Вы находитесь на странице: 1из 309

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/282218940

[Livro] Abordagem Clássica das Relações Internacionais

Book · October 2011

CITATIONS READS

0 2,175

1 author:

Raphael Spode
Centro Universitário de Brasília
9 PUBLICATIONS   0 CITATIONS   

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Raphael Spode on 27 September 2015.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


ABORDAGEM CLÁSSICA DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
RAPHAEL SPODE
GABRIEL GELLER XAVIER
Organizadores

ABORDAGEM CLÁSSICA DAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Colaboradores

ANDRÉ VINICIUS TSCHUMI


CONRADO DA SILVEIRA FREZZA
EIITI SATO
FREDERICO SEIXAS DIAS
MARCELO ALVES

Apresentamos a nova assinatura do Grupo Conceito, união das


capacidades e competências da editora Conceito Editorial e da
Editora Modelo para fazer ainda mais por todo mercado editorial.
São Paulo - 2012
Editora CONCEITO EDITORIAL
Presidente Conselho Editorial Assistente Editorial
Salézio Costa André Maia José Antônio Peres Gediel Rosimari Ouriques
Adriana Mildart José Antônio Savaris
Editora Chefe Aline de C. M. Maia Liberato Lenio Luiz Streck Diagramação
Maria Raquel Duarte Carlos Alberto P. de Castro Marcelo Alkmim Jonny M. Prochnow
Editores Cesar Luiz Pasold Martonio Mont´Alverne B. Lima
Orides Mezzaroba Diego Araujo Campos Michel Mascarenhas
Valdemar P. da Luz Edson Luiz Barbosa Renata Elaine Silva
Fauzi Hassan Choukr Samantha Ribeiro Meyer Pflug
Jacinto Coutinho Sérgio Ricardo F. de Aquino
Jerson Gonçalves C. Junior Theodoro Vicente Agostinho
João Batista Lazzari Vicente Barreto
Jonas Machado Ramos Wagner Balera

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898

X000

Xxx – São Paulo: Conceito Editorial, 2012.


000p.

ISBN 978-85-7874-000-0

1. Xxx  2. Xxx  3. Xxx  4. Xxx 


I. Xxx  II. Xxx

XXX – 000

Data de fechamento: 15 de outubro de 2011.

Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo. A violação dos direitos autorais é punível
como crime, previsto no Código Penal e na Lei de direitos autorais (Lei nº 9.610, de 19.02.1998).
© Copyright 2012 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Editora CONCEITO EDITORIAL


Rua Barão de Jaguara, 194 - Mooca, CEP 03105-120 - São Paulo/SP
Fone (11) 3105-0573 / 3104-9774
www.conceitojur.com.br

Comercial – comercial@conceitojur.com.br
Divulgação – divulgacaosp@conceitojur.com.br
Editorial – editorial@conceitojur.com.br
Representante – vendas@conceitojur.com.br
Sumário
Apresentação.....................................................................................................
Introdução
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a
dimensão prática das teorias
Eiiti Sato............................................................................................................
Abordagem Clássica
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA
TRAGÉDIA GREGA: os dilemas da política em As Suplicantes, de
Ésquilo
Marcelo Alves...................................................................................................
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio
Gabriel Geller Xavier......................................................................................
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)
Raphael Spode..................................................................................................
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO
CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA
Conrado da Silveira Frezza............................................................................
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE
JURÍDICA DOS ESTADOS
André Vinicius Tschumi.................................................................................
“Novas Abordagens”
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em
relações internacionais no século XXI
Frederico Seixas Dias......................................................................................
Apresentação

Muito embora no Brasil se comece a produzir conhecimento aca-


dêmico em Relações Internacionais, e as traduções do IPRI com a FU-
NAG tenham impulsionado a produção e a atividade teórica no campo,
ainda muito pouco tem se produzido no âmbito da Teoria das Relações
Internacionais. Por um lado, é bem verdade que os manuais publicados
nos últimos anos prepararam a base reflexiva e pedagógica da teoria,
tanto é assim que os estudantes têm adquirido os seus handbooks na
tentativa de formar uma visão geral sobre as matrizes teóricas com as
quais se depararão e farão uso ao longo de suas trajetórias acadêmicas.
Entretanto, de outro lado, é indispensável que o saber do manual – o
saber descritivo –, seja acompanhado de um movimento de reflexão crí-
tica das teorias abordadas nele e de sua contextualização histórica.
Não há como negar que toda área de conhecimento tem por seus
pilares as matrizes teóricas a partir das quais se constituíram e se desen-
volveram. Não é diferente com as Relações Internacionais, que teve em
sua gênese, como área do conhecimento, duas correntes teóricas que
amparam e viabilizam a interpretação e compreensão da realidade inter-
nacional: o Realismo e o Idealismo. Esses dois paradigmas ofereceram,
no início da disciplina, e continuam a oferecer – apesar de concorrerem
com outras matrizes – elementos, ferramentas e um savoir faire necessá-
rio para que o estudante, o pesquisador e o profissional possam melhor
compreender a realidade e interpretá-la. Assim a teoria apresenta abor-
dagens para que o profissional e o pesquisador analisem e interajam, de
forma mais eficaz possível, com o objeto com o qual operam. E ao tratar
com o objeto, tanto aquele que o estuda, quanto aquele que opera com
ele sempre estão imbuídos de uma perspectiva – ainda que, por vezes,
ignorem qual seja ela. Desse modo, a importância de se estudar a teoria
se dá na medida em que é somente por meio desse estudo que o profis-

7
sional e o estudante poderão entrar em contato com os pressupostos da
disciplina e com as diferentes formas de abordá-la. É por isso que urge
no país uma rotina de estudos aprofundados em Teoria das Relações
Internacionais, com vistas a oferecer para aqueles que atuam na área um
conhecimento maior da abordagem com a qual operam, bem como, das
demais abordagens existentes e que podem ser uma alternativa melhor
de interpretar e interagir com o sistema internacional.
Neste contexto, o pesquisador em Relações Internacionais ganha
notável destaque, pois é ele que deve, com certa habilidade, tratar com
as forças que compõem o grande campo teórico da disciplina. Neste
livro, apresentamos textos que se amparam numa abordagem clássica
das Relações Internacionais, como bem nota Hedley Bull, uma aborda-
gem que propõe o resgate das tradições e instituições humanas e que é
responsável pela criação da disciplina. Por certo que a abordagem clás-
sica parece ter se ausentado um tanto do rol de discussões das Relações
Internacionais em detrimento do movimento que podemos chamar de
“contemporâneo”, por se afinar com um conjunto de questões e pro-
blemas positivistas e pós-positivistas. Embora a abordagem a maneira
clássica, pareça um tanto alheia ao modo como os temas tem sido apre-
sentados no âmbito da teoria, certamente, os problemas da qual se en-
carrega tal abordagem não se ausentaram, pois são questões universais
que podem ser encontradas em diferentes momentos históricos e que
circundam e circundarão por muito tempo as Relações Internacionais,
posto se tratarem de questões humanas.
As diferenças entre esses dois modos operar com a disciplina, a
saber, a abordagem clássica e as abordagens contemporâneas positivis-
tas e pós-positivistas, ficam bastante evidentes no debate metodológico
protagonizado por Hedley Bull e Morton Kaplan em meados do século
XX. Os dois – e com eles tradições distintas de pensamento – postula-
vam existir maneiras diversas de se constituir o conhecimento teórico
em Relações Internacionais, o que tinha consequências relativamente
sérias ao que se refere ao mundo acadêmico e ao prático. Os classicis-
tas, defendidos por Bull, propunham um retorno aos textos clássicos
da filosofia política, e uma leitura apurada da história, de modo que
pudéssemos fazer o resgate interpretativo das instituições humanas. No
auge do debate, seu preceptor, Martin Wight, sugere em Why is there
no international theory? uma certa impossibilidade de termos as teo-
8
rias do modo como os cientistas americanos pretendiam constituí-las,
por uma razão: porque o campo das Relações Internacionais se dedica
ao estudo de um domínio humano, composto por dúvidas, incertezas,
entregue às escolhas individuais e coletivas, e que, portanto, é incapaz
de ser estudado pela matemática e previsto pelos modelos científicos
behavioristas. Há, contudo, um modo de estudar este domínio, diz Wi-
ght, e esse modo é conhecido como a abordagem clássica descrita por
Bull durante o seu embate acadêmico com Kaplan. Essa abordagem pre-
tende um resgate das tradições de pensamento e das instituições, assim
como da estrutura histórica que constituiu essas tradições e instituições,
para a compreensão da sociedade internacional. Foi exatamente dentro
dessa perspectiva que reunimos os textos ora apresentados no livro. Na
tentativa de, através de uma perspectiva histórica e filosófica, resgatar
valores, instituições e práticas políticas de modo a mostrar como esse
conjunto de instituições, valores e práticas permanecem presentes na
sociedade internacional. Talvez mais do que isso, os textos aqui reu-
nidos manifestam a possibilidade de, a partir do resgate da tradição,
apresentar aspectos políticos fundamentais para a compreensão das Re-
lações Internacionais e que uma abordagem desse tipo oferece e enri-
quece muito àquele que pretende investigar a sociedade internacional.
Pelo livro ser, basicamente, composto de artigos que resgatam algumas
tradições clássicas do pensamento abrangendo a perspectiva histórica
da chamada Escola Inglesa é que o denominamos de abordagem clássica
das Relações Internacionais.
Evidente é que esse modo de abordagem sofreu severos ataques
daqueles que perseveravam em pesquisas aliadas ao desenvolvimento
científico que se seguiu a Segunda Grande Guerra, expressão disso são
as objeções de Kaplan a perspectiva clássica da Escola Inglesa. Este te-
órico aponta a necessidade de se implementar um estudo que analise, a
partir de métodos mais rigorosos, pontuais e exatos, o sistema interna-
cional e que este, por sua vez, é composto de sistemas particulares que
necessitam de teorias específicas. De acordo com a perspectiva positi-
vista/pós-positivista – e contra a objeção de Wight de que a política in-
ternacional é um domínio de saber humano que não pode ser estudado
por métodos das ciências naturais ­­– Kaplan defende que é um equívoco
dos classissistas da Escola Inglesa a separação entre o âmbito físico e o
humano, entre as ciências naturais e a política. Essa separação se dava
9
na antiguidade quando a ciência tratava do domínio da natureza e a arte
do domínio da intuição humana. Contudo, a ciência moderna perse-
vera no caráter hipotético/intuitivo de toda investigação que forma o
conhecimento empírico, e por isso, não faria mais sentido a objeção dos
tradicionalistas ingleses contra o modelo científico de abordagem das
Relações Internacionais. A argumentação de Kaplan quer mostrar que a
maioria dos sistemas estudados no âmbito da política internacional po-
dem ser examinados por métodos científicos, não necessariamente pelos
métodos da física – que com suas equações pecam no poder explicativo
– mas algumas teorias matemáticas, como a dos conjuntos, podem vir
a auxiliar na formação de abordagens do sistema internacional, como a
teoria dos jogos; também métodos advindos da economia, como a teoria
da escolha racional. Estas são apenas duas das inúmeras abordagens de
cunho científico que surgiram na segunda metade do século XX. Aliás,
as perspectivas que começaram a surgir neste período para abordar pro-
blemas e compreender sob distintas visadas as Relações Internacionais
são várias e não cessam de surgir. Por esse motivo, incluímos o texto do
professor Frederico Seixas Dias que lança perspectivas para o estudo da
disciplina nesse cenário composto por múltiplas teorias.

Gostaríamos de registrar o importante papel que o curso de Re-
lações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí representou na
constituição desse livro. A maior parte dos artigos presentes nessa cole-
tânea foram elaborados por alunos e professores dessa instituição. A obra
é quase toda composta por artigos que resultam dos anos dedicados à
pesquisa e a orientação sempre exigente e presente do professor Marcelo
Alves, a quem gostaríamos de expressar nossa profunda gratidão.
De forma alguma poderíamos deixa de agradecer àqueles que nos
auxiliaram tão gentil e generosamente a tornar efetivo esse trabalho. Em
primeiro lugar a Fundação de Apoio à Pesquisa Científica do Estado de
Santa Catarina que viabilizou financeiramente meios para que esse tra-
balho pudesse ser concretizado. Em segundo lugar, mas tão importante
quanto, foram os autores dos artigos que compõem essa coletânea. Tam-
bém gostaríamos de agradecer ao nosso professor Marcelo Alves por
nos acompanhar nesta publicação, dando úteis conselhos e sugestões
muito eficazes. Não podemos deixar de mencionar a participação gene-
rosa e especial do professor Eiiti Sato, que tão solicitamente nos agraciou

10
com a introdução do livro. Por fim, queremos deixar expressa a nossa
gratidão a todos aqueles que viabilizaram e nos ajudaram a realizar esse
projeto, especialmente à professora Karine de Souza Silva que sustentou
o pleito junto a agencia de fomento, socorreu o projeto nos momentos
cruciais e garantiu que o recurso pudesse ser destinado ao financiamen-
to das duas publicações em Relações Internacionais: esta coletânea que
ora apresentamos, e também a obra Mercosul e União Europeia: o estado
da arte dos processos de integração regional, organizada pela mesma e
publicada pela editora Modelo. A todos esses fica o nosso agradecimen-
to, e aos leitores os votos de uma boa experiência com o livro.

Raphael Spode
Gabriel Geller Xavier

11
Introdução
RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
a reflexão, o debate de ideias e a
dimensão prática das teorias1
Eiiti Sato2

Introdução
Em todos os campos do conhecimento há momentos em que o
homem se depara com fatos e fenômenos para os quais não dispõe de
explicações. À época da peste negra, no século XIV, inúmeras explica-
ções baseadas em dogmas de fé e em crendices eram oferecidas para
as origens da peste assim como para sua cura. Também era motivo de
espanto o fenômeno do fogo fátuo cuja freqüência deve ter aumentado
com a enorme quantidade de corpos enterrados em valas comuns. A
precariedade dos conhecimentos de física, química e biologia não per-
mitia, à época, que se elaborassem teorias capazes de explicar de ma-
neira plausível esses fenômenos estranhos, mas visivelmente presentes e
associados a acontecimentos trágicos. O fato é que o desconhecimento
fazia disseminar um sentimento de temor e de impotência gerando rea-
ções que iam desde explicações fantasiosas até acusações e perseguições
a grupos considerados culpados por atrair a ira dos céus por seus pre-

1  Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada como texto de discussão para o seminário
organizado pelo Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais - IPRI em abril de 2005, em
Brasília, e depois publicado na Revista de Economia & Relações Internacionais (vol. 5, no. 9, 2006).
2  Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. E-mail para
contato: caputimperare@yahoo.com

15
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

sumidos pecados derivados de suas crenças malévolas. A modernidade,


ao trazer o moderno espírito científico, trouxe também maneiras novas
encarar o desconhecido.
Nas ciências que tratam dos fenômenos relacionados com o ho-
mem e seu comportamento, de sua vida em sociedade, também houve,
na modernidade, uma série de desenvolvimentos que mudaram subs-
tancialmente não apenas sua forma de ver o mundo, mas trouxeram
também novos elementos que transformaram, por vezes de maneira
bastante radical, sua maneira de viver e de se relacionar com outros se-
res humanos. Com efeito, processos como o da revolução industrial ou,
mais recentemente, o desenvolvimento de sistemas de comunicação e
processamento de dados e da farmacologia, alteraram profundamente
os padrões da existência humana sob todos os aspectos. A urbanização,
o aumento da longevidade, os novos padrões nas relações de gênero e
a intensificação das transações econômicas internacionais são algumas
das facetas mais visíveis desse mundo transformado. O fato é que em
todos os campos das chamadas ciências humanas e sociais, conceitos e
categorias analíticas têm surgido continuamente como parte do esfor-
ço de compreender adequadamente a realidade associada à convivência
humana nas suas mais variadas dimensões.
Diante desse quadro mais geral, o campo de estudo das relações
internacionais também tem se deparado com as dificuldades de apreen-
der os fenômenos na esfera internacional que emergem e que se trans-
formam continuamente. Tornou-se um verdadeiro truísmo afirmar que
muitos eventos importantes ocorridos no cenário internacional não têm
sido previstos pelos analistas de relações internacionais e que, conse-
qüentemente, também não têm sido adequadamente compreendidos
pelas autoridades e pela opinião pública em geral. Essa afirmação, no
entanto, deve ser vista com reserva. Por exemplo, pode ser que nenhum
destacado estudioso tenha afirmado peremptoriamente que a guerra fria
iria acabar em razão do colapso do bloco socialista, todavia, especialis-
tas como Paul Kennedy já haviam produzido reflexões que mostravam
que grandes potências estavam constantemente sujeitas ao declínio e
que havia sinais visíveis de que, na década de 1980, as grandes potên-
cias e a própria ordem internacional sofriam as pressões de um mundo
em transformação. Ao interpretar obras como a de Paul Kennedy, no
entanto, a maioria dos analistas estava mais preocupada em discutir a

16
Eiiti Sato

posição internacional dos Estados Unidos como grande potência do que


em observar o que acontecia com os fatores estruturais apontados por
Kennedy e que, na realidade, ameaçavam muito mais severamente a po-
sição da União Soviética.
Nos primórdios do século XX a ascensão dos Estados Unidos já
era uma realidade, no entanto, até mesmo depois da Primeira Guerra
Mundial, esse fato ainda era mal compreendido até mesmo pelos go-
vernantes e estudiosos. Um dos exemplos mais notáveis da percepção
pouco acurada ou mesmo equivocada desse fato foi o fracasso de Woo-
drow Wilson em convencer seus próprios compatriotas a respeito da
importância de uma instituição como a Liga das Nações. Entre os even-
tos recentes nas relações internacionais, talvez o mais significativo tenha
sido o fim da guerra fria. Por décadas, o entendimento de que havia
um mundo bipolar, dividido por esferas de influência dominadas por
duas superpotências constituiu-se em padrão fundamental aceito e dis-
seminado pelos principais centros de reflexão sobre a ordem mundial.
Embora houvessem manifestações de um ou outro estudioso que reve-
lasse inquietação com a inadequação do entendimento de que havia,
de fato, uma ordem bipolar, não se negava a existência desse padrão e
também não se considerava seriamente a hipótese de um mundo sem
a existência desse padrão. Assim, há inúmeros outros casos em que a
percepção de uma realidade em constante transformação é conduzida
mais pelo hábito ou, quem sabe, pela facilidade de explicar fenômenos
a partir de pressupostos (alguns diriam paradigmas) já aceitos de forma
corrente. Com certeza, uma observação mais atenta da evolução dos
acontecimentos no plano regional envolvendo, por exemplo, os impas-
ses no Mercosul, a situação na vizinha Colômbia, os desdobramentos da
presença de figuras controvertidas na política regional e o surgimento
de iniciativas de nações como o Brasil voltadas para a política mundial,
também podem apresentar equívocos semelhantes, embora não tão es-
petaculares, mas provavelmente mais decisivos para o futuro da região.
Além disso, diferentemente do que ocorre nas chamadas ciências natu-
rais, chama a atenção o fato de que pensar teoricamente nas chamadas
ciências humanas e sociais, há sempre um inevitável envolvimento entre
o pensador e o objeto de observação. A paz é algo para ser estudada,
mas é também um objetivo a ser buscado; uma recessão econômica in-
ternacional é um fenômeno para ser estudado e compreendido em suas

17
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

causas e conseqüências, mas evitá-la é a principal motivação que move


a opinião pública e os estudiosos.
Numa época em que as questões internacionais ganham espa-
ço nos veículos de comunicação como poucas vezes ocorreu no Bra-
sil, algumas perguntas são feitas insistentemente. O que é efetivamente
relevante para o Brasil na ordem externa? Que lugar o País ocupa, de
fato, na cena internacional? Há algum tipo de papel que lhe seria mais
apropriado? Que meios o País possui para desempenhar esse papel? Por
trás dessas questões, obviamente há sempre perguntas de cunho emi-
nentemente moral envolvendo valores e crenças muito difíceis de serem
discutidas em bases do que se costuma chamar de evidência científica:
Que mundo desejamos? Como torná-lo realidade?
Diante de perguntas como essas, as respostas dificilmente pode-
riam apresentar a clareza necessária para se tornarem universais como
ocorre nas ciências físicas. Assim, a questão de se dispor de uma ava-
liação mais precisa da ordem internacional e das forças que se movem
no substrato dos fatos, afigura-se como um imperativo mas, ao mesmo
tempo, chama a atenção para um dado crucial da realidade corrente:
nessa matéria fazer ciência é mais do que um problema de método, en-
volve também a atitude e os sentimentos morais da sociedade e dos pró-
prios estudiosos. À semelhança do que ocorreu em outras circunstân-
cias passadas quando alguma crise social importante estava em curso,
inevitavelmente continuamos a ser levados a retomar a velha discussão
acerca dos fundamentos do pensamento científico, mais precisamente
acerca dos aspectos que distinguem as chamadas ciências sociais das ci-
ências da natureza física. De um lado, a ansiedade em encontrar respos-
tas “corretas” e precisas e, de outro, o inevitável sentimento de angústia
diante de uma realidade que não nos satisfaz, continuam a dificultar
a construção de análises mais objetivas acerca do meio internacional.
Uma angústia que é, em diferentes medidas, compartilhada por todos os
campos das humanidades e das ciências sociais. De qualquer modo, um
dos papéis mais relevantes do estudo em bases científicas das relações
internacionais é o de proporcionar conhecimentos e fundamentos mais
sólidos de análise aos formuladores de políticas por meio da construção
de visões mais condizentes com a realidade acerca do contexto interna-
cional: quais são os atores e as forças mais relevantes? Como agem essas
forças? Quais seriam os padrões de comportamento mais prováveis dos

18
Eiiti Sato

atores? Até que ponto alianças e compromissos são efetivamente susten-


táveis? Quais seriam as tendências, as oportunidades e, eventualmente,
as ameaças mais reais observáveis na realidade em curso?
Um texto de Isaiah Berlin, extraído de Russian Thinkers,3 retrata
bem o sentimento de que um professor é tomado, por vezes, quando se
vê, por dever de ofício, diante da tarefa de tentar explicar os fenômenos
humanos. Diferentemente das chamadas ciências físicas, que são feitas
de leis e propriedades entendidas e aceitas universalmente, as ciências
que tratam do comportamento do homem e dos grupos humanos são
influenciadas pelas percepções daqueles que as estudam. Freqüente-
mente, o resultado é o sentimento de angústia derivado da impressão de
que a teoria não nos ajuda a conhecer e interpretar adequadamente os
fatos ou que, nas palavras de Leon Tolstoi em Guerra e Paz citadas por
Berlin, “ … a nova história é como um surdo, respondendo perguntas
que ninguém lhe formulou …”4 Refletir sobre esse sentimento parece
antigo e ultrapassado, que muitos pensadores já o fizeram com a devida
competência e que, portanto, seria apenas repetir um debate sobre um
tema desgastado. Todavia, o que se percebe é que essa discussão sem-
pre tem ganhado novo sentido quando ocorrem fatos suficientemente
significativos para levar ao questionamento das bases epistemológicas
de algum campo do conhecimento, ainda que não assumam a mesma
dramaticidade de casos cercados por controvérsias como o de Galileu
ou de Charles Darwin. Além do mais, parece uma ordem de reflexão
que deve ser retomada de tempos em tempos porque ajuda a precisar
melhor o foco das discussões sobre as questões correntes.
Essa reflexão serve como ponto de partida para discutir três as-
pectos cruciais da relação entre a prática da teorização e o mundo dos
fenômenos internacionais. O primeiro refere-se a um aspecto mais geral
e diz respeito à dificuldade natural de se produzir análises objetivas base-
adas em evidências genericamente denominadas de científicas quando se
é, ao mesmo tempo, agente e objeto do exercício de teorização. O segun-
do aspecto discutido neste ensaio é o da dificuldade de se construir mé-
todos universalmente aceitos para o estudo das relações internacionais e
o terceiro, que serve de motivação para esta reflexão, são os fracassos dos

3  I. Berlin, Russian Thinkers. The Hogarth Press, London, 1978.


4  I. Berlin, Russian Thinkers, p. 39.

19
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

analistas na avaliação do sentido e do significado de importantes trans-


formações ocorridas recentemente na ordem internacional.

O analista e o advogado nas Relações Internacionais


Na essência, o envolvimento do analista com o objeto de estudo,
a dificuldade de se produzir um verdadeiro paradigma científico para a
área e a observação de equívocos de avaliação constituem aspectos que
se fazem presentes não apenas no campo de estudo das relações interna-
cionais mas, em maior ou menor escala, em todas as chamadas ciências
sociais. Mesmo na economia, uma ciência onde muito mais facilmente
podem ser obtidos dados quantitativos em abundância, a prática da cons-
trução de modelos matemáticos tem sido objeto de muitas críticas que,
apesar de reconhecerem sua validade para muitos propósitos, expõem
suas limitações e não evitam a sucessão de avaliações equivocadas.5
A filosofia da ciência tem nessa questão um tema permanente
porque o debate sempre se renova a cada novo passo proporcionado
pela descoberta científica, especialmente naquelas áreas que mais de
perto podem afetar a vida do homem: produtos transgênicos, pesquisa
genética, armas de destruição em massa, energia renovável, mudança
climática, etc. Na década de 1950, a reflexão acerca da dicotomia entre
as ciências do homem e as ciências da natureza física ocupou a comuni-
dade científica principalmente em razão da emergência da era nuclear
que produzia uma visível dicotomia entre a incapacidade de se encon-
trar respostas seguras para os desejos de paz e de bem-estar diante dos
enormes progressos das ciências físicas. Nessa época, C. P. Snow pu-
blicou um ensaio a respeito do tema intitulado As Duas Culturas que,
sintomaticamente, foi logo seguido por outro intitulado Ciência e Go-
verno.6 Esses ensaios foram um produto de conferências que Snow havia

5  Antonio Maria da Silveira aponta as limitações das visões do pensamento econômico


predominante que, na busca de explicações pretensamente precisas, simplifica demasiadamente
a realidade econômica e o próprio ser humano e, como Frank Knight, sugere que muitas vezes
os literatos e os pensadores religiosos apreendem melhor a realidade do que os cientistas sociais
costumeiramente o fazem (SILVEIRA, A. M. da. Filosofia e Política Econômica: O Brasil do
Autoritarismo. Rio de Janeiro: PNPE/IPEA, 1992).
6  SNOW, C. P. The Two Cultures; e SNOW, C. P., Second Look. Cambridge University Press, 1959;
e SNOW, C. P. Science and Government. Harvard University Press, 1960. Há uma edição traduzida
para o português, que reúne as duas conferências, publicada em Portugal: SNOW, C. P., As Duas
Culturas. Publicações D. Quixote, Lisboa, 1965.

20
Eiiti Sato

proferido na Universidade de Cambridge e de Harvard onde discutia,


entre outras coisas, como era muito mais fácil produzir conhecimentos
científicos voltadas para a produção de armas atômicas e aprimorá-las
do que desenvolver meios para controlar os impulsos do homem que
as desenvolve e que pode empregá-las. Retomar essa discussão foge ao
propósito do presente trabalho, todavia, é importante considerar que
não é por acaso que a literatura científica internacional chama as ciên-
cias físicas de hard sciences e de soft sciences os ramos do conhecimento
que tratam dos fenômenos envolvendo o homem e suas infinitas formas
de viver em sociedade.
Quando consideramos esses fatos torna-se menos inquietante e
até mesmo mais natural admitir que o esforço de compreensão siste-
matizada das tendências mais relevantes da política internacional, dos
fluxos internacionais de bens, de fundos, de pessoas e da informação,
tem de enfrentar pelo menos três ordens de dificuldades. A primeira
dificuldade é que a maioria das pessoas tem opiniões fortes a respeito
dessa realidade e, por mais que o seu conhecimento sobre essa realidade
seja limitado, tende a sentir-se frustrada se suas opiniões não são, de
algum modo, confirmadas pela explicação oferecida pela análise feita
com o uso da teoria e das evidências. Todos acreditam estar livres de
quaisquer preconceitos, muito embora a grande maioria seja comple-
tamente refratária a argumentos que contrariem suas opiniões. Quan-
do se trata de questões como velocidade inercial, perda de massa ou
transmissão de calor, ninguém é a favor ou contra o comportamento do
fenômeno estudado, apenas conhece ou não conhece esse fenômeno e
os elementos que o compõem: não apóia ou desaprova o papel da velo-
cidade inercial na mudança de trajetória de um corpo em movimento e
nem está a favor ou contra o fato de que uma chapa de metal transmite
calor com mais facilidade do que um bloco de madeira. Nas ciências so-
ciais em geral ocorre o contrário. Diante de uma afirmação incômoda, a
maioria tende a se comportar como o advogado que, independentemen-
te da força das evidências, entende que deve sempre levantar dúvidas
e se contrapor a argumentos que sustentam e reforçam a culpa de seu
cliente. Por mais paradoxal que possa ser, essa atitude geralmente tem
sua origem no sentimento de que se deve agir dessa forma “por dever
de consciência”. A famosa assertiva de Maquiavel sobre a “verdade efeti-
va das coisas” foi, provavelmente, uma das principais fontes de rejeição

21
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

de seu pensamento uma vez que a realidade, com freqüência bem mais
complicada e mais cruel do que gostaríamos, se apresenta em desacordo
com aquilo que desejamos que fosse. É o que pode, em grande parte,
explicar porque as ciências sociais são caracterizadas por “debates teóri-
cos”, muito mais do que por teorias e paradigmas. No extremo, estão as
ideologias que constituem respostas prontas às quais as evidências de-
vem se ajustar. Numa analogia com o corpo humano, Mark Twain dizia
que “... as evidências são os ossos de uma opinião, sem os quais ela não
se sustentará”7 essa deve ser uma máxima a ser perseguida pelo cientis-
ta, pelo pensador, mas sempre há as ideologias e os preconceitos que se
alinham geralmente com o entendimento corrente e que tornam difícil
a aceitação e a adequada interpretação de evidências incômodas.
A segunda ordem de dificuldades – uma espécie de imagem
complementar da primeira – deriva do fato de que faz parte da crença
corrente achar que o conhecimento da verdadeira realidade consiste na
simples enumeração de eventos e das ações dos agentes neles envolvi-
dos. Ou seja, tal como apontado por Isaiah Berlin, é comum entender
que procurar no substrato dos fatos possíveis relações e encadeamentos
lógicos é apenas um exercício de erudição e de argumentação estéril,
sendo popular, mesmo entre pessoas instruídas, o entendimento de que
existe uma clara dicotomia entre a teoria e a prática. Esse entendimento
é que sustenta a crença bastante difundida de que o indivíduo sensa-
to e que realmente “sabe” o que ocorre na realidade seria aquele que
tem conhecimento de fatos e acontecimentos e não “perde tempo” com
construções intelectuais abstratas e fúteis sobre relações de causa e efei-
to, sobre influências ou forças subjacentes aos fatos visíveis. Em outras
palavras, o verdadeiro estudioso deveria simplesmente registrar os fe-
nômenos empiricamente observados. Tal atitude, retratada na angústia
de Isaiah Berlin, logicamente elimina a possibilidade de ver qualquer
utilidade na teoria, limitando o entendimento das questões sociais, en-
tre elas a guerra e a paz, a ações imprudentes de governantes, a variações
observadas nos fluxos de comércio, ao jogo de interesses ou a movi-
mentos sociais desagregadores. Assim, segundo esse entendimento, a
adequada compreensão dos fenômenos sociais decorreria da simples
enumeração de fatos e de ações conduzidas por indivíduos ou coletivi-
dades. O entendimento é que os fatos simplesmente vão se sucedendo e

7  TWAIN, Mark. Joana d’Arc. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. p. 35.

22
Eiiti Sato

as relações entre eles limitam-se a feitos, omissões ou reações dos atores


envolvidos, da mesma forma que um jurista de visão pouco profunda –
geralmente tido como prático e experiente – entende que o que justifica
uma norma é simplesmente outra norma, atribuindo a uma disciplina
como Filosofia do Direito um papel irrelevante ou, pior, vendo nessa
disciplina apenas um adorno cujo único propósito é o de servir para
aumentar o efeito retórico de suas alegações.
Todo estudioso, obviamente, deve ter conhecimento dos fatos
correntes e dos fatos passados mais relevantes atinentes ao seu campo
de estudo. Os fatos da política internacional dos quais tomamos conhe-
cimento por meio do noticiário ou de dados coletados por entidades
nacionais e internacionais formam em conjunto o que podemos cha-
mar de cena internacional. Uma conferência sobre questões ambien-
tais, um conflito em curso, o encontro entre os presidentes dos países
de uma região ou o comportamento das bolsas de valores constituem
fatos que, tipicamente, um estudioso das questões internacionais pre-
cisa estar acompanhando. Apesar de tudo, para o estudioso, acompa-
nhar esses acontecimentos, embora importantes, não pode ser seu foco.
Acompanhar e relatar fatos constitui, na verdade, o principal foco da
atividade do jornalismo em seu sentido amplo. Ao estudioso de rela-
ções internacionais o principal foco está na interpretação do sentido e
das implicações decorrentes dos fatos visíveis em dados ou em imagens
transmitidas pelos noticiários. Pode-se pensar na questão como uma
espécie de jogo de “lego”: os acontecimentos, os fatos, os dados contidos
em relatórios seriam como peças de “lego” postas em uma caixa, mas
a capacidade de reunir essas peças formando figuras vai depender de
recursos teóricos que permitam interpretar o significado e as conexões
possíveis das peças. Quanto maior for o número de peças de “lego” dis-
poníveis maiores serão as possibilidades de formatos e de dimensões
das figuras a serem formadas, mas a formação das figuras sempre vai de-
pender da capacidade de se compreender e interpretar adequadamente
as conexões e suas possibilidades. Se as peças de “lego” forem diferen-
tes nas suas dimensões, nas cores e nos encaixes, os recursos teóricos
necessários também serão muito mais complexos para uma adequada
percepção do potencial de figuras passíveis de serem formadas com
as peças disponíveis. Em suma, os fatos e os acontecimentos somente
podem ser adequadamente percebidos em seus significados, formando

23
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

visões inteligentes e coerentes acerca do mundo se forem organizados


a partir de teorias que reduzam, ou eliminem, a ocorrência de evidên-
cias que não se encaixam no grande “lego” da política internacional. Na
busca de interpretações sobre a realidade internacional não é incomum
desconsiderar evidências com o intuito de ajustar os fatos a visões ba-
seadas em ideologias ou em teorias com limitado poder de explicação.
Seguindo a metáfora, seria como montar uma figura com peças de lego
que, apesar de interessante, deixou de lado várias peças de lego que não
se encaixaram na figura.
A terceira ordem de dificuldades, operando como uma espécie
de contrapartida da academia às duas primeiras, refere-se ao fato de
que a teoria geralmente é ensinada como construções dissociadas ou
que independem da realidade. Por mais absurdo que possa parecer,
esse comportamento é mais freqüente do que se poderia esperar. É in-
teressante notar que, mesmo nas chamadas hard sciences, essa atitude
não é incomum. Richard Feynman, que foi prêmio nobel de física em
1965, e que ficou no Brasil ao longo de vários meses acompanhando
o ensino e a pesquisa em física avançada no País ao tempo em que o
CNPq se consolidava, observara essa dificuldade. Numa crônica bem
humorada, Feynman relata que sua interação com a comunidade cien-
tífica brasileira revelara muitas coisas interessantes e estimulantes mas
revelara também problemas, entre os quais o fato de que “os professores
não sabem ensinar”, apesar dos estudantes estudarem tanto quanto nos
Estados Unidos, seu país de origem.8 Esse problema, escreve Feynman,
aparecia de modo particularmente visível quando os alunos eram desa-
fiados a empregar os recursos oferecidos pela teoria para explicar algum
fenômeno da realidade. Para ilustrar essa percepção, Feynman relata o
caso de uma aula ministrada por ele a alunos de Física da Universidade
Federal do Rio Janeiro. A aula versava sobre luz polarizada e os alunos
revelavam conhecer muito bem a matéria (isto é a teoria), respondendo
prontamente a quaisquer perguntas sobre conceitos como o significado
do ângulo de Brewster e de outras noções complexas e importantes para
o entendimento do fenômeno da polarização da luz. Apesar de revela-
rem essa familiaridade com conceitos fundamentais da matéria – relata
Feynman – mostravam-se completamente incapazes de explicar as dife-

8  FEYNMAN, R. P. Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman! Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2000. pp. 225-245.

24
Eiiti Sato

rentes tonalidades da luz que se refletia sobre a Baía da Guanabara e que


se via da janela.9 Ou seja, explica Feynman, se lhes perguntasse o que se
entende por “ângulo de Brewster”, a maioria responderia prontamente,
sem hesitar, mas se lhes fosse perguntado como interpretar um fenôme-
no da natureza resultante da polarização da luz, raramente alguém entre
aqueles estudantes de física pensaria que um conceito como o do ângulo
de Brewster seria um instrumento útil na construção de uma resposta.
Esse é um exemplo que ilustra de maneira exemplar a atitude de quem
costuma separar a teoria da prática.

O uso da teoria nas Relações Internacionais e a formação


do campo de estudo
Um dos casos mais notáveis de uso do pensamento teórico para
interpretar a conjuntura da política internacional foi, sem dúvida, o de
E. H. Carr tanto pela consistência da análise quanto pelo pioneirismo do
trabalho. Seu Vinte Anos de Crise foi escrito no calor dos acontecimentos
que precederam o início da Segunda Guerra Mundial e o objeto central
da preocupação de Carr era o de compreender e interpretar os inquie-
tantes acontecimentos da política internacional. Entretanto, ao empre-
gar categorias analíticas de uma forma bastante inédita no entendimen-
to dos fenômenos internacionais, sua análise ultrapassou amplamente
aquele propósito inicial e acabou por tornar-se um verdadeiro marco na
formação do próprio campo de estudo das relações internacionais.
Com efeito, E. H. Carr fez parte da geração que estabeleceu as re-
lações internacionais como campo de estudo distinto tal qual conhece-
mos hoje. Sua motivação inicial tinha por origem os fatos preocupantes
de um ambiente internacional ameaçadoramente turbulento, mas sua
angústia tornava-se maior ao observar que a inadequação das políticas
praticadas derivava em grande parte da total incompreensão a respeito
do meio internacional e das forças reais que nele atuavam. Evitar uma
conflagração internacional podia fazer parte das preocupações da maio-
ria dos estadistas, todavia esse fato não garantia que esse objetivo seria
efetivamente atingido. Carr percebia que na política internacional havia
forças que atuavam sobre os atores que, de muitas formas, limitavam ou
mesmo condicionavam suas ações. Estava entre aqueles que percebiam

9  FEYNMAN, R. P. Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman!, p. 237-8.

25
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

que os fenômenos gerados pela convivência internacional tinham pecu-


liaridades que não poderiam ser interpretadas apenas como simples so-
matórias das ações dos Estados tomados individualmente.10 Participara
da Conferência de Versailles e, assim, pode acompanhar muito de perto
as motivações e as ações dos homens e das instituições que levaram à
elaboração e à assinatura do Tratado de Paz de Versailles. Além disso,
até voltar-se para a vida acadêmica em meados da década de 1930, per-
maneceu no Foreign Office de onde pode acompanhar, como oficial do
Governo, o surgimento e a evolução de várias crises bem como as ações
governamentais que tentavam manejá-las. Muitas dessas crises, como a
invasão do Ruhr pela França e o colapso da República de Weimar, foram
conseqüências diretas dos termos do Tratado de Versailles enquanto a
incapacidade de ação da Liga das Nações, observava Carr, revelava a
incompatibilidade da natureza do meio internacional com a crença pre-
dominante, inclusive entre os analistas, de que a simples sistematização
de uma ordem jurídica das relações internacionais e a sanção da opinião
pública seriam suficientes para banir o uso da força.
Assim, as reflexões de Carr contidas no Vinte Anos de Crise foram
também um produto da observação continuada da realidade da política
internacional turbulenta, marcada por sucessivas crises que enchiam de
perplexidade as mentes pouco acostumadas a padrões em rápida trans-
formação. Nessas circunstâncias, era inevitável que uma mente sensível
e atenta como a de Carr se perguntasse angustiadamente o que signifi-
cava tudo aquilo. O que estava ocorrendo com o Império Britânico? Por
que a tentativa de restaurar o padrão ouro fora um fracasso? Por que os
acordos de Locarno tiveram tão poucos efeitos sobre a estabilidade in-
ternacional? Por que os acontecimentos em regiões distantes haviam se
tornado tão importantes para a política internacional? Seriam as elites
que teriam se tornado insanas ou as massas é que haviam se tornado
incontroláveis? Enfim, para onde o mundo estaria se encaminhando?
As notícias dos acontecimentos, que os jornais divulgavam de
maneira cada vez mais febril, serviam mais para confundir do que para

10  Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial alguns estudiosos continuaram, em certa medida,
a interpretar a política internacional como a somatória das políticas e ações desenvolvidas pelos
Estados Nacionais. A abordagem do “processo decisório” de autores como R. C. Snyder e G. T.
Allison, não deixam de ter esse caráter. Snyder chegou a formular um modelo de análise que
procurava integrar o processo decisório dos países (SNYDER, R. C., et. al. (eds.). Foreign Policy
Decision-Making: An Approach to the Study of International Politics. New York, Free Press, 1962).

26
Eiiti Sato

esclarecer. Tornava-se também claro que as respostas que Carr e a maio-


ria das pessoas preocupadas com as crises procuravam de forma cada
vez mais ávida, não poderiam ser encontradas nos termos de um tra-
tado ou nas ações de um governante. Perguntas como as mencionadas
acima, suscitadas pelo ambiente internacional cada vez mais turbulen-
to, demandavam respostas embasadas em teorias que ligassem os fatos
entre si, dando-lhes sentido e orientação. Mais tarde, E. H. Carr iria
publicar um pequeno livro intitulado What is History (1961) resultante
de suas reflexões sobre essa questão. Nesse livro, Carr argumenta que
o historiador não deve restringir-se apenas a localizar e descrever com
exatidão os fatos ocorridos. Localizar devidamente os fatos no tempo e
descrevê-los com exatidão constituem apenas uma obrigação primária;
o verdadeiro historiador, afirma Carr, deve ir além. Deve interpretar os
fatos, a começar pela seleção daqueles que julga efetivamente relevan-
tes: “… o fato de César atravessar aquele pequeno riacho, o Rubicão, é
um fato da história, ao passo que a travessia do Rubicão, por milhões
de outras pessoas, antes ou desde então, não interessa a ninguém em
absoluto”, escreve Carr.11
Com efeito, desde a Grande Guerra de 1914-18, as notícias sobre
os acontecimentos internacionais ganharam espaço nos jornais, mas isto
não queria dizer que crises, conflitos e tratados fossem melhor compre-
endidos. Dessa forma, em grande medida, Vinte Anos de Crise derivava
de uma preocupação que se estenderia por toda a sua vida: a de tentar
encontrar um sentido para os fatos observáveis e aí buscar as respostas a
perguntas como aquelas mencionadas anteriormente. Quando deixou o
Foreign Office em 1936 e seguiu para a Universidade de Aberystwyth, no
País de Gales, levava consigo, de um lado, vinte anos de observação da
política internacional, mas de outro lado, levava também a inquietante
percepção de que as tradicionais categorias empregadas na análise e nas
práticas que haviam servido tão bem à geração de Lord Salisbury para
compreender e agir na política internacional de seu tempo, tornaram-se
referenciais pouco seguras para Balfour e, claramente, haviam se tor-
nado totalmente inadequadas para as questões que a geração de Lloyd
George estava tendo que enfrentar.12

11  CARR, E. H. Que é História. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982. p. 15.
12  Esses três estadistas ocuparam o posto de Primeiro Ministro da Grã-Bretanha em sucessivas
gerações, tendo que enfrentar diferentes problemas: Robert Cecil, Marquess of Salisbury (1830-

27
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

Na verdade, a percepção de que a realidade internacional preci-


sava ser melhor compreendida era compartilhada por muitos daqueles
que haviam participado ou simplesmente acompanhado os aconteci-
mentos que fizeram das primeiras décadas do século XX um período
marcado por tragédias e perplexidades. O que não estava claro é como
essa demanda poderia ser atendida. Pode-se dizer que E. H. Carr teria
sido, na verdade, aquele que, em seu tempo, percebeu mais claramente
essas circunstâncias e efetivamente fez a síntese mais completa de um
entendimento que se consolidava acerca da utilidade, e mesmo da ne-
cessidade, de se olhar as relações internacionais sob um prisma científi-
co. Em outras palavras, embora não houvesse clareza e homogeneidade
nessa percepção, generalizava-se o entendimento de que os fenômenos
internacionais deveriam ser observados e interpretados por meio de es-
truturas teóricas e que constituíam uma classe de fenômenos suficiente-
mente distinta para justificar a construção de uma nova ciência. Não foi
acidental, portanto, o fato de Carr dedicar a primeira parte do livro Vin-
te Anos de Crise à explicação do “nascimento de uma nova ciência”.13
É importante mencionar o fato de que a novidade das iniciativas
não estava na preocupação em destacar a importância da reflexão sobre
os fenômenos internacionais, mas sim no entendimento de que essa
reflexão poderia tornar-se muito mais precisa e articulada se passasse a
ser feita com o emprego de métodos desenvolvidos pela ciência. Com
efeito, desde a Antigüidade e especialmente a partir dos fins da Idade
Média, no mundo ocidental a reflexão sobre as relações entre povos
e unidades políticas vinha sendo feita no âmbito da filosofia política.
A novidade da preocupação era o entendimento de que a compreen-
são dos fenômenos internacionais poderia ser aumentada e até mesmo
tornar-se universal com o desenvolvimento de conceitos e categorias
de análise seguindo os padrões da ciência social moderna. A particu-
laridade é que muitos dos conceitos fundamentais deveriam ser toma-
dos diretamente de pensadores como Aristóteles, Maquiavel, Bodin
ou Rousseau, que haviam vivido séculos antes. A principal razão era

1903), foi eleito Primeiro Ministro 3 vezes; Arthur J. Balfour (1848-1930) sucedeu Lord Salisbury
sendo Primeiro Ministro de 1902 a 1905; David Lloyd George (1863-1945) era o Primeiro Ministro
britânico à época da Conferência de Versailles.
13  CARR, E. H. Vinte Anos de Crise, 1919-1939. Brasília: Editora Universidade de Brasília e
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2001. Parte I, caps. 1 e 2.

28
Eiiti Sato

o entendimento de que esses filósofos, por terem refletido sistematica-


mente sobre o homem e a sua natureza, poderiam oferecer pistas mais
seguras sobre possíveis elementos universais e atemporais relativos ao
comportamento humano. Assim, enquanto na economia, por exemplo,
os autores considerados “clássicos” do pensamento econômico estão si-
tuados essencialmente a partir da época tida como a do nascimento da
própria ciência econômica, isto é, a partir dos fisiocratas, nas relações
internacionais, contudo, há uma boa dezena de autores considerados
consensualmente como “clássicos” e que são muito anteriores ao século
XX.14 Nesse particular, a grande diferença entre os fenômenos carac-
terísticos de cada um desses domínios do conhecimento é que noções
centrais para a vida econômica como a de mercado, por exemplo, só
emergem efetivamente na modernidade enquanto, por outro lado, no-
ções essenciais para o estudo das relações internacionais como estado,
equilíbrio de poder, guerra e paz ou autoridade são fenômenos obser-
vados, descritos e analisados desde a Antigüidade.
Um episódio bastante revelador do fato de que, depois da Primei-
ra Guerra Mundial, havia uma percepção que se generalizava a respeito
da necessidade de se institucionalizar o estudo das relações internacio-
nais a partir de uma abordagem mais científica, foi a iniciativa tomada
por delegados americanos e britânicos na Conferência de Versailles no
sentido de se organizar uma sociedade anglo-americana para o estudo
da política internacional. Arnold Toynbee, em suas memórias, relata
que nos dias em que a Conferência chegava ao fim, houve uma reunião
no Hotel Majestic, onde se hospedava a delegação britânica, que ver-
dadeiramente teria lançado as sementes para a organização do estudo
científico das relações internacionais em bases institucionalizadas.15
A reunião fora convocada por Lionel Curtis e todos os integran-
tes das delegações americana e britânica haviam sido convidados. O

14  Ver, por exemplo, Classical Theories of International Relations, editado por I. Clark & I. B.
Neumann (Macmillan Press, London, 1996) ou International Relations in Political Thought, editado
por C. Brown, T. Nardin & N. Rengger (Cambridge University Press, 2002) e outros livros que, como
esses, trazem textos de autores que, desde a Antigüidade, servem de referenciais para a construção
do pensamento em relações internacionais. No Brasil, a coleção “Clássicos IPRI”, publicado pelo
Intituto de Pesquisa de Relações Internacionais em conjunto com a Editora Universidade de
Brasília inclui autores como Tucídides, Francisco de Vitória, Vattel e Rousseau ao lado de autores
como Hans Morgenthau e Hedley Bull.
15  TOYNBEE, A. Experiências. Petrópolis: Editora Vozes, 1970. Capítulo 5, Trinta e Três anos em
Chattan House.

29
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

encontro, no entanto, deveria interessar especialmente aos delegados


que não integravam o corpo permanente tanto do Foreign Office quanto
do Departamento de Estado uma vez que, com a Conferência, a guerra
chegava oficialmente ao fim e, assim, o propósito da reunião era o de
discutir qual seria o destino profissional desses oficiais temporários. A
maioria deles era composta de especialistas, como o próprio Toynbee,
que haviam se juntado às suas chancelarias como parte do esforço de
guerra e que agora deveriam tomar um outro destino. A alguns foi ofe-
recida a oportunidade de assumir postos como diplomatas do quadro
permanente mas, para a grande maioria, o término da Conferência sig-
nificava retornar às atividades que exerciam antes da guerra ou buscar
um novo rumo profissional.
Lionel Curtis havia observado que os anos de guerra haviam pro-
porcionado uma experiência marcante para aqueles especialistas, que
haviam desenvolvido uma particular percepção a respeito da guerra, da
paz e da realidade internacional. Assim, na agenda da reunião constava
uma proposta bastante prática: a criação de uma sociedade anglo-ame-
ricana para o estudo científico das questões internacionais. A idéia era a
de que essa sociedade deveria promover o estudo e a reflexão sistemática
e, tanto quanto possível, em bases científicas, sobre as relações interna-
cionais. Com esse propósito, deveriam ser atividades típicas dessa socie-
dade a realização de encontros entre especialistas, o desenvolvimento da
pesquisa e a publicação de material informativo e de análise sobre temas
e questões da política internacional. A iniciativa que surgira como um
projeto anglo-americano, no entanto, rapidamente revelou-se bem mais
fácil de ser administrado se fosse separado em duas sociedades, uma
americana e outra britânica que, no entanto, cooperassem intensamente
entre si. Assim, logo no início da década de 1920, foram criados o Coun-
cil on Foreign Relations, com sede em Nova York, e o Royal Institute of
International Affairs, que ficou conhecido como Chatham House, com
sede em Londres.16
Para que pudesse ser preservado o caráter científico dos traba-
lhos, tudo deveria ser feito de maneira “apartidária” e sem que estives-
sem vinculados à política oficial, ainda que recebessem algum auxílio

16  Essa origem dessas duas instituições é mencionada também por Cris Brown em Understanding
Inernational Relations. Macmillan Press, London, 1997. p. 24.

30
Eiiti Sato

governamental.17 Obviamente, sabia-se o quanto seria difícil fazer com


que esse propósito fosse plenamente atingido pois, tal como já foi co-
mentado, em assuntos como esse, a mente humana tem enorme difi-
culdade para se comportar de forma totalmente isenta de sentimentos
e emoções. Durante muito tempo, o próprio Foreign Office teve grande
dificuldade em admitir a existência daquele corpo estranho, com gente
estranha à chancelaria, fazendo perguntas e investigando documentos
e arquivos oficiais. De qualquer modo, olhar as questões internacionais
sob esse ângulo de preocupação não se constituiu apenas numa no-
vidade, mas provou ser verdadeiramente um passo fundamental para
dar início à sistematização do conhecimento sobre as relações interna-
cionais. Que os governos viessem a se valer dos estudos realizados por
essa sociedade era até mesmo desejado pois, afinal, a matéria é políti-
ca por natureza e, na verdade, a motivação básica que levava a tomar
aquela iniciativa era a de que o estudo da realidade internacional, de
modo consistente e isento de pressões de interesses circunstanciais, se-
ria um elemento fundamental para que os governos produzissem po-
líticas mais sensatas e capazes de evitar tragédias como aquela que o
mundo acabara de viver.
As duas instituições passaram a servir de várias formas à pro-
moção dos estudos sobre a política internacional, contudo ganharam
especial notoriedade por duas atividades bastante complementares. A
entidade americana passou a publicar a revista Foreign Affairs, que veio
a tornar-se o periódico mais conhecido e tradicional sobre política in-
ternacional enquanto a Chathan House decidiu organizar e produzir
um relatório periódico intitulado Survey of International Affairs, que
teve Toynbee como responsável pela edição por mais de trinta anos e
no qual apresentava uma visão panorâmica das relações internacionais
e das principais questões em debate no cenário da política internacional.
Eram iniciativas que se complementavam e também serviam de base

17  “A ação internacional é política, e o trabalho científico não será genuinamente científico a
menos que a política seja mantida fora dele. Portanto, o primeiro artigo de constituição de nossa
sociedade deveria estabelecer que a sociedade não teria, enquanto corporação, qualquer política,
embora evidentemente isto não restringisse a liberdade de seus membros de, individualmente,
favorecer o promover esta ou aquela (política) … enquanto cidadãos e votantes” (Arnold Toynbee
sobre a constituição da sociedade anglo-americana para promover o estudo científico das relações
internacionais. TOYNBEE, A. Experiências, p. 71).

31
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

para, juntamente com encontros e seminários, congregar e difundir o


interesse pelo estudo das questões internacionais.
Simultaneamente, acompanhando esse ambiente de crescen-
te interesse pelo estudo sistemático da política internacional, algumas
universidades britânicas e americanas criaram cadeiras voltadas para o
ensino e a reflexão sobre relações internacionais, como foi o caso da
cadeira Woodrow Wilson de Política Internacional da Universidade
de Aberystwyth à qual E. H. Carr estava associado quando escreveu
Vinte Anos de Crise. Geralmente essas cadeiras eram patrocinadas por
magnatas como Andrew Carnegie e J. D. Rockfeller que, por meio de
fundações, destinavam consideráveis recursos para projetos voltados
para ações humanitárias e a promoção da paz. O interesse de Andrew
Carnegie pela promoção da paz, por exemplo, era tão grande que criou
uma fundação especificamente voltada para esse propósito.18 Por meio
dessa fundação, patrocinou cadeiras e bibliotecas voltadas para o estudo
e a pesquisa sobre arbitragem e outras formas de resolução pacífica de
controvérsias, forneceu também recursos para a construção de muitos
edifícios públicos para abrigar iniciativas e instituições voltadas para a
paz como o Palácio da Paz, na Haia, o Templo da Paz em S. José da
Costa Rica e o Pan-American Union em Washington. Este último serve
hoje de sede para a Organização dos Estados Americanos. O brasileiro
Otto Prazeres, acreditado como jornalista junto à Conferência de Paz
de Versailles, ao retornar ao Brasil, escreveu um livro sobre a Liga das
Nações e o dedicou a Andrew Carnegie “que era o maior apóstolo da paz
nos tempos modernos”.19
Esses casos são ilustrativos do interesse pelo estudo das relações
internacionais que se generalizava movido pela premissa de que o estu-
do sistemático, usando-se os recursos do pensamento científico, poderia
ser um instrumento útil para evitar catástrofes como a Primeira Guerra
Mundial. Dessa forma, a partir da década de 1920, o estudo das relações
internacionais como disciplina acadêmica estruturada disseminou-se
pelas universidades norte-americanas e européias.

18  Trata-se da Carnegie Endowment for International Peace e essa fundação existe até hoje
(WHITAKER, B. The Foundations. An Anatomy of Philanthropic Bodies. Harmondsworth:
Penguin Books, 1974. pp. 75-6).
19  PRAZERES, O. A Liga das Nações. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922. p. v.

32
Eiiti Sato

Costuma-se traçar a trajetória do estudo das relações internacio-


nais por meio da sucessão de “debates teóricos”. Entretanto essa questão
foge ao escopo deste ensaio. Todavia, talvez seja interessante mencionar
o fato de que esses debates jamais tiveram um desfecho. Seja porque o
“realismo” e o “idealismo” como atitude diante do mundo jamais dei-
xaram de existir, mudando apenas de ênfase ou de objeto, o famoso
“debate” entre realistas e idealistas do entre-guerras continua bastante
vivo e, visivelmente, se manifesta no trato das questões envolvendo, por
exemplo, a ação e a eficácia das Nações Unidas e temas como a proteção
internacional dos Direitos Humanos ou ainda as questões envolvendo
proteção ambiental e políticas de desenvolvimento. Por outro lado, mui-
tos “debates” mais recentes, por exemplo envolvendo a chamada corrente
pós-modernista, apenas dá continuidade ao esforço de compreensão dos
fenômenos internacionais, uma vez que, visto sob o ângulo da agenda de
pesquisa, sua preocupação maior se concentra na análise da linguagem
e na formulação de críticas a outras correntes teóricas – em especial o
realismo – do que propriamente na proposição de novos instrumentos
analíticos que ajudem a compreender os fenômenos internacionais.20

O estudo das Relações Internacionais no Brasil


No Brasil, a iniciativa mais notável e articulada surgiu apenas de-
pois da Segunda Guerra Mundial, em meados da década de 1950. Em
1954, foi criado o Instituto Brasileiro de Relações Internacionais que,
quatro anos mais tarde, passou a publicar o periódico Revista Brasileira
de Política Internacional, que é publicado regularmente até hoje. A refle-
xão no Brasil sobre relações internacionais permaneceu até meados da
década de 1980 restrita a alguns diplomatas e a uns poucos acadêmicos,
aqueles muitas vezes por dever de ofício, e estes por iniciativa individu-
al, em geral como verdadeiros corpos estranhos em departamentos uni-
versitários voltados essencialmente para o estudo do Direito, da Ciência
Política, da História ou de algum outro ramo das ciências sociais.

20  A maioria dos manuais sobre o estudo das relações internacionais descreve e comenta essa
sucessão de “debates teóricos”. Particularmente em relação à abordagem pós-moderna, há uma
edição feita por um consórcio de universidades colombianas que reproduz o produto de um
seminário internacional que faz um balanço dessa corrente (NASI, C. (org.) Postmodernismo &
Relaciones Internacionales. Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, Universidad de los Andes &
Universidad Nacional, 1998.

33
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

Além disso, embora não caiba aqui discutir esse aspecto, é im-
portante mencionar que o ambiente universitário brasileiro foi forte-
mente influenciado pela noção de que a função básica da universidade
seria a de formar “profissionais” para o mercado de trabalho e para áreas
consideradas “prioritárias para o desenvolvimento nacional”.21 Essa ob-
servação, no entanto, é relevante porque explica em grande medida a
verdadeira explosão dos cursos de relações internacionais no Brasil a
partir de meados da década de 1990, onde a principal expectativa é de
que os graduandos na disciplina se tornem “profissionais de relações
internacionais” e não especialistas capazes de compreender o meio in-
ternacional e seus fenômenos.
Na Universidade de Brasília criou-se primeiro o Curso de Bachare-
lado em Relações Internacionais, em 1974, e somente uma década depois
foi estruturado um programa de Mestrado especificamente voltado para
o estudo e a pesquisa em relações internacionais. Cabe destacar que a ini-
ciativa de Brasília tornou-se viável, em larga medida, graças à estreita co-
operação com o Ministério das Relações Exteriores que, particularmente
nos primeiros anos, forneceu a maioria dos docentes com expertise mais
específica em relações internacionais.22 Hoje, o corpo de pesquisadores
e docentes da Universidade de Brasília é composto essencialmente por
acadêmicos e há na universidade brasileira um crescente interesse pelo
estabelecimento de departamentos e de programas voltados especifica-
mente para o estudo e a pesquisa em relações internacionais.
O objetivo deste ensaio, contudo, não é o de produzir um balanço
do estudo e da pesquisa no Brasil em relações internacionais mas, princi-
palmente, levantar algumas indagações sobre as circunstâncias atuais em
que, aparentemente, o potencial dos recursos da teoria continua sendo

21  Esse aspecto tem sido abordado por autores variados, todavia, principalmente a partir dos
governos militares, esse entendimento de que o ensino universitário deve ser basicamente
“profissionalizante” tem prevalecido no Brasil. Ver, por exemplo, SCHWARTZMAN, S. Um
Espaço para a Ciência. A Formação da Comunidade Científica no Brasil. Ministério da Ciência
e Tecnologia, 2001; PAIM, A. A UDF e a Idéia de Universidade. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1981; PROTA, L. Um Novo Modelo de Universidade, São Paulo: Editora Convívio, 1987.
22  Afonso Arinos de Melo Franco, José Guilherme Merquior, Ronaldo Sardenberg, Rubens
Ricúpero, Celso Amorin, Carlos Henrique Cardim, José Oswaldo de Meira Pena, Luiz Augusto
de Castro Neves, Sérgio Silva Amaral e Marcio F. Nunes Cambraia estão entre os diplomatas que
atuaram na consolidação da competência da Universidade de Brasília em relações internacionais. A
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro também estabeleceu um Programa de Mestrado
em Relações Internacionais em 1985.

34
Eiiti Sato

explorado aquém das suas possibilidades limitando, assim, a capacida-


de de avaliar devidamente as tendências na ordem internacional.23 Essa
limitação aparece, por exemplo, na dificuldade de estabelecer uma agen-
da de pesquisa mais próxima das questões que afetam mais diretamente
as preocupações da nação brasileira e da região. Como já mencionado,
a comunidade de pesquisadores brasileiros em relações internacionais
vem aumentando de maneira significativa tendo já sido criada uma As-
sociação Brasileira de Relações Internacionais, que já realizou dois en-
contros nacionais (Brasília, em 2007, e Rio de Janeiro em 2009) com a
participação de centenas de pesquisadores. Nesse esforço o exame crítico
das teorias e o emprego do recurso da teorização vem ganhando espaço
permitindo deduzir que juntamente com o aumento da densidade nas
reflexões produzidas no âmbito das instituições brasileiras haverá tam-
bém a consolidação de uma agenda de pesquisa de cunho mais local e
voltada para a interpretação dos fenômenos que afetam a região.24

A teoria e a interpretação da realidade corrente


Apesar do grande desenvolvimento das relações internacionais
como campo de estudo organizado, especialmente depois da Segunda
Guerra Mundial, as dificuldades originais ainda parecem permanecer e
o emprego da reflexão teórica continua sendo limitado. Particularmen-
te no Brasil, os esforços de interpretação continuam, em certa medida,
sendo confundidos com as preferências políticas e ideológicas, por vezes
contaminando inclusive o próprio debate teórico. Na verdade, o debate
teórico em relações internacionais convive com muitas das dificulda-
des observáveis em seus estágios iniciais: as hipóteses são construídas a
partir de diferentes premissas e de diferentes escolhas e as preferências
ideológicas que dão sustentação a sentimentos de aprovação e rejeição
geralmente continuam a influenciar a observação dos fatos e a busca de

23  Um bom balanço da evolução dos estudos em relações internacionais é feito por S. Miyamoto
em O Estudo das Relações Internacionais no Brasil: o Estado da Arte, publicado na revista de
Sociologia e Política (Curitiba, Nº 12, 83-98, Junho, 1999).
24  Uma iniciativa notável nesse sentido foi a realização pelo Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais (IBRI) de um seminário de grande amplitude sobre conceitos e teorias de relações
internacionais para o início do século 21 onde se discutiu visões nacionais e regionais sobre a
ordem internacional. Os resultados foram publicados em SARAIVA, J. F. S. (ed.) Concepts,
Histories, and Theories of International Relations for the 21st Century. Regional and National
Approaches. Brasília: IBRI, 2009.

35
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

evidências. Apesar de reconhecer que esse comportamento é bastante


generalizado, é possível que esse problema seja mais acentuado no Bra-
sil onde o debate sobre os temas internacionais ainda é, comparativa-
mente, incipiente. Toda ciência é, em alguma medida, interdisciplinar.
Provavelmente nas ciências sociais a interdisciplinaridade é até mais re-
querida do que nas chamadas ciências naturais mas, ao mesmo tempo,
a interdisciplinaridade convive com a inevitável tendência à especializa-
ção mesmo entre aqueles que reconhecem a importância da interação
com disciplinas correlatas. Dessa maneira, é natural que a disseminação
dos conceitos trazidos pela área de relações internacionais ainda não
tenha se estendido de maneira mais ampla para outras áreas.
Amado Cervo25, merecidamente considerado um dos mais no-
táveis estudiosos da área, em artigo recente, traça uma trajetória das
relações exteriores do País, desde o Império até nossos dias, por meio de
paradigmas interpretativos que no seu entender demarcam fases pelas
quais a formulação das ações externas e a reflexão acerca da política ex-
terior brasileira teriam passado.26 Trata-se de uma reflexão interessante
que ajuda a organizar o entendimento da sucessão dos acontecimentos
e que deixa transparecer o grande domínio que o autor tem sobre a his-
tória do País, especialmente no que tange à política externa mas, apesar
de tudo, não dá o devido destaque ao papel desempenhado pelo am-
biente internacional, isto é, pelas instituições e pelas iniciativas de ou-
tros atores internacionais relevantes que estimulavam, dificultavam ou
até mesmo condicionavam as iniciativas dos responsáveis pela política
externa dos países, inclusive do Brasil. Em outras palavras, a observação
das condições sistêmicas da ordem internacional pode trazer elementos
que ajudam sobremaneira o entendimento de muitas das iniciativas e
decisões tomadas pelo governo brasileiro, isto é, o país vivia processos
de mudança e da ação do jogo de forças políticas domésticas mas, por
outro lado, o quadro internacional em grande medida condicionava a
margem de manobra do governo brasileiro ao favorecer certos tipos de
política e ao criar dificuldades para outros. Por exemplo, o paradigma
do “desenvolvimentismo” do pós-guerra não foi apenas uma fase da po-

25  Professor Emérito da Universidade de Brasília, notabilizado por uma extensa obra especialmente
voltada para a área de história das relações exteriores do Brasil.
26  CERVO, A. L. Política Exterior e Relações Internacionais do Brasil: Enfoque Paradigmático.
Rev. Bras. de Política Internacional, Ano 46, nº 2, 2003 (pp. 5-25).

36
Eiiti Sato

lítica dos governos brasileiros que, no período, elegeram essa diretriz


para orientar suas ações externas, mas foi também uma fase em que,
no plano internacional, sob a liderança dos Estados Unidos, o desen-
volvimento econômico era entendido como parte importante de uma
estratégia mais geral de construção da ordem internacional.
Com efeito, a literatura sobre o tema do desenvolvimento inter-
nacional ocupou uma parte substancial da produção acadêmica em
todo o mundo desde a década de 1950 até a crise do petróleo da década
de 1970. No pós-guerra imediato, o Plano Marshall canalizou bilhões de
dólares para a Europa dentro de uma concepção que associava o desen-
volvimento à segurança internacional. Institucionalmente, a Conferên-
cia de Bretton Woods estabeleceu o Banco Mundial com o propósito de
fomentar o desenvolvimento e a seguir outras entidades internacionais
foram criadas com o mesmo objetivo. A Organização das Nações Unidas
declarou a década de 1960 como a Primeira Década do Desenvolvimen-
to e inúmeros programas de fomento ao desenvolvimento foram estru-
turados por governos, instituições multilaterais e mesmo por agências
privadas que patrocinavam projetos de desenvolvimento econômico dos
mais variados tipos. Dessa maneira, o entendimento da política externa
“desenvolvimentista” do Brasil só pode ser melhor compreendida, e de
forma mais completa, se vista no âmbito desse ambiente internacional
feito de instituições influentes e enormes somas de recursos manejados
por atores poderosos.
Recentemente, alguns episódios servem para ilustrar o fato de que
os recursos analíticos oferecidos pela área de estudo das relações inter-
nacionais poderiam contribuir para um entendimento mais acurado do
meio internacional e de como esse entendimento poderia orientar de-
cisões mais eficazes e percepções mais construtivas. Em um plano mais
geral as expectativas geradas em torno da eleição do Presidente Obama
em relação ao envolvimento americano nas questões internacionais vêm
sendo frustradas, não porque a disposição do Presidente tenha se alte-
rado após a eleição e a posse, mas simplesmente porque a natureza do
envolvimento dos Estados Unidos com o Oriente Médio e com a ordem
internacional de uma forma geral é um processo cuja evolução não de-
pende apenas da decisão do governante dos Estados Unidos.
Um episódio ilustrativo de equívoco de avaliação envolvendo a
política externa brasileira recente foi o caso dos entendimentos feitos

37
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

com o governo chinês por ocasião da visita da grande comitiva presiden-


cial da República Popular da China. O governo brasileiro, na expectativa
de um apoio da China na sua demanda por um assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU, fez concessões e produziu uma decla-
ração oficial de reconhecimento da China como economia de mercado,
facilitando seus negócios com o Brasil e servindo também de suporte às
demandas daquele país junto à Organização Mundial do Comércio. O
fato é que, quando a proposta de reforma da Carta da ONU, onde se in-
seria a demanda brasileira por um assento permanente no Conselho de
Segurança, passou à fase de ser submetida à consideração pelos órgãos
da ONU, a China posicionou-se terminantemente contrária à reforma
da ONU, disposta a utilizar até seu poder de veto, se necessário, revelan-
do que os compromissos assumidos com o governo brasileiro tinham
importância muito menor diante de outras preocupações e interesses
estratégicos globais e regionais.
Vale insistir que equívocos como esses poderiam ser atenuados
ou evitados por meio do uso adequado da teoria e vale também notar
que equívocos pelo uso inadequado ou incipiente da teoria não tem sido
um privilégio das percepções vigentes no ambiente político brasileiro.
Um dos casos recentes mais notáveis talvez sejam os acontecimentos
envolvendo o fim da guerra fria. Desde a abertura das fronteiras da Áus-
tria com os países do Leste Europeu até a queda do Muro de Berlin e,
finalmente, o colapso da União Soviética e a reunificação da Alemanha,
os acontecimentos se sucederam de forma surpreendente para a maioria
dos analistas. Por outro lado, esses acontecimentos geraram também um
grande sentimento de otimismo cuja expressão acadêmica mais notável
e sofisticada foi, sem dúvida, O Fim da História de Francis Fukuyama.
É desnecessário descrever como, em pouco tempo, os fatos vieram a
revelar um mundo muito mais sombrio e incerto, contrariando comple-
tamente as previsões otimistas de analistas como Fukuyama.27
Fatos como esses fazem supor que outras questões que afetam
diretamente os interesses mais imediatos do Brasil também podem estar

27  Obras notáveis da época preconizavam uma era em que as questões da “low politics” teriam
passado a ter mais relevância do que as questões de segurança internacional (ROSECRANCE, R.
The Rise of the Trading State. New York: Basic Books, 1986), outras previam até mesmo a perda
de importância do Estado em razão da interdependência e da emergência de outros atores não-
estatais voltados essencialmente para a vida civil (OHMAE, K. The End of the Nation State: The Rise
of Regional Economies, New York: Free Press, 1996).

38
Eiiti Sato

sendo equivocadamente avaliados não tanto por falta de informações


adequadas mas talvez por uso precário dos recursos da teoria. Prova-
velmente uma observação mais acurada irá revelar que tanto a falta de
qualidade das informações quanto o pouco uso dos recursos da teoria
são elementos que se alimentam mutuamente uma vez que muito di-
ficilmente as notícias são efetivamente neutras. Do mesmo modo que
na escolha das preferências teóricas é inevitável a influência de senti-
mentos de simpatia ou antipatia, os noticiários também fazem escolhas
e o simples fato de acentuar um aspecto ou omitir outros, ainda que
aparentemente pouco importantes, ajudam a construir as imagens com
as quais operamos nosso entendimento.28 Os governos agem de acor-
do com imagens que constroem acerca do meio internacional e, obvia-
mente, se essas imagens forem equivocadas as chances de que políticas
inadequadas ou mesmo desastrosas sejam produzidas devem aumentar
consideravelmente.29
Como já foi apontado na primeira parte deste ensaio, não há,
como nas chamadas ciências físicas, uma “verdade” científica, uma lei
capaz de ser reconhecida universalmente e de forma indiscutível já que
as condições, as circunstâncias e a maior parte dos componentes de um
sistema social não podem ser controladas e tampouco permanecem inal-
teradas no tempo. Enquanto o grau de pureza de um material, a tempe-
ratura ou o nível de umidade são condições perfeitamente mensuráveis
e controláveis, nas ciências sociais, ao contrário, os indivíduos não são
iguais e não reagem da mesma forma diante de um mesmo fato. Logica-
mente essa distinção não pode ser entendida de forma tão simples. Mes-
mo as chamadas ciências físicas (hard sciences) apresentam uma série de
questões que não podem ser qualificadas e quantificadas de modo tão
definido e claro. Ana Maria Bianchi, num interessante trabalho sobre
a ciência da economia, retoma a reflexão de Karl Popper a respeito do

28  Trata-se de um entendimento mais abrangente do que o de Robert Jervis (The Logic of Images in
International Relations, Princeton University Press, 1970) que discute a formação de imagens como
instrumento de política externa dos países.
29  Um caso interessante é relatado por Henry Kissinger quando compara as visões de Theodore
Roosevelt e de Woodrow Wilson. Ambos percebiam que os EUA haviam mudado sua posição na
cena internacional, tornando-se um ator de primeira grandeza. No entanto, enquanto Roosevelt
entendia que havia um novo equilíbrio de poder global dentro do qual os EUA deveriam atuar
na devesa de seus interesses, Wilson entendia que, nesse cenários, os EUA tinham o dever moral
de liderar a construção de um novo internacionalismo com seus valores e suas instituições.
(KISSINGER, H. A. Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1997. pp. 25-57)

39
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

entendimento de que existem dois tipos de sistema: o sistema clock e


o sistema cloud.30 Como tipos ideais, relógio e nuvem demarcariam os
extremos para os quais os sistemas na natureza tenderiam ao longo de
um continuum. A transformação da água em vapor seria, tipicamente, o
caso de um sistema relógio em ação enquanto a formação e o desenvol-
vimento da União Européia seria, tipicamente, o caso de um fenômeno
afeito à classe dos sistemas nuvem.
Mesmo fenômenos tipicamente da natureza física como os tor-
nados, por exemplo, estariam mais próximos do sistema nuvem do que
do sistema relógio. Tornados e outros fenômenos meteorológicos seriam
bons exemplos de analogias que poderiam ser aproveitadas pela análise
das relações internacionais. Os tornados continuam sendo largamente
imprevisíveis, embora ninguém pretenda que essa classe de fenômenos
seja fruto de bruxaria ou o produto da ira dos deuses. A ciência cor-
rente conhece muito bem a sua natureza, como se formam e quais as
forças que influenciam seu comportamento, apenas no que tange à sua
previsão e mensuração exata é que as incertezas persistem uma vez que
cada ocorrência apresenta um grau elevado de individualidade. Assim,
não há aqui nenhuma presunção de que os fenômenos internacionais
deveriam ser entendidos e “equacionados” como fatos mensuráveis e
plenamente previsíveis e controláveis, mas simplesmente o entendimen-
to de que devem ser observados e analisados de forma sistemática como
pertencentes a uma possível classe de sistemas que possuem alguma ló-
gica intrínseca que pode ser captada e compreendida. Insistindo nesse
ponto, talvez seja interessante, tal como faz a Professora Bianchi, pensar
no jogo de xadrez como uma metáfora bastante ilustrativa. Com efeito,
o xadrez é um jogo de regras fixas e bem conhecidas; é jogado sobre um
tabuleiro de 64 casas e cada jogador possui à sua disposição 16 peças si-
metricamente iguais. Assim sendo, trata-se de um jogo de possibilidades
e combinações conhecidas e limitadas. Apesar de tudo, foi necessário
desenvolver um “software” especial, acoplado a um supercomputador
para que uma máquina pudesse vencer um grande mestre enxadrista.
Ora, se a política internacional for pensada como um grande tabuleiro
de xadrez, é fácil perceber a completa impossibilidade de se construir
um método que permita avaliar e prever com exatidão os fenômenos

30  BIANCHI, A. M. Of Clouds, Clocks, and the Hardest of the Soft Sciences. Trabalho apresentado
no Annual Meeting of the Allied Social Sciences Association, Anahelm, CA, 1993.

40
Eiiti Sato

internacionais: quantos são os jogadores? Qual a dimensão exata do ta-


buleiro? As peças do jogo não variam em número, não mudam de papel
e não se movem por conta própria?
Na verdade, essa noção não parece ser difícil de ser entendida, o
que parece mais incomum é a disposição de evitar a atitude derivada da
noção de que a política é uma “arte” que não exige conhecimentos espe-
cíficos, bastando apenas o talento. Ora, entre os jogadores de xadrez, não
existem gradações infinitas entre um principiante e aqueles que conse-
guem se distinguir entre os demais tornando-se um grande mestre? Além
disso, esse problema geralmente se apresenta associado a outro aspecto
mais difícil de ser contornado: a incapacidade do analista de por em prá-
tica o esforço de reduzir ao máximo o seu envolvimento com o objeto de
estudo. Assim, o problema está tanto no uso precário da teoria quanto
na pouca atenção que geralmente se dá ao fato de que os sentimentos
de simpatia e antipatia do analista em relação aos atores envolvidos, e à
própria questão posta em pauta, podem condicionar a análise.
Obviamente, as teorias possuem seu valor e também apresentam
suas fraquezas. O que um analista ou uma autoridade faz com a teoria é
que resulta em problema. As previsões e os cálculos dos meteorologistas
nem de longe atingem o grau de precisão com que as variáveis de muitos
outros domínios das hard sciences são avaliadas e manejadas, mas seu
trabalho tem permitido reduzir substancialmente os prejuízos causados
pelas tempestades, nevascas e verões escaldantes.
É evidente que todo analista, seja ele meteorologista ou de qual-
quer outro campo da ciência, sente satisfação em demonstrar e consta-
tar que seu entendimento acerca de um fenômeno é mais consistente
e explica melhor a natureza desse fenômeno, mas nada se compara ao
que ocorre com freqüência nas ciências sociais, onde o uso da teoria
se confunde com a advocacia de uma causa. Sentimentos de simpatia
e antipatia motivam a busca de justificativas teóricas. Nas circunstân-
cias atuais, por exemplo, para um pacifista que sente aversão à política
norte-americana, pouco adiantariam argumentos bem fundamentados
de que uma intervenção dos Estados Unidos numa determinada região
em conflito poderia ser o caminho mais curto e viável para a pacificação
dessa região. Por princípio, isto é, por preconceito, qualquer intervenção
americana é por ele considerada ruim em si mesma, em qualquer cir-
cunstância e em qualquer ocasião. Obviamente, uma atitude como essa

41
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

pode ser compreensível para um cidadão comum, que pode deixar-se


levar por sentimentos de simpatia e antipatia. As conseqüências seriam
essencialmente pessoais, mas é perniciosa para o analista, que não con-
seguirá perceber as reais forças em ação por sob a agitação dos aconte-
cimentos, e será desastrosa para o estadista que, muito provavelmente,
porá em prática políticas ruinosas para a nação.

Considerações finais
Em resumo, o analista das relações internacionais, em seu papel
de cientista social, não pode prescindir da teoria, ou melhor, das teorias
como instrumento que deve ajudá-lo a construir as interpretações pos-
síveis para os fenômenos que observa na cena internacional e identificar
as evidências, ainda que incômodas. Na verdade, são as teorias que o
ajudam a selecionar e a dispor, entre os muitos fatos disponíveis nos do-
cumentos, nos noticiários e nos dados estatísticos, aqueles que se cons-
tituem em evidências relevantes que permitem identificar significados e
tendências. Por outro lado, como cientista social, o analista de relações
internacionais também deve ter consciência de que, por melhor que seja
sua apreciação de um determinado fenômeno, essa apreciação sempre
será limitada tanto pelos valores e princípios que orientam sua cons-
trução teórica quanto pela própria limitação de seus conhecimentos.31
Além disso, a interdisciplinaridade pode ter servido para que uma even-
tual interpretação a respeito de um fenômeno da realidade internacional
apresente grau elevado de consistência e de capacidade explicativa, mas
será sempre uma entre outras visões possíveis. Numa metáfora visual,
os fenômenos sociais podem ser entendidos como um edifício que pode
ser observado sob vários ângulos diferentes. O mesmo edifício pode ser
visto a partir de sua face frontal, de seu perfil lateral ou mesmo de cima,
numa tomada aérea. O edifício pode ainda ser visto sob o ângulo de sua
concepção de engenharia estrutural ou de sua arquitetura ambiental. São
visões diferentes, que mostram aspectos reais presentes num mesmo
objeto. Cada uma das visões destaca uma faceta do edifício e, mesmo
supondo que todas as visões são bastante nítidas por terem sido cons-
truídas com grande competência e cuidado, ainda assim, para se ter uma

31  A tecnologia moderna trouxe os serviços de busca baseados na rede internet que mostram
que qualquer consulta resulta em centenas de milhares de itens e referências, uma quantidade
virtualmente impossível de ser consultada.

42
Eiiti Sato

idéia mais completa do edifício seria necessário proceder como aqueles


que o construíram, isto é, utilizar-se de várias plantas complementares
ou sobrepostas para fazer seus alicerces, suas paredes, sua cobertura, suas
estruturas de sustentação, bem como todos os espaços internos e todos
os equipamentos necessários ao seu funcionamento.
Em conclusão, como reflexão final, talvez valha a pena pensar na
existência de uma dimensão moral que deve estar presente na atitude
de todo cientista social. Ao se analisar um fenômeno, há sempre um
propósito e uma idéia do que é ou deveria ser desejável, no entanto deve
procurar construir suas visões a partir de evidências, mesmo quando as
evidências encontradas sejam incômodas e o obriguem, por vezes, até a
reformular as suas visões iniciais. Além disso, por melhores que sejam
suas interpretações é sempre bom considerar que serão sempre inter-
pretações parciais e que outras visões são importantes para melhorar
o entendimento acerca do fenômeno considerado. São considerações
desse tipo que fazem com que as conferências, os encontros de associa-
ções científicas, os seminários e todas as formas de reunião nas quais são
debatidos temas como conflitos, focos de tensão ou perspectivas de co-
operação são tão importantes. Esses encontros são oportunidades para
que diferentes visões possam ser confrontadas e aprimoradas. Evidên-
cias podem ser contrapostas a outras evidências e construções teóricas
podem ser revistas ou mesmo contestadas face à revelação de eventuais
limitações em sua capacidade explicativa. De um ponto de vista bastante
prático, esses debates correspondem, em última instância, à forma mais
objetiva de assessoramento ao processo decisório das instituições por
meio das quais as sociedades fazem suas escolhas. Tanto o governante,
que tem mandato para tomar decisões, quanto os parlamentares res-
ponsáveis pela elaboração do quadro normativo que deve guiar as ações
e o comportamento dos indivíduos e das organizações têm nos debates
– em geral chamados pejorativamente de “acadêmicos” – um aliado es-
sencial. As autoridades terão mais chances de orientar mais eficazmente
suas decisões se souberem comparar e ponderar de maneira sensata as
possíveis visões, construídas a partir das boas teorias disponíveis.

Referências
BERLIN, I. Russian Thinkers. London: The Hogarth Press, 1978.

43
RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a reflexão, o debate de ideias e a dimensão prática das teorias

BIANCHI, A. M. Of Clouds, Clocks, and the Hardest of the Soft Sciences.


Trabalho apresentado no Annual Meeting of the Allied Social Sciences
Association, Anahelm, CA, 1993.
BROWN, C. Understanding Inernational Relations. London: Macmillan
Press, 1997.
BROWN, C.; Nardin, T. & Rengger, N. International Relations in Political
Thought. Cambridge University Press, 2002.
CARR, E. H. Que é História. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982.
CARR, E. H. Vinte Anos de Crise, 1919-1939. Brasília: Editora Universidade
de Brasília e Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2001.
CERVO, A. L. Política Exterior e Relações Internacionais do Brasil:
Enfoque Paradigmático. Revista Brasileira de Política Internacional, Ano
46, nº 2, 2003 (pp. 5-25).
CLARK, I. & Neumann, I. B. Classical Theories of International Relations.
Macmillan Press, London, 1996.
FEYNMAN, R. P. Deve Ser Brincadeira, Sr. Feynman! Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2000.
JERVIS, R. The Logic of Images in International Relations. Princeton
University Press, 1970.
KISSINGER, H. A. Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,
1997.
MIYAMOTO S. O Estudo das Relações Internacionais no Brasil: o
Estado da Arte, Revista de Sociologia e Política (Curitiba, Nº 12, 83-98,
Junho, 1999).
NASI, C. (org.) Postmodernismo & Relaciones Internacionales.
Bogotá: Pontifícia Universidad Javeriana, Universidad de los Andes &
Universidad Nacional, 1998.
OHMAE, K. The End of the Nation State: The Rise of Regional Economies.
New York: Free Press, 1996.
PAIM, A. A UDF e a Idéia de Universidade. Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro, 1981.

44
Eiiti Sato

PRAZERES, O. A Liga das Nações. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,


1922.
PROTA, L. Um Novo Modelo de Universidade. São Paulo: Editora
Convívio, 1987.
ROSECRANCE, R. The Rise of the Trading State: Commerce and Conquest
in the Modern World. New York: Basic Books, 1986.
SCHWARTZMAN, S. Um Espaço para a Ciência. A Formação da
Comunidade Científica no Brasil. Ministério da Ciência e Tecnologia,
2001.
SILVEIRA, A. M. da, Filosofia e Política Econômica: O Brasil do
Autoritarismo. PNPE/IPEA, R. de Janeiro, 1992.
SNOW, C. P. The Two Cultures; and a Second Look. Cambridge University
Press, 1959.
SNYDER, R. C. et. al. (eds.) Foreign Policy Decision-Making: An Approach
to the Study of International Politics. New York: Free Press, 1962.
TWAIN, Mark. Joana d’Arc. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
TOYNBEE, A. Experiências. Petrópolis: Editora Vozes, 1970.
WHITAKER B. The Foundations. An Anatomy of Philanthropic Bodies.
Harmondsworth: Penguin Books, 1974.

45
Abordagem Clássica
O NASCIMENTO DO CONCEITO
DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA
GREGA: os dilemas da política em
As Suplicantes, de Ésquilo
Marcelo Alves1

Introdução
Desde algum tempo, há uma tendência, presente em diferentes
campos do conhecimento, em buscar-se a origem de determinados con-
ceitos, práticas ou valores para muito além daquilo que seria, de um
ponto de vista crítico, razoável de se esperar. Trata-se, em alguns casos,
de verdadeira obsessão por assinalar, no ponto mais remoto da história,
a primeira configuração de um dado conceito, prática ou valor. Nesses

1  Doutorando em Filosofia na UFSC, bolsista da CAPES e professor, licenciado, nos Cursos de


Relações Internacionais e Direito da UNIVALI. Autor dos livros Antígona e o direito (Curitiba:
Juruá, 2007), Leviatã: o demiurgo das paixões (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2001) e
Camus: entre o sim e o não a Nietzsche (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2001). Parte dos
resultados apresentados neste artigo tem origem na pesquisa intitulada “O direito do mais fraco na
Tragédia Grega: um estudo a partir da tragédia As suplicantes, de Ésquilo”, desenvolvida de agosto
de 2007 a julho de 2008 e financiada pelo Programa de Bolsas de Iniciação Científica-ProBIC, que
é mantido pela UNIVALI. Aproveito ainda para deixar aqui registrados os meus agradecimentos
aos professores Jason de Lima e Silva, Paulo Rogério Melo de Oliveira e Paulo Emílio Vauthier
Borges de Macedo pela leitura dos originais e pelos comentários e sugestões oferecidos com tanta
amizade. Também sou grato à Profa. Karine de Souza Silva, que indicou e facilitou o meu acesso
aos documentos referentes ao asilo político no contexto da União Europeia. E-mails para contato:
unimalves@terra.com.br; malves@univali.br

49
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

casos, trava-se uma verdadeira corrida pela precedência histórica (no


sentido simplista de datação anterior), cuja linha de chegada deve ser
um documento ou um fato tido como original, tido como o ponto de
partida para a compreensão daquele conceito, prática ou valor, ou seja,
deve ser o seu ab ovo. Nesse afã, muitas vezes improváveis relações são
estabelecidas e temerárias conclusões extraídas. Os campos do Direito
e das Relações Internacionais não estão imunes a este tipo de corrida:
não estranhe, caro leitor, se encontrar algum dia o Código de Hamurabi
citado como fonte do Direito Previdenciário ou do Estatuto da Criança
e do Adolescente, nem se ler por aí que a Liga de Delos — uma liga for-
mada por algumas das Cidades-Estado da Grécia Antiga — nada mais
foi do que uma primeira versão da União Europeia, que a Guerra Fria
já existia na Idade Média ou que os Romanos inventaram a Globaliza-
ção (não sem controvérsia, pois outros, lembra-me o atento Prof. Pau-
lo Melo, juram que a precedência é de Alexandre, o Grande). Quanto
mais inusitado, improvável ou longínquo for o “achado”, pensam alguns,
maior a originalidade e a erudição que uma tal “descoberta” revela. À
força de tanto querer encontrar, sempre se acaba por achar ou, o que
é mais comum, por inventar um achado. Como não quero que o meu
esforço aqui seja confundido com este tipo de intento, irei de antemão
indicar em que sentido se pode falar de um nascimento do conceito de
asilo político na Tragédia Grega.
Também ao conceito de asilo político são atribuídas fontes as mais
longínquas e diversificadas: em qualquer rápida pesquisa, encontra-se
quem afirme que o conceito remonta aos Egípcios, pois estes já reco-
nheceriam o direito de asilo àqueles que permanecessem junto aos seus
templos; outros assinalam que os Judeus também asseguravam proteção
àqueles que estivessem nos templos de algumas de suas cidades; outros
ainda atribuem prática semelhante aos Gregos da Antiguidade, aos Ro-
manos e aos Cristãos da Idade Média2; e há quem afirme tudo isso de

2  Na verdade, não apenas os templos, mas todo lugar tido como sagrado (altares, santuários,
mosteiros, cemitérios etc.) era percebido como um lugar submetido apenas às leis divinas e,
portanto, livre da jurisdição das leis humanas. Por isso, era potencialmente um refúgio para
aqueles perseguidos, justa ou injustamente, pelas autoridades civis, pela multidão ou por qualquer
leigo. Obviamente que, na prática, a acolhida do asilado dependia do sacerdote ou representante
religioso responsável por aquele lugar sagrado, o que sempre dava margem para diferentes
atitudes, dependendo da interpretação dos fatos e dos interesses em jogo, ainda que a regra fosse
acolher o perseguido.

50
Marcelo Alves

uma só vez ou apenas parte disso. O mais interessante, contudo, é aquilo


que há de comum entre estas diferentes posições e supostas fontes: a
ideia de asilo parece estar, na origem, diretamente relacionada à dimen-
são religiosa ou, para ser mais preciso, ao sagrado. O caráter sagrado
conferido a um certo lugar estende-se àqueles que ali se encontram e
exclui o poder e a jurisdição das leis e das autoridades leigas. A propó-
sito, o sentido original da palavra “asilo”, que é grega, não dá margem a
dúvidas e indica com precisão o que nela está em jogo: a inviolabilidade3
do lugar e, por extensão, daqueles que ali estejam.
Sem dúvida, algo significativo é conquistado ao se resgatar esta
dimensão religiosa presente na ideia de asilo, pois a inviolabilidade é,
de fato, um elemento fundamental não só para a configuração do con-
ceito e da prática de asilo político, mas, de modo mais abrangente, para
a própria configuração e prática da diplomacia. No entanto, é preciso
não esquecê-lo, ainda se está no campo da Religião e não propriamente
naqueles do Direito e da Política, campos nos quais asilo político e di-
plomacia, por exemplo, aparecem como resultados da vontade humana
e não da vontade divina. Por certo que tanto o Direito quanto a Políti-
ca surgem estreitamente vinculados à dimensão religiosa, mas o fato,
igualmente verdadeiro, é que eles se constituem progressivamente em
campos com a sua própria especificidade e que, sobretudo, possuem
um fundamento distinto daquele da religião. Portanto, entendo que um
conceito como o de asilo político (ou de direito de asilo, como preferem
alguns autores) requer que o recuo histórico em busca de uma suposta
origem se dê, no máximo, até o ponto em que se pode divisar, ao mesmo
tempo, a configuração daquilo que constitui a sua estrutura conceitual e
o início, pelo menos em gérmen, de uma distinção entre religião e polí-
tica (e, por extensão, também entre religião e direito), especialmente no
que diz respeito aos seus fundamentos.
A Tragédia Grega — produto e coprodutora de uma profunda
transição de mentalidade: dos valores aristocráticos para os valores de-
mocráticos, do pensamento mítico para o pensamento filosófico, da re-
ligião para a política — tem precisamente como uma de suas marcas
trazer à cena, ao debate, as ambiguidades, flutuações, oposições, deslo-

3  Cf. o verbete (asylos) e suas variações em, por exemplo, PEREIRA, Isidro. Dicionário
grego-português e português-grego. 6. ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984, p. 88 e
BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 2000, p. 294-95.

51
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

camentos, mudanças de sentido de palavras que até então pertenciam


exclusivamente a este ou àquele campo semântico4. Várias expressões do
campo da religião (especialmente da moral religiosa), por exemplo, são
apresentadas em conflito com novos conteúdos que lhes são atribuídos
durante o jogo dramático, conteúdos estes em processo de formação na
Atenas do século V a.C., em que o cidadão, a cada voto nas assembleias,
ganhava em confiança em relação aos seus próprios poderes, começava
a sentir-se autônomo, emancipado das forças divinas e capaz de decidir
sobre o seu próprio destino. Assim, por exemplo, numa peça como An-
tígona, de Sófocles, encenada pela primeira vez em 442/441 a.C., em ple-
no apogeu de Atenas, enquanto a protagonista compreende Díke (Justi-
ça) como sendo aquilo conforme aos preceitos religiosos, Creonte, o rei
de Tebas, entende Díke como aquilo que corresponde à vontade daquele
que detém o poder político e que, por vezes, pode até mesmo contrariar
a moral religiosa, quando julgar que isso é o melhor para a pólis (Cida-
de-Estado). Leis divinas e leis humanas são, desse modo, colocadas em
rota de colisão. Perceba-se, no entanto, que Antígona e Creonte, a rigor,
lutam pela mesma coisa, por justiça, mas não conseguem chegar a um
consenso sobre o seu significado. Cada qual aferra-se à sua concepção
de justiça e, por isso, ambos acabam arrastados para a ruína.
Uma lição que Antígona parece indicar, portanto, é a de que a con-
cepção de justiça deve integrar as duas leis, a divina e a humana, e não se
prender cegamente a apenas uma delas. Integração, aliás, é bem o que se
pode esperar de uma obra de transição: o antigo e o novo devem poder
se encontrar, se articular, coexistir de algum modo, mas, nesse percurso,
também as diferenças entre um e outro acabam sendo apontadas, as
oposições sinalizadas, os fundamentos apresentados e, ao menos por
comparação, problematizados. Nesse sentido, a Tragédia Grega oferece
inúmeras transições de conceitos e práticas do campo da Religião para
os campos do Direito e da Política. Um delas, a meu ver, é a transição da
súplica e da hospitalidade para o que hoje se chama asilo político, espe-
cialmente na tragédia As suplicantes, de Ésquilo, obra na qual, ademais,
é apresentada a vontade humana (mais especificamente, a vontade do
povo) como fundamento para a Política e para o Direito.

4  Cf. VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e ambiguidades na Tragédia Grega. In: VERNANT, Jean-
Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.
p. 7-24.

52
Marcelo Alves

Da súplica e da hospitalidade no mundo grego antigo


Na Grécia Antiga, algumas práticas encarnavam valores que, pelo
amplo reconhecimento que tinham naquela cultura, chegaram a ser
percebidos, inclusive pelos gregos de então, como “as leis comuns dos
helenos”. Eram valores que, pressupunha-se, deveriam ser observados
por qualquer grego e qualquer pólis, eram suas leis não escritas. Não
respeitar estes valores, equivalia a colocar-se fora da civilização (uma
vez que os Gregos percebiam a si próprios como os representantes da
civilização), era colocar-se ao nível da barbárie. Em síntese, são eles:
dar funeral aos mortos, acolher os suplicantes (inclua-se aquele que se
rende no campo de batalha, cuja vida deve, então, ser poupada), saber
dar e receber hospitalidade e cumprir os juramentos (ou seja, cumprir
com a palavra dada). São deveres cuja origem é religiosa e que dizem
respeito diretamente às relações humanas, deveres estes unificados por
um mesmo princípio: o respeito pelo outro (inclusive na situação limite
da guerra, cuja regulação parece ter sido justamente a preocupação ini-
cial em nome da qual tais valores foram concebidos)5.
De Homero a Tucídides, multiplicam-se as passagens e situações
em que esses valores são evocados: para o primeiro, enquanto leis di-
vinas; para o segundo, após todo o processo de transformação sofrido
pela e com a pólis democrática, quase como um, dir-se-ía hoje, direito
das gentes. Presentes nos mitos, principal matéria-prima dos tragedió-
grafos, esses valores também serão abundantemente tematizados pelas
tragédias e, por meio delas, apresentada a transição de seu fundamento
religioso para um fundamento cada vez mais jurídico-político.
O ciclo de tragédias dedicadas às desventuras da família de Édipo
é exemplar quanto à recorrente abordagem — logo, também quanto à
importância — daqueles valores, pois cada um deles cumpre, no con-
junto das peças, algum papel decisivo nas tramas: na origem da tragédia
familiar está o desrespeito à lei da hospitalidade (na juventude, Laio,
futuro pai de Édipo, é hóspede do rei Pélops e, apaixonado, rapta seu fi-
lho, Crisipo, atraindo sobre si uma maldição lançada por seu anfitrião);
o descumprimento da palavra dada será — em Sete contra Tebas, de
Ésquilo, e em As fenícias, de Eurípides — a causa imediata da morte

5  Cf. ROMILLY, Jacqueline de. La loi dans la pensée grecque. 2. ed. Paris: Les Belles Lettres, 2002.
p. 42.

53
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

de Etéocles e Polinices, ambos filhos de Édipo e que se entrematam no


campo de batalha (eles haviam acordado cada qual permanecer no tro-
no de Tebas por um ano, mas, após o primeiro ano, Etéocles recusou-se
a ceder o cetro, o que fez com que Polinices, furioso, procurasse apoio
na rival Argos e comandasse um terrível ataque contra a sua cidade na-
tal para conquistar o trono); o esforço de Antígona para sepultar Polini-
ces e a lei proibitória ditada por Creonte estão no centro do enredo da
tragédia Antígona, de Sófocles (e o mesmo conflito aparece ao final de
As fenícias, de Eurípedes, que também escreveu uma As suplicantes, que
tem como tema a súplica das mulheres de Argos ao mítico rei de Atenas,
Teseu, para que este intervenha junto aos tebanos, obrigando-os a con-
ceder que elas prestem as devidas honras fúnebres aos guerreiros argi-
vos mortos na grande batalha contra Tebas); expulso de Tebas por seus
filhos, após a terrível descoberta de que matara o pai e casara-se com a
própria mãe, Édipo vaga como mendigo pela Grécia, acompanhado por
Antígona, até chegar a um bosque em Colono, imediações de Atenas,
onde suplica asilo ao rei Teseu, que lhe concede e o protege da tentativa
de Creonte de repatriá-lo para Tebas: eis o tema de Édipo em Colono, de
Sófocles (não esqueçamos do papel da súplica também na já citada peça
As suplicantes, de Eurípides, que deriva, como visto, das desventuras da
família de Édipo).
Ainda que estes quatro valores comuniquem-se entre si pelo fato,
já assinalado, de terem como princípio comum o respeito pelo outro, há
entre dois deles uma relação tão íntima que, para bem compreender um,
é preciso levar em consideração o outro: acolher aquele que suplica e
saber dar e receber hospitalidade. A propósito, talvez não seja por acaso
que o ciclo das tragédias envolvendo diretamente Édipo tenha como
origem a quebra da lei da hospitalidade e termine justamente com a
súplica por asilo. Legítimo e jovem herdeiro do trono de Tebas, Laio
seria alvo de um usurpador do trono e, por isso, teria, segundo uma das
versões do mito, procurado refúgio no reino de Pélops. Se Laio, aquele
príncipe que ganhou asilo, trai a confiança de seu anfitrião, Édipo —
aquele que aprendeu e se purificou de seus erros por meio de terrível
sofrimento, aquele mendigo (pedinte, suplicante) que teve a sua súplica
por asilo atendida — honrará seu anfitrião, trazendo não desgraças, mas
bênçãos para o solo que o acolheu. Desse modo, o equilíbrio rompido
por Laio é restabelecido por Édipo em Colono.

54
Marcelo Alves

O deus protetor dos suplicantes é, bem significativamente, o


mesmo da hospitalidade, Zeus, em cuja balança de ouro, narra a Ilíada,
pesa o destino dos mortais e vela para que os pratos sempre recobrem o
seu equilíbrio, ou seja, vela para que a injustiça não prevaleça e, assim,
o mundo se mantenha equilibrado. A própria Ilíada é a narrativa de
um mundo em busca de seu re-equilíbrio. E o desequilíbrio que está
na origem do episódio mais marcante da mitologia grega, a Guerra de
Tróia, é o desrespeito à lei da hospitalidade: Páris é hóspede de Mene-
lau, de quem rapta a esposa, Helena. Diferentemente daquilo que pode
imaginar um desavisado leitor contemporâneo, Menelau não é apenas
mais um marido traído que quer matar ou quebrar a cara do amante; ele
encarna, sobretudo, um valor sagrado que foi violado e que, por isso, é
capaz de mobilizar tantos aliados e fazer o conflito tomar as proporções
que tomou. Por sinal, será a Zeus, o garantidor da justiça e aquele que
vela pela lei da hospitalidade, que Menelau dirigirá sua prece antes de
atacar Páris (Alexandre), uma prece que evidencia o princípio que está
em jogo:
Dá-me, Zeus pai, que consiga castigo infligir a Alexandre,
causa de minha desonra! Que sob meus golpes sucumba,
para de exemplo servir aos vindouros, que horror manifestem
de retribuir com vilezas a lhana e amistosa hospedagem.6

Pois bem, hospitalidade e súplica comparecem, sendo respeitadas


ou violadas, ao longo de toda a Ilíada e emprestam força dramática à cena
que finaliza a epopeia. O poema homérico termina com uma imprová-
vel súplica atendida, seguida de uma inesperada — para nós, leitores do
século XXI — hospitalidade oferecida. Ao ferir mortalmente Heitor, e
vingar a morte de seu querido amigo Pátroclo, o colérico Aquiles anun-
cia ao moribundo guerreiro troiano que seu corpo não será sepultado, e
sim servirá de alimento para cães e aves. Heitor, agonizante, suplica para
que seu corpo seja entregue aos seus e possa receber as honras fúnebres,
mas Aquiles, irredutível, não cede e, depois de arrastar o corpo do herói
diante das muralhas de Tróia, leva-o para o acampamento grego. No
meio da noite, Príamo, pai de Heitor, chega às escondidas à tenda de
Aquiles, que espantado vê o ancião, na condição de suplicante, agarrar-

6  HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [198?]. Canto
III, v. 351-354, p. 84.

55
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

se aos seus joelhos e beijar sua mão, pedindo pelo corpo do filho e, para
sensibilizar o herói, comparando a sua condição de pai e de ancião com
a de Pélias, pai de Aquiles e com igual idade avançada. A súplica feita
por Príamo aplaca a ira de Aquiles e leva-o, condoído, a uma dura refle-
xão sobre a condição humana: “Viver sempre em tristeza é lote humano:
existir sem cuidados é dos deuses”7. O sofrimento aparece como aquilo
que, de um lado, separa homens e deuses e, de outro, como aquilo que
reúne os homens em uma mesma comunidade: a comunidade daqueles
que sofrem, e que, por isso, por compartilharem a mesma condição mi-
serável, devem estar dispostos a acolher uns aos outros, especialmente
aqueles que, dilacerados pelo destino, suplicam. Enquanto fala, Aquiles
ergue Príamo e faz com que ele se sente: fala e gesto convergem. Aceitar
a súplica significa acolher o outro, recebê-lo, tratá-lo com hospitalidade.
Aquiles entregará o corpo de Heitor, mas antes tratará de Príamo como
a um hóspede: providenciará uma ceia e preparará para ele um leito.
Depois, perguntará quanto dias serão precisos para os funerais de Hei-
tor e prometerá que os combates serão suspensos durante aquele tempo
— o que, como indica o mito, será cumprido. Assim, o último canto da
Ilíada condensa justamente aqueles quatro valores (dar funeral aos mor-
tos, acolher o suplicante, saber dar e respeitar a hospitalidade e cumprir
a palavra dada). Contudo, a súplica e a hospitalidade entre Príamo e
Aquiles é que dão o tom e o sentimento final do poema: é por meio delas
que Homero consegue fazer com que o seu ouvinte, hoje leitor, estabe-
leça, ao final, uma profunda relação de simpatia (literalmente, fique com
pathos, compaixão) pelos dois personagens e por seus destinos. A bem
da verdade, a simpatia é pela humanidade que os dois compartilham,
revelada em toda a sua extensão pela súplica e pela hospitalidade, que
abrem no coração da guerra esse terno instante, essa sagrada possibili-
dade, de reconhecimento e reconciliação.
Na Odisséia, súplica e hospitalidade continuam desempenhando
importante papel na trama e nos valores que a poesia homérica põe em
movimento e consagra, uma poesia que, vale lembrar, é reconhecida

7  HOMERO. Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, [195?].
Canto XXIV, [versos 525-526]. Disponível em: http://www.consciencia.og/iliada-de-homero_
canto-xxiv. Acesso em: 06 set. 2010.

56
Marcelo Alves

como formadora, e não raro como fundadora, da cultura grega8. A nar-


rativa central é em torno do esforço de Ulisses para, após a Guerra de
Tróia, voltar para casa, mas ela é permeada por flashes que permitem ao
ouvinte/leitor saber o que está acontecendo em Ítaca, o reino do herói,
onde ele é por muitos julgado morto e sua esposa, Penélope, cobiçada
por inúmeros pretendentes. Enquanto em Ítaca, a lei da hospitalidade
é desrespeitada pelos pretendentes — que abusam da condição de hós-
pedes, dilapidando as riquezas de Ulisses e coagindo a sua família —, o
próprio herói, entre suas muitas aventuras e desventuras, ora é vítima
da falta de hospitalidade (quando é forçado a permanecer numa ilha
pela ninfa Calipso ou quando, após suplicar hospitalidade ao cíclope
Polifemo, é tornado prisioneiro e tem vários companheiros devorados
pelo monstro), ora é acolhido como suplicante e tratado como hóspe-
de (quando suplica proteção a um rio para fugir da fúria de Poseídon;
quando, náufrago, suplica ajuda à jovem Nausícaa ou quando, também
suplicante, é acolhido por Alcínoo, que o recebe em seu palácio e lhe
concede todos os meios para voltar à Ítaca). As duas narrativas para-
lelamente exploram o tema da súplica e da hospitalidade e quando fi-
nalmente se encontram, com a chegada de Ulisses em Ítaca, o poema
concentra a sua força dramática na figura de um mendigo, humilde su-
plicante, e o modo como ele é acolhido pela família e amigos de Ulisses e
o modo como ele é repudiado pelos demais. Uma última vez, e de modo
definitivo, as leis da súplica e da hospitalidade são postas à prova. Dis-
farçado de mendigo, Ulisses pode conhecer melhor o coração e o caráter
de cada um daqueles que estão em sua casa. Sua vingança contra os pre-
tendentes se reveste de um significado maior: ele passa a ser um instru-
mento da vontade dos deuses, o flagelo enviado para punir aqueles que
não respeitam as leis divinas da súplica e da hospitalidade. No momento
fatal, o pretendente que se abraçar aos joelhos de Ulisses — o gesto típi-
co da súplica — não encontrará acolhida, será abatido pela implacável
mão do herói, pois ele próprio foi incapaz de acolher, de distribuir dons
hospedais e de respeitar os seus anfitriões. Ulisses torna efetivo, como já

8  Cf., entre muitos outros, JAEGER, Werner. Homero como educador. In: ______. Paidéia: a formação
do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 61-84.

57
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

fizera ao cegar Polifemo, um dos epítetos de Zeus: aquele que “vinga os


suplicantes, e a bons e honrados hóspedes protege”9.
Desse modo, uma das principais transformações sofridas por
Ulisses ao longo de sua jornada está diretamente relacionada à súplica e
à hospitalidade, bem como aos valores inerentes a estes deveres religio-
sos: um dos maiores heróis da Guerra de Tróia vive a condição de su-
plicante, depois passa para a de suplicado e, por fim, torna-se vingador
de Zeus, para, assim, reconquistar a sua condição de herói, seu palácio e
sua família. É preciso se deter um pouco mais em cada um desses papéis
e na relação entre eles para melhor compreender o fenômeno religioso
da súplica. Dos três elementos que compõem o rito da súplica — su-
plicante, suplicado e divindade garantidora dos direitos do suplicante,
Zeus Xénios (literalmente, aquele que protege os estrangeiros10) — o su-
plicado desempenha um importante papel intermediário entre aquele
que suplica e a divindade que o protege. O suplicante — que pode ser
tanto um ser humano que sofre algum tipo de injustiça quanto alguém
perseguido por ter praticado um delito ou simplesmente alguém abati-
do pelos reveses do destino — é aquele que, em suma, se encontra numa
desfavorável relação de desequilíbrio com o mundo à sua volta e para
quem só resta, como última alternativa, suplicar. Para de algum modo
re-equilibrar essa relação, ele suplica a alguém que goze de poder sufi-
ciente para tanto. Há, portanto, uma desigualdade que está na base da
súplica: de um lado, desigualdade entre os poderes de um ser humano e
aquilo que o ameaça e, de outro, desigualdade entre ele e aquele a quem
suplica (sem contar a desigualdade entre a divindade e o suplicante e o
suplicado). Como elemento intermediário, ao suplicado cabe um duplo

9  HOMERO. Odisséia. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ars Poética, Edusp, 1992. Livro
IX, versos 205-206 [em muitas outras edições, corresponde ao verso 270], p. 181.
10  “Le suppliant se confond avec l’étranger dans la mesure où ils implorent tous les deux une
protection dont ils se trouvent exclus, le premier par quelque injustice dont il est la victime ou par
suite d’un délit dont il est l’auteur, et le second parce qu’il est le nouveau venu, l’homme en quête
d’un foyer qui l’accueille” (BEAUJON, Edmond. Le dieu des suppliants: poésie grecque et loi de
l’homme. Neuchâtel: Editions de La Baconnière, 1960. p. 57). A identificação entre suplicante e
estrangeiro ainda é reforçada pela palavra grega (hikétis), usada para designar o suplicante
e que significa, no sentido próprio, “recém-chegado”. Enfim, suplicante e estrangeiro compartilham
uma mesma condição: a daquele que precisa ser acolhido, a daquele que, recém-chegado, clama
por hospitalidade. Nesse sentido, portanto, é bastante compreensível que a mesma divindade os
proteja (e que ora ela seja designada como Zeus Xénios ora como Zeus Hikésios, ou ainda como
Zeus Aphíktor, variação poética, usada por Ésquilo, que igualmente preserva aquela polissemia) e
que súplica e hospitalidade sejam indissociáveis no mundo grego antigo.

58
Marcelo Alves

papel decisivo: acolher ou recusar o suplicante e, ao fazer uma coisa ou


outra, julgar o seu destino, ou seja, ele é que está, momentaneamente,
com a balança na mão, ele é o intérprete da justiça dispensada por Zeus,
ele representa, nesse instante, a própria divindade, a ponto inclusive de
poder “perdoar” — privilégios estes que, obviamente, implicam uma
descomunal responsabilidade, pois se pesar errado, se não dispensar a
devida justiça, o suplicado prestará contas àquela divindade em nome
da qual agiu (ou deixou de agir).
Portanto, o suplicado é a potência terrena que empresta (ou não)
efetividade à lei divina e, ao mesmo tempo, aquele a quem cabe inter-
pretá-la e aplicá-la ao caso concreto. E, de fato, a tarefa não é simples,
pois, ainda que a regra seja acolher o suplicante, a Odisséia, inigualável
elogio da hospitalidade e da atenção devida ao suplicante, não deixa de
indicar os abusos que podem ser cometidos em nome da hospitalidade e
da súplica: os pretendentes usam a lei da hospitalidade, banqueteando-
se e exigindo dispendioso tratamento, para desse modo forçar Penélope
a decidir com quem se casar; Iro é apresentado como um mendigo que
tira proveito de sua condição (é um mendigo profissional) e que é insen-
sível à miséria alheia e à lei da hospitalidade, pois insulta e pretende ex-
pulsar violentamente do palácio o outro mendigo (Ulisses disfarçado);
e, por fim, diante da morte iminente, após todas as ofensas e violências
contra os seus anfitriões e contra o disfarçado suplicante, até mesmo um
dos pretendentes, Liodes, serve-se do expediente da súplica para tentar
se salvar. Por isso, além de algum tipo de poder, o requisito fundamental
para que o suplicado cumpra bem o seu papel é a sua sabedoria, a sua
prudência, que dele faz um homem piedoso, em duplo sentido: religio-
so e humano. Ele tem amor e respeito às coisas religiosas e compaixão
da miséria e sofrimentos humanos. Respeito aos deuses e respeito aos
homens confundem-se na ação do suplicado que bem executa a sua
função. Assim procede Ulisses, frequentemente designado por Homero
como o astuto, o prudente: não poupa a vida do pretendente que lhe
suplica porque, ímpio, ele faz apenas um uso oportunista da lei divina,
mas poupa a vida de um aedo, Fêmio, que igualmente lhe suplica, por-
que ali ele estava trazido à força pelos pretendentes, e também a vida
de um arauto, Medonte, porque sempre se mostrara solícito a seu filho,
Telêmaco, que acolhe a sua súplica (Canto XXII, versos 310-416).

59
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

Se piedade e discernimento são qualidades exigidas de um supli-


cado, assim é porque a súplica, e aquele que a encarna, obriga o supli-
cado a adentrar e a se mover no delicado campo dos valores. Apesar de
toda a sua fragilidade, indigência e privação, o suplicante detém uma
curiosa força, uma força, aliás, que ainda hoje é experimentada cotidia-
namente a cada vez que, por exemplo, alguém se depara com um pedin-
te no semáforo, atirado nas calçadas da cidade ou deitado em um ponto
de ônibus e sente certo desconforto, mal-estar, incômodo com aquela
situação, e mesmo quando desvia o olhar, o incômodo não desapare-
ce. Com bastante frequência, este incômodo transforma-se em irritação
e, em certos casos, em raiva contra aquele que o despertou ou, atitude
muito comum, leva o incomodado a justificar para si, e para os que estão
à sua volta, que aquele que pede o faz não na verdadeira condição de
mendigo, suplicante, mas como um vagabundo, um oportunista da boa
fé alheia. O fato é que, mesmo quando a súplica não é acolhida, aquele
que se sente suplicado é forçado a (re)agir diante daquilo que a súplica
e o suplicante representam: quer seja por meio de uma raiva que, antes
de tudo, denuncia o quanto o suplicado se sente engajado, contra a sua
vontade, em uma questão que dele exige reconhecer ou ignorar, naquele
instante e em relação a um indivíduo concreto, um valor tido (ou senti-
do) como fundamental; quer seja por meio de uma justificação que, ao
tentar negar a condição de legítimo suplicante àquele que suplica, reco-
nhece, implicitamente, como insuportável a atitude de ignorar aquilo
que um suplicante representa, o valor que ele e seu gesto evocam. Mas o
que é, afinal, um suplicante e que força é esta que ele possui? Vale a pena
retomar a inspirada reflexão de Beaujon:
o suplicante é o homem que propõe ao olhar alguma verdade terrível e secreta,
algum problema do qual não podemos nos esquivar de sua solução simplesmente
evitando de vê-lo: o sofrimento está ali, ele se denuncia, se desnuda; é preciso,
quer se queira ou não, voltar os olhos para ele, é preciso responder ao desafio
que ele lança às pessoas felizes. Como o suplicante é o homem ao qual falta o
poder de realizar, ele deve encontrar algum meio de provocar esta realização.
Em outras palavras, é preciso que o suplicante, que, à primeira vista, conta muito
pouco, tome a gravidade de um símbolo; com isso, uma resposta eficaz se impõe
tão logo o espírito se defronte com a realidade humana que lhe é proposta.
Responder ao suplicante é reconhecer o peso que ele possui no mundo dos
valores; é entrever o que significa um homem e até onde vai um símbolo11.

11  Tradução livre de: “le suppliant est l’homme qui propose au regard quelque vérité terrible et
secrète, quelque problème dont on ne peut esquiver la solution en évitant simplement de le voir; la

60
Marcelo Alves

Enquanto último recurso do qual um ser humano pode lançar


mão, a súplica é o que se pode chamar de uma experiência-limite e, por
essa condição, o valor que ela evoca é um valor fundamental, aquilo sem
o qual a humanidade daquele que suplica e a humanidade do suplica-
do encontram-se, ambas, irremediavelmente ameaçadas. Solidariedade,
compaixão, filantropia, humanismo, responsabilidade ou direitos hu-
manos (dignidade da pessoa humana) são, grosso modo, alguns dos di-
ferentes nomes para esse valor que a súplica evoca e do qual o suplicante
é poderoso símbolo. No entanto, não se pode esquecer que, no contexto
da Grécia Antiga, a súplica e o suplicante têm sobretudo um papel ins-
trumental, ou seja, são, a rigor, ocasião para a hospitalidade, esta sim a
prática (e, ao mesmo tempo, o valor) que protege aquilo que o suplican-
te simboliza. A hospitalidade é a prática que aproxima os homens, que
os reúne e, assim, os torna mais capazes de enfrentar as adversidades e
os sofrimentos que a sua condição lhes impõe. Se o respeito pelo outro
é o elemento que unifica aqueles quatro valores mais caros aos Gregos,
a hospitalidade é, dos quatro, aquele que, se plenamente observado, re-
aliza os demais. Dito de outro modo, a observação estrita da lei da hos-
pitalidade já contempla aquilo que é recomendado pelas outras três leis
comuns dos gregos: sepultar os mortos, acolher os suplicantes e cumprir
a palavra dada. A hospitalidade é, nesse sentido, a melhor expressão do
respeito pelo outro e torna-se compreensível, portanto, o papel singular
que ela ocupa na cultura grega antiga: “o mundo grego era fundamental-
mente governado pela instituição da hospitalidade, que não apenas vin-
culava as diferentes famílias dentro de uma cidade, mas fornecia uma
base para as relações entre as cidades”12. A hospitalidade, sempre acom-
panhada da súplica, é, pois, um belo exemplo de rito e valor religioso

soufrance est là, elle s’avoue; elle se dépouille; il faut, bon gré mal gré, jeter les yeux sur elle, il faut
répondre au défi qu’elle lance aux gens heureux. Comme le suppliant est l’homme auquel manque
le pouvoir de conclure, il doit trouver moyen de la provoquer, cette conclusion. En d’autres termes,
il faut que le suppliant, qui, au premier regard, ne pèse pas grand-chose, prenne la gravité d’un
symbole; une réponse efficace s’impose dès lors, si seulement l’esprit fait acte de préseance à la
réalité humaine qui lui est proposée. Répondre au suppliant, c’est reconnaître le poids qui est le sien
dans le monde des valeurs; c’est entrevoir ce que signifie un homme et jusq’où porte un symbole”
(BEAUJON, Edmond. Le dieu des suppliants, p. 59).
12  Tradução livre de: “The Greek world was fundamentally governed by the institution of
hospitality, which not only linked individual households within a city but provided a framework
for relations between cities.” (ZAIDMAN, Louise Bruit; PANTEL, Pauline Schmitt. Religion in the
Ancient Greek City. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 80).

61
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

que, além de ser incorporado pelas práticas sociais internas, constituirá


as práticas referentes às relações inter-póleis, estendendo-se, tanto no
âmbito interno quanto externo, para os campos, então em processo de
formação, da política e do direito. A Tragédia também não deixará de
abundantemente abordar a súplica e a hospitalidade, mas em frequente
diálogo não tanto com os valores aristocráticos, como em Homero, e
sim com os valores democráticos do século V a.C. e sob a pressão de um
processo crescente de autonomia do cidadão frente aos deuses, ainda
que ele continue bastante solidário aos valores e ritos religiosos, mas de
uma religião, ela também, bastante contaminada pela política e cada vez
mais a serviço dos interesses da pólis.

Direito e política na tragédia grega


O gênero trágico nasce intimamente relacionado com o mito e
sua inerente religiosidade. São nas festas em honra a Dioniso que os
“adeptos do deus do vinho disfarçavam-se em sátiros, que eram conce-
bidos pela imaginação popular como ‘homens-bode’. Teria nascido as-
sim o vocábulo tragédia (‘tragoidía’ = ‘tragos’, bode + ‘oidé’, canto + ‘ía’,
donde o latim tragoedia e o nosso tragédia”13. Essa arte de se disfarçar
para cantar louvores a Dioniso irá se transformar em arte dramática, e
culminará, na Antiguidade, com o advento e a consolidação do gênero
trágico. Mas, para que isso ocorra, a cidade terá um papel fundamental:
será sob a proteção estatal que a Tragédia Grega florescerá e conhecerá
o seu ápice. O tirano Pisístrato é o responsável pela incorporação de
Dioniso e seu culto — até então um culto popular e rural — à religião
pública de Atenas e, paralelamente, pela promoção da maior e mais sun-
tuosa das festas realizadas na Grécia em homenagem ao deus do vinho:
as Grandes Dionisíacas ou Dionisíacas Urbanas. A partir daí, por meio
dos festivais competitivos promovidos durante as Dionisíacas Urbanas,
o gênero trágico, juntamente com o cômico, iria se desenvolver até atin-
gir o seu apogeu no século V a.C., não por acaso também o século do
apogeu da democrática Atenas.
Essa íntima relação entre o mito e a pólis aparece no conteúdo e
na própria estrutura da tragédia. O tragediógrafo, em síntese, serve-se

13  BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
p. 10.

62
Marcelo Alves

da narrativa mítica — registro do modo de ser e pensar arcaicos e ele-


mento da cultura amplamente conhecido pelo conjunto dos cidadãos —
como um pré-texto para a elaboração de suas tragédias, cujo conteúdo
aborda a nova realidade vivida no quadro da pólis democrática e de suas
instituições. Vernant esclarece com precisão essa interação entre o mito
e a pólis na tragédia:
O drama traz à cena uma antiga lenda de herói. Esse mundo lendário, para a
cidade, constitui o seu passado – um passado bastante longínquo para que, entre
as tradições míticas que encarna e as novas formas de pensamento jurídico e
político, os contrastes se delineiem claramente, mas bastante próximo para que
os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e a confrontação não
cesse de fazer-se. A tragédia nasce, observa com razão Walter Nestle, quando se
começa a olhar o mito com olhos de cidadão. 14
De um lado, esse olhar mostra aquilo que a cidade precisou
transformar, superar — as práticas e os valores arcaicos, sintetizados
pela postura heroica, individualista, tão bem representada nos poemas
homéricos; de outro, esse olhar, apesar de nascido na e para a pólis,
não é um olhar narcisista, apologético em relação à nova realidade
social. Por meio da tragédia, a cidade também se questiona, se pro-
blematiza, se reavalia. A tragédia, assim entendida, apresenta-se como
um grande debate sobre o passado, o presente e o futuro da cidade e
de suas instituições.
Entre essas instituições, o Direito ocupa um lugar de destaque
no conjunto das temáticas e preocupações presentes na Tragédia Grega.
No vocabulário jurídico da época, os autores trágicos encontraram rica
fonte de palavras ambíguas, de conceitos com contornos pouco claros,
de palavras imprecisas e com resquício de conteúdos pertencentes a
outros domínios (religião, política, moral, relações familiares etc.). O
Direito, para os Gregos do século V a.C., é uma instituição ainda mui-
to recente e que, em grande medida, aparece misturada aos valores da
moral religiosa do período anterior15, ao mesmo tempo em que procura

14  VERNANT, Jean-Pierre. Tensões e Ambiguidades na Tragédia Grega, p. 10.


15  Essa interpenetração com a religião (e seus valores) é um dos aspectos que fazem com que
muitos recusem-se a chamar de Direito, no sentido estrito, aquilo que constitui o universo jurídico
do mundo grego antigo. Muito poderia ser dito sobre isso, mas aqui não me parece o lugar mais
indicado para um debate sobre o assunto. Por ora, apenas indico que me permito usar a expressão
“Direito” para designar, grosso modo, o conjunto dos procedimentos e valores que compõem
o amplo universo jurídico do mundo grego entre os séculos V e IV a.C., universo jurídico este
constituído “historicamente a partir de procedimentos ‘pré-jurídicos’ de que se libertou e aos quais

63
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

rapidamente se ajustar às novas exigências da pólis democrática. Além


disso, os temas trágicos implicam, com frequência, questões jurídicas,
casos com os quais os tribunais cotidianamente estavam/estão às voltas
e cujos julgamentos, acusações e denúncias tinham a participação dire-
ta dos cidadãos, apresentando-lhes profundos dilemas e deles exigindo
tomadas de posição16.
No plano político, não é diferente. A tragédia reiteradamente co-
loca os heróis diante de escolhas decisivas para o destino da pólis e faz
do coro a voz dos cidadãos17, que condena as ações individualistas e
desmedidas dos heróis, porque elas ameaçam o bem comum e a vida da
pólis, e não se cansa, em contrapartida, de recomendar-lhes prudência,
comedimento, respeito pelo outro e valorização do diálogo, enfim, aque-
les procedimentos e valores caros à política, em especial à democracia.
Em Antígona, de Sófocles, as decisões de Creonte — que pretende fazer
de sua vontade a vontade da cidade e que se recusa a ouvir aqueles que
o aconselham — levam a pólis a ficar “doente”; em Édipo Rei, também
de Sófocles, o protagonista, que salvara Tebas do flagelo da Esfinge, é
posteriormente o responsável pela peste que assola a cidade — punição
divina pelo crime praticado contra Laio e cuja investigação revelará que
o próprio Édipo fora o autor; em Os sete contra Tebas, de Ésquilo, e em
As fenícias, de Eurípides, uma sangrenta guerra entre Tebas e Argos é o
resultado do não cumprimento da palavra dada por Etéocles e da des-
medida ambição e desejo de vingança de Polinices, que o levam a atacar
a terra natal; e os exemplos se multiplicam.
O cidadão ateniense do início do século V a.C., aquele mesmo
que vai ao Teatro de Dioniso assistir às tragédias, também vive às voltas
com os grandes dilemas que a política suscita. Ocupar funções públicas,
fazer parte de uma assembleia e poder decidir sobre as leis e as institui-
ções, enfim, decidir sobre os destinos da pólis implica uma responsa-
bilidade bastante recente para indivíduos que acabaram de conquistar

se opõe, embora em parte permaneça solidário com eles” (VERNANT, Jean-Pierre. O Momento
Histórico da Tragédia na Grécia: Algumas Condições Sociais e Psicológicas. In: ______; VIDAL-
NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 03).
16  Cf. VERNANT, Jean-Pierre. O momento histórico da Tragédia na Grécia, p. 03.
17  O Coro é um importante elemento da estrutura da tragédia e que vincula intimamente o mito
e a pólis, pois ele representa frequentemente o conjunto dos cidadãos, a voz do povo. Mas As
suplicantes, de Ésquilo, é uma interessante exceção: nesta peça, o coro é composto não pelo povo,
mas por aquelas que, juntamente com o rei de Argos, protagonizam o drama.

64
Marcelo Alves

o direito de participar da vida política. A grande reforma de Clístenes,


que cria as condições imediatas para o surgimento da democracia em
Atenas, aconteceu em 509 a.C., aproximadamente. Antes disso, Atenas
estivera sob a tirania de Pisístrato e seus filhos ou sob o domínio da aris-
tocracia. Nesse sentido, a tragédia teve um importante papel na cons-
trução e consolidação da democracia, principalmente em Atenas, pois
os tragediógrafos dramatizavam reiteradamente situações políticas ou
jurídicas que a nova ordem criada pela pólis democrática produzia e que
exigiam dos cidadãos o seu envolvimento, a sua participação. Em suma,
a tragédia colocava artisticamente o cidadão diante de uma situação que
o cotidiano da vida numa pólis produzia, ou poderia produzir, e em re-
lação à qual ele precisava, ou precisaria, decidir18. A tragédia Antígona,
por exemplo, convidava o cidadão ateniense à época (e o de qualquer
Estado hoje) a refletir sobre as relações entre lei moral (no caso, religio-
sa) e lei civil, sobre a ação a ser tomada quando eventualmente a lei civil
contraria a lei moral, sobre os limites e as possibilidades da — chamada
hoje — desobediência civil, sobre a legitimidade do poder político e o
modo de exercê-lo, sobre a distinção entre poder político e poder des-
pótico, e assim por diante. De todo modo, em meio a tantas provoca-
ções, polêmicas, divergências e críticas, uma grande lição sempre podia
ser extraída da tragédia pelo cidadão: o que deve prevalecer, no final das
contas, é o bem da pólis — e, portanto, o bem daquilo que ela representa:
a comunidade humana.
Nascido aproximadamente em 525 a.C., em Elêusis (nas proxi-
midades de Atenas), e falecido em 456 a.C., em Gela (região da Sicília),
Ésquilo é um dos três maiores nomes da Tragédia Grega, ao lado de
Sófocles e Eurípides, e é, dentre eles, aquele que viveu essa transição de
mentalidade de modo mais direto e intenso. Ele nasceu sob o regime da
tirania de Pisístrato e seus filhos, e jovem assistiu às reformas constitu-
cionais de Clístenes, decisivas para a futura democracia ateniense. Além
disso, Ésquilo combateu por sua pólis em duas batalhas lendárias do
mundo grego: Maratona (490 a.C.) e Salamina (470 a.C.), ambas contra
a invasão Persa e das quais Atenas sai fortalecida e como uma nova po-
tência entre as cidades-estado gregas. Esta biografia certamente deixará
suas marcas no homem e no artista, cuja lápide, aliás, nada menciona de

18  Cf. MEIER, Christian. De la tragédie grecque comme art politique. Paris: Belles Lettres, 1991.
p. 08-13.

65
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

sua carreira como tragediógrafo, mas apenas de seu maior feito como
cidadão: “de seu bem reputado valor poderia falar o recinto sagrado de
Maratona e o medo [persa] de espessa cabeleira que o conhece bem”19.
Ésquilo escreveu cerca de 91 peças, das quais chegaram até nós
apenas sete: Os persas, As suplicantes, Os sete contra Tebas, Prometeu
acorrentado e a Trilogia Orestéia, composta pelas peças Agamemnom,
Coéforas e Eumênides20. Na Orestéia, por exemplo, o olhar de Ésquilo
para a sua cidade apresenta de modo inequívoco, por meio das trans-
formações sofridas no universo jurídico, a profunda transição de men-
talidade que se processa e que esperançosamente aponta para um futu-
ro repleto de glórias para Atenas. Para isso, é preciso, entende Ésquilo,
combater a violência no interior da pólis, violência esta que ameaça a
sobrevivência da cidade, na medida em que promove a insegurança, o
caos social e, no limite, a anarquia. Na Orestéia, o Tribunal é o grande
símbolo dessa nova mentalidade jurídica que vigora na pólis, enquanto
uma instituição capaz de garantir que os crimes praticados de forma
dolosa sejam punidos, mas por um caminho ponderado, uma via ra-
cional e política, e não pela vingança cega e automática — tal como a
concepção arcaica de justiça promovia e que autorizava um verdadeiro
morticínio em cadeia — que sempre coloca em risco a ordem social e
não favorece a criação e o fortalecimento dos laços cívicos.
A bem da verdade, Ésquilo não estava propriamente inovando ao
se preocupar em combater a violência em nome da justiça e da pólis. Ele
faz parte de uma longa tradição de poetas e pensadores gregos que reco-
nhecem a necessidade de combater a violência21 e defender a existência
de uma íntima relação entre justiça e política. Já em fins do século VIII
a.C., Hesíodo apresenta todos os males a que está sujeita a cidade que
não reconhece o império de Díke (Justiça), e as bênçãos que se derra-

19  Apud: JURADO, Enrique Ángel Ramos. Introducción. In: ÉSQUILO. Tragedias. Trad. Enrique
Ángel Ramos Jurado. Madrid: Alianza, 2001. p. 09. Eis o epitáfio na íntegra: “A Ésquilo, el hijo de
Euforión, ateniense, contiene este sepulcro de Gela, la rica en cereales. Y de su bien reputado valor
podría hablar el recinto sagrado de Maraton y el medo de espesa cabellera que le conoce bien.”
20  Entende-se como Trilogia três tragédias escritas e apresentadas em um mesmo festival, que
geralmente apresentam uma continuidade de fatos. Além disso, a Trilogia costuma ser completada
por um drama satírico. No caso da trilogia Orestéia, única a chegar até nós na íntegra, os fatos
iniciam-se em Agamemnom, são intermediadas por Coéforas e terminam em Eumênides. Proteu
seria o título do drama satírico que a completava, e que infelizmente se perdeu.
21  Cf. ROMILLY, Jacqueline de. La Grèce Antique contre la violence. Paris: Editions de Fallois,
2000. Sobretudo os capítulos I e II, p. 37-110.

66
Marcelo Alves

mam sobre aquela pólis que se mantém obediente aos limites impostos à
ação humana pela implacável deusa. Uma injustiça cometida no interior
da cidade, e por ela tolerada, incorpora-se ao seu espírito, maculando-o
e atraindo sobre si a fúria de Díke. O erro individual é como uma do-
ença, uma peste que, se não for prevenida e combatida, contamina toda
a pólis. A cidade que se mantém justa goza de boas colheitas, de crian-
ças que nascem valorosas e perfeitas, de vitórias sobre os inimigos, de
bem-aventurança. Em contrapartida, a cidade que admite a injustiça no
seu seio viverá sob os desfavores da deusa, sofrendo com a miséria, as
adversidades climáticas, as pestes e as derrotas nas batalhas, enfim, com
a desventura. A ordem divina recompensa ou castiga a ordem humana
de acordo com a medida da justiça22.
Assim como Hesíodo, Sólon, o legislador responsável por uma
grande reforma política, jurídica e social em Atenas, em 594 a.C., en-
tende que, se a justiça não for rigorosamente observada no interior da
pólis, seus habitantes sofrerão consequências terríveis, mas se dela não
descuidarem, conhecerão os benefícios que só a justiça é capaz de trazer
para os homens: a promoção da vida em sociedade e, por extensão, de
todos aqueles bens, materiais e espirituais, que apenas a cooperação e a
cumplicidade entre os homens torna possível — conforto, prosperida-
de, segurança, amizade, solidariedade, arte, conhecimento etc. Porém,
diferentemente de Hesíodo, Sólon se afasta do argumento religioso para
explicar o papel da justiça no destino da pólis. Para ele, a hybris (desme-
dida) cometida pelos homens, e por eles não prevenida ou controlada,
arrasta paulatinamente a cidade para a ruína, para a sua dissolução. O
raciocínio implícito em Sólon pode ser exemplificado nesses termos:
ao admitir, por exemplo, que um cidadão viole o direito de outro, ou
seja, que ocorra um desequilíbrio na relação entre as duas partes, sem
que qualquer atitude seja feita no sentido de restabelecer o equilíbrio
original que foi rompido, a injustiça tolerada pela cidade facilmente irá
se alastrar, incitando a discórdia entre os cidadãos, a um ponto tal que,

22  HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. 4. ed. São Paulo:
Iluminuras, 2002. p. 35-45. Ver, também, JAEGER, Werner. “Hesíodo e a vida no campo”. In:
_____. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1994. p. 85-105.

67
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

se não for devidamente combatida, poderá implodir a própria cidade


através de uma grande convulsão social23.
Ésquilo, homem de uma época de transição e artista que é, man-
terá a dimensão religiosa inseparável das dimensões jurídica e políti-
ca, explorando toda a complexidade e tensão que está em jogo na nova
mentalidade que a pólis democrática começa a forjar. Nas Eumênides, o
Tribunal é criado por uma deusa (Atena), mas constituído pelos cida-
dãos de Atenas. Assim, a justiça que ele deve visar, por meio da decisão
humana (a votação do júri), é uma justiça que não pode abrir mão do
grande ideal moral-religioso que preside a sua criação. A religiosidade
arcaica, e sua concepção de justiça baseada na vingança, dá lugar à reli-
giosidade da pólis, e à sua concepção de justiça baseada no bem comum:
as Erínias, monstruosas criaturas vingadoras dos crimes cometidos en-
tre consanguíneos, transformam-se, por meio da intervenção dos deu-
ses Olímpicos (Atena e Apolo), em Eumênides, as Bem-aventuradas, as
protetoras da pólis. A cidade integra o antigo ao novo, a religião arcaica
à nova religião, cujas divindades tanto se assemelham, por meio de suas
feições e condutas, aos mortais. E esta semelhança abre espaço para uma
identificação crescente entre as vontades divina e humana, fazendo a re-
ligião intensamente influenciar e ser influenciada por este novo campo
em vias de constituição e que tem como objeto o bem comum: a política.
Nesse sentido, a Orestéia pode ser lida como uma obra que condena a
violência entre os membros da pólis e apresenta, como solução, a fun-
dação mítica do primeiro tribunal, o Areópago, grande marco de uma
nova concepção de justiça capaz de combater a violência e, ao mesmo
tempo, assegurar o bem comum: religião, justiça e política se articulam
na criação dessa instituição, ainda que, após sua fundação, fique o seu
funcionamento completamente sob responsabilidade dos próprios ci-
dadãos. A vontade divina continuará servindo apenas como inspiração
para que a vontade humana, esta sim, julgue de acordo com aquilo que
for o melhor para a pólis.
Se a Orestéia se insere tão bem naquela tradição de combate à
violência entre concidadãos e de defesa da íntima relação entre justiça
e política como condição para a realização do bem comum, em As su-

23  Cf., sobretudo, JAEGER, Werner. “Sólon: começo da formação política de Atenas”. In:____.
Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1994. p. 173-189.

68
Marcelo Alves

plicantes, Ésquilo apresenta uma situação dramática que força a pensar


principalmente no caráter problemático que tanto o combate à violência
quanto a complexa relação entre justiça e política podem apresentar. Ao
tematizar uma violência que é praticada não entre membros de uma
mesma pólis e nem de uma pólis contra outra, mas contra estrangeiras
que suplicam a uma pólis proteção contra seus perseguidores, estando
estes dispostos inclusive a guerrear contra quem ousar dar proteção às
fugitivas, Ésquilo faz um experimento dramático que põe à prova, de
uma só vez, o respeito pelo suplicante, a lei da hospitalidade e o papel
da justiça como condição para a política. O dilema pode ser assim for-
mulado: o que fazer ante a escolha de proteger o outro de uma injustiça
ou arrastar a própria pólis para uma guerra sangrenta? qual deve ser o
maior valor para a pólis: proteger o fraco que suplica ou evitar a guerra
e a consequente ameaça de destruição? Enfim, o que fazer quando a
justiça e a conveniência da pólis entram em conflito?

As suplicantes e os dilemas da política


A tragédia As suplicantes originalmente faria parte de uma trilo-
gia, da qual ela seria a primeira peça, seguida por outra intitulada Os
egípcios, e concluída com As danaides, tendo ainda como drama satírico
Amimone. Mas foram preservadas apenas a primeira peça — com algu-
mas pequenas lacunas textuais — e um pequeno fragmento com sete
versos da última. Muito também se tem discutido sobre a possível data
de composição de As suplicantes, mas atualmente o ano de 463 a.C. é
apontado como o mais provável24. O enredo da trilogia é construído to-
mando como base o mito no qual as 50 filhas de Danao (por isso chama-
das de Danaides) são raptadas e forçadas a se casarem com os 50 filhos de
Egipto, irmão de Danao. Para se vingar, as Danaides combinam que cada
uma delas assassinará o seu noivo na noite de núpcias. Todas cumprem
com o acordado, exceto Hipermnestra, que se apaixona por seu noivo e
decide poupá-lo. Na primeira peça da Trilogia, Ésquilo concentra o seu
foco dramático na condição de suplicantes que elas adquirem em sua
tentativa desesperada de fugir de seus perseguidores e, sobretudo, no di-
lema que elas trazem para o rei e a cidade à qual elas suplicam.

24  PODLECKI, Anthony J. The political background of Aeschylean tragedy. 2. ed. Londres: Bristol,
2000. p. 42.

69
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

A peça começa com as Danaides nas imediações de Argos, junto


a uma colina com altares e estátuas das divindades protetoras daquela
cidade. Elas, na simultânea condição de personagem e coro da tragédia,
trazem nas mãos ramos envoltos em lã, o símbolo característico dos
suplicantes, e fazem preces a Zeus Suplicante (Aphíktor), para que pos-
sam alcançar o seu intento: serem acolhidas e protegidas. Por meio das
preces, essas suplicantes, que muito oportunamente também podem ser
chamadas de recém-chegadas25, se colocam sob a tutela daquele deus,
elas pertencem a ele, e quem se defrontar com elas estará diante de seres
que lhes vêm da parte de Zeus: o pedido delas é como se fosse um pedi-
do dele, acolhê-las é acolher a Zeus. Em suma, o que elas buscam é asilo,
ou seja, que o caráter sagrado do lugar — portanto, a sua inviolabilida-
de — e da divindade a quem se entregam seja estendida a elas.
Pedem aos deuses, é verdade, mas sabem que são os homens que
poderão ou não tornar efetiva a proteção que suplicam. Ao dirigirem
suas preces aos deuses pátrios, elas engajam a cidade em sua súplica,
pois a pólis e seus deuses são inseparáveis, unos (no caso de Atenas, o
próprio nome da cidade indica tal unidade). Logo, a suplicada aqui, no
sentido exato, é a cidade de Argos. A atitude é típica: em as Eumênides,
para fugir da implacável perseguição das Erínias, Orestes, o matricida,
suplica junto à estátua de Atena, que convoca os cidadãos atenienses
para formar o Tribunal que julgará o caso; em Édipo em Colono, de Sófo-
cles, Édipo suplicará em solo sagrado (um bosque dedicado a Poseídon
e às Eumênides) pela proteção de Teseu, rei de Atenas, contra aqueles
que querem repatriá-lo a Tebas; em As suplicantes, de Eurípides, as mães
dos guerreiros argivos ocupam o Templo de Deméter, onde suplicam à
Etra e, depois, ao seu filho, Teseu, para que a cidade de Atenas resgate os
cadáveres retidos por Tebas.
Na verdade, tal rito para engajar a pólis como suplicada apenas
reproduz, no âmbito público, um outro bastante utilizado, no âmbito
privado, para engajar o senhor e a família de uma casa (oikos): suplicar
junto à lareira, que é, no mundo grego antigo, o lugar sagrado da casa.
Obviamente que a separação entre público e privado não é rígida, ainda
mais quando o poder político se encontra bastante identificado com a
vontade pessoal de quem governa. Nesses casos, a lareira de um palácio

25  O título da peça de Ésquilo é (Hikétides), que designa as Danaides simultaneamente


como suplicantes e recém-chegadas. Cf. nota 10 deste ensaio.

70
Marcelo Alves

pode ser a melhor forma de engajar uma cidade em uma súplica. Assim
procede Ulisses, quando, às escondidas, adentra no palácio de Alcínoo
com o propósito de, logo após abraçar os joelhos da rainha e suplicar-
lhe uma escolta para levá-lo de volta à Ítaca, ir sentar-se “à lareira, na
cinza, junto do fogo”, gerando um constrangedor silêncio em todos os
presentes, rompido apenas pelo velho e sábio Equeneu, cujo discurso dá
a exata medida do profundo significado e valor da súplica junto à lareira
e do compromisso gerado entre o suplicante e o dono da casa, obrigan-
do este a acolher aquele como seu hóspede:
Ó rei Alcínoo, não julgo decente [bom, conforme aos costumes], nem belo,
deixarmos que um estrangeiro [hóspede] se sente no chão e na cinza, à lareira.
Os circundantes aguardam somente que dês tu o exemplo.
Vamos! Levanta o estrangeiro [hóspede] e o conduz a sentar-se em poltrona
cheia de ornatos de prata; em seguida aos arautos dá ordens
para que o vinho misturem, e todos a Zeus ofertemos,
fulminador, que acompanha em seus passos os nobres pedintes.26

Assim será feito e Ulisses receberá dos Feácios, por meio de seu
rei, um barco, víveres e tripulação para que possa retornar à sua terra.
Do mesmo modo procederá, já em pleno século V a.C., o famoso general
grego Temístocles, segundo o relato de Tucídides. Supostamente envol-
vido numa traição aos Gregos e a favor dos Persas, o general ateniense é
punido primeiro com o ostracismo e depois, uma vez confirmado o seu
envolvimento, perseguido por atenienses e espartanos, que queriam, por
fim, matá-lo. Em fuga de cidade em cidade, Temístocles se viu em dado
momento forçado a suplicar refúgio a Ádmetos, rei dos Molossos, com
quem, dado interessante, não mantinha boas relações: “Na ocasião Ád-
metos não estava em casa, mas Temístocles se dirigiu à sua mulher como
suplicante e foi instruído por ela a pegar um de seus filhos e sentar-se em
frente à lareira”. Quando o rei chega, Temístocles lhe faz a sua súplica:
“Ádmetos ouviu e fez Temístocles levantar-se juntamente com seu filho”.
Posteriormente, os atenienses e espartanos chegaram para levar Temís-
tocles, mas “Ádmetos não o entregou e, como ele desejasse ir ao encontro

26  HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. Canto
VII, versos 143-165 (inclui a citação anterior e demais elementos narrados no corpo do texto). No
original, sem os acréscimos entre colchetes.

71
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

do Rei [dos Persas], deu-lhe uma escolta para ir por terra até Pidna”27.
Entretanto, é preciso que estes exemplos não criem ilusões em relação à
eficácia da súplica e ao respeito pela hospitalidade. A própria insistência
com que uma e outra são abordadas pelo mito, pela poesia e pela tragédia
indica, além de sua importância, que se trata de valores que precisavam
ser inculcados ou defendidos, isto é, valores que não raramente eram
ignorados, desrespeitados, pervertidos. De fato, Herótodo e Tucídides
nos fornecem inúmeros relatos de episódios em que súplica e hospita-
lidade são valores infringidos ou manipulados em nome, por exemplo,
de interesses políticos28. Portanto, as Danaides de Ésquilo não ignoram

27  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Mario da Gama Kury. 4. ed. Brasília:
EdUNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001. Livro I, caps. 136-37, p.
80-81. No original, sem o acréscimo entre colchetes.
28  O caso de Páctias, narrado por Heródoto, é exemplar, pois apresenta uma situação em que até
mesmo um oráculo — portanto, um dos símbolos da religião grega antiga — desrespeita a lei da
súplica e da hospitalidade e mostra como a entrega de um suplicante/hóspede ao seu perseguidor
podia facilmente se transformar em um negócio entre cidades. Vale retomar a narrativa. Para fugir
da perseguição de Ciro, Páctias busca refúgio na cidade de Cimo. Intimados a entregar o fugitivo,
os Címios consultam o oráculo de Branquides, que lhes orienta a entregá-lo aos Persas. No entanto,
um dos cidadãos, Aristódico, solicita uma “nova consulta ao oráculo, na qual ele figuraria entre os
delegados, certamente porque desconfiava da infidelidade destes ou do próprio oráculo”. Indagado
novamente, o oráculo repete a resposta que já dera. De maneira calculada, Aristódico caminha em
volta do templo e espanta todas as aves que ali tinham os seus ninhos. “Ó celerado, tens a audácia de
arrancar do meu templo os meus suplicantes?”, repreende-o o oráculo, e Aristódico o desmascara:
“Então, grande deus, socorreis os vossos suplicantes e ordenais aos Címios que entreguem ao
inimigo o deles?”. A solução encontrada pelos Címios é enviar Páctias para Mitilene, de modo que,
assim, não o entregavam a Ciro e nem corriam o risco de ficarem sitiados ou de serem atacados
por seus poderosos exércitos. O representante de Ciro, Mazarés, exige a devolução do fugitivo e
os Mitilênios aceitam entregá-lo mediante recompensa, mas, antes disso, os Címios conseguem
retirar Páctias de Mitilene e enviá-lo para Quios. Porém, “os habitantes dessa ilha arrancam-no
do templo de Minerva [Atena] Polioucos e o entregam a Mazarés com a condição de este lhes dar
Atarnéia, país da Mísia, defronte de Lesbos” (HERÓDOTO. História. Trad. J. Brito Broca. 2. ed.
São Paulo: Ediouro, 2001. Livro I, Caps. CLVII-CLX, p. 144-146). Tucídides narra três episódios
de desrespeito da súplica e da hospitalidade que são usados como pretextos políticos nas mãos de
Esparta e de Atenas na situação inicial da Guerra do Peloponeso. Certa vez um cidadão ateniense
chamado Cílon invadiu, juntamente com uma pequena tropa e alguns amigos, a Acrópole para
tornar-se tirano de Atenas, mas o povo se revoltou e sitiou os invasores. Com a falta de alimentos
e água, a situação tornou-se insuportável, levando Cílon e seus irmãos a fugir. No entanto, a
maioria de seus cúmplices não conseguiu evadir-se do local e foram sentar-se como suplicantes
no principal altar da Acrópole, aquele dedicado à padroeira da cidade, Atena. Quando estavam
desesperados e alguns já morrendo de fome, os guardas fizeram-nos se levantar com a promessa de
que seriam poupados, “mas começaram a matá-los após os terem levado para longe; alguns foram
mortos no trajeto, diante do próprio altar das Deusas Veneráveis [Eumênides]. Por aquele ato, tanto
os encarregados da guarda quanto os seus descendentes foram declarados malditos e pecadores
contra a deusa”. O episódio ficou conhecido como a “maldição da deusa” e foi usado politicamente
pelos espartanos: eles formularam uma queixa exigindo que Atenas afastasse de si aquela maldição,

72
Marcelo Alves

o quanto há de incerteza — não da parte dos deuses, mas da parte dos


homens — sobre a acolhida de sua súplica.
Mas o que elas suplicam? Sob a orientação do pai, Danao, elas
partiram da região do Nilo em direção àquela cidade para fugirem de
um casamento com o qual nem elas nem o pai concordam. E esta é a
única certeza que o espectator/leitor terá: a de que se trata de um casa-
mento imposto, um casamento que não leva em conta a vontade das Da-
naides e nem a de seu pai. Elas fogem, pois, para não serem vítimas de
uma violência, de uma injustiça, de uma hybris por parte dos Egípcios e,
por isso, suplicam por proteção. Maiores informações sobre os motivos
para a recusa do casamento e a consequente fuga serão fornecidas, ou
apenas insinuadas, mas sempre acompanhadas de muita ambiguidade.
Por exemplo, ora elas sugerem que este seria um casamento contra a lei,
porque seria entre consanguíneos (versos 8 e 225); ora dão a entender, e
não poucas vezes, que são contrárias não apenas a este casamento, mas
à instituição casamento (v. 9, 142-43, 332...). Mesmo a recusa do pai
em aceitar o casamento das filhas parece se apoiar também em outra
motivação além da simples proteção das virgens contra a imposição dos
filhos de Egito (v. 227-28): há a sugestão de que o poder político de Da-
nao será usurpado pelos Egípcios se o casamento acontecer (v. 37). E há
muito mais. Tudo isso, porém, é próprio de um drama trágico, em que
nada é simples, unilateral ou maniqueísta como em um filme hollywoo-
diano ou em uma novela da Globo. Essa complexidade de motivos e
razões está, nas mãos dos grandes tragediógrafos, a serviço da riqueza
e da força dramática da peça: motivações religiosas, políticas, jurídicas,
familiares e pessoais se articulam — sem emendas ou fissuras, sem esca-
las ou hierarquias — na obra de arte e ali ganham unidade estética.

ou seja, que se purificasse banindo aqueles que descendessem daqueles amaldiçoados, e entre os
descendentes estava justamente Péricles, o principal nome da política ateniense. Em resposta,
Atenas exigiu que os Espartanos se livrassem de duas maldições semelhantes: a de Tênaros —
cidade onde um suplicante fora por eles obrigado a deixar o seu asilo no Templo de Poseídon e logo
em seguida executado, e a maldição da Atena do Templo de Bronze. No momento em que seria
preso por trair os Gregos na guerra contra os Persas (na mesma trama que envolveu o ateniense
Temístocles), Pausânias, o grande general espartano, foge para o Templo de Bronze e lá permanece
asilado. Os éforos (magistrados de Esparta) então decidem cercar o templo com uma muralha para
que ele morresse de fome. Quando estava agonizante, os éforos o levam para fora do templo, mas já
era tarde: ele morre logo após ser retirado (TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro
I, caps. 126-128 e 134, p. 73-75 e 79-80).

73
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

Mas por que Argos? Porque elas descendem da lendária Io — jo-


vem argiva tornada amante de Zeus e transformada, pela ciumenta Hera,
em uma novilha condenada a vagar pelo mundo, sempre cutucada por
um aguilhão (ou moscardo, dependendo da tradução) — o que lhes em-
prestaria sangue grego e o direito de reivindicar laços com Argos, apesar
de sua condição de nascidas junto ao Nilo e de serem, portanto, do pon-
to de vista grego, bárbaras. Aliás, a primeira observação que fará Pelas-
go, o rei de Argos, é a de que elas não se vestem como gregas, mas sim
como bárbaras, e de que a única coisa que lembra a Grécia é, justamente,
o modo como elas estão suplicando (v. 234-243). O interessante é que,
mesmo após narrarem sobre a sua origem argiva, esta não será, por si
só, uma razão suficiente para que o rei atenda ao pedido das suplicantes,
que é o de não serem entregues aos Egípcios. Ele chega a concordar que
elas realmente parecem, “em princípio”, participar daquela terra (v. 325-
326), porém, diante da ameaça de ter de enfrentar por causa delas uma
guerra, o rei hesita (v. 342). A decisão a ser tomada ganha contornos
acentuadamente políticos na medida em que suas implicações envol-
vem, direta e imediatamente, o destino da pólis:
R[ei]. Como serei piedoso para convosco?
C[oro] Não nos dando aos filhos de Egito, se pedem.
R. Disseste algo grave, começar nova guerra.
C. Mas a Justiça [Díke] defende os aliados.
R. Se participasse do princípio em causa.
C. Respeita a popa da cidade assim coroada.
R. Estremeço ao ver estes altares cobertos.
C. Grave, porém, é a ira de Zeus Suplicante.
[...]
R. Vejo sombreada de ramos recém-colhidos
esta companhia diante dos Deuses juntos.
Seja sem dano esta situação de hóspedes,
nem venha de inesperados e imprevistos
dissídio à cidade, que disso não precisa29.

29  ÉSQUILO. As suplicantes. In: ______. Tragédias. Estudos e traduções de Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras: 2009. v. 340-347, v. 354-358, p. 275-277. Todas as citações em português são extraídas
desta tradução. Para as principais passagens citadas, também ofereço em nota, como complemento,
a reconhecida tradução francesa de Paul Mazon: “Le Roi. — Comment puis-je, avec vous, satisfaire
à la loi des dieux? Le Coryphée. — S’ils me réclament, ne me livre pas aux fils d’Égyptos. Le Roi.
— Mots terribles! soulever une guerre incertaine! Le Coryphée. — La justice combat avec qui la
défend. Le Roi. — Oui, si du premier jour elle fut avec vous. Le Coryphée. — Respecte pareilles

74
Marcelo Alves

Não é mais apenas uma questão de justiça — reconhecer que


elas são argivas ou que a causa delas é justa e, por isso, protegê-las —
ou apenas uma questão de piedade — reconhecer que elas são supli-
cantes e, como tal, acolhê-las como hóspedes, ou seja, dar-lhes asilo e
não permitir que sejam tratadas com violência. Se fosse “sem dano esta
situação de hóspedes”30, não haveria hesitação, pois justiça e piedade
seriam mais que suficientes para justificar a decisão de acolhê-las, mas
o problema é que estes hóspedes trazem consigo a ameaça de “dissídio à
cidade, que disso não precisa”. O fato de, neste caso específico, o exercí-
cio da justiça e da piedade colocar diretamente em risco a segurança da
pólis confere à decisão a ser tomada outro caráter e outro peso, sentidos
intensamente pelo rei Pelasgo. Ele não é um rei ou um herói homérico,
cujos valores aristocráticos seriam a medida de sua ação e sua vontade
individual a sua lei. Ésquilo, de um lado, não o priva de senso de jus-
tiça e de piedade, mas, de outro, o dota de uma profunda consciência
política. Uma tal consciência, colocada diante da situação criada pelas
Danaides, permite a Ésquilo explorar em toda a sua extensão o drama
da decisão e da responsabilidade política, que seus expectadores de 463
a.C. também estavam, diga-se de passagem, a experimentar no cotidia-
no de uma pólis democrática.
A questão para Pelasgo é, desde o primeiro momento, antes de
tudo política e sua posição é bem distinta daquela de um monarca tradi-
cional, como Alcínoo no poema homérico ou como Ádmetos no relato
de Tucídides, que fazem de sua vontade a vontade de sua cidade. O seu
primeiro movimento diante da tentativa das Danaides de engajá-lo pes-

offrandes à la poupe du vaisseau argien. Le Roi. — Je fremis à voir nos autels ombragés de ces
rameux. Le Coryphée. — Avoue-le: il est terrible aussi le courroux de Zeus Suppliant! […] Le Roi.
— Je vois à l’ombre de rameux frais coupés d’étranges fidèles devant les dieux de ma cité. Puisse la
cause de ces concitoyens-étrangers ne point créer de maux! Que nulle querelle, à l’improviste, par
surprise, n’en résulte pour Argos: Argos n’en a pas besoin.” (ESCHYLE. Les suppliantes. Traduction
par Paul Mazon. 6. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1953. p. 25-26).
30  A palavra “hóspede” aqui está traduzindo (astoxénun), que literalmente significa
“cidadão nascido fora”, e por meio da qual Pelasgo parece estar reconhecendo a origem argiva
das Danaides, mas, ao mesmo tempo, conferindo-lhes uma fraca cidadania, especialmente se
confrontada com o tamanho da ameaça que sua estada em Argos representa para a cidade. A
tradução oferecida por Paul Mazon para aquela palavra preserva esta ambiguidade, que claramente
aponta para o delicado estatuto político das suplicantes: as Danaides são encaradas como
“concitoyens-étrangers”, concidadãos-estrangeiros. A questão política implícita no raciocínio de
Pelasgo pode ser assim formulada: é razoável colocar a pólis em risco apenas para proteger estas
quase-argivas, estas quase-estrangeiras?

75
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

soalmente em sua súplica é o de separar o âmbito privado do âmbito pú-


blico, ao recusar-se que a súplica seja dirigida à sua “lareira” e ao explici-
tar que o povo, por ser o grande atingido pelas eventuais consequências
da decisão a ser tomada, deve ser comunicado sobre os fatos antes que
qualquer promessa possa lhes ser feita. A reação das Danaides não deixa
dúvidas sobre a diferença entre o modo bárbaro e o modo grego (não
o arcaico, mas o contemporâneo a Ésquilo, especialmente aquele dos
Atenienses do século V a.C.) de conceber a relação entre governante e
governados. São duas concepções distintas de política que se chocam,
e se elas chegam a dialogar, é somente porque são intermediadas por
uma mesma religiosidade, aqui representada pelos ritos e os valores da
súplica e da hospitalidade, bem notada anteriormente por Pelasgo como
sendo o único elemento que aproximava as Danaides e o mundo grego:
R. Não suplicais junto à minha lareira.
Se em comum a cidade se conspurca,
em conjunto cuide o povo de remediar.
Eu não cumpriria prévia promessa,
mas comunicado isso a todo o povo.
C. Tu és a cidade, tu és a população.
Por seres prítane não sujeito a juiz,
és senhor do altar, lareira da terra,
com teus nutos de solitário voto.
No trono de solitário cetro, tens todo
poder necessário. Evita a poluência.31

Diante da continua hesitação de Pelasgo e do relativo fracasso de


se fazerem identificar politicamente com Argos, resta às Danaides insis-
tirem no argumento religioso, alertando reiteradamente o rei sobre as
consequências funestas que sua omissão pode trazer para ele e para a
sua cidade32. Pelasgo, quer queira quer não, está nesse momento na con-

31  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 365-375, p. 277. Eis a tradução de Paul Mazon para a mesma
passagem: “Le Roi. — Vous n’êtes pas assises à mon propre foyer: si la souillure est pour Argos,
pour la cité entière, que le peuple entier s’occupe d’en découvrir le remède. Pour moi, je ne saurais
te faire de promesse, avant d’avoir communiqué les faits à tous les Argiens. Le Chœr. — C’est toi,
la cité, c’est toi, le Conseil; chef sans controle, tu es le maître de l’autel, foyer commun du pays; il
n’est point d’autres suffrages que les signes de ton front, d’autre sceptre que celui que tu tiens sur ton
trône; toi seul décides de tout: garde-toi d’une souillure.” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 26).
32  O dever religioso de acolher o suplicante é tão ostensivamente apresentado pelas Danaides que
chega a soar como a reivindicação de um direito de ter o seu pleito atendido a todo custo, ainda que
Danao tivesse insistido anteriormente para que as filhas respondessem “falas reverentes, ternas,

76
Marcelo Alves

dição de suplicado e já não pode simplesmente dar as costas às Danaides


sem que isso não represente uma impiedade. Elas e seu gesto simboli-
zam uma religiosidade e uma concepção de justiça constitutivas da ci-
dade e que não podem ser ignoradas, não podem deixar de ser bastante
sentidas pelos cidadãos, mesmo diante da terrível ameaça que aquelas
suplicantes representam para Argos e seu povo. O dilema ganha expres-
são clara na voz do rei, cujo profundo drama de consciência ressoa nas
suas palavras e tom dilacerantes. O homem e o político não escondem o
quanto sentem o peso da escolha e da responsabilidade:
R. Poluência tenham os meus inimigos.
Não posso defender-vos sem dano,
nem é prudente desprezar as preces.
Perplexo, e pavor me toma o espírito,
por agir e não agir e pela sorte.
C. Observa quem do alto observa,
guardião de atribulados mortais
que sentados diante dos vizinhos
não alcançam a legítima justiça.
A ira de Zeus Suplicante perdura
implacável ao pranto do punido.33

Ainda uma vez mais, Pelasgo procura deslocar a discussão para


fora do campo da religião e inseri-la no âmbito jurídico-político. Trata-
se agora de minar a concepção religiosa de justiça à qual as Danaides

úteis, aos hóspedes, como convém a forasteiros” e que na voz delas houvesse timidez e modéstia,
pois “não convém aos mais fracos falar audaz” (v. 194-203). A súplica delas é quase uma exigência
e, de fato, elas não hesitarão, como será visto, em forçar o suplicado, por meio de uma ameaça de
suicídio, a atendê-las, o que revela o lado desmedido, violento, a hybris dessas donzelas: manipulam
as leis da súplica e da hospitalidade, transformando benevolência em obrigação, piedade em
coerção. As mesmas jovens que se queixam reiteradamente de que são vítimas do uso da força
(bias) por parte dos Egípcios, não se constrangem em lançar mão da coerção para serem acolhidas
e protegidas. Mais um forte indício de que “elas permanecem, apesar de sua ancestralidade argiva,
essencialmente bárbaras” (BURIAN, Peter. Pelasgus and politics in the Danaid Trilogy. In: LLOYD,
Michel (Ed.). Aeschylus. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 205. Tradução livre de: “They
remain, despite their Argive ancestry, profoundly barbarian.”).
33  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 376-386, p. 277-79, sem o acréscimo entre colchetes. Eis a tradução
de Paul Mazon: “Le Roi. — La souillure soit pour mes ennemis! Mas vous secourir, je ne le puis sans
dommage. Et pourtant il m’est pénible aussi de dédaigner vos prières. Je ne sais que faire; l’angoisse
prend mon coeur: dois-je agir ou ne pas agir? Dois-je tenter le Destin? Le Chœr. — Regarde vers
celui qui d’en haut tout regarde, le protecteur des mortels douloureux qui, aux genoux de leurs frères,
n’obtiennent pas le droit que la loi leur donne. Songes-y: le courroux de Zeus Suppliant attend tous
ceux qui restent insensibles aux plaintes de qui souffre” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 26-27).

77
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

tanto se aferram e confrontá-la com as próprias leis da pátria de onde


elas fogem: “Se os filhos de Egito têm poder sobre ti, por lei civil, como
parentes próximos, quem poderia contrapor-se a eles?”34 (v. 387-89),
indaga Pelasgo. A discussão passa a ser sobre a legitimidade ou não da
pretensão dos Egípcios e, assim, o rei exige, como condição prévia para
acolhê-las, que elas declarem não haver, conforme as leis de seu país, se-
melhante legitimidade na reivindicação dos seus perseguidores. A res-
posta das Danaides simplesmente ignora o tema da legitimidade e finca
pé no caráter sagrado da súplica e no dever do rei de ser guardião da
justiça divina (v. 392-396). Uma vez mais ele procura afastar de si a con-
dição de suplicado, ao mesmo tempo em que reconhece o seu dilema e
reitera o papel que o povo precisa ter no desfecho daquele episódio:
Difícil é decidir. Não me tomes por juiz.
Já disse antes: sem o povo não cumpriria
isso, nem se pudesse, para que o povo,
se houvesse infortúnio, nunca me diga:
“ao honrar advindas [estrangeiras], destruíste o país.”35

De fato, Ésquilo faz de Pelasgo um monarca nada tradicional: ele


se preocupa com as eventuais críticas de seus concidadãos! Isso indica,
ao mesmo tempo, que os cidadãos têm um grande peso na vida política
daquela cidade. Não pode haver mais dúvidas: nem Pelasgo nem a Ar-
gos da peça pertencem ao mundo mítico de onde saíram como matéria-
prima, mas são reinventados por Ésquilo à luz, sobretudo, dos valores
e das práticas da sua contemporânea Atenas36. A súplica das Danaides

34  Pelasgo está aludindo a um instituto jurídico grego chamado “epiclerado”, e que talvez, sugere o
rei, tivesse algum equivalente no país de origem das Danaides. Quando a descendência de uma família
encontra-se ameaçada pela falta de um filho homem, a filha (ou filhas), se houver, é uma epicler, ou
seja, poderá ser desposada pelo parente homem mais próximo disponível, que terá, portanto, poder
sobre ela e sua herança. A situação das Danaides preenche estes requisitos e, por isso, a pretensão dos
Egípcios não seria, ao menos a princípio, considerada ilegítima no mundo grego.
35  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 397-401, p. 279. Eis a tradução de Paul Mazon: “Le Roi. — Décider ici
n’est point facile: ne t’en remets pas à moi pour décider. Je te l’ai dit déjá: quel que soit mon pouvoir, je
ne saurais rien faire sans le peuple. Et me garde le Ciel d’ouïr Argos me dire un jour, si pareil malheur
arrivait: ‘Pour honorer des étrangers, tu as perdu ta cité!’” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 27).
36  De fato, esta é a interpretação predominante. Mas há também quem proponha que a Argos da
peça se refira tanto à Atenas quanto à Argos contemporânea a Ésquilo (MEIER, Christian. De la
tragédie grecque comme art politique, p. 111). Há até mesmo quem entenda que o foco de Ésquilo
seja fundamentalmente a Argos de seu tempo, e por duas razões  : porque a cidade dos argivos
estaria bastante presente na pauta política do dia em Atenas, pois ali começavam fortes discussões
sobre a possibilidade de fazer uma aliança não com Esparta, mas sim com Argos (aliança que

78
Marcelo Alves

oferece uma situação concreta em que aquele mundo essencialmente


constituído pela moral religiosa se depara com um mundo em transição
e que precisa dar as suas próprias respostas, mas no quadro da expe-
riência que para ele agora se torna decisiva: a pólis. Se, de um lado, a
religião é uma das dimensões constitutivas da pólis — o que a torna
sensível aos valores e práticas religiosas — de outro, ela não é a única,
nem a mais característica e muito menos uma dimensão apartada das
demais. É a formação, o desenvolvimento e a vivência do espaço públi-
co, e dos valores e práticas que este pressupõe, que caracterizam a nova
experiência produzida pelo fenômeno da pólis, uma nova experiência
para a qual a religião não deixa de dar a sua contribuição e pela qual
acaba sendo engajada. Exemplar, nesse sentido, é o fato de todos os atos
públicos significativos da pólis (assembleias, decisões políticas, alianças
e acordos com outras cidades etc.) serem celebrados com o concurso
dos deuses, a quem se procura engajar por meio dos sacrifícios que lhes
são, então, oferecidos. Este Pelasgo e esta Argos concebidos por Ésquilo
vivem aquele exato e crucial momento em que é preciso equacionar a
relação da moral (no caso, religiosa) com as exigências próprias à expe-
riência política (não no sentido técnico ou teórico da palavra, mas no
sentido imediato da experiência que é viver em uma pólis). O dilema de
Pelasgo é o prenúncio, pois, de um momento inaugural, de uma funda-
ção, tal como é aquele vivido por Atena — diante da súplica de Orestes
e da exigência das Erínias em puni-lo pelo seu crime — e que culmina,
nas Eumênides, com a criação do Areópago. A diferença, bastante signi-
ficativa, é que em As Suplicantes a solução deve ser encontrada não por
uma divindade, mas por um homem e sua cidade, que sofrem o peso
esmagador de uma escolha trágica.
Quando indagado pelas suplicantes sobre o porquê de sua he-
sitação para fazer aquilo que é conforme a justiça divina, Pelasgo con-
fessa que precisa de um “pensamento salvador”, pois a situação exige
dele uma solução que, ao mesmo tempo, não traga danos para a cidade,

ocorrerá em 461 a.C., cerca de dois anos após a apresentação de As suplicantes) e, sobretudo,
porque a peça evocava o fato, ocorrido alguns anos antes da sua apresentação, referente ao asilo
que Argos concedeu, sob certo risco, ao general ateniense Temístocles, acusado e perseguido por
traição (esta criativa hipótese é formulada por PODLECKI, Anthony J. The political background
of Aeschylean tragedy, 42-62). De todo modo, a Argos que teria interessado a Ésquilo é aquela
bastante aparentada politicamente com a sua Atenas: a Argos democrática, e não aquela governada
pela aristocracia.

79
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

para ele e para as suplicantes (v. 402-417). No entanto, a sua primeira


conclusão é que “sem aflição em nenhum lugar há refúgio”, ou seja, ele
julga inevitável que algum dano sobrevenha. A essa altura, ele parece
paralisado diante do impasse e disposto a aguardar que tudo se resolva
da melhor maneira, mas não sem indicar certa inclinação a sacrificar o
que for necessário (inclusive as Danaides?) para evitar que o sangue de
seus concidadãos seja derramado: quanto a bens perdidos, raciocina o
rei, Zeus Caseiro pode fazer com que se recupere mais do que se perdeu;
quanto às palavras que podem trazer dor a alguém, as próprias palavras
podem ser usadas para trazer consolo e reconciliação; “mas para não
sangrar consanguíneo, deve-se sacrificar muito, e muitas vítimas caírem
a muitos Deuses, curas de dores”37. Diante da frágil posição tomada por
Pelasgo, as Danaides lançam mão de seu último “argumento”, que não
deixa de continuar sendo religioso: se não lhes for concedido asilo, elas
se enforcarão nas estátuas dos deuses pátrios, trazendo para Argos e seu
rei uma grave mácula de impiedade (v. 455-465). O dilema de Pelasgo
chega ao clímax e ele se sente, por fim, coagido por esta última ameaça
das Danaides:
Se convosco não quitar esta dívida,
insuperável poluência vós dissestes;
mas se com teus consanguíneos Egipcíades
de pé ante muros na guerra chegar ao fim,
como esta destruição não se faz amarga,
varões por mulheres ensanguentarem chão?
Todavia é necessário temer a cólera de Zeus
Suplicante: entre mortais, pavor supremo.38

À primeira vista, portanto, parece que a moral religiosa acaba por


se impor aos cálculos e hesitações do apurado senso político de Pelasgo.
No entanto, se o rei é sensível à coação da moral divina, o fato é que nem
por isso a saída proposta por ele será religiosa (por exemplo, consultar
um oráculo para, assim, decidir e justificar o que fazer, como procedem

37  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 449-451, p. 281.


38  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 472-479, p. 283. Eis a tradução de Paul Mazon: “Le Roi. — [...] Si
je ne satisfais à votre demande, la souillure que vous évoquez dépasse la portée de l’esprit. Si, au
contraire, contre tes cousins, les fils d’Égyptos, debout devant nos murs, je m’en remets à la décision
d’un combat, ne sera-ce point une perte amère que celle d’un sang mâle répandu pour des femmes?
— Et pourtant je suis contraint de respecter le courroux de Zeus Suppliant: il n’est pas pour les
mortels de plus haut objet d’effroi” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 30).

80
Marcelo Alves

inicialmente os Címios, no relato de Heródoto, ou como age o prota-


gonista de Édipo Rei, de Sófocles) ou autoritária, à maneira de um mo-
narca tradicional, que faz de sua vontade a vontade do povo (como, por
exemplo, age Alcínoo diante da súplica de Ulisses ou Ádmetos frente ao
suplicante Temístocles). A solução vislumbrada por Pelasgo é política:
ele se compromete a apoiar pessoalmente o pleito das Danaides, é verda-
de, mas a decisão continua a caber ao próprio povo, que em assembleia
e por meio do voto, este procedimento tão caro à democracia e igual-
mente usado para resolver o caso de Orestes, dará o veredicto (v. 480-
523, 600-624). O “pensamento salvador” não se encontra na submissão
cega a uma suposta vontade divina, sempre imperscrutável em última
instância39, ou à vontade arbitrária, quer despótica ou bem intenciona-
da, de um, mas na consideração da vontade daqueles muitos (pólis) que
constituem a cidade e que serão diretamente afetados pela decisão em
jogo. E não que este “pensamento salvador” traga, infalivelmente, a sal-
vação: não há garantias para a eficácia das decisões humanas, eis o que a
tragédia grega não se cansa de proclamar. A condição humana é tal que,
no máximo, se pode tentar a sorte, “tentar o Destino” (v. 380), como su-
gere Pelasgo40. Contudo, crucial diferença, esta via política reconhece o
valor da comunidade e de sua vontade, faz da persuasão, e não da força,
o meio através do qual a cidade toma suas decisões, torna a liberdade
e a vontade do cidadão aquilo que legitima o poder político e, ao mes-
mo tempo, compartilha entre todos os cidadãos a responsabilidade pelo
destino da pólis. Aristóteles posteriormente sintetizará esta via política
por meio da máxima de que “a cidade deve ser uma comunidade de ho-
mens livres”, o que somente ocorre, segundo ele, quando a constituição
que a governa tem em vista o bem comum e, por conseguiinte, está em
conformidade com os princípios essenciais da justiça41. Nesse raciocí-
nio, a justiça é condição para o bem comum na exata medida em que
ela garante, antes de tudo, a liberdade e a consideração da vontade dos
cidadãos, sem o que a relação entre governante e governado não é polí-

39  No início da peça, o coro reconhece que “O desejo de Zeus não se pode caçar: as densas e
sombrias sendas do seu pensar se prolongam imperscrutáveis” (ÉSQUILO. As suplicantes, v. 88-90,
p. 261).
40  “Devois-je tenter le Destin?” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 27).
41  ARISTÓTELES. A política. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1997. Livro III, cap. IV, 1279a, p. 90.

81
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

tica, mas despótica, idêntica àquela entre senhor e escravo42. Portanto,


as motivações que podem influenciar ou determinar uma dada tomada
de decisão no âmbito de uma pólis democrática, por exemplo, podem
ser as mais diversas, inclusive religiosas, mas o relevante, nesse caso,
é que a forma de decisão é uma forma política, em que cada cidadão
manifesta livremente a sua vontade e aceita como uma decisão legíti-
ma, como se fosse sua, aquela que prevalecer ao final do embate público
(logo, regrado pelas leis) das diferentes vontades. É esta forma política
de decisão que o rei de Argos encarna e da qual As suplicantes apresenta
a sua fundação mítica.
Pessoalmente comprometido com as Danaides, por sua condição
de suplicado, Pelasgo, contudo, também é rei e seu apoio não pode dei-
xar de ter relevante peso político. Aliás, além de encaminhar uma forma
política de decisão para o caso das suplicantes, ele mesmo demonstra
conhecer muito bem certos artifícios que compõem a arte da política
e não hesita, na condição de próxenos (protetor, patrono) das Danai-
des, em fazer uso deles. Primeiramente, o rei orienta Danao a cobrir os
demais altares da cidade com os ramos de suplicante, de maneira que
todo o povo, por este expediente, viesse a se apiedar de suas filhas e se
tornar benevolentes para com elas (v. 480-489). Depois, promete que
conclamará o povo e indica que lhes falará de modo a sensibilizá-los à
causa das Danaides (517-518). Por fim, chega a dizer que ensinará como
Danao deve falar ao povo (v. 519). Após toda a hesitação e os dilemas
vividos inicialmente por Pelasgo, e dos quais não há por que duvidar
que fossem sinceros, Ésquilo o apresenta como um experiente político,
a quem não falta capacidade de elaborar estratégias para atingir os seus
fins e nem habilidade retórica para persuadir. “Persuasão e Sorte eficaz

42  Do ponto de vista de um grego do período clássico, trata-se de uma relação idêntica àquela que
vigorava junto aos povos bárbaros e que Ésquilo apresenta como sendo a visão que as Danaides,
estas bárbaras recém-chegadas das margens do Nilo, têm da política, ao conceberem Pelasgo
como se fosse um Ciro ou um Xerxes (ver v. 370-375), um rei todo poderoso, cuja vontade pessoal
é lei e, portanto, sua relação com os governados é uma relação de mando e não de co-mando.
O tema é caro a Ésquilo, que enfatiza, em Os Persas, o contraste entre o modo como helenos e
bárbaros estabelecem as relações entre governante e governados. O tragediógrafo e guerreiro da
famosa Batalha de Salamina, na qual o poderoso exército de Xerxes sofre uma terrível derrota, faz
dessa diferença um dos fatores que levaram os Persas a serem derrotados pelos Gregos: enquanto
estes lutavam como homens livres, aqueles lutavam como escravos (Cf. ÉSQUILO. Os persas. In:
______. Tragédias. Estudos e traduções de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras: 2009. versos 192-
196, 241-244, 402-405).

82
Marcelo Alves

me sigam”, eis tudo o que ele deseja que esteja ao seu lado43. Pelasgo
passa a agir como mais um dos muitos políticos contemporâneos de
Ésquilo, dos quais a própria democracia parece não poder prescindir:
o tragediógrafo não ignora que o campo da política tem a sua lógica, os
seus procedimentos, os seus valores e as suas mazelas.
É por meio de Danao que o espectator/leitor fica sabendo do re-
sultado da assembleia e do teor do decreto que foi proposto para vota-
ção, bem como do papel desempenhado pelo rei:
Votaram os argivos, não ambiguamente,
mas a rejuvenescer meu velho coração.
O céu eriçou mãos destras unânimes
dos que têm o poder desta palavra:
que nós residamos nesta terra, livres,
sem resgaste, com o asilo de mortais,
e que nenhum nativo, nem forasteiro,
nos leve; mas, se houver prepotência,
quem dentre os nobres não nos socorrer,
seja desonrado com exílio desta região.
Com tal fala por nós podia persuadi-los
o rei Pelasgo, advertindo que nunca
no porvir a cidade criasse grande ira
de Zeus Súplice, e dizendo que no país
dupla poluência, hóspeda e cidadã,
seria insuperável pasto de sofrimento.
Ao ouvi-lo, o povo argivo com as mãos
decretou sem arauto que assim fosse.
O povo pelasgo ouviu dócil os volteios
da fala ao povo, e Zeus decretou o termo. 44

43  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 523, p. 285. Eis a tradução de Paul Mazon: “Le Roi. — [...] Que la
Persuasion m’accompagne et la Chance efficace!” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 32).
44  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 605-624, p. 291-293. Eis a tradução de Paul Mazon: “Danaos. —
Argos s’est prononcée d’une voix unanime, et mon vieux coeur s’en est senti tout rajeuni. De ses
droites levées le peuple entier a fait frémir l’éther, pour ratifier ces mots: nous aurons «la résidence
en ce pays, libres et protégés contre toute reprise par un droit d’asile reconnu; nul habitant ni
étranger ne pourra nous saisir; use-t-on de violence, tout bourgeois d’Argos qui ne nous prête aide
est frappé d’atimie, exilé par sentence du peuple». Telle est la formule qu’a défendue notre patron,
le roi des Pélasges, en invitant la cité à ne pas fournir d’aliment pour les jours à venir au terrible
courroux de Zeus Suppliant et en évoquant la double souillure, à la fois nationale et étrangère, que
la ville verrait alors venir à elle, monstre indomptable, qu’il faudrait nourrir des douleurs. A ces
mots, les mains du peuple argien, sans attendre l’appel du héraut, ont prononcé dans ce sens. La

83
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

É literalmente concedido “asilo de mortais” às Danaides, ou seja,


a expressão não deixa dúvida, inclusive em grego ( ),
que “asilo” aqui está sendo usado em um sentido particular, diferente
daquele atribuído aos lugares sagrados, em relação aos quais o termo
(asylos) é usado para indicar que se trata de um lugar não sa-
queado (ou não “saqueável”), inviolável45. Algo novo está sendo funda-
do, instituído: a inviolabilidade também pode ser atributo de mortais
(Danaides) concedido por mortais (cidadãos), válido e validado no âm-
bito da pólis (Argos). Nesse sentido, o asilo oferecido às suplicantes me-
rece bem o qualificativo de asilo político ou de direito de asilo, uma vez
que foi concedido por meio de um decreto aprovado pelos cidadãos em
assembleia ou, dito de outro modo, uma vez que ele foi politicamente
chancelado em uma forma jurídica. A transição, portanto, que se opera
aqui é do campo da religião para o campo da política (e, por extensão,
do direito), mas não sem certa tensão, contaminação e reversibilidade
entre estes campos, como se pode verificar no próprio relato feito por
Danao. Note-se, por exemplo, que o argumento de Pelasgo frente à as-
sembleia é religioso, mesmo que manifeste preocupação com a pólis, e
reproduz, em linhas gerais, aquele mesmo insistentemente usado pelas
Danaides (e, diga-se de passagem, sem grande eficácia junto ao rei até
que elas ameaçassem se enforcar nas estátuas dos deuses da cidade46):
evitar a implacável ira de Zeus Suplicante. O interessante é que Pelasgo

nation pélasge s’est rendue aux persuasives raisons d’une adroite harangue; mais Zeus est l’auteur de
la décision dernière” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 35).
45  Em seu famoso Dictionnaire Grec-Français, Bally indica justamente este verso 610 de As
suplicantes, de Ésquilo, como a passagem que serve de fonte primeira, no conjunto dos textos
clássicos, para se entender “asilia” no sentido de “inviolabilidade de uma pessoa” (p. 294).
46  A propósito, será que uma tal mácula, presenciada por seus concidadãos, não afetaria a
legitimidade do rei e, desse modo, ele no fundo cedeu às suplicantes não apenas por razões
religiosas, mas também pessoais e políticas, isto é, por razões complexas como são aquelas que
de fato movem os seres humanos? Esta hipótese é aquela comumente confirmada nas tragédias
gregas (ver, por exemplo, os motivos de Creonte na Antígona, de Sófocles, indicados em ALVES,
Marcelo. Antígona e o direito. Curitiba: Juruá, 2007. p. 73-79). Por sinal, não é raro nem mesmo
que o motivo alegado pelo protagonista dissimule outros que também o levam efetivamente a agir:
como Agamêmnon, que sacrifica a própria filha, Ifigênia, em troca de ventos favoráveis para levar
a frota grega à Tróia, e alega que é o bem da pólis que o força a ceder, mas que aceita oferecê-la em
sacrifício também porque deseja retornar da batalha coberto de glórias, conforme estava previsto
por um oráculo (ver Ifigênia em Áulis, de Eurípides, e Agamêmnon, a primeira peça da Oréstéia,
de Ésquilo) ou como Clitemnestra, sua esposa, que o mata sob o argumento de que devia vingar a
morte da filha, mas que tem um amante e o faz subir ao trono após o assassinato de Agamêmnon
(ver Agamêmnon, de Ésquilo).

84
Marcelo Alves

sofistica a sua argumentação nesse ponto, ao introduzir uma dimensão


propriamente política ao lado da dimensão religiosa, o que a torna mais
persuasiva junto aos seus, como tudo indica, piedosos mas também
“politizados”, concidadãos: não acolher as suplicantes traria uma “dupla
poluência, hóspeda e cidadã”. Ou seja, seria uma dupla injustiça, tanto
em relação às leis divinas da súplica e da hospitalidade quanto à lei da
pólis que protege aqueles que dela fazem parte. Com isso, é feita uma
clara alusão ao fato de elas, além de serem suplicantes, terem ascendên-
cia argiva — outro argumento usado pelas Danaides e, na oportunidade,
incapaz de convencer o rei, que agora dele habilmente se serve no seu
discurso para aprovar o decreto proposto. Ao mesmo tempo, a alusão a
esta dupla poluência como causa de “insuperável pasto de sofrimento”
reenvia diretamente àquela concepção hesiódica que vincula o desti-
no da pólis à observação ou não de Díke e que faz dos deuses aqueles
que castigam ou recompensam conforme a medida da justiça. Ao fim
do relato, quando Danao sintetiza as causas que produziram a decisão
favorável às suas filhas, são explicitamente colocadas lado a lado moti-
vações humanas e divinas: “O povo pelasgo ouviu dócil os volteios da
fala ao povo, e Zeus decretou o termo”. Foi sob o efeito persuasivo da
retórica de Pelasgo e sob a inspiração de Zeus que os argivos aprovaram
a concessão de asilo, conclui o pai das suplicantes. A vontade humana
(a de Pelasgo, porém também, e sobretudo, a daqueles que votaram) e a
vontade divina concorreram para produzir aquela decisão política.
Atendidas em sua súplica, as Danaides passam a fazer os seus vo-
tos, as suas “preces benéficas”, que são verdadeiras bênçãos hesiódicas:
por terem sido piedosos e justos, acolhendo-as, que os habitantes de
Argos não conheçam os tormentos da guerra, conflitos internos não ar-
rastem os concidadãos para o sofrimento e a morte, a peste e as doenças
não se abatam sobre a cidade, a terra dê muitos e belos frutos, o gado
seja fértil e as mulheres tenham bons partos (v. 630-693). Mas surpreen-
dente, até para um Hesíodo, é o voto que elas fazem a quem governa a
cidade na parte final de seu canto de louvor e agradecimento:
Intrépido conserve os cargos
o povo que governa a cidade,
prudente império de cuidados comuns.
Conciliadores com os forasteiros [estrangeiros]
antes que armem Ares

85
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

sem dores tenham justiça.47

Nem uma palavra sobre o rei Pelasgo e todo o seu empenho para
convencer os concidadãos! As Danaides agradecem e lançam bênçãos
sobre aqueles aos quais coube a decisão de acolhê-las na cidade, ao mes-
mo tempo em que passam a reconhecer estes como os verdadeiros go-
vernantes de Argos. O raciocínio implícito parece o seguinte: se, no âm-
bito da casa (oikos), quem pode decidir conceder ou não hospitalidade é
aquele que dela é seu senhor, no âmbito da pólis, quem pode decidir pela
hospitalidade é aquele (ou aqueles) que a governa(m). Dito em outros
termos: se, para um Carl Schmitt, por exemplo, quem decide sobre o
estado de exceção é aquele que detém efetivamente o poder soberano48,
para as Danaides, mutatis mutandis, quem decide pela hospitalidade,
quem decide conceder ou não asilo, este é, então, o soberano49. Mas a
aplicação desse raciocínio ao caso de Argos leva as suplicantes a fazerem
uma declaração surpreendente para o contexto em que se passa a peça,
e que reforça o quanto a tragédia está apresentando ao seu espectador/
leitor a instituição mítica de alguns novos procedimentos e concepções
político-jurídicas correntes à época, sobretudo em Atenas: ao proferir
as suas bênçãos sobre “o povo que governa a cidade”, as Danaides estão
se referindo a algo impensável no contexto puramente mítico e a algo

47  ÉSQUILO. As suplicantes, v. 698-703, p. 297. Eis a tradução de Paul Mazon: “Que le Conseil
qui commande en cette cité garde sans trouble ses honneurs, pouvoir prévoyant qui pense pour le
bien de tous! Qu’aux étrangers, avant d’armer Arès, on offre, pour éviter des maux, des satisfactions
réglées par traité!” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 38).
48  “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção.” (SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad.
Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 07).
49  O próprio papel de Pelasgo, nesse contexto, é ressignificado, torna-se similar àquele do
sábio Equeneu junto ao rei Alcínoo: ele aconselha aquele a quem cabe acolher as súplicas e dar
hospitalidade, propõe-lhe o que deve ser feito, lembra-o sobre os deveres do suplicado e a infalível
vingança de Zeus contra quem não respeita e acolhe o suplicante, mas tudo isso sem esquecer a
quem, em última instância, compete decidir. A democrática Atenas de Ésquilo conheceu muito
bem este tipo de “conselheiro” do povo nas figuras de Temístocles, Címon e Efialtes, cujo poder
dependia diretamente de sua habilidade para convencer e conquistar a opinião favorável dos
cidadãos à sua causa, ou ao menos da maioria, mas uma maioria, note-se bem, jamais conquistada
de uma vez por todas e que, por exemplo, votou a favor do ostracismo dos dois primeiros. Ésquilo
conheceu apenas no início de sua carreira política aquele que seria o mais bem sucedido desses
“conselheiros” atenienses, Péricles, cuja excelência nesse papel fez com que ele fosse percebido
por Tucídides como o verdadeiro governante de sua cidade: “Atenas, embora fosse no nome uma
democracia, de fato veio a ser governada pelo primeiro [melhor] de seus cidadãos.” Tamanho
prestígio, contudo, não evitou que fosse aprovada contra ele, em assembleia, uma pesada multa
(TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro II, caps. 65-66, p. 125-126).

86
Marcelo Alves

ainda incomum no contexto histórico contemporâneo à peça, pois se


trata do primeiro registro escrito, dentre todos os textos que chegaram
até nós, em que explicitamente o povo é designado como soberano da
pólis50, e ainda de forma positiva, elogiosa politicamente, na medida em
que avalia esta forma de governo como “prudente império de cuidados
comuns”. É justamente da boca das suplicantes, estas bárbaras acostu-
madas com formas despóticas de exercício de poder, que Ésquilo faz sair
aquele inusitado voto pela continuidade da soberania do povo e o maior
elogio que se pode conceber, do ponto de vista da concepção clássica de
política, a uma forma de governo. Com isso, a passagem se transfigura
em um gesto de reconhecimento, e em pelo menos três sentidos: agra-
decimento, constatação e aprovação/identificação. Como em Os persas,
peça na qual são aqueles que fazem o elogio das virtudes gregas, Ésquilo
aqui faz com que o outro, o estrangeiro, é que enuncie e reconheça as
virtudes da democracia argiva/ateniense.
Logo após desejar que o povo continue governando a cidade e
indicar que esta é uma forma adequada para preservar o bem comum
— observações estas que, grosso modo, dizem respeito à política interna
—, as suplicantes fazem uma curiosa observação sobre como deveria
ser conduzida a política externa: elas, que coagiram e chantagearam Pe-
lasgo, forçando-o a acolhê-las, recomendam agora que Argos busque
resolver as suas eventuais divergências com outras cidades por meio da
conciliação e não, da força, da guerra — em suma, recomendam uma
política externa baseada no que hoje chamaríamos de “diplomacia”. Esta
recomendação e aqueles votos de que Argos ficasse livre das guerras são
tragicamente irônicos, pois, ao acolhê-las, os argivos já estavam aceitan-
do o risco de travar uma guerra, fato confirmado na própria peça, com a
chegada dos Egípcios e o envio de um arauto para levar à força as Danai-
des, o que culminará com uma declaração de guerra (v. 825-951). Assim
como as Danaides, os Egípcios não receiam fazer uso da força, em vez
da persuasão, quando estão em jogo os seus interesses e nem em fazer
um uso oportunista da religião: diante do pedido de proteção a Zeus
feito pelas suplicantes, que estavam na iminência de serem capturadas,
o arauto havia feito uma declaração impiedosa — “Não temo os Numes
desta terra: não me criaram, nem velho me nutriram” (v. 893-894) —
mas, após ser acusado por Pelasgo de não saber ser hóspede (v. 917),

50  Cf., por exemplo, MEIER, Christian. De la tragédie grecque comme art politique, p. 111, 121.

87
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

diz estar apenas reavendo o que havia perdido, e isso sob a proteção
de Hermes, o “patrono máximo da busca” (v. 920), afirmação esta ime-
diatamente denunciada como oportunista pelo rei de Argos — “Tendo
falado com Deuses, não os veneras” (v. 921).
A perda das duas outras peçam que integravam a trilogia não per-
mite saber como era o seu desenvolvimento e desfecho. Entre as várias
hipóteses, uma das mais consistentes, que procura articular as versões
do mito das Danaides com o modo como termina As suplicantes e com o
fragmento que sobrou da última peça, é que em Os egípcios haveria uma
guerra, da qual os argivos sairiam de algum modo derrotados e as filhas
de Danao capturadas. Na terceira peça, As danaides, haveria a prática
do assassinato dos maridos na noite de núpcias — reforçando aquela
atitude de contrariedade em relação ao matrimônio e o caráter desme-
dido da conduta das suplicantes — e todas elas acabariam de algum
modo punidas (por exemplo, forçadas a se casar: elas seriam colocadas
como prêmio em uma corrida, em que cada competidor, à medida que
chegasse, pudesse escolher com qual se casaria), com exceção de Hiper-
mnestra, que poupou o seu marido, Linceu, e que, portanto, diferente-
mente de suas irmãs, honrou a deusa Afrodite, aquela que, como o coro
complementar (o coro das servas) de As suplicantes enfatiza, desperta os
desejos, traz consigo a “encantadora persuasão” e promove a harmonia
(v. 1034-1041), aquela que aproxima os casais, que os alicia para o ca-
samento e promove, na mulher, o gosto pela maternidade, sem a qual a
espécie e a comunidade não se perpetuam51.
Mas, à primeira vista, essa hipótese talvez incomode o senso de
justiça do leitor contemporâneo, pois, afinal, Argos teria atendido à sú-
plica e, mesmo assim, acabado injustamente punida, o que, ademais,
comprometeria o elogio feito à soberania do povo e à sua capacidade de
cuidar do bem comum. Se for relembrado que na Tragédia Grega nada

51  Raciocínio que seria reforçado pelo conteúdo dos versos do fragmento preservado de As
danaides, apresentado diretamente na voz de Afrodite: “Holy heaven longs to pierce the ground
and love seizes the earth to join in marriage; the rain, falling from fair-flowing heaven, impregnates
the earth. She brings forth for mortals food for the herds and Demeter’s vital gift, and the fruit of
trees; and all that comes from that watery marriage is accomplished, and of these things I am the
cause.” (AESCHYLUS. Fragment TGF 44 (Danaids). In: GAGARIN, Michael; WOODRUFF, Paul
(Ed.). Early greek political thought from Homer to the Sophists. Cambridge: Cambridge University
Press, 2007. p. 46-47). Vale a pena conferir na íntegra esta interessante interpretação proposta por
MURRAY JR., Robert Duff. The motif of Io in Aeschylus’ Suppliants. Princeton: Princeton University
Press, 1958.

88
Marcelo Alves

é simples e que um suplicado somente cumpre bem o seu papel quando


não lhe falta discernimento, prudência, tal desfecho (que é, registre-se,
apenas e tão-somente uma hipótese) torna-se bastante compreensível
e plausível. As suplicantes fizeram um uso oportunista das leis da sú-
plica e da hospitalidade, pois não é pela humildade e modéstia, como
aconselhado por Danao e como é de se esperar de um suplicante, que
elas conquistam o apoio de Pelasgo, mas inescrupulosamente por meio
de uma ameaça de suicídio, atitude que, por sinal, já haviam praticado
em relação aos próprios deuses a quem suplicavam quando chegaram a
Argos, em um gesto claro de desmedida e impiedade52. Nesse sentido,
pode-se dizer que faltou a Pelasgo e ao povo de Argos o discernimento
necessário para perceber o quanto a religiosidade dessas suplicantes era
apenas exterior, apenas um meio para se atingir um fim (ainda que elas
estivessem de fato sob a ameaça da imposição violenta de seus primos e
que a acolhida oferecida por Argos fosse, nesse exato sentido, uma ato
de justiça). Vale notar que em várias das hipóteses sobre a continuação
da trilogia, é indicada não apenas a derrota de Argos, mas também a
morte ou a derrocada de Pelasgo, sinalizando para uma dupla falta co-
metida e, assim, devidamente punida. “Tentar o Destino” é sempre, para
os humanos, correr riscos, mesmo quando quem tenta é o povo. Danao,
o único dentre os “bárbaros” que parece ser realmente piedoso, subiria
ao trono, ainda segundo algumas dessas hipóteses, e Argos prosperaria,
o que conferiria, ao final, um significado positivo ao revés sofrido pela
cidade. De todo modo, ao fim, Danaides, Egípcios, Pelasgo e povo de
Argos experimentariam a força da verdade trágica, enunciada de modo
exemplar pela fórmula esquiliana “páthei máthos” ( ), “no
sofrimento, o conhecimento”53. Entre o destino imperscrutável e a es-
magadora responsabilidade dos indivíduos por suas escolhas, resta aos

52  “Grande prole de augusta mãe / escape — è é — / inupta, indômita, ao leito de varões. / Se
não, — gente de negra tez / brunida de sol, / junto ao térreo / hospitaleiro de muitos / Zeus dos
defuntos, / suplicaremos com ramos, / morta nos laços, — / se não tocarmos Deuses Olímpios.”
(ÉSQUILO. As suplicantes, v. 151-161, p. 265). Eis a tradução de Paul Mazon: “(Un peu retenu.) Que
les enfants d’une auguste mère échappent aux embrassements des mâles, libres d’hymen, libres de
joug! (Vif et mordant.) Sinon, avec nos teints brunis des traits du soleil, nous irons, nos rameaux
suppliants en mains, vers le Zeus des enfers, le Zeus hospitalier des morts: nous nous pendrons,
puisque nos voix n’ont pu atteindre les dieux olympiens.” (ESCHYLE. Les suppliantes, p. 18).
53  ÉSQUILO. Agamêmnon. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, FAPESP,
2004. p. 114-115, v. 177 (no texto em grego). Torrano traduz esta passagem assim: “saber por
sofrer” (v. 178).

89
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

mortais serem prudentes e, inclusive como parte da prudência, supli-


carem para que seus atos tenham o concurso dos deuses e que, ao fim,
não os arrastem para a tragédia, para a dor — amarga, mas decisiva,
lição sobre os limites e as possibilidades da condição humana. No pla-
no da pólis, pode-se dizer que, para Ésquilo, cabe aos homens praticar
a arte da política e a religiosidade, ou seja, promover o difícil e feliz
encontro entre a vontade humana e a, em última instância, insondável
vontade divina.

Zeus, Deus e Devs Mortalis: do asilo religioso ao asilo político


Durante a Idade Média54 foi comum a concessão de asilo junto a
igrejas e demais locais sagrados para perseguidos de diferentes espécies,
inclusive para criminosos. Implícito estava que o suplicante, arrepen-
dido ou simplesmente injustamente perseguido, apelava para a infinita
misericórdia de Deus, quer em busca de perdão (se pecador), quer em
busca de justiça (se vítima de injustiça), mas sobretudo, em qualquer
dos casos, em busca de proteção, amparo55. Em linhas gerais, a estrutura

54  A passagem direta do mundo grego para a Idade Média, operada aqui, não significa que súplica
e hospitalidade, assim como o asilo religioso, não tenham também ocorrido entre aqueles dois
períodos históricos (por exemplo, entre os Romanos) ou mesmo em outras culturas. Trata-se
apenas de um recorte feito pelo fato de o asilo religioso tal como é concebido e praticado pelo
medievo ser aquele imediatamente contra e por meio do qual, em certa medida, se constitui o asilo
político, como será visto.
55  Sem contar aqueles que — simplesmente esmagados por sua “cruz”, por seu destino —
suplicavam junto às igrejas e demais locais sagrados por comida, roupa ou guarida. A súplica dos
mendigos da Cristandade também reproduz a mesma estrutura daquela feita pelos mendigos da
Grécia Antiga: eles pedem em nome de uma divindade (no caso, Deus) e em seu nome agradecem
e abençoam (ou replicam e amaldiçoam). São várias as narrativas populares em que Deus (ou
Jesus, ou qualquer outra divindade) testa a piedade de alguém (normalmente, de um homem rico e
poderoso, mas avarento, ou de alguém sem posses, mas piedoso) apresentando-se a ele disfarçado
de mendigo — exatamente o mesmo expediente usado por Zeus e outras divindades gregas, e que
Homero faz Aquiles usar na Odisséia. Episódio curioso em que um mito grego da hospitalidade
tem repercussão direta no Novo Testamento é aquele narrado em Atos 14: 8-18. Paulo e Barnabé
estavam de passagem pela cidade de Listra, pregando o evangelho. Após Paulo curar um aleijado
de nascença, a multidão entra em alvoroço e grita: “Fizeram-se os deuses semelhantes aos homens,
e desceram até nós”. A Barnabé chamavam de Júpiter (Zeus) e a Paulo, por ser aquele que pregava,
de Mercúrio (Hermes, o mensageiro). Houve até mesmo a tentativa de lhes oferecer sacrifício no
Templo de Júpiter, do qual a multidão foi por fim demovida pelos dois homens, perplexos diante
do que ocorria. Esta reação do povo de Listra deve-se ao mito de Filêmon e Báucis, narrado por
Ovídio, em suas Metamorfoses, e que teria se passado na região onde se encontrava aquela cidade:
Júpiter e Mercúrio teriam descido à terra e após serem várias vezes rechaçados pelos moradores da
região, finalmente receberam a hospitalidade de uma casal de velhos, que foram recompensados,
enquanto o restante dos habitantes foi exemplarmente punido. Diante do milagre operado, os

90
Marcelo Alves

da súplica permanece aquela já vista no mundo grego: um suplicante


(alguém perseguido, justa ou injustamente), um suplicado (A Igreja, por
meio de seus representantes) e uma divindade protetora do suplicante
(Deus em vez de Zeus).
O asilo religioso aparece codificado já em 511, no Concílio de Or-
leans, e a preocupação da Igreja com o seu reconhecimento permanece
em pleno século XX, quando em 1919 o Direito Canônico ainda o con-
sagra (Cânone 1.179). Mas, frise-se, tratava-se de asilo religioso, porque
baseado, antes de tudo, no caráter sagrado do local — que assim era tido
como um lugar livre da jurisdição das leis humanas e submetido apenas
às leis divinas — e também nos preceitos cristãos do arrependimento e
do perdão. Portanto, era na exclusão da ordem secular, daquilo fundado
na vontade humana, e na observação estrita de preceitos religiosos que
tal asilo se baseava. Consequentemente, à medida que o Estado foi se
consolidando como soberano e, ao mesmo tempo, afirmando a sua au-
tonomia em relação à Igreja, o asilo religioso foi perdendo seu alcance e
reconhecimento56. Em breve, a súplica por asilo seria dirigida não mais
ao Deus cristão, e sim àquele que nos campos da política e do direito,
sobretudo, iria progressivamente tomar o seu lugar: o Estado-Nação, o
Devs Mortalis. Mas esta é uma transição que, como já visto, não se faz
sem grandes dilemas, sem tragédias.
Camus faz uma observação muito interessante e precisa acerca
das condições requeridas para o surgimento do gênero trágico: “a tra-
gédia nasce no Ocidente cada vez que o pêndulo da civilização se en-

habitantes de Listra recordam do mito e se apressam para não correr o risco de cometer novamente
o mesmo erro. Mas a própria bíblia é pródiga na valorização da hospitalidade e também possui
narrativas de semelhantes situações em que hóspedes se revelam divindades. No Novo Testamento,
por exemplo, Pedro, em I Pedro 4:9, e Paulo, em Romanos 12:13, recomendam explicitamente a
prática da hospitalidade. Em Gênesis 18: 1-8 (vale lembrar que este livro do Antigo Testamento
também integra a bíblia hebraica, referência para o judaísmo), Abraão acolhe três estranhos com
uma hospitalidade sem qualquer reserva. Depois, os estranhos revelam-se seres divinos: dois anjos
e o próprio Senhor, que lhe concede a oportunidade de ter um filho, apesar da avançada idade
que ele e sua esposa, Sara, já tinham. Em Gênesis 19: 1-8, é a vez de Ló acolher dois daqueles três
estrangeiros com uma hospitalidade exemplar e, quando os habitantes de Sodoma batem a sua
porta para terem relações sexuais com os estrangeiros, ele lhes oferece as próprias filhas virgens
no lugar de seus hóspedes. Ló será avisado pelos anjos sobre a destruição de Sodoma e poderá,
juntamente com sua família, se salvar.
56  As informações oferecidas neste parágrafo podem ser encontradas reunidas em, por exemplo,
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito de asilo. In: ______. Curso de direito internacional
público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Cap. XXXVII, p. 1091-1109.

91
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

contra a igual distância de uma sociedade sagrada e de uma sociedade


construída em torno do homem”57. Esta poderosa tensão entre o divino
e o humano, tão presente na Atenas do século V a.C., será novamente
experimentada durante o Renascimento e início da Modernidade. As
tragédias escritas por Shakespeare e Racine são belos exemplos do esfor-
ço e da tremenda dificuldade para tentar dar, tanto ao humano quanto
ao divino, o lugar que caberia a cada qual na ordem do mundo. Nesse
sentido, o dilema de Hamlet (“Ser ou não ser, eis a questão”) retoma e
atualiza aquele de Pelasgo (“Perplexo, e pavor me toma o espírito, por
agir e não agir e pela sorte”). Em um mundo que está fora dos eixos
(“The time is out of joint”), como diagnostica Hamlet, que certezas ainda
restam, que valores ainda valem? Entre o que os homens podem e o que
eles devem fazer, qual o lugar ocupado por Deus e qual o tamanho da
responsabilidade humana? Mas as dúvidas, os questionamentos, os dile-
mas servem, ao fim, não tanto para separar os dois âmbitos, o divino e o
humano, e sim muito mais para revelar o quanto eles ainda permanecem
solidários, comprometidos entre si: na tragédia do Renascimento, Deus
é essa força contra e, ao mesmo tempo, por meio da qual os homens
realizam o seu destino. Sabe-se, no entanto, que logo em seguida o pên-
dulo irá rapidamente se mover em direção ao homem e esse movimento
costuma ser apontado como a principal característica daquilo a que se
chama Modernidade. A vontade divina perderá espaço para a vontade
humana em vários campos (ciência, filosofia, política etc.), o que carac-
teriza aquele conhecido deslocamento da visão teocêntrica para a visão
antropocêntrica de mundo.
No campo da política, esse deslocamento ganha impressionante
visibilidade. Se, no pensamento medieval, a vontade divina era funda-
mento último do poder político, na Renascença, com um Maquiavel,
por exemplo, a política já é pensada como negócio de homens dirigido
a homens e no qual a dimensão religiosa cumpre o papel de meio e não
de fim58. No início da Modernidade, com a teoria política hobbesiana, a

57  Tradução livre de: “[...] la tragédie naisse en Occident chaque fois que le pendule de la civilisation
se trouve à égale distance d’une société sacrée et d’une société bâtie autour de l’homme.” (CAMUS,
Albert. Conférence prononcée à Athènes sur l’avenir de la tragédie. In: ______. Théâtre, récits,
nouvelles. Paris: NRF/Gallimard, 1995. p. 1708).
58  Quanto ao papel da religião na política, basta lembrar de um dos principais conselhos que o
pensador florentino dá para o seu príncipe: “E há que se entender o seguinte: que um príncipe, e
especialmente um príncipe novo, não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens

92
Marcelo Alves

vontade humana torna-se literalmente o fundamento do poder político,


na medida em que este é pensado como resultado de um contrato entre
os indivíduos e o soberano é concebido como representante da vontade
daqueles que o constituíram. A união obtida por meio do consentimen-
to desses indivíduos é concebida por Hobbes como um verdadeiro ato
criador, comparável “àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por
Deus na Criação”, porque este ato dá origem ao Estado, a esse homem
artificial denominado Leviatã, ao qual os homens devem direta e ime-
diatamente a sua paz e segurança e que, por isso, pode ser chamado
— não sem uma boa dose de provocação — de “Deus mortal”59. É desse
modo, segundo Hobbes, que os seres humanos deixam de ser lobos uns
dos outros e se transformam em um deus para si mesmos. Ademais, a
religião, a partir de então, deve se subordinar ao poder político: cabe ao
soberano instituir e ser a máxima autoridade da religião professada no
seu Estado, sem qualquer tipo de ingerência, muito menos a do Papa
ou a de qualquer outro membro da Igreja. O súdito deve obediência,
inclusive em matéria religiosa, única e exclusivamente ao seu sobera-
no, uma obediência que Hobbes chega a transformar em dogma para
a salvação da alma60. Assim entendido, o Estado merece bem o nome
de Deus, mesmo que mortal. Idiossincrasias à parte, o autor do Leviatã
explicitava uma luta que já vinha sendo travada de modo mais intenso
pelo menos desde o século XVI, e atravessaria os séculos XVII e XVIII,
para encontrar um dos seus momentos mais dramáticos e decisivos na
Revolução Francesa.
Contudo, esse combate no campo do inimigo, essa insistente
comparação com Deus e com o poder da Igreja não é feita sem que
seja pago algum tributo, sem que certa contaminação também ocorra.
Algumas categorias, valores e procedimentos próprios daquele campo
serão absorvidos, ressignificados e reativados pelos campos da Política

considerados bons, sendo frequentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade,
a fé, a humanidade, a religião. [...] O príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar
escapar da boca expressões que não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo
aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. Não há
qualidade de que mais se careça do que esta última.” (MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Trad. Lívio
Xavier. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Cap. XVIII, p. 74-75).
59  HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Martins Fontes, 2003. Respectivamente, Introdução, p. 12 e cap. XVII, p. 147.
60  Ver, principalmente, os capítulo XXIX, XLII e XLIII do Leviatã.

93
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

e do Direito. Transformado em instância última a ordenar e a assegurar


a vida em sociedade, o Estado evocará cada vez mais para si um conjun-
to de funções que até então eram da alçada da religião (em especial da
Igreja) e também a tarefa de chancelar, ressignificar ou reativar, sobretu-
do por meio do Direito, aqueles valores originalmente vinculados a prá-
ticas e preceitos religiosos e que são agora (re)instituídos pela vontade
humana e postos a serviço do campo da política. O asilo religioso é um
destes valores (e práticas): dotado de outro fundamento e ressignificado,
transfigura-se em asilo político.
Mesmo que bastante secularizado em sua formulação, o conceito
de asilo político ainda permite entrever aspectos marcantes de sua re-
lação com o asilo religioso. Eis a formulação extraída de um dos mais
citados manuais brasileiros de Direito Internacional Público:
O asilo político é o acolhimento, pelo Estado, de estrangeiro perseguido
alhures — geralmente, mas não necessariamente, em seu próprio país patrial —
por causa de dissidência política, de delitos de opinião, ou por crimes que,
relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra do direito
penal comum.61
Um primeiro aspecto a ser destacado é que o “acolhimento” (ter-
mo que remete à ideia de hospitalidade) é concedido pelo Estado, e so-
mente por ele: é prerrogativa sua porque apenas ele goza da soberania
necessária para legitimar, política e juridicamente, tal atitude perante os
demais Estados. No mundo contemporâneo, o asilo político é pensado
essencialmente, portanto, no contexto das relações interestatais, e isso
significa dizer que, em último caso, são os interesses e valores politica-
mente relevantes para os Estados que irão determinar as suas decisões
acerca dessa matéria. É bastante significativo que o dito direito de asilo,
que tem por objeto a proteção da pessoa humana, não seja um direito
do indivíduo, mas sim um direito do Estado — no exato sentido de que o
Estado tem o direito (subentenda-se, perante os demais Estados), e não
o dever (perante aquele que lhe pede), de conceder ou não asilo62. Desse

61  REZEK, Francisco. Asilo político. In: ______. Direito internacional público. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 214-215.
62  Exemplar, nesse sentido, é a formulação do artigo I da Convenção Interamericana sobre Asilo
Territorial (Caracas, 1954): “Todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir
dentro de seu território as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito,
nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação.” De igual teor e explicitude, é a formulação
do artigo II da Convenção Interamericana sobre Asilo Diplomático (Caracas, 1954): “Todo Estado

94
Marcelo Alves

modo, o direito de asilo é concebido, antes de tudo, como um efeito da


soberania estatal, como uma das formas de praticá-la, reconhecê-la e
afirmá-la. É porque cada Estado é perante o outro uma potestade, um
imperium, que cada qual está livre para acolher quem bem entender em
seu âmbito de jurisdição63, ressalvados aqueles que praticaram crimes
de direito penal comum ou ainda, segundo o artigo XIV da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), “atos contrários aos objetivos
e princípios das Nações Unidas” (ou seja, atos que configurem crimes
contra a paz, crimes de guerra ou contra a humanidade, como especifica
o parágrafo 2º do artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre o Asilo
Territorial, de 1967). Mas mesmo nesses casos, em que parece existir
uma restrição objetiva, compartilhada e autoimposta pelos Estados, tal
restrição só serve para fazer com que a soberania apareça pela porta dos
fundos e seja, ao fim, reafirmada como o princípio político-jurídico em
nome do qual o direito de asilo efetivamente se legitima e ao exercício
do qual está intimamente vinculado.
A excludente de concessão de asilo político para aqueles que prati-
caram crimes de direito comum encontra-se subordinada ao fato de que
a qualificação do crime praticado pelo perseguido cabe exclusivamente
ao Estado asilante, que pode, de modo soberano, interpretá-lo como um
crime político ou um crime comum com fins políticos, o que legitimaria,
nesses casos, uma eventual concessão de asilo64. Quanto à exclusão de

tem o direito de conceder asilo, mas não se acha obrigado a concedê-lo, nem a declarar por que
o nega.” O parágrafo 1° do artigo I e o parágrafo 2° do artigo III da Declaração das Nações Unidas
sobre o Asilo Territorial também vinculam explicitamente o asilo político ao exercício da soberania
estatal. Entre os doutrinadores brasileiros, ver, por exemplo, a interpretação de MELLO, Celso D.
de Albuquerque. Direito de asilo, p. 1092-1093. O comentário de Rezek sobre este ponto assinala o
quanto o direito de asilo é condicionado pelas circunstâncias da política: “Conceder asilo político
não é obrigatório para Estado algum, e as contingências da própria política — exterior e doméstica
— determinam, caso a caso, as decisões de governo.” (REZEK, Francisco. Asilo político, p. 215).
63  O artigo II da Convenção Interamericana sobre Asilo Territorial não poderia ser mais explícito:
“O respeito que, segundo o Direito internacional, se deve à jurisdição de cada Estado sobre os
habitantes de seu território, deve-se igualmente, sem nenhuma restrição, à jurisdição que tem
sobre as pessoas que nele entram, procedentes de um Estado, onde sejam perseguidas por suas
crenças, opiniões e filiação política ou por atos que possam ser considerados delitos políticos.
Qualquer violação da soberania, consistindo em atos de um governo ou de seus agentes contra a
vida e a segurança de uma pessoa, praticados em território de outro Estado, não se pode considerar
atenuada pelo fato de ter a perseguição começado fora de suas fronteiras ou de obedecer a motivos
políticos e a razões de Estado.”
64  Eis o artigo IV da Convenção Interamericana sobre Asilo Territorial: “A extradição não se aplica
quando se trate de pessoas que, segundo a classificação do Estado suplicado, sejam perseguidas

95
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

asilo para aqueles que tenham praticado “atos contrários aos objetivos e
princípios das Nações Unidas”, ela sequer é aludida, por exemplo, pelas
Convenções Interamericanas — que lhe são posteriores — sobre Asilo
Territorial e Asilo Diplomático. E isso talvez tenha ocorrido pela pressu-
posição de que a qualificação desses atos também fosse de competência
do Estado (pelo menos enquanto não houvesse algo como uma conde-
nação lavrada por um Tribunal Internacional, sem o que a qualificação
e a atribuição desses atos permaneceria apenas no plano da acusação,
pois pressupõem, respectivamente, interpretação — ainda que o pará-
grafo 2 do artigo 1º. procure oferecer um critério objetivo para realizar
esta qualificação: “como definido nos instrumentos internacionais que
contêm disposições relativas a estes crimes” — e comprovação dos fatos
e da autoria), ou que já estivessem de algum modo contemplados pela
restrição anterior ou, ainda, que estes atos simplesmente teriam sido ig-
norados por aquelas Convenções, o que, de qualquer modo, indica a
tendência para pensar o asilo político no estreito contexto do exercício
da soberania nas relações interestatais. Sintomaticamente, o máximo
que a ONU conseguiu produzir no que diz respeito às diretrizes para
a prática do asilo político foi uma Declaração sobre o Asilo Territorial,
por meio da qual a Assembleia Geral tão-somente “recomenda que os
Estados se inspirem” nos princípios ali indicados. Em seu parágrafo 1°
do artigo III, a Declaração esboça uma tentativa de estabelecer algum
direito de asilo ao solicitante (o direito de não ter a sua admissão recu-
sada na fronteira ou, após ter adentrado as fronteiras de outro Estado, o
direito de não ser expulso ou devolvido para qualquer Estado onde pos-
sa sofrer perseguição), que logo sucumbe às exceções reconhecidas pelo
parágrafo seguinte, pois elas restituem ao Estado solicitado a decisão
última sobre a concessão de asilo: “Poderá haver exceções ao princípio

por delitos políticos ou delitos comuns cometidos com fins políticos, nem quando a extradição
for solicitada obedecendo a motivos predominantemente políticos.” O poder unilateral do Estado
asilante em relação à qualificação dos pressupostos para o asilo (ou para sua recusa) é reforçado
pelo artigo XI, que reza: “Em todos os casos em que, segundo esta Convenção, a apresentação de
uma reclamação ou de um requerimento seja procedente, a apreciação da prova apresentada pelo
Estado suplicante dependerá do critério do Estado suplicado.” O texto do artigo IV da Convenção
Interamericana sobre Asilo Diplomático é breve e inequívoco: “Compete ao Estado asilante a
classificação da natureza do delito ou dos motivos da perseguição.” (ver também o artigo IX da
mesma convenção). O parágrafo 3° do artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre o Asilo
Territorial preserva, apesar de sua redação intencionalmente mais abrangente, o mesmo espírito:
“Caberá ao Estado que concede o asilo determinar as causas que o motivam.”

96
Marcelo Alves

anterior apenas por razões fundamentais de segurança nacional ou para


salvaguardar a população, como no caso de uma afluência em massa de
pessoas.”65 A fracassada tentativa da ONU, em 1977, também testemu-
nha a dificuldade para superar a lógica da soberania estatal em relação
a esta matéria: a Conferência da Nações Unidas sobre Asilo Territorial,
realizada em Genebra, terminou melancolicamente, sem a aprovação de
qualquer texto que pudesse ser adotado como convenção.
A soberania, qualidade fundamental que permite o Estado con-
ceder asilo, é, ao mesmo tempo, aquilo que, por sua natureza, não pode
se encontrar obrigado a concedê-lo — eis o raciocínio e a tensão que
aparecem implícitos no modo como o asilo político é concebido nesses
documentos. À luz desse impasse, o famoso parágrafo 1 do artigo XIV
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para o qual “Toda pes-
soa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em
outros países”, acaba interpretado e praticado, a rigor, como um direito
de pedir e um direito de, uma vez atendida a sua solicitação, gozar de
asilo em outro país. Se, de um lado, o direito de asilo é o direito que
cada Estado tem, perante os demais, de conceder ou não asilo, de outro,
em relação às pessoas que o invocam, ele se constitui, sobretudo, em um
singelo direito de suplicar para obter asilo66. Nesse sentido, o asilo políti-

65  É com desalento que Albuquerque Mello diagnostica: “Na ONU, em 1967, foi aprovada apenas
uma declaração sobre asilo territorial, mas que não é obrigatória e permite ao Estado recusar a
entrada de pessoas perseguidas se tal fato ameaçar a sua segurança nacional, a sua população ou
em caso de afluxo em massa de perseguidos, o que lhe dá quase nenhum alcance.” (MELLO, Celso
D. de Albuquerque. Direito de asilo, p. 1095).
66  Exceção é, por exemplo, a constituição da Guatemala, que assegura ao indivíduo o direito de
asilo. Em contrapartida, um cidadão de um país da União Europeia não está autorizado a pedir
asilo a outro país membro daquele bloco regional, como está consignado em suas Normas mínimas
para la acogida de los solicitantes de asilo en los Estados miembros, de 2003: “La Directiva será
aplicable a todos los nacionales de países terceros así como a las personas apátridas que presenten
una solicitud de asilo en la frontera o en el territorio de un Estado miembro.” Mas aqui, neste
ensaio, interessa a visão predominante, aquilo que ainda marca a compreensão e a prática do asilo
político em termos gerais, do que, aliás, nem mesmo a UE parece conseguir escapar, pois o Estado,
segundo aquelas Normas Mínimas, poderá “limitar las condiciones de acogida o privar al solicitante
de las mismas si este último”, por exemplo, “representa una amenaza para la seguridad nacional”, e
ainda é assegurado ao Estado “el control total del mercado nacional de trabajo, puesto que pueden
determinar los tipos de empleo a los que pueden acceder los solicitantes de asilo, el número de horas
o días al mes o al año durante el cual están autorizados a trabajar, las cualificaciones que deben
poseer, etc.”. A soberania, como se vê, ainda desempenha um papel fundamental para o conceito de
asilo político, mesmo em uma União Europeia, que conferiu aos Estados um poder que nenhum
dos outros documentos da ONU ou da OEA sobre a mesma matéria haviam ousado explicitamente
formular: um controle total sobre o mercado de trabalho em detrimento do asilado, o que gerou

97
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

co mantém uma característica marcante do asilo religioso: o caráter de


súplica na relação entre quem pede e quem concede asilo.
Dentro da estrutura da súplica e da hospitalidade, o Estado ocupa
tanto o lugar do suplicado quanto aquele que era destinado a Zeus e, de-
pois, a Deus: ele é a potência terrena e também a instância última capaz
de garantir a proteção ao suplicante (pelo menos nos campos da política
e do direito, entendidos agora como, no mínimo, formalmente separa-
dos da religião). Enquanto suplicado, cabe-lhe aquela mesma tarefa de
julgar, de acolher ou não aquele que suplica e de, ao acolhê-lo, ser a po-
tência que efetivamente protege o asilado. E se trata de um julgamento,
como foi visto, tão soberano e amplo que inclui, assim como no asilo
religioso, a possibilidade de inocentar, “perdoar” ou pelo menos de não
incriminar o suplicante em relação aos crimes que lhe são atribuídos
pelo Estado que o persegue. O Estado suplicado, nesse sentido, julga até
mesmo a conduta do Estado perseguidor em relação ao suplicante. Mas
em seu julgamento — da súplica, do suplicante e de seu perseguidor —
a questão dos valores morais, da justiça ou dos direitos humanos têm
relevância apenas na exata medida em que repercutem no campo da
política estatal ou, dito de modo mais preciso, apenas se forem capazes
de se constituírem, mesmo que circunstancialmente, em interesses ou
valores do Estado67. O asilo é político no sentido de que está fundado
em uma decisão política e, portanto, as causas e efeitos da sua concessão
são avaliados, antes de tudo, em termos políticos — isso não quer di-
zer que aspectos religiosos, econômicos ou culturais, por exemplo, não
tenham peso na decisão política, mas sim que é porque eles de algum
modo se tornam valores ou interesses políticos que podem ser levados
em conta para tanto. No âmbito do Estado, o caráter humanitário que
se costuma atribuir ao asilo político é, por exemplo, insuficiente por si
só para justificar a sua concessão (se fosse suficiente, o direito de asilo

mal-estar e uma proposta de revisão desse ilimitado poder conferido ao Estado (ver “Propuesta de
Directiva del Parlamento Europeo y del Consejo de 3 de diciembre de 2008 por la que se aprueban
normas mínimas para la acogida de los solicitantes de asilo (Refundición) – COM(2008) 815 final
– no publicada en el Diario Oficial”. In: CE. Normas mínimas para la acogida de los solicitantes
de asilo en los Estados miembros, 2003. Disponível em:<http://europa.eu/legislation_summaries/
justice_freedom_security/free_movement_of_persons_asylum_immigration/l33150_es.htm>.
Acesso em: 20 nov. 2010. ).
67  O que era arte da prudência para o indivíduo suplicado no mundo grego torna-se, como foi
visto na análise de As suplicantes, arte da política quando aplicado ao âmbito da pólis ou ainda,
respeitadas as diferenças, quando aplicado ao Estado-Nação.

98
Marcelo Alves

não seria um direito do Estado, e sim um direito do indivíduo). É na


medida em que se torna um interesse ou um valor politicamente rele-
vante para o Estado que o caráter humanitário é eficiente para justificar
a concessão de asilo — e não de modo definitivo, mas sujeito, a cada vez,
às circunstâncias da política68.
No que diz respeito especificamente à lei grega da hospitalidade,
o Estado, ao conceder o asilo, aceita simultaneamente uma condição si-
milar àquela do próxenos (protetor, patrono) e, como tal, a obrigação de
dispensar ao seu “hóspede” as condições necessárias para que ele tenha
a sua vida e liberdade preservadas, ao menos enquanto durar a ameaça
que as coloca em risco, como se pode depreender de inúmeros artigos
das Declarações Interamericanas sobre Asilo Territorial e Asilo Político.
Para que esse propósito se torne viável mesmo em condições adversas
ao Estado asilante, a Declaração das Nações Unidas sobre o Asilo Territo-
rial, em seu parágrafo 2 do artigo 2º., prevê inclusive a colaboração de
outros Estados, quase como um compromisso de socorrer o vizinho em
seu esforço para prover a devida hospitalidade àquele que ele acolheu69.
Em contrapartida, também cabe ao asilado saber receber a hospitalidade
oferecida. Quando se trata de asilo diplomático, a proteção oferecida ao
asilado pressupõe que a conduta deste no interior do recinto em que foi
concedido o asilo não represente uma ameaça ou afronta ao governo do
Estado territorial onde o recinto se encontra: “a autoridade asilante não
permitirá aos asilados praticar atos contrários à tranquilidade pública,
nem intervir na política interna do Estado territorial”70. Quando se trata

68  É de se notar, por exemplo, que o asilo já foi usado explicitamente como arma político-jurídica
para promover e reforçar uma dada concepção política, uma dada ideologia: a Constituição Francesa
de 1793 assegurava o asilo aos estrangeiros perseguidos por defenderem a causa da liberdade, assim
como as constituições dos Estados do bloco soviético consagravam o asilo territorial aos defensores
da liberdade e das classes trabalhadoras (ver MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito de asilo,
p. 1107, notas 8 e 10).
69  Eis o texto do artigo: “Quando um Estado encontrar dificuldade em conceder ou continuar
a conceder asilo, os Estados, individualmente ou em conjunto, ou por intermédio das Nações
Unidas, considerarão, com espírito de solidariedade internacional, as medidas necessárias para
aliviar a oneração desse Estado.”
70  Artigo XVIII da Convenção Interamericana sobre Asilo Diplomático. Não é demais lembrar
que o asilo diplomático é aquele que, segundo o artigo I desta mesma convenção, pode ser dado
nas legações (sede de toda missão diplomática ordinária, a residência dos chefes de missão, e os
locais por eles destinados para esse efeito, quando o número de asilados exceder a capacidade
normal dos edifícios), navios de guerra, acampamentos e aeronaves militares. Observe-se ainda
que se trata de instituto amplamente praticado e reconhecido como direito apenas no âmbito dos
países latinoamericanos, entre eles, o Brasil, que protagonizou, por exemplo, em 2009, o episódio

99
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

de asilo territorial, se é garantida a liberdade de expressão ao asilado,


ele, porém, não deve servir-se dela para “fazer propaganda sistemática
por meio da qual se incite ao emprego da força ou da violência contra o
governo do Estado reclamante”; se lhe é assegurada a mesma liberdade
de reunião e de associação que é permitida a qualquer outro estrangei-
ro, ele, contudo, igualmente não pode utilizar-se dela para “promover
o emprego da força ou da violência contra o governo do Estado supli-
cante”; se a ONU recomenda, por razões humanitárias, aos Estados a
concessão de asilo político, ela também entende que ao Estado asilante
cabe o dever de garantir que os asilados “não se dediquem a ativida-
des contrárias aos objetivos e princípios das Nações Unidas”, com o que
ficam indicados pelo menos dois aspectos interessantes: (a) o foco da
Declaração das Nações Unidas sobre Asilo Territorial são, efetivamente,
os Estados, a quem é atribuído tal dever, que se configura como uma das
contrapartidas pelo direito que goza de conceder ou não o asilo político
— a típica responsabilidade que um próxenos acaba tendo em relação ao
seu protegido; (b) indiretamente, o asilado tem o dever de não se tornar
uma ameaça ao Estado que lhe oferece asilo, pois sua conduta pode tor-
nar este Estado sujeito a represálias por parte da ONU71.
Não apenas a estrutura da súplica e da hospitalidade pode ser
abstraída da configuração contemporânea do conceito de asilo políti-
co, mas também o elemento jurídico decisivo na constituição do asilo
religioso, elemento este igualmente decisivo para a própria constituição
do direito de asilo. Este elemento deriva de fontes que têm uma impor-
tante — para não dizer crucial — característica em comum: são/foram
tidas como potências irresistíveis, poderes incomparáveis, aos quais é/
era preciso respeitar, obedecer. Zeus, Deus e Estado-Nação são três dos
nomes capazes de designá-las. No caso do Estado, este poder, em grande
medida engendrado na luta contra o poder exercido pela Igreja, recebe

envolvendo Manuel Zelaya, presidente de Honduras: após deposto e enviado para fora do país, ele
retorna e fica asilado na embaixada brasileira em Tegucigalpa. Durante o episódio, Zelaya se mostrou
um péssimo “hóspede” — de dentro da própria embaixada, ele proferiu discursos veementes e
procurou mobilizar a população para retornar ao poder — e o nosso governo foi bastante conivente
com a flagrante transgressão deste mesmo artigo XVIII da Convenção Interamericana sobre Asilo
Diplomático, o que confirma a subordinação do instituto do asilo político, ainda mais do asilo
diplomático, às circunstâncias políticas.
71  As duas primeiras citações referem-se, respectivamente, aos artigos VII e VIII da Convenção
Interamericana sobre Asilo Territorial, e a terceira citação é extraída do artigo IV da Declaração das
Nações Unidas sobre o Asilo Territorial.

100
Marcelo Alves

o nome de soberania, e se impõe internamente como irresistível72 e ex-


ternamente, na relação com os demais Estados, expressa antes de tudo
um “não” à ingerência externa. Assim, dentre os efeitos da soberania,
surge o princípio jurídico que é fundamental para o conceito de asilo
político (quer seja territorial, quer seja diplomático): a jurisdição pró-
pria de um Estado em relação ao seu território (ou em relação aos imó-
veis da sua missão diplomática73) exclui a jurisdição de qualquer outro
Estado ou qualquer outra jurisdição (a das leis divinas ou a do Direito
Canônico, por exemplo). A mesma exclusão de jurisdição está na base
do conceito de asilo religioso, mas em uma relação entre jurisdições que
submete aquela que é resultado da vontade humana àquela que se origi-
na na vontade divina: é porque o suplicante se encontra em um espaço
regido pelas leis divinas que a perseguição contra ele, motivada pelas
leis ou simplesmente pela vontade humana, deve cessar enquanto ali
permanecer. Enquanto a exclusão de jurisdição que fundamenta “juri-
dicamente” o asilo religioso ocorre em uma relação de hierarquia entre
a vontade divina e a vontade humana, no asilo político, a exclusão de
jurisdição se dá em uma relação de igualdade entre vontades humanas:
cada Devs Mortalis, concebido como obra da vontade de um dado gru-
po de seres humanos, é soberano em relação a todos os outros, o que
os torna, pelo menos do ponto de vista jurídico-formal, iguais entre si,
e é dessa igualdade que deriva a capacidade jurídico-política que cada
Estado tem de excluir toda e qualquer jurisdição alheia, capacidade res-
peitada por cada Devs Mortalis no seu próprio interesse.

72  Naquele sentido que Hobbes estabeleceu, citando justamente o Livro de Jó, para comparar o
Estado (Commonwealth) ao Leviatã bíblico: “Não há nada na Terra, disse ele [Deus], que se lhe possa
comparar.”(HOBBES. Thomas. Leviatã, cap. XXVIII, p. 271). Em termos hobbesianos, significa
dizer: não há poder maior que possa ser criado pelos homens e, ao mesmo, ao qual se deva maior
obediência, pois foi por um ato voluntário que os homens decidiram a ele se submeter e é a ele
que eles devem, de modo imediato, a proteção e a promoção de suas vidas. São, como se pode ver,
motivos humanos, causas humanas que produzem e alimentam este poder irresistível do Estado.
73  “Não se pode falar em extraterritorialidade da missão, uma vez que o asilado se encontra dentro
do Estado de cujas autoridades ele foge; apenas ele não se encontra sujeito à jurisdição do Estado
territorial. A teoria da extraterritorialidade foi completamente abandonada. Atualmente fala-se em
inviolabilidade e imunidade de jurisdição dos imóveis da Missão Diplomática, o que fundamenta
o asilo diplomático, uma vez que o Estado territorial não pode mais submeter o asilado à sua
jurisdição.” (MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito de asilo, p. 1101). Em relação ao asilo
territorial, não há dúvidas, como já foi visto, de que a soberania, especialmente no que diz respeito
à jurisdição do Estado asilante, é determinante para a concessão ou recusa de asilo. De todo modo,
é instrutivo reler o paradigmático artigo II da Convenção Interamericana sobre Asilo Territorial,
citado na nota 63.

101
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

Entre asilo religioso e asilo político, há, portanto, uma tensão


que não pode ser ignorada: aquela derivada de seus fundamentos, e que
impede, obviamente, de se pensar em algo como a existência de uma
simples continuidade entre um tipo de asilo e outro. Esta tensão aparece
tematizada em toda a sua extensão em As suplicantes, de Ésquilo, bem
como os dilemas que ela produz no campo da política. Diante do caso
das Danaides, a vontade divina e a vontade humana são apresentadas
em uma relação complexa, às vezes de antagonismo, às vezes de comple-
mentariedade, mas, em todo caso, exigindo de Pelasgo e dos cidadãos de
Argos uma resposta, sempre ao preço esmagador da responsabilidade
pelo destino da pólis. O “pensamento salvador” encontrado por Pelas-
go faz da vontade dos cidadãos, explicitamente manifestada em assem-
bleia, o critério decisivo para a resposta a ser dada ao dilema proposto.
Com o aceite da cidade em atender às suplicas das Danaides, a lei divina
se transfigura, por meio de uma decisão política, em lei civil; o asilo
religioso torna-se, pela vontade da pólis, asilo político. Assim, Ésquilo
faz a vontade divina e a vontade humana convergirem; porém, isso não
exime os homens, no caso os cidadãos, daquela responsabilidade que
sempre há em relação à interpretação correta da vontade divina em cada
situação concreta. Ao fim, de um lado, a lei divina dá sinais de enfraque-
cimento, mostra-se incapaz de, por si só, bastar como critério de justiça
diante dessa nova experiência que é a vida na pólis, necessitando, a par-
tir de então, da chancela da cidade para poder ainda servir como parâ-
metro de conduta; de outro, a política e o direito, estes campos fundados
na vontade humana, mesmo quando convergem com a religião, reafir-
mam a responsabilidade dos cidadãos pelo destino da cidade e lança-os
numa aventura na qual pode-se, no máximo, “Tentar o destino”, sempre
na esperança de que essa tentativa coincida, no final, com a vontade úl-
tima e imperscrutável dos deuses. Desse modo, a vontade divina passa
a servir como inspiração e, a posteriori, manifestação de concordância
(ou discordância) em relação à vontade humana, a quem cabe julgar e
decidir de acordo com aquilo que for o melhor para a pólis, e doravante
suportar, cada vez mais solitariamente, o peso de suas escolhas.
No asilo político, em sua configuração atual, o pêndulo da ba-
lança da civilização já se encontra bastante inclinado em direção ao ho-
mem e não está mais preocupado, pelo menos em geral, em conciliar ou
fazer convergir a vontade divina e a vontade humana. Pelo contrário, foi

102
Marcelo Alves

em grande medida recusando a vontade divina que um conceito como o


de soberania, central para o asilo político contemporâneo, se constituiu,
ainda que muitas vezes mimetizando a forma e o exercício daquele po-
der contra o qual se ergueu. Portanto, afirmar algo como, por exemplo,
o asilo político é a secularização do asilo religioso ou simplesmente que
ambos são completamente distintos porque possuem fundamentos dis-
tintos parece responder apenas parcialmente àquilo que uma compara-
ção criteriosa exige. É verdade que se pode identificar nessa comparação
aspectos que permitem pensar em uma secularização do sagrado, mas
não sem certa via de mão dupla, ou seja, sem que certa divinização do
humano também ocorra e assim, apesar de possuir outro fundamento,
o secular incorpore algo da lógica e da estrutura do sagrado. De todo
modo, As suplicantes é esta obra na qual a comparação é pela primeira
vez realizada e de um modo tão intenso e complexo que continua a con-
vidar o seu espectador/leitor a pensar sobre os limites e as possibilidades
da religião, da política, do direito, enfim, do humano.

Referências
Fontes e comentários

ALVES, Marcelo. Antígona e o direito. Curitiba: Juruá, 2007.


ARISTÓTELES. A política. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1997.
BAILLY, Anatole. Le grand Bailly: dictionnaire grec-français. Paris:
Hachette, 2000.
BEAUJON, Edmond. Le dieu des suppliants: poésie grecque et loi de
l’homme. Neuchâtel: Éditions de La Baconnière, 1960.
BÍBLIA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição corrigida e
revisada fiel ao texto original. São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana
do Brasil, 2007.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. 8. ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.
BURIAN, Peter. Pelasgus and politics in the Danaid Trilogy. In:
LLOYD, Michel (Ed.). Aeschylus. Oxford: Oxford University Press, 2007.
p. 199-210.

103
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

CAMUS, Albert. Conférence prononcée à Athènes sur l’avenir de la


tragédie. In: ______. Théâtre, récits, nouvelles. Paris: NRF/Gallimard,
1995. p. 1701-1711.
ÉSQUILO. Orestéia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Estudo e
tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, 2004.
______. Tragédias: Os persas, Os sete contra Tebas, As suplicantes,
Prometeu cadeeiro. Estudos e traduções de Jaa Torrano. São Paulo:
Iluminuras: 2009.
______. Tragedias. Trad. Enrique Ángel Ramos Jurado. Madrid: Alianza,
2001.
______. Fragments from lost plays. In: GAGARIN, Michael.;
WOODRUFF, Paul. (Ed.). Early Greek Political Thought from Homer to
the Sophists. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 46-49.
______. Les suppliantes, Les perses, Les septe contre Thèbes, Prométhée
enchainé. Traduction par Paul Mazon. 6. ed. Paris: Les Belles Lettres,
1953.
HERÓDOTO. História. Trad. J. Brito Broca. 2. ed. São Paulo: Ediouro,
2001.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer.
4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz
Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro:
Ediouro, [198?].
______. Ilíada. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro:
W. M. Jackson, [195?]. Disponível em: <http://www.consciencia.org/
iliada-de-homero>. Acesso em: 06 set. 2010.
______. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.
______. Odisséia. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ars
Poética, Edusp, 1992.

104
Marcelo Alves

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Arthur M.


Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
MEIER, Christian. De la tragédie grecque comme art politique. Paris:
Belles Lettres, 1991.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público.
15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
MURRAY JR., Robert Duff. The motif of Io in Aeschylus’ Suppliants.
Princeton: Princeton University Press, 1958.
PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. 6. ed.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984.
PODLECKI, Anthony J. The political background of Aeschylean tragedy.
2. ed. Londres: Bristol, 2000.
REZEK, Francisco. Direito internacional público. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
ROMILLY, Jacqueline de. La Grèce Antique contre la violence. Paris:
Editions de Fallois, 2000.
______. La loi dans la pensée grecque. 2. ed. Paris: Les Belles Lettres,
2002.
SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Mario da Gama
Kury. 4. ed. Brasília: EdUNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2001.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na
Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.
ZAIDMAN, Louise Bruit; PANTEL, Pauline Schmitt. Religion in the
Ancient Greek City. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

105
O NASCIMENTO DO CONCEITO DE ASILO POLÍTICO NA TRAGÉDIA GREGA:
os dilemas da política em As Suplicantes, de Ésquilo

Documentos jurídicos

CE. Normas mínimas para la acogida de los solicitantes de asilo en los


Estados miembros, 2003. Disponível em:<http://europa.eu/legislation_
summaries/justice_freedom_security/free_movement_of_persons_
asylum_immigration/l33150_es.htm>. Acesso em: 20 nov. 2010.
OEA. Convenção sobre asilo diplomático. X Conferência Interamericana.
Caracas, 1954. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/
treaties/A-46.htm>. Acesso em: 30 out. 2010.
______. Convenção sobre asilo territorial. X Conferência Interamericana.
Caracas, 1954. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/
treaties/A-47.htm>. Acesso em: 30 out. 2010.
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre o asilo territorial. Assembleia
Geral das Nações Unidas, 1967. Disponível em: <http://www.
cidadevirtual.pt/acnur/refworld/legal/instrume/asylum/asi-terr.htm>.
Acesso em: 30 out. 2010.
______. Declaração universal dos direitos humanos. Assembleia Geral
das Nações Unidas, 1948. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.
br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 30 out. 2010.

106
TUCÍDIDES E AS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
um breve ensaio1
Gabriel Geller Xavier2

Introdução
As relações internacionais se consolidaram como área de conhe-
cimento alicerçando-se sobre duas correntes teóricas, o realismo e o
idealismo. A primeira surgiu como resposta ao período idealista3 que o

1  Devo, antes de tudo, agradecer a aquelas pessoas e instituições que viabilizaram e contribuíram
para a elaboração deste ensaio: ao Estado de Santa Catarina que através da bolsa de pesquisa
concedida com base no Art. 170 de sua Constituição fomentou o desenvolvimento da pesquisa
inicial deste ensaio; ao Prof. MSc. Marcelo Alves, pela imprescindível orientação, sem a qual este
trabalho não seria possível; ao Prof. MSc. Raphael Spode, que com prestimosa atenção e gentileza
acolheu-me como orientando, apoiando e incentivando a elaboração final deste trabalho; ainda,
ao Núcleo de Filosofia Antiga da Universidade Federal de Santa Catarina, em especial a Profa.
Dra. Arlene Reis, presença constante, pela incansável atenção e estímulo no estudo da Filosofia e
História Grega Antiga; e ao Prof. Dr. Nazareno Eduardo de Almeida que, com suas aulas, mostrou-
me que é possível aprender o grego antigo.
2  Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí e bacharel em
Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é mestrando em Filosofia pela
Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Grupo de Pesquisa do Núcleo de Filosofia
Antiga. E-mail para contato: ggx@ibest.com.br
3  O período idealista localiza-se entre as duas grandes guerras e pretendia introduzir no cenário
internacional projetos inspirados em ideais éticos, como a Liga das Nações. Para uma exposição
aprofundada do surgimento e do modo de pensar do período idealista e realista, ver: CARR.
Edward H. Vinte Anos de Crise 1919 – 1939: uma introdução ao estudo das Relações Internacionais.
Trad. Luiz Machado. 2ª Ed. Brasília: UnB, IPRI, 2001.

107
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

cenário internacional vivia após a Primeira Guerra Mundial. O realismo


defende que o Estado é a organização política e social de maior relevân-
cia para a política internacional e o poder e a força são tidos como de-
terminantes para as relações internacionais. Tucídides, pela forma como
expõe os fatos em sua Guerra do Peloponeso, é chamado de “pai” do re-
alismo por alguns dos teóricos dessa matriz. De fato, a obra do historia-
dor grego apresenta acontecimentos e posturas políticas adotadas pelas
cidades-estado beligerantes que podem ser interpretadas como sendo
atitudes que revelam postulados de tal teoria. A atuação ateniense em
relação às outras poleis serve para ilustrar o comportamento prescrito
pela doutrina do realismo. Contudo, a obra de Tucídides é rica em fatos
e considerações políticas, de modo que não escapa da observação do
autor a postura política adotada no âmbito interno da polis. Essa é uma
postura diferente da que é mantida na esfera externa, pois no interior da
cidade-estado há uma coesão dos cidadãos em prol do bem comum e
de um ideal de liberdade e justiça, sendo possível caracterizar a política
interna implementada como uma espécie de idealismo, já que conserva
em si elementos que o fazem receber tal designação, ou seja, subordinar
a realidade política a ideais éticos. Desta feita, o idealismo defendido no
presente ensaio como sendo implementado por Atenas em sua política
interna não é o mesmo postulado teórico sobre o qual as Relações In-
ternacionais, enquanto disciplina, se constituíram, pois tal paradigma
defende postulados de justiça e paz na esfera internacional. O idealismo
evidenciado na polis grega é circunscrito à política interna, tendo rela-
ção com o modelo teórico de interpretação das Relações Internacionais
pelo princípio geral que norteia o idealismo político, a saber, a subordi-
nação da realidade política a ideais e padrões éticos de justiça.
Ao expor o paradigma realista das Relações Internacionais como
proveniente de certo idealismo implementado no âmbito interno à
cidade-estado, deseja-se evidenciar a relação existente entre a política
interna e a externa e, ao mesmo tempo, a origem e os motivos que os
Estados podem ter para assumir uma postura realista externamente. É a
partir dessas considerações que se pretende analisar as motivações que
levaram Atenas à guerra, bem como elementos que permitem caracteri-
zar a política interna ateniense como idealista e a externa como realista.
E então, mostrar porque o realismo implementado na política externa

108
Gabriel Geller Xavier

de Atenas é o desdobramento de um certo idealismo implementado em


sua política interna.

Das motivações e da causa da guerra


Num primeiro contato com a obra e numa leitura mais rápida da
Guerra do Peloponeso4, o leitor tem um forte impacto e é seduzido com
a forma literária com a qual Tucídides apresenta os fatos. Nesta leitura
preliminar, também ficam impressões gerais que, nem sempre, são con-
firmadas pelo autor. Já em uma segunda aproximação com os escritos
do historiador grego, o leitor consegue encontrar encadeamentos lógi-
cos que perpassam e caracterizam a obra dando acesso ao pensamento
do narrador.5

4  Os problemas de uma séria tradução, direta do grego clássico para um idioma vernáculo, da
Guerra do Peloponeso começam pelos problemas de manuscritos inevitavelmente enfrentados
por aquele que pretende realizar uma tradução com precisão conceitual. O fato de existirem
diversos manuscritos do texto de Tucídides exige daquele que quer maior rigor em sua tradução
conhecimento filológico, pois somente assim, diante de um conjunto de manuscritos conseguirá
justificadamente estabelecer o texto grego, para então iniciar a tradução. A problemática dos
manuscritos é salientada por Hemmerdinger: “A tradição dos manuscritos de Tucídides é
contaminada, o que para a sistemática filológica é um mal sem remédio. Todavia, não estamos
completamente desarmados diante a contaminação, pois podemos, ao menos, demonstrar
sua existência. Com efeito, para provar que uma tradição de manuscritos é contaminada e que
perderíamos tempo em querer estabelecer um sistema filológico preciso e completo, é suficiente
demonstrar a instabilidade das constelações, ou seja, dos grupos de manuscritos apresentando
a mesma lição”. Tradução livre de: HEMMERDINGER, Bertrand. Essai sur l’histoire du texte de
Thucydide. Paris, Les belles lettres, 1955. p. 10. Há, contudo, aqueles que realizam suas traduções
da Guerra do Peloponeso a partir de textos já estabelecidos, que também são diversos, e que se
consultados aleatoriamente para compor uma tradução podem comprometê-la, uma vez que os
estabelecimentos são feitos de diversos manuscritos e com perspectivas distintas. Diante dessa
dificuldade do tradutor frente à obra de Tucídides, optou-se sempre que possível, pela tradução
francesa de Jacqueline de Romilly em razão de a tradutora fazer o trabalho filológico de consultar
os diversos manuscritos e estabelecer o texto grego, para, então, fazer a tradução, bem como, pelo
texto ser apresentado em uma edição bilíngüe oferecendo um recurso a mais para o leitor, além de a
tradutora possuir reconhecido conhecimento do autor grego em questão. No Brasil há, para o livro
I da Guerra do Peloponeso, uma boa edição bilíngüe com tradução de Anna Lia Amaral de Almeida
Prado do texto estabelecido por Jacqueline de Romilly, assim, optou-se pela utilização desta edição
na elaboração desse ensaio. Para o desenvolvimento do terceiro momento do trabalho foi adotada
a tradução italiana de Luciano Canfora do episódio entre os Mélios e Atenienses publicada em
edição bilíngüe e acompanhada de minucioso estudo, feita a partir do texto estabelecido por J. E.
Powell. A única tradução integral da obra de Tucídides até então disponível em português é a de
Mário da Gama Kury, uma boa tradução por ser bastante acessível, porém, adota mais de um texto
estabelecido e carece de uma relação maior com os manuscritos.
5  Cf. ROMILLY, Jacqueline de. História e Razão em Tucídides. Trad. Tomás Rosa Bueno. Brasília:
UnB, 1998. p. 61.

109
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Este esforço que é necessário para conseguir encontrar alguma


expressão do pensamento de Tucídides é inteiramente justificado, pois
ele quer ficar restrito ao que realmente aconteceu, como é expresso na
primeira sentença de sua obra: “Tucídides de Atenas escreveu a guerra
dos peloponésios e atenienses, como a fizeram uns contra os outros”6.
Ou seja, ele esconde-se em sua narração fazendo-a protagonista para se
apegar aos fatos.7
A maneira que Tucídides compôs a Guerra do Peloponeso é apre-
sentada por ele no Livro I, nos capítulos XX a XXIII, em que “declara
os procedimentos para a seleção crítica dos dados referentes à guerra”8.
Estes capítulos, que compõem a primeira seção da obra, são chamados
pelos comentadores de Metodologia e de acordo com Jacqueline de Ro-
milly, quanto ao método do historiador para composição de seu texto,
há na Guerra do Peloponeso uma
[…] tendência à unidade […] que confere ao relato de Tucídides o seu caráter de
inteligibilidade. A partir do momento em que ele isola uma intenção, comum a
diversos atos, e destaca sistematicamente tudo o que possa servir para caracterizar
a sua realização ou o seu fracasso progressivo, essa intenção proporciona uma
explicação satisfatória do ato. Além disso, a causa do êxito ou do fracasso é
também isolada e, de certo modo, tornada legível. A simples justaposição
cronológica forma, a partir de então, uma série coerente e compreensível.9
Desta forma, o relato é marcado pela unidade de fatos encadeados
cronologicamente, o que distancia o particular, os detalhes minúsculos,
tornando a narrativa mais clara. Este procedimento, aliado ao fato de
colocar em cena e dar luz aos acontecimentos e aos discursos das per-
sonagens da Guerra, bem como a linguagem literária, é que permitem
que aquele que lê faça, legitimamente, uma comparação com a tragédia,
sobretudo, no que concerne à causa e às motivações das cidades-estado
para o começo da guerra. Uma vez que como acontece tipicamente nas
tragédias, os discursos do primeiro livro da narrativa apresentam a ten-
são do comportamento temerário, e, portanto, comedido espartano e as

6  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida
Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. cap. I, p. 3.
7  Cf. ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a guerra. Clássica. São
Paulo, Ano 2. V-2, 1989. p. 10.
8  ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a guerra, p. 11.
9  ROMILLY, Jacqueline de. História e Razão em Tucídides, p. 37.

110
Gabriel Geller Xavier

pretensões sobre-humanas, desmedidas, ateniense que levam ao início


da guerra, ao desfecho trágico.
É também no Livro I da Guerra do Peloponeso que Tucídides
apresenta a finalidade pela qual empreende a sua narrativa. Ele pretende
deixar para as gerações futuras o relato da guerra de maior comoção
da Hélade10, bem como dos antecedentes e dos motivos que levaram a
sua eclosão. Assim, esta primeira parte da obra apresenta dois objetivos:
evidenciar que tal guerra foi a maior e mais impactante para a Hélade,
e qual a motivação que arrastou as potências ateniense e espartana ao
conflito. Ao seguir esse plano de trabalho, Tucídides parece querer apre-
sentar o fio condutor de toda a obra, a inclinação natural humana ao in-
teresse próprio implacável a qual toda a moralidade, convenção e ideais
de justiça, de liberdade e de bem-comum se tornam impotentes.
Para situar os antecedentes da guerra, Tucídides toma como pon-
to de partida o momento em que a Liga do Peloponeso, fundada no
século VI a.C. e que compreendia Esparta e seus aliados, tentava ex-
pulsar os Persas das terras gregas no início do séc. V a.C. (em 499 a.C.).
Entretanto, para que o êxito fosse obtido seria necessária uma boa fro-
ta naval, e Atenas, que possuía o maior poderio naval entre os gregos,
logo foi convocada e paulatinamente conquistou a liderança do com-
bate, fundando a Liga de Delos. Não obstante, já no século V, em 480
a.C., os persas voltam à Hélade para escravizá-la. Consigo os invasores
trouxeram numeroso exército, a fim de conseguir o sucesso não logra-
do em outras tentativas. Foi quando finalmente os gregos, num esforço
comum, os repeliram. Com a formação da Liga de Delos, contudo, a
Grécia ficou dividida em dois grandes blocos. Dessa forma, começa a
disputa pelo poder entre as duas potências gregas: enquanto Esparta,
liderando a Liga do Peloponeso, se sobressaía por ser a maior potência
militar terrestre, Atenas, a frente da Liga de Delos, revelava-se como
portadora do maior poderio militar marítimo e apresentava-se pronta
para um possível conflito.
O estopim para o começo deste conflito se dá em 431 a.C., quan-
do Epídamnos – colônia situada no golfo Iônio – sofria sucessivos ata-
ques de bárbaros vizinhos, que a levaram à ruína e a suplicar ajuda a sua
metrópole, Córcira. Os corcireus, porém, se esquivaram, o que motivou

10  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. I, p. 3.

111
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

os epidâmnios a pedirem socorro e se entregarem como colônia para


Corinto em troca da ajuda desta. Ao tomar conhecimento do ocorrido,
Córcira enviou naus a Epídamnos para tomar de volta sua colônia, dan-
do início a uma disputa.
Após serem derrotados em uma batalha naval, os coríntios pas-
sam longo período construindo naus e recrutando homens para uma
nova expedição. Córcira, temendo o poder naval obtido por Corinto, se
dirige a Atenas para propor uma aliança. Corinto ao saber disso enviou
representantes para Atenas, visando evitar a possível união. Chegando
a Atenas, tanto Córcira quanto Corinto apresentaram à assembléia ate-
niense seus argumentos. Os corcireus evocaram créditos junto aos ate-
nienses por conta de serviços e alianças feitas no passado, e afirmaram
que, caso aceitassem a aliança proposta, os atenienses nada perderiam.
E mais, mostram a Atenas que não vieram pedir ajuda sem nada a ofere-
cer e, dessa forma, propõem uma troca de interesses aos atenienses:
Será para vós, sob muitos aspectos, se nos atenderdes, uma bela conjuntura a
nossa necessidade: primeiro, porque prestareis auxílio a quem é ferido em seus
direitos e não a quem prejudica a outros, depois porque, tendo acolhido aqueles
que correm perigo em seus mais altos interesses, garantireis ao máximo sua
gratidão cujo testemunho será perene e, enfim, a frota que possuímos, salvo a
vossa, é a maior11.
Foi então que Atenas – conduzida por sua ambição e, ao mes-
mo tempo, pelo medo de que Córcira e Corinto viessem a ser tomadas
por Esparta e de vir a perder a sua posição de maior poderio naval,
conquistada na guerra contra os Persas – resolveu fazer uma aliança
defensiva com Córcira. Na aliança, comprometiam-se a socorrerem-se
mutuamente no caso de ataque dirigido contra Córcira ou a Atenas e
seus aliados. A batalha entre corcireus e coríntios ocorreu e Corinto
saiu em desvantagem do confronto. Essa vantagem obtida por Córcira
reforçou o poder conquistado por Atenas.
Embora a discussão ocorrida diante da assembléia ateniense se
restringisse ao conflito entre Córcira e Corinto, não se pode perder de
vista que os contornos para um possível embate entre Esparta e Atenas já
estavam delineados desde a formação da Liga de Delos e a conseqüente
maximização do poder ateniense com a expulsão dos persas, o que de-
bilitou a hegemonia espartana. Considerando isto, Atenas não podia se

11  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. XXXIII, p. 47.

112
Gabriel Geller Xavier

manter neutra nesta rusga, pois qualquer divergência que pudesse vir a
acontecer neste tenso cenário acabaria por se refletir no antagonismo de
forças representadas por Esparta e Atenas, desde as guerras médicas.
Em razão do êxito obtido no confronto entre os corcireus e os co-
ríntios, os atenienses – temendo a vingança de Corinto – ordenaram aos
que habitavam Potidéia12, importante colônia dos coríntios, a se entrega-
rem como reféns. Tal fato comprometeu definitivamente as relações en-
tre Corinto e Atenas, pois ao ver sua colônia sitiada pelos atenienses, os
coríntios se posicionaram como liderança ante às outras poleis, as quais
se sentiam intimidadas e em perigo com a expansão do império atenien-
se, impelindo-as a se apresentarem diante de uma assembléia espartana.
Na assembléia, os representantes das várias cidades-estado apre-
sentaram suas queixas aos espartanos. Em seguida, vieram os coríntios e
dessa forma incitaram os lacedemônios à guerra contra os atenienses:
Muitas vezes, quando anunciávamos de antemão os danos que iríamos sofrer
por parte dos atenienses, do que cada vez vós instruíamos não tirastes uma
lição; antes suspeitáveis que os oradores falassem por causa de suas próprias
divergências; e foi por isso que, não antes de serdes afetados, mas quando
estávamos já no decurso da ação, convocastes os aliados aqui presentes. Entre
eles não é a nós que menos cabe falar, tanto mais que motivos muito graves
temos nós que dos atenienses sofremos a violência e, de vós, a indiferença.
[...] A custo agora reunimo-nos, mas nem agora com disposições claras. Não
deveríamos estar ainda examinando se nossos direitos são feridos, mas como
nos defenderemos: os que agem deliberadamente contra indecisos não hesitam
em atacar. [...] Que este momento, portanto, marque o fim de vossa lentidão:
agora aos outros e aos potideatas sobretudo, como prometestes, prestai auxílio
invadindo com rapidez a Ática para não abandonar aos piores inimigos homens
que são amigos e consangüíneos vossos e para não levar a nós outros a procurar
pelo desânimo uma outra aliança.13
Os coríntios, com este discurso, mostram que os aliados a Esparta
veem-se ameaçados por Atenas e os episódios com Córcira e Potidéia,
os quais aparentemente motivaram a assembléia, são, na verdade, parte
de um plano que os atenienses estavam preparando, pois o aumento da
frota e o apoio de um maior número de colônias representam o crescen-
te poder ateniense. Por isso, exigem que os lacedemônios voltem seus
ouvidos para as queixas e considerem o perigo de uma guerra iminente.

12  Colônia de Corinto, estabelecida no istmo de Palene. Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do
Peloponeso: livro I, cap. LVI, p. 75.
13  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. LXVIII–LXXI, p. 89-95.

113
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Ao final de sua fala, os coríntios deixam clara sua indignação com os


espartanos, que não apresentaram obstáculos contra a ambição desme-
dida ateniense e assim a permitem chegar a ponto de se tornar uma
ameaça para os peloponésios. Após todas essas queixas e notificações, os
coríntios alertam que caso os espartanos não se movam em direção aos
seus avisos, buscarão outra aliança. Ou seja, colocam os lacedemônios
em uma difícil situação, pois exigem uma ação imediata dos mesmos
com relação aos atenienses.
Na Lacedemônia, contudo, encontrava-se uma embaixada ate-
niense, que por motivos adversos ali estava. Assim que tomaram co-
nhecimento do discurso dos coríntios, decidiram apresentar-se, não se
defendendo das queixas e acusações formuladas pelas demais cidades,
mas alertando de que deveriam refletir calmamente e mostrar o quão
grandiosa era sua cidade, bem como seu poder. Então discursaram:
Percebendo, porém, que o clamor contra nós não é pequeno, pedimos a palavra,
não para responder às queixas das cidades (nem as nossas palavras nem as deles
vos teriam como juízes), mas para evitar que, levianamente persuadidos pelos
aliados em assuntos de grande importância, delibereis menos bem e, ao mesmo
tempo, porque queremos mostrar, a despeito de tudo quanto se fala de nós,
que não é sem boas razões que conservamos o que já possuímos e que a nossa
cidade é digna de consideração. [...] Das guerras médicas e de todos os fatos que
conheceis pessoalmente, embora seja cansativo lembrá-los sempre, força é que
falemos. Quando agíamos, o risco visava a uma vantagem. Se participastes da
vantagem da ação, quanto a nós, não sejamos totalmente privados da vantagem
de sua menção, se é que ela existe. Falaremos para apresentar não tanto um
pedido quanto um testemunho e uma indicação de qual é a cidade contra quem
tereis a luta, caso não delibereis com acerto. [...] Também este império nós o
conquistamos, não por ter usado de violência, mas porque vós não quisestes
persistir na luta contra os remanescentes do bárbaro e a nós vieram os aliados e
pediram, eles mesmos, que fôssemos seus dirigentes. A partir da própria tarefa
fomos constrangidos, primeiro, a levar o império a este ponto sobretudo por
temor, depois, também por honra e mais tarde por interesse. [...] Assim nada do
que nós fizemos é extraordinário nem se afasta do comportamento humano se,
quando nos ofereciam um império, o aceitamos e não o abandonamos forçados
por motivos de força maior: honra, temor e interesse.14 (grifou-se)
Como se pode ver, embora os atenienses aleguem que seu discur-
so não tem caráter defensivo, o tom da fala tem características defensi-
vas com base em princípios políticos. As acusações dirigidas a Atenas
tinham como alvo o seu comportamento agressivo e sua ambição des-

14  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. LXXIII–LXXVI, p. 97-103.

114
Gabriel Geller Xavier

medida, pois justamente essas eram as características que os atenienses


elevaram como suas maiores qualidades. Segundo eles, foi a força com
que lidaram com os bárbaros que salvou a Hélade, por isso, quanto a tal
característica, merecem louvor. Quanto à acusação de ambição desme-
dida, afirmam que não obtiveram o império através da violência, mas
o obtiveram a pedido dos aliados e foram forçados por três motivos a
assumirem-no, a saber: temor, do domínio persa; honra, orgulho obtido
com a liderança; interesse pelos recursos que os aliados podem oferecer.
Nada fizeram, por conseguinte, em contrariedade com o comportamen-
to humano, já que na política é há muito tido como costume a opres-
são do mais fraco pelo mais forte. Concluem o seu discurso voltando a
mencionar os motivos iniciais de sua dominação, contudo, agora com
uma mudança na ordem da apresentação e correspondendo a uma nova
fase do império. Se antes, na primeira vez que menciona os três motivos,
a fala do ateniense esta próxima do período da invasão persa, agora já
os situa na fase de formação do império, na qual a honra é derivada do
prestígio proveniente da hegemonia, o temor se refere aos súditos do
império e o interesse se dá pelos tributos e força obtida15. Estes não são
apenas motivos apresentados por Atenas para argumentar a sua domi-
nação, como também representam motivos que a impelem à guerra16.
Após a fala ateniense o rei espartano Arquidamo se pronuncia
afirmando que contra inimigos tão preparados com recursos financei-
ros e militares não se pode agir precipitadamente e
[...] demora e hesitação significam, mais que tudo, sabedoria consciente; graças
a elas, só nós nos êxitos não nos excedemos de orgulho e nos infortúnios
dobramo-nos menos que os outros; [...] Viemos a ser aguerridos e criteriosos
através da moderação.17
Tal discurso do rei lacedemônio tem o caráter de defesa quanto
às acusações de demora e hesitação sofridas na assembléia. A fala espar-
tana quer mostrar que demora e hesitação se traduzem em sabedoria e
comedimento. Para os gregos do século V a.C. a maior virtude que se
poderia ter, quer seja na vida pública quer seja na vida privada, é a me-
dida, a prudência na deliberação. Os gregos

15  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, notas 184 e 187, p. 219.
16  Cf. ROMILLY, Jacqueline de. Thucydide et l’Imperialisme Athénien: la pensée de l’historien et la
gênese de l’œuvre. 2 ed. Paris, Les Belles Lettre, 1951. p. 213-214.
17  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. LXXX, p.113.

115
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Sabiam muito bem que não eram deuses, [...] e que os deuses não demoravam
a abater sem piedade os que tentavam imitar a divindade, e que de todas as
qualidades dos homens, gostavam sobretudo da modéstia e do respeito.18
Para o rei lacedemônio era necessário comedimento, em outras
palavras, medida, prudência para enfrentar uma guerra de tamanho
porte, como a que se encontrava em iminência. Além disso, era propício
clamar por comedimento, visto que Atenas havia sido há pouco acusada
de desmedida. Assim, a fala espartana ganha a dimensão de um pedido
por cautela e serve como um aviso aos atenienses para se precaverem
com a sua desmedida e orgulho.
Tucídides deixa nítido esse caráter ambicioso e desmedido de
Atenas ao dedicar uma boa parte do livro I à apresentação da formação
do império Ateniense19, lá o historiador narra como se formou a Liga
de Delos, bem como, a forma com que Atenas liderava a liga. Nessa
parte da narrativa fica claro aos olhos do leitor a postura ambiciosa e
dominadora de Atenas diante dos aliados da liga: submissão, cobranças
de altos tributos e recursos militares eram as suas principais exigências.
Tucídides evidencia isso ao escrever:
Tendo os atenienses assumido dessa maneira o comando com o beneplácito
dos aliados por causa da hostilidade contra Pausânias, fixaram quais cidades
deveriam contribuir com dinheiro para a luta contra o bárbaro e quais com
navios, a pretexto de devastar os territórios do Rei como represália do que
haviam sofrido. Foi então que pela primeira vez entre os atenienses se instituiu
a magistratura dos helenotâmios que recebiam o fóros; foi esse o nome dado
a contribuição em dinheiro. O primeiro fóros foi fixado em quatrocentos
e sessenta talentos, Delos era a cede do tesouro e as reuniões se faziam no
santuário. [grifou-se]20
A partir desse trecho narrado pelo historiador grego pode-se per-
ceber a natureza dominadora e ambiciosa da ação ateniense, pois insti-
tuiu de forma arbitrária o pagamento de altos tributos (fóros) e recursos

18  KITTO, H. D. F. Os Gregos. Trad. José Manuel Coutinho e Castro. 3. ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1990. p.16.
19  Essa parte da obra é conhecida pelos comentadores como Pentecontaetia por narrar os cinco
decênios que separa as guerras médicas da Guerra do Peloponeso, ou seja, uma breve história de
como Atenas formou o seu império. Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I. Cap.
LXXXIX – CXVIII e VIDAL-NAQUET, Pierre. Razão e contra-senso na história. In:_________.
Os Gregos, Os Historiadores, A Democracia: o grande desvio. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 97.
20  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. XCVI, p. 129.

116
Gabriel Geller Xavier

bélicos, fixando-se, novamente de forma despótica, como guardiã do


tesouro da liga (helenotâmios) e instituindo magistrados para a admi-
nistração dos recursos do tesouro sem que a assembléia dos aliados par-
ticipasse21. O que até então era uma liga para a proteção da Grécia con-
tra as invasões bárbaras passa a ser um império em que Atenas detinha
o monopólio do uso do tesouro da liga e dos recursos militares. Foi com
os fundos levantados pela liga que Péricles pode implementar as polí-
ticas que tornaram Atenas o centro artístico, intelectual e político com
que tanto orgulho expressa na oração fúnebre narrada por Tucídides no
segundo livro de seu obra22.
Por esse seu caráter desmedido na ambição é que Atenas, por im-
plementar sua política imperialista de dominação, é reconhecida como
polis tyrannos. Segundo Knox,
[...] a ideia de Atenas como polis tyrannos era lugar comum tanto na própria
cidade como em outros lugares na segunda metade do século V. O tyrannos
individual recuara ao passado transformando-se numa lembrança amarga;
fora sucedido, contudo, pela polis tyrannos, Atenas, que possuía os recursos e
a habilidade, bem como indubitavelmente a ambição, para se tornar senhora
suprema do mundo grego.23
Assim, Atenas em sua ação ambiciosa para com as demais cida-
des-estado, no âmbito de sua política externa, será reconhecida como
tyrannos. Esta denominação era dada a “um aventureiro que, por mais
brilhante e próspero que fosse seu regime, ganhara e mantivera o poder
pela violência”24.

21  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, p. 222, notas 223 e 224.
22  O helenista inglês Kitto expõe como Atenas se utilizou dos fundos da liga: “Os Fundos da Liga
estavam a acumular-se e os templos [atenienses] destruídos pelos Persas não tinham ainda sido
reconstruídos. Parte da política de Péricles – continuação da de Pisístrato – destinava-se a tornar
Atenas o centro artístico, tanto como intelectual e político, da Grécia, e a cidade via-se a braços
com o problema do desemprego. O Pártenon, a magnífica entrada para a Acrópole, flanqueada
de galerias de pintura – estes e outros edifícios eram o resultado dessas necessidades e aspirações.
Houve protestos, mesmo na cidade, mas Péricles respondeu que os aliados pagavam a Atenas para
que ela os protegesse, e não pagavam quantias exorbitantes; eram protegidos, a esquadra ateniense
era altamente eficiente e havia uma reserva substancial de dinheiro. Atenas achava-se no direito
de gastar os excedentes em tais edifícios e estátuas, que dignificavam a cidade e toda a Grécia”.
(KITTO, H. D. F. Os Gregos, p. 198-199).
23  KNOX, Bernard. Édipo em Tebas: o herói trágico de Sófocles e seu tempo. Trad. Margarida
Goldsztyn. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 50-51.
24  KNOX, Bernard. Édipo em Tebas: o herói trágico de Sófocles e seu tempo, p. 47.

117
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Logo, a polis ateniense era tyrannos pela forma como realizara sua
política externa, guiada pela ambição ao qual decidiu por iniciar uma
guerra para manter o que conquistou, bem como para conquistar mais
poder e fomentar seu imperialismo. São estas características da polis
tyrannos que fazem de Atenas alvo de temor, hostilidade e desconfiança
por parte das demais cidades-estado gregas.
Para Tucídides, foi a hostilidade e a desconfiança para com Ate-
nas que levou os coríntios a se apresentarem queixosos na assembléia
espartana, da mesma forma que foi o temor motivo da entrada de Es-
parta na guerra, como revela o seguinte trecho:
Os lacedemônios votaram que o tratado [Tratado de Paz de Trinta Anos
acordado em 446 a.C.] estava rompido e que se deveria fazer a guerra, não tanto
por terem sido persuadidos pelos discursos dos aliados, mas porque temiam
que fosse mais longe o poder dos atenienses vendo que eles já tinham em suas
mãos a maior parte da Hélada.25
O temor, portanto, se configura como a motivação que arrasta
Esparta para o início da guerra. Como bem assinala a helenista francesa
Jacqueline de Romilly,
[…] os lacedemônios se atemorizavam não com a sorte que os esperava ou
com as tentativas que Atenas imediatamente faria, mas com a vantagem que ela
levava pouco a pouco.26
Ou seja, o que os espartanos temem é a maximização paulatina
do poder ateniense e decidem entrar na guerra para colocar barreiras à
expansão da polis tyrannos. Ao fazer isso, os lacedemônios promovem a
chamada política de “equilíbrio de poder”, pois é na tensão gerada pelo
conflito que se produz o equilíbrio de forças. 27

25  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. LXXXVIII, p. 117.


26  Tradução livre de: “[…] les Lacécémonies s’effrayaient non du sort qui les attendait ou des
tentatives qu’allait faire Athènes dans l’immediat, mais de l’avantage qu’e elle prenait peu à peu”
(ROMILLY, Jacqueline de. Thucydide et l’Imperialisme Athénien: la pensée de l’historien et la gênese
de l’œuvre. 2 ed. Paris, Les Belles Lettre, 1951. p. 26).
27  David Hume diz que “em toda política grega é clara a preocupação com a balança de poder,
como indicam expressamente até mesmo os historiadores antigos.” (HUME, David. Da balança de
poder. In:_____. Ensaios Políticos. Trad. Pedro Pimenta. São Paulo: Martins Fontes, 2003. cap. 19,
p. 190).

118
Gabriel Geller Xavier

Dessa forma, chega-se à convergência das motivações que le-


varam tanto Esparta quanto Atenas à guerra: o imperialismo (arché)28
ateniense. Ora, Tucídides é claro e exato ao expor o que acredita ser o
princípio da guerra: “a causa mais verdadeira, embora menos declarada,
é, penso eu, que os atenienses, tornando-se poderosos, inspiram temor
aos lacedemônios e os forçam a lutar.”29
Os discursos realizados na assembléia lacedemônia trazem em
linhas gerais o postulado de que a guerra se encontra em iminência por
causa do ilimitado, paulatino e desmedido desenvolvimento do impe-
rialismo ateniense. Ou seja, hybris [desmedida] foi o que engendrou a
guerra, assim como é esta a causa e o motivo de toda tragédia:
A hybris, a desmesura – quase se poderia traduzir por imprudência, atribuindo
a esta palavra toda sua força – era para os gregos a falta por excelência, causa de
todas as infelicidades privadas e públicas.30
Por tudo o que foi exposto, Atenas pode ser comparada ao herói
trágico, pois tem pretensões sobre-humanas, o que a faz agir impru-
dentemente e a cometer desmedidas, e por causa destas irá encontrar o
seu infortúnio, tal qual ao protagonista da tragédia que, por cometer o
excesso, se vê jogado, pela peripécia, à desventura.

28  De acordo com Marshall Sahlins “Tucídides referia-se ao império ateniense como arché, a
substantivação do verbo ‘comandar’, e alguns classicistas, reconhecendo a peculiaridade do caso
adotaram esse nome. […] a originalidade do poder ateniense é tal que o vocabulário moderno
não fornece um nome apropriado para ele.” (SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias
a Tucídides. Trad. Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 103). A
palavra grega arché tem múltiplos sentidos, e parece que Tucídides a emprega para designar um
tipo peculiar de poder exercido por Atenas na Hélade, cuja característica é o exercício de uma
liderança, de um predomínio fundado na força, no medo e na admiração sobre as cidades-estado
gregas. Imperialismo talvez não seja a melhor tradução para arché, mas na falta de outra palavra
que remeta a um sentido mais próximo ao que, de fato, a palavra grega expresse, optou-se por
utilizá-la. Sobre o termo arché, consultar também nota 40 e 63.
29  TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I, cap. XXIII, p. 33. Esse pensamento
em Tucídides ganha contornos mais claros na assembléia em Esparta na qual “os quatro discursos
que comporta tratam do imperialismo ateniense em seu conjunto, mais que de conflitos precisos
resultantes de recentes diferenças”. Tradução livre de: “[…] les quatre discours qu’elle comporte
traitent de l’impérialisme athénien dáns son ensemble, plus que des conflits précis résultant des récents
différends”. (ROMILLY, Jacqueline de. Thucydide et l’Imperialisme Athénien: la pensée de l’historien
et la gênese de l’œuvre, p. 24-25).
30  AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo: Discurso
Editorial, 2003, p. 7.

119
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

A política interna idealista ateniense e seu desdobramento


Ao apresentar as pretensões ambiciosas e dominadoras de Ate-
nas, Tucídides mostra como a polis tyrannos formou um império, admi-
nistrando despoticamente os tributos pagos pelos aliados. A utilização
destes recursos da Liga promoveu políticas internas implementadas por
Péricles em Atenas que a levaram a ser o grande ícone político, artístico
e intelectual no século V a.C. na Grécia. Os desdobramentos do imperia-
lismo ateniense é o que compõe a seqüência da narrativa da Guerra do
Peloponeso31, contudo, as conseqüências desse agir desmedido de Atenas
com a finalidade de consolidar o seu império não ocorrem somente no
âmbito externo a polis, há passagens em que o historiador grego narra,
nos livros II e III, que colocam o leitor em contato com as conseqüências
deste imperialismo e da guerra no que concerne a importância da orga-
nização política interna da polis: a oração fúnebre, o episódio da peste e
a rebelião interna (stasis) em Córcira.
Péricles, em seu primeiro discurso no início da guerra, pede à
população que vive fora dos muros da polis que, por conta da guerra,
deixe suas terras e casas e vá para dentro de Atenas. O êxodo interno
foi grande e as condições higiênicas e sanitárias foram bastante afeta-
das, o que constituiu um ambiente muito propício para a conflagração
de uma epidemia. Neste cenário tumultuado irrompe-se uma doença, a
peste, dizimando boa parte da população. O historiador, então, faz uma
famosa descrição rica em detalhes clínicos dos diversos sintomas e, até
mesmo, dos efeitos da contaminação. Porém, o que parece, de fato, mais
preocupar são as conseqüências morais e políticas da peste:
De uma maneira geral, a peste foi, na cidade, a origem de uma desordem moral
[anomias] crescente. Ousava-se mais facilmente para o que, anteriormente,
somente se praticava em segredo: vendo-se em tantas reviravoltas abruptas,
fazendo com que homens prósperos morressem e de repente com que homens
que ontem sem recursos herdassem imediatamente seus bens. Assim também

31  Jacqueline de Romilly em sua já clássica obra Thucydide et L’Impérialisme Athénien tem por
objetivo demonstrar essa tese, a saber, de que a guerra é o desdobramento do imperialismo ateniense
em curso: “Estabelecemos assim qual lugar do imperialismo na sua história [de Tucídides] e sob
quais aspectos ele se apresenta: essa dupla delimitação nos fornecerá indicações sobre a forma com
que ele considera”. Tradução livre de: “Nous établirons ainsi quelle place l’impérialisme athénien
ocuppe dans son histoire, et sous quel aspect il se présente: cette double délimitation nous fournira déjà
des indications sur la façon dont il le juge” (ROMILLY, Jacqueline de. Thucydide et l’Imperialisme
Athénien, p. 20).

120
Gabriel Geller Xavier

havia aquelas pessoas de satisfações rápidas, tendendo a seus prazeres, pois eles
próprios [sómata] como seus bens estavam, a seus olhos, sem futuro. Lutar com
antecedência para uma finalidade considerada bela não inspira zelo a ninguém,
pois dizem que não poderiam saber se, antes de conseguir sua finalidade, não
teriam morrido: a aprovação imediata e tudo o que, qualquer que seja a origem,
poderia vantajosamente contribuir, viola o que tomou o lugar [a natureza]
do belo [kalón] e do útil. Medo dos deuses ou das leis dos homens, nada os
detinham: de um lado, julgavam igual se mostrar piedosos ou não, desde que
viram todos perecerem de igual modo, e, em caso de atos criminais, ninguém
esperava viver o suficiente para que o julgamento tivesse vez e submeter-se a sua
pena: por outro lado, pesada era a ameaça da peste a qual estavam já condenadas;
e, antes de verem-se abatidos, achavam normal apreciar um pouco da vida.32
Nessa passagem da descrição da peste, é bastante nítida a preocu-
pação de Tucídides não somente com as perdas humanas, mas, sobre-
tudo, com o ambiente caótico que a peste suscita. Uma vez que a peste
se estabeleceu na polis, introduziu consigo a anomia, palavra que para
os gregos tem um sentido amplo, pois a nomos, comumente traduzi-
da como lei, significa mais do que atualmente entende-se por lei, inclui
não somente a lei escrita como também todos os hábitos do cidadão33.
Assim, o que Tucídides já adverte no início da passagem citada, e que
é apresentada na seqüência de sua exposição, é que a peste não atinge
somente a estrutura fisiológica do homem, como também a estrutura
psicológica e moral do cidadão, adoecendo também o corpo político,
a polis. Essa desordem moral se dá devido à instabilidade que a peste
causa, nessa situação em que muitas mortes acontecem e a vida pode, a

32  Tradução livre de: “D’une façon générale, la maladie fut, dans la cite, à l’origine d’un désordre
moral croissant. L’on était plus facilement audacieux pour ce à quoi, auparavant, l’on ne s’adonnait
qu’en cachette: on voyait trop de retournements brusques, faisant que des hommes hier sans ressources
héritaient aussitôt de leurs biens. Aussi fallait-il aux gens des satisfactions rapides, tendant à leurs
plaisir, car leurs personnes comme leurs biens étaient, à leurs yeux, sans lendemain. Peiner à l’avance
pour un but jugé beau n’inspirait aucun zèle à personne, car on se disait que l’on ne pouvait savoir si,
avant d’y parvenir, on ne serait pas mort: l’agrément immediat et tout ce qui, quelle qu’en fût l’origine,
pouvait avantageusement y contribuer, violà ce qui prit la place et du beau et de l’utile. Crainte de
dieux ou loi des hommes, rien ne les arrêtait: d’une part, on jugeait égal de se montrer pieux ou
non, puisque l’on voyait tout le monde périr semblablement, et, en cas d’actes criminels, personne ne
s’attendait à vivre assez pour que le jugement eût lieu et qu’on eût à subir sa peine: autrement loude
était la menace de celle à laquelle on était déjà condamné; et, avant de la voir s’abattre, on trouvait
bien normal de profiter un peu de la vie” (THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre II, cap. LIII.
Trad. Jacqueline de Romilly. Paris, Les Belles Lettre, 1962. p. 39).
33  Werner Jaeger resgata o sentido de nomos: “[...] nomos, no sentido original da palavra: uma
tradição oral válida, da qual apenas algumas leis fundamentais e solenes – as rhetra – foram fixadas
por escrito” (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 110).

121
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

qualquer momento, ser consumada, a mudança de sorte ocorre brusca-


mente, aumentando ainda mais a instabilidade. A insegurança quanto
ao futuro é tamanha que alguns ávidos por realizar seus prazeres lançam
mão de seus bens e tudo o mais que possa contribuir para a sua imediata
realização. É neste ponto que Clifford Orwin comenta que um dos pri-
meiros malefícios da peste apresentados por Tucídides é
[...] o indevido uso que pessoas desesperadas fazem de suas próprias propriedades.
Aqui, com em todo seu relato da peste, Tucídides volta à famosa oração fúnebre
de Péricles, que imediatamente a precede. Péricles havia louvado aos atenienses
pela abstinência conspícua do consumo e ao invés disso consideram suas
riquezas como um recurso para a ação pública.34
Esse elogio feito por Péricles aos atenienses em sua oração fúne-
bre, proferida pouco antes de Tucídides narrar o episódio da peste, já não
tem mais vez quando a doença está espalhada pela polis causando desor-
dem e instabilidade. Todos somente visam a satisfação de seus prazeres e
a dedicação a polis e a manutenção da honra que Atenas inspirava nessa
época são deixadas de lado. Somente a consumação imediata dos pra-
zeres faz sentido e a passagem do imprudente desperdício das riquezas
para criminalidade é rápida, pois “são árduas as coisas belas” como diz
Glaucon a Sócrates no livro IV da República35e Tucídides quer evidenciar
ao relatar que uma finalidade bela inspira zelo e que as coisas belas e,
portanto, úteis, são violadas na peste requerendo o que é belo (kalón)36
luta, trabalho e perseverança, o que não faz sentido em um ambiente em
que paira a iminência da morte. Já não há mais perspectiva de tempos
futuros nem estabilidade para que se tenha perseverança, em outras pa-
lavras, não há mais sentido em trabalhar ou lutar por qualquer objetivo e
sem isso não há como conquistar o que é realmente belo. Assim, a beleza

34  Tradução livre de: “[...] the unseemly use that desperate people made of their own lawful property.
Here, as throughout his account of the plague, Thucydides looks back to Perikles’ famous funeral
oration, which immediately precedes it. Perikles had praised the Athenians for eschewing conspicuous
consumption, and for instead regarding their considerable wealth as a resource for public action”.
(ORWIN, Clifford. Stasis and plague: Thucydides on the Dissolution of Society. The Journal of
Politics, vol. 50, n.4, nov. 1988. p. 831-847. Disponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0022-
3816%28198811%2950%3A4%3C831%3ASAPTOT%3E
2.0CO%3B2-K>. Acesso em: 27 jun. 2007, p. 841).
35  PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes,
2006. 435c, p. 158.
36  Kalón ou belo tem um significado amplo para os gregos, quer dizer o que é digno de honra,
nobreza e fineza.

122
Gabriel Geller Xavier

é violada e onde ela pairava, o que toma o lugar é o que é mais desprezível
no comportamento humano. Com colapso do que é digno de beleza e
com a emergência do comportamento vil do homem advém à ausência
de medo das leis tanto dos homens quanto dos deuses, pois
se os deuses não podem ou não protegem seus devotos, porque pensar que
eles puniriam transgressores? [E] as leis dos homens falham porque lei é lei
(o que quer dizer é efetiva como lei) somente quando são comandadas e não
meramente conselhos, e é comando somente onde é punível.37
Ou seja, no ambiente desordenado da peste, do homem é arran-
cada sua suscetibilidade ao que é belo, seu sentido de honra e justiça,
nesse contexto o homem perverte - inverte - esses valores em troca da
satisfação imediata dos seus prazeres. Dessa forma, através do relato de
um fato ocorrido em Atenas e da narrativa do comportamento humano
diante do acontecimento é que Tucídides evidencia de maneira clara, a
importância da organização política interna da polis, uma vez que so-
mente nesta esfera é possível a instalação de ideais éticos que norteiam
a conduta humana ao convívio pacífico e a busca ordenada por seus
interesses, que por serem conduzidos por ideais éticos, beneficia a toda
a polis. Todavia, não é este o único momento em que Tucídides tentando
mostrar a importância da organização política interna da polis apresenta
a inversão dos valores morais vigentes na cidade-estado.
Depois da eclosão da guerra, em Córcira acontece uma terrível
e sangrenta guerra civil devido à insurgência dos cidadãos contra os
oligarcas. Uma rebelião (stasis) envolveu Córcira assim que os coríntios
libertaram prisioneiros corcireus, com o intuito de fazer com que esta
voltasse novamente para o seu lado. Os prisioneiros, por sua vez, haviam
sido pagos para induzir o povo a rebelar-se contra Atenas. Em conferên-
cia, o povo resolveu continuar a ser aliado dos atenienses. Diante desse
desfecho, os prisioneiros que haviam voltado de Corinto submeteram
Pítias38 a julgamento, acusando-o de tentar escravizar Córcira a Ate-
nas, mas este foi absolvido e, logo, levou a julgamento os cinco homens
mais abastados da polis, alegando que estavam cortando cepa de terras

37  Tradução livre de: “If the gods cannot or will not protect their worshippers, why think that they
would punish transgressors? Law of men fails because law is law (that is to say is effective as law) only
when it commands and not merely counsels, and it commands only where it can punish”. (ORWIN,
Clifford. Stasis and plague:Thucydides on the Dissolution of Society, p. 842).
38  Próxeno voluntário de Atenas em Córcira e membro do senado corcireu.

123
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

consagrada a Zeus e Alcínoos. Estes homens foram então condenados


a pagar alta multa e, querendo negociar a dívida, refugiaram-se como
suplicantes em templos, entretanto, ao que o senado negou. Isto incitou
a ira dos réus e os levou a matarem Pítias e outros tantos senadores. De-
pois deste fato ter ocorrido, os homens que conspiraram solicitaram aos
corcireus e lhes disseram que aquela era a melhor solução e que agora
era menos provável a sua submissão aos atenienses. A partir de então,
a cidade ficou dividida, o povo clamou pelos atenienses e os oligarcas,
que assumiram o poder, pelos peloponésios. O ambiente ficava a cada
momento mais tenso, pois as frotas ateniense e peloponésia ali estavam
dando apoio às facções e prontas a interpôr sua força no momento em
que uma delas fraquejasse. Em face de toda essa tensão a guerra civil se
tornou inexorável, até mesmo as mulheres participavam do combate.
Nada valiam as leis e os deuses, tudo era vilipendiado. Os que se viam
derrotados procuravam a morte, por temerem a rendição. Tal aconte-
cimento tomou proporções de crueldade jamais presenciadas até então
em toda a Hélade:
A morte vestiu todas as formas e, como acontece em tais casos, não se recua
diante de nada, - e [coisas] piores ainda. O pai matava seus filhos, os suplicantes
eram arrancados dos santuários ou assassinados sobre a praça, alguns morreram
mesmo enclausurados no santuário de Diônisos.39
A narrativa de Tucídides torna claro, tal como no episódio da
peste, que o ambiente desordenado da stasis suscita no homem uma
inversão dos seus valores, o que antes respeitava e era objeto de orgulho
e veneração, torna-se objeto de desprezo e vilipêndio. Instituições como
os laços de sangue, as leis humanas e as divinas são desrespeitadas e
manchadas pelo comportamento do homem. Essa dissolução das ins-
tituições que culmina na dissolução da polis, alerta Tucídides, começa
pelo desrespeito a família, instituição que era norte para moral grega,
eis que tinha o papel de dar a educação para a formação do cidadão. O
desprezo e o desrespeito aos laços de sangue era um rompimento com
o alicerce da vida, uma vez que a família representa a origem (génos)40

39  Tradução livre de: “La mort revêtit toutes les formes et, comme cela se produit en pareil cas, on ne
recula devant rien, - et pis encore. Le père tuait son fils, les suppliants étaint arrachés des sanctuaires
ou tués sur place, certains périrent meme emmurés dans le sanctuaire de Dionysos” (THUCYDIDE.
La guerre du Péloponese: livre III, cap. LXXXI, p. 56).
40  Em grego génos significa família, mas também gênero, geração, descendência e nascimento. Ou
seja, a palavra é utilizada para determinar um grupo que tenha a mesma proveniência, origem,

124
Gabriel Geller Xavier

tanto da vida fisiológica, quanto da vida política. Da dissolução dos la-


ços de sangue, o narrador grego passa a mostrar a erosão da lei da po-
lis, que representa a erosão do domínio público, do bem comum. Neste
caso, Tucídides apresenta mais claramente a inversão dos valores, pois
antes a polis representava exatamente o domínio público, os ideais de
justiça e liberdade que transcendiam ao âmbito do homem privado e
atingiam a todos os cidadãos formando uma coesão com um forte sen-
timento de bem comum. Agora, na stasis, os homens estabelecem suas
ações pautados na ambição e as leis da polis não respeitam mais, já que
estas restringem as suas vantagens. Esta que é, segundo Orwin, a maior
vantagem das leis: “[...] manter a luta pelo bem privado dentro dos limi-
tes razoáveis”41 para que seja estabelecido o bem comum, é vista como
uma barreira para a ação ambiciosa dos homens e a lei perde, então,
sua função de lei. E do desrespeito às leis humanas, Tucídides procede
ao relato do desrespeito às leis divinas. A inversão dos valores chegou a
tal ponto com a stasis em Córcira que, até mesmo, as leis divinas foram
pervertidas, a piedade, sentimento suscitado pela religiosidade e neces-
sário para uma sociedade decente, foi corrompida com fins facciosos, se
revelando em forma de mentiras juradas, violação do direito de asilo e
carnificina em lugares sagrados, como o templo de Dionísos. A disso-
lução que ocorre na stasis das três instituições pilares da polis é melhor
evidenciada por Tucídides na seguinte passagem:
Em verdade, o parentesco mesmo tornou-se uma ligação menos estreita que o
partido, onde estavam prontos para mais ousar sem desvios, pois estas reuniões,
em lugar de respeitar as leis existentes visando à utilidade, violavam a ordem
estabelecida, conforme a cobiça. E os engajamentos mútuos tiram menos sua
força da lei divina que da ilegalidade perpetrada em comum.42

começo e princípio. A palavra grega utilizada para designar o “começo” e o “princípio” é arché que
segundo Werner Jaeger significa “começo” não apenas como início temporal, “mas ainda arché,
origem ou fonte espiritual, a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar
para encontrar a orientação”. (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego, p. 5).
41  Tradução livre de: “[...] keeping the struggle for private good within reasonable bounds”. (ORWIN,
Clifford. Stasis and plague: Thucydides on the Dissolution of Society, p. 837).
42  Tradução livre de: “En vérité, la parenté même devint un lien moins étroit que le parti, où l’on
était prêt davantage oser sans détour; car ces réunions-là, au lieu de respecter les lois existantes en
visant à l’utilité, violaient l’ordre établi, au gré de la cupidité. Et les engagements mutuels tiraient
moins leur force de la loi divine que de l’illégalité perpétrée em commun”. (THUCYDIDE. La guerre
du Péloponese: livre III, cap. LXXXII, p. 58).

125
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Essa passagem deixa bastante nítida a falência de instituições ba-


ses da sociedade e, com este colapso, a inversão de valores morais, antes
tão fortes na sociedade, e agora, na stasis, corrompidos pela desordem
que a natureza do homem engendra: laços de sangue se tornaram li-
gações partidárias fundadas na cobiça; as leis da polis desobedecidas e
desrespeitadas com o objetivo de satisfazerem suas cobiças e a lei divina
não tem mais força ordenadora, pois onde unicamente a satisfação dos
interesses próprios rege as ações dos homens, não importam mais nem
os laços sangüíneos, nem os sociais. É de se imaginar que um homem
nessa situação se questionasse: por que me importar com os deuses que
me vendo nesta situação, nada fazem para retirar-me dela? Somente a
morte detém os homens na stasis, pois quando as instituições não fun-
cionam, o indivíduo somente pode contar consigo próprio, ocorre um
estreitamento no foco de sua vida para demandas de preservação pró-
pria e, assim, a sociedade acaba dissolvida. Nesse ambiente em que a
stasis impera, não há espaço para valores morais,
[...] a confiança desaparece da sociedade, e com ela a própria sociedade. A stasis
destrói nada menos que a infra-estrutura civil da confiança. Pode parecer que a
confiança entre os cidadãos depende, sobretudo, do tratamento decente de um
com o outro, de fato, é antes seus comportamentos decentes que demonstram
transformar-se em sua mutua confiança.43
São esses acontecimentos e transformações ocorridas com a sta-
sis que dão a Tucídides elementos para pensar a natureza humana e a
44

guerra. Essa parte da obra a que se segue da guerra civil de Córcira é co-
nhecida entre os comentadores como Patologia (cap. 82-3 do livro III),
é a respeito de tais acontecimentos que o historiador começa a tecer suas
considerações atingindo um nível mais abstrato de reflexões, segundo
Anna Lia Almeida Prado,

43  Tradução livre de: “[...] trust disapears from society, and with it society itself. Stasis destroys
nothing less than the infrastructure of civil trust. Seem as it might that trust among citizens must
depend upon their treating one another decently, in fact it is rather their decent behavior which
proves to turn upon their mutual trust”. (ORWIN, Clifford. Stasis and plague: Thucydides on the
Dissolution of Society, p. 837).
44  E aqui não se pode esquecer que o conflito interno em Córcira foi, de certa maneira, agravado por
motivos externos, a guerra fez com que uma facção defendesse a submissão da colônia a Atena e a
outra certa neutralidade conveniente aos Lacedemônios, e as duas potências, ávidas pela submissão
da cidade, cercavam-na para garantir que nenhuma fosse tomar a Cidade, fragilizada pela revolta
civil. (THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre III, caps. LXXVI–LXXXI, p. 53-56).

126
Gabriel Geller Xavier

[...] na Patologia está manifesto o λόγος [lógos, discurso, pensamento] de


Tucídides sobre a guerra, entendendo com isso que nela o historiador, a partir
de uma experiência vivida numa guerra determinada, onde os protagonistas
foram peloponésios e atenienses, e servindo-se dela como paradigma, exprime
de modo generalizante e abstrato o seu conceito sobre a guerra, caracterizando-a,
explicitando os móveis que a impulsionavam e, principalmente, suas
conseqüências para a sociedade.45
Nesse sentido, essa parte da obra é reveladora e de extrema impor-
tância, pois, nela não são apresentadas somente as atrocidades que acon-
tecem quando se dá a dissolução da sociedade, ou seja, a importância da
organização política interna da polis, mas também o entendimento que
Tucídides tem do que seja a guerra, a stasis é para o historiador um mo-
delo que, “num espaço e num tempo restrito e bem delimitado, reproduz
em escala menor os traços do modelo maior [da própria guerra]”46.
De fato, a dissolução das instituições básicas da sociedade são
apenas sintomas da stasis, não a verdadeira causa. É no momento em
que o historiador vai apresentar a verdadeira causa dos acontecimentos
de Córcira que suas reflexões recebem um tom generalizante e abstrato,
não está mais considerando unicamente aquele fato isolado, como an-
tes, mas considera agora todos os acontecimentos que vem relatando,
ou seja, a própria guerra em curso. Por isso, nesta passagem de sua nar-
rativa Tucídides está mais interessado na lição que pode tirar dos fatos
narrados até então. Na seguinte passagem o historiador evidencia essa
sua intenção:
Em favor da desordem, vê-se abater sobre as cidades muitos males, como se produz
e produzirá sempre enquanto a natureza humana [physis antropon] permanecer
a mesma, mas que aumentam ou diminuem [a violência] e mudam de forma
conforme cada variação que intervém nas circunstâncias. Em tempos de paz e
de prosperidade, as cidades e os particulares têm um espírito melhor [gnomás]
porque não se atritam [em face] das necessidades obrigatórias; a guerra, que
corta as facilidades da vida cotidiana, é um mestre na maneira violenta [biaios
didáskalos], modela sobre a situação as paixões [orgás] da maioria.47

45  ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a guerra. Clássica, p. 12.
46  ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a guerra. Clássica, p. 13.
47  Tradução livre de: “A la faveur des troubles, on vit s’abattre sur les cités bien des maux, comme il s’en
produit et s’en produira toujours tant que la nature humaine restera la même, mais qui s’accroissent ou
s’apaisent et changent de forme selon chaque variation qui intervient dans le conjonctures. En temps
de paix et de prospérité, les cités e les particuliers ont un esprit meilleur parce qu’ils ne se heurtent pas
à des necessités contraignantes; la guerre, qui retranche les facilités de la vie quotidienne, est un maître

127
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

A causa, portanto, de todos os acontecimentos em Córcira, bem


como de tudo o que foi relatado e ainda será, é anunciada pelo histo-
riador como sendo a natureza humana (physis antropon). A partir da
passagem citada fica claro que Tucídides entende a natureza humana
como sempre sendo a mesma com certa inclinação ao auto-interesse48
e, por isso, é uma natureza miserável, uma vez que os homens estão, de
todo o modo, sujeitos às mudanças de fortuna das circunstâncias, são
como brinquedos das situações e das suas paixões. Assim, no ambiente
pacífico os homens sentem-se seguros, revelam bons sentimentos e se
mostram racionais; já na guerra, a natureza humana revela pulsões in-
controladas, desordenadas. Ou seja, nessas
[…] circunstâncias o homem só pode adaptar-se ou reagir, uma vez que lhe é
impossível anulá-las. Na paz e na prosperidade a γνώμη [gnóme] (inteligência)
tem condições para impor-se plenamente, conduzindo as ações e levando-as
pelo melhor caminho. Na guerra, porém, já que esta é um mestre violento
(βίαιος διδάσκαλος) [biaios didáskalos] a γνώμη cede lugar à όργη [orgé – ira],
o elemento passional que, livre do princípio moderador, mobiliza tendências
inerentes à natureza humana que são identificadas como πλεονεξία [pleonexía]
(ambição de ter mais) e a φιλοτιμία [philotimía] (amor às honras).49
A concepção de natureza humana é de fundamental importância
para Tucídides, pois é essa visão que, de modo implícito ou explícito,
presidirá a obra e que mostrará o diferente comportamento do homem
na polis e no ambiente externo a ela. É algo inerente ao homem, aliado à
conjuntura do momento, que determina o seu comportamento. A partir
daí, se torna mais claro o motivo pelo qual há um distinto comporta-
mento dos Atenienses no que concerne a sua atuação no âmbito interno
à polis e no que diz respeito ao seu cenário externo.
Tucídides, em suas reflexões expostas na Patologia, apresenta
como o comportamento humano é moldado de acordo com as circuns-
tâncias, pois diante da guerra, da peste, da stasis e de situações caóticas
que suscitam medo e angústia os homens têm comportamentos distin-

aux façon violentes, et elle modele sur la situation les passions de la majorité” (THUCYDIDE. La
guerre du Péloponese: livre III, cap. LXXXII, p. 57).
48  Marshal Sahlins sobre essa passagem da obra comenta: “Para Tucídides, as atrocidades com
os corcireus eram sobretudo antiestruturais [no sentido em que corroi as estruturas básicas da
sociedade]. Representavam a inclinação humana natural para o auto-interesse implacável contra
o qual toda convenção e moralidade se tornavam impotentes” (SAHLINS, Marshall. História e
Cultura: apologias a Tucídides, p. 28).
49  ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a guerra. Clássica, p. 13.

128
Gabriel Geller Xavier

tos daqueles tidos em situações cotidianas em suas vidas na polis, isto é,


outro comportamento surge em condições e circunstâncias completa-
mente distintas das vividas na polis. Em tal conjuntura,
Mudam-se até o sentido usual das palavras em relação aos atos, nas justificações
que se davam. Uma audácia irrefletida passa por devoção corajosa ao seu partido,
uma prudência reservada para covardia disfarçada, a sabedoria pela máscara
da covardia, a inteligência por uma inércia total; os impulsos precipitados
eram tidos com virilidade, e deliberação cautelosa como um belo pretexto de
omissão. Os mal intencionados obtinham sempre a confiança, e seus contrários
a desconfiança. Inteligente era aquele cuja intriga tinha êxito, mais hábil ainda
o que foi capaz de penetrá-la; mas o que hesitava diante do sucesso, lhe era
dispensada tais realizações, sendo um traidor do partido e um medroso pelos
adversários. Em suma, ser o primeiro neste curso ao mal vale elogios e também
impulsionar o que não sonha com eles. [...] A maior parte dos homens gostam
mais de serem chamados de canalhas que de honestos: deste ficam vermelhos,
do outro, ficam orgulhosos.50
Há, em circunstâncias adversas ao ambiente cotidiano, pacífico e
seguro da polis, uma clara inversão dos valores, pois o homem jogado a
situação desordenada, caótica e belicosa age em conformidade com ela
e se transforma na negação do que era enquanto cidadão de sua cidade.
Em ambientes conflituosos e inseguros é demandado da natureza do ho-
mem um aumento da violência e, com isso, a diminuição da racionali-
dade em detrimento da passionalidade. Desse modo, o agir racional que
constitui os ideais nobres e justos que imperam na polis dá lugar a ação
guiada pelas paixões. Com isso, os valores são invertidos e o significado
das palavras é alterado: a moderação, a prudência, o agir racionalmente
são vistos, nesse ambiente desordenado, como valores que mascaram a
covardia. Ou seja, esta situação caótica da guerra traz à tona toda a ou-
sadia irracional que estava adormecida no cidadão da polis.

50  Tradução livre de: “On changea jusqu’au sens usuel des mots par rapport aux actes, dans les
justifications qu’on donnait. Une audace irréfléchie passa pour dévouement courageaux à son parti,
une prudence reservée pour lâcheté déguisée, la sagesse pour les masque de la couardise, l’intelligence
em tout pour une inertie totale; les impulsions précipitées furent comptées comme qualité virile, et les
délibérations circonspectes comme un beau pretexte de dérobade. Les mécontents obtenaient toujours
la confiance, et leurs contradicteurs la défiance. Intelligent était celui dont l’intrigue avait réussi, plus
habile encore qui avait su la pénétrer; mais qui avait d’avance réussi, lui, à dispenser de telles menées,
était un briseur de parti, épouvanté par l’adversaire. Bref, être le premier dans cette course au mal
vous valait des louanges, et aussi d’y pousser qui n’y songeait pas. […] La plupart des hommes aiment
mieux être appelés des sots en étant honnêtes: de ceci, ils rougissent, de l’autre, ils s’enorgueillissent”
(THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre III, cap. LXXXII, p. 58).

129
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Por esse motivo é que se pode traçar um paralelo entre o epi-


sódio da peste e a stasis, pois em ambos os casos os efeitos morais das
circunstâncias, ocasionados pelo medo e angústia diante da morte, são
horríveis e mostram a mudança de atitude do homem em relação aos
seus próprios julgamentos e frente às leis, quer sejam divinas, quer se-
jam os costumes. A posição de Tucídides ao relatar esses episódios não
é marcada por uma atitude moral, mas o historiador age como um mé-
dico que diagnostica as causas de uma enfermidade, e com total apego a
realidade descreve o decaimento ético-político da polis como um efeito
patológico da guerra51. Entretanto, é legitimo pensar que para Tucídi-
des é grave a dissolução da polis, porque do mesmo modo que a guerra
desperta no homem suas pulsões violentas e o agir irracional, a cidade,
oferecendo uma rotina tranqüila, pacífica e ordeira faz com que essas
pulsões fiquem adormecidas e a razão prudente impere sobre o agir.
Na conjuntura social da polis, no ambiente em que os homens
conseguem pensar como cidadãos, na circunstância em que a racionali-
dade age em prol da prudência, o bem-comum e um ideal de liberdade
e de justiça imperam, pois a razão mostra aos homens que é somente
mediante a cooperação em prol da prosperidade e do desenvolvimento
da cidade-estado que cada indivíduo poderá alcançar seus interesses e
garantir o desenvolvimento próprio. Ora, os gregos, de um modo ge-
ral, eram cientes do quão fundamental era o bem-estar da polis para
o desenvolvimento individual do cidadão, consideravam-na “como
uma entidade ativa, formativa que exercitava o espírito e o caráter dos
cidadãos”52. A vida em sociedade era o que de mais importante poderia
existir, pois
só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual
e humana e determina de modo decisivo a sua estrutura. [...] Descrever a cidade

51  Sobre o paralelo entre o episódio da peste e da stasis, bem como o posicionamento de Tucídides
diante desses fatos, Werner Jaeger afirma que o historiador descreve “[...] o enorme efeito político
de um acontecimento elementar como a peste, que destrói toda a disciplina e acarreta danos
incalculáveis, e tira partido dos horrores da revolução de Corcira, intimamente ligados à evocação
da peste, para explicar amplamente a decomposição moral da sociedade e a transmutação de todos
os valores, originada por uma guerra longa e pelas lutas desenfreadas dos partidos. É precisamente
o paralelo com a peste que sublinha a atitude de Tucídides nestes assuntos. Não é uma atitude
moralizante. Como na questão das causas do conflito, a solução por ele apresentada é análoga a um
diagnóstico médico perspicaz. A sua descrição da decadência da ética política é uma contribuição
para a patologia da guerra”. (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego, p. 458-9).
52  KITTO, H. D. F. Os Gregos, p. 124.

130
Gabriel Geller Xavier

grega é descrever a totalidade da vida dos Gregos. [...] A polis é o marco social
da história da formação grega53.
A extrema importância conferida à unidade política e ao papel
do cidadão encontra voz na famosa concepção aristotélica de homem
como zoon politikon, ou seja, o homem como animal político-social:
[...] a cidade é uma criação natural, e [...] o homem é por natureza um animal
social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte
de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (como o
‘sem clã, sem leis, sem lar’ de que Homero fala com escárnio, pois ao mesmo
tempo ele é ávido de combates), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do
jogo de gamão54.
A vida em sociedade é ao que o homem naturalmente tende, já
que é um animal social e é somente na polis que pode exercer plenamen-
te suas capacidades, pois é na unidade política que o homem deixa de
ser um indivíduo e passa a ser parte de um contexto social, fora do qual
ele não faz sentido55.
Tucídides é um cidadão ateniense que viveu o “período de ouro”56
de sua polis, e tem em si a consciência de que – como bem observou Aris-
tóteles – sem leis não há como um homem ser integrado em um contexto
sócio-político. Sem a justiça não há possibilidade da vida em sociedade.
Por isso, o episódio da peste e a stasis são tão valorosos, já que nestes
momentos da obra se pode ter medida da importância da organização
política interna e os seus pressupostos: a confiança mútua que constitui
as bases da sociedade e instituições fortes e justas – o que a stasis leva à
falência – e a disciplina, a ordem e o respeito às leis que garantem o de-
senvolvimento coletivo e individual dos cidadãos – o que a peste retira da
polis, ou seja, fortes ideais de liberdade, justiça e bem-comum.
Essa postura de máximo respeito à vida em sociedade alia-se a
um forte sentimento de justiça e através desta aliança feita pelos cida-

53  JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego, p. 107.


54  ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: UnB, 1997. p. 15.
55  A respeito da passagem da Política sobre o zoon politikon, Kitto observou: “O que Aristóteles
disse, na realidade, foi: ‘o homem é um ser que vive numa polis’. O que demonstra na sua Política
é que a polis é o único ambiente, dentro do qual o homem pode concretizar as suas capacidades
morais, espirituais e intelectuais.” (KITTO, H. D. F. Os Gregos, p. 129).
56  Atenas teve seu chamado “período de ouro” no séc. V a.C., de 460 – 430, com vida cultural
intensa, prosperidade econômica e aumento de seu poder militar. A cidade-estado atingiu seu
apogeu sob a administração de Péricles.

131
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

dãos é que torna possível vislumbrar a sociedade ateniense como sendo


uma polis idealista em sua política interna. Esta unidade formada entre
o cidadão, a justiça e a polis se traduz em coesão interna visando o bem
comum. Esta ideia-sentimento de sociedade se confirma nas palavras
de Aristóteles, quando apresenta o bem como o fim de toda ação e o
relaciona à política:
Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito, visam a
algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas
as coisas visam. [...] Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem
isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo
algo maior e mais completo, seja para a atingirmos, seja para a perseguirmos;
embora seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais
nobilitante e mais divino atingi-la para uma nação ou para as cidades. 57
Aristóteles reconhece que o bem, a máxima perfeição a que se
pode chegar, deve ser almejado não somente na perspectiva individual,
mas em uma perspectiva coletiva, pois é mais completo e mais enobre-
cedor buscar a perfeição para as cidades-estado do que para um indiví-
duo apenas. Essa busca pela perfeição da polis e a perseguição de ideais
ético-políticos também é apresentada por Tucídides, na famosa oração
fúnebre58 proferida por Péricles no final do primeiro ano da guerra e em
que fica claro, por parte de Atenas, o respeito às leis em nome da justiça
expressada por elas e ideais de virtude, também guerreiras, como os de
honra e glória:
Nosso regime político não é proposto do modelo das leis de outros e nós mesmos
somos exemplos ao invés de imitadores. Pelo nome, como as coisas dependem
não de muito poucos, mas da maioria, é uma democracia. É isso o que pertence
a todos? A lei, ela faz a todos, para [solução de] suas diferenças privadas, partes
iguais, enquanto que pelos títulos, se nos distinguimos em qualquer domínio,
não é pertencente a uma categoria, mas ao mérito, que faz ascender às honras.

57  ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4. ed. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2001. p. 17-18.
58  Tucídides afirma que “uma vez que a terra revestiu os mortos, é escolhido pela cidade um
homem com distinção intelectual e dono de uma estima eminente pronuncia em suas honras
um elogio apropriado; depois, do qual se retira. Assim têm lugar esses funerais; e durante toda a
guerra, cada vez que [os mortos chegavam] era aplicado o uso [da cerimônia fúnebre]. Quanto aos
primeiros mortos, é Péricles, filho de Xantipo, que foi escolhido para falar deles”. Tradução livre de:
“une foi que la terre a recouvert les morts, un homme choisi par la cité, qui passe pour n’être pas sans
distinction intellectuelle et jouit d’une estime eminente, prononce en leur honneur un éloge approprié;
après quoi, l’on se retire. Ainsi ont lieur ces funérailles; et, pendant toute la guerre, chaque foi que cela
se trouvait, on appliqua l’usage. Quant à ces premiers morts, c’est Périclès, fils de Xanthippe, qui fut
choisi pour parler d’eux”. (THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre II, cap. XXXIV, p. 25-26).

132
Gabriel Geller Xavier

[...] Nós praticamos a liberdade, não somente em nossa conduta de ordem


política, mas para tudo o que é suspicaz recíproco na vida cotidiana: não temos
cólera para com nosso vizinho, se ele age com fantasia, não recorreremos ao
assédio, que, mesmo sem causar danos, se apresenta ao de fora como ofensivo.
Apesar desta tolerância, que rege nossas relações privadas, no domínio público,
o medo nos retém, acima de tudo, a fazer qualquer coisa ilegal. Pois prestamos
atenção aos magistrados que se seguem e as vitimas de injustiças, ou que, sem
existirem leis escritas, comportam sanção pela vergonha indiscutível. Com
isso, para remediar nossos problemas, temos assegurado ao espírito as mais
numerosas criações: temos concursos e festas religiosas que se seguem todos os
anos e também nossas casas, instalações luxuosas, cuja aprovação cotidiana bane
para longe as contrariedades. Nós vemos chegar até nós, graças à importância
de nossa cidade, todos os produtos de todas as terras e os bens fornecidos pelo
nosso país não são melhores para nós, para apreciar, do que aqueles do resto
do mundo. Nós nos distinguimos igualmente de nossos adversários por nossa
maneira de nos preparar a prática da guerra. Nossa cidade, com efeito, é aberta
a todos e nunca acontece que, por expulsão de estrangeiros, nós proibirmos a
qualquer um estudo ou um espetáculo, que, não estando escondido, possa ser
visto por um inimigo e lhe ser útil: pois nossa confiança se funda menos sobre os
preparativos e os estratagemas, mas, sobretudo, sobre o valor que colocamos em
nós mesmos no momento de agir. [...] Cultivamos beleza na simplicidade e as
coisas do espírito sem faltar firmeza. Empregamos a riqueza, de preferência, para
agir com conveniência, não para falar com arrogância; [...] Pois, outro mérito
que nos distingue é de poder todos juntos mostrar a maior audácia e calcular
a empresa que está por vir: entre os outros, a ignorância aponta a resolução e o
calculo a hesitação. [...] Em suma, atrevo-me a dizer que a nossa cidade em sua
totalidade é para a Grécia uma lição viva, no entanto, individualmente, melhor
que ninguém, o homem entre nós, acredito, apresentar-lhe uma personalidade
bastante completa para concluir com muitos papéis e mostrá-los com tanta
facilidade na boa graça. [...] contemplai um pouco a cada dia, em sua realidade, a
potência da cidade, e apaixonai-vos quando ela vos pareça grande, digo-vos que
os homens que tem conquistado esta [cidade] mostram a audácia, discernindo
o seu dever, e na ação observam a honra, que enfim, jamais eles falham em
qualquer tentativa, não sentem o direito de privar a cidade do seu valor: eles
lhe fizeram livremente como se eles adquirissem uma parte, a mais bela, a mais
bonita de todas.59

59  Tradução livre de: “Notre regime politique ne se propose pas pour modèle les lois d’autrui, et
nous sommes nous-mêmes des exemples plutôt que des imitateurs. Pour le nom, commes les choses
dépendent non pas du petit nombre mais de la majorité, c’est une démocratie. S’agit-il de ce qui
revient à chacun? La loi, elle, fait a tous, pour leurs différends prives, la part égale, tandis que pour
les titres, si l’on se distingue en quelque domaine, ce n’est pas l’appartenance à une catégorie, mais le
mérite, qui vous fait accéder aux honneurs; [...] Nous pratiquons la liberte, non seulement dans notre
conduit d’ordre politique, mais pour tout ce qui est suspicion réciproque dans la vie quotidienne: nous
n’avons pas de colère envers notre prochein, s’il agit à as fantaisie, et nous ne recourons pas à des
vexations, qui, même sans causer de dommage, se présentent au dehors comme blessantes. Malgrés
cette tolérance, qui régit nos rapports prives, dans le domaine public, la craintes nous retient avant

133
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Esse discurso de Péricles, dirigido às famílias e aos amigos das


primeiras vítimas da guerra, tem como seu maior objetivo enfatizar as
qualidades políticas e morais de Atenas. Neste sentido, é um discurso
dirigido aos cidadãos de sua polis, sobre as qualidades e privilégios de
se viver nesta polis. Uma oração essencialmente sobre a política interna
ateniense, em que são ressaltados os seus valores ético-políticos, ou seja,
os ideais fortemente consolidados que orientam a política interna ate-
niense. O orador introduz seu discurso elogiando aos antepassados que
honraram e entregaram-lhes uma bela cidade com nobilitantes costu-
mes. Logo após essa pequena introdução, muda o objeto de seu elogio e
passa a elogiar a política e aos costumes experienciados pelos atenienses
em sua polis: o valor da igualdade representado pelo regime democrático
de governo em que todos participam e a lei a todos iguala; a liberdade
que no discurso aparece como sendo praticada tanto na ordem política
como na vida cotidiana; a tolerância que diz Péricles reger as relações
dos atenienses; o respeito às autoridades e, sobretudo, aos injustiçados;
a cultura que Atenas oferece a todos com festas religiosas e concursos
teatrais; a beleza da cidade; a prudência dos cidadãos ao disporem de

tout de rien faire d’illégal, car nous prêtons attention aux magistrats qui se succèdent et aux victims
de l’injustice, ou qui, sans être lois écrites, comportent pour sanction une honte indiscutée. Avec cela,
pour remède à nos fatigues, nous avons assure à l’esprit les délassements les plus nombreux: nous avons
des concurs et des fêtes religieuses qui se succèdent toute l’année, et aussi, chez nous, des installations
luxueuses, dont l’agrément quotidian chasse au loin la contrariété. Nous voyons arriver chez nous,
gracê à l’importance de notre cite, tous les produits de toute la terre, et les biens fournis par notre pays
ne sont pas plus à nous, pour en jouir, que ne sont ceux du reste du monde. Nous nous distinguons
également de nos adversaries par notre façon de nous préparer à la pratique de la guerre. Notre ville,
en effet, est ouverte à tous, et il n’arrive jamais que, par des expulsions d’étrangers, nous interdisions à
quiconque une étude ou um spectacle, qui, em n’étant pas cachê, puísse être vu d’um ennemi et lui être
utile: car notre confiance se fonde peu sur les préparatifs et les stratagèmes, mais plutôt sur la vaillance
que nous puisons em nous-mêmes au moment d’agir. [...] Nous cultivons le beau dans la simplicité,
et les choses de l’esprit sans manquer de fermeté. Nous employons la richesse, de préférence, pour agir
avec convenance, non pour parler avec arrogance; [...] car en autre mérite qui nous distingue est de
pouvoir tout ensemble montrer l’audace la plus grande et calculer l’entreprise à venir: chez les autres,
l’ignorance porte à la resolution, et le calcul à l’hésitation. [...] en resume, j’ose le dire: notre cite, dans
son ensemble, est pour la Grèce une vivante leçon, cependant qu’individuellement nul mieux que
l’homme de chez nous ne peut, je crois, présenter à lui Seul une personnalité assez complète pour
suffire à autant de rôles et y montrer autant d’aisance dans la bonne Grace. [...] contemplez plutôt
chaque jour, dans as réalité, la puissance de la cité, soyez-em épris, et, quand elle vous semblera
grande, dites-vous que les hommes qui ont acquis cela montraient de l’audace, discernaient leur devoir,
et, dans l’action, observaient l’honneur, qu’enfin, si jamais ils échouaient dans quelque tentative, ils
n’estimaient pas pour cela devoir priver la cite de leur valeur: ils lui em faisaient abandon comme s’ils
acquittaient une quote-part, la plus belle de toutes” (THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre
II, XXXVII–XLIII, p. 27-32).

134
Gabriel Geller Xavier

seus recursos para o bem e enriquecimento da cidade; enfim, o discurso


é encerrado com o governante apontando Atenas como uma lição para a
Grécia. Esses são os valores ético-políticos que orientam – como parece
claro no discurso – não somente a política e as leis, mas também os há-
bitos cotidianos e as preferências intelectuais dos cidadãos atenienses e
que transformaram Atenas nesse modelo para as demais cidades gregas.
As virtudes apresentadas por Péricles, todavia, são, segundo a helenista
Jacqueline de Romilly, orientadas, em realidade, pela ideia de liberdade:
[as virtudes atenienses pronunciadas na oração] agrupam-se, aliás, em um ideal
fortemente coerente: a ideia de liberdade vem à cabeça e comanda quase toda
exposição; mas ela se funda sobre o exercício da inteligência e se tempera pelo
equilíbrio. Este ideal tão geral recebe, aliás, a mais concreta das sanções, dado
que a potência ateniense torna-se, em exposição, uma confirmação dos méritos
destacados. De retorno, esta potência e estes méritos se fundam juntos para se
transpor em glória – ou seja, numa lembrança – que justifica e que compensa os
maiores sacrifícios que se pode fazer a sua pátria.60
De fato, a liberdade e seu exercício é para os atenienses um ideal
sem a qual não haveria como sustentar os outros, uma vez que a igualda-
de democrática, o respeito, a tolerância e a prudência não são possíveis
sem que haja a liberdade, ou seja, ela é condição de possibilidade para o
exercício dos demais valores ético-políticos. Esse ideal é tão fortemente
expresso por Péricles, porque os atenienses reconhecem que a liberda-
de é uma conquista valiosa, conseguida com bastante astúcia por meio
do poder e não há como conservá-la sem a manutenção e expansão do
poder obtido.
Os valores expostos na oração fúnebre, sobretudo, o ideal de li-
berdade, constituem a vida cotidiana do cidadão ateniense, bem como
orientam sua política interna e, por esse motivo, diz-se, aqui, a política
exercida em Atenas idealista, pois se entende o idealismo como o esta-

60  Tradução Livre de: “[…] elles se groupent, d’ailleurs, en un idéal fortement cohérent: l’idée de
liberté vient en tête et commande presque tout l’exposé; mais elle se fonde elle-même sur l’exercice
de l’intelligence et se tempère par l’équilibre. Cet idéal si général reçoit, d’ailleur, la plus concrète des
sanctions, puisque la puissance athénienne devient, dans l’exposé, une confirmation des mérites
athéniens ainsi dégagés. En retour, cette puissance et ces mérites se fondent ensemble pour se transposer
en une gloire - c’est-à-dire en un souvenir - qui justifie et qui compense les plus grands sacrifices
que l’on peut faire à sa patrie” (ROMILLY, Jacqueline de. Notice. In: THUCYDIDE. La guerre du
Péloponese: livre II, p. 27).

135
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

belecimento de um “padrão ético que proclama ser independente da


política, e procura fazer com que a política adapte-se a ele” 61.
Muito embora a oração fúnebre tenha por objeto a política inter-
na, diz, de modo implícito, bastante sobre a política externa. O discurso,
em seu conjunto, é um elogio a superioridade Ateniense, a qual é apre-
sentada como aquela que é imitada pelos seus vizinhos e, ainda, como
sendo uma lição para toda a Grécia. O tom do pronunciamento de Pé-
ricles é aquele de quem expõe a superioridade de um em detrimento
da inferioridade de outro, ainda que esse outro inferior esteja implícito.
Prova disso é o início propriamente do elogio à Atenas na qual Péricles
faz a afirmação da superioridade do regime político democrático, ou
seja, do regime político da liberdade, virtude que comandará quase toda
a fala do governante ateniense coerentemente ligada a outros valores
ético-políticos, regime político diametralmente oposto àquele dos la-
cedemônios, a oligarquia62, vista pelo regime democrático como uma
forma tirânica de governar e, como é da natureza da tirania, um regime
político em que a liberdade está na mão de poucos. Não é outro o foco
da oração, senão a liberdade, valor este que a vizinha inimiga Esparta
não garante para os seus cidadãos, nem suas colônias. É justamente nes-
se ideal de liberdade que há em sua política interna que os atenienses
encontram motivação para implementar uma política externa de domi-
nação e expansão imperialista, pois querem defender, honrar, sustentar
e transpor seus valores para toda a Grécia, como bem Péricles expõe no
final de seu discurso ao dizer que Atenas é uma lição a ser seguida. Não
haveria como manter, ou mesmo implementar, toda a política exposta
por Péricles na Oração Fúnebre e, assim, transformar Atenas em um
expoente cultural, político, intelectual e uma cidade em que o luxo e a

61  CARR. Edward H. Vinte Anos de Crise: 1919 – 1939. Trad. Luiz Machado. Brasília: UnB, 1981.
p. 31.
62  Sobre a organização política interna espartana Werner Jaeger aponta que “a única garantia de
sua origem é a reputação de rígido conservadorismo que fez dos Lacedemônios o ideal de todos os
aristocratas e a abominação dos democratas do mundo inteiro. [...] A assembléia do povo espartano
não é outra coisa senão a antiga comunidade guerreira. Não há nela qualquer discussão. Limita-
se a votar SIM ou NÃO em face de uma proposta definida do conselho dos anciãos. Este tem
direito a dissolver a assembléia e pode retirar da votação as propostas com resultado desfavorável.
O eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o poder político da realeza.
A sua organização representa um poder moderador no conflito de forças entre os senhores e o
povo. Concede ao povo um mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida pública
tradicional”. (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego, p.110-112).

136
Gabriel Geller Xavier

beleza a todos encanta, senão por meio da dominação, pois foi a política
externa praticada ao modo realista de imperialismo e expansão cada vez
maior do poder que garantiu a Atenas recursos financeiros – adquiridos
através de tributos pagos por colônias subjugadas, os chamados (fóros)
– utilizados para a construção de templos luxuosos, aumento de sua
frota naval, tanto militar quanto comercial, bem como para implemen-
tar as políticas que a tornaram a grande rival hegemônica de Esparta63.
Também não se pode deixar de mencionar que os recursos militares que
as colônias enviavam para Atenas em troca de proteção fomentaram o
considerável aumentou da frota ateniense e fez com que crescesse seu
poderio bélico. Atenas, de fato, a todos envolvia com sua grandeza e
superioridade, disso orgulhava-se Péricles e o povo ateniense:
[...] da magnificência de sua arquitetura e arte, do esplendor de seu teatro, das
reluzentes procissões e cerimônias, dos ginásios e simpósios. Mesmo aqueles que
nunca viram Atenas podiam conhecer sua superioridade pela reputação de seus
poetas e filósofos, seus políticos e atletas. Uma “cidade tirana”, é verdade, mas,
ainda assim, “a escola da Hélade”. Por meio de numerosos e admiráveis espetáculos,
alguns ultrapassando todos os limites quanto ao dinheiro gasto, Atenas dedicou-
se a atrair o mundo para ela: “Nossa cidade, durante todo o tempo”, conclui
Isócrates, “é um festival para aqueles que vêm visitá-la”. Os povos vassalos, em
especial, visitavam-na com seus tributos anuais na época do importante festival
religioso urbano, a Dionísia, que era também a temporada teatral.64
Exatamente essa glória que Atenas vivenciava internamente e ex-
portava para toda a Grécia é que fundamentava a implementação de
uma política externa de cunho realista-imperialista, pois como bem
Péricles afirmou no final de seu discurso, os homens que em Atenas vi-
vem contemplam a beleza e esplendor da cidade e apaixonam-se, não se

63  Sobre o imperialismo ateniense e a utilização dos recursos advindos de sua política de expansão
o helenista Pierre Vidal-Naquet afirme que “costuma-se traduzir o termo grego arkhé por império
e fala-se de imperialismo ateniense. Predomínio seria, talvez, uma tradução melhor, mas não
posso sozinho, impô-lo. Esse predomínio se estabeleceu em conseqüência das guerras medas. Ele
agrupa, em torno de Atenas – que graças ao tributo (phóros), recolhe enormes recursos com os
quais constrói seus templos e seus navios – as ilhas do mar Egeu (com exceção de Milo, de Tera e
de Creta), as cidades da Ásia Menor costeira e as que ladeiam os Dardanelos e o Bósforo”. (VIDAL-
NAQUET, Pierre. Razão e contra-senso na história. In:_____________. Os Gregos, Os Historiadores,
A Democracia: o grande desvio, p. 99-100). O termo hegemonia, que significa liderança, mantém
uma estreita realção com o termo arkhé, pois arkhé é um predomínio que exerce certo tipode
liderança.
64  SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides, p. 106.

137
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

sentindo no direito de privá-la de seu valor e na ação honram-na65. Ou


seja, os atenienses, orgulhosos, envaidecidos e apaixonados por sua ci-
dade, não medem esforços para manter e aumentar a glória conquistada
por sua polis, mesmo que para isso tenham que implementar no âmbito
externo uma política completamente distinta da praticada em seu am-
biente interno, uma pratica política na qual o fator decisivo é a força - a
chamada lei do mais forte - que é praticada e legitimada na corrida pelo
poder. Daí o motivo pelo qual se diz da política externa ateniense rea-
lista, uma vez que os princípios morais e os ideais que guiam a política
interna a polis não guiam a política externa, sendo seus principais traços
o poder e a força.
Traços esses que se relacionam fortemente com a amostra da natu-
reza humana (physis antropon) apresentada no episódio da stasis, em que
diante da dissolução da sociedade por conspirações e disputas políticas
e partidárias o homem se vê em um ambiente caótico em que todos e
cada um buscam salvar-se e agem visando somente seu próprio interesse.
Nesse contexto, no qual há o estreitamento do foco das prioridades do
homem e, tem de, a cada instante, cuidar de sua própria preservação, é
demandado de sua natureza um aumento da violência e, ao invés de ser
guiado pela razão, passa a ser conduzido pelas paixões que o leva a agir
somente em conformidade com seus interesses. O ambiente da stasis em
que acontece a degeneração da sociedade em Córcira pode ser entendido
como um espelho da própria guerra. O cenário internacional em que
acontece a guerra, tal como na polis degenerada, é desordenado, con-
flituoso, o que desperta no homem sua natureza interesseira e violenta.
Isso bem pode ser vislumbrado na prática política externa ateniense, na
medida em que Atenas, objetivando a maximização e a manutenção do
seu poder utiliza de todos os recursos, inclusive a violência.
Pode-se dizer que, para Tucídides, a política ateniense, tanto inter-
na, quanto externa, está respaldada na natureza interesseira do homem
de busca pelo poder. No âmbito da polis, a coesão e os ideais de liberda-
de, justiça, igualdade e prudência, que garantem o bem comum, orien-
tam a política interna, levando a polis ao seu desenvolvimento político,
intelectual, econômico, militar e artistíco, enfim, na “escola da Hélade”.
A realização dessa política interna de desenvolvimento, implementada

65  Página 22, final da citação do discurso de Péricles. Cf. THUCYDIDE. La guerre du Péloponese:
livre II, cap. XLIII, p. 32.

138
Gabriel Geller Xavier

por Péricles, só era possível através do recolhimento de tributos pagos


por colônias subjugadas e recursos militares também cedidos por essas,
ou seja, era na política externa que Atenas buscava o fomento para a rea-
lização de seu projeto político de se tornar a grande hegemonia do mun-
do grego, para tanto, via-se obrigada a implementar no âmbito externo
uma política imperialista de expansão de poder, muitas vezes por meio
da força, por isso, então, é caracterizada como uma política realista.

A política externa realista ateniense


Por Atenas necessitar de recursos para promoção de seu desen-
volvimento, é que vai buscá-los no âmbito externo, tornando-se neces-
sária a implementação de uma política externa realista-imperialista. De
fato, o traço mais marcante da política ateniense é o imperialismo (ar-
ché), o qual perpassa toda a obra e é o motivo pelo qual a guerra aconte-
ceu.66 Tal imperialismo pode ser definido como uma liderança exercida
através da força e do medo, já que seu império não foi formado através
da conquista das colônias, nem sequer do governo direto delas. O que
explica essa hegemonia é o fato de que, ao mesmo tempo em que era ad-
mirada pelos valores culturais e ético-políticos cultivados no interior da
polis, Atenas primava por manter uma reputação violenta, que suscitava
medo tanto nas colônias subjugadas quanto em seus inimigos.67
O medo suscitado por Atenas tinha origem na força violenta e
brutal empregada pontualmente para subjugar rebeldes e ampliar seu
arché, força esta que tinha um aspecto simbólico e era deliberadamente
usada “visando causar determinado efeito-demonstração sobre outros

66  O imperialismo é um traço bastante fundamental da política ateniense, sendo alvo de estudo
de grandes intérpretes, como a clássica tese de doutoramento da helenista francesa Jacqueline
de Romilly, Thucydide et l’Imperialisme Athénien: la pensée de l’historien et la gênese de l’œuvre,
publicada em 1951, e o livro do filólogo e historiador clássico italiano Luciano Canfora, Tucidide e
l’Impero: la presa di Melo, publicada em 1992.
67  Deve-se recordar que Tucídides mesmo relata que Esparta entrou na guerra por medo da
expansão crescente ateniense. E não é sem motivo que Péricles afirma e justifica em sua oração
fúnebre a admiração que Atenas suscita em toda a Hélade. Marshall Sahlins afirma que Atenas
não criou seu império por conquista e nem o governava diretamente, e deste modo “exercia
hegemonia sem soberania. No entanto, isso não significava que o domínio fosse suave, apenas que
se baseava no respeito e no medo, o que significava dizer, numa reputação de poder, confirmada
por demonstrações estratégicas. Em vez de moderados, os atenienses poderiam ser até mais brutais,
e ficar conhecidos por isso.” Assim, recorria “tanto ao mortífero quanto ao maravilhoso para
produzir efeitos-demonstração”. (SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides,
p. 102;108.)

139
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

que não apenas as vítimas – e que poderia fazer com que fossem mais
cruéis ainda que o requerido pela situação.”68 Ou seja, a violência era
potencializada por também ser simbólica. A força brutal que era empre-
gada por Atenas tinha um caráter pedagógico, uma vez que se prestava a
difundir sua reputação de poder implacável. As demonstrações da força
terrorística ateniense deveriam servir de exemplo, “uma lição viva para
a Hélade”, como fica claro no discurso de Cléon, ao argumentar a favor
de massacrar os mitilênios rebeldes e escravizar as mulheres e crianças:
Pensai de outro modo em vossos aliados: se os casos de constrangimento
impostos pelo inimigo e as rebeliões voluntárias forem atingidas com a
mesma pena, o que aprenderá, diga-me, [se] ao menor pretexto de rebelião,
a pena [em caso] de sucesso for a libertação e a [pena] da falha um infortúnio
não irreparável? […] Não devemos oferecer-lhes a esperança – confiante na
eloqüência ou descontar da riqueza – de que seu erro, bem humano, obtenha
indulgência. Para mim, então, hoje, como o fiz da primeira vez, levo a batalha
afim que vós eviteis o erro de escutar os três sentimentos mais nocivos ao
império: a compaixão, o prazer da eloqüência, a clemência. […] Resumo em
uma palavra: se vós me escutais, vós tomais justas medidas contra os mitilênios
e úteis ao mesmo tempo, enquanto que outra decisão, sem que vós ganheis seu
favor, será, em vez disso, outra condenação. [Pois] se fizeram bem em rebelar-se,
vós não deveis exercer o império. […] Castigai-os como eles merecem e mostrai,
ao mesmo tempo, a vossos outros aliados, como um exemplo indiscutível, que
toda rebelião será punida com a morte. Se eles o entenderem, vós seríeis menos
negligentes com os inimigos para combater os próprios aliados. 69
Nessa passagem, pode-se perceber como Atenas empregava sua
força de maneira violenta, punindo exemplarmente os transgressores e,
ao mesmo tempo, utilizando da punição severa tanto como uma exibi-

68  SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides, p.104.


69  Tradução livre de “Songez en outre à vos allieés: si les cas de contrainte imposée par l’ennemi et
les défections volontaires sont frappés de la même peine, qui ne saisira, dites-moi, le moindre pretexte
de défection, du momente que la sanction du succès será la libération et celle de l’échec um malheur
nullement irréparable? […] Nous ne devons donc pas leur offrir l’espoir, confiant dans l’éloquence ou
escompté à prix d’argent, que leur erreur, bien humaine, obtiendra de l’indulgence. […] Pour moi
done, aujourd’hui comme je le fis pour la premièrie fois, je mène la bataille afin que vous évitiez l’erreur
d’écouter les trois sentiments les plus nuisibles à l’empire – la compassion, le plaisir de l’éloquence, la
clémence. […] Je me resume d’un mot: si vous m’écoutez, vous prendrez des mesures justes envers les
Mytiléniens et utiles em même temps, tandis qu’une autre décision, sans vous gagner leur faveur, será
plutôt outre condamnation. S’ils ont bien agi en faisant défection, vous ne devriez pas exercer l’empire.
[…] Châtiez les comme ils le méritent et montrez en même temps à vos autres alliés, par un example
indiscutable, que toute défection será punie de mort. S’ils le comprennent, vous aurez moins à négliger
vos ennemis pour combattre os propres alliés” (THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: livre III,
caps. XXXIX–XL, p. 26-28).

140
Gabriel Geller Xavier

ção de poder e superioridade quanto como uma forma pedagógica de


ensinar aos aliados o que acontece com aqueles que cometem a insur-
reição. As demonstrações de poder não eram feitas somente através da
incitação do medo e do terror, mas também por meio da admiração e
da atração que exercia sobre a Hélade: “Atenas era um espetáculo, força
de atração e de radiação cultural que funcionava como elemento impor-
tante da política do arché por outros meios.”70 A própria oração fúnebre
é um testemunho da magnificência de Atenas, de sua beleza e espírito
político e cultural elevado, não fosse assim, Péricles não teria se referido
à cidade que governava como uma lição viva para toda a Grécia.
Esse caráter dúplice da sustentação do arché ateniense perante a
Hélade, em que ora produzia efeitos de sedução, ora terror, foi o meio
do qual o império se serviu tanto para adquirir quanto para manter seu
poder. De acordo com Sahlins,
a necessidade de sempre mostrar seu poder contribui, de alguma maneira, para
explicar a obsessão dos atenienses por ele. […] Para Atenas a dominação de
outros era uma condição necessária de sua própria existência. Ela tinha aquele
febril desejo de poder pelo poder, incluindo riqueza, que os gregos chamaram
de pleonexia.71
Como visto, num primeiro momento a conquista era necessária
para auferir recursos que garantissem a sobrevivência de Atenas e seu
desenvolvimento, em outras palavras, para suprir desde as necessida-
des mais básicas, como alimentação, bem como para fomentar o desen-
volvimento cultural, político e marítimo que transformou Atenas na
capital hegemônica da Grécia do século V a.C.. Entretanto, o sentido
da dominação transcendia a simples ideia da aquisição material, pois a
dominação retirava sua força muito mais do elemento psicológico do
desejo de poder, do desejo de querer mais (pleonexia) do que do supri-
mento material.
Desde o começo do império, em 478, até sua queda, no final da Guerra do
Peloponeso, em 408, cada vitória, cada expansão do poder ateniense parecia
tornar cada vez mais distante o objetivo de toda essa atividade. Cada vez mais,
pode-se dizer, uma pura abstração: o poder como tal, por ele mesmo.72

70  SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides, p. 106.


71  SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides, p. 104; 94.
72  SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides, p. 99-100.

141
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

De fato, o que Atenas pretende com a dominação e com as con-


quistas, em suma, com a formação de um império, é poder. Pode-se
dizer que a incessante busca ateniense pelo poder remete à ambição,
característica que Tucídides não cessa de ressaltar em Atenas. Tal ca-
racterística é apontada pelo historiador grego, ao relatar o episódio da
peste em Atenas e da stasis em Córcira, como sendo inerente à natureza
do homem, o que significa dizer que não cessa no homem o desejo de
querer cada vez mais (pleonexia), e este desejo sem fim é o que caracte-
riza a busca ateniense pelo poder. A esse respeito Jacqueline de Romilly
oferece a seguinte contribuição:
O mecanismo é muito claro: o que encoraja o querer mais é, com efeito, tudo o
que faz acreditar que podemos ter mais, ou seja, o sucesso e, entre os sucessos,
alguns mais particularmente. Aqueles que parecem devido ao acaso (diz-se:
por que não mais outra vez?), ou aquele que vem bruscamente e, para surpresa,
adormece a razão.73
É nesse ponto que reside o caráter trágico do relato de Tucídides,
quando mostra que, ao mesmo tempo em que o homem tem uma natu-
reza incessantemente desejosa, e é por ela impelido a cometer excessos
(hybris), a razão, que também faz parte de sua natureza, mostra-lhe que
toda a desmedida é punida, mas nem sempre consegue controlar essa
pulsão desejosa. Em outras palavras, o homem tem uma natureza que
ultrapassa seu controle sobre ela74. Uma das lições que Tucídides tira
dos fatos ocorridos na stasis em Córcira é a de que “a causa de tudo o
que ocorreu, foi o poder desejado por cupidez [philotimían – amor às

73  Tradução livre de: “Le mécanisme en est très clair: ce qui encourage à vouloir plus, c’est en effet
tout ce qui fait croire que l’on pourra avoir plus, c’est-à-dire les succès et, parmi les succès, certains plus
particulièrement: ceux qui semblent dus à la chance (on se dit: pourquoi pas encore, une autre fois?),
ou ceux qui viennent brusquement et, par la surprise, endorment la raison” (ROMILLY, Jacqueline
de. Thucydide et l’Imperialisme Athénien, p. 270).
74  De acordo com Jacqueline de Romilly: “A tentação que leva o homem a querer mais, a despeito
de toda razão, é a desmedida, a hybris. Esta, que é bem conhecida dos gregos; tal como ela aparece
em Tucídides, pode ser formulada da seguinte forma: a natureza humana é tal que o homem é
levado pelo sucesso a conceber desejos imoderados. Esta lei serve para explicar na sua obra todas
as falhas políticas, e as de Atenas em particular.” Tradução livre de: “La tentation qui pousse l’homme
à vouloir plus, au mépris de toute raison, est celle de la démesure, de l’hybris. Celle-ci est bien connue
des Grecs; telle qu’elle apparait chez Thucydide, elle peut se formuler ainsi: la nature humaine est ainsi
faite que l’homme se laisse entraìner par le succès à concevoir des désirs immodérés. Cette loi sert à
expliquer dans son œuvre toutes les fautes politiques, et celles d’Athènes em particulier” (ROMILLY,
Jacqueline de. Thucydide et l’Imperialisme Athénien, p. 268).

142
Gabriel Geller Xavier

honras] e por ambição [pleonexían], desses dois sentimentos provém,


quando as rivalidades se instauram, um ardor passional”75.
Não é sem motivo que Tucídides é visto como o “pai” do realismo
político, pois nas raízes deste aporte teórico também está a concepção
de natureza humana, afirmando que o homem tem uma natureza in-
cessantemente desejosa com forte inclinação para o interesse, o ganho
e o poder. Daí a visão pessimista em relação ao homem e as relações
internacionais serem pautadas em termos de poder e segurança, uma
vez que o ambiente no qual a política externa é praticada é anárquico, e,
sendo assim, a lei do mais forte impera, ou seja, a vontade daquele que
possui maior poder de coerção. Esse ambiente sem leis e na constância
de uma guerra, a natureza humana incessantemente desejosa de poder
e uma política imperialista legitimada pela lei do mais forte é o cenário
que Tucídides coloca diante de seu leitor ao relatar do famoso diálogo
entre os mélios e os atenienses76.
Mélos era uma pequena ilha, colônia dos Lacedemônios, que se
manteve neutra durante a guerra. Os demais ilhéus próximos de Melos
já haviam sido dominados pelos atenienses que, mesmo com a peque-
na ilha sendo estrategicamente insignificante, resolveram incorporá-la
ao seu império “[…] para satisfazer seu insaciável desejo pela expan-
são e criar uma lição objetiva para outras cidades-estado que pudessem
resistir”77. Porém, foram surpreendidos ao realizarem uma expedição à
Melos, onde os ilhéus recusaram-se a se entregarem. Começa a ser tra-
vado, assim, um diálogo entre os embaixadores enviados por Atenas e

75  Tradução livre de: “La cause de tout cela, c’etait le pouvoir voulu par cupidité et par ambition; de ces
deux sentiments provenait, quand les rivalités s’instauraient, une ardeur passionnée”. (THUCYDIDE.
La guerre du Péloponese: livre III, caps. XXXIX–XL, p. 26-28).
76  Sabe-se que os discursos e diálogos que Tucídides narra, não ocorreram exatamente como
foram narrados, muitas vezes se desconfia até mesmo do real acontecimento dos discursos e
diálogos. Contudo, se por um lado esses discursos e diálogos não fornecem um dado histórico fiel,
por outro lado são de extrema importância no que diz respeito ao ensinamento político que trazem
consigo. O diálogo entre os mélios e os atenienses é, segundo Luciano Canfora, um “[...] diálogo
que Tucídides imagina desenvolver entre o legado do exército invasor ateniense e os magistrados de
Melos é um dialogo fictício centrado sobre o tema da violação da neutralidade”. Tradução livre de:
“[...] il dialogo che Tucidide immagina svolgersi trai legati dell’esercito invasore ateniese ed i magistrati
di Melo è un dialogo fittizio incentrato sul tema della violazione del neutrale”(CANFORA, Luciano.
Tucidide e l’Impero: la presa di Melo. 2 ed. Roma: Editori Laterza, 2000. p. 5).
77  Tradução livre de: “[…] to satisfy its insatiable desire for expansion and to create an object lesson
for other states that might resist”. (NIELSEN, Donald A. Pericles and the plague: Civil Religion,
Anomie, and Injustice in Thucydides. Sociology of Religion. New York: ano 4. V-57; 1996. p. 403).

143
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

os representantes mélios em um local distante do povo para que este não


se sentisse seduzido pelos argumentos atenienses e perdesse, portanto,
poder na réplica78. As primeiras falas do diálogo já deixam claro aos
olhos do leitor a forte tensão entre o poder fundado na força e a moral,
entre o fato propriamente dito e o modo como ele deveria ser, em suma,
poder-se-ia dizer, entre o realismo e o idealismo, como fica explicitado
numa das primeiras falas dos atenienses – acerca da conveniência dos
melianos se entregarem – e na resposta dos mélios a eles:
Atenienses: […] somos ambos cientes do fato de que a avaliação é fundada na
prática do direito, no raciocínio humano, somente quando se está em base de
paridade, enquanto que se está em disparidade de força, o mais forte requer o
quanto é possível e o mais fraco aprova.
Mélios: Segundo nos é útil – necessariamente nos expressamos assim, do
momento em que vós, com esta intervenção, tendes escolhido ignorar a justiça
e falar da utilidade –, é útil, portanto, que vós não destruais um princípio que é
bem comum para todos: é útil àqueles que, por sua vez, se encontram em perigo,
venham garantir os direitos normais e que se viríeis ao encontro destes, com
seus argumentos, não atraíeis o rigor necessário.79
Nesse primeiro momento do diálogo tanto os representantes dos
mélios, quanto os dos atenienses, estão explicitando o tom de suas falas:
os atenienses clamando pela lei do mais forte impõem a tonalidade do
poder e da utilidade ponderando sobre o presente; já os mélios, estando
em desvantagem, assumem a postura de deliberar sobre o que ouvem
clamando por valores morais e conseqüências futuras. Essa tensão se
aprofunda na seqüência do diálogo, quando os atenienses tentam con-
vencer os melianos a se entregarem e expõe o interesse das duas cidades
em evitar o combate e que Melos se renda:

78  Cf. TUCIDIDE. Il dialogo: V, 84-116. In: CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di
Melo, p. 33.
79  Tradução livre de: “Ateniesi: […] consapevoli entrambi del fatto che la valutazione fondata sul
diritto si pratica, nel ragionare umano, solo quando si è su di una base di parità, mentre, se vi è
disparità di forze, i più forti esigono quanto è possibile ed i più deboli approvano. Melli: secondo noi
è utile - necessariamente ci esprimiamo così, dal momento che voi, con questo intervento, avete scelto
di ignorare la giustizia e di parlare di utilità -, è utile dunque che voi non distruggiate un principio
che è bene comune per tutti: è utile che, a chi volta a volta si trova in pericolo, vengano garantiti i
normali diritti, e che si venga incontro a chi, coi suoi argomenti, non ha attinto il necessario rigore”
(TUCIDIDE. Il dialogo: V, 84-116. In: CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di Melo,
p. 34-35).

144
Gabriel Geller Xavier

Atenienses: [...] O que propomos demonstrar é que estamos aqui para ajudar o
nosso império, e ao mesmo tempo, as propostas que fazemos visam à salvação
de modo conveniente para ambos: para vós e para nós. […]

Melios: e não aceitaríeis que nós, em vez de inimigos, fôssemos vossos amigos,
sem combater ao lado de nenhum dos dois lados?
Atenienses: Não. Porque a vossa hostilidade não nos prejudica tanto quanto a
vossa “amizade”: a qual aparece como um sinal de nossa fraqueza, e vosso ódio
seria para os súditos a prova da nossa força. […] Pensam que, em termos do
direito, nem um nem os outros argumentos falham, mas que com relação à força
de um sobrevivente autônomo, nós por temor não os atacamos. […] Uma vez
que não está em vigor entre nós e vós a coragem, [não se trata de] igualdade,
[mas] eventos com o objetivo de evitar a desgraça! O tema em discussão é a
salvação, o que significa não se oporem àqueles que são muito mais fortes.80
Essa parte do diálogo em que os atenienses tentam convencer os
mélios de que para ambas as cidades é interessante a rendição da peque-
na ilha sem o combate é de significante importância, pois nela aparece,
de maneira evidente, o que motivou os atenienses a realizarem o cerco, a
saber, fazer uma demonstração espetacular de sua força com fins a pro-
duzir, através de efeito-demonstração, medo e respeito em suas colônias
subjugadas e inimigos. Em outras palavras, os atenienses queriam a ren-
dição de Melos e, caso não conseguissem, entrariam em combate para
fazer uma exibição evidente e convincente de seu poder perante a Héla-
de, por isso não era útil a Atenas a amizade que os mélios propunham.
O cerco à pequena ilha tratava-se da manutenção de seu poder por meio
da exibição da sua força, o que levava o império a alimentar seu desejo
incessante por mais poder (pleonéxia). Desse modo, Atenas revela sua
lógica imperialista de dominação, assim como desnuda a forma com
que pratica sua política externa no conselho que dá aos mélios: “[…]
não está em vigor entre nós e vós a coragem […]. O tema em discussão

80  Tradução livre de: “Ateniesi: […] Quello che ci proponiamo di dimostrarvi è che siamo qui per
soccorrere il nostro impero e che, al tempo stesso, le proposte che stiamo per fare mirano alla salvezza
in modo conveniente per entrambi: per voi e per noi. […] Melii: E non accettereste che noi, anzichè
nemici, siamo vostri amici, senza però combattere al fianco di nessuno dei due schieramenti? Ateniesi:
No. Perchè la vostra ostilità non ci danneggia quanto la vostra ‘amicizia’: la quale apparirebbe come
un segno della nostra debolezza, mentre il vostro ódio sarebbe per i sudditi la prova della nostra
forza. [...] Pensano che, sul piano del diritto, né agli uni né agli altri manchino argomenti: ma che
in base ai rapporti di forza gli uni sopravvivono autonomi, e noi per timore non li attacchiamo. […]
Giacché non è in atto tra noi e voi una garra di coraggio, alla pari, evente come obietivo di evitare il
disonore! L’oggetto in discussione è la salvezza: il che significa, non opporsi a chi è di gran lunga più
forte.” (TUCIDIDE. Il dialogo: V, 84-116. In: CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di
Melo, p. 35-36).

145
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

é a salvação, o que significa não se oporem àqueles que são muito mais
fortes”. Assim os atenienses apresentam, sem subterfúgios eloqüentes,
a linguagem da força e da dominação, próprias do império, deixando
claro o que está, de fato, em vigor: a lei do mais forte, sendo a liberdade
somente possível àqueles que têm força para sobreviverem autônomos.
Segundo o filólogo italiano Luciano Canfora, os atenienses
[…] se manifestam à luz de uma lógica condenável, mas são coerentes com
ela. E o que dizem não diz respeito somente a Melos, é mais geral, vale para o
império. O império para funcionar deve, designadamente, eliminar o escândalo
da neutralidade em uma área (as ilhas) sob seu estreito controle, deve, pelo
contrário, exercitar uma repressão exemplar tomando em consideração também
as outras ilhas81.
De fato, os atenienses conduziam sua política de forma coeren-
te, ainda que moralmente condenável, pois a lógica imperialista exige a
eficácia da ação sem considerar o seu valor moral. Essa política realista
praticada no âmbito externo tem por objetivo, através da dominação pela
força, a expansão do poder a todo o custo. No cenário externo à polis a
política é conduzida de maneira distinta a do âmbito interno, a política
realista de maximização do poder fomenta a política interna idealista,
enquanto essa legitima a expansão. Por isso, é vã a tentativa dos mélios de
clamarem pela amizade, já que nessa esfera a política a ser implementada
é a da dominação pela força, não havendo espaço para a amizade, assim,
aos mélios somente cabe ouvir e ter esperança na fortuna:
Mélios: Mas nós sabemos que os eventos bélicos, por vezes, têm sorte menor,
independente da proporção da força em campo. Quanto a render-se agora sem
combate significaria renunciar de súbito a toda esperança, e com a ação há ainda
esperança de salvar-se.

Atenienses: Esperança! A esperança, habitual alívio do perigo, danosa, mas não


oprime quem se baseia nela como um [recurso] a mais. Porém, quem tudo
apóia nela (e essa é por sua natureza pródiga), no momento mesmo em que
conhece, agora oprimida, a sua natureza, comprende também que contra ela,
agora revelada, não há recurso.

81  Tradução livre de: “essi si esprimono alla luce di una logica condannabile, ma sono coerenti con
essa. E quel che essi dicono non riguarda soltanto Melo, vale più in generale per l’impero. L’impero c’è: e
per funzionare deve, tra l’altro, eliminare lo escandalo della neutralità in un’area (le isole) sotto stretto
controllo ateniese, deve anzi esercitare una repressione esemplare che tenga in rispetto anche gli altri
isolani” (CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di Melo, p. 18).

146
Gabriel Geller Xavier

Mélios: Também nós, devem saber, pensamos que é difícil o combate contra vossa
potência e conta a fortuna, se não for justa. No entanto, confiamos na boa sorte
que provém da divindade: que não será menos, porque nós, sem culpa, pois não
falhamos e enfrentamos os injustos; e quanto a inferioridade da força, confiamos
na aliança com Esparta: aliança que não pode não se manifestar, sem falar de
outros [motivos], ao menos pela relação de descendência que nos une e pela
vergonha que recai sobre eles. E, portanto, não é irracional nossa confiança.
Atenienses: Não só entre os homens, como é bem notório, mas, por quanto se
sabe, também entre os deuses, um necessário e natural impulso empurra-os a
dominar sobre aqueles que podem vencer. Esta lei, não a havíamos estabelecido
nós, nem somos nós os primeiros a valer-se dela, tínhamos recebido daqueles
em nossa volta e entregaremos a quem virá depois, e terá valor eterno. 82
A fala dos melianos, clamando pela justiça e sua liberdade, rei-
vindica clemência aos atenienses diante de sua situação desfavoreciada,
ao que os representantes de Atenas não se apiedam. Estes não parecem
dispostos a conceder aos mélios a clemência que Péricles exalta na ora-
ção fúnebre como sendo uma das qualidades de Atenas: “[…] presta-
mos atenção aos magistrados que se seguem e as vítimas de injustiças,
ou que, sem existirem leis escritas, comportam sanção pela vergonha
indiscutível”. Este forte tom de justiça presente no discurso de Péricles,
na qual também defende os valores da liberdade e da igualdade, salien-
tando que foram esses ideais que transformaram Atenas na grandiosa
hegemonia do séc. V a.C. , bem como o real motivo que mobiliza os
atenienses à guerra, não está presente na fala dirigida aos mélios, pois
no âmbito em que ocorre o diálogo os atenienses sabem que não po-

82  Tradução livre de: “Melii: Ma noi sappiamo che le vicende belliche talolta hanno sorti meno
divaricate rispetto alla sproporzione delle forze in campo. Quanto a noi, cedere senza combattere
significherebbe rinunciare subito ad ogni speranza; invece con l’azione c’è ancora la speranza di
salvarci. Ateniesi: Speranza! La speranza, abituale lenimento del pericolo, danneggia ma non travolge
chi le si affida come ad un più. Ma chi le si appoggia tutto (essa è per sua natura dissipatrice), nel
momento stesso in cui ne conosce, ormai travolto, la natura, comprende anche che contro di lei, ormai
svelata, non ha risorse. […] Melii: Anche noi, sappiatelo, pensiamo che sia duro combattere contro
la vostra potenza e contro la fortuna, se non vorrà essere equanime. Nondimeno confidiamo nella
buona sorte che promana dalla divinità: che non ci verrà meno, perché noi, senza colpa, ci troiamo
ad affrontare degli ingiusti; e quanto all’inferiorità delle forze, confidiamo nell’alleanza con Sparta:
allenza che non può non manifestarsi, a tacer d’altro, almeno per il rapporto di stirpe che ci lega e
per la vergogna che ricadrebbe, altrimenti, su di loro. E dunque non è poi così irrazionale la nostra
fermezza. Ateniesi: [...] Non solo tra gli uomini, come è ben noto, ma, per quanto se ne sa, anche tra gli
dèi, un necessario e naturale impulso spinge a dominare su colui che puoi sopraffare. Questa legge non
l’abbiamo stabilita noi né siamo stati noi i primi a valercene; l’abbiamo ricevuta che già c’era e a nostra
volta la consegneremo a chi verrà dopo, ed avrà valore eterno”. (TUCIDIDE. Il dialogo: V, 84-116. In:
CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di Melo, p. 36-37).

147
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

dem evocar os valores ético-políticos existentes na polis. No cenário do


diálogo, a política em vigor já foi alertada aos mélios, é a da dominação
através do poder, é a lei do mais forte. O que os embaixadores atenienses
fazem agora, desnudados de sua eloqüente retórica, é justificar sua ação
no impulso à dominação presente na natureza humana.
A sequência do diálogo aprofunda a diferença no tom das falas
dos representades de Melos e Atenas. Por fim, o acordo não é firmado e
Atenas cumpre a promessa: cerca a pequena ilha, que, resistentemente,
faz diversas tentativas para romper o cerco, e o conflito tem seu fim
quando acontece uma traição vinda do interior de Melos levando esta a
rendição. Atenas toma a ilha matando os homens, escravizando as mu-
lheres, crianças e velhos. O desfecho do diálogo é trágico, mas um acor-
do não poderia ser feito, pois a comunicação entre mélios e atenienses
se mostrava impossibilitada quando uma das partes discursava em um
tom realista e a outra idealista. Como acentua Marilena Chauí:
Sabemos de antemão que a aliança não terá lugar porque os atenienses discursam
no gênero deliberativo, enquanto os melianos, lutando contra a inferioridade
própria de quem só é ouvinte, replicam no gênero judiciário.83
Ou seja, a linguagem utilizada em suas falas pelas partes é distinta
e o diálogo se desenvolve em desacordo. Enquanto os mélios apelam ao
sentido de equilíbrio e clemência ateniense, replicando a esses sempre
no tom moral, os atenienses, pautando sua fala no poder, discursam
mostrando que não há convenção moral que consiga aplacar o implu-
so à dominação natural no homem. O desacordo já está dado desde o
início do diálogo, e os atos que sucedem às falas apenas cumprem o
desacordo lingüístico em outra instância.
O impulso naturalmente desejoso humano é o que representa
Atenas no diálogo, bem como o que dá a ele o seu tom trágico, sendo
possível, a partir dele, prever o colapso do império ateniense. Ora, esse
incessante desejo por mais poder que produz ânimo e vigor em Atenas é
também o que a faz cometer excessos (hybris), e todo desequilíbrio “deve
ser castigado, pois coloca em questão o equilíbrio cósmico (lembremos
que a palavra kósmos, em grego, significa “mundo” e “ordem”: o mundo

83  CHAUÍ, Marilena. Amizade, Recusa do Servir. In: BOÉTIE, Etienne de la. Discurso da Servidão
Voluntária. Trad. Laymert Garcia dos Santos. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 174.

148
Gabriel Geller Xavier

já está em ordem e deve se mantido nesta sua ordem essencial)”84. A


pretensão imperialista ateniense de dominar toda a Grécia e se tornar a
senhora do mundo grego e a ele impor sua ordem não pode caracterizar
maior desmedida e suas conseqüências serão trágicas para Atenas, que,
tal como os Mélios, ao final da guerra perderá sua liberdade ao ser in-
corporada à hegemonia espartana. 85

Considerações finais
Tucídides abre seu texto anunciando o que o motivou a escrever
a Guerra do Peloponeso, a saber, deixar o relato para as gerações futuras,
pois lhes será de muita importância, uma vez que os fatos mudam, mas
a natureza humana, que engendra os acontecimentos, essa, é sempre a
mesma. Ou seja, o historiador grego quer mostrar as verdadeiras cau-
sas, os reais motivos dos fatos que narra, e é por isso que sua narrativa
terá valor para as gerações futuras. A forma como é escrita a obra, deixa
isso claro, pois evidencia ao leitor as causas dos êxitos, dos fracassos e
acontecimentos, encadeando-os em uma série cronologicamente com-
preensível e coerente. E essa maneira de apresentar os fatos confere a
cada parte da obra uma unidade que justapostas formam uma unidade
maior, a própria obra. Esse método com que Tucídides compõe sua nar-
rativa, bem como a forma literária com que escreve, dá a ela o tom do
teatro trágico de seu tempo, mostrando que as desmedidas, o excesso
(hybris), oriundas da natureza desejosa e interesseira do homem, são a
causa, por excelência, dos infortúnios tanto privados, quanto públicos.
É exatamente por sua ambição excessiva, desejo pelo poder e orgulho
desmedidos que Atenas é movida à guerra contra Esparta, já esta, é mo-
tivada pelo temor - outra das paixões humanas - do aumento do poder
ateniense. Ainda que Tucídides não tenha acompanhado, com sua nar-
rativa, o desfecho final da guerra, sabe-se que foi a Liga do Peloponeso
a vitoriosa e que Atenas encontrou seu final trágico86. A lição trágica de

84  GAGNEBIN, Jeanne Marie. O início da história e as lágrimas de Tucídides. In:____________.


Sete aulas sobre linguagem, memória e história. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 2005, p. 19.
85  Atenas perde sua liberade tanto da perspectiva externa, pois é dominada por outra hegemonia,
tando quanto da perspectiva interna, pois verá seu regime democrático ser substituído por um
regime oligárquico instalado pelos espartanos.
86  Xenofonte deu seqüência à narrativa de Tucídides e relatou os últimos anos da guerra e a
derrota ateniense.

149
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

que o homem não deve querer ocupar um lugar que não lhe pertence,
querer ser mais do que é, não reconhecendo que é apenas um mortal, e
pagando muito caro por sua falta de comedimento perpassa pela Guerra
do Peloponeso de mãos dadas com a narrativa histórica.
Atenas, a heroína trágica do relato de Tucídides, desmedidamente
pretensiosa, almejando se transformar na soberana da Grécia, naquela
que predomina (arché) preponderantemente sobre as demais cidades-
estado gregas, começa a praticar uma política externa imperialista-re-
alista, anexando colônias à Liga de Delos e utilizando dos recursos da
mesma, tanto militares, quanto financeiros para implementar políticas
internas. Exatamente nesse período, em que Péricles era o governante, é
que Atenas chegou ao seu apogeu, o famoso século V a.C., o “século de
ouro”. A polis ateniense era considerada uma lição para toda a Grécia,
pois, como bem Péricles põe a vista em sua oração fúnebre, seu regime
de governo, a democracia, é imitado e observado por todas as demais
cidades-estado, por ser um regime justo em que todos têm o mesmo
acesso às leis e a liberdade, então, impera. A cidade também é palco das
mais belas festividades religiosas e espetáculos culturais, e tudo o que,
na Grécia era produzido, pode ser encontrado em Atenas, além da pro-
dução local também ter grande prestígio entre as demais cidades. Atenas
era vista como a capital da Grécia. É exatamente porque a política in-
terna ateniense é guiada por ideais como estes de liberdade e igualdade,
proferidos por Péricles em seu discurso, e valores intelectuais, culturais
e religiosos, que se pode afirmar a política interna ateniense como sendo
idealista, uma vez que idealismo diz-se toda a política que submete a
realidade à ideais. Isso é, de fato, o que ocorre com a política interna ate-
niense e isso fica claro quando Tucídides apresenta um episódio como o
da Peste, em que com a conflagração de uma epidemia, grande parte da
população é consumada e os que restam, vendo a morte se aproximar
perdem os ideais que guiavam suas ações e passam a ser guiados por
suas paixões e tentativa fugaz de satisfazerem seus desejos momentâ-
neos. Ao relatar esse caso, o historiador grego mostra a dissolução da
polis que acontece quando esses ideais que a constituem são extintos e
substituídos pelo auto-interesse, característico da natureza humana. E
mesmo Tucídides não fazendo nenhum juízo de valor ao narrar o episó-
dio da peste – assim como o episódio da stasis em Córcira, pois somente
relata o comportamento humano diante de situações em que nada tem

150
Gabriel Geller Xavier

a perder, da mesma forma que um médico diagnostica uma doença, o


historiador grego faz um diagnostico da natureza humana e atesta sua
conduta em situações como a da peste e a stasis – é sensato dizer que
para Tucídides a dissolução da sociedade é um mal, uma vez que é so-
mente a organização política da polis que abranda a natureza humana ao
oferecer um ambiente seguro e que propicia a paz. Ora, para os gregos
de um modo geral a cidade era o ambiente, por excelência, em que o ho-
mem podia desenvolver suas capacidades e atingir sua plenitude. Atenas
era tida entre todas as cidades do século V a.C. como aquela em que
havia o ambiente mais propício para o desenvolvimento seus cidadãos.
Isso orgulhava o cidadão ateniense e o impelia a lutar por sua cidade,
tanto para garantir os recursos para ela continuar a crescer e manter
sua importância e predominância sobre a Hélade, quanto para transpor
seus valores às demais cidades. Esses são os dois pilares do imperialismo
ateniense e o motivo pelo qual Atenas implementa sua política externa
ao modo realista.
A prática do realismo acontece inicialmente porque Atenas, ne-
cessitando de recursos econômicos, militares e comerciais para fomentar
a implementação de políticas internas que a levou a se tornar o grande
ícone intelectual, político, cultural e religioso da Grécia do séc. V a.C.,
bem como para garantir os ideais democráticos de liberdade, igualdade,
justiça e prudência, é que se lançava no cenário externo para conquis-
tar. Ao fazer isso, desperta a natureza desejosa pelo poder, e, de cada
vez mais poder (pleonexia), impodo através da força, sua dominação
e expandindo seu império por meio de uma política realista. Um claro
exemplo dessa política é bem exposto no diálogo travado entre os repre-
sentantes mélios e os embaixadores atenienses, em que estes impõem
aos mélios sua dominação através da força, os quais, por sua vez, sus-
tentam valores morais, apelam pela clemência ateniense com propostas
de amizade. O diálogo claramente ressalta que, para os atenienses, o que
está em vigor na esfera externa é a lei do mais forte, é a dominação atra-
vés da força, e não a mesma política implemtada na polis, política esta,
representada nos valores clamados pelos mélios em suas falas. Diante do
exposto, pode-se perceber que a política externa realista ateniense é o
desdobramento da política interna conduzida à luz de certo idealismo.

151
TUCÍDIDES E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: um breve ensaio

Referências
ALMEIDA PRADO, Anna Lia Amaral de. O logos de Tucídides sobre a
guerra. Clássica. São Paulo, Ano 2. V-2, 1989.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. 4. ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
______________. Política. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília:
UnB, 1997.
AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes.
São Paulo: Discurso Editorial, 2003.
CANFORA, Luciano. Tucidide e l’Impero: la presa di Melo. 2a. ed. Roma:
Editori Laterza, 2000.
CARR. Edward H. Vinte Anos de Crise 1919 – 1939: uma introdução ao
estudo das Relações Internacionais. Trad. Luiz Machado. 2ª Ed. Brasília:
UnB, IPRI, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Amizade, Recusa do Servir. In: BOÉTIE, Etienne de
la. Discurso da Servidão Voluntária. Trad. Laymert Garcia dos Santos. 4.
ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. O início da história e as lágrimas de
Tucídides. In:____________. Sete aulas sobre linguagem, memória e
história. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
HEMMERDINGER, Bertrand. Essai sur l’histoire du texte de Thucydide.
Paris: Les belles lettres, 1955.
HUME, David. Da balança de poder. In:__________.Ensaios Políticos.
Trad. Pedro Pimenta. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. Artur M.
Parreira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KITTO, H. D. F. Os Gregos. Trad. José Manuel Coutinho e Castro. 3. ed.
Coimbra: Armênio Amado, 1990.
KNOX, Bernard. Édipo em Tebas: o herói trágico de Sófocles e seu
tempo. Trad. Margarida Goldsztyn. São Paulo: Perspectiva, 2002.

152
Gabriel Geller Xavier

NIELSEN, Donald A. Pericles and the plague: Civil Religion, Anomie,


and Injustice in Thucydides. Sociology of Religion. New York: ano 4.
V-57; 1996.
ORWIN, Clifford. Stasis and plague:Thucydides on the Dissolution of
Society. The Journal of Politics, vol. 50, n.4, nov. 1988, P. 831-847. Disponível
em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0022-3816%28198811%2950%3A4
%3C831%3ASAPTOT%3E2.0CO%3B2-K>. Acesso em: 27 jun. 2007.
PLATÃO. A República. Trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
ROMILLY, Jacqueline de. História e Razão em Tucídides. Trad. Tomás
Rosa Bueno. Brasília: UnB, 1998.
___________. Thucydide et l’Imperialisme Athénien: la pensée de
l’historien et la gênese de l’œuvre. 2. ed. Paris, Les Belles Lettre, 1951.
SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides. Trad.
Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
THUCYDIDE. La guerre du Péloponese: Livre II. Trad. Jacqueline de
Romilly. Paris, Les Belles Lettre, 1962.
___________. La guerre du Péloponese: Livre III. Trad. Raymond Weil e
Jacqueline de Romilly. Paris, Les Belles Lettre, 2003.
TUCIDIDE. Il dialogo: V, 84-116. In: CANFORA, Luciano. Tucidide e
l’Impero: la presa di Melo. 2. ed. Roma: Editori Laterza, 2000.
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso: livro I. Trad. Anna Lia
Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
___________. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Mário da Gama
Kury. 3. ed. Brasília: UnB, 1999.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Razão e contra-senso na história. In:_________.
Os Gregos, Os Historiadores, A Democracia: o grande desvio. Trad.
Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

153
AS DUAS FACES DA PAZ DE
WESTPHALIA (1648)
Raphael Spode1

Introdução
O presente ensaio tem por objetivo apontar para um aspecto
contraditório da paz de Westphalia. Apesar de muito se falar sobre este
evento, pouco se sabe sobre as nuanças dos congressos westphalianos.
De um modo geral, os congressos de Munster e Osnabruck organizaram
um novo consenso das práticas políticas e sociais que deveriam orientar
a relação tensa de um período no qual a religião ainda se confundia com
a política. Aparentemente, neste ato de inauguração da ordem interna-
cional da modernidade surgem dois aspectos ambíguos e antagônicos:
de um lado, os congressos de Westphalia organizam uma sociedade in-
ternacional ao informar os interesses, os valores, as regras e os princípios
comuns de um grupo de autoridades; de outro lado, é justamente o reco-
nhecimento mútuo de um princípio comum – da soberania – que desloca
o imperador habsburgo e o papa como figuras medianeiras das relações
internacionais, conduzindo o conjunto a uma situação anárquica.
A ambiguidade da Paz de Westphalia está nisso: ao estabelecer
um direito comum à soberania, a ideia de sociedade nascente é ime-
diatamente relativizada pelo princípio da razão de Estado. Quem revela

1  Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (iREL/UnB). Atualmente,


leciona no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
E-mail para contato: raphael.spode@gmail.com

155
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

essa ambiguidade de 1648 é o Leviatã, de Thomas Hobbes, em 1651.


Três anos após os congressos alemães, o notável autor inglês fala de um
estado de guerra nas relações entre os reis e príncipes da cristandade
ocidental. O famoso capítulo XIII retrata uma ameaçadora situação in-
ternacional, muito diferente daquilo que a paz de Westphalia parecia
sugerir e inaugurar: uma sociedade internacional moderna assentada
no princípio universal da tolerância.

A paz de Westphalia
Os congressos de Westphalia reuniram 16 estados europeus, 140
sociedades políticas do sacro império germânico e 38 principados e ci-
dades livres. Em Osnabruck, estavam os suecos e os príncipes protes-
tantes alemães; em Munster, os franceses, o imperador habsburgo e os
príncipes católicos alemães. Naturalmente, a paz de Westphalia tem um
sentido de concertação social. A distância entre as duas cidades – circa
45 km – representa o quadro da ruptura social em que vivia a cristanda-
de ocidental. Isso é devido, em boa medida, a uma percepção difundida
atualmente de que a Guerra dos Trinta anos havia sido ocasionada por
uma discórdia religiosa entre católicos e protestantes. Contudo, alguns
relatos afirmam que essa percepção não era tão difundida na época:
contam que um ano inteiro passou desde as cerimônias de abertura dos
congressos (1644) até que as autoridades revelassem e descobrissem o
subjecta belligerentia, ou melhor, a causa da guerra como um problema
de intolerância religiosa.2 Daí em diante, os encontros em Osnabruck e
Munster acontecem para reconstruir uma relação social desgastada por
questões de fé.
Em termos gerais, o tratado de Osnabruck assegurou, juntamente
com o tratado de Munster, um estado de paz entre o sacro imperador
e alguns reinos ocidentais, assim como entre estes reinos e os eleitores,
príncipes e duques de pequenas sociedades políticas do império ger-

2  Cf. WEDGWOOD, C.V. The thirty years war. Londres: Pimlico, 1992, pp. 479 – 491. O tratado de
Osnabruck, assinado em 15 de maio de 1648, apresenta de forma clara um reconhecimento nesse
sentido, de que a Guerra dos Trinta Anos havia sido ocasionada pela discórdia religiosa: “Now
whereas the Grievances of the one and the other Religion, which were debated amongst the Electors,
Princes and States of the Empire, have been partly the Cause and Occasion of the present War…”
(Treaty of Osnabrück. Disponível em: http://www.homepages.ucl.ac.uk/~ucrabjk/Hist4178readings/
Treaty of Osnabruck/PoW-art-V-VII-(01).jpg; V [Point of Ecclesiastical G.ievances, or of Religion].
Acessado em: 20 de agosto de 2008).

156
Raphael Spode

mânico. O tratado de Munster, mais especificamente, procurou dar no-


vas feições às relações externas dos reinos e autoridades soberanas que
constituíam a nascente Europa ocidental do século XVII. Enquanto o
tratado de Osnabruck estava muito mais centrado no concerto das pe-
quenas sociedades políticas que constituíam o sacro império, o tratado
de Munster foi verdadeiramente um pacto internacional, num sentido
moderno: tratava-se de um amplo acordo assinado entre França, Suécia,
os estados emancipados do império e seus respectivos eleitores, prínci-
pes e duques e o sacro imperador, em virtude das agressões, injúrias e
outras faltas cometidas em nome de religião.
A ideia de pacto, ou melhor, de contrato social, difundida na épo-
ca por filósofos jusnaturalistas, parece ganhar uma conotação relevante
na compreensão do evento. O contrato social pode ser entendido como
um instrumento que restabelece a legitimidade das autoridades, sendo
invariavelmente observado como o ponto de partida de uma nova ordem
social e política. O contrato social não somente cria novas instituições e
práticas, mas instrumentaliza, por um ato de vontade das partes, o sur-
gimento de um estado político ou civil a partir da criação de regras do
jogo, ou simplesmente, das normas jurídico-políticas. Os tratados de paz
de Westphalia seguem a mesma lógica da noção contratualista, só que
em termos mais abrangentes. A pretensão é restabelecer uma espécie de
sociedade política entre os príncipes e as demais autoridades católicas e
protestantes. Para isso, o contrato: pois ele cria e viabiliza os interesses, as
regras e os princípios que serão observados em termos comuns.3
Para que voltasse a existir uma sociedade entre as autoridades
ocidentais era preciso, no mínimo, que elas estivessem conscientes de
certos valores e interesses comuns e que se considerassem vinculadas a
determinadas regras no seu relacionamento.4 No presente caso, tal como
exige o contrato social, a sociedade ocidental cristã é constituída a partir
do reconhecimento de um valor em comum. Esse valor é a tolerância: o

3  Cf. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política.


Tradução Carmen C. Varriale et al. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília e São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 273. Ver também, ALVES, Marcelo. Leviatã o demiurgo das
paixões. Uma introdução ao contrato hobbesiano. Cuiabá: UNICEN Publicações e Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2001, pp. 50–52.
4  Cf. BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Editora
Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. (Col. Clássicos
IPRI, 5).P. 19.

157
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

fundamento de uma nova estrutura social cristã orientada pelo respei-


to da diferença. Nesse caso em particular, a tolerância reúne as partes
numa sociedade, pois ao tolerar surge a possibilidade de conviver, ou
simplesmente, de estar em sociedade.
Com efeito, o texto de Osnabruck indica uma reorganização da
sociedade cristã ocidental sob o princípio universal da tolerância. A
questão é que essa sociedade, isto é, a sociedade de eleitores palatinos,
príncipes e reis da cristandade ocidental não se constituiu somente a par-
tir do reconhecimento mútuo de que o princípio da tolerância era um
valor fundamental. Uma característica central desse valor, em 1648, é
que essa era a única regra de comportamento capaz de oferecer uma con-
dição mínima de convivência entre príncipes católicos e protestantes.
Na verdade, em termos políticos e jurídicos, o princípio da tole-
rância assegura uma igualdade jurídica entre as partes, independente da
religião praticada em determinado território.5 Isso significa o seguinte:
ambas as partes estavam criando uma garantia mútua de que o direi-
to da supremacia religiosa e política sobre um determinado território
seria respeitado – isto é, com as ressalvas de que não sofreriam inter-
venção externa. Diferentemente do que ocorria no período medieval,
estas comunidades políticas recebiam um direito de soberania interna e
externa, o que efetivamente estabelece uma separação entre o ambiente
doméstico e o ambiente internacional.
O princípio da igualdade jurídica amparava tanto os menores
quanto os maiores Estados em se tratando de religião. Era a medida
encontrada para salvaguardar a concórdia entre as autoridades cristãs
de credos diferentes. Assim, a princípio, as autoridades contratantes
não deveriam intervir nos assuntos mútuos. O fato é que somente um
princípio como da tolerância poderia reunir essa ampla e difusa socie-
dade religiosa, sendo esse princípio compreendido como a vivência do
respeito mútuo entre autoridades cristãs. Trata-se de uma sociedade no
exato sentido em que é estabelecida na tolerância uma base de conduta,

5  É o que acerta o tratado de Osnabruck: “that there be an exact and reciprocal Equality amongst
all the Electors, Princes and States of both Religions, conformably to the State of the Commonweal,
the Constitutions of the Empire, and the present Convention: so that what is just of one side shall
be so of the other, all Violence and Force between the two Parties being for ever prohibited” (Treaty
of Osnabrück. Disponível em: http://www.homepages.ucl.ac.uk/~ucrabjk/Hist4178readings/Treaty
of Osnabruck/PoW-art-V-VII-(01).jpg; I [Confirmation of the Pacification of Paffau, and that of
Religion]. Acessado em: 20 de agosto de 2008).

158
Raphael Spode

uma regra, uma limitação e uma noção de direito e dever num conjunto
heterogêneo composto por unidades autônomas.
No entanto, a ideia de sociedade cristã balizada sob o princípio da
tolerância é relativizada pela própria solução encontrada nos congressos,
como medida para terminar a guerra. A solução proposta nos tratados
era oferecer a cada autoridade o direito a um território autônomo e livre
de intervenções por questões de diferença religiosa. Em outras palavras,
era difundido um direito à soberania e uma garantia de não intervenção
nos territórios do príncipe católico ou do príncipe protestante. No Tra-
tado de Osnabruck, a cláusula VIII dá origem ao direito de soberania e
emancipa parcialmente os príncipes das amarras imperiais:
And in order to prevent for the future all Differences in the Political State, all and
every the Electors, Princes, and States of the Roman Empire shall be so establish’d
and confirm’d in their ancient Rights, Prerogatives, Liberties, Privileges, free
Exercise of their Territorial Right, as well in Spirituals and Temporals, Seigneuries,
Regalian Rights, and in the possession of all these things, by virtue of the present
Transaction, that they may not be molested at any time in any manner, under any
pretext whatsoever. I. That they enjoy without contradiction the Right of Suffrage
in all Deliberations touching the Affairs of the Empire, especially in the matter
of interpreting Laws, resolving upon a War, imposing Taxes, ordering Levies and
quartering of Soldiers, building for the publick Use new Fortresses in the Lands of the
States, and reinforcing old Garisons, making of Peace and Alliances, and treating
of other such-like Affairs [...] That, above all, each of the Estates of the Empire shall
freely and for ever enjoy the Right of making Alliances among themselves, or with
Foreigners, for the Preservation and Security of every on of them.6
Essa noção de autonomia de territórios confessionais vem da Paz
de Augsburg (1555), quando é codificado o princípio cuius regio eius
religio que conferia aos príncipes o poder de decidir e escolher a religião
de seus domínios. A cláusula de número quinze do pacto de Augsburg,
por exemplo, estabelece uma garantia de liberdade religiosa soberana
aos eleitores, príncipes e duques sobre os seus domínios. Ao lhes con-
ferir o direito de optar pela religião de sua terra e estipular uma ordem
política que lhes permitisse praticar livremente sua confissão sem inter-
ferência externa, o tratado concede a essas entidades políticas o direito
de soberania.

6  Treaty of Osnabrück. Disponível em: http://www.homepages.ucl.ac.uk/~ucrabjk/


Hist4178readings/Treaty of Osnabruck/PoW-art-V-VII-(14).jpg; VIII; I. Acessado em: 20 de
agosto de 2008 (The Re-establishment of the Estates of the Empire to their antient Rights).

159
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

In order to bring peace to the Holy Roman Empire of the Germanic Nation between
the Roman Imperial Majesty and the Electors, Princes and Estates, let neither his
Imperial Majesty nor the Electors, Princes, etc., do any violence or harm to any
estate of the empire on the account of the Augsburg Confession, but let them enjoy
their religious belief, liturgy and ceremonies as well as their estates and other rights
and privileges in peace; and complete religious peace shall be obtained only by
Christian means of amity, or under threat of punishment of the Imperial ban.7
Por essa razão é que no tratado de Osnabruck aparece implícito
e esboçado o princípio quod principi placuit legis habet vigorem (o que
agrada ao príncipe tem eficácia de lei).8 Por esse princípio, o príncipe
passa a ter o monopólio da produção jurídica, independente de fontes
jurídicas externas, fossem elas provenientes de outras autoridades cristãs
ou de um governo supranacional. O príncipe passa a ter o direito de co-
brar taxas, recrutar soldados, construir fortalezas, fazer a guerra, fazer a
paz e estabelecer alianças com os príncipes do império ou do exterior.
Em resumo, Osnabruck e Munster trabalham para unir partes
autônomas de uma sociedade dividida pela força da fé. O trabalho era
realizado no sentido de traçar os limites, os direitos e deveres de cada
príncipe na sua relação mútua. Os tratados de Westphalia sugerem que
a contenção desta relação deveria acontecer sob o amparo de um prin-
cípio universal. A ideia era que um valor abstrato, um princípio moral
como a tolerância, impusesse limitações às ações dos católicos e protes-
tantes em contato recíproco. Como solução ao problema da guerra, os
plenipotenciários decidem a favor da regra do respeito recíproco pelo
território soberano, seja de príncipe católico ou protestante. Esse era o
termo de garantia da harmonização de uma sociedade cristã, perdida
há tanto tempo.
Mas ao aparecimento de um direito à soberania, a ideia de socie-
dade coesa e harmônica é imediatamente relativizada, não pela razão
universal que o princípio moral pretendia impor a esta sociedade, mas
pela razão particular, privada do príncipe que assumia um território es-
pecífico e respeitado por uma sociedade ocidental cristã. O notável é o

7  A análise do tratado de paz de Augsburg deve ser vista como um antecedente importante da
paz de Westfália, no sentido de emancipação das primeiras entidades políticas em nome de uma
sociedade limitada por um princípio universal. (The Religious Peace of Augsburg. Disponível em:
http://www.uoregon.edu/~sshoemak/323/texts/augsburg.htm; § 15. Acessado em: 20 de agosto
de 2008).
8  Cf. LUIGI, Ferrajoli. A soberania no mundo moderno. Trad. Carlo Coccioli e Márcio Lauria
Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.20.

160
Raphael Spode

fato de que a paz de Westphalia acerta uma sociedade de estados sobera-


nos para resolver a guerra religiosa. Para isso, limita um território para
que cada príncipe possa ter garantido o direito de manifestação da sua
fé. No entanto, essa solução de “unir separando” colocou em jogo, desde
o começo, a noção de interesses comuns.
Aparentemente a solução não representa um problema. Pelo con-
trário, cada príncipe tem seu território, um direito de autonomia e um
dever de observá-lo em relação aos outros príncipes. Porém, um fator é
crucial: o tempo acabaria por demonstrar que cada príncipe, agora se-
parados em territórios próprios – isolados em suas “ilhas” – tem interes-
ses diversos, prioridades diferentes que vão buscar realizar, ao mesmo
tempo, no espaço comum a todos: o internacional. Essa busca conjunta
pela realização dos interesses divergentes nas relações internacionais le-
varia essa sociedade a uma situação de conflito e tensão.
Portanto, é justamente o conceito de razão de Estado, ou interesse
individual do príncipe, que relativiza a noção de sociedade conforme pro-
posta pelos tratados de Westphalia. No mesmo instante em que se inaugu-
ra uma sociedade ocidental cristã, com princípios universais, os interesses
particulares dos príncipes passam a fazer parte do contexto. E neste meio,
a sociedade engendra o Leviatã, o temível agente político que introduz o
estado de natureza na relação entre as autoridades soberanas.
A contradição de Westphalia acaba sendo essa: no final os con-
gressos entregam a cada príncipe um território acompanhado de uma
fera assustadora para vigiá-lo, que espalha o terror nos vizinhos. O Le-
viatã, por sua vez acaba sendo o limite traçado por Westphalia para que
cada príncipe possa vivenciar a sua religião e sua ordem política sem
interferência externa. “Cuidado, cão bravo” é a plaquinha que é entregue
a cada plenipotenciário no final do congresso para fixar nas novas fron-
teiras territoriais. No final de história, isso revela a confiança irrisória
no valor universal da tolerância como medida limitadora da conduta
do príncipe, como princípio que unificaria uma sociedade num dever
moral. O limite está na força da fera mais forte capaz de se impor no
jogo da realização dos interesses particulares.

O Leviatã
Em síntese, a solução encontrada para pacificar a sociedade cris-
tã ocidental foi dar aos príncipes – católicos e protestantes – o direito
161
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

de supremacia a determinado território e um princípio para o seu re-


lacionamento: tolerância como garantia mútua da supremacia territo-
rial. Aparentemente, os tratados de Westphalia triunfaram. Porém, essa
é uma leitura bastante ingênua da paz de Westphalia. Uma leitura da
passagem do Leviatã, de Thomas Hobbes (1588-1679) demonstra uma
situação internacional diferente daquela que se imagina ter existido ao
fim dos congressos de Westphalia:
Em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por
causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e
atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no
outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus
reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que
constitui uma atitude de guerra.9
Hobbes publica esse trecho três anos após os congressos de Wes-
tphalia. O curioso é relembrar que este autor estivesse em plena ativi-
dade durante a Guerra dos Trinta Anos. De um certo modo, Hobbes
fez parte deste mundo conturbado pela intolerância religiosa. Não no
sentido de que o autor tenha contribuído para a disseminação das atitu-
des intolerantes, mas que presenciasse um período crucial na formação
do ocidente.
O Leviatã é publicado em 1651. O marcante é que a partir do
Leviatã, a situação internacional pós-Westphalia assemelha-se a um
estado de guerra, tão longe da noção geralmente aceita de uma socie-
dade cristã. Naturalmente, Hobbes não escreve sua obra preocupado
em realizar uma avaliação da relação social dos príncipes cristãos pós-
Westphalia. Talvez o famoso trecho até seja o seu testemunho da Guer-
ra dos Trinta Anos. De todo modo, é preciso concordar com Jonathan
Haslam: o Leviatã é uma parte inseparável do período das guerras reli-
giosas do século XVII.10
Para Haslam, ao escrever seu magnum opus, Hobbes acaba produ-
zindo uma reflexão sobre as últimas disputas políticas dos príncipes oci-
dentais. Segundo o autor, Hobbes tinha em mente a Guerra dos Trinta
Anos tanto quanto os problemas enfrentados pela Inglaterra. Jonathan

9  HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 77.
10  Ver, HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude. O pensamento realista nas relações
internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 85 – 102.

162
Raphael Spode

Haslam apóia essa afirmativa numa carta que Hobbes envia ao conde de
Devonshire, em 2 de agosto de 1641. Nesta carta, Hobbes afirma que “a
disputa por [precedência] entre o poder espiritual e civil, mais do que
qualquer outra coisa no mundo, vem sendo recentemente a causa de
guerras civis em todos os cantos da cristandade”.11 É um indício, no mí-
nimo, interessante e coincidente com a situação vivenciada por aqueles
príncipes discordantes.
Discussão à parte, a descrição que Hobbes faz das relações entre
os príncipes e autoridades políticas do período westphaliano, demons-
tra que eles não estavam unidos numa sociedade fundamentada pelo
princípio da tolerância – como sugere uma leitura contratualista da paz
de Westphalia. Não há tampouco uma sociedade criada em torno de in-
teresses comuns, valores recíprocos ou fundamentos universais. O que
liga os príncipes é a desconfiança mútua, ou seja, o que existe é um clima
de guerra entre príncipes independentes, o imperador habsburgo e o
papa. A verdade é que Hobbes está descrevendo uma situação ocasio-
nada pelo nascimento do estado moderno como solução encontrada ao
problema da guerra civil – em parte, ocasionada pela intolerância reli-
giosa, tanto na Inglaterra como na França. Ao surgimento deste agente
político independente, o estado de natureza, que antes acontecia entre
os indivíduos, passa a existir no âmbito das relações entre os príncipes.
A descrição aponta para isso: os príncipes independentes e soberanos
no seu território, livres da obediência ao imperador habsburgo e ao
papa, passam a agir de acordo com os seus interesses, o que constitui
uma atitude de guerra.
Hobbes faz um sinal de aquiescência à noção da razão de Estado.
Sua percepção da paz de Westphalia – se ela realmente existe – é dife-
rente daquela noção social que aparentemente prevalece numa leitura
contratualista da paz de 1648. Em Hobbes, o princípio determinante
e organizador da paz de 1648 é a razão do príncipe e não a razão uni-
versal. Naturalmente, Hobbes propõem uma descrição mais prática do
comportamento político westphaliano.
A verdade é que ao fim da Civitas Christiana ou Corpus Christia-
num, período marcado pelo surgimento do estado absoluto e secular,
houve a substituição de uma ética baseada em princípios transcendentes

11  Ver, HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude, p. 88.

163
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

e espirituais, reforçados pelo papa, pela força legitimadora da razão do


príncipe.12 Nesse instante, com o desaparecimento do imperador e do
papa daquela posição supranacional, os príncipes foram responsabili-
zados pela preservação das suas sociedades e dos seus territórios. O im-
portante era que o príncipe desenvolvesse uma capacidade, uma ciência
para estabelecer, garantir e promover a ordem doméstica. Assim é que
surge a figura do príncipe racional e prudente, capaz de calcular os pró-
ximos movimentos que decidem a favor ou contra a promoção daqueles
interesses que garantem a ordem doméstica. O próprio Hobbes sugere
isso ao afirmar que o clima de guerra nas relações entre os príncipes é
uma conseqüência da solução encontrada para o problema da desordem
doméstica. Neste caso, é através da postura ameaçadora do Leviatã que
o príncipe protege a indústria e os interesses de seus súditos.
A ideia da razão do príncipe como uma força social nas relações
internacionais é difundida pelo pensamento realista das Relações Inter-
nacionais na forma de um conceito: razão de Estado. Significa “a crença
em que, no que diz respeito às relações internacionais, os interesses do
Estado prevalecem sobre todos os outros interesses e valores”.13 Para os
pensadores realistas, esse princípio surge para legitimar um novo agente
político – o estado – em contraposição a uma organização social e polí-
tica universalista – o império habsburgo e a igreja universal.14 Trata-se,
evidentemente, de uma reação no plano das ideias aos princípios uni-
versalistas de uma sociedade organizada sob o ideal religioso do papa ou
político do imperador habsburgo. O conceito de razão do Estado é uma
ideia moderna que distingue o mundo imaginado pelos intelectuais da
idade média de novas práticas e estruturas sociais da modernidade.
O princípio ou a ideia da razão do Estado revela uma prática e
uma ética baseada nos interesses particulares de autoridades soberanas.
Mais tarde, os realistas complementaram a explicação desse padrão de
conduta ao indicar que para a realização desses interesses particulares,
algo era essencial: o poder. Nessa perspectiva das relações internacio-
nais, o que prevalece não é a ideia de sociedade, mas de uma luta cons-
tante entre príncipes pelo poder que lhes possibilita a realização dos
interesses particulares que mantêm uma ordem doméstica. O poder é

12  Cf. HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude, p. 85.


13  HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude, p. 31.
14  Cf. HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude, p. 31.

164
Raphael Spode

essencial porque poder significava para a mentalidade da época uma re-


lação social onde um domina e outro é dominado, um age em função do
outro, neste caso, o fraco age para a realização dos interesses do forte.
Assim, o conceito de razão de Estado representa a subjugação da-
queles princípios morais, normalmente aplicáveis ao comportamento de
indivíduos que desejam unir-se em sociedade ou buscam juntos realizar
os interesses comuns da comunidade, aos interesses específicos e con-
tingências de cada comunidade política. Resta uma certeza: Westphalia
e Leviatã são as duas criações antagônicas da modernidade, conforme
assegurou o professor Demétrio Magnoli:
Westfália e Leviatã são dois atos inaugurais da modernidade. Eles compartilham
uma experiência de libertação: a política deslindava-se da submissão prática
e ideológica ao poder imperial da Igreja. Da independência do Estado, os
soberanos reunidos em Munster e Osnabruck extraíram um princípio de
convivência na diversidade. Da mesma independência, Hobbes concluiu pela
inevitabilidade da guerra.15

Considerações finais
A paz de Westphalia é uma ilustre desconhecida. Embora a literatu-
ra corrente se refira com freqüência a um sistema westphaliano, os acon-
tecimentos envolvendo os congressos de Westphalia, de 1644 a 1648, são
muito pouco conhecidos. Neste ensaio, buscou-se desvendar um pouco
este período tenso e controverso, mas fundamental para a compreensão
da nossa realidade. No final, os congressos de Westphalia constroem a
atual estrutura social das relações internacionais, embora exista um gru-
po de teóricos que já falam de um sistema pós-Westphaliano.
A contradição da paz de Westphalia é em boa medida a contra-
dição do nosso tempo. Reafirmam-se constantemente os interesses e al-
gumas regras comuns à comunidade de nações. Nem por isso, as coisas
parecem dar certo e o conflito sempre ressurge. O próprio Hedley Bull
revelou que uma característica das relações internacionais modernas são
os seus elementos antagônicos: trata-se da sociedade anárquica, um con-
ceito contraditório, mas que revela um sistema internacional constituído
por antagonismos: algumas vezes conflito, outras vezes cooperação.

15  MAGNOLI, Demétrio (org.). A história da paz. São Paulo: Contexto, 2008, p. 13.

165
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

Para localizar a gênese dessa contradição westphaliana, podemos


afirmar que ela inicia quando são deslocados o imperador e o papa como
mediadores das relações entre os príncipes. Ao deslocá-los, os príncipes
passam a se relacionar sem um poder comum. Naturalmente, a descon-
fiança mútua passa a existir numa situação anárquica. Para o próprio
Hobbes: “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder co-
mum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela
condição a que se chama guerra”.16
Mesmo que essa tenha sido a solução encontrada para o confli-
to religioso, e os pactos de Westphalia tenham se revelado uma busca
conjunta por uma vida segura, confortável e feliz, o fato é que, passado
algum tempo do acordo geral, a distância entre os príncipes – agora fe-
chados em seus territórios – anulou parcialmente o pacto social criado
com base em interesses comuns.
É o mesmo que dois amigos distanciados por muito tempo. Um
começa a enxergar o outro de forma difusa, sem saber mais ao certo se
ainda resistem os mesmos interesses e ideais que haviam jurado promo-
ver juntos. Os seus interesses particulares é que passam a conduzi-los,
podendo, mais tarde, até levá-los a entrar em conflito quando buscarem
realizar certos interesses materiais numa vaga de emprego. Westphalia
demonstra como é incerto o sentido de irmandade na consciência hu-
mana e como para esse mesmo homem é difícil sustentar interesses e
valores comuns, quando somam-se tempo e distância.
Por outro lado, a atitude hostil e desconfiada não remete necessa-
riamente a uma natureza humana degenerada, mas essa postura é uma
reação natural à própria natureza incerta de um contrato realizado sem
um poder comum situado acima dos contratantes. O próprio Hobbes
esclarece quanto a isso:
Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte, e
uns confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição
de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor suspeita
razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum situado acima
dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele
não é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o
outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado
fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens,
se não houver o medo de algum poder coercitivo. O qual na condição de simples

16  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 75.

166
Raphael Spode

natureza, onde os homens são todos iguais, e juízes do acerto de seus próprios
temores, é impossível ser suposto. Portanto aquele que cumpre primeiro não faz
mais do que entregar-se a seu inimigo, contrariamente ao direito (que jamais
pode abandonar) de defender sua vida e seus meios de vida.17
Com o passar do tempo e na ausência de um poder centraliza-
dor, a própria definição de justiça desaparece, assim como os termos
originários da sociedade. Os príncipes passam a estar ligados somen-
te por um aspecto: qualquer quantidade de homens reunidos por um
interesse ou por um negócio. Neste caso, ao mesmo tempo em que a
noção de soberania associada ao Estado foi uma solução encontrada
para os conflitos religiosos, somada ao tempo revelou-se ambígua e até
mesmo contraditória.

Referências
ALVES, Marcelo. Leviatã o demiurgo das paixões. Uma introdução ao
contrato hobbesiano. Cuiabá: UNICEN Publicações e Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2001.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.
Dicionário de Política. Tradução de Carmen C. Varriale et al. 5. ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado, 2000.
BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São
Paulo: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2002. (Col. Clássicos IPRI, 5).
HASLAM, Jonathan. A necessidade é a maior virtude. O pensamento
realista nas relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LUIGI, Ferrajoli. A soberania no mundo moderno. Trad. Carlo Coccioli
e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MAGNOLI, Demétrio (org.). A história da paz. São Paulo: Contexto,
2008.

17  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 82.

167
AS DUAS FACES DA PAZ DE WESTPHALIA (1648)

TREATY OF OSNABRÜCK. Disponível em: http://www.homepages.


ucl.ac.uk/~ucrabjk/Hist4178readings/Treaty of Osnabruck/PoW-art-V-
VII-(14).jpg; VIII; I. Acessado em: 20 de agosto de 2008
THE RELIGIOUS PEACE OF AUGSBURG. Disponível em: http://www.
uoregon.edu/~sshoemak/323/texts/augsburg.htm; § 15. Acessado em:
20 de agosto de 2008.
WEDGWOOD, C.V. The thirty years war. Londres: Pimlico, 1992.

168
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
A PARTIR DO CONCEITO
HOBBESIANO DE ESTADO DE
NATUREZA
Conrado da Silveira Frezza1

Introdução
No decorrer do século XX, a teoria das Relações Internacionais
foi marcada pela influência de doutrinas conhecidas como “idealistas”.
Seu objetivo declarado era a construção de um projeto de paz por meio
da ética e da confiança entre os governos. Os horrores causados pela
1ª Guerra Mundial levaram os idealistas a tentar desenvolver uma ma-
neira de evitar os desastres causados pelos conflitos internacionais. Os
estudos e ações políticas derivadas dessa perspectiva constituíram a pri-
meira grande corrente de pensamento no campo científico da política
mundial. Porém, essa concepção perdeu muita credibilidade devido aos
seus insucessos no plano prático, dentre os quais destacam-se a derro-
cada de um de seus maiores símbolos, a Liga das Nações, e o início da 2ª
Guerra Mundial. Desta feita, uma nova corrente passou a se constituir
como oposição contra a aparente ingenuidade dos idealistas: a escola
Realista. Esta corrente passa a defender que a ética é, na verdade, um

1  Bacharel em Relações Internacionais e Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. E-mail para
contato: conradodasilveira@gmail.com

169
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

instrumento da política, e que é necessário reconhecer o uso da força


nas relações entre os Estados. Uma contribuição dada ao Realismo foi
a dos teóricos que buscaram compreender o cenário internacional por
meio de uma analogia entre as relações interestatais e o conceito de es-
tado de natureza formulado por Thomas Hobbes. Por meio da utilização
desse modelo, os autores da chamada “tradição hobbesiana” acredita-
vam ser possível explicar o caráter conflituoso e belicoso das relações
entre os Estados.
Contudo, nos debates teóricos atuais no campo das Relações In-
ternacionais, diversos estudiosos sustentam que esse tipo de concepção
não leva em conta toda a complexidade que caracteriza as relações entre
os Estados, e por isso criticam a possibilidade da utilização do conceito
hobbesiano de estado de natureza como um modelo de interpretação do
cenário internacional. Essa crítica parte daqueles que concordam, pelo
menos em parte, com a premissa fundamental da escola Inglesa: que a
política internacional, ainda que anárquica, ocorre dentro de uma socie-
dade de Estados. O problema levantado por esses autores seria que, ao
ressaltar o caráter belicoso e interesseiro dos Estados, tanto a “tradição
hobbesiana” como o próprio Thomas Hobbes estariam negligenciando
uma parcela importante do que existe nas relações entre os Estados: a
cooperação. De fato, as várias formas de cooperação interestatal, como
os intercâmbios comerciais, os sistemas de segurança coletiva e as orga-
nizações multilaterais, são bastante comuns na realidade internacional.
Assim, esses críticos da “tradição hobbesiana” alegam que, na verdade,
as relações internacionais não são caracterizadas apenas por guerras e
conflitos constantes, mas também por fenômenos de ordem, integração
e cooperação, e desse modo, o pensamento de Hobbes seria inapropria-
do para compreender as relações internacionais como um todo.
Mas neste ponto é preciso ter cautela: talvez a pertinência dessa
crítica deva-se menos à própria teoria hobbesiana do que à interpreta-
ção, redutora, que dela foi feita pela “tradição hobbesiana” das Relações
Internacionais. De fato, a maneira pela qual a “tradição hobbesiana” se
serviu do modelo de Hobbes, valorizando o conflito em detrimento da
possibilidade de certa ordem e cooperação entre os Estados, parece não
estar de acordo com o que o próprio autor diz em sua obra. É verdade
que Hobbes concebe o estado de natureza como a representação de um
“estado de guerra” permanente entre os indivíduos e faz uma analogia

170
Conrado da Silveira Frezza

desse conceito com o que acontece entre os soberanos. No entanto, pa-


rece que, se examinado com atenção, o modelo de estado de natureza
hobbesiano não exclui totalmente a possibilidade de cooperação entre
os indivíduos e, menos ainda, entre os Estados.
De acordo com Hobbes, o próprio estado de guerra, que para os
indivíduos no estado de natureza traz a morte prematura, para os Esta-
dos transforma-se muito mais raramente em batalha de fato, devido às
diferenças físicas que o autor estabelece entre o corpo humano e o corpo
político: os Estados são mais fortes, consistentes e têm maior dificul-
dade para se movimentar do que os indivíduos singulares. Essa maior
força e consistência dos atores no plano internacional faz com que eles
tenham mais dificuldade em superar seus inimigos, o que inspira maior
precaução aos eventuais atacantes, enquanto o retardamento para agir
evita a ação puramente passional. Além disso, parece que Hobbes ad-
mite existir a possibilidade, ainda que restrita, de haver situações nas
quais tanto os indivíduos no estado de natureza quanto os soberanos
no plano internacional devem agir de acordo com certas regras de com-
portamento, baseadas no próprio egoísmo humano: as leis de natureza.
Dessa forma, abre-se na teoria hobbesiana um caminho para justificar
como a cooperação pode ser, em determinados casos, uma estratégia
racional a ser seguida pelos Estados. E mais, Hobbes sustenta que as
guerras que visam o aumento incessante dos domínios estatais, ou que
são causadas apenas para servir de meio de ganho ou de locupletação,
representam um grande risco para o Estado que as empreende, e por
isso são enfaticamente criticadas pelo autor. Hobbes até mesmo fornece
exemplos de variadas formas de cooperação internacional e mostra-se
favorável às Ligas entre os Estados.
Portanto, para que a crítica feita contra a “tradição hobbesiana”
não seja estendida irrefletidamente à teoria política de Hobbes, causan-
do assim um sério equívoco de compreensão, é preciso, antes de mais
nada, apresentar os aspectos do conceito hobbesiano de estado de natu-
reza que permitem reconhecer e justificar a cooperação internacional.
Sabe-se que a disseminação de chavões interpretativos pode comprome-
ter muito a consistência e o rigor conceitual de um modelo de análise ou
de uma ciência. Um maior esclarecimento sobre o debate em questão só
tem a contribuir para o aperfeiçoamento do corpo teórico das Relações
Internacionais – o que é de suma importância, se levarmos em conta o

171
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

fato de que o estudo nessa área encontra-se em constante processo de


reavaliação de seus pressupostos e ainda demanda um grande esforço
para a constituição de um corpo teórico consistente. O método de abor-
dagem utilizado neste artigo foi o indutivo, no qual as análises das ca-
racterísticas dos fenômenos particulares serviram de base a conclusões
de caráter genérico. A técnica utilizada para a obtenção dos dados foi a
pesquisa bibliográfica, feita a partir de documentação indireta. Quanto
à análise e interpretação dos resultados, a pesquisa teve caráter qualita-
tivo, buscando oferecer uma apreciação global sobre as conclusões que
a investigação propiciou.

O conceito hobbesiano de Estado de natureza e seu uso como


um modelo de compreensão das Relações Internacionais
O filósofo político Thomas Hobbes (1588-1679) consolida em seu
tempo uma visão bastante original sobre a natureza humana2. Segundo
o autor, o homem é naturalmente insociável, competitivo, desconfiado, e
age freqüentemente de forma violenta, movido por paixões como a van-
glória e o medo3. Essa concepção de Hobbes sobre o comportamento do
ser humano surge, em parte, como conseqüência de algumas premissas
fundamentais estabelecidas pelo autor. Uma delas é a constatação de
que “o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é um bem para

2  “A concepção de homem como zoon politikon, animal social, defendida por Aristóteles em
sua obra A Política, permaneceu amplamente aceita sem maiores contestações até o século XVII.
Maquiavel, em seu O Príncipe (1513), inaugura uma forte corrente de oposição a essa pretensa
sociabilidade inerente à natureza humana. [...] A política como ciência, anunciada por Maquiavel,
consolida-se em Hobbes. O autor do Leviatã (1651) dedica a primeira parte de sua obra a uma
minuciosa descrição da natureza humana, na qual tanto a razão como as paixões são igualmente
reconhecidas enquanto faculdades humanas e analisadas livres de qualquer juízo de valor moral.
Trata-se de fazer aquilo que os pensadores políticos da Antigüidade e da Idade Média não haviam
ousado: ‘ler’ os homens sem idealizá-los, e assim constatar que as paixões predominam naturalmente
no agir humano [...]. Com Hobbes, as paixões emergem, revelam sua força incontida, mostram-se
contraditórias e insubmissas, destruidoras; enfim, fazem do homem um ser de conflito. O homem
natural hobbesiano é insociável, rebela-se contra os outros seus iguais, pois vê neles não auxílio,
mas espoliação. Isso porque é o egoísmo que move tais homens, e cada qual desconfia do outro,
percebe-o como um inimigo, são feras que se espreitam.” (ALVES, Marcelo. Leviatã o demiurgo das
paixões. Uma introdução ao contrato hobbesiano. Cuiabá: UNICEN Publicações; Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2001. p. 19-20, grifo do autor).
3  HOBBES, Thomas. The elemens of law natural and politic. 2. ed. New York: Oxford University
Press, 1999. p.78-80.

172
Conrado da Silveira Frezza

si mesmos.”4, isto é, que o ser humano é, neste sentido, inerentemente


egoísta. A isto o filósofo inglês adiciona que o maior bem do homem é a
sua vida, e conseqüentemente seu maior medo é o medo da morte, prin-
cipalmente da morte violenta5. O homem definido por Hobbes possui
também uma capacidade natural de raciocínio, é dotado de razão. Esta
faculdade consiste na capacidade de se realizar um cálculo instrumental
por meio do qual se estabelece a cadeia de causas e conseqüências dos
fenômenos, inclusive dos benefícios e danos que a ação humana pode
produzir6. Mas, dentre as características consideradas por Hobbes como
inerentes ao gênero humano, uma que talvez possa ser a mais chocante é
o apetite pelo poder, uma vez que o autor afirma existir “como tendência
geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e
mais poder, que cessa apenas com a morte”7. Todas essas características
são essenciais para compreender tanto o conceito hobbesiano de estado
de natureza quanto a maneira como se configura a relação que Hobbes
estabelece entre esse conceito e as relações entre os Estados.
Nesse sentido, o conceito de “paixão” desempenha um papel bas-
tante relevante na teoria política de Hobbes, pelo fato de as paixões in-
fluenciarem de forma decisiva a conduta dos indivíduos. O autor define
a paixão como um esforço humano – isto é, um pequeno princípio de
movimento interno – cuja origem está na sensação provocada pelos ob-
jetos exteriores ao homem. Quando esse esforço vai à direção de algo,
chama-se desejo; quando vai no sentido de evitar algo, chama-se aversão
– ambos os termos designando movimento –; e quando o esforço não
gera movimento em relação ao objeto, chama-se desprezo. O amor, por
exemplo, é o nome dado à paixão que designa um esforço no sentido de
se aproximar de um objeto quando já se está na presença do mesmo, en-
quanto o ódio indica um esforço no sentido de se evitar algo que esteja
presente8. As paixões são, portanto, causadas tanto pelo modo como é

4  HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 115, grifo do autor.
5  ALVES, Marcelo. Leviatã o demiurgo das paixões, p. 55.
6  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 51-56.
7  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 91.
8  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 57-58.

173
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

constituído o corpo humano9 como pelo contexto no qual os indivíduos


estão inseridos. Nota-se que a concepção de Hobbes sobre as paixões
decorre da visão determinista que ele tem sobre o mundo. Para o au-
tor, “[...] os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e
inclinação, derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa
cadeia contínua (cujo primeiro elo está na mão de Deus, a primeira de
todas as causas) [...]”10. Deste ponto de vista, todos os acontecimentos
(inclusive a ação humana) são definidos por relações de causa e efeito;
nenhum evento ocorre apenas pelo mero acaso, de forma espontânea ou
por meio de algum milagre, mas sim em virtude do contato com outros
corpos materiais em movimento11.
É baseado nessa concepção de homem que Hobbes elabora seu
conceito de estado de natureza. Trata-se de um modelo teórico que bus-
ca apresentar como seriam as relações entre os indivíduos – tal como
definidos pelo autor – não submetidos a um poder comum superior a
eles que fosse capaz de os manter a todos em respeito mútuo12. Nesse
contexto, além das premissas que Hobbes atribui ao gênero humano e
da influência que as paixões exercem em cada indivíduo, existem outros
fatores que contribuem para fomentar o conflito entre os homens: as
características objetivas do estado de natureza.
Uma dessas características é a igualdade natural entre os indiví-
duos, fundada no fato de todos terem igual capacidade de corpo e de
espírito. A igualdade de corpo se dá porque “quanto à força corporal o
mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta

9  As paixões existem em todo o gênero humano, mas manifestam-se de formas distintas nos
diferentes indivíduos, pois “dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em
constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos
apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens coincidam no desejo de um só
e mesmo objeto” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 58).
10  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 172.
11  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 33. Essa concepção é o fundamento que Hobbes utiliza para
criticar a possibilidade de existir o livre-arbítrio, que era amplamente defendido pela Cristandade
(ver HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 171-172). É importante lembrar que, ao contrário da
interpretação popularmente feita sobre o determinismo, ele não implica necessariamente na
impossibilidade do homem influenciar o futuro. Nesse sentido, um equívoco recorrente nas
análises feitas sobre a obra de Hobbes é a tendência de igualar o determinismo hobbesiano com
uma espécie de pessimismo ou fatalismo. Como ficará claro ao longo deste trabalho, Hobbes
certamente acredita na capacidade do homem, no sentido de ele ser capaz de promover melhorias
na sua própria vida e na vida da coletividade.
12  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 109.

174
Conrado da Silveira Frezza

maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados


pelo mesmo perigo”13. Nesse sentido, a igualdade entre os homens se
deve ao fato de todos estarem sujeitos ao maior dos males, a morte. Isso
revela o quanto o homem é frágil no estado de natureza, pois nessa si-
tuação a superioridade eventual que a força bruta pode atribuir a cada
um torna-se facilmente reversível, seja por uma estratégia ou por uma
união de esforços. Já a igualdade de espírito decorre da prudência, “por-
que a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual
igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente
se dedicam”14. Dessa igualdade de atributos deriva que todos têm igual
esperança de atingirem seus fins e, por isso, em virtude da escassez dos
bens, os homens são levados a competição, pois se tornam inimigos
sempre que desejam um mesmo objeto que não pode ser usufruído por
mais de um ao mesmo tempo. Dessa forma, os indivíduos no estado de
natureza vivem constantemente em uma situação de desconfiança recí-
proca. Nesse contexto, mesmo que um indivíduo não fosse ambicioso e
se contentasse com o que tem, a conduta mais racional a ser adotada por
ele seria atacar antes que fosse atacado, isto é, recorrer ao ataque pre-
ventivo, uma vez que no estado de natureza não há nenhuma garantia
de segurança contra aqueles que, “comprazendo-se em contemplar seu
próprio poder nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que
sua segurança exige”15. Outro fator que incita ao conflito é a tendência
do homem em buscar que os outros lhe atribuam uma reputação tão
digna como ele mesmo julga ter, “o que, entre os que não têm um poder
comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para
levá-los a destruir-se uns aos outros”16. Essas características objetivas
do estado de natureza contribuem para estimular as paixões, tais como
a vanglória, a desconfiança e o medo da morte violenta, as quais contri-
buem para fomentar o conflito entre os homens.
No modelo de estado de natureza descrito por Hobbes, o fato de
não existir um poder superior aos homens, capaz de assegurar o respei-

13  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 107.


14  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 107.
15  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 108. “Conseqüentemente esse aumento do domínio sobre os
homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido” (HOBBES,
Thomas. Leviatã, p. 108).
16  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 108.

175
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

to mútuo, gera uma situação na qual ninguém tem qualquer garantia


de segurança contra as prováveis intenções hostis de seus semelhantes
e, como conseqüência, todos vivem ameaçados pelo risco permanente
de morte violenta. Todos esses fatores fazem com que a vida do homem
no estado de natureza seja descrita por Hobbes como uma permanente
“condição de guerra de todos contra todos”17. Nessa situação, em virtu-
de de que, para o autor, a vida é o maior bem do homem, cada indivíduo
tem o direito de defender-se da maneira que julgar mais apropriada,
lançando mão de todos os meios que julgar convenientes a esse fim.
Como o estado de guerra gera entre os indivíduos um contexto de des-
confiança mútua, e é a vida que está em jogo, o homem tem direito a
tudo que eleger como conveniente à sua autopreservação, “incluindo os
corpos dos outros”18. O estado de natureza hobbesiano é descrito por
Norberto Bobbio de maneira concisa:
Esse terrível quadro consiste no seguinte: o desejo de poder numa situação na
qual todos são iguais na capacidade de se prejudicarem, na qual os bens são
insuficientes para satisfazer as necessidades de cada um e onde cada um tem o
direito natural a tudo, é um estado permanente de guerra.19
Dessa situação derivam ainda duas importantes conseqüências.
Uma delas é que no estado de guerra não há propriedade, uma vez que,
como todos têm direito a tudo que julgarem necessário à sua conserva-
ção, “só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e
apenas enquanto for capaz de conservá-lo”20. Além disso, no estado de
guerra não há qualquer noção de justiça: “as noções de bem e de mal, de
justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum
não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a
fraude são as duas virtudes cardeais”21. Essas condições fazem do estado

17  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110. Esse estado de guerra permanente que Hobbes afirma existir
no estado de natureza não significa que os homens estariam entregues a um combate violento
sem fim uns contra os outros. Na verdade, a guerra seria permanente no sentido de que a todo o
momento haveria para o homem o risco de espoliação e morte violenta, em virtude de existir entre
os indivíduos uma permanente disposição para o ataque; mas não que o conflito violento direto, a
batalha, ocorra sem trégua, incessantemente (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110).
18  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 113.
19  BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1991. p. 35.
20  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110.
21  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110.

176
Conrado da Silveira Frezza

de natureza uma situação que não permite ao homem obter qualquer


garantia de segurança ou prosperidade:
Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto;
conseqüentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das
mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções
confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam
de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do
tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um
constante temor e perigo de morte violenta.22
O conceito de estado de natureza serviu de base para Hobbes,
sobretudo, justificar a existência do Estado. Ao afirmar que, na ausência
de um poder soberano capaz de impor a ordem entre os súditos, a vida
humana seria “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”23, o autor
fornece uma forte justificativa para ressaltar a importância do estabe-
lecimento e da preservação do governo civil24. Este se apresenta como
a solução para a indesejável situação na qual o homem se encontra no
estado de natureza. O estabelecimento, por meio do Contrato Social,
de um poder soberano capaz de manter a paz entre os homens é, para
Hobbes, a única forma de superar a situação miserável que a “guerra de
todos contra todos” produz25. Quando o Estado é constituído e os indi-
víduos adquirem a condição de súditos, eles saem daquele contexto de
incerteza e violência existente no estado de natureza, e passam a viver
em sociedade e num clima de respeito mútuo, assegurado pelo poder
soberano. O modelo hobbesiano de estado de natureza desempenha,
assim, o papel de justificar a criação do Estado e, ao mesmo tempo, de
explicar a essência da soberania, já que a existência de um poder sobera-
no é requisito imprescindível para assegurar a paz entre os súditos.
O conceito de soberania é explicado, de forma ainda mais deta-
lhada, por meio de uma analogia estabelecida por Hobbes entre indiví-
duo e Estado. Já na introdução de sua principal obra, Leviatã, Hobbes
deixa claro que “aquele grande Leviatã a que se chama Estado, [...] não
é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que

22  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 109.


23  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 109.
24  Nesse sentido, ver, por exemplo JOHNSON, Paul J. Death, Identity and the Possibility of a
Hobbesian Justification for World Government. In: AIRAKSINEN, Timo; BERTMAN, Martin A.
Hobbes: War Among Nations. Aldershot: Avebury, 1989. p. 73-74.
25  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 141-144.

177
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

o homem natural”26. Dessa semelhança entre corpo humano e corpo


político27, e do fato de entre os Estados também não haver, assim como
não há entre os indivíduos no estado natural, um poder comum que
assegure eficazmente o respeito mútuo, deriva que a situação entre os
Estados é similar àquela existente entre os homens no estado de natu-
reza – posição que resultaria em ambos os casos em uma “condição de
guerra perpétua”. Além disso, cada Estado, assim como cada indivíduo
no estado de natureza, tem absoluta liberdade de fazer tudo o que julgar
mais favorável aos seus interesses:
Porque tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perpétua de cada
homem contra seu vizinho, sem que haja herança a transmitir ao filho nem a
esperar do pai nem propriedade de bens e de terras, nem segurança, mas uma
plena e absoluta liberdade de cada indivíduo; assim também, nos Estados que
não dependem uns dos outros, cada Estado (não cada indivíduo) tem absoluta
liberdade de fazer tudo o que considerar (isto é, aquilo que o homem ou
assembléia que os representa considerar) mais favorável a seus interesses. Além
disso, vivem numa condição de guerra perpétua, e sempre na iminência da
batalha, com as fronteiras em armas e canhões apontados contra seus vizinhos
a toda a volta.28
A partir dessas semelhanças, apontadas por Hobbes, entre a
condição natural do homem e as relações entre os Estados, diversos
estudiosos resgataram o conceito de estado de natureza hobbesiano,
passando a adotá-lo e a interpretá-lo como um modelo de compreen-
são das Relações Internacionais29. O vigor do modelo hobbesiano era
resultado de sua capacidade de definir os motivos pelos quais os Es-
tados agiam egoisticamente, e de fornecer uma perspectiva de análise

26  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 27.


27  Para melhor compreender essa analogia feita por Hobbes, cabe lembrar que o autor apresenta
uma visão mecanicista e materialista do mundo, ou seja, segundo ele não existem substâncias
incorpóreas, tudo o que existe é matéria e movimento. Nesse sentido, Hobbes chega a afirmar
que “o espírito não será outra coisa senão um movimento em certas partes do corpo orgânico”
(MONTEIRO, João Paulo. Vida e obra. In: HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p.10). Baseado nessa
interpretação sobre o mundo é que ele pode afirmar que, assim como o homem, o Estado possui
inclusive vida. É, portanto, partindo desse raciocínio que o autor chega à conclusão de que o Estado
“não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para
cuja proteção e defesa foi projetado” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 27).
28  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 174.
29  Dentre esses autores, ver, por exemplo, MALNES, Raino. The hobbesian theory of international
conflict. New York: Oxford University Press, 1993. Ver também DONNELLY, Jack. Realism and
international relations. Cambridge: University Press, 2000. p. 13-15; 34; 81; 96; 100.

178
Conrado da Silveira Frezza

que ressaltasse a instabilidade do sistema internacional, marcado pela


anarquia e pela competição30. O modo de interpretar a política mun-
dial inspirado no modelo hobbesiano ganhou bastante força pelo fato
de ter servido de base para diversos trabalhos de autores vinculados à
escola Realista de interpretação das Relações Internacionais. De acordo
com Jack Donnelly, o Leviatã “apresenta um excelente exemplo de um
forte realismo que confere, impetuosamente, igual relevância ao egoís-
mo e à anarquia”31. Realmente, a teoria política de Hobbes permite, em
um certo sentido, esse tipo de “concepção realista” sobre a natureza das
relações internacionais, pois o autor estabelece uma diferença funda-
mental entre as relações no interior dos Estados e as relações entre os
Estados: no primeiro caso, os cidadãos vivem em uma certa harmonia
de interesses porque o respeito mútuo é assegurado pelo poder estatal;
no segundo caso, cada soberano precisa defender seu Estado das amea-
ças externas, dispondo de todos os meios que estiverem ao seu alcance,
inclusive da violência:
Para ser imparcial, ambos os ditos são certos – que o homem é um deus para o
homem, e que o homem é lobo do homem. O primeiro é verdade, se compararmos
os cidadãos entre si; e o segundo, se cotejamos as cidades. Num, há alguma
analogia e semelhança com a Divindade, através da Justiça e da Caridade, irmãs
gêmeas da paz; no outro, porém, as pessoas de bem devem defender-se usando,
como santuário, as duas filhas da guerra, a mentira e a violência – ou seja, para
falar sem rodeios, recorrendo à mesma rapina das feras.32
A perspectiva do Realismo passou então a predominar no estudo
da política mundial, sobretudo após o declínio da corrente chamada pe-
los realistas de “idealista” ou “utópica”, que estava em voga no período
do entre-guerras33. Nesta época, a política mundial foi marcada por uma
acentuada atitude moralista e legalista34, baseada na idéia de que a paz

30  MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais: correntes e
debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 23.
31  DONNELLY, Jack. Realism and international relations, p. 13-14. Tradução livre. No original:
“presents a fine example of a strong realism that gives roughly equal weight to egoism and anarchy”.
32  HOBBES, Thomas. Do cidadão. 3. ed. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 3-4. Nesta obra, como lembra Renato Janine, Hobbes chama o que hoje dizemos
“Estado” de cidade, em um sentido que nada tem a ver com sua extensão geográfica. Portanto, nessa
passagem, Hobbes está claramente se referindo às relações entre os Estados.
33  MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais, p. 3-4.
34  HOFFMANN, Stanley. Politics among the nations; the struggle for power and peace. The Atlantic.
No. 256, p. 131-134, nov. 1985 (publicação sem número de páginas). Disponível em: <http://find.

179
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

no mundo poderia ser alcançada pela conscientização de que os Estados


não deveriam mais recorrer à força e à agressão nas suas relações35. Po-
rém, a credibilidade dessa concepção foi seriamente abalada pela eclo-
são da 2ª Guerra Mundial, que enfatizou a lógica da sobrevivência e fez
com que o pensamento normativo fosse visto como ingênuo e perigoso,
por subestimar o risco de uso da violência entre os Estados36. Dessa for-
ma, na medida em que o Realismo passou a se constituir como reação a
essa tendência moralista e legalista existente na política mundial, a com-
preensão do sistema internacional como análogo ao estado de natureza
hobbesiano passou a ganhar força no campo de conhecimento sobre
as Relações Internacionais. A vinculação do modelo hobbesiano com o
Realismo político é destacado por Michael C. Willians:
O nome de Thomas Hobbes e a tradição do Realismo têm se tornado quase
sinônimos nas discussões dentro das Relações Internacionais. De fato, a
afirmativa de que a política internacional é melhor descrita como um anárquico
“estado de natureza Hobbesiano” continua a ser um dos proeminentes e
evocativos dispositivos retóricos comuns e critério analítico no estudo da
política mundial, apesar de sê-lo em formas que variam para cada geração.37

galegroup.com>. Acesso em: 3 jan. 2007.


35  Com o fim da 1ª Guerra Mundial, surge no cenário mundial uma sensação generalizada de
insegurança com relação à possibilidade de um novo conflito com conseqüências desastrosas,
como as que abalaram o mundo entre 1914 a 1918. Desta perspectiva, surgem concepções que
refletem a tentativa idealista de se alcançar a paz mundial por meio de um consenso de que as
agressões bélicas seriam ilegítimas. No plano prático, o então presidente dos Estados Unidos,
Woodrow Wilson, apresenta em discurso perante sessão conjunta do Congresso dos EUA, em 8
de janeiro de 1918, 14 pontos que julgava necessário serem cumpridos pelos Estados para que
fosse estabelecida uma ordem mundial justa e estável. Segundo Wilson, os dias das conquistas
e da ampliação territorial, como também os dos acordos secretos, estariam superados; as causas
da guerra deveram-se às violações de direitos e, para ter segurança, era preciso impedir que isso
voltasse a acontecer. Para Wilson, isso tornaria o mundo um lugar adequado para se viver, em
particular para as nações amantes da paz, que desejam determinar as próprias instituições, contra o
uso da força e da agressão nas relações internacionais (ARANTES, Abelardo. 14 Pontos de Wilson:
aula ministrada no Instituto Catarinense de Diplomacia. 24 set. - 29 out. de 2005. Notas de Aula).
36  MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais, p. 3-4.
37  WILLIANS, Michael C. The Realist Tradition and the Limits of International Relations.
Cambridge: University Press, 2005. p.19. Tradução livre. No original: “The name of Thomas
Hobbes and the tradition of Realism have become virtually synonymous in discussions within
International Relations. Indeed the claim that international politics is best described as an anarchic
‘Hobbesian state of nature’ continues to be one of the prominent and evocative common rhetorical
devices and analytic touchstones in the study of world politics, much as it has in varying forms for
generations.”

180
Conrado da Silveira Frezza

Um dos realistas mais conhecidos entre aqueles que se inspiraram


no modelo hobbesiano foi Edward Hallet Carr (1892-1982). Pouco antes
da II Guerra Mundial, Carr, desapontado com as conseqüências nefas-
tas ocasionadas pela aplicação prática dos preceitos liberais na política
mundial, inaugura uma forte reação contra a corrente que chamou de
“Idealismo”38. Segundo Carr, é fundamental reconhecer que a ética no
mais das vezes é utilizada como um instrumento na política mundial, e
que o poder é um fator determinante nas relações internacionais. Na sua
obra Vinte anos de crise, o autor afirma que “o poder militar, sendo um
elemento essencial na vida do Estado, torna-se não só um instrumento,
mas um fim em si mesmo”39. Essa concepção revela-se como conseqü-
ência do uso que Carr fez da teoria política hobbesiana para conceber as
relações internacionais:
[...] o exercício do poder sempre parece gerar o apetite por mais poder. [...] O
nacionalismo, tendo atingido seu primeiro objetivo sob a forma de unidade e
independência nacional, se transforma quase automaticamente em imperialismo.
A política internacional confirma amplamente os aforismos [...] de Hobbes, de
que o homem ‘não pode assegurar o poder e os meios de viver bem aquilo que
possui sem a aquisição de mais’. As guerras começadas por motivos de segurança
tornam-se, rapidamente, guerras de agressão e de locupletação.40
Outro realista que usa a teoria política de Hobbes em sua análise
sobre as relações internacionais é Hans Morgenthau (1904-1980). Na
obra Política entre as nações, Morgenthau lança as bases do que para ele
seriam os fundamentos do realismo político, contrapondo esta aborda-
gem à concepção liberal sobre política externa que predominava em sua
época41. Na referida obra, o autor diz que Hobbes atribui ao homem

38  HASLAM, Jonathan. No virtue like necessity. Realist thought in international relations since
Machiavelli. Great Britain: Yale University Press, 2002. p. 186-187. Nesta mesma passagem, Haslam
aponta que, ironicamente, Carr já havia sido um idealista: “Some of the best cynics were once great
but later deeply disappointed idealists. Carr fits this picture.”
39  CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. Tradução de Luiz Alberto Figueiredo
Machado. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2001. p. 146.
40  CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise, p. 147-148.
41  HOFFMANN, Stanley. Politics among the nations; the struggle for power and peace (publicação
sem número de páginas).

181
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

[...] um ímpeto pela expansão que desconhece quaisquer limites racionais,


que se alimenta de seus próprios êxitos e que, se não for detido por uma força
superior, se estenderá até os últimos confins do mundo político42.
Realmente, como afirma Noel Malcolm, “tanto Carr quanto Mor-
genthau viram Hobbes como um advogado de um tipo de política de
poder internacional que precisa necessariamente envolver guerras de
expansão e agressão”43. Assim, esses autores realistas caracterizaram a
teoria hobbesiana como uma posição extrema, que defenderia a ine-
vitabilidade do expansionismo no âmbito internacional. Essa imagem
criada sobre a teoria hobbesiana suscitou severas críticas por parte da
escola Inglesa de interpretação das Relações Internacionais.

A crítica feita pela Escola Inglesa contra o uso do


conceito hobbesiano de Estado de natureza nas Relações
Internacionais
Embora o conceito hobbesiano de estado de natureza tenha in-
fluenciado diversas gerações de estudiosos, o seu uso nas relações inter-
nacionais tem sofrido pesadas críticas. Diante da evidência de uma certa
ordem e cooperação entre os Estados, sustenta-se em geral que o pen-
samento de Hobbes é inadequado como modelo de compreensão das
Relações Internacionais, justamente por negligenciar esses elementos de
cooperação e ordem44. De acordo com Hedley Bull, no estado de nature-
za hobbesiano “não há regras legais ou morais”45 e, conseqüentemente,
Hobbes conceberia o cenário internacional apenas como um estado de
guerra46. Desse modo, para Bull, os autores que descrevem o sistema de

42  MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Tradução de
Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2003. p. 116.
43  MALCOLM, Noel. What Hobbes really said. The National Interest, Vol. 81, Fall 2005, p.122-
127, 2005. (publicação sem número de páginas). Disponível em: <http://find.galegroup.com>.
Acesso em: 16 fev. 2006. Tradução livre. No original: “both Carr and Morgenthau saw Hobbes as an
advocate of a kind of international power politics that must necessarily involve wars of expansion
and aggression […]”.
44  MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais: correntes e
debates, p. 40.
45  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Editora Universidade
de Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. p. 58.
46  “[os Estados], da mesma forma que os indivíduos, só são capazes de uma vida social ordenada
se, nas palavras de Hobbes, sentem respeito e temor em relação a um poder comum. No caso do

182
Conrado da Silveira Frezza

Estados a partir do modelo hobbesiano de estado de natureza o fazem


dando uma ênfase exagerada ao conflito e negligenciando os elementos
de cooperação presentes na realidade internacional. Assim, ao falar das
principais correntes doutrinárias que buscam compreender o sistema de
Estados, Bull apresenta, de forma crítica, a “tradição hobbesiana”:
A tradição hobbesiana descreve as relações internacionais como um estado de
guerra de todos contra todos, um cenário de luta em que cada estado se coloca
contra todos os demais. Para os hobbesianos as relações internacionais consistem
no conflito entre os estados, lembrando um jogo totalmente distributivo, de
soma zero: os interesse de cada estado excluem os interesses de todos os outros.
Deste ponto de vista, a atividade internacional mais típica, e que melhor define
o quadro das relações entre os estados, é a guerra. A paz corresponde a um
período de recuperação da última guerra e de preparação para a próxima47.
Essa crítica fundamenta-se na percepção de que, na realidade,
os Estados muitas vezes unem esforços e colaboram para atingir fins
comuns, e que suas relações não são caracterizadas apenas pelo anta-
gonismo e pela ameaça constante de conflito violento, mas também são
limitadas por regras, valores e instituições mantidas em comum48. Por
conseguinte, a “tradição hobbesiana” estaria equivocada ao entender
que os Estados, em meio a um clima de guerra generalizada, se opõem
completamente uns aos outros. Nestes termos, Bull sintetiza uma obje-
ção que é freqüentemente feita contra o uso do conceito hobbesiano de
estado de natureza nas relações internacionais. Essa crítica parte daque-
les que concordam, pelo menos em parte, com o pressuposto da escola
Inglesa segundo o qual “a política internacional ocorre dentro de uma
sociedade de estados”49.

próprio Hobbes e dos seus sucessores, a analogia com a sociedade nacional assume simplesmente a
forma da afirmativa de que os estados, ou os príncipes soberanos, como os indivíduos que vivem
fora da jurisdição de um governo, encontram-se no estado natural, que é o estado de guerra.
(BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 57, grifo nosso).
47  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 32-33 (grifo nosso).
48  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 35-37. É importante ressaltar que, apesar de
defender a existência de uma sociedade internacional, Bull não nega que a anarquia é também
uma realidade entre os Estados: “É óbvio que, ao contrário dos indivíduos que vivem no seu
interior, os estados soberanos não estão sujeitos a um governo comum, e que neste sentido existe
uma ‘anarquia internacional’ [...]” (BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 57).
49  Bull adota como fundamento de sua análise sobre a política mundial a concepção de que o
cenário internacional é caracterizado por uma sociedade de Estados. Para Bull, essa idéia deriva
essencialmente da tradição grociana de interpretação das relações internacionais: “A chamada
tradição grociana ou internacionalista coloca-se entre a realista e a universalista, e descreve a política
internacional em termos de uma sociedade de estados ou sociedade internacional. Diferentemente

183
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

Marcel Merle é exemplo de um desses autores. Também ele afirma


que aqueles que utilizaram o modelo hobbesiano de estado de natureza
nas Relações Internacionais deram destaque em excesso ao conflito:
Antes de mais nada, é exagerado só reter, na análise das relações internacionais,
os estados de tensão: como acontece em qualquer outro tipo de sociedade, estes
alternam com fases de solidariedade. Ao rol das guerras poderíamos opor a lista
dos tratados, das conferências e agora das instituições permanentes50.
De acordo com Merle, essa ênfase conferida ao conflito por aque-
les que utilizaram o conceito hobbesiano de estado de natureza é reforça-
da pelo fato de que, segundo o próprio Hobbes, nesse modelo imperaria
a “ausência de regras comumente aceitas pelos poderes soberanos”51, já
que, na teoria hobbesiana, “o estado de natureza subsiste integralmente
nas relações entre as Repúblicas”52. Outro desses críticos é Charles Beitz,
o qual afirma que, tanto para Hobbes quanto para os realistas (ou “céti-
cos”), que utilizaram o modelo de estado de natureza hobbesiano, não
existiria nas relações internacionais princípios efetivos de moralidade53
e também não haveria a possibilidade de cooperação que fosse capaz
de reduzir o conflito entre os Estados54. Beitz até mesmo declara que
a cooperação é irracional no estado de natureza hobbesiano, uma vez
que nessa situação os preceitos morais admitidos por Hobbes (as leis de
natureza) não são aplicáveis à ação, devido à falta de um poder superior
que garanta que os outros também cumprirão tais preceitos55.

da tradição hobbesiana, os grocianos sustentam que os estados não estão empenhados em uma
simples luta, como gladiadores em uma arena, mas há limites impostos a seus conflitos por regras e
instituições mantidas em comum.” (BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 34-35).
50  MERLE, Marcel. Sociologia das relações internacionais. Tradução de Ivonne Jean. Brasília:
Universidade de Brasília, 1981. p. 25.
51  MERLE, Marcel. Sociologia das relações internacionais, p. 19.
52  MERLE, Marcel. Sociologia das relações internacionais, p. 19 (grifo nosso).
53  BEITZ, Charles R. Political Theory and International Relations. Princeton: Princeton University
Press, 1979, p. 28-31.
54  BEITZ, Charles R. Political Theory and International Relations, p. 37.
55  “The problem posed by Hobbes’s theory is how to create conditions in which the laws of nature
would be effective, that is, would oblige “in foro externo.” Hobbes thinks that a common power is
needed to assure each person that everyone else will follow the laws of nature. The dilemma is that
creating a common power seems to require cooperation in the state of nature, but cooperation, on
Hobbes’s account, would be irrational there. (Who could rationally justify taking the first step?)
There appears to be no exit from the state of nature despite the fact that any rational person in that
state could recognize the desirability of establishing a common power and bringing the state of
nature to a close. Thus, while there are moral principles or laws of nature in the state of nature, they

184
Conrado da Silveira Frezza

É importante ressaltar o propósito dessas críticas lançadas contra


a utilização do conceito hobbesiano de estado de natureza nas Relações
Internacionais. Elas baseiam-se na mesma exigência tão freqüentemen-
te feita pelos próprios realistas: a de ser fiel ao que realmente acontece56.
Segundo esses críticos, como a cooperação internacional é um fato de
observação corriqueira, é evidente que a luta é somente parte da reali-
dade que pode ser encontrada no cenário internacional, isto é, o conflito
não é algo imperioso como alegaria a “tradição hobbesiana”. Ou seja,
a interpretação oferecida pela “tradição hobbesiana” não contemplaria,
como tão vigorosamente reivindica, toda a realidade que constitui as
relações entre os Estados. É por isso que para os críticos o conceito ho-
bbesiano de estado de natureza não seria apropriado para compreender
as relações internacionais na sua completude, na sua inteireza.
Mas antes de acolher inadvertidamente essa conclusão, é preciso
fazer algumas importantes considerações. Em primeiro lugar, grande
parte da crítica em questão é feita contra a “tradição hobbesiana”, ou
seja, contra o conjunto de autores que usou o conceito hobbesiano de
estado de natureza para interpretar as relações internacionais. A rigor,
não se pode confundir uma determinada interpretação feita sobre um
autor com o pensamento do próprio autor. Por isso, cabe indagar pri-
meiramente em que medida a interpretação do conceito de estado de
natureza hobbesiano levada a cabo pela “tradição hobbesiana” faz jus
ao pensamento proposto pelo próprio Hobbes. De maneira mais direta,
cabe indagar se o conceito hobbesiano de estado de natureza, quando
utilizado pelo próprio Hobbes para explicar as relações entre os Estados,
realmente não admite a possibilidade de cooperação entre eles.

do not bind to action in the absence of a common power.” (BEITZ, Charles R. Political Theory and
International Relations, p. 31).
56  Carr, por exemplo, afirma que a essência mesma da ciência está na sua capacidade em identificar
a realidade e distingui-la daquilo que não passa de mera aspiração. Para o autor, qualquer ciência
só pode ser assim chamada se puder “distinguir a análise do que é, da aspiração do que deveria ser”
(CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise, p. 13).

185
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

Aspectos do conceito hobbesiano de Estado de natureza


que permitem reconhecer e justificar a cooperação
internacionais
Para responder se realmente existe, segundo Hobbes, a possibili-
dade de haver cooperação internacional, é interessante retomar tanto as
semelhanças quanto as diferenças que o autor estabelece entre as rela-
ções humanas no estado de natureza e as relações interestatais. Uma das
principais correlações estabelecidas por Hobbes entre essas duas situa-
ções consiste em identificar a independência inerente ao indivíduo no
estado de natureza com a independência própria dos Estados. Segundo
o autor, assim como os indivíduos não submetidos a um poder comum,
capaz de os manter a todos em respeito, gozam de uma liberdade ilimi-
tada, também os soberanos, que não são restringidos por qualquer en-
tidade humana mais elevada, vivem em uma condição de completa in-
dependência – o que é uma condição necessária à própria existência do
Estado, entendido como unidade soberana. Para Hobbes, é justamente
essa situação de independência entre os indivíduos – somada às carac-
terísticas inerentes ao homem – que os coloca uns contra os outros, ou
seja, que gera entre eles uma situação permanente de guerra. Logo, o
estado de guerra, definido por Hobbes como o “lapso de tempo durante
o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida”57, não
está presente apenas nas relações entre os indivíduos no estado de natu-
reza: está também presente nas relações entre os Estados. Uma das pas-
sagens mais citadas para apresentar essa correspondência aparece em
um ponto do Leviatã em que Hobbes busca refutar as possíveis críticas
de que seu modelo de estado de natureza fosse implausível ou inconce-
bível. O autor já havia utilizado como exemplos de estado de natureza a
vida de povos selvagens da América e a situação de guerra civil. Mesmo
reconhecendo que a vida humana possa jamais ter sido a vida no estado
de natureza de forma predominante no mundo inteiro, Hobbes dá um
exemplo de uma situação na qual, em todos os tempos, existiu um esta-
do de guerra, que constitui uma das principais características do estado
de natureza. O exemplo em questão é o das relações entre as pessoas
dotadas de autoridade soberana:

57  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 109.

186
Conrado da Silveira Frezza

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se


encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos, de qualquer
modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana,
por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação
e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos
no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de
seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que
constitui uma atitude de guerra. Mas como através disso protegem a indústria
de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha
a liberdade dos indivíduos isolados.58
De acordo com a passagem citada, cada Estado, “por causa de sua
independência”, está com relação aos outros Estados em uma situação
de guerra, assim como os indivíduos estão entre si no estado de nature-
za. No entanto, Hobbes estabelece um limite a essa analogia: a constante
rivalidade existente entre os Estados não causa os mesmos resultados
caóticos que o estado de natureza traz aos indivíduos. O autor realmen-
te não nega que existam diferenças significativas entre os dois casos.
Como afirma Noel Malcolm: “A famosa analogia entre indivíduos no
estado de natureza e Estados na arena internacional nunca é um parale-
lismo estrito no argumento de Hobbes”59.
Essa diferença entre o conflito dos indivíduos sem Estado, e aque-
le entre os Estados, só pode ser compreendida a partir da distinção que
Hobbes faz entre guerra e batalha: a guerra é a situação na qual existe
uma tendência, um risco permanente de combate físico; a batalha é o
próprio combate, o ato de lutar. Segundo Hobbes, “a natureza da guerra
não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante
todo o tempo em que não há garantia do contrário”60. A questão é que,
como será apontado, a passagem da guerra para a batalha é muito mais
iminente entre os indivíduos no estado de natureza do que entre os Esta-
dos: no caso de não haver governo entre os homens, estes ficam sujeitos
a um grande perigo de morte, pois a transição da guerra para a batalha
acontece de forma muito mais constante; já o estado de natureza entre
entidades soberanas é marcado por uma maior ponderação, e por isso
não leva os Estados freqüentemente à batalha e à “morte violenta”. De

58  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110.


59  MALCOLM, Noel. What Hobbes really said (publicação sem número de páginas). Tradução
livre. No original: “The famous analogy between individuals in the state of nature and states in the
international arena is never a strict parallelism in Hobbes’s argument […]”.
60  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 109.

187
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

fato, na descrição que Hobbes fornece sobre as relações entre os sobe-


ranos, apesar da atitude hostil, não há exatamente movimentos de ata-
que entre eles; parece que predomina nessa descrição muito mais uma
atitude de defesa, uma vez que Hobbes atribui aos fortes, guarnições e
canhões a função de guardar, proteger, as fronteiras de seus reinos. No
contexto, até mesmo a referência ao uso de espiões parece defensiva:
tudo indica que se trata de espionar para não ser surpreendido pelo ata-
que dos Estados vizinhos e não para melhor atacá-los.
Segundo Renato Janine Ribeiro, essa menor incidência de bata-
lhas entre os soberanos do que entre os indivíduos em estado natural,
segundo a teoria hobbesiana, se deve ao fato de que os Estados com-
portam um grande número de súditos e, por isso, são unidades “mais
consistentes e mais fortes” do que os indivíduos singulares. Estes, por
outro lado, são seres frágeis e bastante vulneráveis ao ataque dos inimi-
gos. Por isso, entre os indivíduos no estado de natureza, a superioridade
eventual que a força proporciona pode ser facilmente revertida por um
ataque estratégico, afinal, até o mais forte precisa dormir. Mas no pla-
no internacional os Estados não dormem61, possuem “maior estatura e
força”62 do que os indivíduos particulares e estão permanentemente com
as “armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro”. Isso inspira en-
tre os Estados maior precaução aos eventuais atacantes devido à maior
dificuldade em superar o inimigo, e faz com que seja “precisamente a
ameaça recíproca de guerra que lhes permite não se entregar às batalhas
perpétuas”63. É como se existisse entre os Estados um sistema natural de
dissuasão ou deterrência, por meio do qual o conflito é diminuído pelo
fato dos agentes serem mais consistentes.

61  No Do cidadão, Hobbes comenta que durante o “tempo em que o monarca dorme […] cessam
os atos de mando, mas o poder permanece”. Assim, ao contrário dos indivíduos no estado de
natureza, que ficam vulneráveis durante seu sono, os Estados estão, em regra, permanentemente
em situação de alerta. Isso gera um certo desestímulo a um Estado que pretendesse atacar outro
Estado, pois nesse caso o agressor não contaria com o elemento da surpresa proporcionado pelo
sono do seu adversário (HOBBES, Thomas. Do cidadão, p. 131-132).
62  HOBBES, Thomas. Leviatã. p. 27.
63  RIBEIRO, Renato Janine. État de nature et relations internationales dans la pensée de Thomas
Hobbes, [2005?]. Disponível em: <http://www.renatojanine.pro.br/LEstrangeira/etatdenature.
html>. Acesso em: jun. 2007. (publicação sem número de páginas). Tradução livre. No original:
“c’est précisément la menace réciproque de guerre qui les permet de ne pas se livrer à des batailles
perpétuelles”.

188
Conrado da Silveira Frezza

Além disso, existe até mesmo uma diferença puramente física a


ser considerada. Como foi dito anteriormente, para Hobbes, tudo o que
existe é matéria e movimento e o comportamento do homem é influen-
ciado pelo modo como é constituído seu corpo. O Estado, assim como
o homem, também é dotado de corpo, embora existam diferenças signi-
ficativas entre o corpo humano e o corpo político: ao primeiro, Hobbes
atribui uma maior tendência de empreender ações rápidas, enquanto ao
segundo o autor atribui uma maior imobilidade. Essa diferença se deve,
em parte, ao fato das ações de um indivíduo colocarem em risco apenas
sua própria vida, enquanto as atitudes dos soberanos estão sujeitas a
vários tipos de restrições de ordem política, como em uma assembléia,
por exemplo, que depende da aprovação de várias pessoas para fazer o
Estado agir, ou das ações de um monarca, que devem levar em conta
uma série de circunstâncias e fatores – ainda que de fato possa acontecer
de um monarca agir impulsivamente, mas, ainda assim, essa não seria a
regra. Nesse sentido, Ribeiro afirma:
A guerra entre os indivíduos era marcada por um movimento ininterrupto,
caótico, frenético, não concedendo nenhuma trégua, sem descanso; mas para
falar dos Estados Hobbes emprega palavras que salientam a imobilidade dos
atores: os reis são como estátuas “na situação e atitude dos gladiadores, com
as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro” (cap. XIII, p. 126). A
situação é longe de ser feliz, mas uma relativa imobilidade prevalece aqui sobre
a mobilidade, e é justamente o que distingue a batalha quase-perpétua inter
homines, levando rapidamente à morte violenta, da guerra internacional, a qual
pode ser mais ou menos contemporizada.64
É evidente que um Estado tem bem maior dificuldade, se com-
parado a um indivíduo, em se movimentar para agir. Por conseguinte,
os Estados acabam tendo mais tempo de ponderar suas ações, e esse
retardamento evita a ação puramente passional. Isso diminui a probabi-
lidade dos soberanos agirem sob a influência, por exemplo, da vanglória
ou do ódio. Ainda assim, a falta de um poder comum acima dos Esta-

64  RIBEIRO, Renato Janine. État de nature et relations internationales dans la pensée de Thomas
Hobbes (publicação sem número de páginas). Tradução livre. No original: “La guerre entre les
individus était marquée par un mouvement ininterrompu, chaotique, frénétique, ne leur accordant
nul répit, nul repos; mais pour parler des États Hobbes emploie des mots qui soulignent l’immobilité
des acteurs: les rois sont comme figés ‘dans la situation et la posture des gladiateurs, leurs armes
pointées, les yeux de chacun fixés sur l’autre’ (chap. XIII, p. 126). La situation est loin d’être heureuse,
mais une relative immobilité prévaut ici sur la mobilité, et c’est justement ce qui distingue la bataille
quasi-perpétuelle inter homines, menant rapidement à la mort violente, de la guerre internationale,
à laquelle on peut plus ou moins s’accomoder.” (grifo do autor).

189
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

dos continua sendo um fator que torna o conflito propício e, por isso,
quando os interesses vitais dos soberanos estiverem em jogo, o estado
de guerra internacional tem grande chance de degenerar em batalha. O
que deve ficar claro é que, para Hobbes, o conflito internacional ocorre
com menor freqüência do que o conflito no seu modelo de estado de
natureza entre os homens, por existirem menos fatores que impelem
os Estados para o combate direto, para a batalha. Conseqüentemente
é possível que para Hobbes haja uma certa ordem, ainda que tensa, nas
relações internacionais65.
Poder-se-ia argumentar que, apesar dessas considerações, a con-
cepção de Hobbes sobre as relações internacionais ainda careceria de
um parâmetro objetivo que orientasse a conduta dos soberanos, cuja
existência pudesse fazer com que fosse efetivamente diminuída a pro-
babilidade de conflito. De fato, essa é a objeção que Bull faz ao afirmar
que “a prescrição hobbesiana correspondente é a de que o estado tem
liberdade para perseguir suas metas com relação aos outros estados,
sem quaisquer restrições morais ou legais.”66. Mas esse aparente quadro
de completa falta de moralidade nas relações internacionais parece não
levar em conta a existência de um conjunto específico de regras de com-
portamento que Hobbes diz se aplicar tanto no estado de natureza dos
indivíduos como na relação entre os soberanos. Essas normas de condu-
ta são as “leis de natureza”:

65  Renato Janine Ribeiro chega a ir além: ele propõe que, em Hobbes, o estado de guerra entre os
soberanos não só transforma-se com pouca freqüência em batalha como também é produtivo, por
permitir relações comerciais lucrativas com o exterior. Se, por um lado, Hobbes descreve o estado
de natureza entre os homens como uma situação tal que não é possível a existência de indústria, e
como conseqüência não há desenvolvimento de atividades produtivas (HOBBES, Thomas. Leviatã,
p. 109.), por outro lado, Hobbes afirma que, no plano interestatal, apesar de existir um estado
de guerra, os soberanos “protegem a indústria de seus súditos” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p.
110). Isto possibilita trocas pacíficas de mercadorias entre os Estados, afinal, Hobbes considera
o comércio internacional como um meio de “nutrição” do corpo político (HOBBES, Thomas.
Leviatã, p. 195). Ou seja, o estado de guerra entre os indivíduos é essencialmente destrutivo – por
disseminar indiscriminadamente a morte violenta e não permitir o estabelecimento de atividades
produtivas –, mas o estado de guerra entre os Estados é precisamente o que lhes faz viver, por
permitir o desenvolvimento da indústria interna e, ao mesmo tempo, o comércio com o exterior. As
trocas comerciais entre os Estados, ainda que desvantajosas para algum dos lados, permitem que
as vidas dos súditos no interior das fronteiras sejam asseguradas e promovidas (RIBEIRO, Renato
Janine. État de nature et relations internationales dans la pensée de Thomas Hobbes, publicação
sem número de páginas).
66  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 33, grifo nosso.

190
Conrado da Silveira Frezza

No que se refere às atribuições de um soberano para com o outro, que estão


incluídas naquele direito que é comumente chamado direito das gentes, não
preciso aqui dizer nada, porque o direito das gentes e a lei de natureza são uma
e a mesma coisa. E qualquer soberano tem o mesmo direito, ao procurar a
segurança de seu povo, que qualquer homem privado precisa ter para conseguir
a segurança de seu próprio corpo. E a mesma lei que dita aos homens destituídos
de governo civil o que devem fazer e o que devem evitar no que se refere uns
aos outros, dita o mesmo aos Estados, isto é, às consciências dos soberanos
príncipes e das assembléias soberanas, não havendo nenhum tribunal de justiça
natural, exceto na própria consciência, na qual não é o homem que reine, mas
Deus, cujas leis (como as que obrigam toda a humanidade) no que se refere a
Deus, na medida em que é o autor da natureza, são naturais [...]67
Hobbes descreve as leis de natureza, portanto, como um conjunto
de normas que realmente valem nas relações entre os Estados, embo-
ra não exista qualquer “tribunal de justiça” que assegure o seu cumpri-
mento. Tais normas, ou regras gerais extraídas da razão, não são, para
Hobbes, leis propriamente ditas; apenas o são aquelas estabelecidas pelo
soberano68. O autor define as leis de natureza da seguinte maneira:
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido
pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa
destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir
aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la.69
As leis de natureza desempenham um papel fundamental na te-
oria política de Hobbes. No Elements of Law, o autor afirma que elas
recebem esse nome pelo fato de serem regras naturais da razão, mas que
elas também podem ser chamadas de “leis morais” por dizerem respeito
à conduta dos homens uns em relação aos outros70. De fato, Hobbes as
considera como autênticas regras morais: “a verdadeira doutrina das leis
de natureza é a verdadeira filosofia moral”71. Outra característica impor-

67  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 262, grifo do autor.


68  “A estes ditames da razão [leis de natureza] os homens costumam dar o nome de leis, mas
impropriamente. Pois eles são apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a
conservação e defesa de cada um. Ao passo que a lei, em sentido próprio, é a palavra daquele que
tem direito de mando sobre os outros.” (HOBBES, Thomas. Leviatã. p. 133).
69  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 113, grifo do autor.
70  “The laws mentioned in the former chapters, as they are called the laws of nature, for that they
are the dictates of natural reason; and also moral laws, because they concern men’s manners and
conversation one towards another […]” (HOBBES, Thomas. The elements of law natural and politic,
p. 99).
71  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 132.

191
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

tante das leis de natureza é que elas são objetivas, imutáveis e universais,
isto é, não podem ser determinadas pela vontade dos indivíduos, nem
mesmo do soberano: “As leis de natureza são imutáveis e eternas, pois a
injustiça, a ingratidão, a arrogância, o orgulho, a iniqüidade, a acepção
de pessoas e os restantes jamais podem ser tornados legítimos”72. Por-
tanto, só pelo fato de existir um parâmetro fixo de comportamento que
se aplica a “todos os homens”73, já se pode dizer que Hobbes não defende
o subjetivismo moral no estado de natureza, o arbitrarismo moral do
soberano com relação aos seus súditos74 e a amoralidade nas relações
internacionais. Em qualquer desses casos, a desobediência às leis de na-
tureza implica em graves punições naturais para quem as descumpre.
Essas punições são as conseqüências naturais – que geralmente se mani-
festam a longo prazo, se considerado o tempo de vida dos indivíduos –
da ação humana:
Não existe nesta vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de
uma cadeia de conseqüências tão longa que nenhuma providência humana é
suficientemente alta para dar ao homem um prospeto até o fim. E nesta cadeia
estão ligados acontecimentos agradáveis e desagradáveis, de tal maneira que
quem quiser fazer alguma coisa para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as
dores a ele ligadas; e estas dores são as punições naturais daquelas ações que
são o início de um mal maior que o bem. E daqui resulta que a intemperança é
naturalmente castigada com doenças, a precipitação com desastres, a injustiça
com a violência dos inimigos, o orgulho com a ruína, a covardia com a opressão,
o governo negligente dos príncipes com a rebelião, e a rebelião com a carnificina.
Pois uma vez que as punições são conseqüentes com a quebra das leis, as punições
naturais têm de ser naturalmente conseqüentes com a quebra das leis de natureza
e portanto seguem-nas como seus efeitos, naturais e não arbitrários.75

72  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 132.


73  HOBBES, Leviatã, p. 114 (grifo nosso).
74  MALCOLM, Noel. Hobbes’s theory of international relations. In: ______. Aspects of Hobbes.
New York: Oxford University Press, p. 432-456, 2004. p. 436. Nesse sentido, Malcolm faz uma
importante crítica a respeito da afirmação de Morgenthau segundo a qual o soberano hobbesiano
criaria moralidade assim como cria lei. Malcolm diz que essa idéia é fruto de um grande mal
entendido, decorrente da interpretação feita de um argumento de Hobbes em que ele sustenta
que a lei promulgada pelo soberano “contém” a lei de natureza. Malcolm diz que, na verdade,
o que Hobbes quer dizer nessa passagem é que o soberano é o único intérprete autorizado da
lei de natureza e que, ainda que haja dúvida em relação ao grau permitido a essa interpretação,
Hobbes claramente não quer dizer que a lei de natureza é o que quer que o soberano queira que
seja (MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations. p. 437). De fato, Hobbes afirma
que “tudo o que não for contrário à lei de natureza pode ser tornado lei em nome dos detentores do
poder soberano [...]” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 221).
75  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 270.

192
Conrado da Silveira Frezza

Portanto, na concepção de Hobbes, embora os soberanos não es-


tejam submetidos a qualquer lei temporal, eles estão sujeitos às conse-
qüências que suas próprias ações produzem. Quando essas ações forem
contrárias às leis de natureza, seguir-se-ão como efeito as punições natu-
rais. É justamente esse o motivo pelo qual as leis de natureza devem ser
seguidas pelos soberanos: para evitar as punições naturais – sobretudo
para evitar a rebelião, que é a punição natural que mais ameaça o sobe-
rano. Mas se Hobbes afirma que no estado de guerra “as noções de bem
e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar”76, como sustentar
que as leis de natureza podem realmente ser válidas para os indivíduos
no estado de natureza e para os soberanos? Para se compreender melhor
como e por que as leis de natureza guiam as ações dos homens, um passo
importante apontado por Noel Malcolm é identificar os três níveis de
avaliação da ação humana com os quais Hobbes lida em sua teoria. Esses
níveis são o psicológico, o moral e o jurídico. Hobbes passa seu argumen-
to do nível psicológico para o moral e do moral para o jurídico.
No nível psicológico, termos de avaliação tais como “prazero-
so” e “desprazeroso”, “bom” e “mal” são, neste nível pré-moral, termos
subjetivos: significam os apetites e aversões relativas a cada indivíduo;
“bom”, neste plano, significa “objeto de desejo” e “mal” significa “objeto
de aversão”. Mas, para Hobbes, ainda que os objetos de desejo variem de
indivíduo para indivíduo, as condições básicas para o preenchimento
desses desejos são os mesmos em todos os seres humanos: a condição
essencial é estar vivo, e a melhor maneira para se preservar a vida é por
meio da paz. As leis de natureza são justamente as regras que indicam as
atitudes e disposições humanas que contribuem para a paz, que é a con-
dição que permite aos indivíduos satisfazerem seus desejos, por mais
diferentes que sejam. É nesse ponto que Hobbes passa a lidar com ter-
mos morais de avaliação, cuja base é a própria natureza psicológica do
ser humano, e é aqui que se encontra a justificativa para a existência das
leis de natureza, ou seja, as leis morais. No nível moral, existem regras
objetivas e universais que definem o que é “bom” e o que é “mal”: “boa”
é a atitude que contribui para a paz, e “má” a que fomenta a discórdia e
a guerra. Tais preceitos constituem um sistema de valores expresso por
termos como “gratidão” ou “eqüidade”77. Portanto, quando Hobbes diz

76  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 110.


77  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 436-437.

193
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

que não existem as noções de bem e mal no estado de natureza, ele está
claramente referindo-se apenas ao nível de avaliação psicológico, não ao
moral. O autor explica a transição entre esses dois níveis de avaliação da
seguinte maneira:
O bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais
são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos
homens. [...] Portanto enquanto os homens se encontram na condição de simples
natureza (que é uma condição de guerra) o apetite pessoal é a medida do bem e
do mal. Por conseguinte todos os homens concordam que a paz é uma boa coisa,
e portanto que também são bons o caminho ou meios da paz, os quais [...] são
a justiça, a gratidão, a modéstia, a eqüidade, a misericórdia e as restantes leis de
natureza; quer dizer, as virtudes morais; e que seus vícios contrários são maus.
Ora a ciência da virtude e do vício é a filosofia moral, portanto a verdadeira
doutrina das leis de natureza é a verdadeira filosofia moral.78
A transição do nível moral para o jurídico ocorre porque uma das
leis de natureza determina que cada indivíduo renuncie à sua liberdade,
juridicamente ilimitada, de fazer tudo aquilo que bem entender – desde
que os outros também o façam e na medida em que cada um conside-
re isso necessário para sua própria conservação79 –, e a transfira para
um soberano80. Dessa forma, o nível jurídico entra em vigor na teoria
hobbesiana a partir da criação do Estado. Neste nível, Hobbes utiliza
termos como “justo”, “injusto”, “certo” e “errado” para referir-se a ações
virtuosas e viciosas: “injusto”, nesse caso, significa o descumprimento de
uma lei estabelecida pelo soberano81. Em uma comunidade jurídica, os
cidadãos têm direitos de exigir sobre o comportamento uns dos outros,
de acordo com o parâmetro estabelecido pela lei civil promulgada pelo
soberano. Os súditos agora gozam, por exemplo, de direitos de proprie-

78  HOBBES, Thomas. Leviatã. p. 132, grifo do autor.


79  HOBBES, Thomas. Leviatã. p. 114. Sobre a transição do nível moral para o nível jurídico, ver
MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 437.
80  Essa transferência é realizada por meio de um “pacto de cada homem com todos os homens,
de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito
de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de
transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado [...]” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 144.)
81  Mais especificamente, a injustiça é definida por Hobbes como o “não cumprimento de um
pacto” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 123). Mas como os indivíduos constituem o Estado por meio
de pactos mútuos segundo os quais eles obrigam-se a obedecer as leis promulgadas pelo soberano,
a não observância destas leis é o mesmo que a quebra de um pacto, ou seja, o mesmo que cometer
injustiça. É por isso que Hobbes afirma que todos os atos contrários à lei são considerados injustos
(HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 229).

194
Conrado da Silveira Frezza

dade: Hobbes afirma que a justiça entre os súditos de um mesmo Estado


consiste em “não tirar a nenhum homem aquilo que é dele”82. Dentro
do Estado, os cidadãos estão ligados a uma rede de direitos e deveres
mútuos; cada um tem ao mesmo tempo o direito de exigir um deter-
minado comportamento dos seus concidadãos e o dever para com eles.
Por outro lado, tanto no estado de natureza entre os homens como nas
relações internacionais não existe esse tipo de deveres ou exigências: em
ambos os casos há um vácuo jurídico83.
Mas no estado de natureza interindividual e nas relações interna-
cionais existem as leis de natureza, isto é, as regras morais, que impõem
limites à conduta humana – muito embora, por serem regras de auto-
preservação, não visem o bem dos outros indivíduos ou da humanidade
em geral como um bem primário. As leis de natureza prescrevem a cada
indivíduo atitudes e disposições que favorecem aos outros indivíduos,
mas apenas porque são instrumentais para quem as obedece84. Devido à
peculiar derivação da moralidade na concepção de Hobbes – dado que
as leis de natureza baseiam-se no egoísmo humano – pode-se dizer que
as regras morais não impõem deveres de comportamento para com os
outros indivíduos, como acontece no nível jurídico, mas sim em dire-
ção a eles85. Embora os dois tipos de obrigação tenham sua existência
baseada, em última análise, no mesmo fundamento (a busca da auto-
preservação humana), em cada nível são prescritas obrigações de uma
forma diferente, uma vez que as regras jurídicas impõe aos súditos de-
veres para com seus concidadãos, (o respeito ao direito alheio, conforme
a lei civil promulgada pelo soberano, é o objetivo imediato) e as regras
morais impõem aos homens no estado de natureza e aos soberanos de-
veres em direção aos outros indivíduos (a busca de seu próprio interesse
– que implica fomentar a paz, e por isso favorecer o interesse alheio – é
o objetivo imediato). Desse modo, a existência e a validade de regras
morais na teoria política de Hobbes não contradiz a sua premissa básica
de que o ser humano age sempre na busca de um bem para si mesmo.
Tais regras não prescrevem atitudes de acordo com um bem absoluto,
embasado em algum tipo de verdade fundadora exterior ao homem.

82  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 255.


83  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations. p. 446.
84  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations. p. 444.
85  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 443-444.

195
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

Elas derivam diretamente da necessidade de autopreservação, isto é, do


egoísmo individual.
É importante salientar que o sistema hobbesiano de prescrições
naturais, derivadas da necessidade de autopreservação individual, não
se restringe aos deveres das leis de natureza: ao lado desses deveres exis-
te um direito, mais precisamente o “direito de natureza”, o qual é defi-
nido pelo autor como “a liberdade que cada homem possui de usar seu
próprio poder da maneira que quiser, para a preservação de sua própria
natureza, ou seja, de sua vida”86. É claro que os soberanos também têm o
mesmo direito, já que eles podem legitimamente defender ao seu povo
assim como o homem em estado natural tem direito a defender ao seu
próprio corpo87. Isso significa que, quando agir de acordo com as leis de
natureza implicar para o soberano pôr em risco o seu povo, ele tem o
direito de descumprir essas leis para preservar seu Estado, garantindo
assim, no curto prazo, sua defesa imediata88. Hobbes combina a lei de
natureza e o direito de natureza em uma única “regra geral da razão”,
que é a expressão resumida de todo seu sistema moral89: “Que todo ho-
mem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de
consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e
vantagens da guerra”90. A primeira parte dessa regra encerra a primeira,
e fundamental, lei de natureza, e a segunda parte dessa regra encerra o
direito de natureza. Desse modo, a “regra geral da razão” deixa claro que
a obediência às leis de natureza não é absoluta; tal obediência depende
da existência de um certo grau de expectativa ou “esperança” de que
seja efetivamente possível obter a paz por meio das leis de natureza. Nas
situações nas quais não existe tal expectativa, deve-se agir conforme o
direito de natureza.
Mas a falta de uma entidade superior capaz de garantir o respeito
mútuo entre os homens ou entre os Estados, por si só, não significa que
o direito de natureza deva ser permanentemente colocado em prática no
relacionamento entre os indivíduos no estado de natureza e, menos ain-
da, entre os soberanos. Há situações nas quais, mesmo sem tal entidade,

86  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 113.


87  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 262.
88  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 445.
89  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 445.
90  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 114, grifo do autor.

196
Conrado da Silveira Frezza

as leis de natureza devem ser seguidas. Por isso, quando Hobbes diz que,
na falta de um poder superior capaz de manter a ordem, a desconfiança
freqüente de uns em relação aos outros gera uma situação na qual “ne-
nhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é,
pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que
puder”91, ele está operando ao mesmo tempo com dois conceitos dis-
tintos e independentes: a liberdade jurídica e o direito de natureza. Ou
seja, ele está descrevendo uma situação na qual, além de não haver um
poder comum superior com autoridade e poder para manter a ordem,
também não existe, devido às circunstâncias particulares que cercam a
ação do indivíduo, a segurança necessária para que ele se comporte de
acordo com as leis de natureza. De fato, Hobbes diz que as leis de natu-
reza obrigam à ação apenas quando existe segurança: “cada um respeita
[as leis de natureza] [...] quando pode fazê-lo com segurança”92. Porém,
como aponta Malcolm, “segurança aqui não significa a condição geral
do estado civil, mas as circunstâncias particulares que cercam a ação de
um indivíduo”93.
Hobbes realmente descreve situações nas quais pode haver a se-
gurança necessária para agir de acordo com as leis de natureza, mesmo
quando não há um poder civil estabelecido acima dos autores dessas
ações. Um exemplo importante fornecido pelo autor é o caso de um
acordo em que uma das partes já tenha cumprido seu lado primeiro:
nessa situação é racional (e um ditame da lei de natureza) que a outra
parte cumpra também seu próprio lado do acordo94. Uma das razões
pelas quais Hobbes sustenta essa idéia é que, nesse caso, aquele que des-

91  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 108.


92  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 141. Hobbes também oferece uma explicação mais detalhada: “As
leis de natureza obrigam in foro interno, quer dizer, impõe o desejo de que sejam cumpridas: mas
in foro externo, isto é, impondo um desejo de pô-las em prática, nem sempre obrigam. Pois aquele
que fosse modesto e tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa época e num lugar onde
mais ninguém assim fizesse, tornar-se-ia presa fácil para os outros, e inevitavelmente provocaria
sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a
preservação da natureza. Por outro lado aquele que, possuindo garantia suficiente de que os outros
observarão para com ele as mesmas leis, mesmo assim não as observa, não procura a paz, mas
a guerra, e conseqüentemente a destruição de sua natureza pela violência.” (HOBBES, Thomas.
Leviatã, p. 131-132.).
93  MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 438.
94  “Porque não pode tratar-se de promessas mútuas quando de ambos os lados não há garantia
de cumprimento [...] Mas tanto quando um dos lados já cumpriu a sua parte, tanto quando há um
poder capaz de o obrigar a cumprir, põe-se o problema de saber se é contra a razão, isto é, contra

197
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

respeitou o pacto dificilmente vai ser aceito em qualquer tipo de socie-


dade que poderia lhe proporcionar defesa; é como se ele ficasse com
má fama de descumpridor de acordos: “numa condição de guerra [...]
quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de
acordo com a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se
constitua em vista da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que
o aceitam.”95. Outro exemplo apontado por Hobbes trata-se do caso de
um acordo de paz firmado por um Estado devido ao medo: nesse caso
o Estado contratante, mesmo que tenha feito um acordo que lhe seja
desfavorável, é obrigado a cumprir sua parte, a não ser que a situação de
segurança mude de uma forma tão relevante a ponto de fazer surgir um
“novo e justo motivo de temor para recomeçar a guerra”96 que autorize
a quebra do acordo. Esses exemplos mostram que, para Hobbes, ainda
que a regra no estado de natureza interindividual e internacional seja a
desconfiança, não se pode excluir completamente a possibilidade de agir,
nessas situações, conforme as leis (morais) de natureza97.
Outro aspecto da teoria política de Hobbes que também merece
ser rediscutido é o modo como o autor concebe o fenômeno do poder
e a sua influência nas relações internacionais. De acordo com auto-
res como Carr e Morgenthau, o ser humano definido por Hobbes teria
em si um impulso psicológico, mais precisamente o desejo de poder,
que se refletiria na conduta dos Estados, de modo a levá-los a querer
expandirem-se indefinidamente para além das suas fronteiras. Desta

o benefício do outro, cumprir a sua parte, ou se o não é. E eu afirmo que não é contra a razão”
(HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 124-125).
95  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 125.
96  “E se um príncipe mais fraco assina uma paz desvantajosa com outro mais forte, devido ao
medo, é obrigado a respeitá-la, a não ser [...] que surja algum novo e justo motivo de temor para
recomeçar a guerra.” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 119).
97  Com relação à posição de Hobbes sobre o direito internacional, Malcolm faz uma importante
observação. Ele aponta que nos debates no século XVII havia uma divisão fundamental entre aqueles
que defendiam que o direito internacional derivava de uma lei positiva e aqueles que acreditavam
que ele era diretamente derivado de uma lei natural. Esse foi um debate real, no qual Hobbes era
claramente identificado como um “naturalista”, argumentando contra os “positivistas”. Até mesmo
aqueles que rejeitavam o ponto de vista de Hobbes sobre este assunto o consideravam um sério
argumento sobre como classificar o direito internacional, não como se Hobbes simplesmente
negasse a existência do direito internacional como tal. Esse fato demonstra, segundo Malcolm, que
ao contrário do que muitos críticos sustentam, Hobbes certamente não defende a inexistência do
direito internacional, ainda que o conceba essencialmente como um direito natural e não positivado
(MALCOLM, Noel. Hobbe’s theory of International Relations, p. 439-440).

198
Conrado da Silveira Frezza

perspectiva, a concepção de Hobbes seria a de que o desejo de poder


inesgotável presente no homem se definiria em termos de capacidade
de ataque ou de domínio, e como um objetivo primário do ser humano.
Por isso os Estados teriam sempre a tendência de aumentar seus domí-
nios por meio de guerras de agressão e locupletação. Por conseguinte,
Hobbes conceberia as guerras de expansão e engrandecimento como
algo inerente à natureza humana e, portanto, como um fato inevitável
do sistema internacional.
É verdade que Hobbes afirma que o ser humano tem como ten-
dência geral um apetite inesgotável pelo poder98. Contudo, o autor for-
nece a seguinte definição para o termo “poder”: “O poder de um homem
(universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente
dispõe para obter qualquer visível bem futuro”99. O poder para Hobbes
tem, portanto, caráter essencialmente instrumental, ou seja, ele não é o
objetivo da vida humana, mas sim o meio para conseguir qualquer ob-
jetivo que as paixões de cada indivíduo julguem desejável. Por exemplo,
aqueles que fossem benevolentes100 procurariam conseguir os meios pe-
los quais pudessem obter futuramente aquilo que consideram como um
bem – o que poderia ser recursos para ajudar os necessitados, e nesse
caso o poder corresponderia a tais recursos. Como as paixões humanas
variam de indivíduo para indivíduo, o poder, segundo Hobbes, não pode
ser definido simplesmente como a capacidade de ataque ou de domínio.
Na realidade, aquilo que constitui poder para cada indivíduo será
determinado não apenas pelas suas paixões, mas também fundamen-
talmente de acordo com o maior ou menor uso que fizer de sua razão.
Qualquer indivíduo que raciocinar corretamente concluirá, segundo
Hobbes, que a sua autopreservação tem precedência sobre qualquer ou-
tro “visível bem futuro” e, portanto, para o homem de reta razão, o po-
der corresponde, acima de tudo, aos meios de que dispõe para garantir
sua segurança e comodidade. No caso do soberano, a preservação da sua
vida e do seu bem viver está diretamente ligada à segurança e ao bem-

98  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 91.


99  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 83, grifo do autor.
100  É claro que, para Hobbes, mesmo uma intenção aparentemente filantrópica pode revelar o
egoísmo humano, pois tal intenção pode ser realizada “na esperança de assim conquistar a amizade
ou os serviços de um outro, ou dos amigos deste; ou na esperança de adquirir reputação de caridade
ou magnanimidade; ou para livrar seu espírito da cor da compaixão; ou na esperança de ser
recompensado no céu [...]” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 116).

199
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

estar dos seus súditos: “Porque nenhum rei pode ser rico ou glorioso,
ou pode ter segurança, se acaso seus súditos forem pobres, ou desprezí-
veis, ou demasiado fracos, por carência ou dissensão, para manter uma
guerra contra seus inimigos”101. Portanto, de acordo com Hobbes, para
o soberano de reta razão o maior objeto de poder será, em regra, aquele
que proporcione a maior segurança ao seu Estado102, e não necessaria-
mente aquele que ofereça maior capacidade de domínio ou ataque103.
Em sua obra Diálogo entre um filósofo e um jurista, Hobbes afirma que
os soberanos, quando movidos pela glória e pelo desejo de empreender
conquistas incessantes, comprometem o bem-estar do seu povo, e por-
tanto põem em risco sua própria capacidade de preservação:
Os súditos desses reis que aspiram à glória e imitam as ações de Alexandre, o
Grande, não têm sempre a vida mais confortável e nem esses reis normalmente
desfrutam por muito tempo suas conquistas. Eles andam perpetuamente de um
lugar para outro, como se sobre uma prancha apoiada apenas no meio, na qual a
elevação de uma das extremidades leva a outra a se abaixar.104
Hobbes inquestionavelmente condena, de forma contundente, as
atitudes dos soberanos que visam alargar insaciavelmente seus domí-
nios. O autor coloca essa tendência como uma das causas de enfraqueci-
mento ou dissolução do Estado. Assim, dentre as “doenças” que podem
atingir os Estados:

101  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 155.


102  “O cargo do soberano (seja ele um monarca ou uma assembléia) consiste no objetivo para
o qual lhe foi confiado o soberano poder, nomeadamente a obtenção da segurança do povo, ao
qual está obrigado pela lei de natureza [...]. Mas por segurança não entendemos aqui uma simples
preservação, mas também todas as outras comodidades da vida, que todo homem por uma
indústria legítima, sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio” (HOBBES,
Thomas. Leviatã, p. 251).
103  É verdade que Hobbes afirma que os soberanos freqüentemente recorrem à guerra para
adquirir mais poder: “[...] os reis, cujo poder é maior, se esforçam por garanti-lo no interior através
de leis, e no exterior através de guerras. E depois disto feito surge um novo desejo, em alguns, de
fama por uma nova conquista, em outros, de conforto e prazeres sensuais, e em outros de admiração
[...]” (HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 91). Mas como este tipo de guerra de expansão não decorre de
um impulso psicológico presente em todo o gênero humano, essa afirmação não implica que tais
guerras de conquista sejam inevitáveis, e menos ainda que elas sejam desejáveis. Pelo contrário,
Hobbes as considera como resultado de julgamentos equivocados sobre o que realmente contribui
para os interesses de longo prazo desses governantes, e busca propagar uma doutrina por meio da
qual os corretos julgamentos poderiam ser identificados e as guerras pudessem ser restringidas aos
casos necessários (MALCOLM, Noel. Hobbes’s theory of international relations, p. 442-443).
104  HOBBES, Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2001. p. 21.

200
Conrado da Silveira Frezza

Podemos ainda acrescentar o apetite insaciável, ou bulimia, de alargar os


domínios, com as feridas incuráveis muitas vezes por isso mesmo recebidas do
inimigo; e os tumores de conquistas caóticas, que constituem muitas vezes uma
carga e que são conservadas com maior perigo do que se fossem perdidas.105
Dessa forma, fica bastante clara a crítica que Hobbes faz àqueles
Estados que possuem um “apetite insaciável” de aumentarem seus do-
mínios, inclusive por meio de conquistas. Uma razão para isso é que,
segundo Hobbes, existe uma grande chance de insucesso nas atividades
militares ofensivas dos Estados. No De cive, Hobbes reconhece que po-
vos como Atenas e Roma conseguiram melhorar suas condições de vida
por meio da guerra e da imposição de tributos no exterior. Entretanto,
o autor afirma:
Mas uma tal espécie de enriquecimento não deve ser tornada em regra e modelo.
Pois a guerra, enquanto meio de lucro, é como um jogo de dados no qual muitos
perdem seus bens, porém poucos os aumentam.106
De acordo com Hobbes, a guerra de agressão não deve portan-
to ser utilizada se tiver como finalidade apenas o enriquecimento, em
virtude do combate militar envolver um alto risco de fracasso. Hobbes
chega até mesmo a ridicularizar os monarcas que provocam batalhas
por ambição ou por vanglória no capítulo em que trata dos deveres dos
soberanos em sua obra The elements of law. O autor afirma que a se-
gurança do povo, consiste, em parte, no dever do soberano em evitar
“guerras desnecessárias”:
Pois tais Estados, ou tais monarcas, que tendem a entrar em guerra pela própria
guerra, isto é, por ambição, ou por vanglória, ou que fazem questão de se vingar
de toda pequena injúria ou desonra cometida por seus vizinhos, se eles não
arruínam a si mesmos, sua sorte precisa ser melhor do que eles têm motivo
para esperar.107
Existe para Hobbes, portanto, um tipo de guerra que é racional-
mente justificável e outro que não o é. Guerras visando “alargar os do-
mínios” incessantemente ou apenas em busca de “enriquecimento”, ou

105  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 250.


106  HOBBES, Thomas. Do cidadão, p. 209.
107  HOBBES, Thomas. The elemens of law natural and politic, p. 177. Tradução livre. No original:
“For such commonwealths, or such monarchs, as affect war for itself, that is to say, out of ambition,
or of vain-glory, or that make account to revenge every little injury, or disgrace done by their
neighbors, if they ruin not themselves, their fortune must be better then they have reason to
expect.”

201
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

ainda causadas somente por “ambição” ou por “vanglória”, devido ao alto


risco que trazem para o próprio Estado que as empreende, não são justi-
ficáveis. Por outro lado, Hobbes afirma que existem guerras justificáveis,
ou melhor, existe, nesse sentido, um tipo de “justa guerra”108. A guerra
justa é, para Hobbes, aquela que decorre da observância, por parte do
monarca, da “regra geral da razão”: o ataque pode ser justificado apenas
se o soberano “esforçar-se pela paz”, mas, devido a alguma ameaça aos
seus interesses vitais, “não a consiga”109. Na obra Diálogo entre um filósofo
e um jurista, o “Jurista” pergunta ao “Filósofo” se é legítimo um soberano
fazer guerra contra outro soberano e despossá-lo de suas terras. O Fi-
lósofo (cujas idéias expressam o pensamento de Hobbes) responde que
a intenção “pode ser” legítima em alguns casos, por conta do direito de
natureza: um desses casos é quando o soberano é compelido pela neces-
sidade de subsistência, como quando seus súditos são “incapazes de so-
breviver de outro modo”; outro caso é quando ele tem uma “justa razão”
para temer seu vizinho, isto é, quando um provável agressor representa
um risco efetivo à segurança do seu Estado110.
Neste ponto é preciso perceber que, ao contrário da visão padrão
sobre a teoria hobbesiana, a falta de uma autoridade superior aos Estado
não significa, para Hobbes, que em qualquer situação exista uma justa
causa para cada soberano temer a todos os demais soberanos. Note-se
que o fato de Hobbes estabelecer situações em que um Estado tem “justa
razão” para começar uma guerra estabelece um contraste implícito com
outras situações em que ele não tem111. Nesse sentido, Malcolm afirma
que, para Hobbes, “um justo temor é uma estimativa de perigo que preci-

108  Como já foi visto, a justiça propriamente dita, para Hobbes, consiste no cumprimento dos
pactos. Mas, nas passagens das obras do autor em que ele emprega o termo “justa guerra” (ver, por
exemplo, HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 195), tudo leva a crer que o autor está se referindo a um
tipo de guerra conforme à eqüidade, à razão.
109  A respeito da “regra geral da razão”, ver HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 113-114. E com relação
à validade dessa regra para os soberanos, ver HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 262.
110  “É lícito ou não é lícito conforme for a intenção daquele que faz isso. [...] A intenção pode ser
lícita em vários casos, de acordo com o direito natural; um desses casos é quando ele é forçado a
isso pela necessidade de sobrevivência. Assim, os filhos de Israel, assim como seus chefes, Moisés e
Josué, tinham uma ordem direta de Deus para destituir os canaanitas e também tinham uma justa
pretensão, com base no direito natural, de fazer o que fizeram, tendo de preservar a vida e sendo
incapazes de sobreviver de outro modo. E assim como sua preservação, também a sua segurança
é uma pretensão justa para invadir aqueles que eles têm justas razões de temer [...]” (HOBBES,
Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista, p. 176, grifo nosso).
111  MALCOLM, Noel. Hobbes’s theory of international relations, p. 449.

202
Conrado da Silveira Frezza

sa, presumivelmente, ser baseada em algum julgamento empírico sobre


questões de fato”112. Hobbes realmente considera muito importante que
os soberanos formem julgamentos empíricos bem fundamentados sobre
o perigo efetivo que os outros Estados lhes oferecem. No Do cidadão, o
autor afirma ser fundamental para a segurança do povo que o soberano
esteja bem informado sobre “todos os desígnios e atos que for possível
daqueles que possam causar-lhe dano”113, já que a luta entre os Estados é
resultado da avaliação “das forças e desígnios do adversário”114.
Mas, se Hobbes critica os Estados demasiadamente gananciosos,
ele chega a ir além a ponto de aprovar atitudes de cooperação entre os
soberanos? Será que o autor realmente admite que a cooperação pode
ser uma estratégia racional a ser adotada por um soberano, ou será que
tal atitude colocaria em risco a preservação do Estado? Um primeiro
aspecto que pode ser observado para responder a essa questão é o fato
de Hobbes admitir a possibilidade de os soberanos estabelecerem con-
tratos válidos entre si. Hobbes sustenta, no capítulo do Leviatã que fala
sobre a liberdade dos súditos, que se o cidadão de um Estado entra nos
domínios de um outro Estado, ele tem que se submeter às leis que ali vi-
goram, mas em regra continua súdito do seu próprio Estado em virtude
do “contrato” firmado entre os soberanos:
[...] quem tiver sido enviado com uma mensagem, ou tiver obtido licença para
viajar, continua a ser súdito [do seu próprio Estado]. Contudo, é-o por contrato
entre soberanos [...]. Pois quem quer que penetre nos domínios de outrem passa
a estar sujeito a todas as leis aí vigorantes, a não ser que tenha um privilégio, por
acordo entre os soberanos, ou por licença especial.115
Nesta passagem, Hobbes claramente reconhece que tratados en-
tre os Estados dão suporte até mesmo às atividades transnacionais dos
seres humanos. Os súditos podem ter a liberdade de realizar atividades
fora de seu Estado, desde que tais atividades sejam permitidas e regu-
larizadas entre os soberanos. Além disso, no Diálogo entre um filósofo e
um jurista, o autor reconhece a existência e a importância de um sistema

112  MALCOLM, Noel. Hobbes’s theory of international relations, p. 449. Tradução livre. No
original: “A just fear is an assessment of danger that must, presumably, be based on some empirical
judgment about matters of fact”.
113  HOBBES, Thomas. Do cidadão, p. 201.
114  HOBBES, Thomas. Do cidadão, p. 201.
115  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 178.

203
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

de direito comercial compartilhado entre os Estados capaz de resolver


os conflitos mercantis dos particulares. Tal sistema vigorava na época
de Hobbes por meio da incorporação dos princípios de direito romano
nas legislações internas dos Estados – no caso da Inglaterra esse tipo
de jurisdição era exercido pela Court of Admiralty116. Não é por acaso
que o autor faz referência à importância de leis que possibilitem o co-
mércio entre particulares: para Hobbes, a nutrição do Estado depende
fundamentalmente do comércio internacional. As trocas pacíficas de
mercadorias entre os Estados são fundamentais para a sobrevivência e o
bem-estar do corpo político:
Essa matéria, a que geralmente se chama bens, em parte é nativa e em parte
é estrangeira. Nativa, quando pode ser obtida dentro do território do Estado.
Estrangeira, quando é importada do exterior. E como não existe território algum
sob o domínio de um Estado (a não ser que seja de uma extensão imensa) que
produza todas as coisas necessárias para a manutenção e movimento do corpo
inteiro, e poucos são os que não produzem alguma coisa mais além do necessário,
os bens supérfluos que se obtêm no interior deixam de ser supérfluos, e passam
a suprir as necessidades internas, mediante a importação do que pode ser obtido
no exterior, seja através de troca, de justa guerra ou de trabalho. Porque o
trabalho de um homem também é um bem que pode ser trocado por benefícios,
tal como qualquer outra coisa. E já houve Estados que, não tendo mais território
suficiente para seus habitantes, conseguiram apesar disso, não apenas manter,
mas até aumentar seu poder, em parte graças à atividade mercantil entre um
lugar e outro, e em parte através da venda de manufaturas cujos materiais eram
trazidos de outros lugares.117
Nestes termos, a atividade mercantil com o exterior é considera-
da essencial para que o Estado possa obter os recursos indispensáveis
para a sua manutenção118. O comércio internacional, considerado por

116  No capítulo em que trata das cortes em vigor na Inglaterra, Hobbes escreve que na Court
of Admiralty: “[...] o juiz profere a sentença de acordo com as leis imperiais [direito romano],
que antigamente vigoravam por toda esta parte da Europa e agora são leis [na Inglaterra] não
por vontade de qualquer outro imperador ou poder estrangeiro mas pela vontade dos reis da
Inglaterra, que lhes deram força em seus próprios domínios; a razão disso parece ser que muito
freqüentemente as causas surgidas no mar são entre nós [os ingleses] e as pessoas de outras nações,
que na maior parte são governadas por essas mesmas leis imperiais” (HOBBES, Thomas. Diálogo
entre um filósofo e um jurista, p. 66).
117  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 195, grifo do autor.
118  Importa ressaltar que apesar do autor colocar a “justa guerra” como uma das alternativas para
o Estado conseguir os recursos necessários à sua sobrevivência, essa hipótese é restrita, porque,
como foi dito anteriormente, não é qualquer guerra que é considerada legítima – isto é, “racional”
– para o autor. Assim, quando não houver um justo motivo para um Estado empreender guerra
contra outro Estado (como um risco de segurança bem fundamentado ou a necessidade vital de

204
Conrado da Silveira Frezza

Hobbes como um meio de “nutrição” do corpo político, é precisamente


o que faz o Estado viver. Mas o comércio internacional e a possibilidade
de os Estados firmarem acordos entre si que dêem suporte às atividades
transnacionais dos indivíduos não são as únicas formas de cooperação
cuja existência é reconhecida e justificada por Hobbes. O autor defende
que a formação de ligas de segurança mútua é uma ótima estratégia para
a autopreservação do Estado. Um exemplo disso está em uma passagem
da obra Behemoth, na qual Hobbes propõe que os soberanos formassem
uma “liga contra a rebelião”:
Penso não ser grande política dos príncipes vizinhos favorecer, como tão
freqüentemente o fazem, os rebeldes uns dos outros, especialmente quando eles
se rebelam contra a própria monarquia. Eles deveriam, ao invés disso, primeiro,
formar uma liga contra a rebelião e posteriormente, (se não houver solução)
lutar uns contra os outros.119
Esse argumento fica ainda mais evidente no Leviatã. Nesta obra,
Hobbes sustenta que, se os indivíduos vivendo em condição de nature-
za se deparassem com um inimigo mais forte, uma alternativa possível
para buscarem sua própria segurança seria unirem forças, “aliando-se
com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.”120. Além
disso, o autor faz ainda outra referência sobre a possibilidade da união
de indivíduos no estado de natureza. Segundo Hobbes, formada uma
união de homens, mesmo se estes não estiverem permanentemente sub-
metidos a um governo comum, é possível que “seu esforço unânime lhes
permita obter uma vitória contra um inimigo estrangeiro”121 – ainda que
depois do perigo ter passado seus interesses divergentes necessariamen-
te levem-nos a se desunirem. Dessa forma, Hobbes claramente entende
ser possível a união de esforços entre indivíduos para um fim comum,
mesmo eles vivendo sem governo. Esse tipo de associação não só é pos-

recursos), a opção da violência com o fim de conseguir os recursos necessários para a manutenção
da vida do povo fica indisponível, e a única maneira legítima de obtê-los é por meio do comércio
internacional.
119  HOBBES, Thomas. Behemoth or the long parliament. Editado por Ferdinand Tönnies. Chicago,
The University of Chicago Press, 1990. p. 144. Tradução livre. No original: “It is methinks no great
polity in neighbouring princes to favour, so often as they do, one another’s rebels, especially when
they rebel against monarchy itself. They should rather, first, make a league against rebellion and
afterwards, (if there be no remedy) fight one against another.”
120  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 107.
121  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 142.

205
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

sível como é necessária para a segurança de cada indivíduo no estado


de natureza:
[...] numa condição de guerra, em que cada homem é inimigo de cada homem,
por falta de um poder comum que os mantenha a todos em respeito, ninguém
pode esperar ser capaz de defender-se da destruição só com sua própria força
ou inteligência, sem o auxílio de aliados, em alianças das quais cada um espera
a mesma defesa. 122
Portanto, resgatando o que já foi dito neste texto sobre a analogia
que Hobbes faz entre homem e Estado, é possível entender que essa ló-
gica da liga entre os indivíduos pode também existir entre os Estados,
sendo ela nada menos do que uma forma de cooperação. Realmente,
Hobbes sugere esta idéia ao afirmar: “[...] qualquer soberano tem o mes-
mo direito, ao procurar a segurança de seu povo, que qualquer homem
privado precisa ter para conseguir a segurança de seu próprio corpo.”123.
Assim, já que os indivíduos no estado de natureza precisam buscar se-
gurança por meio de alianças, e o soberano tem o mesmo direito de se
defender que o indivíduo, fica evidente que os soberanos também po-
dem cooperar para superar um inimigo em comum. Se até os homens
privados podem cooperar para buscar a solução de um problema co-
mum, porque os soberanos não poderiam fazer o mesmo? A afirmação
de Hobbes não deixa dúvidas: “[...] as ligas entre Estados, acima dos
quais não há poder humano constituído, capaz de mantê-los a todos em
respeito, não apenas são legítimas como são também proveitosas duran-
te o tempo que duram”124.
A concepção de Hobbes sobre as relações internacionais envolve,
portanto, o reconhecimento e a justificativa para a cooperação em vários
níveis, por meio da interação entre os Estados e entre os súditos dos Esta-
dos. As regras da razão natural relativas ao comportamento dos homens
uns em direção aos outros, ou seja, os preceitos morais estabelecidos por
Hobbes, não apenas autorizam a cooperação internacional como tam-
bém a recomendam em muitos casos como algo útil e benéfico para cada
Estado que dela faz uso. Isso mostra que o fato do cenário internacional
ser descrito por Hobbes como um permanente estado de guerra não im-
pede que os atores deste modelo cooperem para atingir aquele grande

122  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 125, grifo nosso.


123  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 262.
124  HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 188.

206
Conrado da Silveira Frezza

fim que todos têm em comum: a autopreservação. É claro que o risco do


conflito direto entre os Estados está sempre presente, já que em certas
situações-limite Hobbes reconhece que a violência (inclusive preventiva)
é a melhor defesa. Mas a influência das leis de natureza na conduta dos
soberanos, as quais possibilitam o estabelecimento de associações entre
os Estados – cuja natureza peculiar os fez menos propensos à batalha
que os indivíduos no estado de natureza – criam um contexto no qual
a cooperação torna-se uma estratégia racional no cenário internacional
hobbesiano, e o conflito fica menos presente na realidade.

Considerações finais
É realmente possível reconhecer e justificar fenômenos de coope-
ração internacional a partir do conceito hobbesiano de estado de natu-
reza. Pelo que foi exposto até aqui, pode-se concluir que a interpretação
desse conceito feita pela “tradição hobbesiana”, isto é, por autores como
Carr e Morgenthau, não reflete de maneira precisa o pensamento do
próprio Thomas Hobbes sobre as relações internacionais. Isto porque,
para Hobbes, o conflito humano não é causado necessariamente pelo
fato de o homem ter um inesgotável desejo por poder, como argumen-
tam esses autores. O poder pode, segundo Hobbes, tomar formas varia-
das dependendo das características psicológicas individuais de quem o
almeja, e por isso não significa necessariamente a vontade de domínio
sobre os outros homens. Hobbes claramente condena os soberanos que
buscam fama e riquezas por meio de conquistas sobre os povos estran-
geiros, pelo fato desse tipo de guerra, tida pelo autor como desnecessá-
ria, implicar um sério risco para o Estado que a empreende. Assim, uma
vez que Hobbes não tem como premissa a idéia de que o desejo de poder
é o motor das guerras de expansão, a possibilidade de auxílio mútuo
no plano internacional torna-se possível. Ainda mais pelo fato de que a
analogia que o autor faz entre as relações dos indivíduos no estado de
natureza e as relações entre os Estados ser apenas parcial: o estado de
guerra entre os soberanos degenera muito mais raramente em batalha,
permitindo inclusive o comércio entre os Estados, por meio do qual a
vida dos súditos no interior das fronteiras é assegurada e promovida.
Desse modo, pode haver uma certa ordem, ainda que tensa, nas relações
entre os Estados.

207
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

Por outro lado, parece que os próprios críticos da “tradição hob-


besiana” partem da interpretação feita por essa corrente para então des-
crever, a partir de uma imagem pré-constituída, a concepção de Hobbes
sobre as relações internacionais. É provável ser esse o motivo pelo qual
aqueles autores – que assim como a escola Inglesa defendem a existên-
cia de uma sociedade internacional – afirmaram que para Hobbes os
interesses de cada Estado são totalmente incompatíveis, como em um
jogo de soma zero, e que nessa situação inexista qualquer noção de mo-
ral, havendo espaço apenas para a guerra. Na verdade, segundo Hobbes,
ainda que cada Estado não tenha qualquer tipo de direito de exigir um
determinado comportamento dos outros Estados, existe um conjunto
de regras de conduta objetivas válidas para os soberanos – as leis de na-
tureza, tais como a que recomenda a não se descumprir os pactos cele-
brados se houver segurança suficiente para tal. Apesar de a aplicação na
prática dessas regras depender das circunstâncias particulares nas quais
se encontra cada Estado, Hobbes fornece exemplos de situações em que
tais regras devem ser seguidas pelo soberano. Isso mostra que o fato de
inexistir uma entidade superior, por si só, não exclui completamente a
possibilidade dos soberanos agirem de acordo com as leis de natureza.
Essas regras, embora sejam derivadas da autopreservação, do egoísmo,
são consideradas por Hobbes como regras morais. É claro que Hob-
bes tem uma concepção sui generis sobre a moral. Mas o fato do autor
admitir, em algumas situações, ser racional para a autopreservação do
Estado agir de forma que acaba também por beneficiar outros Estados,
abre um caminho na teoria política do autor para que a cooperação seja
justificada. É justamente com a finalidade de buscar a autopreservação
individual que Hobbes recomenda a formação de ligas entre os sobera-
nos, para as mais diversas finalidades (inclusive para regularizar as ativi-
dades privadas dos indivíduos de diferentes Estados). Assim, como para
Hobbes em muitos casos a autopreservação pode ser obtida com maior
êxito por meio da cooperação, e já que a batalha representa um grande
risco para o Estado que a empreende, o autor condena a atividade mili-
tar sem necessidade e fornece exemplos específicos nos quais a guerra é
racionalmente justificável. Desse modo, fica claro que o conflito armado
é para Hobbes apenas parte da atividade internacional.
Na verdade, o que torna o conflito internacional inevitável na
concepção de Hobbes é o fato de os Estados serem independentes e

208
Conrado da Silveira Frezza

por isso estarem permanentemente sujeitos ao risco de que a neces-


sidade de autopreservação de cada um torne-se incompatível com a
mesma necessidade dos demais. Assim, para Hobbes, as relações entre
os Estados não têm garantia de segurança, mas podem ser “amigáveis”
enquanto não houver motivos razoáveis para desconfiança e houver
interesses convergentes.
Diante do exposto, pode-se perceber que existem elementos no
pensamento de Hobbes que merecem ser reexaminados, por serem for-
tes indícios de que, partindo do conceito de estado de natureza hobbe-
siano, seja realmente possível fornecer uma justificativa para os fenôme-
nos de cooperação que de fato estão presentes no cenário internacional.
Uma análise mais cuidadosa das nuances do pensamento do autor pode
contribuir para o aprofundamento da compreensão sobre essa questão,
que é fundamental para o fomento e o aperfeiçoamento crítico de um
dos principais debates teóricos das Relações Internacionais.

Referências
AIRAKSINEN, Timo; BERTMAN, Martin A. Hobbes: War Among
Nations. Aldershot: Avebury, 1989.
ALVES, Marcelo. Leviatã o demiurgo das paixões. Uma introdução ao
contrato hobbesiano. Cuiabá: UNICEN Publicações; Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2001.
ARANTES, Abelardo. 14 Pontos de Wilson: aula ministrada no Instituto
Catarinense de Diplomacia. 24 set. - 29 out. de 2005. Notas de Aula.
BEITZ, Charles R. Political Theory and International Relations. Princeton:
Princeton University Press, 1979.
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São
Paulo: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2002. (Col. Clássicos IPRI, 5).
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. Tradução de
Luiz Alberto Figueiredo Machado. 2. ed. Brasília: Editora Universidade

209
A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL A PARTIR DO CONCEITO HOBBESIANO DE ESTADO DE NATUREZA

de Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.


(Col. Clássicos IPRI, 1).
DONNELLY, Jack. Realism and international relations. Cambridge:
University Press, 2000.
HASLAM, Jonathan. No virtue like necessity. Realist thought in
international relations since Machiavelli. Great Britain: Yale University
Press, 2002.
HOBBES, Thomas. Behemoth or the long parliament. Editado por
Ferdinand Tönnies. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
______. Diálogo entre um filósofo e um jurista. Tradução de Maria
Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2001.
______. Do cidadão. 3. ed. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz
Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Col. Os Pensadores).
______. The elemens of law natural and politic. 2. ed. New York: Oxford
University Press, 1999. (Col. Oxford World’s Classics).
HOFFMANN, Stanley. Politics among the nations; the struggle for
power and peace. The Atlantic. No. 256, p. 131-134, nov. 1985. Disponível
em:  <http://find.galegroup.com/itx/infomark.do?&contentSet=IAC-
Documents&type=retrieve&tabID=T003&prodId=ITOF&docId=
A3998917&source=gale&srcprod=ITOF&userGroupName=viva_
uva&version=1.0>. Acesso em: 3 jan. 2007. (publicação sem número de
páginas).
MALCOLM, Noel. Hobbes’s theory of international relations. In:
______. Aspects of Hobbes. New York: Oxford University Press, 2004.
p. 432-456.
______. What Hobbes really said. The National Interest, Vol. 81, Fall
2005, p.122-127, 2005. Disponível em: <http://find.galegroup.com/itx/
infomark.do?&contentSet=IAC-Documents&type=retrieve&tabID=T
002&prodId=ITOF&docId=A137874481&source=gale&srcprod=ITO
F&userGroupName=viva_uva&version=1.0>. Acesso em: 16 fev. 2006.
(publicação sem número de páginas).

210
Conrado da Silveira Frezza

MALNES, Raino. The hobbesian theory of international conflict. New


York: Oxford University Press, 1993.
MERLE, Marcel. Sociologia das relações internacionais. Tradução de
Ivonne Jean. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. (Col. Pensamento
Político, 25).
MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações
Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.
MONTEIRO, João Paulo. Vida e obra. In: HOBBES, Thomas. Leviatã.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Nova Cultural, 2004. (Col. Os Pensadores).
MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo poder e
pela paz. Tradução de Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de
Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. (Col.
Clássicos IPRI).
RIBEIRO, Renato Janine. État de nature et relations internationales dans
la pensée de Thomas Hobbes, [2005?]. Disponível em: <http://www.
renatojanine.pro.br/LEstrangeira/etatdenature.html>. Acesso em: set.
2005, (publicação sem número de páginas).
WILLIANS, Michael C. The Realist Tradition and the Limits of
International Relations. Cambridge: University Press, 2005. (Col.
Cambridge Study in International Relations).

211
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO
CONCEITO DE IGUALDADE
JURÍDICA DOS ESTADOS
André Vinicius Tschumi1

Introdução
A proposta desse artigo é descrever a genealogia do conceito de
igualdade jurídica dos Estados, desde a sua origem até os dias atuais. Em-
bora esse conceito tenha sofrido mutações ao longo do tempo, ele con-
siste de modo geral em uma regra que objetiva garantir que todos os Es-
tados, independentemente de seu poder político, econômico ou militar,
recebam, nas mesmas condições, um tratamento igualitário pelo direito
internacional.2 O foco central da pesquisa é a Segunda Conferência de
Paz de Haia, realizada em 1907, auge das discussões a respeito do tema.
Embora a maioria dos juristas concorde ao afirmar a existência
deste princípio, há uma grande divergência sobre as implicações do
conceito de igualdade dos Estados no plano do direito internacional.
Do ponto de vista legal, será possível aceitar que um Estado com mais
de 1,3 bilhões de habitantes como a China possua na Assembléia Geral
da ONU um voto equivalente ao de um Estado como Tuvalu, com pou-
co mais de 12 mil habitantes? Não será o poder de veto no Conselho de

1  Doutorando em Direito Internacional Público na Universidade de Estrasburgo e na Universidade


Laval. Autor do livro Princípio da Segurança Coletiva e a Manutenção da Paz Internacional (Curitiba:
Juruá, 2007). E-mail para contato: atschumi@bol.com.br
2  KELSEN, Hans. La paz por medio del derecho. Buenos Aires: Losada S. A., 1946. p.73.

213
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

Segurança das Nações Unidas um anacronismo que destoa do direito de


igualdade jurídica dos Estados? Como justificar o fato de que os Esta-
dos Unidos que contribuem aproximadamente com um quarto do total
do orçamento regular das Nações Unidas sejam juridicamente iguais a
Estados que contribuem com menos de 0,1% do total do orçamento re-
gular da ONU?
Para responder essas e outras questões ligadas à idéia de igual-
dade jurídica dos Estados, o primeiro item do artigo aborda a origem
desse conceito e sua evolução até a Segunda Conferência de Paz, único
grande encontro diplomático em que essa questão foi alvo de intensos
debates. O segundo item deixa de lado o conceito de igualdade jurídica
para tratar da política externa brasileira a época da Conferência de Paz.
O objetivo dessa parte é mostrar que a atuação da delegação brasileira
em Haia encaixava-se com coerência dentro de orientação política mais
ampla, conduzida em harmonia pelo Itamarary durante a gestão de Rio
Branco. O terceiro item investiga as discussões sobre a igualdade jurídica
na Conferência de Paz e descreve outras ações da política externa de Rio
Branco relacionadas a esse princípio. O quarto item descreve o desen-
volvimento do princípio da igualdade jurídica dos Estados após Haia,
com foco nas ações que, no caso de uma interpretação rigorosa, seriam
consideradas como violações a esse princípio. O quinto item analisa a
posição das diferentes correntes de juristas e de internacionalistas sobre
o conceito de igualdade jurídica dos Estados. Por fim são apresentadas
as principais considerações atingidas no decorrer da pesquisa.

O conceito de igualdade jurídica dos Estados antes de Haia


A idéia de igualdade de direitos já era tema de debate entre os
filósofos na Grécia Antiga. Muito antes do desenvolvimento do jusna-
turalismo Aristóteles já colocava a igualdade como a base do direito,
pois segundo ele a justiça seria o resultado da aplicação do princípio
da igualdade. O filósofo grego fazia uma distinção entre a igualdade
em número e a igualdade em mérito. O primeiro ocorre quando todos
os benefícios são distribuídos, em partes iguais, para todos. O segundo
tipo ocorre quando os benefícios são proporcionais aos méritos.3

3  Cf. ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. p. 200-201.

214
André Vinicius Tschumi

Durante a maior parte da Idade Média não houve contribuições


significativas ao debate sobre a igualdade de direitos. Essa discussão é
retomada no período do Renascimento, quando a concepção humanista
dos filósofos impulsionou a afirmação do direito de igualdade entre os
homens. Assim, entre os séculos XVI e XVIII uma série de pensadores
(não necessariamente humanistas) passou a afirmar o direito de igual-
dade entre os homens (Vitória, Hobbes, Locke, Rousseau e etc.), con-
sagrado em 1789 pela Revolução Francesa. Para Hobbes, por exemplo,
mesmo que os homens fossem desiguais eles deveriam ser reconhecidos
como iguais, pois a igualdade dos homens é uma condição indispensá-
vel para a celebração do contrato social que lhes permite sair do estado
de natureza.4
Para os autores renascentistas a igualdade jurídica consistia em
uma norma de direito natural aplicável aos homens. Entretanto, os
acontecimentos marcantes do início da Idade Moderna (a consolidação
dos primeiros Estados modernos, o contato dos europeus com povos até
então desconhecidos e as sucessivas guerras na Europa) influenciaram
dois autores a levar o conceito de igualdade jurídica para além do plano
individual. Referimo-nos a Francisco de Vitória e Hugo Grócio.
Vitória contribuiu para a formação do princípio da igualdade ju-
rídica das nações ao pregar a utilização de um mesmo ordenamento
normativo (o direito natural) para as relações entre quaisquer povos, in-
clusive entre os Estados europeus e as nações indígenas. Segundo o autor
espanhol, o direito que um soberano europeu possuía era equivalente ao
do líder de uma comunidade americana. Entretanto, esta não era uma
igualdade absoluta ou incondicional. A finalidade desta igualdade era
garantir o direito de liberdade e, acima de tudo, de bem estar dos povos.
Portanto, se uma comunidade na América, por exemplo, estava sendo
privada de algum direito natural, era lícito às demais nações intervir
para restaurar o direito violado na América. O fundamental nas idéias
de Vitória é o realce à igualdade dos povos fundada na sociabilidade do

4  “Portanto, se a natureza fez todos os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida; e se a
natureza fez os homens desiguais, como os homens, dado que se consideram iguais, só em termos
igualitários aceitam entrar em condições de paz, essa igualdade deve ser admitida”. (HOBBES,
Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 129.)

215
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

gênero humano, do qual deriva a noção de que a Terra é composta de


pessoas e de povos sujeitos a normas equânimes.5
Grócio foi o grande “organizador” do direito internacional, atra-
vés principalmente da obra De Jure Belli ac Pacis (O Direito da Guerra
e da Paz). O autor holandês considera que o direito das gentes6 está su-
bordinado ao direito natural, que por sua vez é fundamentado em um
tratamento igualitário para todas as partes. Logo, o direito das gentes
também está sujeito ao princípio do tratamento igualitário. Além do
mais, Grócio não estabeleceu em suas obras qualquer distinção de direi-
tos e deveres, seja entre os Estados, seja entre os homens. Assim, Grócio
é considerado por diversos autores como um defensor da idéia da igual-
dade jurídica das nações.7
A partir de Vitória e de Grócio a questão da igualdade de direitos
começa a ser gradualmente transplantada ao plano do relacionamen-
to entre as nações. Porém, somente com assinatura da Paz de Vestfália
(em 1648) é que se pode falar na existência do princípio da igualdade
jurídica dos Estados. Isso porque foi apenas em Vestfália que o Estado
moderno e que o direito internacional se consolidam na Europa.
Não obstante a existência de diversas regras do direito interna-
cional e mesmo de alguns Estados-nação antes de Vestfália, esses não
eram ainda Estados modernos8. Além disso, os poucos Estados-nação

5  LUPI, João E. P. B; LUPI, André L. P. B. Primórdios do Direito Internacional: de Tomás de Aquino


a Francisco de Vitoria. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10543&p=1
>. Trabalho publicado em 2007. Acesso em: 30 abril 2010.
6  Na época, o direito internacional era conhecido como “direito das gentes” ou “jus gentium”,
expressão utilizada por Francisco de Vitória ao referir-se às coletividades organizadas. A
denominação International Law foi introduzida no último quartel do século XVIII por Jeremias
Bentham na sua obra An Introduction to the Principles of Moral and Legislation com a intenção de
conceber uma nomenclatura mais precisa ao então denominado Law of Nations. (MELLO, Celso
D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
v.1, p. 68-69.)
7  Cf. BOSON, Gerson de Britto Mello. Curso de Direito Internacional Público. 19. ed. Belo
Horizonte: Bernardo Álvares, 1958. P. 66. Também ver: BOBBIT, Philip. A guerra e a paz na história
moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro:
Campus, 2003. p. 491.
8  O Estado-nação é aquele cujo seus habitantes correspondem a uma nação, ou seja, a um grupo
com querer viver coletivo e que em geral possui diversas tradições e uma língua comum. O primeiro
Estado-nação formado na Europa foi Portugal, em 1143. Cerca de três séculos depois França e
Espanha, e pouco depois Inglaterra, se consolidam como Estados-nações. Contudo, a época de suas
formações esses não eram Estados modernos (seus governos dividiam a autoridade com a Igreja e/
ou não possuíam o monopólio da violência legítima).

216
André Vinicius Tschumi

pré-Vestfália não formavam uma sociedade de Estados. Esses estavam


inseridos no mesmo sistema anárquico dos demais reinos europeus.
Somente com a criação dos Estados modernos e de uma sociedade de
Estados européia em 1648 é que passa a existir um direito internacional
destinado a regular a convivência entre povos soberanos.
Assim, na Europa pós-Vestfália, é possível visualizar pela primei-
ra vez um sistema político capaz de absorver o princípio da igualdade
jurídica dos Estados. Por um lado, o respeito a este princípio era neces-
sário para se evitar a continuação dos conflitos político-religiosos que
solaparam a Europa por quase um século.9 Por outro lado, o respeito à
igualdade jurídica dos Estados era possível em razão da limitação do es-
copo de responsabilidades assumidas pelos Estados no direito interna-
cional, pois tal direito se resumia na época ao respeito às regras de mú-
tua abstenção que possibilitaram a convivência pacífica entre os Estados
europeus.10 Em outras palavras, o direito de soberania, caracterizado
pelo princípio da territorialidade e da não intervenção em outras na-
ções, limitava as relações jurídicas entre os Estados a uma gama restrita
de assuntos: guerra, divergências fronteiriças e o direito de navegação
em rios e mares. Nota-se assim que nessa época o direito internacional
servia basicamente para assegurar as relações diplomáticas entre os pa-
íses e solucionar disputas territoriais. Nesse cenário, caracterizado pela
expansão de um Estado em detrimento de outros, a igualdade jurídica
dos Estados torna-se um princípio necessário para garantir um mínimo
de coordenação dentro do novo sistema político europeu e evitar uma
nova guerra generalizada.
O propósito deste princípio no sistema de Estados do pós-Vestfá-
lia era o reconhecimento dos mesmos direitos a cada entidade soberana.
Um século após o final da Guerra dos Trinta Anos, Vattel foi o primeiro

9  Os Tratados de Vestfália encerraram duas longas guerras na Europa: a Guerra dos Oitenta Anos ou
Revolta Holandesa (1568-1648) e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). A principal conseqüência
decorrente da Paz de Vestfália foi a secularização do poder político, aceitando-se a diversidade
religiosa e política que permitiu a formação de uma multiplicidade de Estados soberanos.
10  O princípio de mútua abstenção consiste na aplicação da regra da soberania absoluta às relações
entre os Estados. O pós-Vestfália consolidou “a concepção de que a independência de qualquer
autoridade externa no controle do seu território e da sua população era um direito inerente de
todos os estados”. (BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo:
Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002. (Col.
Clássicos IPRI, 5). p. 40.) Conseqüentemente, cada Estado se abstém de interferir nas questões
internas dos demais.

217
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

autor a sustentar claramente a idéia de igualdade jurídica dos Estados


como senda uma norma jurídica, reiterada pelo costume denominado
par in parem not habet imperium (um igual não manda no seu igual).
Para Vattel, sendo a nação uma entidade composta por indivíduos su-
jeitos ao direito natural, aquela deve possuir os mesmos direitos que
os elementos que a constituem, ou seja, que os homens. Logo, o direito
aplicado aos Estados deve ser igual aquele aplicado à sociedade civil, na
qual consta o direito à igualdade jurídica de seus membros.
Desde que os homens são naturalmente iguais, e uma perfeita igualdade
prevalece em seus direitos e obrigações, como igualmente procedente da
natureza – Nações compostas por homens, e consideradas como pessoas livres
vivendo juntas no estado da natureza, são naturalmente iguais, e herdam da
natureza as mesmas obrigações e direitos. O poder ou a fraqueza neste caso
não produz diferença alguma. Assim como um anão é tão homem quanto um
gigante, uma pequena república não é menos soberana que o mais poderoso
reino. Como uma conseqüência necessária dessa igualdade, o que for legal para
uma nação é igualmente legal para qualquer outra, e o que for injustificável para
uma também será para a outra.11
A concepção de igualdade jurídica dos Estados de Vattel possui
uma lacuna típica às regras do direito internacional dos séculos XVII e
XVIII. Ela é formulada de uma maneira abstrata, fazendo notadamen-
te abstração de todos os elementos de força ou de grandeza física dos
Estados.12 Percebe-se assim que a noção de igualdade jurídica naquela
época não levava em conta o problema central que esse conceito en-
frenta a partir do século XX: como atribuir direitos iguais a Estados
extremamente desiguais em termos de força e de poder? Esse “lapso”
ocorreu porque a igualdade jurídica era então um conceito desprovido
de conteúdo próprio e que surgira como uma conseqüência lógica da
soberania absoluta desfrutada pelos Estados. Tal igualdade era mera-
mente formal, compatível com as enormes diferenças entre os Estados,
e não uma igualdade substantiva e com obrigações concretas impos-
tas aos Estados. Originalmente, a igualdade jurídica das nações não era
uma norma destinada ao direito internacional, mas apenas o resultado
de uma simples analogia com o direito dos homens.

11  VATTEL, Emerich de. The Law of Nations. 1753. Disponível em: < www.constitution.org/vattel/
vattel.htm >. Acesso em: 27 jul. 2002. Seção 18 e 19.
12  Cf. REUTER, Paul. Direito Internacional Público. Lisboa: Presença, 1981. p. 103.

218
André Vinicius Tschumi

Nos séculos XVII e XVIII o princípio da igualdade jurídica não


possuía um conteúdo próprio. As obrigações decorrentes desse princí-
pio eram as mesmas daquelas decorrentes do respeito à soberania. Para
os pensadores dessa época havia certa confusão e mistura entre as regras
de “respeito à soberania” e de “respeito à igualdade jurídica dos Estados”.
Naquela época interpretava-se o princípio da igualdade entre as nações
como o “direito que têm os Estados soberanos de ser iguais perante a lei
internacional, de agir livremente nos limites da sua jurisdição, de não
depender de qualquer outro membro da comunidade internacional, de
todos possuírem, nesta, os mesmos direitos e obrigações.”13
Logo, o primeiro centenário de prática da norma da igualdade
jurídica (meados do século XVII a meados do século XVIII) marca o
momento em que tal conceito foi mais respeitado. Essa constatação é
explicada por dois fatos. Em primeiro lugar, não havia em tal época uma
noção clara sobre como interpretar esse conceito. Em segundo lugar,
os direitos e obrigações internacionais dos Estados nos cem anos pós-
Vestfália eram bastante restritos, facilitando o tratamento igualitário
dos países. Em suma, a igualdade jurídica era mais respeitada naquele
período porque o direito internacional encontrava-se ainda num esta-
gio nascente, muito pouco desenvolvido. Por outro lado, o baixo nível
de integração e comprometimento dos Estados com os problemas para
além de suas fronteiras possibilitou, principalmente às grandes potên-
cias, violar a soberania de outros Estados sem sofrerem sanções. Essa
situação era muito freqüente nas relações com as nações de outras regi-
ões do planeta, pois para os europeus tais nações não estavam sujeitos às
regras do direito das gentes.14 Logo, nesses casos não havia necessidade
de se aplicar o princípio da igualdade jurídica. Isso se tornou mais cor-
riqueiro no século XIX, com a expansão imperialista européia rumo à
África e a Ásia.15

13  ACCIOLY, Hidelbrando. Tratado de Direito Internacional Público. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE,
1956. p. 57.
14  No século XIX a doutrina ortodoxa dos internacionalistas positivistas sustentava que a
sociedade internacional era uma associação européia, a que os estados de outras regiões só podiam
ser admitidos se e quando atingissem o padrão de civilização ditado pelos europeus. (BULL,
Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 43.)
15  A título de exemplo, as relações entre as potências européias e a China no século XIX eram
marcadas por uma flagrante desigualdade jurídica, baseada em tratados que previram a abertura
unilateral do comércio chinês e o princípio da extraterritorialidade para os cidadãos europeus que
estivessem no país asiático.

219
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

Percebe-se que desde a sua efetivação, em meados do século XVII,


até o final do século XVIII, a teoria da igualdade jurídica dos Estados
serviu muito bem aos interesses de um continente segmentado e exau-
rido por disputas político-religiosas. A Europa de Estados plenamente
soberanos necessitava da teoria da igualdade jurídica como forma de
garantir múltiplos direitos: a liberdade de religião, o direito aos Estados
de executar políticas exteriores próprias, concluírem tratados, trocarem
representantes diplomáticos, fazerem a guerra e etc. Esses direitos eram
válidos mesmo para pequenas unidades como os Estados papais ou as
cidades-estados de Genebra e Veneza, o que preservava a autonomia
dessas nações perante grandes potências como a França ou a Áustria.
À medida que o século XVIII avançava, a queda do jusnatura-
lismo e a ascensão do voluntarismo e do positivismo provocaram uma
mudança, mais pratica do que teórica, no principio da igualdade jurídi-
ca dos Estados. Como a “vontade” dos Estados tornou-se a base do di-
reito internacional, a igualdade jurídica deixa de ser considerada como
uma regra fundamental para a coexistência entre os Estados, livrando-
se também das premissas universalista e solidarista. Tanto a soberania
como a igualdade jurídica não foram mais interpretadas como regras
morais advindas do direito natural e aplicáveis a todos os povos. O prin-
cípio da igualdade passou a ser visto apenas como um ingrediente para
a preservação do sistema internacional.16 Porém, a conservação do sis-
tema exigia sacrifícios, sobretudo dos pequenos Estados.
O sistema de equilíbrio de poder instaurado após as Guerras Napo-
leônicas, e que durou até a Primeira Guerra Mundial, era baseado numa
flagrante desigualdade jurídica. O consenso entre os estadistas europeus
nos congressos do século XIX era baseado exclusivamente no interesse
das grandes potências. Por exemplo, os pequenos Estados sequer parti-
ciparam do governo congressional.17 E o Protocolo de Troppau, firmado
pela Santa Aliança (Rússia, Prússia e Áustria) em 1820, representava uma

16  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 45-46.


17  O governo congressional é uma denominação para o sistema de congressos periódicos ocorrido
entre 1815 e 1822 na Europa. Ele constitui uma séria infração a igualdade jurídica das nações,
pois as cinco potências européias (Inglaterra, Rússia, França, Áustria e Prússia) estabeleceram uma
espécie de governo europeu sem a participação do restante do continente, deliberando sozinhas
sobre questões que envolviam, em muitos casos, outros países da Europa.

220
André Vinicius Tschumi

clara violação à igualdade dos Estados, submetendo o direito à vontade


arbitrária de um pequeno grupo de monarcas absolutos.18
Enfim, o século que antecede à Segunda Conferência de Paz de
Haia é marcado por uma contradição no que diz respeito ao conceito de
igualdade jurídica dos Estados. Por um lado, esse conceito se difundiu
bastante junto às fontes do direito, sendo citado inclusive na jurispru-
dência de tribunais nacionais.19 Por outro lado, carecendo ainda de subs-
tância e invocado pelas grandes potências apenas como um instrumen-
to retórico, o princípio da igualdade jurídica passa a ser repetidamente
violado. Com a criação de novos Estados e a transformação gradual do
sistema europeu num sistema internacional, a igualdade jurídica passar
a ser defendida pelos pequenos países como argumento de defesa contra
o imperialismo das grandes potências.

A política externa do Brasil e a Segunda Conferência de Paz


A Segunda Conferência de Paz de Haia ocorreu entre os dias 15
de junho e 18 de outubro de 1907, retomando e aprofundando os te-
mas abordados na (primeira) Conferência de Paz de Haia. Realizado em
1899 por iniciativa do czar da Rússia, o primeiro encontro em Haia teve
o propósito de impor uma limitação geral ao uso de armamentos. Entre-
tanto, por causa da falta de interesse das grandes potências (a limitação
do uso de armamentos entrava em contradição com os interesses impe-
rialistas), este objetivo foi deixado de lado. Buscou-se então promover a
paz, principalmente através do recurso à arbitragem, considerada como

18  Segundo o Protocolo de Troppau, os Estados que passassem por uma troca de governo em
virtude de uma ação revolucionária, cujas conseqüências ameacem outros Estados, estavam
sujeitos a sofrer uma intervenção por parte da Santa Aliança com a finalidade de recolocar no
poder o governo deposto.
19  “Em 1812, por exemplo, no caso da escuna Exchange, decidido pela Suprema corte dos Estados
Unidos, o Chief Justice Marshall já proclamava a “perfeita igualdade e absoluta independência” dos
Estados soberanos; e anos depois, no caso Antelope, o mesmo Marshall dizia: “Nenhum princípio
de direito geral é mais universalmente reconhecido do que o da perfeita igualdade das nações. A
Rússia e Genebra têm direitos iguais. Resulta dessa igualdade que nenhuma pode, legitimamente,
impor uma regra à outra”. Por outra parte, na Grã-Bretanha, em 1817, Sir William Scott, no caso
do navio francês Le Louis, julgado pela alta corte do almirantado britânico, também já se referia à
“perfeita igualdade e inteira independência de todos os Estados”, considerando-as como o principal
fundamento do direito internacional”. (Fenwick, apud ACCIOLY, Hidelbrando. Tratado de Direito
Internacional Público, p. 223.)

221
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

o modo mais eficaz e mais eqüitativo para a solução de questões que não
pudessem ser resolvidas pelos meios político-diplomáticos.20
Graças aos Estados latino-americanos, ausentes na Primeira Con-
ferência, a Segunda contou com a participação de 44 países (18 países
a mais que em 1899), o que abrangeu praticamente toda a comunidade
internacional. Os principais temas tratados em 1907 discorriam sobre:
o direito de captura; o bloqueio naval; o uso de minas e a questão dos
bens particulares durante a guerra marítima; a transformação de navios
mercantes em embarcações bélicas; o papel dos países neutros durante
os conflitos; a questão da cobrança dos empréstimos internacionais pe-
los Estados; a formação do Tribunal de Presas e de um novo tribunal de
arbitragem ou a criação de uma corte internacional de justiça.
A participação do Brasil na Segunda Conferência ocorreu no auge
do prestígio de Rio Branco como ministro das relações exteriores, que
ocupou o cargo de 1902 até 1912. A política da delegação brasileira em
Haia foi caracterizada pela defesa das mesmas idéias que caracterizaram
a administração do Barão de Rio Branco: a utilização em larga escala da
arbitragem internacional, a política pragmática de interesses (sem ali-
nhamentos automáticos com qualquer país) e a defesa da igualdade jurí-
dica dos Estados. A constante comunicação e a grande afinidade de po-
sições entre Rio Branco e Rui Barbosa, chefe da delegação brasileira em
Haia, sobrepujaram as diferenças ideológicas entre ambos.21 Enquanto
Rui Barbosa era um liberal convicto e um dos líderes do movimento
republicano no Brasil, Rio Branco era um árduo defensor e admirador
do regime monárquico.

I. O uso da arbitragem internacional


A arbitragem internacional pública foi um meio de solução pa-
cífica de controvérsias muito utilizado nos séculos XVIII, XIX e início
do XX. Antes de assumir o cargo de Ministro de Estado, Rio Branco foi

20  A Convenção de Haia de 1899 estabeleceu a Corte Permanente de Arbitragem, em vigor até os
dias de hoje. Entretanto, ao longo de sua história a corte trabalhou com apenas 26 casos. Após o
estabelecimento da Corte Permanente Internacional de Justiça em 1923 e, posteriormente, da Corte
Internacional de Justiça em 1945, o uso da Corte Permanente de Arbitragem se tornou cada vez
mais raro. (MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 1165.)
21  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya. 3. ed. Rio de Janeiro: Nacional, 1912,
p. 8. Graça Aranha apud VIANA FILHO, Luís. Três estadistas no Império: Rui-Nabuco-Rio Branco.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. v.2, p. 117.

222
André Vinicius Tschumi

nomeado para defender os interesses do país em dois litígios territoriais


decididos pela arbitragem, contra a Argentina e a França. O prestígio
adquirido pelo Barão por agregar mais 430.621 km² de terras ao territó-
rio brasileiro nas questões das Missões e do Amapá tornou Rio Branco
o nome mais indicado para o cargo de Ministro das Relações Exteriores
do futuro governo brasileiro.22 À frente do Itamaraty, em 1904, o Barão
se envolveu em mais uma disputa territorial solucionada por meio da
arbitragem quando os limites do Brasil com a Guiana Britânica foram
estipulados pelo rei da Itália, Vítor Emanuel III. Além disso, nos dez
anos da gestão Rio Branco foram assinados mais de trinta convenções
de arbitragem em caso de litígios relativos à interpretação ou aplicação
de diversos tratados.23
Nas questões territoriais o recurso à arbitragem era usado por Rio
Branco apenas quando fosse conveniente aos seus interesses. Isso pode
ser percebido pelo fato de que nos litígios contra as grandes potências –
França e Grã-Bretanha – o Brasil recorria aos meios jurídicos, mas nos
litígios com os países sul-americanos o Barão vetava o uso da arbitra-
gem24. Nesses casos Rio Branco buscava uma solução através de meios
políticos, em que o peso do Brasil como maior potência sul-americana
pudesse ser utilizado a fim de garantir um resultado favorável ao país.
Apesar da grande tradição e experiência da diplomacia francesa e
britânica em disputas arbitrais, esta é, certamente, a melhor opção para
a solução de controvérsias contra um Estado mais forte. Na arbitragem
as partes em disputa se comprometem a cessar quaisquer atos de hos-
tilidades e aguardar a sentença, que possui caráter vinculativo, ou seja,
as partes se obrigam a cumprir escrupulosamente a decisão do árbitro.
Este modo de solução de controvérsias, portanto, anula qualquer tipo
de vantagem que o Estado mais poderoso possa extrair a partir da sua

22  Cf. RODRIGUES, José H; SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma história diplomática do Brasil: 1531-
1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 260.
23  Cf. CARVALHO, Delgado de. História diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1959. p. 258.
24  O único litígio territorial envolvendo o Brasil e outro país sul-americano resolvido através da
arbitragem foi a Questão Palmas, contra a Argentina. A decisão de submeter este litígio a arbitragem
foi tomada pelo Brasil em 1889, quando Rio Branco era apenas cônsul em Liverpool. Apesar de não
ter exercido influência alguma na decisão de encaminhar esse litígio à arbitragem, sendo inclusive
contrário a tal medida, Rio Branco não apenas aceita defender o Brasil como vence também a
disputa com a Argentina. (LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco); bibliografia pessoal
e história política. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1965. p. 196.)

223
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

condição de superioridade militar. Quando o Brasil se encontrava na


posição do Estado mais forte, Rio Branco vetou o uso da arbitragem.
Isto ocorreu, por exemplo, na Questão Acre, o litígio territorial mais
complicado que o Brasil já disputou.
Para poder utilizar a força militar na Questão Acre sem provocar
um conflito com as duas outras partes, o Brasil contraria a posição pe-
ruana e negocia em separado com cada uma das partes. Ao isolar o Peru
da disputa, o Brasil aumenta o seu poder de influência sobre o outro
Estado envolvido no litígio, a Bolívia. Isso permitiu ao Brasil agilizar as
negociações com a Bolívia quando surgiu o primeiro grande impasse:
Rio Branco, então, ordena a ocupação militar do território, isolando o
Acre do Estado boliviano. Quando aquele país percebeu que jamais te-
ria condições de reaver o Acre através do uso da força, dada a grande
superioridade bélica do Brasil, e como o Brasil negava a resolução do
impasse pela via arbitral, a Bolívia cedeu à pressão brasileira e concor-
dou em negociar o Acre com Rio Branco. Assim, em 1904 é assinado
o Tratado de Petrópolis. Após a Bolívia reconhecer o direito do Brasil
àquelas terras, ficou mais fácil para Rio Branco negociar com o outro
Estado envolvido na questão, o Peru, que em 1909 reconhece o Acre
como território brasileiro.
A questão do Acre prova que o recurso ao direito internacional
era utilizado apenas quando fosse conveniente para os interesses do
Brasil, o que demonstra o teor bastante realista da política de Rio Bran-
co. Essa linha de conduta pragmática e realista no tocante ao recurso
à arbitragem foi seguida por Rui Barbosa na Conferência de Haia. Em
dois momentos da conferência o chefe da delegação brasileira, seguindo
as orientações de Rio Branco, defende o uso da arbitragem: nos debates
sobre a cobrança de dívidas de Estados e na questão da criação de um
tribunal permanente.
A cobrança da dívida de Estados suscitou um polêmico debate em
Haia. De um lado encontravam-se as potências européias e os Estados
Unidos, sustentando a proposta apresentada pelo general norte-ameri-
cano Horace Porter. Essa previa o uso da arbitragem para solucionar as
controvérsias sobre a cobrança de dívidas entre Estados, possibilitando
o uso da força somente como último recurso.25 Do outro lado estavam

25  De acordo com a proposta Porter, os Estados recorreriam à força armada apenas nas três hipóteses
seguintes: a) Quando o Estado devedor recusasse ou ignorasse o oferecimento de arbitragem; b)

224
André Vinicius Tschumi

alinhados todos os países latino-americanos, os quais defendiam a dou-


trina Drago que condenava o emprego da força para compelir um Esta-
do a pagar suas dívidas públicas.26
Pessoalmente, Rui Barbosa desejaria defender a doutrina Drago,
pelo menos quanto à repulsa às soluções de força, mas transigiu com o
ponto de vista de Rio Branco, que sustentava a doutrina Porter. Seguido
as orientações do Barão, Rui Barbosa fundamenta sua posição com o ar-
gumento de que a soberania de um país não estava em questão, porque, ao
contrair uma dívida, o Estado não estaria exercendo função de soberania,
mas praticando um ato de direito privado.27 Nesse ponto, os dois estadis-
tas brasileiros concordavam: nenhum país pode deixar de cumprir um
contrato de dívida simplesmente por invocar o direito de soberania.
O embaixador do Brasil em Haia sustentava que deixar de reco-
nhecer a contingência de um apelo à força sob qualquer circunstância,
como defendia a América espanhola, significava enfraquecer o crédito
dos Estados que precisavam de financiamento externo para o seu desen-
volvimento. Logo, o apoio a doutrina Drago implicaria em um grande
aumento da taxa de juros em razão do maior risco de inadimplência.
Como o Brasil era um dos principais países que adquiria capitais exter-
nos, sua posição foi muito importante ao influenciar os demais Estados
que se encontravam na mesma situação a votar a favor da aprovação da
doutrina Porter.28
O outro momento na Conferência de Haia em que Rui Barbosa
demonstra ser intransigentemente favorável à arbitragem é nos debates
acerca do novo tribunal permanente. O delegado brasileiro foi o grande
responsável pela derrubada do projeto que instituía uma corte interna-

Quando o Estado devedor, embora aceitando, em princípio, a sugestão de arbitragem, viesse a


tornar impossível a celebração do compromisso; c) Quando o Estado devedor, após a arbitragem,
não se conformasse com a decisão proferida”. (RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos
de direito internacional. Porto Alegre: UFRGS, 1965. p. 124).
26  Segundo a doutrina Drago (Ministro das Relações Exteriores da Argentina), “o capitalista que
empresta dinheiro a um Estado estrangeiro deve levar sempre em consideração os recursos do país
com o qual entra em negociações. Daí, as condições mais ou menos onerosas, estabelecidas para
o empréstimo. Mas, sobretudo, ele não pode ignorar que a entidade que contrai o empréstimo
é soberana e que, por conseguinte, contra ela não poderá ser iniciado, nem cumprido, nenhum
processo executivo ou sumário, já que isso comprometeria a sua própria existência” (RUSSOMANO,
Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos de direito internacional, p. 123-124).
27  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 15.
28  Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 376-377.

225
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

cional de justiça ao demonstrar a vantagem da arbitragem internacional


sobre um tribunal, especialmente para as potências de médio e peque-
no porte.29 Portanto, nessa discussão o Brasil não se alinha às grandes
potências, como fizera na questão da cobrança da dívida de Estados,
defendendo o ponto de vista dos demais Estados latino-americanos no
tocante à arbitragem internacional. Esse fato evidencia a política prag-
mática adotada pelo Brasil em Haia, onde o Brasil se aliava aos blocos
conforme os seus interesses em cada tema.

II. A política pragmática de interesses


Nos anos em que Rio Branco esteve à frente do Itamaraty, o Mi-
nistério das Relações Exteriores pode ser caracterizado por possuir uma
política externa pragmática, delimitada por um conjunto de regras que
pautavam a condução dos mais diferentes assuntos, desde o tratamento
dispensado às questões de fronteiras até a formação de alianças políti-
cas, seja com os vizinhos sul-americanos, seja com os Estados Unidos.
A política pragmática de Rio Branco tinha como característica o não-
alinhamento automático com qualquer país. Acima de quaisquer alian-
ças, estavam os interesses nacionais do Estado.
A época em que Rio Branco ocupou o cargo de Ministro das Re-
lações Exteriores marcou uma grande aproximação entre Brasil e Esta-
dos Unidos, caracterizada pela fundação da embaixada brasileira em
Washington30 ou o apoio do Brasil à Doutrina Monroe31, reafirmada
pelo presidente dos EUA Theodore Roosevelt. Contudo, isso não signi-
ficava um alinhamento incondicional do Brasil à política externa norte-
americana. Longe disso, a aproximação com os EUA atendia a interesses
bastante objetivos.

29  Nas palavras de Rui Barbosa: “Um tribunal permanente, por mais alta que fosse a imparcialidade
dos seus membros, correria o risco de assumir, aos olhos da opinião universal, o caráter de uma
representação de Estados; e os governos, podendo suspeitar de exposto a influências políticas, ou
a correntes de opinião, não acederiam em comparecer a sua presença como a de uma jurisdição
inteiramente desinteressada.” (STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 133).
30  Em 1905, Rio Branco eleva a categoria da representação brasileira em Washington, tornando-a
a primeira embaixada brasileira do mundo. (Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco),
p. 334).
31  Cf. CERVO, Amando L; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. São Paulo:
Ática, 1992. p. 165.

226
André Vinicius Tschumi

Em primeiro lugar, a aproximação com os EUA garantiria a so-


berania nacional e a supremacia do Brasil no sistema sul-americano. O
início do século XX representa o auge do imperialismo europeu, que
ameaçava inclusive a América do Sul. Vale mencionar que a doutrina
Drago originou-se devido a um bloqueio naval feito por Inglaterra, Ale-
manha e Itália contra a Venezuela em 1902 para forçar esse país a pagar
uma divida em atraso. Três anos mais tarde um navio de guerra alemão
violou a soberania brasileira ao desembarcar em território nacional sem
qualquer aviso.32 Apesar desses incidentes, as potências européias reco-
nheciam o papel de liderança dos EUA na região e não cometeriam uma
intervenção militar na região sem consultar previamente Washington.
Logo, a aproximação com os EUA tinha o objetivo, dentre outros, de
assegurar a rejeição norte-americana a quaisquer operações armadas
contra o Brasil.33
Em segundo lugar, com uma economia baseada na exportação de
produtos agrícolas tropicais, o Brasil tinha nos Estados Unidos um mer-
cado consumidor sólido e com amplas perspectivas de expansão para o
café e outros produtos primários34. Por fim, a aproximação com os EUA
objetivava garantir, no mínimo, a neutralidade da potência do norte na
resolução das questões de fronteiras do Brasil com os países fronteiri-
ços. Essa neutralidade foi essencial para o sucesso obtido pelo Barão
na Questão do Acre, quando Washington sofreu pressões para intervir
contra os interesses do Brasil.35
No início da Segunda Conferência de Paz a delegação dos EUA
estava bastante satisfeita com a posição do Brasil. Além do apoio à dou-

32  Em 1905, o navio de guerra da Alemanha Panther desembarcou no porto de Itajaí (SC) para
fazer averiguações a respeito de um desertor alemão. As buscas feitas pelos marinheiros daquele
país no Brasil constituíram uma grave violação da soberania brasileira. O incidente diplomático foi
resolvido com um pedido formal de desculpas escrito pelo governo do Kaiser alemão Guilherme II
(Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 343-348).
33  Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 329.
34  Cf. CERVO, Amando L; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil, p. 163.
35  Na questão do Acre, as boas relações entre Brasil e EUA foram fundamentais para evitar que
o governo ianque viesse a intervir em favor do Bolivian Syndicate, empresa de capitais norte-
americanos e ingleses que havia adquirido com o governo boliviano o direito de concessão sobre
a zona em disputa por Bolívia, Brasil e Peru. Mais tarde, o Bolivian Syndicate aceitou retirar-se das
terras em litígio mediante ao pagamento de 110 mil libras efetuado pelo governo brasileiro (Cf.
RODRIGUES, José H; SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma história diplomática do Brasil: 1531-1945,
p. 255).

227
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

trina Porter, um dos primeiros discursos feitos por Rui Barbosa em


Haia consistiu em uma calorosa defesa da proposta americana visando
abolir o direito de captura da propriedade particular no mar em tem-
pos de guerra.36
O alinhamento do Brasil com os EUA e as demais grandes po-
tências em Haia durou até o momento do inicio das discussões sobre
o Tribunal de Presas. Nessa questão, o projeto apresentado por França,
Inglaterra, Alemanha e EUA possuía um ponto fundamental que entra-
va em desacordo com o Brasil: a falta de critérios para a determinação
do número de juízes que cada país teria direito e do tempo de perma-
nência dos mesmos no tribunal. Os Estados estavam divididos em oito
categorias, de acordo com critérios subjetivos que levavam em conta o
poder e a influência de cada Estado. O Brasil, com uma marinha mer-
cante somando 217.000 toneladas, uma marinha de guerra com 39.350
toneladas e um comércio marítimo de 2.155.588.025 francos, ocupava
apenas a sexta categoria. Enquanto isso, a Romênia, por exemplo, com
uma marinha mercante de 97.000 toneladas, uma marinha de guerra
com 1910 toneladas e um comércio marítimo de 794.639.379 francos,
pertencia à quarta categoria. Portanto, não havia nenhum motivo lógico
para países como a Romênia possuírem uma representação maior que
a do Brasil em um tribunal que trata exclusivamente de questões marí-
timas. Como as grandes potências não modificaram o projeto, apesar
da flagrante falta de coerência na classificação dos países, o Brasil foi o
único país a votar contra o Tribunal Internacional de Presas. De uma
posição inicialmente alinhada com os países ricos, o Brasil havia passa-
do para uma posição isolada neste assunto.37
A conciliação com os pequenos Estados ocorreu somente na se-
gunda metade da conferência, quando das discussões sobre a formação
de um novo tribunal internacional de justiça. A partir das propostas
apresentadas pelas grandes potências, Rio Branco entrou em contato
com todas as capitais da América Latina, demonstrando o ultraje que
esta proposta infringia ao princípio da igualdade jurídica dos Estados.38
A conseqüência foi o recebimento pelas delegações latino-americanas

36  Uma parte do discurso encontra-se disponível em: STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil
em Haya, p. 13.
37  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 21, 110-119.
38  Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 378.

228
André Vinicius Tschumi

de instruções explícitas para sustentar a posição do Brasil.39 Esse fato


tornou, por um breve momento, muito tensas, quase hostis, as relações
entre Rui Barbosa e a delegação americana.40 A repercussão causada por
esta posição brasileira ao final da conferência foi tamanha que o Brasil
saiu com a imagem de defensor dos pequenos Estados, mesmo tendo
passado mais da metade do evento votando de maneira contrária às pe-
quenas potências.41

A defesa pelo Brasil do princípio da igualdade jurídica dos


Estados
Como demonstrado no item anterior, as posições defendidas pelo
Brasil em Haia representavam uma continuação da política externa pra-
ticada pelo Itamaraty. O mesmo é válido no tocante à defesa do princí-
pio da igualdade jurídica dos Estados. Antes da Segunda Conferência de
Paz, Rio Branco já havia declarado que o princípio da igualdade jurídica
dos Estados era uma das características da sua administração. No dis-
curso de abertura da Terceira Conferência Pan-Americana, ocorrida em
1906 no Rio de Janeiro, o Barão menciona que nos congressos se deve
atender “por igual ao direito do mais fraco como ao do mais poderoso”.42
Entretanto a delegação dos EUA enviada a Haia, ao defender a consti-
tuição de um tribunal desigual na composição dos países, deve ter se
esquecido que um ano antes, no Rio de Janeiro, o Secretário de Estado
defendera posição semelhante a de Rio Branco.43
Percebe-se também a aplicação do princípio da igualdade jurídi-
ca dos Estados por Rio Branco após a Segunda Conferência de Paz. Em

39  Cf. LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 383.


40  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 19.
41  Segundo Rui Barbosa, a divergência com os Estados Unidos “se circunscreveu aos dois casos, em
que era de uma necessidade inevitável: o da classificação dos Estados soberanos, que daria em terra
pelos fundamentos com todo o direito internacional, e do tribunal de presas, cuja organização nos
despojava, sem motivo nem pretexto possível, de um direito manifesto. Perante isso, estivemos com
os Estados Unidos em todas as suas propostas de maior monta: a isenção da propriedade particular
na guerra naval, a cobrança das dívidas contratuais, o arbitramento obrigatório, a periodicidade das
conferências” ( STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 140).
42  LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 353.
43  Em um de seus discursos pronunciados durante a III Conferência Pan-Americana, o Secretário
de Estado Elihu Root invocou as seguintes palavras: “We deem the independence and equal right of
the smallest and weakest member of the family of nations as entitled to as much respect as those of the
greatest empire” (LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco), p. 383).

229
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

1909 o Brasil assinou um tratado com o Uruguai que cedeu a esse país,
espontaneamente e sem compensações, o condomínio da lagoa Mirim
e do rio Jaguarão. Desde 1801, tomara o Brasil aquelas fronteiras que,
premido pelas lutas internas, o Uruguai reconhecera em 1852.44 A ati-
tude do Barão eliminou um tratado desigual, com mais de meio século,
que estabelecia uma fronteira fluvial comum entre os dois países, conce-
dendo, entretanto, a apenas um deles o direito a livre navegação naque-
las águas. Ao firmar tal gesto, Rio Branco contribuiu não apenas para a
afirmação do princípio da igualdade jurídica dos Estados, mas também
afastou o Uruguai da órbita de influência da Argentina e manteu a coe-
rência com a doutrina da livre navegação na bacia do Rio da Prata.
Em Haia, a defesa do princípio da igualdade jurídica dos Estados
foi a base da conduta do Brasil ao longo de toda a conferência. A dele-
gação brasileira fez mais do que apenas criticar as propostas apresenta-
das pelos outros governos que não seguiam esse princípio. Rui Barbosa
apresentou um projeto para a composição de um novo tribunal de ar-
bitragem. A proposta brasileira respeitava o princípio da igualdade ju-
rídica, mas não obteve muito respaldo na assembléia. A firme oposição
de Rui Barbosa às propostas sobre o novo tribunal apresentadas pelas
grandes potências dificultaram para o Brasil obter o apoio desses países
para a sua idéia.45
O Tribunal Permanente de Arbitragem criado na Primeira Con-
ferência de Paz, em 1899, possuía um grande prestígio durante os seus
primeiros anos, decorrente do significativo número de casos então re-
solvidos.46 Contudo, persistia o problema de que, embora o tribunal
fosse permanente, o mesmo não acontecia com os seus juízes, escolhi-
dos, caso a caso, pelos países litigantes. Podiam participar do tribunal
tríplice dois juízes nacionais, respectivamente, de cada um dos Estados

44  Cf. VIANA FILHO, Luís. Três estadistas no Império: Rui-Nabuco-Rio Branco, p. 1157.
45  “Pelo projeto brasileiro os 44 Estados seriam divididos em três categorias formadas por ordem
alfabética. Cada Estado elegeria seu juiz por nove anos, mas cada juiz só tomaria assento no
tribunal por três anos. Os juízes não efetivos constituiriam uma espécie de reserva na qual qualquer
litigante poderia escolher seu juiz, se assim o entendesse. Destarte o direito de ser cada Estado
julgado por juízes de sua própria eleição, ficaria ressalvado como na Corte Permanente de 1899 que
desapareceria com este plano. Entretanto haveria sempre um tribunal em vigor, composto para os
primeiros três anos de juízes do primeiro grupo alfabético, começando pela Alemanha. O segundo
triênio constituir-se-ia do segundo grupo e assim por diante, devendo os respectivos membros
achar-se a 24 horas de Haia” (STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 24).
46  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 1165.

230
André Vinicius Tschumi

em conflito. A conseqüência prática desse fato era que, na realidade, o


julgamento se resumiria ao voto desempatador do terceiro juiz compo-
nente da Corte.47
Tendo em vista a solução deste problema, a Rússia propôs ampliar
o tribunal existente, dando aos seus atuais membros a incumbência de
nomearem três juízes, que deveriam residir em Haia, como árbitros per-
manentes. Esta proposta foi vigorosamente apoiada pela Holanda, com
pequenas modificações. Há razão para crer que, se houvesse certa pres-
são, ela teria sido aprovada unanimemente na conferência.48
Contudo, a delegação norte-americana não se satisfez com tal
proposta, e apresentou um projeto mais ousado, que previa a criação de
uma Corte Internacional de Justiça, nos moldes do Supremo Tribunal
de seu país. Ao contar com o apoio da Alemanha, a proposta dos EUA
ganhou força. A conseqüência imediata foi a retirada do projeto russo,
com o assentimento dos seus autores, e assim a conferência se entregou
à redação da proposta para constituir o Supremo Tribunal que os ame-
ricanos pediram.49
Um dos únicos delegados a alertar sobre o perigo da constituição
de um tribunal nos moldes do projeto norte-americano, especialmente
para os pequenos Estados, foi Rui Barbosa. Segundo esse, a efetivação
de uma corte internacional de justiça nos moldes do supremo tribunal
dos Estados Unidos legitimaria o poder de intervenção das grandes po-
tências sobre os demais Estados. Na ausência de um governo mundial,
apenas as grandes potências possuiriam a capacidade para “executar” as
sentenças do tribunal ou para sancionar o Estado que não as cumprir.
Esse cenário representaria um grande risco aos Estados pouco pode-
rosos e à própria imparcialidade do direito. Assim, para Rui Barbosa a
arbitragem é o modo pacífico de solução de controvérsias preferido e o
mais eficaz no direito internacional.50
As ideias de Rui Barbosa causaram uma forte repercussão na con-
ferência, especialmente entre os países da América Latina. Rio Branco
contatou os diplomatas brasileiros acreditados pelos países vizinhos

47  Cf. RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos de direito internacional, p. 129.
48  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 16.
49  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 16.
50  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 126-127.

231
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

para conseguir o apoio das pequenas e médias potências da América,


porquanto vieram instruções de todos os governos sul-americanos aos
seus representantes em Haia para apoiarem o delegado brasileiro.51
A formação de um bloco de oposição levou a delegação norte-
americana a modificar sua proposta. A corte internacional de justiça
seria substituída por um novo tribunal de arbitragem, nos moldes do
projeto inicial da delegação da Rússia. Os países seriam divididos em
cinco categorias, de acordo com critérios políticos. As oito grandes po-
tências (Alemanha, Aústria-Hungria, Estados Unidos, França, Inglater-
ra, Itália, Japão e Rússia), além da Holanda (na condição de país sede),
teriam uma cadeira fixa no tribunal, enquanto os países da última ca-
tegoria (aqueles de menor importância ou poder) possuiriam o direito
de indicar, a cada doze anos, um nacional para ocupar uma cadeira pelo
período de doze meses. Do total de dezessete vagas, oito seriam rotati-
vas – reservadas aos médios e pequenos Estados52. De acordo com este
projeto, o número de cadeiras reservadas à América Latina no tribunal
seria de aproximadamente três, equivalente a 18% das vagas, proporção
bastante inferior ao total de países latino-americanos em Haia, equiva-
lente a 45% da conferência.
A partir deste momento, o debate polarizou-se entre Rui Barbo-
sa e o Barão Marschall, plenipotenciário da Alemanha que defendia o
interesse das grandes potências. Rui Barbosa argumentava que a cons-
tituição de um tribunal de arbitragem estabelecendo direitos distintos
aos Estados na composição da corte era inaceitável. Para justificar sua
posição, o primeiro argumento invocado pelo brasileiro foi o de que o
direito de igualdade dos Estados já fora estabelecido na Primeira Con-
ferência, não podendo ser revogado por um simples comitê de trabalho
da Segunda Conferência.53
A seguir, Rui Barbosa combate a idéia de que a existência de uma
diferença no período de anos em que cada país estará representado no
tribunal não infringe a igualdade jurídica dos Estados. Seu argumento é
que a variação (mudança no período de tempo) na condição do exercício
afeta o direito em si, uma vez que o “direito” de alguns Estados seria mais

51  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 14.


52  Cf. RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos de direito internacional, p. 129.
53  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 110-111.

232
André Vinicius Tschumi

extenso do que o de outros, o que nitidamente torna os Estados juridica-


mente desiguais. Para tornar suas idéias mais claras, Rui Barbosa argu-
menta que se o tempo de exercício não afeta o direito em si, o período
mínimo de permanência no tribunal poderia ser reduzido para 24 horas
em vez de um ano. Este exemplo hipotético, mas aceitável de acordo com
o conceito de igualdade formulado pelas grandes potências, demonstra
muito bem a insensatez da idéia de que as condições de exercício não
afetam a igualdade jurídica dos Estados.
As condições de exercício não respeitam a igualdade senão quando são iguais
para todos que o possuem. Pelo contrário, a desigualdade no exercício implicaria
a desigualdade no próprio direito, porque o valor de um direito não se mede
realmente senão pela possibilidade jurídica de o exercer.
E pois para terminar distingamos, como se deveria ter feito desde o princípio,
para remover a dúvida. Há [no projeto] dois direitos distintos: o de nomear e o
de ter assento, absolutamente desiguais. Pois bem: é esta desigualdade que viola
a igualdade dos Estados.54

Ao defender tal posição, Rui Barbosa recorre a argumentos acerca


do direito de soberania e de igualdade jurídica dos Estados, formulados,
respectivamente, por Jean Bodin e Emerich de Vattel. O jurista brasilei-
ro remonta ao autor francês ao considerar a soberania como absoluta,55
consistindo esta, na prática, no direito de independência dos Estados. Já
a influência de Vattel é percebida na justificativa à tese da igualdade jurí-
dica dos Estados apresentada pelo brasileiro, a qual é muito semelhante
ao do autor suíço. Enquanto Vattel comparara as desigualdades políticas
das nações a dois homens, um gigante e um anão,56 o brasileiro utiliza
como referência um político influente e um pobre trabalhador. Em am-
bos os casos os homens possuem os mesmos direitos, assim como deve
ocorrer com as nações na seara internacional.
Por certo que entre os Estados, como entre os indivíduos, diversidades há de
cultura, probidade, riqueza e força. Mas disso derivará, com efeito, alguma
diferença no que lhes entende com os direitos essenciais? Os direitos civis são
idênticos para todos os homens. Os direitos políticos são os mesmos para todos

54  STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 112-113.


55  Primeiro teórico a formular uma definição do conceito de soberania, Jean Bodin atribui seis
características à soberania. Além do fato de ser absoluta, no entender de Jean Bodin a soberania é
também perpétua, indivisível, intransmissível, indelegável, inalienável e imprescritível.
56  Para conferir o paralelo entre os homens e as nações feito por Vattel consultar: VATTEL,
Emerich de. The Law of Nations, p. 4.

233
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

os cidadãos. Na eleição desse augusto parlamento soberano da Grã-Bretanha


Lord Kelvin ou Mr. John Morley não dispõe de outro sufrágio que o mesmo do
operário embrutecido pelo trabalho e pela miséria. Acaso, entretanto, a capacidade
intelectual e moral desse mecânico, aviltado pelo sofrer e labutar, emparelhará
com a do sábio, ou com a do estadista? Pois bem; a soberania é o direito elementar
por excelência dos Estados constituídos e independentes. Ora soberania importa
igualdade, quer em abstrato, quer na prática, a soberania é absoluta: não admite
graus. Mas a distribuição do direito é um dos ramos da soberania. Logo a ter de
existir entre os Estados um órgão comum de justiça, necessariamente nesse órgão
todos os Estados hão de ter uma representação equivalente.57
É importante ressaltar, entretanto, que para Rui Barbosa uma
composição desigual de países em outro órgão internacional, como o
Tribunal de Presas, não fere o direito de igualdade jurídica dos Estados.
Para o jurista brasileiro, a constituição deste tribunal afeta apenas os
países que têm interesse nos oceanos, únicos que possuem frota mer-
cante ou comércio marítimo. Logo, os interesses dos Estados naquele
tribunal devem ser considerados em função dos seguintes itens: frota
naval, frota mercante e comércio marítimo. Como o referido tribunal
trataria de resolver questões restritas a estes três fatores, a participação
dos Estados deve ser escalonada de acordo com o porte da navegação
marítima de cada país. O mesmo raciocínio não seria válido para a corte
de arbitragem, pois tal órgão não possui uma área de competência res-
trita, pode ser invocado para a resolução de quaisquer controvérsias de
direito internacional. 58
Embora seja bastante lógica a argumentação levantada por Rui
Barbosa acerca da composição do tribunal de presas, ela pode ser fa-
cilmente contestada. Um país como a Sérvia, que em 1907 não possuía
marinha mercante59, deveria, de acordo com o embaixador brasileiro,
ser excluído de qualquer participação no referido tribunal. Porém, a
Sérvia é cortada pelo rio Danúbio (um dos maiores da Europa) e por
diversos afluentes, o que concede ao país uma saída para o Mar Negro.
Caso a Sérvia montasse uma frota mercante no rio Danúbio, a composi-
ção do tribunal teria de ser modificada, pois o Estado passaria a ter o di-
reito de possuir uma representação no tribunal. Assim, a proposta bra-
sileira, ao tomar como base para a composição do tribunal a proporção

57  STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 135


58  STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 101.
59  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 104.

234
André Vinicius Tschumi

da marinha mercante de cada Estado, ignora um fato que a inviabiliza


por completo: o avanço tecnológico e o desenvolvimento dos países im-
põem uma dinâmica à frota marítima dos Estados que seria impossível
de ser acompanhada pelo tribunal de presas, o qual necessitaria alterar
a sua composição a todo o momento60. Portanto, a proposta das grandes
potências que dividia os países em categorias fixas, ou a relativa à com-
posição equânime do tribunal (sem divisão de categorias), são projetos
muito mais viáveis do que aquele apresentado pelo Brasil.
A diferenciação entre as propostas brasileiras para os dois tribu-
nais demonstra que a defesa da tese da igualdade jurídica por Rui Bar-
bosa tinha como propósito realizar a defesa incondicional dos interesses
brasileiros. Ao defender a composição dos Estados no tribunal de presas
de acordo com a grandeza da marinha de cada país, o embaixador brasi-
leiro adota uma postura pragmática na aplicação dessa tese, adaptando-
a conforme melhor convém ao Brasil.
Por fim, Rui Barbosa critica o fato de que a graduação entre os
países para a constituição do tribunal de arbitragem obedece ao poderio
militar de cada Estado, algo incoerente para uma assembléia cujo fim
consiste em evitar a guerra. Se este é o critério adotado pela Segunda
Conferência de Paz para medir a importância dos países, os Estados
passarão a buscar nos grandes exércitos e nas grandes marinhas o reco-
nhecimento de suas posições.61
Pode-se perceber que a participação do Brasil em Haia foi marca-
da pela coerência com os princípios da política externa de Rio Branco,
como o recurso à arbitragem, além do pragmatismo de interesses e da
defesa da igualdade jurídica das nações. A escolha de Rui Barbosa como
advogado do Brasil em Haia resultou em um grande sucesso. A capa-
cidade de improvisar discursos, adquirida durante sua longa carreira
política, aliada a sua experiência e conhecimentos jurídicos, levou o de-
legado brasileiro a ser considerado pela imprensa internacional como o
maior destaque da Conferência de Haia.62

60  Para se ter uma idéia do ritmo do processo de mudanças na capacidade naval de cada país,
em 1889 (menos de vinte anos antes da Conferência de Haia) a marinha dos Estados Unidos era
inferior a de países como Argentina, Brasil e Chile. (KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das
Grandes Potências. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999. p. 36).
61  Cf. STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya, p. 142.
62  No jornal Tribune de Londres, lia-se, por exemplo, no dia 11 de outubro de 1907: “A princípio
o homem da Conferência era o Barão Marschall von Bierberstein. Sua estrela declinou enquanto

235
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

O impasse criado a partir das posições da delegação brasileira


resultou na apresentação de uma proposta definitiva para uma corte de
justiça arbitral que deixava de lado as disposições relativas à nomeação
dos juízes e à rotação. Os pontos polêmicos sobre a nova corte foram
postergados, constando na ata final da conferência apenas uma propos-
ta (incompleta) visando à criação de uma nova corte. Logo, tal proposta
não apresentava nenhuma mudança significativa em relação ao tribunal
criado pela primeira conferência em 1899.63
O fracasso nas discussões sobre o tema mais aguardado da confe-
rência acabou frustrando a maioria dos delegados. O fato de o Brasil ter
sido o único dos 44 participantes a ratificar a ata final demonstra a de-
cepção dos Estados com o projeto final sobre a nova corte arbitral, que
nunca mais foi discutido após Haia.64 Contudo, a Segunda Conferên-
cia de Paz é um marco essencial para o conceito de igualdade jurídica
dos Estados. Primeiro encontro diplomático a discutir esse tema, Haia
consagra a igualdade jurídica como norma aplicável às organizações
internacionais. Assim, finalmente o conceito de igualdade jurídica ga-
nha “substância”, ou seja, um conteúdo específico prevendo obrigações
concretas aos Estados. Tal conteúdo é o direito de um Estado-membro
de uma instituição internacional a possuir representação e capacidade
idênticas aos demais membros.

A igualdade jurídica dos Estado após Haia


A proliferação das organizações internacionais foi o fato mais
impactante para o rumo tomado pelo conceito da igualdade jurídica
dos Estados no século XX. Esse século provocou um “recuo nas afir-
mativas confiantes, da época de Vattel, de que os membros da socie-
dade internacional eram necessariamente estados e nações”.65 A época
das conferências de paz representa o início de um período de grande
expansão do número de novos Estados (a maioria não-europeus), dos
tipos de atores internacionais existentes e do grau de complexidade do

a do Sr. Rui Barbosa elevou-se continuamente até o zênite” (LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do
Rio-Branco), p. 386).
63  Cf. RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos de direito internacional, p. 132.
64  Cf. MELLO, Rubens Ferreira. Textos de direito internacional e de história diplomática de 1815
a 1914. Rio de Janeiro, 1950. p. 116.
65  BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica, p. 49.

236
André Vinicius Tschumi

sistema internacional. Todos esses fatos intensificam-se após as guer-


ras mundiais. Conseqüentemente, os conceitos tradicionais do direito
internacional, como a igualdade jurídica dos Estados, necessitaram ser
remodelados de acordo com as características da sociedade contem-
porânea, composta por múltiplos atores e com Estados com maiores
responsabilidades e obrigações.

I. O fim da era do equilíbrio de poder e o entre-guerras


A Primeira Guerra Mundial marca o fim da era do sistema polí-
tico do equilíbrio de poder. A base jurídica desse sistema internacional
era o princípio da igualdade jurídica dos Estados na sua acepção clássi-
ca, ou seja, próxima à idéia de soberania.66 A independência de todas as
nações participantes do equilíbrio era fundamental para o sistema, pois
possibilitava a flexibilidade da política de alinhamento quando um Es-
tado mudasse de bloco. Assim, embora isoladamente cada nação tivesse
interesse em violar o princípio da independência dos Estados e conquis-
tar territórios de acordo com os objetivos do país, o interesse em apoiar
o sistema contra a possibilidade de usurpação das outras potências era
ainda maior. A igualdade jurídica era a norma orientadora contra a vio-
lação da independência dos Estados. Essa norma era veementemente
apoiada pelos pequenos Estados, os quais sabiam que a sua independên-
cia resultava de um equilíbrio de força entre as grandes potências.67
Com o início da Primeira Guerra Mundial, Rui Barbosa deixa
claro todo o seu desapontamento com a “miserável falácia” das confe-
rências de paz diante da guerra na Europa68. O renomado jurista critica
também a invasão de países neutros no conflito, como a Bélgica, tomada
pelos alemães em 1915. Para o brasileiro, esse ato representava o revés
da afirmação do princípio da igualdade jurídica dos Estados conforme
estabelecido em Haia.69

66  A idéia de que o conceito de igualdade jurídica dos Estados era a base do sistema internacional
até 1914 exclui desse sistema excluí as nações da Ásia e da África, as quais foram em sua grande
maioria transformadas em colônias e protetorados europeus.
67  Cf. KAPLAN, Morton A; KATZENBACH, Nicholas de B. Fundamentos Políticos do Direito
Internacional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. p. 49-50.
68  Cf. BARBOSA, Rui. Os conceitos modernos do direito internacional. Rio de Janeiro: Casa de Rui
Barbosa, 1982. p. 31.
69  Cf. FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL; ODEBRECHT. Notícias de Rui Barbosa: um brasileiro
legal. [s.l.]: Emporium Brasilis Memória e Produção cultural, 1999. p. 26.

237
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

O Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra e que mol-


dou o sistema internacional do período Entre-guerras, também violou
o princípio da igualdade jurídica dos Estados. Pelo menos três pontos
do tratado corroboram essa afirmação: as condições impostas para o
desarmamento germânico, a negação do direito de autodeterminação
à nação alemã e o artigo 231 do tratado que justifica as indenizações
exigidas à Alemanha.
Em tese, o desarmamento no pós-guerra não deveria se restrin-
gir apenas à Alemanha. Essa medida não era justificada pelos direitos
implícitos na vitória ou pelos cálculos de equilíbrio de poder. O desar-
mamento alemão era apenas a primeira etapa de um plano geral de de-
sarmamento, conforme previsto nos quatorze pontos de Wilson, e que
seria fiscalizado pela Liga das Nações. A infração à igualdade jurídica
decorre do fato de que a Alemanha foi o único país coagido a seguir o
plano de desarmamento. Em 1933 o governo alemão aproveita-se des-
sa situação de flagrante injustiça para justificar o abandono dos planos
de desarmamento, iniciando a escalada militar que culminará com a II
Guerra Mundial.70
A questão da autodeterminação dos povos foi um dos princi-
pais pontos ressaltados por Wilson. Com o fim da Primeira Guerra,
os grandes povos que estavam sob o domínio dos impérios russo, ale-
mão, austro-húngaro e turco-otomano obtiveram sua independência.
Foi o caso da Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Checoslo-
váquia, Hungria e Iugoslávia. Pressionado pela França, que desejava a
todo custo enfraquecer a Alemanha, Wilson aceitou que boa parte da
população alemã fosse transferida para os novos Estados europeus. A
Checoslováquia, por exemplo, incorporou ao seu território uma região
habitada por três milhões de germânicos. Logo, o Tratado de Versalhes
negou o direito de autodeterminação à nação alemã, que foi partilhada
entre quatro Estados: Alemanha, Checoslováquia, Polônia e Áustria.71
Ao conceder o direito à autodeterminação a apenas um grupo de países,
o Tratado de Versalhes infringiu claramente o princípio da igualdade
jurídica dos Estados.

70  Cf. KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das Grandes Potências, p. 261, 406.
71  Cf. KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das Grandes Potências, p. 257.

238
André Vinicius Tschumi

Por fim, o artigo 231 do Tratado de Versalhes declarava a Alema-


nha única responsável pela deflagração da Primeira Guerra e dava-lhe
uma severa repreensão moral. Ora, numa guerra de proporções mun-
diais e que envolveu dezenas de países, atribuir toda a culpa pelo confli-
to a um único Estado é uma atitude bastante discriminatória. A maioria
das medidas punitivas à Alemanha contidas no tratado foi imposta com
base no artigo 231.72 Assim, a Alemanha recebeu uma carga punições
exclusiva, o que colocou o país em uma situação de desigualdade de
deveres perante os demais participantes da guerra, que não precisavam
financiar a reconstrução de outros Estados, por exemplo. Portanto, o
artigo 231 e as medidas tomadas com base nesse violam o princípio da
igualdade jurídica dos Estados.
Além das medidas contra a Alemanha, os vencedores da Primeira
Guerra estipularam também no Tratado da Liga das Nações duas regras
que violam o princípio da igualdade jurídica, pelo menos na interpre-
tação consagrada em Haia. A primeira violação era o fato que as cinco
grandes potências vencedoras da guerra possuíam uma cadeira perma-
nente no Conselho da Liga. Enquanto isso os demais países membros da
Liga disputavam entre si os quatro acentos rotativos restantes. Em tese
o presidente Wilson, principal responsável pela criação da Liga das Na-
ções, defendia o princípio da igualdade jurídica dos Estados como con-
dição para a manutenção da paz através da segurança coletiva.73 Nesse
caso, sua interpretação da igualdade jurídica deve ser a mesma feita pelas
grandes potências em Haia. O privilégio atribuído às grandes potências
no Conselho da Liga mostra que Wilson concordava que as variações nas
condições do exercício não afetam o direito em si.
A princípio, a não-ratificação do Pacto da Liga pelo Congresso
norte-americano levou o Brasil a ignorar a violação à igualdade jurídica
dos Estados existente no Conselho da Liga. Isso porque o governo bra-
sileiro passou a vislumbrar a possibilidade de ocupar a cadeira deixada
em aberto pelos EUA. Defendendo a tese de representação continental

72  Cf. KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das Grandes Potências, p. 262.


73  O direito deve estar baseado na força comum, não na força individual, das nações de cujo
concerto dependerá a manutenção da paz. Obviamente, não há como existir igualdade não
conquistada através do desenvolvimento comum pacífico e legítimo dos próprios povos. Porém,
ninguém pede, ou espera, mais que igualdade de direitos. A humanidade procura agora a liberdade
da vida e não contrabalanços de poder (Wilson apud KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das
Grandes Potências, p. 242).

239
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

no Conselho74, o governo de Artur Bernardes (1922-1926) considerava


o Brasil, ao contrário da posição adotada em Haia, hierarquicamente su-
perior aos demais países da América Latina. O então Ministro das Rela-
ções Exteriores, Félix Pacheco, “afirmou que igualdade verdadeira con-
sistia em tratar desigualmente seres desiguais”,75 numa crítica à ambição
dos países da América hispânica em conquistar um assento permanente
no Conselho da Liga caso o Brasil também se candidatasse. Além de não
apoiarem o pleito do governo Bernardes, a ambição dos países latino-
americanos dificultava a aprovação de uma reforma no Conselho capaz
de viabilizar a entrada do Brasil na condição de membro permanente.
Apesar de se considerar superior aos Estados da América his-
pânica, o Brasil, nos discursos feitos na Liga, não se colocava como
uma grande potência. Afinal, outra estratégia utilizada para conseguir
a cadeira permanente era defender os “direitos das potências menores
contra a idéia largamente aceita de que somente as grandes potências
deveriam ter assentos permanentes no Conselho”.76 A vitória do pleito
brasileiro, embora não estabelecesse a perfeita igualdade jurídica dos
Estados na Liga, seria um passo importante rumo a esse objetivo, pois
eliminaria o critério hierárquico para a composição dos membros per-
manentes do Conselho.77
O privilégio das grandes potências no Conselho da Liga decorria
da imensa desigualdade de poder político e de capacidade de influência
desses cinco países em relação aos demais participantes de Versalhes.
Da mesma forma que esses Estados possuíam uma primazia no Con-
selho ao adquirir o status de membro permanente (mais direitos), tais
países assumiam uma responsabilidade maior no financiamento das ati-
vidades da Liga (mais deveres). De acordo com o artigo sexto do Pacto,
o financiamento das atividades da Liga deveria ser estabelecido segundo

74  A tese da representação continental defendia que cada um dos três grandes continentes,
Europa, América e Ásia, deveria possuir pelo menos um membro permanente no Conselho. Com
a não-adesão dos EUA à Liga, a América passou a ser o único dos três continentes a não possuir
um representante fixo no Conselho.
75  GARCIA, Eugênio V. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto
Alegre/Brasília: UFRGS/FUNAG, 2000. p. 96.
76  GARCIA, Eugênio V. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926), p. 119.
77  Lindolfo Collor apud GARCIA, Eugênio V. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926), p. 127.
A não-aceitação da reivindicação brasileira levou o país a vetar a entrada da Alemanha no Conselho
em 1926, fato que tornou insustentável a permanência do Brasil, não apenas no Conselho, mas
também na Liga das Nações como um todo. Assim, ainda em 1926, o Brasil retira-se da Liga.

240
André Vinicius Tschumi

uma proporção calculada pela União Postal Universal. A partir de 1924,


esta atividade passou a ser realizada pela própria Assembléia da Liga.78
Percebe-se que nessa questão somente haverá uma violação do
princípio da igualdade jurídica para os autores que o interpretam como
igualdade absoluta (formal) de direitos e deveres dos Estados, como Rui
Barbosa. Autores como Kelsen consideram a igualdade entre Estados
como igual capacidade para os deveres e direitos.79 Ou seja, a igualdade
não é igualdade incondicional de deveres e direitos, mas sim o princípio
de que, nas mesmas condições, os Estados possuem os mesmos deveres
e os mesmos direitos. Essa fórmula relativiza e esvazia o princípio da
igualdade, pois normalmente as condições materiais para o exercício de
direitos e deveres dos Estados são diferentes.
A doutrina atual tem procurado seguir essa linha de Kelsen. Cel-
so Mello, por exemplo, interpreta a igualdade jurídica dos Estados como
uma mesma proporção de direitos e deveres entre os Estados, o que sig-
nifica que, para esse grupo de autores, a Liga das Nações não infringia o
direito de igualdade jurídica dos Estados.
A moderna (Aguilar Navarro) interpretação do princípio da igualdade jurídica
tem abandonado a sua interpretação estrita e considerado que no DIP, onde
ainda domina a política, deve-se levar em consideração as desigualdades de fato
dos Estados. Assim sendo, nada impede que existam “status jurídicos distintos”
correspondentes à “capacidade diferente dos Estados”. A igualdade jurídica
seria “uma submissão em condições idênticas ao direito”. Ora, ao variarem estas
condições, é possível a criação de status particulares.80
Edward Carr comenta que os elogios ao direito de igualdade entre
os Estados foram bastante ressaltados nas assembléias e comitês da Liga
das Nações.81 O autor cita como exemplo a declaração de um delegado
da França: “Não há, e confiamos em que jamais haja, uma ordem de pre-
cedência entre as potências que formam a comunidade internacional. Se

78  Cf. SEITENFUS, Ricardo A. S. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997. p. 90.
79  Cf. KELSEN, Hans. La paz por medio del derecho, p. 73.
80  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 427.
81  Cf. CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. Tradução de Luiz Alberto Figueiredo
Machado. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2001. (Col. Clássicos IPRI, 1). p. 156.

241
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

fosse estabelecida uma hierarquia entre os Estados dentro da Liga das


Nações... então a Liga seria arruinada, moral e materialmente”.82
Apesar disso, Carr não acredita na existência de um direito de
igualdade jurídica entre os Estados por causa da ação das grandes potên-
cias; por exemplo, a constituição hierárquica do Conselho da Liga torna
sem sentido a idéia de igualdade. Mesmo a igualdade proporcional de
Kelsen é refutada por Carr, pois não há parâmetros capazes de determi-
nar como manter a proporção de direitos e deveres para cada Estado.83
Pode constatar-se ainda outra violação do princípio da igualdade
jurídica na Liga com a aceitação de domínios ou colônias (protetorados)
como membros da organização em pé de igualdade de direitos com os
Estados. Ora, Estados e protetorados são entidades políticas distintas.
Os primeiros possuem um conjunto de obrigações e responsabilidades
internacionais que é inexistente para os territórios sob o sistema de pro-
tetorados, os quais não são independentes. Na prática, contando com os
votos dos domínios e colônias, os Estados que administram protetora-
dos dispunham de um privilégio perante os demais, pois contavam com
um maior número de votos na Liga.

II. A segunda metade do século XX


Ao encerramento da Segunda Guerra Mundial é feita a primeira
alusão em um tratado de caráter universal ao princípio da igualdade
jurídica dos Estados. Trata-se da Carta de São Francisco, acordo consti-
tutivo da Organização das Nações Unidas. O primeiro parágrafo do pre-
âmbulo menciona a “igualdade de direito dos homens e das mulheres,
assim como das nações grandes e pequenas”. Em seguida, no artigo Art.
1o § 2o é ressaltado que um dos propósitos da ONU é o de desenvolver
relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito aos princípios
de igualdade de direito e de autodeterminação dos povos. Além desses

82  Blum apud CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939, p. 156.
83  “Mesmo que presumamos que igualdade de direitos ou privilégios signifique igualdade
proporcional, e não absoluta, teremos avançado pouco, na medida em que não existe nenhum
critério aceito para determinar a proporção. Ainda assim, isto nos adiantaria pouco. O problema
não é o fato de que os direitos e privilégios da Guatemala sejam apenas proporcionalmente, e não
absolutamente, iguais aos dos EUA, mas que tais direitos e privilégios da Guatemala só sejam
gozados devido à boa vontade dos EUA. A constante intromissão, ou intromissão em potencial,
das potências torna quase sem sentido qualquer concepção de igualdade entre os membros da
comunidade internacional” (CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939, p. 156).

242
André Vinicius Tschumi

exemplos, pode-se citar também a comissão de Direito Internacional


das Nações Unidas, que, no artigo quinto da Declaração de Direitos e
Deveres dos Estados, menciona que “todo Estado tem direito a igualda-
de jurídica com outros Estados”. Contudo, assim como a Liga das Na-
ções, a ONU também possui algumas características contraditórias à
igualdade jurídica dos Estados.
É possível afirmar, inclusive, que o problema da desigualdade
jurídica agravou-se na ONU em relação à SDN. A igualdade jurídica
dos votos dos Estados no Conselho da Liga, juntamente com a falta de
obrigatoriedade jurídica de suas decisões, foram consideradas pelos
criadores da ONU como um dos fatores principais que provocaram o
fracasso da Liga. Logo, Roosevelt, Churchill e Stalin estabeleceram o ca-
ráter obrigatório para as resoluções do Conselho de Segurança. Porém,
para garantir que as decisões consensuais entre as grandes potências
não fossem barradas pela vontade de um grupo minoritário de peque-
nas potências foi abolida a regra da unanimidade. Conforme o Art. 27
§ 2o da Carta, nas questões processuais é necessário o voto afirmativo
de nove de um total de quinze membros.84 O parágrafo seguinte desse
artigo estabelece a necessidade do voto afirmativo dos cinco membros
permanentes para a aprovação de uma medida, o que na pratica conce-
de a esses Estados o poder de veto.
O poder de veto no Conselho de Segurança se constitui na ques-
tão mais polêmica sobre o direito de igualdade jurídica na ONU, legi-
timando a prevalência de uns poucos Estados sob toda a comunidade
internacional. A justificativa dos membros permanentes é que o veto
não significa um instrumento de poder adicional para aqueles Estados,
mas simplesmente uma manifestação de responsabilidade, condizente
com as maiores obrigações das grandes potências na seara internacio-
nal. De acordo com essa lógica, somente o veto seria capaz de assegurar

84  “Na Conferência de São Francisco, os quatro poderes (EUA, URSS, UK e China) elaboraram
uma lista de certas questões entendidas como questões processuais (como, por exemplo, as
decisões sob os artigos 28-32 da Carta e questões referentes à agenda) e questões não processuais
(como, por exemplo, recomendações para a solução pacífica das disputas, e as decisões para tomar
enforcement action). No caso de dúvida, a questão preliminar seria a questão não processual. Esse
critério resultou em duplo veto. O membro permanente do CSNU poderia vetar qualquer tentativa
de tratar a questão como processual, e, em seguida, vetar qualquer proposta de resolução que trate
dessa questão” (JO, Hee Moon. Introdução ao Direito Internacional. São Paulo: LTr, 2000. p. 317).

243
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

a ação imediata e eficaz prevista pelo Art. 24, § 1º.85 Apesar de atualmen-
te ser considerado um mecanismo anacrônico pela maioria dos Estados,
refletindo a estrutura de poder do pós-Segunda Guerra, e não aquela
existente hoje em dia, a reforma do Conselho de Segurança (e a eventu-
al abolição do veto) esbarra na falta de interesse dos membros perma-
nentes e na ambição das pequenas potências em conquistar um assento
permanente. Nesse aspecto, os problemas observados no Conselho da
Liga repetem-se nas Nações Unidas.
Uma das justificativas para o poder de veto é o fato de que as
grandes potências possuem também obrigações maiores do que os de-
mais Estados no que diz respeito à contribuição para o orçamento das
Nações Unidas. Os recursos com os quais cada Estado-membro deve
contribuir são fixados pela Assembléia Geral (artigo 17), conforme o
PNB de cada Estado.86 De acordo com essa interpretação, não existente
desigualdade jurídica entre os membros da ONU. Afinal, existe certa
proporcionalidade de direitos e deveres entre os Estados. Aqueles que
possuem mais direitos (poder de veto) possuem também maiores deve-
res (contribuição maior); uma desigualdade anula a outra. Através dessa
mesma lógica pode-se argumentar que tal desigualdade de deveres en-
tre os Estados é um reflexo de suas desigualdades econômicas. Logo, em
vez de duas desigualdades, o que existe é uma outra igualdade de pro-
porções. Por exemplo, os EUA contribuem com cerca de 25% do orça-
mento regular da ONU porque o país responde por aproximadamente
25% da economia mundial.
A opinião de que não há desigualdade jurídica entre os Estados-
membros da ONU, mas sim uma equivalência entre direitos e deveres
com as capacidades de cada país segue a linha moderna e relativa de
interpretação desse princípio, afirmada por Kelsen. Essa é, logicamente,
a posição dos Estados que possuem o poder de veto. Porém, na inter-
pretação tradicional e absoluta do conceito (conforme a visão de Vattel
e de Rui Barbosa), há duas violações a norma da igualdade jurídica na
ONU: uma no Conselho de Segurança e outra na contribuição dos Esta-

85  Cf. SEITENFUS, Ricardo A. S. Manual das organizações internacionais, p. 125.


86  Esta regra vale para as despesas fixas do orçamento regular da ONU. Os gastos com as operações
de paz da ONU (que representam atualmente 60% do total da dívida da ONU) são custeados entre
os países participantes das operações e os membros permanentes do Conselho de Segurança (Cf.
JO, Hee Moon. Introdução ao Direito Internacional, p. 320).

244
André Vinicius Tschumi

dos. Essas duas correntes correspondem as duas definições de igualdade


propostas por Aristóteles: a igualdade em número (visão tradicional do
princípio) e a igualdade em mérito (visão moderna).
Seguindo a linha da ONU, a OEA afirma no Art. 9° de sua car-
ta constitutiva que “os Estados são juridicamente iguais, desfrutam de
iguais direitos e de igual capacidade para exercê-los, e em deveres iguais.
Os direitos de cada um não dependem do poder de que dispõem para
assegurar o seu exercício, mas sim do simples fato da sua existência
como personalidade jurídica internacional”.87 A forma como o princí-
pio da igualdade jurídica é mencionado tanto na Carta da OEA como na
da ONU remete a uma interpretação absoluta desse conceito, pois não
há qualquer referência a uma igualdade “proporcional”, “em mérito” ou
termos similares. Porém, a prática dessas organizações, para não entrar
em contradição com suas respectivas Cartas, corrobora com a interpre-
tação relativa desse princípio.
A interpretação relativa ou moderna do princípio da igualdade
jurídica dos Estados também parece ser a regra utilizada nas institui-
ções de direito internacional econômico (GATT/OMC, FMI e Banco
Mundial). Caso contrário, todas elas violam o referido princípio. No
GATT/OMC a regra desigual decorre da aplicação do Sistema Geral de
Preferências (SGP), que estabelece um tratamento desigual aos países ao
conceder benefícios tarifários àqueles de menor desenvolvimento eco-
nômico. A OMC mantém em vigor um sistema que permite aos países
pobres e em desenvolvimento aplicar tarifas de importação mais eleva-
das para proteger as indústrias locais. Assim, o SGP gera uma situação
de desigualdade nas tarifas comerciais com o intuito de diminuir, em
longo prazo, outra desigualdade muito mais grave: aquela referente ao
nível de desenvolvimento dos países.
Nas instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), o des-
respeito à igualdade jurídica entre os Estados ocorre por causa da exis-
tência do voto ponderado (também chamado de maioria qualitativa),
que concede valores diferentes ao voto de cada Estado. Nesse sistema, a
partir de um critério específico, é atribuído “a cada Estado membro um

87  No âmbito do continente americano, a menção ao princípio da igualdade jurídica dos Estados
ocorreu 15 anos antes da criação da OEA, em 1933, na 7º Conferência Internacional Americana
(MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 424).

245
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

determinado coeficiente a ser computado quando do escrutínio”88. No


FMI, o peso do voto de cada país é proporcional à sua quota-parte. Esta
“é fixada em função do peso econômico do Estado, tendo em vista o seu
desenvolvimento industrial e, em conseqüência, a sua participação no
campo financeiro internacional”.89 No Banco Mundial, cada país detém
duzentos e cinqüenta votos, aos quais são adicionados os votos corres-
pondentes às partes de capital emprestadas por cada país à organização.
Para tanto, cada cem mil dólares americanos de capital equivalem a um
voto suplementar.90
O sistema de decisão baseado na maioria qualitativa concede
um amplo domínio aos países ricos, que normalmente detêm votos
com maiores coeficientes. Nas organizações de Bretton Woods, o voto
dos EUA equivale aproximadamente a 20% do total. Como no FMI as
questões importantes necessitam de 85% dos votos, os EUA possuem o
poder de vetar qualquer decisão dessa organização; 50 países têm em
conjunto apenas 1,2% de quotas-partes91. Contudo, ainda que a desi-
gualdade jurídica nesse tipo de organização torne os pequenos Estados
reféns dos interesses das grandes potências, ela não os dissuade a aban-
donar a organização. Isso porque a desvantagem no sistema de votação
é compensada por outras vantagens, o que leva os pequenos Estados a
ver com naturalidade as diferenças no número de votos. Situação seme-
lhante a essa ocorre na União Européia.
O Conselho da União Européia, órgão que representa os Estados-
membros na União, possui um sistema de voto que atribui pesos dife-
rentes aos Estados. Enquanto os votos da Alemanha, da França, da Itália
e do Reino Unido valem 29 (de um total de 345), no outro extremo os
votos de Chipre, Estônia, Letônia, Luxemburgo e Eslovênia valem 4 e
o de Malta apenas 3. Apesar da existência desse sistema, nessa última
década o número membros da União Européia passou de 15 para 27.
A maioria dos novos membros são Estados de pequena população, os
quais sabiam que iriam deter poucos votos no Conselho. Porém, esse

88  O voto ponderado é utilizado também por outras organizações internacionais, como o BID –
Banco Interamericano de Desenvolvimento e o CERN – Conselho Europeu de Pesquisas Nucleares
(Cf. SEITENFUS, Ricardo A. S. Manual das organizações internacionais, p. 40-41).
89  MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 676.
90  Cf. SEITENFUS, Ricardo A. S. Manual das organizações internacionais, p. 147.
91  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 676.

246
André Vinicius Tschumi

fato não os demoveu de se candidatar à União. Até porque pelo fato de


serem países relativamente pobres, se comparados aos demais membros,
a maior parte dos Estados que aderiram ao bloco nessa última década
recebe mais recursos da União do que o total de suas contribuições.
Assim, as desigualdades no Conselho são percebidas como um simples
reflexo da desigualdade populacional existente entre os países da União
e não como uma possível infração. E as possíveis desvantagens decor-
rentes desse fato são amplamente compensadas pelos benefícios de se
aderir a União, o que leva a desigualdade no Conselho a ser aceita com
naturalidade por todos os membros do bloco.
Uma questão mais polêmica do que o sistema de voto ponderado
é o Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que
divide os Estados em duas categorias discriminatórias: os nuclearmente
armados e aqueles que devem renunciar à posse desse tipo de arma. Os
Estados com o direito de possuir armas nucleares são apenas aqueles
que já as haviam produzido até o momento da assinatura do tratado
(1968), o que os coloca em uma posição privilegiada em relação aos
demais. “Por considerá-lo discriminatório e desequilibrado, impondo
obrigações a apenas uma categoria de países” 92, o Brasil recusou-se até
1997 a tornar-se signatário do TNP.
Para o governo brasileiro, todos os países, independente de pos-
suírem ou não armamentos nucleares, deveriam ser enquadrados sobre
um mesmo conjunto de regras relativas ao desarmamento, sem qual-
quer tipo de distinção. Nessa situação o Brasil interpretava a igualdade
jurídica como um princípio absoluto. Porém, o fato de o TNP ter sido
ratificado por mais de cem países antes da ratificação brasileira demons-
tra que a maioria dos países não considera o TNP como uma violação
à igualdade jurídica dos Estados. A interpretação desse princípio de
modo absoluto, como fazia o Brasil, já estava fora de consonância com a
posição da comunidade internacional.
Por fim, a ata final da Conferência de Segurança e Cooperação
Européia, ocorrida em Helsinque em 1975, faz uma menção bastante
moderada ao princípio da igualdade jurídica. O Art. 8° da ata menciona
o “direito de igualdade dos povos”, o qual garante (de acordo com esse
artigo), total liberdade para os Estados determinarem o seu status po-

92  ALMEIDA, Paulo Roberto de. Os primeiros anos do século XXI: O Brasil e as relações
internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 122.

247
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

lítico sem nenhum tipo de interferência externa. O uso da palavra “na-


ção” em vez de “Estado” e a relação entre igualdade jurídica e soberania
estabelecida pela ata remetem a visão dos séculos XVII e XVIII, quando
o princípio da igualdade jurídica era meramente formal e sem um con-
teúdo próprio. Essa interpretação guarda certa semelhança com aquela
mais moderna, pois ambas enfraquecem (tiram o rigor) o princípio da
igualdade jurídica dos Estados.

As diferentes interpretações da igualdade jurídica dos


Estados
As divergências entre os autores sobre o princípio da igualdade ju-
rídica dos Estados vão além da dicotomia entre interpretação tradicional
ou absoluta contra interpretação moderna ou relativa. Outra polêmica
diz respeito ao reconhecimento desse princípio como um dos direitos
fundamentais do Estado. Entre os autores que concordam com essa idéia
encontram-se Accioly, Rui Barbosa, Boson, Fenwick, Gandarillas e Pe-
reira93. Carrillo Salcedo considera a igualdade jurídica dos Estados como
uma norma imperativa de direito internacional (jus cogens).94 Entretanto,
caso esta afirmação fosse de fato reconhecida pelo direito internacional,
ela abriria um perigoso precedente que permitiria a anulação de tratados
que entrassem em conflito com a norma da igualdade jurídica dos Es-
tados95. A maioria dos autores não chega a admitir a igualdade jurídica
como jus cogens em virtude da própria falta de consenso a respeito das
implicações da igualdade jurídica no direito internacional.
Outro grupo de autores adota uma posição mais crítica sobre esse
princípio. Thomas Lawrence não acredita na existência da igualdade ju-
rídica sob a forma de um princípio ou norma porque, segundo ele, a
autoridade das grandes potências sempre fora reconhecida tanto no âm-

93  Para maiores informações sobre esses autores, confira a lista de referências citadas ao final do
artigo.
94  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 75.
95  O artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) estabelece que “é nulo
um tratado que, na época de sua conclusão, esteja em conflito com uma norma imperativa de direito
internacional geral”. Infelizmente, não existe uma definição de quais normas se enquadram nessa
categoria. O artigo 53 esclarece apenas que “para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa
de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos
Estados, em sua totalidade, como uma norma da qual não se admite derrogação e que só pode ser
modificada por uma nova norma de direito internacional geral da mesma natureza”.

248
André Vinicius Tschumi

bito político quanto no jurídico, o que anula a idéia de igualdade jurídi-


ca dos Estados.96 Edward Carr também apresenta uma posição cética a
respeito desse princípio.97 Brierly critica a validade desse princípio em
razão das imensas diferenças e desigualdades existentes entre os países
em outros aspectos (economia, território, cultura, população e etc.).98
De modo geral, os autores que seguem esta concepção costumam negar
o referido princípio, ao partir da idéia de que os Estados não podem ser
considerados iguais entre si, como os homens, em razão das particula-
ridades do sistema internacional, onde a anarquia e as enormes dispari-
dades das nações confirmam a primazia das grandes potências.
A crítica que pode ser feita aos autores que não acreditam na exis-
tência da igualdade jurídica dos Estados como um conceito jurídico é
que eles confundem o campo jurídico com o político. De fato, as gran-
des potências possuem uma primazia na sociedade internacional (cam-
po político), o que as leva, por vezes, a violar as normas do direito inter-
nacional. Todavia, isso não significa que tais normas, como a igualdade
jurídica, deixem de existir. Pelo contrário, a igualdade jurídica surge
como um princípio importante justamente para impedir que a primazia
política se transforme em primazia jurídica, ao preservar o direito de
todos os Estados frente às grandes potências. Essas, sem dúvida, pos-
suem um papel de preponderância na formação dos empreendimentos
que requerem cooperação internacional, como as organizações interna-
cionais, fato que caracteriza a sua primazia política. Porém, a partir do
momento em que os demais países são convidados a participar dessas
instituições, significa que os Estados mais poderosos reconhecem a im-
portância do papel desempenhado por quem não é uma grande potên-
cia. A discriminação aos médios e pequenos Estados poderia provocar
a saída ou a não participação desses nas instituições, o que traria mais
desvantagens a todo o sistema do que uma participação juridicamente
igualitária de Estados politicamente desiguais.

96  Cf. ACCIOLY, Hidelbrando. Tratado de Direito Internacional Público. 2. ed. Rio de Janeiro:
IBGE, 1956. p. 223
97  A opinião de Carr a respeito da igualdade jurídica dos Estados encontra-se em: CARR, Edward
Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939, p. XX.
98  Cf. BRIERLY, James Leslie. Direito Internacional. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1963. p. 128.

249
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

No campo da teoria das relações internacionais, o conceito de


igualdade jurídica dos Estados é debatido apenas pela escola realista.
Segundo Morgenthau, autor que sistematizou o realismo como uma
teoria para a compreensão das relações internacionais, não há diferen-
ça entre a idéia de igualdade jurídica e a de soberania. O célebre autor
realista reconhece duas conseqüências decorrentes da aplicação desses
princípios: a) nenhuma nação pode ser subordinada a outro sujeito no
exercício dos seus direitos; b) a regra da unanimidade. Essa última sig-
nifica que, na função legislativa, o voto de cada nação é necessário para
fazer com que novas normas de direito internacional sejam obrigatórias
para o respectivo país. Entretanto, o direito de veto não se confunde
com a regra na unanimidade, pois o primeiro não é conseqüência do
princípio da soberania e da igualdade. Isso porque o veto “tem por efeito
não somente liberar a nação discordante de qualquer obrigação legal
imposta pela decisão, como deter completamente o processo legislador
e implementador da lei”.99
De modo geral, os realistas não consideram a igualdade dos Es-
tados como sendo uma norma jurídica. Essa corrente teórica simples-
mente não acredita na existência de tal princípio, como Carr, ou então
o interpretam apenas como um sinônimo do direito à soberania, como
Morgenthau. Essa posição decorre da visão que os teóricos realistas pos-
suem a respeito do direito internacional, para os quais tal disciplina é
limitada às regras de mútua abstenção entre os Estados.
Na vertente oposta aos realistas encontra-se a escola liberal, que
considera o direito e as instituições internacionais como elementos de
fundamental importância para o sistema internacional. O silêncio dos
liberais sobre o princípio da igualdade jurídica pode ser explicado pelo
fato de que o auge dessa escola ocorre a partir dos anos 70, quando as
discussões e referências à igualdade jurídica já estavam em decadência.
Além do mais, tal princípio em nada colabora para se explicar o cenário
de interdependência entre os atores internacionais que serve de base às
análises da escola liberal. Muito pelo contrário, a aplicação do conceito
de igualdade jurídica apenas dificulta o desenvolvimento das institui-

99  MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Tradução de
Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2003. (Col. Clássicos IPRI), p. 574.

250
André Vinicius Tschumi

ções internacionais e a cooperação entre os Estados, temas fundamen-


tais na agenda da corrente liberal.
No campo do direito internacional, entre os autores que afirmam
a existência do princípio da igualdade jurídica, grupo que representa
a maior parte dos juristas, o grande debate sobre esse conceito diz res-
peito as suas conseqüências práticas. Segundo a doutrina tradicional, a
principal conseqüência advinda da igualdade jurídica é que os Estados
possuem exatamente os mesmos direitos e deveres. Porém, para a dou-
trina moderna, a igualdade dos Estados perante o direito internacional
significa apenas a existência de uma correspondência entre os direitos e
deveres de cada Estado. De acordo com essa corrente, as grandes potên-
cias têm uma responsabilidade maior, o que deve corresponder a direitos
mais amplos.100 Essa interpretação soluciona todos os supostos proble-
mas decorrentes das distinções existentes entre os direitos dos Estados
no tocante à representação e ao voto nas organizações internacionais.
Logo, dentre todas as supostas infrações à igualdade jurídica mencio-
nada nesse item, para a doutrina moderna restaria apenas a questão do
TNP como violação de fato ao referido princípio.
Os principais defensores da doutrina tradicional desse princípio
são os autores de países em desenvolvimento, especialmente os latino-
americanos (como Rui Barbosa e Gandarillas), para os quais a igualdade
entre os Estados é absoluta. É a partir dessa linha teórica que surgem as
críticas às infrações à igualdade mencionadas neste capítulo. A posição
dos autores dos países em desenvolvimento decorre do fato que para tais
países é mais vantajoso a interpretação tradicional desse princípio, que
garante as pequenas e médias potências os mesmos direitos desfrutados
pelas grandes.
No extremo oposto à doutrina tradicional encontra-se uma linha
de autores (como Lawrence e Brierly) com uma posição extremista, que
considera danosa a idéia de igualdade absoluta dos Estados. Segundo
essa corrente, a igualdade absoluta é prejudicial ao direito internacio-
nal, pois “foi uma argumentação desse tipo que fez soçobrar certo plano
para a criação de um tribunal internacional de justiça, discutido numa
conferência realizada em Haia em 1907”101.

100  Cf. DOMÍNGUEZ, Maria T. del R. M; HALAJCZUK, Bohdan T. Derecho Internacional


Público. Buenos Aires: EDIAR, 1978. p. 150-151.
101  BRIERLY, James Leslie. Direito Internacional, p. 129.

251
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

Se a doutrina pretende apenas afirmar que os direitos de todos os Estados devem


gozar da mesma proteção, isto é, que a fraqueza de um Estado não justifica que
se passe por cima dos seus direitos, a afirmação é verdadeira, mas óbvia. Se
pretende, porém, ir mais longe, sustentando que todos os Estados possuem os
mesmos direitos, deixa então de ser verdadeira [...]. Finalmente, se a doutrina
pretende afirmar que os Estados deviam possuir todos os mesmos direitos (quer
de fato os tenham, quer não), deixa de ser simplesmente inócua para passar
mesmo a ser nociva.102
Para essa corrente a igualdade proporcional proposta, por exem-
plo, por Kelsen103, é inócua e desnecessária. Inócua porque é impossível
criar uma escala capaz de manter uma determinada proporção entre
os direitos e deveres de cada um dos Estados. Desnecessária porque a
principal conseqüência dessa teoria, que seria o princípio par in parem
not habet imperium, já está consolidada no DIP, o que torna dispensável
a existência do princípio da igualdade jurídica das nações.
A interpretação do princípio da igualdade jurídica dos Estados
como um valor absoluto caiu em declínio ao longo do século XX. Po-
de-se dizer que os direitos e deveres fundamentais dos Estados são os
mesmos e que os princípios gerais e as normas imperativas do direito
são iguais para todos. Porém, se um grupo de Estados decide celebrar
um tratado no qual algumas partes possuem maiores direitos do que
outras, tal diferenciação não pode ser considerada de antemão como
uma violação ao direito internacional. Quando os Estados com maiores
capacidades (econômica, financeira e etc.) assumirem maiores respon-
sabilidades, é aceitável que para o bom exercício desse encargo adicional
os países possuam maiores prerrogativas (direitos). Por exemplo, é com-
preensível que aqueles Estados que detém a responsabilidade de manter
a liquidez e a estabilidade da economia internacional possuem o direito
de ter um peso maior nas decisões das organizações financeiras interna-
cionais, como o FMI e o Banco Mundial.

102  BRIERLY, James Leslie. Direito Internacional, p. 129.


103  Kelsen afirma que “todos los Estados poseen la misma capacidad para que se les imponga
deberes y para adquirir derechos; igualdad no significa igualdad de deberes y derechos, sino más bien
igualdad de capacidad para los deberes y derechos”. Porém, Kelsen afirma que esse é um princípio
vazio, compatível com qualquer desigualdade prática entre os Estados. Como conseqüência, Kelsen,
apesar de confirmar a existência do princípio da igualdade jurídica, prefere relacioná-lo a regras
mais sólidas e perceptíveis no DIP, como o princípio da soberania (autonomia do Estado) e o da
imunidade de jurisdição (KELSEN, Hans. La paz por medio del derecho, p. 72-75).

252
André Vinicius Tschumi

Se a doutrina tradicional da igualdade jurídica dos Estados tor-


nou-se anacrônica, a doutrina moderna também não deixa de apre-
sentar problemas na interpretação desse principio. A “relativização” da
igualdade jurídica torna muito difícil, em vários casos, mensurar em
uma escala os diversos direitos e as incontáveis obrigações de cada Es-
tado a fim de manter essas duas funções proporcionais entre si. Apenas
em poucos casos é possível compatibilizar a desigualdade material com
a desigualdade jurídica, como na questão do voto ponderado, onde o
critério para medir o peso do voto de cada país pode ser facilmente
mensurado. Porém, quais critérios devem ser adotados para medir as
diferenças de desenvolvimento entre os países, a fim de determinar ta-
rifas mais justas no comércio internacional? Haveria sempre países in-
satisfeitos com o critério escolhido, pois há uma ampla divergência so-
bre o próprio conceito de desenvolvimento. Numa situação hipotética,
caso o Conselho de Segurança adotasse um sistema de voto ponderado,
como seria possível mensurar o poder ou a influência dos países para
determinar o peso exato que deve ser atribuído ao voto de casa Estado?
Assim, nas últimas décadas há cada vez menos menções ao prin-
cipio de igualdade jurídica dos Estados. Além de raras, tais menções
têm sido feitas de modo retórico, sem nenhuma significação prática.
No tópico do desarmamento, as grandes potências criaram em 1968 o
TNP que, apesar de contar com a adesão de mais de cem países, é con-
siderado como um tratado desigual por uma grande parcela dos Esta-
dos que o assinaram, como o Brasil. Em 1975, é realizada em Helsinque
uma nova conferência para tratar de desarmamento (entre outros temas
secundários), em que é reconhecido o direito de igualdade de todas as
nações. Entretanto, nenhum dos 35 países que assinaram a Ata Final de
Helsinque considerou o TNP, firmado sete anos antes, contraditório ao
princípio fundamental da igualdade de direitos entre todos os povos.104
As alegações do Brasil contra o TNP não surtiram efeito algum, e o país
optou em 1997 por ratificar o tratado.105
O exemplo acima demonstra a impossibilidade de se comprovar
uma violação ao princípio da igualdade jurídica dos Estados. Nas Na-
ções Unidas, essa teoria produz um discurso pomposo, porém carente
de conteúdo e de força. O custeamento das despesas da ONU de modo

104  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 1397.
105  Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Os primeiros anos do século XXI, p. 122.

253
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

proporcional à economia de cada Estado é uma prática aceita pelos Esta-


dos membros. Não há questionamento algum sobre esse fato constituir
uma infração do princípio da igualdade jurídica dos Estados. O poder
de veto e a existência de membros com assentos permanentes no Conse-
lho de Segurança, apesar de sofrerem muitas críticas por um grupo con-
siderável de países, estão longe de serem extintos. Muito pelo contrário,
as propostas para a reforma desse órgão levam sempre em consideração
a ampliação do número de membros permanentes com o objetivo de
melhorar a representatividade de algumas regiões do planeta no órgão,
ainda que essa medida signifique o aumento do numero de países com
privilégios no Conselho. Logo, a idéia de considerar as práticas desse
órgão como ilegais por infringir a igualdade jurídica dos Estados está
caindo em desuso. Somente em alguns livros e discursos diplomáticos
mais exaltados é possível ainda encontrá-la. Mais importante do que
não contradizer esse princípio é o papel de dotar o CSNU de mecanis-
mos que o possibilitem tomar decisões dinâmicas, capazes de atender
aos anseios de manutenção da paz na sociedade internacional.

Considerações finais
O princípio da igualdade jurídica das nações surge em conjunto
à consolidação do Estado moderno e evolui em consonância com as
transformações do direito internacional. Quando esse era composto por
regras que apenas pautavam uma relação de mútua abstenção entre os
povos, a igualdade jurídica entre as nações era um princípio importante
para o sistema internacional e não havia dificuldades para se aplicá-lo.
Porém, com o passar dos séculos o direito internacional começa a se
ocupar das relações de coordenação e, mais tarde, de cooperação entre
os povos. Como conseqüência, surge a contradição dos tratados e da
doutrina tradicional, os quais confirmam a existência desse princípio,
com a prática internacional dos Estados, que transgride a idéia original
do conceito de igualdade jurídica dos Estados.
O desenvolvimento da sociedade internacional tornou equivoca-
da a comparação entre homens e nações que originou o conceito de
igualdade jurídica dos Estados. As nações, ao contrário dos homens,
não possuem um poder coercitivo superior a si, capaz de julgar e impor
penas aos Estados, como ocorre nos sistemas jurídicos nacionais. Ade-
mais, o Estado é uma construção abstrata, produto do contrato social

254
André Vinicius Tschumi

formado por uma coletividade para garantir a sua ordem. O sistema


internacional, composto por cerca de duzentas unidades e com regras
ainda frágeis, não pode ser comparado à sociedade de um Estado, cujos
componentes são muito mais numerosos e mesmo aqueles mais fortes
não representam, individualmente, uma ameaça ao sistema. Os direitos
e obrigações dos Estados são distintos daqueles possuídos pelos cida-
dãos hoje em dia, não sendo mais possível uma comparação lógica entre
essas duas categorias.
A comparação entre o direito das nações e o dos homens ocor-
rera porque o conceito de igualdade jurídica advém do direito natural.
Tal conceito acompanha a progressão do direito internacional, sendo
codificado em alguns instrumentos internacionais a partir da década de
1930. Porém, nesse último século a justificativa do princípio da igualda-
de em termos absolutos, com base no direito de igualdade dos homens,
perdeu força. Haia foi o “último suspiro” dessa tese nos moldes clássi-
cos em que foi concebida. Graças à atuação de Rui Barbosa em Haia,
o princípio da igualdade jurídica dos Estados passa a ser reconhecido
pelos políticos e diplomatas, sendo incluso na Carta da ONU. Porém, a
menção a esse princípio em documentos e nos manuais do direito não
correspondeu a realidade da prática internacional.
A Primeira Guerra Mundial destruiu o velho sistema de equilíbrio
de poder que servia de base para as relações políticas européias desde o
final da Guerra dos Trinta Anos. O novo sistema, baseado nos ideais do
presidente Wilson, substituiu os cálculos utilitários do equilíbrio de poder
por um sistema de regras estruturado pela Liga das Nações.106 A partir
desse sistema o direito internacional adquire um grau de complexidade
cada vez maior, o que o torna incompatível com o ideal de igualdade das
nações proclamado a partir de Vestfália. Para justificar a menção a essa
tese em alguns tratados e convenções, conseqüência de Haia, os doutri-
nadores (como Kelsen e Rousseau) procuram dar uma interpretação mais
flexível ao referido princípio, o que torna ainda mais difícil a observân-
cia da igualdade jurídica no plano internacional. Além disso, a falta de
consenso dos autores sobre o significado e as implicações do conceito de

106  Para maiores informações sobre a ordem internacional baseada no equilíbrio de poder e
aquela existente no pós-Primeira Guerra, consulte: TSCHUMI, André V. Princípio da Segurança
Coletiva e a Manutenção da Paz Internacional. Curitiba: Juruá, 2007. p. 73-147.

255
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

igualdade jurídica dos Estados contribui para dificultar a caracterização


desse conceito como uma obrigação no direito internacional.
Antes da proliferação das organizações internacionais, a aplica-
ção do principio da igualdade jurídica dos Estados era mais simples e
as violações a esse princípio eram basicamente decorrência de guerras e
de intervenções externas sofridas pelos Estados. Esse panorama come-
çou a mudar a partir da Liga das Nações. Por um lado essa organização
aplicou o princípio da igualdade jurídica ao estabelecer o critério da
unanimidade para a aprovação das decisões, tanto do Conselho quanto
da Assembléia. Por outro lado, a Liga infringiu o princípio da igualdade
dos Estados ao conceder assento permanente às grandes potências no
Conselho e o direito de voto a territórios sob o regime de mandato.
Possuindo um caráter mais realista e pragmático que a Liga, as
Nações Unidas adotam um sistema de votação que concede o poder
de veto apenas às grandes potências. Esse fato decorreu da visão dos
criadores da ONU, que consideravam o princípio da igualdade jurídica
dos Estados como uma das causas da ineficácia do Conselho e da As-
sembléia da SDN. Se por um lado o novo sistema facilita a tomada de
decisões do Conselho de Segurança, por outro, dá margem a interpreta-
ções que consideram o poder de veto como uma contradição à própria
Carta da ONU. Como ponto positivo, destaca-se que as pressões das re-
giões coloniais, somadas ao enfraquecimento das metrópoles européias
após a Segunda Guerra, fizeram com que o sistema de tutela da ONU
eliminasse a distorção à igualdade jurídica existente no antigo regime
de tutela da SDN.
O rápido crescimento da economia em escala mundial no quarto
de século posterior à II Guerra Mundial e o desenvolvimento do direi-
to internacional econômico aumentaram o nível de interdependência
entre os Estados. A maior integração entre os países provocou algumas
contradições com tradicionais direitos fundamentais dos Estados, como
a soberania e a igualdade jurídica. Para adaptar esses princípios às novas
características das relações internacionais, houve uma “relativização” de
tais direitos. Logo, se o objetivo de um Estado em desenvolvimento é
o de buscar investimentos externos, certamente ele não se recusará a
assinar tratados como o TNP ou a aderir a organizações como o FMI,
ignorando possíveis infrações ao princípio da igualdade jurídica dos Es-
tados. A mesma lógica é válida para os países que ingressam na União

256
André Vinicius Tschumi

Européia mesmo sabendo que possuirão uma quantidade de votos no


Conselho bastante inferior a de outros Estados.
Em 1970, a “Declaração de Princípios sobre Relações Amigáveis e
Cooperação entre os Estados”, aprovada pela Assembléia Geral da ONU,
afirma o direito de igualdade dos povos.107 A substituição do termo “igual-
dade jurídica dos Estados” por “igualdade jurídica dos povos” demonstra
a tendência de “suavização” desse conceito que deverá ser interpretado
mais como um princípio moral do que como uma norma jurídica em
si. Por meio desse princípio, os atores internacionais se comprometem
a respeitar a independência dos Estados ao não intervir nos assuntos de
jurisdição doméstica de outros países e a assegurar a validade das nor-
mas internacionais a todos os Estados. De acordo com essa concepção, o
direito à igualdade jurídica coincide com as conseqüências atribuídas a
outro direito fundamental dos Estados, também “relativizado” pelas in-
terpretações mais atuais por causa das novas características das relações
internacionais: o direito à independência ou soberania. Assim, qualquer
afirmação que atribua um conjunto maior de garantias e responsabilida-
des ao princípio da igualdade jurídica dos Estados não está adaptada à
realidade atual. As menções a esse princípio contidas na Carta da ONU,
da OEA e na ata final da Conferência de Helsinque não garantem aos Es-
tados um tratamento rigorosamente igualitário pelo direito internacio-
nal, como sugeriam as antigas interpretações dessa teoria, por exemplo,
aquela formulada por Rui Barbosa em Haia.
A cooperação entre os Estados instituída como um dever exige
“uma revisão da noção formal de igualdade que dominava o direito
internacional”108. A grande desigualdade política entre os países impli-
ca atribuições bastante diferenciadas no papel a ser exercido por cada
Estado no dever de cooperação internacional. Enquanto os países ricos
possuem condições de doar mais do que 0,7% do seu produto interno
bruto aos países pobres como auxílio ao desenvolvimento sustentável109,

107  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 445.
108  Abi Saab apud MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público,
p. 445.
109  De acordo com JO essa meta foi acordada na UNCTAD (United Nations Conference on Trade
and Development) para a Official Development Aid (ODA), sendo um dos temas fundamentais da
Agenda 21. (Cf. JO, Hee Moon. Introdução ao Direito Internacional, p. 427).

257
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

a maioria dos Estados africanos não possui condição alguma para pres-
tar atividades de cooperação (auxílio econômico) internacional.
O exemplo da Conferência de Estocolmo de 1972, onde tem início
as discussões sobre as metas que devem ser assumidas pelos países mais
desenvolvidos na preservação do meio ambiente, demonstra o consenso
acerca da idéia de que os Estados mais ricos devem ter assumir maior
responsabilidade na resolução dos problemas globais. A respeito desse
assunto, a grande maioria dos tratados elaborados (como o Protocolo
de Kyoto) estabelece deveres desiguais entre os Estados, o que viola o
princípio da igualdade jurídica dos Estados como foi interpretado por
Rui Barbosa. O discurso retórico a respeito desse princípio, associado
aos ideais de soberania e independência dos Estados, continuará a ser
invocado por alguns tratados internacionais. Porém, nas questões prá-
ticas os exemplos mais atuais demonstram que a igualdade jurídica é
adaptada em função dos interesses dos Estados, como na questão do
desarmamento, de um comércio internacional mais justo e na partici-
pação dos Estados tanto nas organizações internacionais de cooperação
(ONU, OEA e etc.) como nas de integração (como a União Européia).
Se em questões como o poder de veto no Conselho de Seguran-
ça, ou o sistema de votação ponderada do FMI, a igualdade jurídica é
manipulada em favor das grandes potências, o fenômeno inverso tem
ocorrido quando se trata de questões econômicas. Como atualmente
os países em desenvolvimento dominam as comissões que elaboram o
direito internacional, esses têm reivindicado uma “igualdade vantajosa”,
isto é, que seja dado a eles um tratamento mais benéfico em termos
de comércio e de aplicação de recursos110. A alegação utilizada é que
não se pode tratar de modo igualitário Estados que possuem níveis de
desenvolvimento amplamente desiguais. Logo, a verdadeira igualdade
residiria em tratar de modo diferenciado os países com padrões sócio-
econômicos desiguais. Esse seria o caso, por exemplo, do SGP, criado
pela UNCTAD em 1968.
Percebe-se assim que, independentemente da condição de de-
senvolvimento, os Estados procuram explicar o princípio da igualda-
de jurídica de acordo com seus objetivos políticos. A igualdade formal,
que tornava inflexível a interpretação desse princípio, foi substituída no

110  Cf. MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, p. 55.

258
André Vinicius Tschumi

decorrer do século XX pela igualdade material, que é utilizada pelos


diversos grupos de países como meio de adaptar o entendimento do
princípio da igualdade jurídica dos Estados aos interesses nacionais.
Em uma sociedade complexa e sem uma organização jurídica só-
lida, caracterizada pelo desdobramento funcional dos Estados, a tese da
igualdade dos Estados se torna uma norma sem conteúdo, que apenas
organiza as relações entre os Estados no direito internacional. A desobe-
diência a essa norma não implica em responsabilidade internacional dos
Estados, pois atualmente o referido princípio funciona principalmente
como uma regra de caráter retórico, que serve de base para o estabeleci-
mento das relações de cooperação entre os Estados. Ou seja, a igualdade
jurídica tem uma dupla função: quando associada à idéia de soberania,
em uma perspectiva teórica, serve para garantir um conjunto mínimo de
direitos capazes de assegurar a autonomia dos Estados no plano jurídi-
co internacional. Quando associada às atividades práticas dos Estados, a
igualdade jurídica serve para que os países, baseados em uma interpre-
tação da referida teoria que atenda aos seus próprios interesses, possam
fundamentar suas relações com a comunidade internacional. As diversas
formas de interpretação relativa ou moderna dessa teoria praticamente
eliminaram os possíveis casos de violação da igualdade jurídica, o que
dificulta ainda mais a caracterização da responsabilidade internacional e
confirma a tendência de interpretar atualmente esse princípio mais como
uma norma moral do que como uma regra jurídica.

Referências
ACCIOLY, Hidelbrando. Tratado de Direito Internacional Público. 2. ed.
Rio de Janeiro: IBGE, 1956.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Os primeiros anos do século XXI: O Brasil e
as relações internacionais contemporâneas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
ARISTÓTELES. A Política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BARBOSA, Rui. Os conceitos modernos do direito internacional. Rio de
Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1982.
BOBBIT, Philip. A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos
grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro:
Campus, 2003.

259
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

BOSON, Gerson de Britto Mello. Curso de Direito Internacional Público.


19. ed. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1958.
BRIERLY, James Leslie. Direito Internacional. 4. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1963.
BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. São
Paulo: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2002. (Col. Clássicos IPRI, 5).
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. Tradução de
Luiz Alberto Figueiredo Machado. 2. ed. Brasília: Editora Universidade
de Brasília e São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001.
(Col. Clássicos IPRI, 1).
CARVALHO, Delgado de. História diplomática do Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1959
CERVO, Amando L; BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior
do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.
DOMÍNGUEZ, Maria T. del R. M; HALAJCZUK, Bohdan T. Derecho
Internacional Público. Buenos Aires: EDIAR, 1978.
FENWICK, Charles G. Derecho Internacional. Buenos Aires: Editorial
Bibliografica Argentina S.R.L., 1946.
FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL; ODEBRECHT. Notícias de Rui
Barbosa: um brasileiro legal. [s.l.]: Emporium Brasilis Memória e
Produção cultural, 1999.
GANDARILLAS, Vicente C. La igualdad juridica de los Estados.
Santiago: Juridica de Chile, 1968.
GARCIA, Eugênio V. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer
ou não perder.Porto Alegre/Brasília: UFRGS/FUNAG, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KAPLAN, Morton A; KATZENBACH, Nicholas de B. Fundamentos
Políticos do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.
KELSEN, Hans. La paz por medio del derecho. Buenos Aires: Losada S.
A., 1946.

260
André Vinicius Tschumi

KISSINGER, Henry A. A Diplomacia das Grandes Potências. Rio de


Janeiro: Francisco Alves, 1999.
JO, Hee Moon. Introdução ao Direito Internacional. São Paulo: LTr,
2000.
LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio-Branco); bibliografia pessoal
e história política. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1965.
LUPI, João E. P. B; LUPI, André L. P. B. Primórdios do Direito
Internacional: de Tomás de Aquino a Francisco de Vitoria. Disponível
em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10543&p=1 >.
Trabalho publicado em 2007. Acesso em: 30 abril 2010.
MELLO, Celso D. De Albuquerque. Curso de Direito Internacional
Público. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. v.1
MELLO, Rubens Ferreira. Textos de direito internacional e de história
diplomática de 1815 a 1914. Rio de Janeiro, 1950.
MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo poder e
pela paz. Tradução de Oswaldo Biato. Brasília: Editora Universidade de
Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. (Col.
Clássicos IPRI).
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Princípios de Direito Internacional. Rio
de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1902.
REUTER, Paul. Direito Internacional Público. Lisboa: Presença, 1981.
RODRIGUES, José H; SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma história
diplomática do Brasil: 1531-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995.
RUSSOMANO, Gilda Maciel Corrêa Meyer. Estudos de direito
internacional. Porto Alegre: UFRGS, 1965.
SEITENFUS, Ricardo A. S. Manual das organizações internacionais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
STEAD, William; BARBOSA, Rui. O Brasil em Haya. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nacional, 1912.
TSCHUMI, André V. Princípio da Segurança Coletiva e a Manutenção
da Paz Internacional. Curitiba: Juruá 2007.

261
ORIGENS E EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE IGUALDADE JURÍDICA DOS ESTADOS

VATTEL, Emerich de. The Law of Nations. 1753. Disponível em: < www.
constitution.org/vattel/vattel.htm >. Acesso em: 27 jul. 2002.
VIANA FILHO, Luís. Três estadistas no Império: Rui-Nabuco-Rio
Branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. v.2

262
“Novas Abordagens”
SÍNTESE: oportunidades e
desafios para o ensino e pesquisa
em relações internacionais no
século XXI
Frederico Seixas Dias1

Introdução
Ao longo do século XX, o campo de estudos de Relações Inter-
nacionais (RI) ganhou autonomia na estrutura universitária de vários
países. Foram consolidadas instituições de alcance nacional, regional e
global, formalizando suas práticas cada dia mais. Sua expansão é no-
tável, não só nas regiões desenvolvidas do planeta, mas também, nas
sociedades emergentes e mesmo naquelas com grandes dificuldades
para encontrar um caminho sustentado de desenvolvimento. RI chega
ao século XXI mais globalizada do que nunca. E é a própria globaliza-
ção contemporânea a fonte de desafios (reconhecidos como) cada vez
mais exigentes de soluções que escapam das simplificações modelares e
das visões unilaterais, acadêmica e socialmente falando – problemas de
natureza e manifestação extremamente intrincada tais como a AIDS, a
fome, a crise climática, o narcotráfico, o controle da venda de armas e
a não-proliferação, o terrorismo, crises econômicas, o desenvolvimento

1  Professor de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e doutorando


do programa de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
(iREL/UnB).

265
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

econômico-social e sustentável, a defesa dos direitos humanos, ações


emergenciais contra desastres naturais, epidemias, entre outros.
Como reação, uma tendência em emergente destaque na ativida-
de científica em geral são os esforços de maior comunicação entre pes-
quisadores de diferentes origens disciplinares e entre eles e os agentes
do mundo real envolvidos na busca de solução para os mais urgentes
problemas, que muito frenquentemente costumam ignorar suas fron-
teiras catedráticas, departamentais e laboratoriais. Interdisciplinarida-
de, contribuições transversais, avaliação integrada, diálogo e síntese são
rótulos geralmente atribuídos a tais práticas. Dadas as peculiaridades
dessa conjuntura, o objetivo do texto é discutir uma questão que só à
primeira vista pode parecer trivial: de que formas um campo multidis-
ciplinar como RI, particularmente em seus desenvolvimentos teóricos,
pode contribuir para a busca do conhecimento necessário para enfren-
tar os complexos desafios da ordem mundial contemporânea?
A não-trivialidade da questão é que, apesar da própria natureza
multidisciplinar do campo e dos grandes desafios contemporâneos, RI
apresenta em sua história o nítido esforço de diferenciação para marcar
sua autonomia intelectual e institucional perante as demais Ciências So-
ciais e Humanidades. Para além de vários avanços e benefícios que essa
busca pode ter trazido, ela tem grande responsabilidade na constituição
de um campo de conhecimento repleto de debates disciplinares legíti-
mos para alguns, mas pouco relevantes para a maior parte da humani-
dade. É clara a necessidade de se resgatar o espírito da proposta original
que marca a fundação de RI – a de integrar as disciplinas preocupadas
com o entendimento e encaminhamento das relações internacionais –
para se alcançar uma maior sintonia com os desafios do mundo con-
temporâneo e tornar RI um campo de investigação socialmente mais
relevante. A síntese é uma proposta que busca enfrentar esse desafio por
meio do exercício do diálogo interdisciplinar necessário em razão dos
problemas particulares que se apresentam.
O argumento do ensaio é aberto por uma abordagem do contexto
em que a síntese emerge, permitindo o entendimento das complicações
e possibilidades que ela experimenta no âmbito da Ciência contempo-
rânea e das sociedades em que operam. Em seguida, ainda na primeira
seção, algumas qualificações importantes serão adicionadas à proposta,
em nome de uma maior precisão conceitual. Na segunda parte, será re-

266
Frederico Seixas Dias

alizada uma reflexão sobre o significado dessa proposta para a prática da


pesquisa e do ensino em RI na alvorada do século XXI, especialmente
diante dos aspectos mais cognitivos do campo: autoimagens, discursos
e debates teóricos. Por fim, a última seção concentra-se no contexto do
campo no Brasil, mas desce a um nível maior de especificação, trans-
cendendo questões cognitivas e explorando importantes aspectos ins-
titucionais que permitem uma abordagem mais eficaz dos da situação
enfrentada no país. Ao longo do texto, espera-se que estudantes e pes-
quisadores possam retirar inspirações de práticas que os melhor capaci-
tem para o aproveitamento de todo o potencial desse campo de estudos
na realização de sínteses que orientem o enfrentamento dos grandes de-
safios da política mundial do novo século.

A reorientação interdisciplinar da ciência na alvorada do


século XXI e a proposta da síntese
O crescimento da interdisciplinaridade é um movimento nítido
desde, pelo menos, os anos 1930 nas Ciências Naturais e os anos 1970 nas
Ciências Sociais. Não há como deixar de notar, por exemplo, a mudança
no padrão dos Prêmios Nobel, premiando contribuições que transcen-
dem a disciplina original de cada uma das suas categorias, como a Cien-
tista Política Elinor Ostrom, que em 2009 ganhou o prêmio de Econo-
mia pelos seus estudos da governança econômica especialmente sobre
os bens comuns, como o clima. Periódicos híbridos multiplicam-se, e já
há quase 15 anos passavam de duas centenas. Enquanto isso, bibliotecá-
rios, estrategicamente posicionados na catalogação dos livros que lhes
chegam, testemunham o fenômeno da interdisciplinaridade que muitos
cientistas ainda relutam em deferir.2
Desses nichos de inovação, vem a inspiração para a proposta mais
específica contida nesse ensaio, visando potencializar o papel de RI no
trato das peculiaridades da complexidade contemporânea – da globali-
zação e da sua governança.

2  DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary walls. International Social
Sciences Journal, n. 153, set. 1997.

267
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Conceituada aqui como síntese,3 ela pode ser definida como o


processo de busca de soluções para desafios complexos, baseado no diá-
logo inteligente, flexível e construtivo entre diferentes áreas de especiali-
zação do conhecimento humano. Diálogo, pois, ainda que possa resultar
em unificação, seu objetivo não é acabar com a diversidade anterior de
disciplinas, abordagens e pontos de vista. Inteligente, porque apresenta
velocidade no entendimento do problema, consistência nas propostas
apresentadas e bom julgamento de suas consequências. Flexível, pois
sua preocupação está além de uma pretensa verificação objetiva da ver-
dade, sendo capaz de abrir mão de valores puramente epistemológicos
em algumas escolhas da pesquisa em nome de oportunidades estraté-
gicas que possam fazê-la avançar sem perder significativamente sua
consistência empírica. Construtivo, visto que seu foco está na agência
humana, na possibilidade de execução das soluções propostas e seu su-
cesso na resolução dos objetivos estabelecidos.
Para uma maior clareza, é necessário contextualizá-la a partir de
quatro desenvolvimentos simultâneos e interdependentes: a explosão
de dados na era da sociedade do conhecimento; o processo de institu-
cionalização das Ciências Sociais nas universidades; a globalização; e
o reconhecimento da complexidade resultante do aprofundamento das
interações de diversos sistemas sociais e naturais. Integrados, eles carac-
terizam a dimensão dos desafios a serem enfrentados e, portanto, a de-
manda, que por vezes nem é vislumbrada, pela consolidação da prática
do diálogo interdisciplinar entre os praticantes da ciência.
Em primeiro lugar, a revolução iniciada pela invenção e utilização
generalizada do computador pessoal. Fora a incrivelmente veloz e per-
manente melhora nas capacidades de processamento de informações, a
revolução segue e se desdobra nos efeitos ainda mais impressionantes da

3  A inspiração principal para o uso desse termo é o texto de Bruce Tow e David Gilliam, Synthesis:
an interdisciplinary discipline (TOW, Bruce e GILLIAM, David. Synthesis: an interdisciplinary
discipline. The Futurist , maio-jun, 2009), em que os dois autores fora do mainstream acadêmico
e muito mais próximos das questões ligadas à tecnologia no mundo empresarial e à resolução de
problemas complexos enfrentados pelas organizações, oferecem uma das leituras mais instigantes e
práticas para o tema. Apesar de simples e, apesar da discussão não ser nova, o argumento colocado
pelos autores na defesa da modalidade de síntese para a eficaz utilização dos conhecimentos
especializados na análise e resolução dos problemas de uma prática crescentemente complexa foi
suficientemente sedutor. Contudo, o endereçamento do texto dos autores exigia um tratamento
menos denso e um ritmo mais dinâmico das questões conceituais e contextuais que definem a
síntese. Adensar a proposta é o intuito dessa seção do texto.

268
Frederico Seixas Dias

disseminação, aumento das capacidades e redução de custos da internet


ao redor do mundo.4 Nesse contexto, mais de metade do acumulado
de dados científicos de toda a história da humanidade é obra da última
década e meia.5
Iniciativas interessantes para lidar com o boom informacional
disseminam-se. Na chamada crowd science, dados são disponibilizados
e tornados acessíveis para muitos pesquisadores ao redor do planeta en-
volvidos na leitura intensiva de uma quantidade massiva de dados e no
encaminhamento das conclusões analíticas.6 O projeto Creative Com-
mons, do MIT, visa disponibilizar uma ampla base de dados e referências
em seu site visando esse mesmo tipo de cooperação.7 Mas o seu próprio
diretor, John Wilbanks, sugere cuidado com o alcance da revolução:
“Data is not sweeping away the old reality. (...) Data is simply placing a set
of burdens on the methods and the social habits we use to deal with and
communicate our empiricism and our theory.” 8 A síntese, portanto, pode
encontrar aí um quadro de boas vindas às novas iniciativas, abordagens,
métodos e instituições que fomentem e consolidem não só a cultura de
uma prática mais coletivizada da ciência, mas que a façam permanente-
mente no sentido do exercício da interdisciplinaridade.
Não obstante, é com mais e mais especialização que a academia
tem respondido ao fenômeno da revolução informacional.9 Esse é o
segundo elemento que contextualiza a proposta da síntese. Mais do que
a especialização em si, o desenvolvimento isolado das especializações
nas principais instituições de pesquisa e ensino, processo gestado nas
novas universidades européias e estadunidenses do século XIX. Nas

4  GANTZ, John; REINSEL, David. As the Economy Contracts, the Digital Universe Expand. In:
International Data Center: White Papers. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/15748837/
IDC-Multimedia-White-Paper-As-the-Economy-Contracts-the-Digital-Universe-Expands>.
Acesso em: 09 nov. 2010.
5  TOW, Bruce; GILLIAM, David. Synthesis: an interdisciplinary discipline.
6  YOUNG, Jeffrey R. Crowd Science Reaches New Heights. In: The Chronicle of Higher Education.
Postado em: 28/05/2010. Disponível em: <http://chronicle.com/article/The-Rise-of-Crowd-
Science/65707/>. Acesso em: 09/11/2010.
7  O site do projeto é <http://creativecommons.org/science>. Acesso em: 09/11/2010.
8  Apud in: MARKOFF, John. A Deluge of Data Shapes a New Era in Computing. In: The New
York Times. Postado em 14/12/2009. Disponível em: < http://www.nytimes.com/2009/12/15/
science/15books.html?scp=5&sq=data%20explosion&st=cse>. Acesso em: 09 nov. 2010.
9  WALLERSTEIN, Immanuel. Diferenciação e reconstrução nas ciências sociais. In: _____. O fim
do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

269
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Ciências Sociais, esse movimento intelectual parece ter início com a


Economia, sendo seguida pela Ciência Política, Antropologia Cultural,
Sociologia, Psicologia Social e Geografia Social. Em nome de sua au-
tonomia, benéfica para seus praticantes em vários sentidos não-episte-
mológicos, como financiamentos, influência política e prestígio social,
cada uma dessas unidades foram aprofundando suas especificidades,
diferenciando seu objeto, seus métodos, seus conceitos e sistemas con-
ceituais na pesquisa – a especialização em um eixo vertical – e no ensi-
no, organizado em sistema eletivo com diferentes divisões catedráticas
ou departamentais e diferentes graus de formação acadêmica – a espe-
cialização em um eixo horizontal.10
Ainda que os esforços de diferenciação tenham sempre sido con-
trapostos por alternativas bem menos sectárias, ao final do século o
quadro que se fazia presente já era o de várias distintas e competiti-
vas ciências sociais em um número cada vez maior de universidades.11
Além disso, a crescente pressão sobre o mercado de trabalho acadêmi-
co, consequência da progressão geométrica do número de cientistas
sociais, egressos desses cursos de graduação, tem resultado na criação
de ainda mais novos espaços especializados – novas associações, publi-
cações e encontros temáticos, institutos, departamentos e cátedras, e
mesmo novas disciplinas e subdisciplinas. Como resultado, se nas pri-
meiras décadas do século poderiam ser contados pouco mais de meia
dúzia de distintos campos das Ciências Sociais, hoje o número já ultra-
passou a primeira centena.12
A síntese não sustenta o fim das especializações e seu interesse in-
vestigativo sobre algum aspecto singular da realidade em relativo isola-
mento analítico-experimental. Pelo contrário, na síntese cada expertise
é seriamente considerada na busca de soluções coletivas para o enfren-
tamento dos principais desafios do momento.13 Logo, a síntese deve ser
entendida como uma reação às conseqüências negativas do aprofunda-

10  NISBET, Robert A. Social Science. In: Encyclopaedia Britannica Online. Disponível em: <http://
www.britannica.com/EBchecked/topic/551385/social-science>. Acesso em: 12 de outubro de 2010.
11  NOBRE, Sérgio. Uma introdução à história das enciclopédias – a enciclopédia de matemática
de Christian Wolff de 1716. Revista da SBHC, v. 5, n. 1, 2007; NISBET, Robert A. Social Science.
12  NISBET, Robert A. Social Science.
13  MILLER, Matthew; MANSILLA, Veronica. Thinking across perspectives and disciplines.
Goodwork Report, n. 27. Interdisciplinary Studies Project, Project Zero, Harvard Graduate
School of Education, 2004. Disponível em: <http://www.pz.harvard.edu/interdisciplinary/pdf/

270
Frederico Seixas Dias

mento das especializações sem o cultivo de intenso diálogo entre elas,


como tem sido regra.
A globalização é elencada aqui como o terceiro desenvolvimento
central na motivação da síntese. O radical aprofundamento das intera-
ções e a conseqüente interdependência entre sociedades, instituições e
indivíduos das mais diversas regiões do planeta, em suas facetas militar,
econômica, política, sócio-cultural e ecológica é marca distintiva da fase
contemporânea (de 1939 a 1980) e recente (desde 1980) do fenômeno.14
A capacidade do Estado de organizar a vida em sociedade dentro de
seus limites territoriais é desafiada15, ao mesmo tempo em que os pró-
prios líderes de governos nacionais mais poderosos falam em transbor-
damento das responsabilidades políticas e sociais, configurando uma
mudança histórica da sociedade internacional no sentido do solidaris-
mo.16 O interno e o internacional encontram cada vez mais dificuldade
para se manterem coerentes como conceitos estanques.
O problema é que, para muito além de RI, toda a divisão mo-
derna entre as diversas Ciências Sociais teve como fundamento prin-
cipal essas mesmas fronteiras nacionais. Para Immanuel Wallerstein, a
figura do Estado soberano, particularmente por meio de uma ideologia
liberal, permitiu a separação analítica de unidades similares, distintas e
comparáveis entre si em seus processos individuais – seja o “mercado”,
seja o “governo”, seja a “sociedade”, por exemplo –, em plena conformi-
dade com as exigências metodológicas naturalistas predominantes nas
Ciências Sociais do século XIX (e boa parte do século XX). Portanto,
com a diversificação e o aprofundamento dos fluxos transnacionais, os
próprios Estados passam a ser questionados enquanto unidades de aná-
lise da experiência social por excelência, e a comparação de processos e
acontecimentos entre Estados é metodologicamente fragilizada, na me-

ThinkingAcross.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2010; DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks
in the disciplinary walls.
14  LEIS, Héctor Ricardo; VIOLA, Eduardo. América Del Sur en el mundo de las democracias de
mercado. Rosario: Homo Sapiens Ediciones: Centro para La apertura y el desarollo de América
Latina – CADAL, 2008.
15  KEOHANE, Robert O.; NYE, Joseph. Power and Interdependence. 3. ed. New York: Harper
Collins College, 2001.
16  HURREL, Andrew. Hegemony, liberalism and global order: what space for would-be great
powers? International Affairs, n. 82, v. 1, 2006; BADIE, Bertrand. Da soberania à competência do
Estado. In: SMOUTS, Marie-Claude. As novas relações internacionais. Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 2004.

271
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

dida em que, mais e mais, são interdependentes, partes de um mesmo


todo irredutível. Também as classificações analíticas do “econômico”,
“político” e “social” tornam-se bem menos claras e relevantes na medida
em que as oportunidades, riscos, ganhos e perdas associadas aos fluxos
da globalização parecem não terem sido avisadas dessas divisões arbi-
trárias da Ciência Moderna.17
O último desenvolvimento a ser apresentado é o emergente reco-
nhecimento da complexidade em uma gama de problemas do mundo
contemporâneo. A complexidade pode ser definida pela presença de
quatro condições: incerteza irredutível, não-quantificável oriunda da
multicausalidade, de lacunas no conhecimento, e/ou de entendimento
imperfeito do caso ou fenômeno em questão; presença de disputa quan-
to a valores fundamentais; possibilidade de ganhos ou perdas muito al-
tos; e urgência para a tomada de decisões.
Esse conceito tem sido desenvolvido em um campo que clara-
mente carrega o espírito da síntese, a Economia Ecológica. Silvio Funto-
wicz e Jerome Ravetz18 afirmam que se trata de um ramo de pesquisas de
uma Ciência Pós-normal, mais apropriada para lidar com situações em
que os riscos e incertezas são muito altos e valores fundamentais estão
em jogo. Nela, as certezas paradigmáticas dão lugar ao reconhecimento
da complexidade e da consequente necessidade de emaranhar diversas
perspectivas – inclusive dos agentes da práxis que têm interesses envol-
vidos na questão – sem serem reduzidas a qualquer uma em particular.
Como tema de interesse central também em RI, as mudanças
climáticas podem ser uma temática de entrada para o reconhecimento
da complexidade e a prática da síntese no campo. De fato, documen-
tos de grande relevo para a política mundial contemporânea, como os
relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o
IPCC,19 ou mesmo antes, na Declaração Final da Rio 92, particularmen-
te seu décimo quinto princípio:

17  WALLERSTEIN, Immanuel. The inter-state structure of the modern world-system. In: SMITH,
Steve; BOOTH, Ken e ZALEWSKI, Marysia (orgs.) International theory: positivism and beyond.
Cambridge: Cambridge University, 1996.
18  FUNTOWICZ, Silvio; RAVETZ, Jerry. Post-normal science. Internet Encyclopaedia of Ecological
Economics. International Society for Ecological Economics, 2003. Disponível em: <http://www.
ecoeco.org/pdf/pstnormsc.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2010.
19  SALORANTA, Tuomo. Post-normal science and the global climate change issue. Climatic
Change, n. 50, pp. 395–404, 2001.

272
Frederico Seixas Dias

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá


ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades.
Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza
científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas
economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.20
Fica claro que, conforme enfatizam Funtowicz e Ravetz, diante
de problemas complexos, “invoking ‘truth’ as the goal of science is a dis-
traction, or even a diversion from real tasks.”21 Mais produtivo para casos
complexos, tais como a cooperação internacional para enfrentar o aque-
cimento global, é escapar do uso dos dominantes critérios do empiris-
mo e da falseabilidade popperiana.22 Critérios pós-normais avaliam o
conhecimento produzido por meio do princípio da qualidade, entendi-
do como a propriedade contextual do conhecimento científico, em que
sua legitimidade está menos na demonstração rígida de suas hipóteses
e mais na inclusividade do diálogo que o produziu e em sua capacidade
pragmática de produzir resultados satisfatórios para essa comunidade
estendida de pares.23 Porém, não se trata de rejeição da pesquisa nor-
mal. Diante da complexidade, essas disciplinas normais só fazem senti-
do quando se apresentam em diálogo – entre si e, de forma mais ampla,
com as partes interessadas da sociedade, o que tem sido entendida como
a necessária comunidade estendida de pares de uma Ciência Pós-nor-
mal.24 Essa reação ao problema da complexidade é inspiração central na
proposta de síntese desse ensaio.

20  Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.
mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576>. Acesso
em: 14/11/2010.
21  FUNTOWICZ, Silvio; RAVETZ, Jerry. Post-normal science, p. 2.
22  O critério da falseabilidade desenvolvido por Karl Popper exige que qualquer teoria que se
pretenda científica tem que apresentar as possibilidades de que dados disponíveis possam refutar
hipóteses deduzidas de suas generalizações explicativas. Esse é um dos pilares fundamentais que
marcam o Positivismo contemporâneo, dominante entre as demais epistemologias nas Ciências
Sociais. Cf. POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. Londres: Routledge, 2002.
23  GOUGH, Clair; CASTELLS, Nuria; FUNTOWICZ, Silvio. Integrated Assessment: An emerging
methodology for complex issues. Environmental Modeling and Assessment. v. 3, 1998; RAVETZ,
Jerome. Post-normal science and the complexity of transitions towards sustainability. Ecological
complexity, n. 3, pp. 275-284, 2006; GALLOPÍN, Gilberto; FUNTOWICZ, Silvio; O’CONNOR,
Martin; RAVETZ, Jerry. Science for the 21st century: from social contract to the scientific core.
International Journal of Social Science, n. 168, jun. 2001. Disponível em: <http://governance.jrc.it/
jrc-docs/s21c.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2010.
24  FUNTOWICZ, Silvio; RAVETZ, Jerry. Post-normal science; RAVETZ, Jerry. Post-normal
science and the complexity of transitions towards sustainability; GALLOPÍN et al. Science for the

273
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Enfim, tal é o contexto da proposta corrente da síntese. A socie-


dade demanda esse tipo de profissional que, diante de um problema
complexo seja capaz de identificar a combinação necessária de espe-
cialistas e partes interessadas, de organizá-los em equipes motivadas na
busca de soluções que estão fora de suas especialidades, de gerenciar a
comunicação eficaz entre eles e de chegar a soluções que melhor satis-
façam os princípios da qualidade contextual do conhecimento acima
elencados. Dado todo esse contexto que marca a emergência da síntese,
é necessário proceder a algumas qualificações.
Para Bruce Tow e David Gilliam25, hoje a prática da síntese é um
“acidente de percurso”, mais do que uma formação acadêmico-profissio-
nal. No futuro, porém, entre 10 e 25 anos, a síntese será um campo de
formação profissional em si, tamanha sua necessidade prática. Portanto,
vive-se hoje um momento em que as novas formas de se pensar a mul-
ti-, a inter-, e/ou a transdisciplinaridade determinarão os campos mais
relevantes do conhecimento.
A primeira qualificação é que a síntese não se limita a qualquer
um desses rótulos em particular. A multidisciplinaridade é geralmente
considerada como a justaposição de contribuições individuais de dife-
rentes disciplinas sobre o mesmo problema, contudo sem haver mais
coordenação entre elas do que uma exposição editorial. Na interdis-
ciplinaridade, busca-se a integração dessas diferentes contribuições –
seus princípios e métodos de avaliação – não como um fim, mas um
meio para oferecer uma nova abordagem, mais eficaz para as proble-
máticas em questão. Por seu turno, transdisciplinaridade requer não só
transcendência das fronteiras entre as especializações, mas do espaço
acadêmico, incorporando outras formas de conhecimento – morais e
práticas  – oriundas da participação e contribuição das partes sociais
interessadas (stakeholders) em todo o processo de pesquisa, até as so-
luções propostas, facilitando inclusive a sua implementação.26 Dadas
essas definições, o caminho mais interessante para a síntese seria o da
interdisciplinaridade ou o da transdisciplinaridade, mas mesmo a mul-

21st century: from social contract to the scientific core.


25  TOW, Bruce; GILLIAM, David. Synthesis: an interdisciplinary discipline.
26  MILLER, Matthew; MANSILLA, Veronica. Thinking across perspectives and disciplines;
JEFFREY, Paul. Smoothing the waters: observations on the process of cross-disciplinary research
collaboration. Social Studies of Science, v. 33, n. 4, ago., 2003.

274
Frederico Seixas Dias

tidisciplinaridade é bem-vinda, pois pode ser a porta de entrada dessas


experiências inovadoras. A síntese não busca desqualificar qualquer um
deles a priori, já que todos podem se traduzir em práticas relevantes no
sentido do aumento de inclusividade no diálogo entre conhecimentos
de distintas origens. Mas a proposta é mais específica que qualquer um
desses três conceitos.
Mattei Dogan,27 por exemplo, também prefere não associar a
reação diante da complexidade contemporânea na forma do trabalho
dialógico entre inúmeras especializações com o conceito de interdisci-
plinaridade. Ele considera a noção inadequada, tendendo à improduti-
vidade e ao diletantismo e, por isso, apresenta outro conceito interes-
sante, a “hibridização”, ou o processo de sobreposição de segmentos de
disciplinas de forma a se recombinarem em inovadoras especialidades
como os estudos de desenvolvimento, de urbanismo, a psicolingüística,
a neuroendocrinologia, etc.
A segunda qualificação decorre da diferenciação que Dogan faz
entre sua proposta, de hibridização, e a síntese. Conforme ele entende
o termo, “(a) synthesis brings a new interpretation, a personal or stylistic
achievement. (...) Recombination requires scientific advance in the fields
from which it draws, while synthesis can occur without such advance.”28
Quando o autor utiliza o termo “síntese”, como ele próprio diz, está se
referindo mais especificamente a exemplos como o de Toynbee sobre a
teoria da história ou como o de Braudel sobre o mundo mediterrâneo –
ou seja, a síntese dos principais trabalhos acadêmicos em um determi-
nado tema. Certamente não é a definição utilizada aqui. Apesar disso, a
ilustração parece interessante para a caracterização da proposta.
A síntese depende de uma conquista que envolve todo o proces-
so de identificação de um problema complexo, das especialidades mais
apropriadas para resolvê-lo, a condução efetiva da comunicação entre
os especialistas e stakeholders do grupo de análise formado e a conclu-
são em torno das alternativas de ação mais viáveis e eficazes. Não se
requer um avanço no conhecimento em termos de proposição de novas
hipóteses que eventualmente levem à recombinação de segmentos de
disciplinas em novos campos de investigação. Isso se refere à proposta

27  DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary walls.
28  Idem, pp. 12-13.

275
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

de Dogan, a hibridização. Ainda que o processo de síntese possa fazer


com que se identifiquem essas novas hipóteses e que aquele projeto ad
hoc se torne um grupo permanente de investigação delas, estimulando
eventualmente a criação de novas especialidades híbridas, o objetivo da
síntese é mais pontual, isto é a solução de problemas atuais, concretos.
Portanto, a síntese é uma proposta pragmatista. Distancia-se da
tradicional concepção da ciência pretensamente objetiva, em isolamen-
to, elencando seus próprios quebra-cabeças e oferecendo suas elegantes
soluções teóricas ou ocupada demais com a radicalização dos incomen-
suráveis -ismos de liberais, conservadores e marxistas desde meados do
século XIX (fatalmente, os mesmos –ismos incomensuráveis do campo
de RI).29 Portanto, é um resgate do foco no enfrentamento dos pro-
blemas da práxis que marca a gestação iluminista das Ciências Sociais
ainda no século XVIII.30 Além disso, a tendência atual dos grandes fun-
dos, governamentais ou não, de incentivo à pesquisa é a de enfatizar a
problem-oriented research, o que definitivamente requer o enfrentamen-
to das barreiras disciplinares.31
Aproveitando a questão dos -ismos, deve ser lembrado que a sínte-
se não é só um exercício interdisciplinar mas, antes disso, intradisciplinar.
Isto é, se faz necessário não apenas para estabelecer um diálogo inteligen-
te, flexível e construtivo entre as disciplinas e entre suas (sub)especialida-
des, pois essas não são as únicas fronteiras a serem tornadas mais porosas:
a fragmentação e o distanciamento ocorrem dentro delas próprias, pela
multiplicação de teorias, métodos e ideologias concorrentes.32
Como outra qualificação necessária, é vital frisar que a proposta
deste trabalho diz respeito a um processo mais dialógico que dialético.
Não pode ser entendido simplesmente pela imagem clássica hegeliana

29  KRATOCHWIL, Friedrich. The monologue of “science”. In: HELLMANN, Gunther. Are
dialogue and synthesis possible in International Relations? International Studies Review, v. 5, n. 1,
mar., 2003.
30  WITTROCK, Björn; WAGNER, Peter; WOLLMANN, Hellmut. Social science and the modern
state: policy knowledge and political institutions in Western Europe and the United States. In:
WAGNER, Peter; WEISS, Carol; WITTROCK, Björn; WOLLMANN, Hellmut. Social sciences and
modern states: National experiences and theoretical crossroads. Cambridge: Cambridge University
Press, 1991.
31  JEFFREY, Paul. Smoothing the waters: observations on the process of cross-disciplinary
research collaboration.
32  DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary walls.

276
Frederico Seixas Dias

da resolução do embate entre tese e antítese pelo necessário alcance da


unidade, o fim da oposição de vozes. Isso pode ser contraprodutivo na
prática da síntese tal como definida aqui. Como já discutido, perante
a complexidade, a certeza de uma ciência clássica deve ser substituída
pelo reconhecimento da incerteza, dos paradoxos, das contradições. A
proposta defende o reconhecimento da natureza dialógica do contato
entre diferentes abordagens disciplinares da realidade como simultane-
amente constitutivas de seu significado e de nossas respostas a ela, de
modo que não faça sentido ter que eliminar as diferenças de suas pers-
pectivas – seja sobre o que vem a ser o real, seja sobre o que qualifica o
conhecimento – em favor de qualquer uma delas.33 Afinal, o compro-
misso de uma síntese dialógica, como pode ser mais apropriadamente
chamada a proposta deste trabalho, é com o enfrentamento de proble-
mas concretos, não do falseamento de teorias rivais.34
Todavia, faz-se necessária a advertência de que o diálogo inter-
disciplinar pode muitas vezes ser marcado mais pelo aspecto de nego-
ciação do que de colaboração, com cada parte fazendo concessões em
seu argumento para poder obter o avanço necessário em outros pontos
que lhes parecem mais relevantes.35 Por isso, é necessário buscar com-
preender a prática do diálogo em contextos reais e estar preparado para
identificar e lidar com suas estruturas de poder, até mesmo às desafian-
do. A experiência de Clair Gough, Nuria Castells e Silvio Funtowicz36
e de Paul Jeffrey37com o trabalho em grupos interdisciplinares na pro-
dução de estudos que fomentariam políticas européias de cooperação
no combate à desertificação e acidificação de terras no mediterrâneo
revela o duro processo de barganha, concessões, avanços e retrocessos

33  NEUMANN, Iver. International Relations as emergent bakhtinian dialogue. In: HELLMANN,
Gunther. Are dialogue and synthesis possible in International Relations? International Studies
Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
34  HELLMANN, Gunther. In conclusion: Dialogue and synthesis in individual scholarship and
collective inquiry. In: _____. Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
35  KRATOCHWIL, Friedrich. Constructivism as an approach to interdisciplinary study. In:
FIERKE, Karin; JOERGENSEN, Knud (orgs.). Constructing International Relations, the next
generation. Armonk, N.Y./London: M.E. Sharpe, 2001.
36  GOUGH, Clair; CASTELLS, Nuria; FUNTOWICZ, Silvio. Integrated Assessment: An emerging
methodology for complex issues.
37  JEFFREY, Paul. Smoothing the waters: observations on the process of cross-disciplinary
research collaboration.

277
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

que marca a prática. Não se preparar para este aspecto negociador do


diálogo interdisciplinar é correr o risco da decepção pela não-realização
de expectativas por demais idealizadas.38
Por último, na medida em que a comunicação e a negociação são
centrais na condução da síntese, deve-se destacar o papel de intermedia-
ção nesse processo. Tow e Gilliam relatam pesquisas que associam a pre-
sença de um intermediário (ou bridge) em equipes multidisciplinares com
o sucesso de suas soluções propostas.39 Contudo, pessoas com o perfil do
sintetista ainda são muito incomuns. A competência da síntese, de fato, é
constituída por uma série de habilidades que para muitos não flui natural-
mente e só pode ser conseguida a partir do treinamento específico.
Um praticante da síntese deve ser empreendedor, intelectualmen-
te sem medo de arriscar a criatividade, ter a capacidade de manter ma-
pas virtuais do conhecimento na cabeça. Deve ser questionador de situ-
ações apresentadas como bivalentes, de forma maniqueísta, e ser capaz
de adicionar muitos tons de cinza ao preto e branco original. Deve estar
focado mais no processo da construção da síntese do que em seus re-
sultados. Mas ele deve saber identificar o momento de chegada em uma
solução satisfatória para o caso. Deve valorizar a comunicação – tanto
ouvir quanto transmitir, sendo capaz de se engajar tanto em raciocínios
qualitativos quanto quantitativos. O gosto pela leitura atualizada de te-
mas variados, inclusive os que não têm envolvimento direto também
marca sua predileção intelectual. Interessados igualmente em arte e ci-
ência, são pragmatistas que perseguem o conhecimento na medida em
que é necessário para chegar à solução de um problema concreto e se-
guir adiante, no enfrentamento de novos desafios e prospecção de novos
conhecimentos.40 Como cientista da complexidade, deve ser capaz de
uma tarefa muito mais caótica do que a mera identificação de repetição
estabilidade e equilíbrio – deve saber reconhecer e lidar com a instabi-
lidade, a evolução, a criatividade e as descontinuidades e tolerar tensões
insolúveis como fontes do conhecimento a ser apreendido.41
Portanto, a necessidade de inovação nas práticas de diálogo entre
as várias especializações estabelecidas e por se estabelecerem e a conti-

38  NEUMANN, Iver. International Relations as emergent bakhtinian dialogue.


39  TOW, Bruce; GILLIAM, David. Synthesis: an interdisciplinary discipline.
40  Idem.
41  WALLERSTEIN, Immanuel. Diferenciação e reconstrução nas ciências sociais.

278
Frederico Seixas Dias

nuidade destas em uma nova cultura da atividade científica não pode


ser mais ignorada. Wallerstein não poderia ser mais claro: “No mínimo,
seria desejável interpretarmos fronteiras organizacionais e burocráticas
com grande flexibilidade e estimularmos em toda a parte a colaboração
inteligente.” E conclui de forma impactante: “Abrirmo-nos, individual e
coletivamente, não é uma opção, é uma estratégia mínima de sobrevi-
vência e relevância.”42 Enquanto diálogo interdisciplinar voltado para a
resolução transdisciplinar de problemas complexos particulares, a sín-
tese visa ser uma contribuição para enfrentar o complexo contexto da
globalização contemporânea e sua governança.

A proposta da síntese e o campo de Relações Internacionais


O campo43 reconhecido hoje pelo rótulo de Relações Interna-
cionais44 também tem a sua própria história de isolamento disciplinar.
Quando a Universidade de Aberystwyth funda a primeira cátedra de
RI, em 1919, as grandes divisões das Ciências Sociais já haviam se es-
tabelecido há meio século, e nelas foram se desenvolvendo pesquisas
sobre questões internacionais a partir de suas diversas abordagens. Foi
o interesse mais intenso de pesquisadores da Economia, da Ciência Po-
lítica, da Sociologia, da Antropologia Social e, desde muito antes, das
consideradas Humanidades – História, Filosofia e Direito –, em diver-

42  Idem, p. 203.


43  O texto reconhece as problemáticas envolvidas no intercâmbio entre os conceitos de “disciplina”
(os conjuntos de práticas que visam gerar ordem, controlar o acaso do discurso, ver FOUCAULT,
Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001) e “campo” (um espaço de interações onde o
capital simbólico tem sua própria definição, estruturando as relações entre seus participantes e as
condições de refratação, de transformação na incorporação de demandas externas, ver BOURDIEU,
Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Ed.
UNESP, 2003), mas prefere não se prender a qualquer um deles, pois ambos carregam conotações
interessantes e, em certa medida, compatíveis.
44  Quando é feita referência à expressão Relações Internacionais (RI) sem maiores qualificações, o
significado pretendido é o do campo de estudos formalizado como divisão acadêmica das Ciências
Sociais e que tem como centro – especialmente no sentido de atratividade do mercado de trabalho,
volume de produções e influência sobre as demais partes – o mundo anglossaxão, mas especialmente
os Estados Unidos. É, portanto, a idéia já explorada na introdução, de um campo de preocupações
comuns globais, mas com hegemonia da academia estadunidense nas suas práticas, e – quando se
quer salientar esse aspecto – chamada por vezes de RI “global/americana”. Ver WAEVER, Ole. The
sociology of a not so international discipline: American and European developments in International
Relations. International Organization, v. 52, n. 4, 1998; SMITH, Steve. The United States and the
discipline of International Relations: “hegemonic country, hegemonic discipline”. In: PASHA e
MURPHY (orgs.). International Relations and the new inequality. Oxford: Blackwell, 2002.

279
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

sos países, que os uniu em torno da fundação dos primeiros periódicos,


graduações e pós-graduações e institutos de pesquisa da área.45 Uma
vez que passaram a se identificar mais entre si do que com seus pares
de suas disciplinas de origem, perceberam as grandes possibilidades de
vultosas doações públicas e privadas para a pesquisa e a relevância polí-
tica nos processos decisórios nacionais e internacionais.46 As primeiras
gerações do campo, portanto, interessadas em ter sua prática cada vez
mais reconhecida como disciplina autônoma, tomaram para si a tarefa
de demonstrar claramente a sua especificidade perante as demais divi-
sões modernas das Ciências Sociais.
Esse paradoxo singulariza o desafio que a proposta da síntese en-
contra no campo de RI: uma autoimagem fundadora que potencializa
o gosto e a iniciativa de práticas de diálogo interdisciplinar que, contu-
do, se desmancha perante os excessos históricos da preocupação com
a autonomia disciplinar, majoritariamente justificada pelo discurso da
centralidade – ainda que em diferentes medidas – do conceito de anar-
quia em suas abordagens predominantes da vida internacional. Basta
procurar pela questão em algumas das obras centrais de RI para atestar
essa afirmação potencialmente controversa.47 Aliás, basta acessar algu-
mas das principais críticas, especialmente as pós-modernas, denuncian-
do a pobreza dessa tradição de separar drasticamente as fronteiras do
interno e do externo, o que certamente transcende em muito a contri-
buição da corrente realista à disciplina. Conforme salientam os críticos,
a anarquia como condição inicial de modelos explicativos é uma supo-

45  SATO, Eiiti. Relações Internacionais como área do conhecimento e sua consolidação nas
instituições de ensino e pesquisa. Trabalho preparado para a V Semana de Relações Internacionais
da UNESP, 2007; GUIMARÃES, Lytton. Relações Internacionais como campo de estudos: discurso,
raízes e desenvolvimento, estado da arte. Cadernos do REL. Brasília: UnB - Depto. de Relações
Internacionais, n. 17, 2001.
46  Para o caso de RI no Reino Unido, ver RICH, Paul. Reinventing Peace: David Davies, Alfred
Zimmern and Liberal Internationalism in Interwar Britain.  International Relations, v.  16, n. 5,
2002. Para o caso americano, ver KENNAN, George. American Diplomacy. Chicago: University
of Chicago, 1984, Cap. 6.
47  Alguns exemplos dessas obras são MORGENTHAU, Hans. Politics among Nations: the struggle
for power and peace. New York: Mc Graw-Hill, 1993; WALTZ, Kenneth. O homem, o estado e a guerra:
uma análise teórica. São Paulo: Martins. Fontes, 2004; _____. Theory of international politics. New
York: McGraw-Hill, 1979; BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2002;  WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999; BALDWIN, David (org.). Neorealism and Neoliberalism: The
contemporary debate. New York: Columbia University Press, 1993.

280
Frederico Seixas Dias

sição conceitual da realidade que convenientemente limita os debates


em torno de questões e hipóteses passíveis de verificação empírica, mas
pouco relevantes para a maior parte da humanidade – não só seus mar-
ginalizados, mas também muitos abastados que têm sido, mesmo que
em menor grau, impactados pelos grandes problemas contemporâneos
já mencionados.48
Portanto, o vínculo entre a autonomia do campo e o conceito de
anarquia parece ser um elemento crucial a ser superado. Qualquer in-
terdisciplinaridade eventualmente pretendida a partir do imperialismo
ontológico do conceito de anarquia, em relação ao qual todos os demais
conceitos aparecem condicionados e/ou subordinados a sua lógica, é in-
satisfatória diante das demandas materiais e morais de uma nova ordem
mundial e diante da vontade de inclusão de diversas outras concepções
sociais e disciplinares que não se encaixariam nesse esquema.49 Isso exi-
ge uma revisão dos seus conceitos mais básicos, tal como a própria de-
finição do seu objeto de estudos. O conceito trazido por Marie Claude
Smouts é bastante interessante nesse sentido: “o objeto das relações in-
ternacionais é (...) a estruturação do espaço mundial por meio de redes
de interações sociais”. Um historiador provavelmente iria gostar de adi-
cionar algo que enfatizasse o peso do tempo na definição, enquanto um
economista demandaria atenção para a primazia das redes de produção,
compra e venda de bens e serviços. Ainda assim, o mais importante é
que ele se abre à fluência do diálogo interdisciplinar, ao contrário da
premissa fechada da anarquia.
Mas, assim como em outras das grandes divisões das Ciências
Sociais, foram os excessos rumo ao isolamento que acabaram por es-
timular a procura por soluções ainda não imaginadas, novos conceitos
e métodos em outras especialidades visando revigorar a sua própria.50

48  Críticas exemplars podem ser encontradas em ASHLEY, Richard. The Poverty of Neorealism. In:
KEOHANE, Robert (org.). Neorealism and its critics. New York: Columbia University Press, 1986;
WALKER, Robert. Speaking the language of exile: Dissidence in International Studies. International
Studies Quarterly, v. 34, n. 3, 1990; _____. The double outiside of the modern international.
Ephemera: Theory and politics in organization, v. 6, n. 1, 2006; SMITH, Steve. The United States and
the discipline of International Relations: “hegemonic country, hegemonic discipline”.
49  Ver KRATOCHWIL, Friedrich. Constructivism as an approach to interdisciplinary study.
50  MILLER, Matthew; MANSILLA, Veronica. Thinking across perspectives and disciplines;
BUANES, Arild; JENTOFT, Svein. Building bridges: Institutional perspectives on interdisciplinarity,
Futures, v. 41, pp. 446–454, 2009.

281
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Dessa forma, a complexidade exigida no estudo da globalização – tema


historicamente central, ao lado da guerra, no estudo da política mundial
– exige de RI, mais do que qualquer outro campo das Ciências Sociais, a
permanente abertura para o diálogo entre as várias especializações ocu-
padas com o estudo de partes desse todo. O contrário disso é uma fatal
estagnação intelectual.
Felizmente, de acordo com Yosef Lapid, “the rising tide of interest
in dialogue concerning social theory seems to have reached the shores of
the international relations discipline”.51 A maré encontra na disciplina o
“grande debate” entre positivistas e pós-positivistas, iniciado por volta
da segunda metade dos anos 198052 e desdobrando-se uma década de-
pois no mais campal debate entre racionalistas e construtivistas.53 Ro-
bert Geyer,54 afirma que a crítica pós-positivista ressoa o próprio impac-
to da revolução de Einstein, Bohr e Heisenberg com o reconhecimento
da complexidade na Física e, progressivamente, nas demais ciências na-
turais, a partir dos anos 1930. Tanto pós-positivistas (excluindo-se os
pós-modernos) quanto quânticos são motivados pelo estudo do caráter
não-ordenado, irredutível, imprevisível e indeterminado dos fenôme-
nos complexos da realidade. Confiam em uma concepção epistemológi-
ca alternativa, mais apropriada para abraçar a probabilidade como con-
clusão necessária da pesquisa e para reconhecer o papel do observador
na constituição da realidade e de seu conhecimento.
Entretanto, ainda que existam conexões interessantes entre os te-
mas críticos pós-positivistas e o reconhecimento da complexidade, exis-
tem ressalvas quanto o espaço que esse movimento abre para o diálogo
e a síntese. Em primeiro lugar, deve-se conceder papel fundamental aos
teóricos liberais da interdependência e dos regimes internacionais. A
inclusão de mais atores, temas, interesses, instituições e formas de poder

51  LAPID, Yosef. Through dialogue to engaged pluralism: The unfinished business of the Third
Debate. In: HELLMANN, Gunther. Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003, p. 128.
52  VASQUEZ, John. The post-positivist debate. In: BOOTH, Ken; SMITH, Steve (orgs.).
International Relations Theory Today. Pensylvania: The Penn State University, 1995.
53  KATZENSTEIN, Peter; KEOHANE, Robert O. e KRASNER, Stephen D. International
Organization and the study of word politics. International Organization, v. 52, n. 4, 1998.
54  GEYER, Robert. Globalization, europeanization, complexity, and the future of Scandinavian
exceptionalism. Governance: An International Journal of Policy, Administration, and Institutions, v.
16, n. 4, out., 2003.

282
Frederico Seixas Dias

tem sido fundamental para alertar sobre a complexidade inerente à glo-


balização e a impropriedade e incapacidade analítica de modelos que,
em nome da autonomia disciplinar, tornam-se por demais simplifica-
dores da política internacional como o Realismo.55 Em segundo, muitos
representantes do pós-positivismo parecem suspeitosos com relação às
pretensões de síntese em RI.
Gunther Hellmann organizou um fórum originado de debates
ocorridos no encontro anual da ISA em Los Angeles, 2000, que tinha
como foco a reflexão sobre o valor e os caminhos do diálogo e da sínte-
se entre as comunidades epistêmicas e paradigmáticas do campo.56 Ou
seja, mais intradisciplinar, interparadigmático, do que interdisciplinar.
Os vários autores de diferentes posições colocavam-se diante do tema
expondo seus acordos e controvérsias. No final, a confiança na síntese
– entendida pela maioria deles como fusão teórica – parece não ter an-
gariado muita simpatia de ambos os lados da querela entre positivistas
e pós-positivistas, à exceção de um autor.57 Para Hellmann, o fracasso
substancial da síntese no campo deve-se ao fato do conceito carregar
essa conotação positivista – a questão da unificação entre proposições
incomensuráveis. Muitos pós-positivistas percebem a síntese como uma
armadilha, na medida em que ela é proposta nos moldes do famoso
discurso presidencial de Keohane na conferência anual da Internatio-
nal Studies Association de 1988, chamando os trabalhos reflexivistas (ou
pós-positivistas) e racionalistas (a síntese Neorrealismo-Neoliberalis-
mo) a submeterem suas hipóteses ao teste empírico.58 A questão não é
o temor pela verificação das afirmações, mas a epistemologia particular
imposta, justamente o alvo maior do pós-positivismo.59

55  Idem.
56  HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
57  MORAVCSIK, Andrew. Theory synthesis in International Relations: Real not metaphysical.
In: HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
58  KEOHANE, Robert. Apud in SMITH, Steve. Positivism and beyond. In: SMITH, Steve;
BOOTH, Ken; ZALEWSKI, Marysia (orgs.) International theory: positivism and beyond. Cambridge:
Cambridge University, 1996.
59  SMITH, Steve. Dialogue and the reinforcement of orthodoxy in International Relations. In:
HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.

283
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Nesses termos, a síntese seria um objetivo impossível. Frank


Harvey e Joel Cobb afirmam a mesma impossibilidade, mas por outra
razão, a de que o diálogo acontece simultaneamente em diversas cama-
das teóricas e metodológicas que encontram inúmeras maneiras de se
combinarem.60 Todavia, o maior dos obstáculos é mesmo a tendência
colonizadora do discurso positivista de unificação da ciência em seus
moldes, conforme sugere Friedrich Kratochwil.61 O esforço aparente de
muitos para não compreender o argumento sobre a pluralidade epis-
temológica diante da complexidade – como o defensor positivista da
síntese no fórum, Andrew Moravcsik62 – acaba sendo incentivo para
muitos acadêmicos de RI com gosto pela abstração filosófica refinarem
seus argumentos metateóricos na defesa de outras formas de se conhe-
cer a realidade, afastando o campo de seu real compromisso com o es-
tudo da realidade.
O remédio, a maioria dos participantes do fórum concorda, são
as pesquisas mais pragmatistas, voltadas para a solução de quebra-
cabeças. Contudo, a orientação da escolha das abordagens a partir da
identificação das características particulares apresentadas pelos proble-
mas práticos está longe de ser um consenso, uma obviedade. No famoso
manual de metodologia das Ciências Sociais de Garry King, Keohane e
Sidney Verba,63 é sugerido que os alunos da pós-graduação, na escolha
do tema de suas dissertações e teses, devem tomar o trabalho de algum
par estabelecido e identificar alguma hipótese retirada dele para ser
empiricamente testada. Kratochwil acredita que a consequência disso
é a incapacidade de formar novas gerações de acadêmicos com racio-
cínio autônomo, prontos para fazerem suas próprias escolhas teóricas,
para “invadirem” as fronteiras de outras disciplinas estabelecidas atrás
de dados e inspirações, o que acabará erodindo progressivamente a ca-
pacidade de inovação do campo. Mais uma razão para estimular que a

60  HARVEY, Frank; COBB, Joel. Multiple dialogues, layered syntheses, and the limits of expansive
cumulation. In: HELLMANN, Gunther. Are dialogue and synthesis possible in International
Relations? International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
61  KRATOCHWIL, Friedrich. The monologue of “science”; _____. Constructivism as an approach
to interdisciplinary study.
62  MORAVCSIK, Andrew. Theory synthesis in International Relations: Real not metaphysical.
63  KING, Gary; KEOHANE, Robert; VERBA, Sidney. Designing social inquiry: Scientific inference
in qualitative research. Princeton: Princeton University Press, 1994.

284
Frederico Seixas Dias

pesquisa e as escolhas metateóricas sejam feitas em função dos proble-


mas da práxis:
Should we not start with a problem and then cast around for a way of studying
it, instead of starting with some (frequently questionable) wisdom of the leading
figures in the profession? (...) A lot could be gained if we were to begin our research
with a problem or questions instead of looking for the perfect hammer and
searching for nails to pound.64
Contudo, o diálogo verdadeiramente pluralista exige bem mais
que uma orientação aparentemente pragmática. Como enfatiza Krato-
chwil, demanda importantes modificações no entendimento tradicional
de ciência, em que os trabalhos empiristas e os interpretativistas sejam
aceitos como parte do conhecimento relevante do campo, julgados a
partir dos critérios de suas próprias tradições metateóricas. E essa con-
dição plural não pode ser concebida como crise paradigmática, ou seja,
como condição incômoda, a ser superada pelo estabelecimento e domi-
nância de um novo paradigma.65
Se, por um lado, a maioria das posições dos convidados do fórum
– positivistas e pós-positivistas – concorda com as enormes dificuldades
atuais para a prática do diálogo, do pluralismo e, ainda mais, da síntese,
por outro, todos apostam em um quadro muito mais positivo para o
futuro.66 Ainda assim, o pluralismo pleno e responsável que Kratochwil
demanda poderia ser realizado mais rapidamente se o conceito de sínte-
se não fosse tão profundamente ligado à fusão, quanto deve ser com ao
diálogo mesmo. O conceito de síntese dialógica proposto por Hellmann
para superar esse desentendimento vai ao encontro de todo o desenvol-
vimento da seção anterior.67 Diálogo e síntese como partes que mutua-
mente se reforçam, em uma Ciência cujo objetivo deve ser entendido
como a produção de conhecimento da realidade capaz de gerar o acordo
entre seres humanos em torno dos fins coletivos a serem alcançados e os
meios para tanto.68

64  KRATOCHWIL, Friedrich. The monologue of “science”, pp. 127-8.


65  Idem.
66  HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
67  HELLMANN, Gunther. In conclusion: Dialogue and synthesis in individual scholarship and
collective inquiry. In: _____. Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
68  GADDIS, John Lewis. History, science, and the study of International Relations. In: WOODS,
Ngaire. Explaining international relations since 1945. Oxford: Oxford University Press, 1996.

285
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Apesar da importância do fórum organizado por Hellmann para


o avanço da síntese dialógica em RI, sua concentração em questões in-
tradisciplinares deve ser criticada. Só alguns dos autores ressaltaram a
igual importância que tem o engajamento no diálogo interdisciplinar.
Smith, por exemplo, explicita essa preocupação ao afirmar que estudo
de RI não pode ser limitado a qualquer disciplina isolada: “(b)eing in-
terdisciplinary permits us to open up epistemological and methodological
space while, lessening claims for the exceptionalism of international rela-
tions as a field”.69 Mas o fato ilustra o isolamento resultante da busca pela
autonomia de RI, como confirma a imagem do campo formada desde
outras disciplinas das Ciências Sociais. Dogan faz referência a pesqui-
sas que avaliam o grau de integração de uma disciplina por meio dos
padrões de citações em seus grandes manuais e seus periódicos mais
importantes. Entre outras situações disciplinares, está a do campo de
RI, “which has become, in research if not in teaching, a quasi-independent
domain”.70
Nesse sentido, Hellmann sugere a necessidade da diluição do do-
mínio da cultura dos “grandes debates” que marca a historiografia e a
prática atual da teoria de RI. O encontro entre propostas teóricas dis-
tintas não pode servir apenas para um momento de confronto, onde o
trabalho de uma é demonstrar a inconsistência da outra. Em uma nova
cultura acadêmica, o sufocamento da comunicação provocada por essa
cultura popperiana deve ser superada pela inclusão do diálogo perma-
nente, pela vontade de um pluralismo engajado, onde argumentar con-
tra o outro não é mais importante que aprender com o outro.71
O momento de RI global/americana ainda apresenta alguns desa-
fios fundamentais para que o diálogo interdisciplinar seja efetivamente
colocado em prática. As demandas são enormes, assim como as opor-
tunidades abertas. Nada garante que o caminho do isolamento não seja
mais perseguido, seja por interesses políticos, seja por interesses cogni-
tivos. Mas, como em qualquer outra disciplina, o resultado disso seria
a estagnação intelectual e, com ela, a perda de relevância na sociedade.

69  SMITH, Steve. Dialogue and the reinforcement of orthodoxy in International Relations, p.
143.
70  DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary walls, p. 6.
71  HELLMANN, Gunther. In conclusion: Dialogue and synthesis in individual scholarship and
collective inquiry.

286
Frederico Seixas Dias

O desafio de RI na realização de esforços permanentes de comunicação


com as demais disciplinas e a incorporação de suas problemáticas e so-
luções inovadoras não pode ser ignorado.

Síntese e Relações Internacionais no Brasil


Se na academia global/americana de RI a situação ainda pare-
ce bastante complicada para a prática da síntese, as peculiaridades da
academia brasileira tornam a situação um pouco mais aberta. De fato,
muitos trabalhos têm sido direcionados para o esclarecimento das sin-
gularidades de práticas e conteúdos do estudo da política mundial em
diversos países e regiões, demonstrando quão paroquial é a sua autoima-
gem supostamente global.72 Smith confirmou isso criticando a estreiteza
do leque de problemas e de perspectivas e nacionalidades (acadêmicas)
que caracterizam o estudo de RI nos EUA.73 Logo, a ideia de que essas
academias nacionais de RI se adaptaram a essa marginalização buscan-
do definir e investigar suas próprias questões e construir abordagens
originais é um bom indicativo da abertura do campo a uma Ciência
guiada por problemas práticos, caráter essencial da prática da síntese.
Especificamente, o contexto acadêmico de RI no Brasil que a pro-
posta encontra pode ser definido a partir de seus quatro principais as-
pectos: a explosão de cursos de RI pelo país; a comparativamente baixa
imposição governamental de pesados padrões ao ensino no campo; sua
variada institucionalização disciplinar; e o debate sobre a aplicabilida-
de e propriedade de teorias importadas do eixo global/americano ou a
preferência pelo trabalho em conceitos oriundos das experiências na-
cionais/regionais.
O primeiro desses aspectos, a grande expansão do interesse pelo
estudo das relações internacionais e a conseqüente criação de cursos
superiores e instituições de pesquisa, conforme sugere Eitii Sato, pode
ser explicado pelo impacto da globalização no dia-a-dia da população.
Em suas palavras:

72  WAEVER, Ole. The sociology of a not so international discipline: American and European
developments in International Relations; SARAIVA, José Flávio (org.). Concepts, histories and
theories of international relations for the 21st century: national and regional approaches. Brasília:
IBRI, 2009.
73  SMITH, Steve. The United States and the discipline of International Relations: “hegemonic
country, hegemonic discipline”.

287
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

A realidade internacional de hoje, genericamente identificada como ‘globalização’,


que integra indistintamente de muitas maneiras os países e as sociedades,
disseminou a percepção de que compreender o mundo e suas tendências
constitui um elemento indispensável para a ordem econômica, política e mesmo
social interna das nações.74
De fato, RI no Brasil aparece como um epifenômeno da globa-
lização. O primeiro curso de RI do Brasil, na Universidade de Brasília,
é fundado em 1974, época de um Estado desenvolvimentista, de eco-
nomia ainda muito fechada e um duro regime militar que tinha uma
visão mais estratégica sobre as relações exteriores, especialmente com
os vizinhos argentinos. Mas, de fato, é só a partir da década de 1990 –
com a abertura comercial e as privatizações abocanhadas pelo grande
capital estrangeiro, com os encaminhamentos da integração sulameri-
cana, a criação da Organização Mundial do Comércio, o intenso debate
sobre uma possível Área de Livre Comércio das Américas, entre outros
– que se observa uma verdadeira explosão de graduações pelo país. Se
a década inicia com apenas mais um curso (Universidade Estácio de Sá
[UNESA], Rio de Janeiro, 1987), 10 anos depois, já são 40 cursos. Con-
tinuando em progressão incessante, o último dado oficial já aponta para
mais de 90 cursos pelo país, segundo contas do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas (INEP) do Ministério da Educação (MEC).75
A conexão entre o interesse por RI no Brasil e o impacto da glo-
balização é ainda mais gritante se focarmos sua distribuição geográfica.
Segundo os mesmos dados, é possível notar uma clara concentração nas
regiões mais economicamente desenvolvidas e mais intensamente en-
volvidas com o mercado global. Conforme os mesmos dados, mais de
75% dos cursos em RI estão concentrados nas regiões sudeste e sul – por
volta de 30% do total brasileiro só no estado de São Paulo –, as mais eco-
nomicamente desenvolvidas do país. A conexão faz-se nítida, portanto,
tanto no seu caráter temporal, quanto no regional.
A segunda característica do cenário brasileiro de RI para a prática
da síntese é a baixa regulamentação governamental direcionada à área.
No Brasil, diferentemente da grande maioria dos cursos superiores, es-
pecialmente os mais tradicionais, RI vive uma situação de baixa padro-

74  SATO, Eiiti. Relações Internacionais como área do conhecimento e sua consolidação nas
instituições de ensino e pesquisa, p. 35.
75  Censo da Educação Superior, INEP/MEC. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/superior/
censosuperior/sinopse/default.asp >. Acesso em: 14 jan. 2011.

288
Frederico Seixas Dias

nização. O MEC ainda não definiu as diretrizes curriculares nacionais


para o curso. O único padrão governamental publicado advém de uma
portaria da Secretaria de Ensino Superior (SESu, n. 641, de 13 de maio
de 199776) estipulando critérios mínimos de qualidade para os cursos de
graduação nessa área. Ao contrário das diretrizes, a portaria ainda ca-
rece de precisão e obrigatoriedade. São apenas breves orientações para
as comissões de especialistas da SESu que periodicamente são enviados
para avaliar pessoalmente as condições dos cursos de graduação e, com
base naquelas orientações, atribuir uma nota e recomendar ao MEC ou
não a abertura e manutenção das vagas naquela instituição.
Resumidamente, a portaria demanda coordenador e corpo do-
cente com formação na área, a qualificação do corpo docente (1/3 de
doutores), projeto acadêmico-pedagógico (com a distribuição das dis-
ciplinas por áreas) e instalações e demais recursos de infraestrutura sa-
tisfatórios (como biblioteca, laboratórios de informática, salas de aula,
etc.). Como não se trata de uma regulamentação compulsória, a maioria
dos critérios são seguidos de forma muito frouxa. Dois elementos cha-
mam mais a atenção.
O primeiro é que, paradoxalmente, os concluintes da graduação
em RI já são submetidos a uma avaliação nacional de seu desempenho
no curso (o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes, [ENADE],
realizado pelo INEP) enquanto as instituições onde estudaram não têm
que seguir um padrão mais específico do conteúdo e competências a se-
rem trabalhadas para então poderem ser avaliadas. A portaria da SESu
dá indicações sobre a distribuição das áreas que as disciplinas obrigató-
rias e optativas na grade curricular mas tudo é muito breve e indefinido.
Não há mais do que uma página e meia – das quatro que compõem o
documento – para esse tema tão relevante.
Uma situação desconfortável que faz aumentar a pressão pela de-
finição das diretrizes curriculares para RI. Shiguenoli Miyamoto afirma
que elas representariam um avanço para a formalização do campo de
RI no Brasil.77 Não é tão simples assim. Do ponto de vista da síntese, a
falta de uma maior institucionalização pode ser uma oportunidade para

76  Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/padreli.pdf>. Acesso em: 12 nov.


2010.
77  MIYAMOTO, Shiguenoli. O ensino das Relações Internacionais no Brasil: problemas e
perspectivas. Cena Internacional, v. 4, n. 2, dez. 2002.

289
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

a permanente adaptação do currículo do curso às grandes transforma-


ções da política mundial e as tendências e inovações oriundas do diá-
logo interdisciplinar, evitando seu engessamento sem que se perca uma
identidade fornecida por aquela arquitetura básica (ainda que vaga) da
portaria da SESu. Todavia, não parece que essa situação de ausência de
diretrizes irá permanecer indefinidamente. É hora de posicionar o cam-
po em nome do atendimento de suas peculiaridades. A síntese propõe a
prática intensiva de sua autoimagem multidisciplinar, defendendo que
flexibilidade e o diálogo estejam presentes na forma e no conteúdo de
uma eventual diretriz nacional para seu currículo universitário.
Muitas matrizes curriculares pretendem-se interdisciplinares,
mas não passam de coleção de disciplinas que o aluno deve acumular
ao longo do curso, abrindo espaço para o isolamento de cada uma em si
mesma, não contribuindo o aspecto da síntese dialógica na formação do
profissional de RI. Como afirma a Portaria da SESu, um curso dessa área
não pode ser entendido como um mero ajuntamento, ou como uma
simples “colcha de retalhos” formada por múltiplas disciplinas. Nisso
ela tem razão. E uma breve pesquisa inspiratória em currículos de ou-
tras instituições nacionais e estrangeiras sugerem que experiências de
síntese já estão sendo empreendidas: a presença de disciplinas de síntese
focadas em grandes temas globais ou em area studies;78 a realização de
papers semestrais ou anuais integrando o conhecimento das disciplinas
cursadas a partir de algum problema concreto da política mundial; a re-
alização permanente de seminários didáticos entre os professores, com
grande engajamento no diálogo; grupos de estudo interdisciplinares;
etc.
Mas a prática da síntese deve estar além de um mero registro do-
cumental. Enquanto é fundamental uma boa escolha das disciplinas que
compõem o curso e a sua disposição particular ao longo dos semestres
de forma a facilitar o engajamento dos estudantes no diálogo entre elas,
a síntese deve focar o processo. Ela deve ser praticada continuamente
pelos professores, que são os responsáveis últimos por fazê-la acontecer
de fato. O diálogo de conteúdos entre os professores – o engajamen-
to de fato em se aprender com os conceitos, temas e casos que estão

78  ACHARYA, Amitav (2006). International Relations and Area Studies, Towards a New
Synthesis? State of Security and International Studies, n. 2. Singapore: Institute of Defence and
Strategic Studies, 2006.

290
Frederico Seixas Dias

programados para as disciplinas alheias – pode ser mais efetivo do que


qualquer nova proposta de desenho curricular na realização da inter-
disciplinaridade e na formação de profissionais com a tão demandada
competência da síntese. Também o estímulo de ocupações estudantis
que sejam, por definição, voltadas à solução de problemas – como gru-
pos de discussão, empresas júnior, ONG’s júnior e clubes de simulação
política –, adicionam práticas muito importantes para o aprendizado
ativo da síntese em temas da política mundial.
O segundo elemento a se notar na portaria da SESu é a exigência
da formação de docentes e coordenador no campo de estudos de RI. A
avaliação que Miyamoto faz sobre esse princípio de qualidade da porta-
ria também é digna de uma séria reflexão:
A obrigatoriedade de especialistas em Relações Internacionais para ministrar
as disciplinas que constituem o núcleo do curso tem sua razão de ser (...). (N)a
Portaria n. 641, levanta-se a seguinte questão: “seria possível imaginar um curso
de Economia cujo corpo docente contasse apenas ou majoritariamente com
advogados, sociólogos e historiadores?” Critérios semelhantes devem, portanto,
ser utilizados para as RI.79
Na verdade, essa é outra exigência confusa por demais no docu-
mento. A portaria não especifica o que atesta o “especialista em Relações
Internacionais” na prática, não passando da menção à “formação e ex-
periência no campo”. Portanto, não há uma exigência de que o coorde-
nador tenha formação em RI – graduação, mestrado ou doutorado. Isso
apenas conta para a pontuação do curso na avaliação da comissão da
SESu, mas de forma alguma se mostrou determinante para o fechamen-
to de um curso.
Além disso, apesar do documento referir-se ao “fato de que Re-
lações Internacionais constitui área distinta de estudo”, o que constitui
essa distinção é algo que pode ser muito perigoso, como argumentado
anteriormente, no sentido de abrir as portas para o isolamento do cam-
po. Desde a proposta desse trabalho, a singularidade de RI é o trato
pragmático da investigação da política mundial por meio do diálogo
interdisciplinar. Não se aceita o argumento da autonomia de RI susten-
tado pela centralidade do conceito de anarquia nem mesmo pela ex-
clusão de acadêmicos pelo critério de formação na área. Certamente, o

79  MIYAMOTO, Shiguenoli. O ensino das Relações Internacionais no Brasil: problemas e


perspectivas, p. 107.

291
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

coordenador e os professores de um curso de RI deveriam estar ativa-


mente envolvidos com a pesquisa e publicação em temas da área, seja
qual for a inspiração teórico-disciplinar de sua abordagem ou o título de
congressos e periódicos em que circulam. Isso é mais saudável para um
ambiente de interdisciplinaridade. É um perigo reduzir a qualidade do
corpo docente de qualquer curso, mas especialmente RI, ao diploma de
bacharelado. De fato, os outros cursos, como os citados pelo trecho da
portaria, têm uma tradição de maior insulamento, e a grande maioria
dos seus professores é da área. Mas a oxigenação que a síntese demanda
não permite esse estímulo.
Ou seja, é perfeitamente possível um curso formado com espe-
cialistas nos principais temas da política mundial, nenhuma deles com
formação acadêmica em RI. O que uma proposta de síntese exige para
a formação do corpo docente é a expertise e o engajamento no diálogo
interdisciplinar. É uma grande possibilidade que esse perfil venha a ser
encontrado em egressos de RI. Mas nada garante que um quadro de
professores exclusivamente formados em RI seja mais eficaz nisso do
que outros eventuais arranjos.
O mesmo perigo ronda a latente proposta de regulamentação
profissional em RI. Como bem argumenta Sato, o curso de RI, como
a maioria dos cursos universitários, não corresponde a uma profissão
particular. A demanda do mercado pelos seus graduados e pós-gradu-
ados deve-se ao impacto da globalização no cotidiano de vários setores
e seu interesse por conhecimento especializado sobre como agir dian-
te dela.80 A regulamentação profissional parece uma aberração diante
da proposta da síntese. Ela pode satisfazer a gana de jovens estudantes
temerosos com o dia seguinte a sua colação de grau ou mesmo alguns
donos de faculdades ávidos por mais turmas, mas não interessa ao papel
científico (pós-normal) que deve cumprir o campo de estudos da polí-
tica mundial. Além disso, os sucessos desse perfil de síntese, no longo
prazo, tornam sua incorporação a melhor forma de atingir aqueles mes-
mo objetivos de pupilos e mantenedores.
A terceira peculiaridade de RI no Brasil diz respeito a sua varia-
da institucionalização nas universidades e demais instituições de ensino
superior. Em parte devido ao aspecto anterior, da baixa regulamentação

80  SATO, Eiiti. Relações Internacionais como área do conhecimento e sua consolidação nas
instituições de ensino e pesquisa.

292
Frederico Seixas Dias

governamental, RI foi abrigada em distintos departamentos e unidades


acadêmicas. A princípio, parecendo seguir o padrão estadunidense, RI
está vinculada à disciplina da Ciência Política como seu subcampo. Isso
pode ser visto pela classificação adotada pelas instituições governamen-
tais de avaliação do ensino superior, como o INEP, a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Na-
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A classifi-
cação também está ligada à própria fundação do primeiro curso no país,
em 1974 na Universidade de Brasília, que foi abrigado pelo novo Depar-
tamento de Ciência Política e Relações Internacionais. Contudo, essa
classificação não tornava RI uma simples segmentação. Era, sim, irmã
do estudo científico da política. Tal aspecto deve-se à própria fundação
do campo, decisivamente apoiada pelo regime militar, usando como
operacionalizador desse apoio do Ministério das Relações Exteriores.
As fundações de RI no Brasil marcam o encontro de uma visão
mais ligada ao Direito Internacional, por meio do Itamaraty, com os
politólogos, uns mais focados no estudo dos grandes paradigmas e do
processo decisório da política externa brasileira e outros mais ligados
aos debates da RI global/americana. Isso, sem deixar de incluir a per-
manente produção bibliográfica no campo por historiadores, que vão se
aproximando do departamento até se fundirem, em 2003, no Instituto
de Relações Internacionais daquela Universidade. O argumento aqui
não é que o curso de Brasília tornou-se espelho para as demais institui-
ções do país. O que se quer enfatizar é que, naquele curso, que perma-
neceu por 21 anos como o único representante nacional (considerando-
se que o segundo curso, da UNESA, era voltado explicitamente para a
operacionalização do comércio exterior), houve intensos esforços para
manter multidisciplinar o campo de RI. Diferentes cursos espalhados
pelo território nacional têm currículos bastante interessantes, com mui-
ta inovação e criatividade. Em várias Universidades, o curso está liga-
do a Faculdades de Direito ou Departamentos de Ciências Sociais. Um
bom exemplo da diversidade são os cursos da Universidade Federal de
Santa Catarina, organizado a partir do Departamento de Economia, e
da Universidade Federal de Uberlândia, no Instituto de Economia. Mas
o não-fechamento da questão do locus disciplinar de RI é uma genuína
contribuição desse período pré-explosão de cursos. Aliás, se for leva-
do em consideração o crescimento individual das duas graduações (em

293
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

2001, eram 7 cursos de Ciência Política para 40 de RI, enquanto em


2009, a proporção era de 23 para 91, respectivamente), é embaraçosa a
defesa de que RI é apenas um braço do estudo da política.81
Por último, contextualizando o ambiente acadêmico brasileiro
para a síntese dialógica, há o debate aberto em nossa comunidade sobre
a aplicabilidade e utilidade das teorias da RI global/americana para o es-
tudo das relações internacionais do país e a alternativa oferecida pelo tra-
balho em conceitos nacionais/regionais. É apenas um dos debates con-
temporâneos da nossa academia, contudo segue intenso e aberto a novas
contribuições em periódicos, salas de aula, congressos e seminários.
A iniciativa para o debate vem de estudiosos que defendem a
utilidade de conceitos sem pretensão à universalização, originados no
acumulado intelectual sobre a experiência de inserção nacional no meio
internacional. O trabalho de Amado Cervo, por exemplo, enfatiza que
teorias, universalizantes por definição, na verdade estão sempre vincu-
ladas a interesses, valores e padrões de conduta. Conceitos, por sua vez,
expõem claramente suas raízes regionais ou nacionais, se recusando al-
cance explicativo global. Portanto, ele sugere, é necessário investigar as
questões epistemológicas, metodológicas, genealógicas e funcionais na
experiência brasileira e sulamericana de relações internacionais de seus
três principais agentes: a diplomacia, o governo e a sociedade.82
A finalidade do argumento de Cervo é reduzir a função das teo-
rias e elevar o papel dos conceitos, correndo contra o prestígio de TRI
nos programas de ensino e em favor da pesquisa sobre as peculiaridades
conceituais das relações internacionais de um país ou um grupo deles.
Em palestra sobre o tema, no ano de 200883, o Professor foi ainda mais
explícito: convocava professores a substituir de vez as cadeiras de TRI
pelo estudo dos conceitos nacionais/regionais de inserção internacional,
o que causou uma troca de argumentos bastante acalorada com parti-
cipantes menos convictos da ideia. Talvez o efeito retórico fosse o mais

81  Censo da Educação Superior, INEP/MEC. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/superior/


censosuperior/sinopse/default.asp >. Acesso em: 14 jan. 2011.
82  CERVO, Amado. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Editora
Saraiva, 2008.
83  Conferência “Teorias e Conceitos de RI: Perspectivas nacionais e regionais”. 25 e 26 de agosto
de 2008, Universidade de Brasília.

294
Frederico Seixas Dias

desejado por Cervo, pois, como ele chama atenção em seu livro, o fim é
o “de abrir o debate intelectual a respeito de conceitos e teorias”.84
Cervo relata que a trajetória do pensamento brasileiro aplicado à
inserção internacional do país passou pelas contribuições originais da
CEPAL, nos anos, 1960, pelos debates das teorias do desenvolvimento e
da dependência, o neoliberalismo dos anos 1990 e a reação de ceticismo
em relação aos discursos sobre os impactos positivos da globalização.
Na diplomacia brasileira, registra-se um acumulado de princípios que
dão previsibilidade à política externa e grande continuidade mesmo com
as trocas de poder e de regimes. Entre esses princípios, a autodetermi-
nação e não-intervenção, o juridicismo e a solução pacífica de contro-
vérsias, a cordialidade oficial e o não-confrontacionismo, o multilatera-
lismo, as parcerias estratégicas e o desenvolvimento como vetor. O autor
já refletia especificamente sobre essa questão desde, pelo menos, 1994.
Em artigo introdutório de uma obra coletiva organizada por ele, afirma-
va que, não considerando as teorias da dependência ou derivações da
teoria do imperialismo como teorias de RI, “nenhuma desenvolveu-se
naquele país relativamente ao objeto de estudo. Convém, pois, falar de
um pensamento sem teoria, quando se cogita na bases conceituais ou
explicativas para as relações internacionais do Brasil”.85 Isso parece não
ter essencialmente mudado, tendo em vista seu argumento de 2008.
Do outro lado do debate (não necessariamente em conflito), pa-
rece estar uma diversidade de manuais de TRI escritas por autores brasi-
leiros que inundam as livrarias do país.86 Em geral, não fazem qualquer
menção a esses desenvolvimentos teóricos nacionais e regionais (sem
contar as tais contribuições às teorias da dependência, que já aparecem

84  CERVO, Amado. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros, p. 9.


85  CERVO, Amado. Relações Internacionais do Brasil In: _____ (org.). O desafio internacional: A
política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias. Brasíia: Editora da Universidade de Brasília, 1994,
p. 17.
86  Ver, por exemplo, GONÇALVES, Williams. Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2002; PECEQUILO, Cristina. Introdução às Relações Internacionais: Temas, Atores
e Visões. Petrópolis: Vozes, 2004; NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações
Internacionais: Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005; SARFATTI, Gilberto. Teorias das
Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2006;  MEDEIROS, Marcelo; LIMA, Marcos; VILLA,
Rafael; REIS, Rossana (orgs.). 2010. Clássicos das Relações Internacionais. São Paulo: Editora
Hucitec, 2010; e, CASTRO, Marcus Faro de. Política e Relações Internacionais. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2005. Vale ressaltar que essa última obra tem um claro diferencial em
relação às demais que é a preocupação historiográfica em sua narrativa crítica das TRI.

295
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

na maioria dos manuais estrangeiros). Pensando nas obras individual-


mente, a explicação para tanto pode ser a delimitação do foco e do o
propósito do trabalho, a confiança no poder explicativo daquelas con-
tribuições, ingenuidade, ou ignorância. Mas tomadas coletivamente,
elas são sintomáticas de que o debate sobre perspectivas nacionais ou
regionais de TRI ainda não teve o impacto tão abrangente que Cervo
gostaria para provocar a busca de caminhos mais originais para o futuro
da academia brasileira de RI e sua relevância social.
O fato é que o próprio centro da academia global de RI é hoje
menos americanizado devido aos esforços de comunidades nacionais
em busca de conhecimento e reconhecimento. Nesse sentido, a obra
coletiva sob a organização de José Flávio Saraiva representa enorme
contribuição, reunindo perspectivas teórico-conceituais da experiência
internacional de diferentes países e regiões além do Brasil, como Ar-
gentina, Inglaterra, México, o mundo árabe.87 Para Cervo e para Sarai-
va, reflexões nacionais e regionais da TRI ganham visibilidade com o
pós-Guerra Fria e com o reconhecimento das complexidades do novo
século, em meio à crise hegemônica dos EUA e, de forma mais ampla,
do Ocidente. As teorias tradicionais teriam perdido sua capacidade de
se comunicar com as forças globais na tarefa de manter e transformar a
ordem mundial.88
Nesse sentido, a proposta da síntese encontra espaço diante da
falta de consenso a respeito da aplicação de teorias de RI importadas de
outras experiências nacionais. A perda de ênfase na TRI global/ame-
ricana como um dos principais elementos de unidade e autonomia do
campo estimula a abertura da investigação para o diálogo intra- e in-
terdisciplinar.89 Além disso, o reconhecimento da experiência nacional/
regional, não como simples material para testar as teorias tradicionais,
mas como complexidades em si a serem compreendidas, também abre
grandes oportunidades para a inclusão da prática da síntese como perfil
profissional dessa graduação no Brasil.

87  SARAIVA, José Flávio (org.). Concepts, histories and theories of international relations for the
21st century: national and regional approaches.
88  CERVO, Amado. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros; SARAIVA, José
Flávio. Are there regional and national approaches to International Relations? In: ______ (org.).
Concepts, histories and theories of international relations for the 21st century: national and regional
approaches. Brasília: IBRI, 2009.
89  DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary walls.

296
Frederico Seixas Dias

Particularmente, uma estratégia nesse sentido pode ser tirada da


contribuição de abordagens que pretendem ser mesmo transversais, es-
tipulando entendimentos mínimos sobre as dinâmicas sociais que po-
dem, para cada situação problema, ser enriquecidas com contribuições
de outras teorias, de RI ou mesmo de outras disciplinas. Exemplos desse
tipo de abordagem podem ser retirados das contribuições da Teoria Crí-
tica90 e abordagem do Sistema-Mundo, de Wallerstein.91 Não é surpresa
que abordagens como essas têm acesso em muitos campos, inclusive
RI. Assim também o é com o Construtivismo, corrente que tem atraído
grande atenção no campo desde a década de 1990,92 podendo servir de
ponte mais ágil para a interdisciplinaridade. Não se trata de imperialis-
mo teórico, pois o construtivismo não é uma teoria ou abordagem de
RI, mas uma posição metateórica.93 O entendimento interdisciplinar do
conceito de Teoria Social, tal como formulado por Anthony Giddens em
uma das maiores contribuições para os construtivistas, esclarece ainda
mais o argumento:
(P)ermito-me sublinhar que emprego a expressão ‘teoria social’ para abranger
questões que sustento serem do interesse de todas as ciências sociais. Essas
questões relacionam-se com a natureza da ação humana e do self atuante; com o
modo como a interação deve ser conceituada e sua relação com as instituições;
e com a apreensão das conotações práticas da análise social.94
Portanto, o foco de sua visão da dinâmica da vida social está na
agência humana e nas instituições sociais criadas que se co-constituem
ao longo do processo histórico, não fazendo menção a qualquer insti-
tuição, estrutura ou agente de alguma época, lugar, ou tema particu-
lar. Em relação às duas abordagens anteriores, o Construtivismo tem a
vantagem de estabelecer compromissos ontológicos menos específicos,
permanecendo como ponto de partida para a construção dialógica in-
terdisciplinar da explicação de casos particulares. Além disso, a prefe-
rência pelas narrativas intersubjetivamente e empaticamente avaliadas

90  HONNETH, Axel. Teoria Crítica. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (orgs.). Teoria
social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
91  WALLERSTEIN, Immanuel. Teoria dos Sistemas Mundiais. In: GIDDENS, Anthony; TURNER,
Jonathan (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: UNESP, 1999.
92  CHECKEL, Jeffrey. The constructivist turn in international relations theory. World Politics, v.
50, pp. 324-348, 1998.
93  KRATOCHWIL, Friedrich. The monologue of “science”.
94  GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XVII.

297
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

também confere com as indicações para o trabalho de síntese, no senti-


do de poder abrigar com maior facilidade do que modelos estatísticos,
por exemplo, o pluralismo de diversas contribuições de especialistas e,
inclusive, dos stakeholders do problema prático em questão.95
Seja qual for a abordagem transversal identificada como mais útil
para a realização de uma síntese, ela deve ser capaz de gerar um ambien-
te de diálogo. Seu objetivo é estimular engajados participantes de dife-
rentes disciplinas escaparem uma situação de ignorância mútua ou de
alimentação de estereótipos para uma em que cada participante tenha a
habilidade de se antecipar a seu colega, tomando sua perspectiva sobre
o problema em questão para afinar seu argumento.96
O cenário do campo de RI no Brasil apresenta maiores possibi-
lidades para a proposta da síntese. O boom de graduações de RI é uma
resposta às demandas geradas pelas complexidades da globalização. E
para tornar a resposta mais eficiente, a prática da síntese é fundamental.
A pouca regulamentação governamental sobre o campo e sua já variada
institucionalização em diferentes unidades acadêmicas constituem uma
grande oportunidade para direcionar a pesquisa e o ensino de RI no
Brasil para um caminho menos voltado para um conteúdo e linguagens
que representam o desejo de autonomia disciplinar e mais pragmatica-
mente desenhado em torno da competência do diálogo interdisciplinar
motivado pela necessidade de resolver problemas concretos próprios da
sociedade que abriga tais cursos (inclusive estimulando a abertura de
novos cursos nas regiões onde a presença desse campo é relativamente
bastante reduzida).

Considerações finais
Certamente, a especialização cumpre um papel importante no
avanço do conhecimento humano, seja pelos limites das capacidades
cognitivas individuais, seja pela possibilidade de lidar com determinado
conjunto de aspectos da realidade que gozam de relativa estabilidade
e especificidade. Apesar dessas vantagens, é necessário reconhecer os
perigos que ameaçam a plenitude das possibilidades de ganhos a serem

95  KRATOCHWIL, Friedrich. Constructivism as an approach to interdisciplinary study.


96  MILLER, Matthew; MANSILLA, Veronica. Thinking across perspectives and disciplines.

298
Frederico Seixas Dias

extraídos de toda a especialização científica: o isolamento e a incomu-


nicabilidade.
A solução para essas ameaças não é acabar com o projeto das es-
pecializações. Os ganhos dessa abordagem já estão claros. A proposta
é assumir, especialmente nesse contexto de discussão e construção do
perfil teórico, conceitual, e institucional do campo no Brasil, uma abor-
dagem menos apegada aos vícios que a especialização trouxe e realizar o
ideal do campo de Relações Internacionais, que nasceu da seleção de um
tema transversal às diversas disciplinas já estabelecidas (mas também
questionáveis) da Ciência Social – Economia, Ciência Política, Sociolo-
gia e Antropologia, pelo menos. Por outro lado, nesse novo ambiente da
prática da síntese dialógica em pesquisas e salas de aula, a formação no
campo não pode ser atrelada ao famoso perfil de generalista. Ele pode
ser pejorativo e enganoso, levando a prática da síntese em RI a uma des-
valorização perante as diversas instituições regulativas e fomentadoras
da vida acadêmica e, consequentemente, do prestígio do seu diploma na
vida profissional.
De fato, o praticante da síntese em RI deve ser verdadeiramen-
te um especialista. Será treinado por anos em cursos de graduação e
pós-graduação no exercício daquelas diversas habilidades que formam a
competência da síntese. Desenvolverá o gosto pela tarefa de trabalhar em
grupo – geralmente em papel de liderança – no enfrentamento de temas
complexos da realidade a partir de diferentes abordagens disciplinares
e teóricas simultaneamente. Na medida em que deve ter a capacidade
de reconhecer de quais especialidades virão os profissionais que podem
contribuir para a resolução de uma questão complexa e liderar o espaço
de comunicação e desenvolvimento, ele deve ter amplo treinamento in-
terdisciplinar. Mas isso não significa replicar o esforço e a profundidade
que os especialistas de cada área fazem durante seu treinamento. O mais
importante nesse mapeamento geral das grandes questões e correntes
das principais disciplinas, mantendo o gosto continuado pelo aprendi-
zado das inovações e sua capacidade de estabelecimento de uma comu-
nicação efetiva com as mais distintas áreas de especialização. Portanto,
a abertura maior de RI à síntese não torna o profissional formado no
campo um generalista. Ele é, sim, um especialista na organização inter-
disciplinar para a investigação das complexidades centrais da agenda
política mundial.

299
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

A síntese é a proposta focada por esse estudo para lidar com os


eventos do dia que envolvem grande incerteza, grandes riscos, com-
promissos normativos profundos e/ou urgência para a produção de
soluções. Essas características são típicas de muitos temas centrais da
globalização, do desenvolvimento ao aquecimento global; da definição
de tratados de livre-comércio ao combate da AIDS. As universidades
desenvolveram-se organizando suas atividades em distintas unidades de
ensino que eventualmente se tornaram unidades da própria pesquisa.
O isolamento que marca o conhecimento da Ciência Normal deve ser
superado não pela sua extinção, mas pela implementação de uma cul-
tura de diálogo. A proposta da síntese visa contribuir no enfrentamento
desse quadro.
Existe uma abertura para o recebimento desse perfil de síntese
no estudo de RI. Em seu âmbito global, o debate pós-positivista ofe-
rece novas interpretações da prática científica que podem estimular o
pluralismo do trabalho do diálogo interdisciplinar, reaproximando-o de
sua autoimagem original. Enquanto isso, o debate do caráter regional
da produção intelectual no campo, em que se reconhece a estreiteza de
uma noção universal dos problemas que caracterizam RI, desvelando
toda uma produção local preocupada com as experiências e as narrati-
vas regionais e nacionais particulares. No Brasil, especificamente, o qua-
dro parece bastante promissor para a interdisciplinaridade dialógica ser
desenvolvida em RI. A atenção ao seu curso de graduação intensificou-
se rapidamente nos últimos 15 anos e continua recebendo atenção cres-
cente, sem grandes constrangimentos governamentais de padronização
e variada filiação disciplinar na organização das universidades e outros
centros de ensino superior. O debate doméstico sobre a singularidade
do pensamento brasileiro em RI também permite uma maior autono-
mia no sentido de adotar mais decididamente o perfil interdisciplinar
da síntese dialógica.
Pesquisadores, professores, estudantes e instituições têm papel a
ser cumprido nesse projeto. Mas, acima de tudo, o momento deve ser
vislumbrado não com temor, mas com olhar empreendedor. Existe uma
demanda do mercado – muito além disso, na sociedade de uma forma
geral – para esse tipo de profissional. A preocupação pela síntese em
RI parece cada vez mais legítima, especialmente devido à globalização,
tema central do campo desde sua fundação. O estudo da política mun-

300
Frederico Seixas Dias

dial pode se tornar muito mais estimulante para seus praticantes e re-
levante para a sociedade, beneficiando, inclusive, outras especialidades
com esse sucesso, enquanto pode resultar na condenação de outras ao
ostracismo. O objetivo do texto foi o de refletir sobre a proposta diante
do campo de RI, com foco na academia brasileira. Mais do que apon-
tar políticas e práticas didáticas específicas, espera-se que o empreen-
dedorismo de pares inspirados pela discussão desenvolvida aqui traga
inovações na condução da pesquisa e do ensino do campo que podem
tornar o estudo da política mundial muito mais estimulante para seus
praticantes e, antes disso, relevante para a sociedade, mundial e local.

Referências
ACHARYA, Amitav (2006). International Relations and Area Studies,
Towards a New Synthesis? State of Security and International Studies, n.
2. Singapore: Institute of Defence and Strategic Studies, 2006.
ASHLEY, Richard. The Poverty of Neorealism. In: KEOHANE, Robert
(org.). Neorealism  and its critics. New York: Columbia University
Press, 1986.
BADIE, Bertrand. Da soberania à competência do Estado. In:
SMOUTS, Marie-Claude. As novas relações internacionais. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 2004.
BALDWIN, David (org.). Neorealism and Neoliberalism: The
contemporary debate. New York: Columbia University Press, 1993.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia
clínica do campo científico. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.
BUANES, Arild; JENTOFT, Svein. Building bridges: Institutional
perspectives on interdisciplinarity, Futures, v. 41, pp. 446–454, 2009.
BULL, Hedley. A Sociedade Anárquica. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2002.
CERVO, Amado. Relações Internacionais do Brasil In: _____ (org.). O
desafio internacional: A política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias.
Brasíia: Editora da Universidade de Brasília, 1994.

301
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

­­­­­
_____. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São
Paulo: Editora Saraiva, 2008.
CHECKEL, Jeffrey. The constructivist turn in international relations
theory. World Politics, v. 50, pp. 324-348, 1998.
DOGAN, Mattei. The new social sciences: cracks in the disciplinary
walls. International Social Sciences Journal, n. 153, set. 1997.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001.
FUNTOWICZ, Silvio; RAVETZ, Jerry. Post-normal science. Internet
Encyclopaedia of Ecological Economics. International Society for Ecological
Economics, 2003. Disponível em: <http://www.ecoeco.org/pdf/pstnormsc.
pdf>. Acesso em: 27 nov. 2010.
GADDIS, John Lewis. History, science, and the study of International
Relations. In: WOODS, Ngaire. Explaining international relations since
1945. Oxford: Oxford University Press, 1996.
GALLOPÍN, Gilberto; FUNTOWICZ, Silvio; O’CONNOR, Martin;
RAVETZ, Jerry. Science for the 21st century: from social contract to the
scientific core. International Journal of Social Science, n. 168, jun. 2001.
Disponível em: <http://governance.jrc.it/jrc-docs/s21c.pdf>. Acesso
em: 20 nov. 2010.
GANTZ, John; REINSEL, David. As the Economy Contracts, the Digital
Universe Expand. In: International Data Center: White Papers. Disponível
em: <http://www.scribd.com/doc/15748837/IDC-Multimedia-White-
Paper-As-the-Economy-Contracts-the-Digital-Universe-Expands>.
Acesso em: 09 nov. 2010.
GEYER, Robert. Globalization, europeanization, complexity, and the
future of Scandinavian exceptionalism. Governance: An International
Journal of Policy, Administration, and Institutions, v. 16, n. 4, out., 2003.
GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
GOUGH, Clair; CASTELLS, Nuria; FUNTOWICZ, Silvio. Integrated
Assessment: An emerging methodology for complex issues.
Environmental Modeling and Assessment. v. 3, 1998.

302
Frederico Seixas Dias

GUIMARÃES, Lytton. Relações Internacionais como campo de estudos:


discurso, raízes e desenvolvimento, estado da arte. Cadernos do REL.
Brasília: UnB - Depto. de Relações Internacionais, n. 17, 2001.
HARVEY, Frank; COBB, Joel. Multiple dialogues, layered syntheses,
and the limits of expansive cumulation. In: HELLMANN, Gunther.
Are dialogue and synthesis possible in International Relations?
International Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis possible in
International Relations? International Studies Review, v. 5, n. 1, mar.,
2003.
_____. In conclusion: Dialogue and synthesis in individual scholarship
and collective inquiry. In: _____. Are dialogue and synthesis possible
in International Relations? International Studies Review, v. 5, n. 1, mar.,
2003.
HONNETH, Axel. Teoria Crítica. In: GIDDENS, Anthony; TURNER,
Jonathan (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
HURREL, Andrew. Hegemony, liberalism and global order: what space
for would-be great powers? International Affairs, n. 82, v. 1, 2006.
JEFFREY, Paul. Smoothing the waters: observations on the process of
cross-disciplinary research collaboration. Social Studies of Science, v. 33,
n. 4, ago., 2003.
KATZENSTEIN, Peter; KEOHANE, Robert O. e KRASNER, Stephen D.
International Organization and the study of word politics. International
Organization, v. 52, n. 4, 1998.
KENNAN, George. American Diplomacy. Chicago: University of
Chicago, 1984, Cap. 6.
KEOHANE, Robert O.; NYE, Joseph. Power and Interdependence. 3. ed.
New York: Harper Collins College, 2001.
KING, Gary; KEOHANE, Robert; VERBA, Sidney. Designing social
inquiry: Scientific inference in qualitative research. Princeton: Princeton
University Press, 1994.
KRATOCHWIL, Friedrich. Constructivism as an approach to
interdisciplinary study. In: FIERKE, Karin; JOERGENSEN, Knud (orgs.).

303
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

Constructing International Relations, the next generation. Armonk, N.Y./


London: M.E. Sharpe, 2001.
_____. The monologue of “science”. In: HELLMANN, Gunther. Are
dialogue and synthesis possible in International Relations? International
Studies Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
LAPID, Yosef. Through dialogue to engaged pluralism: The unfinished
business of the Third Debate. In: HELLMANN, Gunther. Are dialogue
and synthesis possible in International Relations? International Studies
Review, v. 5, n. 1, mar., 2003, p. 128.
LEIS, Héctor Ricardo; VIOLA, Eduardo. América Del Sur em el mundo de
las democracias de mercado. Rosario: Homo Sapiens Ediciones: Centro
para La apertura y el desarollo de América Latina – CADAL, 2008.
MARKOFF, John. A Deluge of Data Shapes a New Era in Computing. In:
The New York Times. Postado em 14/12/2009. Disponível em: < http://www.
nytimes.com/2009/12/15/science/15books.html?scp=5&sq=data%20
explosion&st=cse>. Acesso em: 09 nov. 2010.
MILLER, Matthew; MANSILLA, Veronica. Thinking across perspectives
and disciplines. Goodwork Report, n. 27. Interdisciplinary Studies Project,
Project Zero, Harvard Graduate School of Education, 2004. Disponível
em: <http://www.pz.harvard.edu/interdisciplinary/pdf/ThinkingAcross.
pdf>. Acesso em: 20 nov. 2010.
MIYAMOTO, Shiguenoli. O ensino das Relações Internacionais no
Brasil: problemas e perspectivas. Cena Internacional, v. 4, n. 2, dez.
2002.
MORAVCSIK, Andrew. Theory synthesis in International Relations:
Real not metaphysical. In: HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue
and synthesis possible in International Relations? International Studies
Review, v. 5, n. 1, mar., 2003.
MORGENTHAU, Hans. Politics among Nations: the struggle for power
and peace. New York: Mc Graw-Hill, 1993.
NEUMANN, Iver. International Relations as emergent bakhtinian
dialogue. In: HELLMANN, Gunther. Are dialogue and synthesis
possible in International Relations? International Studies Review, v. 5,
n. 1, mar., 2003.

304
Frederico Seixas Dias

NISBET, Robert A. Social Science. In: Encyclopaedia Britannica Online.


Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/551385/
social-science>. Acesso em: 12 de outubro de 2010.
NOBRE, Sérgio. Uma introdução à história das enciclopédias – a
enciclopédia de matemática de Christian Wolff de 1716. Revista da
SBHC, v. 5, n. 1, 2007.
POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. Londres: Routledge,
2002.
RAVETZ, Jerome. Post-normal science and the complexity of transitions
towards sustainability. Ecological complexity, n. 3, pp. 275-284.
RICH, Paul. Reinventing Peace: David Davies, Alfred Zimmern and
Liberal Internationalism in Interwar Britain.  International Relations,
v. 16, n. 5, 2002.
SATO, Eiiti. Relações Internacionais como área do conhecimento e sua
consolidação nas instituições de ensino e pesquisa. Trabalho preparado
para a V Semana de Relações Internacionais da UNESP, 2007.
SALORANTA, Tuomo. Post-normal science and the global climate
change issue.
Climatic Change, n. 50, pp. 395–404, 2001.
SARAIVA, José Flávio (org.). Concepts, histories and theories of
international relations for the 21st century: national and regional
approaches. Brasília: IBRI, 2009.
_____. Are there regional and national approaches to International
Relations? In: _____ (org.). Concepts, histories and theories of international
relations for the 21st century: national and regional approaches. Brasília:
IBRI, 2009.
SMITH, Steve. Positivism and beyond. In: SMITH, Steve; BOOTH,
Ken; ZALEWSKI, Marysia (orgs.) International theory: positivism and
beyond. Cambridge: Cambridge University, 1996.
_____. The United States and the discipline of International Relations:
“hegemonic country, hegemonic discipline”. In: PASHA e MURPHY
(orgs.). International Relations and the new inequality. Oxford: Blackwell,
2002.

305
SÍNTESE: oportunidades e desafios para o ensino e pesquisa em relações internacionais no século XXI

_____. Dialogue and the reinforcement of orthodoxy in International


Relations. In: HELLMANN, Gunther (org.). Are dialogue and synthesis
possible in International Relations? International Studies Review, v. 5, n.
1, mar., 2003.
TOW, Bruce e GILLIAM, David. Synthesis: an interdisciplinary
discipline. The Futurist , maio/jun, 2009.
VASQUEZ, John. The post-positivist debate. In: BOOTH, Ken; SMITH,
Steve (orgs.). International Relations Theory Today. Pensylvania: The
Penn State University, 1995.
WAEVER, Ole. The sociology of a not so international discipline:
American and European developments in International Relations.
International Organization, v. 52, n. 4, 1998.
WALKER, Robert. Speaking the language of
exile: Dissidence in International Studies. International Studies Quarterly,
v. 34, n. 3, 1990.
_____. The double outiside of the modern international. Ephemera:
Theory and politics in organization, v. 6, n. 1, 2006.
WALLERSTEIN, Immanuel. The inter-state structure of the modern
world-system. In: SMITH, Steve; BOOTH, Ken e ZALEWSKI, Marysia
(orgs.) International theory: positivism and beyond. Cambridge:
Cambridge University, 1996.
_____. Teoria dos Sistemas Mundiais. In: GIDDENS, Anthony;
TURNER, Jonathan (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: UNESP, 1999.
_____. Diferenciação e reconstrução nas ciências sociais. In: _____. O
fim do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Rio
de Janeiro: Editora Revan, 2002.
WALTZ, Kenneth. O homem, o estado e a guerra: uma análise teórica.
São Paulo: Martins. Fontes, 2004.
_____. Theory of international politics. New York: McGraw-Hill, 1979.
WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge:
Cambridge University Press, 1999.

306
Frederico Seixas Dias

WITTROCK, Björn; WAGNER, Peter; WOLLMANN, Hellmut. Social


science and the modern state: policy knowledge and political institutions
in Western Europe and the United States. In: WAGNER, Peter; WEISS,
Carol; WITTROCK, Björn; WOLLMANN, Hellmut. Social sciences
and modern states: National experiences and theoretical crossroads.
Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
YOUNG, Jeffrey R. Crowd Science Reaches New Heights. In: The
Chronicle of Higher Education. Postado em: 28/05/2010. Disponível em:
<http://chronicle.com/article/The-Rise-of-Crowd-Science/65707/>.
Acesso em: 09/11/2010.

307
View publication stats

Вам также может понравиться