicas porque não possibilitam o indivíduo estacionar o
pensamento num dos extremos, tanto do real quanto do ideal. Supera-se, dessa
forma, o idealismo no pensar e o ativismo no agir pela unificação de ambos,
através do pensar dialético, característico da consciência crítica sobre a reali-
dade nacional.
É nessa perspectiva que os intelectuais nacionais, necessariamente, são
possuidores da consciência crítica, cujo o fim último é produzir a ideologia do
desenvolvimento, fundamento da elaboração das políticas nacionais, orientam
a execução do projeto de emancipação da nação.
Com esses esclarecimentos, podemos enumerar as categorias da consciên-
cia crítica. Da mesma forma como se procedeu com as características da cons-
ciência ingênua. Vamos elencá-las e dar um breve e reduzido conceito sobre
cada uma delas23.
Objetividade: intensifica o esclarecimento das massas sobre a real situa-
ção das condições pessoais e sociais em que vive a nação;
Historicidade: interação entre consciência e realidade, como processo e
dinamismo na superação da consciência ingênua, para consolidar a consciência
crítica da nação;
Racionalidade: construção de um pensar sistemático sobre a condições
sociais e, intencionalmente, crítico na construção do pensar coletivo útil para
impulsionar as mudanças e o desenvolvimento;
Totalidade: significa conexões de sentido para superar o ESTAR no mun-
do para o SER no mundo, com o fim de produzir a ideologia do desenvolvimen-
to, ocupada e preocupada com a humanização do homem;
Atividade: pensar o que se vive e viver o que se pensa, como forma de
comprometimento e engajamento dos intelectuais para implementar o projeto
de desenvolvimento nacional;
Liberdade: é sempre um ato livre para libertar o ser da nação da situa-
ção-limite do menos ser para o mais ser do homem;

23
PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: MEC/lSEB, 1960. v.2, p.
15-432

112
Nacionalidade: o encontro da consciência com as condições concretas do
país subdesenvolvido, enquanto possibilidade de superação da situação con-
traditória entre nação opressora e nação oprimida e, entre classe social, opres-
sora e oprimida.
Enfim, a consciência crítica comanda a reflexão e análise das práticas soci-
ais, por isso, supera a ficção filosófica, baseada na descrição de comportamen-
tos psicológicos para se transformar num pensar crítico e no agir social consci-
ente e transformador. Esse pensar crítico se apoia no processo real de constru-
ção humana do ser da nação.

3.9 A teoria da educação comprometida com o desenvolvimento


nacional
A teoria da educação comprometida com o desenvolvimento é a educação
popular para construir a habilidade de pensar a realidade social, objetivando
compreendê-la em amplitude e profundidade. Sem esse pressuposto, a educa-
ção torna-se privilégio da elite, a fim de manter o estado de subdesenvolvimen-
to da nação. Por isso, as massas são treinadas para executar tarefas no sistema
produtivo com a finalidade de consolidar a forma ingênua da consciência naci-
onal.
O papel da educação para o desenvolvimento consiste em construir um
processo de transformação qualitativa e progressiva da consciência nacional.
Isto é, produz a consciência crítica e difunde, entre as massas, a ideologia do
desenvolvimento como projeto de emancipação da sociedade subdesenvolvida.
Isso implica em conceber a educação, cujo o caráter é, essencialmente, popular
que assume o compromisso de elevar o nível de conhecimento e da consciência
das massas sobre a realidade nacional, gerando uma visão de totalidade dos
acontecimentos sociais. Essa tarefa não pode ser delegada aos pedagogos ofici-
ais, ausentes do processo histórico real da nação e, nem tampouco, aos visitan-
tes das organizações acadêmica metropolitanas. Essa tarefa cabe aos educado-
res de origem popular que estarão aptos a desenvolver práticas pedagógicas
alicerçadas numa justa teoria sociológica, já que são legítimos representantes
da consciência comunitária.
A escola não faz a revolução no país, mas a revolução tem de fazer a escola
que o país precisa. Por isso, o trabalho da educação popular para o desenvol-
vimento lida com o progresso da consciência sobre a realidade para incitar os
indivíduos a se comprometerem e fazerem a revolução que vai determinar
outro tipo de educação. Isso não se faz com uma consciência nacional ingênua.
Somente o desenvolvimento de uma consciência nacional crítica pode produzir
as transformações do atual estágio de subdesenvolvimento da nação para su-
perá-lo de forma qualitativa. Nessa perspectiva, o compromisso fundamental

113
da educação é mudar, nos indivíduos, a forma de pensar ingênua para a forma
de pensar crítica sobre as condições sociais em que se desenvolve a vida.
O ponto de partida para atingir tal fim consiste em quebrar a atual lógica
da submissão do conhecimento e da ciência nacional aos ditames da ciência
global metropolitana. Um dos indicativos práticos para atingir esse fim é inse-
rir disciplinas sobre a realidade nacional nos cursos de mestrado e doutorado
para formar agentes de mudança, no pensar e agir, nos contextos das institui-
ções educacionais e na conjuntura nacional. Isto é, construir e fazer a ideologia
do desenvolvimento circular pelos quatro cantos do país. Quem iniciou muito
bem essa tarefa foi o intelectual e pedagogo Paulo Freire, quando propôs, para
a sociedade brasileira, a concepção da educação libertadora. Outro indicativo
prático para quebrar a lógica da pedagogia colonialista de origem externa é
criar centros de estudos com o fim de construir conhecimento avançado, tendo
como horizonte a compreensão da realidade nacional do país, no sentido de
produzir novos conhecimentos para a construção coletiva da consciência críti-
ca e comprometer as massas oprimidas com o projeto de emancipação. A me-
lhor e mais eficiente estratégia é criar um instituto parecido com o ISEB (Insti-
tuto Superior de Estudos Brasileiros). A reinvenção desse instituto ocorre
quando se constrói uma nova “inteligenzia” brasileira, capaz de analisar e in-
terpretar a realidade nacional, cuja a finalidade é construir a ideologia do de-
senvolvimento nacional como superação das atuais políticas de Estado xenófo-
bas do neoliberalismo. Para tanto, propõe-se a criação do ISED (Instituto Supe-
rior de Estudos para o Desenvolvimento).
Finalmente, depois dessa longa abordagem sobre as categorias filosóficas
para o desenvolvimento, o que se sugere, imediatamente, como indagação:
como encarar esse desafio? Talvez seja o momento de realizar uma séria análi-
se das atuais políticas impostas pelo governo neoliberalista que estão produ-
zindo a opressão nacional e refletir, a partir da realidade nacional, para identi-
ficar as políticas do estado nacionalista mais adequadas para orientar o desen-
volvimento nacional.

4 Considerações Finais

Antes de encerrar essa análise sobre as categorias, é preciso reafirmar


que este ensaio possui, como intenção, a qual seja, incitar o leitor na busca de
compreensão do referencial teórico sobre o pensamento de Vieira Pinto, obje-
tivando fundamentar uma crítica ao atual governo neoliberalista. Um exemplo
na história política do Brasil que não merece, em hipótese nenhuma, ser segui-
do, pois seria um convite a seguir o mau exemplo.
A distribuição histórica das modalidades de consciência está vinculada à
condição e ao nível de desenvolvimento da nação. O momento atual revela essa

114
condição, mediante o imobilismo que a sociedade brasileira se encontra diante
de um governo que é tão unilateral, quanto à justiça brasileira é parcial e ten-
denciosa, quando se trata de investigar os projetos que vão a favor dos interes-
ses da maioria da nação. Pois, a lei vale para alguns, mas não se aplica a outros.
Quem faz as leis, não as cumpre e quem manda aplicar as leis, o faz orientado
por interesses diversos, indicando parcialidade nas decisões. Enfim, a vale para
uns, mas não vale para outros. Por isso, no Brasil não se distribui justiça, mas
interesses econômicos e políticos contra a massa oprimida para confundir via
estimulação, e disseminação da consciência nacional ingênua. Essa distribuição
da consciência ingênua no país, e no momento atual, tem origem e é patrocina-
da pelas elites rurais e urbanas, representantes de instituições suspeitas e
anônimas que, pelo tráfico de influência, direcionam as decisões nas instâncias
administrativas e judiciárias do país para fortalecer os ricos corruptos e pu-
nem as massas com a retirada dos seus direitos, sob a égide das reformas mío-
pes. Por isso, temos uma administração pública e um judiciário influenciado e
viciado. É nessa condição que o desenvolvimento, a democracia, a justiça e a
soberania nacional se tornam reféns de uma ideologia dominante e elitista
predadora da ideia de nação que precariza, cada vez mais, as condições de
dominação e opressão das massas. Ou seja, as metrópoles penetram e influen-
ciam as instâncias dos poderes constituídos, sem nenhuma exceção, colocando
em risco a autonomia e a soberania nacional. O que é perceptível na atual rea-
lidade brasileira é uma conjuntura nacional “fraca e inocente”, com um gover-
no extremamente autoritário e opressor das massas. Desse governo, participa
a velha e antiquada “cepa” de profissionais e políticos xenófobos, despudora-
dos, imorais e antiéticos, promovendo a dominação e a exploração sobre as
massas oprimidas. Quanto mais pobre e inculta a massa através da falta de
habilidade de compreender os problemas sociais, tanto melhor para o atual
governo realizar manobras e aprofundar o estado de pobreza da nação.
O subdesenvolvimento, que é o atual momento histórico em que vive o
Brasil, distribui a consciência ingênua junto às massas oprimidas, promovendo
a desumanização da maioria através da perda da identidade nacional, que forja
o surgimento de uma consciência elitista, golpista e entreguista do capital na-
cional, empresas estatais, setores estratégicos e o próprio desmantelamento do
Estado para implementar o colonialismo externo sobre a nação e nos diferen-
tes setores da sociedade.
Enfim, esse ensaio revela A história política do Brasil como uma história
dos golpes explícitos e implícitos para manter privilégios, consolidar uma situa-
ção de opressão cada vez mais forte e menos compreensível, 24 com o apoio am-

24
FAVERI, José Ernesto de. Álvaro Vieira Pinto: contribuições à educação libertadora de Paulo Freire.
São Paulo: LiberArs, 214, p.177.

115
plo e irrestrito das pequenas minorias ricas do território nacional e das gran-
des metrópoles, onde a nação, por ser portadora de uma consciência ingênua,
assiste pacificamente a internacionalização do país para instalar o opressão
global à nação brasileira.
Finalmente, um projeto de emancipação da nação requer autonomia naci-
onal com soberania internacional. Para superar essa situação torna-se urgente
e necessárias as seguintes iniciativas:

a) Comprometimento dos intelectuais com a emancipação das massas


no sentido de produzir e difundir a ideologia do desenvolvimento na-
cional, como forma de produção nacional da consciência crítica;
b) Elaborar e executar projetos de pesquisa em diferentes áreas para
decodificar o nível e as condições do subdesenvolvimento da nação;
c) Produção do conhecimento que vincule a formação da consciência po-
lítica à realidade nacional como fio condutor dos movimentos de li-
bertação nacional baseados e orientados pela produção nacional da
própria ciência;
d) A educação popular para o desenvolvimento, como estratégia de su-
peração da “Ideologia global” por uma ideologia nacional desenvol-
vimentista.

Referências Bibliográficas

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UFMG e IUPERJ, 2003 (Coleção origem).
FAVERI, José Ernesto de (Org.); Jorge F. Schumacher e outros. O legado de Álvaro Vieira Pinto a
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FAVERI, José Ernesto de. Filosofia da Educação: o ensino de Filosofia na perspectiva Freireana.
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FAVERI, José Ernesto de. Álvaro Vieira Pinto: contribuições à educação libertadora de Paulo Freire.
São Paulo, LiberArs, 2014.
FIORI, Ernani Maria. Educação e Política: textos escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 1991, Vol.2.
FREIRE. Paulo. Pedagogia do oprimido. 19.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
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________. A Questão da Universidade. São Paulo: Cortez, 1986.
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_______. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: MEC/lSEB, 1960. V.1 e V. 2.
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116
CAPITALISMO, CRISES E DESENVOLVIMENTO:
REFLETINDO COM A SOCIOLOGIA
Vilson Cesar Schenato1

1. Crise e anomia

A mundialização ou globalização da economia não é um fenômeno no-


vo, já se processava certa integração desde o século XIV durante o mercanti-
lismo, com a exploração das colônias e o comércio transoceânico. Esse era o
contexto de acumulação primitiva do capital que se ampliou após a revolução
francesa e, posteriormente, com a revolução industrial entre os séculos XVIII e
XIX. A gênese do modo de produção capitalista é caracterizada por processos
violentos de expropriação dos camponeses, artesões, corporações de ofício,
produtores familiares, por meio da tomada das terras, ou apropriando-se dos
saberes dos produtores diretos, separando-os dos meios de produzirem sua
própria existência. Deste modo, um grande contingente de trabalhadores “li-
vres” se dirigia para as cidades ficando disponíveis para “vender” o seu traba-
lho em troca de um salário. A exploração crescente do proletariado urbano que
se formava, somada aos saques, pilhagens, especulações comerciais, tráficos de
trabalhadores escravos e exploração das colônias, possibilitou um acúmulo de
riquezas por parte da burguesia, que, por sua vez, reinvestiu na produção in-
dustrial.
Com a produção de mercadorias a burguesia industrial podia reproduzir
de forma expandida o capital, produzindo valores de troca por meio da extra-
ção da mais-valia absoluta e relativa do proletariado (MARX, [1867] 1982).
Capital e trabalho eram face de uma mesma moeda, se complementavam em
uma unidade de contrários em que os detentores dos meios de produção e do
capital concentravam cada vez mais poder econômico e político.
Articulada às mudanças socioeconômicas, processava-se a mudança das
ideias, crenças, visões de mundo, um ethos que interferia no curso histórico do
capitalismo, favorecendo ainda mais o seu desenvolvimento. A ética protestan-
te combinava com o novo homem capitalista, na condução dos seus negócios
ou no disciplinamento dos trabalhadores, ao fornecer um quadro referencial
de valores, tais como: poupança, vocação, disciplina ascética, austeridade,
amor ao trabalho, etc. orientando assim os comportamentos dos indivíduos,

1 Doutor em Ciências Sociais. Professor do Instituto Federal de Santa Catarina – Campus Canoinhas e
líder do Grupo de Pesquisa Identidades Desenvolvimento e Democracia.

117
(capitalistas ou trabalhadores) em uma nova mentalidade, um novo estilo de
vida que se contrapunha à atitude de renúncia da vida e de contemplação con-
tida no catolicismo (WEBER, 1985).
Neste contexto, a cultura interferiu nos comportamentos individuais e na
esfera econômica e vice-versa. Tanto cultura, quanto economia, estão inter-
relacionadas. De modo que, é possível falar em relações dialéticas entre as
mesmas e nunca em determinismos. Essa influência mútua das instâncias eco-
nômicas, culturais e políticas, são próprias da era industrial e isso fica muito
evidente no fordismo, o qual se constituiu em um modo de vida para a socie-
dade como um todo, extrapolando a esfera da produção econômica.
Atualmente, o chamado capitalismo flexível possui uma aparência de de-
sorganizado, por gerar muitas incertezas e inseguranças para a maioria das
pessoas, no entanto, de acordo com Harvey (1992) o capitalismo atual está se
tornando organizado, por meio do acesso à informação instantânea a nível
mundial, gerando espécies de “redes” de conhecimento técnico-científico por
meio de consultorias, reduzindo mais do que nunca o saber à mera mercadoria
que pode gerar inovações e estas, por sua vez, novos ganhos aos capitalistas-
investidores. O segundo indício de que há uma reorganização do capitalismo é
de que se desenvolve uma completa reestruturação do sistema financeiro glo-
bal com a emergência de imensos poderes de coordenação financeira. A cria-
ção de um mercado global de ações, por meio do intercâmbio de informações
instantâneas, tornou possível a circulação veloz de dinheiro, crédito, dívidas,
moedas e de mercados futuros. Lucros estritamente financeiros e sem vínculo
com a produção real, o chamado dinheiro virtual, faz a acumulação flexível se
basear, em larga medida, no sistema financeiro, este, por sua vez, torna-se o
seu poder coordenador (HARVEY, 1992 p. 151- 152).
Os Estados Nacionais ficam cada vez mais reféns do sistema financeiro
e de uma elite especulativa global, com o Brasil não é diferente, volta e meia,
medidas restritivas e decisões na política econômica são tomadas para agradar
o “mercado”, atrair investidores e diminuir os “riscos” de fuga de capitais.
Ao lembrar dos autores clássicos da Sociologia para pensar o contexto
de crise (econômica e política) em que atravessa o Brasil, um dos conceitos que
nos vêm à mente é o de anomia, para pensarmos, principalmente, os rumos
institucionais e políticos que tomaram a governabilidade do Estado brasileiro.
A anomia de Emile Durkheim faz referência a situação social em que existe
uma ausência de normas, um desregramento social, tal conceito foi utilizado
nas obras Da Divisão do Trabalho Social [1893] (1999) e principalmente em Le
Suicide [1897] (1986) em que o autor mostra como algo na sociedade que não

118
funciona de forma harmônica gera desintegração social ou está funcionando de
forma patológica, em desacordo com os valores partilhados até então.
Neste sentido, pode-se refletir com Durkheim o Estado brasileiro, a re-
lação promíscua entre os três poderes e a perda da democracia enquanto valor
social e da coisa pública (respública) uma vez que um grupo de “fichas sujas”
toma de assalto o governo e se articula para “estancar a sangria” com a inten-
ção de parar as investigações que lhe compromete na “Operação Lava-Jato”.
A frágil democracia no Brasil sofreu abalos e perdeu o seu sentido. O co-
mando do país ficou com quem não possui legitimidade política e nem moral
para governar de forma democrática, pois um governo fruto de um golpe par-
lamentar-jurídico e midiático, sem compromisso com eleitorado algum, só
pode se manter por meio de manipulação e de forte repressão daqueles que
não concordam com as sucessivas decisões arbitrárias e sem diálogo com os
interesses da maioria da população. Ou seja, um governo autoritário, entre-
guista e que tem como única proposta a de destruir os direitos da classe traba-
lhadora, não pode, nem de longe, ser pensado como algo “normal” para a soci-
edade brasileira, e sim, como uma patologia que precisa ser extirpada para que
seja reestabelecido o bem-estar social e político do país.
A descrença na política institucional por parte considerável da população
brasileira foi constatada nas últimas eleições municipais. Mesmo com o voto
sendo obrigatório houve entre abstenções, votos nulos e brancos um total de
32,5% do eleitorado do país, tal dado está diretamente relacionado com o des-
respeito ao voto da última eleição presidencial em 2014 e ainda ao fato de que
pessoas acusadas de corrupção assumiram o alto escalão do governo sem vo-
tos.
Para Durkheim, que era positivista, a ordem pode ser aperfeiçoada nestes
momentos de crises e deixar o corpo social / sociedade mais forte. A tarefa da
Sociologia seria de identificar os problemas e ajudar a solucioná-los com o
intuito de melhorar a sociedade capitalista, aumentando sua integração social.
O lema dos positivistas era “ordem e progresso”, mesmo lema da ban-
deira brasileira e adotado pelo atual governo ilegítimo, só que ao pensarmos
com Durkheim a solidariedade orgânica é garantidora da coesão social e a
grande instituição socializadora das sociedades complexas vai ser a empresa,
assim, na visão de Durkheim todos teriam um emprego e sentiriam parte de
um todo maior que é a sociedade capitalista e não é desta maneira que gover-
nos como o atual pensam e agem, pois as políticas adotadas vão na direção da
desproteção social, aumento do desemprego, subemprego, e desvalorização
dos salários, por mais que haja manipulação midiática tentando mostrar o

119
contrário e assim, tentar disfarçar o caos e a anomia decorrentes de tais políti-
cas.
Outrossim, do ponto de vista dos trabalhadores, que são parte essencial
das sociedades modernas, o lema do atual “governo” pode ser interpretado
como “desregulamentação e regresso” pois com o retorno das políticas neoli-
berais da década de 1990, abre caminho no país para um capitalismo ainda
mais selvagem do que este que vivenciamos, em que a única regra é a busca de
lucros e rendimentos financeiros para capitalistas nacionais e transnacionais
sem escrúpulos. Tal busca, fria e calculista, não considera os trabalhadores
como seres humanos, estes são visto apenas como meios / custos em suas
contabilidades para se chegar ao fim último que é o acúmulo de capital.

2. Algumas contribuições de Karl Marx para o debate

Um dos princípios centrais do capitalismo é a desigualdade entre os donos


dos meios de produção e os trabalhadores que possuem somente a sua força
de trabalho para vender em troca de um salário. Tal contradição pode acirrar-
se e gerar outras crises, como as de superprodução, pois sem haver consumi-
dores, por serem em sua maioria trabalhadores e na perspectiva dos patrões
devem receber somente um “salário de fome” que não lhes permite um consu-
mo elevado. O estado entra neste cenário com o papel, muitas vezes, de intervir
na economia e de realizar investimentos sociais que ajudam redistribuir renda
e com isso incentivar o consumo, isto, por consequência, fortalece a economia
interna que, por sua vez, consegue superar com mais facilidade as crises glo-
bais do capitalismo. Foi esse o tom do chamado Welfare State.
Karl Marx, outro clássico da Sociologia, via o Estado na sua obra XVIII
Brumário como um escritório dos negócios da burguesia, dependendo do con-
texto histórico e específico, tal interpretação parece fazer muito sentido, pois
parece que a burguesia sempre retoma o poder do Estado ou tenta direcioná-lo
para os seus interesses. Não obstante, é preciso entender que o próprio Estado
se insere nos conflitos de classes e é um território de luta de disputas entre as
classes dominantes e os trabalhadores que, com desculpas das “crises”, sofrem
retrocessos em seus direitos.
Marx já sinalizava no Manifesto Comunista [1848] (2002), que o capita-
lismo longe de configurar relações estáveis de produção, desde sua gênese, é
um eterno revolucionar-se, sob a máxima da “destruição criativa” permanente,
da qual faz parte as próprias crises que lhes são recorrentes. Isto é algo consti-
tutivo do capitalismo, pois crise e capitalismo andam juntos.

120
Num mundo globalizado as guerras produzem refugiados, migrações
forçadas, porém, geram lucros para indústria das armas, indústria dos combus-
tíveis e para empresas de reconstrução das cidades, pertencentes a países
imperialistas como os EUA. Desta forma, a destruição gera novos lucros e o
capitalismo para sobreviver precisa permanentemente procurar novas formas
de lucrar, novas formas de pilhagens, inclusive nos direitos sociais dos traba-
lhadores em nome da atualização dos processos de acumulação de capital.
As crises periódicas de outrora, atualmente, se fazem cada vez mais em in-
tervalos menores, são mais intensas e causam danos muito maiores a todos.
Segundo a teoria marxiana, era em meio a estas crises, de acumulação e o acir-
ramento da luta de classes, que os trabalhadores organizados poderiam por
meio da revolta coletiva, destruir o capitalismo na esperança de criar uma
sociedade sob bases mais horizontais.
Diante destas realidades, uma das causas do agravamento das desigualda-
des sociais pode ser encontrada nos processos violentos de espoliação na re-
produção expandida do capital a nível global. Tais processos se assemelham a
acumulação primitiva de capital estudada por Marx em que o roubo aos “ven-
cidos” era uma prática embrionária do capitalismo.
A acumulação com base na fraude, violência e pilhagem para Harvey
(2009), não é somente uma etapa originária do capitalismo ou como para Rosa
Luxemburgo, “exterior” ao capitalismo, fazendo-se presente nos dias de hoje. A
acumulação primitiva inclui entre outras atividades a mercadificação e privati-
zação da terra; a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de
várias formas de direitos de propriedade comum, coletiva do Estado em pro-
priedade privada; a extinção dos direitos dos camponeses às terras (HARVEY,
2009). Inclui ainda a privatização da água; a destruição de formas alternativas
de produção e consumo; substituição da agricultura familiar pelo agronegócio;
“ressurgimento” do trabalho escravo, transformação de direitos em mercado-
rias a serem compradas.
Tais processos de acumulação, por espoliação, estão aprimorados nos dias
de hoje e são mais fortes que no passado, com o capital financeiro ampliam-se
a especulação e a predação, através de fraudes e enriquecimentos ilícitos. A
acumulação por espoliação na atualidade está também na: pilhagem de mate-
riais genéticos (sementes); destruição de recursos ambientais globais; merca-
dorização da cultura, da história e da criatividade intelectual; privatizações de
estatais, da saúde, educação, perda dos direitos trabalhistas. Tais situações
permitem que o capital sobreacumulado se aproprie de ativos liberados pela
espoliação, desta maneira, contorne as crises e de prosseguimento para a sua
reprodução de forma ampliada (HARVEY, 2009 p. 118 – 130).

121
A ditadura do dinheiro e do pensamento único colocam o neolibera-
lismo como a única solução para os problemas, pois o capitalismo seria eterno,
vitorioso e invencível, neste modo de pensar, a classe trabalhadora resta viver
sem esperanças, sem utopias, pois segundo esta “fábula” não existe mais luta
de classes. Tais discursos ideológicos por mais que sejam repetidos não os
tornam verdadeiros, pois enquanto houver capitalismo, existirá luta de classes
e contradições que sempre vem à tona em momentos cruciais da história.
As ideologias dominantes tentarão ocultar os conflitos de classes, no en-
tanto, tais conflitos existem tanto no nível micro como macrossocial e ficam
evidentes nas diversas lutas organizadas, ocupações, protestos e greves da
classe trabalhadora brasileira.
Uma das estratégias da burguesia é teatralizar um jogo democrático cri-
ando ilusões de participação para os trabalhadores. No Brasil a classe domi-
nante é colonizada e fraca. Tem medo dos “de baixo”, não conseguindo estabe-
lecer diálogos com os setores da classe trabalhadora em um jogo democrático
genuíno, assim internamente, ela recorre com frequência na história a autori-
tarismos e golpes de estado para fazer valer os seus interesses na marra, ao
passo que, barganha de forma dependente e submissa com as classes dominan-
tes dos países ricos, colocando em risco o desenvolvimento nacional e inviabi-
lizando a possibilidade de projeto societário autônomo que minimize as desi-
gualdades sociais do país.

2.1 Ideologias da globalização e desigualdades

A internalização das ideologias e o consentimento sempre foram mais efi-


cazes do que a repressão, na submissão dos interesses dos dominados ao dos
dominantes. Por meio do exercício hegemônico de poder dos países centrais,
construíram-se consensos de que a globalização era benéfica, com ela todos
iriam “ganhar”. Porém, para isso era preciso abrir as fronteiras e aceitar uma
nova liberalização dos mercados e de fluxos de capitais. Tais preceitos eram
repetidos pelos organismos multilaterais (Banco Mundial, FMI, OMC) em con-
junto com os meios de comunicação de massa, transformando as mentiras
neoliberais repetidas, em verdades consentidas pelos governos e populações
dos países mais pobres. Tentando fazer crer que os processos globalizantes são
inevitáveis, irreversíveis, unilaterais e irrecusáveis.
Tais orientações políticas para a economia vieram em meados da década
de 1980, de um consenso estabelecido pelos países mais ricos do globo, o
“Consenso de Washington”. Dali saiu um receituário neoliberal prescrevendo
direcionamentos para a economia mundial, tais como: privatizações, desregu-

122
lamentações de direitos, “retirada” do Estado da economia e do social (SOUZA
SANTOS, 2005). Tal consenso econômico neoliberal minimizou o papel do Es-
tado na regulação da economia e subordinou-o aos organismos multilaterais,
sendo aplicado de maneira diversa em cada país capitalista que o aderiu.
Com o avanço da ciência e das tecnologias mais velozes, se tornou muito
mais fácil confundir os espíritos na compreensão dos fenômenos globais, que
se apresentam ideologicamente como benéficos, mas que estão fundados nos
impérios da informação distorcida, do “dinheiro em estado puro” consagrando
o discurso do pensamento único (M. SANTOS, 2006). É papel do intelectual
crítico e dos “de baixo” (países pobres e pessoas mais interessadas em um
outro tipo de globalização) questionar o que está aí. Para tanto, é preciso des-
construir os consensos vindos de cima, denunciando alguns mitos.
Crenças míticas como: a globalização é o fim da história, e que devemos
nos render, pois não há mais porque resistir; mito de que a compreensão tem-
po-espaço é para todos, quando na verdade, só é para aqueles que dominam os
sistemas técnicos, ou seja, as elites globais; mito de que o Estado seria mínimo,
quando, na realidade, ele continua forte para salvar o capital financeiro e con-
tornar “crises” deixando de se responsabilizar pelos seres humanos, se ausen-
tando das proteções e investimentos sociais (M. SANTOS, 2006).
Atualmente, o processo de acumulação de capital, não se faz somente pela
relação capital-trabalho, e nem por intermédio do pagamento de um salário
como na época de Marx. O que vemos nos dias atuais é a articulação com pro-
cessos anteriores, que não se encaixavam nos tempos ‘modernos’, tais como o
trabalho escravo, o trabalho doméstico, em domicílio, com baixa tecnologia,
informal e precário.
O capital se expande para as diversas instâncias da vida, a acumulação de
capital invade inclusive os direitos do cidadão, que é tido como um consumidor
e deverá comprar as mercadorias saúde, educação, previdência, água, trans-
porte, etc.
Nem mesmo a atividade intelectual e a pesquisa científica saem ilesas. Se a
ciência sempre esteve atrelada ao desenvolvimento do capitalismo, agora mais
do que nunca as descobertas, criações e pesquisas estão subordinadas à lógica
do capital, uma lógica quantitativa, de ‘eficiência’ a “curto prazo”, que se orien-
ta pela aplicabilidade do conhecimento com fins lucrativos, acabando por cer-
cear a reflexão desinteressada. Esta última, mais do que nunca, necessária para
o entendimento da complexidade do mundo atual, pensa também as possibili-
dades emancipatórias da humanidade. Nesta perspectiva torna-se imprescin-
dível o papel da Sociologia nos diferentes níveis de ensino.

123
O capitalismo segue um desenvolvimento desigual e combinado, sua lógica
excludente também é expandida, com um processo de “globalização das desi-
gualdades sociais”, em que para alguns, serem os “turistas”, ou parte da elite
transnacional ou global (BAUMAN, 1999), milhões acabam ficando na miséria e
passando por privações. Tais misérias humanas não se restringem aos aspec-
tos econômicos, mas também morais, éticos e civilizatórios.
Nessa “nova” desigualdade emerge uma nova classe capitalista transnaci-
onal, que é responsável pela extração de uma “mais-valia universal”, possibili-
tada pela unicidade da técnica e do tempo (M. SANTOS, 2006). Tal classe tem
seus negócios administrados por executivos, que fazem a ponte entre empre-
sas multinacionais, capital financeiro, elites locais e governantes do Estado.
Essa nova configuração das relações de poder gera desigualdades sociais tre-
mendas, atingindo em cheio os países da “periferia” do mundo. Há um aumento
da desigualdade entre os países pobres e ricos e uma “globalização da pobre-
za”:

“Segundo o Relatório do Desenvolvimento humano do PNUD relativo a 1999,


os “20 % da população mundial a viver nos países mais ricos detinham, em
1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres
detinham apenas 1%. Neste mesmo quinto mais rico concentravam-se 93,3%
dos utilizadores da internet. Nos últimos trinta anos a desigualdade na
distribuição dos rendimentos entre países aumentou dramaticamente. A
diferença de rendimento entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre era,
em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de 74 para 1. As
200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a sua
riqueza entre 1994 e 1998. Os valores dos três mais ricos bilionários do
mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os países menos
desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhões de pessoas” (SOUZA
SANTOS, 2005 p. 34).

A desigualdade ampliou em 2006 segundo um relatório da ONU, afirman-


do que, os 2% dos adultos ricos possuem mais da metade da riqueza global.
Sendo que, 90% do total da riqueza mundial estão nas mãos de moradores da
América do Norte, da Europa e de países com renda alta na Ásia e no pacífico 2.
Enquanto os pobres no consenso neoliberal sofreram com a redução de
salários, de direitos, de poder aquisitivo, ao mesmo tempo, a figura de consu-
midor substituiu a de cidadão. E, os pobres, no máximo, foram alvos de políti-
cas compensatórias que não eliminaram a exclusão. Tal situação deixou um

2 Fonte: Jornal O Globo (Economia) 05/12/2006.

124
“mal-estar-social” ainda maior com as propagandas incessantes, incentivando
todos a um consumismo exacerbado.
A concentração de riquezas se ampliou ainda mais na última década. Des-
de 2015 apenas 1% da população mundial detém em suas mãos mais riqueza
que os 99 % juntos, sendo que no período de 1988 e 2011 os rendimentos dos
10 % mais pobres aumentou apenas US$ 65, já a do 1% mais rico aumentou
US$ 11.800, além disto os rendimentos dos 50% mais pobres ficou inalterado
nas últimas 3 décadas, enquanto do 1% mais rico teve 300 % de ampliação 3.
Os avanços da tecnologia e da ciência tornam-se elementos-chave para o
estímulo à inovação dos sistemas produtivos, consoante com a lógica de pro-
dução e consumo de “curto prazo”, diminuindo o tempo de giro de capitais e
ampliando os lucros e acúmulo de riquezas. Os atores hegemônicos são “globa-
lizados” e podem se movimentar livremente pelo globo, tal quais os capitais
voláteis que possuem. Enquanto, a pobreza cresce em escala global, e os traba-
lhadores, pobres, marginalizados, sem dinheiro e nem poder, ficam “localiza-
dos”, vivendo de maneira precária, privados da tal “liberdade” de movimento,
até que sejam expulsos, descartados, deslocados para outros lugares (BAU-
MAN, 1999).
Para os ideólogos defensores dos benefícios da globalização, ela só traria
integração entre os povos, superação das identidades locais e dos particula-
rismos rumo a uma civilização universal, no entanto, o que se vê é a destruição
das economias de subsistência, o aumento do desemprego em massa, migra-
ções forçadas, refugiados da guerra e da fome. Tais pessoas “deslocadas”, nem
sempre são bem-vindas em seus destinos, com o reaparecimento de atitudes
xenófobas, preconceituosas, racistas e fundamentalistas em diversas partes do
mundo com relação ao “outro”, que vira bode expiatório dos grupos de extre-
ma direita.
A expansão geográfica do capitalismo para territórios não-capitalistas cria
a expectativa para os atores hegemônicos de que eles gerem novos investimen-
tos e consumos, impulsionando de forma renovada a acumulação interminável
de capital (HARVEY, 2009). Paralelo a isso, há a criação de um exército indus-
trial de reserva mundial, mantendo os rendimentos dos trabalhadores baixos.
Sendo assim o “novo” capitalismo se utiliza da exclusão como ameaça aos que
estão “incluídos” de forma precária, e passa a reincluir sob seus termos, em um
tempo futuro, os trabalhadores que foram excluídos no passado, que se “reci-
claram” e estão “aptos” a se acotovelar nas disputas pelos escassos postos de
trabalho.

3 Fonte: Jornal O Globo (Economia), Cresce a desigualdade Mundial: Fórum Econômico Mundial alerta
para a ameaça a estabilidade social. 26/01/2017.

125
3. Contribuição de Weber para pensar a legitimação do capitalismo

Mesmo com crises, aumento da miséria e das desigualdades, por que as


pessoas continuam reproduzindo e acreditando no capitalismo? Por que os
trabalhadores não se unem? Não derrubam governos autoritários e não conse-
guem construir greves gerais eficazes?
Para responder tais questões, o sociólogo Max Weber pode nos ajudar. Em
sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, dizia que, tal ética
combinava com o “novo homem capitalista”, na condução dos seus negócios ou
no disciplinamento dos trabalhadores, ao fornecer um quadro referencial de
valores, tais como: poupança, vocação, disciplina ascética, austeridade, amor
ao trabalho, etc. orientando assim os comportamentos dos indivíduos, (capita-
listas ou trabalhadores) em uma nova mentalidade, um novo estilo de vida que
se contrapunha à atitude de renúncia da vida e de contemplação, muito pre-
sente no catolicismo (WEBER, 1985).
O espírito do capitalismo seria uma ideologia que faz com que os traba-
lhadores se envolvam pessoalmente em seus trabalhos e que justifica o enga-
jamento neste estilo de vida:

“(…) é justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que


contribuem para justificar e sustentar essa ordem (…) dão respaldo ao
cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, à
adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista”
(BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009p. 42).

No contexto atual, é possível se falar em um novo espírito do capitalismo


globalizado que coloca em prática novas tecnologias, justifica posições de
acordo com um mundo em rede; flexibilidade; o sistema distributivo de apo-
sentadorias não pode durar como está; o desemprego dos não qualificados é de
longo prazo (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009), a crença em que cada indiví-
duo é “empresário de si”, se coaduna com a terceirização, com a informalidade
no trabalho, com a desregulamentação e desproteção social, com a ideia de
empresa e Estado enxutos (mínimos) de inspiração toyotista. Esse novo espíri-
to do capitalismo requer um trabalhador flexível, polivalente, “que veste a
camisa”; um colaborador sintonizado com a “sociedade do conhecimento” mas,
alheio politicamente e sem “senso crítico” para revindicar direitos e condições
dignas de trabalho.
Quem é esse “novo” homem do capitalismo? Um novo homem ape-
quenado que todos nós corremos o risco de nos tornar, como bem coloca Mil-
ton Santos (2006), um homem que segue a espiritualidade do efêmero, volúvel,

126
diluído, que não se apega a nenhum lugar, não cria vínculos sociais duradou-
ros, que está sempre pronto para partir, para abandonar o que já conquistou,
que está sempre atento a última moda, ao que dá mais lucros, etc.
Seria essa a mentalidade, o ethos dos trabalhadores urbanos? Em partes
poderíamos dizer que sim, pois ali a fluidez atinge inclusive os empregos, fa-
zendo com que estes, escapem daqueles que os ocuparam, antes mesmo de
criar laços sociais com seus companheiros de trabalho. Além das cobranças por
meio dos discursos empresariais, da cultura organizacional das empresas que
disseminam valores, crenças, normas e hábitos que interferem nas maneiras
de ser e de viver dos trabalhadores.
Se o trabalho no “capitalismo pesado”, com o fordismo, estava vinculado
de maneira complementar ao capital, e possuía horizontes no tempo de longo
prazo e para a vida toda, fixado no mesmo espaço, da mesma fábrica, o que há
atualmente são vidas guiadas pela flexibilidade, com planos de curto prazo,
imperando nesse jogo a incerteza, pois as regras podem mudar repentinamen-
te (BAUMAN, 1999). Com a falência do Estado de bem-estar-social e com a
nova mobilidade do capital, sua leveza se constitui em nova técnica de poder,
em desengajamento das redes sociais territiorializadas (BAUMAN, 2001), per-
mitindo escapar da alteridade, das negociações, acordos e comprometimentos
com os trabalhadores e com os Estados nacionais.
Nesse contexto, o homem que se valoriza é o que é “livre” de vínculos so-
ciais, o homem fluído está numa eterna busca pela aptidão, superando as nor-
mas, a rotina, não havendo descansos entre sucessos momentâneos, acabando
por fazer autocobranças contínuas que geram também ansiedades constantes
(BAUMAN, 2001).
É cada vez mais comum encontrarmos pessoas infelizes e compulsivas por
mais consumir, guiadas pelo princípio do prazer, pois a cultura do novo capita-
lismo atribui ao consumo, significado de remédio para as incertezas e ansieda-
des perpétuas, pois as mercadorias se transformam em “promessas de segu-
rança”, numa sociedade onde tudo se compra, inclusive as receitas para ser
feliz.
O lema a ser seguido é “compre você mesmo” e exorcize seus medos e fan-
tasmas da insegurança (BAUMAN, 2001). Embora tais prescrições atinjam a
todos, elas são realizadas por uma pequena minoria no mundo, esta, por sua
vez, compartilha da “cultura do medo do ‘outro’” (aquele que fica à margem),
para resolver isso foram criados templos do consumo individual (shopping
centers) “bem supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado é uma ilha
de ordem, livre de mendigos, desocupados, assaltantes e traficantes” (BAU-
MAN, 2001 P. 114). Ou seja, a arte de conviver com a diferença é substituída

127
pela indiferença e intolerância aos “estranhos”, isto também está ligado à de-
cadência dos espaços públicos e da emergência de uma cultura política priva-
tista, onde a arte do diálogo, da negociação é substituída pelo desvio e a eva-
são, pelo espetáculo das vidas privadas e pelo “faça você mesmo” divorciado do
Estado.
Enfim, a cultura hegemônica do capitalismo é a do consumismo, do efême-
ro, do presenteísmo de esquecimento fácil, sem passado, do medo do “outro”,
da intolerância, da violência sistêmica e cotidiana, da violência do dinheiro e da
informação, da desresponsabilização do Estado, do abandono da solidariedade,
do individualismo e competitividade elevada em escala global.
No entanto, tal cultura não se dissemina sem tensões e resistências, que
podem ser exemplificadas nas inúmeras iniciativas locais espalhadas pelo
mundo, que “visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena esca-
la, comunitários assentes em relações face a face orientados para a auto-
sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas.” (SOUZA
SANTOS, 2005 P. 72).
Isso demonstra que até aqui o capitalismo realmente segue vencedor e
que tem uma grande capacidade de inclusive tornar as suas críticas em fortale-
cimento do próprio capitalismo. É como se nos dissessem: vocês não queriam
um trabalho menos fragmentado, menos repetitivo e em que não só executasse
tarefas, mas também pensassem? O toyotismo de certo modo incorporou tais
críticas e criou o trabalhador polivalente, multifuncional e que na verdade é
explorado até na sua alma, suas ideias e na sua intelectualidade.
Assim muitas das críticas ao capitalismo, lhes fez ainda mais forte. Exem-
plo disto é como a sociedade burguesa criou até mesmo um mercado para idei-
as radicais, mas que dão lucros:

“A sociedade burguesa, através de seu insaciável impulso de destruição e


desenvolvimento e de sua necessidade de satisfazer às insaciáveis
necessidades por ela criadas, produz inevitavelmente ideías e movimentos
radicais que almejam destruí-la. Mas sua própria necessidade de
desenvolvimento habilita-a a negar suas negações internas: ela se nutre e se
revigora daquilo que se lhe opõe, torna-se mais forte em meio a pressões e
crises do que em tempos de paz, transforma inimizade em intimidade e
detratores em aliados involuntários” (BERMAN, 1986 P. 115).

As crises deixam o capitalismo mais forte. As críticas ao capitalismo vão


na direção de falta de justiça social, no entanto, renovam o seu espírito, suas
justificações e as pessoas continuam se engajando na ordem capitalista, se-
guem suas vidas cotidianas: depois do trabalho se informam pelo jornal nacio-
nal da rede globo, assistem a novela do mesmo canal e vão dormir, para no dia

128
seguinte novamente seguirem suas rotinas, tentarem “vencer na vida”, ter sua
casa, seu carro e se possível realizar seu sonho (de consumo). O que sintetiza
este novo espírito do capitalismo é o “consumo logo existo”.

4. Considerações finais: desafios para o desenvolvimento e a


democracia

Existem aqueles que, de forma limitada, defendem o progresso econômico


para alguns empresários como sinônimo de desenvolvimento, no entanto, é
preciso considerar que uma perspectiva de desenvolvimento humano e susten-
tável supõem a existência de políticas que levem em conta os valores balizares
da democracia e da equidade.
Uma definição possível de desenvolvimento é a que implica em uma con-
dição de bem-estar humano, garantia de liberdades individuais e respeito ao
meio ambiente que é alcançada à medida que o resultado do crescimento eco-
nômico “prioriza a melhoria das condições sociais de vida da população” (VEI-
GA, 2006, p. 82).
Quais seriam as perspectivas para o desenvolvimento nesta noção de
bem-estar humano no Brasil? É a de uma ponte para um futuro sombrio com a
política conservadora e de direita promovida por um governo ilegítimo? Uma
política que vai desde a redução e extinção de direitos e políticas públicas para
os trabalhadores do campo e da cidade até a criminalização dos movimentos
sociais que resistem aos retrocessos promovidos.
Se as diversas lutas cidadãs por saúde, educação, moradia, pelos direitos
trabalhistas eram importantes para ampliar a democracia, agora que estão
ameaçadas, são mais ainda.
As dificuldades para a organização da classe trabalhadora são enormes,
pois como já discutido acima sobre o novo espírito do capitalismo, este emper-
ra e impede a construção de um bloco contra-hegemônico no curto prazo, por
outro lado, as ideologias e políticas neoliberais tendem a acelerar os processos
de abertura das economias nacionais; privatizações; desregulamentação de
direitos, e pouca intervenção do Estado na economia e no social (SOUZA SAN-
TOS, 2005).
Nessa onda de “caos e retrocessos” o governo ilegítimo e sem voto apro-
vou e tenta aprovar, a toque de caixa, diversas reformas direcionadas para a
destruição dos direitos da população, atingindo em cheio os mais pobres do
país: redução de investimentos em políticas públicas sociais, reforma da previ-
dência, reforma trabalhista, reforma do ensino médio.

129
Com relação a Reforma do Ensino médio, esta reduz o papel de disciplinas
das Humanidades, principalmente da Sociologia e da Filosofia. Tais disciplinas
são essenciais para a vivência em uma sociedade que se pretende democrática,
para que os filhos dos trabalhadores tenham acesso à educação de qualidade,
com senso crítico que lhes permitam entender as contradições do mundo do
trabalho e atuarem enquanto cidadãos de direitos. Tal reforma, em verdade,
destrói o direito a educação de qualidade, aprofunda as desigualdades e sinali-
za para a privatização do ensino médio que precisa ser entendida no contexto
de um projeto de perversidade muito maior, o qual ficou claro, com a aprova-
ção da PEC 257 que congela os investimentos em Educação e Saúde por 20
anos. O resultado disto é o aumento das desigualdades na educação e a exclu-
são dos filhos dos trabalhadores ao acesso à educação de qualidade no nível
superior, perpetuando-se assim as desigualdades e impedindo as ascensões
sociais dos “de baixo” para os andares de cima.
Para quem domina minimamente uma análise histórico-política do Brasil,
o que estamos vivenciando não é grande novidade. Aqui existe uma herança
colonizadora, patriarcal e autoritária de resolver questões da coletividade por
meio de golpes.
Os que promoveram a ditadura civil-militar no Brasil não foram punidos
até hoje. Diferentemente de outros países da América Latina, que abriram seus
arquivos da ditadura com o intuito de punir os militares, no Brasil, tal fato
começou com a Comissão Nacional da Verdade, mas não houve o julgamento e
a condenação de nenhum dos responsáveis. É justamente por isso que setores
das classes dominantes fazem e desfazem na política e a nossa democracia tem
dificuldades imensas para se consolidar aqui. O Brasil não possui uma tradição
democrática e as classes dominantes são herdeiras de uma cultura política
autoritária e não perdem a chance de colocá-la em prática para reforçar as
assimetrias sociais.
Os desafios para a democracia no Brasil passam por pelo menos 4 proces-
sos: 1- Legitimação da instituição da presidência da República por alguém que
foi votado pela maioria dos eleitores brasileiros; 2 – Democratização dos meios
de comunicação de massa; 3- Recuperação da confiabilidade e seriedade das
instituições democráticas; 4 – Reestabelecimento do Estado democrático de
direito e das garantias presentes na Constituição Federal de 1988, com respei-
to dos direitos civis, sociais e políticos ali consolidados. Quando os que fazem
os três poderes e as instituições públicas que zelam pela democracia enfrenta-
rem corajosamente estes quatro processos elencados, teremos possivelmente
avançado enquanto uma república de fato e de estado democrático de direito.

130
Referências Bibliográficas

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______. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, Companhia
das Letras - São Paulo,1986.

BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Editora WMF
Martins Fontes, 2009.

DURKHEIM, Emile. [1897] Le suicide. Paris: PUF, 1986.

______. [1893] Da divisão do trabalho social. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999.

HARVEY, D. Do Fordismo à Acumulação Flexível. In: Condição Pós-moderna. São Paulo, Ed. Loyola:
1992.
______. O novo imperialismo. 3ª edição. São Paulo, Edições Loyola, 2009.

MARX, K. & ENGELS, F. [1848] Manifesto do Partido Comunista. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2002.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 13ª
edição, Rio de Janeiro: Record, 2006.

SOUZA SANTOS, Boaventura. Os processos da globalização. In: A globalização e as Ciências Sociais.


3ª edição, Editora Cortez, São Paulo: 2005.

VEIGA, J.E. Desenvolvimento sustentável. O desafio do Seculo XXI. São Paulo: Garamond, 2006.

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 4ª ed. Pioneira, Rio de Janeiro: 1985.

131
LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO?
REFLEXÕES A PARTIR DO CONSENSO DE
WASHINGTON 1

Everaldo da Silva2
Wellington Lima Amorim3
Marialva Moog Pinto4

1 Introdução

O liberalismo é uma doutrina político-econômica que surgiu na Europa,


no final do século XVIII, em um período de transformação visando a Liberdade,
o Progresso e o Homem. Neste processo buscava-se diminuir as desigualdades
sociais, garantir os direitos naturais individuais, e a livre aquisição da posse e
dos bens, alcançando a satisfação dos desejos e necessidades da humanidade.
Sendo o liberalismo uma doutrina que se desenvolveu em condições de gran-
des desigualdades sociais, seu fracasso ocorreu com a crise pós I Guerra Mun-
dial, quando os países europeus fracassados se submeteram a sistemas totali-
tários como o fascismo e o socialismo.
O liberalismo possui vertentes econômicas, políticas e sociais, que se tra-
duzem da seguinte forma: liberalismo econômico, que esteve muito próximo
do capitalismo; o liberalismo político rechaçava a interferência do Estado nos
direitos fundamentais como à vida, à felicidade e à liberdade; e do ponto de
vista social o liberalismo preocupou-se com os direitos humanos, apoiando
ideias como eleições democráticas, direitos civis, liberdade de imprensa, liber-
dade de religião, livre comércio e a propriedade privada, impedindo a opressão
do Estado. O neoliberalismo, por sua vez, é considerado por muitos, uma rede-
finição do liberalismo clássico. É uma forma de ver e julgar o mundo social.
Embora o neoliberalismo possa ser considerado uma continuidade do libera-
lismo clássico, sua influência e resultados se diferenciam por pertencerem a
outro espaço e tempo e está sob a influência da globalização econômica. O
neoliberalismo é a consequência natural de uma sociedade consumista, influ-
enciada por serviços e produtos de todo o mundo. Assim, o que temos hoje é

1
Texto adaptado do artigo publicado na Revista de Desenvolvimento Econômico – RDE - Ano XVIII –
V. 3 - N. 35 - Dezembro de 2016 -Salvador, BA – p. 788 – 807.
2
Cientista Social. Mestre em Desenvolvimento Regional (FURB). Doutor em Sociologia Política
(UFSC). E-mail: prof.evesilva@gmail.com
3
Filósofo. Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
4
Pedagoga. Doutora em Educação (UNISINOS/RS - Universidade de Sevilha/ES).

133
um liberalismo econômico ditado pela lógica do mercado e que em algumas
situações produzem desequilíbrio financeiro. Nestes casos, o Estado se mostra
atuante para intervir.
O Consenso de Washington (1989), formulado por economistas de ins-
tituições financeiras como FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos, com objetivo de promover o ajustamento da macroeconomia
dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades, apontou dez
regras fundamentais, como: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; re-
forma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial,
investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização
das estatais; afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas; e direito à pro-
priedade intelectual. Hoje, o Consenso de Washington apresenta-se inofensivo,
pois a abertura de fluxos de capitais internacionais foi muito além do esperado
e que poderia ser considerado prudente. Na América Latina, por exemplo, o
crescimento ficou muito aquém do esperado. Sabemos que o Consenso de Wa-
shington já não dita mais as regras citadas, porém não temos outra conjuntura
clara a seguir atualmente. Logo, urge compreender como como esta temática
influenciou as políticas liberais no Brasil, a partir das décadas de 80 e 90. Tra-
ta-se de um estudo bibliográfico que tem como objetivo discutir a influência do
Consenso de Washington na abertura do fluxo de capital nas décadas de 80 e
90 no Brasil, nos governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique
Cardoso.

2 Duas Décadas De Políticas Neoliberais

A década de 80, foi um período que se evidenciou um grande desequilíbrio


e desigualdades sociais extremas. Segundo o sociólogo Boaventura de Sousa
Santos (1994, p.19),

a década de oitenta é sem dúvida uma década para esquecer. No seu decurso,
aprofundou-se, nos países centrais, a crise do Estado-Providência que já
vinha da década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades sociais e
os processos de exclusão social (30% dos americanos estão excluídos de
qualquer esquema de segurança social) e de tal modo que estes países
assumiram algumas características que pareciam ser típicas dos países
periféricos. [...] Na década de oitenta morreram de fome em África mais
pessoas que em todas as décadas anteriores do século.

Nos anos 80, houve uma enorme crise estrutural e a dívida de vários paí-
ses, atingiu a América Latina, a Europa Central e Oriental. A supervalorização
do dólar pelos Estados Unidos, elevou as economias dos países exportadores;

134
simultaneamente ocorreu a acumulação de superávit nas economias da Ale-
manha e do Japão. Os EUA se endividaram e passaram a emitir títulos da dívida
pública em grande quantidade. Entretanto, o próprio Japão, que sempre adotou
políticas fiscais severas em contraposição a políticas monetárias fracas, alterou
sua política econômica, aplicando uma reforma monetária e financeira, obri-
gando o setor privado a financiar seu superávit comercial sem onerar o Tesou-
ro. Mesmo assim, “não interrompeu o seu processo de reestruturação que o fez
superar a crise rapidamente e tornar-se a maior potência industrial a partir de
meados dos anos 80” (TAVARES, 1992, p. 27).No final da década de 80, foram
elaboradas pelo International Institute for Economy, liderado pelo economista
John Williansom, as bases das reformas econômicas que deveriam tirar a Amé-
rica Latina da estagnação econômica (a década de 80 foi tida como a década
perdida). Estava criado neste momento, o Consenso de Washington, que foi
adotado por vários países, dentre eles o Brasil. Este movimento é considerado
como um retorno a teoria clássica do liberalismo econômico, isto porque os

[...] principais pontos da reforma constitucional impostos pelo representante


oficial do neoliberalismo no Brasil, Fernando Henrique Cardoso, numa
explícita vinculação aos ditames do chamado ‘Consenso de Washington’, que
são: ajuste fiscal; redução do tamanho do Estado; fim das restrições ao capital
externo (eliminar todo e qualquer empecilho ao capital especulativo ou vindo
do exterior); abertura do sistema financeiro (fim das restrições para que as
instituições financeiras possam atuar em igualdade de condições com as do
país); desregulamentação (redução das regras governamentais para o
funcionamento da economia); reestruturação do sistema previdenciário. A
estes pontos são contrapostos os “avanços” da Constituição de 1988 em cada
matéria correspondente, os quais, no entanto, apenas consagravam (no caso
de alguns direitos sociais) conquistas já em vigor pela ação do movimento
operário e popular quando não a simples defesa do capital monopolista
nacional ou estrangeiro instalado no país [...] (COGGIOLA; KATZ, 1995, p.
196).

Com o documento elaborado e distribuído como modelo de estrutura, os


novos liberais começaram a fomentar que, na nova década, no novo milênio, os
países que quisessem estar inseridos no conceito de países desenvolvidos de-
veriam seguir a cartilha, caso contrário, seriam alijados, jogados à própria sor-
te, mesmo que a cartilha continuasse a pregar o modelo requerido por países
capitalistas, os quais estariam em busca de um porto seguro para a aplicação
de seus capitais, voláteis ou não. Os ditames do chamado Consenso de Wa-
shington tiveram seu ponto alto de comprometimento na liberalização da atu-
ação dos setores financeiros, promovendo uma política de equidade entre os
capitais nacionais e estrangeiros, sem discriminação tributária e, principal-
mente, com o afastamento do Estado. As políticas fortes de abertura continua-

135
ram com a eliminação de restrições ao capital externo, permitindo investimen-
tos estrangeiros diretos, privatizações, promovendo a venda de empresas esta-
tais. Outro ponto marcante foi a desregulamentação, com a redução da legisla-
ção de controle nos processos econômicos do setor relacionado ao trabalho. No
plano das políticas públicas, tivemos o surgimento do período caracterizado de
neoliberalismo5 através de dois chefes de Estado: Ronald Reagan, nos EUA, e o
de Margareth Thatcher, na Inglaterra.
Cabe lembrar que é um erro conceitual denominar liberalismo de neolibe-
ralismo. E por isso, o conceito de neoliberalismo acaba por ser assumido pelo
senso comum, como o representante do livre mercado, o desmantelamento do
Estado e do bem-estar social. Aceitar este conceito é cair na falácia marxista.
Não existe neoliberalismo, mas liberalismo econômico. No decorrer desta dis-
cussão evitaremos este conceito e usaremos liberalismo, com exceção das cita-
ções, respeitando o pensamento de cada autor. Realizada esta advertência, na
década de 80, Reagan destruiu as organizações sindicais e acabou com a greve
dos controladores da navegação aérea, já Thatcher adotou políticas de liberali-
zação, de desregulamentação e de privatização, destruindo o corporativismo
dos mineiros, os trabalhadores gráficos e da imprensa, os trabalhadores dos
hospitais e os ferroviários. Pode-se denominar de liberalismo a prática políti-
co-econômica baseada nas ideias dos pensadores monetaristas, representados,
fundamentalmente, por Milton Friedman, dos EUA, e Friedrich August Von
Hayek, da Grã-Bretanha. O texto fundador deste movimento teórico e político é
a obra de Hayek, O caminho da Servidão, escrito em 1944, com o objetivo fun-
damental de atacar a ascensão do Partido Trabalhista inglês, nas vésperas da
eleição geral, quando esse partido efetivamente sairia vitorioso na Inglaterra.
Após a crise do petróleo de 1973, elesos novos liberais começaram a defender
a ideia de que o governo já não podia mais manter os pesados investimentos
que havia realizado após a II Guerra Mundial, pois agora tinham déficits públi-
cos, balanças comerciais negativas e inflação. Nesse contexto, os governos de-
veriam adotar

[...] políticas ditas neoliberais, especialmente aquelas destinadas a varrer


conquistas históricas dos trabalhadores (reajuste automático dos salários,
estabilidade de emprego, educação laica e gratuita, acesso e até existência de
um serviço público em geral etc.), constituem claramente uma tentativa de
descarregar a crise do capitalismo nas costas dos trabalhadores. As
privatizações, fechamento de empresas, bloqueios à produção, destruição dos
serviços públicos, não expressam uma ideologia determinada, mas veiculam o
método fundamental do capitalismo para sair da crise e reconstituir suas

5
Alguns autores preferem chamar de neoconservadorismo, ver Coggiola (1995).

136
margens de lucro: a destruição do potencial produtivo historicamente criado
pela sociedade, que torna evidente o conflito entre o desenvolvimento das
forças produtivas sociais e as relações de produção vigentes. Essas políticas
exprimem uma necessidade orgânica do capitalismo em período de crise
(COGGIOLA; KATZ, 1995, p. 196).

Por isso, o liberalismo é uma oposição teórica e política contra o Estado


intervencionista e de bem-estar social. O Estado não deve intervir nas ações e
reações do mercado. Um dos grandes inimigos era o conjunto formado pelo
Estado de bem-estar social e pela intervenção estatal na economia, baseado
nas teorias do economista John Maynard Keynes, que tiveram enorme influên-
cia na renovação das teorias clássicas e na reformulação da política de livre
mercado. Para Hayek, a desigualdade social era um fator positivo e necessário
para o funcionamento do capital. Um dos seus principais ideários seria o “anti-
comunismo” (GROS, 2002). Segundo Hayek, qualquer interferência no mercado
por parte do Estado representaria uma ameaça à liberdade, sendo que esta
seria “o livre jogo das forças do mercado”. Hayek declarou numa entrevista ao
jornal chileno El Mercúrio que “se tivesse que escolher entre uma economia de
livre mercado com um governo ditatorial ou uma economia com controles e
regulações, mas com um Estado democrático, escolheria sem dúvida o primei-
ro”(BORON, 1995, p. 28).É importante salientar que as transformações que
aconteceram no cenário macroeconômico mundial, a partir do final da década
de 80, têm sido denominadas de diversas formas: “mundialização financeira”
(CHESNAIS, 1997), “financeirização da riqueza” (BRAGA, 1997) ou de “tirania
financeira”(FITOUSSI, 1997). Por exemplo, para Chesnais (2004) o conceito do
liberalismo que acabou sendo adotado pelo senso comum, não levou em conta
que “capitalismo não é apenas neoliberalismo”.

[...] Falar do neoliberalismo e não do capitalismo e da propriedade privada


dos meios de produção, comunicação e troca implica aceitar a ideia de que
ainda existem, na presente configuração do capitalismo (na mundialização do
capital) possibilidades de regulação do mesmo, sem alterar a propriedade
privada e inclusive privatizando e desnacionalizando tudo quanto se tinha
exigido que fosse propriedade pública (CHESNAIS, 2004, p. 15).

Chesnais adota o termo mundialização do capital caracterizando-o como


sendo mais que uma fase no processo de internacionalização do capital. Para
ele, estamos vivendo numa fase do “bazar cultural mundializado” e do “centro
comercial mundializado”, porque

isto é certamente importante, para compreender certos aspectos da


mundialização; medir o alcance da transformação, ao longo dos anos 80, das
chamadas indústrias de “mídia” em campo importantíssimo da valorização do

137
capital (primeiro para os capitais americanos, depois para os grupos
japoneses). Ao se organizarem para produzir mercadorias cada vez mais
padronizadas, sob forma de telenovelas, filmes da nova geração
hollywoodiana, vídeos, discos e fitas musicais, e para distribuí-los em escala
planetária, explorando as novas tecnologias de telecomunicações por satélite
e por cabo, essas indústrias tiveram, ao mesmo tempo, um papel importante
em reforçar o nivelamento da cultura e, com isso, a homogeneização da
demanda a ser atendida a nível mundial (CHESNAIS, 1996, p. 40-41).

Para Chesnais (1997, p. 24), a mundialização não teve início em 1989, com
a queda do Muro de Berlim, nem em 1991, (com a decadência do regime sovié-
tico), mas dez anos antes, no limiar da década de 80, ou seja,

é aí que se situa o momento em que as forças políticas mais antissociais dos


países da OCDE iniciaram o processo de liberalização, de desregulamentação
e de privatização. Eles puderam fazê-lo explorando em benefício próprio o
refluxo iniciado pela ação de todos os dirigentes políticos e sindicais que
contribuíram para conter e moderar o potencial verdadeiramente
democrático e, por isso, anticapitalista, dos grandes movimentos sociais –
operários e estudantis – que demarcaram a década de 1968-78 na Europa,
assim como nos Estados Unidos.

O termo “mundialização do capital” é o que mais designa o quadro político


e institucional que teve início nos anos 80 e continua presente ainda hoje, só
que mais forte, sob a égide dos Estados Unidos, “de um modo de funcionamen-
to específico do capitalismo predominantemente financeiro e rentista, situado
no quadro ou no prolongamento direto do estágio do imperialismo” (CHES-
NAIS, 1997, p. 46).Destarte, o que podemos concluir da análise diferenciada
sobre o conceito de liberalismo é que a nova ordem mundial marcada pelo
regime de acumulação (predominantemente financeiro) inseriu cada vez mais
os países em fase de desenvolvimento num processo de interdependência con-
tínua dos países desenvolvidos. De qualquer forma, os ditames liberais acaba-
ram por contribuir para a expansão do mundo capitalista durante a década de
80 que, sem sombra de dúvidas, continuou sendo dos Estados Unidos, o qual
teve o período de crescimento mais longo desde o pós-guerra.

Devido à sua superioridade no domínio das finanças, assim como à


adequação de suas relações de classe mais acabada do que em qualquer outro
grande Estado, o seu sistema político e a sua filosofia social em relação às
forças fundamentais da valorização do capital, os Estados Unidos estão em
posição ideal para ditar, passo a passo, as regras do jogo da ordem capitalista
mundial, que são também as que melhor lhe convêm (CHESNAIS, 1997, p. 26).

Segundo Coutinho (apud MIRANDA, 2004, p. 45) na década de 80,

138
[...] os empréstimos internacionais e o destino do dinheiro são mais
direcionados para o movimento de especulação financeira do que para o
financiamento da produção. A principal exceção a esta tendência parece ser o
Leste Asiático, onde a expansão financeira foi acompanhada por um rápido
crescimento do comércio e da produção, pois contou com um programa de
planejamento governamental envolvendo empresários e trabalhadores.

Como condição para renegociação de dívidas assumidas junto ao Fundo


Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, vários países também tive-
ram que ajustar seus modelos econômicos aos programas liberais. Entre eles
podemos citar: a Bolívia, em 1985; o México com o governo de Salinas de Gor-
tari, em 1988; novamente a Argentina, em 1989, no governo de Carlos Menem;
na Venezuela com o governo Carlos Andrés Perez e o Peru, no governo de Al-
berto Fujimori. No Brasil, o modelo liberal teve seu início como o governo de
Fernando Collor de Mello, em 1989, seguindo-se pelo governo de Fernando
Henrique Cardoso, a partir de 1994 (MIRANDA, 2004).A partir dessa constata-
ção, verifica-se que os efeitos da mundialização do capital no Brasil tiveram
início também na década de 80, quando as indústrias brasileiras tinham alcan-
çado um alto grau de integração intersetorial e diversificação da produção. De
acordo com o Censo Industrial de 1980, os bens de capital, bens de consumo
durável e o setor automobilístico, que representavam 47,5% da produção in-
dustrial total em 1970, foram em 1980 responsáveis por 58,8% do produto
total da indústria. É importante ressaltar que em 1980, as três economias mais
desenvolvidas tinham, aproximadamente, dois terços da sua produção indus-
trial originada destes setores: 64,4% no caso dos EUA, 64,5% no Japão e 69,8%
na Alemanha Ocidental (CASSIOLATO, 1992).
No Brasil, conforme Antunes (2002), a partir da década de 80 e, princi-
palmente, nos países de capitalismo avançado, ocorreram profundas mudanças
no mundo do trabalho, tanto nas suas formas de inserção na estrutura produ-
tiva, quanto nas formas de representação sindical e política. “Foram tão inten-
sas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-
trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atingiu não só a sua mate-
rialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no íntimo
inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser”(ANTUNES,
2002, p.23, grifos do autor).
Na década de 80, o Brasil encontrava-se em total estado de subdesenvol-
vimento, com grande endividamento, tendo esgotado sua capacidade de acu-
mular capital e criar um crescimento econômico sustentado. Dentre os fatores
exógenos, podemos destacar os problemas com inflação, diminuição das reser-
vas e crescimento vertiginoso da pobreza e miséria. No final dos anos 80, o
Brasil estava numa situação em que o Estado não conseguia reverter a situação

139
em que se encontrava a organização industrial e nem fortalecer as empresas
nacionais. Nesse contexto, tivemos a impossibilidade de desenvolvimento e o
esgotamento financeiro e fiscal do Estado. A década de 80, aliás, foi a do pior
desempenho da América Latina, como mostra a tabela 1:

TABELA 1: América Latina: Evolução Histórica da Pobreza (%) - 1960 – 1999


1960 1970 1980 1990 1999

Pobreza em domicílios 51% 40% 34,70% 41,00% 35,30%

Número de pobres (milhões) - - 135,9 200,2 211,4

Porcentagem de pobres - 47% 40,50% 48,30% 43,80%


Indigência em domicílios 26% 19% 15,00% 17,70% 13,90%
Número de indigentes (mi- - - 62,4 93,4 89,4
lhões)
Porcentagem de indigentes - - 18,60% 22,50% 18,50%

Fonte: Tokman (1995). Estimação de 19 países da região; Porcentagem relativa aos pobres
inclui os indigentes.

A Tabela demonstra que a evolução da pobreza na América Latina passa


por uma clara ruptura durante os anos 80, na tendência declinante que vinha
seguindo. Segundo Estenssoro (2003, p. 138):

Depois de aumentar até 1990, a pobreza e a indigência voltaram aos


patamares próximos dos de 1980. Porém, é importante notar que este
progresso relativo não é suficiente para determinar uma redução no número
absoluto de pobres. Portanto, podemos afirmar que a evolução da pobreza e
da indigência não é compatível com o aumento continuado do PIB e do PIB
per capita na América Latina, ou seja o crescimento econômico não está
sendo revertido para quem mais precisa.

A causa mais importante para esse desequilíbrio é a desigualdade social:

O conceito de dívida social que foi usado para apontar a pobreza resultante
dos mecanismos de ajuste estrutural neoliberal dos anos 1980, pode ser
entendido na verdade como a persistência histórica de altas taxas de pobreza
na América Latina devido a uma estrutura de distribuição de renda
extremamente desigual que diz respeito ao próprio sistema capitalista da
maneira como ele se implantou nas formações sociais da periferia latino-
americana (ESTENSSORO, 2003, p.140).

No limiar da década de 80, o Brasil passou por uma interrupção do ciclo


de industrialização, ingressando na mais longa crise de desenvolvimento desde

140
1840. Por conta disso, tivemos índices baixíssimos nos avanços sociais e no
mercado de trabalho. Mattoso (1995, p. 42) caracteriza o mundo do trabalho
na década de 80 como um dos piores em termos de segurança, marcado por
uma verdadeira desordem do trabalho, havendo:

Insegurança no trabalho, visualizada no desemprego que cresce e


permanece. Este desemprego, no entanto, é distinto do existente em fases
anteriores, em suas formas (estrutural, de longa duração, afetando mais
intensamente os trabalhadores mais jovens e mais velhos, os de menor
instrução, inicialmente. Hoje o desemprego toca também os de elevada
instrução). Este desemprego pode ser entendido como parte desta desordem
do trabalho e, tal qual a ponta de um iceberg, é acompanhado de um conjunto
de crescentes inseguranças, às vezes menos visíveis mas que se tornam
crescentemente importantes;
Insegurança do emprego, identificada através da redução do emprego
industrial, de empregos estáveis ou permanentes nas empresas e da maior
subcontratação de trabalhadores temporários, em tempo determinado,
eventuais, em tempo parcial, a domicílio ou independentes, como aprendizes,
estagiários, etc.;
Insegurança da renda, resultante, por um lado, do distanciamento da
relação salário/produtividade, que favoreceu o movimento crescentemente
variável, instável ou sem garantia dos rendimentos do trabalho. Por outro
lado, a reestruturação setorial do emprego, as maiores disparidades salariais
e desigualdades entre trabalhadores permanentes e periféricos, a redução
das provisões da seguridade social e o menosprezo da tributação como
mecanismo distributivo, favoreceram a deterioração da distribuição da renda
e o crescimento da pobreza;
Insegurança da contratação, observada através do movimento tendencial
da negociação e regulação do trabalho em direção a formas mais
individualistas e promocionais em contrapartida às anteriores tendências
coletivas e de proteção. Cresceu a contratação descentralizada, especialmente
em nível de empresa, e ampliaram-se as formas de contrato por tempo
determinado, tempo parcial, e até mesmo relações de trabalho sem contrato,
o que terminou por favorecer a maior segmentação do mercado de trabalho;
e
Insegurança na representação do trabalho, medida através da acentuada
redução dos níveis de sindicalização ocorrida na década de 80 e
representando a diminuição da participação das organizações de
trabalhadores nos eventos sociais e o enfraquecimento de suas práticas de
conflito e negociação. Ampliou-se a insegurança na organização dos
trabalhadores, colocando suas representações na defensiva e, na grande
maioria dos casos, reduzindo seus níveis de sindicalização.

Além disso, durante os anos 80, assistimos a um esgotamento do modelo


de industrialização nacional, ocorrendo um fenômeno que até então não fazia
parte da agenda pública, algumas empresas estatais foram privatizadas, elimi-
nando vários postos de trabalho localizados, “paralelamente ao aumento do

141
nível de emprego no conjunto do setor público estatal” (POCHMANN, 2001, p.
27).Pochmann (2001, p. 28) afirma ainda que ao longo

da década de 1980, um conjunto de empresas ex-privadas foi reprivatizado.


Durante o governo Figueiredo, vinte empresas estatais foram transferidas ao
setor privado, como aquelas vinculadas à Riocell Celulose e Fiação e
Tecelagem Lutfala. Na segunda metade da década de 1980, no governo
Sarney, mais dezoito empresas estatais passaram ao setor privado. Entre as
empresas privatizadas, destacaram-se os casos da Aracruz Celulose, Caraíbas
Metais, Usibra, Siderurgia Cinetal e Sibra6.

Segundo Soares (2004), na publicação Finanças Públicas do Brasil, divul-


gada no final de dezembro de 2004 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística), o processo de privatização começou no governo Collor (1990 a
1992), mas a maior parte das privatizações ficou concentrada a partir de mea-
dos do primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995
a 2002) e no início do segundo. Nos anos de 1997, 1998 e 1999, o Estado dei-
xou de controlar 123 estatais, ou 75% do total de companhias vendidas. A
partir das eleições presidenciais de 1989, que elegeram Fernando Collor de
Melo como presidente, tivemos um consenso por parte dos governantes na
adoção das políticas de estabilização e reformas estruturais liberais, propostas
pelo Consenso de Washington. Dessa forma, sinalizando o esgotamento do
modelo de desenvolvimento adotado no país desde a década de 50 e apontan-
do para a necessidade urgente de um programa de ajuste macroeconômico e
de reestruturação produtiva (FIORI, 1993).

3 Governos Collor E FHC

Collor adotou e concretizou um amplo programa de “estabilização” e de


reformas institucionais de cunho liberalizante, as quais seriam adotadas poste-
riormente por novos governos. Fiori menciona as seguintes medidas, compos-
tas no programa econômico do governo de Fernando Collor: reforma adminis-
trativa, patrimonial e fiscal do Estado; renegociação da dívida externa; abertu-
ra comercial; liberação dos preços; desregulamentação salarial; e, sobretudo,
prioridade absoluta para o mercado como orientação e caminho para uma
nova integração econômica internacional e modernidade institucional (FIORI,
1993, p. 153).

6
Para melhor análise do processo de privatização brasileiro nos anos 1980, ver: Pinheiro e Landau
(1995); Werneck (1987); Resende (1980) e BNDES (1991).

142
O governo de Fernando Collor (1990-1992), intensificou o movimento de
abertura comercial e financeira, subordinando cada vez mais a política econô-
mica e monetária brasileira aos interesses do grande capital transnacional
(desmobilizando o setor público), tendo como seus legítimos representantes os
organismos financeiros internacionais como o FMI (Fundo Monetário Interna-
cional), o Banco Mundial e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
Pochmann (2001, p. 28) alerta que com isso “o Estado deixou de ser responsá-
vel direto pelo desenvolvimento socioeconômico, afastando-se rapidamente da
função de produção de bens e serviços. Em contrapartida o setor privado pas-
sou a ser o principal centro promotor da dinâmica econômica nacional”. O
governo Collor também se caracterizou por táticas de ações fulminantes, pro-
curando imobilizar o Congresso através da edição medidas provisórias, dentre
as quais destacam-se o pacote econômico que transgrediu preceitos institucio-
nais, violando garantias e direitos básicos da cidadania, por meio de medidas
de confisco de cerca de 70 a 80% do total dos ativos financeiros, dessa forma
instituindo o Plano Collor I7 que solapou sensivelmente a economia e a socie-
dade. Segundo Luiz Werneck Viana (1999, p. 14),

[...] o novo governo começa a governar a partir dos fatos consumados,


aproveitando-se das medidas provisórias que, por peripécias do destino,
ideadas para servir o parlamentarismo, concederam poder de império ao
Executivo, já por origem de exercício forte segundo as constituições
brasileiras. O chamado Plano Collor I ignora o Congresso e a correlação de
forças nele existente, e, sob o pretexto de intervir sobre a situação de
emergência da hiperinflação, apresenta, embutido em seu projeto de
saneamento econômico-financeiro, um conjunto de medidas e de intenções
com que se prepara para impor à sociedade suas reformas neoliberais.
Desnecessário lembrar que, naquelas circunstâncias, recusar o plano de
governo significava jogar o país na anarquia econômica, e daí para o caos
político sequer se precisaria de mais um passo.

Após a década perdida de 80, tivemos a década de 90 que se consagrou


por um desempenho econômico ainda pior do que o anterior, sendo que ela
trouxe consigo, após cinquenta anos de progressivo aumento no trabalho assa-
lariado e formalização das relações de trabalho, uma drástica regressão no
mercado de trabalho, com o aumento de todas as formas de desemprego, ter-
ceirização, queda dos rendimentos reais e concentração de renda, transforma-
ções ocorridas principalmente após a adoção das medidas estabelecidas pelo
“Consenso de Washington”, mas também pela implementação de um novo mo-

7
O Plano Collor estava baseado em um conjunto de medidas provisórias, submetidas à apreciação do
Congresso no dia seguinte ao da posse do presidente. Dentre as mais polêmicas destaca-se a de no. 168,
de 15 de março de 1990, convertida, sem nenhuma modificação, na Lei n o. 8.024.

143
delo econômico (em vez da defesa da produção e do emprego nacional, bus-
cou-se a promoção da integração do sistema produtivo nacional à economia
mundial), que teve como alicerce o desmonte do Estado ao longo dos anos 90.
No entanto, a abertura do mercado ao capital estrangeiro teve maior cres-
cimento ao longo do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso
(1994-2002), que reforçou a implementação de programas liberais no Brasil.
Como prioridade na sua política econômica, o programa de estabilização mo-
netária foi assegurado pelo crescente investimento de capitais externos e pela
sobrevalorização cambial. O chamado “Plano Real”, implantado aos poucos
desde 19938, intensificou as medidas de ajuste fiscal, liberalização financeira,
privatização e abertura comercial. Em março de 1995, desencadeia-se uma
crise bancária, tendo sido adotadas políticas estatais em benefício do grande
capital financeiro. Um conjunto de medidas foi adotado para segurar a fuga de
capitais e, de certa forma, salvar o Plano Real. Nesse período, tivemos o início
de um movimento recessivo na economia, com uma violenta restrição ao crédi-
to e aumento da taxa de juros, gerando uma queda da atividade produtiva e
dos níveis de emprego. Singer (1999, p. 34), enfatiza que o desafio brasileiro, a
partir da crise de 1995, deixava de ser a inflação. Em grande medida, tais modi-
ficações já começaram a ser adotadas no decorrer da década de 80 e, mais
intensamente, na década de 90, quando os princípios e programas de ação
liberais dominam mais intensamente nos países considerados de economia
periférica. Tavares (1995) analisa as políticas de ajuste recomendadas pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI) para os países periféricos:

Durante a década de 80 os países periféricos foram obrigados a praticar


políticas de ajuste destinadas à geração de superávits comerciais para pagar
o serviço da dívida externa. Depois de 90, os países da periferia são obrigados
a inverter sua política cambial e a aceitar a absorção de recursos externos de
curto prazo, em resposta ao excesso de liquidez que se esparramava pelo
mundo. A consequência mais importante deste movimento foi, para os países
da periferia, transformá-los de exportadores líquidos de recursos em
absorvedores forçados de ‘poupança externa’, qualquer que fosse a sua
situação de balanço de pagamentos ou a sua capacidade real de absorção de
investimento. Em nome da liberdade de mercado, impôs-se à América Latina
uma desregulamentação financeira e cambial e uma abertura comercial
indiscriminada (TAVARES, 1995, p. 2-4).

8
A implantação do Plano Real teve origem no (PAI) Programa de Ação Imediata, adotado em junho de
1993, tentando-se obter equilíbrio nas contas públicas. Ocorre a introdução da URV (Unidade Real de
Valor) como referência de um padrão estável de valor em fevereiro de 1994 e a criação da nova unidade
do sistema monetário nacional: o real, a partir de junho de 1994.

144
Deve-se levar em conta que os princípios e programas de ação liberais
ocorreram intrinsecamente com a mudança operada no modo de produção
capitalista, da passagem do fordismo-keynesianismo à acumulação flexível,
com o predomínio do capital financeiro transnacional. Para Harvey o Estado

É chamado a regular as atividades do capital corporativo no interesse da


nação e é forçado, ao mesmo tempo, também no interesse nacional, a criar
um ‘bom clima de negócios’, para atrair o capital financeiro transnacional e
global e conter (por meios distintos dos controles de câmbio) a fuga de
capital para pastagens mais verdes e lucrativas (HARVEY, 1994, p.160).

Para Liliana Segnini (1998), a década de 90 foi marcada por importantes


fenômenos sociais, entre os três principais destaca: a) Intenso desemprego,
como consequência de práticas de gestão relativas à flexibilização funcional do
trabalho, redução de níveis hierárquicos e política tecnológica direcionada
para a diminuição de postos de trabalho e o aumento da produtividade; b)
Terceirização e precarização do trabalho, como estratégia de redução de cus-
tos e elevação da produtividade, expressa em condições de trabalho caracteri-
zadas por jornadas laborais mais longas, salários relativamente inferiores e
maior intensificação do trabalho, quando comparadas às condições regular-
mente contratadas nos bancos; c) Intensificação do trabalho, em decorrência
da fusão de postos de trabalho e redução de níveis hierárquicos, de um lado, e
de outro, das políticas de gestão e controle do trabalho, que visam a “maximi-
zação dos resultados”.
Logo, cabe indagar: deve-se ter medo do livre mercado? O que é isto o li-
vre mercado? Não podemos nos precipitar em uma resposta rápida e/ou irres-
ponsável. Para analisar eventos significativos como o Consenso de Washington,
temos que estar abertos para aceitar que nada é completamente nocivo ou
completamente benéfico, e que todas as decisões possuem relações de poder e
por isso encontram aceitação ou recusa por parte dos interessados, sejam eles,
órgãos, agências ou sujeitos. Não podemos ser ingênuos e pensar que o Con-
senso referido é exclusivamente a favor do mercado, nem o equívoco sobre sua
influência também na ordem econômica. O que realmente propôs o Consenso
de Washington? Uma restruturação do conceito de Estado, onde a eficiência
deve ser o mote dos governos quando nos referimos a Economia. Atualmente,
pode-se afirmar que as economias são mistas, onde alguns pressupostos do
livre mercado se misturam com a planificação da economia.
Na verdade os participantes do Consenso de Washington defendiam um
certo grau de planificação econômica, em nome de uma certa eficiência, che-
gando a defender algum grau monopolista. Esta corrente de pensamento está

145
em oposição ao livre mercado, que defende a mínima intervenção do Estado,
sendo este praticamente desnecessário, garantindo a livre associação entre os
indivíduos. O Consenso de Washington propôs uma reforma da velha noção de
Estado, e não pode ser considerado como uma política realmente liberal que
favoreceu o livre mercado, buscando um equilíbrio das contas públicas, priva-
tizações, algum nível de desregulamentação, reforma tributária e previdenciá-
ria. Mas ainda se obedece a lógica de controle do mercado. Se estivesse defen-
dendo o livre mercado, tudo que fosse estatal, desde a Educação, Saúde e Segu-
rança Pública, seria privatizado.
O que há em comum entre o livre mercado e o Consenso de Washington, é
a defesa da propriedade privada e uma economia aberta ao capital estrangeiro.
Apenas isto. Os ex-presidentes Collor e o FHC foram reformistas, novos inter-
vencionistas, que adotaram a cartilha do Consenso de Washington. Entretanto,
não são totalmente liberais e pró-mercado, porque também aumentaram im-
postos, aumentaram gastos públicos, criaram agências reguladoras e poucas
empresas foram realmente privatizadas, bem como procuraram controlar o
câmbio, com os juros altíssimos. Assim, é mister lembrar que oEstado brasilei-
ro continuou sendo no governo do FHC e posteriormente com o de Lula e Dil-
ma intervencionista, longe de ser realmente totalmente liberal e pró-mercado.

Considerações Finais

O estudo orienta para o fato de que os governos Collor e FHC, se desenvol-


veram ocorreram sob a influência do Consensode Washington. Lembramos que
a ideologia de produzir muitos bens de consumo e promover sistemas de valo-
res de mercado livre no planeta predominou por várias décadas, conforme
sustentava o Consenso de Washington, termo criado em 1990 por John Willi-
amson, do Instituto de Economia Internacional. Este consenso se tornou a
ideologia oficial da nova ordem mundial. Para essa doutrina, é fundamental
que capital, bens e serviços percorram facilmente por fronteiras ao redor do
mundo e, a certeza de que os interesses de capital estão acima dos direitos dos
cidadãos.
O Brasil estava em um momento econômico difícil nos anos 80 e 90, assim
como muitos países, em especial da América Latina, e não poderia deixar de
partilhar as determinações do Consenso de Washington que tinha como pres-
suposto auxiliar os países em desenvolvimento com seus problemas internos.
Sendo assim, a proposta de abertura do livre mercado, surge como uma alter-
nativa para os países ampliarem sua economia e ter acesso aos produtos mun-
diais que não são produzidos internamente.

146
Enfim, como reflexão final vale lembrar que temos o desejo de construir
uma sociedade mais justa, mais democrática e moderna, mas, por causa da
atual situação em que se encontra nosso país, desigualdade social e subordina-
ção aos grandes grupos econômicos estrangeiros, nos esquecemos muitas ve-
zes desse objetivo. Nas décadas de 80 e 90 percorremos o sentido contrário,
pois aumentamos o índice de desigualdade, e a nossa dependência aos países
estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos. Como disse o mestre Celso
Furtado, “Nunca foi tão grande à distância entre o que somos e o que podería-
mos ser”.

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148
ANARCOCAPITALISMO E LIBERDADE
Wellington Lima Amorim1
Matheus Raposo2
Everaldo da Silva3

Introdução

Mesmo com a derrota do Brasil para a Alemanha na última Copa do Mun-


do, os partidos políticos, os sindicatos, passando pela Central Única dos Traba-
lhadores - CUT e Movimento dos Sem-Terra - MST, partindo para os Centros
Acadêmicos - CA’s de Ciências Humanas, Diretório Central dos Estudantes -
DCE’s, União da Juventude Socialista - UJS, União Nacional dos Estudantes -
UNE, chegando às salas de aulas do ensino fundamental ao superior, porquan-
to, a pergunta inicial é: afinal, por que um jogador de futebol ganha mais que
um professor? Quem nunca viu aquele professor de História – que dirige um
carro popular sem ar-condicionado – chegando suado em sala de aula em plena
segunda-feira, pós-rodada do Brasileirão, indignado com a importância que os
alunos dão a “22 homens correndo atrás de uma bola” e seu descaso com a aula?
Muitas vezes por comodidade os atores citados acima tentam achar um culpa-
do para a desvalorização da “classe”, e é aí que entra em cena o vilão do capita-
lismo. Questionar as verdadeiras razões que fazem um jogador de futebol ga-
nhar consideravelmente mais que um professor é desnecessário para muitas
pessoas. Mas esse é o nosso papel, bem como buscar reconhecer como isto
pode ocorrer.
Qual é o maior objetivo que o humano pode buscar em qualquer tempo e
espaço? A liberdade e tudo o que ela possa fornecer seja a capacidade de esco-
lha, a fruição de um prazer estético, luxo, riqueza, mobilidade etc., em resumo:
abundância e justiça. No entanto, existem dois caminhos possíveis que buscam
atingir esse objetivo, mas que se opõem na História do Pensamento humano. O
primeiro caminho é obscuro, centralizador, domesticador de nossas pulsões e

1
Filósofo. Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail:
wellington.amorim@gmail.com
2
Graduando em Economia na Universidade de Brasília (UNB). E-mail: matheusmaraposo@gmail.com
3
Cientista Social. Mestre em Desenvolvimento Regional (FURB). Doutor em Sociologia Política
(UFSC). Professor e Pesquisador dos Programas de Mestrado Profissional em Educação Básica e Aca-
dêmico Interdisciplinar em Desenvolvimento e Sociedade da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe –
PPG-UNIARP. E-mail: prof.evesilva@gmail.com

149
que tem por base a organização, disciplinamento e hierarquização, com pro-
pensões ao totalitarismo. O segundo caminho busca não uma sociedade perfei-
ta, mas de perfeita liberdade, sem restrições ou servidão. Toda teoria econômi-
ca e política que defenda a centralização veem na liberdade um mal, não sendo
um bem em si mesmo. No entanto é importante lembrar:

Vocês não podem, portanto, sem serem culpados de um grosseiro


anacronismo, culpar a liberdade pelos males que afligiam as classes
trabalhadoras antes de [1889]; é com maior justiça que vocês os imputam
àqueles que subjugaram os trabalhadores desde então? 4

Para que haja liberdade é preciso compreender que a Sociedade não é um


Leviatã, um grande monstro artificial criado para garantir nossa segurança e
exige que cada indivíduo abra mão de sua liberdade. Este último seria o Estado
e não a Sociedade. Por isso, não podemos confundir Sociedade e Estado. A So-
ciedade é natural, o Estado é artificial. Ressaltamos que viver em Sociedade é
um desejo e impulso humano, como de qualquer animal existente na natureza.
E porque ela existe? Para satisfazer nossa vontade de poder. E para que isto
ocorra é necessário transmutar todos os valores: quando se “alcança o máximo
de sua força relativa como força violenta de destruição: como niilismo ativo”
(NIETZSCHE, 2008. p. 3). Isso ocorre, porque sua felicidade está intrinseca-
mente ligada à sua vontade de potência e na satisfação de suas necessidades.
Quando isso não é possível o homem adoece, sofre. Sendo ele capaz de se asso-
ciar em diversos tipos de relações compatíveis entre si, sendo natural a busca
pela comunicabilidade com o outro para que possa satisfazer suas necessida-
des, pulsões ou desejos. Mas, ao mesmo tempo em que o homem deseja reali-
zar sua potência, ele também quer e deseja a segurança. Logo, seriam necessá-
rias algumas condições: como apenas consumir o que foi produzido por sua
força de trabalho, não praticar a fraude, malícia, violência e mentira, esta últi-
ma um dos maiores problemas de nossa sociedade.

4
Gustave de Molinari (1819-1912) foi um economista belga associado à escola liberal francesa, conside-
rado por Frédéric Bastiat como o continuador de seus trabalhos, e provavelmente o primeiro autor anar-
cocapitalista. De 1871 a 1876, editou o Journal des Debats e, de 1881 a 1909, o Journal des Économis-
tes. Nota: Este artigo foi originalmente publicado anonimamente. Molinari reconheceu sua autoria em
seu livro de 1899, La Société Future, onde escreveu: "Esse apelo, o qual incidentalmente carrega a marca
da inocência confiante da juventude, foi, como os eventos demonstraram, totalmente prematuro. Ele não
foi ouvido, mas deve-se permitir ter esperança de que ele seja ouvido algum dia e que o socialismo,
contribuindo aos economistas suas forças contingentes, os ajudará a superar a resistência daqueles inte-
resses egoístas e cegos que se colocam além da necessária transformação da organização política e
econômica que cessaram de ser adaptadas às condições da existência presentes das sociedades." Para
maiores informações ver: MOLINARI, Gustave de. A utopia da liberdade: carta aos socialistas. 1848.
Tradução de Erick Vasconcelos.

150
O ato de mentir sempre foi considerado como um instrumento necessário
e legal, não apenas na profissão de político ou de demagogo, mas inclusive na
do homem de Estado. Se buscarmos a ação política em termos de meios e de
fins, podemos concluir, paradoxalmente, que a mentira pode muito bem servir
para instalar ou salvaguardar as condições da procura da verdade, ou como
assinalou Hobbes, que "nunca notou que toda a procura da verdade se destrui-
ria ela própria se as suas condições só podem ser garantidas através de menti-
ras deliberadas". Então, certamente, toda gente poderia revelar-se mentiroso.
Nesse sentido, as mentiras são utilizadas como substitutos, e também podemos
considerá-las como inofensivas em relação ao arsenal da ação social. A mentira
organizada, tal como hoje a conhecemos, pode ser uma arma apropriada contra
a verdade. Em Platão aquele que diz a verdade põe sua vida em risco, em
Hobbes, é ameaçado de ver os seus livros lançados à fogueira; a mentira pura e
simples não se torna um problema. A oposição entre a verdade e a opinião foi
prolongada por Platão num antagonismo entre a comunicação em forma de
“diálogo”, sendo um discurso da verdade filosófica, a comunicação em forma da
“retórica”, tendo o demagogo, como nos dias atuais, o poder de persuadir as
pessoas.
O mentiroso é um homem de ação, é aquele que diz a verdade, seja ela, ra-
cional ou científica, nunca o é. Se o portador da verdade de fato quiser desem-
penhar um papel político, e ser persuasivo, irá quase sempre buscar caminhos
e desvios para explicar por que é que a sua verdade "serve melhor os interes-
ses de qualquer grupo". As mentiras modernas são tão grandes que exigem um
completo rearranjo de todo o tecido factual - a construção de outra realidade.
Quanto mais o mentiroso tem êxito, mais parece verdade que ele mesmo seja
vítima das suas próprias invenções.
Para Hannah Arendt (2000. p. 315), a possibilidade da mentira completa e
definitiva, é o perigo que nasce da "manipulação moderna dos fatos". Nessa
perspectiva, podemos notar que o Governo se utiliza de todo poder que dispõe
para enganar as pessoas; e aqueles que dizem a verdade de fato geralmente
passam a ser considerados os perigosos, mais hostis, que os verdadeiros peri-
gosos. Sejamos realistas, seria necessário que todos tivessem o senso de justiça
como condição natural. Como isso não ocorre naturalmente sempre se justifica
a necessidade de existir o grande Leviatã: o Estado hobbesiano. Afinal o senso
de justiça nos parece muito mal distribuído entre os indivíduos. Qual seria
então a melhor alternativa? Criar um monstro artificial e abrir mão da minha
liberdade para ter a garantia da segurança? Ou encontrar alguém que possa
garantir a minha segurança tendo como referência a livre concorrência e a
competição com o menor preço possível?

151
Qual é o problema de transferir para a propriedade privada, garantindo a
livre competição, a segurança dos cidadãos? Qual a garantia de que o indivíduo
não terá senso de justiça com uma arma na mão ou o direito de pagar por sua
segurança? Existem dois conceitos que acabam com qualquer forma de liber-
dade: o monopólio e o comunismo. Qual o custo para o cidadão da segurança
estar nas mãos do Estado? E eficiente, com o menor preço possível? Então
porque o Estado monopoliza a indústria da segurança não garantindo a livre
competição? Por isso, mesmo levando em consideração as perguntas anterio-
res, o que devemos perguntar primeiro é de onde parte o valor? Ou seja, a par-
tir de qual parâmetro as pessoas delimitam aquilo que lhes é mais importante.

Utilidade Marginal Do Capitalismo

Adam Smith foi um dos primeiros a tentar explicar o fenômeno da valora-


ção por meio da Teoria do Valor Trabalho. Sua teoria delimitava que todo valor
partia do trabalho empregado para a produção daquele determinado bem. Foi
a partir dela que Marx desenvolveu o conceito de mais-valia. Entretanto, a
Teoria do Valor Trabalho se mostrou totalmente equivocada frente à Revolu-
ção Marginalista encabeçada por Menger, Böhm-Bawerk, Jevons e Walras que
teorizaram – praticamente ao mesmo tempo, embora de forma separada –
a Teoria da Utilidade Marginal. Em contraposição à Teoria do Valor Trabalho, a
Teoria da Utilidade Marginal dizia que o valor não é algo intrínseco a cada bem
ou serviço no mercado, pelo contrário: o valor de um bem é algo extremamente
subjetivo, ou seja, a valoração de qualquer bem parte do agente de mercado (o
indivíduo) para o bem em uma compilação de utilidade (a importância subjeti-
va que o indivíduo tem pelo bem) e sua escassez.
A Teoria da Utilidade Marginal mostrou que o valor de qualquer bem res-
ponde aos estímulos da compilação entre utilidade e escassez, assim, se o agen-
te de mercado tem um critério subjetivo para uma dada quantidade de bens
aos quais ele considera útil - por exemplo, ele valora que 1 kg de carne vale R$
10,00 e se a quantidade desse produto no mercado aumentar, a escassez de tal
bem diminuiu – o valor daquele bem tende a diminuir, pois se aumentou a
oferta. Enquanto, se a utilidade daquele bem aumentar – por exemplo, se sair
uma pesquisa onde comer uma quantidade maior de carne é melhor para a
saúde, o valor, ou em outros termos, o preço daquele bem tenderá a aumentar
já que se aumentou a procura.
A Teoria da Utilidade Marginal mostra também que o trabalho em nada in-
fluencia o valor final do bem produzido. É comum vermos lojas à beira da fa-
lência vender seus produtos abaixo do preço de custo. A loja tomou essa deci-

152
são baseada em seus incentivos: era mais vantajoso para ela, por exemplo,
reduzir suas dívidas. Assim, a utilidade de um bem presente se mostrou maior
do que vender os produtos no futuro. Um buraco escavado no meio de um
auditório demora o mesmo tempo e requer o mesmo trabalho para se produzir
a mesa na qual palestrantes e professores discursarão, e nem por isso os dois
bens terão o mesmo valor. O primeiro tem um valor puramente negativo, des-
trutivo, e o segundo detém utilidade a ser apreciada pela maioria das pessoas.
A caça de uma cervo e um gambá requerem o mesmo trabalho, porém a carne
do gambá, na visão de muitos, não é tão suculenta quanto a da cervo. O sushi é
outro bom exemplo cotidiano para demonstrar a subjetividade dos bens no
mercado. Pagamos R$ 60,00 num rodízio de sushi, felizes da vida, enquanto
existem pessoas que nem recebendo comeriam peixe cru. Ou seja, existem
aqueles que veem utilidade em comer peixe cru enrolado em arroz, enquanto
outros não veem nenhuma utilidade nisso. Já deve ter ficado implícito ao leitor
que a valoração dos bens se manifesta no mercado por meio dos preços.
Logo, bens que tem alta utilidade para muitos e apresentam alta escassez
tendem a ter um valor maior, ou seja, um preço mais alto em relação a outros
bens. Frederick Hayek foi um dos pensadores econômicos que melhor soube
explicar a necessidade dos preços no processo de mercado como condutor de
conhecimento. Para Hayek (1937. p. 795) são os preços de mercado que indi-
cam aos capitalistas quais bens a sociedade deseja consumir. Quando um bem
se torna mais escasso, seu valor tende a aumentar. O aumento de preços em
determinado mercado é o sinal para os capitalistas moverem seus investimen-
tos para aquele mercado. O contrário, a redução de preços é sinal para os capi-
talistas retirarem seus investimentos daquele mercado. Os preços são os ele-
mentos que possibilitam coordenação na atividade empresarial 5 e que expri-
mem o preço real de um bem para a sociedade. Por isso, que Rorty (1991, p.17)
está convencido que o ironista liberal tem como função intelectual preserva e
defender o liberalismo, dessa forma, aumentando a sua capacidade de perce-
ber as diferenças a sua volta, os indivíduos ou as comunidades, como pensam e
como fantasiam suas vidas (RORTY, 1991). Ele é alguém que acredita nas

Gradativas reformas que fazem avançar a justiça econômica e aumentam as


liberdades que os cidadãos estão habilitados a apreciar. O imperativo-chave
na agenda política de Rorty é o aprofundamento e alargamento da
solidariedade. Rorty é cético em relação ao radicalismo, ao pensamento

5
A abertura de uma empresa está diretamente ligada a duas grandes e vitais necessidades humanas, a da
sobrevivência e a de provar que é capaz, para si próprio e para a sociedade. No caso brasileiro, do surgi-
mento, ao crescimento e a permanência no mercado de uma empresa é algo muito penoso, pois com
pouco ou mesmo nenhum recurso financeiro, os negócios são estimulados pela vontade do empreendedor
em vencer e conquistar o seu espaço no mercado.

153
político que visa revelar as obscuras e sistemáticas causas da injustiça e
exploração e que, tendo isso por base, propõe mudanças de vasto alcance aos
conjuntos de coisas e direitos. O liberalismo reformista com seu
compromisso com a expansão das liberdades democráticas em
solidariedades políticas sempre mais abrangentes é, na visão de Rorty, uma
contingência histórica que não tem e não necessita de nenhuma fundação
filosófica. Reconhecer a contingência desses valores e do vocabulário no qual
eles são expressos, enquanto conservando os compromissos, é a atitude do
ironista liberal (RORTY, 1991, p.17).

Assim, como em diversas passagens de polêmica política, Rorty afirma que


os ironistas liberais têm a capacidade de harmonizar a “consciência da contin-
gência”, recontando histórias, redescrevendo (ao invés de argumentos) a vida
de acordo com os moldes que emergem de uma utopia, tendo o compromisso
de diminuir o sofrimento, combatendo a crueldade humana. Nesse sentido, a
contingência ganha um papel primordial como elemento da ação política, con-
trariando “toda tentativa de domar o futuro a partir de certezas que a teoria
supostamente escavaria no passado” (GHIRALDELLI JR, 2001, p. 33). Contrari-
ando qualquer pensamento teórico favorável a alguma comparação equivocada
de pensar em termos de “direita ou esquerda”, do ponto de vista de Rorty de-
vemos ser liberais no sentido de não sermos reacionários, mas sim, sermos nós
mesmos, partindo das nossas descrições do mundo e de nós mesmos. Ou seja,
Rorty acredita, então,

Que escapamos da condição rousseauísta, de que somos bons “por natureza”,


e escapamos também da condição atribuída por Sade, de que a própria
“natureza” é destruidora. Não tendo mais nenhuma noção de natureza de
caráter essencialista, finalmente podemos usar nosso comportamento
linguístico livremente. (GHIRALDELLI JR, 2001, p. 34).

O que o pragmatismo de Rorty deseja é que nos libertemos da visão ilumi-


nista mistificada como era Deus anteriormente. Ou seja, necessitamos ver a
prática política como sendo a não tentativa de legitimá-la teoricamente, de-
vendo haver um contínuo desencantamento do mundo, que surgiu com o limi-
ar da modernidade. Justamente por concordar que todos somos iguais, acredi-
tarmos em algo e portadores da razão que Rorty afirma que uma sociedade
melhor, mais democrática, somente ocorrerá a partir do momento que come-
çarmos a nos redescrever (nosso comportamento social, nosso agir, etc.) A
redescrição do sujeito passa por dois movimentos. O primeiro,

É de recontar histórias nas quais os indivíduos estão inseridos, de modo que


eles, percebendo-se como partícipes da construção de uma história coletiva
pregressa, qualifiquem a si próprios como membros da comunidade moral

154
presente, resultante dessa história. O segundo movimento é a mudança do
próprio vocabulário pelo qual são expressas as experiências vividas,
individuais e coletivas, passadas e presentes. Já que as mudanças se dão por
relações conversacionais, isto é, por interação linguística [...]. (GHIRALDELLI
JR, 2001, p. 39).

Logo, a perplexidade exige de nós uma análise, a qual se volta naturalmen-


te para um dos maiores sistemas de estruturação socioeconômica que a histó-
ria vem experimentando nos últimos 170 ou 200 anos: o capitalismo. A valora-
ção de todas as coisas dentro da ação humana é uma compilação ente utilidade
e escassez julgada pela subjetividade individual. Mises dizia que o mercado é a
democracia dos consumidores. Quando escolho beber Coca-Cola em vez de
Pepsi, estou dando um incentivo, oferecendo meu voto, dando recursos, pas-
sando conhecimento da minha escolha para que a Coca-Cola se desenvolva
mais que a Pepsi. Por esse mister, essas empresas dependem do meu dinheiro,
da minha satisfação, do meu voto para existirem. Quem paga o salário dos jo-
gadores de futebol? Ora, os clubes de futebol. E de onde os clubes de futebol
retiram seus recursos para pagarem os jogadores? Dos patrocinadores e das
premiações dos torneios dos quais eles participam, além de uma pequena par-
cela dos programas de sócio-torcedor. De onde os torneios tiram dinheiro para
pagar os clubes? Dos patrocinadores, anunciantes, canais de TV.
Vejam que o mercado de futebol, assim como qualquer outro da área de
entretenimento, gira em torno das verbas publicitárias dos patrocinadores e
anunciantes. Por que isso ocorre? Simplesmente porque muitas pessoas assis-
tem futebol, valorizando apaixonadamente seus clubes. Um mercado com mui-
to dinheiro, onde cartolas concorrem cada vez mais por jogadores, força o au-
mento salarial. É a velha lei da oferta e demanda. E isso explica os cachês mili-
onários no mundo do futebol. Os melhores jogadores – como Neymar, Messi e
Cristiano Ronaldo – têm um talento de utilidade marginal muito alta, ou seja, a
importância e a escassez desses jogadores são muito altas, com isso seus salá-
rios são ainda maiores do que aqueles pagos aos jogadores normais. Já os po-
bres professores exercem uma profissão de baixa utilidade marginal para as
pessoas.
A quantidade de Neymars que existem no mundo é muito menor do que a
de professores de matemática. Logo a valoração dos professores é bem menor
que a dos jogadores de futebol. Ter um talento como o de Neymar ou de Messi
é algo muito mais difícil de ter, do que ter um diploma de Licenciatura em Le-
tras ou Matemática em alguma Universidade. Acredite: a maioria dos jogadores
por aí são uns pernas de pau. E nós também não estamos aqui desmerecendo a
profissão docente. Entretanto ela não é tão escassa quanto o talento desses

155
jogadores - daí se deriva a menor valoração de seus serviços. A culpa é mesmo
do capitalismo? Desse monstro chamado neoliberalismo? Só se for pelo fato de,
nesses sistemas, existirem um regime livre de preços que indicam os reais
valores dos serviços, onde o consumidor é soberano, onde sua liberdade de
escolha define o que realmente importa para você: segurança ou liberdade?
Educação ou o jogo do Brasileirão? Se existem culpados por um jogador de
futebol ganhar mais que um professor são as pessoas que assistem todos os
domingos à tarde o Brasileirão. Se você não tem segurança, a culpa é sua por
deixar que o Estado monopolize tal atividade. Ou seja, eu, você, seu vizinho, o
professor, somos os culpados.
As pessoas trabalham para ter liberdade de gastar seus salários da forma
que lhes convir. Não é injusto uma pessoa valorizar de maneira distinta dois
serviços ou bens distintos - isso é fruto da forma como aquele indivíduo resol-
veu valorar as coisas a sua volta. O mercado de futebol, repetindo, atrai muito
dinheiro pelo interesse das pessoas no assunto. O mercado simplesmente se-
gue as preferências dos indivíduos – nesse caso, assistir futebol. Perguntamos,
então, ao leitor aonde está a injustiça em um sistema que tenta atender as pre-
ferências de seus indivíduos? Em países onde o futebol não é o esporte número
um, seus clubes não usufruem do mesmo privilégio e do mesmo interesse da
população. Por sequência, seus jogadores não recebem salários astronômicos.
E aqui mesmo no Brasil, jogadores de séries inferiores, muitas vezes recebem
menos que um professor de uma escola pública. Isto é: 82% dos jogadores de
futebol no Brasil recebem até dois salários mínimos. Qual a injustiça disso? É o
preço que eles têm no mercado – que também pode ser lido como o preço que
eles têm para a Sociedade.
A mesma coisa acontece com os professores. Para o bem ou para mal – a
culpa não é do sistema. Muitos professores poderiam afirmar: deveríamos,
então, planejar uma Educação que desenvolvesse nos educandos a capacidade
de realizar boas escolhas. O que é isto, uma boa escolha? Boa escolha para
quem? Para o indivíduo, professor ou para a Sociedade? Esta Educação não
seria mais uma forma de domesticação de nossos desejos e pulsões? Estamos
em um impasse. Esta reflexão nos leva a seguinte indagação: é possível conce-
ber uma Sociedade onde tudo pudesse ser objeto de troca, na livre competição
entre os indivíduos, seja a Educação, Segurança ou Saúde?

Por que ser um liberal conservador no brasil?

A resposta a esta questão deveria ser simples: a defesa do direito indivi-


dual. Todos deveriam ter o direito a escolher a forma, o modelo ou estilo de

156
vida que achassem conveniente para garantir a vida boa, sem qualquer interfe-
rência, seja do Estado ou da religião. Quem melhor expressou esse desejo natu-
ral do indivíduo foi Hegel, na Fenomenologia do Espírito (1992, p. 163). Nin-
guém tem o direito ou dever de corrigir a conduta do outro, mas deve respeitar
a escolha individual de cada um.
O que quer o conservador? A garantia da liberdade individual, daí existir
uma relação complementar com a política liberal 6. Hegel parte do que há de
mais profundo no homem: a formação da subjetividade. Ou melhor, o espirito
se desenvolve em busca do seu reconhecimento. O homem nasce na sua mais
natural irracionalidade e se constitui como sujeito através da cultura e da civi-
lização. Esse processo de aventurar-se, mesmo diante dos conflitos que podem
ser gerados diante do Outro, é o que podemos chamar de liberdade, onde o
homem é capaz de reconhecer o outro e ser reconhecido, adquirindo a liberda-
de de agir.
E como isto se dá? Na livre associação entre os indivíduos, em seus diver-
sos e plurais interesses mútuos. Não existe Estado, ou qualquer instituição sem
um pré-acordo, onde diante dos mais diversos interesses, construímos nossas
redes de solidariedade, carregadas de sentidos e valores, costumes ou culturas,
que irão compor o tecido social. No Brasil essa tarefa ainda está em aberto. Nos
constituímos primeiramente como uma organização hierárquica de herança
colonial portuguesa, centralista e patrimonialista. Somos herdeiros de uma
aristocracia decadente, improdutiva e predatória. Por outro lado, a formação
cristã, de origem católica nos fez assumir uma posição niilista e passiva. Ou-
trossim, com a introdução do pensamento socialista/marxista, o pensamento
do cristianismo se aliou a massa acéfala de alguns déspotas socialistas. Existe
uma linha vermelha entre o catolicismo profano e o materialismo do marxismo
panfletário7.

6
As primeiras grandes empresas brasileiras surgiram nas últimas décadas do século XIX, principalmente
nos setores de bens de consumo não-duráveis, até então financiadas pelos capitais privados nacionais. Na
primeira metade do século XX, teve início o projeto de desenvolvimento através da substituição de
importações. Assim surgiram as primeiras empresas de controle estatal e o capital estrangeiro investiu
nos setores mais importantes da indústria, por exemplo, no setor de bens duráveis.
7
De fato, não se pode negar essa linha, uma vez que o Marxismo não passa de uma “religião sem pa-
dres”. Contudo, é preciso que se reflita que entre o Cristianismo e o Marxismo mais ortodoxo há um
mundo de diferenças, começando pela sofisticação intelectual do Cristianismo (que é toda ela devido ao
pensamento grego [nesse sentido, ver, entre outros, JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo y paidéia
griega. México: Fondo de Cultura Económica, 1965]) e o caráter transcendente dessa doutrina. O que o
Cristianismo pregava existir no “Reino dos Céus”, o Marxismo jurou que podia existir no “Reino desse
mundo”. Esse Paraíso sem Deus foi um dos grandes erros das teorias socialistas e teve como consequên-
cia toda sorte de tirania. No Brasil, por exemplo, se é verdade que o Cristianismo, através da Companhia
de Jesus, não permitiu maiores voos intelectuais, de outra parte impediu que a teoria socialista se desen-
volvesse definitivamente entre nós, uma vez que grande parte daquilo que se poderia chamar “conserva-
dorismo brasileiro” vem de sermos um país fortemente cristão. Esse tipo de reflexão acerca da validade

157
É importante destacar que o capitalismo teve origem no feudalismo, com a
divisão de classes formada pela nobreza; clero e o povo8. A nobreza tinha co-
mo meio de vida a renda obtida através do aluguel de suas terras. Era utilizado
como pagamento o produto, sendo que a maior parte deste pertencia ao dono
da terra. O clero continuava como aliado da nobreza, utilizando métodos astu-
ciosos de convencimento para legitimar o poder dos reis, em troca a realeza
mantinha a igreja, e colocava seus exércitos a serviço do papa. O povo era for-
mado também por cidadãos livres, que moravam em vilarejos, nas pequenas
cidades, chamadas de burgos. Sendo explorados pelos nobres, os burgueses
foram os primeiros a contestar esse direito concedido à nobreza. Na medida
em que os burgos cresciam, o poder da nobreza esvaziava-se.
Com o crescimento desses vilarejos, controlados pelos burgueses, foram-
se criando mecanismos próprios de defesa. O crescimento dos vilarejos incen-
tivou o surgimento de pessoas que comerciavam os produtos manufaturados
pelos especialistas da época. Com a ampliação do comércio, a acumulação de
riqueza por parte dos comerciantes também se tornou uma realidade. Cansa-
dos da dominação que a nobreza exercia sobre as pessoas menos abastadas,

do pensamento cristão é importante para que se possa fazer uma crítica realmente profunda e coerente ao
Cristianismo.
8
O pensamento dos filósofos da Economia, sobretudo Karl Marx, fez com que se criasse, no pensamento
moderno, essa categoria a um tempo estranha e cômica, chamada “classe social”. É curioso ver como
Marx trata dessa categoria como se ela nascesse tão naturalmente como nascem as flores, tendo cada
uma as suas características próprias, de modo que não se possa confundir uma margarida com um lírio.
O que é isto, uma “classe”? Isso implica dizer que a Natureza cria operários, industriais e banqueiros
assim como cria rosas e magnólias. Isso tudo é muito bonito, mas nada sustentável. Vejamos: onde se
encontra o conceito de “classe” nas populações nômades? Um defensor da ideia de classe diria certamen-
te que é justamente o progresso social que cria as classes. Isso pode até ser dito, mas não possui validade
alguma, pois: em que momento da história humana um homem primitivo se separa do grupo comum para
constituir uma “nova classe”? Se se considera que foi justamente o sedentarismo proveniente da agricul-
tura que fez com que as civilizações se desenvolvessem, como poderíamos explicar o nascimento de
classes entre esses mesmos indivíduos? Qual “impulso” o levaria a isso? Dizer que foi “o desenvolvi-
mento da história” não é senão provocar risos, pois se dá status de humanidade à história e a culpamos
por tudo, assim como se culpa João ou Antônio por algum ato ilícito. Um humorista diria certamente que
a ideia de classe nasceu quando um homem plantou mais batata do que o outro, vindo assim a criar uma
nova classe, que é a dos “senhores da batata”. Porém isso é um argumento para um humorista e não fica
lá muito bem em Filosofia, ao menos não em uma Filosofia séria. Explicar o mecanismo de “classe” não
é nada fácil e cremos mesmo que esse conceito é totalmente passivo de revisão, ao menos no sentido em
que até hoje os pensadores vêm utilizando esse conceito. Parece-me antes que a ideia de classe geral-
mente empregada se assemelha mais a um Leito de Procusto do que propriamente a um conceito válido e
universal. Entretanto, isso é compreensível no pensamento Marxista, posto ser ele uma “religião sem
padres”. As religiões geralmente apelam para a metáfora como forma de responder àquilo que a simples
Razão não responde. Como não se pode explicar a origem do mundo, apela-se para o sobrenatural. É
somente nesse sentido que se pode conceber Adão e Eva ou os mitos da criação. No caso do Marxismo, a
ideia de “classe”, tal como é empregada, não difere muito do sentido em que falamos. Com a diferença
de que (é preciso dizer) as metáforas do Cristianismo serem muito mais poéticas e originais do que as
empregadas pelo Marxismo e companhia. Para maiores informações consultar as seguintes obras:
MARX, Karl. Capitulo VI inédito de O capital: resultados do processo de produção imediata. São Paulo:
Moraes, 1995. MARX, Karl. O capital. L I, v. I. t II. São Paulo: Abril Cultural, 1984. MARX, Karl. A
ideologia alemã. 4. ed. Lisboa: Presença, 1980. v. I.

158
tomados pelo instinto comercial e pela necessidade de expansão dos consumi-
dores de seus produtos (fato reprimido pelos nobres), os burgueses começa-
ram a financiar as revoltas camponesas. A partir das revoltas, a liberdade co-
meçou a ser reivindicada e a burguesia já colocava em dúvida o poder divino
dos reis. Dentro da igreja, correntes de pensamento começaram a demonstrar
a sua real visão sobre os fatos e práticas exercidas pelos burgueses, dando
origem a duas grandes correntes ideológicas, o luteranismo criado por Marti-
nho Lutero e o calvinismo, por Calvino.
Na Ética protestante e o espírito do capitalismo (1905), Max Weber procu-
rou compreender o universo de relações existentes entre as manifestações
religiosas organizadas e a vida social. O livro gerou polêmicas teóricas que
ainda hoje são discutidas, principalmente, no que tange ao principal objeto de
estudo que o autor denominou como sendo, o “espírito do capitalismo”. No
livro, ficou clara sua preocupação de compreender a tendência à racionalização
progressiva da sociedade moderna. Weber procurou estabelecer o papel exer-
cido pela ética protestante na determinação do comportamento característico
dos indivíduos na sociedade capitalista, usando este argumento como base
para sua tese. Cohn entende que Weber procurou

[...] demonstrar a existência de uma íntima afinidade entre a ideia protestante


de ‘vocação’ e a contenção do impulso irracional para o lucro através da
atividade metódica e racional, em busca do êxito econômico representado
pela empresa. Por essa via, apresentava-se a idéia de que um determinado
tipo de orientação da conduta na esfera religiosa – a ética protestante –
poderia ser encarado como uma causa do desenvolvimento da conduta
racional em moldes capitalistas na esfera econômica. [...] O próprio Weber,
respondendo a um dos seus primeiros críticos, procurou explicitar a
problemática que o preocupava ao escrevê-la. Afirmava ele nessa ocasião que
estava [...] preocupado com o estudo de ‘aspectos da moderna conduta da
vida e seu significado prático para a Economia”, especialmente no que dizia
respeito ao desenvolvimento de uma ‘regulação prático-racionalista da
conduta da vida’(COHN, 1997, p. 22-23).

E por isso, o conservadorismo busca formar indivíduos liberais que pos-


sam criar valores a partir da cooperação social, sem imposição do Estado ou
qualquer autoridade imanente ou transcendente
Outrossim, queremos deixar claro que talvez um dos elementos mais im-
portantes, consiste em assumir a arte da conversação como um dos fundamen-
tos para o desenvolvimento de uma sociedade democrática, onde a disciplina,
as regras e a polidez na arte de conversar no espaço público, são consideradas
virtudes necessárias para o desenvolvimento de um verdadeiro modelo civili-
zatório ocidental. Para um conservador a sociedade civil é uma ordem espon-

159
tânea, onde os valores são criados pelos sujeitos na livre associação cooperati-
va. Ser liberal não significa ter uma liberdade irrestrita. Nossa liberdade termi-
na, onde começa a dos outros: o liberalismo conservador se constitui como um
sistema de restrições implícitas.
Por isso, trabalho e lazer, são elementos estéticos de extrema relevância
para a sociedade liberal. No exercício da dança ou do trabalho em equipe os
indivíduos se reconhecem diante do Outro. E nesse reconhecimento que con-
quistamos nossa liberdade. Ser um liberal conservador não é como muitos
pensam, ser adepto de um vale-tudo irresponsável. Significa antes disso o res-
peito a escolha de seu estilo de vida, a forma como deseja compor sua família,
ou sua escolha sexual. Mas tudo isso deveria pertencer à esfera do âmbito pri-
vado, onde sua liberdade é irrestrita. No espaço público, a amizade, a discipli-
na, a arte da conversação, e os valores construídos a partir da livre associação
é que deveria garantir valores duradouros e benéficos para toda a sociedade
civil. Como afirma Scruton (2015, p. 203): “o papel do Estado é, ou deveria ser,
menor do que aqueles que os socialistas exigem e maior do que os liberais
clássicos permitem”.
O anarcocapitalismo poderia ser a utopia dos liberais conservadores, uma
vez que, ser adepto do anarquismo é ter a crença que qualquer tipo de violên-
cia, seja ela física ou psicológica, é inaceitável, e na maioria das vezes ela pro-
vém do Estado. Isso significa que ser um anarcocapitalista, é dar vazão a um
ethos próprio, capaz de expressar sua potência de existir. A primeira forma de
violência são os impostos ou tributos, impedindo com isso a livre concorrência,
expressão de um Estado monopolista, patrimonialista, que interfere e impede a
livre associação dos indivíduos. Com isso, observar-se que a violência estatal é
proveniente tanto de partidos ideologicamente formados pela extrema direita
ou esquerda. Essa violência tem origem na intervenção do Estado, que quer
gerir e administrar a vida. Toda lei, nunca é demais sublinhar, tem origem nos
costumes, construídos a partir de nossa cooperação. Nós criamos, recriamos,
transvaloramos e assim nos sentimos realizados.
A primeira esfera de valor que deve ser considerada é a religião. Ela cria
laços de solidariedade, afetividade. Entre os reacionários religiosos e um Esta-
do anticlerical, se tem almas, que precisam ser recrutadas: eis a origem da
submissão. O Estado se torna tão sagrado quanto à religião que fora institucio-
nalizada, seja ela católica, protestante ou oriental (muçulmano e outras). Mas a
religião tem uma função social que precisa ser reconhecida: ela vincula as pes-
soas, seja pela afetividade ou pela tradição. E não cabe ao Estado definir qual
será a doutrina religiosa que cada cidadão deva seguir. A escolha é subjetiva e
o Estado é laico.

160
A segunda esfera de valor é a família. Não podemos esquecer que ela foi
alvo dos “re-volu-cionários” (um reacionário em constante evolução). O homem
é livre para constituir a família que assim desejar, afinal possui o direito à livre
associação. Ele pode se constituir a partir da poligamia, poliandria, não impor-
ta, é a família o lugar por excelência da constituição e formação de valores úteis
à sociedade civil.
Por fim, a terceira esfera de valor é o trabalho e o lazer, pois possuem a li-
berdade como “motor” de um processo, que se constitui como sendo uma
aventura na busca por sua autoconsciência, um trabalho do espírito. É uma
falácia a afirmação de que todo trabalho é alienado. Ele pode ser alienado, não
é uma necessidade, é tão contingente quanto à existência do homem. A perícia,
a competência e as habilidades desenvolvidas expressam a constituição do
indivíduo, que se torna autoconsciente, bem como a obra de arte, que reflete o
artista. Ou melhor, o trabalho pode ter um valor estético, de fruição, e pode ser
uma forma de lazer.
Por isso, a quarta esfera de valor é o lazer ou entretenimento. O tempo de
ócio, não alienado, é uma necessidade, e não significa estar em oposição ao
trabalho, eles se completam. O tempo livre ou do ócio, onde o poder dionisíaco
passa a ter espaço, pode exercer um papel transformador e agregador para a
sociedade civil. Como exemplo: temos a peça de Aristófanes: “As Thesmofó-
rias”. Aristófanes fala das mulheres comuns, que desejam o descanso e a frui-
ção estética. Elas representam pessoas reais, que cumprem as normas sociais,
não existindo heroísmos ou excepcionalidades. São mulheres ativas, proativas,
empoderadas. E que precisam de um grande festival, da luxúria, da sacra des-
mesura sexual, ou melhor, de momentos de embriaguez dionisíaca, para se
libertar da rotina e tédio: o que não significa alienação. O lazer festivo, a dança
dionisíaca, é afirmação coletiva da vida: “participar de um festival é um cami-
nhar para a iluminação, respirar outros ares, restabelecer o seu ‘ser-espécie’”
(SCRUTON, 2015, p. 229).

Considerações Finais

Na exposição acima, buscamos esclarecer através de uma pesquisa biblio-


gráfica, a natureza das categorias da Utilidade Marginal do Capitalismo, do
Liberalismo Conservador frente à liberdade de escolha dos indivíduos. É certo
que nosso objetivo não foi o de polarizar o debate em torno do Capitalismo x
Socialismo; Liberalismo x Conservadorismo. Antes de tudo, foi o de revelar o
processo de massificação, igualitarismo e, por vezes, mediocridade quando se
busca compreender as categorias indicadas. Nesse sentido, a utopia anarcoca-

161
pitalista vem se desenvolvendo na corrente do pensamento acadêmico. A nos-
so ver não existe liberdade plena, entretanto, a utopia da centralidade de um
Estado forte, centralizador se torna algo perigoso que incita a criação de um
inevitável totalitarismo. Assim, o anarcocapitalismo é o máximo de liberdade
possível que buscamos e, também, passa a desempenhar um papel relevante na
quebra das bolhas que são geradas, principalmente nas redes sociais, polari-
zando as ideias e contribuindo para a preguiça intelectual.
Nesse passo, todos somos atores e em alguns momentos exercemos um
papel na sociedade, ou seja, uma pessoa pode ser pai, docente, estudante, côn-
juge etc. Igualmente podemos ser em termos econômicos liberais, mas em
termos de costumes mais tradicionais e conservadores. Isso ocorre porque
vivemos do ponto de vista sociológico numa sociedade líquida, onde as coisas
não necessariamente devem permanecer iguais, entrópicas para sempre, es-
tamos em constante mudança, justamente porque nos tornarmos mais indivi-
dualistas, mais libertos para o esclarecimento e a busca de informação.
Finalmente, para além dos “ismos” existentes, temos a sociedade local,
com um definido papel de apoio e incentivo entre regiões ricas para com as
regiões pobres, dos países ricos para com os países pobres. A responsabilidade
é de toda a sociedade, local ou regional, por motivos de solidariedade e igual-
dade social. Por muito tempo, a mãe da previdência social na Grã-Bretanha,
Margaret Thatcher, acreditou que obrigaria ao capitalismo a solidariedade
através do Estado. Não levou em conta a iniciativa direta dos trabalhadores,
dos cidadãos. Hoje, nós podemos verificar outro tipo de solidariedade além do
administrativo como, por exemplo, o da economia solidária e do cooperativis-
mo, que vem acontecendo aqui no Brasil e em outros países.
É evidente que não se trata simplesmente de negarmos a integração eco-
nômica brasileira ao sistema capitalista internacional, mas sim indagarmos
qual a posição do Brasil. O novo quadro econômico internacional surgido com
a globalização pode até trazer efeitos positivos, mas é especialmente nocivo
para países que não conseguiram sequer resolver minimamente alguns pro-
blemas como, por exemplo, o da concentração de renda, do racismo repugnan-
te etc. – enfim, sendo um país que falta ser concluído (econômica, política e
socialmente) podemos nos encaminhar para uma interrupção da construção
do processo formativo nacional, ou seja, o horizonte brasileiro não é nada
tranquilo. No Brasil, precisamos estabelecer políticas de desenvolvimento
voltadas para a criação de novos empregos e, o que vemos de mais essencial,
maiores investimentos no setor de educação. Como disse o Economista Celso
Furtado, “Nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que podería-
mos ser”.

162
Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva,
2000.

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SCRUTON, Roger Vernon. Como ser um conservador. São Paulo: Record, 2015.

WEBER. Max. Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2001.

163
O ORGULHO DA VERGONHA NA CRISE DA
CONTEMPORANEIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DE
“O LEITOR”, DE STEPHEN DALDRY
Fransmar Costa Lima1

Para Maria da Graça Mizukami, três


graças em uma, que reforçou meu olhar
pela educação da subjetividade.

Introdução

Talvez seja chegada a hora de pensarmos uma filosofia do fracasso. Não


bastaria analisar o fracasso como um fenômeno da contemporaneidade, mas é
necessário investigar o fracasso como uma dimensão imanente do humano.
Antes de nos debruçarmos sobre o fracasso, devemos investigar duas dimen-
sões que antecedem o sucesso, que é o maior desejo de cada indivíduo de nos-
sa época que são, a saber, o orgulho e a vergonha.
Opostos entre si, o orgulho e a vergonha permearam todo o século XX,
como marcas taxativas para o desejo engendrado pelo sucesso que foi inserido
na cultura ocidental a partir do momento em que o capitalismo oferece, à qual-
quer pessoa, a necessidade de acúmulo de capital e de realização através do
ter, em detrimento do ser. A questão do capital não tem origem no século XX,
mas é nele que o orgulho e a vergonha se apresentam com maior intensidade,
seja nos períodos que abrangem as duas guerras mundiais, as crises econômi-
cas e a grande recessão (1929), a Guerra Fria e suas correlatas (Guerra da Co-
réia, Vietnã, Crise dos Mísseis de Cuba), as ditaduras militares da América Lati-
na ou as Crises no Oriente Médio (I Guerra do Golfo). Durante todo o século XX
observamos essas dimensões opostas como parte de uma nova formulação
cultural, que faz oposição entre o Orgulho dos vencedores e a Vergonha dos
derrotados, sendo que cabe aos vencedores o privilégio de fazer valer ao senso
comum a sua versão da história.

1
Bacharel e licenciado em filosofia, mestre e doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie (bolsista CAPES/MACKPESQUISA). Presidente da Sociedade
Brasileira de Estudos de Kierkegaard. Professor e Editor.

165
O maior dano que pode ser causado pela visão dos vencedores é seu pre-
valecimento sobre o senso comum. Falamos dos horrores da Alemanha Nazista
e do Fascismo Italiano ao mesmo tempo que justificamos com alguma indul-
gência os massacres e horrores promovidos pelos aliados. É interessante como
o senso comum sempre busca a justificativa para o seu sucesso usando como
argumento a vergonha do outro. O sucesso sempre é uma prerrogativa do eu,
enquanto que a vergonha sempre é uma prerrogativa do outro.
A questão que nos propomos a refletir aqui, está relacionada à possibili-
dade da justificativa da vergonha transubstanciada em orgulho, ou seja, um
certo “orgulho da vergonha” que, como fenômeno, toma de assalto o senso
comum para justificar uma incapacidade crítica que, por não passar pelo crivo
da consciência, impede o indivíduo de lidar, na existência, com o fracasso.
Para isso, tomaremos como elemento de reflexão o filme de Stephen Dal-
dry “O Leitor”, baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink. A propos-
ta de usar uma obra cinematográfica em diálogo com a filosofia ganha força em
uma argumentação lúdica e didática pois, ao tomarmos o cinema como filoso-
fia, trazemos para a discussão as inúmeras possibilidades de reflexão acerca da
existência, das quais não podemos nos furtar em um posicionamento decisivo.
Para o pensador dinamarquês Soren Kierkegaard, a existência é sempre
possibilidade, e na possibilidade reside a decisão do existente, tomada a partir
da subjetividade, da interioridade, para com a existência, sem a necessidade de
recorrer aos pressupostos tradicionais de uma filosofia especulativa e então,
nesse como, reside toda a possibilidade de uma existência engajada, compro-
metida com o outro e com a história, que escapa, também enquanto possibili-
dade, da objetivação do discurso vazio pois, tudo o que se apresenta enquanto
possibilidade não passa de uma provocação, como se, diante de um abismo,
nos lembra Roberto Garaventa, o indivíduo fosse tomado por uma vertigem
que o imerge em um processo de angústia do qual ele não pode escapar sem
uma decisão.
Passemos então a algumas provocações apresentadas no filme “O Leitor”.

O Leitor: um filme sobre o orgulho e a vergonha

Em uma palestra para a Radio de Hessen, em 1965, Theodor Adorno diz o


seguinte:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a


educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser
possível nem necessário justifica-la. Não consigo entender como até hoje

166
mereceu tão pouca atenção. Justifica-la teria algo de monstruoso em vista de
toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em
relaçãoe as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou
fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita
no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas.
(ADORNO, 1995, p. 119)

Essa reflexão já é suficiente para situar Adorno entre as leituras obrigató-


rias do século XX. Em apenas um parágrafo, as afirmativas são tão gritantes
que deveriam ser suficientes para ensurdecer toda a tentativa de desenvolvi-
mento da educação enquanto ciência. Em todos os planejamentos pedagógicos,
planos de aula, Parâmetros Curriculares Nacionais, em toda a burocracia edu-
cacional onde conste um campo delimitado como “objetivos”, do processo de
alfabetização na educação infantil aos Programas de Pós-Graduação, o único
tópico necessário seria: “PARA QUE AUSCHWITZ NÃO SE REPITA”.
Nesse único parágrafo de Adorno, é possível identificar o descaso para
uma educação da existência engajada, a ausência da consciência e da respon-
sabilidade diante da vergonha histórica, a ignorância crítica acerca da verdade
histórica e das diversas interpretações que devem ser assumidas na consciên-
cia e, a irresponsabilidade de uma existência engajada para que Auschwitz não
se repita.
Adorno alerta para o fato de que, Auschwitz mereceu tão pouca atenção, e
o sentimento diante da barbárie foi tão superficial, que esquecemos rapida-
mente a lições históricas a ponto de reproduzir constantemente a monstruosi-
dade ocorrida e convertermos em orgulho a vergonhosa monstruosidade da
qual todos participamos. Porém, não é possível comunicar tal fato diretamente
pois, como afirma Nietzsche ao anunciar o übermenschà multidão, seria talvez
necessário arrancar suas orelhas para que aprendam a ouvir com os olhos (NI-
ETZSCHE, 2010, p. 25). No mesmo sentido, Kierkegaard alerta para o fato de
que não se pode comunicar diretamente a quem vive em uma ilusão quando
afirma: Não, jamais se dissipa uma ilusão diretamente. Não se destrói radical-
mente senão de uma maneira indireta. [...] Ou, dito de outra maneira, é preciso
pegar pelas costas aquele que está na ilusão (KIERKEGAARD, 1971, p. 58)
No cinema, a comunicação é indireta. Na arte, na música, na poesia, no tea-
tro, a comunicação indireta é capaz de colocar o indivíduo diante de sua vergo-
nha, retirando todos os aparatos que a travestem em orgulho, por mais que ele
não assuma isso de nenhuma maneira para o outro mas, para si, o choque pro-
vocado pelo cinema é inevitável. Deleuze nos lembra que tudo se passa como se

167
o cinema nos dissesse: comigo, com a imagem-movimento, vocês não podem es-
capar do choque2 que desperta o pensador em vocês (1990, p.190)
Se pesquisarmos as referências da “crítica especializada”, que geralmente
comunica às massas que anseiam por se sensibilizar diante de um belo enredo,
veremos que o filme de Stephen Daldry será reportado como um romance,
onde Michael Berg se envolve com Hanna Schmitz, uma mulher que tem o dobro
de sua idade. Apesar das diferenças de classe, os dois se apaixonam e vivem uma
bonita história de amor. Até que um dia Hanna desaparece misteriosamente 3.
Definitivamente, não se trata disso.
Trata-se aqui de um posicionamento diante da vergonha, uma vergonha
para o indivíduo que almeja converter-se em orgulho para que sua imagem
histórica seja maquiada diante do olhar do outro, como na busca por uma justi-
ficativa histórica para sua vergonha. Mas Adorno já alertava: não é possível e
nem justificar a monstruosidade, pois a barbárie

continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as


condições que geram essa regressão [ e Auschwitz foi a regressão]. É isto que
apavora. Apesar da não visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social
continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível
e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. (ADORNO,
1995, p. 119)

Ora, a situação vergonhosa de Hanna está na visão que a sociedade terá


sobre sua condição de analfabetismo, a ausência de uma educação técnica,
onde os dedos se apontarão sobre ela e não mais a reconhecerão como um
indivíduo que pertence àquela sociedade e cultura. Essa noção de pertenci-
mento deve passar pela consciência cultural, enquanto uma formulação auten-
tica da existência porém, ganha contornos onde o reconhecimento é necessá-
rio. Se Hanna é incapaz de validar seu pertencimento pelo reconhecimento
porque o analfabetismo técnico não coloca ela em situação de paridade com
sua sociedade, também não é capaz de ver que seus pretensos pares não tem
autoridade para validar e reconhecer seu pertencimento àquela cultura, pois
sua situação acrítica repousa sobre a opinião de quem fala mais alto, e a toma
como juízo de valor absoluto.
Para a sociedade alemã da década de 40, o analfabetismo era inadmissível
e vergonhoso para o indivíduo, ao contrário da América Latina que lutava ain-
da para reduzir – e falamos em redução quando já deveríamos falar em erradi-

2
Sócrates afirmava que toda filosofia parte de um thauma, um espanto. O choque proposto por Deleuze
tem a mesma finalidade: gerar um impacto sobre a percepção de modo que seja impossível não se sentir
incomodado, extraindo da imagem-movimento a causa necessária para o pensamento.
3
Sinopse disponível em www.adorocinema.com

168
car - o analfabetismo. Porém a vergonha é para o analfabeto; não para a socie-
dade, que não reconhece sua deficiência e não se coloca na posição de respon-
sável pelo outro pois, a massa social, reconhece apenas aquilo que lhe toca ao
orgulho. É no orgulho de seu conhecimento técnico que a grande massa traves-
te a vergonha de seu verdadeiro analfabetismo: o social, crítico, ético, cultural e
político. Brecht já nos alertava que o pior analfabeto, é o analfabeto político.
Tomada pelo senso comum e pela admiração aos discursos vazios de efei-
to pirotécnico, a grande massa se rende à reprodução das opiniões patéticas,
radicais – principalmente quando proferidas aos gritos, com ofensas a alguém
e vigorosos tapas na mesa - se orgulha de estar ao lado de quem lhe parece
mais forte e impetuoso, reproduzindo uma certa tendência natural à barbárie e
ao ódio. Talvez Hobbes estivesse certo: o homem é predador de si mesmo.
Diante desse quadro, o que resta àquele que se encontra à margem e tomado
pela vergonha? Buscar algo que oculte sua vergonha e um motivo de orgulho
que lhe faça ser reconhecido por seus pares. Daldry nos apresenta essa situa-
ção em seu filme durante as cenas do julgamento, onde Hanna prefere assumir
os crimes que lhe são imputados a se submeter a um exame de comparação
caligráfica, o que a obrigaria a reconhecer, publicamente, o motivo de sua ver-
gonha.
Hanna espera pelo reconhecimento de uma massa obtusa, condenada por
sua consciência, declina de qualquer visão crítica sobre sua sociedade. Nesse
sentido, ela oculta sua vergonha no cumprimento do dever, pois o cidadão
cumpridor de seus deveres é reconhecido como igual, mesmo que a noção de
dever não seja questionada ou assumida de maneira autentica. Hanna tem uma
vantagem ao seu favor: sua vergonha é autêntica, apesar de sua consciência
não garantir o valor de sua visão de dever: sua vergonha é autêntica, ao contrá-
rio da grande massa, que se alimenta de um orgulho ilusório, sob o qual escon-
de a sua vergonha.

A vergonha escondida: a base de uma filosofia do fracasso


Devemos então questionar: Como Hannah aceita seu ingresso no Partido
Nacional Socialista Alemão? Seu maior crime, até então, é uma deficiência edu-
cacional que, em nenhuma circunstância corresponde à sua exclusiva culpa e
responsabilidade. O relato abaixo talvez se aplique a ela:

... não entrou para o Partido por convicção nem jamais se deixou convencer
por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos
clichês envergonhados sobre o tratado de Versalhes e o desemprego; antes,
conforme declarou no tribunal, “foi como ser engolido pelo Partido contra
todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e
repentinamente”. Ela não tinha tempo, e muito menos vontade de se

169
informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu
MeinKampf. Um amigo disse para ela: Por que não se filia à SS? E ela
respondeu: Por que não? Foi assim que aconteceu e isso parecia ser tudo.

Evidentemente isso não era tudo. O que Hanna deixou de dizer ao juiz
presidente durante seu interrogatório foi que ela havia sido uma jovem
ambiciosa que não aguentava mais o emprego de cobradora, antes mesmo
do departamento de transportes públicos não aguentá-la mais. De uma
vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento a tinha soprado para
a História, pelo que ela entendia, ou seja, para dentro de um Movimento
sempre em marcha e no qual alguém como ela – já fracassada aos olhos de
sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também –
podia começar de novo e ainda construir uma carreira. (ARENDT: 1999, p.
44s)4

A citação acima não diz respeito literalmente ao julgamento fictício de


Hanna, mas ao julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, testemunhado e
descrito por Hanna Arendt no início dos anos 60. A diferença entre Hanna e
Eichmann reside apenas na categoria do analfabetismo que ambos possuem.
Para ambos, a vergonha contempla o fracasso de sua própria existência, da
singularidade e da subjetividade e o fracasso do eu fala mais alto do que qual-
quer fracasso social ou cultural.
Hanna Arendt nos descreve Eichmann como um homem fadado ao fracas-
so, que passaria despercebido em seu tempo, temeroso da vergonha que gera-
ria para sua família e amigos. Já Daldry sugere que a grande vergonha de sua
personagem é uma vergonha para-si e diante do outro. Diferente de Eichmann,
a vergonha de Hanna não se constitui em uma vergonha para o outro
Converter o fracasso do eu em um fracasso do outro parece ser aceitável
para Eichmann; para Hanna, certamente não. Diferente do oficial da SS, Hanna
não é capaz de assumir na consciência uma crítica ética diante do estado de
exceção. Eichmann ao contrário, e ainda conforme a narrativa de Hanna
Arendt, reforça para si mesmo uma consciência moral que não possui. Arendt
diz:

A primeira indicação de Eichmann tinha uma vaga noção de que havia mais
coisas envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que
cumpre ordens claramente criminosas em natureza e intenção apareceu no
interrogatório da polícia, quando ele declarou, com grande ênfase, que tinha
vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, e
particularmente segundo a definição kantiana do dever. Isso era
aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia
moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que

4
Adaptação e grifos nossos.

170
elimina a obediência cega. [...] E para a surpresa de todos, Eichmann deu uma
definição quase correta do imperativo categórico: “o que eu quis dizer com
minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre
tal que possa se transformar no princípio de leis gerais” [...] O que não referiu
à corte foi que “nesse período de crime legalizado pelo Estado”, como ele
mesmo disse, descartara a fórmula kantiana como algo não mais aplicável. Ele
distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo
do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o
“imperativo categórico do Terceiro Reich”, que Eichmann deve ter conhecido:
“Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove”. (ARENDT,
1999, p. 153)

Ao deslocar a máxima de sua vontade para uma “máxima da vontade do


legislador”, o fenômeno que se observa é que, para evitar lidar com sua vergo-
nha, Eichmann projeta a consequência de sua ação para a autoridade do esta-
do, utilizando o argumento de que está “cumprindo ordens” em um período de
“crime legalizado pelo Estado”. Seu imperativo categórico é convertido em um
imperialismo categórico, pois nele, tudo posso desde que me seja autorizado
pelo Estado. Por outro lado, o fracasso de Hanna está na subjetividade. Ela
assume o crime para ocultar do outro sua incapacidade, preocupada em ser
reconhecida pela grande massa; seu fracasso é um fracasso da existência. Para
ela, é preferível a condenação à vergonha que a “diminui” sua humanidade à
vista dos outros.
A inquietação se apresenta diante dessas reflexões está na desconstrução
da humanidade que vislumbramos, historicamente, no seio da Segunda Revo-
lução Industrial – que vai do final do século XIX ao período pós-Segunda Guer-
ra Mundial – marcado por ser um período crítico para a reflexão sobre a exis-
tência pois, existir significava corresponder, objetivamente, aos anseios de
sucesso e capacidade acumulo de riqueza. Com o aumento da desigualdade
social, o anseio pelo sucesso torna-se uma determinação de poder. O homem
de sucesso poderia definir os valores morais, os parâmetros de aceitação social
e converter comportamentos escabrosos em marcas aceitáveis dos novos tem-
pos. A existência se torna um objetivo concreto do sucesso, uma forma de visão
de si-mesmo que encontra seu fundamento em uma deturpação do pensamen-
to iluminista. Essa visão industrializada da existência é prontamente combati-
da por filósofos e sociólogos do porte de Nietzsche, Schopenhauer, Marx e Ki-
erkegaard, porém a grande massa se rende ao sucesso exigido pela riqueza e
pela ilusão da possibilidade de sucesso prometidos pelo capitalismo. A ques-
tão que fica in suspensu é: como assumir para si mesmo que o sucesso exigido
pela indústria e pelo mercado são apenas simulacros de uma identidade, por si
só ilusória, e não correspondem a uma existência autêntica, livre e autônoma?

171
Conclusão

É chegada a hora de iniciarmos uma filosofia do fracasso.


É chegada a hora de pensarmos: Com quem me identifico diante das pos-
sibilidades da existência? Hanna Schmitz? Adolf Eichmann?
É chegada a hora de reconhecer que a educação fracassou em sua maior
exigência: que Auschwitz não se repita. E com ela fracassamos nas relações
políticas, sociais, culturais, jurídicas.
Nossa época reflete a barbárie radical, os extremos do pensamento, que
autorizam qualquer ação ilegítima, imoral e degradante que partem da vontade
dos indivíduos e, posteriormente, diante do fracasso, pode ser atribuída a uma
necessidade econômica, histórica e política. Se em nossas discussões o fracasso
de si se estabeleceu enquanto um Estado autorizava a pratica xenofóbica e
genocida de milhões, amparado por uma Lei de Exceção, o que ocorrerá tendo
em vista que violentamos a lei consolidada para que a Exceção não se repita?
Estamos de volta aos tempos onde a evidência do fracasso de nossa época
transforma o Estado de Exceção em uma regra geral e moral válida?
Em uma máxima que é praticamente um consenso para filosofia antiga,
vemos que a investigação das causas é fundamental para determinar o enten-
dimento de qualquer consequência. Vivemos uma época onde descartamos o
entendimento das causas pelo anseio de termos rápidos e exitosos resultados
em uma consequência imediata; e nesse processo reside o fracasso de nossa
era. Diante de tal imediatismo, da velocidade com a qual todas as coisas devem
acontecer, deixamos de lado o reconhecimento de nossa vergonha, pois imedi-
atamente a convertemos em orgulho.
É chegada a hora de iniciarmos a investigação, de uma filosofia do fracas-
so, em uma época que anseia, mais do que em qualquer outra, pelo sucesso.

Referências Bibliográficas

ADORNO, T.W.; Educação após Auschwitz in Educação e emancipação, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.

ARENDT, Hannah; Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1999.

__________, Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

DELEUZE, G. A imagem-tempo, São Paulo: Brasiliense, 2013.

KIERKEGAARD, Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor in REICHMANN, Ernani,
Textos Selecionados, Curitiba: Edição do autor, 1971

NIETZSCHE, F.W. Assim falou Zaratustra, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Filme
O Leitor, direção de Stephen Daldry, EUA/Alemanha, 2009

172
O CINEMA NOVO:
NA TRILOGIA DO SERTÃO HÁ VIDA NUA?

Prof. Dr. Augusto Sarmento-Pantoja1

Para a Posteridade
Realmente, eu vivo em tempos sombrios!

A palavra inocente é absurda. A testa lisa


É sinal de insensibilidade.
O riso possui as terríveis notícias
Que ainda não foram recebidas.

Que tempos são esses, quando


Conversar sobre a natureza é quase um
crime
Pois implica o silêncio diante de tanto hor-
ror!
Quando alguém passa pela rua indiferente
É porque não está ao alcance dos amigos
Que estão em necessidade?

Bertolt Brecht2

Bertolt Brecht, em An die Nachgeborenen, apresenta-nos como a sociedade


lhe impôs um conflito tácito em relação ao seu tempo. Sua obra nos faz refletir
sobre a constatação de que vivemos em tempos sombrios e somos acometidos
pela indignação por conta da indiferença das pessoas em relação ao sofrimento
alheio. Quando lemos o poema de Brecht percebemos sua atualidade, pois até
hoje nos deparamos com essas questões. O absurdo não se configura apenas na
certeza do sofrimento, ele se encontra estampado na indiferença em relação às
circunstâncias e problemas geradores do sofrimento. Em An die Nachgebore-
nen, identificamos a essência do conflito entre o sofrimento de outros huma-
nos, potencializado pelas experiências traumáticas, gerando de um lado a in-
dignação e de outro a apatia diante da cena traumática.

1
Universidade Federal do Pará (UFPA). Programa de Pós-Graduação em Letras; Programa de Pós-
Graduação em Cidades Territórios e Identidades - augustos@ufpa.br
2
Tradução minha direta do alemão. Original disponível em alemão e inglês. Bertolt Brecht, 2003, p. 70.

173
O poema nos leva a um núcleo argumentativo concentrado no impacto so-
bre a cena traumática da guerra e da aniquilação humana. Ao mesmo tempo,
encontramos uma constatação e uma acusação: a indiferença não se limita à
apatia do homem diante do horror, mas se aprofunda ao expressar as conse-
quências evidentes da ausência de sensibilidade do indivíduo em relação às
violações próprias do seu tempo, “pois implica o silêncio diante de tanto hor-
ror!” (Weil es ein Schweigen über so viele Untaten einschließt!). Por isso não
temos como escrever sobre o belo e o sublime, mas sim somos sensibilizados a
encontra no horror a beleza sublime.
A palavra-chave que antagoniza com as imagens do sofrimento em Brecht
é o silêncio. O maior pecado da humanidade é se calar. A arte está posta exata-
mente para se contrapor ao silêncio, por meio da narração, da potência da
palavra, das imagens. O artista constrói narrativas, mesmo quando se trata de
um poema, mesmo quando não se pode mais narrar, como nos diz Walter Ben-
jamin: “a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente“ (1994, p. 197). Estamos atentos para
a importância da narração para a sobrevivência em Benjamin, tanto que no
ensaio Pequenos trechos sobre arte o crítico diferencia a informação da narra-
ção, essa diferença para nós é elementar para compreender o papel do teste-
munho e sua vinculação com as artes narrativas. Vejamos:

A informação recebe sua recompensa no momento em que é nova; vive


apenas nesse momento; deve se entregar totalmente a ele e, sem perder
tempo, a ele se explicar. Com a narrativa é diferente: ela não se esgota.
Conserva a força reunida em seu âmago e é capaz de, após muito tempo, se
desdobrar. (BENJAMIN, 1987, p. 276)

Entendemos com Benjamin que a atualização e o desdobramento da nar-


rativa são os responsáveis por fazer da obra de arte o caminho para o rompi-
mento do silêncio, pois a narrativa rompe com os estatutos da informação e o
fato histórico, mesmo quando se trata de narrativas em que “o riso possui as
terríveis notícias”, escamoteadas e submersas, tal qual como ocorre com o
testemunho, diante do trauma. Na passagem acima, temos o riso aparente co-
mo uma forma de silêncio, pois na poesia de Brecht observamos um chamado à
necessidade da narração e do testemunho, para que assim, o silêncio seja que-
brado. Em An die Nachgeborenen reconhecemos a indiferença ante a ofensa e
apontamos o silêncio como algo que rechaça a indignação e a infâmia. Por isso,
ao contrário do que se possa pensar, a ofensa precisa ser recontada para so-
breviver na formado testemunho, e que permaneça enquanto experiência “pa-
ra a posteridade”.

174
O cinema, como parte do cômputo da arte dará sua contribuição para des-
silenciar os meandros de uma “vida nua” (zoè), conforme o termo amplamente
desenvolvido por Giorgio Agamben (2002, p. 146). Para que isso seja possível é
preciso deixar claro que “a vida nua (zoè) não está mais confinada em um lugar
particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada
ser vivente”. Esta constatação está tanto em Agamben quanto em Brecht, pois
cada um, ao seu modo, fomenta a necessidade de indignação diante da aniqui-
lação dos corpos, pautado na ideia de que simplesmente:

A ‘vida indigna de ser vivida’ não é, com toda evidência, um conceito ético,
que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é, sobretudo,
um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida
matável e insacrificável do homo sacer, sobre o qual se baseia o poder
soberano. (AGAMBEN, 2002, pp. 148-149)

Este poder soberano traz à tona o debate sobre a ambição suprema do bi-
opoder (Foucault), como destaca Mauricio Lazarato, quando retoma o debate
da separação entre zoè e biós, ou seja, “entre elhombre como simple vivente y
elhombre como sujeto político” (2000, p. 2), mas também entre o “muçulmano”
e a testemunha, entre o vivente e o falante. A fala nos parece ter um valor pri-
mordial neste processo, pois é o ponto determinante entre a apatia de uns e a
resistência de outros, o que nos leva à necessidade de uma digressão acerca
desses aspectos.
Essas formas de identificação do homem revelam a escassez da vida e a
instalação de um estado puro de sobrevida modulável. Essa modulação da vida
será destacada por Márcia Arán e Carlos Augusto Peixoto Júnior. Para eles:

A partir do testemunho do “muçulmano” (sic) o campo poderia ser


considerado o exemplo incontestável de que o estado de exceção tornara-se a
regra. Ele não é apenas o lugar de morte, mas, sobretudo, o palco de uma
experimentação onde, para além da vida e da morte, o judeu se transforma
em “muçulmano”. (ARÁN & PEIXOTO JUNIOR, 2007, p. 854)

Qual o sentido arbitrado nesta relação para a definição do que seria o


“muçulmano”? O testemunho deles seria possível? Giorgio Agamben, em O que
resta de Auschwitz, lembra-nos de que o Muselmann é o intestemunhável, ou
seja, aquele que

havia abandonado qualquer esperança e que havia sido abandonado pelos


companheiros, já não dispunha de âmbito de conhecimento capaz de lhe
permitir discernir entre o bem e o mal, entre nobreza e vileza, entre
espiritualidade e não espiritualidade. Era um cadáver ambulante, um feixe de
funções físicas já em agonia. (AGAMBEN, 2008, p. 49)

175
Como vimos, não há possibilidade de testemunho quando o indivíduo per-
deu a capacidade de discernir sobre a sua própria condição humana. Por isso,
se pensarmos sobre a origem e o uso do termo, em Auschwitz, teremos uma
enorme variação de possibilidades, mas em todas elas transparecerá um senti-
do representativo sobre a imagem do “muçulmano”: a submissão incondicional
e consequentemente a ausência humana e, portanto, da fala. Vejamos algumas
possibilidades apresentadas no testemunho de W. Sofsky:

Em Majdanek, o termo era desconhecido, e para determinar os ‘mortos vivos’


se usava a expressão Gamel (gamela); em Dachau, por sua vez, dizia-se
Kretiner (idiotas), em Stutthorf, Krüppel (aleijados), em Mathausen,
Schwimmer (ou seja, quem fica boiando, fingindo-se de morto), em
Neuengamme, Kamele (camelos, ou, em sentido translato, idiotas), em
Buchenwald, müdeScheichs (isto é, imbecis) e no Lager feminino de
Ravensbruck, Muselweiber (muçulmanas) ou Schmuckstücke (enfeites de
pouco valor ou joias). (Apud AGAMBEN, 2008, p. 52)

Certamente existiram outras formas de representar a condição subumana,


muçulmana, submissa daqueles que estão “submersos, são eles a força do
Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-
homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha
divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. ” (LEVI, 1988,
p.91). Outra leitura sobre o uso do termo foi apontada por Agamben ao visitar
a etimologia do verbete com filiação direta ao termo muslin, que significa
“submeter incondicionalmente à vontade de Deus” (AGAMBEN, 2008, p. 52).
Nesta proposição, parece existir certa consciência sobre essa submissão, o que
conflita com a condição dos “não-homens” em Auschwitz, poiso “muçulmano”
teria como caracterização, ser “macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em
cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento” (LEVI, 1988,
p. 91). Essa descrição se aproxima de duas outras formas corpóreas apresen-
tadas por Giorgio Agamben para compreendermos o significado para o termo
“muçulmano”. Segundo a Encyclopedia Judaica “o termo parece derivar da pos-
tura típica desses deportados, ou seja, o de ficarem encolhidos ao chão, com as
pernas dobradas de maneira oriental, com o rosto rígido como uma máscara”
(AGAMBEN, 2008, p. 53). Outras proposições corpóreas são referentes ao ato
de prostrar-se: ora em alusão às orações árabes; ora como forma de estar fe-
chado em si mesmo como homem-concha ou “homem-casca”; ora como estra-
tégia de sobrevivência na “vida nua”, pois “a capacidade humana de cavar-se
uma toca, de criar uma casca, de erguer ao redor de si uma tênue barreira de-
fensiva, ainda que em circunstâncias aparentemente desesperadas, é espanto-
sa” (LEVI, 1988, p. 56). Fica evidente desse modo que o corpo “muçulmano”

176
representa o dilaceramento do homo sacro e a representação do homo sacer.
Nesse sentido ser “muçulmano” é o mesmo que estar na condição do inteste-
munhável, a condição daquele que não tem como realizar o testemunho, por
conta de sua imperiosa submissão ao sofrimento.
Ao ler o texto de Brecht, devemos concordar com a ideia de que a palavra
é “inocente e absurda”, principalmente porque o contato direto com a “vida
nua” (zoè) impossibilita que a arte se cale. Em várias instâncias dos estudos da
arte percebemos o quanto é fundamental olharmos mais profundamente para
os objetos de cultura, pois neles encontramos os rastros de um tempo, de uma
sociedade. Por isso, consideramos que no cinema a palavra ganha corpo e se
transforma em palavra-imagem ou imagem-palavra, que dialoga com o público
e faz com que tenhamos, a partir da visão do artista sobre a imagem-palavra,
uma possibilidade de tirar o véu silenciador sobre a “vida nua” (zoè). É claro
que esse véu nem sempre será retirado por completo, entretanto, a arte quan-
do não o retira pelo menos o esgarça, permitindo que possamos enxergar,
mesmo parcialmente, pelas fissuras abertas sobre o véu. Fissuras que nos pro-
vocam e nos fazem refletir sobre as questões humanas relacionadas ao aniqui-
lamento por conta das experiências limite por nós vividas.
Walter Benjamin em Sobre o conceito de história, inicia seu discurso apre-
sentando uma anedota sobre um autômato em um jogo de xadrez para, logo
em seguida, destilar que a felicidade “é totalmente marcada pela época que nos
foi atribuída” (BENJAMIN, 1994, p. 222). Esse automatismo da história, que se
apropria de imagens do passado e as transforma em suas, será combatido por
Benjamin nesse ensaio quando questiona porque as vozes, as quais por algum
motivo emudeceram, não estão contempladas nas vozes que escutamos na
história. Isso se dá porque a história contada é pensada e elaborada pelos ven-
cedores, como destaca Theodor Adorno no ensaio O que significa elaborar o
passado (Was bedeutet: Aufarbeitung der Vergangenheit). Para o crítico “o
gesto de tudo esquecer e perdoar, privativo de quem sofreu a injustiça, acaba
advindo dos partidários daqueles que cometeram as injustiças” (ADORNO,
1995, p. 29). Assim, é mais fácil pensar no esquecimento do que na memória,
quando nosreferimos à história.
Mas a qual história nos referimos? A história universal que se tornou “tan-
to mais problemática quanto mais o mundo uniformizado se aproximou de um
processo conjunto” (ADORNO, 2009, p. 265) ou das diversas histórias subal-
ternas e margeadas que pululam pelos quatro cantos do planeta, por conta de
sua historicidade inerente? Sobre tal possibilidade, Adorno alerta que a socie-
dade se mantém viva graças aos seus antagonismos, por isso, a história é uma

177
“unidade de continuidade e descontinuidade” (ADORNO, 2009, p. 266), o que
faz dela plural.
Devemos falar de uma história que não se limita em conhecer o passado,
mas também de se reconhecer como presente e perceber conforme aponta
Michel de Certeau (1982, p. 33) que “há uma historicidade da história que im-
plica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social".
Reflexão semelhante é feita por Georges Didi-Huberman ao constatar que é
preciso “fazer história de uma arte sob o ângulo ‘eucrônico’”, quando encon-
tramos similaridade das relações entre o artista e seu tempo trazendo à tona as
memórias, pois é no ângulo “eucrônico” que as “manipulações do tempo, atra-
vés da qual nós descobrimos antes um artista anacrônico, um ‘artista contra
seu tempo’” (DIDI-HUBERMAN, 2000, p. 10).
A escrita de uma história que vai contra seu tempo nos lembra de imedia-
to as proposições de Walter Benjamin em Sobre o conceito de história (Über den
Begriff der Geschichte), ao salientar a necessidade de contemplar com distanci-
amento os bens culturais, pois neles estão apregoadas suas origens embebidas
pelo horror, fazendo com que compreendamos nunca ter havido na história da
sociedade “um monumento da cultura que não fosse também um monumento
da barbárie” (BENJAMIN, 1994, p. 225), daí a necessidade de escovar a história
à contrapelo, para eriçar as memórias contra seu tempo, como fizeram acerta-
damente Brecht e outros artistas.
Trataremos, aqui, de um percurso que flerta com essa segunda forma de
história, pensada na esteira de Theodor Adorno, como uma história que “preci-
sa ser construída e negada” (ADORNO, 2009, p. 265). E com Giorgio Agamben,
ao definir que “assim como o tempo, cuja essência é pura negação, a história
não é jamais apreendida no átimo, mas somente como processo global. Ela se
encontra, portanto, subtraída à experiência vivida do indivíduo” (AGAMBEN,
2008, p. 120).
Temos, portanto, uma história atrelada ao mesmo tempo à memória e ao
testemunho, em que a experiência individual provoca transformações nas nar-
rativas aqui analisadas. Isso porque precisamos ler a história sob um novo viés,
capaz de suspender a idealização responsável por construir uma falsa convic-
ção da existência. Como salienta Jacques Le Goff, “tudo é histórico, logo a histó-
ria não existe” (LE GOFF, 1990, p. 19), ela é constituída pelos olhares, pelas
imagens e pelas ideologias de quem a constrói, a nega, a sustenta e a suspende.
Como arte, o cinema será fundamentalmente produtivo no esgarçamento
desses véus, pois “nasceu silencioso e continua a amar o silêncio. Mas também
pode amar a ambiguidade, a emoção indefinida. [...] Mas também apreendemos
coisas que não são explicáveis, nem identificáveis, nem definíveis” (CARRIÈRE,

178
1995, p. 35). Essa condição foi despontando aos poucos, na medida em que o
cinema emergiu das malhas do capitalismo e da era da reprodutibilidade técnica.
O cinema não se calou ao fato de termos experimentado uma ditadura
sanguinária. Os seus realizadores encontraram outras formas de discutir a
“vida nua” (zoè). Ao analisar essa disposição Ismail Xavier (2001, p. 20) diz que
“depois do golpe [civil-] militar, o cinema encontrou outro motivo para deixar
ainda mais urgente a sua discussão sobre a mentalidade do oprimido no Bra-
sil”. Entre as matérias argumentadas nos filmes da época, temos a vida sofrida
das populações do Sertão, os conflitos agrários, a industrialização e seus efei-
tos junto às comunidades tradicionais (povos da mata, quilombolas, ribeiri-
nhos, pescadores...), a urbanização desordenada, entre outras. A necessidade
de trazer essas matérias para o cinema, para Jean Claude Bernardet, represen-
ta a instauração do que ele chama de modo sociológico. Fizemos um mapea-
mento de algumas formas de constituição do debate sobre a “vida nua” (zoè)
durante a ditadura civil-militar de 1964.
Aqui nos deteremos em discorrer sobre um primeiro período da ditadura,
o que chamaremos de Cinema Sociológico (1963-1973), ligado aos anseios do
Cinema Novo e do Cinema Marginal aliados ao desejo de fazer uma cinemato-
grafia preocupada em realizar o que Ismail Xavier (2001, p.19) chama de “de-
bate de certos temas de uma ciência social brasileira, ligados à questão da
identidade e às interpretações conflitantes do Brasil como formação social”.
Neste artigo ficaremos apenas no Cinema Novo, destacando nessa aborda-
gem filmes que serão responsáveis pelo debate de questões sociais, sem uma
associação direta com o regime ditatorial ali instalado, mas que discutem o
autoritarismo e a violência impetrada pelos agentes públicos contra qualquer
forma de resistência a tal autoritarismo. Esse será o caso de Os fuzis (1963),
Vidas Secas (1964), Terra em transe (1967), O bravo guerreiro (1968), Os Her-
deiros (1969), entre outros.
O cinema brasileiro, desde o início da década de 1960, sofre com a instabi-
lidade no cenário político, aprofundada com a posse de João Goulart e mais
ainda com sua queda. Com a instauração da ditadura, o cinema nacional passa
por um processo inverso de sua natureza reprodutiva: cada vez mais os filmes
possuem dificuldade de circulação, muito mais em chegar às massas. Na histo-
riografia cinematográfica nacional todos os gêneros durante os anos mais du-
ros da ditadura civil-militar brasileira foram marcados por uma avalanche de
estratégias de controle, que dificultaram a circulação e a recepção de várias
películas produzidas no Brasil, mas aquelas que recebiam o selo do Cinema
Novo, foram especialmente controladas.

179
O Cinema Novo pode ser considerado o aríete das produções brasileiras
pensadas para combater a inércia abatida sobre a sociedade e a invisibilidade
dos menos favorecidos. Sua abordagem cria condições para que a sétima arte
brasileira figure pela primeira vez como parte de um projeto de cinema nacio-
nal, como destaca Jean-Claude Bernardet:

Com o Cinema Novo, as elites – ou parte delas passam a encontrar no cinema


uma força cultural que exprime suas inquietações políticas, estéticas,
antropológicas. Externamente, o Cinema Novo permitiu que se estabelecesse
com outros países um diálogo cultural; é raro que isto ocorra por parte de um
país subdesenvolvido. Esse trabalho internacional do Cinema Novo foi
importante para sua receptividade interna. A elite, por ser dependente dos
centros culturais dos países industrializados, hesitava em aceitar o Cinema
Novo. A repercussão internacional dos filmes deu-lhe uma certa segurança.
Se a Europa elogiava, é que algo de elogiável devia haver. (BERNARDET,
2006, p. 101)

Precisamos nos perguntar o que motivou toda essa dificuldade de circula-


ção dos filmes promovida pela censura, já que o cinema nacional caminha pela
ficção de maneira a apresentar um cenário que embrenha o espectador nos
espaços mais recônditos do Brasil, mesmo sem referências diretas à realidade
ditatorial em que estávamos imersos.
A entrada do Cinema Novo no cotidiano brasileiro se tornou representati-
va nos anos seguintes, com o lançamento da “trilogia do sertão” 3, como ficou
conhecido um conjunto de três filmes rodados no sertão nordestino e que de-
batiam particularmente o conflito sertanejo, mas que de certa forma prenunci-
avam a instalação de um Estado autoritário, marcado pela violência e o terror,
como analisa Ismail Xavier (2001, p 20):

prevalece o impulso pela mobilização para a revolta e a tonalidade do filme


era de esperança, pois estávamos no período anterior ao golpe [civil-]militar
de 1964, no momento de luta pelas reformas de base, com a questão agrária
no centro.

Além dos aspectos políticos, temos a dimensão técnica do cinema brasilei-


ro que “trabalhou as tensões entre a ordem narrativa e uma rica plástica de
imagens, fazendo ‘sentir a câmera’, como era próprio a um estilo que questio-
nava a transparência das imagens e o equilíbrio da decupagem clássica” (XA-
VIER, 2001, p 20). Todos esses elementos se juntaram a questões estéticas

3
Os filmes que compõem a “Trilogia do Sertão” são Os fuzis (1963), de Ruy Guerra, Vidas Secas (1963),
de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha.

180
para formar os caminhos trilhados pelo cinema brasileiro para resistir e que-
brar o silêncio em tempos sombrios.
A “trilogia dos sertões”, ao se voltar para o interior do país, busca desco-
brir outro Brasil, mais próximo dos dramas vividos pela população do sertão,
que ficaram durante muito tempo no desconhecimento da grande massa, pois
as imagens do Brasil que conhecíamos eram retiradas particularmente da lite-
ratura, o Sertão, o interior, a Amazônia, só “existiam” nos romances.
A primeira película dessa trilogia foi Os fuzis (1963), do moçambicano Ruy
Guerra, que toma como cenário a cidade de Milagres, objetivando ilustrar o
conflito do sertão e da fome nas terras da Bahia, onde uma tropa de soldados
tenta defender um armazém com alimentos, da sanha dos moradores da cida-
de, uma população miserável, famélica, hipnotizada e apática. Os escassos ali-
mentos ali estocados mobilizam o povo a uma espécie de ladainha da fome. O
desfecho do enredo leva os moradores ao centro da cidade, sob a liderança de
um profeta a orar diante de um boi sagrado pedindo pelo envio das chuvas e o
fim da fome. Mas o milagre não ocorre e, por conta disso, quebra-se o ciclo
místico em torno do deus boi.
Ainda que o filme dê visibilidade às camadas esquecidas da população
brasileira, eles são tratados como um povo sem importância por conta de vive-
rem à margem das grandes cidades e, portanto, não possuem representativi-
dade, e o pior de tudo são parte de um povo pobre que não pode pagar pelos
alimentos, o que demandaria a proteção dos produtos e dos interesses do capi-
tal. Assim, o filme não problematiza a incapacidade das camadas populares de
reconhecer e questionar a condição subalterna a que estão sujeitas, nem em
relação à impossibilidade de sobreviver à miséria. Nesse sentido, temos algo
muito próximo a descrição do muçulmano relatado por Primo Levi. O messia-
nismo sertanejo explorado no filme não gera o fim do sofrimento, pelo contrá-
rio, a população ali presente representa o nada, a vida matável, desumana,
passível de morte.
Como lutar e resistir diante de um cenário aterrador? A percepção dessa
impossibilidade leva Ruy Guerra a construir o conflito narrativo isolando a
população local do protagonismo. Por isso, o conflito se dá entre os “estrangei-
ros”: de um lado o personagem Gaúcho, um caminhoneiro, que fica em Mila-
gres por conta de um problema mecânico em seu caminhão; de outro, os sol-
dados, os quais invadem Milagres para fazer a segurança do transporte dos
alimentos desejados pela população, mas que se encontra asfixiada com aquela
penúria e aridez.
A miséria ali instalada chama atenção do caminhoneiro, porém a compre-
ensão de que a população continuamente morre de fome faz com que ele se

181
revolte. O estopim é a descoberta de que uma criança acabara de morrer de
fome e o pai dessa criança não consegue tomar nenhuma atitude. O choque
diante da inércia da população é movido pelo som das canções e rezas em tor-
no do boi sagrado. Essa realidade alienantefaz o Gaúcho rouba o fuzil de um
dos soldados e atira contra um dos caminhões que levava os alimentos da ci-
dade. Nesse momento, começa uma perseguição ao Gaúcho, regado ao som do
latido de cães. Os latidos revelam a instabilidade provocada pelo “estrangeiro”
e, de certo modo, rompe o silencio daquela cidade. Na fuga, o Gaúcho passa por
dentro de uma casa humilde e quando ouve que o local está cercado ele, heroi-
camente, responde “só se morre à toa quando é de fome, de bala não” (GUER-
RA,1963, 1:13:54 1:13:56)4.
A constatação de que a morte por fome é uma morte à toa deixa em evi-
dência que o filme de Ruy Guerra revela uma sociedade que se encontra na
“vida nua”. A contraposição desta vida nua é a resistência do Gaúcho, que passa
a ser herói, por acaso. Parece-nos que Guerra conjuga em seu filme um pouco
da instabilidade pela qual passa o Brasil nos anos que antecedem a ditadura,
como se previsse o controle das massas pela força dos fuzis.
No filme Os fuzis, Ruy Guerra contrasta a passividade da população a uma
necessidade de mudar aquela realidade, mas só quem está de fora é capaz de
construir estratégias de resistência ao autoritarismo dos coronéis que promo-
vem uma intensa repressão ao sertanejo. Roberto Schwarz, no artigo O cinema
e os fuzis, considera que o filme “não procura ‘compreender’ a miséria. Pelo
contrário, ele a filma como uma aberração” (1966, p.1), pois suas lentes docu-
mentam a seca e refletem sobre aquela realidade que contrasta dois mundos
em um só, os sertanejos inertes, sem expressão e os atores “estrangeiros” os
quais conflitam entre si e refletem sobre aquela realidade.
Desse modo, recuperando o conceito de “vida nua” de Giorgio Agamben,
podemos caracterizar a imagem do sertanejo filtrada em Os fuzis. No filme
encontramos um punhado de “vidas não mais dignas de serem vividas, até que
a própria natureza, muitas vezes com cruel demora, tolhe sua possibilidade de
continuar” (BINDING apud AGAMBEN, 2002, p.145). Identificamos o sertanejo
como aquele homo sacer, o humano matável, que não tem importância. Daí o
desprezo por sua vida, baseada em uma espécie de banalização do mal contra a
população que sobrevive no interior do Brasil. Para que alimentar esses corpos
matáveis, quem sabe, por milagre, a chuva lhes dê alguma esperança. Vemos,
que os motivos desse massacre são muitos, entretanto, aparece como justifica-

4
A partir desse momento quando for realizada citação dos filmes utilizaremos como marca o tempo de
início e fim de cada passagem citada, representada da seguinte maneira 1:13’54”, em que se lê: uma hora
treze minutos e cinquenta e quatro segundos.

182
tiva a aridez das terras e da geografia, isentando os poderosos de suas respon-
sabilidades, a culpa é da seca e não da cerca.
A relação da primeira fase do Cinema Novo é tão próxima com o regiona-
lismo na literatura brasileira (segunda fase da literatura modernista), que um
dos filmes emblemáticos daquela época foi Vidas Secas (1963), de Nelson Pe-
reira dos Santos, segundo filme da trilogia. Nele, o diretor arrebata o sertão
alagoano para as telas e mostra um dos conflitos mais fundamentais do drama
do homem sertanejo, e sua luta pessoal por se manter íntegro, mesmo sob
condições inumanas. Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino
mais velho, ganham as telas do cinema discutindo muito bem a condição de-
sumana que durante muito tempo era coisa de romance.
O cenário seco e árido do sertão explode nas telas, como um signo da ne-
cessidade de trazer para perto da sociedade urbana o trágico retrato do interi-
or nordestino. O filme inicia com o cenário marcante do sertão, o sol, como
acontece em Os fuzis. O contraste de luz e terra árida marca o binômio da indi-
ferença dos céus em relação à desgraça vivida em terra. Certamente essa cono-
tação religiosa de Os fuzis com o discurso religioso no início do filme não será
desenvolvida em Vidas Secas, mas o som será fundamental, pois o que corta a
paisagem é o grito do carro de boi, marca estridente da condição subumana.
O foco da narração em Vidas Secas é o indivíduo e não o cenário, porém
não há como deixar de lado este último, pois evidencia as contradições ali pre-
sentes, porque em meio aos contrastes assistimos à cena em que Fabiano se
dirige ao coronel, para acertar as contas pelo seu trabalho, e se depara com
uma apresentação de violino, cena ao mesmo tempo encantadora e o chocante,
por sua realidade não lhe permitir o contato com a arte, não lhe possibilita
nem mesmo saber como apreciar um som que não seja aquele de seu fero coti-
diano, entre eles o do carro de boi. Mas, naquela cena, o som é agradável aos
ouvidos e contrasta com a decepção de receber bem menos que merecia pelo
seu trabalho. Esses sons revelam a instância do saber e do poder, em uma fis-
sura clara entre os indivíduos.
Todavia, o sertanejo sabe de sua situação e precisa resistir, mesmo quan-
do coronéis, governos e militares querem explorá-lo e roubar-lhe os sonhos e a
hombridade. Este filme é uma importante transposição para o cinema dos
conflitos humanos, já encontrados no romance da década de 1930, mas que até
então só encontrávamos na literatura. Ao mesmo tempo, o filme assevera a
relação entre a crítica desenvolvida entre o romance de 30 e o Cinema Novo. A
transposição, por se tratar de uma obra da literatura extremamente dramática,
faz-se desafiadora, tanto que a crítica sobre o filme se mostra favorável ao
resultado fílmico tecendo elogios, como em B. J. Duarte, na crítica que realiza

183
no jornal Folha de São Paulo, em 09/05/1964. Para ele “qualquer tradução,
seja para outro idioma, seja para a linguagem do cinema, constitui a grande
surpresa e o enorme mérito desse filme, um dos mais importantes já realizados
em toda a nossa atribulada história cinematográfica” (LABAKI, 1998, p 40),
pois brilhantemente transpõe para as telas o chão de Fabiano, sua passividade
e ao mesmo tempo sua insistência pela sobrevivência, uma forma de resistir às
agruras do sertão e da pobreza, o que o faz em suas próprias palavras “um
bicho, capaz de vencer dificuldades” (RAMOS, 2008, p. 7). Diferentemente do
que ocorre em Os fuzis, temos sertanejos com seus conflitos e que reconhecem
a condição de miséria que aos poucos os aniquilam e não somente os “estran-
geiros” serão os responsáveis por filtrar o horror.
Tal como na narrativa literária, a relação entre o homem e os animais
também ocorre no roteiro adaptado, mas de outro modo, pois um dos conflitos
narrativos centrais de Vidas Secas são a vida e a morte da cachorra Baleia, que
mesmo amenizado no filme, se comparado ao romance, revelam a dinâmica do
sertão quando os bichos, muitas vezes, tornam-se mais humanos que os pró-
prios homens e conseguem perceber quando é hora de morrer. Esse é um pon-
to fundamental na narrativa, por termos também a morte por conta da fome.
Desta vez, porém, o sacrifício do animal não é para matar a fome da população
e sim para não morrer de fome, como o filho do sertanejo em Os fuzis. Temos
então mais uma expressão dessa vida matável, indigna de viver, pois como
Baleia poderia ser considerada parte da família, alegoricamente, ela representa
a morte de muitos filhos que por conta da seca e da miséria ficam no meio do
caminho.
Vale ressaltar que no filme de Nelson Pereira dos Santos temos uma exce-
lente caracterização de Sinhá Vitória, mulher forte, decidida, a qual traça o
destino da família e reflete profundamente sobre as necessidades humanas. A
mulher, mesmo colocada em condição subalterna pela sociedade, em Vidas
Secas se apresenta de forma diferente, pelo fato de encontrarmos uma perso-
nagem, que toma as rédeas de sua vida e da vida de sua família. Diferentemen-
te de Fabiano, Sinhá Vitória sabe fazer contas e toma as decisões, tem voz de
comando e é responsável por determinar o momento da diáspora em busca de
dignidade. Mesmo que Fabiano ainda figure como a voz de comando responsá-
vel pelos negócios da família, as decisões centrais são dadas por Sinhá Vitória.
Com isso, podemos dizer que o grande desafio do filme é tecer uma mulher, em
meio às relações patriarcais e apresentadacomo personagem coadjuvante,
resiste e se mostraum protagonismo determinante, responsável por ir em bus-
ca de esperança, mesmo quando parece não haver.

184
Por fim, o filme traça um debate sobre as desigualdades e a tirania que
destroem os sonhos mais simples como os de Sinhá Vitória: “Porque haveriam
de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existi-
am no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos como bichos?”
(RAMOS, 2008, p. 56). Esse discurso, mostram muito bem o quanto Sinhá Vitó-
ria compreende sua condição e deseja fazer a transformação, mas o “sertão”
não permite. Percebe a vida nua que a cerca, reflete, mas não possui ferramen-
tas para mudar essa realidade, não se cala, mesmo que fale apenas para si
mesma.
O terceiro filme da “trilogia do sertão” cinemanovista é Deus e o diabo na
terra do sol, (1964), de Glauber Rocha, responsável por fundar uma forma
completamente nova de produção cinematográfica, por perverter o enredo
fazendo com que o conflito do sertão possa ser compreendido desde o título,
quando aponta para o antagonismo presente na terra do sol. Deus e Diabo não
são entidades independentes, pois o que Glauber Rocha busca salientar é que,
diante das agruras do sertão, todos podem figurar ora como Deus, ora como
Diabo, como acontece com Manuel no início do filme, pacato e sonhador, que
vai prestar contas de seu trabalho junto ao coronel Moraes e entrega doze
vacas ao invés de dezesseis informando que quatro foram mortas por picada
de cobra. O coronel, desse modo, considera as vacas mortas como sendo a par-
te que cabe a Manuel e, por isso, o sertanejo não tem mais direito a nenhum
pagamento. O desrespeito do coronel em se recusar a fazer a partilha justa das
vacas vivas enfurece Manoel, que interpela o coronel:

_ Da licença outra vez seu Moraes. Mas que lei é essa?


_ Quer discutir?
_ Não senhor! Só tô querendo saber que lei é essa que não protege
o que é meu.
_ Já disse, tá dito! O senhor não tem direito a vaca nenhuma.
_ Mas seu Moraes...O senhor não pode tirar o que é meu.
_ Tá me chamando de ladrão?
_ Quem tá falando é o senhor.
_ Pra você aprender (chicotadas) seu ordinário!
(ROCHA, 1964, 14’10” – 15’15”)

As chicotadas se tornaram o estopim para o pacato Manuel, que empunha


o facão e mata o coronel. Em Vidas Secas temos uma cena análoga a essa, no
entanto Fabiano, diferentemente de Manuel, permanece pacato e pede descul-
pas por ter questionado o coronel. Certamente Glauber não deseja caracterizar
o que seria corriqueiro na vida do sertanejo, por isso evoca os brios humanos e
o instinto de sobrevivência. Ao contrário de Os fuzis e Vidas Secas, o sertanejo

185
de Deus e o Diabo na terra do sol protagoniza sua vida e corre em busca de sua
melhoria, resiste e enfrenta seu opressor. Não estará alheio como em Os Fuzis,
nem passivo como em Vidas Secas. A fuga empreendida por Manuel é para não
ser morto, mas também para realizar o sonho utópico de encontrar o mar e
com ele encontrar a fartura e sobreviver. A metáfora do Mar representa, no
final do filme, o desejo de transcender à condição subalterna e subumana que
vive o sertanejo, pois o “sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” 5 (ROCHA,
1964, 1:56’24”-1:56’26”), como diz a música no final do filme de Glauber Ro-
cha. Temos, assim, uma espécie de escatologia do bem, pois o que faltaria ao
sertão certamente destruiria por completo a espécie humana.
As construções no filme de Glauber Rocha tomam contornos bem alegóri-
cos principalmente por se aproximarem bastante de Os Sertões de Euclides da
Cunha, obra emblemática da literatura oitocentista. O beato que se diz enviado
de Deus é Sebastião, um santo negro que discursa em nome da liberdade e
busca mobilizar o sertanejo em nome da independência:

E o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. O homem não pode ser
escravo do homem. O homem tem que deixar as terras que não é dele e
buscar a terra verde do céu. Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus e
quem é rico vai ficar pobre nas profunda do inferno. (ROCHA, 1964, 22’35’ –
23’04”)

O discurso do beato se funda na construção de uma nova ordem a inverter


a lógica da exploração em que o sertanejo está imerso, mas o santo que pre-
nuncia liberdade e a terra prometida é ambíguo, um Deus-Diabo, que em busca
da manutenção de sua influência sobre o povo impõe a Manuel um ritual ma-
cabro para purificar a alma de Rosa (sua esposa), a única a fazer contraposição
ao beato. Novamente a mulher tem um papel determinante para expressar a
lucidez diante do caos. O ritual acontece e Rosa, após um grito desesperador de
Manoel, pega o punhal, que matara uma inocente criança, e o enterra nas cos-
tas do beato. Enquanto isso, a população que seguia Sebastião é massacrada
por Antônio das Mortes, matador de cangaceiros, contratado para matar Sebas-
tião e seus seguidores. Quando o matador entra na capela constata que o casal
matou o beato, resolve livra-los da morte, dizendo: “só deixei dois vivos para
contar a história” (ROCHA, 1964, 1:03’15” – 1:03’17”). Mais uma vez temos a
ambiguidade de caráter de Antônio das Mortes, que livra o casal, por acreditar
estarem eles livres dos domínios místicos, o que se repete no final do filme
quando eles acompanham o Capitão Corisco, cangaceiro remanescente do ban-

5
Esta célebre frase é atribuída a Antônio Conselheiro, em relação a pregação de suas profecias. Outra
versão desta frase é transcrita em Os Sertões, de Euclides da Cunha: “. . .em 1896 hade rebanhos mil
correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.” (CUNHA, 2000, p. 117)

186
do de Lampião, que será morto por Antônio das Mortes, o qual deixará o casal
partir em busca do mar.
A narrativa de Deus e o Diabo na terra do sol possui dois momentos distin-
tos e complementares: o primeiro profundamente místico, que revela a valen-
tia de Manuel e Rosa em busca de uma terra para viver, marcado pelo fanatis-
mo religioso de Manuel e a racionalidade de Rosa, a qual culmina na morte do
Santo Sebastião; o segundo, na percepção de que a liberdade não pode ser
conseguida por meio do derramamento de sangue quando o casal se junta ao
bando de Corisco e Manoel consegue fugir da morte pela segunda vez e correm
em busca de seu sonho utópico, que não se realiza. Essas ambiguidades huma-
nas destacadas nas personagens nos fazem observar que o filme não possui um
Deus e um Diabo e sim várias representações deles que disputam espaço no
cenário árido e nebuloso, assim como as almas de Manoel, Rosa, Sebastião,
Corisco e Antônio.
Em Deus e o Diabo na terra do sol encontramos também a representação
da vida nua, aquela que não tem porque viver, pois os pobres, os sertanejos,
são fuzilados, exterminados, torturados, como se não tivessem domínio sobre
suas vidas. E não tinham. A precarização na qual estão imersos impede que
haja possibilidade de sair desta condição aviltante, salvo os casos de Manoel e
Rosa, que hipoteticamente alcançam seu mar ou pelo menos não deixaram de
busca-lo.
O Estado autoritário brasileiro passa a considerar o Cinema Novo como
um novo problema a ser enfrentado e combatido. Por isso, as produções pas-
sam a ser acompanhadas de maneira mais próxima pela repressão: tudo o que
leva o rótulo do Cinema Novo é visto como perigoso, pois as produções se mul-
tiplicavam e as críticas aos poucos deixaram de ser distantes, como ocorria
quando falavam de uma vida sertaneja, longe dos problemas da cidade.
O Cinema Novo não se calou e levou suas preocupações para os grandes
centros urbanos, para mostrar que o problema do autoritarismo e da zoè não
estava prescrita ao sertão e sim estava presente em grande parte das relações
sociais brasileira, daí o cinema discutir o analfabetismo, a censura da impressa,
a criação das favelas, a invasão de nordestinos nos grandes centros urbanos e a
espoliação da mão de obra barata, nas construções e no comércio.
Enfim, a vida nua estava apresentada e representada nas telas, não mais
pelo signo do sertão, éramos inundados por outros sertões, em que a miséria
desagua na urbanidade.

187
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189
O MEIO AMBIENTE ENTRE DIVERGÊNCIAS
E INTERESSES: AS PRÁTICAS DE
REFLORESTAMENTO EM SANTA CATARINA
Samira Peruchi Moretto1

O Estado de Santa Catarina apresentou um histórico de intensa devastação


ao longo do século XX. A Floresta Ombrófila Mista, que ocupava 42,5% da área
do Estado, atualmente tem seus remanescentes foram avaliados em 0,07%.
Mesmo durante o processo de desmatamento que ocorreu no Estado, entre as
décadas de 1920 e 1970, já era reconhecido que o desmatamento poderia se
tornar algo imensurável e acarretaria perdas irrecuperáveis ao meio ambiente.
O governo federal, juntamente com o governo estadual, criou decretos e outras
legislações que asseguravam o reflorestamento no Estado. No entanto, durante
várias décadas as principais preocupações por parte do governo do Estado de
Santa Catarina, com relação à floresta, limitavam-se a questões em prol da
continuidade da ascensão econômica gerada pelo setor madeireiro.
Durante a primeira metade do século XX, a grande questão referente a na-
tureza presente nas falas dos governadores catarinenses era a preservação
para garantia de continuidade da exploração dos recursos madeiráveis no
Estado. O governador Adolpho Konder, em 1927, colocava-se preocupado com
a forma predatória da extração da madeira, ameaçando o aproveitamento total
dos derivados desta indústria, como pode ser observado:

A previdência em matéria florestal foi sempre uma necessidade, na qual não


podem prescindir os governos bem intencionados. Mas pelas consequências
econômicas para o nosso Estado, onde a ânsia de extrair madeiras não
escolhe processos adequados, não pode este grave problema permanecer
desprovido de uma regulamentação que corresponda a magnitude de sua
importância2.

Desde o período colonial, surgiram as primeiras manifestações por parte


da metrópole em conservar as matas, principalmente aquelas que costeavam
os rios e permitiam um estoque de madeira aos portugueses, sem a necessida-

1
Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007), mestrado em Histó-
ria pela mesma Universidade (2010), doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2014), com período sanduíche em California State University, Long Beach (2013).
2
Mensagem apresentada ao Congresso pelo Doutor Adolpho Konder, julho de 1927. Acervo APESC.

191
de de adentrar na mata fechada para o corte das árvores. A principal serventia
desta madeira era para reparo dos navios.
No século XVII, uma Carta Régia assinada por D. Maria I, mencionava a ne-
cessidade de punição aos que cortassem de forma indiscriminada as árvores. A
Carta dirigida ao Governador da Capitania da Paraíba determinava que este
deveria agir com severas penas contra os incendiários destruidores de mata. 3
Os recursos que existiam no Brasil, considerado paraíso terrestre, foram
avaliados como inesgotáveis. Iniciou-se assim, um período de exploração que
se tornou cada vez mais voraz com o passar dos séculos. Buarque afirma que “a
procissão dos milagres há de continuar através de todo o período colonial, não
a interromperá na Independência, sequer, ou a República4”.
Com o passar dos séculos, apenas crescia a exploração e a falta de preocu-
pação com a conservação dos recursos naturais do Brasil. As primeiras mani-
festações sobre o uso discriminado do meio natural surgiram no período mo-
derno, em meados do século XVIII.
O historiador José Augusto Pádua em sua obra Um sopro de Destruição5,
discute cinquenta autores dos séculos XVIII e XIX, que escreveram mais de
cento e cinquenta textos abordando as questões ligadas ao mundo natural em
suas falas e publicações. O compromisso afirmado pelo autor era de que o país
não estava totalmente ausente de pensamento ambiental. Havia era uma preo-
cupação em aperfeiçoar a questão econômica em função do melhor uso dos
recursos naturais.
No Brasil, o grupo de letrados representava uma minoria no mar de anal-
fabetos que era a maciça população colonial. Dentro desta elite, os que discuti-
am e criticavam a exploração destrutiva da natureza brasileira eram também
minoria. Neste grupo, as discussões sobre o recursos naturais se tornaram
mais presentes a partir da última década do século XVIII e possuíam suas espe-
cificidades e bases teóricas. É de se ressaltar também o fato de que a maioria
desses autores estudou ou entrou em contato com a escola fisiocrata 6 europeia,
podendo assim melhor visualizar a sua relação com a terra.
As questões referentes ao reflorestamento e principalmente com conser-
vação no âmbito nacional brotaram de forma tímida no início do século XX. Em

3
LAGO, Paulo Fernando. A consciência ecológica: a luta pelo futuro. Florianópolis: Ed. da UFSC:
UDESC,1986. p. 38.
4
Ibidem, p. 334.
5
PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Critica Ambiental no Brasil
Escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
6
Fisiocrata é quem sustenta a teoria que a terra é a única verdadeira fonte de riquezas e que existe uma
ordem natural e essencial das sociedades humanas, que é inútil contrariar com leis, regulamentos ou
sistemas, onde o homem domina a terra.

192
1911 foi criado o Instituto Florestal7 brasileiro, por Albert Löfgren8, com o
intuito de preservar as florestas do país. Com as falhas na legislação e na fisca-
lização, não foi possível assegurar proteção às matas. No entanto, a criação do
Instituto foi acompanhada de discussões quanto à necessidade de preservar.
Somente no dia 23 de janeiro de 1934 foi instituído o primeiro Código Florestal
Brasileiro, pelo decreto nº. 23.793, mesmo assim raramente aplicado e pouco
efetivo diante das inúmeras irregularidades.
O Código Florestal de 1934 preocupava-se com a manutenção, preserva-
ção e uso racional dos recursos florestais brasileiros. Sendo a primeira legisla-
ção específica para a questão ambiental, mostrou-se pouco preocupada com as
questões ligadas ao reflorestamento.
Na Secção III, onde fora legalizada a Exploração Intensiva, primeiramente,
é enfático na obrigação do reflorestamento de áreas desmatadas com a função
de exploração econômica:

Art. 49. Na exploração de florestas de composição homogênea, o corte das


árvores far-se-a de forma a não abrir clareiras na massa florestal. Parágrafo
único. As árvores abatidas, salvo as que já se estiverem renovando por
brotação, serão substituídas por mudas da mesma espécie ou por outra
essência florestal julgada preferível, devidamente selecionada, sempre com o
espaçamento que a técnica exige9.

Mesmo exigindo o replantio de áreas desmatadas, o governo federal não


definiu de forma clara as espécies que poderiam ser utilizadas como forma de
reflorestamento. Assim, uma série de espécies exóticas foi introduzida já na
década de 1930, ameaçando a flora nativa que fora intensamente desmatada.
Dentro da legislação havia uma ressalva aos proprietários de terrenos
compostos pela floresta heterogênea, legalizando a sua transformação para
uma floresta homogênea, ou seja, composta por apenas uma espécie:

Art. 51. É permitido aos proprietários de florestas heterogenias, que


desejarem transformá-las em homogêneas, para maior facilidade de sua
exploração industrial, executar trabalhos de derrubada, ao mesmo tempo, de
toda a vegetação que não houver de subsistir, sem a restrição do art. 23,
contanto que, durante o início dos trabalhos, assinem, perante a autoridade
florestal, termo de obrigação de replantio e trato cultural por prazo

7
MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista! Viagem Ambiental no Brasil do século XVI ao
século XXI. São Paulo: Editora Peirópolis, 2005. p.140.
8
Albert Löfgren nasceu em 1834 em Estocolmo na Suécia e formou-se em Filosofia e Ciências Naturais.
A convite de Andrés Frederick Ragnell veio para o Brasil e residiu por muitos anos em São Paulo, onde
trabalhou como botânico e meteorologista, e onde esteve em contato com a destruição da floresta. Foi
diretor do Instituto Florestal de São Paulo.
9
Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro de 1934.

193
determinado, com as garantias necessárias.10

Os proprietários ficavam então, responsabilizados pelo “termo de


obrigação de replantio e trato cultural por prazo determinado”. Isso significava
que deveriam reflorestar a área que haviam desmatado, sem especificações e
nem detalhamentos sobre a necessidade de manutenção da floresta nativa ou
heterogênea, que habitava o local que agora era ocupado pela floresta homo-
gênea.
Na sequência do Código Florestal de 1934 são levantadas as questões
em torno das punições decorrentes do não cumprimento da legislação vigente.
Dentre as penalidades as mais comuns eram: prisão, detenção e multas. Tais
punições eram restritas a destruição da floresta, como atear fogo, invadir áreas
protegidas, inserir pragas ou soltar animais em áreas impróprias. Não havendo
assim, nenhuma punição discriminada a quem deixasse de reflorestar as áreas
desmatadas.
Dentro do Código de 1934 ficou também instituída a criação de um Conse-
lho Florestal Federal, com sede no Rio de Janeiro, constituído pelos represen-
tantes: do Museu Nacional, do Jardim Botânico, da Universidade do Rio de
Janeiro, do Serviço do Fomento Agrícola, do Touring Club do Brasil, do Depar-
tamento Nacional de Estradas, do Serviço de Florestas, ou de Matas, da Muni-
cipalidade do Distrito Federal, e ainda por outras, de notória competência es-
pecializada, nomeadas pelo presidente da República. Esses representantes
ficariam responsáveis por “promover e zelar pela fiel observância deste código
e leis, ou regulamentos complementares, acompanhando a ação das autorida-
des florestais e representando-lhes sobre necessidades ou deficiências dos
serviços, ou sobre reclamos do interesse público 11”.
A execução e a fiscalização foram delegadas a uma série de órgãos esta-
duais e municipais. O andamento dos processos era algo lento e descontínuo
por haver muitas instituições envolvidas. Warren Dean expôs as fragilidades
do Código Florestal de 1934, questionando a validade e cumprimento das
promessas feitas durante sua criação. Na tentativa de melhorar a fiscalização,
foi transferido à polícia civil o cargo de exigência no cumprimento da legislação
do Código de 1934. A falta de preparo para tal cargo fez também deste um
projeto fracassado, por isso Dean afirma que “o principal defeito do código, de
fato, era que ele nunca havia sido cumprido: nunca foram alocados fundos

10
Ibidem.
11
Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro de 1934. Capítulo IV, Conselho Florestal.

194
suficientes e, por muitos anos, sua aplicação era fiscalizada por voluntários,
muitos dos quais em busca de propinas.” 12
No Estado de Santa Catarina, uma série de discussões foi levantada logo
após a criação do mesmo. O governo do Estado mostrou-se coerente com as
propostas da legislação e chegou a criar um Decreto-lei com o objetivo de pre-
servar as florestas catarinenses.
As primeiras iniciativas para o reflorestamento por parte do governo cata-
rinense surgiram no final da década de 1930, quando o governador Nereu
Ramos aprovou o Decreto-lei nº 132, que visava a recuperação e conservação
da floresta. O governador colocou-se disposto a preocupar-se com a manuten-
ção da floresta com espécies nativas da região, afirmando: “Considerando que a
extração de madeiras, para quaisquer fins industriais, deve ser feita de modo
que, pelo plantio, seja assegurada a ‘feição de floresta originária’” 13 .
As questões que ganham destaque no Decreto-lei catarinense estão inti-
mamente ligadas ao setor econômico madeireiro e ao potencial que se revelava
no Estado na primeira metade do século XX. No decorrer do termo legal o re-
florestamento aparece seguido da inexistência de uma classificação ou exigên-
cia de com qual espécie o replantio deve ser feito. A “feição de floresta originá-
ria” vai ganhando significado diferente, isto é, não é interpretado como obriga-
tório o replantio com espécies nativas, como é apresentado nos artigos subse-
quentes.
No Art. 6 do mesmo Decreto-lei é abordado quais espécies deveriam ser
reflorestadas: “Art. 6 - As árvores abatidas serão substituídas por mudas da
mesma espécie ou de outra essência florestal, julgada conveniente, devidamen-
te selecionadas e com o espaçamento que a técnica exige.” 14 Esse julgamento se
torna ambíguo e pouco substancial, dando margens a uma série de interpreta-
ções e levando ao reflorestamento uma grande variedade de espécies, ou seja,
quando ele era realizado, já que a fiscalização no estado de Santa Catarina era
precária.
Em 1949 existiam 19 municípios com agentes florestais e em todo o Esta-
do apenas 10 municípios que possuíam delegado. Destes 10, apenas em três o
delegado e o agente não eram a mesma pessoa 15. Isto é, uma área de 95.346
km², era fiscalizada por 19 agentes florestais, na metadade do século XX,
depois de mais de dez anos de vigor do Cógigo Florestal.

12
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1996. p. 303.
13 Decreto de Lei 132. Relatório apresentado em outubro de 1938 ao exmo.sr. Presidente da República,
pelo Dr., Nereu Ramos, Interventor Federal no Estado de Santa Catarina. Acervo: APESC.
14
Decreto de Lei 132. 1938. Acervo: APESC.
15
Relatório de Diversos Órgãos -Agricultura-Relatório de Serviço Florestal, 1949. Acervo: APESC.

195
A falta de preparo e fiscalização era notada pela população, que se mos-
trava preocupada com as reservas naturais. É de se destacar que mesmo ha-
vendo receio com a falta de cuidados por parte do governo em não executar a
legislação, o que mais chamava a atenção até praticamente a década de 1970
era simplesmente a manutenção das indústrias madeireiras que se espalhavam
principalmente pelo planalto catarinense. Havia, sim, zelo pela economia local
lageana, que empregava e mantinha o bem-estar social. No entanto, não havia
uma preocupação ideológica forte para a preservação da floresta e o replantio
voltado para a preservação.
O Jornal Correio Lageano, de 1944, comenta o Código Florestal de 1934 e
chama a atenção para o desmatamento imensurável que acontecia não apenas
na região de Lages, como em todo o país:

A terra nua, varrida pelos ventos e roída pelas enxurradas, hoje cobra o duro
preço do seu empobrecimento pela loucura dos que trataram a mata a ferro e
fogo. Contra o crime clamou Alberto Torres16. Seu protesto era a advertência
que dirigia aos responsáveis pela gestão da coisa pública para que se
adotassem imediatas medidas de proteção destinadas a resguardar o que
ainda restava do nosso patrimônio florestal. Clamou em nome do futuro.
Clamou pelo amor da Pátria. Em vão falou o pensador. O machado
empunhado mais por anos aventureiros que dirigido pelo bom senso,
prosseguiu a obra demolidora. Graças felizmente a uma melhor compreensão,
nos últimos tempos, Torres começou a ser ouvido. Providências oficiais foram
adotadas contra as derrubadas inúteis. Surgiu o Código Florestal. Sobre essa
importante peça básica assenta toda a legislação regional sobre o assunto.
Desde então, aos Estados incumbe organizar, em seus respectivos territórios,
a proteção às florestas remanescentes, assim como fomentar o florestamento
e o reflorestamento das terras disponíveis17.

A matéria finda afirmando a importância não apenas da existência de um


Código Florestal, mas também, a necessidade dele ser forte a atuante, para não
resultar na escassez das florestas. Essa cobrança era condizente com a situação
do Estado: mesmo estando em vigor o Código Florestal, os órgãos estaduais
haviam registrado, no ano de 1948, 703 serrarias no Estado.18 Destas, 157
estavam localizadas no município de Lages.

16
Alberto Torres foi um dos pensadores ruralistas brasileiros. Publicou em 1914 os livros O problema
nacional brasileiro e A organização nacional e, em 1915, As fontes da vida no Brasil, nos quais conce-
bia o Brasil como um país de natureza essencialmente agrária, opondo-se assim a qualquer veleidade
industrialista. Nacionalista, defendia o fortalecimento do Executivo, convocando os intelectuais a parti-
cipar da organização da sociedade. Dentre suas obras tecia comentário sobre a necessida-
de de conservação da floresta e dos recursos naturais. In: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biog
rafias/ev_bio_albertotorres.htm
17
O reflorestamento. Correio Lageano. 04 de março de 1944. Ano V, n 229, coluna 02 p. 03.
18
Relatório do Serviço Florestal do Estado de Santa Catarina, 1948.

196
Na década de 1940, mais um importante órgão com função de preservação
e manutenção da floresta é criado. Pelo Decreto-lei nº 3.124, de março de
1940, Getúlio Vargas cria o Instituto Nacional do Pinho (I.N.P.), onde é delega-
da aos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina a função de coor-
denar o órgão oficial dos interesses dos produtores, industriais e exportadores
de pinho, com sede na Capital da República, administrativa e financeiramente
autônomo. 19 Dentro deste decreto, o Capítulo VII é referente ao reflorestamen-
to:

Art. 15. O Instituto contribuirá para o reflorestamento, com o replantio das


espécies determinadas pelos técnicos do Ministério da Agricultura. Em terras
adquiridas para esse fim, ou coadjuvando iniciativa particular, na forma que
for estabelecida pelo regulamento. Art. 16. Os Governos estaduais auxiliarão
a multiplicação de parques e poderão assumir os ônus de sua administração,
mediante acordo com o Instituto. Parágrafo único. A contribuição do Instituto
para o reflorestamento será proporcional à renda arrecadada em cada
Estado.

A preservação da floresta contrariava as intenções de exploração de mui-


tos empresários do setor madeireiro. Era intensa a movimentação econômica
na região em função da extração da madeira. A floresta nativa com rico volume
madeirável era visada e derrubada, e a fiscalização se mostrava impotente
perante tal situação.
Em 16 de fevereiro de 1948 foi firmado um acordo entre o Governo do Es-
tado e a União, criando o “Acordo Florestal”, que tinha como finalidade a exe-
cução de serviços relativos ao florestamento, reflorestamento e proteção das
matas do Estado. A coordenação do Acordo Florestal era diretamente subordi-
nada ao Ministério da Agricultura e a prestação de contas era realizada através
de um relatório redigido anualmente.
Quando é abordado o reflorestamento, o relatório referido fazia aponta-
mentos sobre a quantidade de mudas que foram distribuídas, em maior parte,
de eucalipto; uma espécie exótica, “em virtude da preferência por parte dos
interessados e seu aproveitamento em menor prazo que qualquer outra espé-
cie”.20
No Relatório de 1951, havia um item específico que tratava sobre a situa-
ção do Florestamento e Reflorestamento do Estado, onde eram apresentadas
as quantidades de mudas expedidas e as pessoas atendidas. No município de
Lages eram poucas as pessoas interessadas em tal atividade no início da déca-

19
Decreto-lei Nº. 3.124, de 19 de março de 1941.
20
Relatório do Acordo Florestal com o Estado de Santa Catarina, 1951. p. 04. Acervo APESC.

197
da de 1950, como pode ser observado nas tabelas 05 e 06 que estão anexadas
no relatório:

Quadro de produção de mudas

Mudas
Campo de em
Entidade Mudas Mudas Fabricação
Nº cooperação estoque
contratante Produzidas Fornecidas de torroes
Localidade para
1952
[...]

E.P.Agricultura
20 Lages 28.077 9.882 18.195
Caetano Costa

[...]
Total
1.655.657 1.350.113 305.544 573.840
Geral
Tabela 05 - Relatório do Acordo Florestal com o Estado de Santa Catarina, 1951. Acervo
APESC.

Relação por município da distribuição de mudas e do número de


pessoas beneficiadas

Nº de ordem Município Nº de pessoas Quantidade de


atendidas mudas
22 Lages 25 9964
Tabela 06 - Relatório do Acordo Florestal com o Estado de Santa Catarina, 1951. Acervo
APESC.

O fato de não haver uma fiscalização eficiente era agravado pela existência
de um número realmente reduzido de funcionários para a fiscalização e exi-
gência do cumprimento da lei. O número de funcionários era relativamente o
mesmo apresentado em 1948, já aqui citado. Em 1951, havia 21 agentes flores-
tais, 13 guardas e 5 Delegados Florestais simples21. Por todos esses motivos, os
funcionários alegavam que o serviço de proteção florestal não poderia apre-
sentar a eficiência desejada, uma vez que sua organização se baseia na nomea-
ção de pessoas sem remuneração e sem o necessário preparo para o exercício
do cargo.

21
Ibidem, p. 10.

198
Presente no mesmo Relatório havia queixas dos representantes do conse-
lho sobre a dificuldade na manutenção da legislação referente à proteção das
florestas existentes no Estado. Era colocado que: “As derrubadas e os incêndios
florestais continuam a se registrar anualmente, em proporções cada vez maio-
res, sem que se tenham os meios necessários para coibir tais abusos, obrigando
que toda exploração de mata seja feita de conformidade com o disposto nas
citadas leis”22.
O desmatamento continuava, em grande escala e sem controle florestal
adequado. Os registros de serrarias cresciam e no ano de 1951 foram emitidos
no Estado 2.080 certificados de regulamentação e funcionamento de serrarias,
sendo 1.800 renovações dos registros já existentes e 280 novas serrarias cria-
das a partir de 193823.
Na década de 1950 os madeireiros alegavam descaso por parte do gover-
no e falta de incentivos para o manejo e a exploração da madeira. Os madeirei-
ros enfrentavam problemas com a redução de árvores e com a falta de financi-
amento do governo:

Corroborando discurso do deputado Fernando Ferreira de Melo, seu


companheiro de bancada, o ilustre representante de Porto União, aconselha
com fundamentados argumentos, a transformação do atual Instituto do Pinho
num banco de produção com a finalidade precípua de atender as
necessidades dos madeireiros e aliviar-lhes as crises nos momentos
oportunos. As dificuldades que enfrenta, atualmente a classe madeireira do
Estado, residem na falta de financiamento e de estoques.24

As pressões apenas se alargavam, pois o governo ao mesmo tempo tinha


interesse em manter os quadros favoráveis de exportação de madeira, mas
sem deixar que a mesma se esgotasse por falta de uma legislação que incenti-
vasse o reflorestamento com araucárias e outras árvores nativas da região. A
década de 1950 foi considerada o fim do ciclo da extração dos grandes pinhei-
ros, precedendo a crise que se instalou na década de 1960.
Em função dos graves problemas ambientais acompanhados da falta de
fiscalização e de uma legislação consistente, no início da década de 1960 o
Código Florestal de 1934 foi reavaliado e constatou-se a necessidade da cria-
ção de uma nova legislação voltada ao meio ambiente.
Assim, pela Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, é instituído o novo
Código Florestal, que se propunha a cobrir as brechas do Código anterior. Uma
boa parte da legislação refere-se ao controle do corte indiscriminado das áreas

22
Relatório do Acordo Florestal com o Estado de Santa Catarina, 1951. p. 09
23
Relatório do Acordo Florestal, 1951. Op. Cit. p. 10
24
A Crise da Madeira. Região Serrana. Lages 15 de junho de 1950. Ano II, n :134, coluna 01 p. 3.

199
florestais do país. As primeiras prerrogativas são referentes às florestas exis-
tentes no território nacional e às demais formas de vegetação, que passavam a
ser reconhecidas como de utilidade às terras que revestem; são bens de inte-
resse comum a todos os habitantes do país, exercendo-se os direitos de propri-
edade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei
estabelecem25.
No Código de 1965 três artigos referem-se ao reflorestamento propri-
amente dito. O primeiro deles, o Artigo 18, se refere ao reflorestamento de
áreas particulares: “Nas terras de propriedade privada, onde seja necessário o
florestamento ou o reflorestamento de preservação permanente, o Poder Pú-
blico Federal poderá fazê-lo sem desapropriá-las, se não o fizer o proprietá-
rio”26.
Iniciou-se, assim, o processo de conservação, pelo menos no papel, e ma-
nejo das áreas de preservação permanente, em terrenos que pertenciam a
proprietários distintos da União. Dentro da legislação não fora estipulado de
que forma seria feito o reflorestamento e nem estabelecida a penalidade a ser
aplicada com a falta de cumprimento de tal exigência.
O outro artigo referente ao reflorestamento era específico sobre o financi-
amento que o governo proveria para os proprietários interessados no plantio
de árvores. O governo responsabilizava-se pela disposição dos créditos e das
máquinas, e também dava prioridade em distribuir os financiamentos aprova-
dos pelo Conselho Florestal Federal, como pode ser observado a seguir no Art.
41:

Os estabelecimentos oficiais de crédito concederão prioridades aos projetos


de florestamento, reflorestamento ou aquisição de equipamentos mecânicos
necessários aos serviços, obedecidos as escalas anteriormente fixadas em lei.
Parágrafo único. Ao Conselho Monetário Nacional, dentro de suas atribuições
legais, como órgão disciplinador do crédito e das operações creditícias em
todas suas modalidades e formas, cabe estabelecer as normas para os
financiamentos florestais, com juros e prazos compatíveis, relacionados com
os planos de florestamento e reflorestamento aprovados pelo Conselho
Florestal Federal.27

O Artigo 41 do Código Florestal de 1965 abordou de forma mais pro-


funda o reflorestamento. No entanto, tal artigo deixa de lado prerrogativas
fundamentais como a descrição da forma que o reflorestamento deveria ser
aplicado e quais as espécies que deveriam ser utilizadas para o mesmo.

25
Código Florestal de 1965. LEI Nº 4.771, DE 15 DE SETEMBRO DE 1965. Presidência da República
Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. In: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L4771.htm
26
Ibidem.
27
Idem.

200
A falta de descrição de com quais espécies deveria ser feito o refloresta-
mento no Código Florestal de 1965 deu abertura para uma série de irregulari-
dades no processo de liberação de créditos para inserção de distintas espécies.
Como não foi estipulado que o replantio deveria ser feito com espécies nativas
ou simplesmente delimitado as espécies que não poderiam ser consideradas
próprias para o replantio, o reflorestamento passou a ser feito com espécies
exóticas e também com árvores frutíferas. As espécies exóticas como o Pinus
ssp e o Eucalyptus foram preferíveis não pelo seu valor comercial, mas sim por
sua maturidade precoce comparada a espécies nativas.
Apoiados na legislação de 1965, produtores agrícolas viram a oportunida-
de de conseguirem financiamentos por parte do governo, pois poderiam utili-
zar árvores frutíferas para o reflorestamento e receberiam para isso um apoio
financeiro governamental, e assim obteriam uma nova fonte de renda. Foi nes-
te momento que muitas cidades do planalto catarinense conseguiram o finan-
ciamento para a implantação da fruticultura, como afirmam Klanovicz e Noda-
ri, na análise sobre a implementação da macieira no município de Fraiburgo:

Para implantar seus pomares e viveiros, era necessário investir tempo e


dinheiro na preparação inicial do terreno de plantio e a SAFRA (Sociedade
Agrícola Fraiburgo) trabalhava incessantemente na transformação da
paisagem para esse fim. Os desmatamentos das futuras áreas de plantio
beneficiavam não somente a empresa, mas também outros setores da
economia, em especial a manutenção das atividades da serraria dos irmãos
Frey, também sócios da SAFRA. (...) Na prática, a ideia da implementação de
“arvoredos homogêneos” era muito relativa. Para o engenheiro agrônomo
Jorge Bleicher, a paisagem em Fraiburgo poderia ser transformada em
projetos de reflorestamento. 28

O cultivo de plantas frutíferas para a comercialização desde a década


de 1920 era estimado como fonte de renda. Para a cidade de Fraiburgo, a im-
plementação de tal cultura movimentou as exportações madeireiras, em fun-
ção do desmatamento, e as exportações de frutas, no caso específico da maçã. O
jornal A Época de Lages, já nas primeiras décadas do século XX, fazia a promo-
ção e o incentivo para a produção frutífera no Estado, chamando a atenção
para a falta de continuidade nos cuidados com as plantas:

Sob o título “Uma nova fonte de riquezas” publicamos hoje um artigo que nos
faz prever um futuro promissor de melhores prosperidades para esta região.
Diante das demonstrações claras ali encontradas, ninguém poderá deixar de
crer que muito breve nossas frutas serão reduzidas a dinheiro. O plantio de

28
KLANOVICZ, Jó; NODARI, Eunice. Das Araucárias às Macieiras: transformações da paisagem em
Fraiburgo/SC. Florianópolis: Insular, 2005. p. 65 e 66.

201
árvores frutíferas entre nós, há mais de vinte anos que foi começado. Como,
porém, por circunstancias diversas, as frutas não tivessem saída, não se
cuidou em multiplicar a plantação, ficando em completo abandono o
arvoredo existente. 29

Além da opção de fazer o reflorestamento com árvores frutíferas, nes-


te momento crescia o reflorestamento com espécies exóticas madeiráveis,
como é o caso do Pinus ssp e do Eucalyptus. O plantio de espécies exóticas não
era restrito e nem discriminado no Código Florestal de 1965, e os interessados
no plantio recebiam até incentivos fiscais para seu plantio.
O Código de 1965 foi responsável ainda pela criação da Semana Flo-
restal, onde havia uma prerrogativa sobre reflorestar:

Art. 43. Fica instituída a Semana Florestal, em datas fixadas para as diversas
regiões do País, do Decreto Federal. Será a mesma comemorada,
obrigatoriamente, nas escolas e estabelecimentos públicos ou
subvencionados, através de programas objetivos em que se ressalte o valor
das florestas, face aos seus produtos e utilidades, bem como sobre a forma
correta de conduzi-las e perpetuá-las. Parágrafo único. Para a Semana
Florestal serão programadas reuniões, conferências, jornadas de
reflorestamento e outras solenidades e festividades com o objetivo de
identificar as florestas como recurso natural renovável, de elevado valor
social e econômico30.

O Código Florestal de 1965, como o Código de 1934, foi visto igualmente


como falho e com brechas que colocavam a biodiversidade brasileira em risco.
Warren Dean afirma que o próprio código era suficiente para eliminar toda
árvore nativa ainda existente:

Embora o proprietário fosse obrigado a manter 20% da sua terra florestada,


não havia, tal como antes, nenhum dispositivo contra a venda dessa faixa de
mata a um comprador, que podia cortar até 80% da mesma. O governo
também não repudiava a destruição de “florestas de preservação
permanente”, embora os casos de “utilidade pública ou interesse social”
ficassem sujeitos a aprovação do presidente. (...) Incentivos fiscais eram
insuficientes para convencer os proprietários particulares a preservar a
floresta primaria ou plantar florestas permanentes.31

O fim da década de 1960 foi marcado por um impasse extremamente pre-


judicial ao meio ambiente. No período da ditadura militar os preceitos de de-
senvolvimento não se restringiam frente à ideia da conservação dos biomas.

29 A Fruticultura cA Época. Lages 18 de novembro de 1928. Ano IV n. N 124, coluna 03, p.


30 Código Florestal de 1965, Artigo 43.
31 DEAN, Warren., 1996. Op. Cit. p. 304 e 305. como fonte de renda

202
Assim, o desenvolvimento econômico, tão almejado pelos militares, fora colo-
cado à frente da conservação dos recursos naturais. O Código Florestal de 1965
só veio reforçar a ideia de que o meio ambiente era secundário e precisava ser
sacrificado em prol do “desenvolvimento” - o utilitarismo do meio prevalecia à
preservação do mesmo. Na década de 1960 também foi extinto o Instituto Na-
cional do Pinho, em detrimento da criação do Instituto Brasileiro de Desenvol-
vimento Florestal (IBDF).
O presidente Emílio G. Médici aprovou o regulamento da Lei número
5.106, de 2 de setembro de 1966 e do Decreto-lei nº. 1.134, de 16 de novembro
de 1970, que dispõe sobre os incentivos fiscais para o desenvolvimento flores-
tal no país. Este documento procura especificar os casos de apoio financeiro
disponibilizado pela União para o florestamento e reflorestamento no país, e
coloca as seguintes condições em um parágrafo único:

Dos Empreendimentos Florestais: Art. 1º Os empreendimentos florestais que


possam servir de base à exploração econômica, à conservação do solo e dos
regimes das águas, e que contribuam para o desenvolvimento florestal do
País, através do florestamento ou reflorestamento, poderão ser objeto dos
incentivos fiscais de que trata este Regulamento. § 1º Os empreendimentos
florestais a que se refere este artigo serão objeto de projetos específicos,
anuais ou plurianuais, elaborados de acordo com o presente Regulamento. §
2º Os projetos de empreendimentos florestais deverão ser submetidos,
previamente, ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento FLORESTAL - IBDF,
a fim de poderem ser considerados como aptos a receber incentivos fiscais.
Art. 2º Os empreendimentos florestais poderão ser realizados por pessoas
físicas ou jurídicas, residentes ou domiciliadas no País. 32

Juntamente com este decreto o governo colocou-se disposto a financiar a


silvicultura no país, sem muitas especificações com relação às espécies que
deveriam ser utilizadas. Nas Disposições Gerais deste mesmo decreto existe a
imposição de que: “Nenhum projeto poderá ser aprovado se não previr um
programa de plantio mínimo de 1% (um por cento) de essências típicas da
região especialmente valiosas.” 33 Este artigo não especificou quais espécies
compõe as “espécies valiosas”, podendo ter uma conotação que agrega valores
monetários ou no sentido de que são espécies raras que precisam ser conser-
vadas. A porcentagem a ser reflorestada com espécie nativa foi estipulada em
1%, mas poderia mudar de acordo com a aprovação do IBDF (Instituto Brasi-
leiro de Desenvolvimento Florestal), como constava no parágrafo único do Art.

32
DECRETO n.º 68.565, DE 29 DE ABRIL DE 1971.
33
DECRETO n.º 68.565, Artigo 23.

203
23: “Fica a critério do IBDF aumentar a percentagem estabelecida neste arti-
go”34.
A Lei Federal nº. 5.106 entrou em vigor em 1966, conhecida como Lei de
Incentivos Fiscais para replantio, que permitia que até 50% do imposto de
renda fosse empregado em atividades de florestamento e reflorestamento.
Para poder aplicar tal valor era necessário apresentar um projeto para ser
avaliado e aprovado pelo hoje extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal, o IBDF, compreendendo um plantio mínimo de 10.000 árvores 35.
Em 1967 o Código Florestal é promulgado. Algumas obrigações foram reti-
ficadas e entre elas, aparece a obrigação das indústrias que produziam carvão
e extraiam madeira de plantar amplas florestas para suprirem suas necessida-
des. Surgiram também algumas contradições, como a extinção da cobrança de
tributos a essas áreas plantadas e o abandono do princípio de que os proprie-
tários deveriam proteger os mananciais, passando essa tarefa ao Estado.
O IBDF foi criado com a função de ser uma “entidade autárquica, integran-
te da administração descentralizada do Ministério da Agricultura dotado de
personalidade jurídica própria com sede e foro no Distrito Federal e jurisdição
em todo o Território Nacional.” 36
Uma das funções do IBDF era responsabilizar-se pelo projeto de floresta-
mento e reflorestamento do país. O órgão fazia análise e opinava sobre os pro-
jetos de florestamento e reflorestamento elaborados para fins de usufruir os
incentivos fiscais previstos em leis e regulamentos apropriados. Muitos proje-
tos foram desenvolvidos e financiados pelo governo sem uma avaliação prévia
do desgaste ecológico que resultariam.
O IBDF elaborou planos indicativos, anuais e plurianuais de florestamento
e reflorestamento nacionais e regionais, objetivando: I - a melhor alocação de
recursos no setor; II - o desenvolvimento de espécies florestais de utilização
econômica; III - o florestamento e reflorestamento com fins econômicos; IV - o
florestamento e reflorestamento com fins ecológicos, turísticos e paisagísti-
cos37.
O reflorestamento apoiado pelo Instituto visava claramente fins econômi-
cos, por não se preocupar com a exigência de espécies, fossem elas exóticas ou
nativas. As primeiras pressões para o reflorestamento vieram com penalidade
para desobediência das determinações do IBDF sobre o reflorestamento de
áreas devastadas; “foi prevista multa de até um por cento (1%) do valor do

34
DECRETO Nº 68.565, Artigo 23.
35
FREY, Willy. Reflorestar é a solução. Editora e gráfica Curitiba, 2003.p. 44-45.
36
Decreto-lei Nº 289, DE 28 DE FEVEREIRO DE 1967.
37
Ibidem.

204
salário-mínimo mensal da região por árvore não plantada, dobrando em cada
reincidência.” 38
No final da década de 1960 houve estímulos a partir das políticas monetá-
rias, creditícias e fiscais. A concessão de isenções fiscais para o setor agrícola e
para o setor florestal fazia parte do Plano de Governo e tinha como objetivo
estimular as exportações dos produtos primários. 39
Na década de 1970, pelo Decreto-lei n 52.370, foi criado o Instituto Flores-
tal, que tinha como objetivo a proteção, a recuperação, a pesquisa e o manejo
da biodiversidade e do patrimônio natural. Mantinha a mesma prerrogativa do
Código Florestal de 1965, ao tratar do reflorestamento, já que se propunha
“intervir no setor florestal, detendo o domínio das florestas de preservação
permanente, e efetuar reflorestamento, como empresário florestal, com fins
conservacionistas, técnicos e econômicos, de acordo com plano previamente
aprovado.”40
Com a vigência do Código Florestal, aumentavam o número de investi-
mentos nos setores ligados ao reflorestamento para fins comerciais. O Estado
de Santa Catarina promoveu um estudo denominado “Distrito Florestal”, onde
foi feito um levantamento sobre as possibilidades de aumentar o refloresta-
mento voltado ao mercado de consumo. A Secretaria da Agricultura e Abaste-
cimento do Estado de Santa Catarina, com a parceria da Consultoria e Planeja-
mento Florestal LTDA, elaborou o relatório com as seguintes metas: 1) Assegu-
rar a produção econômica da madeira, em quantidade e qualidade necessária
ao suprimento de matéria prima para a indústria existente; 2) Criar reserva de
matéria prima para o suprimento das indústrias florestais que futuramente
venham a se instalar; 3) Preservar as áreas de proteção permanente. 41
O Projeto recebia respaldo do Governo Federal, pois executaria o Plano
Nacional de Papel Celulose, que tinha como meta garantir através da criação de
Distritos Florestais o suprimento de matéria prima florestal em condições
econômicas e competitivas para atingir a autossuficiência em produção de
papel no País. Esses projetos patrocinados pelo governo militar não eram ava-
liados de forma ponderada e prejudicavam intensamente o meio ambiente e
paradoxalmente imergiam o país em uma séria crise econômica. Dean afirma
que: “Durante a década de 1970, a escala e a velocidade dos projetos de desen-
volvimento do governo militar atingiram um clímax que não resultou apenas

38
Artigo 17 Decreto-lei Nº. 289, DE 28 DE FEVEREIRO DE 1967.
39
ABREU, Marcelo Paiva de. (org.). A ordem do Progresso: Cem anos de política econômica republica-
na (1889 – 1989). UNICAMP: Editora Campus, 1995. p. 237.
40
Decreto-lei nº. 52.370 de 26/1/1970, Criação do Instituto Florestal.
41
Estudo Elaborado pela Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de Santa Catarina com a
parceria da Consultoria e planejamento Florestal LTDA, 1975. p. 09

205
na crise econômica, mas também em uma tempestade conjunta de desastres
ambientais, desacreditando sua propalada preocupação com a segurança naci-
onal.” 42
Os grandes desastres ambientais que ocorreram no século XX levaram
aos questionamentos e posicionamentos da década de 1980. Há uma mudança
na maneira de se relacionar com o meio ambiente, como afirma Donald Wors-
ter:

A ideia de uma história ambiental começou a surgir na década de 1970, à


medida que sucediam conferências sobre a crise global e cresciam os
movimentos ambientalistas entre os cidadãos de vários países. Em outras
palavras, ela nasceu numa época de reavaliação e reforma cultural, em escala
mundial. 43

As discussões sobre a conservação do meio ambiente no perímetro aca-


dêmico chegaram à escala pública e chamavam a atenção da população que
passou a pressionar o governo. Assim como a questão ambiental aflora nas
diferentes áreas de conhecimento, surge dentro da Ciência Jurídica a vertente
do Direito Ambiental. Inspirada pela Carta de Estocolmo, a Constituição de
1988 declara em seu artigo 225 o direito ao meio ambiente sadio e ecologica-
mente correto. Legitimando, desta forma, dentro da Constituição, a necessida-
de de preocupar-se com o meio ambiente. Tanto as definições constitucionais
como infraconstitucionais ressaltam a necessidade do meio ambiente ser visto
a partir de uma concepção holística, que integre o homem ao mundo natural,
descartando as visões meramente antropocêntricas. 44
Surgiram debates no âmbito governamental para assegurar a manutenção
dos recursos florestais do país. Dentro do mesmo artigo 225, foi definido que:
“A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônios nacionais e sua utilização
far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do
meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.” 45
Foi no final da década de 1980 que o governo federal preencheu a la-
cuna mais falha do Código Florestal em relação ao reflorestamento, onde prio-
rizou o uso de espécies nativas e delimitou uma porcentagem para o reflores-
tamento com espécies exóticas. Assim definiu:

42 DEAN, Warren, 1996. p. 307.


43 WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 198-
215, 1991. p. 199.
44 MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAMPELLI, Sílvia. Direito
Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p. 27
45 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Artigo 225. Parágrafo
IV.

206
III - o art. 19 passa a vigorar acrescido de um parágrafo único, com a seguinte
redação: "Art. 19. A exploração de florestas e de formações sucessoras, tanto
de domínio público como de domínio privado, dependerá de aprovação
prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - IBAMA, bem como da adoção de técnicas de condução,
exploração, reposição florestal e manejo compatíveis com os variados
ecossistemas que a cobertura arbórea forme. Parágrafo único. No caso de
reposição florestal, deverão ser priorizados projetos que contemplem a
utilização de espécies nativas." 46(meus grifos)

Mesmo com as necessárias alterações feitas na legislação, muitos em-


presários do ramo madeireiro continuaram a buscar novas brechas para burlar
as exigências governamentais. Nos anos seguintes, surgiram também estudos
para a criação de Unidades de Conservação, não agradando o setor madeireiro,
que passou a exercer pressão sobre os governantes para a diminuição das
áreas protegidas.

A noção fundamental é de que o Direito Ambiental veio para tutelar o


ambiente com vistas a uma melhor qualidade de vida do homem. Porém, essa
noção cria uma visão antropocêntrica do Direito Ambiental, colocando o
homem no centro da relação. A quem o Direito Ambiental serve? Ao homem?
Ou a todas as formas de vida? Embora o homem seja a única criatura racional
e capaz de fazer valer o direito positivado, o Direito Ambiental serve para
resguardar a sobrevida de todas as formas de vida. 47

Referências Bibliográficas

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Fruticultura como fonte de renda. A Época. Lages 18 de novembro de 1928. Ano IV n. N 124, colu-
na 03, p. 5.

ABREU, Marcelo Paiva de. (org.). A ordem do Progresso: Cem anos de política econômica republica-
na (1889 – 1989). UNICAMP: Editora Campus, 1995.

BRASIL, LEI n.º 7.803, DE 18 DE JULHO DE 1989, altera a redação da Lei nº 4.771, de 15 de setem-
bro de 1965, e revoga as Leis nº. 6.535, de 15 de junho de 1978, e n.º 7.511, de 7 de julho de 1986.

BRASIL. Código Florestal de 1965. LEI Nº 4.771, DE 15 DE SETEMBRO DE 1965.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Artigo 225. Parágrafo IV.

46
LEI n.º 7.803, DE 18 DE JULHO DE 1989, Altera a redação da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de
1965, e revoga as Leis nº. 6.535, de 15 de junho de 1978, e n.º 7.511, de 7 de julho de 1986.
47
KERTENS, Ignácio Mendez. Paradigma de um direito ambiental internacional econômico progressi-
vo. Acesso 03 de fevereiro de 2017. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/bu
scalegis/article/viewFile/26880/26443

207
SANTA CATARINA. Estudo Elaborado pela Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de
Santa Catarina com a parceria da Consultoria e planejamento Florestal LTDA, 1975.

FREY, Willy. Reflorestar é a solução. Editora e gráfica Curitiba, 2003.

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KLANOVICZ, Jó & NODARI, Eunice. Das Araucárias às Macieiras: transformações da paisagem em


Fraiburgo/SC. Florianópolis: Insular, 2005.

LAGO, Paulo Fernando. A consciência ecológica: a luta pelo futuro. Florianópolis: Ed. da UFSC:
UDESC,1986.

MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAMPELLI, Sílvia. Direito
Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.

MARCONDES, Sandra. Brasil, amor à primeira vista! Viagem Ambiental no Brasildo século XVI ao
século XXI. São Paulo: Editora Peirópolis, 2005.
Mensagem apresentada ao Congresso pelo Doutor Adolpho Konder, julho de 1927. Acervo APESC.

O reflorestamento. Correio Lageano. 04 de março de 1944. Ano V, n 229, coluna 02 p. 03.

PÁDUA, José Augusto. Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Critica Ambiental no Brasil
Escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, pp. 198-
215, 1991.

208
CONSELHO MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL DO MUNICÍPIO DE CONCÓRDIA (SC):
POSSIBILIDADES PARA O DESENVOLVIMENTO
LOCAL 1

Jairo Marchesan2
Eduardo Lando Bernardo3
Sandro Luiz Bazzanella4

Introdução

Nas últimas três décadas, principalmente, são crescentes os estudos aca-


dêmicos voltados às temáticas do desenvolvimento, do planejamento e das
políticas públicas em função das transformações sociais, econômicas e políticas
em âmbito global com impacto local e as pressões que exercem sobre o Estado
Democrático de Direito.
Tais prerrogativas se manifestam e se materializam na Constituição Fede-
ral de 1988, que propiciou adotar o princípio da participação popular na dinâ-
mica da elaboração e execução de políticas públicas. No contexto da Assem-
bleia Nacional Constituinte, havia ambiente favorável à participação popular
possibilitando a sociedade civil organizada apresentar projeto de lei, bem co-
mo participar nas instâncias apropriadas dos debates em torno dos trabalhos
de formulações dos princípios constitucionais. Assim, consolidou-se na Consti-
tuição Federal o princípio da participação popular na elaboração e formulação
das políticas públicas nos mais diversos setores da ação estatal junto à socie-
dade brasileira. Ainda, nesta direção, a participação popular na apresentação,
discussão e elaboração de políticas públicas em diversos setores representou o
fortalecimento da democracia pelo controle social das ações do Estado.

1
Este capítulo foi publicado na Revista Colóquio do Desenvolvimento Regional da FACCAT – ISSN:
2318_180X, Vol. 14, Nº 1, jan/jul 2017. Link de acesso ao artigo: https://seer.faccat.br/index.php/coloqu
io/article/view/566
2
Docente do Programa de Mestrado da Universidade do Contestado (UnC). E-mail: jairo@unc.br
3
Mestre em Desenvolvimento Regional. E-mail: eduardolbernardo@gmail.com
4
Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. E-
mail: sandro@unc.br

209
Na prática tais avanços conquistados durante os trabalhos da Assembleia
nacional constituinte afirmados na carta constitucional de 1988, materializou-
se na constituições de conselhos de políticas públicas, também denominados
de conselhos gestores de políticas setoriais, ou conselhos de direitos, instituí-
dos em âmbito municipal, estadual e federal. (VILELA, 2005).
Como decorrência destas transformações, gestores públicos, em âmbito
municipal, estadual e nacional permitem e/ou possibilitam planejar, elaborar,
e executar planos de desenvolvimento econômico, social, ambiental, entre
outros, apoiados na Legislação e através dos Conselhos de Políticas Públicas.
Os Conselhos são, portanto, mecanismos que conferem à sociedade a pos-
sibilidade democrática de interagir com as estruturas estatais de poder, sejam
federais, estaduais ou municipais e, de certa forma, contribuem no controle
social das ações do Estado, possibilitando maior transparência no uso dos re-
cursos públicos, maior eficiência e eficácia nas ações do Estado e na implemen-
tação das políticas públicas.
O Estado ao viabilizar a participação da sociedade civil nos processos de-
cisórios de controle social através da participação popular via mecanismos
como os Conselhos, descentraliza o poder de decisões e outorga à sociedade a
oportunidade de participar e tornar-se protagonista do processo político. Por-
tanto, este processo pode ser denominado de descentralização do poder, bem
como de expansão da participação cidadã de membros da sociedade civil orga-
nizada.
Assim, a descentralização do poder pode ser entendida como uma das es-
tratégias estatais necessárias no cenário político brasileiro contemporâneo
como forma de tornar eficiente e eficaz sua ação. Além disso, é estratégica,
também, por ter a finalidade de possibilitar a participação popular nos proces-
sos decisórios do Estado como forma de afirmação e legitimação da ação do
Estado frente a sociedade.
Neste sentido, a Administração do Município de Concórdia (SC), através da
Lei 4.156 de 05 de março do ano de 2010 instituiu o Conselho Municipal de
Desenvolvimento Sustentável (CMDS)5. O Conselho tem, entre outras atribui-
ções, o poder e a responsabilidade de participar e decidir juntamente com o
poder Executivo municipal sobre questões relativas ao planejamento e ações
estratégicas de curto, médio e longo prazo para o desenvolvimento socioeco-
nômico do Município.
Entende-se por desenvolvimento socioeconômico um conjunto de ações
sociais e econômicas que gerem trabalho, renda, moradia, educação, lazer e
saúde. Enfim, um conjunto de ações de promoção da qualidade de vida e, por

5
Para maiores informações, acessar: http://www.concordia.sc.gov.br

210
extensão de aumento dos índices de desenvolvimento humano e social, bem
como, o cuidado com os bens ambientais pertencentes a todos os cidadãos.
O Município de Concórdia (Figura 1) localiza-se no Oeste de Santa Catari-
na. Limita-se, ao Norte, com os municípios de Irani, Lindóia do Sul e Ipumirim;
ao Leste, com os municípios de Jaborá e Presidente Castelo Branco; ao Sul com
Ipira, Peritiba, Alto Bela Vista e com o Rio Uruguai, que separa o Estado de
Santa Catarina do Estado do Rio Grande do Sul; e a Oeste, com os municípios de
Arabutã e Itá. É o município-sede da 14ª Microrregião Geográfica do Estado -
AMAUC (Associação dos Municípios do Alto Uruguai Catarinense), constituída
por um total de 15 municípios, entre eles: Alto Bela Vista, Arabutã, Ipira, Ipu-
mirim, Irani, Itá, Jaborá, Lindóia do Sul, Paial, Peritiba, Piratuba, Presidente
Castelo Branco, Seara e Xavantina.
A superfície territorial total do Município corresponde a 797,26 km 2. Des-
ta, 771,86 km² é área rural e 25,49 km² é perímetro urbano. Sua população é
de 72.742 habitantes (IBGE, 2015), sendo que aproximadamente 80% reside
em área urbana e (20%) habitam a área rural. Projeções da Administração
Municipal é que no ano de 2030 a população total do Município seja de apro-
ximadamente 90.000 habitantes.

Figura 1 - Mapa de Localização do Município de Concórdia (SC). Fonte: IBGE, 2006


www.ibge.gov.br/servidor_arquivos_geo/. Acesso em: 12/01/2006.

211
A densidade demográfica média atual é de aproximadamente 91,2
hab/km² (Vide Tabela 01).

Tabela 01: Densidade Demográfica do Município de Concórdia


Densidade Demográfica (Habitantes/km²)

Ano 1970 1980 1991 1996 2001 2001 2002 2003 2005 2010 2015
Concórdia

Dens. Dem. 38,01 49,69 64,34 63,96 78,1 78,1 79,09 80,47 83,2 85,8 91,2

Fonte: Prefeitura Municipal de Concórdia/ASPLAN (2015).

Observando a Tabela 01, constata-se que, a partir da década de 1970,


houve significativa evolução do crescimento da densidade demográfica do
Município de Concórdia. Tal fenômeno pode estar ligado aos desdobramentos
das políticas agrícolas, agrárias e agropecuárias da época, aliadas ao cresci-
mento industrial, comercial e à prestação de serviços. Neste sentido, estes
setores demandavam mão-de-obra, gerando, consequentemente, o crescimen-
to da densidade demográfica urbana, conforme ilustra a Tabela 02.

Tabela 02: Crescimento Demográfico do Município de Concórdia


Censo 1960 1970 1980 1991 1996 2000 2005 2010

Urbana - 10.768 19.834 36.271 36.724 45.254 51.076 54.872

Rural - 34.619 38.472 28.067 21.778 17.804 15.274 13.755


66.350
Total 38.285 45.387 58.306 64.338 58.502 63.058 68.627
*
Fonte: Prefeitura Municipal de Concórdia/ASPLAN, 2015.

OBS: Em 1996 a população diminuiu, devido à emancipação dos municí-


pios de Lindóia do Sul, Arabutã e Alto Bela Vista. * População estimada – Agên-
cia do IBGE de Concórdia.

Vale observar que o fenômeno do aumento populacional urbano e o con-


sequente esvaziamento dos espaços rurais locais e regionais, acompanham ou
reproduzem, também, de maneira geral, o cenário de movimentos da popula-
ção humana mundial.
A Tabela 03 demonstra a evolução do crescimento urbano de Concórdia a
partir da década de 1960, o que explica a redução da população rural (Tabela
02), a partir da década de 1980.

212
Tabela 03: Taxa (%) de crescimento da população
urbana do Município de Concórdia.
Ano 1960 1970 1980 1991 1996 2000 2005 2010
% 15,65 23,62 32,94 56,38 62,77 71,76 76,98 79,96
Fonte: Prefeitura Municipal de Concórdia/ASPLAN, 2015.

Portanto, com base nas Tabelas 02 e 03, é possível considerar que houve
esvaziamento da população das comunidades rurais e, consequentemente,
significativo crescimento populacional da área urbana do Município.
Como decorrência desses processos e fenômenos de reconfiguração com
aumento da população urbana, houve o aumento dos problemas sociais urba-
nos, entre os quais os ambientais, como, por exemplo, a crescente produção de
lixo doméstico e industrial, poluição dos córregos e rios, entre outras.
Dentre as características gerais do Município, a temperatura média anual
é de 17 ºC. A altitude média é de 550 metros. A umidade relativa do ar (média
anual) é de aproximadamente 75%, com uma precipitação pluviométrica mé-
dia anual de 1800 mm (Prefeitura Municipal de Concórdia, 2015).
O Município é considerado a 14ª economia catarinense. A principal ativi-
dade econômica é a agropecuária, destacando-se a suinocultura, avicultura e
bovinocultura de leite, conforme o quadro a seguir.

Rebanho Número de Cabeças

Bovino (corte, leite e misto) 61.205


Suíno 421.399
Aves (frangos, matrizes de corte e poedeiras) 3.414.707
Ovinos 4.706
Fonte: Autores, 2015.

O Município é sede da agroindústria Sadia que atualmente compõe o Gru-


po BRF (Brasil Foods) - (associação das agroindústrias Sadia e Perdigão). Tal
empresa é uma das maiores produtoras e exportadoras de proteína animal do
planeta.
Dentre outras atividades econômicas, destacam-se o transporte de cargas,
indústria moveleira, gráfica, alimentos, produção de software, cooperativismo
em vários segmentos, entre eles, transportes, agricultura, crédito e outros.
Neste contexto se apresentam várias agroindústrias familiares que envolvem

213
os pequenos agricultores e que contribuem significativamente para a economia
municipal e regional.
Vale destacar, também, que o Município possui uma Unidade da Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) e é sede do Centro Nacional
de Pesquisas de Suínos e Aves (CNPSA) a qual produz pesquisa científica e
tecnologias para o setor agropecuário.
Na economia urbana destaca-se a atuação do setor comercial e de
prestação de serviços. Além destas atividades econômicas, outras apresentam
significativas possibilidades de ampliação de oportunidades, como, por exem-
plo, a produção de software, investimentos em Escolas com cursos técnicos
profissionalizantes, expansão do ensino superior, potencializando a produção,
a distribuição e, por decorrência lógica, gerando trabalho, renda e contribuin-
do com o desenvolvimento regional, na medida em que o Município de Con-
córdia assume a condição geopolítico-estratégica no território acima descrito.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Município é de 0,849.
Com estes índices o Município é considerado o 11º no Estado de Santa Catarina
e o 32º em qualidade de vida em âmbito nacional. O Índice de Desenvolvimen-
to Social é de 0,957 o 12º em Santa Catarina (IBGE, FIRJAN e Assessoria de
Comunicação – ASCOM (2015).
Em dezembro de 2015, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Ja-
neiro (FIRJAN) que acompanha o desenvolvimento socioeconômico do país
através do Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) avaliando as
condições de Educação, Saúde, Emprego e Renda de todos os municípios brasi-
leiros atribuiu ao Município de Concórdia a condição de mais desenvolvido do
Estado de Santa Catarina. De acordo com o Índice FIRJAN de Desenvolvimento
Municipal, o Município de Concórdia, desde 2012, ocupa a primeira posição no
ranking estadual, com 0,8933 pontos. Ou seja, o Município de Concórdia ocupa
pela quarta vez consecutiva o primeiro lugar em qualidade de vida do Estado
de Santa Catarina (http://www.firjan.com.br/ifdm) Acesso em 04.12.15.
De acordo com argumento anteriormente apresentado, nas últimas três
décadas ocorreu intenso processo de urbanização do Município. Paralelamente
a isso e pelas relações de produção e distribuição de riqueza que caracterizam
o modo capitalista de organização social, política, cultural e econômica em
curso, geraram-se problemas, entre eles: frequente falta de água, ausência de
saneamento básico, ocupação inadequada do solo, mobilidade urbana, crescen-
te e intenso uso de agrotóxicos.
Diante deste cenário e da necessidade de planejamento futuro do Mu-
nicípio em função de seus interesses estratégicos vinculados, sobretudo com a
qualidade de vida alcançada a partir do ano de 2010, a Administração Munici-

214
pal instituiu o Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável - CMDS,
com o papel de pensar estrategicamente o Município para os próximos 20
anos.
Para que os problemas atuais não se repitam ou sejam minimizados
em suas dimensões a curto, médio e longo prazo gerando outros problemas a
população humana e ao ambiente torna-se necessário planejar e desenvolver
ações que convirjam na qualidade de vida das pessoas e do ambiente. Assim,
desde a composição do Conselho por representantes de entidades dos mais
diversos setores, este passou a reunir-se trimestralmente de forma ordinária,
com intuito de refletir sobre a história do município, pensar propostas e ações
concretas que produzam desenvolvimento socioeconômico e oferte melhor
qualidade de vida para a população.
A partir da sua trajetória histórica, durante as reuniões do Conselho
apresentaram-se várias questões, entre elas: Como está a situação social, polí-
tica, econômica e ambiental do município? O que caracteriza o município de
Concórdia? Qual o município que temos? Que município queremos? Quais as
principais dificuldades ou limitações ao desenvolvimento socioeconômico do
município? Qual é a principal atividade econômica? Quais as oportunidades
e/ou potencialidades são possíveis de serem pensadas, incentivadas, incre-
mentadas, ou que gerem novas matrizes produtivas? Quais os impactos ambi-
entais resultantes de seu crescimento? Para onde a cidade pode ou não ser
expandida? Estas e outras questões permearam o debate das reuniões do Con-
selho Municipal de Desenvolvimento Sustentável do Município.
No decorrer de cinco anos (2010 - 2015) constata-se que a atuação do
Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável (CMDS) contribuiu signi-
ficativamente para o desenvolvimento de ações eficientes e eficazes da Admi-
nistração Municipal, sejam através das discussões, proposições, avalizando ou
tomando decisões nos processos políticos, ou em ações concretas como as que
serão descritas adiante.
Portanto, sob tais premissas, este artigo resultante de pesquisa propõe fa-
zer uma análise teórica da constituição do Conselho Municipal de Desenvolvi-
mento Sustentável (CMDS), das ações planejadas, algumas já executadas e,
outras a serem implementadas. Seu intuito é avaliar sua efetiva contribuição
para o desenvolvimento sustentável de Concórdia, no contexto das transfor-
mações globais, regionais e locais em curso e, que demandam posicionamento
estratégico do Estado e da sociedade civil organizada. Para a realização da
pesquisa visitou-se e investigou-se setores da Prefeitura do Município de Con-

215
córdia, participou-se da palestra6 do Vice-Prefeito e Presidente do Conselho
Municipal de Desenvolvimento Sustentável, bem como consultou-se a literatu-
ra produzida e disponível. Neste percurso investigativo também se dialogou
com Conselheiros e, conduziram-se observações in loco.

A questão do desenvolvimento

Diante do exposto torna-se necessário uma concepção de desenvolvimen-


to, e para contemplar a demanda conceitual é preciso ter presente num primei-
ro momento, o caráter polissêmico do termo em suas diversas acepções e adje-
tivações. Fala-se de desenvolvimento econômico, de desenvolvimento humano,
de desenvolvimento local, de desenvolvimento regional, de desenvolvimento
nacional, de desenvolvimento físico, de desenvolvimento de projetos, entre
outras adjetivações. Enfim, de tantos outros desenvolvimentos possíveis.
Reconhecendo os limites e as dificuldades constitutivas à uma definição
conceitual de desenvolvimento, lancemos um olhar para a tradição do pensa-
mento ocidental e encontraremos em Aristóteles significativa contribuição
para a demarcação conceitual do objeto em questão. Para o filósofo grego, em
seu famoso argumento do “ato e potência”, todos os seres existem em potência,
em possibilidade. A materialização da potência inerente a tudo que existe é a
passagem para o ato. Tudo aquilo que existe em nosso entorno se manifesta
em ato, pleno da potencialidade de superação de si.
Assim, ao transformar-se em ato, a potência potencializa-se, atualizando-
se constantemente, dinamizando o movimento de passagem da incompletude
do ente em busca da sua plenitude. A partir de tais pressupostos, talvez se
possa afirmar que é inerente ao conceito de desenvolvimento a ideia de mu-
dança, de crescimento, de superação, de melhoria, de aumento, de geração, de
produção, de um princípio vital presente no mundo, na existência em suas
múltiplas formas, nos seres humanos, que os impulsiona constantemente para
o aprimoramento de suas condições existenciais. Nesta direção, para o filósofo
e pesquisador Armindo Longhi: “A dinâmica do desenvolvimento tende para os
termos processo, estado intangível, subjetividade, e intersubjetividade. Volta-
se mais para a atitude das pessoas e menos para os aspectos materiais [...]. Não
basta ter serviços de saúde, educação e lazer. Desenvolvimento combina com
acesso aos bens produzidos pela sociedade”. (LONGHI, 2011, p. 73). Ainda nas
palavras do referido filósofo, “

6
Palestra proferida pelo Presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Vice-
Prefeito do Município de Concórdia Sr. Neuri Santhier no dia 22.06.15 aos Acadêmicos do Curso de
Engenharia Civil na Universidade do Contestado (UnC).

216
(...) o binômio desenvolvimento regional é útil para compreender as
manifestações das estruturas sociais nas formas concretas de vida, seja no
bairro, na cidade, no município, seja na associação de municípios. O binômio
conceitual “Desenvolvimento Regional” revela a existência do elemento
histórico e do elemento espacial. O elemento histórico mostra a existência do
processo de mudança ocorrendo durante determinado tempo numa região
específica; o elemento espacial determina em qual região são observadas as
mudanças. (LONGHI, 2011, p. 73).

Para o sociólogo, pesquisador e professor do Programa de Mestrado em


Desenvolvimento Regional, da Universidade do Contestado, Walter Marcos
Knaesel Birkner, o desenvolvimento é uma “ideia força”, a partir da qual uma
região mobiliza seu capital humano, social, cultural, estabelecendo laços de
confiança e cooperação, entre os diversos atores da esfera pública e da esfera
privada. (BIRKNER, 2011). Assim, a ideia do desenvolvimento potencializa
esforços de promoção de melhoria da qualidade de vida em todos os seus as-
pectos. Sobretudo, potencializando as liberdades de criação, inovação, empre-
endedorismo para que indivíduos e comunidades constituíam-se autonoma-
mente.
Desenvolvimento requer planejamento e gestão. Nesta direção é crescente
o debate social sobre os temas que envolvem planejamento e gestão, seja em
âmbito individual ou coletivo, público, ou privado. Para além do debate, é cres-
cente a necessidade de ações concretas de administração no que se refere a
ações no presente, bem como de planejamento e ações futuras, sejam individu-
ais ou coletivas, públicas ou privadas. Se, atualmente o Município convive com
certos problemas sociais, econômicos, ambientais..., como, por exemplo: de-
pendência de determinadas matrizes econômicas, dificuldades de mobilidade
urbana, eventuais alagamentos em determinadas áreas da cidade, falta de sa-
neamento básico, entre outras situações, é, por que em larga medida, histori-
camente as administrações municipais, não planejaram suficientemente o uso
e ocupação do espaço. Ou seja, os olhares lançados para o futuro não alcança-
ram a intensidade dos desafios que se apresentam no horizonte de futuro pró-
ximo. Portanto, a constatação de tal condição diante do cenário atual, justifica
a necessidade de pensar, planejar e agir na perspectiva de reconhecer, com-
preender e procurar soluções aos problemas possíveis e, evitar outros. Mas,
também, e sobretudo de atuar na perspectiva de construir um Município em
seus pressupostos humanos, políticos, sociais, econômicos e ambientais.
Assim, o tema desenvolvimento socioeconômico local pode ser inserido no
debate sobre gestão local sustentável. Essa temática destaca-se à medida que
se discute o papel dos gestores municipais como agentes de promoção e ativa-
ção do desenvolvimento econômico sobre bases sociais, econômicas e ambien-
tais sustentáveis.

217
O desenvolvimento econômico local pode ser entendido como um proces-
so que visa construir a capacidade de autonomia econômica de uma determi-
nada sociedade na perspectiva de melhorar a qualidade de vida da população e
do seu ambiente. Esse processo pode ter êxito quando houver o engajamento
do poder público, dos setores não governamentais e da população de modo
geral. Pode ser entendido, também, como um esforço coletivo para gerar me-
lhores condições de vida, crescimento econômico, geração de trabalho e renda.
Não apenas os governos, mas também a sociedade necessita ter a dimensão e a
compreensão dos problemas, reconhecer seus limites e possibilidades. Assim,
faz-se necessário ampliar, estudar e pôr em prática nas suas dimensões sociais,
culturais e políticas o desenvolvimento econômico e sustentável da sua popu-
lação.
O poder público na esfera municipal estadual ou federal pode e deve con-
duzir ou concentrar ações em políticas públicas na perspectiva de qualificar a
vida das pessoas, seja, através do acesso ao trabalho, à renda, à segurança, à
educação, entre outros aspectos relevantes. Mas, para que isso ocorra, é fun-
damental a participação da sociedade civil organizada nas decisões e no acom-
panhamento da aplicação dos recursos públicos.
A partir da Constituição de 1988, a denominada “Constituição Cidadã”
ampliaram-se as possibilidades de participação da sociedade e, com isso, pos-
sibilitou-se maior ação da sociedade como protagonista do seu destino. Tal
situação exige que os gestores nas três esferas de poder e governo, governem
com maior envolvimento societário. Tal envolvimento requer responsabilidade
ao propor iniciativas e ações que visem buscar soluções aos problemas locais.
Assim, ampliaram-se possibilidades da participação social, na perspectiva de
gerar melhorias nas condições sociais, econômicas e políticas da população e,
sobretudo amparadas em bases sustentáveis.

Plano de desenvolvimento Concórdia 2030

Entre outros aspectos relevantes apresentados anteriormente, o Municí-


pio de Concórdia é considerado a “capital do trabalho”. No entanto, não só de
trabalho vive a sociedade. Por isso, é importante pensar na educação, na saúde,
no lazer, na qualidade de vida.
Paralelamente ao plano estratégico de denominado “Concórdia
2030”, (2010 a 2030) está o Programa Avança Concórdia7. O Plano e o Pro-
grama pretendem estimular o desenvolvimento socioeconômico do Município.

7
O Programa Avança Concórdia lançado em junho de 2013 consiste em um conjunto de investimentos
em obras e projetos voltados para o desenvolvimento econômico do Município, entre eles, mobilidade
urbana, saúde, educação, cultura, lazer e eventos. As ações serão concretizadas com recursos do Progra-
ma de Aceleração do Crescimento (PAC) II 3ª ETAPA, convênios com o Governo do Estado, Município
e Instituições Financeiras.

218
Devido a maior parte da população concentrar-se no espaço urbano há a
necessidade de maiores investimentos na área urbana. Neste sentido, a neces-
sidade de investir esforços, valores e ações para que a cidade seja planejada de
forma sustentável, inovadora, segura, aprazível (bela) e com qualidade de vida.
Concórdia 2030 é um plano de desenvolvimento com projeção para
os próximos 20 anos do Município. Tem a perspectiva de ser um plano ousado,
sustentável, inovador, que gere qualidade de vida, oportunidades e formação
humana (educação) qualificada.
Entre os objetivos do Plano Concórdia 2030 destacam-se: a) tornar
o município planejado, sustentável. b) gerar oportunidades, incentivando a
inovação e promovendo a qualidade de vida das pessoas. Com isso, aposta-se:
a) numa população mais feliz e com conhecimento; b) em comunidades rurais
fortalecidas; c) desigualdades sociais minimizadas; d) povo solidário e partici-
pativo; e) segurança pública de qualidade. Sob tais pressupostos, tais ações
pretendem que haja crescimento econômico, combinando desenvolvimento
social, cultural, com preservação e cuidado ambiental.
Para que isso ocorra, foi criado o CMDS - Conselho Municipal de Desenvol-
vimento Sustentável através da Lei nº 4.156, de 5 de março de 2010, onde o
Prefeito Municipal de Concórdia, juntamente com a Câmara Municipal de Vere-
adores, aprovou a Lei. Segundo a referida Lei:

Art. 1º Fica criado o Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável –


CMDS, órgão de assessoramento da Administração Municipal, de caráter
consultivo, cuja composição, funcionamento e demais requisitos serão
definidos por ato próprio do Chefe do Poder Executivo Municipal. Parágrafo
único. O CMDS participará no planejamento de ações estratégicas de curto,
médio e longo prazo, para o desenvolvimento sustentável do Município de
Concórdia.

Art. 2º Os recursos necessários à execução desta Lei correrão por conta de


dotações próprias do orçamento do Município.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O CMDS é formado por 22 membros, sendo: 07 (sete) Representantes


do Conselho Executivo Municipal; 01 (um) representante da Associação dos
Municípios do Alto Uruguai Catarinense (AMAUC); 14 (quatorze) pessoas re-
presentantes da Sociedade Civil, indicadas pelos segmentos: Classe empresari-
al – Associação Comercial e Industrial de Concórdia (ACIC) e Câmara de Diri-
gentes Lojistas (CDL) (02); Entidades Sindicais de labor e patronal (02); Asso-
ciação de Moradores – União Municipal das Associações de Moradores de Con-
córdia (UMAMC) e Organização Municipal das Associações Rurais de Concórdia

219
(OMARC) (02); Entidade de Ensino Superior e Técnico - (02) Instituições Fede-
rais e Estaduais de Ensino Pesquisa e Tecnologia (02); Entidades ligadas ao
CREA (02) e Entidades ligadas ao Transporte (02).
Para o primeiro mandato do Conselho os segmentos escolheram as se-
guintes representações: Sindicato Regional dos Trabalhadores na Agricultura
Familiar do Alto Uruguai Catarinense – SINTRAF; Faculdade Concórdia – FACC;
– Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Concórdia e Microrregião – (AE-
COM); Organização Municipal das Associações Rurais de Concórdia (OMARC);
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA); Associação Empre-
sarial de Concórdia (ACIC); Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão
Rural de Santa Catarina S.A. (EPAGRI); Câmara de Dirigentes Lojistas de Con-
córdia (CDL); Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); União
Municipal das Associações de Moradores de Concórdia (UMAMC); Sindicato
das Empresas de Transportes de Cargas do Oeste e Meio Oeste Catarinense
(SETCOM); Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte (FABET);
Coletivo Sindical da Central Única dos Trabalhadores (CUT - do Alto Uruguai
Catarinense); Associação dos Engenheiros Agrônomos de Concórdia e Região
(AGROCON) e Universidade do Contestado (UnC).
O CMDS deverá estabelecer diretrizes, metas e programas de atuação do
Poder Executivo nas diversas áreas relativas à sua atribuição. Tais diretrizes
deverão, de fato, dirigir a política urbana e rural de Concórdia e para tanto,
devem ser claras, objetivas e detalhadas para que não se tornem apenas boas
intenções, genéricas e, de pouco significado prático.
Os 22 conselheiros (as), nomeados pelo Chefe do Poder Executivo Munici-
pal são representantes da sociedade civil e do Governo. Por meio do Decreto nº
303, de 16 de março de 2010, no uso das atribuições conferidas pela Lei Orgâ-
nica do Município, o Prefeito Municipal nomeou os membros para compor, o
primeiro mandato do CMDS.
Já, entre os dias 09 e 10 de maio de 2013, com a realização da 4ª Confe-
rência Municipal da Cidade de Concórdia e o 2º Congresso Municipal de Con-
córdia foi aprovada proposta para alteração da composição do número de
membros do CMDS.
Para o segundo mandato de acordo com o Decreto Nº 5.812, de 03 de ju-
nho de 2013, a Administração Municipal aprovou a Primeira Alteração do Re-
gimento Interno do Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável –
CMDS.
No seu Artigo 1º o Decreto altera o Artigo 3º do Regimento Interno do
Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável – CMDS e passa a vigorar
com a seguinte redação:

220
“Art. 3º O CMDS é composto por 24 (vinte e quatro) membros, nomeados por
ato do Chefe do Poder Executivo Municipal, sendo:

I – representantes ligados ao segmento Empresarial, 2 (dois) conselheiros;

II – representantes ligados às entidades Sindicais de Trabalhadores, 2 (dois)


conselheiros;

III – representante ligado às entidades Sindicais Patronais, 1 (um)


conselheiro;

IV – representantes de Associações de Moradores, 2 (dois) conselheiros;

V – representantes dos segmentos de Ensino Superior e Técnico, 2 (dois)


conselheiros;

VI – representantes de Instituições Estaduais e Federais de Pesquisa e


Tecnologia, 2 (dois) conselheiros;

VII – representante de Instituições Estaduais e Federais de Ensino Superior, 1


(um) conselheiro;

VIII – representantes de segmentos ligados ao Conselho Regional de


Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA, 2 (dois) conselheiros;

IX – representantes de segmentos ligados ao transporte, 2 (dois)


conselheiros;

X – representante da Associação dos Municípios do Alto Uruguai Catarinense


– AMAUC, 1 (um) conselheiro;

XI – representantes do Governo Municipal de Concórdia, 7 (sete) conselheiros


indicados pelo Prefeito Municipal.

§ 1º Os Conselheiros serão indicados pelas entidades, nomeados e


empossados pelo Prefeito Municipal.

§ 2º Os membros do Conselho exercerão mandato até a realização da


Conferência Municipal da Cidade de Concórdia ou do Congresso Municipal de
Concórdia, admitindo-se a recondução por períodos iguais e sucessivos.

§ 3º A função de Conselheiro será considerada de interesse público relevante,


e não será remunerada.” (NR)

Art. 2º Esta alteração entra em vigor na data de sua homologação pelo


Chefe do Poder Executivo Municipal. Fonte:(http://www.concordia.sc.gov.br)

221
Portanto, a partir do segundo semestre de 2013 o CMDS passou a ser
composto por 24 (vinte quatro membros) conforme o disposto acima.
Desta maneira, o CDMS tem o intuito de contribuir qualitativamente e de
forma participativa para o desenvolvimento de um planejamento estratégico e
sustentável para o Município de Concórdia a curto, médio curto e longo prazo.
A representatividade do CMDS é condição de garantia de efetividade de ações
de planejamento e execução das diversas frentes advindas do planejamento.
Na organização política nacional, o Município é um espaço privilegiado
para a construção da cidadania e do aprendizado de direitos e deveres, pois é o
lócus onde o cidadão convive diretamente com o espaço público, com suas
lideranças políticas, bem como, os resultados das ações governamentais em
sua intensidade e realidade cotidianas. É neste contexto que surge o conceito
do Conselho de Desenvolvimento Sustentável para o Município de Concórdia,
como importante instância de reflexão, orientação e animação da Administra-
ção e da vida pública Municipal. Sob tais pressupostos, cabe ao Conselho a
atribuição fundamental de intensificar e promover a participação da sociedade,
nos destinos do Município, por intermédio de trabalho integrado e de parceri-
as, que confiram legitimidade, eficiência, eficácia e efetividade às ações do po-
der público municipal.
O Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável é um órgão
representativo, de articulação, integração, orientação, acompanhamento e de
mobilização da Municipalidade, na busca pelo desenvolvimento sustentado e
compartilhado. Atua em parceria entre a Administração do Município e com os
segmentos representativos da sociedade civil organizada, se pautando em suas
contribuições e decisões, a partir dos interesses públicos da população muni-
cipal.
O CMDS é um espaço de consulta e/ou deliberação e, como tal, reconheci-
do pelas diversas instâncias do poder público. Funciona como um fórum de
debate das questões relativas da Municipalidade. Sua razão de existir está no
reconhecimento da necessidade e manutenção do diálogo entre o poder Execu-
tivo Municipal e a sociedade em benefício aos interesses do bem público, na
busca do bem viver. A base de implantação do Fórum é a vontade do Executivo
Municipal e a concordância com dos Conselheiros de que estes representem os
interesses comuns da sociedade.
Sob tais pressupostos, pode-se afirmar que um dos objetivos primeiros
do CMDS é convergente com o dos cidadãos que almejam um Município desen-
volvendo-se para além do corporativismo, de favorecimentos, ou influência de
determinados grupos que se beneficiam daquilo que é público, beneficiando
em instância primeira e única a comunidade em suas múltiplas demandas por

222
qualidade de vida. Ou seja, o CMDS se apresenta como espaço privilegiado de
construção de consensos entre a Administração Municipal, sua ação governa-
mental e os interesses e esforços de oferta de qualidade de vida a população de
Concórdia e região. Assim, as bases de implantação do Fórum é a vontade do
Executivo Municipal e a concordância dos Conselheiros de que estes represen-
tem os interesses comuns da sociedade.
Dentre as funções dos Conselheiros, destacam-se: a) Identificar os
problemas do Município, bem como as suas causas e as alternativas para a
solução; b) Integrar os interesses e objetivos diversos em um esforço conjunto
de definição de metas e prioridades para o Município; c) Participar na elabora-
ção do plano estratégico de desenvolvimento socioeconômico do Município
rumo ao futuro desejável, dos planos setoriais, sob a responsabilidade e coor-
denação do Executivo Municipal; d) Contribuir com o Executivo Municipal para
a realização de ações cada vez mais eficazes por parte da Prefeitura, e que ga-
rantam e estimulem o desenvolvimento sustentável e a cidadania no Municí-
pio; e) Convocar a Conferência Municipal da Cidade de Concórdia e o Congres-
so Municipal de Concórdia.

Proposta de operacionalização do Plano

O CMDS tem, entre outros objetivos, planejar e executar ações de interesse


público para os próximos 20 anos, identificando os problemas que o município
apresenta, produzindo alternativas e propostas de melhorias, além de identifi-
car eixos básicos para o crescimento, sugerindo projetos estratégicos para
cada área.
Com base em seus debates e estudos identificaram 5 (cinco) componentes
fundamentais para o Plano alavancar e, possivelmente apresentar resultados
positivos. São eles:

a) Competitividade - Trabalhar para que o Município de Concórdia


alcance grau de excelência na educação, que tenha tecnologia de ponta,
garantindo o acesso a informação.

b) Gestão Pública e Cidadania – Fazer com que a gestão pública se


fortaleça cada vez mais com a participação da sociedade.

c) Infraestrutura e Serviços Essenciais – Estabelecer critérios para


acompanhamento do desenvolvimento assegurando serviços e
estruturas adequadas.

223
d) Trabalho e Renda – Diversificar a matriz econômica, com a
profissionalização.

e) Qualidade de Vida – Ser referência no lazer, esporte, saúde e a


inclusão social.

Dentre as ações já realizadas, destacam-se: alteração, readequação da mo-


bilidade urbana (trânsito). Das três etapas previstas, duas foram realizadas;
revisão do Plano Diretor Físico Territorial Urbano e Rural; construção no cen-
tro da cidade de um espaço coberto (rua coberta) para recreação, lazer e pe-
quenos eventos comunitários; construção de uma barragem de contenção para
prevenir inundações no centro da cidade; melhorar e integrar o transporte
coletivo; qualificar o Parque Municipal de Exposições (parcialmente realizado);
reforma e readequação do Centro Cultural Concórdia (museu, biblioteca públi-
ca,...); reforma do aeroporto municipal; viabilização da rodovia Caetano Chiu-
queta (contorno norte); construção de via asfáltica da área urbana até o Distri-
to de Presidente Kennedy; construção da Unidade de Pronto Atendimento
(UPA) – em fase de aquisição dos equipamentos; implantação de parques nos
bairros com equipamentos de ginástica, construção de novas creches e postos
de saúde; consolidação do Orçamento Participativo; fortalecimento do turismo
(Caminho da Roça e do Engenho), entre outros.

Limites para a implementação do Plano

Nos últimos quinze anos, a economia municipal cresceu. As constatações


manifestam-se pela geração de emprego, renda e dinamismo nas relações co-
merciais (Quadro 2).

Números de Empregos Formais em Concórdia,


no período de 2006 a 2011.

Ano 2006 2007 2008 2009 2010 2011


Empregos 21.803 22.795 24.267 23.914 25.829 26.901
Fonte: Sebrae, 2013.

Assim como na maioria dos municípios brasileiros os problemas do muni-


cípio de Concórdia não são pontuais, simples e de fácil resolução, mas, sim,
apresentam-se como estruturais, isto é, demandam ou dependem de vultosos

224
investimentos, principalmente financeiros para gerar conforto, bem-estar e
qualidade de vida as pessoas. Já, no caso mais específico, os problemas estrutu-
rais que afetam o município é a oferta de acesso pavimentado, mobilidade
urbana, entre outros. Outro problema atual é oferta de água em quantidade e
qualidade e saneamento básico. Neste sentido, preciso esclarecer que tais ser-
viços são de responsabilidade de outra esfera de poder - o Estado de Santa
Catarina. Assim, o poder público municipal não tem como intervir ou resolver
determinada situação.
Ao mesmo tempo, alguns dos problemas dos municípios e, evidentemente,
também do referido município, dependem da dinâmica ou conjuntura político
econômica capitalista mundial e que, por vezes, impactam na geração de traba-
lho, renda, educação, saúde e outros.
Outros problemas estruturais podem ser advindos das condições climáti-
cas ou sazonais, tais como, períodos de estiagens ou secas. Ou, ainda, das inten-
sas precipitações pluviométricas que geram enchentes em determinadas áreas
urbanas. Portanto, tais situações que não dependem de recursos financeiros ou
ações humanas podem implicar negativamente sobre as pessoas e ambientes.
Neste cenário situa-se o município de Concórdia que, por vezes, sofre de-
vido as condições naturais (muita ou pouca chuva).
Portanto, além disso, é preciso levar em conta o cenário político econômi-
co mundial e brasileiro que podem, eventualmente influenciar nas condições
de vida das pessoas.
Paralelamente, algumas dificuldades estão aumentando, entre elas, a ofer-
ta de água, mobilidade urbana, carência de espaços de lazer.

Considerações Finais

O desenvolvimento socioeconômico local de determinado território, pode


ser pensado e implementado de diferentes formas. Uma delas e abordado nes-
te trabalho é a ação propositiva do Estado (Administração Municipal) em pos-
sibilitar a participação democrática dos cidadãos através dos Conselhos. Ações
como estas fundamentadas em tais prerrogativas, ou princípios (participação
cidadã e democrática) caracterizam-se pela descentralização política e fortale-
cem a gestão pública.
Sob tais pressupostos a descentralização é primeiramente um ato admi-
nistrativo por parte do Estado, desconcentrando decisões que se refletem em
ações públicas com maior potencialidade de eficiência e eficácia, na medida em
que conta com múltiplos olhares e percepções advindas de setores da socieda-
de civil organizada, que cotidianamente enfrentam determinados problemas e
limites em seus esforços de sobrevivência e desenvolvimento. Em outra pers-

225
pectiva, a descentralização de decisões e ações do Estado, compartilhando as
mesmas com os segmentos organizados da sociedade, implica no fortalecimen-
to político da comunidade, que passa a se sentir partícipe da ação política leva-
da adiante pelo Estado. Nas duas perspectivas, desconcentração e descentrali-
zação, o Estado se fortalece em sua centralidade ao tornar suas ações em prol
do desenvolvimento municipal sustentável, eficientes e eficazes.
Ainda nesta perspectiva, ações descentralizadas podem gerar maior segu-
rança, conforto e tranquilidade ao gestor público quando é amparado por um
Conselho conformado por representantes da Comunidade. Ao mesmo tempo,
demonstra maior participação diante da demanda por ampliação das exigên-
cias de ações em prol da comunidade.
A implementação do Planejamento Estratégico “Concórdia 2030”, de-
monstra a sensibilidade do Estado (Administração Municipal) em possibilitar a
participação e a responsabilidade da sociedade para com o futuro do Município
viabilizando melhorar as condições e qualidade de vida das pessoas.
Assim, este estudo de caso sobre a concepção, criação e ação do Conselho
de Desenvolvimento Sustentável do município de Concórdia, do Estado de
Santa Catarina é mais um de muitos exemplos e iniciativas que existem em
terras brasileiras. Esta condição fortalece a necessidade desta publicação como
forma de multiplicação dos discursos e de ações públicas que valorizam e
compartilham a gestão do espaço público, ampliando e fortalecendo as bases
da democracia e da cidadania.
E entre os inúmeros aspectos pesquisados e relatados em relação ao
CMDS de Concórdia (SC) ressalte-se a preocupação e o cuidado com o planeja-
mento municipal de curto, médio e longo prazo. Este é um dos aspectos mais
caros e, portanto, estratégicos a serem disseminados para a conformação de
uma racionalidade de Estado consistente. A sociedade brasileira como um
todo, está diante do desafio de superar as soluções de continuidade, marca
registrada da grande maioria das gestões municipais e, caminhar na direção do
fortalecimento de uma racionalidade política e administrativa que aja no curto
prazo, a partir de planejamentos de médio e longo prazo. Com ações orientadas
em planejamentos, demográficos, econômicos, ambientais e sociais têm-se
maior garantias de desenvolvimento humano e social.

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227
INSTITUIÇÕES, GOVERNANÇA E DESENVOLVIMENTO
REGIONAL: O DEBA-TE
SOBRE A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA NO
ESTADO DE SANTA CATARINA
Leonardo Furtado da Silva1
Patrícia Luiza Kegel2

A participação do Professor Leonardo Furtado da Silva, à época, douto-


rando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da FURB
– Universidade Regional de Blumenau no Iº Seminário Nacional sobre Estado,
Crise Política, Economia e Perspectivas de Desenvolvimento teve o intuito de
colaborar com os estudos da temática proposta para o evento. Outro aspecto
foi à apresentação de estudos preliminares do trabalho de defesa de tese de
doutoramento efetivados até a data do evento. Para que o tema estudado possa
inserir-se nas discussões do seminário, é preciso apresentar a temática do
trabalho: Instituições, Governança e Desenvolvimento Regional: O Debate so-
bre a Descentralização Administrativa no Estado de Santa Catarina. O tema
abordado tem o objetivo de verificar se houve melhora nos índices de desen-
volvimento socioeconômico do estado a partir da criação das SDRs até os dias
atuais. Pensando na descentralização administrativa como uma perspectiva de
desenvolvimento social e econômico para o estado e a maior autonomia para
cada região, o então candidato a governador de Santa Catarina, Luiz Henrique
da Silveira, lançou a proposta de descentralização administrativa do estado em
2002 nas eleições.
Primeiramente a ideia surgiu como uma proposta de descentralizar a ges-
tão administrativa do estado e evitar a chamada litoralização, aonde muitas
pessoas das regiões mais distantes dos grandes centros do estado: Florianópo-
lis, Blumenau e Joinville deslocavam-se em busca de oportunidades. Outro
intuito da proposta de Luiz Henrique foi trazer o desenvolvimento para as
regiões a partir de suas próprias características e assim evitar a chamada lito-
ralização. Além da proposição sobre a descentralização e o cenário eleitoral
nacional, o qual elegeu Luiz Ignácio Lula da Silva pela primeira vez, portanto
algo inédito na época, Luiz Henrique acabou beneficiado no segund turno pela

1
Doutor e Mestre em Desenvolvimento Regional – FURB – Universidade Regional de Blumenau.
2
Doutora em Direito Internacional – UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina; Pós Doutora em
Propriedade Intelectual e Investimentos Diretos Externos – UFSC. Professora do programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Regional FURB.

229
pregação da mudança e derrotou o favorito e governador da época Esperidião
Amin Helou Filho, que até então jamais havia perdido uma eleição no estado. A
partir de janeiro de 2003, com a aprovação por unanimidade do
PLC243/20033 que tratava da descentralização administrativa do estado, a
partir da criação das Secretarias de Desenvolvimento Regional – SDR, foram
implementadas as secretarias regionais em 29 cidades polo. Posteriormente,
em 2007 foram crias mais 7 secretarias, totalizando 36 pela LCP 003814. Em
função de necessidades políticas no legislativo estadual e da política nos muni-
cípios das distintas regiões do estado, essas novas SDR´s foram então criadas.
Para analisar especificamente os impactos da criação das regionais para o
estado de Santa Catarina, foram delimitados 4 objetivos:

 Verificar a Lei de criação das SDRs e seus objetivos foram cumpridos;

 Pesquisar e interpretar os indicadores de desenvolvimento das SDR’s;

 Averiguar a participação dos atores locais na formulação das prioridades


regionais (governança: universidades, setor privado, governo e
comunidade);

 Pesquisar a eficiência na alocação de recursos e na gestão administrativa.

O intuito do primeiro objetivo específico da tese de doutoramento possui


é de analisar se o que estava previsto na lei de criação e o que ocorreu na prá-
tica correspondeu ao previsto. O objetivo específico 2 foi delineado para que a
interpretação dos índices de desenvolvimento sócio econômico das SDR´s pos-
sam ser analisados e comparados com índices nacionais e internacionais e
desta forma verificar o desempenho das regionais. No objetivo específico 3 foi
proposta uma averiguação sobre a participação dos atores locais: comunidade,
iniciativa privada, universidades e governo para perceber se a tomada de deci-
são tinha uma efetiva participação da comunidade e não somente do governo
ou agentes econômicos. O objetivo específico 4 foi construído com a finalidade
de analisar se as regionais (meio para a descentralização) foram eficientes
para as regiões terem as suas demandas atendidas, bem como contribuir com a
funcionalidade do governo.

3
Procuradoria Geral do Estado – PGE.
4
Procuradoria Geral do Estado – PGE.

230
A partir da perspectiva da lei de criação das SDR, a qual tinha a finali-
dade de descentralizar o governo do estado, seu principal objetivo, é importan-
te analisar o que sua redação traz:

Art. 54 As Secretarias de Estado do Desenvolvimento Regional serão


responsáveis – pela regionalização do planejamento e da execução
orçamentária; II – pela articulação que resulte no engajamento, integração e
participação das comunidades, com vistas ao atendimento das demandas
atinentes as suas áreas de atuação; e III – pelo acompanhamento das
audiências do Orçamento Estadual Regionalizado previsto na Lei
Complementar nº 157, de 09 de setembro de 1997 e pela mobilização das
comunidades para participação nas audiências.

Pelo projeto de lei que criou as regionais, havia o intuito de com a regiona-
lização do planejamento, adequar inclusive a peça orçamentária para que hou-
vesse uma execução nas regiões e de acordo com as suas prioridades. Outro
aspecto importante está na integração e participação comunitária. Estes aspec-
tos são inerentes a descentralização administrativa, a qual prevê autonomia
orçamentária, bem como a participação dos atores sociais. Baseado no texto da
LC 157 de 1997, a garantia da participação dos atores para que houvesse parti-
cipação nas audiências, mobilização e atendimento das necessidades da socie-
dade como um todo. Pelo que o texto da lei previa, o universo para a descentra-
lização administrativa estaria construído: autonomia no planejamento, deci-
sões, orçamento e participação da sociedade a partir de cada região. O que
ocorreu na prática foi uma participação direcionada para atender os interesses
do governo e com o tempo as audiências foram dominadas pelos interesses
políticos e governamentais. Outro aspecto foi que os agentes econômicos tam-
bém tinham uma influência maior que os demais atores sociais, comunidade e
universidades, por exemplo.
Na reunião do CDR, de 26 de julho de 2013, a centralização dos recursos
foi evidenciada por um conselheiro:

O conselheiro Salvador Navidad disse que a política de Estado em relação ao


conselho “andou para trás”. Há alguns anos buscava-se a possibilidade de um
montante de recursos serem descentralizados, e cada região discutir nos
conselhos como utilizar os recursos. Hoje são aprovadas as prioridades que
os órgãos centrais enviam. Disse que “o conselho está de mãos amarradas
(NAVIDAD, 2013, p. 3).

Esse relato de um dos membros do CDR da regional de Blumenau deixa


claro que o objeto principal da criação das SDR que era a descentralização
perdeu-se ao longo do tempo. Com isso a participação comunitária acabou
acontecendo de uma maneira mais figurativa do que deliberativa.

231
A lei de criação das SDR que objetivava a descentralização administra-
tiva do estado acabou perdendo sentido e os objetivos do governo central em
Florianópolis se sobrepuseram. Cabe salientar que um dos pontos centrais da
lei era a participação do conselho, o que foi sendo descaracterizado ao longo
do tempo e das demandas dos políticos e do governo.
Até a data da apresentação do Seminário, foram efetivadas pesquisas
com os indicadores de desenvolvimento humanos do estado de Santa Catarina,
por secretarias regionais e cada município do estado, porém as pesquisas com
os indicadores de desenvolvimento de abrangência nacional, internacional e
mundial ainda não realizados. Preliminarmente, o objetivo específico 2 deste
trabalho analisou o IDHM dentro do estado, havendo uma elevação dos níveis
entre os anos de 2000 e 2010, quando já haviam sido completados 7 anos das
SDR.

O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é uma medida


composta de indicadores de três dimensões do desenvolvimento humano:
longevidade, educação e renda. O índice varia de 0 a 1. Quanto mais próximo
de 1, maior o desenvolvimento humano (PNUD5, 2016, s.d.).

Dentro desta perspectiva observou-se que o estado obteve uma evolução


nos seus indicadores em todas as suas regiões. Mesmo com uma evolução posi-
tiva de seus índices, as regiões do estado precisam ser melhor compreendidas
para que haja um diagnóstico mais preciso sobre o desenvolvimento regional
no estado. Em outra fase desta tese de doutoramento, posterior ao evento,
houve uma ampliação maior dos dados (nacional e internacionalmente), assim
podendo haver uma reposta ao objetivo específico 2 deste trabalho. A seguir
um quadro prévio os indicadores de desenvolvimento humano municipal do
estado:

Desempenho de indicadores de
desenvolvimento humano municipal nas SDR/ADRs

SDR/ADR IDHM 2000 IDHM 2010 Evolução do Índice


São Miguel do 0,590 0,725 22,7%
Oeste
Maravilha 0,590 0,723 22,5%
São Lourenço 0,585 0,706 20,8%
d’Oeste
Chapecó 0,619 0,742 19,9%
Xanxerê 0,604 0,716 18,6%

5
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

232
Concórdia 0,637 0,761 19,5%
Joaçaba 0,650 0,751 15,6%
Campos Novos 0,559 0,697 24,7%
Videira 0,656 0,765 16,6%
Caçador 0,517 0,669 29,4%
Curitibanos 0,560 0,691 23,4%
Rio do Sul 0,639 0,761 19,1%
Ituporanga 0,568 0,711 25,2%
Ibirama 0,603 0,718 19,2%
Blumenau 0,675 0,765 13,3%
Brusque 0,648 0,740 14,2%
Itajaí 0,662 0,771 16,5%
Florianópolis 0,635 0,749 17,9%
Laguna 0,619 0,731 18,1%
Tubarão 0,632 0,743 17,6%
Criciúma 0,654 0,762 16,5%
Araranguá 0,612 0,727 18,8%
Joinville 0,626 0,744 18,8%
Jaraguá do Sul 0,698 0,728 11,0%
Mafra 0,604 0,719 20,6%
Canoinhas 0,585 0,676 22,9%
Lages 0,542 0,696 24,6%
São Joaquim 0,569 0,688 20,8%
Palmitos 0,625 0,738 18,1%
Dionísio Cerqueira 0,589 0,713 20,9%
Itapiranga 0,632 0,755 19,4%
Quilombo 0,591 0,716 21,2%
Seara 0,624 0,743 19,1%
Taió 0,600 0,722 20,3%
Timbó 0,642 0,749 16,6%
Braço do Norte 0,646 0,763 18,1%

Fonte: IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Dados coletados pela equipe
SIGAD FURB.

Os indicadores confirmaram que houve uma melhoria em todas as regio-


nais, porém é preciso um comparativo com os índices de desenvolvimento de
abrangência maior: nacional e internacional, para que uma conclusão possa ser
atingida. Indo ao encontro desta afirmativa, vale salientar que regiões como a
de Blumenau e Joinville, sempre com alto índice de desenvolvimento, histori-
camente, podem ter obtido estes resultados com base no movimento de sua
economia e gestão local, sem a interferência das regionais. Portanto para o
objetivo específico 2 não foi possível ter uma resposta mais concreta quando
da participação no Iº Seminário Nacional sobre Estado, Crise Política, Econo-

233
mia e Perspectivas de Desenvolvimento. Posteriormente ao evento a pesquisa
avançou em um escopo maior para uma conclusão definitiva sobre o vínculo do
desempenho sócio econômico das regiões e a criação das regionais dentro da
proposta de descentralização administrativa do estado.
O objetivo específico 3, conforme já mencionado anteriormente pela
descrição de um conselheiro do CDR Blumenau, não existe uma conexão maior
entre a participação dos atores locais e as deliberações de governo. Prelimi-
narmente é o que se concluí com este objetivo específico até este momento do
trabalho. É importante ressaltar que ainda serão investigados outros elemen-
tos para chegar-se a uma conclusão em relação a este objetivo específico.
Quanto ao objetivo específico 4, que investiga sobre a eficiência na alo-
cação de recursos das regionais, também possui ainda uma conclusão prelimi-
nar, pois existem dados que estão sendo investigados em campo para poder
chegar-se a uma conclusão mais definitiva. A seguir o primeiro quadro de-
monstrativo pesquisado na busca de uma resposta para a investigação:

Receita das SDR/ADR no período 2011/2015

SDR Dotação Pago Empenhado Liquidado

Araranguá 143.913.164,71 128.592.875,13 130.853.507,17 129.313.125,17

Blumenau 144.292.371,95 112.456.561,48 119.654.914,28 114.415.513,24

Braço do Norte 76.513.142,72 62.242.635,16 70.783.922,37 67.992.681,26

Brusque 97.520.979,76 86.949.002,79 88.417.574,99 87.540.905,88

Caçador 80.089.892,77 67.623.891,91 70.864.295,21 69.395.437,94

Campos Novos 65.091.360,15 54.175.621,04 58.347.237,81 54.542.123,33

Canoinhas 76.873.929,64 65.451.760,67 68.618.791,96 66.103.714,99

Chapecó 349.069.816,47 267.779.135,88 282.506.013,42 271.972.136,91

Criciúma 181.762.806,73 156.905.397,06 161.581.085,53 158.678.623,71

Concórdia 55.630.915,57 48.842.446,04 50.124.159,40 49.064.390,61

Curitibanos 56.926.703,37 49.343.140,13 50.211.947,76 49.737.507,86

Dionísio Cerqueira 48.557.936,52 41.012.671,28 41.404.840,54 41.073.357,41

Grande Florianópolis 400.117.533,65 351.731.866,49 363.160.704,48 352.324.062,84

Ibirama 75.976.942,62 67.232.045,71 68.036.888,29 67.385.609,77

Itajaí 149.148.469,62 129.727.687,22 133.991.699,53 131.165.335,40

Itapiranga 41.968.241,94 35.006.123,14 36.707.371,62 35.766.924,67

Ituporanga 74.343.849,02 64.740.599,48 66.176.590,80 65.124.449,12

234
Jaraguá do Sul 87.459.947,74 75.388.469,85 77.310.953,00 75.466.230,29

Joaçaba 93.236.253,97 82.881.200,12 85.960.587,48 83.040.889,48

Joinville 563.167.612,77 319.133.235,47 327.246.907,25 321.033.759,81

Lages 246.298.055,28 214.006.991,37 232.138.163,14 214.928.951,42

Mafra 115.213.572,42 94.682.702,90 102.108.165,00 96.411.980,49

Maravilha 84.626.948,05 73.127.305,16 75.759.085,00 74.280.492,57

Quilombo 56.992.604,27 44.458.946,05 50.387.446,83 49.511.658,58

Rio do Sul 83.785.898,53 72.895.364,10 74.866.128,15 73.602.884,69

São Joaquim 67.651.983,74 57.691.215,91 62.525.688,48 58.089.655,38

São Lourenço d´Oeste 53.223.471,21 45.742.407,02 46.470.425,60 46.324.724,59

São Miguel do Oeste 57.661.826,03 48.964.126,19 50.925.400,46 49.325.577,67

Seara 65.402.859,78 54.910.385,29 59.465.056,63 58.095.239,93

Taió 58.589.777,21 50.868.980,80 52.183.019,59 51.242.687,30

Timbó 60.891.632,58 51.616.237,40 53.007.554,40 52.055.297,10

Tubarão 119.776.105,39 104.634.452,81 108.709.668,54 105.057.024,76

Videira 64.849.101,50 54.260.670,17 55.712.371,00 54.511.361,64

Xanxerê 130.741.495,13 111.965.655,82 116.538.022,47 112.641.260,40

Fonte: Disponível em: <http://www.transparencia.sc.gov.br/despesa>. Acesso em: 13 mar.


2017.

Preliminarmente pode-se concluir quanto a este objetivo da tese que exis-


tiu uma distribuição proporcional dos recursos nas 36 regionais pesquisadas,
porém ainda é preciso mais elementos que possa fazer a verificação de que as
receitas e despesas trouxeram equilíbrio para as contas públicas, desonerou o
governo e contribuiu de forma correta com a alocação de recursos destinados
as prioridades das regionais. Este é um ponto importante para chegar-se a uma
conclusão de que o projeto de descentralização administrativa do governo
tenha valido a pena para o estado de Santa Catarina como elemento para trazer
o desenvolvimento regional para os catarinenses. Existe, seguindo o levanta-
mento, uma verba prevista para ser gasta e orçada (dotação orçamentária), o
que é importante para o caixa do estado, porém é algo da atividade administra-
tiva e não governativa, não caracterizando uma descentralização dos recursos
ainda.

É o ato emanado de autoridade competente que cria para o estado obrigação


de pagamento pendente ou não de implemento de condição (art.48). O
empenho é prévio, ou seja, precede a realização da despesa e está restrito ao

235
limite de crédito orçamentário (art. 59). É vedada a realização da despesa
sem prévio empenho (art. 60) (LIMA, 2012. p. 76).

O que fica claro pelo próprio TCU6, que o que na organização orçamentária
do governo, será cumprido o que está previsto a ser pago, portanto caracteri-
zando o cumprimento da rotina administrativa. O empenho é realizado a partir
do que está limitado no crédito existente. Não poderá haver nenhuma despesa
prevista sem um empenho prévio. Este quadro pesquisado junto ao portal
transparência do estado, demonstra que a organização orçamentária existe e
até aqui foi respeitada, porém é preciso investigar ainda mais sobre a eficiência
ou não das regionais, ou seja do projeto que visou descentralizar o governo do
estado.
Aspectos como folha de pessoal, número de servidores e comissiona-
dos, comparados ao tamanho da regional e as suas receitas são fundamentais
para chegar-se a uma conclusão e desta forma responder a este objetivo espe-
cífico. Portanto e de forma preliminar foram analisados os fluxos dos recursos
e não de sua aplicabilidade prática e contribuição para o desenvolvimento das
regiões e equilíbrio das contas públicas.

As Instituições e o papel das SDR

Dentro da proposta de descentralização administrativa do governo do


estado de Luis Henrique da Silveira na eleição de 2002 e posteriormente no
PLC 243/03, as regionais serviriam de base para que as decisões e as delibera-
ções orçamentárias ocorressem nas sedes de SDR. É importante observar es-
tudo feito pelo Professor Walter Birkner sobre o desdobramento das SDR no
estado:

Muitos governistas apontaram falhas no processo, nesse sentido em nada se


distinguindo de oposicionistas. A distinção que aí se revela está pautada em
intenções objetivas quanto ao processo, sejam elas no sentido de retificação
ou de alguma desconfiança sobre as reais intenções ou capacidade de eficácia
da descentralização. Mas parecem muito raras as críticas oriundas de
intenções não reveladas, do gênero inconfessável da dissimulação de quem
deseja o pior (BIRKNER; TOMIO, 2011, p. 9).

É importante ressaltar aqui que os oposicionistas possuem um papel sem-


pre identificado, ou seja, fazer a oposição, muitas vezes com ausência da crítica
construtiva para poder ter acesso ao poder posteriormente. Já a situação preci-
sa do aval quanto as suas propostas e projetos perante a população para a

6
Tribunal de Contas da União.

236
manutenção do poder. Portanto quando são reconhecidos, mesmo que peque-
nos avanços pela oposição, a observância do fato é fundamental. No caso das
SDR, pelo estudo feito pelo mesmo pesquisador citado, Walter Birkner, existiu
um reconhecimento de avanço em relação as SDR que foi a melhoria da presta-
ção dos serviços locais. Este fato aponta que houve uma maior desconcentra-
ção administrativa, ou seja, a atividade administrativa sendo deslocada para as
diversas regiões do estado. Por outro lado, a atividade governativa ainda ficou
restrita as ações do poder central em Florianópolis e desta forma, não havendo
uma descentralização do governo, ou seja, a tomada de decisão ocorrendo nas
regiões.

Trata-se do aspecto prático da diminuição dos deslocamentos à capital


Florianópolis, fato mencionado com bastante frequência, o que teria em
muito facilitado a vida dos prefeitos e diminuído as despesas normais com
deslocamentos. Em geral, os chefes do executivo municipal se sentem mais
atendidos com os secretários regionais, e o efeito disso é a percepção ou
sensação de que o diálogo com o governo estadual é intensificado por meio
desse contato com os secretários (BIRKNER; TOMIO, 2011, p. 11).

É importante que diante da lógica da desconcentração, mais uma vez foi


reconhecido, e pelos chefes de executivo locais, um avanço na prestação dos
serviços e mesmo no estabelecimento do diálogo com o governo. O fato de que
os prefeitos sentirem que existiu um conforto na relação com os secretários
regionais, tanto no relacionamento, bem como no encaminhamento de deman-
das locais, diminui a peregrinação a Florianópolis, muitas vezes inúteis. Outro
fator positivo também foi a diminuição das despesas com estes deslocamentos,
o que contribui para diminuição e o desperdício dos gastos públicos.
No que se diz respeito a tomada de decisão local, planejamento, orça-
mento, realmente ficou no vácuo das discussões de campanha, pois o poder
central deliberou como conveniente a seus interesses e desta forma, não ha-
vendo uma descentralização administrativa portanto.

Especificamente em relação à autonomia dos municípios também se


menciona que estes têm sido mais encorajados a buscarem alternativas
endógenas, o que é progressivamente estimulado pela regularidade das
reuniões. Nesse sentido, a simples troca de experiências e informações que as
reuniões dos CDR têm promovido, é entendida como estímulo ao aumento de
conhecimento e criatividade (BIRKNER; TOMIO, 2011, p. 11).

O fato de haver uma maior discussão dentro dos CDR – Conselhos de De-
senvolvimento Regional, com o envolvimento dos representantes dos municí-
pios, encoraja as localidades a discutir, pelo menos, uma alternativa de desen-

237
volvimento endógeno. Este fato é positivo é pode ser um embrião para um
futuro projeto de descentralização e desenvolvimento local. É uma possibilida-
de futura, só que para que isso aconteça a sociedade como um todo deve
mostrar-se disposta a contribuir ativamente com o processo.

Em 2003, o governo do estado catarinense criou um processo de


descentralização político-administrativo. O objetivo geral da descentralização
em vigência é o de incentivar o desenvolvimento regional, por meio da
criação de instâncias intermediárias de governo. As SDR são braços
operacionais que implementam, no plano regional, as ações do governo
estadual em diversas áreas. As ações governamentais são, assim,
regionalmente coordenadas e executadas pelas SDR, por meio de subdivisão
administrativa que replica regionalmente a estrutura do governo estadual
(BIRKNER, 2016, p. 176).

As regionais foram cridas para que as regiões tivessem um poder delibe-


rativo de suas ações, do planejamento a execução. Essas instâncias intermediá-
rias, as SDR, não possuíram na prática, a partir do que o governo central as
permitiu, um papel ativo na construção do planejamento e distribuição das
ações. Replicou-se dentro das regionais as ações da atividade administrativa,
distribuindo-se rotina administrativa mas não existindo um poder deliberativo
local, o que descaracteriza a descentralização administrativa.

Da mesma maneira, as ações, resultantes dos investimentos de origem


estadual são executados sob a coordenação dessas Secretarias. Parte desses
investimentos é decidida pelos Conselhos de Desenvolvimento Regional –
CDR, composto pelos prefeitos, presidente das câmaras de vereadores e
membros da sociedade civil de cada município de abrangência da respectiva
SDR (BIRKNER, 2016, p. 176).

Confirmando esta tendência desconcentradora, o próprio papel dos CDR é


no sentido de confirmar a distribuição dos recursos, mas não deliberar sobre o
que deve ser feito pelas regiões, não havendo portanto a caracterização do
papel deliberativo local a partir das SDR. Mais uma vez o que ocorreu na práti-
ca evidencia que houve realmente uma distribuição de tarefas e recursos, mas
não houve uma autorização descentralizadora, ou seja, o governo central não
delegou poder deliberativo para as regiões, o que descaracteriza a descentrali-
zação administrativa. É preciso uma ampliação das discussões sobre esse tema,
não só na particularidade de Santa Catarina, bem como no Brasil, pois aspectos
como a análise do papel de uma unidade da federação (estado) possui dentro
de uma república federativa, pode explicar também, além do arranjo político a
ineficiência ou não de propostas como a criação das SDR, ocorrida em Santa
Catarina.

238
A Perspectiva do Federalismo para a Descentralização
Administrativa

A organização do estado brasileiro como uma república federativa, em te-


se, fortalece a perspectiva da descentralização administrativa. A partir da cons-
trução de uma realidade regionalizada, aonde os estados possuem uma auto-
nomia para definição de orçamento e priorização de obras e serviços, é impor-
tante para que a descentralização seja implementada com uma maior facilida-
de. Conforme o modelo brasileiro, por exemplo, a saúde é em seu planejamento
execução dos serviços determinada a partir do governo federal, fiscalizada
pelos estados e distribuída nos municípios (atendimentos e medicamentos). A
perspectiva do federalismo é importante para que as unidades da federação
possam ter uma autonomia para a tomada de decisão e construção orçamentá-
ria, embora com as devidas limitações no caso brasileiro. Cada estado no Brasil
possui uma constituição, portanto com as leis sendo construídas de acordo
com a realidade local, porém não podendo se sobrepor a constituição federal,
havendo uma dependência do poder central em muitos assuntos estratégicos
para os estados.

O Professor Pinto Ferreira, da Universidade do Recife, formulou a seguinte


definição: O estado federal é uma organização formada sob a base de uma
repartição de competências entre o governo nacional e os governos
estaduais, de sorte que a União tenha supremacia sobre os Estados-membros
e estes sejam entidades dotadas de autonomia constitucional perante a
mesma união (MALUF, 2010, p. 184).

Os estados, no caso da república federativa brasileira, possuem autonomia


constitucional limitada, havendo uma supremacia da união, as cartas constitu-
cionais locais possuem algumas leis de características autóctones, porém o
governo central não perde a interferência e supremacia sobre qualquer um dos
estados brasileiros. Algumas características desse modelo são importantes
ressaltar na ponderação dos estudos preliminares da tese de doutoramento
citada:

 Existe autonomia constitucional dos estados perante a união, porém com


limitações;

 Não existe a possibilidade de secessão de nenhuma unidade da federação


em relação a união;

239
 Os estados possuem autonomia orçamentária dentro das suas
perspectivas internas em relação ao seu planejamento, porém muitos
serviços e recursos estão centralizados em Brasília;

 modelo federalista brasileiro está com um forte vínculo com o


presidencialismo de coalização, o que dificulta muito a autonomia dos
estados, bem como as negociações e a transparência política.

Muitos aspectos são relevantes na construção de uma perspectiva de des-


centralização para um estado, porém observando a organização federativa do
Brasil, o projetos das SDR no estado fica com uma forte limitação de já haver a
perspectiva prevista na constituição da República Federativa do Brasil.

O que caracteriza o Estado federal é justamente o fato de, sobre o mesmo


território e sobre as mesmas pessoas, se exercer, harmônica e
simultaneamente, a ação pública de dois governos distintos: o federal e o
estadual (BRYCE apud MALUF, 2010, p. 183).

Com sem uma limitação dos estados, existe uma possibilidade de ação pú-
blica com autonomia em alguns casos, pois os estados possuem um orçamento
próprio. A definição de obras, distribuição de serviços e construção de políticas
públicas é possível. As obras que estão dentro de uma perspectiva federal,
como é o caso de rodovias, portos, aeroportos e fontes de energia, precisam do
crivo do governo central, o que demonstra que estrategicamente os governos
locais possuem forte dependência de Brasília. Portanto para questões estraté-
gicas, o poder central consegue amarrar a dependência dos estados, mesmo
dentro de uma perspectiva federalista.

Para que os Estados-membros possam ter voz ativa na formação da vontade


da União – vontade que se expressa sobretudo por meio das leis –,
historicamente, foi concebido o Senado Federal, com representação paritária,
em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros
(MENDES & BRANCO, 2009, p. 850).

O exemplo da organização do Senado Federal é o que se prevê dentro do


federalismo, ou seja, uma representatividade equânime dos estados no número
de representantes (senadores): 3 por unidade da federação, diferentemente da
câmera federal, a qual é proporcional ao número de habitantes. Por isso o se-
nado é conhecido como a casa dos estados e a câmera do povo.
No caso da descentralização administrativa proposta para Santa Cata-
rina na eleição de 2002 e implementada a partir de 2003, o que prevê o federa-
lismo vai na contramão do que havia sido idealizado. Se por um lado existe um

240
configuração em âmbito federal que determina que os estados possuem uma
autonomia, mesmo que limitada, não existe a necessidade de que ocorra uma
repetição de funções nas regiões de um estado, portanto o papel desenhado
para as SDR na proposta de descentralização em Santa Catarina, nada mais é
do que uma repetição das incumbências das unidades da federação.

O que caracteriza o Estado federal é justamente o fato de, sobre o mesmo


território e sobre as mesmas pessoas, se exercer, harmônica e
simultaneamente, a ação pública de dois governos distintos: o federal e o
estadual (BRYCE apud MALUF, 2010, p. 183).

Portanto existe já uma determinação no estado federal de que de forma


harmônica, aconteçam as ações do governo federal e do estadual, portanto
existe uma distribuição de responsabilidade, possibilidade de construção de
políticas públicas e definição orçamentárias, mesmo que com algumas amarras
burocráticas. Mesmo nesse modelo, o governo central em Brasília exerce uma
influência muito forte sobre os estados, fazendo com que agentes políticos
tenham que ficar atrelados as determinações do governo federal, como por
exemplo, a distribuição de cargos em órgãos ligados ao poder central, bem
como o repasse de recursos para obras, mesmo que orçadas, podendo ser ain-
da barradas pela rubrica em Brasília. Portanto, em Santa Catarina entre 2003 e
2015 houve uma repetição do que já acontece em âmbito federal.

Para que os Estados-membros possam ter voz ativa na formação da vontade


da União – vontade que se expressa sobretudo por meio das leis –,
historicamente, foi concebido o Senado Federal, com representação paritária,
em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros
(MENDES & BRANCO, 2009, p. 850).

A configuração do senado, mais uma vez aqui apreciada, caracteriza bem a


distribuição igualitária do número de cadeiras, poderá possibilitar que essa
representatividade se traduza em leis que possam equalizar a relação da união
com cada estado, bem como no atendimento das necessidades de cada região
do país. É importante que essa igualdade jurídica possa trazer um equilíbrio
para a gestão pública, tanto no aspecto administrativo, bem como na harmoni-
zação das relações do governo federal com os estados. A realidade regional
muitas vezes difere do que a decisão soberana da maioria da população, for-
mada pelo número de habitantes de todos os estados. Desta forma, impede-se
que muitas vezes o interesse da maioria se sobressaia a necessidade local,
representada pela maioria naquela localidade e que precisa ter o seu problema
solucionado. Aqui pode-se de alguma forma haver uma analogia com o modelo
eleitoral americano, o qual possui uma preocupação também com o respeito a

241
maioria regional, a qual muitas vezes não é atendida ou compreendida pelo
que a maioria da população do país reproduz.

O estado federal, segundo se alega, provoca a dispersão dos recursos, uma


vez que obriga a manutenção de múltiplos aparelhos burocráticos, sempre
dispendiosos e desejando executar seus próprios planos (DALLARI, 1997, p.
261).

Vale ressaltar essa afirmação do Professor Dallari, o qual chama a


atenção para a distribuição dos recursos pelo governo federal de forma pro-
porcional e para executar os próprios planos. Exatamente o que se confere no
estudo de doutoramento, objeto deste capítulo, é uma distribuição de recursos
e tarefas para as SDR em Santa Catarina, caracterizado maisatividade adminis-
trativa do que a governativa, assim remetendo-se a uma ação mais desconcen-
trada do que descentralizada. Para compreensão e fixação do que se refere o
estado federal, é importante o comparativo do que representa o estado unitá-
rio:

Estado Unitário é aquele que apresenta uma organização política singular,


com um governo único de plena jurisdição nacional, sem divisões internas
que não sejam simplesmente a ordem administrativa. O estado unitário é o
tipo normal, o estado padrão. A França, é um estado unitário. Portugal,
Bélgica, Holanda, Uruguai, Panamá, Peru são estados unitários (MALUF, 2010,
p. 183).

No estado unitário existe uma organização política única, representada


nas leise não havendo divisões internas na legislação. O que existe é uma divi-
são da ordem administrativa, contribuindo para que o governo central possa
executar as suas atividades no dia a dia a partir também das regiões, porém
não existindo autonomia. O estado unitário é preciso haver muita vontade
política para que uma política de descentralização regional seja implementada,
como por exemplo a modificação das leis. Dentro deste comparativo de aspec-
tos do estado federalista e o unitário, vale ressaltar características que são
importantes dentro da política de descentralização administrativa e a sua ca-
racterização:

 Delegação de responsabilidades e tomada de decisões para as regiões;

 Planejamento regional;

 Construção de políticas públicas regionalizadas;

242
 Autonomia regional para a tomada de decisão;

 Orçamento regionalizado e constituído de forma autônoma pela região.

Estes são pressupostos básicos para que uma política descentralizada seja
realmente implementada. O papel do governo central é de disseminar e im-
plementar esta autonomia para que as regiões, estados ou províncias (caso de
alguns países) sejam realmente descentralizados. A descentralização adminis-
trativa independe de ideologia político partidária, pois os dois maiores exem-
plos de países com características descentralizadas são os Estados Unidos da
América e a antiga Iugoslávia, um exponencial do capitalismo e o outro repre-
sentante do pacto de Varsóvia e portanto com orientação socialista.

A experiência catarinense para implementação da descentralização


administrativa

A partir da proposta de governo lançada por Luiz Henrique da Silveira


nas eleições de 2002 para o governo do estado de Santa Catarina, houve uma
intensa discussão sobre a possível descentralização em caso de vitória do en-
tão candidato. Na época, o chamado plano 15, previa a descentralização para
diminuir a chamada litoralização, ou seja, a migração de muitos habitantes do
interior do estado para as regiões litorâneas ou próximas com maior desenvol-
vimento e atividades econômicas. Florianópolis, Joinville e Blumenau histori-
camente sempre foram os principais destinos desta migração. A proposta era
levar o governo até as regiões e desta forma contribuir para o desenvolvimen-
to regional. Durante a campanha, além das discussões entre candidatos, algu-
mas instituições, como é o caso da FECAM – Federação Catarinense de Municí-
pios, contribuíram com propostas para implementação da descentralização,
como a construção da estrutura das regionais a partir do que já existia em
relação as associações de municípios (21 no total). A partir destas discussões, o
então candidato resolveu manter a sua proposta de origem e quando de sua
posse foi aprovado o PLC 243/03 que previa a instalação de 29 SDR7 – Secre-
taria de Estado do Desenvolvimento Regional e posteriormente 368 no ano de
2007, atendendo a demandas políticas nas regiões. A configuração das regio-
nais ficou então dividida de forma definitiva, com 36 municípios sede de polos
regionais com sede de SDR:

7PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA. (2003). Lei complementar nº


000243, de 30 de janeiro de 2003.
8PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA. (2007). Lei complementar nº
000381, de 7 de maio de 2007

243
22° - Araranguá 07° - Joaçaba
15° - Blumenau 23° - Joinville
36° - Braço do Norte 27° - Lages
16° - Brusque 19° - Laguna
10° - Caçador 25° - Mafra
08° - Campos Novos 02° - Maravilha
26° - Canoinhas 29° - Palmitos
04° - Chapecó 32° - Quilombo
06° - Concórdia 12° - Rio do Sul
21° - Criciúma 28° - São Joaquim
11° - Curitibanos 03° - São Lourenço do Oeste
30° - Dionísio Cerqueira 01° - São Miguel do Oeste
18° - Grande Florianópolis 33° - Seara
14° - Ibirama 34° - Taió
17° - Itajaí 35 - Timbó
31° - Itapiranga 20 - Tubarão
13° - Ituporanga 09 - Videira
24° - Jaraguá do Sul 05 - Xanxerê

Fonte9

Portanto, com os atores políticos exercendo pressões em relação aos car-


gos dentro das regionais, houve uma nova configuração, aumentando o núme-
ro de secretarias. Outro aspecto importante a ser relembrado é que nas elei-
ções de 2006, o então PFL, adversário de 2002, passou a fazer parte da chama-

9
Disponível em: <http://portalses.saude.sc.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
825&Itemid=245>. Acesso em: 13 jul. 2016.

244
da tríplice aliança: PMDB, PSDB e PFL. Novamente houve uma vitória com pe-
quena margem de votos e as exigências dos políticas dessas siglas aumenta-
ram, fazendo com que houvesse uma nova configuração nas regionais. As se-
cretarias regionais passaram a ter um peso decisivo em todas as negociações
envolvendo a constituição de maioria na Assembleia Legislativa, bem como nas
tratativas políticas de cada região e município. Os deputados de situação influ-
enciaram nas indicações de cargos e os de oposição tiveram seu trabalho redu-
zido por conta das regionais favorecerem políticos da situação, por isso se
constituiu uma maioria ampla do governo e a oposição teve muitas dificulda-
des no período, especialmente o PP10 e o PT11.
A proposição frustrada durante a campanha eleitoral de 2002 por par-
te da FECAM, por exemplo, a qual acabou sendo negligenciada em função do
arranjo político, explica-se a partir do cenário que se seguiu até o final do
mandato de Luiz Henrique e maior parte de Raimundo Colombo:

A iniciativa da sociedade civil catarinense fez surgir, na década de 1960, a


cooperação regional, por meio da organização de redes de articulação de base
territorial, que congregavam entidades públicas e privadas com o intuito de
fomentar o desenvolvimento. No início dos anos 1990, estas redes tomaram a
forma de fóruns e agências de desenvolvimento: todas as sub-regiões de
Santa Catarina colocaram em funcionamento estes mecanismos de
cooperação regional (FILIPPIM, 2010, p. 2015).

Esta afirmativa demonstra a tradição de Santa Catarina em relação a


cooperação, especialmente no interior do estado a partir da organização dos
produtores rurais. Este é um elo importante presente na sociedade catarinense
e que precisa ser mais aproveitado na busca pelo desenvolvimento regional. É
importante que na sociedade civil exista a confiança para que ocorra a possibi-
lidade em tono do diálogo para que se possa atingir objetivos comuns dos dis-
tintos atores sociais. O poder público possui um papel importante e deve ser
um fomentador desse processo, pois as inciativas públicas são possíveis, ainda
mais com a configuração das regionais na época, a qual passava pelos CDR –
Conselho de Desenvolvimento Regional:

Os CDR são presididos pelo mesmo secretário regional e constituídos pelos


prefeitos, presidentes de câmaras e dois representantes da sociedade civil de
cada município componente da microrregião de abrangência da SDR, sendo
estes últimos indicados pelos prefeitos (BIRKNER, 2011, p. 5).

10
Partido Progressista.
11
Partido dos Trabalhadores.

245
A composição do CDR foi sempre política, pois a própria indicação ocorria
a partir do prefeito. O fato de haver uma indicação política é sempre visto com
dúvidas por parte da sociedade. Vale lembrar que os prefeitos de oposição
também possuíam o poder de indicar, o que ameniza de certa forma uma ten-
dência centralizadora e imperativa por parte do governo do estado na época.
Fica também evidente que o poder político possuía o controle em relação a
composição tanto do CDR, bem como da SDR, pois sempre se disseminou para
as regiões as necessidades do governo, geralmente políticas, o que levava a
necessidade de construção de uma blindagem política para avalizar as ações e
o que era deliberado na regional. A exigências dos deputados, prefeitos e vere-
adores da base do governo do estado tiveram influência nas decisões em rela-
ção ao que seria deliberado pelo poder central para cada regional.

A Descentralização e as SDR no estado de Santa Catarina –


Resultados Preliminares.

Preliminarmente o que pode ser interpretado do que foi propiciado pelas


SDR em relação a descentralização administrativa, é que as regionais foram
instrumentos de uso político em relação as necessidades de governabilidade
do governo do estado. Até a data deste evento, ainda não tinham sido tabula-
dos os dados das entrevistas com os secretários regionais, o que não permitiu
um maior aprofundamento de como a funcionalidade das secretarias contribu-
íram ou não com o processo de descentralização administrativa no estado de
Santa Catarina. É importante verificar como o que estava previsto e o que de
fato aconteceu na prática influiu ou não no processo de descentralização admi-
nistrativa no estado no período analisado: 2003 – 2015.

A) o nível Setorial, compreendendo as Secretarias Setoriais e suas entidades


vinculadas, que terão o papel de planejar e normatizar as políticas públicas
do Estado, voltadas para o desenvolvimento regional, específicas de suas
áreas de atuação, exercendo, com relação a elas, a supervisão, a coordenação,
a orientação e o controle, de forma articulada com as Secretarias de Estado de
Desenvolvimento Regional; e b) o nível Regional, compreendendo as
Secretarias de Estado de Desenvolvimento Regional, atuando como agências
de desenvolvimento, que terão o papel de executar as políticas públicas do
Estado, nas suas respectivas regiões, cabendo-lhes a supervisão, a
coordenação, a orientação e o controle, de forma articulada com as
Secretarias de Estado Setoriais e as estruturas descentralizadas da
Administração Indireta do Estado (ENA BRASIL, 2010, p. 29).

Segundo o que prevê a Escola Nacional de Administração, uma secretaria,


como é o caso das regionais de Santa Catarina, precisam ter um poder delibera-

246
tivo em relação a construção de políticas públicas. As políticas públicas sendo
construídas nas próprias regiões, caracterizariam uma das principais expres-
sões da descentralização. Após estudos preliminares percebe-se que a lei de
criação se volta para a descentralização, porém inicialmente a preocupação
maior foi levar uma distribuição de cargos para atender interesses políticos,
bem como garantir a governabilidade do período no estado.

a) Descentralização: tem o propósito de deslocar o governo efetivamente por


todo o território catarinense no intuito de aproximá-lo da sociedade por
meios das regiões e dos representantes da sociedade civil organizada em
articulação com o representante do Estado; b) Municipalização: tem o
propósito de colocar o governo central a disposição dos municípios para
apoiá-los na execução de obras locais que venham garantir melhor condições
de vida para a respectiva população; c) Prioridade social: tem o propósito de
desenvolver programas estaduais que darão prioridade a áreas sociais
especificas, tais como: habitação, saneamento e meio ambiente, atendimento
ao menor, ao adolescente e ao idoso, por exemplo; e d) Modernização do
Estado: tem o propósito de obter mais eficiência, garantir a transparência e a
participação da sociedade (SANTA CATARINA, 2003)12.

O deslocamento do governo do estado para todas as regiões do estado,


não pode ser entendido como uma presença da atividade governativa no inte-
rior. É importante ressaltar que, uma coisa é a presença governamental via
atividades administrativas nas regiões, outra coisa é haver uma deliberação
por parte das regionais em relação ao planejamento, construção de políticas
públicas, orçamento e definição de prioridades. Os programas sociais estaduais
reproduzidos localmente precisam estar pautados nas prioridades regionais,
com a participação da comunidade em geral. A transparência só pode ser ga-
rantida a partir de uma maior participação da sociedade civil. Portanto, é pre-
ciso que haja uma maior vontade política do executivo que permita a participa-
ção comunitária e maior poder deliberativo para as distintas regiões do estado.
Dentro da atividade administrativa, o que se permite em relação ao que ocor-
reu nas regionais são os seguintes pontos:

 Distribuição das atividades burocrático administrativas;

 Pouco poder deliberativo nas regiões;

 Ausência de orçamento regionalizado;

12
Procuradoria Geral do Estado – PLC 243/03

247
 Necessidade do poder central em garantir a governabilidade pelo
atendimento das necessidades políticas locais.

Portanto o que ocorreu nas regionais foi uma distribuição regional das
atividades de governo no campo administrativo, mas não da atividade gover-
nativa, a qual concebe uma maior autonomia para as regiões. As deliberações
continuaram concentradas no poder central em Florianópolis, pois a peça or-
çamentária do estado ainda é centrada na capital e decidida pelo governo cen-
tral. Um ponto importante é que o governo do estado, com a necessidade de
garantir a governabilidade, precisou fazer muitas concessões, tanto para políti-
cos nas 36 regiões administrativas, bem como na Assembleia Legislativa. Este
aspecto deixa claro que a descentralização não poderá ocorrer a partir de um
cenário tomado pelas negociações políticas pautadas em interesses políticos
principalmente. A participação da comunidade ficará sempre em um segundo
plano, fazendo com que a autonomia local para o planejamento, construção de
políticas públicas e orçamento não ocorra e fique restrita aos interesses de
governo em nome da governabilidade e interesses de caciques políticos regio-
nais.

Objetivos, problemas, hipóteses e variáveis para futura conclusão da tese


de doutoramento

Quadro analítico – objetivos e problemas de pesquisa


Instrumento
Objetivo Problema de
de pesquisa Hipótese Variável
específico pesquisa
utilizado

Que os atos
Qual é a atual Pesquisar os atos administ
administrativos d
estrutura das rativos de governo para
o governo
Verificar a lei de SDRs e o que averiguação do document
Análise levavam a des-
criação das SDRs ela permite par o oficial em relação a sua
documental. centralização
e seus objetivos. a que ocorra a aderência com a
ou da desconcen-
descentralizaçã descentralização
tração adminis-
o no estado? administrativa.
trativa.

Que as SDRs Dentro de um


realmente determinado período
Qual é o papel Pesquisa de impactaram posit e das SDRs pesquisar as
Pesquisar e
das SDRs nos indicadores iva- variáveis (IDH, infra-
interpretar os
indicadores baseada em mete o desenvol- estrutura etc.) para
indicadores de
sociais do dados vimento ou são que possa ser feita a comp
desenvolvimento
estado desde qualitativos mera ampliação aração entre o preten-
de SDR amostra.
2003? oficiais. da estrutura dido pelo projeto
burocrática e de que implantou as SDRs e o
pessoal. que efetivamente ocorreu.

248
Averiguar a
participação dos
Averiguar dentro da
atores locais na Que os atores
Qual é o papel estrutura das SDR que
formulação das Pesquisa, análise sociais locais
dos atores loca existe ou não uma
prioridades de cenário e participam decisi
is no processo participação dos atores
regionais entrevistas de vamente ou não
de descentraliz sociais locais no
(governança: campo nas SDR – na definição das
ação viabilizad estabelecimento de
universidades, qualitativa. prioridades
o pela SDR? prioridades e ações para a
setor privado, regionais.
região.
governo e
comunidade).
Qual é o papel
Que a SDR Analisar através de
da gestão
propicia indicadores que
Pesquisar a eficiê administrativa Análise
eficiência na demonstrem como as SDR
ncia na alocação estadual para documental e
alocação de propiciam ou não
de recursos e na viabilização da pesquisa
recursos e na eficiência na alocação de
gestão adminis- descentralizaçã (qualitativa) de
gestão recursos para a região e
trativa. o campo.
administrativa ou propicie eficiência na
administrativa
não. gestão administrativa.
ou não?
Fonte: O autor.

O objeto da tese, a partir dos objetivos, hipóteses, problemas e variáveis


visam saber de que forma a descentralização administrativa proposta por Luiz
Henrique da Silveira em 2002 e implementada em 2003 até 2015, contribuiu
ou não com o desenvolvimento sócio econômico das regiões do estado. Cada
objetivos específico, hipótese, variável e pergunta de pesquisa foram construí-
dos para perceber o cenário e analisar se houve uma descentralização adminis-
trativa de fato ou apenas uma desconcentração, ou seja mais atividade admi-
nistrativa nas regiões do que a governativa, que permite a autonomia regional.
Um dos principais desafios do trabalho foi a verificação do que ocorre
realmente na prática, pois os indicadores financeiros do governo possuem um
limite nas especificações do que ocorre, mesmo com o portal transparência. A
movimentação do governo em suas atividades e atos, bem como a relação com
os grupos políticos para a garantia da governabilidade são fatores que influen-
ciam o atingimento dos objetivos traçados inicialmente no próprio projeto de
tese. As perguntas e hipóteses foram traçadas para chegar as repostas dos
objetivos, procurando observar o cenário, conduta do governo, atores sociais
para que o universo desejado no trabalho seja realmente identificado na futura
conclusão deste trabalho. Uma das principais contribuições que este estudo
espera oferecer a comunidade é também a reflexão sobre os mecanismos pos-
síveis para atingir-se a descentralização para o desenvolvimento regional e o
que existe na realidade, que instrumentos existem. É importante a análise do
que ocorre nacionalmente, par a verificação do que poderá acontecer local-
mente, no caso o estado de Santa Catarina. Por fim, para este trabalho, o evento
da UNC possuiu valorosa contribuição para a análise do cenário nacional, pers-

249
pectivas políticas, econômicas e legais, pois entender o contexto brasileiro, do
qual o catarinense é dependente, é fundamental para a perspectiva da descen-
tralização administrativa. O que ocorreu entre 2003 e 2015 no estado, possui
uma forte dependência da análise do que permite uma república federativa, os
aspectos que envolvem o que aconteceu na implementação da Lei Complemen-
tar 243/03, com base no cenário nacional. A oportunização do debate da UNC
foi primordial para que a tese de doutoramento citada pudesse ter um direcio-
namento mais amplo, em função da pluralidade de opiniões terem debatido,
divergido e convergido durante o evento.

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250
DESCENTRALIZAÇÃO, GOVERNANÇA E DESENVOLVI
MENTO TERRITORIAL
UMA ABORDAGEM AUTOBIOGRÁFICA
Valdir Roque Dallabrida1

1. Considerações Introdutórias

O debate sobre desenvolvimento a partir da ótica da descentralização exi-


ge que seja feito com base na acepção de governança territorial. Isso, pois, o
processo de desenvolvimento que contemple a ótica da descentralização está
inserido na dinâmica territorial e faz parte do processo de planejamento e
gestão que tem como propósito a dinamização socioeconômica e a melhoria da
qualidade de vida dos cidadãos de recortes espaciais chamados de territórios
ou regiões.
Nas últimas décadas, a discussão desta temática tem sido tratada em vá-
rios artigos e livros, abordando temas convergentes, utilizando, em especial, as
seguintes categorias conceituais: gestão societária; governança territorial;
planejamento regional; gestão territorial; gestão do desenvolvimento; gestão
social; gestão público-privada; concertação público-privada; descentralização
político-administrativa; estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimen-
to. Em suma, tais abordagens, resumem-se na acepção da trilogia de três cate-
gorias conceituais - território, governança e desenvolvimento territorial -, as
quais abarcam a ótica da descentralização.
O presente texto trata destas temáticas. Por opção metodológica, reto-
mam-se abordagens pessoais realizadas a partir de 2001, as quais resumem
análises de vários autores.
Assim, além destas considerações, o texto está subdividido em mais qua-
tro partes: a primeira, abordando a evolução histórica do debate teórico sobre
a descentralização e seus enfoques; segunda, apresentação de diferenciais
entre descentralização e desconcentração; terceira, a trajetória pessoal na
abordagem teórica e análises sobre descentralização; quarta, as considerações
finais.

1
Geógrafo e Doutor em Desenvolvimento Regional. Endereço: valdirdallabrida@gmail.com.

251
2. Evolução histórica do debate sobre descentralização e os
diferentes enfoques

É de uma consagrada autora, a afirmação de que nos países da América


Latina, apesar das várias tentativas recentes de descentralização do poder
político e aumento do aumento do poder na instância local, continua presente
a tradição centralista que remonta à organização colonial e à cultura política
ibérica (FLEURY, 1999). O tema, nas últimas décadas foi tratado por diferentes
autores, com enfoques diferenciados.
Dentre a diversidade de enfoques sobre descentralização, um deles é o po-
lítico, em que se destaca a organização política das comunas, tomando o exem-
plo dos Estados Unidos do século XIX. Já o enfoque econômico abordou a temá-
tica da descentralização, principalmente, pela ótica do federalismo fiscal, asso-
ciando a coparticipação dos governos locais nas finanças nacionais. Ainda com
viés econômico, outra origem do debate sobre descentralização é a teoria da
escolha pública, que estuda a forma como as instituições estatais tomam suas
decisões, defendendo que a simples busca do interesse individual não bastaria
para se chegar a uma adequada distribuição dos bens públicos, exigindo acor-
dos prévios, soluções cooperadas, as quais seriam mais eficientes que soluções
competitivas. Outro enfoque é o denominado modelo principal-agente. Para
esse enfoque, a questão passa a ser a modalidade de contrato que se estabelece
entre o principal e o agente, envolvendo cadeias de interesses, de políticos,
burocratas e até provedores privados de serviços, já que o interesse dos cida-
dãos não é necessariamente coincidente com do demais agentes mencionados.
Já o enfoque neoinstitucionalista sobre descentralização e desenvolvimento é
uma crítica aos teóricos neoclássicos que defendem a autorregulação do mer-
cado. Segundo esse enfoque, para que o mercado funcione adequadamente, é
indispensável um contrato social pelo qual se definam normas a que todos
possam obedecer e mecanismos para fazê-las cumprir, com o que, o desenvol-
vimento não dependeria somente do inter-relacionamento entre organizações
econômicas, senão também de sua interação com outras organizações, sociais,
políticas ou culturais (DALLABRIDA, 2011b) 2.
Já a partir do final da década de 1980 se passou analisar os processos de
descentralização com um enfoque político-administrativo, definindo a descen-
tralização como transferência de responsabilidades de planejamento, gerência,
distribuição e gestão de recursos, distinguindo quatro graus, desde a descon-
centração (redistribuição de poder e de responsabilidades das instâncias de
governo central para agências fora da capital), a delegação (transferência de

2
A abordagem feita em Dallabrida (2011b) utiliza como referências diversos autores, lá mencionados.

252
poder de decisão e de administração sobre funções públicas para organizações
semiautônomas, permanecendo a responsabilidades nas mãos do governo
central), a devolução (transferência de autoridade, financiamento e adminis-
tração para governos locais), até a privatização (provisão de serviços públicos
por empresas privadas, indivíduos ou organizações não governamentais). Re-
sumindo, do ponto de vista político-administrativo, descentralização seria a
transferência, por norma legal, de competências decisórias de uma administra-
ção central a outros níveis de administração, descentralizados, ou seja, redis-
tribuição espacial do poder, democraticamente, em favor das comunidades
interioranas (DALLABRIDA, 2011b).
Destaca-se ainda o enfoque sociológico, focado na análise de aspectos e
processos da vivência social e democrática dos cidadãos de países ou regiões,
defendendo a participação social e cidadã na provisão dos serviços públicos, no
fortalecimento da governabilidade democrática da sociedade civil, baseada na
articulação dos movimentos sociais. Assim, o poder social influenciaria os pro-
cessos de descentralização, favorecendo a articulação dos cidadãos para parti-
cipar na gestão pública. Há, ainda, o enfoque politológico, que põem ênfase na
análise e explicação das principais causas e consequências que originaram (ou
impediram) a descentralização na América Latina. Segue-se o enfoque jurídico-
legal, abordando a normatização necessária para regular a relação entre os
entes federados, no caso do Brasil, o Governo Federal, os estados, o Distrito
Federal e os municípios. Por fim, o enfoque da Nova Gestão Pública, inspirado
no pós-burocratismo, definindo a descentralização como tendência instrumen-
tal para a liberação do potencial gerencial das administrações públicas, focan-
do a modernização administrativa, com o que a descentralização seria um ins-
trumento de integração interna, de responsabilidade técnica e financeira, ori-
entada para o cliente, a eficiência e resultados. O foco na participação cidadã é
relativizado neste enfoque (DALLABRIDA, 2011b).
Percebe-se que o principal diferencial entre os diversos enfoques sobre
descentralização está na concepção, mais ou menos descentralizadora, na ma-
neira como operacionalizá-la, e, essencialmente, em como se estimula ou se
relativiza a participação cidadã na gestão pública.

3. Diferenciais entre descentralização e desconcentração: teoria e


prática

De modo geral, descentralização é a transferência de competências do go-


verno central para as instâncias locais, podendo haver, transferência de poder
e recursos financeiros, com o objetivo de reduzir o tamanho da estrutura ad-

253
ministrativa, o que agiliza a gestão de políticas públicas e aproxima o Estado da
sociedade. Dentre os principais argumentos que justificam a descentralização
destacam-se a busca pela maior eficácia, o estímulo à elevação da participação
social, o exercício da democracia participativa na gestão pública e a ruptura
com o autoritarismo e o clientelismo (BINOTTO et al., 2010).
São muitos os autores que procuram diferenciar descentralização e des-
concentração. Por exemplo, Di Pietro (1997), para quem a descentralização
trata-se da distribuição de competência de uma para outra pessoa, física ou
jurídica, enquanto a desconcentração limita-se a uma distribuição de compe-
tências dentro da mesma pessoa jurídica, outorgando atribuições administrati-
vas entre os órgãos, no caso, governamentais, criando-se uma relação de hie-
rarquia e subordinação. Interpretando a argumentação, a desconcentração
liga-se à hierarquia, enquanto a descentralização supõe a existência de, pelo
menos, duas pessoas ou instâncias governamentais, entre as quais se reparte
competência.
Para Junqueira (1997 Apud BINOTTO et al., 2010, p. 188) a descentraliza-
ção é uma condição necessária, embora não suficiente, para a participação da
população na gestão dos interesses coletivos, e, por outro lado, a participação é
fator de viabilidade da descentralização, quando o deslocamento do poder de
decisão pode ser um meio para democratizar a gestão através da participação,
o que aponta para a redefinição da relação Estado e Sociedade.
Em relação ao aspecto administrativo, Abrúcio (2006) afirma que a des-
centralização também é tratada como a delegação de funções de órgãos cen-
trais para agências mais autônomas, o que é na verdade um processo de des-
concentração administrativa, com o repasse de responsabilidades. Assim, se-
gundo o autor, a descentralização é a transferência de poder decisório de um
Estado nacional aos governos subnacionais, que: (i) adquirem autonomia para
escolher seus governantes e legisladores; (ii) comandam diretamente sua ad-
ministração; (iii) elaboram uma legislação referente às competências que lhes
cabem; (iv) cuidam de sua estrutura tributária e financeira.
Em Binotto et al. (2010), com base em vários autores, se aprofunda a dife-
renciação entre descentralização e desconcentração, incluindo autores que
entendem a possível complementaridade entre ambas, enquanto outros, en-
tendem ser a desconcentração uma etapa dos processos de descentralização,
desde que estes se proponham ao constante aperfeiçoamento dos mecanismos
de participação social. Além disso, o referido texto contempla uma análise, em
específico, da experiência de descentralização de uma região catarinense.
Diante de tais reflexões, é possível afirmar que não há uma efetiva descen-
tralização sem ampla participação social. Portanto, muito do que é referido

254
como processo de descentralização, na verdade, não passa de desconcentração
administrativa, ficando invalidados vários dos princípios que justificam a des-
centralização, dentre os quais, a participação social.

4. Aportes teóricos e análises sobre descentralização e sua contextua


lização no tema planejamento e gestão do território: a trajetória de
um autor.

A discussão sobre descentralização, integrada aos processos de planeja-


mento e gestão do território, como exercício da governança territorial, é um
tema tratado por diversos autores. Pessoalmente, tenho contribuições em livro
e capítulos de livros, seja como autor ou organizador, além de artigos, alguns
dos quais em coautoria com colegas pesquisadores. Aqui, faz-se uma síntese da
trajetória de tais abordagens.
Uma primeira parte das contribuições teóricas e análise de experiências
trataram da temática da descentralização, como resultante do processo de
planejamento e gestão dos territórios ou regiões, envolvendo atores públicos e
a sociedade civil, em processos democráticos e colaborativos, seja, (i) fazendo
referência à gestão societária do processo de desenvolvimento local/regional
(DALLABRIDA, 2001), (ii) enunciando os principais referenciais teóricos sobre
planejamento regional (DALLABRIDA, 2004), (iii) destacando a prática do
planejamento como um processo de concertação público-privada com vistas à
definição do futuro do território (DALLABRIDA, 2003; DALLABRIDA et al.,
2006), (iv) ressaltando a multiescalaridade dos processos socioeconômicos
como desafio na gestão territorial (DALLABRIDA et al., 2009), (v) interpretan-
do-a como processo de planejamento e gestão do território e (vi) destacando a
importância da operacionalização de estratégias de branding de território, este
concebido como o processo de construção e comunicação de uma marca e de
sua identidade, com vistas à valorização da dimensão territorial e ampliação da
autonomia do lugar, frente às intencionalidades mercadológicas do processo
de globalização (DALLABRIDA (2015c; DALLABRIDA, TOMPOROSKI e SAKR,
2016).
Já em outros textos, o tema foi tratado na perspectiva de explicitar a acep-
ção sobre governança territorial. Nesta linha de argumentação, (i) inicia-se o
debate da temática com uma introdução do tema governança territorial, como
um primeiro passo na construção de uma proposta teórico-metodológica que
orientasse a ação coletiva nos processos de desenvolvimento regional (DAL-
LABRIDA e BECKER, 2003). Na sequência, outras publicações, (ii) ressaltaram
a necessidade da organização social para a definição das estratégias de desen-

255
volvimento localizado (DALLABRIDA e BÜTTENBENDER, 2003; COGO e DAL-
LABRIDA, 2015), (iii) relacionaram o tema aos processos de gestão do territó-
rio, referindo-se à possibilidade de engendrar a gestão territorial através do
diálogo e da participação social, ao mesmo tempo, constituindo um referencial
teórico-metodológico e contextualizando os processos de governança territo-
rial (DALLABRIDA, 2007), (iv) consideraram a prática da governança territori-
al como forma de regulação social, no processo de gestão do desenvolvimento
(DALLABRIDA, 2010), (v) ressaltaram as virtudes e limitações da ação coletiva
nos processos de planejamento e gestão do território, considerando a multies-
calaridade dos processos socioeconômicos, fazendo análises sobre as experi-
ências de descentralização político-administrativa de dois Estados do Sul do
Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina (DALLABRIDA et al, 2009; DALLA-
BRIDA e BÜTTENBENDER, 2010); (vi) Dallabrida (2011d), que apresentou as
experiências de descentralização político-administrativa no Brasil, como
exemplos de institucionalização de novas escalas territoriais de governança, e,
enfim, (vii) Dallabrida e Zimmermann (2009), que destacaram a importância
das estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimento, apresentando o
papel dos Consórcios Públicos Intermunicipais, atendendo a dimensão tático
operacional dos processos de planejamento e gestão do desenvolvimento.
Um terceiro conjunto de publicações deteve-se, em especial, na revisão
conceitual e bibliográfica sobre governança territorial. A linha de reflexão se-
guiu as primeiras abordagens sobre governança (DALLABRIDA e BECKER,
2003; DALLABRIDA, 2007). Nesta perspectiva, destacaram-se as seguintes
publicações: (i) Dallabrida (2011c), que deu início a uma rápida revisão da
literatura; (ii) Dallabrida (2006; 2014), resumindo a concepção de governança
territorial na forma de verbete para dois dicionários publicados no Brasil; (iii)
Dallabrida (2015a), que, de uma forma mais densa, revisou a literatura nacio-
nal e internacional sobre governança e governança territorial, apresentando as
principais concepções, seus propósitos, os desafios de sua prática, ressaltando
em quais contextos institucionais e organizacionais ocorrem as práticas de
governança territorial; por fim, (iv) Dallabrida (2016) que situou teoricamente
os processos governança, na dinâmica territorial, relacionando-a à acepção de
uma trilogia de categorias conceituais: território, governança e desenvolvi-
mento territorial.
É com base nesses estudos teórico-conceituais que se concebeu uma acep-
ção pessoal sobre governança territorial. É uma acepção que, ao mesmo tempo,
sintetiza, dialoga ou, no mínimo, aproxima-se das contribuições dos principais
autores que, nas últimas duas décadas, refletiram sobre o tema. Assim, em
Dallabrida (2015a, p. 325) se expressa tal posicionamento pessoal.

256
A governança territorial corresponde a um processo de planeamento
[planejamento] e gestão de dinâmicas territoriais que dá prioridade a uma
ótica inovadora, partilhada e colaborativa, por meio de relações horizontais.
No entanto, esse processo inclui lutas de poder, discussões, negociações e,
por fim, deliberações, entre agentes estatais, representantes dos setores
sociais e empresariais, de centros universitários ou de investigação.
Processos desta natureza fundamentam-se num papel insubstituível do
Estado, numa noção qualificada de democracia, e no protagonismo da
sociedade civil, objetivando harmonizar uma visão sobre o futuro e um
determinado padrão de desenvolvimento territorial. O desenvolvimento
territorial é entendido como um processo de mudança continuada, situado
histórica e territorialmente, mas integrado em dinâmicas intraterritoriais,
supraterritoriais e globais, sustentado na potenciação dos recursos e ativos
(materiais e imateriais, genéricos e específicos) existentes no local, com
vistas à dinamização socioeconômica e à melhoria da qualidade de vida da
sua população (DALLABRIDA, 2015a, p. 325).

É com base nessa perspectiva teórica que se reflete sobre descentralização


e desenvolvimento, no processo de planejamento e gestão do território.
Outro conjunto de publicações esteve focado na análise de experiências de
descentralização político-administrativa. Assim sendo, vários estudos apontam
as principais fortalezas e debilidades dos processos de descentralização, com
destaque para as seguintes publicações: (i) Dallabrida (2011a), que contempla
textos de vários autores do Brasil, Argentina e Chile, fazendo relatos e análises,
em especial, destacando-se textos que se referem às experiências de descentra-
lização político-administrativa de dois estados do sul do Brasil (Santa Catarina
e Rio Grande do Sul), respectivamente, a experiência das Secretarias de Desen-
volvimento Regional do Estado de Santa Catarina (2003/2015), transformadas,
recentemente, em Agências de Desenvolvimento Regional, com poucas altera-
ções, a não ser a redução do número de agentes estatais empregados, e a expe-
riência dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes); complemen-
tarmente, são analisadas experiências de outros estados brasileiros, da Argen-
tina e do Chile; (ii) os textos de Dallabrida et al. (2011), Dallabrida e Bütten-
bender (2010), Dallabrida, Birkner e Büttenbender (2011), Dallabrida, Birkner
e Cogo (2013), Birkner, Dallabrida e Escobar (2013), Dallabrida et al. (2015) e
Dallabrida (2015b), publicações que se detiveram na análise das experiências
de descentralização dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, apon-
tando suas virtudes, debilidades e os desafios a serem enfrentados para a qua-
lificação de sua prática.
Por fim, destacam-se publicações que se detiveram em aspectos específi-
cos dos processos de descentralização ou governança territorial: (i) Dallabrida
(2012a), apresentando as principais percepções sobre experiências brasileiras
de descentralização político-administrativa, concluindo que a administração se
descentraliza, mas o poder nem tanto; (ii) Dallabrida (2012b), tratando de
experiências de descentralização político-administrativa, em especial a dos

257
Coredes no Rio Grande do Sul, conjeturando sobre possibilidades de avanços
rumo a uma prática de democracia deliberativa; (iii) por fim, um texto de Can-
çado, Tavares e Dallabrida (2013), comparando as concepções sobre gestão
social e governança territorial, apontando as principais interseções e especifi-
cidades teórico-práticas.
As publicações aqui referidas, na sua maioria, estão disponíveis para livre
acesso e representam uma parte fundamental para conhecer o quanto se refle-
tiu sobre o tema e as perspectivas teóricas que sustentaram as análises.

5. Considerações Finais

Considerando as mais de trinta publicações aqui sintetizadas, nas quais


tenho participado pessoalmente, três conclusões são possíveis: primeiro, o
entendimento de que o planejamento e gestão do território implicam na ins-
tauração de processos de concertação social; segundo, o entendimento sobre a
necessidade de tais processos estarem referenciados na acepção de governan-
ça territorial; terceiro, a compreensão de que quando nos referimos à descen-
tralização, na realidade, expressamos a confiança de que tais processos conce-
bem a ação coletiva descentralizada que ocorre no território, com vistas à defi-
nição do seu futuro.
Trata-se, então, dos processos de desenvolvimento territorial ou regional,
considerando a dimensão social, cultural, política e econômica, os quais, neces-
sariamente, precisam envolver, de forma equitativa, as representações da soci-
edade civil, dos agentes estatais e empresariais, numa ação coletiva territoria-
lizada, conforme sintetizado na Figura 1.

Figura 1 - A ação coletiva territorializada no processo de


planejamento e gestão do território

Fonte: Dallabrida (2017)

258
Para melhor compreensão do que se está expressando, a concertação refe-
re-se ao ato de concertar, harmonizar interesses, mesmo que divergentes. "As-
sim, entende-se a concertação social como o processo em que representantes
das diferentes redes de poder socioterritorial, através de procedimentos vo-
luntários de conciliação e mediação, assumem a prática da gestão territorial de
forma descentralizada" (DALLABRIDA, 2007, p. 6). Isso, pois, segundo Dalla-
brida (2007), o exercício da governança territorial como processo de planeja-
mento e gestão do território, efetiva-se por meio de relações horizontais entre
os agentes estatais e atores do território, organizados na forma de "redes de
poder socioterritorial", referindo-se a cada uma das representações da socie-
dade organizada territorialmente, representados pelas suas lideranças, for-
mando o "bloco socioterritorial", como o conjunto heterogêneo de atores terri-
toriais que num determinado momento histórico assume posição hegemônica,
constituindo-se na principal estrutura de poder, com capacidade para dar a
direção político-ideológica ao processo de desenvolvimento. Segundo essa
concepção, é esse conjunto de atores que articula e dá efetividade ao processo
de planejamento e gestão do território.
Em síntese, a governança territorial pode ser percebida como uma instân-
cia institucional de exercício de poder de forma simétrica no nível territorial.
Uma prática qualificada de governança territorial é um requisito indispensável
para o planejamento e gestão do território numa perspectiva colaborativa e
democrática, logo, é tudo o que se espera dos chamados processos de descen-
tralização.
Convém ressaltar que a constituição de tais formas de articulação horizon-
tal como pretende serem os processos de descentralização, não garante uma
prática democrática.

Para tanto, é indispensável que se criem espaços públicos de representação,


negociação e concertação, assim como, um redesenho do papel do Estado,
permitindo a interação deste com a sociedade através do uso de novas
tecnologias, para definir as prioridades a partir das demandas expressadas
pela população e negociadas com os demais participantes... (DALLABRIDA,
2007, p. 3).

Da articulação dos diferentes atores e de suas variadas propostas e visões


de mundo, não se deve esperar consensos. No entanto é possível construir
pactos, como acordos, geralmente provisórios, pois, estão sujeitos às constan-
tes rearticulações das redes de poder.

A expressão pacto socioterritorial é aqui proposta para referir-se aos acordos


ou ajustes decorrentes de processos de concertação social, que ocorrem entre

259
os diferentes representantes de uma sociedade organizada territorialmente,
relacionados à definição de seu projeto de desenvolvimento futuro... O pacto
socioterritorial, na medida em que ele resulta de um processo democrático de
concertação social, articulado pelas lideranças representativas das redes de
poder socioterritorial, transforma-se no projeto político de desenvolvimento
de uma sociedade organizada territorialmente (DALLABRIDA, 2007, p. 9).

Considerando a apregoada crise sociopolítica e econômica, além do avan-


ço do conservadorismo político e das formas conservadoras de Estado que
implicam em retrocessos no chamado Estado de Bem Estar Social, cabe nos
questionar: quais as possibilidades de instituir um processo de gestão territo-
rial que contemple estratégias de concertação social, ou seja, processos de
descentralização fundados na acepção de governança territorial, e quais estru-
turas de governança territorial são necessárias? Resumindo, o que se questio-
na é: qual o futuro dos processos de descentralização engendrados no Brasil,
com base nos princípios democráticos expressados na Constituição Federal
brasileira de 1989?
A prática, desde a década de 1990 até o presente, apresenta sérios desafi-
os. Melo (1996, Apud DALLABRIDA, 2011d, p. 13), destacava o que ele consi-
derava serem os principais efeitos perversos da descentralização, consideran-
do as experiências tanto dos países ditos desenvolvidos como dos subdesen-
volvidos: (i) burocracias locais e pessoal de baixa qualificação, neste caso, re-
sultando em perdas na eficiência gerencial; (ii) transferência de receitas públi-
cas sem responsabilidades de geração de novas fontes, ressaltando a incapaci-
dade dos governos locais de arcar com o ônus político de gerar receitas; (iii)
indefinição e ambiguidade quanto à definição de competências entre esferas de
governo; (iv) perda de capacidade regulatória e de formulação de políticas por
parte do governo central, pelo desmonte de estruturas setoriais centralizadas e
relativamente insuladas da competição política; (v) descentralização fiscal,
com transferência de impostos importantes para o nível dos estados e provín-
cias, o que minou a capacidade do Governo central de levar a cabo políticas de
estabilização e reformas fiscais; (vi) porosidade do governo local em relação a
elites locais e provinciais, acarretando maior corrupção e clientelismo; (vii)
fragmentação institucional, com a proliferação de municipalidades ou entes
administrativos no âmbito local.
O importante é que tais efeitos perversos são reais e estão presentes na
experiência brasileira de descentralização, mesmo que não com o mesmo nível
de incidência, considerando as diferentes dimensões da descentralização. Tais
efeitos podem ser entendidos, também, como os principais desafios da gover-
nança territorial (DALLABRIDA, 2011d). Análises realizadas em várias publica-
ções, em especial em Dallabrida (2011a) e Cogo e Dallabrida (2015), permitem

260
afirmar que, apesar das fortalezas das experiências brasileiras, as avaliações
vão desde a tentativa do Estado em controlar as iniciativas de participação
social na gestão pública, até o descrédito da sociedade com tais formas de par-
ticipação. O excessivo esforço do Estado em controlar a participação social,
levou Theis et al. (2011), fazerem uma análise crítica do processo de descen-
tralização catarinense, já referido, titulando um artigo com uma frase revela-
dora e ao mesmo tempo preocupante: O cavalo de Tróia e sua Barriga Verde!
Caricatamente, pode-se representar tal situação no que é possível interpretar
da Figura 2.

Figura 2- O Estado como controlador, representado


pelo histórico Cavalo de Tróia

Fonte: Figura de uso público (DALLABRIDA, 2017)

O que se quer chamar a atenção é que o Estado, apesar de sua insubstituí-


vel função de coarticulador dos processos de planejamento e gestão dos terri-
tórios, ou seja, de governança territorial, não pode exercer o papel de controle
ou restringir a participação da sociedade civil. A falta de uma representativi-
dade equitativa e o excessivo controle do processo descentralizador por parte
dos agentes políticos e/ou estatais, no caso catarinense, além da denúncia feita
por Theis et al. (2011), foi comprovado em diversos estudos, dois deles orien-
tados pessoalmente, conforme relatados em Cogo e Dallabrida (2015) e Binot-
to et al. (2010).
Sobre as estruturas necessárias para a prática de experiências de descen-
tralização baseadas na acepção de governança territorial, em Dallabrida

261
(2012b) faziam-se conjeturas e propunham-se estruturas subnacionais de
gestão do desenvolvimento, também chamadas de estruturas de gestão e go-
vernança territorial, separando-as em estruturas de concertação social e ope-
racionais. Assim, propunha-se que, na dimensão de espaços de concertação
social, se constituíssem Fóruns de Concertação Social, encarregados da defini-
ção das políticas de desenvolvimento (municipais, regionais, estaduais e naci-
onais), integradamente, nas diferentes escalas, desde o local de vivência (bair-
ro, condomínio, rua...), os setores de atividade, os municípios, a região, os esta-
dos federados, até o nível nacional, apontando o tipo de estruturas e seu papel.
Na dimensão operacional, propunham-se Estruturas Tático-Operacionais, com
o papel de realizar estudos técnicos, a gestão operacional, implantação e avali-
ação das políticas e/ou estratégias de desenvolvimento (municipais, regionais,
estaduais e nacionais), definidas nos espaços de concertação social, integra-
damente. Tais estruturas operacionais, com suas especificidades, seriam im-
plantadas desde a escala municipal (Câmaras Setoriais), regional (Consórcios
Intermunicipais de Desenvolvimento), estadual (Câmaras Setoriais), até a na-
cional (Câmaras Setoriais).
Desconheço, e se existem são raras, as experiências de descentralização
que tenham engendrado algo próximo ao que é proposto de Dallabrida
(2012b). Entendo pessoalmente que as razões que levaram às limitações da
ação coletiva no processo de planejamento e gestão do desenvolvimento terri-
torial, originam-se, no mínimo, em grande parte, na falta de uma prática asse-
melhada à que foi proposta.
E quais as demais razões que justificam a permanência de grandes desafi-
os?
Essa é uma pergunta que fica para a reflexão. No entanto, resumem-se im-
pressões já expressas em Dallabrida (2011d). Afirmava-se, nas conclusões do
artigo, que o futuro da descentralização político-administrativa, corria sérios
riscos. Dizia-se que, nós investigadores, é possível que tenhamos descuidado,
ou esquecido da necessidade de acompanhamento e contribuição no seu pro-
cesso de evolução, com nossos aportes teóricos e reflexões críticas. Numa lin-
guagem coloquial, dizia-se: teremos dado pouca atenção a uma jovem, chama-
da democracia, deixando que a mesma fosse prostituída? Continuava-se afir-
mando que, talvez, tenhamos nos acomodado na academia, tenhamos nos en-
volvido muito pouco na análise dos processos concretos de governança territo-
rial e desenvolvimento, concluindo que restava aos intelectuais e pesquisado-
res a tarefa árdua e urgente de debruçar-se sobre esta temática com mais aten-
ção, de produzir estudos interinstitucionais, interdisciplinares, integrando nos

262
centros de excelência nacional em pesquisa, os pesquisadores das universida-
des regionais do interior do país.
Parafraseando Boisier (2004, Apud DALLABRIDA, 2011d, p. 14): a descen-
tralização pode ser criada por decreto em seus aspectos formais, no entanto,
não se pode extrair da cabeça das pessoas, a mentalidade historicamente cen-
tralista e antidemocrática, mediante o mesmo mecanismo. Há, portanto, uma
grande assimetria, entre a formalização de experiências de descentralização e
a qualificação de sua prática.
Por fim, considerando as reflexões aqui explicitadas, é possível afirmar
que as deficiências e efeitos perversos da descentralização, precisam ser en-
frentados com a qualificação de tais processos, que, em última instância, impli-
ca na qualificação da prática democrática e do exercício da cidadania.

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265
O EXTRATIVISMO ESTATAL E OS LIMITES DO
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO

Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner1


Dr. Marcos Antônio Mattedi2

Apresentação

O Extrativismo estatal e mental entranhado no Estado e na Sociedade bra-


sileira tem iludido até hoje nossas expectativas de desenvolvimento bem suce-
dido. Ao longo dos séculos da história brasileira, o País não se livrou de algu-
mas de suas características mais arcaicas. Nessa direção, o patrimonialismo é a
feição permanente das elites nacionais. E o extrativismo é a forma através da
qual, de diferentes maneiras, as elites patrimonialistas se sustentam no poder.

1
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Regional de Blumenau - FURB (1992), é
mestre em História Política do Brasil pela Universidade de Brasília - UnB (1996) e doutor em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2004). Concluiu Pós-doutorado em
Desenvolvimento Regional na Universidade Regional de Blumenau - FURB (2017). É professor do
Centro Universitário UNIFACVEST, em Lages-SC e, Professor Visitante na Universidade Federal de
Roraima, no Programa de Scrictu Senso em Sociedade e Fronteiras do Centro de ciencias Humanas da
UFRR . É também consultor-sócio do Instituto de Pesquisa, Asses. e Consultoria de Blumenau - IPAC,
consultor do Instituto Bras. de Adm. Municipal - IBAM e do Instituto Veritas de Educação-SC, além de
avaliador do Instituto de Pesquisa Educacional Anísio Teixeira - INEP. Foi professor da Universidade do
Contestado (1995-2016), no Stricto sensu em Desenvolvimento Regional, além de ter lecionado nos
cursos de Ciências Sociais, Direito, Administração e Engenharias.Sua área de pesquisa está na
Sociologia e na Ciência Política, com interesse temático no desenvolvimento regional, na Sociologia do
Desenvolvimento e da Produtividade, no capital social e no empreendedorismo, além de descentralização
e federalismo, binômio que intitula seu Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq. Tendo artigos
publicados acerca desses temas, é também o autor dos livros “O realismo de Golbery:...”, Itajaí-SC,
Univali, 2002, “Capital social em Santa Catarina:...”, Blumenau-SC, FURB, 2006 e “Crônicas do
Desenvolvimen-to”, FAPESC/Imprensa Oficial, 2012 [coautor]. Produziu, no ano de 2009, o Relatório
de Pesquisa de Avaliação Institucional da Descentralização em SC para a Secretaria de Planejamento e
Gestão de SC. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre “Experiências de Descentralização e Reforma da
Gestão Pública no Brasil”, financiada pela FAPESC. Mais recentemente, integra o Projeto O QUE
PODEM OS GOVERNOS ESTADUAIS NO BRASIL, sob coordenação nacional do Instituto de
Pesquisa Aplicada da Presidência da República - IPEA, sendo o coordenador estadual em Santa
Catarina.E-mail:b-walter@hotmail.com
2
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Regional de Blumenau (1991), mestrado em
Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (1994), e doutorado em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e estágio pós-doutoral no Centre de Sociologie de
L´innovation - ENMP/Paris (2003). Dirige o Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos da Tecnociência -
NET desde 2006 e atualmente é coordenador e professor titular do Programa de Pós Graduação em
desenvolvimento Regional da Fundação Universidade Regional de Blumenau. Tem experiência na área
de Sociologia, com ênfase em sociologia do conhecimento científico, atuando principalmente nos
seguintes temas: ciência e tecnologia, desenvolvimento regional, sociologia, impactos ambientais,
desastres, meio ambiente e percepção ambiental. Atualmente tem pesquisado os processos de formação e
dissolução de redes sociotécnicas

267
O patrimonialismo, como está definido tradicionalmente, é o resultado da
apropriação originalmente oligárquica do patrimônio público, entendido como
mera extensão do patrimônio privado. Noutros termos, é a confusão entre o
que é público e o que é privado, em benefício antirrepublicano de minorias
poderosas. O extrativismo, por sua vez, devemos entendê-lo com alguma rami-
ficação interpretativa. Primeiramente, trata-se do aproveitamento dos recur-
sos naturais de uma nação e seria irracional não fazê-lo. Todas as nações que
os detém, fazem uso destes e geram crescimento econômico. Mas produz uma
economia baseada no baixo valor agregado e na baixa intensidade tecnológica
de sua produção. Em segundo lugar, é importante perceber que do extrativis-
mo econômico derivam, ao longo do tempo, instituições políticas, econômicas e
hábitos replicantes. Nesse sentido, países ricos em recursos naturais como o
Brasil, produzem elites extrativistas. Elas se apropriam dos recursos naturais
fartos para o enriquecimento. Mais que isso, conformam a base econômica do
país e a controlam, determinando os rumos da ordem econômica, inclusive o
grau de desenvolvimento tecnológico. Para legitimar suas práticas extrativis-
tas, forjam instituições formais e informais, políticas, econômicas e culturais,
que reproduzem e reforçam o extrativismo. Nessa perspectiva, é preciso acres-
centar outro entendimento, qual seja, o de que a apropriação patrimonialista
vence resistências e, ao longo do tempo, cria uma prática extrativista que ex-
trapola a exploração dos recursos naturais em benefício das elites. Aproprian-
do-se das esferas governamentais nos três poderes, essas elites tratam de criar
e preservar instituições que conferem legalidade às suas práticas extrativistas.
A história brasileira é moldada pela presença dessas elites patrimonialistas,
que foram capazes de preservar e expandir sua estrutura de poder. É preciso
compreender que, conquanto o patrimonialismo extrativista seja uma prática
arcaica, sucessivas gerações de elites extrativistas conformaram arranjos le-
gais para a sua legitimidade. A modernização da ordem política brasileira não
extinguiu essa característica, ao contrário, a sofisticou. Com o fim da hegemo-
nia das oligarquias rurais e a emergência da burocracia pública na Era Vargas,
o estamento burocrático se fortaleceu. O regime militar de 1964 permitiu a
ampliação do espaço de atuação e de poder sem constrangimentos dos buro-
cratas estatais. Não obstante as diferenças, a volta da democracia permitiu um
novo ciclo de expansão das elites extrativistas e seu respaldo institucional está
na própria Constituição cidadã de 1988. Através da estruturação de uma ampla
rede de atendimento às demandas sociais, na expressão brasileira do Estado
social possível, a expansão de cargos públicos tornou esse poder muito maior.
Todavia, a manutenção do extrativismo estatal, através da expansão notável do
gasto público nas últimas três décadas, demonstra os seus limites. A crise polí-
tica e econômica brasileira da segunda década do século XXI expõe o problema.

268
O extrativismo estatal e os limites do Estado social brasileiro

O extrativismo é um termo de múltipla utilidade interpretativa nas ciên-


cias sociais. Recorrem a ele economistas, sociólogos e cientistas políticos, entre
outros, para alguma definição conceitual que explique possibilidades e cons-
trangimentos ao desenvolvimento regional ou nacional. Seu significado literal
está relacionado à extração dos recursos naturais, mas a ele se somam novos
sentidos, relacionados aos agentes sociais influenciados por esse modo eco-
nômico. Quando em larga escala, o extrativismo tipifica a economia de uma
sociedade, podendo ser predominante ou ao menos significativo na sua com-
posição. Na medida da sua grandeza, passa a interferir nas relações sociais,
constituindo hábitos, tornando-se um tema sociológico poroso. Resultam daí
muitos desdobramentos interpretativos, desde a apropriação desses recursos
por agentes econômicos e políticos, passando pela compreensão sobre suas
consequências econômicas e sociais. Por extensão, o extrativismo permite
entender a conformação social, cultural e institucional. Passa pelas relações de
poder, define a importância da região ou da nação nos cenários econômicos
internos e externos, e vai até as estratégias de governança, governabilidade, as
eleitorais e de manutenção do poder.
Decorrência lógica da abundância dos recursos naturais, o extrativismo
proporciona o paradoxo do crescimento econômico sem desenvolvimento
sustentável. Apropriada por governos e agentes privados com outorga gover-
namental, a extração desses recursos gera concentração de riquezas ao longo
do tempo. Via de regra, seus agentes controladores não combatem com eficácia
a desigualdade, distribuindo apenas compensações. Assim, o resultado político
e econômico do extrativismo favorece grupos minoritários, reproduzindo his-
toricamente a forma patrimonialista, com diferentes roupagens, em favor de
oligarquias privadas e corporativistas estatais. Não obstante, a extração e
apropriação dos recursos fiscais daí oriundos permite, nas democracias, criar
um vantajoso e populista sistema de políticas distributivistas. Nessa perspecti-
va, a história republicana no Brasil continua marcada pelos vícios de origem,
entre os quais, o extrativismo e suas derivações ao longo do tempo, presentes
na democracia de massa e em nosso peculiar Estado de bem estar social.
Em todas as fases econômicas e políticas demarcadas pela historiografia
brasileira, o extrativismo não apenas está presente como se apresenta nos
fundamentos da economia. Incrivelmente, perdura no século XXI, com toda ou
apesar de toda a evolução de sua economia, de sua política e da ordem social
na direção da modernização. É assim desde o Brasil Colônia, extenso período
marcado pelos ciclos dos produtos nativos da biodiversidade enviados à Me-
trópole. A extração dos recursos naturais foi a exclusiva base econômica de
geração de riquezas para a aristocracia agrária, assim como foi a plataforma de

269
sustentação econômica e política dos governos imperiais. Por extensão, atra-
vessou sem ameaças o período da República Velha, e continuou importante
depois dela. Dois séculos após a vinda de D. Joao VI, o extrativismo sobrevive,
sob novos semblantes, desde a redemocratização do Brasil. Inclusive, autores
contemporâneos como Gudynas (2012), por exemplo, observam o fenômeno
sob renovada perspectiva, usando a denominação de novo extrativismo.
É evidente que os recursos fartos da natureza não poderiam mesmo ser
desprezados. Jamais serão. Considerando a importância dos produtos originá-
rios do extrativismo vegetal, animal ou mineral, trata-se de inegável fonte de
geração de riquezas, ao País, aos governos e aos agentes econômicos privados.
É geração de renda, emprego e modo de vida. O que chama à atenção é o fato
de que, na “era da informação”, esse modo de produção da economia continue
sendo tão importante e sua cadeia produtiva seja em geral tão curta, isto é, de
pouco valor agregado, nos países de sua origem. 3 O extrativismo econômico
ainda é o modo de produção predominante, por vezes a exclusiva base de ex-
portação nacional de muitas nações. Passada toda a trajetória desde o período
colonial das economias primárias e do processo de independência política das
ex-colônias, até a modernização econômica e política por meio das democraci-
as de mercado, o extrativismo econômico ainda é o modo de produção predo-
minante, por vezes a exclusiva base de exportação nacional. E, no caso brasilei-
ro, somados os setores mineral (4,9%), vegetal (3,53%) e animal (2,87%),
representaram 11,3% do PIB em 2014, tornando-se maior que a participação
da indústria, inferior a 11% no mesmo ano. 4
Para além da óbvia associação entre o extrativismo e a consequente for-
mação e constituição do poder das elites dos países extrativistas, a dupla per-
gunta que persiste é: por que esse modo de produção e organização do poder
permanece atual e sobrevive em tempos de tecnologia da informação e demo-
cracia? Apesar de toda a crítica sociológica que contribuiu para a democratiza-
ção brasileira, e cujas aspirações foram de transformação e antítese ao passado
oligárquico, patrimonialista e extrativista, esses fatos sociais tão constrange-
dores ao desenvolvimento nacional permaneceram. Nesse sentido, são elos
histórico-sociológicos que nos mantém vinculados ao passado mais caracterís-
tico de nossa formação sócio- econômica e política nacional. Tem a ver com as
raízes mais profundas das nossas características psicossociais, e permanecem
causalmente ligados aos nossos problemas contemporâneos.

3
No caso do Brasil, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, os seis
principais produtos de exportação 2m 2011 foram: minério de ferro, aço e ferro fundido (16,3%),
petróleo bruto (8,4%), soja e derivados (6,4%), açúcar (4,5%), café em grãos (3,1%) e carne de frango in
natura (2,8%). Dados em http://www.suapesquisa.com/economia/produtos_exportados_brasil.htm.
4
Fontes, respectivamente, IBGE, 2015 e http://www.valor.com.br/brasil/4194804/participacao-da-
industria-no-pib-volta-decada-de-40-diz-ibre

270
Nessa direção, a sociologia, a economia política, a história política, como a
ciência política, são campos do conhecimento no interior dos quais precisa
emergir o esforço constante de responder à dupla pergunta anterior. Trata-se
da persistente tarefa de tentar reconhecer um ou outro aspecto talvez regular
e ainda menosprezado na origem ou no desenvolvimento do curso histórico de
nações economicamente extrativistas e seus governos homônimos. Noutros
termos, é importante buscar características identificáveis em vários casos das
nações extrativistas que permitam uma ou outra generalização. No caso da
abundância dos recursos naturais, existe um espectro que mantem ativos os
vícios oligárquico, patrimonialista e extrativista, verdadeiros pontos de ligação
com o passado. Esse elemento incorpóreo permanece contemporâneo, útil e
aparentemente vantajoso aos grupos de poder político e econômico que se
sucedem ou pactuam, beneficiando-se amplamente do extrativismo.
Esse espectro que faz perdurar o caráter político-governamental do extra-
tivismo é o que podemos chamar de maldição dos recursos naturais. É uma
alusão à “maldição do petróleo”, termo cunhado pelo cientista político Michael
Ross (2015), em livro homônimo, em que o autor ressalva que 90% do comér-
cio mundial de minerais deve-se a esse hidrocarboneto. Não obstante, a ideia
da “maldição” é mais antiga e remonta à formação da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo - OPEP, quando seu fundador, o ex-ministro do Pe-
tróleo venezuelano Juan Pablo Pérez Afonso chamou o petróleo de “excremen-
to do Diabo” (Ross, 2015:19). Nesse sentido, as economias dos países que ex-
traem petróleo, em geral, são muitíssimo dependentes dessa commodity. A
abundância desse recurso natural acirra ainda mais as disputas pelo poder a
qualquer preço. Dos vinte maiores produtores nacionais, é bom lembrar, de-
zesseis são ditaduras – e entre as democracias, ainda situamos a politicamente
instável Venezuela. Na maioria dos casos, constata-se que as economias dessas
nações crescem menos, e de forma instável, que as nações que não possuem
petróleo. Em geral, seus problemas sociais são notáveis e seus índices de de-
senvolvimento não estão entre os melhores.
Michael Ross é estudioso do assunto há décadas. Acompanhou o boom do
preço do petróleo na década de 70, observando que países produtores obtive-
ram lucros extraordinários, mas que isso não tornou essas nações mais desen-
volvidas. Quatro décadas depois, Ross chega a mesma conclusão. Embora reco-
nheça algumas distinções e faz um mea culpa em seu livro, o autor reafirma
essa conclusão ao estudar as consequências do aumento dos preços das com-
modities minerais no início do século atual. Elas geraram muitos proventos aos
governos e, no entanto, isso não garantiu o crescimento continuado das res-
pectivas nações. Segundo o próprio autor, as observações sobre o extrativismo
e os efeitos das commodities nos últimos anos têm proporcionado informações
importantes para o incremento dos estudos que relacionam os recursos natu-

271
rais com economia e política (Ib.: Introdução). Estudos de Ross a partir da
década de oitenta sobre o assunto indicam que em geral a riqueza gerada a
partir da abundância dos recursos naturais produziu, em muitos dos países por
ele observados, menos democracia e mais guerra civil.
Quando o autor admite que nem tudo são sombras, reconhece que as con-
dições de bem estar melhoraram em vários países produtores de petróleo e
menciona o fato de que a mortalidade infantil diminuiu em muitos desses paí-
ses (Ib., Int. e 252). Ele também reconhece alguns índices de crescimento eco-
nômico, mas observa que normalmente estiveram aquém do que deveriam, se
considerada a riqueza geológica e a comparação com outros países não produ-
tores. Nesse sentido, se não cresceram mais do que as nações não produtoras
de petróleo, significa que não tiraram o devido proveito da riqueza geológica.
Fora isso, a fartura do petróleo produziria o paradoxo do atraso. Na média,
segundo Ross, metade do produto econômico das nações produtoras está con-
centrada no setor público. Nos países de baixa renda, a simples descoberta do
petróleo desencadearia uma frequente “explosão dos gastos públicos” (Ib.,
23),5 possibilitando a governos autoritários “silenciar” dissidências e asseverar
reações violentas de opositores. Por conseguinte, esses países tendem a gover-
nos menos transparentes e economias mais instáveis. Mostra o autor, governos
financiados pelos recursos minerais desperdiçam recursos e são menos pres-
tadores de contas do que os governos financiados por impostos (Ib., 24 e 29).
Com pouco ou nenhum planejamento, gastam com o propósito explícito de se
manter no poder e ganhar novas eleições, quando as há. E, na medida em que
os preços das commodities caem, sua excessiva dependência às commodities
os atira na instabilidade.
Por extensão natural disso, os problemas sociais persistem e seus índices
de crescimento e desenvolvimento não se sustentam. A frequência desse fe-
nômeno nos países predominantemente extrativistas é alta e indica uma regu-
laridade estatística. Preços de commodities são naturalmente oscilantes e, em
alta, um estímulo quase irresistível ao aumento de gastos governamentais.
Muitos desses gastos são ou se tornam permanentes, como a contratação de
servidores públicos e aumentos reais de salário. Quando os preços caem, a
situação se torna muito difícil, redundando numa condição cronicamente in-
sustentável, levando a situações dramáticas do ponto de vista da má gestão dos
recursos públicos e suas consequências. A situação de endividamento dos es-
tados e municípios brasileiros, motivo de negociações intermináveis, é exem-
plo notável do problema fiscal crônico, denunciando má gestão, além da exces-
siva concentração da União.

5
De 2001 a 2009, segundo o autor, as despesas públicas teriam aumentado 600% no Azerbaijão e 800%
na Guiné Equatorial (ROSS, 2015:46).

272
Por consequência, provoca os questionamentos sobre a tributação exces-
siva e a consequente necessidade de um pacto federativo novo. Por outro lado,
denuncia problemas crônicos de gasto público excessivo dos estados brasilei-
ros. Embora não haja homogeneidade em relação ao conjunto de causas, alguns
dos casos são, novamente, compreensíveis a partir da perspectiva do extrati-
vismo e seu espectro, a maldição das commodities. Notável é o caso do estado
do Rio de Janeiro, cujo governo se aproveitou do aumento dos preços do petró-
leo pra aumentar os gastos correntes, endividando o estado acima da capaci-
dade. Depois de um período de gastos excessivos, o estado se tornou deficitário
e, como de costume, recorreu aos cofres da União, que socorre em troca de
apoio político e socializa os prejuízos com o País. Com a queda do preço do
petróleo em 2015, a situação do governo fluminense tornou-se calamitosa. O
estado é o maior produtor de petróleo no País e a extração representa um ter-
ço de sua economia.6
Como explica Natalie Watkins no prefácio ao livro de Ross, a maior parte
dos recursos provenientes da extração do petróleo acaba nas mãos dos gover-
nos e existe pouca transparência sobre o seu uso. Quando os preços estão em
alta, isso confere grande poder de manobra aos governantes, além de grandes
chances de reeleição. Não há, contudo, determinismo na maldição do petróleo.
Basta que as regras governamentais sejam claras para que essa riqueza gere
desenvolvimento. Exemplo seria a Dinamarca, que mantém um fundo de reser-
va que limita o gasto governamental a 4%, a fim de que as futuras gerações
usufruam desses recursos. Por outro lado, os exemplos negativos constituem a
regra. São inúmeros os casos que tem relação com o desperdício, a falta de
planejamento, a violência, a corrupção e o populismo de governos que aumen-
tam seu poder de popularidade e ganho eleitoral. Além disso, é muito comum
que a indústria de transformação seja fragilizada. Segundo os economistas, isso
acontece porque, com a valorização das commodities, entram muitos dólares,
encarecendo a moeda local e estimulando as importações, provocando a queda
da industrialização nacional. E ainda há o problema da corrupção que afeta
governos extrativistas.
Nessa direção, a extração do petróleo é apenas o ápice do fenômeno do
extrativismo, seu exemplo mais notável, pelo que rende aos “magnatas do pe-
tróleo”, aos governos extrativistas e seus inúmeros beneficiados mais próxi-
mos. Trata-se, portanto, de compreender a abundância dos recursos naturais
na sua abrangência, independentemente da commodity gerada. Essa fartura
dos recursos naturais dá origem ao fenômeno do extrativismo em grande esca-

6
Para se ter uma ideia, em 2014, o estado do Rio de Janeiro foi responsável por mais de 2/3 da produção
nacional. http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/06/rj-era-o-maior-produtor-de-petroleo-e-gas-
natural-do-pais-em-2014-diz-ibge.html.

273
la. A ele estão associados problemas conhecidos como os impactos ambientais,
os conflitos sociais, as disputas de poder por esses recursos, o uso ineficiente
de seus proventos, políticas populistas e com frequência baixa ou nula pers-
pectiva de crescimento sustentado e contínuo. Nada, porém, constitui obstácu-
lo ao uso de seus notáveis rendimentos, por agentes públicos, mas, sobretudo,
por governos nacionais que controlam essa atividade e dela tiram proveito.
Nesse cenário, não se distinguem as ações de governos “conservadores” ou
“progressistas”. Com frequência, a propriedade das reservas minerais é estatal,
garantindo excelente fonte de receitas, tributadas diretamente.
Na perspectiva da maldição dos recursos naturais, é importante a contri-
buição do ecólogo social Eduardo Gudynas. Ele chama à atenção para o caráter
relativamente novo que o extrativismo adquiriu no século XXI com os governos
de esquerda na América Latina. Segundo o autor, o “neo-extrativismo” está
caracterizado por maior presença do Estado na atividade, não apenas no con-
trole, mas nos ganhos e no uso político (Gudynas, 2012: 306). O fato de as em-
presas não serem sempre estatais não importa. O que importa, afirma
Gudynas, “é o lucro”. Nesse sentido, leis ambientais foram flexibilizadas e a
taxação sobre os royalties aumentou, permitindo que os governos passassem a
extrair mais recursos. Nesse contexto, os impactos sociais e ambientais, sem-
pre criticados pelos políticos de esquerda, continuam existindo. Exemplo disso
aparece nas denúncias contra a Companhia Vale do Rio Doce, pelas agressões
ambientais e aos direitos das comunidades atingidas, ocasionando resistências
organizadas de trabalhadores e movimentos sociais. 7
Sem a devida “cooperação bolivariana” entre si, os governos progressistas
sul-americanos pouco teriam se importado com a submissão ao mercado in-
ternacional, entregando-se à competição entre eles próprios. Em todos os paí-
ses latino-americanos governados pelas forças “progressistas”, o conjunto de
efeitos negativos continuaria existindo. Nessa direção, também teriam crescido
os conflitos rurais no Brasil dos primeiros anos de governo do Partido dos
Trabalhadores. Gudynas denuncia a existência de más condições de trabalho,
trabalho escravo, de violência contra indígenas, episódios que teriam, parado-
xalmente, crescido nesse período, atestando os sintomas do neo-extrativismo.
Na outra mão, os governos “progressistas” lançaram mão de políticas compen-
satórias que calaram os dissidentes e compraram as massas, a exemplo dos
sem-terra, que no Brasil passaram a receber o “Bolsa Família” e desistiram da
luta política.

7
Existe um movimento internacional intitulado “Atingidos pela Vale”, organizado para resistir e
denunciar as ações da mencionada empresa. Informações a respeito estão disponíveis em
https://atingidospelavale.wordpress.com/quem-eh-a-vale/

274
Nesse aspecto, é curioso observar como as críticas ao extrativismo, já pro-
feridas pela teoria da dependência na década de sessenta, foram abandonadas
cinquenta anos depois pelos governos de esquerda latino-americanos. Até
então, as esquerdas criticavam um modelo econômico baseado na produção e
nas exportações de produtos primários, que nunca levaria os países da Améri-
ca do Sul ao desenvolvimento. A advertência era de que o extrativismo gerava
enclaves econômicos negativos, pobreza, miséria, ignorância e danos ambien-
tais, entre outras críticas. Outra reclamação sobre o extrativismo clássico se
baseava no fato de que a exploração era controlada por empresas estrangeiras.
Portanto, os excedentes capturados na forma de tributos, royalties e licenças
seriam baixos (Gudynas:311). Essa crítica de cunho pragmático, pode-se dizer,
ajuda a compreender a postura estratégica e oportunista que os governos de
esquerda acabariam adotando no interior da relação entre recursos naturais,
política e sociedade.
Nos governos progressistas, observa Eduardo Gudynas, a eficiência na
captação ficou “muito melhor”, impulsionada por um fator motivador adicio-
nal. Nas primeiras duas décadas do século atual, governos de esquerda – leia-
se, Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Equador, Peru e Venezuela, passaram a
adotar a estratégia de aproveitar os recursos do extrativismo para garantir o
financiamento de programas de cunho assistencialista (Ib.: 312). Ou seja, os
governos progressistas passaram a fazer ainda mais uso político do extrativis-
mo do que os governos conservadores. Às críticas, os governos populares res-
ponderam a partir da justificativa sobre a necessidade imperiosa dos recursos
do extrativismo para fins de incrementar os programas sociais. Precisaram
cada vez mais dos recursos da extração dos minérios e outras commodities a
fim de financiar os programas “progressistas”. Como explica Gudynas, os go-
vernos neo-extrativistas de esquerda tornaram-se mais eficientes na captura
desses recursos do que os precedentes, e utilizando parte dos recursos pra
financiar os programas sociais que os sustentaram no poder.
Assim, os governos “progressistas” pacificam os protestos sociais. Os de-
bates políticos da esquerda direcionam o foco exclusivamente ao problema da
distribuição dos recursos produzidos pelo extrativismo. Desse modo, ignoram
a questão de fundo, qual seja, a do próprio modo de produção extrativista,
fundamentalmente conflitivo e contraditório, além de suas consequências con-
denáveis. O protesto social diminui na proporção inversa do aumento dos pro-
gramas sociais que advém do extrativismo e de suas perdas e danos de longo
prazo. Tais programas geram legitimidade social aos governos progressistas e
quem os critica estaria contra o progresso e contra os programas sociais tam-
bém. A economia de enclave, historicamente um obstáculo ao desenvolvimen-
to, agora passava a representar um bônus. Antes, gerava pobreza e dependên-
cia. Agora, passava a representar a melhor fonte de recursos a combater a de-

275
sigualdade (Ib.: 313). Nessa perspectiva, os recursos naturais passaram a signi-
ficar a riqueza que não poderia ser desperdiçada, mal necessário sobre o qual
“não podemos ficar sentados como mendigos em cima de um saco de ouro”
(Ib.: 314).
Por outro lado, a dependência expressiva das commodities faz com que
governos passem a contar com a sorte e se tornem reféns das oscilações de
seus preços. Tendo optado pela estratégia extrativista, definem pela posterga-
ção das estratégias de desenvolvimento sustentável e de longo prazo, quando é
também incerto que o valor dessas commodities permita prospectar os mes-
mos ganhos. Além disso, os governos “progressistas” se habituaram a atribuir a
si a exclusividade moral de conduzirem a exploração dos recursos naturais e
seus direcionamentos distributivos mais “justos”. É o tipo de mensagem, sub-
liminar ou explícita que se viu, por exemplo, numa das mais disputadas elei-
ções presidenciais brasileiras, em 2014. Mas, efetivamente, também nas expe-
riências governamentais recentes, as “velhas promessas” de progresso e bem
estar foram feitas e, diga-se, realizadas sobre a plataforma do extrativismo e do
boom das commodities.
O Brasil da primeira década do século XXI viveu notavelmente essa at-
mosfera. Com o crescimento da economia chinesa, o Brasil foi um grande for-
necedor de commodities minerais e agrícolas. O País saiu de sua frágil condição
na balança comercial para país superavitário. Nesse sentido, a exportação de
minerais e, sobretudo, o bem sucedido agronegócio nacional foram os fatores
responsáveis. De um lado, os dividendos apropriados pelo governo foram utili-
zados para o incentivo a setores econômicos considerados estratégicos ao
desenvolvimento. De outro lado, subsidiaram as políticas inclusivas. O bem
sucedido Programa Bolsa Família passou a ser incrementado com os recursos
do extrativismo, assim como a notável expansão do crédito para ampliar a
capacidade de consumo dos brasileiros. A expansão do consumo de bens durá-
veis, principalmente de eletrodomésticos e automóveis, foi financiada pelos
recursos do extrativismo, além do avanço notável do crédito habitacional.
Nessa perspectiva, observa Gudynas, o extrativismo voltou com maior ên-
fase e nova roupagem, através da maior presença do Estado, beneficiando polí-
ticos que se disseram os autores da vinda de empresas extrativistas que “tra-
zem emprego e progresso” às comunidades (Ib.: 315). Os governos progressis-
tas não mais fizeram do que confundir crescimento com desenvolvimento,
confusão que a própria esquerda sempre usou para criticar os defensores do
desenvolvimento acrítico. E, na perspectiva do velho “mito do progresso”, o
neo-extrativismo dos governos “progressistas” da esquerda deixou de ser um
tradicional motivo de críticas. Aos governos de esquerda da América Latina
não importava mais se o modo de produção extrativista é nacional ou estran-
geiro, público ou privado. Tais governos acabaram assumindo a mesma forma

276
de exploração, de impactos sociais, e reproduziram os mesmos processos pro-
dutivos e as mesmas relações de poder que os governos antecessores.
E qual a interpretação sociológica mais importante disso? É que, com re-
gularidade notável, o extrativismo suscita instituições econômicas e políticas
igualmente extrativistas. Sua definição literal remete à ideia de que essas insti-
tuições asseguram ganhos concêntricos às elites econômicas e políticas e seus
surtos de crescimento econômico não promovem o desenvolvimento sustenta-
do. No caso brasileiro e latino-americano, assim como no continente africano, a
institucionalização social e política do extrativismo parece ser a própria heran-
ça do processo colonizador. Nesse sentido, seria possível concordar com a
interpretação de Acemoglu & Robinson em “Por que as nações fracassam”
(2012). Ali, os autores demonstram como os colonizadores extrativistas cria-
ram instituições correspondentes às suas necessidades. Contudo, as elites en-
dógenas que promoveram a independência e assumiram o poder, não destruí-
ram, ao contrário, preservaram as instituições dos colonizadores. Nesse senti-
do, essas regras e valores foram uma herança não desprezada pelas posterio-
res elites nacionais, que os utilizaram para se manter no poder e dele usufruir.
Assim, compreenda-se que governos que usufruem do extrativismo são, por
hábito de origem, também governos extrativistas. Como não bastasse, é neces-
sário observar, o produto político e cultural do extrativismo é uma mentalida-
de extrativista que afeta as perspectivas de desenvolvimento sustentável de
uma região ou país.

Instituições extrativistas

Nessa perspectiva, a maldição dos recursos naturais manifesta-se no fato


de que habitua agentes econômicos e políticos ao modo de produção primário,
sem agregação de valor, com cadeia de produção curta, baixa intensidade tec-
nológica e pouca qualificação da mão de obra. Do ponto de vista governamen-
tal, tende a gerar governos menos criativos e mais patrimonialistas. Do ponto
de vista socioeconômico, gera pouca ou nenhuma mobilidade social. Do ponto
de vista cultural, cria e retroalimenta hábitos de resistência ao novo e depen-
dência aos governos. Gera hábitos peculiares, define relações sociais, determi-
na a postura das elites, dos escalões inferiores e de boa parte da Sociedade,
reproduzindo relações clientelistas. E do ponto de vista institucional reflete na
conformação de leis e regras que economistas e cientistas políticos convencio-
naram assim denominar de instituições extrativistas. Sendo assim, tornam-se
uma importante variável explicativa do desenvolvimento, de suas possibilida-
des e constrangimentos.
Utilizando-nos da abordagem institucionalista, consideremos o impor-
tante pressuposto de Montesquieu, segundo o qual, boas leis produzem bons

277
homens e desenvolvem uma nação. Nessa perspectiva, a análise das leis e re-
gras facilita a compreensão dos comportamentos, escolhas, modo, condições e
expectativas de vida de indivíduos e nações. Portanto, se vale a máxima de
Montesquieu para as instituições boas, o contrário também é verdadeiro, isto é,
instituições extrativistas produzem exclusão e atraso. Sua origem está natu-
ralmente relacionada ao extrativismo econômico, que é quando o Estado, ori-
ginalmente constituído por elites patrimonialistas, se utiliza predominante ou
exclusivamente do extrativismo dos recursos naturais disponíveis para benefí-
cio de seus ocupantes. É a forma patrimonialista pura dos colonizadores do
passado, que se estende e continua, como lembram Acemoglu & Robinson
(2012), como forma de organização do poder, mesmo depois das independên-
cias das ex-colônias, seja na África, na Ásia ou na América Latina.
Nessa direção, a história dos países latino-americanos está marcada por
uma associação de efeitos comportamentais oriundos das instituições extrati-
vistas. De partida, considere-se que o extrativismo está na origem da impru-
dência e da falta de planejamento de governos que se acostumam com a fartura
e o boom das commodities. Esses governos tendem a relaxar na cobrança de
impostos e exagerar em benefícios, incentivos e isenções a certos segmentos.
No seu longo estudo sobre a produção do “ouro negro”, Michael Ross demons-
tra que quanto mais petróleo, mais dependentes são os governos de receitas
não tributáveis. Por extensão disso, abrem mão das receitas de impostos, o que
os torna desproporcionalmente dependentes do extrativismo. Na média das
economias dos 30 maiores exportadores mundiais de hidrocarboneto, o petró-
leo e o gás natural representam 19% do PIB, enquanto o financiamento desses
governos depende 54% dessa fonte econômica.
Quando os preços caem e a arrecadação se torna insuficiente, esses go-
vernos passam naturais dificuldades. Se a dependência em relação aos recur-
sos naturais é muito expressiva, como no caso da Venezuela, a crise é certa e
sem saída. Se a economia for mais diversificada, como é o caso do Brasil, o
problema não deveria ser tão dramático. 8 Acontece que o Estado brasileiro se
encaixa na definição de Gudynas, já que seus sucessivos governos democráti-
cos utilizaram os recursos do extrativismo para financiar o assistencialismo. E
quando quedam os preços das commodities, grande parte da Sociedade mais
produtiva, que se encontra na classe média, passa a ser o alvo mais viável para
esse financiamento. Torna-se a fonte sobretaxada de extração dos recursos a
financiar os governos cujas estruturas e respectivos gastos não cessam em
crescer, sob a justificativa de atender as demandas imprescindíveis da Socie-

8
O auge da participação da produção de petróleo e gás no PIB brasileiro foi em 2013, quando alcançou
13% do PIB. Ver em http://www.petrobras.com.br/fatos-e-dados/participacao-do-setor-de-petroleo-e-
gas-chega-a-13-do-pib-brasileiro.htm

278
dade. Todavia, através de um complexo sistema burocrático de serviços inefi-
cientes do ponto de vista do interesse público, os operadores dos três poderes
tem um propósito fundamental: a manutenção da estrutura fisiológica do po-
der.
Por extensão, roupagens do autoritarismo e do centralismo no controle
dos recursos daí decorrentes se reproduzem e se acomodam no desenvolvi-
mento da democracia. Instituições extrativistas são edificadas ou preservadas
para garantir benefícios exclusivos de elites, restringindo a participação do
controle político e concentrando o poder político-burocrático e orçamentário.
Nas democracias, é certo, o centralismo político e administrativo adquire cono-
tações tênues, legitimadas pelo voto e por argumentos jurídicos sofisticados. A
partir da atual Constituição “cidadã” promulgada em 1988, a malha operacio-
nal do Estado tornou-se muito mais complexa. O trânsito do poder no interior
ou no entorno do Estado aumentou significativamente, assim como os seus
custos. A ampliação da relação do Estado com a estrutura social reivindicou
significativo aumento dos serviços, correspondente divisão social do trabalho e
emergência de novas e poderosas funções operacionais (Almeida, 2014). 9
No frágil equilíbrio dos poderes, o presidencialismo tende a certas sobre-
posições e grandes planos nacionais. O arranjo institucional reserva aos gover-
nantes um notável poder concêntrico, que leva muito mais à barganha do que
ao diálogo. A fim de obter os apoios necessários, coopta-se. Com os recursos
disponíveis para a permuta, o poder concêntrico oferece os cargos de nomea-
ção à disposição do executivo. Não apenas no Executivo, mas também nos ou-
tros poderes, a centralização dos recursos na União torna ainda mais impor-
tante o controle dos cargos federais (Lopes & Praça, 2015: 108). Nessa pers-
pectiva, por exemplo, a administração federal brasileira nomeia aproximada-
mente 24 mil cargos de confiança nas fundações e autarquias, além de 8.500
desses cargos nas agências reguladoras. Assim, as condições que o executivo
tem à sua disposição, facilitam a barganha e dispensam o diálogo. A caracterís-
tica principal desse arranjo institucional é o protagonismo estatal, o conse-
quente centralismo e uma estrutura empregatícia correspondente, cuja neces-
sidade de financiamento só o torna ainda mais dependente das estratégias
extrativistas.
Não está entre nossos objetivos principais uma análise comparativa. No
entanto, vale destacar o aspecto do centralismo como uma das veias explicati-
vas para a produção e reprodução das instituições extrativistas. Nesse sentido,
mais uma vez Acemoglu & Robinson ajudam a compreender as origens desse

9
O artigo de Almeida (2014) analisa o crescimento das funções e do poder corporativo do Judiciário
depois da Constituição de 1988, sendo um útil exemplo a respeito de como a estrutura estatal
compreensivelmente se expande no Estado social e permite a concomitante expansão da elite
burocrática.

279
arranjo institucional. Na comparação entre México e EUA, observam que a
“institucionalização de regras de participação descentralizada permitiu o de-
senvolvimento democrático e republicano das primeiras colônias estaduniden-
ses” (Birkner, 2015). Nesse caso, “as elites já governavam controladas por leis,
enquanto as elites mexicanas exerciam o seu poder patrimonialista pelo cen-
tralismo e pela violência. Enquanto os EUA cresciam com a Revolução Indus-
trial, o México empobrecia pelo extrativismo e pela ausência de estímulos insti-
tucionais. (Ibid). Por terem desenvolvido suas instituições democráticas de
baixo pra cima, os EUA se tornaram líderes. Os EUA, afirmam Acemoglu & Ro-
binson, são mais ricos porque suas instituições políticas e econômicas geram
mais incentivos a empresas e indivíduos. Sua função geral é desconcentrar o
poder, gerar as oportunidades e atribuir responsabilidades aos indivíduos,
desencarregando o Estado de maior protagonismo.
Originalmente, no amplo processo colonizador da América Latina, o modo
extrativista se caracteriza pela extração dos recursos naturais, apropriado
pelos impérios colonizadores e pelos proprietários das terras, outorgadas pe-
los governos imperiais colonizadores. As Instituições extrativistas dali originá-
rias são elaboradas de modo a garantir a maior extração possível de recursos
de todos para o benefício das elites extrativistas. Mesmo quando as elites
emergentes dessas colônias promoveram os movimentos de independência e
foram, afinal, bem sucedidas, elas mantiveram intactas tais instituições. Nou-
tros termos, as novas elites reproduzem o modus operandi dos antigos usur-
padores e expropriadores. As leis e as regras em geral não são modificadas
com o sentido republicano da expansão política e econômica, isto é, da descon-
centração e geração de oportunidades. Ao contrário, são mantidas na sua es-
sência extrativista, permitindo a reprodução do poder despótico das elites
nacionais.
A independência brasileira em 1822, por exemplo, também não altera a
configuração colonial e extrativista da relação do Brasil com Portugal. A socie-
dade continua patriarcal, a economia se mantem mercantil e a estrutura insti-
tucional brasileira permanece monárquica, escravagista e extrativista. A rigor,
não houve mais que a troca de ocupantes e a ideia de um projeto nacional não
refletiu as aspirações de quem ascendeu ao poder, como já sugeria Oliveira
Vianna (1987:284). Ao largo disso, é preciso lembrar, a característica socioe-
conômica e política do País continuava marcada pelo extrativismo patrimonia-
lista puro. Nesse sentido, a base econômica é extrativista tanto quanto o com-
portamento dos operadores do Estado, uma vez que a riqueza é extraída exclu-
sivamente em benefício dos ocupantes do poder. É possível dize-lo ao modo
marxista: A estrutura governamental serve exclusivamente a esse propósito.
O Brasil independente, observava o mesmo Oliveira Vianna, simplesmente
“continuou a tradição do Brasil-colônia (...), com a educação política que este

280
período lhe dera” (Ibid.: 293). Em “Instituições políticas brasileiras”, o autor
descreve os inúmeros vícios de origem que impediam, na Colônia como no
Império, a formação de um espirito público na administração das coisas públi-
cas. Vianna explica a impossibilidade da formação de um quadro público,
mesmo depois da independência, em função das instituições sociais e políticas
herdadas. Afirma que os homens públicos, como a política em geral, herdaram
“uma mentalidade localista” e, acrescente-se, oligárquica, que impedia a for-
mação de um ethos nacional na política, ou, na preferência do autor, de uma
“consciência nacional”. Essas elites continuaram “representando seus patro-
nos”, nunca o seu país, como já acontecia na Corte do Regente Feijó (Ib. 294).
Oliveira Vianna, como sabemos, tinha um projeto nacional em mente.
Pensador político brasileiro das primeiras décadas do século XX, procurou
explicar as dificuldades e os constrangimentos dessa grande realização nacio-
nal a partir de uma sociologia historiográfica do Brasil. Apesar da crítica ao
continuísmo na passagem para a independência, foi um defensor do centralis-
mo de D Pedro II. Incomodava-o a força centrífuga das oligarquias rurais, pa-
trimonialistas e, por essa natureza, impedidoras da modernização brasileira.
Ao bom modo positivista, o autor vislumbra um projeto nacional na assunção
de uma elite emergente e esclarecida, prescrevendo o papel que uma burocra-
cia moderna teria de assumir e desempenhar nesse projeto modernizante. Essa
ideia de uma elite burocrática emergente influenciaria autores diferentes entre
si como Golbery do Couto e Silva e Bresser Pereira, ambos defensores do papel
histórico das elites burocráticas. Para Oliveira Vianna, a classe burocrática
moderna e republicana viria, como veio, em substituição ao estamento buro-
crático que vingou durante todo o período de “desagregação nacional” que,
para Ele, viria a representar a Primeira República, de 1889 até 1930.
Nessa perspectiva, o advento da República, em 1889, embora com o fim
da escravidão e a introdução do trabalho assalariado, não altera a posição das
oligarquias rurais, ao contrário, as reforça no poder. A base econômica perma-
nece inalterada e os reflexos do extrativismo se mantem nas instituições políti-
cas e na organização do poder até 1930. Assim, o conserto político-
administrativo modernizante que Oliveira Vianna reconhecia no esforço de D.
Pedro II, se desfaz com o advento da República. Em “Instituições Políticas Bra-
sileiras”, o autor enalteceu os esforços da elite no segundo Reinado, o que le-
vou muitos críticos a apresentar Oliveira Vianna como um pensador reacioná-
rio. Ele se referia à sapiência e ao patriotismo dos que o imperador havia con-
seguido reunir em torno dele e da tarefa de modernização do Império.
Com o fim do reinado do déspota esclarecido, o poder se descentraliza,
não no sentido republicano, mas ao gosto das oligarquias patrimonialistas e
extrativistas. Ora, nesse sentido, o caráter extrativista das instituições políticas
brasileiras continuava ali, como uma pedra no caminho republicano nacional.

281
Segundo o jurista Raymundo Faoro, os interesses dos latifundiários continua-
riam preservados mesmo após a independência, por um modelo de Estado
constituído desde o período colonial para esse fim (2001, vol. I: 205). E a base
administrativa a garantir a ordem política e econômica patrimonialista e extra-
tivista é o que o autor denominou de estamento burocrático ou “capitalismo
politicamente organizado”.
Diferente de Oliveira Vianna, Faoro não se prende a ressalvas e reforça o
entendimento acerca da sobreposição da continuidade às rupturas. Em seu
clássico “Os donos do Poder”, Ele ressalta a prevalência do Estado e dos orga-
nizadores do sistema patrimonialista e extrativista que atravessa as etapas
históricas e sobrevive aos tempos republicanos em favor das oligarquias e do
estamento burocrático. Refere-se aos “quadros administrativos do patrimonia-
lismo estatal” para demonstrar como, ao longo da história do Brasil, forma-se
uma permanente classe burocrática que progressivamente exercerá controle
sobre os destinos do País. Porém, não se trata exclusivamente de uma burocra-
cia do Estado que organizará a consecução dos interesses públicos. E, embora
administre os interesses da aristocracia agrária, também não servirá exclusi-
vamente a tais classes dirigentes. Faoro apresenta a burocracia estamental
como a própria classe dirigente no longo tempo.
Na perspectiva de Faoro, autores outros como G. Freire, Caio Prado Jr. e
Ignácio Rangel, lembrados por Bresser (2008:34), mas também Sergio Buarque
de Holanda, fazem referência a essa “classe”. Seus integrantes são os organiza-
dores dos interesses da Coroa portuguesa, como das oligarquias agrárias que
constituem a elite hegemônica brasileira nos seus primeiros quatrocentos anos
de colonização. Contudo, o poder e a riqueza desse estamento burocrático,
composto por juristas, letrados, bacharéis e militares, são oriundos do próprio
Estado, daí seu caráter ainda mais patrimonialista. Sua origem social é predo-
minante, embora não exclusivamente, oligárquica e a própria decadência eco-
nômica das famílias rurais os leva ao Estado, porto seguro e extensão do pa-
trimônio. Ali, esses guardiões republicanos se tornariam, progressivamente,
“esta minoria (que) comanda, disciplina e controla a economia e os núcleos
humanos” do País (Faoro, 2001: 236, vol.1).
Assim, o estamento burocrático tem a exclusividade da função de organi-
zar a economia nacional, o que faz de forma centralizada. É característica de
todo esse período oligárquico patrimonialista a confluência entre o público e o
privado na administração do Estado. Este é, afinal de contas, o elemento defi-
nidor do patrimonialismo, cujo significado está justamente na aproximação
entre o que pertence ao patrimônio público e os interesses privados de quem o
administra. Isso permite imaginar que os interesses não apenas da aristocracia
rural estavam assegurados, mas que os interesses corporativos (fisiológicos e
de poder) do estamento burocrático também o estivessem. Enquanto o esta-

282
mento burocrático controla a organização econômica, convenientemente os
interesses da sociedade patriarcal e mercantil predominam. Esse é o sentido
do que Faoro chamou de “capitalismo politicamente orientado”, isto é, quando
a administração do Estado é quem controla a economia, segundo princípios e
objetivos que não estão necessariamente voltados ao desenvolvimento susten-
tado e sim à preservação dos interesses mencionados.
Essa sociedade oligárquica, patriarcal e mercantil, cujas características
são significativamente influentes até 1930, não é uma sociedade predominan-
temente moderna, portanto, nem capitalista na mesma medida. Está baseada
no latifúndio autossuficiente até fins do século XIX, voltada à extração e expor-
tação dos produtos do extrativismo e à importação de produtos acabados e em
geral de luxo, consumidos apenas por essa aristocracia rural e pela incipiente
classe média da qual a burocracia estatal faz parte. E, naquele momento histó-
rico, a função primordial dessa burocracia patrimonial é garantir a institucio-
nalidade desse modelo, através da organização da captação e distribuição dos
recursos provenientes do extrativismo puro. Portanto, quem coordena a eco-
nomia, definindo seus rumos e, por consequência, as possibilidades e os limites
do desenvolvimento nacional, é a burocracia patrimonial e em preservação da
economia do latifúndio.
Nessa direção, vale lembrar que qualquer país só se desenvolve economi-
camente quando, orientado por interesses de ordem burguesa, o mercado pas-
sa a coordenar a economia e, por extensão, o lucro da atividade econômica
serve, majoritariamente, ao reinvestimento produtivo na direção do progresso
técnico e da competitividade (Bresser, 2008:30). É justamente nessa perspec-
tiva que Faoro insistia, através de seu conceito de “capitalismo politicamente
orientado”, que a independência de uma nação só seria possível se o estamento
burocrático não se transformasse em classe. Se consumado esse indesejado
fato, o controle econômico estaria sempre em mãos dessa classe. Enquanto foi
politicamente possível, o papel do estamento burocrático foi, por efeito, justa-
mente o de impedir essa evolução para uma economia moderna. Esta é a reali-
dade que atravessa todo o Brasil-colônia, passa o período imperial e sobrevive
incólume até 1930. A partir daí, muitos autores reconhecem a mudança do
corpo. Faoro não.

1930: o início da Era Vargas

Dali em diante, uma nova classe burocrática estatal toma forma, com a ta-
refa da racionalização burocrática da ordem pública voltada a um projeto naci-
onal modernizante. É o produto de um Estado pretensamente republicano, isto
é, do rompimento da ordem política patrimonialista, de uma economia mer-
cantil e de uma administração estamental. Historicamente, é o fim da hegemo-

283
nia das oligarquias rurais e, em tese, o começo de um modelo burocrático ba-
seado na racionalidade formal e impessoal. Não se trata mais de uma simples
burocracia estamental, cuja finalidade explícita é preservar os interesses res-
tritos à aristocracia rural, como fora até então. Naquele modelo patrimonialis-
ta, o nepotismo e outras formas de favorecimento dos ocupantes do poder são
a regra e o compromisso com os interesses nacionais fica no plano secundário.
Agora, em substituição ao estamento burocrático – leia-se a administração
patrimonial -, o Estado brasileiro será progressivamente constituído de uma
burocracia pública de tipo weberiana.
Não obstante, trata-se da constituição de uma classe social emergente, en-
carregada de uma tarefa amplificada social e territorialmente. É uma tarefa
nacional, tomada a si por um corpo burocrático estatal que se forma, e que
criará e ampliará progressivamente suas funções e ramificações. Apesar da
superação do modo patrimonialista e da assunção de uma administração pú-
blica constituída de autoridade racional-legal, é preciso reconhecer: concomi-
tantemente, o Estado brasileiro passou a amplificar suas funções sociais e eco-
nômicas, o que inclui a criação de órgãos estatais. No período dos doze primei-
ros anos do governo de Getúlio Vargas, entre institutos e conselhos federais,
dezoito novos órgãos governamentais federais foram criados.
Até fins do século XIX, durante a vigência do modelo restrito do Estado li-
beral no Ocidente, o formalismo procedimental e hierárquico funcionou a con-
tento. Nesse contexto, a ordem política estava estruturada para atender basi-
camente os direitos civis e a segurança nacional, no que o percentual do PIB
nos orçamentos não ultrapassava os 10%. É o que podemos deduzir do Estado
brasileiro, até fins da Primeira República. Mas no papel de Estado provedor,
que começa a tomar corpo com Vargas, o crescimento do aparato estatal que
esse Estado passa a representar é notável (Bresser & Spink, 1998: 26). A admi-
nistração das coisas do Estado passa a ser baseada na burocracia weberiana
que, embora necessária, não seria suficiente, tampouco eficiente como se po-
deria supor. Não se coloca em dúvida que a configuração do Estado brasileiro
muda e se torna notavelmente mais republicana. É óbvia, igualmente, a neces-
sidade de uma estrutura governamental muito mais complexa para um Estado
que, agora, pretende se apresentar como provedor e desenvolvimentista.
Não obstante, a partir da ampliação do escopo dos interesses nacionais,
amplia-se a coalizão de forças e o aumento do governo caminha paralelamente
ao necessário crescimento da burocracia pública. Mas a profissionalização e
racionalização dessa administração pública, através da expansão inédita do
Estado a partir da década de 30, não faz desaparecer a cultura patrimonialista.
Com todas as características próprias, desde o fisiologismo, o favorecimento e
o nepotismo, o patrimonialismo não desaparece. Ao invés disso, molda-se,
conforma-se e faz parte da nova configuração, sendo presumível que o aumen-

284
to da estrutura é acompanhado da persistência dos vícios de outrora. Aqui, é a
tese da continuidade essencial que vinga, não mais através do estamento, mas
do corporativismo estatal da nova etapa histórica da burocracia. Haverá pro-
fissionalização, sim, mas não perderá, a classe burocrática, seu caráter de cor-
po. Preserva-se o estamento com sua capacidade de controle e hegemonia, seu
caráter essencialmente extrativista e o auto-interesse por meio dos velhos
vícios. Nesse sentido de classe, não há ruptura, ao contrário, continuidade,
como bem sugere o oportuno trabalho de Lescura & Freitas Jr. & Ferreira
(2013).
Os referidos autores conseguem demonstrar que as práticas patrimonia-
listas e nepotistas perpassam as (três) fases da administração pública brasilei-
ra, mantendo-se em vigor até os dias de hoje. Nessa direção, os autores apelam
para as profundezas da cultura oligárquica brasileira, concordando com vários
autores no sentido de reconhecer que no Brasil não houve solução de conti-
nuidade no processo de modernização, que convive com aspectos arcaicos da
sua cultura. A persistência é simplesmente entendida como traço de resistên-
cia de instituições informais de longo tempo, no linguajar sociológico. Com
todo o aparato legal, insistem os autores, esses elementos persistem e, “em
razão da tradição patrimonialista, os empregos e benefícios que auferem o
Estado costumam estar relacionados aos interesses pessoais e não aos interes-
ses públicos” (Paes de Paula, apud Lescura et al.).
A leitura que os autores fazem da fisiologia do poder no Brasil é teorica-
mente conduzida pela perspectiva de Sergio Buarque de Hollanda. O sociólogo
de Raízes do Brasil enfatizava que a conformação estatal brasileira estava mar-
cada pela sobreposição dos interesses familiares na ordem política. Essa con-
fusão entre o público e o privado do “Brasil neoportuguês” nos impediria de
instaurar o Estado moderno. Holanda descreve a conformação patrimonialista
do Estado brasileiro na década de 1930, mas não faz menção a uma nítida so-
lução de continuidade entre o passado oligárquico e o seu tempo. Há esperança
em relação ao futuro e há percepção de mudanças. Mas não há demonstrações
de entusiasmo com a conformação de uma nova burocracia pública. Para Ele, a
tradição patrimonialista continua presente. O recrutamento do funcionalismo
público brasileiro continua ignorando os critérios modernos da competência e
da eficiência e a vida pública “dominada por questões privadas, afetivas e pes-
soais” (Reis, 133). Acreditava mais na modernização forjada pela urbanização
inevitável do que pela reforma burocrática.
É necessário admitir que a reforma burocrática do Estado Novo promo-
veu mudanças. Nesse sentido, a criação do Departamento Administrativo do
Serviço Público - DASP foi um passo importante nessa direção. Essa reforma,
todavia, foi paulatinamente reacomodada em um “misto de modernização e
populismo”, segundo Lescura et al (2013). Apesar de concurso público e plano

285
de carreira para as funções mais elevadas do serviço público, nos escalões
médios e inferiores, continuavam predominando os favorecimentos clientelis-
tas e as promoções baseadas e critérios questionáveis, até hoje existentes,
como o tempo de serviço. Essas observações também aparecem nas análises de
Bresser Pereira (2008) e são referendadas por Vasconcelos (apud, Lescura),
que chama à atenção ao excesso de autoritarismo, privilégios e ineficiências daí
decorrentes e comuns mesmo depois da reforma. O ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso também se manifestou, por vezes, sobre os problemas do
corporativismo da burocracia pública. Sugeria, na década de 1990, que era
tempo de “abandonar o assistencialismo e o paternalismo, além do corporati-
vismo”. Afirmava serem “práticas enraizadas na nossa sociedade (...) que cris-
talizam interesses concretos (como o) corporativismo sindical, resquícios do
patrimonialismo, troca de favores, vantagens corporativas, servilismo cliente-
lista ao poder público” (Bresser & Spink, 1998:15-16-18).
Nessa direção, os operadores do Estado brasileiro criam e ampliam pro-
gressivamente suas ramificações e permanecem, até hoje, direta ou indireta-
mente empenhados na manutenção e crescimento de uma estrutura estatal
que, progressivamente passa a explicitar como finalidade a própria existência.
Tal qual a lei férrea das oligarquias partidárias, podemos falar de uma lei fér-
rea da classe burocrática estatal. Ela se constitui como um corpo designado a
cuidar de interesses que a princípio não são os seus, sejam das classes domi-
nantes, sejam públicos. A utilidade do corpo burocrático lhe confere poder,
enquanto seu conhecimento técnico e jurídico permite compatibilizar, ao longo
do tempo, o interesse alheio ao interesse próprio.
Pode-se indagar se essa não seria uma tendência universal ou, ainda, se a
burocracia pública brasileira é mais poderosa, patrimonialista e fisiológica do
que a de outras democracias. Nesse sentido, a interpretação exige a devida
consideração às particularidades da conformação histórica que cada nação e
Estado. À revelia das discordâncias, é necessário reconhecer que nas trajetó-
rias históricas há mais continuidades do que rupturas. Conquanto mudanças
aconteçam, elas são lentas e não estão imunes a resistências, permanências,
confluências e até movimentos retrógrados em processos de vai e vem a pas-
sos de caranguejo. Nesse sentido, o Estado brasileiro se moderniza, mas tam-
bém conserva. Torna-se moderno, embora não abandone o extrativismo que
outrora penetrou nas instituições e nelas permanece, sofre mutações, mas não
desaparece. E do extrativismo puro passa para um habitus extrativista que,
paralelamente ao uso dos recursos naturais passa a usufruir cada vez mais da
produção da sociedade produtiva para a sua sobrevivência e manutenção. Não
obstante, depende da Sociedade, como depende dos recursos naturais, de onde
extrai os recursos para o auto-financiamento. Foi assim durante o período

286
colonial e não desaparece com o fim da “república dos coronéis”, apenas se
adapta e evolutivamente sobrevive.
Perceba-se, aqui, que estamos sugerindo o modus operandi do extrati-
vismo governamental, descolado da base inicialmente econômica do extrati-
vismo, cuja fonte podem ser os recursos naturais, tanto quanto o trabalho da
sociedade produtiva. Nesse sentido, os proventos extraídos dos recursos natu-
rais são bem vindos, como são os recursos extraídos da indústria e dos servi-
ços. Muitas mudanças houve no sentido da modernização, da inclusão e do
desenvolvimento econômico e político até a democracia. Todavia, uma carac-
terística permanece essencialmente inalterada e arcaica, embora escamoteada,
qual seja, a do Estado extrativista, orientada pela premissa básica, feudal e
patrimonialista, de que é responsabilidade geral da Sociedade, pelos meios
possíveis, servir e manter o Estado.
O que ainda encobre esse entendimento é a interpretação amplamente di-
fundida pela historiografia brasileira contemporânea de que o Estado é sempre
o lócus de domínio de classes econômicas dominantes, sejam as oligarquias
rurais, sejam as burguesias. Outra perspectiva que dificulta a percepção do
caráter extrativista do Estado brasileiro é a narrativa modernizante da Revolu-
ção de 30, o respeito à imagem de Getúlio Vargas e o efetivo reconhecimento
da reforma na administração pública. A força dos acontecimentos e a efetiva
mudança da conformação social e estatal obscureceu o fato de o Estado brasi-
leiro conservar características, entre as quais seu caráter extrativista. Nessa
perspectiva literalmente antirrepublicana, não há uma solução de continuida-
de entre o período colonial (1500-1822), o Império (1822-89) e a Primeira
Republica (1889-1930). Mesmo a partir da “Revolução de 30”, suas caracterís-
ticas anteriores persistem.
É curioso, porque a Revolução de 30, impulsionada pelo nacionalismo e
pelo modernismo de políticos, militares e intelectuais, permitia a ascensão de
uma nova classe dirigente e a promessa de um “Estado Novo” ante a “República
velha”. A ideia do Estado novo, produto político de um Pacto Nacional Desen-
volvimentista (Bresser, 1998), reveste a modernização do País e sugere um
projeto nacional capaz de livrar o Brasil dos constrangimentos impostos pelo
patrimonialismo oligárquico extrativista. Além disso, incorpora a ideia positi-
vista de uma elite emergente consciente dos destinos nacionais e capaz de
materializa-los. Essa elite compreendia necessariamente um corpo burocrático
de formação geral, técnica e eticamente comprometido com a emergência de
uma sociedade mais complexa, não reduzida aos interesses das oligarquias
rurais. Entre os intelectuais brasileiros preocupados em compreender as ra-
zões do subdesenvolvimento brasileiro e apontar saídas, estava Oliveira Vian-
na. Seus pressupostos em favor de uma “elite emergente” aparecem claramen-
te na segunda edição de Problemas de política objetiva. Contrário à dispersão

287
da autoridade política durante a primeira República e do poder das oligarquias
regionais, sugere que:

O governo (seja) essencialmente uma função das elites e somente deve ser
exercido por individualidades de elites. Não há, pois, outro título para
ascensão aos cargos públicos e aos postos de governo senão o da capacidade
moral, associada à inteligência, à cultura e à competência técnica. (Viana,
1947)

A participação dessa elite tecno-burocrática é um fato histórico reconhe-


cidamente estratégico no sentido de criar uma estrutura legal e operacional
que efetivamente organizou as condições para que o Brasil alcançasse índices
de crescimento notáveis. Aliás, é somente a partir da crise de 1929 que a eco-
nomia do País começa a perder o caráter exclusivamente extrativista no senti-
do puro e esboçar uma industrialização, como aspiravam Oliveira Vianna e
outros tantos patriotas. Nisso, a burocracia estatal moderna, aliada à burguesia
industrial emergente, será de importância incontestável. A partir da chamada
Revolução de 30, essa aliança entre “business and government” permite a as-
censão da burocracia pública justamente por conta de seu conhecimento espe-
cializado, capaz de orientar a feição de políticas públicas, na conformação das
leis e regras de conduta na implementação (Bresser, 2008: 19).
Esse processo de modernização passou a representar de fato um rompi-
mento parcial com o extrativismo patrimonialista de rapinagem. A partir de
então, as oligarquias rurais passam a dividir a cena do poder com a parte mo-
dernizante da sociedade. Essa sociedade pulsante é composta por uma burgue-
sia industrial emergente, pelas classes trabalhadoras urbanas, por jovens mili-
tares e intelectuais nacionalistas, além da classe política e de uma burocracia
pública cuja ascendência está diretamente proporcional à sua importância
nesse contexto modernizante. E o País mudou, assim como a característica
hegemônica do extrativismo patrimonialista de rapina se atenua, dando lugar a
uma nova conformação. O antigo cede espaço a um ambiente mais plural, cor-
respondente a uma burocracia mais complexa, corporativa e moderna. Essa
elite burocrática não estaria mais vinculada exclusivamente a um único mode-
lo econômico, qual seja, a economia mercantil exportadora de commodities,
que constrangia o desenvolvimento industrial do País.
Conquanto se possa admitir isso tenha acontecido, o grande corpo buro-
crático que nasce com o governo de Getúlio Vargas se desenvolve. E, como não
poderia deixar de ser, passa a constituir uma nova e poderosa classe social,
qual seja, a burocracia estatal. Ela é poderosa pelo seu conhecimento, utilidade
e capacidade de controle do Estado, instaurando o “autoritarismo instrumen-
tal”, conceito sugerido pelo cientista político Wanderlei G. dos Santos, em alu-
são à emergência da elite dirigente, advogada por Oliveira Vianna (1947). O

288
resultado histórico disso é a continuidade e o aprimoramento da principal
característica do estamento burocrático: a condição do Estado para si. O mode-
lo de organização da burocracia abandona, é fato, sua característica exclusiva-
mente estamental-oligárquica. Todavia, a emergência e consolidação de uma
burocracia pública no País não altera a condição do Estado patrimonialista
para um Estado verdadeiramente republicano. O Estado extrativista deixa de
estar exclusivamente ligado ao conjunto das oligarquias rurais. Com a emer-
gência de uma burocracia de tipo weberiana, o serviço público passa a esboçar
uma configuração mais autônoma e profissional. Ao largo disso, demonstrará e
aprofundará a condição corporativista do Estado para si, em primeiro lugar.
Não obstante, o fará em nome de um projeto nacional, onde o seu papel é tão
indispensável quanto fora para a preservação do modelo latifundiário.
Embora Raymundo Faoro já o tivesse demonstrado, a condição do Estado
voltado para si, por meio de uma burocracia profissional focada na consecução
de seus interesses corporativos, aparece mais a partir do Estado de Vargas. Até
então, a informalidade e o compadrio, o clientelismo entre outras característi-
cas presentes no Estado patrimonial aparecem muito confundidas com os inte-
resses da aristocracia rural. A partir da composição mais ampla e da perda de
hegemonia dessa aristocracia como classe dominante, surge a oportunidade de
os operadores do Estado se desvincularem parcialmente dessa interferência,
através da profissionalização no serviço público. Essa profissionalização lhes
confere características de imparcialidade que, mais ou menos presentes, es-
condem o fortalecimento do corporativismo na administração pública brasilei-
ra. A lei férrea dos partidos também parece valer para a burocracia (Faoro,
2000, vol. 1: 372).
Nessa perspectiva geral da história brasileira, as políticas públicas apare-
cem como originadas no próprio Estado, a partir dos interesses patrimonialis-
tas dos que assim o ocupam. Se isso parece, obvio, precisamos lembrar que não
se trata simplesmente de reconhecer os operadores do Estado como represen-
tantes da classe dominante, leia-se, das oligarquias rurais. Trata-se de compre-
ender que, embora parte substantiva da burocracia estamental provenha dessa
classe dominante, ela cria vida própria, adquire interesses específicos, incor-
pora indivíduos de outras classes, toma nova forma e interesses próprios. Por
extensão, na condição de quem elabora as regras, o faz cada vez mais de modo
corporativo, isto é, preservando seu próprio status, interesse pecuniário e
visão de mundo.
A lógica disso está no fato de que a burocracia não é apenas um setor da
sociedade, uma parte funcional da ampla divisão do trabalho social. Ela consti-
tui uma classe social, uma corporação com interesses específicos, de classe,
que lhe conferem prestígio pecuniário e poder político. E a manutenção desses
interesses é assegurada por regras, leis e preceitos constitucionais cuja inspi-

289
ração vem dos integrantes dessa corporação. E diferentemente da perspectiva
marxista do Estado como o “comitê da classe dominante”, essa corporação é a
própria classe dominante, como Faoro demonstrou, embora ignorado até hoje
pelo pensamento sociológico hegemônico. Era no Império e continuou sendo
na Primeira República, vindo a ampliar-se a partir da sua nova conformação,
qual seja, a de uma burocracia racional-legal, desde Vargas.
A partir de 1964, essa burocracia imperará como classe dominante de
maneira ainda mais explícita, desimpedida, livre de qualquer compromisso
contratual democrático. Para Bresser Pereira, é quando o laço que, desde 1930
unia a burocracia pública e a burguesia industrial, começa a se desfazer. É ali
que a ideia de uma elite emergente de autores como Oliveira Vianna e alunos
seus da ESG, como os generais Geisel e Golbery, se materializa na plenitude do
autoritarismo. É quando o controle mais centralizado do regime de exceção
tem a oportunidade de colocar em prática suas ideias de contenção do popu-
lismo na política e do consequente clientelismo que invade a administração
pública. É o momento da assunção das elites tecnocráticas, materialização do
pretenso “Estado-cientista”, de Galbraith e Parsons. Essa ideia converge o “Es-
tado administrador” de Mannheim que, na década de 50, entre outros defenso-
res do poder político dos tecnocratas, sugere os governos de “sábias minorias
tecnicamente qualificadas”. Todos sugerem a associação de técnicos, políticos,
burocratas e capitalistas, que autores como Bresser reconhecem como a con-
junção que deu certo a partir de 1930, apesar de alguns interregnos e que du-
rou de forma relativamente bem sucedida até os anos 80 no Brasil.
O que nos interessa é chamar à atenção ao caráter relativamente autôno-
mo dos operadores do Estado. Sua autoridade é baseada no conhecimento das
regras que esses próprios operadores elaboram a fim de orientar os rumos da
economia, mas também de sedimentar seu fisiologismo. Vale lembrar, mais
uma vez, que o poder hegemônico está em mãos da classe que coordena a eco-
nomia. Mais que isso, na economia de mercado o poder hegemônico está nas
mãos de quem controla o principal fator de produção na sociedade industrial,
qual seja, o capital. Essa é a pedra fundamental do argumento de Faoro quan-
do, em sua análise, reivindica o poder aos operadores do Estado desde a buro-
cracia patrimonialista, passando pela burocracia do Estado novo até o período
do regime militar de 1964 a 1984.
A partir do período autoritário, esse poder fica explicitado na aliança en-
tre políticos, burocratas e burguesia industrial. Não há possibilidades de afir-
mar que os governos militares estivessem representando interesses da bur-
guesia nacional ou internacional. O que acontece ali é uma associação entre
ume elite tecnocrática militar e o capital nacional associado aos EUA, e cuja
coordenação coube aos tecnocratas. Na medida em que são os tecnocratas que
assumem a coordenação da economia, direcionando as iniciativas, investimen-

290
tos e financiamentos, é natural reconhecer neles o poder hegemônico. É quan-
do o conhecimento das técnicas se transforma no meio de dominação e se legi-
tima no poder.
É para isto que chama à atenção Gebara (1978), ao afirmar que o conhe-
cimento dos “tecnoburocratas” produz importantes consequências no campo
político e, acrescente-se, no econômico. Lançando mão das ideias de Bresser
Pereira sobre a tecnoburocracia militar, ele faz observar que o Estado brasilei-
ro passava a ser controlado diretamente por civis e militares de formação téc-
nica e burocrática. Esse grupo, continua o autor, se associará à burguesia in-
dustrial brasileira e ao capital internacional. Na sequência, adverte: “Há, po-
rém, uma diferença importante no processo: o Estado agora não é mais um
mero agente auxiliar subordinado ao sistema capitalista, mas sim um associa-
do do sistema capitalista”. O Estado, à medida que é controlado mais direta-
mente por tecnoburocratas civis e militares, passa a ter certa condição de au-
tonomia, de possibilidade de agir de acordo com os interesses da própria clas-
se tecnoburocrata. Observa Gebara “esta (classe) se associa, porque seus inte-
resses são comuns, com a classe capitalista nacional e internacional das em-
presas multinacionais" (Ibid.: 84).
Dos anos 30 até os anos 80, o esforço nacional desenhado pela classe bu-
rocrática e finalmente por ela capitaneado durante o regime militar, é o esforço
nacional-desenvolvimentista. Servir a Sociedade é o lema e sem dúvida está no
escopo dos “donos do poder”. Mas do ponto de vista corporativo, a partir do
qual queremos chamar à atenção, esse objetivo precisa ser visto como secun-
dário. O objetivo principal dos donos do poder é a manutenção dessa condição
e os recursos para essa manutenção vem da extração da natureza e ou da Soci-
edade que empreende e trabalha e a quem dizem servir. Concordando com a
análise de Faoro até o fim da Primeira República – mas só até ali -, Bresser
Pereira admite que naquele contexto “o Estado arrecada impostos das classes,
particularmente da burguesia mercantil, que são usados para sustentar o es-
tamento dominante e o grande corpo de funcionários de nível médio a ele liga-
dos por laços de toda ordem” (Bresser, 1998: 35).
Não obstante, a análise de Faoro vai bem além. Atravessando décadas e
etapas da história política brasileira, o autor insiste que o poder burocrático
estamental sobrevive aos tempos, por adaptação evolutiva e sem dolo aparente
aos interesses nacionais e aos de classe. Nessa perspectiva, o autor insistia que,
no caso brasileiro, por herança colonial, o aparelhamento político sempre este-
ve acima dos interesses de classe, algo “que os sociólogos e historiadores relu-
tam em reconhecer” (Faoro, 2000, vol. II: 368). É nessa perspectiva que Faoro
já observava que a independência de uma Nação só era possível se o estamento
burocrático ainda não houvesse se transformado em classe. Para Faoro, a prin-
cipal razão da existência da burocracia estatal sempre foi fisiológica, antes de

291
ser pública. E, para corroborar, podemos lembrar as palavras de Sergio Buar-
que, quando afirma que “no Brasil somente excepcionalmente tivemos um
sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a
interesses objetivos e fundados nesses interesses” (Apud, Bresser, 1998: 38).
Discordante da interpretação conclusiva de Faoro, Bresser Pereira defen-
de que a lógica do patrimonialismo teria se encerrado com a burocracia webe-
riana instalada a partir da era Vargas. Mas para Faoro, analisando a cena na
década de setenta, em pleno regime militar, a Sociedade e o Estado brasileiros
continuavam essencialmente patrimonialistas. Uma coisa, afirmava Ele, era “a
burocracia”; outra, “o estamento burocrático, que nasce do patrimonialismo e
se perpetua noutro tipo social (...), daí seu caráter não transitório (Faoro, vol.
II: 368-9)”. Desde o Império, herança colonial, o estamento burocrático sobre-
vive, “não se converte (...) em governo de soberania popular (...); no máximo
(torna-se) autarquia com técnicas democráticas (Ib. seq.)”.
Na década de setenta, a preocupação com o excesso de burocracia e inter-
vencionismo já se manifestava no interior do regime militar. Em 1979, o go-
verno de João Baptista Figueiredo havia criado o Ministério da Desburocratiza-
ção, com o objetivo de “descartorializar” a vida de cidadãos e empresas, ora
descentralizando, ora dispensando serviços, simplificando ou eliminando exi-
gências formais que geravam custos desnecessários. O órgão governamental
funcionou até 1986, extinto no segundo ano do governo de José Sarney. O ex-
cessivo volume de burocracia reclamada pelo extinto ministério em pleno re-
gime militar gerava, como gera até hoje, um correspondente número excessivo
de cargos de atividades meio. A finalidade, em última instância, era lá, como é
hoje, a manutenção fisiológica dos empregos. Nesse sentido, é presumível que
da mesma maneira que a modernização burocrática da década de 30 tenha
significado um passo emancipatório aos verdadeiros “donos do poder”, a de-
mocratização da década de 80 tenha tido o mesmo significado para os seus
interesses corporativos.
Nessa direção, os interesses de políticos eleitos, funcionários públicos, in-
cluindo juízes, centrais sindicais, corporações profissionais, empresas presta-
doras de serviços públicos e financiadoras de campanhas eleitorais, compro-
metem o propósito republicano. Naturalmente, esses interesses não constitu-
em novidade. O que os torna comprometedores é a dimensão que adquirem
justamente na conformação do Estado social. Esses interesses pulsaram, com
vigor inédito, durante a Constituinte de 1988, mas foram ocultados pela robus-
tez das demandas democráticas. Respaldados pelos preceitos constitucionais,
esses interesses transformaram-se, progressivamente, em leis e regras que
demandaram novas funções para a materialização da vontade geral interpre-
tada pelos seus formuladores. Por sua vez, tais intérpretes da vontade da mai-
oria estavam, de modo geral, conscientes das possibilidades fisiológicas que a

292
materialização dessas demandas viria a representar. E a realização da vontade
geral, muito mais expressa na inclusão consumista do que de participação polí-
tica, demandou de modo renovado por uma robusta estrutura assistencial. O
resultado foi um crescimento desproporcional do Estado.
Para ter uma ideia da expansão de empregos no serviço público, é preciso,
por exemplo, levar em conta o fato de que num período como de 2004 a 2013,
o percentual de servidores municipais no Brasil cresceu 53%, enquanto a po-
pulação aumentou 12% no mesmo período.10 Outra fonte demonstra que, entre
2001 e 2014, o aumento desses servidores foi de 66,7%, enquanto a população
cresceu 17,5%.11 Em período semelhante, de 2002 a 2014, um levantamento da
Escola Nacional de Administração Pública - ENAP mostra uma evolução de
35% no serviço público federal.12 Isso gera distorções burocráticas que deses-
timulam o empreendedorismo, afetam a capacidade de investimento em infra-
estrutura e, paradoxalmente, pioram a qualidade da gestão pública; afetam,
igualmente, o ambiente de negócios, o desempenho das empresas, como tam-
bém extrai recursos da Sociedade através dos impostos que financiam essas
atividades estatais. Do ponto de vista do desenvolvimento, é igualmente dis-
torcivo, sendo necessário pensar nas oportunidades perdidas ao longo da his-
tória, e das consequências desse ambiente institucional na produtividade e na
competitividade nacionais.13
Subsequentemente a cada nova regra criada para o cidadão cumprir, en-
contra-se justificativas de ordem técnica, altruísta e civilizatória, de difícil con-
testação. O que não está explicito é que esse conjunto de definições normativas
contém ampla rede de interesses corporativos. Há uma economia por trás des-
sa burocracia dos procedimentos, das obrigações, das emissões documentais e
taxas a pagar. E tudo acontece em nome do aperfeiçoamento das regras para o
bem comum, alimentando uma economia avessa ao interesse geral. Com a
justificativa de melhorar o bem estar geral, aumenta-se o custo dos serviços
que o cidadão deve pagar para obter as licenças de que precisa. 14 Há um exérci-
to de funcionários, públicos e prestadores terceirizados, cuja sobrevivência

10
Os dados estão no Ranking de Eficiência Municipal – REM, criado pelo Jornal Folha de São Paulo.
11
http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/n-de-servidores-publicos-municipais-subiu-667-em-13-
anos-diz-ibge.html. Os dados originais são do IBGE.
12
Escola Nacional de Administração Pública - ENAP http://www.youblisher.com/p/1156374-
Servidores-Publicos-Federais-Perfil-2015/.
13
Em 2016, o ranking de competitividade global do International Institute for Management Development
– IMD, da Suíça, classifica o Brasil em 57º entre os 61 países que aparecem na relação. Os quatro fatores
de mensuração são eficiência governamental, infraestrutura, desempenho econômico e eficiência das
empresas. Dados disponíveis em www.imd.org/uupload/imd.website/wcc/scoreboard.pdf.
14
São exemplos disso a renovação da Carteira Nacional de Habilitação, a pontuação de multas na
carteira, que suspende a licença e obriga ao curso de reciclagem; também é exemplo a lei do farol aceso,
que gerou multas, posteriormente suspensas pelo Judiciário, em nome da Constituição, proporcionando a
falsa sensação de justiça, que encobre o desperdício.

293
depende desse emaranhado burocrático cuja finalidade geral é essencialmente
corporativa e fisiológica.
Essa notável expansão dos serviços do Estado social se aprofunda a partir
da atual Constituição brasileira, pela sua própria característica redentora,
inaugurando a etapa da democracia e da justiça social. Agora, pelos avanços
sociais com os quais a Carta Magna se comprometera, era necessário criar uma
superestrutura estatal para cumpri-la e materializar as aspirações e premissas
do Estado de direito. Na transição para a democracia, o instável governo de
José Sarney (1985-89) aumentou o gasto público, financiado pela inflação cres-
cente, em nome do lema “tudo pelo social”. Houve um breve retardo dessa
empreitada assistencialista com o Governo Collor (1990-91), eleito em nome
justamente do combate à inflação, o que o levou a promover cortes governa-
mentais. Não obstante, as circunstâncias da abreviação de seu governo conti-
nham o descontentamento com esses cortes, afetando interesses relacionados
à ocupação fisiológica de cargos.
O pacto pela justiça social reascende depois do governo de Fernando Col-
lor. O ponto de partida é um consenso razoável entre os três principais parti-
dos que levantaram essa bandeira – PMDB, PT e PSDB. O corpo funcional do
Executivo e do Judiciário, como também do Legislativo, precisaram aumentar
consideravelmente suas respectivas estruturas a fim de dar execução, fiscaliza-
ção e intermediar as relações ampliadas entre Estado e Sociedade. Naquele
momento, a Constituição Federal daria o respaldo moral e legal para justificar
o incremento da estrutura assistencial. Mais atribuições e mais cargos seriam
necessários, assim como os recursos orçamentários para a construção de uma
grandiosa estrutura de atendimento público. E seria preciso extrair tais recur-
sos de algum lugar.
Em tese, é possível pensar em ao menos quatro formas que viabilizam a
extração de recursos ao financiamento do Estado e de suas atividades fins.
Uma delas é aproveitar os recursos do extrativismo em tempos de vacas
gordas. Enquanto a economia mundial expande, os preços das commodities
sobem e os governos de países com maiores recursos minerais se beneficiam,
exportando petróleo, metais e alimentos. No afã de permanecer no poder, go-
vernos se utilizam da fartura temporária para promover políticas populistas
que, a despeito de sua justificação, não geram desenvolvimento. Não se trata
simplesmente das políticas sociais, mas também econômicas. Configuram con-
juntos de medidas que tendem a melhorar a situação no curto prazo, mas que
não vêm acompanhadas de medidas sustentáveis. Enquanto os preços das
commodities naturais estão em alta, governos populistas ampliam o gasto pú-
blico, aumentando contratações, expandindo o crédito e incentivando o con-
sumo. Além disso, criam subsídios a grandes empresas. Durante anos, a eco-
nomia cresce e a forma gera bons resultados. Quando os preços das commodi-

294
ties caem, a grandiosa estrutura governamental de atendimento ao público
torna-se um encargo, cuja sustentação tem de ser obtida de outras formas.
A forma mais comum é extrair os recursos do amplo setor produtivo mé-
dio empresarial e da classe média trabalhadora. Sabe-se que isso interfere na
produtividade e na competitividade, como também na perda de poder de con-
sumo, transferido ao Estado via impostos. Embora essa seja a conformação
mais comum, quaisquer que sejam, governos em geral não conseguem alterar
muito suas medidas tributárias no interior dessa estrutura. Trata-se, sobretu-
do, de reconhecer que não há mais muito espaço para a expansão, tampouco
para a diminuição. Ao expandirem a tributação, pioram as condições de produ-
tividade e competitividade de suas economias. Ao desonerar a produção, não
há garantias à correspondente inversão produtiva, o que ameaça a capacidade
arrecadatória. Com isso, põe-se em risco a capacidade de manutenção da estru-
tura estatal e dos serviços e políticas públicas.
Outra forma é pela via robin-woodiana, extraindo dos mais abastados, so-
bretaxando grandes fortunas e atingindo os rentistas. Assim é possível promo-
ver uma distribuição mais justa, penalizando menos a produção, o trabalho e o
consumo, e atingindo o capital não produtivo. É a maneira fiscal que os gover-
nos de alguns países conseguem adotar no combate às desigualdades sociais. É
também a alternativa decantada por economistas como o francês Thomas Pi-
ketty. Em seu livro “O capital no século XXI”, o autor procura atualizar a tese
sobre a natureza concêntrica e excludente do capitalismo. Nessa perspectiva,
ele sugere o imposto progressivo como antídoto ao aumento das desigualdades
verificado mundialmente nas últimas décadas. O alvo seriam as mais altas ren-
das, obtidas por meio de grandes heranças e investimentos no mercado finan-
ceiro, “economicamente improdutivos” (Piketty, 2014: 503).
O problema é que os governos em geral precisam dos rentistas e qualquer
ameaça a eles traz o perigo da fuga de capitais. Por isso, governos conservado-
res ou progressistas utilizam-se da forma mais comprometedora e ao mesmo
tempo paradoxal: aumentam a dívida pública, tomando emprestado justamen-
te dos rentistas, oferecendo-lhes altos juros, num ciclo difícil de romper e que
se transforma numa bola de neve, cumulativamente transferida às gerações
futuras (Ferguson, 2013). Além disso, existe a desproporção atual entre o cres-
cimento exponencial do capital não produtivo em relação à produção e o traba-
lho. O paradoxo está em que, ao pagar altos juros a rentistas para financiar
inclusive as políticas de combate às desigualdades, esses governos aumentam
o fosso da desigualdade. Enriquecem os mais ricos e endividam os que ainda
não nasceram, combatendo as desigualdades no curto prazo e aumentando-as
no longo prazo. Fazendo crescer a dívida pública, no longo tempo o próprio
Estado de bem estar é comprometido, como adverte Bresser Pereira
(2008:10).

295
1995: O fim da era Vargas?15

A partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), inicia-


se a escalada de aumento do gasto público. A fim de cobrir a lacuna causada
pelo fim da inflação, de onde o Estado brasileiro tirava grande parte do seu
financiamento, o governo aumenta significativamente a carga tributária. Os
números são bastante controversos, embora se possa afirmar que a parte subs-
tantiva do aumento se verificou nesse período, como demonstra a tabela abai-
xo. Pouca margem de aumento restou aos governos seguintes, do Partido dos
Trabalhadores, de Lula e Dilma Rousseff. É irônico, pois o ex-presidente Fer-
nando Henrique Cardoso foi frequentemente acusado de “neoliberal”, o que
significava o compromisso de diminuir a estrutura do Estado assistente . Não é
necessário lembrar que esse aumento não veio precedido, nem acompanhado
do necessário e correspondente crescimento econômico. Como explica Bresser
Pereira, sem o correspondente aumento da capacidade produtiva, a maneira de
viabilizar os gastos sociais ocorreu por meio do aumento da dívida pública e
também da carga tributária.

15
No início de seu governo, por ocasião da Lei de Concessões, o então presidente Fernando Henrique
Cardoso anunciava o fim do que teria sido a “Era Vargas”, caracterizada pela excessiva intervenção do
Estado e pelo tamanho da máquina estatal, que deveria transferir parte de suas atividades à iniciativa
privada. Para ver mais: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/2/14/brasil/26.html

296
Nesse sentido, aparecem os sinais de esgotamento da capacidade do Wel-
fare State de aumentar a arrecadação. A Sociedade já não se dispõe a pagar
mais por isso, ainda mais com o resultado pífio que o gasto público representa
em termos de prestação de serviços em todas as áreas. E esse resultado passa a
fazer parte do dilema do Estado de Bem Estar Social nas democracias de mas-
sa. Os grupos políticos que conquistam os governos, o fazem comprometendo-
se em aumentar a assistência social. Essa demanda nunca é suficiente ante uma
poderosa massa de eleitores que, apesar de desconfiar do mau uso do dinheiro
público, é estimulada a crer que os recursos do Tesouro são incessantes. O
produto esquizofrênico disso é o paradoxo do eleitor que odeia os políticos,
mas ama o Estado (Gernischen, 2014).
De fato, é a partir dessa pressão social que o aumento do gasto público é
justificado e acompanhado, sem culpa, pelo aumento das estruturas governa-
mentais. Por sua vez, a fonte desses recursos advém da capacidade produtiva
da Sociedade, seja do seu capital físico, humano, institucional ou dos recursos
naturais. Até certo ponto, como sabemos, essa taxação é necessária, da mesma
maneira que a distribuição de renda e a justiça social são necessárias e tam-
bém benéficas à economia. Mas, em termos de capacidade produtiva e distribu-
tiva, cada sociedade apresenta um limite econômico nesse processo. Quando
infraestrutura e mão de obra apresentam limites, quando as leis nem sempre
favorecem, ou quando baixam os preços das commodities dos recursos natu-
rais, os limites se expõe e se impõe.
Passada a linha tênue que divide a saúde econômica de seu estado patoló-
gico, a economia perde o vigor. É quando o sempre ameaçado ambiente dos
estímulos à produtividade e à competitividade passa a ser dominado pelos
parasitas, através de uma estrutura fisiológica essencialmente patrimonialista
e extratora da energia social. Nessa direção, a observação do economista Bres-
ser Pereira aparece de modo útil, ao afirmar que “ou a sociedade brasileira
repensa a sua história (...) e se dá conta de que seus objetivos não podem ser
apenas a democracia e a diminuição da desigualdade, mas deve ser também a
do desenvolvimento econômico, ou não superará a quase estagnação em que
se encontra” (Bresser Pereira, 2008:10-11). Portanto, continuar aumentando
os gastos públicos extraindo esses recursos da sociedade produtiva é matar “a
galinha dos ovos de ouro” do Estado Social. O desequilíbrio entre dívida públi-
ca e capacidade produtiva conduz o País à estagnação, e a possibilidade de
diminuir a desigualdade e potenciar o Welfare State brasileiro fica ameaçada. 16

16
No relatório 2016/2017 do Fórum Econômico Mundial, a posição do Brasil no ranking da competitivi-
dade global cai de 44º em 2012/13 para 81º, numa lista de atualmente 138 nações. Entre os critérios que
mensuram o ranking estão impostos, sua regulação para o ambiente de negócios, a corrupção e a quali-
dade da administração no serviço público. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1817281-em-81-brasil-tem-sua-pior-posicao-em-
ranking-de-competitividade-global.shtml?cmpid=facefolha

297
Em ensaio sobre a “Burocracia pública na construção do Brasil”, Bresser
Pereira (2008) propõe um novo pacto entre a classe empresarial e a alta buro-
cracia pública, categoria na qual inclui os funcionários mais especializados e
também os políticos. Embora não deixe claro quem são esses empresários
(empreiteiras e bancos entre eles?), o autor considera esses dois grupos abso-
lutamente estratégicos para o desenvolvimento capitalista brasileiro. Constitu-
em, segundo ele, as duas classes mais poderosas, “os donos do poder”, que
sempre desempenharam os papeis mais relevantes na história do desenvolvi-
mento brasileiro. Embora seus interesses corporativos tenham conflitado,
teriam estado “mais frequentemente associados na construção das nações” e
isso inclui evidentemente o Brasil. Sabendo que seu poder reside na manuten-
ção do Estado “forte”, essas duas classes teriam sido capazes de superar suas
diferenças e tal aliança seria o principal fator de desenvolvimento nacional
desde 1930 até meados da década de 1980. (Ib.: 11).
Em fins da década de setenta, esse pacto desenvolvimentista entre a bur-
guesia industrial e a burocracia estatal começa a ser rompido e, como observa
Bresser-Pereira, as forças empresariais aderem progressivamente ao “Pacto
Popular-Democrático” que assume o poder em 1985. Dois anos depois, o co-
lapso do Plano Cruzado sepulta o mencionado pacto, uma vez que o governo da
transição não tinha um projeto para enfrentar o problema da dívida externa e
da inflação. Os esforços de estabilização da década de noventa redundam, se-
gundo Bresser, na aceitação da ortodoxia econômica do Pacto liberal-
dependente que inviabilizaria qualquer plano de desenvolvimento. Os inte-
grantes desse pacto seriam rentistas e empresas multinacionais, e seus inte-
resses incompatíveis com os da Nação (Ib.:29). Bresser reconhece o avanço de
estabilização econômica do Plano Real. Segundo ele, o Estado democrático
iniciou a importante reforma gerencial com o governo de Fernando Henrique
Cardoso, do qual fez parte. Talvez por essa cumplicidade seja vaga a sua con-
clusão acerca da indefinição da “alta burocracia” e sua incapacidade de refazer
o pacto de classes pelo desenvolvimento. Bresser afirma que, na década de
noventa, a classe burocrática refletia o próprio “estado de ânimo da sociedade
brasileira, (...) confusa e desorientada pela falta de uma estratégia nacional de
desenvolvimento” (Ib.: 105).
Do ponto de vista efetivo, é bastante razoável admitir que a sugestão de
Bresser-Pereira tenha sido absorvida pelo projeto político do Partido dos Tra-
balhadores - PT. Como partido “progressista”, o discurso do PT, na década de
noventa, foi baseado na crítica ao liberalismo e à ideia do “Estado mínimo”. A
defesa do Estado e as críticas do autor aos “interesses estrangeiros” (Ib.: seq.)
são as mesmas do PT. Ser “progressista” não significava, todavia, ser ortodoxo.

298
Não se tratava de escolher o socialismo por oposição ao liberalismo. A escolha
foi pelo desenvolvimentismo. Assim, em nome da luta contra as concepções
“excludentes”, a concepção do conflito classista deu lugar à defesa do “Estado
inclusivo”. Nesse sentido, o ressurgimento do pacto entre a burocracia pública
e a burguesia industrial, chancelado pelas centrais sindicais, foi a receita certa
no combate ao “Estado mínimo”, sinônimo de neoliberalismo, exclusão e de
interesses estrangeiros. Portanto, só uma “coalizão ampla”, integrada pela alta
burguesia e pela alta burocracia, orientada por um novo “projeto nacional”
capaz de combater esses interesses alheios, poderia promover o desenvolvi-
mento. Fora isso e “continuaríamos a ver no Brasil um elevado grau de corrup-
ção, uma generalizada violência (...) ao direito que cada cidadão tem de que o
patrimônio público seja usado de forma pública” (Ib.: seq.). E o pacto se fez.
O que escapou ao cálculo de Bresser Pereira? Que os interesses entre os
pactuantes seriam rompidos. O pacto entre a “alta burocracia estatal e a alta
burguesia industrial”, além do sindicalismo e com a adesão dos movimentos
sociais efetivamente aconteceu, deu forma e volume ao governo “progressista”
do Partido dos Trabalhadores. Ao fim dos 14 anos desse governo, a abreviação
do mandado de Dilma Rousseff foi também marcada pelo fim desse pacto entre
a “alta burocracia e alta burguesia”, protagonistas dos episódios de corrupção e
dos erros do projeto “novo-desenvolvimentista”. Bresser é portador do velho
nacional-desenvolvimentismo, acreditando no pacto (ou repactuação) entre
essas duas classes. Depois do que ele denominava de “rendição ao pensamento
hegemônico” do “pacto liberal-dependente”, o limiar do século XXI dava os
“sinais” de que estaria “no ar a possibilidade de um acordo nacional”. (Ib.: 106).
Ainda, em texto mais recente, Bresser-Pereira reafirma sua convicção sobre os
acertos desse pacto desenvolvimentista, advogando pelos governos de Lula e
Dilma (Bresser-Pereira, 2013).
Acontece que pra isso era preciso aumentar o papel e a estrutura do Esta-
do, algo que mostrou seus limites na experiência do governo do Partido dos
Trabalhadores. Por um lado, a gama de subsídios e isenções e, por outro, as
inversões do Estado na economia se desenharam ineficazes, do ponto de vista
do equilíbrio fiscal como da promoção do crescimento econômico. Foram vá-
rias as iniciativas não ortodoxas, elogiadas por economistas como Bresser-
Pereira. A lista é extensa e bem intencionada: crédito ampliado, desoneração
de encargos trabalhistas, corte da tarifa de energia, congelamento dos preços
dos combustíveis, aceleração das concessões das obras de infraestrutura, a
política de redução do IPI, a política de escolha de campeões nacionais pelo
BNDES. De 2009 a 2014, os empréstimos a juros subsidiados representaram o
custo de R$323 bi ao Tesouro. Em geral, essas políticas tiveram benefícios
temporários a produtores e consumidores. Porém, sob a perspectiva tributária,
o equilíbrio financeiro dos entes federados foi prejudicado e do ponto de vista

299
do crescimento econômico o resultado também foi negativo, como mostram
alguns estudos (Braga et al, 2010 e Godoy et al, 2010).
A política de subsídios à indústria nacional foi um exemplo de desperdício
de dinheiro, em que os retornos não justificaram os benefícios (que foram
somente privados). Usou-se dinheiro público em benefício de poucos, sem
benefício à produtividade e ao crescimento econômico. O aumento do número
de servidores, com o correspondente aumento do gasto público não promoveu
o correspondente resultado econômico e sustentável. Mais uma vez, os fatos
permitem lembrar a velha e pouco ouvida crítica de Faoro, redita de modo
conclusivo no último capítulo final de “Os donos do poder”. Ao verificar a cena
do último quartel do século XX, lamentava que ao Estado cabia arrecadar im-
postos das classes produtivas, que seriam usados para sustentar o grande cor-
po de servidores ligados por vínculos fisiológicos (Faoro, 2000: 361-80).
Acompanha isso a corrupção desvelada que, se não é um problema à classe
empresarial associada ao Estado, cria uma profunda aversão generalizada na
Sociedade.17
O que o problema da corrupção nos revela, e nisso é útil menciona-la, é
sua expressão mais crua, mais epidérmica da feição extrativista que não ape-
nas permanece, mas se reforçou enorme e paradoxalmente nos governos da
democracia e da justiça social. A estrutura logística estatal aumentou em pro-
porção às políticas públicas implementadas, sobretudo as sociais. Porém a
amplificação dessa estrutura se mostrou duplamente desproporcional, seja em
relação ao crescimento econômico desejavelmente correspondente, seja em
relação à qualidade e à desejada eficácia desses serviços públicos. Não se trata
apenas de um problema da União, mas que fica estampado na crise financeira
dos estados federativos. Uma nota técnica do Ministério da Fazenda, de abril
de 2016, revela o descontrole das finanças dos estados brasileiros entre 2009 e
2015. Descontada a inflação desse período, o crescimento das despesas com
pessoal ficou acima de 10% em todos os estados. Outro levantamento, com
base na mesma nota revela que em 14 unidades federativas esse gasto subiu
38%. No estado do Rio de Janeiro, coincidentemente o maior extrator de hi-
drocarboneto, esse aumento foi de 70% no mesmo período. 18
Nessa direção, a ideia força do intervencionismo estatal defendida por au-
tores como Bresser-Pereira (2013), parece ter sido levada a níveis elevados no
governo de Dilma Rousseff. Bresser elogiou o aumento dos gastos públicos
feitos pelo mencionado governo e qualificou como expressão da repulsão da

17
Provavelmente, o novo pacto imaginado por Bresser previa a associação do governo com as empreitei-
ras e é até possível supor que a corrupção seria um item tolerável, algo a se fazer vistas grossas pela
suposta inevitabilidade, mas sobretudo em nome do interesse maior do desenvolvimento nacional.
18
Ver: file:///C:/Users/LNV/Downloads/Situac%CC%A7a%CC%83o%20fiscal%20dos%20estados.pdf

300
direita neoliberal. Reavivaram-se ali as características de certo racionalismo
político, que sugere haver um caminho racional de promover o desenvolvimen-
to e a justiça, desde que o governo esteja moral e tecnicamente em mãos cer-
tas. Não obstante, essa experiência deixou também em evidência o custo de
manter a estrutura extrativista do Estado brasileiro. Isso ficou pior quando os
preços das commodities naturais perderam o valor que chegaram a alcançar
nos anos do governo Lula. Os erros do governo subsequente de Dilma Roussef,
orientados pela “política econômica heterodoxa”, denotaram o desprezo às leis
básicas da economia, comprometendo a “via reta” do desenvolvimento. É do
economista inglês Lionel Robbins a tese, pronunciada por volta de 1930, de
que a economia é uma ciência, com regras básicas cujo desrespeito provoca
todo o tipo de instabilidade e impede o desenvolvimento. Sua inobservância
explicaria os maus governos em geral.
A despeito da validade desse argumento, é preciso não subestimar a inte-
ligência e os interesses fisiológicos no interior dos governos. Para Acemoglu &
Robinson (2012), os equívocos das políticas econômicas não tem origem na
ignorância dos governos, mas são produzidos por interesses políticos coeren-
temente elaborados e cujos objetivos constituem a fisiologia do poder. Seguin-
do a orientação metodológica da teoria da escolha racional, é preciso supor
que o objetivo primordial de qualquer governo seja a sua preservação no po-
der. Nesse sentido, todo o arranjo de governança e governabilidade pressupõe
primeiramente a preservação do princípio fisiológico da preservação dos inte-
resses dos indivíduos e seus grupos no poder. Atendidos estes, procura-se
compatibiliza-los com o interesse público. Portanto, observam os autores de
“Por que as nações fracassam”, que “os países são pobres porque seus líderes
escolhem políticas que geram pobreza. Erram não por ignorância, mas de pro-
pósito”. (Acemoglu & Robinson, 2012: 54)
Assim, o propósito de manter-se no poder se evidencia acima de qualquer
outro e os desvios de finalidade se corrigem após a consecução deste. Essa
perspectiva acaba sendo útil para compreender a causa de manter políticas
econômicas intervencionistas e de resultados tão questionáveis quanto previ-
síveis para a economia. Foi o caso da política econômica do governo de Dilma
Rousseff, em que somente o êxito eleitoral permite ver algum sentido racional,
a exemplo da administração dos preços de energia e combustíveis no ano elei-
toral. Assim, a estrutura governamental composta não está simplesmente a
cargo dos interesses da sociedade, para o quê o racionalismo governamental e
sua estrutura de governança se justificaria. O que está em jogo, antes de tudo, é
a permanência no poder. A governabilidade, entendida aqui como o apoio ne-
cessário para governar, tem esse propósito. A governança, entendida como
capacidade de executar, fica no plano secundário.

301
Assim, retire-se aqui a primazia metodológica do pressuposto econômico
da explicação e sobreponha-se o fenômeno político como o ponto de partida
explicativo. Em outras palavras, trata-se reconhecer uma característica da “lei
de ferro das oligarquias”, de Robert Michels, segundo a qual a conquista do
poder tende sempre para a criação de oligarquias, ao autoritarismo e à buro-
cracia excessiva. Nesse sentido, não seria outro o objetivo senão o de garantir a
preservação do poder aos que a ele chegaram. Dessa forma, não se deve espe-
rar de quem ocupa o poder que promova mudanças institucionais profundas
no combate ao despotismo. Partidos e coalizões em geral conquistam o poder
em nome da vontade geral, mas tendem ao autoritarismo e ao extrativismo.
Muito tempo no poder conduz à oligarquização dos grupos e as disputas entre
eles tornam-se ferrenhas. Nessas circunstâncias, a alteração das instituições
extrativistas por instituições “inclusivas” depende muito de contrariedade e
pressão sociais constantes e no longo tempo. Normalmente, não dependem do
despotismo esclarecido, nem do racionalismo político, tampouco se pode espe-
ra-lo de governos “progressistas”. O fisiologismo do poder é o pressuposto da
explicação de todos os governos e seus planos. E governos com seus planos são
comandados por políticos com interesses fisiológicos.
Se isso parece perverso, em se tratando de governos comprometidos com
o combate às desigualdades, podemos supor que os erros de política econômi-
ca sejam originados de certa perspectiva do racionalismo político. Como no
positivismo e em outros “ismos”, o racionalismo sugere sempre o credo numa
grande razão de Estado, isto é, da ordem política. Sugere, nessa perspectiva
elitista, que o controle governamental deva ser assumido por aqueles que seri-
am moral e tecnicamente preparados na condução dos destinos da sociedade.
Não obstante, para tanto, o racionalismo político requer, sempre, uma estrutu-
ra governamental correspondente aos grandes desafios de resolver os proble-
mas nacionais a serem enfrentados. Nessa perspectiva do desenvolvimentis-
mo, uma poderosa estrutura comandada pela alta burocracia, em parceria com
o grande empresariado, sempre parece justificável. E, imbuída dos “interesses
nacionais estratégicos”, nada parece mais necessário que um bom plano para o
desenvolvimento nacional ao largo de uma poderosa, e diga-se, volumosa es-
trutura governamental.
Com ou sem racionalismo, é necessário entender que o tamanho e a com-
plexidade legal e burocrática do Estado brasileiro têm menos a ver com a cren-
ça no protagonismo estatal do que com o seu caráter patrimonialista. Por con-
sequência, é o caráter duradouramente extrativista dos “donos do poder” que
molda inúmeras leis, normas e regras à luz da Constituição “cidadã”. Tudo gera
a justificação de uma estrutura estatal volumosa e burocrática. Desde 1988,
lembra o economista André de Lara Resende, o aumento da carga tributária
tem como finalidade estatal o investimento na rede de proteção social e no

302
próprio sustento, cuja estrutura é justificada por essa nobre finalidade (Resen-
de, 2015: 112). Nessa perspectiva, lembra outro economista brasileiro, o “soci-
al” passa a ser a inquestionável e robusta justificativa utilitarista para a nova
fase de expansão do gasto público e do velho extrativismo (Castro, 2014:112).
Nessa empreitada, o Estado brasileiro extrai entre 35% e 40% do que a Socie-
dade produz, na forma de impostos. Nesses percentuais, não está incluso o
pagamento anual dos juros da dívida pública, que em 2015 chegou a nove por
cento do PIB. Apesar de toda essa extração, perdeu sua capacidade de financi-
amento. Isto porque só consegue devolver, em investimentos, em torno de sete
por cento disso, enquanto os outros 93% são destinados ao custeio do Estado
extrativista (Ibid., seq.).

O fim da era Vargas não aconteceu, nem acontecerá

Em 2015, o governo brasileiro contabilizava 39 ministérios, desdobrados


em milhares de unidades ministeriais e 128 autarquias. Esses órgãos se esten-
dem por algumas centenas de conselhos, comissões, secretarias, subsecretari-
as, coordenadorias, superintendências, entre outras divisões, além de 34 fun-
dações e 141 empresas estatais. Paradoxalmente, essa notável estrutura do
Estado brasileiro é, segundo o Conselho Nacional de Contabilidade, a razão de
sua ineficiência.19 No geral, estão fora dessa conta as estruturas do fisiologismo
do legislativo e da lentidão e corporativismo do judiciário, que consomem ou-
tro tanto de recursos. Nesse sentido, é preciso insistir: a alta burocracia políti-
ca, como a denomina Bresser Pereira, preparou o terreno para a expansão do
seu domínio, garantido juridicamente pela Constituição de 1988. A Carta Mag-
na foi constituída por pressupostos e preceitos jurídico-morais que inaugura-
ram uma nova e expansiva fase do extrativismo estatal brasileiro: o extrativis-
mo assistencialista.
Inaugurada a fase democrática, a principal caraterística da ordem política
passaria a ser a inclusão de novos segmentos sociais e uma correspondente
expansão do gasto fiscal público. Com o governo extrativista assistencial, o
padrão de composição governamental asseverou o loteamento do Estado e a
cooptação assumiu o lugar da negociação. Nos governos do Estado de bem
estar social brasileiro, promoveu-se a instauração de uma enorme malha de
proteção social, asseverada com o ressurgimento do projeto nacional desen-
volvimentista-social, sugerido por Bresser-Pereira e adotado nos governos do
PT. Mas esse grande loteamento custou caro e o produto final dessa grande
razão do Estado foi algo não pretendido. Em outras palavras, ao querer ressus-

19
Dados disponíveis em artigo de BOMPAN, Fernanda. Tamanho do Estado brasileiro eleva burocracia
e afeta o PIB. Disponível em http://www.sitecontabil.com.br/noticias/artigo.php?id=593, em 07/05/2015.

303
citar o desenvolvimentismo, o tiro saiu pela culatra: atingiu a produção, provo-
cando a desindustrialização e ferindo a “galinha dos ovos de ouro”. Nesse sen-
tido o desenvolvimentismo significou a intervenção do Estado para o equilíbrio
do mercado, para uma rede de proteção social e para uma industrialização
operada pelo próprio Estado (Resende, 2015). Deu certo, enquanto foi possível
sustentar um crescimento econômico com a valorização das commodities,
durante a demanda motivada pelo crescimento chinês.
É fato que a redemocratização provocou realmente uma pressão social
inédita pela expansão do gasto, elevando o déficit público e expandindo a carga
tributária no País. Como lembra o economista do Senado Federal, Marcos
Mendes (2014), no fim do regime militar, os índices sociais brasileiros, inclu-
indo a educação, assemelhavam-se ao patamar de países africanos. O poder do
voto mudou isso. Pobres e classe média ganharam com o poder de expressão,
sobretudo os setores mais organizados, pressionando e se aproximando do
Estado. O esforço dos operadores do Estado, pressionados pelo voto, passou a
ser o de atender a todos. Evidentemente, a estrutura governamental assisten-
cial aumentou, assim como a extração de recursos da Sociedade, muito embora
o retorno seja questionável. Um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento
Tributário – IBPT mostra que é comparativamente baixo o Índice de Retorno
de Bem Estar à Sociedade – IRBES. Pela quinta vez, desde que o ranking é pu-
blicado, o Brasil fica em último lugar na comparação entre 30 países, como
mostra a tabela abaixo:

ÍNDICE DE RETORNO AO BEM ESTAR DA SOCIEDADE – 2013

Posição País Carga tributária Índice


sobre o PIB

1º Austrália 27,30% 162,91

2º Coreia do Sul 24,30% 162,79

3º Estados Unidos 26,40% 162,33

4º Suíça 27,10% 161,78

5º Irlanda 28,30% 158,87

6º Japão 29,5% 156,73

304
ÍNDICE DE RETORNO AO BEM ESTAR DA SOCIEDADE – 2013

Posição País Carga tributária Índice


sobre o PIB

7º Canadá 30,60% 156,48

8º Nova Zelândia 32,10% 155,44

9º Israel 30,50% 155,41

10º Reino Unido 32,90% 152,99

11º Uruguai 26,30% 151,91

12º Eslováquia 29,60% 151,51

13º Espanha 32,60% 151,38

14º Islândia 35,50% 150,25

15º Alemanha 36,70% 150,23

16º Grécia 33,50% 148,98

17º República Tche- 34,10% 148,97


ca

18º Noruega 40,80% 148,32

19º Argentina 31,20% 147,80

20º Eslovênia 36,80% 146,97

21º Luxemburgo 39,30% 144,69

22º Suécia 42,80% 141,15

23º Áustria 42,50% 141,01

305
ÍNDICE DE RETORNO AO BEM ESTAR DA SOCIEDADE – 2013

Posição País Carga tributária Índice


sobre o PIB

24º França 43% 140,69

25º Bélgica 43,20% 140,21

26º Itália 42,60% 140,13

27º Hungria 38,90% 139,80

28º Dinamarca 45,20% 139,52

29º Finlândia 44,00% 139,12

30º Brasil 35,04% 137,94

Fonte: IBPT (2015)20

Em algum momento da segunda década do século XXI, os limites do vo-


luntarismo governamental ficaram expostos. A expansão da carga tributária
para o financiamento dos gastos parece ter alcançado o limite e gerou a inca-
pacidade dos investimentos em infraestrutura, entre outros necessários ao
crescimento. De acordo com o economista Marcos Lisboa, o crescimento desses
gastos foi de pouco menos de 6% ao ano nos últimos 25 anos (1991 a 2015), o
que representaria o dobro do crescimento do PIB nesse período. 21 Some-se a
isso o volume da dívida pública, aparentemente impagável e transferida às
próximas gerações. Nas palavras de André Lara Resende, o que nos sobra é a
“herança patrimonialista (...) de um Estado que cria uma regulamentação kaf-
kiana, com exigências burocráticas cartoriais absurdas, cujo resultado é o au-
mento dos custos, redução da produtividade e complicação de todas as esferas
da vida” (2015:191). Torna-se cada vez mais evidente que a conformação des-
se modelo de Estado precisa ser alterada a fim de evitar as sucessivas crises do
País que, na expressão de Marcos Mendes (2014), “sabe, mas não faz”.

20
Ver: http://www.ibpt.com.br/noticia/2171/Pelo-5o-ano-seguido-Brasil-arrecada-muito-mas-nao-da-
retorno
21
Ver: http://www.insper.edu.br/noticias/as-meias-entradas-no-caminho-do-ajuste-economico/

306
No governo Lula, lembra esse economista, ainda houve uma “surpreen-
dente postura de responsa fiscal”, quebrada com o Mensalão, quando os cofres
foram reabertos. Mas, para não fugir à tradição das economias extrativistas, o
País foi salvo justamente pela alta dos preços de seus recursos extrativistas, as
commodities do agronegócio, o minério de ferro e o petróleo bruto, entre os
principais. Ali, viu-se aquilo que ocorreu em outros países latino-americanos.
Governos “progressistas” se aproveitaram do aumento dos preços das commo-
dities naturais e promoveram gastos fiscais sem precedentes. O economista
Paulo Rabello de Castro (2015: 34) faz lembrar que o mesmo acontece com
Venezuela, Argentina e Rússia, que são exemplos de como se gastou mal, apro-
veitando o preço internacional do petróleo, sem preocupação com a diversifi-
cação econômica. Nessa direção, a Venezuela perdeu quase 2/3 de suas empre-
sas, entre 2008 e 2018, e mais de 2/3 de seu parque industrial entre 2000 e
2018.22 Por exemplos assim fica claro que as coisas poderiam ter se saído me-
lhor se os governos fossem dirigidos por contadores honestos, como sugeriu
Ross (2015: 84 e 260).
Tudo isso diz respeito ao comumente uso dos recursos do extrativismo
para o financiamento público. Governos aumentam a estrutura e o gasto em
tempos de bonança, sem contrapartidas sustentáveis. Tomam como permanen-
te o ambiente favorável e passageiro da valorização das commodities e põe em
prática a crença do Estado como motor do desenvolvimento. Ao invés de reco-
nhecer o caráter ciclotímico das commodities, preferem o autoengano de que o
sucesso é fruto das políticas governamentais. Trata-se do sempre revivido
porem passageiro triunfo do protagonismo estatal na promoção do desenvol-
vimento pelo governo dos justos. Enquanto a economia cresce, paira a sensa-
ção generalizada na sociedade de que se trata, sobretudo, da liderança de um
governo sem medo de intervir, capaz de enfrentar o mito ultraliberal do “Esta-
do mínimo”. Nesse vácuo ilusionista, o aumento da estrutura governamental é
fruto das pressões fisiológicas do patrimonialismo extrativista e aparece como
algo necessário, na forma de aumento de ministérios, nas contratações, nos
aumentos salariais etc.
Nessa perspectiva, sugere Resende, o discurso político trata o crescimento
como uma variável de controle governamental, ignorando a máxima de que
“más políticas explicam a crise, mas boas não explicam o crescimento”
(2015:40). O protagonismo governamental se revela tão ilusório quanto é ana-
crônico o keynesianismo vulgar, segundo o qual, as crises devem ser combati-
das com mais gasto público. Crescimento acelerado artificialmente está fora do
alcance de políticas econômicas, observa Resende, acrescentando que isso

22
Os dados foram extraídos do Instituto Nacional de Estatística da Venezuela. Ver em
https://gestion.pe/peru/politica/crisis-venezuela-empresas-500-mil-cerraron-700-han-sido-expropiadas-
141056

307
resulta em “crise, recessão e estagnação”. É idêntica a advertência de Paul
Frankel, de que “a prosperidade atribulada é seguida muito rapidamente pelo
colapso total” (Apud ROSS: 241). Para escapar do subdesenvolvimento, a estra-
tégia seria conter a pressa e o protagonismo governamentais e apostar e per-
sistir no crescimento moderado. Seria necessário conter o ímpeto e a soberba,
reconhecer e aproveitar a sorte dos ventos bons que, quando mudam, não
devem levar os governos a destruir as boas instituições (econômicas), “dilapi-
dar empresas públicas, criar todo tipo de distorções, em busca de prolongar o
milagre que não é nosso” (Resende, 2015:43).
No discurso de lançamento da Lei de Concessões de serviços públicos à
iniciativa privada, em 1995, o então presidente da República Fernando Henri-
que Cardoso afirmava categoricamente “o fim da era Vargas” e a inauguração
da reengenharia no governo. Tratava-se de sugerir que ali se iniciava um novo
período da história política nacional, qual fosse, a diminuição da estrutura
governamental. Para FHC, o tempo do Estado grande e interventor havia aca-
bado assim como estaria esgotada sua capacidade de poupança. Mais de vinte
anos depois, e independentemente da vontade do ex-presidente e das modifi-
cações que ocorreram, as características tradicionais do Estado brasileiro per-
sistem, seja pela força do tecido constitucional, seja pelo sistema político res-
paldado pela Constituição, ou pela rede de proteção social criada justamente a
partir do seu governo. A realidade é que o Estado brasileiro mantem os sinais
de extrativismo e patrimonialismo que são mesmo anteriores à era de Vargas e
continuaram depois do governo de FHC. De modo geral, os privilégios e benefí-
cios que ele fez menção de atacar, se mantêm inalterados entre os segmentos
mais organizados. Nesse sentido, o presidencialismo de coalizão do seu gover-
no e dos seguintes representa a resistência desses elementos históricos ao
tempo.

Democracia, desigualdade e a emergência dos rent seekings

Conquanto tenha promovido a inclusão, assumindo os pressupostos cons-


titucionais desde 1988, o extrativismo assistencialista não esconde suas con-
tradições. Em outros termos, o Estado brasileiro não combateu de modo defini-
tivo o cenário de desigualdades. Revela, com isso, o caráter extrativista e neo-
patrimonialista de grupos que preservam seus benefícios e aprofundam as
contradições, encobertas pelo sistema de proteção social. Um desses exemplos
é demonstrado no trabalho de Mendes (2014). Com a expansão do gasto públi-
co a partir da democracia, é verdade, o País conseguiu materializar algumas
políticas inclusivas. Todavia, não se garantiu o consenso nacional em torno do
combate eficiente e permanentemente da desigualdade. Ao contrário, perce-
bemos uma asseveração camuflada do conflito social em que os segmentos

308
mais organizados procuram assegurar o seu quinhão através de formas de
aproximação com o Estado.
Não é uma exclusividade brasileira. Em “A lógica da ação coletiva”, o so-
ciólogo norte americano Mancur Olson já demonstrava que as democracias são
vulneráveis aos grupos de pressão organizados. Nesse sentido, grupos empre-
sariais setoriais, corporações e seus sindicatos, incluindo os inúmeros segmen-
tos de servidores públicos dos três poderes, categorias profissionais, políticos
e seus indicados, entre outros, conseguem assegurar ganhos segmentados. São
benefícios juridicamente justificados, cujos custos inseridos no montante dos
gastos públicos se diluem, pagos por uma Sociedade que, em geral, não os per-
cebe. Um a um, esses privilégios se somam, assegurados no orçamento por
legislação específica, aumentando a carga tributária, garantindo tratamentos
desiguais a minorias organizadas em detrimento da maioria desorganizada.
Embora, como acabamos de afirmar, não se trate de uma exclusividade
brasileira, as demonstrações estatísticas nos obrigam a reconhecer que o pro-
blema é comparativamente acentuado no Brasil. Nossa ordem republicana é
caracterizada por um Estado tão extenso quanto centralizado, excessivamente
burocrático e paternalista, características variáveis em cada contexto democrá-
tico. E as razões de nossa desigualdade persistente tem a ver com isso, como
tem a ver com a cumplicidade recíproca dos beneficiados pelo Estado. São
razões a descobrir, inexploradas pelas ciências sociais brasileiras, por razões
igualmente incertas. E, conquanto nos faltem estudos que expliquem as razões
disso, a universalidade do problema constatável nas democracias não exime
nossas particularidades e excrecências históricas. Assim, continuamos a re-
produzir nossas sobreviventes características pré-republicanas cumulativas,
quais sejam, o patrimonialismo e o extrativismo, governamental, pelos opera-
dores do Estado, ou clientelista, por parte de rent seekings.
Vamos a um exemplo: a distribuição dos recursos no interior do sistema
educacional brasileiro demonstra de maneira notável a desigualdade social
perpetrada em nome de uma universalidade democrática que favorece os mais
ricos. Na diferença entre o gasto com os estudantes das universidades públicas
e do ensino fundamental e médio está um exemplo disso. O Brasil é “campeão”
na desproporcionalidade em favor dos primeiros, sabendo-se que o ensino é
gratuito e majoritariamente ocupado pelos mais ricos. Na equação do gasto
público per capita para com esses estudantes, o Brasil apresenta o maior índice
de desproporcionalidade, gastando 5,2 vezes mais com os alunos universitá-
rios, mais que o dobro do segundo colocado, a Índia. O Brasil gasta, com cada
aluno de universidade pública, 93% do PIB per capita, enquanto na Índia esse
percentual é de 55, no México é 35, na França é 33, nos EUA é 25, no Japão é
19, no Chile é 12 e na Coréia e de 10%. Os dados são de 2008 (Mendes: 203).
Apesar dessa realidade, o percentual de pessoas com ensino superior no País

309
continua abaixo dos 20% e apenas 10% dos brasileiros conclui o curso superi-
or (Ib., 203). E, enquanto os 10% mais ricos estudam gratuitamente nas uni-
versidades públicas, os mais pobres pagam mensalidades nas instituições pri-
vadas.
Esse ambiente paradoxal de alta desigualdade e democracia igualitarista
seria propício a uma “disputa ineficiente por rendas entre diversos grupos”,
situação que, segundo Marcos Mendes, conduz a um quadro de “redistribuição
dissipativa” (Mendes, 2014). O economista reconhece que houve queda da
desigualdade durante as três décadas de democracia pós-regime militar, mas
ajuda a desmitificar a crença de que a melhoria do bem estar e a inclusão social
sejam o resultado de generosas ações governamentais. Na verdade, foi o au-
mento das commodities, das quais o Brasil e a América do Sul são grandes
fornecedores, que provocou a inclusão de milhões de pessoas através de novas
vagas de trabalho. Na direção contrária ao mito do bom governo, o autor revela
como os gastos sociais do governo federal estão “concentrados em despesas
como previdência social e remuneração do funcionalismo” que inibem a dispo-
nibilização de recursos públicos para ações que teriam maior potencial redis-
tributivo.
E é nessa configuração política do Estado patrão que aparecem os rent
seekings, que se organizam para assegurar a extração dos recursos estatais.
Nas democracias igualitaristas em contextos de alta desigualdade de renda e
patrimônio, por sua vez, surgem os rent seekings dos pobres, que essencial-
mente agem da mesma forma que os dos ricos, gerando demandas por um
setor público cada vez maior (Ib., 23). Quanto maior o setor público, mais re-
cursos o Estado precisa capturar da Sociedade produtiva, o que resulta num
modelo neo-patrimonialista que o autor chama de baixo crescimento com re-
distribuição dissipativa. E o que se vê é um país sem adequada infraestrutura
de transportes, energia e comunicações, sem escola de qualidade aos mais
pobres, trabalhadores com baixa qualificação, barreiras ao comércio internaci-
onal, gasto público crescente sem retorno, sistema judicial emperrado, carga
tributária elevada, taxa de juros alta, portos congestionados e, afinal, oportuni-
dades perdidas.
Na seara de baixo crescimento e agudas disputas, a despesa corrente pri-
mária cresce de forma permanente. Conforme Mendes, “o setor industrial e os
sindicatos, todavia, tem grande poder de influência e bloqueiam a liberalização
das forças de mercado” (Ib., 55), sinalizando que o capital e o trabalho estejam,
com alguma frequência, do mesmo lado e contra os interesses mais amplos da
Sociedade. Essa compreensão, que exige algum esforço interpretativo “deside-
ologizado”, desvela outro mito, tipicamente “progressista”, segundo o qual o
Estado seria o lócus exclusivo da representação dos interesses da burguesia.
Isso já foi verdade. Não obstante, nas três décadas da democracia brasileira,

310
aprendemos a ver que a esfera estatal, como em qualquer democracia, passa a
ser ocupada por inúmeros outros segmentos da Sociedade, desde sindicatos,
corporações, associações e organizações não governamentais, que comparti-
lham o poder com os setores empresariais e a burocracia estatal, além dos
partidos políticos e suas cotas de cargos comissionados. 23
Além disso, não se ignorem os milhões de eleitores pobres e as políticas
assistenciais que os atendem. Nesse sentido, a desigualdade diminuiu com a
incorporação de novos segmentos, conformando um quadro mais comprome-
tido com a distribuição. Portanto, “ao longo de 30 anos de democracia, foi pos-
sível equilibrar as pressões políticas” (Ib., 78), aumentando o gasto público na
medida em que se extrai, por meio de impostos, taxas e contribuições compul-
sórias, mais recursos da Sociedade produtiva. 24 E, num contexto de poder legi-
timado pelo voto, políticos estão empenhados em atender as demandas da
maioria de eleitores cada vez mais exigentes pela prestação de serviços, ao
tempo em que também são constrangidos pela força política dos prestadores
desses serviços. Sobre isso, Mendes observa que “a busca do voto do eleitor
mais pobre promove a expansão de programas sociais. Por outro (lado), um
grupo de renda média-alta (os servidores públicos), em conexões com o poder
governamental (...), consegue promover redistribuição de renda a seu favor”
(Ib., 90).
Resultado disso, a economia fica sobrecarregada por tributação excessiva,
com infraestrutura ruim, educação precária, altas taxas de juros e ambiente de
negócios inóspito. As perspectivas de crescimento de médio prazo empalidece-
ram e esse quadro de paralisia produtiva ficou ainda mais visível a partir de
2015. Depois de uma disputa eleitoral em que foi reeleito um governo marcado
pela heterodoxia da “nova matriz econômica” que apostou na elevação dos
gastos presentes pensando no retorno futuro e breve, o País entrou em reces-
são. Na lista dos problemas figuram os elementos apontados por Mendes e
outros autores, de farta presença na imprensa: instabilidade fiscal, dívida pú-
blica alta, baixa produtividade, infraestrutura deficiente, baixa qualidade na
educação e no ambiente de negócios. Isso tem levado analistas a sugerir, como
Mendes, que seja necessário o estabelecimento de um teto às despesas com o
gasto público, como alternativa necessária à ameaça da “dominância fiscal”. 25

23
Em julho de 2015, o número de cargos comissionados da administração pública federal era de 23.941.
Dados disponíveis em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/06/reguffe-diz-que-33-mil-
comissionados-no-governo-federal-e-um-numero-revoltante. Para uma comparação, na França são 4.800
cargos desse gênero, enquanto nos EUA são 8.000 e no Chile são 800.
24
Ao fim dos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), a carga tributária havia
aumentado de 26% para 36%.
25
Segundo economistas, é quando a desordem das finanças foge do controle e torna ineficaz o efeito do
aumento das taxas de juros sobre a inflação. Os juros altos tendem a piorar a situação, aumentando o
valor da dívida, criando um quadro fiscal que impede o crescimento econômico, por conta da dívida
pública (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,dominancia-fiscal,1759259 ).

311
Nessa direção, começamos a perceber o quanto nos falta, brasileiros, no
executivo, no legislativo, no judiciário e Sociedade em geral, a consideração
devida do raciocínio econômico na promoção do desenvolvimento. A Transfe-
rência de renda é sempre algo imediato e importante, sem dúvida, mas tem
pouca relação direta com o desenvolvimento, que depende de soluções estru-
turais. Nesse sentido, o extrativismo assistencialista enterra tais expectativas.
A carga tributária excessiva, como qualquer brasileiro já deveria saber, inibe o
crescimento, ao contrair o investimento e diminuir as taxas de lucro das em-
presas. Uma folha muito tributada dificulta a geração de novos empregos e
novas empresas, ou estimula as empresas a se manterem pequenas. Enquanto,
por exemplo, o custo de contratação trabalhista no Brasil é de 103%, na França
é de 80%, na Inglaterra, de 59%, na Itália, 51%, no Japão 29% e nos EUA, 9%.
Uma folha muito tributada é, assim, um dos sintomas de um país cujos gover-
nos inibem seu crescimento econômico e estimulam a evasão produtiva. 26
Por essa razão, segundo Mendes, as empresas brasileiras em geral são pe-
quenas. Apenas nove por cento delas tem mais de dez funcionários. A tributa-
ção excessiva e uma legislação trabalhista da CLT de 1940, “excessivamente
protecionista”, as estimularia a se manterem pequenas. 27 Nesse sentido, tam-
bém os salários ficam comprimidos no setor privado, fazendo com que a desi-
gualdade de renda no mercado de trabalho seja a principal fonte da desigual-
dade no Brasil, responsável por 60% da composição do GINI, calculam Souza e
Medeiros (Apud Mendes, 2014: 88). Aqui, finalmente, podemos substituir a
velha e surrada explicação a respeito da “ganância do empresariado” como
causa dos baixos salários. O autor nos oferece uma instrutiva explicação fiscal,
que deveria constar nos manuais de Sociologia do ensino médio brasileiro,
num contraponto à conhecida perspectiva da expropriação do trabalho pelo
capital.
Ora, nesse sentido, entende-se que os salários são baixos na iniciativa pri-
vada por conta dos encargos que, transferidos ao Estado, permitem a sustenta-
ção de melhores salários no setor público, como mostram estudos, a exemplo
de Barbosa & Barbosa Filho.28 E são as altas remunerações de servidores pú-
blicos, além das altas aposentadorias e pensões, os outros dois fatores que

26
Notícias dão conta de um movimento de empresas brasileiras transferindo atividades produtivas para o
Paraguai, a exemplo da matéria que aparece no link seguinte:
http://jornaldesantacatarina.clicrbs.com.br/sc/noticia/2013/05/empresas-de-blumenau-e-regiao-
encontram-no-paraguai-saida-mais-competitiva-para-aumentar-a-producao
27
No Encontro Econômico Brasil – Alemanha 2015, de 20 a 22 de setembro, em Joinville-SC,
empresários alemães em busca de parcerias com empresas de médio porte observaram ser
proporcionalmente baixo o número de empresas desse porte no Brasil.
28
Em subcapítulo intitulado “A força política dos servidores públicos”, Mendes menciona o trabalho de
Ana Luiza de Holanda Barbosa e Fernando de Holanda Barbosa Filho, pelo IPEA (Texto para Discussão
1713), que demonstraria bem as diferenças salariais entre o serviço público e a iniciativa privada, as
razões e condições privilegiadas de quem está na primeira condição (Apud Mendes, 206).

312
praticamente totalizam a composição do índice de desigualdade nacional. Utili-
zando os dados da PNAD de 2003, Immervoll ET AL (Apud Mendes, 2014)
mostram o caráter concentrador da previdência social no Brasil, revelando que
30% vão para 1% dos beneficiados, 44% vão para 10% dos beneficiados;
71,5% dos benefícios estão nas mãos de 30%. A previdência consome 11% do
PIB e concentra mais da metade do gasto social, enquanto o Bolsa Família con-
some apenas 2,7% desse gasto (Mendes, 2014: 99, 242), lembrando que atende
a ¼ da população nacional. A previdência é desigual e, a continuar assim, sua
dívida se tornará impagável. Em 2013, no setor público, a dívida anual era de
R$ 68 mil per capita, enquanto a dívida per capita entre os beneficiados do
INSS era de R$3.200,00 (Ib.).
Em situações de desigualdade, portanto, as instituições são fracas ou mal
feitas. Mencionando Acemoglu & Robinson (2011), Mendes se refere às insti-
tuições econômicas extrativistas que travam o crescimento. Por exemplo,
quando há concentração de poder e investimentos sob controle de pessoas que
não são as mais eficazes e aptas, beneficiadas por suas relações com o poder e
não pela competência e mérito, isso resulta em baixa produtividade. Na desi-
gualdade, a disputa dos rent seekings por riquezas já existentes impede ambi-
entes propícios à produção de novas riquezas. Nesse cenário adverso, os ambi-
entes são protecionistas e de baixa concorrência, sem estímulos à busca por
produtividade. Ali, governos são controlados por patrimonialistas e neo-
patrimonialistas que extraem recursos da sociedade e transferem rendas a
grupos privilegiados, fazendo com que a burocracia sirva não ao interesse
público mas em favor dos privilegiados, através de regras de benefícios, exclu-
indo empresas e aniquilando oportunidades. O que há de republicano nisso?
Portanto, quando regras permitem o abuso fiscal de governos, provocam
distorções, constrangem o desenvolvimento e adiam o combate sustentável da
desigualdade. No caso brasileiro, o Estado assume, paradoxalmente, o duplo
protagonismo na condição de bem feitor e rent seeking. E a gênese dessa con-
dição do Estado brasileiro, que denominamos de Estado neo-patrimonialista e
extrativista, indica nossa “matriarca”: a Coroa portuguesa e suas instituições
exemplares, como a proibição aos brasileiros de comercializar com outros
países, as restrições ao livre cultivo e às autorizações e alvarás à abertura de
negócios, além de tributação excessiva, de empresas e pessoas ligadas aos
governantes, que estiveram entre os primeiros movimentos dessa herança
patrimonialista. Com a vinda da Coroa, a centralização é amplificada e a nas-
cente burguesia comercial brasileira sente como nunca a insaciável necessida-
de da monarquia em extrair recursos para a manutenção de sua condição inútil

313
e improdutiva.29 O resultado é um vergonhoso sistema de regulação e privilé-
gio, exposto na narrativa jurídico-antropológica de Raymundo Faoro.
A consequência sócio-político-econômica desse “modelo colonial extrati-
vista” é a constituição de uma classe poderosa ao redor dos interesses da Co-
roa. Ela é constituída de cortesãos e burocratas indicados pelo monarca, vi-
vendo às custas da Sociedade através do controle de todo esse emaranhado
extrativista de constrangimentos legais e burocráticos. Era, digamos, normal
em se tratando de sistemas monárquicos, mas anacrônico, para dizer o menos,
em contextos republicanos. Para se ter uma ideia, trata-se do tipo de poder e
de privilégios reais que, por exemplo, os senhores feudais da Inglaterra do
século XIII começaram a eliminar a partir da Carta Magna de 1215, limitando o
poder do rei, conhecido, por isso mesmo, como João “sem terras”. Essencial-
mente, concordam inúmeros autores, entre eles Mendes, é a partir dessas alte-
rações institucionais que podemos compreender o destino virtuoso da Ingla-
terra e de outros países que se desenvolveram e se tornaram potências.
Assustadoramente, o Brasil que reconhecemos hoje é essencialmente o
mesmo de Dom João VI. Dois séculos e sete cartas magnas depois, o eterno
“país do futuro” mantém a essência patrimonialista, extrativista e clientelista
de suas origens e reproduz o modelo segundo a perspectiva de que é a socie-
dade dos indivíduos que serve ao poder central. Com toda a institucionalização
e as lutas políticas até a Constituição “cidadã” de 1988, é constrangedor admi-
tir que o Brasil mantenha as instituições extrativistas. Todas as gerações de
elites emergentes, em nome dos interesses republicanos, não foram capazes de
desarmar esse sistema centralizador que reproduz o velho “mercado de in-
fluência política e troca de favores”, ao qual todos se veem obrigados a recor-
rer. Duzentos anos depois, a promiscuidade da busca de favores e a proteção
faz acotovelarem-se entidades como “FIESP, ANFAVEA, FEBRABAN, entre ou-
tras”, financiando campanhas com o mesmo intuito que comerciantes do pas-
sado compravam títulos da nobreza (Mendes, 2014: 123).
Até hoje, como no passado imperial, boa parte de nossas instituições tem
o mesmo sentido de manter fortes atilhos entre governo e agentes econômicos,
fazendo com que o funcionamento da economia dependa do poder político, à
revelia das leis do mercado. Idêntica é a observação de Raymundo Faoro sobre
a submissão e dependência do empresariado industrial brasileiro que, na dé-
cada de vinte e “cinquenta anos depois”, nada mais representava na política
nacional do que “um prolongamento do oficialismo, pregando a iniciativa pri-
vada protegida, modalidade brasileira de liberalismo econômico” (Faoro, 2000:
302, vol. 2) Nessa direção, nossos ciclos de crescimento são continuamente

29
Um dos primeiros e mais conhecidos atos/decretos do governo de D. João VI é mandar desalojar a
burguesia brasileira de suas casas a fim de cede-las à nobreza improdutiva de Portugal.

314
sucedidos por crises decorrentes da proteção, do subsídio e de endividamento
futuro. Nossos voos são alçados com a outorga estatal, gerando anos de cres-
cimento, seguidos de endividamento e baixo ou nulo crescimento. É precisa-
mente o que constatamos na crise econômica brasileira deflagrada em 2015,
produto da chamada “nova matriz econômica”. Foram anos de incentivo ao
consumo, de subsídios a grandes empresas, de expansão do crédito, de gasto
público excessivo, endividamento, juros altos, e, por fim, inflação e recessão.
Mais um voo alçado pelo protagonismo estatal, mais um voo de galinha.

Chegamos ao limite do extrativismo assistencialista?

O extrativismo estatal é um traço da formação do Estado brasileiro. So-


brevive, entrelaçando as várias fases da conformação do Estado brasileiro, o
que nos permite entendê-lo como o meio pelo qual este Estado representa um
fim em si mesmo. Nessa direção, o País atravessa suas etapas de modernização,
torna-se uma grande sociedade, com uma economia correspondente e uma
nação democrática. Na trajetória bicentenária de sua independência até hoje, o
Brasil passou por governos oligárquicos, nacionalistas, conservadores, liberais
e progressistas, da direita à esquerda, até chegarmos ao Estado de direito e de
cunho social das últimas décadas. Mas em alguns aspectos, uma ou outra carac-
terística retrógrada persiste e, na sua feição político-antropológica, o extrati-
vismo é uma delas. Agora, é preciso identificar esse extrativismo com os limites
do Estado social, associando-o às causas do esgotamento de sua capacidade de
atendimento. Ainda que voltado à assistência, seu objetivo principal é a auto-
conservação. Isso não é uma novidade universal, tampouco uma exclusividade
nacional, mas é necessário ver que tal objetivo tornou-se não apenas a causa
do baixo crescimento, mas da perda da possibilidade de crescer.
Cada nova etapa desse Estado extrativista exigiu um aumento da es-
trutura governamental, isto é, do volume de recursos necessários para atender
as demandas sociais e as políticas de desenvolvimento, sob os aplausos de
nossa intelectualidade “progressista”. Acontece que quase todo o recurso ex-
traído, cada vez mais escasso, vai para o custeio da máquina estatal. Nesse
aspecto, os recursos extras advindos do extrativismo das commodities naturais
ajudaram a manter, nos últimos anos, a estrutura do Estado assistencialista. Se
consideramos que a extração de petróleo e gás natural, somados ao minério de
ferro, representaram em torno de 18% do PIB brasileiro em 2013, teremos
ideia de como esses recursos foram importantes para sustentar a estrutura
governamental nos três níveis da federação. É o necessário sustento da “má-
quina” que está em jogo, justificado pelo assistencialismo e pelo desenvolvi-
mentismo, materializados nas formas de políticas sociais, de subsídios e isen-

315
ções. Enquanto isso se sucede, a indústria nacional perde participação na com-
posição do PIB há mais de uma década (Castro, 2014: 73).
Nesse contexto, existe um sem número de gastos de pouco ou nenhum re-
sultado do ponto de vista do aumento da produtividade e da competitividade.
Além disso, há um mar de benefícios quase invisíveis, pulverizados e distribuí-
dos aos rent seekings. Esses recursos são gerados pelo extrativismo estatal,
isto é, pela apropriação de recursos extraídos da sociedade produtiva e empre-
endedora. Ao largo desse extrativismo estatal, governo e rent seekings foram
favorecidos com o último ciclo de expansão econômica que o Brasil viveu até
2010. Essa expansão foi possibilitada pelo extrativismo econômico, ou seja,
pela valorização das commodities dos recursos naturais, que o Estado brasilei-
ro capturou e soube capitalizar, turbinando as políticas sociais e o desenvolvi-
mentismo. Contudo, não apenas o populismo governamental disso se benefici-
ou. Beneficiaram-se, em geral, os operadores do estamento burocrático, os
políticos e empresários patrimonialistas, os beneficiários de um sistema previ-
denciário notavelmente desigual, entre outros segmentos que conseguem ga-
rantir cargos, direitos, ganhos permanentes, incentivos, subsídios e isenções
em tempos de bonança.
Mas a desvalorização dessas commodities, vide a diminuição da demanda
mundial por elas, encerrou mais um ciclo, e os preços altos da primeira década
talvez não voltem. Foram esses recursos que permitiram transferir renda para
a rede de assistência social, conferindo legitimidade governamental. Embora
não exclusivamente, foram também esses recursos que ajudaram na manuten-
ção do estamento burocrático brasileiro, assim como o café sustentou a estru-
tura estamental burocrática brasileira durante a República Velha. Entram,
nessa conta, subsídios, isenções, entre outros incentivos e vantagens setorial-
mente distribuídos, além de investimentos mal feitos, cuja nobre finalidade
desenvolvimentista mais uma vez não se confirma. O resultado geral é o des-
perdício, ao invés do aumento da produtividade. O que sobrava, ajudava a sus-
tentar a ampla malha de benefícios, constitucionalmente assegurados aos
cúmplices calados do extrativismo dos “donos do poder”.

Fim do almoço grátis

O fim da vida curta dos anos de commodities em alta nos mostrou a dura
realidade de mais um curto ciclo de crescimento, seguido de frustrações repe-
tidas, portanto, conhecidas. Depois de aproveitarmos os anos de expansão do
consumo e dos gastos públicos, caímos no “vazio do mundo real”. O anúncio da
descoberta de reservas de petróleo na camada do pré-sal chegou a gerar reno-
vadas expectativas, mas é improvável que essa commodity volte a assegurar os
ganhos de antes, numa Sociedade em constante busca de fontes de energia

316
alternativas. O mal-estar que o Brasil vive na segunda década do século XXI é a
própria ressaca do último ciclo de bonança das commodities da primeira déca-
da. Não aproveitamos corretamente os excedentes por meio de investimentos
estratégicos em infraestrutura, ciência e educação para a produtividade e
competitividade. Findados os excedentes das commodities, o Estado se volta
novamente à extração de recursos da sociedade produtiva e empreendedora.
O problema é que a expansão dos compromissos distributivistas durante
o último ciclo tornou-se desproporcional à capacidade da Sociedade produtiva
de suportá-la. Não podendo contar com os preços aquecidos das commodities,
transbordamos os limites do Estado extrativista assistencialista.. Paralelamen-
te, postergamos ao futuro medidas de necessidade cada vez mais evidente,
como as reformas política, da previdência social, além da revisão constitucio-
nal. Foram temas proibitivos durante os anos de governo “progressista”, tanto
quanto a desburocratização, a redução do tamanho do Estado e a revisão do
pacto federativo. Esse conjunto de demandas para o desenvolvimento real foi
postergado em nome da democracia igualitarista, de distribuição dissipativa
(Mendes, 2014). Escamoteamos, até agora, a desigualdade no contexto da “fa-
rinha pouca, meu pirão primeiro”, mas não conseguimos mais esconder o fato
de que as “classes dominantes” são constituídas de dentro do Estado.
É possível que isso tenha um efeito pedagógico e, com isso, compreenda-
mos algumas coisas importantes e interligadas. Entre elas: 1) não existe almo-
ço grátis; 2) o Estado de bem estar brasileiro chegou ao seu limite; 3) o desen-
volvimento nacional não depende de mais e sim de menos Estado; 4) a socie-
dade precisa ser estimulada ao raciocínio econômico e matemático; 5) o inimi-
go é o Estado; e 6) a Constituição de 1988 é o ponto de inflexão.
Não obstante, a importância novamente adquirida pelos recursos na-
turais na primeira década do século XXI, reascende a interpretação de um Fao-
ro sobre o fato de que o Estado brasileiro se estruturou a partir do extrativis-
mo, se modernizou, descolou-se da dependência exclusiva do extrativismo
econômico, mas continua extrativista. Em outras palavras, o extrativismo está
na base da formação do Estado patrimonialista brasileiro, sendo seu alicerce
econômico. Por extensão, moldou nossas instituições políticas, que até a ope-
ração Lava-Jato ocultavam as ações dos “donos do poder”. Com toda a moder-
nização alcançada pelo País, do ponto de vista econômico, político e educacio-
nal, o Estado brasileiro manteve sua característica fundante. Através do esta-
mento burocrático, as elites extrativistas preservam o seu objetivo principal,
qual seja, o da auto-preservação. De praxe, extraem da Sociedade produtiva os
recursos à auto-conservação do Estado. Não obstante, extraem os sempre bem
vindos recursos naturais que, como vimos, ajudaram na ampliação da rede de
proteção social e da estrutura governamental correspondente.

317
Nesse sentido, como vimos, o amparo jurídico e moral do extrativismo es-
tá na atual Constituição brasileira, que inspirou e justificou o aumento da carga
tributária e criou a ilusão do governo grátis (Castro, 2014). Não se trata de
desqualificá-la. Mas é necessário reconhecer nela a carência do raciocínio eco-
nômico. Nesse sentido, os economistas sempre tiveram razão ao denunciar a
falta de respaldo orçamentário para o novo conjunto de atribuições. Mais re-
centemente, com o governo popular, vivemos a sensação do Estado de bem
estar social na sua infinita capacidade de distribuir riquezas, a partir da ilusão
de que a capacidade de extrair recursos da camada rica da sociedade seria algo
cujo término estaria muito distante. A sociedade brasileira parecia certa de que
era isso o que estava acontecendo. Não era, e bastou o desaquecimento das
demandas pelas commodities, aliado aos erros do desenvolvimentismo gover-
namental, para que os recursos naturais e sociais disponíveis se tornassem
novamente escassos.
A lembrança de Castro pode parecer lugar comum, mas revela a ima-
turidade da própria sociedade brasileira, apesar de o autor superestimá-la
desnecessariamente (Ib.). A rigor, parece impossível sair da cilada das promes-
sas eleitorais. Candidatos e coligações são desmentidos pelas dificuldades dos
governos no mundo real. Todavia, as promessas do bem estar e do desenvol-
vimento se renovam a cada ciclo eleitoral e não é somente pela insinceridade e
demagogia da classe política. Renovam-se porque uma proporção considerável
de eleitores se demonstra ávida por essas mentiras, ou crente no milagre da
multiplicação. Ali, misturam-se religião e política, revelando mais uma vez os
efeitos da simbiose cultural das sociedades que acreditam ou são levadas a
crer que o desenvolvimento, assim como o bem estar, é tarefa de governos
racionais e generosos. É como se a capacidade de geração de riqueza fosse
infinita, estivesse demasiado concentrada entre os agentes produtivos e preci-
sássemos de governos de tipo Robin Wood, que sabem tirar de quem tem ou de
onde tem e distribuir na justa medida.

Concluindo, com a Constituição:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional


Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

318
Não obstante, essa mística expectativa de justiça e bem aventurança é tal-
vez o maior emblema da Constituição brasileira de 1988. Novamente, não se
trata de desqualifica-la, mas de reconhecer seu caráter utópico e as razões
disso. O caráter utópico é, a rigor, a característica de qualquer constituição
democrática. Enquanto democrática, tende a expressar a vontade geral inter-
pretada por uma assembleia que legitimamente representa essa vontade. Pre-
cedida pela ditadura militar de 1964 a 1984, a Lei maior brasileira representa
a aspiração ao desejo de antítese, de distanciamento dessa condição autoritá-
ria. Além disso, a Constituição significa uma resposta ao anseio popular pelo
combate à desigualdade social e pela ampliação de oportunidades. Não há
quem negue seus avanços na direção de um Estado de direitos individuais,
políticos, sociais, econômicos e ambientais. O fortalecimento do Poder Judiciá-
rio independente tem garantido um acesso inédito dos cidadãos a esse conjun-
to de direitos. E, no geral, o seu expresso caráter inclusivo e solidário inspirou
leis e interpretações correspondentes e permitiu a edificação de uma ampla
rede de proteção social.
Com atenção notável aos economicamente vulneráveis, além das minorias
sociais, a inclusão e o combate à desigualdade social aparecem como sua carac-
terística mais manifesta. Como não reconhecer o respeito constitucionalmente
amparado aos idosos, negros, mulheres, crianças e adolescentes, consumidores
e a outros importantes grupos sociais? São exemplos os Estatutos da Criança e
do Adolescente, do Idoso e da Igualdade Racial, além do Código de Defesa do
Consumidor. O conjunto de leis e garantias geradas a partir desses pressupos-
tos constitucionais teve um efeito notável na vida das pessoas, na educação, na
saúde, na cultura, no meio ambiente, na habitação, na urbanização e nas rela-
ções de trabalho, entre outros campos. Criou, por consequência, um sem nú-
mero de funções governamentais e profissionais, públicas e privadas. Gerou,
por conta disso, uma economia nova, com efeito, um mercado de prestação de
serviços com efeitos distributivos. Uma economia cujo ponto de partida e agen-
te é o Estado social.
Por outro lado, a crise política e econômica que se instaurou no País a par-
tir de 2015, no segundo mandato do governo de Dilma Rousseff, demonstrou
os limites do Estado social que a Constituição fundamentou. A tentativa de
protagonismo estatal, que funcionou bem durante o período da valorização das
commodities, desvelou ali esses limites. A Constituição de 1988 legitimou o
esforço democrático estatal de ampliação dos gastos sociais a partir de então.
Enquanto contaram com os proventos das commodities que aumentaram a
arrecadação tributária, a ampliação pareceu sustentável ao País. Porém, man-
tê-la sem esse generoso e passageiro aporte fiscal compromete as finanças
públicas e os próprios objetivos sociais sofrem reversão. É nessa hora que os
investimentos em infraestrutura perdem fôlego e a Sociedade produtiva e em-

319
preendedora é chamada a pagar a conta, desestimulando a atividade produtiva.
E para não comprometer ainda mais a galinha dos ovos de ouro, o governo
social recorre ao sistema financeiro, onde emite os títulos, oferecendo aos ren-
tistas a melhor recompensa através dos juros altos que aumentam o chamado
serviço da dívida. No final do ciclo, o Estado social, amparado pela Constituição
cidadã, revela novamente os limites da sua capacidade.
Não existe “governo grátis”, nos faz lembrar o economista Paulo Rabello
de Castro. No entanto, a Constituição brasileira sugere isso no seu ímpeto revo-
lucionário de promover a justiça social. E, para materializar seus preceitos, a
expansão do Estado foi necessária, assim como o sustento dessa expansão. As
elites políticas criaram as garantias dessa materialização e a logística gover-
namental. E, extrair mais recursos da mesma Sociedade produtiva tem sido a
forma de fazê-lo. O que denominamos aqui de extrativismo estatal, Castro
chama de “extrativismo econômico”, denunciando, como fazemos aqui, o neo-
patrimonialismo das elites extrativistas. Apropriam-se do Estado e sustentam
sua legitimidade no ilusionismo do milagre da multiplicação, o que o mencio-
nado economista denomina de “agente esterilizador do desenvolvimento”
(Castro, 2014: 15). Para ele, o mito do governo grátis expresso na Constituição
é justamente o fenômeno que está na raiz do declínio da produtividade brasi-
leira (Ib., 22).
Assim, por meio do “extrativismo das competências”, o Estado brasileiro
desenvolveu a prática de tirar de quem produz. O faz anulando a capacidade de
poupança das famílias e empresas, e o fará até o limite da morte do empreen-
dedorismo (Ib., 24, 39). Despende os tributos em consumo, em juros estéreis e
desperdícios flagrantes (Ib., 53). Não mais que resíduos são transferidos aos
mais necessitados, porque a principal finalidade é a manutenção fisiológica de
sua complexa estrutura operacional e de uma rede de privilégios. O excessivo
comprometimento com os gastos da “máquina extrativista” governamental dos
três poderes impede que haja recursos suficientes para as áreas fins e para os
investimentos em infraestrutura. A mesma lógica se reproduz nos estados e
municípios, muito mais reduzidos à condição de máquinas extrativistas, em
função da centralização dos recursos na União. Nessa direção, Castro aponta os
exemplos mais flagrantes, quais sejam, os estados de Minas Gerais, Rio de Ja-
neiro e Rio grande do Sul, cujos governos não se preocuparam em reduzir gas-
tos, apenas em aumentar despesas e impostos (Ib., 98-100).
Quando se trata de governos convictos do protagonismo estatal, natural-
mente o extrativismo governamental se torna mais latente e os efeitos negati-
vos aparecem ao fim do curto ciclo de crescimento forjado. Foi assim durante o
governo militar do Presidente Ernesto Geisel, cujo objetivo era dar continuida-
de ao “milagre econômico”, financiado com empréstimos externos. Foi quando
a tecno-burocracia estatal teve as condições políticas de testar sua capacidade

320
de colocar em prática as ideias do racionalismo governamental. Sabemos que a
crise do petróleo, em 1974, interrompeu a euforia do crescimento brasileiro. O
governo à época respondeu com mais investimentos estatais, com intervenção
nos preços administrados pelo governo, com emissão de moeda e o resultado
foi o endividamento público. Houve proliferação de incentivos na forma de
subsídios, isenções e créditos subvencionados, a dívida pública foi ocultada e a
inflação prosperou, levando o País à chamada “década perdida” nos anos oiten-
ta (Ib., 105).
É notável a semelhança dessas estratégias de protagonismo estatal com as
ações do governo progressista na segunda década deste século. A despeito de
todas as críticas e advertências, erros se repetiram e o descontrole sobre os
gastos públicos levou o País a mais uma crise e demonstração dos limites do
Estado social e desenvolvimentista. A mesma ideia do racionalismo governa-
mental esteve presente, e seus operadores trataram de colocar em prática o
voluntarismo desenvolvimentista e de bem estar social, tentando controlar a
economia a partir da burocracia do Estado (Ib., 108). Nesse sentido, o governo
progressista de ampla coalisão, tanto quanto o seu sucessor, representam a
exacerbação do próprio “embate constitucional” daquele fim de “década perdi-
da”. Décadas de autoritarismo e exclusão social criaram aspirações legítimas,
estampadas na Carta Magna e demandantes de soluções políticas. E, mais uma
vez, é útil lembrar que o tão favorável e prolongado ambiente econômico ex-
terno baseado na valorização das commodities, aliado ao mito do bom gover-
no, possibilitou essas respostas políticas.
Todavia, do ponto de vista do extrativismo estatal, é preciso reconhecer
que o grande resultado do “embate constitucional” foi o que Castro denominou
de “inclusão orçamentária”. O que o autor quer dizer com isso é o mesmo que
denunciam Mendes (2014) e Resende (2015), entre outros. Trata-se de reco-
nhecer, primeiramente, que a inclusão social aos mais necessitados se verifica
muito mais através das políticas de assistência, do que por meio de formas
sustentáveis de inclusão. Em segundo lugar, sendo o aspecto interpretativo
mais importante, o que a Constituição efetivamente proporcionou foi a expan-
são do acesso seletivo de uma “minoria já pertencente ao aparelho estatal, os
servidores públicos, os políticos, os membros do Judiciário e do Ministério
Público” (Castro, 2014: 108). Nesse sentido, o cunho extrativista do Estado
brasileiro aparece mais uma vez, e agora respaldado constitucionalmente,
através do aparelho estatal expandido. E a sua materialização aparece à Socie-
dade através da “instituição extrativa do governo grátis”, que “conseguiu se
estruturar com minúcia, razão principal dos extensos capítulos da Constituição
dedicados aos direitos da burocracia que defende o próprio Estado, mesmo
que a despeito da Nação” (Ib., 108-9).

321
Da mesma maneira, é importante identificar a Carta Magna como um pon-
to de inflexão a partir do qual as elites brasileiras (os donos do poder) vislum-
braram a possibilidade de uma abertura inclusiva sem comprometer seu sta-
tus, ao contrário, ampliá-lo. E, nessa medida, por paradoxal que pareça, preci-
samos admitir que a Constituição “cidadã” representou o início de uma nova
fase do extrativismo estatal. Quase três décadas depois de sua promulgação,
empresários, estatais, rentistas, sindicalismo patronal e assalariado mantém
intacto “o velho acerto político do Estado Novo” (Ib., 111). Nesse sentido, os
“donos do poder” encontraram na Constituição a oportunidade de não apenas
manter, mas ampliar seu espectro de poder e de garantias pecuniárias, assegu-
radas até o limite do possível pela Sociedade produtiva. Esse limite chegou e
explica as razões do esgotamento da capacidade do Estado de bem estar e o
estado de mal-estar que vive o Brasil na segunda metade da segunda década do
século XXI.
Se há um aspecto positivo na crise econômica, é o seu caráter pedagógico.
Ao esclarecer os limites do protagonismo estatal, a situação de esgotamento da
capacidade tributária e arrecadatória, revelou mais do que o aspecto dos limi-
tes do intervencionismo. Escancarou aquele hemisfério oculto que Faoro fez
bem um dia revelar: o que esconde a rede de privilégios patrimonialistas e a
face extrativista que envolve os “donos do poder”. Ocasionada pelo extrativis-
mo estatal, a crise econômica nos acorda. Agora, precisamos desfazer essa
ilusão criada pelas elites extrativistas. A experiência do Estado de bem estar-
assistencialista, embora necessário e útil inclusive à economia, pelo efeito dis-
tributivo, demonstra ter chegado aos seus limites. Assim, a continuidade das
políticas de distribuição e de proteção social não deve mais contar com os re-
cursos das commodities, nem pode continuar contando com a ampliação da
extração de recursos, via impostos, da Sociedade produtiva. Em relação aos
recursos naturais, como vimos, o problema é que sua captação regular não é
constante e governos que se sustentam no extrativismo dos recursos naturais
se acostumam mal e protelam estratégias de desenvolvimento sustentável.
Normalmente, dispensam a responsabilidade com o longo prazo. E, em relação
à extração de recursos da sociedade produtiva, é preciso reconhecer que essa
capacidade está esgotada.
A preservação do extrativismo estatal retirou a capacidade endógena do
desenvolvimento brasileiro. O Brasil desperta sofregamente da ilusão do pro-
tagonismo estatal e depender do Estado patrimonialista é, cada vez mais, a
condição antitética do desenvolvimento. Almejando o desenvolvimento susten-
tável, toda nação precisa de um Estado bem organizado, capaz de atender sa-
tisfatoriamente as principais demandas da Sociedade pelo bem estar e cresci-
mento econômico. A história brasileira revela, a duras penas, que vivemos
vários ciclos de crescimento, que sempre se esgotaram pela mesma razão: o

322
controle do Estado por elites extrativistas, sustentadas por instituições extrati-
vistas. Nessa perspectiva, por paradoxal que pareça, a Constituição cidadã é a
maior instituição desse gênero. Do ponto de vista ideal, deveria garantir um
Estado forte e eficiente, não obstante limitado e controlado socialmente, e
capaz de desarmar as estruturas extrativistas que barram o desenvolvimento
sustentável. Do ponto de vista real, ela legitimou a expansão dos direitos das
elites extrativistas, autorizando-as à expansão do extrativismo estatal, com a
justificativa de promover a inclusão social.
Apesar das especificidades históricas, entre elas o extrativismo estatal
brasileiro, a democracia brasileira revela os sintomas universais do Estado de
bem estar. Desde o século XX, o Welfare State é a maior conquista política das
sociedades democráticas. Trata-se de uma conquista civilizatória que repre-
senta, de um modo ou outro, a materialização do atendimento de demandas
sociais universais e amplificação de mecanismos distributivos da riqueza soci-
almente produzida. O Estado de bem estar é uma conquista política, resultado
da pressão das sociedades de massa sobre a concentração de riquezas das
elites. O argumento geral dessa luta política sempre esteve baseado na neces-
sidade de melhor distribuição da riqueza. O Welfare State melhorou as condi-
ções sociais, permitiu o desenvolvimento e a viabilidade disso se deu pela ex-
pansão dos serviços públicos e a correspondente expansão das estruturas polí-
ticas do Estado. Ao longo do século XX, o gasto público saiu de uma média de
10% para mais de 40% do PIB dos governos que consolidaram os direitos so-
ciais (Bresser Pereira, 2009: 99, 110-11). Com efeito, a crise do Welfare State
varia de nação a nação, mas sua origem é de ordem matemática, resultado do
esgotamento da capacidade de ampliar seu espectro de atendimento.
No caso brasileiro, o movimento de ampliação do gasto público também
chegou ao limite. E, embora não tenhamos um estudo comparativo que permi-
tisse o apontamento de semelhanças e distinções, o que percebemos aqui é que
o esgotamento do Estado social brasileiro é agravado pelo extrativismo estatal.
O que a crise econômica e política brasileira da segunda década nos demonstra
é não apenas o esgotamento da capacidade de atendimento social do Estado. É
o esgotamento da capacidade de as elites governamentais extraírem mais re-
cursos da sociedade para o sustento fisiológico. É esse fator adicional que aju-
da, inclusive, a explicar porque nosso gasto público é alto e o atendimento às
demandas, além da capacidade de investimentos, é baixa. Ou seja, apesar de já
termos esgotado a capacidade de extração de recursos da Sociedade, ainda
ficamos longe de atendê-la devidamente. Então, o Estado brasileiro revela os
mesmos sintomas do esgotamento de qualquer Estado de bem estar. Entretan-
to, essa condição é associada ao fato de que recursos já insuficientes são utili-
zados para a manutenção dos privilégios incessantes das elites extrativistas.

323
Na perspectiva de interdependência, reconheça-se: não há bem estar so-
cial sem desenvolvimento e a recíproca é verdadeira. Nas últimas três décadas,
essa recíproca, qual seja, a de que o bem estar também é fundamental ao de-
senvolvimento, orientou e ou justificou a formulação da maioria das políticas
públicas. Mas criou um cenário de distribuição “dissipativa”, englobando mui-
tos benefícios espalhados e beneficiados ocultos. Propiciou, como vimos, um
ambiente muito propício aos rent seekings, ou seja, expandiu o poder dos extra-
tivistas e aumentou o seu número. Mas isso foi gerado sem a devida corres-
pondência da capacidade produtiva e, ao extrair mais recursos da Sociedade
produtiva, o Estado a tornou menos produtiva. Sabemos que a materialização
do bem estar depende permanentemente da capacidade nacional de produção
dos recursos a serem distribuídos. É um dilema econômico. No caso brasileiro,
isso não ocorreu de forma equilibrada, ou seja, avançamos na assistência, por
meio da expansão do extrativismo governamental, mas comprometemos a
própria fonte geradora desses recursos, isto é, a economia produtiva.
E nesse processo extrativista, inflado pela própria Constituição e potenci-
ado no último período das vacas gordas dos preços das commodities, aumen-
tamos a causa do problema, ao invés de ataca-lo. Nesse sentido, temos que
admitir que não há saída sustentável no caso brasileiro, se não limitarmos o
extrativismo estatal. Daqui em diante, não devemos mais contar com as com-
modities, nem com o aumento dos tributos. E precisa ficar claro, por extensão,
que também não deveríamos permitir que as elites extrativistas sejam susten-
tadas através do aumento do endividamento público. Com o endividamento do
País, por meio da emissão de títulos e da captação de recursos no sistema fi-
nanceiro para o financiamento do gasto público, aumentamos a riqueza dos
rentistas e endividamos as gerações futuras. Quanto tempo será necessário até
que a Sociedade o perceba de maneira límpida? Quanta retórica ainda será
eficiente, utilizada pela grande corporação do estamento burocrático brasileiro
na defesa de seus interesses, impedindo a Sociedade de compreender que o
algoz é quem oferece proteção?
Nessa direção, é possível compreender e reconhecer as dificuldades de
promover reformas no Estado brasileiro capazes de conter o extrativismo esta-
tal. Tais dificuldades são ainda maiores quando carecem da legitimidade moral
do governante de plantão que as propõe. É o caso do governo de Michel Temer
que, conquanto se dissesse empenhado em atacar o Estado paquidérmico, faz
parte de suas entranhas. Reformas como a PEC 241 30 e da previdência social
seriam importantes pontos de partida, mas moralmente ilegítimas por mante-
rem os privilégios das elites extrativistas. Nessa grande corporação estatal,

30
Projeto de Emenda Constitucional – PEC 241, depois transformada em PEC 55, foi aprovada em
dezembro de 2016 com o objetivo de conter a trajetória de crescentes gastos públicos durante 20 anos
para o equilíbrio fiscal.

324
ainda que distintas sejam as posições de poder e privilégios intra-corporativos,
o discurso é unívoco contra as mudanças. Quem tem mais poder, defende os
segmentos que tem menos poder, que devolvem com a reciprocidade necessá-
ria, afim de que a cumplicidade resista aos ventos das mudanças republicanas.
Nessa situação paradoxal, quem resiste às mudanças tem certo grau de legiti-
midade moral, enquanto quem as propõe dela se ressente. E, ainda que parte
da corporação perca, o extrativismo estatal sobrevive, antitético à modernida-
de, como fenômeno da história brasileira.
Amparado na sociologia histórica brasileira, é possível mostrar logica e
empiricamente que o estamento burocrático, formado ainda no Império, atra-
vessou séculos e se constituiu num fim em si próprio. E reconheça-se que essa
travessia foi marcada por importantes mudanças, ora avanços, ora retrocessos,
mas que ao final expandiram as três esferas dos direitos, os civis, os políticos e
os sociais. Nem é preciso concordar com a perspectiva sociológica do “progres-
so”, mas reconhecer que esse movimento histórico exigiu, o que é aceitável, a
expansão do Estado de direito. E, ao largo dessa expansão histórica, muitos
agentes oscilaram entre perdas e ganhos, mas, no fim, o extrativismo do esta-
mento burocrático se manteve. O Brasil continua preso ao extrativismo estatal
e ao patrimonialismo, na devastadora confluência entre o público e o privado,
que endivida a Sociedade e compromete as gerações futuras. Por essa razão, as
ciências sociais brasileiras deveriam começar a levar a sério a maior crítica do
liberalismo econômico, qual seja, a de que o nosso desenvolvimento nacional
não depende de mais e sim de menos Estado. Como desarma-lo, sociólogos, por
falta de raciocínio nessa direção, não aprendemos a fazer ideia. Assim, seria
útil buscar o auxílio de economistas.

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326
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http://www.clp.org.br/Show/Por-que-os-juros-sao-altos-no-Brasil-
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http://super.abril.com.br/comportamento/a-maldicao-do-petroleo
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http://blog.estadaodados.com/veja-quais-estados-tem-mais-e-melhores-funcionarios-
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http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/n-de-servidores-publicos-municipais-
subiu-667-em-13-anos-diz-ibge.html
http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/brasil/governo-brasileiro-tem-80-mais-
cargos-comissionados-que-o-frances-e-67-mais-que-o-americano-confira-numeros/
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/2/14/brasil/26.html
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segundo-raymundo-faoro.html
http://exame.abril.com.br/rede-de-blogs/risco-politico-
global/2015/02/26/patrimonialismo-o-desafio-politico/
http://luizflaviogomes.com/renan-e-juca-serao-presos-pelo-fim-do-brasil-cleptocrata-
arcaico-corrupto-extrativista-e-patrimonialista/

327
ANEXO I

ÁLVARO VIEIRA PINTO: O INTELECTUAL QUE NÃO


TEVE MEDO DE SER FILÓSOFO

Dr. José Ernesto de Fáveri31

TRAJETÓRIA DE VIDA
 Nasceu: Rio de Janeiro
 Filho de: Carlos Maya Vieira Pinto e Arminda Borges Vieira Pinto.
 A família era composta de dois irmãos e uma irmã: Ernani, Arnaldo e
Laura.
 Apenas Arnaldo teve dois filhos: Mariza e Marcelo. A descendência da
família do intelectual quase desapareceu.
 Todos estudaram no colégio Santo Inácio.
 Em 12 de junho de 1964, casou-se com Maria Aparecida Fernandes,
(secretária do ISEB).
 Em 1964 os meios de comunicação, a Rede Globo, desencadearam uma
campanha massiva para difamar o ISEB, considera-o uma entidade
subversiva e comunista.
 Durante o golpe assumiu a direção do ISEB, e no mesmo ano, obrigou-
se a pedir exílio na Iugoslávia.
 A personalidade de Álvaro Vieira Pinto era marcada pela introspecti-
vidade, desde a infância até na sua intensa atividade intelectual.
 Um intelectual coerente e ético: dedicou-se a pensar um projeto de de-
senvolvimento nacional autônomo e soberano para o Brasil.

O PENSAMENTO DE ALVARO VIEIRA PINTO ATRAVÉS DAS OBRAS


Duas Observações:

1. A proposta filosófica de AVP desencadeou a perseguição e o exílio.


2. Deixou um vasto legado intelectual, um conjunto de obras, algumas
publicadas, outras, ainda, inéditas.

31 Natural de Cocal do Sul (SC). Graduado em Filosofia e Pedagogia, especialização Orientação


educacional, Mestrado em Educação: Ensino Superior (FURB), doutorado na área da Educação
(UFSCar).

328
I ETAPA
A ORIGEM DA ATIVIDADE INTELECTUAL:

Obra inédita, produzida em


1949, composta por 803 páginas,
citações em grego;
AVP apresentou este ensaio à
banca para obter o título de pro-
fessor catedrático;
Foi resgatado com o ex-aluno
de Álvaro: Jader de Medeiros Brit-
to;
Defende a tese de que a teoria
da inércia já estava contida no
Timeu de Platão (Ver Legado
p.160)

Volume I: setembro e outubro de


1960,
438 páginas
Editado: MEC/ISEB

329
O QUE TRATA A OBRA?

O Vol. 1 aborda a teoria da consciência Ingênua e as características. “A


consciência Ingênua é, por essência, aquela que não tem compreensão dos
fatores e condições que a determina” (p. 83)

Volume II: junho de 1961


639 páginas
Editado: MEC/ISEB

O Vol. 2 aborda a teoria da consciência Crítica/as categorias. “A Consciên-


cia Crítica é, por essência, aquela que tem clara consciência dos fatores e con-
dições que a determina” (Ibidem).
Esta obra V.1 e V.2, fundamentalmente, inspira Paulo Freire a escrever,
Pedagogia do oprimido, Educação e mudança usando as categorias: totalidade,
atividade, liberdade e a nacionalidade

Origem: Conferência em
Belo Horizonte na UNE
Produzida: 1962
102 páginas.
Editora: Cortez

330
A essência da reforma universitária, reside que ela se constitui em “uma
peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe dominante exerce o
controle social, particularmente no terreno ideológico, sobre a totalidade do
país” [...] sua reforma é política e não pedagógica. O pedagógico é secundário, o
mais fundamental de tudo é o político que aponta a finalidade da universidade
na participação do projeto de transformação social. (p. 19)

Produzida no ano de 1962,


composta por 118 páginas
Editora: Civilização
Brasileira

Aborda que a essência do ser humano: é concreta e deve ser concebida


como capacidade operativa do homem sobre o real pelo trabalho que simulta-
neamente constitui o poder de ideação do homem. É na relação objetiva do
trabalho que o ser humano produz a existência. Produzir a existência é superar
as condições socioeconômicas subdesenvolvidas do ser humano, no plano
individual e coletivo.

II ETAPA: O EXÍLIO

Houve uma significativa queda na produção filosófica. O exílio foi o pior


etapa de sua vida. Em 1963: assumiu a direção do ISEB, e em seguida, foi exila-
do. Durante o exílio produz duas obras:

331
Primeiro Título:
“O MÉTODO CIENTÍFICO”

- Produzida: 1966 com 537 pági-


nas (Chile)
- Publicado: 1969 no Brasil
- Editora: Paz e Terra
- Trata: Os problemas filosóficos
da pesquisa científica:
1- A questão do conhecimento;
2- Teoria da Cultura;
3- Conceito e finalidade na teoria
da ciência;
4- O papel da prática na pesquisa
científica;
5- O caráter social da ciência
etc...

Produzido no Chile, ainda


inédito no Brasil;
Publicado em espanhol;
Editora: CELAD (Centro de
Estudos Latino Americano de
Demografia), em 1973;
Álvaro Vieira Pinto ficou 10 anos
exilado: (1963-1973);

332
III ETAPA:
AS OBRAS CONTEMPORÂNEAS E OS INÉDITOS

Compreende o período de 1973 até sua morte. A primeira atividade


após o retorno do exílio foi atuar na Editora Vozes como tradutor. Retoma
produção de suas obras.

Publicada em 1982, 118 páginas. 9. ed. e 14.


Ed. Organizadores: Demerval Saviani e Bety Antunes de Oliveira
Editora: Cortez

Produzida em 1974 e consta no


manuscrito que no dia 27/01/1975
encerra esta produção de 430 pági-
nas
Organizador: José Ernesto de
Fáveri
Editora: Contraponto
Ano da publicação: 2008

333
O QUE TRATA?

A prática metódica desenvolvida para ocultação dos fundamentos social


do “vale de lágrimas” através das disciplinas científicas, forjadas institucional-
mente por especialistas que as consome, e, diversas áreas do saber a serviço da
ocultação da realidade do país subdesenvolvido.

Produzido em 1975 volume I: 531 p. volume II: 794 p. 1.325 páginas


Ed. Contraponto - Ano de Publicação: 2005

ESCRITOS AINDA INÉDITOS


 A Educação para Um País Oprimido;
 Considerações Éticas para um Povo Oprimido;
 Crítica à Existência;

334
Aborda algumas categorias filosóficas
da educação nacionalista libertadora;
Editora: LiberArs
Ano de Publicação: 2014
N. páginas: 258
Prefácio: Demerval Saviani

O QUE TRATA?
Depoimentos sobre Álvaro Vieira Pinto
Editora Nova Letra
Ano de Publicação 2014
247 Páginas

335
OBRA RESULTADO DE UMA PRODUÇÃO COLETIVA

336

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