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TEMAS DE DIREITO

CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO
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RICARDO LODI RIBEIRO
Doutor em Direito e Economia pela UGF,
Mestre em Direito Tributário pela UCAM,
Coordenador e Professor de Direito Tributário da FGV-DIREITO-RIO
e do CEJ 11 de Agosto,
Advogado no Rio de Janeiro

TEMAS DE DIREITO
CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

EDITORA LUMEN JURIS


Rio de Janeiro
2009
Copyright © 2009 by RICARDO LODI RIBEIRO

Categoria: Direito Constitucional e Direito Tributário

PRODUÇÃO EDITORIAL
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.

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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Ao Rodrigo e ao Bruno, as maiores alegrias da
minha vida, com a gratidão por todos os momentos
felizes que vocês me proporcionam.
Sumário

Apresentação .............................................................................................................. xiii


I– A Constitucionalização do Direito Tributário .............................................. 1
1) Introdução ................................................................................................. 1
2) O Direito Tributário nos Dispositivos Constitucionais .......................... 2
2.1) As Declarações de Direitos dos Contribuintes ................................ 2
2.2) As Repartições de Competências Tributárias .................................. 5
3) Os Valores Constitucionais Tributários................................................... 7
3.1) O Ressurgimento da Capacidade Contributiva como Elemento
Legitimador do Ordenamento Tributário ........................................ 7
3.2) Os Valores Constitucionais Aplicados à Lei Tributária .................. 11
4) Conclusão .................................................................................................. 21
II – Globalização, Sociedade de Risco e Segurança ............................................. 25
III – A Segurança dos Direitos Fundamentais do Contribuinte na Sociedade
de Risco ........................................................................................................... 43
1) Introdução: O Processo Histórico e a Segurança Jurídica...................... 43
2) A Sociedade de Risco................................................................................ 53
3) Direitos dos Contribuintes, Ambivalência Fiscal e Legalidade.............. 60
4) Conclusão: A Segurança Jurídica Plural e suas Conseqüências no Di-
reito Tributário ......................................................................................... 65
IV – Da Legalidade à Juridicidade Tributária ....................................................... 69
V– A Tipicidade Tributária.................................................................................. 81
1) Determinação e Abstração ....................................................................... 81
2) Os Conceitos de Direito ........................................................................... 86
2.1) Os Conceitos Abstratos ..................................................................... 88
2.2) Os Tipos ............................................................................................. 91
3) A Hipótese de Incidência Tributária e o Tipo ........................................ 96
VI – Conceitos Indeterminados, Discricionariedade e Tributação...................... 105
1) O Direito e a Imprecisão Conceitual ....................................................... 105
2) Conceitos Indeterminados e Discricionariedade .................................... 107
3) Reserva Legal Tributária e os Conceitos Indeterminados ...................... 116
4) Os Limites à Atribuição Normativa ao Regulamento Tributário .......... 124
VII – A Função da Lei Complementar Tributária.................................................. 129
VIII – A Medida Provisória em Matéria Tributária ................................................ 139

vii
IX – O Princípio da Irretroatividade Tributária ................................................... 143
1) A Retroatividade das Leis e a Retroatividade Tributária ....................... 143
2) A Irretroatividade e o Fato Gerador Complexivo................................... 149
3) A Retroatividade no Direito Tributário .................................................. 151
3.1) As Leis Interpretativas ...................................................................... 152
3.1.1) A Interpretação Autêntica na LC nº 118/05 ......................... 155
3.2) A Norma Tributária Sancionatória................................................... 157
3.3) As Leis que Estabelecem Novos Critérios de Apuração e Fiscaliza-
ção do Tributo ................................................................................... 159
X– O Princípio da Proteção à Confiança Legítima No Direito Tributário ....... 163
1) O Princípio da Proteção à Confiança Legítima no Direito Tributário.. 163
2) A Proteção à confiança e a Mudança na Interpretação Administrativa .. 166
3) A Proteção à Confiança nos Atos Administrativos sem Fundamento
Legal e na Valoração dos Fatos ................................................................ 168
3.1) A Proteção à Confiança e os Benefícios Fiscais de ICMS sem
Convênio............................................................................................ 172
4) A Proteção à Confiança e o Controle da Constitucionalidade da Lei
Tributária................................................................................................... 173
5) Os Efeitos Prospectivos de Decisão sobre a Constitucionalidade de Lei
Tributária................................................................................................... 178
XI – O Princípio da Anterioridade Tributária ...................................................... 183
1) Introdução ................................................................................................. 183
2) Temporariedade, Anualidade e Anterioridade ....................................... 183
3) A Evolução no Brasil: da Anualidade à Anterioridade........................... 186
4) O Princípio da Anterioridade Tributária na Constituição de 1988....... 189
5) A Anterioridade Nonagesimal ................................................................. 192
6) A Noventena Constitucional.................................................................... 193
7) A Anterioridade e as Emendas Constitucionais...................................... 195
8) A Revogação de Isenção e a Anterioridade............................................. 200
XII – O Princípio da Capacidade Contributiva ...................................................... 203
1) Introdução ................................................................................................. 203
2) Breve Histórico da Capacidade Contributiva.......................................... 205
3) Fundamento, Conteúdo e Extensão do Princípio da Capacidade Con-
tributiva..................................................................................................... 211
4) Conflitos da Capacidade Contributiva com Outros Interesses Almeja-
dos pela Tributação................................................................................... 222
5) A Capacidade Contributiva como Princípio Interpretativo................... 226
6) Conclusões................................................................................................. 231
XIII – Competência Tributária ................................................................................. 235
1) Conceito .................................................................................................... 235
2) Competência Tributária e Sujeição Ativa. Indelegabilidade.................. 236
3) Classificação .............................................................................................. 236

viii
3.1) Competência Exclusiva ..................................................................... 237
3.2) Competência Comum........................................................................ 237
3.3) Competência Residual....................................................................... 238
3.4) Competência Extraordinária............................................................. 239
4) Critérios para Partilha da Competência Tributária ................................ 239
4.1) Nos Impostos – Fato Gerador ........................................................... 239
4.1.1) Impostos da União – art. 153 ................................................. 240
4.1.2) Impostos dos Estados – art. 155............................................. 240
4.1.3) Impostos dos Municípios – art. 156 ...................................... 240
4.2) Nos Tributos Vinculados – Competência para a Atividade Estatal . 240
5) Conflitos de Competência ........................................................................ 241
5.1) Bitributação........................................................................................ 242
6) Competência Tributária e Federalismo Fiscal......................................... 244
XIV – Federalismo Fiscal e Reforma Tributária ...................................................... 249
1) Introdução ................................................................................................. 249
2) Federalismo: Evolução Histórica ............................................................. 250
3) Federalismo: Conceito e Elementos Constitutivos ................................. 251
4) Formas de Federalismo no Estado Contemporâneo ............................... 254
5) Federalismo Fiscal e a Distribuição de Rendas e Atribuições................ 256
6) Federalismo e Centralização Fiscal no Brasil .......................................... 259
7) Conclusão .................................................................................................. 266
XV – A Interpretação da Lei Tributária ................................................................. 267
1) Introdução ................................................................................................. 267
2) Os Métodos de Interpretação e sua Evolução Histórica......................... 267
2.1) A Jurisprudência dos Conceitos e o Método Sistemático ............... 268
2.2) A Jurisprudência dos Interesses e o Método Teleológico ............... 270
2.3) A Jurisprudência dos Valores e a Pluralidade Metodológica.......... 275
3) A Interpretação no Direito Tributário Brasileiro ................................... 284
XVI – A Elisão Fiscal e a Cláusula Geral Antielisiva .............................................. 289
1) Introdução ................................................................................................. 289
2) O Combate à Elisão e a Teoria do Abuso de Direito .............................. 289
2.1) Conceito e Requisitos do Abuso de Direito..................................... 289
2.2) O Abuso de Direito no Direito Tributário....................................... 290
2.2.1) Requisitos da Elisão Abusiva ................................................. 290
2.2.2) Distinção entre Abuso de Direito e Simulação..................... 292
2.2.3) Modalidades de Elisão Abusiva ............................................. 293
2.2.4) Abuso de Direito e Licitude................................................... 296
3) O Combate à Elisão e as Cláusulas Antielisivas ...................................... 297
3.1) As Cláusulas Antielisivas no Direito Comparado............................ 298
4) As Cláusulas Antielisivas no Brasil.......................................................... 301
4.1) A Cláusula Geral Antielisiva do Parágrafo Único do Artigo 116 do
CTN .................................................................................................... 301

ix
4.2) A Ausência de Regulamentação da Cláusula Geral Antielisiva...... 304
5) Conclusões................................................................................................. 304
XVII – A Natureza Interpretativa do Art. 129 da Lei nº 11.196/05 e o Combate
à Elisão Abusiva na Prestação de Serviços de Natureza Científica, Artís-
tica e Cultural ................................................................................................. 307
1) Introdução ................................................................................................. 307
2) A Prestação de Serviços Científicos, Artísticos e Culturais e a Tutela
Trabalhista................................................................................................. 308
3) O Combate à Elisão Abusiva e seus Limites............................................ 311
4) O Art. 129 da Lei nº 11.196/05: Legitimidade, Alcance e Aplicação .... 315
5) Conclusão .................................................................................................. 318
XVIII – O Fato Gerador da Obrigação Tributária como Acoplamento Estrutural
entre o Sistema Econômico e o Sistema Jurídico ......................................... 319
1) Introdução ................................................................................................. 319
2) O Direito e a Economia na Teoria dos Sistemas Autopoiéticos............. 320
3) O Fato Gerador da Obrigação Tributária como Acoplamento Estrutu-
ral entre o Direito Tributário e a Economia ........................................... 321
4) Conclusão .................................................................................................. 338
XIX Os Elementos Constitutivos da Definição de Imposto .................................... 339
1) Introdução ................................................................................................. 339
2) Breve Histórico ......................................................................................... 340
3) Conceito de Imposto e os Elementos Constitutivos da Definição ......... 342
A) Elementos Comuns à Definição de Tributo....................................... 346
B) Elemento de Distinção em Relação a outras Espécies Tributárias: o
Fato Gerador......................................................................................... 347
C) O Elemento de Legitimação: a Capacidade Contributiva ................. 348
D) O Elemento Finalístico: a Destinação do Produto da Arrecadação do
Imposto................................................................................................. 353
XX – A Não-CCumulatividade do PIS e da Cofins................................................... 357
1) Introdução ................................................................................................. 357
2) A Não-Cumulatividade e a Tributação sobre o Faturamento ................ 357
3) A Não-Cumulatividade das Leis 10.637/02 e 10.883/03 e o Princípio da
Isonomia .................................................................................................... 360
4) O Creditamento das Despesas Necessárias: o Caso da Mão-de-Obra das
Pessoas Físicas ........................................................................................... 367
5) Conclusão .................................................................................................. 369
XXI – A Prescrição e a Decadência do Crédito Tributário..................................... 371
1) Introdução ................................................................................................. 371
2) Decadência e Prescrição e os seus Conceitos na Teoria Geral do Di-
reito............................................................................................................ 372
3) A Decadência e a Prescrição no Direito Tributário................................ 377
4) A Decadência Tributária no Direito Brasileiro....................................... 380

x
5) A Prescrição Tributária no Direito Brasileiro......................................... 383
5.1) Causas de Suspensão da Prescrição .................................................. 384
5.2) Causas de Interrupção da Prescrição ..................................................... 386
5.3) A Prescrição Intercorrente ..................................................................... 388
6) Conclusões .................................................................................................. 388
XXII – Tratamento Diferenciado para as Microempresas e os Regimes Simplifi-
cados na Constituição..................................................................................... 391
1) Introdução ................................................................................................. 391
2) Fundamento Constitucional do Tratamento Diferenciado para as Mi-
croempresas e Empresas de Pequeno Porte ............................................ 393
3) Vedações Legais à Adesão ao Regime Simplificado................................ 395
4) Exclusões do Regime Simplificado .......................................................... 398
5) O Regime Unificado e a Federação ......................................................... 400
6) Conclusões................................................................................................. 401

xi
Apresentação

Destina-se este livro a reunir a minha produção acadêmica de artigos elabora-


dos últimos anos, que se encontra espalhada por várias revistas e obras coletivas.
Alguns artigos já foram publicados, outros foram atualizados e modificados, além
de alguns ainda inéditos.
Embora cada um deles trate de um tema específico, há um fio condutor em
todos: a abertura do direito tributário aos valores e princípios constitucionais, rom-
pendo a barreira marcada pelo positivismo jurídico que o isolava dos outros ramos
do direito pátrio e das outras escolas tributaristas.
Dedico-o aos meus mestres, com a gratidão pelas suas lições, em especial a
Adilson Rodrigues Pires, Antônio Celso Alves Pereira, Aurélio Seixas Filho, Carlos
Roberto Siqueira Castro, Flavio Bauer Novelli, Gustavo Tepedino, José Marcos
Domingues, José Ribas Vieira, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Greco e
Ricardo Lobo Torres.
Dedico ainda aos meus queridos alunos, em especial aos da FGV/DIREITO-
RIO e do CEJ 11 de AGOSTO.

Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2008.

Ricardo Lodi Ribeiro

xiii
I
A Constitucionalização do Direito Tributário
Sumário: 1) Introdução. 2) O Direito Tributário nos Dispositivos Constitucionais. 2.1) As
Declarações de Direitos dos Contribuintes. 2.2) As Repartições de Competências Tribu-
tárias. 3) Os Valores Constitucionais Tributários. 3.1) O Ressurgimento da Capacidade
Contributiva como Elemento Legitimador do Ordenamento Tributário. 3.2) Os Valores
Constitucionais Aplicados à Lei Tributária. 4) Conclusão.

1) Introdução

A relação entre o direito tributário e a Constituição comporta duas dimensões


bem distintas. Numa primeira, de índole mais formal, seria revelada a preocupação
do legislador constitucional na previsão de institutos de direito tributário, notada-
mente a repartição das receitas tributárias e os direitos dos contribuintes. Nessa
seara o Texto Constitucional brasileiro apresenta uma abundância que não encon-
tra paralelo no direito comparado, fenômeno bastante festejado pela doutrina
pátria, pioneira do estudo do tema.1
Em uma outra dimensão, mais substancial, a constitucionalização do direito
tributário se traduz na consolidação dos valores constitucionais como elementos
legitimadores do ordenamento tributário, bem como no adequado manejo dos
princípios constitucionais, notadamente os ligados à idéia de justiça, pelos tribunais
e pela doutrina quando da aplicação da lei tributária. Nesse campo material, a rea-
lidade brasileira ainda deixa muito a desejar.
Porém, nos últimos anos, a doutrina pátria, e aos poucos também a jurispru-
dência, vêm associando as relações jurídicas tributárias com a pauta de valores con-
sagrada constitucionalmente, a partir de uma nova concepção da idéia de seguran-
ça jurídica e legalidade tributária e do ressurgimento do princípio da capacidade
contributiva, animado pelo resgate da justiça fiscal, o que vai desaguar em uma ver-
dadeira constitucionalização do direito tributário.2
A Constituição de 1988, contemporânea desse resgate da justiça fiscal, simbo-
liza a tendência com a restauração do princípio da capacidade contributiva, que,
previsto na Constituição de 1946, havia sido expurgado dos textos constitucionais
impostos pelos militares, desde a Emenda Constitucional nº 18/65.

1 Aliomar Baleeiro, com Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar (Rio de Janeiro: Forense, 1951), e
Geraldo Ataliba, com Sistema Constitucional Tributário Brasileiro (São Paulo: Revista dos Tribunais: 1968),
produziram importantes obras num período em que o tema era pouquíssimo estudado aqui e alhures.
2 Melhor exemplo dessa tendência é a obra de Ricardo Lobo Torres, Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário, Vol. II (Rio de Janeiro: Renovar, 2005).

1
Ricardo Lodi Ribeiro

O escopo deste trabalho é a análise das relações entre essas duas dimensões
(formal e material) do que se convencionou denominar de direito constitucional
tributário.

2) O Direito Tributário nos Dispositivos Constitucionais

A previsão de dispositivos nas constituições em relação ao direito tributário


vem aumentando bastante desde a segunda metade do séc. XX, o que é alimentado
não só pelo desenvolvimento extraordinário do estudo da disciplina durante o
período em questão, como também pelo fenômeno da constitucionalização das
relações sociais, a que esse ramo do direito não se manteve insensível. Em conse-
qüência, as constituições elaboradas mais recentemente tendem a dar uma maior
atenção ao tema, do que a brasileira é o exemplo mais eloqüente, em diametral con-
traste com a bicentenária constituição norte-americana, que quase nenhuma pre-
visão traz sobre a tributação.
Nesse contexto, modernamente, as constituições estabelecem basicamente:
a) o rol de direitos dos contribuintes;
b) a repartição de receitas e competências tributárias.

2.1) As Declarações de Direitos dos Contribuintes

No primeiro grupo, encontram-se as declarações de direitos dos contribuin-


tes. O marco histórico da primeira declaração de direitos contra a tributação arbi-
trária exigida pelo monarca foi a Magna Charta, em 1215, ocasião em que os
barões feudais ingleses impuseram ao Rei João Sem Terra, a exigência de aprova-
ção pelo Commune Consilium Regis para haver a cobrança de tributos, exceto
quando estes fossem destinados ao pagamento do resgate do rei, caso este caísse
cativo em suas guerras; para armar seu filho primogênito como cavaleiro e para
pagar o dote de casamento de sua filha mais velha, mas desde que cobrados em
medida razoável (art. XII, da Magna Charta). As exceções se justificavam por já
estar sedimentado pelo costume o pagamento de tributos em tais casos.3 A despei-
to de se traduzir numa afirmação oligarca da nobreza sobre o rei, no doloroso pro-
cesso de transição descentralizadora do regime feudal para a formação do Estado
Nacional, a declaração coroou historicamente a luta dos contribuintes contra o
arbítrio do poder de tributar estatal, muito antes, historicamente, da consolidação
do princípio da legalidade como decorrência da soberania popular, o que só ocor-
reu após a Revolução Francesa.

3 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Tradução: Marco Aurélio
Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 13.

2
Temas de Direito Constitucional Tributário

Data dessa época o surgimento dos princípios do consentimento e da tempo-


rariedade, 4 germens dos princípios da legalidade e da anualidade. A necessidade de
consentimento do próprio contribuinte para que seja legítima a tributação consti-
tui conseqüência direta da perda do caráter excepcional dos tributos e do agiganta-
mento das despesas estatais. Se no auge do período feudal as contribuições eram
voluntárias, com o absolutismo, o consentimento surge como contraponto ao cará-
ter impositivo dos tributos, se revelando pela prévia aprovação pelos representan-
tes da aristocracia feudal, o que posteriormente se universalizou para os demais
estratos sociais.
A temporariedade se caracterizava pela limitação temporal dessa autorização,
que precisava renovar-se regularmente e que se coadunava perfeitamente com o
caráter provisório dos tributos. O artigo XIV da Magna Charta preconizava que a
fixação de tributo, afora os casos previstos no art. XII, onde se dispensava a autori-
zação, deveria ser objeto de convocação do Concilium pelo rei, com antecedência
de 40 dias.5
Assim, não sendo, até o fim do Estado Patrimonial, os tributos responsáveis
pelo custeio das despesas ordinárias do Reino, necessária a autorização para a sua
cobrança por período certo de tempo. Sendo os tributos temporários, a idéia de
autorização pelo parlamento (legalidade) se confundia com a aprovação da cobran-
ça por certo tempo (temporariedade), pois à época não havia a dicotomia posterior-
mente verificada entre a lei instituidora do tributo e a lei de orçamento, que inexis-
tia, como hoje o conhecemos, até as revoluções liberais dos séculos XVII e XVII.6
Somente na Idade Moderna, quando os tributos deixaram de ser responsáveis
apenas por despesas extraordinárias, passando a ser a principal fonte de receita do
Estado, é que podemos conceber a tributação em sua atual feição, ou seja, destina-
da a custear genericamente as despesas públicas.7
Com o advento do Estado Fiscal, feição financeira do Estado Democrático, e a
partir do desenvolvimento do capitalismo, as despesas públicas passam a ser finan-
ciadas por tributos (ingressos derivados), especialmente por impostos, além de
empréstimos públicos, em substituição à exploração do patrimônio do príncipe,
que caracterizava o Estado Patrimonialista, provido por ingressos originários.8

4 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”. Revista Forense 267: 75-94, p. 77.
5 Ibidem, p. 78.
6 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, vol. V. 2. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3.
7 Para TORRES: “É inútil procurar o tributo antes do Estado Moderno, eis que surge ele com a paulatina
substituição da relação de vassalagem do feudalismo pelos vínculos do Estado Patrimonial, com as inci-
pientes formas de receita fiscal protegidas pelas primeiras declarações de direitos” (A Idéia de Liberdade
no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1991, p. 2).
8 TORRES, Ricardo Lobo. Ibidem, p. 97.

3
Ricardo Lodi Ribeiro

A consolidação do Estado Fiscal tornou os tributos permanentes, ocorrendo o


fortalecimento do princípio da legalidade tributária, como princípio da reserva de
lei, que, a partir do final do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, ganhou
caráter universal, na esteira da Revolução Francesa e da independência dos Estados
Unidos da América. É de se destacar que a consagração da legalidade como princí-
pio supremo se deu num ambiente de afirmação da burguesia revolucionária con-
tra a opressão dos monarcas do antigo regime. Assim, inevitável sua configuração
como um princípio de viés nitidamente individualista.
Modernamente, no Estado Democrático e Social de Direito, os governos são
exercidos por representantes diretos do povo, tal como ocorre com o parlamento.
Porém, como vimos, foi no contexto histórico em que se produziram as aspirações
iluministas que se fortaleceu a idéia de que só os representantes do povo, reunidos
no parlamento, poderiam criar obrigações, e de que o poder executivo seria um
mero executor das políticas por eles definidas.9
Em conseqüência, nesse novo contexto que ora se mostra dominante, o prin-
cípio da legalidade passou a ter, como afirma Pérez Royo,10 um viés plural, como
meio de garantir a democracia no procedimento de imposição das normas de repar-
tição tributária, bem como a igualdade de tratamento entre os cidadãos e a unida-
de do sistema jurídico.
Assim, a segurança jurídica não mais se coaduna com um regime legal que dê
proteção máxima para que um indivíduo (contribuinte) deixe de dar cumprimento
a uma norma, em detrimento dos outros indivíduos, a partir de sua menor ou maior
astúcia na manipulação das formas jurídicas, pois a legalidade tributária se traduz,
hoje, como assinala Tipke,11 na segurança diante da arbitrariedade da falta de
regras, uma vez que a segurança jurídica é a segurança da regra. A certeza na apli-
cação da norma tributária para todos os seus destinatários é que garante a aplicabi-
lidade e império da lei.
A adoção do princípio da legalidade tributária pela nossa Constituição Federal
– que longe de representar uma peculiaridade nacional, como parecem sustentar
alguns, brota como fruto da evolução da ciência do direito em todo o globo12 – não
é desprestigiada pela superação das teorias ligadas ao positivismo formalista que
recomendam a vinculação absoluta do aplicador do direito à norma.
Na verdade, a maior prova de que essa tão propalada legalidade tributária abso-
luta não deriva da Constituição brasileira é o exame dos textos constitucionais dos

9 ARAGÃO, Alexandre Santos de. “Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado


Contemporâneo”, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53, 2000, p. 42.
10 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 42.
11 “Rechtsetzung durch Steuererichte und Steuervewaltungsbehörden?” Steuer und Writschaft 58 (3): 194,
1981, apud TORRES, Ricardo Lobo (Legalidade Tributária e Riscos Sociais, cit., p. 179).
12 Vide UCKMAR, Vitor (Ob. cit., p. 24), onde o autor revela que o princípio da legalidade tributária é ado-
tado em todos as constituições vigentes.

4
Temas de Direito Constitucional Tributário

países que adotam outros paradigmas na interpretação da lei tributária. Tais consti-
tuições, a exemplo da nossa, também consagram o princípio da reserva legal.13
Na verdade, o que diferencia a Constituição Brasileira de 1988 dos textos
constitucionais supracitados é uma minuciosa repartição de competências entre os
entes federativos, o que só indiretamente é pertinente à matéria da legalidade. Na
verdade, o tema da competência se prende muito mais à delimitação do poder de
tributar entre os entes federativos, do que à forma, mais ou menos casuística ou
detalhada na definição do fato gerador. Buscar na repartição constitucional das
competências tributárias o arcabouço constitucional para uma metodologia herme-
nêutica formalista é extrair da Constituição uma sistemática que não só nela não é
prevista, como contraria todos os princípios por ela consagrados.
Mas se a Constituição brasileira não apresenta qualquer peculiaridade em
relação ao direito comparado no que tange à consagração do princípio da legalida-
de tributária, vamos encontrar na doutrina uma construção por demais formalista,
embalada por razões mais ideológicas que científicas. Como bem observado por
Ricardo Lodo Torres,14 a utilização das expressões tipicidade “fechada”, legalidade
“estrita”, e reserva “absoluta” de lei, não derivam da nossa Constituição, mas de
construção de nossa doutrina.

2.2) As Repartições de Competências Tributárias


Na repartição de competências tributárias entre os entes da federação o cons-
tituinte brasileiro estabeleceu uma disciplina sui generis, a partir de um detalha-

13 Nos EUA, o art. 1º, Seção VIII da Constituição de 1787, atribui ao Congresso Nacional a criação de tri-
butos. Na Alemanha, o artigo 105 da Constituição de 1949 garante que os impostos serão objeto da com-
petência legislativa exclusiva da Federação ou dos Landers (Estados). Na Constituição Espanhola de
1978, embora o artigo 31.3 admita a possibilidade de instituição de prestações patrimoniais ou pessoais
na forma da lei, o art. 133.1 dispõe que a potestade de estabelecer tributos é exercida mediante lei. Por
sua vez, a Constituição Francesa de 1958, em seu artigo 34, cumprindo o compromisso firmado pelo
povo francês desde a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, garante que a lei deva fixar os impos-
tos, taxas e as modalidades de sua cobrança. Na Argentina, a Constituição de 1994, em seu art. 4º, deter-
mina que todas as contribuições ingressas no Tesouro serão impostas pelo Congresso Nacional. No
Uruguai, a Constituição de 1966, em seu artigo 10, também subordina a criação de tributos à lei. A exce-
ção fica por conta da Itália, que por prever um dispositivo genérico para todas as prestações pessoais e
patrimoniais, adota, no artigo 23 da Constituição de 1947, o princípio da legalidade em sentido amplo,
a partir da cláusula em virtude do disposto em lei. Mas nem por conta dessa previsão constitucional, a
doutrina italiana admite a criação de tributos por outro instrumento que não a lei, e nem a delegação à
autoridade administrativa da fixação dos elementos da obrigação tributária. Pela necessidade de lei defi-
nindo todos os elementos da obrigação tributária mesmo em face do art. 23 da Constituição Italiana, vide
GIANNINI, A. D. (Instituzioni di Diritto Tributario. 3. ed. Milano: Giuffrè [194_], p. 12), PUGLIESE,
Mario (Instituciones de Derecho Financiero. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1939, p. 116) e
MICHELI, Gian Antonio (Curso de Direito Tributário. Tradução: Marco Aurélio Greco e Pedro Luciano
Marrey Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 19).
14 “Direitos Fundamentais do Contribuinte”. In MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Fundamentais do
Contribuinte. Pesquisas Tributárias – Nova Série – nº 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 167-186, 2000,
p. 185.

5
Ricardo Lodi Ribeiro

mento que só encontra paralelo, ainda que distante, na Lei Fundamental da


República Federal Alemã. De fato, a regra, na maioria dos textos constitucionais
dos países europeus, é uma despreocupação em relação à divisão de competências
entre o poder central e o local, o que se explica pela natureza do regime unitário
adotado na grande maioria desses.15
Porém, mesmo entre as federações do continente americano, a repartição do
poder tributário entre União e Estados não é explicitada nos textos constitucionais.
Nos EUA, a seção 8 do artigo 1º da Constituição de 1787 apenas define as compe-
tências materiais da União, enquanto a Emenda XVI, de 1913, reserva a competên-
cia para tributação da renda à União. No México, a Constituição de 1917 limita-se,
no art. 131, a atribuir a tributação do comércio exterior à União, não reservando
competências privativas aos Estados. Já a Constituição da Argentina, reformada em
1994, não prevê qualquer repartição tributária entre os entes federativos, o que,
aliás, tem sido a regra mesmo entre os regimes federativos.
De fato, é na República Federal Alemã que vamos encontrar uma repartição
de competências tributárias entre a União e os Landers (Estados-membros), nos
artigos 106 a 108, de 1949. Mas mesmo no texto tedesco, não se verifica a rigidez
da divisão brasileira, sobretudo por uma significativa competência concorrente
para tributos relevantes em termos de arrecadação, como os impostos sobre a
renda, sobre as sociedades e sobre a cifra dos negócios (art. 106, 3). Na Alemanha,
assim como no Brasil, a preocupação em definir as competências constitucionais
tributárias na constituição, visa a tutelar a federação, e não a conferir maior prote-
ção à segurança jurídica dos contribuintes.
No Brasil, como é por todos sabido, a repartição de competências tributárias é
mais rígida, estabelecendo atribuições privativas a cada um dos entes federativos.
Tal característica, que longe de ser uma inovação da Constituição de 1988, traduz-
se em longa tradição republicana que vem desde a Constituição Federal de 1891,
pode ser atribuída à necessidade de se proteger os poderes tributários locais contra
a usurpação do poder central, o que se justifica numa federação que nasceu da divi-
são centrífuga de um Império unitário. A necessidade da rigidez na divisão dos
poderes tributários se acentuou ainda mais na Constituição de 1988, que conferiu
ao município brasileiro uma autonomia federativa sem igual na nossa história cons-
titucional. É que com o peculiar federalismo tripartite, a repartição dos poderes tri-
butários passou a ser justificada como uma exigência do princípio da conduta amis-
tosa entre os entes federativos.
Em conseqüência dessa rígida repartição de competências tributárias entre
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, qualquer alteração da repartição de

15 Sobre a imposição de tributos pelos entes locais na Itália, Portugal e Espanha, vide RIBEIRO, Ricardo
Lodi. Federalismo Fiscal e Reforma Tributária. Disponível na Internet em www.mundojuridico.adv.br.
Acesso em 13/05/06.

6
Temas de Direito Constitucional Tributário

receitas, também prevista expressamente pela Constituição, deve ser resultado de


um grande consenso nacional, capaz de superar os elevados quóruns para alteração
constitucional, o que por vezes significa um certo imobilismo na adoção das gran-
des decisões, a depender de uma adequada divisão do bolo financeiro entre os entes
federativos.

3) Os Valores Constitucionais Tributários

Se a Constituição brasileira dá ao direito tributário um destaque que não


encontra exemplo em outras nações, nem por isso a constitucionalização das rela-
ções entre o Estado e os contribuintes se deu de forma automática por aqui. É que,
como assevera Humberto Ávila, a normatividade de uma constituição parece ser
inversamente proporcional à quantidade de textos constitucionais.16
Assim, longe de se manifestar pela abundância de regras constitucionais, a
constitucionalização do direito tributário surge do trabalho doutrinário de resgate
dos valores éticos, vinculados à justiça. Tais idéias, desenvolvidas pela jurisprudên-
cia dos valores, de Larenz,17 ganharam força com a virada kantiana, fomentada por
Rawls.18
A abertura do direito tributário à idéia de justiça mediante a sua aproximação
com a segurança jurídica, promove a ponderação entre esses dois valores, desenca-
deando uma convivência pacífica entre os princípios deles decorrentes, em especial
o da legalidade e o da capacidade contributiva.19
A ponderação entre a justiça fiscal e a segurança do contribuinte se apresenta
em dois planos. No primeiro, no âmbito da legitimação do ordenamento, justifican-
do regras tributárias que promovam a melhor aplicação possível aos dois interesses.
No segundo plano, no da aplicação da lei, a ponderação se oferece como importan-
te instrumento na interpretação da lei.20

3.1) O Ressurgimento da Capacidade Contributiva como Elemento


Legitimador do Ordenamento Tributário

No âmbito da legitimação do ordenamento tributário, com o resgate do prin-


cípio da capacidade contributiva, a segurança jurídica do contribuinte supera uma

16 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 561.
17 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997.
18 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
19 TORRES, Ricardo Lobo. “Legalidade Tributária e Riscos Sociais”. Revista de Direito da Procuradoria-
Geral do Estado do Rio de Janeiro 53: 178-198, 2000, p. 179.
20 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 89.

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Ricardo Lodi Ribeiro

tutela meramente individual do direito do contribuinte, uma vez que este não
é mais visto como uma figura mitológica desligada da realidade fática e nem o
Estado é mais aquele monstro orgânico de Hobbes, a ameaçar a liberdade do
cidadão de Locke, num maniqueísmo em completo descompasso com um
tempo onde a figura do Estado-Nação vai cedendo terreno e que a soberania é
flexibilizada.
Nesse contexto, contemporâneo da sociedade de risco, diagnostica-se o
fenômeno da ambivalência, com a resolução de determinados problemas
gerando outros.21 Nessa lógica ambivalente, cada medida adotada para a solu-
ção de problemas de determinado grupo de pessoas traz em si mesma a criação
de problemas para outro grupo de pessoas.22 Em conseqüência, a liberdade
crescente de uns pode representar, ou até mesmo ser a causa, de uma maior
opressão para outros.23
Diante da insuficiência dos modelos binários,24 tão caros à primeira moderni-
dade, o desafio na sociedade de risco é conviver com a ambivalência, a partir de
uma atitude calculista em relação às possibilidades de ação,25 e do controle dos ris-
cos pela probabilidade.26 Assim, pelo conhecimento da realidade passada, os agen-
tes sociais assumem os riscos e procuram se precaver em relação à possibilidade de
ocorrência dos perigos previstos por meio do seguro.
Se no Estado Liberal o seguro era limitado à segurança dos negócios privados,
no Estado Social evolui para a idéia de seguridade social, a prevenir os riscos advin-
dos da doença, da velhice, do desemprego etc. Em qualquer desses cenários, o papel
do segurador, seja a empresa seguradora a proteger os negócios privados, seja o
Welfare State a tutelar os cidadãos em relação às misérias sociais, é o de redistri-

21 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 227.
22 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da Modernidade Reflexiva. ” IN: GID-
DENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reim-
pressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 29.
23 GIDDENS, “Risco, Confiança e Reflexidade”, IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 223.
24 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco – Vínculos com o Futuro. Trad. Cristiano Paixão,
Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 197:
“Nessa situação, portanto, a razão clássica, sustentada pela lógica binária, vai desarmada de encontro ao
tempo. Nem a regularidade, nem a calculabilidade podem socorê-la. A precariedade da razão deve ser
assumida como ponto de partida. O risco, dessarte, é uma modalidade secularizada de construção do
futuro. Já que a perspectiva de risco torna plausível pontos de vista diferentes da racionalidade, na con-
dição de que estes sejam capazes de rever os próprios pressupostos operativos e na condição de que, haja
tempo para efetuar esta revisão, esta perspectiva é típica da sociedade moderna.”
25 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002, p. 33.
26 LASH, Scott. “A Reflexividade e seus duplos: Estrutura, Estética, Comunidade”, IN: GIDDENS,
Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 170.

8
Temas de Direito Constitucional Tributário

buir os riscos entre os integrantes do sistema. Assim, enquanto a empresa segura-


dora vai, a partir do cálculo de probabilidade de sinistro, distribuir o custo das
indenizações pelos seus clientes, o Estado irá distribuir o custo das prestações
sociais pelos contribuintes.27
Nesse diapasão, a idéia de segurança jurídica ganha uma nova dimensão, supe-
rando o modelo do Estado Liberal, onde representou a proteção do cidadão contra o
poder do Estado, com a idéia de segurança jurídica, e do Estado Social, em que, na
eterna busca da Justiça Social, ganhou a feição de seguridade social. No Estado
Democrático e Social, marcado pela sociedade de risco, a segurança se traduz em segu-
ro social.28 De acordo com essa nova dimensão da segurança, o Estado garante prote-
ção aos cidadãos contra os riscos sociais, a partir de “uma nova comunhão de respon-
sabilidade entre o cidadão e o Estado, ou uma nova comunhão de riscos e chances”.29
Como destaca Perez Luño, nos dias atuais, a segurança dos direitos do cidadão
é muito mais ameaçada pela falta de resposta do Estado aos seus misteres sociais do
que pela sua hipertrofia, como ocorria antes do advento do Estado Social.30 A inse-
gurança social gerada pela ausência de cumprimento das prestações estatais vincu-
ladas ao mínimo existencial é permanente motivo de crise que põe em risco o pró-
prio regime democrático.31 Assim, “a liberdade individual só pode ser produto do
trabalho coletivo”.32

27 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad.
Maria Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 35: “O welfare state, cujo desenvolvi-
mento pode ser retraçado até as leis de assistência social elisabetanas na Inglaterra, é essencialmen-
te um sistema de administração de risco. Destina-se a proteger contra os infortúnios que antes eram
tratados como desígnio dos deuses – doença, invalidez, perda do emprego e velhice.”(...) “Os que for-
necem seguro, seja na forma do seguro privado ou dos sistemas estatais de seguridade, essencialmen-
te estão apenas redistribuindo risco.”
28 Ibidem: “Os riscos e a insegurança da sociedade hodierna não podem ser eliminados, mas devem ser alivia-
dos por mecanismos de segurança social, econômica e ambiental. A solidariedade social e a solidariedade do
grupo passam a fundamentar as exações necessárias ao financiamento das garantias da segurança social.”
29 SILVA NETO, Francisco e IORIO FILHO, Rafael M. “A Nova Tríade Constitucional de Erhard
Denninger”. In: DUARTE, Fernanda e VIEIRA, José Ribas (org.), Teoria da Mudança Constitucional –
Sua Trajetória nos Estados Unidos e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 282: “Esta diferença se
traduz na figura de um cidadão ativo no processo de decisão política e administrativa e na sua vigilân-
cia e responsabilidade na co-participação da efetiva proteção e tutela dos princípios basilares do ordena-
mento jurídico e dos princípios invioláveis da pessoa.”
30 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 22.
31 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São
Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179: “A nova geopolítica monetária e a concentração de decisão sobre
investimentos, segundo Fiori, torna a sua capacidade de retaliação econômica o fundamento último da
soberania no que diz respeito às políticas econômicas dos Estados periféricos. Isto gera, no médio e no
longo prazos, a deslegitimação democrática, o esfacelamento do Estado e formas cada vez mais sofistica-
das de autoritarismo. Com a globalização, a instabilidade econômica aumentou, e o recurso aos poderes
de emergência para sanar as crises econômicas passou a ser mais utilizado, com a permanência do esta-
do de emergência econômico.”
32 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 15.

9
Ricardo Lodi Ribeiro

No campo da repartição dos encargos tributários, a tendência individualista,


baseada no positivismo liberal, é ainda mais acentuada, a partir da mitificação da
idéia de direitos do contribuinte, como se todas as empresas e pessoas tivessem
sempre interesses coincidentes. A ilusão se completa com a difusão do mito de que
os interesses de todos os contribuintes se contrapõem ao Estado, opressor da liber-
dade individual.
Porém, se as despesas estatais são custeadas por receitas públicas, em
especial os tributos, que por sua vez hão de ser, no Estado capitalista, inexo-
ravelmente suportados pela sociedade, a questão passa a ser quem vai pagar, e
quanto cada um vai pagar. Assim, a concessão de um benefício fiscal para um
determinado grupo de contribuintes vai representar um aumento de ônus
para aqueles que não foram beneficiados pela medida, pois se a despesa públi-
ca não é diminuída pela desoneração fiscal, o Estado vai ter que escolher
entre dois caminhos: buscar o aumento de receita em outro segmento, ou
frustrar prestações estatais que provavelmente terão como beneficiárias
outras pessoas.
Por outro lado, como o peso dos tributos tem uma imensa significação no
preço dos bens e serviços oferecidos na economia, o afastamento do pagamento de
uma exação em relação a um integrante de determinado setor econômico, seja por
meio do planejamento fiscal, de decisão judicial ou da simples sonegação, terá
como conseqüência a redução significativa do seu preço em detrimento dos seus
concorrentes, que certamente perderão parcelas expressivas de mercado ou até
mesmo desaparecerão.
Essas situações bastante corriqueiras em nossa realidade mostram que o
interesse de um contribuinte passa a ser distinto do interesse do outro, caben-
do ao Estado arrecadar de todos eles, na forma definida na lei, que se pressu-
põe uma representação de consenso entre os mais variados segmentos sociais e
econômicos.
Logo, não há mais como crer no mito de que existe um direito do contribuin-
te em contraposição ao interesse do Estado, pois a grande questão do direito tribu-
tário não é mais a relação vertical entre fisco-contribuinte, mas uma relação hori-
zontal entre os vários contribuintes de uma mesma sociedade. Na verdade, a lei fis-
cal apresenta uma natural ambivalência encontrada nos efeitos colaterais que uma
medida positiva para determinados contribuintes, representará ao direito de outros
contribuintes.
Por essa razão, a segurança jurídica do contribuinte ganha uma dimensão plu-
ral, baseada na aferição da adequação dos critérios legislativos à justiça fiscal e à
repartição dos riscos e custos sociais. Em conseqüência, isonomia e capacidade con-
tributiva não mais se contrapõem à legalidade, que deve assegurar o cumprimento
da divisão dos encargos fiscais pelo critério legal definido de acordo com o plura-

10
Temas de Direito Constitucional Tributário

lismo político com a participação decisiva da opinião pública e dos meios de comu-
nicação33 e com a razão comunicativa.34
Como conseqüência desse novo panorama, a transparência fiscal exige medi-
das legislativas de combate à evasão e à elisão fiscal, como as Leis Complementares
nº 104, que introduziu a cláusula geral antielisiva,35 e nº 105, que flexibilizou o sigi-
lo bancário em relação à fazenda pública.

3.2) Os Valores Constitucionais Aplicados à Lei Tributária

Com o equilíbrio entre os princípios da legalidade e da capacidade contributiva


se estabelece uma nova valoração neste ramo do direito, que longe de apresentar pecu-
liaridades em relação aos outros ramos, prestigia a igualdade, com a adoção de fórmu-
las para coibir as práticas abusivas tendentes a burlar a obrigação de pagar tributos e
de mecanismos que vão além das normas com intenção meramente arrecadatórias.
No plano da aplicação da lei, a ponderação se pode dividir em três passos. O
primeiro se traduz na definição do grau de insatisfação de um dos princípios. No
segundo passo se define a importância da satisfação do princípio que se encontra
em sentido contrário. Por fim, no terceiro passo se deve definir se a importância da
satisfação do princípio contrário justifica a afetação ou a não-satisfação do outro.36
No direito tributário, possuindo a segurança e a justiça o mesmo peso na tábua
constitucional de valores, caso o intérprete verifique a colisão entre eles, deverá
pesquisar o peso específico que a legalidade e a capacidade contributiva possuem
no caso concreto.
Em conseqüência, será revelada uma norma tributária que será interpretada de
acordo com a manifestação de riqueza do contribuinte, a partir de uma atividade valo-
rativa, e não meramente cognitiva, do aplicador do direito, não tendo cabimento solu-
ções formalistas como as que limitam o fenômeno jurídico aos conceitos fechados.37

33 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del
Principio de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, 317.
34 A razão comunicativa, segundo Habermas, se traduz na capacidade humana dirigida ao entendimento,
em oposição à ação instrumental, dirigida à obtenção de objetivos. Deste modo, a pretensão de verdade
do proponente deve ser defensável a partir de argumentos que possam superar as objeções de possíveis
oponentes, e, ao final, contar com a aprovação de um acordo racional da comunidade (HABERMAS,
Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32).
35 Sobre o tema, vide RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003.
36 ALEXY. Epílogo a La Teoria de Los Derechos Fundamentales. Tradução de Carlos Bernal Pulido.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 2004, p. 49.
37 Sobre a distinção entre conceitos fechados e tipos abertos: RIBEIRO, Ricardo Lodi: “Legalidade
Tributária, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e Cláusulas Gerais”. Revista de Direito
Administrativo 229: 313-33, 2002.

11
Ricardo Lodi Ribeiro

No entanto, em que pese a imperiosidade da constitucionalização do direito


tributário a partir do ressurgimento do princípio da capacidade contributiva como
norte da aplicação da lei tributária, em nossa doutrina pátria ainda prevalece uma
posição formalista, a partir da adoção da segurança jurídica como princípio absolu-
to do direito tributário, mediante a íntima convicção de que esse ramo possuiria
características peculiares que sequer seriam encontradas no direito penal, o que
reflete, como bem destaca José Marcos Domingues de Oliveira,38 uma posição ideo-
lógica de privilegiar a liberdade vinculada ao patrimônio em detrimento da liber-
dade vinculada à pessoa.
A consagração da teoria da tipicidade fechada na doutrina brasileira represen-
tou o triunfo de uma peculiar opção, fora do contexto histórico mundial e sem
paralelo em outros ramos do direito pátrio, da segurança jurídica como valor abso-
luto e insuscetível de ponderação com qualquer outro.39
E justamente pelo fato de a doutrina brasileira passar ao largo das discussões
sobre justiça, não sabendo como dar aplicação ao princípio da capacidade contribu-
tiva, a jurisprudência segue a mesma orientação, limitando-se a perceber o fenôme-
no jurídico tributário por meio das regras, desconhecendo os valores e princípios.
Por outro lado, durante as últimas quatro décadas, o legislador tributário
brasileiro, resignado com o fortalecimento do positivismo formalista, aprofunda
a tendência de adotar como paradigma para a escolha dos fatos geradores dos tri-
butos, não a manifestação de riqueza, mas a menor suscetibilidade da lei tributá-
ria ao planejamento fiscal, se afastando da pauta axiológica adotada constitucio-
nalmente.
Tal fenômeno faz com que a legislação tributária revele um quadro bem dis-
tante dos comandos constitucionais vinculados à idéia de justiça. Embora a
Constituição de 1988 volte a consagrar expressamente o princípio da capacidade
contributiva, a legislação tributária encontra dificuldade em efetivar o dispositivo
que melhor traduz à idéia de justiça e igualdade fiscal.
Com isso, se estabelece uma grave contradição axiológica a pôr em xeque a
constitucionalização do direito tributário, desaguando em um dos sistemas tributá-

38 Direito Tributário e Meio Ambiente: Proporcionalidade, Tipicidade Aberta e Afetação de Receita. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 114.
39 Observe-se que os próprios seguidores da doutrina formalista reconhecem o caráter peculiar dessa opção
no panorama do direito comparado. Por todos, vide COELHO, Sacha Calmon Navarro (O Controle da
Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey,
1992, p. 335) e MARTINS, Ives Gandra da Silva (“Direitos Fundamentais do Contribuinte”. In Martins.
Ives Gandra da Silva (coord.). Direito Fundamentais do Contribuinte. Pesquisas Tributárias – Nova Série
– nº 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 45-81, 2000, pp. 77 e 79), que justifica a necessidade de o con-
tribuinte brasileiro ter maior proteção do que é conferido em outros países, em virtude da ganância do
Estado brasileiro, e do subdesenvolvimento das instituições nacionais, despreparadas para a utilização de
mecanismos de combate à elisão adotados alhures, numa apreciação que obviamente extrapola os limi-
tes da ciência do Direito.

12
Temas de Direito Constitucional Tributário

rios mais iníquos do mundo, onde os mais pobres suportam a maior parte da carga
tributária, e os mais ricos, utilizando-se do planejamento fiscal, não raro baseado na
elisão abusiva, desbotam o texto constitucional que elegeu os princípios da isonomia
e da capacidade contributiva como principais veículos da justiça fiscal.40
Alheios ao fenômeno, nossos tribunais e juristas, no afã de defender o contri-
buinte da forma mais simples, se apegam aos aspectos formais do direito tributário,
permitindo que passem despercebidas as maiores violações aos princípios vincula-
dos à justiça.
No entanto, como já se observou, o formalismo positivista, aqui com algum
atraso, vai cedendo lugar a uma visão que concebe o direito tributário de uma
forma mais condizente com o princípio da unidade da ordem jurídica, com a reu-
nião dos valores da segurança jurídica e da justiça, e a ponderação dos princípios da
legalidade e da capacidade contributiva, abrindo-se a uma interpretação axiológica
e atenta ao fenômeno da constitucionalização da disciplina. Dentro desse novo
contexto, ganham fôlego os questionamentos à teoria da tipicidade fechada, permi-
tindo-se ao legislador a adoção de descrições que melhor traduzem a manifestação
de riqueza do contribuinte, sendo possível a adoção de conceitos indeterminados e
cláusulas gerais pela lei definidora do fato gerador, bem como a introdução em
nosso ordenamento de cláusulas antielisivas genéricas e específicas.41
Mas não é só a legalidade que ganha novos contornos com a constitucionali-
zação do direito tributário, uma vez que a principal conseqüência desta tendência
é o ressurgimento do princípio da capacidade contributiva, em uma nova roupa-
gem, bem distante de suas cores fiscalistas do auge no Estado Social.
Durante o período de retomada formalista, nos anos 60, o princípio da capa-
cidade contributiva sobreviveu como mera vedação à arbitrariedade, ou seja, como
limite a distinções que não fossem razoáveis. Não resta dúvida que nessa fase o
legislador passou a ter uma maior liberdade para a definição dos fatos geradores, e
o princípio da capacidade contributiva entrou em crise.42

40 O fenômeno, que não é uma exclusividade brasileira, foi descrito com grande felicidade por Casalta
Nabais: “A falta de uma efetiva e eficaz fiscalização de tais declarações efetivamente a que se estabele-
çam, entre nós, na prática dois tipos de contribuintes: os que pagam os impostos determinados (com
base) na lei (maxime, os trabalhadores dependentes), e os que pagam os impostos determinados, ao fim
e ao cabo, com base no que eles desejam declarar (maxime, os profissionais liberais e as empresas), valen-
do assim para estes uma autotributação muito especial (já que, por um lado, direta e individualmente
exercida e, por outro, concretizada na inteira liberdade na fixação do quanto dos impostos) e que, a nosso
ver, suscita a questão de saber se não se está, de algum modo, perante uma manifestação, sui generis, da
lei sociológica de G. Gèze (segundo a qual a classe ou as classes detentoras do poder tendem a desone-
rar-se dos impostos) se e na medida em que estes contribuintes dominem o Parlamento (e o Governo)
em termos de constituírem o (verdadeiro) suporte duma ausência de adequada articulação entre a lei fis-
cal, preocupada com a tributação do rendimento real, e a correspondente fiscalização praticável”
(NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 391).
41 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
42 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamiento
español a la luz del Derecho alemán. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 77.

13
Ricardo Lodi Ribeiro

A redução do princípio da capacidade contributiva a mera vedação à arbitra-


riedade degenerou no Tribunal Constitucional Alemão na simples exigência de
fundamentação. Assim, qualquer justificativa para o afastamento do referido prin-
cípio era aceita, como, por exemplo, a necessidade financeira do Estado, a tradição
do direito tributário alemão, a convicção do legislador e a paciência do contribuin-
te. Fenômeno não muito diverso se deu nas jurisprudências constitucionais espa-
nhola e italiana, em que a simples finalidade extrafiscal do tributo era motivo sufi-
ciente para o afastamento da capacidade contributiva.43
A inocuidade do princípio da capacidade contributiva perante o Tribunal
Constitucional alemão levou ao seu descrédito frente à doutrina daquele país. A
posição cética de Kruse constitui o melhor exemplo dessa situação. De acordo com
o citado autor tedesco, não existem critérios objetivos para ordenar a tributação,
mas apenas necessidades financeiras que precisam ser atendidas.44
Mas se o princípio da capacidade contributiva, em sua visão causalista, entrou
em colapso no final da década de 50 na Alemanha, começaram a surgir, no come-
ço dos anos 60, na Itália, novas obras sobre o tema, com uma visão significativa-
mente diferente da adotada pela escola funcionalista. A mais importante delas é a
de Emilio Giardina,45 datada de 1961, onde o autor buscou dar alguma aplicabili-
dade prática ao dispositivo do art. 53 da Constituição italiana que consagra o prin-
cípio, até então tido como programático pelos tribunais, a partir do afastamento dos
tributos confiscatórios e aqueles que gravam as rendas mínimas e da graduação pro-
gressiva do sistema tributário. A partir daí, vários autores italianos publicaram
obras que buscam dar uma maior efetividade ao citado dispositivo constitucional:
Manzoni (1965),46 Maffezoni (1970)47 e Frascesco Moschetti (1973).48 Segundo
Moschetti, a capacidade contributiva não se confunde com qualquer manifestação
de riqueza, mas se traduz, tão-somente, na real força econômica do contribuinte
que seja idônea a concorrer às despesas públicas.49
As décadas de 1980 e 1990 foram palco da reabilitação do princípio da capa-
cidade contributiva, não só na jurisprudência dos tribunais constitucionais como
na doutrina européia. São juristas como Tipke, Vogel e Lang, na Alemanha;
Moschetti, Tosi e Fantozzi, na Itália; e Calvo Ortega, Ferreiro Lapatza e Falcón y

43 Ibidem, p. 78.
44 Apud HERRERA MOLINA, Ob. cit., p. 78.
45 Le Basi Teoriche Del Princìpio della Capacità Contributiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 439.
46 MANZONI, Ignazio. Il Princìpio della Capacità Contributiva nell’Ordinamento Costituzionale Italiano.
Torino: G. Giappichelli, 1965.
47 MAFFEZONI, Federico. Il Princìpio della Capacità Contributiva nel Diritto Finanziario. Torino: UTET,
1970.
48 MOSCHETTI, Francesco. Il Princìpio della Capacità Contributiva. Padova: Cedam, 1973.
49 Ibidem, p. 238.

14
Temas de Direito Constitucional Tributário

Tella, na Espanha, que dão ao referido princípio uma nova dimensão, que vai bem
além da vedação ao arbítrio na escolha dos fatos geradores.50
Nessa nova diretriz, a capacidade contributiva representa não só um limite
negativo que exclui os fatos que não revelam manifestação de riqueza, como cons-
titui critério indispensável para a repartição da carga tributária pelos cidadãos. Essa
reabilitação do princípio não apenas superou o ceticismo formalista, como foi bem
além do causalismo economicista, buscando conteúdo no valor da igualdade, e no
direito fundamental de pagar tributo na mesma proporção daquele que possui a
mesma riqueza.
Contudo, o princípio não é, como foi considerado na época da jurisprudência
dos interesses, absoluto, devendo ser ponderado com outros interesses buscados
pela tributação, tais como a extrafiscalidade e a praticidade administrativa.51 Assim
– e é aqui que os juristas modernos superam o argumento dos céticos que enxerga-
vam no fenômeno da extrafiscalidade a negação da capacidade contributiva como
princípio cogente –, não basta a alegação de que determinada norma tributária
busca um fim econômico diverso da arrecadação para se driblar o princípio da
capacidade contributiva. É preciso que tais motivos sejam justificados, à luz do
princípio da proporcionalidade.
Vale reprisar que, ao contrário do que ocorria na fase áurea das teses causa-
listas, a capacidade contributiva, conforme se entende hoje, busca seu fundamen-
to em valores, como o da igualdade, e não mas numa visão economicista, vincu-
lada à necessidade de o Estado angariar recursos para promover as prestações
estatais garantidoras da justiça social. É essa característica que difere a justiça tri-
butária, na teoria da interpretação econômica do fato gerador, da sua acepção na
fase pós-positivista.
Nota-se aí uma mudança de paradigma. Não vale mais pesquisar quanto o
Estado vai gastar para se atingir o ideal de justiça social, e qual será o quinhão de
cada cidadão para atingir esse montante, como na era da jurisprudência dos inte-
resses. Ao contrário, o ideal da justiça fiscal, hoje, se realiza na investigação de
quanto cada cidadão pode contribuir com as despesas públicas,52 à luz dos valores
e princípios reatores do Estado Democrático e Social. Portanto, as despesas públi-
cas devem se limitar ao somatório da capacidade contributiva de cada um, sob pena
de as prestações estatais serem realizadas às custas de parcelas indispensáveis à vida
digna do homem. Resta-nos, assim, concluir que a justiça é um valor que já deve

50 HERRERA MOLINA. Ob. cit., pp. 73-77.


51 Ibidem.
52 Segundo TIPKE: “O princípio da capacidade contributiva não investiga o que o Estado e comunidades
podem fazer pelo cidadão isolado, senão o que o cidadão isolado, com base na sua capacidade contribu-
tiva, pode fazer por seu Estado e sua comunidade” (“Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária”. In:
SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos
em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 60-70, p. 64).

15
Ricardo Lodi Ribeiro

ser concretizado no momento de se arrecadar o tributo, e não somente mediante


prestações públicas, viabilizadas com os recursos tributários.
Ora, legitimar a tributação onde não há manifestação de riqueza, em nome das
prestações estatais, por mais relevantes que sejam, constitui uma ilusão, pois
mesmo que o Estado preste serviços públicos que venham a suprir as necessidades
básicas do cidadão, o que nem sempre ocorre, o elevado custo da administração
estatal representa uma diminuição do direito à prestação. Assim, mais vale deixar
que o indivíduo tenha recursos para atender suas próprias necessidades básicas, do
que tributar suas parcas rendas a fim de custear o atendimento dessas pelo Estado.
Isso não significa, no entanto, que no Estado Democrático e Social de Direito
não seja imperioso que o Estado tribute a capacidade contributiva de alguns para
atender as necessidades básicas de outros que, com seus próprios recursos, não
podem suportá-las.
Convém lembrar que, modernamente, o princípio da capacidade contributiva
goza de aplicação universal, seja como uma derivação do princípio da igualdade,
previsto em todas as constituições, 53 seja por meio de cláusulas constitucionais que
determinam a tributação proporcional ou mesmo de previsões expressas.54 No
plano normativo, o princípio foi implicitamente consagrado na Constituição revo-
lucionária francesa, de 1791, como decorrência do princípio da igualdade.55 E desse
também se extrai a capacidade contributiva na Constituição Alemã. Já na Argen-
tina, o princípio também aparece, implicitamente, no artigo 4º da Constituição de
1994, que prescreve que os tributos serão instituídos eqüitativa e proporcionalmen-
te. No México, a Constituição de 1917 adotou modelo semelhante, em seu art. 31,
com a determinação de que os mexicanos contribuíssem em medida proporcional
e equânime. Na Espanha, o princípio da capacidade contributiva está expressamen-
te previsto no art. 31.1 da Constituição; o mesmo se dá no art. 53 da carta consti-
tucional italiana.56
No Brasil, a Constituição Federal de 1946, em seu artigo 202,57 consagrava de
modo expresso, o princípio da capacidade contributiva, que no entanto, já integra-
va nosso ordenamento, implicitamente, desde a Constituição de 1824 (art. 179,

53 UCKMAR, Victor, Ob. cit., p. 53.


54 Como salienta Klaus Tipke: “Muitas constituições citam expressamente o princípio da capacidade con-
tributiva como parâmetro. Mas mesmo quando isso não ocorra, o princípio da capacidade contributiva
é o único princípio justo no âmbito tributário; é portanto o único parâmetro justo de comparação para
a aplicação do princípio da igualdade. Todas as constituições dos estados democráticos reconhecem o
princípio da igualdade” (“Sobre a Unidade...”, cit., p. 64).
55 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p.
35.
56 Para uma visão mais ampla da capacidade contributiva nas constituições de vários países vide UCKMAR,
Victor (Ob. cit., pp. 66/67).
57 Constituição Federal de 1946, art. 202: “Os tributos terão o caráter pessoal sempre que isso fôr possível,
e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte.”

16
Temas de Direito Constitucional Tributário

XV).58 Embora ausente nos textos autoritários da Constituição de 1967 e da EC nº


1/69, após ser suprimido pela EC nº 18/65, a capacidade contributiva era extraída
do próprio princípio da isonomia.59 Hoje, o princípio ressurge no art. 145, § 1º, da
Constituição Federal de 1988.60
Com a previsão constitucional expressa do princípio da capacidade contribu-
tiva na Carta de 1988, não há mais como justificar o ceticismo formalista da dou-
trina brasileira que, diante das dificuldades em definir um conteúdo substantivo
para a justiça, agarra-se à segurança jurídica com se esta fosse o único valor funda-
mental na ciência do direito.
Como se viu, o princípio da capacidade contributiva constitui-se em uma
decorrência da igualdade,61 na medida em que todos devem contribuir para as des-
pesas públicas, em razão de suas possibilidades econômicas. Assim, de acordo com
esta diretriz, somente são legítimas as distinções que se baseiem na diferença entre
as riquezas que vários contribuintes manifestam.62
Como bem assinala Tipke,63 a igualdade, ao contrário da identidade, é sempre
relativa, pois o que é completamente igual é idêntico. Há que se inquirir em rela-
ção a que as coisas são iguais e, a partir daí, averiguar se as distinções encontradas
justificam, de fato, a atribuição de um tratamento diferenciado pelo legislador tri-
butário. As distinções que devem ser levadas em consideração pela lei são as que se
baseiam numa diferente manifestação de riqueza, salvo se presente outro funda-
mento a se ponderar com a capacidade contributiva, como a extrafiscalidade e a
praticidade administrativa.

58 Constituição Imperial de 1824, art. 179, XV: “Ninguém será exempto de contribuir para as despezas do
Estado em proporção dos seus haveres.”
59 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador, cit., p. 68. BALEEIRO extraía o princípio do art. 153, § 36, da EC nº
1/69, que prescrevia: “A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui
outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.” (Limitações..., cit., p.
687).
60 Constituição Federal de 1988, art. 145, § 1º: “Sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
61 TIPKE, Klaus. “Princípio da Igualdade e a Idéia de Sistema no Direito tributário”. In: Brandão
Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984,
p. 517. No mesmo sentido: LEHNER, Moris. “Considerações Econômicas e Tributação conforme a
Capacidade Contributiva. Sobre a possibilidade de Uma Interpretação Teleológica de Normas com
Finalidades Arrecadatórias.” In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordena-
dores). Direito Tributário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998,
pp. 143-154, p. 151.
62 Não que sejam impossíveis distinções baseadas em outros critérios diversos da capacidade contribu-
tiva, mas são as distinções baseadas na manifestação de riqueza as que se fundamentam no princípio
em estudo.
63 “Princípio da Igualdade...”, cit., p. 519.

17
Ricardo Lodi Ribeiro

Durante muito tempo uma visão exclusivista do princípio da capacidade con-


tributiva, que lhe concebia como uma orientação de caráter absoluto, levou à crise
do princípio diante da ocorrência de alguns fenômenos, como a extrafiscalidade. Os
contornos normalmente fixados pela doutrina para a formulação da capacidade
contributiva, não pareciam suficientes para a explicação do fenômeno da tributa-
ção extrafiscal. Nesse contexto, o princípio em tela reduziu-se à mera proibição do
arbítrio,64 e embora fosse até levado em consideração pelos tribunais, poderia ser
afastado diante de qualquer alegação fundamentada.
No entanto, não é suficiente a simples alusão a um objetivo extrafiscal ou à
praticidade da arrecadação para afastar, como num passe de mágica, a aplicação da
capacidade contributiva. A contradição entre esta e outros valores caros ao direito
é resolvida mediante a ponderação de interesses e a aplicação do princípio da
razoabilidade.
Tais conflitos, como assinala Pedro Herrera Molina, podem se dar entre os pró-
prios elementos integrantes da capacidade contributiva, como, por exemplo, a apli-
cação de uma progressividade que afete o princípio da renda líquida, o que o referi-
do autor denomina de conflito interno; ou entre a capacidade contributiva e outros
princípios jurídicos e objetivos almejados pelo legislador, como a extrafiscalidade e
a praticidade administrativa, configurando os denominados conflitos externos.
Os conflitos internos podem aparecer até mesmo entre o distanciamento da
previsão abstrata da norma que concebia determinado critério de distinção como
relevante, do ponto de vista da manifestação de riqueza, e a sua adequação aos fatos
concretos.65 Exemplo desse conflito se dará na legislação do IPTU progressivo, que
venha a determinar uma diferenciação de alíquotas em razão da localização do
imóvel (art. 156, § 1º, da CF , com redação dada pela EC nº 29/00). Se tal diferen-
ciação se traduzir em uma alíquota majorada para os bairros mais nobres, a aplica-
ção desta alíquota aos imóveis de baixo valor, ainda que localizados nesses bair-
ros,66 revelar-se-á desastrosa à capacidade contributiva. A solução desse conflito,
nesse exemplo, se daria pelo afastamento da progressividade.
Podem, por vezes, esses conflitos internos ser resolvidos por meio de uma hie-
rarquização dos elementos internos da capacidade contributiva. Deste modo, uma
progressividade não poderá dar à tributação um caráter confiscatório, do mesmo
modo que a proporcionalidade não pode atingir o mínimo existencial. Em tais
exemplos fica fácil perceber tal hierarquização, pois tanto a vedação ao confisco

64 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 77.


65 Ibidem, p. 158.
66 Vide o caso das favelas localizadas nos morros da Zona Sul do Município do Rio de Janeiro: se adotado
o regime progressivo em razão da localização do imóvel, de acordo com o bairro, teriam os imóveis ali
localizados uma alíquota maior do que imóveis bem valorizados da Zona Norte da cidade, estabelecen-
do-se uma verdadeira regressividade. Registre-se que, até o momento, o Município do Rio de Janeiro
não adotou a progressividade do IPTU na forma da EC nº 29/00.

18
Temas de Direito Constitucional Tributário

como também a imposição de respeito ao mínimo existencial, constituem limites à


capacidade contributiva. No entanto, no mais das vezes, tais facilidades não se
apresentam na prática, devendo o aplicador resolver o impasse pela ponderação
entre os elementos em jogo no caso concreto.
Os conflitos externos ocorrem entre a capacidade contributiva e outros prin-
cípios e normas do nosso sistema constitucional. A justiça e a igualdade, concreti-
zadas pelo princípio da capacidade contributiva, podem entrar em tensão com o
valor da segurança jurídica e com o princípio da legalidade. A ponderação entre
capacidade contributiva e legalidade, sem que a priori se possa defender a preva-
lência de qualquer delas, não dá margem para que o juiz possa tributar o contri-
buinte apenas com base na capacidade contributiva, sem que haja previsão legal do
tributo. A capacidade contributiva que será tributada estará prevista na lei, em res-
peito à segurança jurídica. Por sua vez, o legislador definirá o fato gerador do tri-
buto de acordo com a capacidade contributiva, e o aplicador do direito irá inter-
pretar a lei de acordo com o referido princípio. As cláusulas antielisivas e a adoção
de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais na definição de fato geradores de
tributos constituem exemplos da tendência à ponderação entre legalidade e capa-
cidade contributiva, pelo próprio legislador, com a primeira cedendo espaço à últi-
ma. Já a vedação ao uso da analogia para a criação de tributo pelo § 1º do art. 108,
do CTN, constitui exemplo de prevalência da segurança jurídica sobre a capacida-
de contributiva.
Os conflitos externos também aparecem no fenômeno da extrafiscalidade,
tensão muitas vezes não compreendida pela doutrina. Muitos autores, ainda hoje,
defendem o afastamento da capacidade contributiva em nome do estabelecimento
de uma política extrafiscal nos campos social, econômico, ambiental, e da saúde por
meio da tributação.67 E foi justamente essa tendência que ocasionou o desprestígio
do princípio da capacidade contributiva nos anos 60 e 70. No entanto, como é quase
consenso na moderna doutrina, não se pode afastar a aplicação da capacidade con-
tributiva diante de um mero objetivo extrafiscal. É preciso, ao contrário, que o
objetivo extrafiscal seja razoável,68 e que prevaleça diante de um juízo de pondera-
ção de valores entre a igualdade e a capacidade contributiva,69 a fim de que não
sejam criados privilégios odiosos sob o pano da extrafiscalidade.70
Em nosso país, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de reconhecer
a necessidade do objetivo extrafiscal ser razoável, não transbordando para o arbí-
trio, no julgamento onde se discutia a constitucionalidade do critério temporal de
distinção, promovida pelo art. 6º, do Decreto-Lei nº 2.434/88, para a concessão de

67 Por todos: CARRERA RAYA. Ob. cit., p. 94.


68 PEREZ ROYO. Ob. cit., p. 37.
69 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p . 100.
70 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 86.

19
Ricardo Lodi Ribeiro

isenção do IOF incidente sobre as operações de câmbio vinculadas às importações


cujas guias tivessem sido expedidas até determinada data.71
De fato, a quebra do tratamento igualitário conferido pelo legislador aos que
revelam a mesma capacidade contributiva só pode se dar em função da finalidade
extrafiscal, como observa Ferreiro Lapatza,72 caso estejam presentes os requisitos
mínimos do referido princípio e quando os fins extrafiscais almejados sejam tam-
bém amparados pela Constituição.
Ainda há que se observar que os fins extrafiscais almejados, num regime fede-
rativo, devem estar inseridos na competência do ente da Federação para promover
aquela política pública, não lhe sendo lícito invadir a esfera de atribuições mate-
riais dos demais entes. Por isso, é inconstitucional a adoção pelos Estados-membros
de alíquotas diferenciadas para o IPVA em função da origem estrangeira do veícu-
lo, uma vez que o objetivo extrafiscal presente no caso – a proteção à indústria
nacional – é matéria da competência da União.
Outra fonte de conflito externo aparece com as normas de simplificação da
legislação tributária, baseadas no interesse da fiscalização em combater a elisão fis-
cal, reduzir os custos da arrecadação e do contribuinte, e simplificar o procedimen-
to de recolhimento, arrecadação e fiscalização dos tributos.
Não se confundindo, modernamente, a justiça tributária com os interesses da
arrecadação, a legitimidade de tais normas dependerá da proporcionalidade dessas
medidas vista sob o ângulo do princípio da capacidade contributiva. No entanto,
pouco adianta uma definição legal que abstratamente seja fiel à capacidade contri-
butiva efetiva, mas que, no entanto, dada a complexidade na apuração da base tri-
butável, seja de difícil controle pela Administração. E diante de tal dificuldade, mui-
tos contribuintes poderão deixar de recolher seus tributos, o que provocará uma
injusta repartição das despesas públicas e uma violação do princípio da isonomia.
A rigor, sendo o princípio da capacidade contributiva uma decorrência do
valor da igualdade, uma norma simplificadora que daquele se afaste em alguns
casos individuais, mas que venha a garantir a prevalência da isonomia (que pode-
ria ser violada pela facilidade no descumprimento da legislação tributária pelos
contribuintes, ou pelo alto custo para a sociedade na adoção de medidas que impe-
çam esse descumprimento), não atenta contra o referido princípio.
É que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o próprio princípio da capacida-
de contributiva é violado se não há possibilidade de se estabelecer mecanismos de
controle do cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes menos
imbuídos do dever de contribuir para as despesas públicas ou quando o alto custo
desses controles é suportado por toda a sociedade.73

71 STF, 1ª Turma, AGRAG nº 142.348-1/MG, rel. Min. Celso de Melo, DJ de 24/03/95, p. 6.807.
72 Curso de Derecho Financiero..., cit., p. 62.
73 Defende Pedro Herrera Molina: “Ahora bien, la ineficácia administrativa lleva consigo uma aplicación
deficiente del sistema fiscal, y ésta supone necesariamente un reparto desigual de las cargas fiscales en

20
Temas de Direito Constitucional Tributário

No entanto, tais medidas simplificadoras não podem descambar para uma tri-
butação que, na maioria dos casos, não reflita a capacidade contributiva de cada um
dos contribuintes, e nem impingir a qualquer deles uma carga tributária radical-
mente distinta da que seria devida caso não houvesse a medida simplificadora.74
Há mais uma vez que se analisar a razoabilidade da medida simplificadora. Em
primeiro lugar, deve-se verificar se a mesma é realmente necessária para assegurar
a manutenção da isonomia tributária no cumprimento das obrigações pelos contri-
buintes, ou se a tributação pela capacidade efetiva já não seria suficiente para atin-
gir esse objetivo.
Quanto à adequação, deve-se perquirir se a medida simplificadora realmente
resulta em vantagens, no que tange à isonomia e à capacidade contributiva, a par-
tir do cumprimento das obrigações tributárias por todos os contribuintes, em rela-
ção à tributação pela riqueza efetiva, considerando que as dificuldades de controle
levariam a uma grande evasão fiscal.
Por fim, num exame de proporcionalidade em sentido estrito, resta verificar
se na maioria dos casos a capacidade contributiva efetiva é atendida pela medida de
simplificação e se nenhum contribuinte será tributado em valor significativamen-
te maior do que o determinado pela capacidade efetiva.75
É preciso ainda estabelecer uma relação de custo/benefício, a fim de evitar que
a tributação pela capacidade efetiva se revele tão cara para o Estado, e em última
análise para o conjunto dos contribuintes, que acabe por comprometer uma sistemá-
tica que pouco irá distinguir-se, em termos quantitativos, do regime simplificado.

4) Conclusão

Ao longo desse estudo procurou-se demonstrar que, nos dias atuais, a consti-
tucionalização do direito tributário, longe de ser garantia pela abundante previsão
de dispositivos legais que contemplem institutos tributários, vai se revelar pelo res-
gate dos princípios ético-jurídicos que informem a relação fisco-contribuinte, em
que o ideal de justiça tributária não se limita a uma mera figura de retórica a ilus-
trar o discurso do legislador constituinte. Ao contrário, a justiça é o valor que, ao
lado da segurança jurídica, deve alicerçar todo o ordenamento jurídico.
Esse ideal de justiça vai se realizar, não pela fixação de regras de ouro, mas por
meio da abertura do direito tributário aos valores e princípios da igualdade, da
capacidade contributiva e da generalidade, a partir de uma interpretação, que longe

beneficio de aquelloe menos honrados o con menos possibilidades de defraudar. A sensu contrario, la
eficacia del control administrativo constituye una condición necessaria (no suficiente) del sistema tri-
butario justo” (Ob. cit., p. 161).
74 Ibidem, p. 162.
75 Ibidem.

21
Ricardo Lodi Ribeiro

de se basear em premissas preestabelecidas, vai dar efetividade a esse arcabouço


axiológico.
Assim, o ideal de justiça fiscal e a efetividade do princípio da capacidade con-
tributiva não vão se revelar apenas pela adequada configuração legal do fato gera-
dor da lei tributária, vista no plano abstrato da norma. Ao contrário, o triunfo de
tais idéias passa necessariamente pelo resgate ético da vida tributária nacional, a
partir de um eficaz combate não só à evasão fiscal, mas principalmente à elisão
desarrazoada, praticada por meio do abuso de direito, em suas mais variadas nuan-
ces. Tal combate pode ser efetivado por meio da atividade hermenêutica, e ainda
da atividade legislativa que promova o fechamento das brechas legais e estabeleça
cláusulas antielisivas.
Cumpre enfatizar que, a despeito da eterna busca pela segurança, a incerteza
causada pelos riscos sociais não se combate pela ilusão de que a norma irá prever
todas as possibilidades que o mundo real pode oferecer. Muito ao contrário. A segu-
rança jurídica não se revela pelo fechamento da linguagem do legislador, com a uti-
lização de tipos fechados ou conceitos classificatórios, que, se já não se mostravam
remédios adequados à primeira modernidade, hoje se revelam absolutamente
incompatíveis com a variedade e imprevisibilidade dos perigos, que caracterizam a
ambivalência da sociedade de risco.
A insegurança gerada pela ambivalência fiscal se combate com um conjunto
de regras jurídicas extraídas de soluções dialogais, e que sejam capazes de preservar
os direitos fundamentais de todos os contribuintes.
No campo fiscal, a segurança jurídica, sob um viés plural, visa a consolidar um
sistema baseado na transparência, que seja apto a dar resposta aos anseios de toda a
sociedade, e não de uma pequena parcela que tem acesso à justiça e ao planejamen-
to fiscal.
A transparência fiscal exige do fisco, por sua vez, medidas moralizadoras de
combate à corrupção, de simplificação da arrecadação tributária e de impessoalida-
de na fiscalização, o que ainda demanda muitos avanços legislativos em nosso país.
Aliás, a única forma, que possa ir além da abstração da norma, de conferir efetivi-
dade à isonomia e capacidade contributiva, é uma administração tributária eficien-
te e que trate a todos da mesma forma.
Por outro lado, os riscos da bancarrota do Estado e do desequilíbrio concor-
rencial entre os agentes econômicos de um mesmo mercado, são combatidos por
uma administração eficiente e por uma legislação que dificulte as iniciativas elisi-
vas por meio da elaboração de regras de incidência que evitem o detalhamento des-
necessário aos objetivos fiscais e extrafiscais da tributação, que só se prestam à fuga
da incidência.76

76 COSTA, Valdés. Instituciones de Derecho Tributário. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 127.

22
Temas de Direito Constitucional Tributário

Nesse sentido, abandonada a ilusão acalentada pelo positivismo formalista, a


norma tributária poderá lançar mão de tipos, que por natureza são necessariamen-
te abertos, e conceitos indeterminados.77 Nestes, a lei não abre espaço para uma
escolha subjetiva do aplicador, muito embora careçam sempre de um preenchi-
mento valorativo. Não é que exista uma única solução legal,78 mas nos conceitos
indeterminados há, como explica Engisch,79 uma valoração objetiva, a partir das
concepções dominantes no corpo social.
No entanto, em nome da legalidade tributária baseada no pluralismo político,
não poderá o legislador tributário utilizar-se de conceitos discricionários, em que o
legislador atribua ao administrador a possibilidade de escolher entre os vários
caminhos a seguir, a partir de uma valoração subjetiva do aplicador do direito, de
acordo com suas convicções pessoais. A discricionariedade confere à autoridade
administrativa o poder de determinar por ela própria, de acordo com o seu modo
de pensar, o fim próprio de sua atuação,80 o que se mostra incompatível com o prin-
cípio da reserva legal tributária.
Na sociedade de riscos aumenta a demanda por mecanismos tributários que,
abandonando o clássico modelo baseado exclusivamente no fato gerador e na capa-
cidade contributiva, como manifestação de riqueza já conhecida (olhar voltado
para o passado), sejam capazes de prevenir e atenuar os riscos futuros. Nesse diapa-
são, a utilização pela lei de conceitos indeterminados e de tipos abertos à comple-
mentação administrativa passa a ter uma relevância ainda maior, a fim de imputar
o ônus fiscal ao agente causador do risco.
Nesse Estado de segurança social, aqueles que causam os riscos são chamados
ao pagamento do tributo, como ocorre, em nosso país, no SAT – Seguro de
Acidentes do Trabalho, na tributação ambiental e nas exações exigidas pelas agên-
cias reguladoras.
Por último, não é demais observar que a mudança do paradigma liberal de
segurança jurídica individual para o modelo de segurança plural da sociedade de
riscos recomenda a releitura de todos os institutos jurídicos baseados na antiga
visão, o que decerto extrapola os limites desse trabalho.

77 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Legalidade Tributária, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e


Cláusulas Gerais”. Revista de Direito Administrativo 229: 313-333, 2002.
78 No sentido do texto, recusando a possibilidade de uma única solução legal, vide ANDRADE, José Vieira
de (O Dever de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos, Coimbra: Almedina, 1992, p. 367).
Contra: GARCÍA DE ENTERRÍA (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo/FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón.
Curso de Derecho Administrativo, vol. I. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 460), defendendo a inexistên-
cia de uma pluralidade de soluções justas em cada caso.
79 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 237.
80 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 216.

23
II
Globalização, Sociedade de Risco e Segurança

Sem adentrar na polêmica sobre modernidade e pós-modernidade,1 que não é


objeto deste estudo, é forçoso reconhecer que vivemos dias que colocam em xeque
todo o ideal iluminista, com a sua certeza de que a humanidade caminha para fren-
te e de que o desenvolvimento tecnológico torna o mundo mais estável e ordena-
do.2 Se por um lado, não há uma ultrapassagem da modernidade3 caracterizada pela

1 O termo pós-modernidade é utilizado pela primeira vez, na Espanha, na década de 1930, por Federico
de Onís para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo na literatura. Como
expressão utilizada para designar uma época, é referida por Toynbee, em 1954, na Inglaterra, aludindo
ao período posterior à Guerra Franco-Prussiana, em tese que acabou caindo no esquecimento. Por isso,
o sentido contemporâneo da pós-modernidade começa a ser cunhado em 1951. O norte-americano
Charles Olson fala de um mundo pós-moderno, posterior à era imperial dos Descobrimentos e da
Revolução Industrial. Contudo, o termo só se consolidou a partir de 1959, quando C. Wright Mills e
Irving Howe o empregaram para designar uma época na qual os ideais do liberalismo e do socialismo
tinham falido. A despeito dessa consolidação paulatina, a noção de pós-modernidade só foi difundida a
partir da década de 1970, com vários pensadores autores como David Antin, Jean-François Lytard e
Jürgen Habermas (ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Trad. Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999, pp. 9-43).
2 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 14.
3 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo – Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Trad. Luiz
Antônio Oliveira Araújo. São Paulo: UNESP, 2002, pp. 19-20: “Primeiramente, seria preciso constatar
que a Pós-Modernidade nos deixa desamparados e sós em face da questão de como analisar a sociedade
pós-moderna. Ela se divorcia da ciência e, com isso, não nos ajuda a desenvolver novos conceitos; pelo
contrário, paralisa a tentativa científica de auto-renovação e de criação de quadros de referência, crité-
rios e instituições adequadas para compreender as mudanças sociais e superá-las politicamente. Além
disso, a palavrinha pós é a bengala de cego dos intelectuais. Estes só perguntam do que não se trata e não
dizem do que se trata. Nós vivemos na era do posismo, do alemismo e do posteriorismo. Tudo é pós, é
além, é posterior. Trata-se de um meio-diagnóstico, que simplesmente constata que já não podemos
empregar os antigos conceitos. Por trás disso se oculta a preguiça e, de certo modo, também a desones-
tidade e a hipocrisia intelectuais, pois a tarefa dos intelectuais é desenvolver conceitos com a ajuda dos
quais seja possível redefinir e reorganizar a sociedade e a política.” Contra, defendendo a superação da
Modernidade e o advento da Pós-Modernidade, por todos: SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de
Alice – O Social e o Político na Pós-Modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005, pp. 102-103: “Afirmar
que o projeto da modernidade se esgotou significa, antes de mais, que se cumpriu em excessos e défices
irreparáveis. São eles que constituem a nossa contemporaneidade e é deles que temos de partir para ima-
ginar o futuro e criar as necessidades cuja satisfação diferente e melhor que o presente. A relação entre
o moderno e o pós-moderno é, pois, uma relação contraditória. Não é ruptura total como querem alguns,
nem de linear continuidade com querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de
ruptura e momentos de continuidade. A combinação específica entre estes pode mesmo variar de perío-
do para período ou de país para país.”

25
Ricardo Lodi Ribeiro

superação das explicações religiosas para o mundo e adoção do racionalismo,4 por


outro, é imperiosa a aceitação de que o advento da sociedade pós-industrial5 e da
Globalização aponta para um esgotamento dos instrumentos para a solução dos
problemas da primeira modernidade.6
Nesse contexto, a Nova Era do misticismo e do fundamentalismo religioso dos
dias atuais, mais que representar uma volta ao passado pré-moderno, ou o advento de
uma etapa posterior à modernidade, se revela como uma reação irracional à ausência
de respostas do paradigma iluminista, baseado na certeza binária da realidade. De
acordo com Karl Popper, o misticismo se explica como expressão do anseio pelo fim
da sociedade fechada e pela reação contra o racionalismo da sociedade aberta.7
Contudo, é inevitável constatar que com a Globalização se mostra rompida
uma das principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaços delimi-
tados pelos Estados Nacionais. Porém, o que pode ser considerado como a decadên-
cia da modernidade, pode também marcar o início de uma segunda modernidade,
desde que sejam superadas as ortodoxias que levaram ao esgotamento da primeira.8
Com a Globalização não há o fim da política, mas seu recomeço. O desmoro-
namento do socialismo real não põe fim à crítica à sociedade industrial capitalista,
mas ao contrário, abre novas perspectivas a partir da autocrítica social.9 Em conse-
qüência, é preciso reinventar a política, a partir de dados extraídos desses novos
tempos. Se por um lado a Globalização econômica leva o comércio à escala inter-
nacional, gerando crescimento do poder das empresas transnacionais em detrimen-
to dos Estados Nacionais10 e dos trabalhadores, de outro o avanço tecnológico e a

4 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da Modernidade Reflexiva”. In: GID-
DENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reim-
pressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 39.
5 Sobre o conceito de sociedade pós-industrial, vide MASI, Domenico de. A Sociedade Pós-Industrial.
Vários Tradutores. 4. ed. São Paulo: Senac, 2003.
6 Ulrich Beck chama de Primeira Modernidade o período que vai do início da revolução industrial, no
século XVII, até o começo do século XX (La Sociedad Del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey.
Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2002, p. 221).
7 POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Tomo I. 3. ed. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1998, pp. 219-220. Para o filósofo liberal, “a sociedade fechada se acha caracterizada pela crença nos
tabus mágicos, enquanto a sociedade aberta é aquela em que os homens aprenderam, até certa extensão, a
ser críticos com relação a esses tabus, baseando suas decisões na autoridade de sua própria inteligência”.
8 BECK, Ulrich. O que é Globalização? – Equívocos do Globalismo, Reposta à Globalização. Trad. André
Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999, pp. 26 e 46.
9 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de
España Editores, 2002, p. 125.
10 Ao mesmo tempo em que a Globalização fragiliza o Estado Nacional, cria as condições para o apareci-
mento de novos deles, a partir do desmembramento das regiões mais ricas, ou ainda da concessão de
maior autonomia aos entes periféricos. Nesse sentido: OFFE, Claus. “A Atual Transição da História e
Algumas Opções Básicas para as Instituições da Sociedade” In: PEREIRA, L. C. Bresser; WILHEIM,
Jorge; e SOLA, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: UNESP, 2001, p. 125: “A
Globalização envolve incentivos para ‘comportamento de bote salva-vidas’ e separação subnacional dos
grupos e regiões (relativamente) mais ricos que, de forma bastante racional do seu ponto de vista, lutam

26
Temas de Direito Constitucional Tributário

revolução nos meios de informação e comunicação universalizam os direitos


humanos e a democracia, despertando a atenção global sobre as questões ambien-
tais, os direitos das minorias, a pobreza mundial. Nesse contexto dialético, onde o
mercado globalizado difunde informação e idéias para todo o mundo, a cultura
local encontra espaços ampliados, sobrevivendo além do seu ambiente original.
Assim, a Globalização cultural não é necessariamente uma via de mão única, uma
vez que a “sociedade mundial não é, portanto, uma megassociedade nacional que
reúne e dissolve todas as sociedades nacionais; representa um horizonte que se
caracteriza pela multiplicidade e pela não-integração”.11 A reinvenção da política
não se caracteriza pelo triunfo do neoliberalismo, mas, ao contrário, pela crítica ao
domínio do plano econômico sobre todos os demais, e ao autoritarismo político a
serviço da lógica do mercado.12
Se o desenvolvimento econômico escapa do controle do Estado Nacional, as
suas conseqüências, como o desemprego, a pobreza, a imigração, a violência urba-
na, têm o seu equacionamento exigido do Estado Social,13 cada vez mais frágil para
atender a essa crescente demanda, o que gera crises políticas que colocam em risco
o futuro da democracia.14
Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar outros
problemas sociais e econômicos. Para se proteger da livre atuação das empresas
transnacionais, garantindo os direitos de seus cidadãos, os Estados Nacionais ado-
tam medidas que acabam por afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desem-
prego e miséria. Por outro lado, o desenvolvimento econômico gerado pelos inves-
timentos dos agentes transnacionais não se apresenta como solução ao crescimen-
to da exclusão social e da concentração de renda.
Como se vê, não estamos diante de uma pós-modernidade, e nem do abandono
dos ideais iluministas, mas das conseqüências da imposição do modelo de moderni-
dade ocidental para todo o mundo,15 gerando efeitos colaterais advindos da ambiva-

para defender, explorar e isolar suas vantagens competitivas locais e regionais, em vez de dividir os avan-
ços com outras (e supostamente mais vulneráveis) unidades do Estado ao qual elas pertencem. Isso tem
se dado preferencialmente por meio de secessão e construção de estados separados, ou então por meio
de amplas formas de autonomia fiscal do conjunto da federação.”
11 BECK, Ulrich. O que é Globalização?..., pp. 31-32.
12 BECK, Ulrich. O que é Globalização?..., p. 225.
13 BECK, Ulrich. O que é Globalização?..., p. 36.
14 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São
Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179.
15 FRANKENBERG, Günther. A Gramática da Constituição e do Direito. Trad. Elisete Antoniuk. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 33-34: “Uma coisa é inequívoca, o capitalismo transnacional e, sob sua
guarita, a civilização ocidental ignoraram, inescrupulosamente, comunidades locais, sentimentos tradi-
cionais e outras instituições, sobretudo de cunho religioso. Sua estratégia de conquista secreta, porque
não abertamente militar, chamada de ‘modernização’ da terra arrasada, ou melhor, das sociedades co-
mercializadas, deixa para trás, na persecução da conquista político-econômica, uma cultura de ressenti-
mento latente que se alimenta de uma mistura brisante de tradicionalismo militar com religião intolerante

27
Ricardo Lodi Ribeiro

lência e imprevisibilidade, caracterizadoras da sociedade de risco. Podemos denomi-


ná-la de modernidade reflexiva, como Ulrich Beck,16 de modernidade ambivalente,
como Zygmunt Bauman17 ou modernidade tardia, como Anthony Giddens.18
A expressão sociedade de risco foi cunhada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck,
em 1986,19 após o acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, para designar os dias
em que vivemos, a partir da constatação de que os perigos hoje enfrentados pela
humanidade são resultado dos efeitos colaterais da própria ação humana, o que
acaba por gerar uma imprevisibilidade quanto às conseqüências das medidas adota-
das, e o enfraquecimento da racionalidade baseada no conhecimento do passado.20

e nacionalismo étnico e que se pode desdobrar em um fogo aberto por qualquer ensejo. Unido à vonta-
de de poder de figuras carismáticas de liderança ou ao desejo de destruição dos Warlords, esse ressenti-
mento implanta-se em organizações terroristas e entrelaçamentos (redes) que querem defender sua
mentira vital, valores supostamente “antigos” e formas de vida fundadas religiosamente, com evidente
brutalidade e até agora, como a Al-Qaeda persistentemente demonstrou colocar em ação com precisão
simbólica cruel, apesar de não haver um motivo obrigatório para declarar o fim da cultura agonal de
conflito e entoar, novamente, um hino à teoria schmittiana da Política”.
16 BECK, Ulrich, “Autodissolução e auto-risco da sociedade industrial: o que significa?” In: GIDDENS,
Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 208.
17 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
18 GIDDENS, Anthony. “Risco, Confiança, Reflexidade”. In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH,
Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 233.
19 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel
Jiménez e María Rosa Borras. Barcelona: Paidós, 1998.
20 Vide crítica de Raffaele de Giorgi à expressão sociedade de risco, onde o autor italiano nega que o risco
seja uma categoria ontológica da sociedade moderna ou uma condição existencial do homem (GIORGI,
Raffaele de. Direito, Democracia e Risco – Vínculos com o Futuro. Vários tradutores. Porto Alegre:
Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, pp. 196-197). Também em sentido crítico à expressão de sociedade
de risco, vide: COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos – Teoria Social, Anti-Racismo, Cosmopolismo. Belo
Horizonte: UFMG, 2006, pp. 58-59: “Não se pode mesmo deixar de partilhar da crítica à periodização da
modernidade proposta por Beck. Não há dúvida de que o autor deixa, em seu roteiro de análise, pelo
menos dois nós mal atados que ricochetearão em suas explanações teóricas subseqüentes. O primeiro
problema está relacionado com a apresentação das diferentes modernidades numa linha cronológica,
como se a sociedade industrial se seguisse inevitavelmente a segunda modernidade; a primeira, coorde-
nada por um padrão de racionalidade simples, a segunda por uma racionalidade reflexiva. O segundo nó
mal atado relaciona-se com a tendência a tomar a sociedade industrial e modernidade simples como a
dimensão empírico-descritiva (o ser) e segunda modernidade e modernidade reflexiva como a dimensão
normativa (o deve ser) da sociedade de risco.” Porém, entendemos que as críticas não afetam a força das
idéias de BECK, mas constituem uma advertência contra o uso acrítico de sua teoria, a partir de uma
perspectiva universal que não considera as realidades díspares no que tange aos vários estágios de desen-
volvimento da modernidade em cada sociedade. Aliás, é o próprio Beck que alerta sobre a existência não
de uma, mas várias modernidades: BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo..., p. 20: “A diferença entre
a Primeira e a Segunda Modernidade – coisa que a própria denominação exprime – pressupõe que exis-
tam ‘as modernidades’, pressupõe uma comunhão de ‘modernidades’ que deve ser determinada, apreen-
dida, desenvolvida, investigada e conquistada transnacionalmente, no confronto das experiências e pro-
jetos da periferia e do centro, asiáticas, africanas, chinesas, sul-americanas e do Atlântico Norte.
Significa, pois, estabelecer uma diferença entre continuidade e ruptura. Em determinados elementos, há
de se pressupor uma continuidade (por exemplo, no significado dos caminhos do desenvolvimento, dos
direitos humanos e civis, assim como dos valores e dos pressupostos da democracia); outros em compen-

28
Temas de Direito Constitucional Tributário

A partir dessa idéia, Beck defende que a produção social de riqueza na moder-
nidade avançada vem acompanhada sistematicamente pela produção social de ris-
cos. Assim, os problemas e conflitos de repartição social de carências são substituí-
dos por problemas e conflitos que surgem da produção, definição e repartição dos
riscos produzidos de maneira tecnocientífica.21
Até o séc. XIX os progressos da ciência faziam com que o homem acreditasse
na possibilidade de se atingir a segurança total, com o desaparecimento da incerte-
za e do risco, evitando-se as catástrofes naturais, com base nos conhecimentos
advindos dos avanços tecnológicos. Hoje, a natureza é percebida como benevolen-
temente protetora, enquanto que a ciência é temida como ameaça maléfica,22 o que
acaba por romper o consenso social sobre o progresso.23 É que com o extraordiná-
rio avanço tecnológico experimentado no século XX, o homem, que nos primórdios
da Era Moderna tentava dominar a natureza, a fim de conter os riscos externos,
passa a sofrer os efeitos de sua ação, com a reação do planeta à intervenção huma-
na. É o que Anthony Giddens24 chama de risco fabricado, que, como bem salienta
Niklas Luhmann,25 não se confunde com o perigo, sempre exterior à ação do
homem. São exemplos ilustrativos dos riscos naturais causados pela ação desorde-
nada da humanidade, além do vazamento da usina nuclear de Chernobyl, o aque-
cimento global, a diminuição da camada de ozônio, o mau da vaca louca, na
Inglaterra, as vicissitudes nas experiências genéticas e a devastação humana provo-
cada pelos tsunamis na Ásia e na África.
Apesar da repercussão recente dessas idéias entre os pensadores modernos, os
riscos não são uma novidade de nossos tempos. A expressão risco surge nos idiomas
espanhol e português nos séculos XVI e XVII para designar os perigos representa-
dos pelo desconhecido a ser encontrado nas grandes navegações por mares nunca
dantes navegados. A precaução do risco nas navegações marítimas pela introdução
dos seguros levou a expressão ao mundo dos negócios, onde foi utilizada para desig-
nar a álea dos contratos bancários e de investimentos, até ser generalizada para
outras situações de incerteza.26 Ao contrário do que ocorria com os riscos naturais
que eram pessoais, nos dias atuais, o risco é global,27 e atingindo as grandes massas

sação, alteram-se fundamentalmente (por exemplo, o nacionalismo metodológico e o domínio do


Ocidente, inclusive as ciências sociais, a serem superados por um ‘cosmopolitismo metodológico’)”.
21 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, p. 25.
22 VEYRET, Yvette. Os Riscos – O Homem como Agressor e Vítima do Meio Ambiente. Trad. Dílson
Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 14-15.
23 PARDO, José Esteve. Técnica, Riesgo y Derecho – Tratamiento del Riesgo Tecnológico en el Derecho
Ambiental. Barcelona: Ariel, 1999, p. 45.
24 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole..., p. 24.
25 LUHMANN, Niklas. Sociologia del Rischio. Trad. Giancarlo Corsi. Milano: Bruno Mondadori, 1996, pp.
31-32, que identifica perigo como derivado do meio ambiente, e risco como fruto da decisão humana.
No mesmo sentido: GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco..., p. 233.
26 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco..., p. 32.
27 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, p. 27.

29
Ricardo Lodi Ribeiro

e, em alguns casos, todos os seres humanos,28 como se dá com o efeito-estufa ou


com uma guerra nuclear.
Da origem da palavra risco é extraída uma característica fundamental que, até
hoje, é válida para a compreensão do fenômeno: a incerteza diante da novidade des-
conhecida e imprevisível. Mas se o risco diante da novidade desconhecida não é
uma exclusividade de nossos dias, devemos observar que hoje os riscos causados pelo
próprio homem são tão ou mais importantes do que aqueles gerados pela natureza.29
Então, o que há de novo não é a incerteza ou o risco. Mas a origem deles, pois a
maioria das incertezas que vivemos hoje foram criadas pelo próprio homem.30
Outra característica peculiar aos nossos tempos reside na imprevisibilidade
desses riscos, o que se explica pelo incomparável avanço científico e tecnológico,
que, embora deixe desconcertadas as pessoas comuns, são planejados pelos especia-
listas. Mas ao mesmo tempo, geram efeitos colaterais que não poderiam ser imagi-
nados sequer pelos idealizadores de tais conquistas.
Essa imprevisibilidade é mais óbvia quando consideramos que os riscos cria-
dos pelo homem nem sempre são fruto de uma ação consciente como os efeitos
devastadores das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Quase
sempre os riscos são frutos de medidas concebidas de acordo com fins que são caros
à Era Moderna, como o desenvolvimento da ciência, o crescimento econômico e a
busca do pleno emprego. No entanto, as medidas adotadas, mesmo quando atingem
os seus esperados objetivos, acabam gerando efeitos colaterais imprevistos.31
Com a expansão da industrialização, os riscos se multiplicaram de forma
nunca antes vista. O desaguadouro desse processo é a conjugação de crescimento
econômico com a necessidade de isolamento dos riscos que ele produz,32 de acor-
do com consensos sobre estratégias gerais de proibição de atividades que, até então,
eram consideradas vantajosas.33
Nesse contexto, diagnostica-se o fenômeno da ambivalência, com a resolução
de determinados problemas gerando outros problemas,34 que muitas vezes causam

28 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991, p. 43.
29 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco..., p. 43.
30 GIDDENS, “Risco, Confiança e Reflexidade”. In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 220.
31 Ulrich Beck chega a falar em Era dos Efeitos Colaterais. (BECK, Ulrich. “Autodissolução e auto-risco da
sociedade industrial: o que significa?” In: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Moder-
nização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 208).
32 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 229.
33 GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y Derechos Fundamentales, p. 192.
34 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 227: “Cada resolução de problema gera novos
problemas. (Somos quase tentados a dizer: o que passa por solução do problema A é a formulação dos
problemas B, C, ... N que precisam ser resolvidos; o conhecimento aumenta durante a resolução de pro-
blemas, mas igualmente a quantidade de problemas.) De fato, é a ação voltada para um propósito que
tem a maior responsabilidade pela geração dos aspectos da condição humana sentidos como desconfor-
táveis, preocupantes e que precisam ser retificados. Perseguindo um remédio específico para uma incon-

30
Temas de Direito Constitucional Tributário

danos que afetam gerações inteiras por muito tempo ou são até mesmo irreversí-
veis.35 A apuração da técnica na sociedade industrial disponibilizou a especializa-
ção para a resolução dos problemas. E quanto mais específico e concentrado se
apresenta, o saber do especialista vai gerando a necessidade de novas especialida-
des para uma problemática que, até então, não era conhecida.36 Tamanha especia-
lização, além de originar a crescente dependência de especialistas, acaba por gerar
efeitos colaterais em outros campos da realidade, que não são dominados pela refe-
rida especialidade, gerando novos problemas, a exigir novas especialidades.37
Nessa lógica ambivalente, cada medida adotada para a solução de problemas
de determinado grupo de pessoas traz em si mesma a criação de problemas para
outro grupo de pessoas.38 Em conseqüência, a liberdade crescente de uns pode
representar, ou até mesmo ser a causa, de uma maior opressão para outros.39
Como corolários do racionalismo característico da modernidade, a inseguran-
ça e o desconforto causados pela ambivalência tinham como resposta as classifica-
ções binárias, tão caras aos juristas seguidores da Jurisprudência dos Conceitos, e
mais tarde, no século XX, aos positivistas normativistas. As classificações binárias
ou duais pareciam conferir segurança em relação à ambigüidade, num verdadeiro
culto à racionalidade.40
No entanto, essa incessante busca pela ausência de incerteza mais correspon-
de a um suporte emocional41 utilizado para aplacar a ansiedade gerada pela ambi-

veniência específica, a ação induzida pelo especialista está fadada a desequilibrar tanto o ambiente sistêmi-
co da ação quanto as relações entre os próprios atores. É o desequilíbrio artificialmente criado que se sente
mais tarde como um ‘problema’ e é visto assim como garantia para a formulação de novos propósitos.”
35 GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y Derechos Fundamentales. Trad. Raúl Sanz Burgos e José Luis
Muñuz de Baena Simon. Madrid: Trotta, 2006, p. 192.
36 FARIA, José Eduardo. “Estado, Sociedade e Direito”. In: FARIA, José Eduardo e KUNTZ, Rolf. Qual o
Futuro dos Direitos? – Estado, Mercado e Justiça na Reestruturação Capitalista. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 61, comentando sobre os efeitos dos avanços científico-tecnológicos: “Afinal, quanto
maior é a velocidade da sua expansão, de aumento da diversidade dos bens e serviços que sua evolução
contínua propicia e do potencial de exploração da natureza, maior é a possibilidade de resultados não
pretendidos e não previstos e maiores são as dúvidas, incertezas, perplexidades e perigos com relação aos
seus efeitos e à gestão de seus desdobramentos, especificamente em matérias relativas ao bem-estar
social e à segurança econômica.”
37 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 229.
38 A própria dinâmica do processo judicial revela essa ambivalência, como observado por Ulrich Beck: “A
ordem judicial não estimula mais a paz social, pois sanciona e legitima as desvantagens juntamente com
as ameaças e assim por diante.” (BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política ...”, p. 29).
39 GIDDENS, “Risco, Confiança e Reflexidade”, p. 223.
40 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 236: “O culto da racionalidade da escolha e da
conduta é em si mesmo uma escolha, uma decisão de dar preferência à ordem sobre a surpresa, à cons-
tância de resultados sobre a sucessão aleatória de perdas e ganhos. Ela repudia a contingência e glorifi-
ca a ausência de ambigüidade. Além disso, apresenta a clareza plena do mundo da vida e uma chance de
ganhos sem o risco de perdas como possibilidade real e um propósito sensato pelo qual lutar. Promete
um mundo livre de incerteza, de tormentos espirituais, de hesitações intelectuais.”
41 GIDDENS compara essa necessidade de proteção contra a ansiedade gerada pela ambigüidade dos tem-
pos modernos ao casulo protetor que os pais oferecem a seus filhos pequenos: “A confiança que a crian-

31
Ricardo Lodi Ribeiro

valência do que uma verdadeira representação da realidade,42 irredutível a essa


lógica dual, mesmo no campo das ciências exatas onde há algumas décadas prepon-
dera a lógica fuzzy.43
Diante da insuficiência dos modelos binários,44 tão caros à primeira moderni-
dade, o desafio na sociedade de risco é conviver com a ambivalência, a partir de
uma atitude calculista em relação às possibilidades de ação,45 e do controle dos ris-
cos pela probabilidade.46 Assim, pelo conhecimento da realidade passada, os agen-
tes sociais assumem os riscos e procuram se precaver em relação à possibilidade de
ocorrência dos perigos previstos por meio do seguro. Com a neutralização ou mini-

ça, em circunstâncias normais, investe nos que cuidam dela – argumento – pode ser vista como espécie
de inoculação emocional contra ansiedades existenciais – uma proteção contra ameaças e perigos futu-
ros que permite que o indivíduo mantenha a esperança e a coragem diante de quaisquer circunstâncias
debilitantes que venha a encontrar mais tarde. A confiança básica é um dispositivo de triagem em rela-
ção a riscos e perigos que cercam a ação e a interação. É o principal suporte emocional de uma carapa-
ça defensiva ou casulo protetor que todos os indivíduos normais carregam como meio de prosseguir com
os assuntos cotidianos” (GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 43). Em sentido mais radical, Jerome Frank, para quem a aspiração à cer-
teza do Direito representa o prolongamento em adultos imaturos da necessidade infantil de buscar segu-
rança na onipotência e infalibilidade do pai. Segundo o autor, típico representante do realismo norte-
americano, a falta de maturidade de determinados homens, seu temor diante da responsabilidade e da
liberdade, lhes faz projetar na lei, assim como na tutela jurisdicional, que encarnam a figura do pai-juiz,
seu alento por redescobrir a segurança paterna perdida. (FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind.
New York-London: Stevens, 6ª reimpressão, 1949, p. 7, apud PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La
Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 62).
42 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 70: “Nenhuma classificação binária pode se
sobrepor inteiramente à experiência contínua e essencialmente não discreta da realidade. A oposição,
nascida do horror a ambigüidade, torna-se a principal fonte de ambivalência.”
43 A Lógica Fuzzy foi criada em 1965 por Lofti Asker Zadeh, e se baseia na teoria dos Conjuntos Fuzzy. De
acordo com a lógica formal aristotélica, uma proposição lógica tem dois extremos: ou “completamente
verdadeiro” ou “completamente falso”. Com a Lógica Fuzzy, uma premissa varia em grau de verdade de
0 a 1, o que leva a ser parcialmente verdadeira ou parcialmente falsa (KOSKO, Bart. Fuzzy Thinking.
New York: Hyperion, 1993, p. 263). A importância da Lógica Fuzzy é encontrada na possibilidade de
inferir conclusões a partir de informações vagas, ambíguas e imprecisas, aproximando os sistemas de
bases da lógica humana, o que a torna extremamente relevante para as ciências humanas, notadamente
a do Direito. Para Marco Aurélio Greco, a lógica Fuzzy melhor explica a realidade, que não mais se
caracteriza pela lógica binária de que ‘algo é’ ou ‘não é’ alguma coisa ao mesmo tempo, mas pela idéia de
que ‘algo é’ E ‘não é’ ao mesmo tempo. (GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura “sui gene-
ris”). São Paulo: Dialética, 2000, p. 40): “O Homem é, por natureza, fuzzy”.
44 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco..., p. 197: “Nessa situação, portanto, a razão clássica,
sustentada pela lógica binária, vai desarmada de encontro ao tempo. Nem a regularidade, nem a calcu-
labilidade podem socorrê-la. A precariedade da razão deve ser assumida como ponto de partida. O risco,
destarte, é uma modalidade secularizada de construção do futuro. Já que a perspectiva de risco torna
plausível pontos de vista diferentes da racionalidade, na condição de que estes sejam capazes de rever os
próprios pressupostos operativos e na condição de que, haja tempo para efetuar esta revisão, esta pers-
pectiva é típica da sociedade moderna.”
45 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade, p. 33.
46 LASH, Scott. “A Reflexividade e seus duplos: Estrutura, Estética, Comunidade”. In: GIDDENS, Anthony,
BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo:
UNESP, 1997, p. 170.

32
Temas de Direito Constitucional Tributário

mização dos riscos, num equilíbrio entre confiança e risco aceitável, atinge-se a
idéia de segurança.47
No entanto, nem sempre é possível eliminar o risco, uma vez que este não se
confunde com o dano, mas com o fim da confiança na segurança,48 o que antecede
ao próprio dano, que muitas vezes acaba por não ocorrer. Assim, os riscos não são
enfermidades a serem evitadas, pois neles residem as oportunidades49 para a evo-
lução na sociedade de risco.
Porém, é preciso promover a sua adequada distribuição e a arquitetura da sua
definição, pois sua percepção quase nunca é imediata para a maioria das pessoas,
uma vez que eles, não raro, se mostram invisíveis. A definição do risco se dá, inicial-
mente, por meio do conhecimento científico. Até bem pouco tempo atrás, o espe-
cialista era aquele que detinha as respostas objetivas, a partir da ciência. Seu posicio-
namento era inquestionável. Contudo, na sociedade de risco, a racionalidade cien-
tífica não pode ser o único elemento dessa definição,50 dada a ambivalência gerado-
ra de efeitos colaterais a contrapor visões e interesses conflitantes na sociedade.
Assim, há uma disputa pública quanto às definições de risco, não só em relação às
conseqüências naturais e tecnológicas destes, mas especialmente sobre os seus efei-
tos secundários nos planos social, econômico e político.51 Portanto, na definição do
risco se rompe o monopólio da racionalidade científica, guardando um significativo
viés político.52 As constatações do risco são uma simbiose entre as ciências naturais
e as ciências do espírito, entre a racionalidade cotidiana e a racionalidade dos espe-
cialistas, entre os interesses e os fatos, a partir de uma colaboração interdisciplinar
dos grupos de cidadãos, empresas, governos, em que os pontos de vista dos diversos

47 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade, p. 43: “Pode-se definir ‘segurança’ como uma
situação na qual um conjunto específico de perigos está neutralizado ou minimizado. A experiência de
segurança baseia-se geralmente num equilíbrio de confiança e risco aceitável”. Tanto em seu sentido fac-
tual quanto em seu sentido experimental, a segurança pode se referir a grandes agregações ou coletivi-
dades de pessoas – até incluir a segurança global – ou de indivíduos.
48 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global, p. 214.
49 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá:
Universidad Externato de Colombia, 1996, p. 530.
50 VEYRET, Yvette e RICHEMOND, Nancy Meschinet de. “Representação, Gestão e Expressão Espacial
do Risco”. In: VEYRET, Yvette (Org.). Os Riscos – O Homem como Agressor e Vítima do Meio
Ambiente. Trad. Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 56-57.
51 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, pp. 28 e 130. VIEILLARD-
BARON, Hervé. “Os Riscos Sociais”. In: VEYRET, Yvette (Org.). Os Riscos – O Homem como Agressor
e Vítima do Meio Ambiente. Trad. Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2007, p. 305: “Tendo
em conta a pluralidade dos atores implicados, a gestão dos riscos não pode ser colocada somente em ter-
mos técnicos ou estritamente securitários. Agora, essa gestão está inscrita na ‘era da negociação’, era que
às vezes qualificamos ingenuamente como ‘nova’, mas que no decorrer da negociação coloca em evidên-
cia oposições manifestas entre interesses particulares, que são substituídos pelas associações com estrei-
ta base local, e interesses gerais, que são defendidos pelo Estado ou pelas grandes associações de utilida-
de pública.”
52 PARDO, José Esteve. Técnica, Riesgo y Derecho..., p. 68: “La opción sobre el tipo y nivel de riesgos que
uma sociedad asume há de ser una decisión política, a través de sus instancias representativas.”

33
Ricardo Lodi Ribeiro

autores e vítimas não podem deixar de ser considerados, numa verdadeira luta de
definições.53 Com isso, abre-se uma pluralidade conflitiva de definições sobre os ris-
cos civilizatórios, numa variedade quase infinita de interpretações individuais,54 a
ensejar a prevalência dos interesses dos grupos de pressão com maior poder econô-
mico, legitimada pela burocratização cevada no autoritarismo científico.55
É que em face da ambivalência da sociedade de risco, a concepção tradicional
de política perde a sua função de coordenação, tornando-se obsoleta, a partir da
transnacionalização da economia e dos problemas ambientais, econômicos, migra-
tórios e relativos à segurança pública. Nesse contexto, o Estado não mais consegue
prevenir os riscos sociais, sem a ajuda dos especialistas,56 sendo obrigado, na elabo-
ração normativa, a se valer de órgãos técnico-administrativos e organizações não-
governamentais, a fim de não ficar refém de interesses privados, sempre tão articu-
lados logística e tecnologicamente.
É importante ressaltar que a ação desses grupos economicamente poderosos em
escala global acaba sendo, em grande medida, facilitada pela lenta adaptação dos
movimentos sociais organizados aos instrumentos de luta da sociedade pós-indus-
trial, onde o conceito de classe,57 utilizado pela sociedade industrial para a divisão
dos direitos sociais, não é suficiente para a divisão dos riscos sociais, a atingir indis-
criminadamente (e em escala global) a todos os indivíduos, inclusive os causadores
da atividade perigosa, naquilo que Beck denominou de efeito bumerangue.
Não se está com isso sustentando uma postura ingênua de acreditar que a
sociedade de risco tenha suprimido a sociedade de classes. Ao contrário, esta resta

53 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, p. 35: “Al ocuparse de los ries-
gos civilizatorios, las ciencias ya han abandonado su fundamento en la lógica experimental y han con-
traído un matrimonio polígamo con la economía, la política y la ética, o más exactamente: viven con
éstas sin haber formalizado el matrimonio.”
54 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, p. 37.
55 FARIA, José Eduardo. “Estado, Sociedade e Direito”, p. 90: “Na medida em que provoca um deslocamen-
to das tradicionais competências do Estado para organizações não-estatais capazes de promover a arbi-
tragem em temas de alta complexidade técnica, forma encontrada pelo legislador para forjar consensos
e/ou tentar neutralizar o inevitável desgaste político de decisões jurídicas tecnicamente equivocadas do
ponto de vista material e com efeitos morais, sociais, econômicos e ambientais desastrosos, o problema
da abertura do processo de elaboração legislativa aos saberes especializados e a determinados setores da
sociedade está na sua ambigüidade. Em princípio, ela pode levar a um aprofundamento do regime demo-
crático, uma vez que aumenta os mecanismos participativos, alarga o alcance dos procedimentos consul-
tivos e amplia o escopo dos procedimentos deliberativos, permitindo assim maior envolvimento públi-
co na tomada de decisões vitais para a comunidade e, com isso, abrindo caminho para formas mais avan-
çadas de cidadania. Mas, por outro lado, encerra o risco de sua ‘captura’ pelos setores sociais, econômi-
cos e políticos interessados, que tendem a dispor e amplo controle da produção e circulação das infor-
mações específicas às suas respectivas áreas e campos de atuação, podendo assim resultar no retorno a
velhas práticas decisórias de natureza corporativa ou, então, numa autoprodução do direito em circuito
fechado e imune a controles externos.”
56 FRANKENBERG, Günther. A Gramática da Constituição e do Direito, pp. 27-29.
57 Para Beck, o consumidor começa a substituir, em certa medida, o trabalhador como elemento de pres-
são social (BECK, Ulrich. O que é Globalização?..., p. 46).

34
Temas de Direito Constitucional Tributário

fortalecida, com a concentração da riqueza na parte mais alta da sociedade e dos


riscos na parte baixa, já que os ricos acabam por poder “comprar” segurança. É o
que ocorre com o caso do aquecimento global causado pela emissão de gases, espe-
cialmente pelos países mais industrializados, e que, de acordo com o II Relatório
Mundial do Clima, divulgado em abril de 2007 pelo Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas, provocará danos bem mais graves
na África, Ásia e América do Sul, do que na América do Norte, Europa e Oceania.58
Todavia, é forçoso reconhecer que na sociedade de risco, notadamente nos
países mais desenvolvidos, a utopia da igualdade, tão cara à sociedade industrial,
tem sido muitas vezes substituída pela utopia da segurança. A solidariedade
advém do medo e se transforma em nova força política, com a substituição da
expressão “tenho fome”, que a caracterizou sociedade industrial, pelo grito
“tenho medo”.59 Esse fenômeno explica o crescimento da extrema-direita, do
racismo e da xenofobia nos países europeus e nos Estados Unidos, e constitui
ameaça ao Estado de Direito, a partir do impulso em reorganizar o poder e as
competências para o seu exercício, onde o estado de exceção ameaça em conver-
ter-se em estado de normalidade.60
Porém, como não é difícil perceber pelo exame da história recente da
humanidade, o comprometimento da democracia a partir do reforço da seguran-
ça e do controle não passa de pretexto para a concentração de poder pelos gover-
nantes e a satisfação ilusória da necessidade de um conforto emocional para os
governados,61 dada à inocuidade da utilização dos mecanismos típicos da socie-
dade industrial nos dias atuais, por só combaterem os sintomas e não as causas
da insegurança.62
As soluções baseadas no controle e no excesso de segurança são inócuas por
partirem da lógica própria da primeira modernidade, que buscava a proteção quan-
to aos riscos em experiências vividas no passado, acabando por gerar mais insegu-
rança.63 Contudo, na sociedade de risco o passado perde sua força para a explicação
do presente,64 em virtude da imprevisibilidade dos perigos sociais e da ambivalên-

58 Jornal O GLOBO de 7 de abril de 2007, p. 26.


59 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, pp. 28, 41, 43, 55-56.
60 AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 19.
61 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999,
p. 56: “os governos não podem honestamente prometer aos cidadãos uma existência segura e um futuro
garantido, mas podem, por ora, pelo menos eliminar parte da carga de ansiedade acumulada (e até lucrar
com isso do ponto de vista eleitoral) demonstrando energia e determinação na guerra contra os estran-
geiros à cata de emprego e outros alienígenas arrombadores de portões, intrusos que invadem os quin-
tais nativos outrora limpos, tranqüilos, ordeiros, familiares.”
62 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global, p. 135.
63 TORRES, Ricardo Lobo. “A Segurança Jurídica e as Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”. In:
FERRAZ, Roberto (Coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 436.
64 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global, p. 118.

35
Ricardo Lodi Ribeiro

cia inerente às medidas de proteção. Deste modo, os novos perigos globalizados


destroem os pilares do cálculo convencional de segurança.
A impossibilidade de explicar o presente com base no passado deriva da velo-
cidade em que muda a forma de agir das pessoas, mais rápida do que o necessário
para a sua consolidação em hábitos e rotinas. É o que Bauman chama de vida líqui-
da, característica da sociedade líquido-moderna, em que as estratégias para a solu-
ção dos problemas tornam-se obsoletas antes que possam ser apreendidas pelos seus
agentes.65 Assim, o ideário do controle do pensamento social e da ação política pelo
reforço da segurança, característico da primeira modernidade, está se tornando fic-
tício na sociedade de risco, pois quanto mais tentamos colonizar o futuro, mais ele
escapa ao nosso controle.66
Não se está com isso embarcando na onda da pós-modernidade conservadora
que tende a considerar a segurança como inútil ou inalcançável. Mas de reconhe-
cer que a recuperação da herança emancipatória da modernidade, ainda não reali-
zada plenamente, leva implicitamente à revalorização da segurança como condição
da existência coletiva,67 capaz de adequá-la aos nossos desafios.
Com o pluralismo jurídico e a policentralidade do poder impostos pela Globa-
lização, o que acaba por promover a flexibilização da soberania do Estado-Nação,
os sistemas políticos e normativos baseados nos postulados deste encontram gran-
des dificuldades de atingir seus objetivos.68 Nesse contexto de crise da soberania do
Estado Nacional, a Constituição deixa de ser reconhecida como uma norma funda-

65 BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007,
pp. 7-8: “Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em pos-
ses permanentes, porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacida-
des, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tor-
nam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. Por essa razão, apren-
der com a experiência a fim de se basear em estratégias e movimentos táticos empregados com sucesso
no passado é pouco recomendável: testes anteriores não podem dar conta das rápidas e quase sempre
imprevistas (talvez imprevisíveis) mudanças de circunstâncias. Prever tendências futuras a partir de
eventos passados torna-se cada dia mais arriscado e, freqüentemente, enganoso. É cada vez mais difícil
fazer cálculos exatos, uma vez que os prognósticos seguros são inimagináveis: a maioria das variáveis das
equações (se não todas) é desconhecida, e nenhuma estimativa de suas possíveis tendências pode ser con-
siderada plena e verdadeiramente confiável. Em suma: a Vida Líquida é uma vida precária, vivida em
condições de incerteza constante”.
66 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global, p. 221.
67 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica, p. 23.
68 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 14-15: “E
quanto mais veloz e acentuada é essa Globalização, dando origem a situações em que a idéia de um sis-
tema econômico nacional auto-sustentado passa a ser visto como anacronismo, mais ela exerce um pro-
fundo impacto transformador nos sistemas políticos e normativos forjados em torno de determinados
postulados (como o do monopólio do exercício legítimo da violência pelo Estado) e determinados prin-
cípios (como os da legalidade, da hierarquia das leis e da segurança do direito), levando seu poder de
controle, decisão, direção e comando a ser crescentemente pressionado, condicionado e atravessado por
uma pletora de entidades multilaterais, organizações transnacionais, grupos nacionais de pressão, insti-
tuições financeiras internacionais, corporações empresariais multinacionais etc.”

36
Temas de Direito Constitucional Tributário

mental69 e centro emanador de regras de todo o ordenamento jurídico e se conver-


te em um centro de convergência de valores e princípios.70
Por isso, é imperiosa a busca de uma nova idéia de segurança jurídica, uma vez
que na sociedade de risco, a certeza e a segurança não podem mais ser garantidas
de forma absoluta no futuro, sendo relativas até mesmo em relação ao passado.71 Se
no Estado Liberal o seguro era limitado à segurança dos negócios privados, no
Estado Social evolui para a idéia de seguridade social, a prevenir os riscos advindos
da doença, da velhice, do desemprego etc. Em qualquer desses cenários, o papel do
segurador, seja a empresa seguradora a proteger os negócios privados, seja o
Welfare State a tutelar os cidadãos em relação às misérias sociais, é o de redistri-
buir os riscos entre os integrantes do sistema. Assim, enquanto a empresa segura-
dora vai, a partir do cálculo de probabilidade de sinistro, distribuir o custo das in-
denizações pelos seus clientes, o Estado irá distribuir o custo das prestações sociais
pelos contribuintes.72
O mesmo fenômeno ocorre em relação aos efeitos colaterais advindos da
ambivalência da sociedade de risco, em que uma medida necessária para a coletivi-
dade acaba por gerar prejuízos a um determinado grupo.73 Se na sociedade indus-

69 Para Kelsen, a norma fundamental é “o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem
jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como
de seu sentido objetivo” (KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte, Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 329).
70 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada, pp. 34-35, que defende um papel constitu-
cional na convergência de valores e princípios “em cujo âmbito teriam caráter absoluto apenas duas exi-
gências constitucionais: do ponto de vista substantivo, os direitos fundamentais da cidadania e a manu-
tenção do pluralismo axiológico, mediante a adoção de mecanismos neutralizadores de soluções unifor-
mizantes e medidas capazes de bloquear a liberdade e instaurar uma sociedade amorfa e indiferenciada;
do ponto de vista procedimental, as garantias para que o jogo político ocorra dentro da lei, isto é, de
regras jurídicas estáveis, claras e acatadas por todos os atores”.
71 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 58-59: “Segurança e
certeza, portanto, só existem em relação ao passado porque este já aconteceu; mas não existem seguran-
ça e certeza absolutas para o futuro. A idéia de segurança e certeza para o futuro vinha de uma concep-
ção de ciência objetiva que se apoiava numa idéia que via o mundo como algo estático e determinista.
Esta idéia de segurança e certeza,que vinha de uma ciência e de uma filosofia deterministas, foi desmen-
tida pela realidade porque o mundo está em mutação e a existência de sistemas longe do equilíbrio é algo
sempre possível de ocorrer. (...) Em suma, certeza e segurança não temos para o futuro porque só pode-
mos fazer previsões; e, para o passado, elas também são relativas porque vão depender dos documentos
que tivermos e da interpretação que deles fizermos.”
72 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole..., p. 35: “O welfare state, cujo desenvolvimento pode ser
retraçado até as leis de assistência social elisabetanas na Inglaterra, é essencialmente um sistema de
administração de risco. Destina-se a proteger contra os infortúnios que antes eram tratados como desíg-
nio dos deuses – doença, invalidez, perda do emprego e velhice”. (...) “Os que fornecem seguro, seja na
forma do seguro privado ou dos sistemas estatais de seguridade, essencialmente estão apenas redistri-
buindo risco.”
73 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política...”, p. 42: “Na sociedade de risco, as novas vias expressas, ins-
talações de incineração de lixo, indústrias químicas, nucleares ou biotécnicas, e os institutos de pesqui-
sa encontram resistência dos grupos populacionais imediatamente afetados. É isso, e não (como no iní-
cio da industrialização) o júbilo diante deste progresso, que se torna previsível. Administrações de todos

37
Ricardo Lodi Ribeiro

trial a discussão fundamental era como repartir a riqueza, na sociedade de risco o


problema passa a ser como evitar, minimizar e repartir os riscos, num mundo onde
a figura dos efeitos secundários ocupa lugar de destaque.74
Da incessante busca de novos instrumentos de luta contra a ambivalência, em
um ambiente em que o oferecimento de segurança torna-se tão importante quanto
à garantia do bem-estar,75 o Estado é obrigado a distribuir não apenas benefícios,
mas também os males sociais,76 a partir da análise do custo-benefício77 e da nego-
ciação entre os integrantes da sociedade,78 possibilitada pelo pluralismo político79
e conduzida com base no princípio da transparência.80
Em conseqüência, a idéia de segurança jurídica ganha uma nova dimensão,
superando o modelo do Estado Liberal, onde representou a proteção do cidadão
contra o poder do Estado, com a idéia de segurança jurídica, e do Estado Social, em
que, na eterna busca da Justiça Social, ganhou a feição de seguridade social. No

os níveis vêem-se em confronto com o fato de que o que planejam ser um benefício para todos é perce-
bido como uma praga por alguns e sofre a sua oposição. Por isso, tanto eles quanto os especialistas em
instalações industriais e os institutos de pesquisa perderam sua orientação. Estão convencidos de que ela-
boraram esses planos ‘racionalmente’, com o máximo do seu conhecimento e de suas habilidades, con-
siderando o ‘bem público’. Nisso, no entanto, eles descuram a ambivalência envolvida. Lutam contra a
ambivalência com os velhos meios da não-ambigüidade.”
74 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad, pp. 25-26.
75 GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y Derechos Fundamentales, p. 191.
76 PARDO, José Esteve. Técnica, Riesgo y Derecho..., p. 58. No mesmo sentido: GIORGI, Raffaele de.
Direito, Democracia e Risco..., p. 198: “O risco é modalidade de distribuição dos bads e não dos goods.
O risco baseia-se na suportabilidade, na aceitação e não na certeza das próprias expectativas: por isso, os
riscos não podem ser transformados em direito, ainda, que possam ser monetarizados. O risco sobrecar-
rega o direito: trata-se, no entanto, de estratégias de retardamento do risco, não de estratégias que evi-
tam o risco. O sistema mais diretamente interessado é a economia: isto ocorre seja porque os riscos
podem ser monetarizados, seja porque as possibilidades de dúvida são infinitas.”
77 SUSTEIN, Cass R. Risk and Reason – Safety, Law and the Environment. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, pp. 7-8: “A deliberative Democracy does not simply respond to people’s fears,
whether or not those fears are well-founded. Indeed, participants in a deliberative Democracy are alert
to the fact that people might be frightened of risk that are actually quite small and different to risks that
are extremely serious. In these circumstances, a quantitative analysis of risks, to the extent that it is pos-
sible, is indispensable to a genuinely deliberative Democracy. Deliberative democrats also know that
‘costs’ are no mere abstraction. When the costs of regulation are high, real people will be hurt, through
increased prices, decreased wages, and even greater unemployment. The key point is that the cost
should be placed ‘on-screen’, so that if they are to be incurred, it is with knowledge and approval rather
than ignorance and wishful thinking. An understanding of costs, no less than an understanding of bene-
fits, is crucial to democratic deliberation”.
78 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política...”, p. 43.
79 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência, p. 60: “Só o pluralismo devolve a responsabilidade
moral da ação a seu natural portador: o indivíduo que age.”
80 TORRES, Ricardo Lobo. “O Princípio da Transparência no Direito Financeiro”, Revista de Direito da
Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2001, p. 136: “A transparência é o melhor princípio para a superação das ambivalências da Sociedade de
risco. Só quando se desvenda o mecanismo do risco, pelo conhecimento de suas causas e de seus efeitos,
é que se supera a insegurança.”

38
Temas de Direito Constitucional Tributário

Estado Social e Democrático de Direito, marcado pela sociedade de risco, a segu-


rança se traduz em seguro social.81
Nessa transição, que ainda não restou totalmente concluída nos dias atuais, a
idéia de liberdade, que desde a Revolução Francesa se baseia na segurança do indiví-
duo contra o poder do Estado, ganha uma dimensão plural com a garantia da liber-
dade em relação ao outro.82 É por isso que Erhard Denninger83 defende a superação
do lema revolucionário de 1789, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, pela tríade
Segurança, Diversidade e Solidariedade.84 Segundo o autor alemão, a Liberdade, de
feição individual, passa a ser fundada na atividade estatal destinada a proteger os
cidadãos contra os riscos sociais.85 A Igualdade dá lugar à Diversidade, com o reco-
nhecimento e a consideração das necessidades especiais de cada respectivo grupo,
responsável por definir as suas próprias necessidades. Com cada um dos grupos acen-
tuando alguns aspectos de uma compreensão do que seria o bem comum, obtém-se
uma síntese que produz uma concepção pluralista do bem comum.86 A Fraternidade,

81 TORRES, Ricardo Lobo. “O Princípio da Transparência no Direito Financeiro”, p. 136: “Os riscos e a inse-
gurança da sociedade hodierna não podem ser eliminados, mas devem ser aliviados por mecanismos de
segurança social, econômica e ambiental. A solidariedade social e a solidariedade do grupo passam a fun-
damentar as exações necessárias ao financiamento das garantias da segurança social”. Sobre a idéia do segu-
ro social como fundamento do sistema tributário, vide DWORKIN, Ronald Is Democracy Possible Here?
– Principles for a New Political Debate. Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 116: “We can
design a tax system to correct that unacceptable source of inequality by imagining what the total premium
cost would be if everyone in the community bought that level of insurance and then by fixing aggregate
annual taxes to provide a sum equal to that aggregate hypothetical insurance premium. By hypothesis, the
aggregate premium would produce enough revenue that the community could then provide compensa-
tion to those with bad luck in the amount they would have been entitled to have if everyone had bought
insurance at that level. That compensation might take the shape of direct transfers – for medical cost reim-
bursements or unemployment compensation, for instance – or public spending to provide the benefits
such people would have insured to have through a single-payer health care system, for example.”
82 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – Estudos de Teoria Política. Trad. George Sperber, Paulo
Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2002, p. 170.
83 DENNINGER, Erhard. “Segurança, Diversidade e Solidariedade ao invés de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos 88: 21-45, 2003.
84 A nova tríade recebe a crítica de Habermas, para quem a proposta de Denninger não supera a tríade tra-
dicional, mas apenas torna explícito o que é inerente a esta nas circunstâncias atuais. (HABERMAS,
Jürgen, “Remarks on Erhard Denninger’s triad of diversity, security and solidarity”. In: Constellations,
v. 7, n.4, Oxford: Blackwell Publishers Ltd., 2000, p. 524). Por sua vez, a proposta também é rechaçada
por Michel Rosenfeld, que preconiza que a tese seria fortemente refutada nos EUA, uma vez que a dou-
trina americana demonstra-se muito vinculada ao individualismo liberal lockeano (ROSENFELD,
Michel. “O Constitucionalismo Americano Confronta o Novo Paradigma Constitucional de Denninger”.
In: Revista Brasileira de Estudos Político 88: 47-79, 2003), muito embora, reconheça o autor americano,
em outra obra (ROSENFELD, A identidade do Sujeito Constitucional. Trad. Menelick de Carvalho
Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, pp. 29-30), que o constitucionalismo moderno não pode
evitar o outro como conseqüência do pluralismo que lhe é inerente.
85 DENNINGER, Erhard. “Segurança, Diversidade e Solidariedade...”, p. 37: “Segurança não significa mais,
antes de tudo, a certeza da liberdade do cidadão individual, mas sim o prospecto da atividade ilimitada
e infindável patrocinada pelo Estado em favor da proteção dos cidadãos contra perigos sociais, técnicos
e ambientais, bem como contra os perigos da criminalidade.”
86 DENNINGER, Erhard. “Segurança, Diversidade e Solidariedade...”, p. 32.

39
Ricardo Lodi Ribeiro

que pressupõe a identificação com um grupo particular, é superada pela


Solidariedade, que significa um vínculo de sentimento que independe de limites
substantivos ou pessoais, se dirigindo ao ser humano, independentemente de quem
seja.87 De acordo com esses novos paradigmas, a tolerância com o outro, como afir-
ma Kaufmann, constitui uma das principais virtudes da sociedade de risco.88
Fazendo coro com Denninger, Günther Frankenberg sustenta que, embora a
tríade de 1789 ainda não possa ser superada, deve ser adaptada à ambivalência da
sociedade de risco, a partir de uma gramática normativa complexa que compreen-
da diferença, assistência, solidariedade, empatia, auto-responsabilidade pelas bases
naturais da vida, pela próxima geração, pelos ainda não nascidos etc.89
Para Peter Häberle,90 que sustenta a atualidade da tríade de 1789, a liberdade
é atualmente representada pelo princípio da irrenunciabilidade do passado, com a
preservação do conteúdo do art. 16 da Declaração de Direitos do Homem de 1789:
separação de poderes e direitos humanos, e implicitamente, a primazia da
Constituição; a igualdade pelo princípio da esperança, traduzido na idéia de socie-
dade aberta de Karl Popper, consagrando os direitos individuais e coletivos; e a fra-
ternidade, segundo ainda o constitucionalista alemão, seria hoje identificada com o
princípio da responsabilidade, de Hans Jonas,91 baseado no compromisso das gera-
ções atuais com as futuras gerações, sobretudo em matéria de seguridade social.
A partir dessa nova dimensão da segurança, o Estado garante proteção aos cida-
dãos contra os riscos sociais, a partir de “uma nova comunhão de responsabilidade
entre o cidadão e o Estado, ou uma nova comunhão de riscos e chances”.92 Por esta

87 DENNINGER, Erhard. “Segurança, Diversidade e Solidariedade...”, p. 35: “A solidariedade não conhece


limites substantivos ou pessoais; ela engloba o mundo e se refere à humanidade. Ela reconhece o outro não
apenas como um ‘camarada’ ou como membro de um particular ‘nós-grupo’, mas antes como um ‘Outro’,
até mesmo um ‘Estranho’. Isso distingue a solidariedade da ‘fraternidade’, que enfatiza o sentimento”.
88 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 516.
89 FRANKENBERG, Günther. A Gramática da Constituição e do Direito, pp. 29-30.
90 HÄBERLE, Peter. Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 como Historia, Actualidad y Futuro del Estado
Constitucional. Trad. Ignácio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Trotta, 1998, pp. 87-90.
91 JONAS, Hans. O Princípio da Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica.
Trad. Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, pp. 89-90: “Já existe na
moral tradicional um caso de responsabilidade e obrigação elementar não recíproca (que comove pro-
fundamente o simples espectador) e que é reconhecido e praticado espontaneamente: a responsabilida-
de para com os filhos, que sucumbiriam se a procriação não prosseguisse por meio da precaução e da
assistência. (...) É um dever desse tipo que se trata, no caso da responsabilidade em relação à humanida-
de futura. Em primeiro lugar, isso significa um dever para com a existência da humanidade futura, inde-
pendentemente do fato de que nossos descendentes diretos estejam entre ela; em segundo lugar, um
dever em relação ao seu modo de ser, à sua condição.”
92 SILVA NETO, Francisco e IORIO FILHO, Rafael M. “A Nova Tríade Constitucional de Erhard
Denninger”. In: DUARTE, Fernanda e VIEIRA, José Ribas (org.), Teoria da Mudança Constitucional –
Sua Trajetória nos Estados Unidos e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 282: “Esta diferença se
traduz na figura de um cidadão ativo no processo de decisão política e administrativa e na sua vigilân-
cia e responsabilidade na co-participação da efetiva proteção e tutela dos princípios basilares do ordena-
mento jurídico e dos princípios invioláveis da pessoa.”

40
Temas de Direito Constitucional Tributário

perspectiva, a idéia de segurança se desamarra da mordaça individualista liberal, bem


como dos excessos sociológicos da Jurisprudência dos Interesses, para atingir uma
dimensão valorativa que vai atuar na legitimação de todos os direitos do cidadão, não
mais como um apanágio da defesa do indivíduo contra um poderoso Estado-Nação,
que, cada vez mais, vai perdendo importância como fonte de poder no mundo globa-
lizado, mas sim um mecanismo de garantia aos direitos fundamentais de todos. Nesse
sentido, o poder deixa de ser um obstáculo à liberdade, passando a ser o seu próprio
veículo, a partir da capacidade de obter resultados,93 pois não tendo se concretizado
a expectativa de que a sociedade estaria habilitada, a partir de si mesma, a conferir
bem-estar social e justiça, estas passam a depender da atuação estatal.94
Como destaca Perez Luño, nos dias atuais, a segurança dos direitos do cidadão
é muito mais ameaçada pela falta de resposta do Estado aos seus misteres sociais do
que pela sua hipertrofia, como ocorria antes do advento do Estado Social.95 A inse-
gurança social gerada pela ausência de cumprimento das prestações estatais vincu-
ladas ao mínimo existencial é permanente motivo de crise que põe em risco o pró-
prio regime democrático.96 Nesse sentido, “a liberdade individual só pode ser pro-
duto do trabalho coletivo”,97 sendo a atuação do Estado indispensável para garan-
tir o mínimo existencial, a fim de proteger a massa de excluídos.98
Deste modo, a conscientização da insegurança inerente à sociedade de risco, fun-
dada na auto-reflexão sobre os perigos da modernidade industrial desenvolvida,99 é
uma oportunidade de superação dos modelos do individualismo liberal e excludente,
para que seja encontrada mais igualdade, mais liberdade e mais capacidade de auto-
construção, a permitir que sejam afastados as limitações e imperativos funcionalistas
do fatalismo do progresso da sociedade industrial,100 e que sejam abertos os caminhos
para a construção de um modelo de segurança plural, que atenda aos interesses de
todos os segmentos da sociedade.

93 GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. Trad. Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, pp. 302-303.
94 GRIMM, Dieter. Constituição e Política, p. 64: “o bem comum não mais pode ser aspirado apenas por
limitação do Estado, mas exige também ativação estatal.”
95 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica, p. 22.
96 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente..., p. 179: “A nova geopolítica
monetária e a concentração de decisão sobre investimentos, segundo Fiori, torna a sua capacidade de
retaliação econômica o fundamento último da soberania no que diz respeito às políticas econômicas dos
Estados periféricos. Isto gera, no médio e no longo prazos, a deslegitimação democrática, o esfacelamen-
to do Estado e formas cada vez mais sofisticadas de autoritarismo. Com a Globalização, a instabilidade
econômica aumentou e o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises econômicas passou a ser
mais utilizado, com a permanência do estado de emergência econômico.”
97 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política, p. 15.
98 PIRES, Adilson Rodrigues. “O Processo de Inclusão Social sob a Ótica do Direito Tributário”. In: PIRES,
Adilson Rodrigues e TÔRRES, Heleno Taveira. Princípios de Direito Financeiro e Tributário – Estudos
em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 95.
99 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo Global, p. 127.
100 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia uma nueva modernidad, p. 287.

41
III
A Segurança dos Direitos Fundamentais
do Contribuinte na Sociedade de Risco
Sumário: 1) Introdução: O Processo Histórico e a Segurança Jurídica. 2) A Sociedade de
Risco. 3) Direitos dos Contribuintes, Ambivalência Fiscal e Legalidade. 4) Conclusão: A
Segurança Jurídica Plural e suas Conseqüências no Direito Tributário.

1) Introdução: O Processo Histórico e a Segurança Jurídica

O valor da segurança jurídica em matéria tributária tem sido, tradicionalmen-


te, associado à proteção do direito do contribuinte contra o exercício do poder de
tributar do Estado.1 Essa visão é fruto do momento histórico em que surge a moder-
na tributação2 na passagem do Estado Feudal para o Estado Nacional. Documento
ilustrativo desse momento histórico é a Magna Charta, de 1215, em que os barões
ingleses obrigam o Rei João Sem Terra a aceitar a prévia autorização do Commune
Consilium Regis, gérmen do parlamento inglês, para a imposição de tributos. A
despeito de se traduzir numa afirmação oligarca da nobreza sobre o rei, no doloro-
so processo de transição descentralizadora do regime feudal para a formação do
Estado Nacional, a declaração coroou historicamente a luta dos contribuintes con-
tra o arbítrio do poder de tributar estatal, muito antes, historicamente, da consoli-
dação do princípio da legalidade como decorrência da soberania popular, o que só
ocorreu após a Revolução Francesa.
Com a crise do feudalismo e a conseqüente consolidação do poder absoluto do
rei, por ocasião da formação do Estado-Nação, a segurança irá deitar raízes na pro-
teção que o soberano oferece aos cidadãos, que abandonam a liberdade encontrada
no estado natural, onde estariam em permanente guerra, para encontrar a paz sob
a proteção estatal.3

1 Entre a escassa bibliografia que examina especificamente a segurança jurídica no direito tributário des-
tacamos: GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica em Materia Tributaria. Barcelona:
Marcial Pons, 2000, CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente –
A Partir del Principio de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, e NOVELLI, Flávio
Bauer. “Segurança dos Direitos Individuais e Tributação”, Revista de Direito Tributário 25-26, pp. 159-
175, 1983.
2 TORRES, Ricardo Lobo. A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 1. De acordo com o referido autor, não há que se falar em tributo antes do Estado
Moderno.
3 HOBBES, Thomas. Leviatã ou A Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. Regina
D’Angina. 2. ed., São Paulo: Ícone, 2003, p. 123.

43
Ricardo Lodi Ribeiro

É na obra de Thomas Hobbes que iremos encontrar a primeira teoria do Esta-


do moderno, advinda da superação do pluralismo jurídico peculiar à Idade Média,4
e servindo como alicerce do positivismo jurídico, revelado na concentração do
poder normativo no Estado Nacional.5
Se, num primeiro momento, o absolutismo serviu aos interesses da burguesia
em ascensão, uma vez que atendia à sua necessidade de segurança e previsibilida-
de conferida pelo Estado, aos poucos, essa aliança estratégica com a realeza, na luta
contra os privilégios da nobreza, vai se esmaecendo pela busca da construção do seu
próprio modelo de mundo, encontrando nas idéias de Locke a consagração da pro-
priedade e da liberdade individual, arcabouços do Estado Liberal.6
A luta pela liberdade dos modernos, como consagração dos ideais do indivi-
dualismo burguês, coloca em primeiro plano o jusnaturalismo, com a tese de limi-
tação do poder do estatal, a partir dos direitos naturais como um referencial exter-
no ao exercício do poder político, desaguando na gênese do constitucionalismo
moderno.7
É nesse ambiente histórico, de lutas da burguesia revolucionária contra o
poder real e os privilégios da nobreza e do clero, que as idéias iluministas de
Rousseau, Montesquieu e Voltaire incendeiam as nações européias e as colônias
inglesas na América do Norte, com a ruptura da tradição e da visão teocrática do
mundo.
A obra de Rousseau8 se de um lado resgata a visão de segurança de Hobbes, a
partir da proteção do indivíduo pelo Estado, superando o individualismo de Locke,
de outro apresenta um viés bem mais democrático, com o princípio da legalidade
se vinculando à autonomia do cidadão e à soberania popular, com prevalência da
vontade da maioria sobre os direitos naturais tão caros aos liberais.9
Assim, abre-se o grande debate político-constitucional que caracterizou a dis-
cussão sobre segurança na Era Moderna. De um lado o liberalismo de Locke, fun-
dado no individualismo e nos direitos naturais que antecedem ao próprio Estado,

4 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregório. Curso de Derechos Fundamentales – Teoría General. Madrid:


Universidad Carlos III de Madrid, 1999, p. 245-247.
5 De acordo com HOBBES: “A LEI CIVIL é, para todo súdito, constituída por aquelas Regras que o Estado
lhe impõe, Oralmente ou por Escrito, ou qualquer outro suficiente Sinal de sua Vontade, usando-as para
Distinguir o que é Certo do que é Errado. Isto é, do que é contrário ou não é contrário à Regra” (HOB-
BES, Thomas. Leviatã ou A Matéria, Forma e Poder de Um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. Regina
D’Angina. 2. ed., São Paulo: Ícone, 2003, p. 193).
6 LOCKE, John. “Segundo Tratado Sobre o Governo”, Os Pensadores, Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Nova
Cultural, 1991, p. 263: “O Objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade,
colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade.”
7 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 22.
8 “Do Contrato Social”. Os Pensadores. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
9 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 26.

44
Temas de Direito Constitucional Tributário

cujo poder deve ser limitado para preservar a liberdade do cidadão. De outro, a
soberania popular de Rousseau, com o fortalecimento da vontade da maioria,
representada pelo Estado, e enaltecimento das virtudes cívicas do homem.10 Dessa
idéia de soberania popular, é que surge o princípio da legalidade em sua feição
moderna, como consagração dos ideais liberais e em reação à concepção monárqui-
ca de Estado.11
Os marcos de passagem do Estado Absolutista para o Estado Liberal são as
revoluções burguesas do final do século XVIII e da primeira metade do século XIX,
com destaque para a Independência Norte-Americana (1776) e a Revolução
Francesa (1789), que, passada a agitação revolucionária, acabaram por consagrar
modelos políticos que privilegiaram a visão iluminista Montesquieu12 mais ligada
ao ideário liberal, do que a soberania popular de Rousseau.
O triunfo das idéias liberais sobre a soberania popular na primeira metade do
século XIX, na França, se dá como resultado de um refluxo conservador no ideário
revolucionário francês, como contraponto ao Terror, de 1792-1793, de que a obra
de Benjamim Constant é exemplo paradigmático. Nesta, destaca-se a concepção
individualista de liberdade dos modernos, a superar a idéia publicista de liberdade
dos antigos.13
Com a vitória dessas revoluções burguesas, os ideais liberais, que antecediam
ao próprio Estado, foram positivados,14 acarretando o esgotamento do jusnaturalis-
mo15 e dando lugar ao triunfo do juspositivismo.16
De fato, há uma nítida vinculação da teoria da separação de poderes com o
liberalismo e o positivismo,17 na medida em que, estando os ideais individualistas
burgueses consagrados pelo direito positivo, a sua aplicação por um poder judiciá-
rio não eleito, se limitaria ao mero esclarecimento da vontade inequívoca contida
na obra do legislador.

10 Note-se que com todas as transformações pelas quais o mundo passou nesses últimos dois séculos, a dico-
tomia entre liberalismo e republicanismo ainda está presente nos debates políticos, especialmente após a
derrocada do socialismo real e o resgate, no final do século XX, dos idéias republicanos de Rousseau.
11 AUER, Andréas. “O Princípio da Legalidade Como Norma, Como Ficção e Como Ideologia”, In: HESPA-
NHA, Antônio. Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1993, p. 125.
12 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O Espírito das Leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e
Leôncio Martins Rodrigues, Brasília: UnB, 1982.
13 CONSTANT, Benjamim. “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”. In: Filosofia Política 2.
Trad. Loura Silveira. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 11.
14 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, Justicia y Seguridad Jurídica en um Mundo de Leyes Desbocadas.
Madrid: Civitas, 1999, p. 32.
15 LIMA, Viviane Nunes Araújo. A Saga do Zangão – Uma Visão Sobre o Direito Natural. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
16 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 29.
17 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 87.

45
Ricardo Lodi Ribeiro

Esse culto ao texto da lei e a limitação da interpretação à compreensão da sua


literalidade se manifestaram ao longo de todo o século XIX, seja pela Escola da
Exegese na França, pela Escola Histórica e pela jurisprudência dos conceitos, na
Alemanha, ou pelo originalismo norte-americano.18
No século XX, o normativismo de Kelsen e de Hart, descobre na decisão judi-
cial a criação do direito, num ato de vontade,19 dentro da moldura estabelecida pela
textura aberta da norma,20 superando o positivismo tradicional do século XIX, que
via na atividade do julgador uma mera aplicação do direito.21
Nesse ideário liberal, a segurança jurídica do contribuinte se consolida a par-
tir da consagração do princípio da legalidade tributária. No âmbito desse contexto,
a liberdade do cidadão deve ser protegida contra o poder real, sobretudo na fixação
das imposições fiscais.22 Deste modo, a legalidade iluminista se funda no autocon-
sentimento, por meio dos representantes do povo no parlamento.23
De um modo ou de outro, essa visão marcou boa parte da doutrina tributaris-
ta do início do século XX, com Kruse na Alemanha, e A. D. Giannini, na Itália. No
Brasil, Rubens Gomes de Sousa, Alfredo Augusto Becker, Gilberto de Ulhôa Canto,
Alberto Xavier, Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho foram muito influen-
ciados por este positivismo formalista, iluminando, até os dias atuais, a maior parte
de nossa doutrina. Exemplo mais representativo do formalismo positivista na dou-
trina tributária do Brasil é a teoria da tipicidade fechada, desenvolvida por Alberto
Xavier.24 Note-se que o positivismo desenvolvido pela doutrina formalista brasilei-
ra, com a tese da tipicidade fechada, e a redução do fenômeno jurídico à mera sub-
sunção do fato à norma se aproxima muito mais do positivismo tradicional do sécu-
lo XIX, do que do normativismo de Kelsen e de Hart, do século XX, uma vez que
este nega o caráter unívoco do texto legal, admitindo a escolha de uma das opções
por ele oferecidas como um ato de vontade do aplicador. Já a teoria da tipicidade
fechada nega qualquer espaço de decisão ou valoração ao aplicador.25
No entanto, o éden liberal é abado pelo próprio desenvolvimento do capita-
lismo industrial, na segunda metade do século XIX, fazendo surgir uma classe ope-

18 Sobre o estudo do positivismo nos Estados Unidos, vide SEBOK, Anthony J., Legal Positivism in American
Jurisprudence. Cambridge: Cambridge Univertisy Press, 1998.
19 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 392.
20 HART, Hebert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996, p. 137
21 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 117.
22 GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica em Materia Tributaria. Barcelona: Marcial
Pons, 2000, p. 27.
23 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del Principio
de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, p. 319.
24 Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
25 Ibidem, p. 92.

46
Temas de Direito Constitucional Tributário

rária que, em pouco tempo, é submetida a condições de trabalho desumanas, o que


leva à organização do proletariado como agente da história. Assim, os trabalhado-
res que faziam o papel de meras “buchas de canhão” das revoluções burguesas, pas-
sam a idealizar um projeto de classe, por meio dos sindicatos e partidos inspirados
nas idéias de Marx.26
O início do século XX representa o crepúsculo das últimas monarquias abso-
lutas, enterradas pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pela Revolução
Soviética (1917).
Como resposta à ascensão do governo comunista na Rússia e à possibilidade
de revoluções análogas no restante da Europa, os governos liberais concedem direi-
tos sociais aos trabalhadores, como saúde, educação e previdência social. Os parti-
dos de origem operária se organizam para participar do jogo eleitoral das democra-
cias ocidentais, ganhando cada vez mais adeptos.
Dá-se então um momento de grande paradoxo do Estado capitalista, que
para se manter precisa flexibilizar suas maiores crenças na mão invisível do
mercado e no papel secundário do Estado na economia. Emblemas dessa fase
são o New Deal do presidente Roosevelt, nos Estados Unidos, e a Social-
Democracia, na Europa.
Essa fase, que se convencionou denominar de Estado Social ou Estado do
Bem-Estar Social, é marcada pela busca da Justiça Social e da igualdade material, a
partir de prestações estatais para os cidadãos. Substitui-se então a idéia de seguran-
ça jurídica por seguridade social.27
Assim, assistimos, ao longo do século XX, o aumento da participação do
Estado da vida social, com o intervencionismo e a burocratização como pressupos-
tos considerados indispensáveis à garantia das prestações sociais positivas que, em
alguns países mais do que em outros, foram asseguradas aos trabalhadores.
Tendo como pano de fundo o Estado Social, surge a jurisprudência dos inte-
resses, como uma reação ao positivismo formalista do século XIX. Tal escola teve
em Philipp Heck seu principal defensor, tendo despontado a partir da virada de
Jhering para uma jurisprudência mais pragmática, abandonando suas posições
anteriores, vinculadas às idéias de Puchta.28 Para os juristas que integraram a esco-
la da jurisprudência dos interesses, o legislador, como pessoa, vem a ser substituí-
do pelas forças sociais, que são por eles denominadas de interesses, extraídos pela
lei do contexto social. Assim, o centro de gravidade desloca-se da decisão pessoal
do legislador para os interesses que motivaram a produção legislativa. Nessa visão

26 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Moscou: Edições Progresso, 1987.
27 TORRES, Ricardo Lobo. “Legalidade Tributária e Riscos Sociais”. Revista de Direito da Procuradoria-
Geral do Estado do Rio de Janeiro 53: 178-198, 2000, p. 185.
28 LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Caloustre
Gulbenkian, 1997, p. 63.

47
Ricardo Lodi Ribeiro

– e a posição de Heck é emblemática nesse sentido – a interpretação deve remon-


tar aos interesses que foram causais para a lei, figurando o legislador como mero
transformador destes.29
A escola da jurisprudência dos interesses, rompendo com a lógica formalista
até então dominante, adotou um positivismo científico, que com Eugen Ehrlich, a
partir das idéias de Max Weber, se constituiu num viés de índole sociológica, a bus-
car o nexo causal da conduta humana. Já com Stuart Mill, a jurisprudência dos inte-
resses ganhou cores de um positivismo econômico, com o Utilitarismo,30 que enfa-
tizava a preponderância dos aspectos econômicos sobre a norma jurídica.
Dentro desse prisma, a jurisprudência dos interesses deslocou o centro da pro-
blemática jurídica da norma, como anteriormente sustentava o positivismo forma-
lista, para o fato, seja ele histórico, social ou econômico.
Com o triunfo das idéias de justiça sobre as de segurança jurídica, ainda que a
primeira se apresentasse sob uma concepção muito mais sociológica do que axioló-
gica, o princípio da legalidade foi relegado ao segundo plano com a entronização da
idéia de realização da justiça material, a partir de prestações estatais.
A aplicação da jurisprudência dos interesses no direito tributário deu origem,
na Alemanha, à teoria da interpretação econômica do fato gerador, a partir da obra
de Enno Becker, autor do anteprojeto do Código Tributário Alemão de 1919.
O pano de fundo dessas novas concepções é a década de 1920, na Alemanha
castigada pela profunda crise econômica que assolou o país após a Primeira
Guerra Mundial e que colocou em xeque a jovem República de Weimar,31 num
país sem grande tradição liberal, marcado pelos conflitos do forte movimento
comunista em franca ascensão de um lado, em contraposição ao conservadoris-
mo militar-burocrático, herdeiro do II Reich bismarckiano. No plano constitu-
cional a crítica à democracia liberal é voz corrente, onde se destaca a obra de
Carl Schmitt.32
Nesse ambiente de crítica à democracia burguesa, surge espaço para a flexibi-
lização da legalidade. No direito tributário, o movimento influencia as doutrinas
economicistas de Enno Becker e Hensel, que sobrepõem a realidade econômica
sobre o fato gerador previsto na lei. Na Itália, a flexibilização da legalidade empol-

29 Ibidem, p. 65.
30 MILL, Stuart. A Liberdade do Utilitarismo. Trad. Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
187.
31 ELIAS, Nobert. Os Alemães – A Luta pelo Poder e a Evolução do Habitus nos Séculos XIX e XX. Trad.
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 21: “Para entender a ascenção de Hitler ao
poder, é importante ter em mente que os grupos que apoiavam a República de Weimar eram, desde o
começo, muito restritos.”
32 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial. 3. reimpres-
são da 1. ed, 2001, p. 62: “La tendencia del Estado burgués de Derecho va en sentido de desplazar lo polí-
tico, limitar en una serie de normaciones todas las manifestaciones de la vida del Estado y transformar
toda la atividad del Estado en competencias, limitadas en principio, rigorosamente circunscritas.”

48
Temas de Direito Constitucional Tributário

ga os causalistas, como Griziotti, Jarach e Vanoni, que, de uma forma ou de outra,


vão entronizar a capacidade contributiva como causa do tributo. O fenômeno
chega ao Brasil, embora em menor intensidade, nas obras de Aliomar Baleeiro e
Amílcar de Araújo Falcão, que embora seguidores das teses causalistas, não chegam
a romper com a legalidade.33
Contudo, esse positivismo economicista, ao flexibilizar a legalidade em nome
da idéia de justiça social, acabou por ser presa fácil para o totalitarismo hitlerista,
que estabeleceu a tributação de acordo com os ideais no nacional-socialismo, com
a taxação dos judeus em razão dessa condição.
Com a queda do nazifascismo, a teoria da interpretação econômica, apesar de
ainda sobreviver por alguns anos, mais em função do marasmo ideológico do pen-
samento alemão diante da perplexidade com as descobertas do Holocausto, dá lugar
a uma retomada formalista a que o direito tributário não se mostrou insensível.34
Porém, os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, talvez os
mais emblemáticos do século XX, são caracterizados pela polarização e guerra fria
entre os dois principais vitoriosos do conflito: os Estados Unidos e a União
Soviética. Era o auge do Estado Social.
No campo do Direito é uma época marcada pela crise da justiça enquanto valor,
espremida entre os positivismos de índole formalista e sociológica, e substituída pela
busca da materialização dos prestações estatais exigidas pela justiça social.
Na seara tributária, o esforço arrecadatório para financiar o agigantamento das
despesas públicas levava o pêndulo hermenêutico a confundir justiça fiscal com o
interesse da arrecadação tributária. Afinada com a melodia fiscalista, soavam os
acordes da progressividade em nome da distribuição de rendas e dos incentivos fis-
cais setoriais como trampolim para o desenvolvimento econômico em uma visão
keynesiana.
Todavia, a crise do petróleo do início dos anos 70 deflagra o início da deses-
truturação do Estado Social, que elevou, além dos limites do previsto, as expectati-
vas do cidadão em relação ao Estado,35 gerando a dificuldade, cada vez mais cres-
cente, para os governos adimplirem com seus compromissos sociais.
Na década de 80, os governos neoliberais de Reagan, nos Estados Unidos, e de
Thatcher, na Inglaterra, iniciam um processo de sepultamento do Welfare State,
restringindo as prestações sociais e reduzindo impostos.

33 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003,
p. 58.
34 A discussão e a promulgação do nosso Código Tributário Nacional num período de transição entre a
influência, no Brasil, da teoria da interpretação econômica e a retomada formalista explica, em parte, suas
insuperáveis contradições no que tange à interpretação da lei tributária.
35 MASI, Domenico de. A Sociedade Pós-Industrial. Vários Tradutores. 4. ed , São Paulo: Senac, 2003, p. 84.
De acordo com o sociólogo italiano, nos anos 50 e 60 o aumento dos gastos sociais foi de 1/3 a 2/3 supe-
rior ao aumento do PIB (Ob. cit., p. 83).

49
Ricardo Lodi Ribeiro

Ao mesmo tempo, o avanço tecnológico promove a revolução da tecnologia


da informação, que explode nos anos 90, a partir das sementes plantadas nos anos
70, dando origem a uma nova economia.36
O final da década de 80 e o início dos anos 90 são sacudidos pelo desmorona-
mento do socialismo real. Em 1989, os ventos da liberdade, canalizados pela
Glasnost e pela Perestroika de Gorbatchev, põem abaixo o Muro de Berlim, símbo-
lo maior da divisão bipolar entre os mundos capitalista e o comunista, levando,
pouco tempo depois, e com inacreditável velocidade, ao fim da própria União
Soviética, em 1991. Se até o início dos anos 70 os países do socialismo real, com sua
economia centralizada e baseada na indústria pesada, conseguiram acompanhar os
níveis de crescimento do ocidente, com o advento da economia eletrônica global,
perderam competitividade e seus governos não mais conseguiram impor o contro-
le ideológico e cultural diante de uma mídia global.37
A partir do esgotamento do Welfare State, num mundo unipolar, o avanço
científico e tecnológico traz os fenômenos da globalização, sociedade de risco e do
pluralismo jurídico, onde o Estado Nacional não detém mais o monopólio do
Direito. Com isso, as empresas multinacionais, organismos internacionais, as orga-
nizações não-governamentais, a sociedade civil organizada e as comunidades de
países passam a emitir regras que, muitas vezes, escapam à percepção dos que se
acostumaram com a dinâmica binária até então verificada na Era Moderna. É o que
alguns denominam de Estado Subsidiário, que intervém apenas onde a sociedade
não pode atuar.
A perplexidade com que os pensadores no fim do século XX assistiram ao fim
do socialismo real intensificou as discussões a respeito do tema da modernidade e
da pós-modernidade ao longo dos anos 90, tempos que já fazem lembrar a Belle
Époque a anteceder os horrores no início do século XXI, com a negação dos direi-
tos fundamentais em nome do combate ao terrorismo, após o 11 de setembro de
2001, com o ataque da Al Quaeda de Bin Laden às torres gêmeas do World Trade
Center em Nova York e ao Pentágono, em Washington.
Como fruto do oportunismo político que se aproveita dos novos riscos
sociais para a consolidação do poder, a autonomia dos povos é colocada em che-
que, com a criação do conceito de guerra preventiva, a justificar a invasão norte-

36 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Trad. Roneide Majer. São Paulo: Paz e Terra. 7. ed., 2003, p.
189.
37 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 24. Imagem ilustrativa dessa situação é lembrada por
Ulrich Beck: nos estertores do império soviético, Boris Yeltsin, então presidente da República Russa, em
cima de um tanque, faz um discurso contra os líderes da URSS que golpearam Gorbatchev. Enquanto as
rádios do regime comunista censuravam o discurso, a CNN transmitia ao vivo para todo o mundo. Era o
triunfo da mídia global sobre o controle nacional dos meios de comunicação (BECK, Ulrich. O que é
Globalização? – Equívocos do Globalismo, Resposta à Globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Paz
e Terra, 1999, p. 41).

50
Temas de Direito Constitucional Tributário

americana no Afeganistão e no Iraque. Nesse contexto, os direitos fundamentais


são questionados por aqueles que buscam em medidas de exceção, como as pre-
vistas no Ato Patriótico de George W. Bush, resposta ao terrorismo do islamis-
mo fundamentalista.
A reação da doutrina norte-americana às tentativas de concessão de poderes
especiais ao presidente dos Estados Unidos, em função do 11 de setembro, não tem
sido uníssona. De um lado, encontram-se aqueles, como Ackerman,38 que admitem
restrições aos direitos civis com a criação de uma espécie de emergency constitui-
tion, sem prejuízo da preservação dos mecanismos de deliberação da sociedade que
sejam capazes de controlar a necessidade do estado de exceção. Em contraponto,
Tribe39 rechaça o afastamento da ordem constitucional e a supressão dos direitos
humanos no combate ao terrorismo.
Vale aqui destacar o alerta de Agambem contra as medidas destinadas a con-
ferir poderes de legislar ao poder executivo, a fim de restabelecer a segurança em
períodos de grande instabilidade, que tendem sempre a evoluir para um estado de
exceção permanente.40
No entanto, embora não se possa negar o fracasso do socialismo real, a falên-
cia do Estado do Bem-Estar Social, o terrorismo e os desafios da sociedade de risco,
por outro lado, também é preciso reconhecer que nem a pax americana de Clinton,
e muito menos o Estado de Exceção Permanente de George W. Bush, são respostas
aos problemas do homem, num mundo que confere liberdade para o capital volá-
til e apátrida, mas a nega para a maioria das pessoas do planeta, excluída do acesso
aos bens mais elementares para a digna sobrevivência.41
Por isso, é preciso construir novos paradigmas para a época atual, que, pela
proximidade, ainda não pode ser denominada, senão provisoriamente. São usadas
expressões como pós-modernidade, modernidade reflexiva, modernidade ambiva-
lente, modernidade tardia, Estado de Risco, Estado Subsidiário, Estado Pós-Social,
entre tantas outras, para designar os tempos atuais, captando várias características

38 ACKERMAN, Bruce. “The Emergency Constitution”. In: The Yale Law Journal, vol. 113, nº 5, 05/03/04,
pp. 1029-1079, acessado em www.yalelawjournal.org, em 09/07/05.
39 TRIBE, Laurence H. e GUDRIDGE, Patrick O. “The Anti-Emergency Constitution”. In: The Yale Law
Journal, vol. 113, nº 8, 30/04/04, p. 1801-1870, acessado em www.yalelawjournal.org, em 09/07/05.
40 AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Pulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 19.
Entre nós, traçando um paralelo entre a situação da Alemanha da República de Weimar e a dos países em
desenvolvimento como o Brasil, Gilberto Bercovici fala em estado de exceção econômico: “Com a globa-
lização, a instabilidade econômica aumentou e o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises
econômicas passou a ser mais utilizado, com a permanência do estado de emergência econômico” (BER-
COVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São Paulo:
Azougue Editorial, 2004, p. 179).
41 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Motta. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 2000, p. 18: “A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega
liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo à maioria.”

51
Ricardo Lodi Ribeiro

da nossa época. No entanto, só o distanciamento histórico será capaz de identificar


que facetas prevalecerão, a fim de caracterizar esses dias.42
Contudo, aos estudiosos do Direito não é dado procurar as soluções para os
complexos fenômenos atuais, a partir de categorias jurídicas que foram forjadas no
início da Era Moderna, vez que estas não são mais capazes de dar respostas aos pro-
blemas com que nos defrontamos hoje.
No campo das idéias jurídicas, esse período de crise do Estado Social é marca-
do pela superação das idéias positivistas, sejam as de índole formalista, sejam as de
cunho sociológico ou economicista, a partir do resgate da justiça enquanto valor.
Destacam-se entre as teorias pós-positivistas da segunda metade do século XX, a
tópica, de Viehweg,43 a nova retórica, de Perelman,44 a jurisprudência dos valores,
de Larenz,45 e a justiça como equidade, de Rawls.46 O debate sobre a justiça mobi-
liza comunitaristas, como Walzer,47 e Taylor,48 e proceduralistas como Dworkin49
e Alexy.50
A teoria da argumentação, de Alexy,51 e da razão comunicativa, de Haber-
mas,52 resgatam a racionalidade prática, de cunho dialógico e procedimental. É,
porém, na obra de Habermas que vamos encontrar uma maior aproximação entre
a razão prática e a teoria democrática, com os direitos fundamentais constituindo
pressuposto para o processo democrático.53
O resgate do valor da justiça e dos direitos fundamentais vai causar profundas
conseqüências na doutrina tributária alemã, especialmente em autores como Klaus
Tipke, Klaus Vogel e Moris Lehner. Aos poucos as idéias tedescas vão influencian-
do a doutrina de outros países. Na Espanha, a justiça tributária é resgatada com
Pedro Herrera Molina, Falcón y Tella e Tulio Rosembuj. Na Itália, Fantozzi e

42 MASI, Domenico de. A Sociedade Pós-Industrial. Vários Tradutores. 4. ed , São Paulo: Senac, 2003, p. 33.
43 VIEHWEG, Theodor. Tópica y Filosofia Del Derecho. Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1991, p.
189.
44 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad. Vergínia K. Pupe. São Paulo: Martins Fontes: 2000.
45 LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997.
46 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
47 WALZER, Michael. Esferas da Justiça – Uma defesa do pluralismo e da igualdade. Trad. Jussara Somões.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
48 TAYLOR, Charles. “La Política de Reconocimiento”. In: El Multiculturalismo y la Política de
Reconocimiento. Trad. Mónica Utrills de Neira. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
49 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
50 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de
Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.
51 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica – A Teoria do Discurso Racional como Teoria da
Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.
52 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
53 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 335. 336.

52
Temas de Direito Constitucional Tributário

Moschetti também se abrem às novas discussões. No Brasil, a superação do positi-


vismo normativista encontra em Ricardo Lobo Torres e Marco Aurélio Greco dois
grandes resistentes à maioria formalista.
Com a abertura do direito tributário à idéia de justiça, o equilíbrio entre os
princípios da legalidade e da capacidade contributiva foi resgatado,54 estabelecen-
do, assim, uma visão que, longe de apresentar peculiaridades em relação aos outros
ramos (como ocorre com as teorias da tipicidade fechada ou da interpretação eco-
nômica do fato gerador), prestigia a igualdade, com a adoção de fórmulas para coi-
bir as práticas abusivas tendentes a burlar a obrigação de pagar tributos e de meca-
nismos que vão além das normas com intenção meramente arrecadatórias.
Nesse sentido, o estudo da segurança jurídica do contribuinte é um dos exem-
plos em que os parâmetros iluministas, até hoje praticados pela maior parte dos
estudiosos, são totalmente inadequados à solução dos riscos atuais.
É que procuramos uma tutela do direito individual do contribuinte, como se
este fosse uma figura mitológica, desligada da realidade fática, e como se o Estado
fosse ainda aquele monstro orgânico de Hobbes, a ameaçar a liberdade do cidadão
de Locke, em completo descompasso com um tempo onde a figura do Estado-Nação
vai cedendo terreno e que a soberania é flexibilizada.
Um novo mundo merece novas explicações. Se as que existem ainda não nos
confortam, ao menos diagnosticam o caráter obsoleto das velhas fórmulas liberais,
e a necessidade do debate sobre os novos rumos.

2) A Sociedade de Risco

Sem adentrar na polêmica sobre modernidade e pós-modernidade, que não é


objeto desse estudo, é forçoso reconhecer que vivemos dias que colocam em xeque
todo o ideal iluminista, com a sua certeza de que a humanidade caminha para fren-
te e de que o desenvolvimento tecnológico torna o mundo mais estável e ordena-
do.55 Se por um lado, não há uma ultrapassagem da modernidade aberta pela
Revolução Francesa com a superação das explicações religiosas para o mundo e a
adoção do racionalismo, por outro, é imperioso reconhecer que o advento da socie-
dade pós-industrial e da globalização aponta para um esgotamento dos instrumen-
tos para a solução dos problemas da primeira modernidade.
Nesse contexto, a Nova Era do misticismo e do fundamentalismo religioso
dos dias atuais, mais que representar uma volta ao passado pré-moderno, ou o
advento de uma etapa posterior à modernidade, se revela como uma reação irra-

54 GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica em Materia Tributaria. Barcelona: Marcial
Pons, 2000, p. 89.
55 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 14.

53
Ricardo Lodi Ribeiro

cional à ausência de respostas do paradigma iluminista, baseado na certeza biná-


ria da realidade.
É inevitável constatar que com a Globalização se mostra rompida uma das
principais premissas da Era Moderna: a de que vivemos em espaços delimitados
pelos Estados Nacionais.56 Porém, o que pode ser considerado como a decadên-
cia da modernidade, pode também marcar o início de uma segunda modernida-
de, desde que sejam superadas as ortodoxias que levaram ao esgotamento da pri-
meira.57
Em conseqüência, é preciso reinventar a política, a partir de dados extraídos
desses novos tempos. Se por um lado a globalização econômica leva o comércio à
escala internacional, gerando crescimento do poder das empresas transnacionais
em detrimento dos Estados Nacionais e dos trabalhadores, de outro o avanço tec-
nológico e a revolução nos meios de informação e comunicação universalizam os
direitos humanos e a democracia, despertando a atenção global sobre as questões
ambientais, os direitos das minorias, a pobreza mundial.58
Nesse contexto dialético, onde o mercado globalizado difunde informação e
idéias para tudo o mundo, a cultura local encontra espaços ampliados, sobrevivendo
além do seu ambiente original. Assim, a globalização cultural não é necessariamente
uma via de mão única, uma vez que a “sociedade mundial não é, portanto, uma
megassociedade nacional que reúne e dissolve todas as sociedades nacionais; repre-
senta um horizonte que se caracteriza pela multiplicidade e pela não-integração”.59
Com a globalização não há o fim da política, mas seu recomeço. A reinvenção
da política não se caracteriza pelo triunfo do neoliberalismo, mas, ao contrário,
pela crítica ao domínio do plano econômico sobre todos os demais, e ao autorita-
rismo político a serviço da lógica do mercado.60
Se o desenvolvimento econômico escapa do controle do Estado Nacional, as
suas conseqüências como o desemprego, a pobreza, a imigração, têm o seu equacio-
namento exigido do Estado Social,61 cada vez mais frágil para atender a essa crescen-
te demanda, o que gera crises políticas que colocam em risco o futuro da democracia.
Nesse panorama, as medidas tomadas pelo Estado acabam por originar outros
problemas sociais e econômicos. Para se proteger da livre atuação das empresas
transnacionais, garantindo os direitos de seus cidadãos, os Estados Nacionais ado-
tam medidas que acabam por afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desem-
prego e miséria. Por outro lado, o desenvolvimento econômico gerado pelos inves-

56 BECK, Ulrich. O que é Globalização? – Equívocos do Globalismo, Reposta à Globalização. Trad. André
Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 46.
57 Ibidem, p. 26.
58 Ibidem, p. 31.
59 Ibidem, p. 32.
60 Ibidem, p. 225.
61 Ibidem, p. 36.

54
Temas de Direito Constitucional Tributário

timentos dos agentes transnacionais não se apresenta como solução ao crescimen-


to da exclusão social e da concentração de renda.
Como se vê, não estamos diante de uma pós-modernidade, mas das conse-
qüências da imposição do modelo de modernidade ocidental para todo o mundo,
gerando efeitos colaterais advindos da ambivalência e imprevisibilidade, caracteri-
zadoras da sociedade de risco. Podemos denominá-la de modernidade reflexiva,
como Ulrich Beck,62 de modernidade ambivalente, como Zygmunt Bauman63 ou
modernidade tardia, como Anthony Giddens.64
É que com o extraordinário avanço tecnológico experimentado no século XX,
o homem, que nos primórdios da Era Moderna tentava dominar a natureza, a fim
de conter os riscos externos, passa a sofrer os efeitos de sua ação, com a reação do
planeta à intervenção humana. É o que Anthony Giddens65 chama de risco fabri-
cado, que, como bem salienta Raffaele de Giorgi,66 não se confunde com o perigo,
sempre exteriores à ação do homem. São exemplos ilustrativos dos riscos naturais
causados pela ação desordenada da humanidade o aquecimento global, a diminui-
ção da camada de ozônio, o vazamento da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia,
o mau da vaca louca, na Inglaterra, as vicissitudes nas experiências genéticas e a
devastação humana provocada pelos tsunames na Ásia e na África.
Os riscos não são uma novidade de nossos tempos. A expressão risco surge nos
idiomas espanhol e português nos séculos XVI e XVII para designar os perigos
representados pelo desconhecido a ser encontrado nas grandes navegações por
mares nunca dantes navegados. A precaução do risco das navegações marítimas
pela introdução dos seguros levou a expressão ao mundo dos negócios, onde foi uti-
lizada para designar a álea dos contratos bancários e de investimentos, até ser gene-
ralizada para outras situações de incerteza.67
Da origem da palavra risco, é extraída uma característica fundamental que, até
hoje, é válida para a compreensão do fenômeno: a incerteza diante da novidade
desconhecida e imprevisível.
Mas se o risco diante da novidade desconhecida não é uma exclusividade de
nossos dias, devemos observar que hoje os riscos causados pelo próprio homem são

62 BECK, Ulrich. “Autodissolução e auto-risco da sociedade industrial: o que significa?” IN: GIDDENS,
Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 208.
63 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
64 GIDDENS, Anthony. “Risco, Confiança, Reflexidade”. IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH,
Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 233.
65 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 24.
66 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco – Vínculos com o Futuro. Trad. Lucia Silva, Sandra Vial
e Luiz Antônio Vial. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 233.
67 Ibidem, p. 32.

55
Ricardo Lodi Ribeiro

tão ou mais importantes do que aqueles gerados pela natureza.68 Então, o que há de
novo não é a incerteza ou o risco. Mas a origem deles. Muitas incertezas que vive-
mos hoje foram criadas pelo próprio homem.69
Outra característica peculiar aos nossos tempos reside na imprevisibilidade
desses riscos, o que se explica pelo incomparável avanço científico e tecnológico,
que, embora deixe desconcertadas as pessoas comuns, são planejados pelos especia-
listas. Mas, ao mesmo tempo, geram efeitos colaterais que não poderiam ser imagi-
nados sequer pelos idealizadores de tais conquistas.
Essa imprevisibilidade é mais óbvia quando consideramos que os riscos
criados pelo homem nem sempre são fruto de uma ação consciente como os efei-
tos devastadores da bomba atômica lançada sobre Hiroshima e Nagasaki. Quase
sempre os riscos são frutos de medidas concebidas de acordo com fins que são
caros à Era Moderna, como o desenvolvimento da ciência, o crescimento econô-
mico e a busca do pleno emprego. No entanto, as medidas adotadas, mesmo
quando atingem os seus esperados objetivos, acabam gerando efeitos colaterais
imprevistos.70
Com a expansão da industrialização, os riscos se multiplicaram de forma
nunca antes vista. O desaguadouro desse processo é a conjugação de crescimento
econômico com a necessidade de isolamento dos riscos que ele produz.71
Nesse contexto, diagnostica-se o fenômeno da ambivalência, com a resolução
de determinados problemas gerando outros problemas.72 A apuração da técnica na
sociedade industrial disponibilizou a especialização para a resolução dos proble-
mas. E quanto mais específico e concentrado se apresenta, o saber do especialista
vai gerando a necessidade de novas especialidades para uma problemática que, até
então, não era conhecida. Tamanha especialização, além de originar a crescente
dependência de especialistas, acaba por gerar efeitos colaterais em outros campos
da realidade, que não são dominados pela referida especialidade, gerando novos
problemas, a exigir novas especialidades.73
Nessa lógica ambivalente, cada medida adotada para a solução de problemas
de determinado grupo de pessoas traz em si mesma a criação de problemas para

68 Ibidem, p. 43.
69 GIDDENS, “Risco, Confiança e Reflexidade”, IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 220.
70 Ulrich Beck chega a falar em era dos efeitos colaterais. (BECK, Ulrich. “Autodissolução e Autorisco na
Sociedade Industrial: O que significa isso?” IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 208).
71 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 229.
72 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 227
73 Ibidem, p. 229.

56
Temas de Direito Constitucional Tributário

outro grupo de pessoas.74 Em conseqüência, a liberdade crescente de uns pode


representar, ou até mesmo ser a causa, de uma maior opressão para outros.75
Como corolários do racionalismo característico da modernidade, a insegurança e
o desconforto causados pela ambivalência tinham como resposta as classificações biná-
rias, tão caras aos juristas seguidores da jurisprudência dos conceitos, e mais tarde, no
século XX, aos positivistas normativistas. As classificações binárias ou duais pareciam
conferir segurança em relação à ambigüidade, num verdadeiro culto à racionalidade.76
No entanto, essa incessante busca pela ausência de incerteza mais corresponde a
um suporte emocional77 utilizado para aplacar a ansiedade gerada pela ambivalência do
que uma verdadeira representação da realidade,78 irredutível a essa lógica dual, mesmo
no campo das ciências exatas onde há algumas décadas prepondera a lógica fuzzy.79
Diante da insuficiência dos modelos binários, tão caros à primeira moderni-
dade, o desafio na sociedade de risco é conviver com a ambivalência, a partir de
uma atitude calculista em relação às possibilidades de ação,80 e do controle dos ris-
cos pela probabilidade.81 Assim, pelo conhecimento da realidade passada, os agen-
tes sociais assumem os riscos e procuram se precaver em relação à possibilidade de
ocorrência dos perigos previstos por meio do seguro.
Se no Estado Liberal o seguro era limitado à segurança dos negócios privados,
no Estado Social evolui para a idéia de seguridade social, a prevenir os riscos advin-
dos da doença, da velhice, do desemprego etc.

74 A própria dinâmica do processo judicial revela essa ambivalência como observado por Ulrich Beck: “A
ordem judicial não estimula mais a paz social, pois sanciona e legitima as desvantagens juntamente com
as ameaças e assim por diante” (BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da
Modernidade Reflexiva.” IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva.
Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 29).
75 GIDDENS, “Risco, Confiança e Reflexidade”, IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.
Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo: UNESP, 1997, p. 223.
76 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 236.
77 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002, p. 43.
78 Nesse sentido BAUMAN: “Nenhuma classificação binária pode se sobrepor inteiramente à experiência
contínua e essencialmente não discreta da realidade. A oposição, nascida do horror a ambigüidade, torna-
se a principal fonte de ambivalência” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus
Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 70).
79 A Lógica Fuzzy foi criada em 1965 por Lofti Asker Zadeh, e se baseia na teoria dos Conjuntos Fuzzy. De
acordo com a lógica formal aristotélica, uma proposição lógica tem dois extremos: ou “completamente ver-
dadeiro” ou “completamente falso”. Com a Lógica Fuzzy, uma premissa varia em grau de verdade de 0 a 1,
o que leva a ser parcialmente verdadeira ou parcialmente falsa (KOSKO, Bart. Fuzzy Thinking. New York:
Hyperion, 1993, p. 263). A importância da Lógica Fuzzy é encontrada na possibilidade de inferir conclu-
sões a partir de informações vagas, ambíguas e imprecisas, aproximando os sistemas de bases da lógica
humana, o que a torna extremamente relevante para as ciências humanas, notadamente a do Direito.
80 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002, p. 33.
81 LASH, Scott. “A Reflexividade e seus duplos: Estrutura, Estética, Comunidade”, IN: GIDDENS, Anthony,
BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São Paulo:
UNESP, 1997, p. 170.

57
Ricardo Lodi Ribeiro

Em qualquer desses cenários, o papel do segurador, seja a empresa segurado-


ra a proteger os negócios privados, seja o Welfare State a tutelar os cidadãos em
relação às misérias sociais, é o de redistribuir os riscos entre os integrantes do sis-
tema. Assim, enquanto a empresa seguradora vai, a partir do cálculo de probabili-
dade de sinistro, distribuir o custo das indenizações pelos seus clientes, o Estado irá
distribuir o custo das prestações sociais pelos contribuintes.82
O mesmo fenômeno ocorre em relação aos efeitos colaterais advindos da
ambivalência da sociedade de risco, em que uma medida necessária para a coletivi-
dade acaba por gerar prejuízos a um determinado grupo.83
Se na sociedade industrial a discussão fundamental era como repartir a riqueza,
na sociedade de risco o problema passa a ser como evitar, minimizar e repartir os ris-
cos, num mundo onde a figura dos efeitos secundários ocupa lugar de destaque.84
Da incessante busca de novos instrumentos de luta contra a ambivalência,
surge a necessidade do Estado, na sociedade de risco, não distribuir apenas benefí-
cios, mas também os males sociais,85 a partir da análise do custo-benefício,86 e da
negociação entre os integrantes da sociedade,87 possibilitada pelo pluralismo de
poder,88 e conduzida com base no princípio da transparência.89

82 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 35.
83 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da Modernização Reflexiva”. In: GIDDENS,
Anthony, BECK, Ulrich. e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpressão. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 42: “Na sociedade de risco, as novas vias expressas, instalações de incineração de lixo,
indústrias químicas, nucleares ou biotécnicas, e os institutos de pesquisa encontram resistência dos grupos
populacionais imediatamente afetados. É isso, e não (como no início da industrialização) o júbilo diante deste
progresso, que se torna previsível. Administrações de todos os níveis vêem-se em confronto com o fato de
que o que planejam ser um benefício para todos é percebido como uma praga por alguns e sofre a sua opo-
sição. Por isso, tanto eles quanto os especialistas em instalações industriais e os institutos de pesquisa perde-
ram sua orientação. Estão convencidos de que elaboraram esses planos ‘racionalmente’, com o máximo do
seu conhecimento e de suas habilidades, considerando o ‘bem público’. Nisso, no entanto, eles descuram a
ambivalência envolvida. Lutam contra a ambivalência com os velhos meios da não-ambigüidade.”
84 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo. Trad. Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 1998, pp. 25-26.
85 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco – Vínculos com o Futuro. Trad. Cristiano Paixão,
Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 198: “O
risco é modalidade de distribuição dos bads e não dos goods. O risco baseia-se na suportabilidade, na acei-
tação, e não na certeza das próprias expectativas: por isso, os riscos não podem ser transformados em direi-
to, ainda, que possam ser monetarizados.”
86 SUSTEIN, Cass R. Risk and Reason – Safety, Law and the Environment. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, p. 6.
87 BACK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da Modernização Reflexiva”. In: GID-
DENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpres-
são. São Paulo: UNESP, 1997, p. 43.
88 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 60: “Só o pluralismo devolve a responsabilidade moral da ação a seu natural portador: o indiví-
duo que age.”
89 TORRES, Ricardo Lobo. “O Princípio da Transparência no Direito Financeiro”, in Revista de Direito da
Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Vol. VIII, pp. 133-156. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 136. “A transparência é o melhor princípio para a superação das ambivalências da

58
Temas de Direito Constitucional Tributário

Nesse diapasão, a idéia de segurança jurídica ganha uma nova dimensão, supe-
rando o modelo do Estado Liberal, onde representou a proteção do cidadão contra
o poder do Estado, com a idéia de segurança jurídica, e do Estado Social, em que,
na eterna busca da Justiça Social, ganhou a feição de seguridade social. No Estado
Democrático e Social, marcado pela sociedade de risco, a segurança se traduz em
seguro social.90
Nessa transição, que ainda não restou totalmente concluída nos dias atuais, a
idéia de liberdade, que desde a Revolução Francesa se baseia na segurança do indiví-
duo contra o poder do Estado, ganha uma dimensão plural com a garantia da liberda-
de em relação ao outro. É por isso que Denninger91 defende a superação do lema Li-
berdade, Igualdade e Fraternidade, pela tríade Segurança, Diversidade e Solidariedade.
De acordo com essa nova dimensão da segurança, o Estado garante proteção
aos cidadãos contra os riscos sociais, a partir de “uma nova comunhão de responsa-
bilidade entre o cidadão e o Estado, ou uma nova comunhão de riscos e chances”.92
Por esta perspectiva, a idéia de segurança se desamarra da mordaça individua-
lista liberal, bem como dos excessos sociológicos da jurisprudência dos interesses,
para atingir uma dimensão valorativa que vai atuar na legitimação de todos os
direitos do cidadão,93 não mais como um apanágio da defesa do indivíduo contra
um poderoso Estado-Nação, que, cada vez mais, vai perdendo importância como
fonte de poder no mundo globalizado, mas sim um mecanismo de garantia aos
direitos fundamentais de todos.
Como destaca Perez Luño, nos dias atuais, a segurança dos direitos do cidadão
é muito mais ameaçada pela falta de resposta do Estado aos seus misteres sociais do
que pela sua hipertrofia, como ocorria antes do advento do Estado Social.94 A inse-
gurança social gerada pela ausência de cumprimento das prestações estatais vincu-
ladas ao mínimo existencial é permanente motivo de crise que põe em risco o pró-
prio regime democrático.95 Assim, “a liberdade individual só pode ser produto do
trabalho coletivo”.96

Sociedade de Risco. Só quando se desvenda o mecanismo do risco, pelo conhecimento de suas causas e de
seus efeitos, é que se supera a insegurança.”
90 Ibidem.
91 DENNINGER, Erhard. “Segurança, Diversidade e Solidariedade ao invés de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade.” In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol. 88, 2003, pp. 21-45.
92 SILVA NETO, Francisco e IORIO FILHO, Rafael M. “A Nova Tríade Constitucional de Erhard
Denninger”. In: DUARTE, Fernanda e VIEIRA, José Ribas (org.), Teoria da Mudança Constitucional – Sua
Trajetória nos Estados Unidos e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 282.
93 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregório. Curso de Derechos Fundamentales – Teoría General. Madrid:
Universidad Carlos III de Madrid, 1999, p. 245.
94 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 22.
95 BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São
Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179.
96 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999,
p. 15.

59
Ricardo Lodi Ribeiro

A despeito de toda evolução histórica do pensamento humano nesses dias de


modernidade tardia, até hoje os estudiosos do direito, ainda muito influenciados
pelo positivismo formalista, têm a tendência de limitar o estudo da segurança aos
limites da liberdade individual. Ao ignorar a ambivalência, nossos pensadores aca-
bam por resguardar por excesso o direito à segurança daqueles indivíduos mais
fortes, cultural, social e economicamente, em detrimento da maior parcela da
população, que acaba por não encontrar defesa contra o aniquilamento dos seus
direitos fundamentais.
Nesse particular, pode-se concluir que o equívoco do positivismo é restringir
a segurança e o Estado de Direito à legalidade. No entanto, o Estado de Direito não
se resume à idéia de legalidade formal, mas uma legalidade que se funde na sobe-
rania popular e se dirija à tutela dos direitos fundamentais.97
Deste modo, a segurança jurídica não pode desprezar a legitimidade das deci-
sões tomadas, que devem ser racionais e aceitáveis pela comunidade dos destinatá-
rios da norma.98
No campo da repartição dos encargos tributários, a tendência individualista,
baseada no positivismo liberal, é ainda mais acentuada, a partir da mitificação da
idéia de direitos do contribuinte, como se todas as empresas e pessoas tivessem
sempre interesses coincidentes. A ilusão se completa com a difusão do mito de que
os interesses de todos os contribuintes se contrapõem ao Estado, opressor da liber-
dade individual.
A falta de consciência da ambivalência fiscal, característica à lei tributária, faz
com que o direito tributário seja até hoje marcado, notadamente no Brasil, onde
ainda predomina o positivismo formalista, pela crença de que a segurança jurídica
se resume, exclusivamente, à proteção do contribuinte contra o exercício do poder
de tributar do Estado.

3) Direitos dos Contribuintes, Ambivalência Fiscal e Legalidade

Tendo a tributação moderna surgido da luta dos contribuintes contra o abuso na


imposição tributária pelo rei, o mito da segurança repousa na limitação do poder de
tributar do soberano, que não era eleito pelo povo. Essa necessidade de uma norma
aprovada pelo parlamento como pressuposto da exigência tributária sempre se justi-

97 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, pp. 79-80:
“La aplicación taxativa de leyes que consagran cualquier tipo de discriminación (racial, ideológica, sexual,
económica...), o que proscriben el ejercicio de las liberdades políticas o sindicales no puede suponer ningu-
ma garantía de seguridad jurídica. La seguridad empírica de un atentado legal a los valores y derechos
humanos entraña la seguridad de una iniquidad; es decir, la seguridad fáctica de una inseguridad jurídica.”
98 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 246.

60
Temas de Direito Constitucional Tributário

ficou na prévia autorização pelos representantes eleitos por aqueles que suportariam
o peso fiscal. É dessa aprovação legislativa que surge a concepção de autoconsenti-
mento da tributação, que fundamenta o princípio da legalidade tributária.
Porém, não se pode perder de vista que, modernamente, no Estado
Democrático e Social de Direito, os governos, a quem cabe exigir os tributos, são
também exercidos por representantes eleitos diretamente pelo povo. Portanto,
estamos num cenário bem distinto daquele contexto histórico em que se produzi-
ram as aspirações iluministas que fortaleceram o anseio de que só os representan-
tes do povo, reunidos no parlamento, poderiam criar obrigações, e de que o poder
executivo seria um mero executor das políticas por eles definidas.99
Em conseqüência, nesse novo contexto que ora se mostra presente, o princípio
da legalidade não guarda mais fundamento no autoconsentimento, mas da autonor-
matização.100 Ao contrário, passou a ter, como afirma Pérez Royo,101 um viés plu-
ral, como meio de garantir a democracia no procedimento de imposição das normas
de repartição tributária, bem como a igualdade de tratamento entre os cidadãos.
Essa legalidade baseada no pluralismo político extraído de um parlamento
onde estejam presentes representantes de todos os segmentos da sociedade, e onde
os movimentos sociais e econômicos tenham amplo espaço de atuação,102 é a prin-
cipal arma de combate a uma visão unívoca da realidade e negadora da ambivalên-
cia no âmbito fiscal, representada pela fixação das regras tributárias por aquele
poder encarregado de arrecadar e dar destino às receitas públicas.103
Deste modo, a legalidade tributária no Estado Democrático e Social de Direito
é marcada pela definição, num ambiente de pluralismo político, de um critério de
divisão dos encargos e benefícios sociais, a partir da composição dos interesses dos
mais variados segmentos do corpo social, e de acordo com a justiça fiscal, represen-
tada pela capacidade contributiva dos cidadãos, e com a prevenção dos riscos sociais.
Nesse cenário em que as despesas estatais são custeadas por receitas públicas,
em especial os tributos, que, por sua vez, hão de ser inexoravelmente, no Estado
capitalista, suportados pela sociedade, a questão passa a ser quem vai pagar, e quan-

99 ARAGÃO, Alexandre Santos de. “Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contempo-
râneo”, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53, 2000, p. 42.
100 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del Principio
de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, p. 320.
101 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 42.
102 BECK, Ulrich. “A Reinvenção da Política: Rumo a Uma Teoria da Modernização Reflexiva”. In: GID-
DENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpres-
são. São Paulo: UNESP, 1997, p. 41.
103 GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica em Materia Tributaria. Barcelona: Marcial
Pons, 2000, p. 28. Dentro dessa ordem de idéias, é lamentável que a maioria das leis tributárias brasileiras
seja originada de medidas provisórias gestadas no âmbito da Secretaria da Receita Federal, órgão encarre-
gado de arrecadar e fiscalizar os tributos federais, sem qualquer discussão com a sociedade ou com o
Congresso Nacional.

61
Ricardo Lodi Ribeiro

to cada um vai pagar. Assim, a concessão de um benefício fiscal para um determi-


nado grupo de contribuintes vai representar um aumento de ônus para aqueles que
não foram beneficiados pela medida, pois se a despesa pública não é diminuída pela
desoneração fiscal, o Estado vai ter que escolher entre dois caminhos: buscar o
aumento de receita em outro segmento, ou frustrar prestações estatais que prova-
velmente terão como beneficiárias outras pessoas.
Por outro lado, como o peso dos tributos tem uma imensa significação no
preço dos bens e serviços oferecidos na economia, o afastamento do pagamento de
uma exação em relação a um integrante de determinado setor econômico, seja por
meio do planejamento fiscal, de decisão judicial, ou da simples sonegação, terá
como conseqüência a redução significativa do seu preço em detrimento dos seus
concorrentes, que certamente perderão parcelas significativas de mercado ou até
mesmo desaparecerão.
Essas situações, bastante corriqueiras em nossa realidade, mostram que o inte-
resse de um contribuinte passa a ser distinto do interesse do outro, cabendo ao
Estado arrecadar de todos eles, na forma definida na lei, que se pressupõe uma
representação de consenso entre os mais variados segmentos sociais e econômicos.
Logo, não há mais como crer no mito de que exista um direito do contribuinte
em contraposição ao interesse do Estado, pois a grande questão do direito tributário
não é mais a relação vertical entre fisco-contribuinte, mas uma relação horizontal
entre os vários contribuintes de uma mesma sociedade. Na verdade, a lei fiscal apre-
senta uma natural ambivalência encontrada nos efeitos colaterais que uma medida
positiva para determinados contribuintes, representará ao direito de outros contri-
buintes. Assim, dada a ambivalência fiscal, e dissonância entre os interesses dos vários
grupos de pessoas, mais adequado passa a ser falarmos em direitos dos contribuintes.
Por essa razão, a segurança jurídica do contribuinte ganha uma dimensão plu-
ral, baseada na aferição da adequação dos critérios legislativos à justiça fiscal e à
repartição dos riscos e custos sociais. Em conseqüência, isonomia e capacidade con-
tributiva não mais se contrapõem à legalidade, que deve assegurar o cumprimento
da divisão dos encargos fiscais pelo critério legal definido de acordo com o plura-
lismo político com a participação decisiva da opinião pública e dos meios de comu-
nicação104 e com a razão comunicativa.105
Em conseqüência, a segurança jurídica mais não legitima um regime legal que
dê proteção máxima para que um contribuinte, na defesa do seu interesse econô-

104 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del Principio
de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, 317.
105 A razão comunicativa, segundo Habermas, se traduz na capacidade humana dirigida ao entendimento, em
oposição à ação instrumental, dirigida à obtenção de objetivos. Deste modo, a pretensão de verdade do
proponente deve ser defensável a partir de argumentos que possam superar as objeções de possíveis opo-
nentes, e, ao final, contar com a aprovação de um acordo racional da comunidade (HABERMAS, Jürgen.
Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32).

62
Temas de Direito Constitucional Tributário

mico, consiga se desonerar do cumprimento da norma tributária, a partir de sua


menor ou maior astúcia na manipulação das formas jurídicas, caso esta atitude se
dê em detrimento dos outros indivíduos.
Essa nova legalidade vai buscar uma regra de tributação clara e transparente,
obtida numa arena marcada pelo pluralismo político e influenciada pela razão
comunicativa, a partir de uma solução compromissória entre os destinatários e os
vários segmentos de contribuintes. Para tanto, essa regra deverá ser capaz de se
sobrepor aos interesses dos grandes contribuintes, dotados de sofisticados estrata-
gemas para o afastamento dos tributos, a fim de garantir o triunfo da política sobre
o domínio exclusivo da economia.
Nesse ambiente, o direito tributário se aproxima da moral e da ética, seja em
relação às práticas do Estado, legislador e administrador, ou do contribuinte.106
Nesse novo panorama, a legalidade tributária passa a significar, como assinala
Tipke,107 a segurança diante da arbitrariedade da falta de regras, uma vez que a
segurança jurídica é a segurança da regra. A certeza na aplicação da norma tribu-
tária para todos os seus destinatários é que garante o império da lei.108
A despeito da aceitação cada vez maior que essas idéias obtêm em todo o
mundo, no Brasil, a segurança jurídica ainda padece de uma coloração individua-
lista, contemporânea do Estado liberal do século XIX, o que, de certa forma, pode
ser explicado pelo grande desenvolvimento do direito tributário pátrio no período
da ditadura militar (1964-1985). De fato, a luta contra o arbítrio reproduziu um
ambiente político propício ao fortalecimento da legalidade, a exemplo do que se
deu nas lutas dos burgueses e suas idéias iluministas contra o poder absoluto do rei.
Dentro desse contexto, se explica o aferramento à legalidade como única forma de
defesa contra o autoritarismo dos generais-presidentes. Mas com a redemocratiza-
ção do país, o charme democrático iluminista se dissolve, revelando todo o anacro-
nismo formalista desse pensamento.109
Deve ser afastada também uma idéia muito difundida no Brasil, de que em
razão da nossa tradição fundada no sistema da civil law, o valor da segurança jurí-
dica deve preponderar sobre os demais, pois a garantia da sua realização é a sua
conexão com os demais valores e princípios do nosso ordenamento.110

106 TIPKE, Klaus. Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes, Trad. Pedro Herrera Molina.
Barcelona: Marcial Pons, 2002, p. 25.
107 “Rechtsetzung durch Steuererichte und Steuervewaltungsbehörden?” Steuer und Writschaft 58 (3): 194,
1981, apud TORRES, Ricardo Lobo (“Legalidade Tributária e Riscos Sociais”. Revista de Direito da
Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53: 178-198, 2000, p. 179).
108 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 29.
109 Ibidem. No mesmo sentido, DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente –
Proporcionalidade, Tipicidade Aberta e Afetação de Receita. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 92.
110 PALMA FERNÁNDEZ, José Luis. La Seguridad Jurídica ante la Abundancia de Normas. Madrid, Centro
de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997, p. 38.

63
Ricardo Lodi Ribeiro

Além da evidente inexistência de relação entre a evolução histórica do nosso


direito, a partir da tradição européia continental, e a supremacia da segurança jurí-
dica sobre os demais valores, destaque-se que a incorreção dessa associação de
idéias também é revelada pelos compromissos assumidos pela Constituição de 1988
com uma sociedade justa e solidária, com a erradicação da pobreza e o combate aos
desequilíbrios sociais. Ora, se nem as nações que apresentam uma distribuição
social mais justa se dão ao luxo de privilegiar a segurança em detrimento da justi-
ça, esta opção pelo Brasil se traduziria no abandono dos objetivos do constituinte
com a exacerbação da desigualdade.
A consagração da teoria da tipicidade fechada na doutrina brasileira represen-
tou o triunfo de uma peculiar opção, fora do contexto histórico mundial e sem
paralelo em outros ramos do direito pátrio, da segurança jurídica como valor abso-
luto e insuscetível de ponderação com qualquer outro.
Ao contrário do que parece acreditar a nossa doutrina formalista, a adoção do
princípio da legalidade tributária pela nossa Constituição Federal, longe de represen-
tar uma peculiaridade nacional, brota como fruto da evolução da ciência do direito
em todo o globo.111 Logo, parece óbvio, que a consagração do princípio da legalida-
de tributária não é desprestigiada pela superação das teorias ligadas ao positivismo
formalista que recomendam a vinculação absoluta do aplicador do direito à norma.
O que diferencia a Constituição Brasileira de 1988 dos textos constitucionais
estrangeiros é uma minuciosa repartição de competências entre os entes federati-
vos, traço que se prende muito mais à preservação das autonomias dos entes peri-
féricos em face do poder central do que um reforço da segurança do contribuinte
quando da aplicação e interpretação da lei baseada nessa competência constitucio-
nal, como nos revela o modelo federal alemão.
Assim, buscar na repartição constitucional das competências tributárias o
arcabouço para uma tipicidade fechada é extrair da Constituição uma sistemática
que, não só nela não é prevista, como contraria toda a pauta valorativa por ela con-
sagrada.
Como bem observado por Ricardo Lodo Torres,112 a utilização das expressões
tipicidade “fechada”, legalidade “estrita”, e reserva “absoluta” de lei, não derivam
da nossa Constituição, mas de construção de nossa doutrina, embalada por razões
mais ideológicas que científicas.

111 Vide UCKMAR, Vitor (Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio
Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 24), onde o autor revela que o princípio da legalidade
tributária é adotado em todos as constituições vigentes, exceto, à época, na da ex-URSS, e reproduz, inclu-
sive, o dispositivo constitucional de diversos países.
112 “Direitos Fundamentais do Contribuinte”. In MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Fundamentais do
Contribuinte. Pesquisas Tributárias – Nova Série – nº 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 167-186, 2000,
p. 185.

64
Temas de Direito Constitucional Tributário

É curioso observar que mesmo entre os setores médios que não se beneficiam
dos efeitos dessa opção pela acumulação de patrimônio, a idéia da supersegurança
jurídica encontra-se bem disseminada, já que essa sobrecarga de segurança oferece
conforto à ansiedade provocada pela incerteza, sem, no entanto atacar suas causas.113

4) Conclusão: A Segurança Jurídica Plural e suas Conseqüências


no Direito Tributário

Cumpre enfatizar que, despeito da eterna busca pela segurança, a incerteza


causada pelos riscos sociais não se combate pela ilusão de que a norma irá prever
todas as possibilidades que o mundo real pode oferecer. Muito ao contrário. A segu-
rança jurídica não se revela pelo fechamento da linguagem do legislador, com a uti-
lização de tipos fechados ou conceitos classificatórios, que, se já não se mostravam
remédios adequados à primeira modernidade, hoje se revelam absolutamente
incompatíveis com a variedade e imprevisibilidade dos perigos, que caracterizam a
ambivalência da sociedade de risco.
A insegurança gerada pela ambivalência fiscal se combate com um conjunto
de regras jurídicas extraídas de soluções dialogais, e que sejam capazes de preservar
os direitos fundamentais de todos os contribuintes.
No campo fiscal, a segurança jurídica plural visa a consolidar um sistema basea-
do na transparência, que seja apto a dar resposta aos anseios de toda a sociedade, e
não de uma pequena parcela que tem acesso à justiça e ao planejamento fiscal.
Como conseqüência desse novo panorama, a transparência fiscal exige medi-
das legislativas de combate a evasão e elisão fiscal, como as Leis Complementares
nº 104, que introduziu a cláusula geral antielisiva,114 e nº 105, que flexibilizou o
sigilo bancário em relação à fazenda pública.
A transparência fiscal exige do fisco, por sua vez, medidas moralizadoras de
combate à corrupção, de simplificação da arrecadação tributária e de impessoalida-
de na fiscalização, o que ainda demanda muitos avanços legislativos em nosso país.
Aliás, a única forma, que possa ir além da abstração da norma, de conferir efetivi-
dade à isonomia e capacidade contributiva, é uma administração tributária eficien-
te e que trate a todos da mesma forma.
Por outro lado, os riscos da bancarrota do Estado e do desequilíbrio concor-
rencial entre os agentes econômicos de um mesmo mercado são combatidos por
uma administração eficiente e por uma legislação que dificulte as iniciativas elisi-
vas por meio da elaboração de regras de incidência que evitem o detalhamento des-

113 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.
56.
114 Sobre o tema, vide RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003.

65
Ricardo Lodi Ribeiro

necessário aos objetivos fiscais e extrafiscais da tributação, que só se prestam à fuga


da incidência.115
Nesse sentido, abandonada ilusão acalentada pelo positivismo formalista, a
norma tributária poderá lançar mão de tipos, que por natureza são necessariamen-
te abertos, e conceitos indeterminados.116 Nestes, a lei não abre espaço para uma
escolha subjetiva do aplicador, muito embora careçam sempre de um preenchi-
mento valorativo. Não é que exista uma única solução legal,117 mas nos conceitos
indeterminados há, como explica Engisch, uma valoração objetiva, a partir das con-
cepções dominantes no corpo social.
No entanto, em nome da legalidade tributária baseada no pluralismo político,
não poderá o legislador tributário utilizar-se de conceitos discricionários, em que o
legislador atribua ao administrador a possibilidade de escolher entre os vários
caminhos a seguir, a partir de uma valoração subjetiva do aplicador do direito, de
acordo com suas convicções pessoais. A discricionariedade confere à autoridade
administrativa o poder de determinar por ela própria, de acordo com o seu modo
de pensar, o fim próprio de sua atuação,118 o que se mostra incompatível com o
princípio da reserva legal tributária.
Na sociedade de riscos aumenta a demanda por mecanismos tributários que,
abandonando o clássico modelo baseado exclusivamente no fato gerador e na capa-
cidade contributiva, como manifestação de riqueza já conhecida (olhar voltado
para o passado), sejam capazes de prevenir e atenuar os riscos futuros. Nesse diapa-
são, a utilização pela lei de conceitos indeterminados e de tipos abertos à comple-
mentação administrativa passa a ter uma relevância ainda maior, a fim de imputar
o ônus fiscal ao agente causador do risco.
Nesse Estado de segurança social, aqueles que causam os riscos são chamados
ao pagamento do tributo, como ocorre, em nosso país, no SAT – Seguro de
Acidentes do Trabalho, na tributação ambiental e nas exações exigidas pelas agên-
cias reguladoras.
Por último, não é demais observar que a mudança do paradigma liberal de
segurança jurídica individual para o modelo de segurança plural da sociedade de
riscos recomenda a releitura de todos os institutos jurídicos baseados na antiga

115 COSTA, Valdés. Instituciones de Derecho Tributário. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 127.
116 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Legalidade Tributária, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e Cláusulas
Gerais”. Revista de Direito Administrativo 229: 313-333, 2002.
117 No sentido do texto, recusando a possibilidade de uma única solução legal, vide ANDRADE, José Vieira
de (O Dever de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos, Coimbra: Almedina, 1992, p. 367).
Contra: GARCÍA DE ENTERRÍA (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo/FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón.
Curso de Derecho Administrativo, vol. I. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 460), defendendo a inexistên-
cia de uma pluralidade de soluções justas em cada caso.
118 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 216.

66
Temas de Direito Constitucional Tributário

visão, o que decerto extrapola os limites desse trabalho. Porém, é forçoso reconhe-
cer que, diante do novo quadro, se intensificam as discussões sobre o caráter abso-
luto da coisa julgada119 e do direito adquirido,120 bem como se redesenha o princí-
pio da proteção à confiança legítima,121 em função do ato jurídico perfeito e da
mudança dos critérios jurídicos do lançamento.

119 PONTES, Helenilson Cunha. Coisa Julgada Tributária e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005.
120 SARMENTO, Daniel. Direito Adquirido, Emenda Constitucional, Democracia e Justiça Social. Artigo
publicado no site Mundo Jurídico em 01/02/05. Disponível na Internet: www.mundojuridico.adv.br.
Acesso em 10 de maio de 2005.
121 ÁVILA, Humberto. Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa dos Contribuintes. Revista
Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, nº 13, abril-maio, 2002. Disponível na
Internet: www.direitopublico.com.br. Acesso em 05 de maio de 2005.

67
IV
Da Legalidade à Juridicidade Tributária

Sendo alicerçado na segurança jurídica, o princípio da legalidade não restou


inalterado diante de tantas transformações nos seus pressupostos axiológicos nas
últimas décadas. Embora o fenômeno seja mais sentido em outros ramos do
Direito,1 não são poucos os autores, estrangeiros e brasileiros, que perceberam a
nova feição da legalidade tributária no Estado Social e Democrático de Direito.2

1 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Luís S. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado,
1997; LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Etica Jurídica. Trad. de Luis Díez-Picazo. Madrid:
Civitas, 1985; e ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil – Ley, Derechos, Justicia. Trad. Marina
Gascón. Madrid: Trotta, 5. ed., 2003. Entre os administrativistas destacam-se: MAURER, Hartmut.
Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 2000; GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho
Administrativo. V. I. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000; e OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública
– O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. Entre nós: MOREI-
RA NETO, Diogo de Figueiredo. “Juridicidade, Pluralidade Normativa, Democracia e Controle Social –
Reflexões sobre alguns rumos do Direito Público neste século”. In: ÁVILA, Humberto (org.), Fundamentos
do Estado de Direito – Estudos em Homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo:
Malheiros, 2005, pp. 91-113; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de
Janeiro: Forense, 2007; e BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo – Direitos
Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. No Direito
Constitucional, vide GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006; ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao Estudo do Direito. Trad. Gersélia Batista de Oliveira
Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da
República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1998; PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Universalidad de los Derechos Humanos y El Estado
Constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2002; e CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedida, 1998. Entre nós: BARROSO,
Luís Roberto. “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (pós-moder-
nidade, teoria crítica e pós-positivismo)”. In: BARROSO, Luís Roberto (org.), A Nova Interpretação
Constitucional – Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
pp. 1-48; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição Aberta e os Direitos Fundamentais – Ensaios
sobre o Constitucionalismo Pós-Moderno e Comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003; CLÈVE,
Clemerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2000,
e SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
2 Entre eles, destaque para TIPKE, Klaus, Grenzen der Rechtsforbildung durch Rechtsprechung und
Verwaltungsvorschriften im Steuerrechts. Köln: O. Schmidt, 1982, apud TORRES, Ricardo Lobo,
Tratado..., v. II, p. 442; HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Metodología del Derecho Financiero y
Tributario, México: Porrúa, 2004; e NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos.
Coimbra: Almedina, 1998. Entre nós: TORRES, Ricardo Lobo, Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário – V. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária. São
Paulo: Dialética, 1998; e ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.

69
Ricardo Lodi Ribeiro

O conceito de lei, como limitação do poder do príncipe pelos representantes


do povo, surge juntamente com o Estado de Direito, no bojo da luta da burguesia
contra o Absolutismo. Se em Rousseau a legalidade se vinculava à autonomia do
cidadão e à vontade geral, visão que preponderou no início da Revolução Francesa,
é o individualismo de Locke, com a liberdade pessoal e da propriedade, que acaba
por predominar na França, a exemplo do que ocorrera na Inglaterra, desde o Bill of
Rights, de 1689, na afirmação do Parlamento diante do Rei.3
Como se pode perceber com clareza, o objetivo do parlamentarismo burguês
não era o de cooperar com o rei, a fim de que o Estado conformasse a sua vontade
com a da sociedade, mas proteger a liberdade individual e a propriedade do poder
do monarca.4
Mas a superação do poder real não ocorre sem uma longa transição. Nas esca-
ramuças entre o soberano e o parlamento, surge na Europa Continental nos sécu-
los XVIII e XIX a monarquia dual, em que há uma dúplice fonte do Direito: o
monarca, legitimado pelo princípio monárquico,5 representando o Estado de um
lado; e o Parlamento, de outro, fundamentado na soberania popular, representan-
do a Sociedade e a Nação.6
Na dicotomia Estado-Sociedade, a lei passa a ser instrumento de garantia do
espaço da autonomia individual frente ao Estado. Deste modo, o conteúdo do que
hoje chamamos de direitos fundamentais se realizava e se protegia por meio da lei,
e constituía, por esta razão, matéria de reserva de lei.7 Nesse modelo liberal, a
Constituição representava a linha divisória “entre a esfera da sociedade econômi-
ca, livre do Estado, na qual os indivíduos buscam sua felicidade e seus próprios
interesses de forma autônoma e privada, e a esfera estatal da persecução do bem
comum”, não sendo sua função combinar a esfera do bem individual e do bem
comum sob a idéia de um conteúdo mais abrangente.8

3 De acordo com Moncada, a limitação do poder do rei na Inglaterra pela common law vem desde os tem-
pos medievais (MONCADA, Luís S. Cabral de. Lei e Regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p.
608). Note-se, como observa Casalta Nabais, que o desenvolvimento da legalidade na Inglaterra é fruto
de um movimento paulatino, que tem raízes consuetudinárias e é afirmado pela Magna Carta (1215),
pela Petition of Rights (1628) e pelo Bill of Rights (1689). (NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental
de Pagar Impostos, p. 322).
4 VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei – A Causa da Lei na Constituição Portuguesa de 1976. Porto:
Universidade Católica Lusitana, 1996, p. 124.
5 De acordo com Stahl, o princípio monárquico, cunhado em oposição à soberania popular e ao parlamen-
tarismo inglês, prescreve que o poder do príncipe a partir de direitos próprios, baseados na tradição,
encontra-se acima da representação popular, permanecendo como o centro da Constituição, como poder
positivo do Estado. (VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 116).
6 VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 122. No mesmo sentido, CLÈVE, Clemerson Merlin.
Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 54.
7 VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 139.
8 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia..., p. 304.

70
Temas de Direito Constitucional Tributário

Ao contrário da maioria dos países da Europa Ocidental, que na segunda


metade do século XIX tinham o poder de fato inteiramente exercido pelo Parla-
mento, a Prússia, e depois a Alemanha unificada, conviveram com o dualismo até
o final da era oitocentista,9 o que permitiu o desenvolvimento na doutrina tedesca
da reserva de lei como garantia dos direitos da liberdade contra o poder legiferan-
te do rei.10
É nesse pano de fundo histórico que surge a doutrina da lei material e lei for-
mal, desenvolvida por Laband, inserida no contexto constitucional prussiano, a fim
de resolver os conflitos de competência entre o Rei e o Parlamento. Estabelecia o
art. 62 da Constituição prussiana que “o poder legislativo exerce-se conjuntamen-
te pelo Rei e pelas Câmaras. O acordo do Rei e das Câmaras é indispensável para
toda a lei”. Diante deste dispositivo, Laband defende ser a expressão lei limitada à
acepção material do referido vocábulo, traduzindo-se em regra de direito. Só nesse
caso, haveria a necessidade de uma lei em sentido formal, emanada da via legisla-
tiva. Segundo esse entendimento, o orçamento, como não tinha sido considerado
lei em sentido material, poderia ser aprovado apenas pelo rei.11
Como contraponto à proteção do poder legiferante do rei, a que a teoria da lei
material prestou relevantes serviços, nasce a reserva de lei, que pretendia defender
o âmbito de competência do Parlamento perante as intromissões do Executivo. Se
os direitos da liberdade se encontravam submetidos à reserva de lei, campo onde o
Poder Executivo tinha que fundamentar na norma legislativa o seu poder de atua-
ção, havia todo um rol de atividades onde a atuação administrativa, na ausência de
lei, encontrava-se livre. Neste espaço, a lei não era pressuposto, mas limite. Com
isso, surge a teoria da primazia de lei, na denominação dada por Otto Mayer.12
Tomando por base a sua concepção histórica, a reserva de lei, conforme origi-
nalmente concebida, só tinha sentido em estruturas constitucionais que aceitavam

9 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 329.


10 VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 125: “O debate acerca do conceito de lei vai nascer pre-
cisamente da separação entre Estado e Sociedade decorrente do sentimento liberal e que as estruturas
constitucionais do século dezenove racionalizavam através de delimitações competenciais. Tal debate vai
ser impulsionado pelo conflito constitucional prussiano. O dualismo que tal conflito patenteou tornou
visível o delicado equilíbrio das Constituições monárquicas e forçou o tratamento teorético-científico do
sistema constitucional de competências, que teve em LABAND a teorização mais intensa e duradoura.”
11 VAZ, Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 129. O autor português noticia que a lição de Laband se
destina a resolver o impasse advindo da crise para a aprovação do orçamento prussiano de 1862, em que
Bismarck, ministro-chefe do governo do Rei Guilherme I, pretendendo reformar o exército prussiano,
previu na proposta orçamentária numerosos recursos para essa finalidade, não colhendo a aprovação
legislativa. Entendendo que o orçamento não era lei material, dispensando, portanto, da aprovação do
legislativo, o governo prussiano dá por aprovado a lei de pressupostos. O interesse do episódio não se
revela só pelos desdobramentos para a futura história da Europa com o fortalecimento do exército prus-
siano e o surgimento do II Reich, mas pelo pioneirismo da utilização de técnicas puramente jurídicas, e
não meramente políticas, para a resolução de um conflito constitucional.
12 MAYER, Otto. Deutsches Verwaltungsrecht, 3. ed. München e Leipzig, 1924, t. I, p. 68, apud VAZ,
Manuel Afonso. Lei e Reserva da Lei..., p. 142.

71
Ricardo Lodi Ribeiro

a existência de espaços estatais livres da lei, a partir da adoção do dualismo em rela-


ção à estruturação política dos órgãos estatais, pois no modelo monista, toda a ação
do Poder Executivo encontrava fundamento na lei.
Nesse contexto dualista, onde uma parcela do poder não derivava da represen-
tação popular, o princípio da legalidade, identificado nesse momento com a reser-
va de lei, marca a hegemonia da burguesia, que se expressa no Legislativo, e o retro-
cesso do Executivo e dos Juízes que, outrora poderes autônomos, passaram a ser
subordinados à lei.13
No entanto, mesmo superado o dualismo pelo Estado Democrático de Direito,
com a legitimação democrática do governo, prosseguiu na doutrina européia uma
certa inimizade do executivo, sentimento que, segundo Casalta Nabais,14 foi herda-
do do Estado Absoluto, mas que sobreviveu a este pela falta de confiança da bur-
guesia no Poder Executivo, seja por recordações antigas, seja pela idéia de que só
pelo processo legislativo seria possível encontrar a expressão normativa do bem
comum e da justiça, a partir de uma norma genérica e abstrata.
A generalidade da lei era vista não só como uma garantia da igualdade e da
imparcialidade, à medida que representava uma proteção contra o uso abusivo pelo
próprio Poder Legislativo, já que a normatividade era feita para todos; mas também
como uma premissa para a realização da separação de poderes, vez que os atos de
efeitos concretos deveriam ser reservados à Administração e aos Juízes. Vinculada
à generalidade estava a abstração, sua expressão no tempo, compreendida como
validade indefinida formulada para situações abstratas. A sociedade liberal encon-
trava na generalidade e na abstração a garantia da estabilidade da ordem jurídica e,
conseqüentemente, da certeza e da previsibilidade do Direito. Nesse sentido, a abs-
tração não se coadunava com as leis retroativas, necessariamente concretas, como
também das leis temporárias. Enfim, é inimiga da modificação demasiadamente
freqüente de umas leis por outras.15
Nesse incipiente Estado Democrático de Direito do século XIX, o monopólio
político-legislativo de uma classe social relativamente hegemônica, a burguesia,
determinava por si mesma as condições para a unidade da legislação. Sua coerência
era assegurada pela unidade das forças políticas que a sustentavam, sem necessida-
de de instrumentos constitucionais.16
Porém, sendo inevitável para o Estado Democrático de Direito a extensão dos
ideais democráticos por toda a sociedade, a burguesia teve que ceder o seu monopó-
lio político com o advento do sufrágio universal. Com isso, essa coesão é quebrada,17

13 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 30.


14 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 331-332.
15 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 29.
16 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 32.
17 MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo – De Hobbes a Locke. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 284-285.

72
Temas de Direito Constitucional Tributário

mas a manutenção do poder é obtida pela ilusão de o Direito poderia servir de motor
da mudança social. É o que Boaventura Santos denominou de utopia jurídica que, em
alguns lugares, não deixou de ter um caráter meramente simbólico, como ocorreu nas
sociedades periféricas, em outros, atendeu a algumas demandas sociais, ainda que de
forma fragmentada. Assim, “todos os futuros seriam possíveis desde que estivessem
contidos num mesmo futuro capitalista”.18
A despeito da superficialidade e lentidão das transformações sociais, a classe
dominante se vê obrigada, para manter o poder político, a fazer concessões, confe-
rindo prestações positivas como a educação, a saúde e a assistência social, que
levam à intervenção estatal típica do Estado Social. A partir dessa atuação estatal
na área social resta diluída a separação rígida entre Sociedade reguladora da econo-
mia, e protegida pelo parlamento, e o Estado, senhor da política e identificado com
o Poder Executivo. A lei deixa de ser geral e abstrata, e não mais dá suporte à cren-
ça no seu caráter onipotente do passado, pelo que não está mais em condições de
assegurar uma justiça social a priori, como demonstram as leis-medidas de efeitos
concretos, a efetivar as providências governamentais; e a ação dos lobbys que pas-
sam a atuar no Parlamento, a demandar por tutelas específicas.19 Morre, assim, a
ilusão da lei como expressão da vontade geral da comunidade.
Corroborando com a perda do prestígio da sua obra, o legislador, como sus-
tenta Philipp Heck, não se vê mais capaz de dar cumprimento aos ideais da deter-
minação total e da plena adequação, mediante seus próprios preceitos, não só pela
insuficiência de sua capacidade de percepção, dada à imprevisibilidade do futuro e
à quase infinita complexidade da vida moderna; mas também pela limitação dos
seus meios de expressão, incapazes de reproduzir ou expressar suas idéias de modo
inequívoco e completo, ainda que pudesse perceber todos os casos da vida.20
De acordo com esse novo panorama, em que resta superada a dicotomia entre
Estado x Sociedade, tão cara ao Estado Liberal e às monarquias dualistas, a função
do Parlamento deixa de ser a limitação do Poder do Estado/Monarca, como forma
de garantir a liberdade individual e a propriedade, para viabilizar a participação do
cidadão na vontade formadora do Estado/Comunidade, destinado a atender às
necessidades da coletividade.
Paralelamente, os Governos passam a ser dotados de legitimidade democráti-
ca, sendo também exercidos por representantes eleitos diretamente pelo povo, num
cenário bem distinto daquele contexto histórico em que se produziram as aspira-
ções iluministas que fortaleceram o anseio de que só os representantes do povo,

18 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente – Contra o Desperdício da Experiência.


Para Um Novo Senso Comum: A Ciência e a Política na Transição Paradigmática. Vol. 1. 2. ed. Porto:
Afrontamento, 2002, pp. 162-163.
19 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 332-333.
20 HECK, Philipp. El Problema de La Creación del Derecho. Trad. Manuel Entenza. Granada, Comares,
1999, p. 30.

73
Ricardo Lodi Ribeiro

reunidos no parlamento, poderiam criar obrigações, e de que o Poder Executivo


seria um mero executor das políticas por eles definidas.21
Com o pluralismo político que marca a sociedade da segunda modernidade, a
crise da generalidade e da abstração da lei é fruto da ampla diversificação de gru-
pos e estados sociais que participam do mercado das leis. Esses grupos dão lugar a
uma acentuada diferenciação de tratamento normativo, seja como implicação
empírica do princípio da igualdade do chamado Estado Social, a determinar uma
disciplina adequada a cada situação particular, seja como conseqüência da pressão
dos interesses corporativos sobre o legislador, dando origem à explosão de legisla-
ções setoriais a abalar o princípio da generalidade. A crescente ação dos grupos
setoriais determina uma regulação, cada vez mais específica diante das transforma-
ções adequadas às novas necessidades dos vários grupos, e destinada a perder rapi-
damente o sentido, sendo rapidamente substituída, o que deságua na crise da abs-
tração. Por outro lado, o referido pluralismo leva à heterogeneidade de valores e
interesses expressos por lei, ensejando a contratualização do seu conteúdo, como
conclusão de um processo político, marcado pela ocasionalidade, e integrado por
vários sujeitos sociais particulares, como partidos, sindicatos, grupos de pressão.
Cada um dos atores sociais, quando crê ter alcançado força política suficiente para
orientar o acordo em favor dos seus interesses, busca a aprovação de novas leis que
sancionem a nova relação de forças. Essa ocasionalidade é a perfeita contradição da
visão racional do Direito (base da generalidade e abstração das leis) que passa a ser
desconsiderada diante do jogo das relações de poder.22
Diante desse quadro, a lei não é mais garantia absoluta e última de estabilida-
de, uma vez que ela mesma se converte em instrumento e causa de instabilidade e
de ambivalência. As conseqüências da ocasionalidade das coalizões de interesses
que ela expressa se multiplicam, por sua vez, em razão do número progressivamen-
te crescente das intervenções legislativas exigidas pelas novas situações constitu-
cionais materiais. A contratualização das leis fez com que as maiorias legislativas

21 ARAGÃO, Alexandre Santos de. “Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contem-
porâneo”, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53: 42, 2000.
22 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 37. No mesmo sentido: GRIMM, Dieter. Constituição
e Política, p. 18: “diante da acelerada mudança social, também aumenta a velocidade com a qual o direi-
to existente envelhece e precisa ser substituído por um novo. Por conseguinte, a alta produção de nor-
mas é, em sua maior parte, estruturalmente condicionada. Não se pode esperar de uma sociedade, que
tanto aumenta, e cada vez mais, sua capacidade de rendimento quanto sua sujeição a transtornos, que
ela possa subsistir com poucas regras ou regras jurídicas simples.” Entre nós: SARMENTO, Daniel.
Direitos Fundamentais e Relações Privadas, p. 39: “Se no Estado Liberal as normas eram feitas para durar
indefinidamente, agora a tônica são as ‘leis-medidas’, editadas para a solução de algum problema con-
creto, muitas vezes passageiro. A estabilidade das normas é substituída pela efemeridade, e o direito
positivo torna-se verdadeiramente caótico, afastando-se da placidez quase parnasiana do ordenamento
do Estado Liberal, que se resumia às codificações privadas e a algumas poucas leis processuais e penais.
Nessa babel jurídica, esvai-se a segurança, e a presunção do conhecimento das leis pelo cidadão torna-
se uma ficção absurda. Fala-se em declínio e até em morte do direito.”

74
Temas de Direito Constitucional Tributário

sejam substituídas por cambiantes grupamentos de interesses, gerando leis cada vez
mais compromissórias e, em conseqüência, contraditórias, caóticas, obscuras, dei-
xando a sensação de que, para a obtenção do acordo, tudo é transigível, até mesmo
os valores e direitos mais intangíveis. Esse pluralismo político-social gera também
o pluralismo de fontes do Direito, o que fragiliza o princípio da legalidade, diante
da pulverização e da incoerência da lei. Com a fragilização da função da lei na har-
monização da ordem social, a Constituição assume um papel inédito de assegurar a
consecução da unidade do ordenamento jurídico, se convertendo em objeto de
mediação.23 Nesse contexto, a unidade, a coerência e a hierarquia do ordenamen-
to jurídico deixam de constituir o ponto de partida do Direito, para estabelecer-se
como uma meta a ser alcançada.24
Dialeticamente, a lei reproduz o conflito de princípios espalmado pela Cons-
tituição, ocorrendo uma transfiguração da legalidade administrativa de um “direito
de regras” em um “direito de princípios”. Assim, um sistema tendencialmente fecha-
do de legalidade é substituído por um sistema aberto: a legalidade administrativa, a
semelhança do que sucede no sistema constitucional, torna-se predominantemente
principialista, atribuindo-se ao aplicador um poder de proceder a ponderação de
interesses. Há um ativismo constitucional de Administração, deixando a lei de ser-
vir de instrumento de certeza e segurança jurídica na atuação administrativa.25
Com a erosão do mito liberal de divinização e perfeição da obra legislativa ao
longo do século XX,26 a premissa positivista de que o Estado só pode fazer o que a
lei permite e o particular tudo o que ela não veda, é flexibilizado.27
Casalta Nabais28 sintetiza com grande felicidade esse processo de perda de
prestígio da lei, mostrando que o princípio da legalidade deixou de constituir a
garantia de produção de um Direito justo decorrente do consentimento do cidadão,
uma vez que:

a) a lei não está mais acima de qualquer suspeita, já que muitas vezes viola o
direito do cidadão, especialmente da minoria vencida no Parlamento;

23 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 38; e GRIMM, Dieter. Constituição e Política, p. 62.
24 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Universalidad de los Derechos Humanos..., p. 67.
25 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 167. Segundo Tipke, passamos de um Estado
de Leis a um Estado de Princípios (TIPKE, Klaus. Steuerrechtsordnung. Köln: O. Schmidt, 2000, v. 1, p.
121, apud TORRES, Ricardo Lobo, Tratado..., v. II, p. 422).
26 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 198.
27 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil..., p. 38. No mesmo sentido ARAGÃO, Alexandre Santos
de. Direito dos Serviços Públicos, p. 337: “hoje não mais se concebe que, na ausência de lei proibitiva,
possa o particular fazer o que quiser, ainda que contrariando valores e princípios constitucionais. A ação
do particular é, portanto, diretamente restringida, não só pela lei, como também pelos princípios cons-
titucionais.”
28 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 339-340.

75
Ricardo Lodi Ribeiro

b) o Poder Executivo não é mais o inimigo número um das liberdades, dada a


sua legitimidade democrática;
c) o Governo normalmente está em melhores condições técnicas para a reali-
zação da idéia de Direito.

Já para Paulo Otero,29 a onipotência da lei em face da Administração é des-


mistificada pois:

a) a lei deixou de ser o único fundamento do agir administrativo, em face da


obediência que esta deve à Constituição, ao Direito Comunitário30 ao
Direito Internacional;
b) há um espaço de autonomia administrativa garantido pela Constituição Federal;
c) a heterovinculação do Governo à lei deve ser repensada em relação ao
Poder Executivo.

Assim, no Estado Social e Democrático de Direito, a lei não é mais a única


fonte do Direito, pois a Administração passa a se vincular a um bloco de legalida-
de, na expressão de Hauriou, a englobar a Constituição, as leis, o regulamento, os
princípios gerais e os costumes.31 Vale destacar que o fato do Poder Legislativo não
monopolizar mais toda a função normativa não resulta em violação ao Estado de
Direito, que não se confunde com Estado Legal ou Estado do Direito.32
Cumpre registrar que a vinculação da Administração não só à lei, mas ao
Direito, ou ao ordenamento jurídico, além de ser amplamente aceita pela doutri-
na,33 já é matéria positivada constitucionalmente em diversos textos, como o da Lei
Fundamental de Bonn, em seu art. 20, § 3º, que dispõe que o Poder Executivo e os

29 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 1.083.


30 Sobre a harmonização da lei tributária nacional e as regras comunitárias, vide p. FALCÓN y TELLA,
Ramón. Introducción al Derecho Financiero y Tributario de las Comunidades Europeas. Madrid:
Civitas, 1998, pp. 112 e segs.
31 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.
V. I, p. 435; PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Universalidad de los Derechos Humanos..., p. 68.
32 ARAGÃO. Alexandre Santos de. “Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contem-
porâneo”, p. 46.
33 Por todos, Karl Larenz: “La vinculación del juez a la ley sólo es, por tanto, un aspecto parcial de su vincu-
lación al Derecho en su conjunto. El Derecho, en efecto, encuentra su expresión primera en la ley lo genui-
namente ‘vinculante’ a través de ella. Sólo el que no deja de ver esto ningún momento puede entender el
sentido de la expresión ‘vinculación a la ley y al Derecho’” (LARENZ, Karl. Derecho Justo..., p. 171). No
mesmo sentido, Zippelius: “o Poder Executivo e a Jurisdição estão vinculados à lei e ao Direito. Isso signi-
fica, em primeiro lugar, que os atos da Jurisdição e do Poder Executivo não devem infringir ‘lei ou direito’
(supremacia da lei). ‘Leis’, no sentido dessa determinação constitucional, são não apenas as leis formais, mas
também todas as outras dela derivadas, preceitos jurídicos escritos (decretos-lei e regulamentos também,
ou seja, todo direito positivo). Ao ‘Direito’ pertencem também as normas não escritas do Direito Con-
suetudinário, produzidas pela convicção jurídica geral e, principalmente, as noções de justiça gerais e esta-
belecidas da comunidade” (ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao Estudo do Direito, p. 118).

76
Temas de Direito Constitucional Tributário

Tribunais estão vinculados à Lei e ao Direito. No mesmo sentido a Constituição


Espanhola que, no seu art. 103.1, estabelece que a Administração Pública serve
com objetividade aos interesses gerais e atua com submissão à Lei e ao Direito.34 No
Brasil, a Lei nº 9.784/99, que regula o procedimento administrativo da União, em
seu art. 2º, parágrafo único, I, dispõe que a atuação da Administração Pública se
dará de acordo com a lei e o Direito.35
É a consagração do princípio da juridicidade que, segundo Alexandre Aragão,
“é uma via de mão dupla: serve tanto para restringir a ação da Administração
Pública não apenas pela lei, mas também pelos valores e princípios constitucionais,
como para permitir a sua atuação quando, mesmo diante da ausência de lei infra-
constitucional específica, os valores da Constituição (lei constitucional) impuserem
a sua atuação”.36
Cumpre destacar que, em tempos de Globalização, não só a lei não é mais a
única fonte normativa, mas o próprio Estado-Nação não possui mais o monopólio da
criação do Direito. Assim, a própria Constituição não tem mais o exclusivo papel na
definição das fontes do Direito, nem goza de uma supremacia absoluta dentro do
ordenamento.37 Dentro desse quadro, já se pode falar no fenômeno da insupracons-
titucionalidade, que é a invalidade da Constituição por violação de uma norma supra-
constitucional, como os valores, o Direito Comunitário e o Direito Internacional.38
Com isso, a legalidade transmuta-se de um modelo de disciplina legislativa
exaustiva, clara e precisa de realidade, para um modelo normativo aberto, ponde-
rativo de interesses, e nesse sentido, imprevisível na sua concretização aplicativa, o
que debilita a densidade ordenadora das leis, reforçando a da Administração, que
aumenta sua atividade realizadora do Direito.39 Esse fenômeno se mostra ainda
mais agudo na sociedade de risco, a exigir um olhar legislativo cada vez mais vol-

34 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.


V. I, p. 439.
35 “Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídi-
ca, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre
outros, os critérios de: I – atuação conforme a lei e o Direito;”
36 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos, p. 337.
37 Segundo Paulo Otero: “a centralidade normativa da Constituição é um produto direto do positivismo
oitocentista e de uma concepção monista das fontes de Direito: num sistema baseado na ilusão de que o
Estado é o único produtor ou, pelo menos, o único detentor da competência definidora de todos os cen-
tros produtores de normas, compreende-se que a Constituição seja dotada de uma absoluta supremacia
normativa dentro de todo o sistema jurídico.” (OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p.
557). No mesmo sentido: FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada, p. 15.
38 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., pp. 559 e 570. De se notar que o fenômeno é
muito mais intenso nos países da União Européia, que flexibilizaram a sua soberania em nome da inte-
gração continental. Porém, se na UE o fenômeno tem aguda pertinência, não é estranho aos demais
ordenamentos jurídicos, todos submetidos aos valores supraconstitucionais e aos direitos fundamentais
reconhecidos pelos tratados.
39 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 162.

77
Ricardo Lodi Ribeiro

tado ao futuro, de acordo com um planejamento e dirigismo econômico que se har-


monizam com a prevenção de riscos, seara onde se mostra difícil o acesso a uma
regulação jurídica de intensa vinculação,40 o que abre caminho para uma atuação
mais intensa do Poder Executivo.41
Estabelecida a regeneração da atividade normativa do Poder Executivo, a ques-
tão primordial deixa de ser a possível extensão do poder regulamentar, para ser a defi-
nição do grau de densidade normativa mínima que deve ter a base legal que o funda-
menta. Nesse sentido, o legislador não precisa definir direitos e obrigações, mas con-
ferir uma habilitação legal para a ação da autoridade administrativa. Mas não se trata
de uma habilitação vazia,42 sendo imprescindível que a lei estabeleça princípios, fina-
lidades, políticas públicas, standards,43 ou seja, um conteúdo essencial, que confira
uma diretiva legislativa precisa, não sendo possível que a disciplina normativa seja tão
sumária que possa conduzir a um resultado qualquer.44 Por maior que seja a discricio-
nariedade conferida pelo legislador, é exigível sempre um certo grau de predetermi-
nação substancial, em razão da necessidade inafastável de a lei prever a finalidade do
exercício do poder, alguns dos seus pressupostos e elementos normativos.45
Porém, deve-se reconhecer que esse novo modelo de legalidade, ao vincular a
atuação da Administração aos valores e princípios, dotados de maior fluidez do que
as regras, abre espaço para um maior contencioso judicial, com o agigantamento do
número de processos e o aumento da morosidade na prestação jurisdicional, agra-
vando a crise na concretização jurisdicional da justiça.46

40 GRIMM, Dieter. Constituição e Política, pp. 18-19: “Diferentemente da tradicional atividade estatal, na
qual se tratava de proteger de transtornos uma ordem social presumida, com relação às atividades de um
moderno Estado preocupado como bem-estar social, trata-se, em grande parte, da modificação das rela-
ções sociais com vistas a determinados objetivos estabelecidos politicamente. A primeira atividade é de
natureza pontual e retrospectiva, a segunda abrangente e prospectiva. Enquanto a primeira se movimen-
ta em terreno conhecido e dominado pelo Estado e, por isso, é normativamente regulamentável de
forma relativamente exata, a segunda realiza-se sob a incerteza e, além disso, depende de numerosos
fatores e recursos, dos quais o Estado só dispõe de forma limitada. Tal atividade é de tal modo comple-
xa, que, mentalmente, não pode mais ser antecipada por completo e, destarte, também não pode ser defi-
nitivamente regulamentada de forma normativa.”
41 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da
Proporcionalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 106: “Caracteriza-se o poderio e a superpre-
sença do Poder Executivo, tido como o departamento da soberania melhor habilitado para o trato dos
inúmeros e cambiantes aspectos da vida pós-moderna”.
42 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 313: “A norma não pode limitar-se a atribuir competência para a prática
de quaisquer atos administrativos sobre certa matéria. Isso equivaleria a conceder poderes ilimitados à
Administração. (...) A norma legal de competência ou ‘de ação’ (Handlungsnorm), que concede um
poder, tem de demarcar-lhe os limites. Esse é desde logo um corolário da função garantística da legali-
dade: na própria definição da competência reside a primeira garantia dos cidadãos.”
43 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos, pp. 327-329.
44 PESSOA, Robertônio Santos. Administração e Regulação. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 145.
45 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 298.
46 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 168. Nesse sentido, “a legalidade deixa de ser
apenas aquilo que o legislador diz, segundo impunham os postulados teóricos do princípio da separação

78
Temas de Direito Constitucional Tributário

Mas será que a idéia de juridicidade se aplica ao Direito Tributário? Nos pare-
ce que a resposta é afirmativa.47 A rigor, não há, cientificamente, como assinala
Casalta Nabais,48 diferença substancial entre o princípio da legalidade tributária, e
o verificado no Direito Administrativo. Em ambos temos a submissão da atividade
administrativa à lei e ao Direito.
Isso significa que a atividade administrativa da Fazenda Pública sempre deve se
pautar não só pela lei, mas pela Constituição49 – não só quanto às limitações constitu-
cionais ao poder de tributar, mas também em relação a toda a sua pauta axiológica50 –,
pelos valores e princípios ainda que não elencados expressamente no Texto Maior.
Nesse contexto, a legalidade tributária, como assevera Humberto Ávila, tem
não só o sentido de regra, ao vedar a criação e majoração de tributo por outro meio
que não a lei, mas também o de princípio, na medida em que estabelece o dever de
um ideal de previsibilidade e determinabilidade para o exercício da atividade do
contribuinte. Ganha ainda a função de postulado, ao exigir do aplicador a fidelida-
de aos pontos de partida estabelecidos na própria lei.51

de poderes, podendo também ser aquilo que a Administração Pública ou os tribunais entendem que o
legislador diz ou o que a lei permite que eles digam ser o Direito vinculativo da Administração Pública”.
(OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 163).
47 TIPKE, Klaus. “Fundamentos da Justiça Fiscal”. In: TIPKE, Klaus e YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal
e o Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 16: “O Estado de Direito não
pode, contudo, esgotar-se em sua concepção formal. Ele não pode regular leis de conteúdo qualquer e
arbitrário. Suas leis, quando não se tratar de meras regras técnicas de conveniência, devem ser material-
mente justas. Isso vale, não por último, para as leis tributárias”. No mesmo sentido: SÁNCHEZ SERRA-
NO, Luis. Tratado de Derecho Financiero y Tributario Constitucional. T. I. Madrid: Marcial Pons, 1997,
p. 261: “en un ordenamiento jurídico cuya norma fundamental o suprema es la Constitución, el princi-
pio de legalidad, entendido en toda su amplitud, no puede quedar reducido o limitado, como es obvio,
al mero respeto de la legalidad ordinaria. De esa juridicidad forma parte asimismo, y ocupa un lugar
preeminente, la conformidad de cualquier actividad, pública o privada, a la propia Constitución, o inclu-
so, si se prefiere, al “bloque de la constitucionalidad”; e COSTA, Valdés. Instituciones de Derecho
Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1996, pp. 123-124.
48 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 382: “Com efeito, não é mais hoje
aceitável a contraposição, tradicionalmente admitida entre legalidade fiscal e a legalidade da adminis-
tração em geral, segundo a qual no direito administrativo (geral) não haveria nada de semelhante ao
princípio da tipicidade do direito dos impostos, que envolve tanto a proibição de qualquer margem de
livre decisão como o recurso à analogia na colmatação de lacunas. Ora uma tal idéia, para além do seu
caráter de algum modo impraticável no concernente à exclusão total de qualquer margem de livre deci-
são, afigura-se-nos defasada da realidade contemporânea, que nos brinda, por um lado, com uma admi-
nistração toda ela subordinada à lei e, por outro lado e sobretudo, com domínios em que a densidade do
princípio da legalidade se aproxima das exigências de determinabilidade tradicionalmente reivindicadas
e consagradas no concernente aos elementos essenciais dos impostos”.
49 MONCADA. Luís S. Cabral. Lei e Regulamento, p. 936.
50 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “A Constitucionalização do Direito Tributário.” In: SOUZA NETO, Cláudio
Pereira e SARMENTO, Daniel (orgs.). A Constitucionalização do Direito – Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 987-1009.
51 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, pp. 121 e 122. No mesmo sentido, CARRERA
RAYA, Francisco José. Manual de Derecho Financiero. V. I. Madrid: Tecnos, 1993, p. 100.

79
Ricardo Lodi Ribeiro

Por outro lado, a ação administrativo-tributária não se resumindo à lei, não


pode prescindir da atividade regulamentar e hermenêutica do Poder Executivo, a
fim de dar aplicabilidade a esse bloco de constitucionalidade,52 que transborda o
conteúdo puramente formal de nossa Constituição. Com isso, compensa-se a aber-
tura normativa com a subordinação administrativa aos princípios constitucionais,
como o princípio da proporcionalidade e da imparcialidade.53
Diante do exposto, evidencia-se a conclusão de que hoje o Direito não se con-
tenta mais com a mera proteção formal baseada na garantia quanto à fonte compe-
tente para emanação da obrigação vinculada aos direitos fundamentais, pois estan-
do todas elas subordinadas à juridicidade da atuação estatal, é imprescindível o
exame do conteúdo material da regulação. Em outras palavras, mais importante do
que saber quem pode fazer, é pesquisar o que se faz.
No entanto, se a densidade normativa exigida para a criação de direitos e obri-
gações aos particulares é submetida a uma reserva de lei relativa, nos termos expos-
tos acima, o que se coaduna com a atribuição de grande poder decisório à autori-
dade administrativa, tal disciplina não encontra aplicação automática no Direito
Tributário, pelo menos no que se refere à criação e majoração de tributo, submeti-
das à reserva absoluta de lei pelo artigo 150, I, da Constituição Brasileira.54
Isso significa que a legalidade tributária exige que a intervenção normativa
seja estabelecida diretamente através da lei, e não por uma mera habilitação legal à
ação administrativa, bem como pelo maior grau de densidade normativa exigida da
regra de incidência tributária. Ainda que esta lei em sentido formal comporte a uti-
lização dos conceitos indeterminados, capazes de enfrentar a imprevisibilidade e a
ambivalência da sociedade de risco, não admite a adoção pelo legislador dos con-
ceitos discricionários, pois violadores do pluralismo político e social que lhe serve
de fundamento no Estado Social e Democrático de Direito.55

52 A expressão bloco de constitucionalidade, de origem francesa, designa o conjunto de normas que o


Conselho Constitucional da França aplica em seu controle prévio de constitucionalidade de determina-
das normas, conjunto que não se limita à Constituição de 1958 (SÁNCHEZ SERRANO, Luis. Tratado de
Derecho Financiero y Tributario Constitucional. T. I, p. 167).
53 ANDRADE, José Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra,
2006, p. 240; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 412;
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 383; CORREIA, José Manuel Sér-
vulo. Legalidade e Autonomia..., p. 339; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos,
p. 336. Sobre o princípio da proporcionalidade no Direito Tributário, vide: PONTES, Helenilson Cunha.
O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2000; CRETTON, Ricardo
Aziz. Os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade e sua Aplicação no Direito Tributário. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
54 Não há que se confundir a expressão “reserva absoluta de lei”, que se refere à necessidade da lei em sen-
tido formal ser o veículo criador do tributo, com uma maior necessidade de fechamento dos tipos no
Direito Tributário.
55 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Legalidade Tributária, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e
Cláusulas Gerais”. Revista de Direito Administrativo 229: 313-333, 2002.

80
V
A Tipicidade Tributária
Sumário: 1) Determinação e Abstração. 2) Os Conceitos de Direito. 2.1) Os Conceitos
Abstratos. 2.2) Os Tipos. 3) A Hipótese de Incidência Tributária e o Tipo.

1) Determinação e Abstração

A reserva legal tributária tem como corolário o princípio da determinação, a exi-


gir que todos os elementos essenciais da obrigação tributária sejam claramente previs-
tos em lei. Tradicionalmente, essa conclusão vem associada na doutrina brasileira à
idéia de uma tipicidade fechada. De acordo com esse posicionamento, no Direito
Tributário, em nome da segurança jurídica (que teria papel preponderante sobre os
outros valores neste ramo da ciência jurídica), o tipo contido na lei deve conter o cri-
tério da decisão em relação a todos os elementos da obrigação, de forma que o aplica-
dor o apreenda por mera dedução, limitando-se a nele subsumir o fato tributário.1
Segundo Alberto Xavier, o princípio da tipicidade tem como corolário:2

a) o princípio da seleção, segundo o qual a lei tributária deve selecionar os


fatos que revelem capacidade contributiva, sendo impossível a tributação
com base num conceito geral ou cláusula geral de tributo;
b) o princípio do numerus clausus, que determina que os tributos devem estar
taxativamente previstos na lei, não havendo espaço para a analogia na
imposição tributária, em face da regra nullum tributum sine lege;
c) o princípio do exclusivismo, que obriga o tipo tributário a abrigar uma des-
crição completa dos elementos necessários à tributação, capaz de conter

1 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978, pp. 92-94. “O princípio da tipicidade da tributação vai, porém, ainda mais longe: exige
que o conteúdo da decisão se encontre rigorosamente determinado na lei. É o princípio da determina-
ção (Grundsatz der Bestimmtheit) de que fala Friedrich. (...) Eis o que a segurança jurídica exige no
domínio tributário: pois não ficaria seriamente abalada a regra nullum tributum sine lege, se na aplica-
ção do Direito Tributário se pudesse recorrer a elementos ou critérios de valoração e decisão que não
estivessem já contidos na própria lei? (...) O princípio da determinação converte, pois, o tipo tributário
num tipo rigorosamente fechado: e tipo fechado não só no sentido que lhe atribuiu Oliveira Ascensão,
de tipo que exclui outros elementos juridicamente relevantes que lhe sejam exteriores, de tal modo que
o fato pode ter um conteúdo extratípico modelado pela vontade (o que é repelido pelo princípio do
exclusivismo), mas também no sentido que lhe atribuem Larenz e Roxin, de tipo que oferece elevado
grau de determinação conceitual, ou de fixação do conteúdo.”
2 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, pp. 92-99.

81
Ricardo Lodi Ribeiro

uma valoração definitiva da realidade, sem carecer ou tolerar qualquer


outro elemento valorativo estranho a ela;
d) e o princípio da determinação, pelo qual o conteúdo da decisão deve ser
rigorosamente previsto na lei, limitando-se o órgão aplicador à mera sub-
sunção do fato ao tipo tributário, uma vez que todos os elementos compo-
nentes deste são minuciosamente descritos pela norma, que não pode con-
ter conceitos indeterminados.

No entanto, tal posicionamento acaba constituindo uma idéia de legalidade


que se sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do
Estado de Direito.3
Ademais, tal construção parte de algumas imprecisões que devem ser esclare-
cidas. Inicialmente, cumpre destacar que a tipicidade se revela pela própria quali-
dade do tipo. Assim, há tipicidade quando o tipo reúne os elementos necessários à
sua caracterização lógica. Não deve ser confundida com a tipificação que se traduz
na formação normativa do tipo, na procura de traços da realidade necessários à
ordenação dos dados semelhantes.4 Também é necessário fazer a distinção entre os
tipos e a definição legal do fato gerador abstrato, pois ainda que esta quase sempre
seja composta por aqueles, com eles não se confunde.
Na verdade, o que a doutrina brasileira normalmente chama de tipicidade é a
necessidade de que todos os elementos essências da obrigação tributária estejam
previstos em lei em sentido formal, o que deriva, como se viu, do princípio da
determinação.5
Contudo, é preciso ressaltar que a idéia de determinação não se extrai de uma
estrutura conceitual, cuja abstração é incompatível com a exigência, pelo princípio
em questão, de correspondência com dados perceptíveis extraídos da realidade.6
Muito ao contrário, a determinação é mais bem atendida pela concreção dos tipos
abertos, a partir da sua valoração adequada a uma pauta axiológica aplicável ao
objeto da regulação.
Em outras oportunidades, a expressão tipicidade tem sido vinculada à
idéia de adequação7 do fato imponível concreto à hipótese de incidência abs-

3 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 119.
4 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e
Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp. 469 e 479.
5 Para Humberto Ávila, o princípio da determinação se atende pela obrigatoriedade de o legislador “inse-
rir os elementos materiais da obrigação tributária com o maior detalhamento possível, por meio de ele-
mentos distintivos determinados ao máximo, naquelas matérias que possam ser normativamente padro-
nizadas, e que, portanto, não digam respeito a prerrogativas técnicas da administração nem sejam
incompatíveis com uma regulação com pretensão de permanência” (ÁVILA, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 308).
6 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciência Jurídica Actuales. Trad. Juan José
Gil Cremades. Granada: Comares, 2004, p. 66.
7 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 489.

82
Temas de Direito Constitucional Tributário

trata,8 por meio do método da subsunção. Porém, a conformidade da situação


fática com o fato gerador, fenômeno indispensável para o nascimento da obri-
gação tributária, não se dá, como adiante se revelará, pela subsunção do supor-
te fático a um conceito legal abstrato, mas pela coordenação daquele a um tipo,
o que longe de constituir uma atividade informada pela lógica formal, não
pode prescindir de uma dinâmica valorativa.9
Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma impro-
priedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos. Para
a definição de tipo fechado, Alberto Xavier, segundo indicado na própria obra cita-
da,10 partiu de uma classificação adotada por Karl Larenz na obra Metodologia da
Ciência do Direito, entre os tipos aberto e fechado, sendo este último caracterizado
por elevado grau conceitual. Todavia, conforme relatado de forma muito perspicaz
por Misabel de Abreu Machado Derzi,11 Karl Larenz abandonou a tese da possibili-
dade do tipo fechado, a partir da terceira edição de sua obra, datada de 1975. De fato,
segundo o posicionamento adotado pelo citado autor alemão nas últimas edições de
sua obra clássica, a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito
abstrato, que em situações ideais apresenta-se fechado.12
No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de
uma estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entroni-
zar o valor da segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora,
neste ramo da ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessi-
dade exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos

8 É Geraldo Ataliba que propõe no Brasil a distinção quanto à nomenclatura do fato gerador, desdobran-
do-a em seus elementos empíricos e normativos. Em relação à descrição hipotética abstratamente pre-
vista em lei, o saudoso professor paulista denomina o fato gerador de hipótese de incidência. Já à base
fática ocorrida no mundo real, dá o nome de suporte fático. Quando este encontra uma discrição prévia
daquela, diz-se ocorrido o fato gerador da obrigação tributária (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de
Incidência Tributária. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 71).
9 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira.
2. ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 644; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento
Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 372-373.
10 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, p. 94, nota de rodapé n. 20.
11 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1988, pp. 63-64: “É sabido que Larenz admite os tipos no Direito, entendendo como tal a
ordem estruturada de forma flexível e fluida como temos visto até agora. O fato de ter denominado os
conceitos de classe de tipos fechados foi questão apenas terminológica, já superada. As edições mais
recentes de sua tão consultada Metodologia registram a alteração, pois para o jurista é tão-só aquele, por
sua própria natureza, aberto. A expressão ‘tipo fechado’ foi eliminada de sua obra.”
12 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 660 e 661: “Os usos do tráfego, os usos comerciais e a ‘moral social’,
enquanto tais, têm para os juristas o significado de standards, quer dizer, de ‘pautas normais de compor-
tamento social correto, aceites na realidade social’. Tais standards não são, como acertadamente obser-
va STRACHE, regras configuradas conceitualmente, às quais se possa efetuar simplesmente a subsunção
por via do procedimento silogístico, mas pautas ‘móveis’, que têm que ser inferidas da conduta reconhe-
cida como ‘típica’ e que têm que ser permanentemente concretizadas, ao aplicá-las ao caso a julgar.”

83
Ricardo Lodi Ribeiro

classificatórios sobre a estrutura tipológica.13 Como se vê, o reconhecimento da


inexistência do tipo fechado, o que, aliás, é feito com extrema competência, leva
aos mesmos resultados encontrados pela teoria que o entronizou: o fechamento dos
conceitos de direito utilizados pelo legislador tributário.
Porém, como ressalta Humberto Ávila, a segurança jurídica não pode ser atin-
gida pela garantia de conteúdos absolutos prévios ou por meio de conceitos fecha-
dos, mas:

a) pela linguagem da lei como ponto de partida essencial;


b) pela vinculação do juiz e da administração aos significados preliminares
mínimos da lei;
c) pelo dever de adotar um procedimento regulado para quaisquer questões
jurídicas;
d) pelas exigências quanto ao método para as decisões jurídicas, de acordo com
as regras de interpretação.14

Da simples abstração do texto da lei não se extrai a garantia da segurança, pois,


como adverte Friedrich Muller, a norma vai muito além do seu teor literal, não
prescindindo da realidade fática, uma vez que seu texto representa, juntamente
com o ordenamento jurídico, o programa da norma. No entanto, a norma é com-
posta ainda por outro elemento: o âmbito da norma, revelado pelo segmento da
realidade social escolhido como seu âmbito de regulação.15 Por essa razão, a norma

13 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 286: “considerando as
tensões sempre existentes entre princípios jurídicos como segurança e justiça, conservadorismo – esta-
bilidade das relações jurídicas e permeabilidade às mutações sociais, individualidade e aplicação unifor-
me da lei em massa, reconhecemos, na Ciência do Direito Tributário, ser prevalente a tendência concei-
tual classificatória.” Em obra posterior, a autora reitera o posicionamento aplicando ao Direito Tribu-
tário a teoria fechamento operacional do sistema de Luhmann. (DERZI, Misabel de Abreu Machado.
“Mutações, Complexidade, Tipo e Conceito, sob o Signo da Segurança e da Proteção da Confiança”. In:
TÔRRES, Heleno Taveira. Tratado de Direito Constitucional Tributário – Estudos em Homenagem a
Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 272 e segs.). Porém, deve-se ressaltar que embo-
ra o sistema jurídico apresente, segundo Luhmann, um fechamento operativo, já que a compreensão do
que é ou não jurídico só se dá no âmbito das fronteiras do Direito a partir de suas próprias regras, ele se
abre cognitivamente para o seu entorno, e se relaciona com os outros sistemas por meio de um acopla-
mento estrutural que, ao mesmo tempo, admite a comunicação entre os sistemas, estabelece os limites
dos encargos que cada sistema é capaz de suportar sem sofrer corrupção (LUHMANN, Niklas “La costi-
tuzione come acquizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e
LUTHER, Jörg (org.), Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, p. 112). Assim, se moderna-
mente a tributação se deita sobre a idéia de manifestação de riqueza, a partir do código econômico biná-
rio riqueza/escassez, no Estado Social e Democrático de Direito ela é regulada pelas normas estabeleci-
das pelo Direito Tributário, que se abre à realidade econômica.
14 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 300.
15 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann. Rio de
Janeiro: Renovar, 3. ed., 2005, p. 42: “O teor literal expressa o ‘programa da norma”, a ‘ordem jurídica’
tradicionalmente assim compreendida. Pertence adicionalmente à norma, em nível hierárquico igual, o

84
Temas de Direito Constitucional Tributário

não pode ser conhecida sem o exame da realidade fática a que se destina, que deter-
mina o significado dos conceitos jurídicos nela contidos,16 já que nenhuma regra
pode regular inteiramente a sua própria aplicação.17
Como salienta Klaus Vogel, a norma por trás do texto é sempre reconhecível
de modo imperfeito, o que leva o juiz a estar vinculado a este, de acordo com a sua
interpretação e concretização.18 É que a lei não contém as próprias decisões, mas
apenas os parâmetros ou padrões em razão dos quais será tomada, sendo ilusória a
representação da tipicidade enquanto cálculo antecipado legal de todas as decisões
possíveis. Assim, a determinabilidade não é sinônimo de determinação prévia, mas
a possibilidade de fornecer pontos de partida para aquilo que é essencial a determi-
nado âmbito normativo.19
Ademais, a indeterminação das normas tributárias decorrem não só dos valo-
res e princípios fundamentais aplicáveis ao Direito Tributário, que pelas suas
características são fluidos e ambivalentes como a igualdade e a segurança jurídica,
mas também da natureza aberta da linguagem por elas utilizadas, tanto das leis de
incidência como das regras de competência, sobretudo quando empregadas

âmbito da norma, i. é, o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma
‘escolheu’ para si ou em parte criou para si com seu âmbito de regulamentação (como amplamente no
caso de prescrições referentes à forma e questões similares).
16 WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen, 1967, n. 43: “Die Bedeutung eines Wortes ist
sein Gebrauch in der Sprache”, apud: KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Trad. Luis Villar
Borda e Ana María Montoya. Bogotá: Universidad Externato de Colombia, 1996, p. 204.
17 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 247: “Um estado de coisas conforme regras
só se constitui a partir do momento em que é descrito em conceitos de uma norma a ele aplicada, ao
passo que o significado da norma é concretizado pelo fato de ela encontrar aplicação num estado de
coisas especificado por regras. Uma norma ‘abrange’ seletivamente uma situação complexa do mundo
da vida, sob o aspecto da relevância, ao passo que o estado de coisas por ela constituído jamais esgo-
ta o vago conteúdo significativo de uma norma geral, uma vez que também o faz valer de modo sele-
tivo. Essa descrição circular caracteriza um problema metodológico, a ser esclarecido por toda a teo-
ria do direito.”
18 Segundo Klaus Vogel: “A ação concreta em situações concretas sempre só pode ser prefigurada de modo
imperfeito por um texto de norma. O número dos elementos distintivos que um texto de norma pode
descrever, sempre é finito; em contrapartida, o número dos elementos distintivos de um conjunto de
fatos é infinito. Por essa razão há sempre particularidades da situação que o texto da norma não consi-
dera e com vistas às quais se pode formular a pergunta se a situação ainda é como o texto da norma a
pressupõe” (VOGEL, Klaus. “Vergleich und Gesetzmäbigkeit der Verwaltung im Steuerrecht”. In: Der
offene Finanz-und-Steuerstaat. Heidelberg: C.F.Müller, 1991, pp. 310-311, apud ÁVILA, Humberto.
Sistema Constitucional Tributário, p. 298).
19 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, pp. 304 -305, citando OSTERLOH, Lerke: “Leis
não são nem deveriam ser nenhuma coleção de decisões individuais pré-fabricadas. Muito pelo contrá-
rio, elas contêm normas em princípio genericamente abstratas, mais ou menos abertas, cuja aplicação à
realidade, a conjuntos de fatos, individualmente concretos, não constitui apenas uma tarefa da identifi-
cação das informações já contidas na lei, mas exige um processo de múltiplas camadas de conhecimen-
to e decisão” (Gesetzesbindung und Typisierungsspielräume bei der Anwemdung der Steuergesetze.
Baden-Baden: Nomos, 1992, p. 94).

85
Ricardo Lodi Ribeiro

expressões extraídas de outro ramo do Direito, cujo significado no plano fiscal


carece de ser esclarecido.20
Por outro lado, poder-se-ia concluir que, embora de difícil realização, a
determinação absoluta seria um ideal a ser permanentemente perseguido. No
entanto, tal conclusão deve ser rechaçada, à medida que o detalhamento excessi-
vo acaba por levar a uma maior indefinição, uma vez que o excesso de pormeno-
res faz com que, inexoravelmente, vários traços da realidade deixem de ser con-
templados no texto legal,21 guardando, portanto, uma menor influência sobre a
decisão.22 Como esclarece Kaufmann, a lei, por ser criada para ser aplicada a
todos os casos, cuja multiplicidade é infinita, não pode e não deve ser formulada
de forma unívoca, vez que cerrada em si mesma, completa, sem vazios, absoluta-
mente clara, se isso fosse possível, conduziria o desenvolvimento do Direito ao
estancamento. Deste modo, não é possível, nem desejável, alcançar o ideal da
univocidade da linguagem legal, que deve ser bidimensional, se manifestando
pela sua imanente historicidade e pela dialética entre o seu caráter metafórico e
a conceitualização da linguagem.23
No entanto, quando houver um grau especialmente relevante de segurança
jurídica, o legislador deve, se isso for possível, substituir o tipo aberto pelo concei-
to determinado.24 Porém, é forçoso reconhecer que, mesmo nesses casos, remanes-
ce uma certa indeterminação em virtude do caráter impreciso da linguagem e da
natureza abstrata o texto da norma.

2) Os Conceitos de Direito

A compreensão da linguagem jurídica se dá com base no sentido que cada


conceito inserido no texto possui, de acordo com o significado da palavra ou de
uma cadeia delas no uso lingüístico geral ou, se for possível constatar que essa foi a

20 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, pp. 175-176; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça,
Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 121-123.
21 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 377:
“o princípio da determinabilidade não se confunde com o suposto dever de pormenorizar o mais
possível ou de otimizar a pormenorização da disciplina dos impostos, uma vez que, quanto mais o
legislador tenta pormenorizar, maiores lacunas acaba por originar relativamente aos aspectos que
ficam à margem dessa disciplina, aspectos esses que, como facilmente se compreende, variarão na
razão inversa daquela pormenorização. Ou seja, as especificações excessivas, porque se enredam na
riqueza dos pormenores, perdem o plano de que partiram, acabando, ao invés, por conduzir a maior
indeterminação.”
22 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 307.
23 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, pp. 193 e 244-246.
24 TIPKE/LANG. Steuerrecht. 15. ed. Köln: Otto Schmidt, 1996, p. 138: “Em todos os lugares nos quais se
trata em grau especial da segurança jurídica e da previsibilidade, o legislador deveria substituir o tipo
aberto com maior precisão possível por um conceito abstrato”. Apud: ÁVILA, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário, p. 308.

86
Temas de Direito Constitucional Tributário

intenção do legislador, no uso especial conferido à expressão por outro ramo do


Direito ou até mesmo por outra ciência.25
Porém, a cientificidade do processo de criação do Direito não pode residir em
sua redução à conclusão lógica da subsunção da realidade fática a esses conceitos,
pois o sentido do fenômeno jurídico não se revela por uma conclusão lógica, mas
por uma comparação de casos, a partir das ponderações de adequação e valor,26
uma vez que essa conclusão lógica, oferecida pela dedução por meio de um silogis-
mo, nada de novo produz. Se o método jurídico se baseasse apenas nesse silogismo,
cada caso teria uma solução obrigatória e não haveria espaço para controvérsias.27
Enquanto a norma jurídica dotada de caráter geral e abstrato pertence ao
“deve ser”, o fato jurídico está no plano do “ser”. Esses dois elementos estabelecem
uma relação dialética, se enriquecendo e se correspondendo com a norma, fazendo
justiça ao caso e este àquela. Quando a norma se aplica ao fato ocorre uma media-
ção entre os dois mundos, pois, passo a passo, a norma se concretizará a partir de
sua aproximação da realidade e do seu ajuste aos contornos do caso concreto, para
então se converter em tipo.28
Contudo, como a realidade (“ser”) nunca atinge a perfeição do modelo legal
(“deve ser”), a redução do fenômeno jurídico à mera subsunção silogística leva a
uma infrutífera procura pelo protótipo ideal, condenando o ordenamento jurídico
à inutilidade. Assim, dado o abismo entre o “ser” e o “deve ser”, a subsunção con-
ceitual absoluta nunca será realizada,29 uma vez que esse processo de aproximação
da norma abstrata ao fato não segue a lógica formal, mas a lógica do razoável.30
São duas as classes de conceitos:31

a) conceitos abstratos gerais (conceitos de classe ou conceitos em sentido


estrito): englobam em sua essência um número fixo de elementos fechados
ou unívocos, que se apresentam no caso concreto ou não se apresentam.
Tais conceitos cumprem de forma ideal o mandato constitucional da deter-
minação. Porém, só os conceitos numéricos apresentam perfeitamente essa
característica. Como exemplo, a maioridade (ou se tem 18 anos, ou não);

25 LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito, p. 451.


26 COING, Helmut. Elementos Fundamentais de Filosofia do Direito. Trad. Elisete Antoniuk. Porto
Alegre: Sergio Fabris, 2002, p. 343.
27 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 182.
28 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, pp. 186-187 e 228.
29 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 181.
30 PIRES, Adilson Rodrigues. Contradições no Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pp.
33-34: “Esse processo de adequação da lei ao caso concreto resulta da atuação de uma lógica diferente da
tradicional, da lógica formal, regida por um ideário explicativo de nexos entre causa e efeito. A lógica
referida fundamenta-se em valores humanos direcionados para um fim específico, qual seja a lógica do
razoável, que, por sua vez, não se confunde com a lógica do racional.”
31 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, pp. 246-247.

87
Ricardo Lodi Ribeiro

b) conceitos de ordem (conceitos de função ou de tipo): não definem ou limi-


tam a essência do fenômeno, mas só o descrevem mais graficamente, não de
forma completamente concreta, senão sempre em determinado nível de
abstração; sendo assim, não conhecem a disjunção bifurcadora dos concei-
tos abstratos gerais, apenas o “mais ou menos”. Exemplificando, o ácido clo-
rídrico pode ser caracterizado como arma não porque se subsuma no con-
ceito legal abstrato geral de arma, mas porque sua utilização corresponde ao
tipo legal.

2.1) Os Conceitos Abstratos

Segundo Larenz, os conceitos abstratos são formados por notas distintivas


que são desligadas, abstraídas dos objetos em que aparecem, e na sua generaliza-
ção, são isoladas, separadas tanto umas das outras, como em relação a esse obje-
to. A abstração é, segundo Hegel, uma separação do concreto, a partir do isola-
mento de suas determinações, pela qual somente se apreendem propriedades ou
momentos particulares. Pela abstração se apreende um objeto da experiência
sensorial, não na sua plenitude concreta de todas as suas partes, como um todo
único, mas apenas na medida em que nele sobressaem propriedades particulares
ou notas consideradas como gerais, desligadas, artificialmente, da sua natural
união com outras, isolando-as. Dessas notas isoladas formam-se conceitos por
meio dos quais se possibilita a subsunção de todos os objetos que apresentam
todas as notas recolhidas na sua definição, qualquer que seja a sua vinculação
concreta. Mediante a eliminação de notas particulares podem ser formados con-
ceitos de mais elevado grau de abstração aos quais podem se subsumir todos
aqueles que lhes estão subordinados, o que se dá em relação inversamente pro-
porcional com a densidade de seu conteúdo. Sendo formado por poucas notas,
esse conceito “supremo” guarda um conteúdo ínfimo em relação ao mais amplo
âmbito de aplicação. De outro lado, quanto maior o número de traços distinti-
vos, mais conteúdo terá o conceito, em relação inversamente proporcional ao
seu campo de influência, bastante específico.32
Deste modo, enquanto o conceito concreto está vinculado ao perceptível,
assim entendido pelo aquilo que é extraído da realidade fática, a abstração, ao revés,
se associa à idealização do mundo irreal e imperceptível. Daí, não fica difícil con-
cluir que a idéia de concretude, enquanto algo real e perceptível, vem sempre atre-
lada à determinação do seu objeto, ao contrário do conceito abstrato, cujo caráter

32 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 625: “A seleção das notas distintivas, que hão-de
ser recolhidas aquando da formação de um conceito abstrato na sua definição, é essencialmente co-
determinada pelo fim que a ciência em causa persegue com a formação do conceito.”

88
Temas de Direito Constitucional Tributário

ideal e imperceptível desemboca na indeterminação.33 Por isso a incompatibilida-


de dos conceitos abstratos com a concreção da realidade.
A função dos conceitos é a classificação, de modo claro, de uma enorme quan-
tidade de fenômenos da vida, caracterizando-os mediante notas distintivas facil-
mente identificáveis e ordenando-os de modo que sempre suas conseqüências jurí-
dicas sejam idênticas quando houver identidade conceitual. Para que tal tarefa seja
plenamente exitosa, o caminho mais fácil seria o da utilização dos conceitos abstra-
tos aos quais possam ser subsumidos, sem grande esforço, todos os fenômenos da
vida que apresentarem as suas notas distintivas. Porém, o ideal de se subsumir
todos os caso jurídicos aos conceitos dados por lei, é um ideal que nunca foi atingi-
do em qualquer época da Ciência do Direito, sendo a utilização da norma de estru-
tura conceitual pouco freqüente.34
Mas a objeção contra a ampla utilização do método conceitual não está só
na sua impossibilidade de aplicação ampla. Se assim fosse, este seria um ideal a
se buscar na medida máxima possível. Porém, deve-se levar em conta que o
pensamento abstrato, dada a sua tendência ao esvaziamento de sentido, levaria
ao resultado contrário do esperado, uma vez que dependeria do abandono de
muitos traços particulares da realidade e da desunião de cada um desses traços
entre si, o que acabaria por comprometer a relevância jurídica e o sentido da
regulação,35 já que muitas vezes há exageros na importância de cada um deles,
ao considerá-los conceitualmente indispensáveis a sua aplicação numa situação
de fato, pois nessa dinâmica dos conceitos abstratos não há mais ou menos, mas
um isto ou aquilo do pensamento por alternativas. Os conceitos de grau mais
elevado de abstração só admitem em cada caso duas alternativas que estejam

33 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., pp. 64-66.


34 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, pp. 626, 644-645: “A parte da subsunção lógica na
aplicação da lei é muito menor do que a metodologia tradicional supôs e a maioria dos juristas crê. É
impossível repartir a multiplicidade dos processos da vida significativos sob pontos de vista de valoração
jurídicos num sistema tão minuciosamente pensado em compartimentos estanques e imutáveis, por
forma a que bastasse destacá-los para os encontrar um a um em cada um desses compartimentos. Isto é
impossível, por um lado, porque os fenômenos da vida não apresentam fronteiras tão rígidas como as
exige o sistema conceitual, mas formas de transição, formas mistas e variantes numa feição sempre nova.
É impossível, ainda, porque a vida produz constantemente novas configurações, que não estão previstas
num sistema acabado. É também impossível, por último, porque o legislador, como várias vezes subli-
nhamos, se serve necessariamente de uma linguagem que só raramente alcança o grau de precisão exi-
gível para uma definição conceitual”.
35 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 646. No mesmo sentido: Ávila, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário, p. 192: “O recurso a conceitos abstratos e gerais que funcionem como meio
de realização da mesma legalidade aumenta essa indeterminação: quanto mais geral um conceito, mais
situações de fato ele irá abranger e tanto mais difícil será prever essas situações de fato, sobretudo no
campo do Direito Tributário, que regula processos econômicos”. E ainda: TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado..., v. II, 471: “O tipo não se confunde com o conceito jurídico. Este é a representação abstrata
de dados empíricos, podendo de certa forma violentar a realidade.”

89
Ricardo Lodi Ribeiro

entre si numa relação de contraposição excludente, como se dá nos conceitos


de móvel ou imóvel.36
Aparentemente, a formação de conceitos abstratos contribui para a clareza,
uma vez que um grande número de fenômenos, muitas vezes de índole muito
diversa, pode ser reconduzidos a um denominador comum e uniformemente regu-
lado. No entanto, a clareza da linguagem não está associada à determinação do con-
ceito que, necessariamente, carecerá de valoração diante do objeto da regulação.
Ademais, a aplicação das pautas valorativas e dos princípios jurídicos, que são indis-
pensáveis ao Direito, não se faz, senão com certo sacrifício da clareza em nome da
adequação à realidade fática.37
Em função dessas razões, os conceitos abstratos terão um valor limitado na
elaboração da lei e na concatenação de sentido, para as quais constituem verdadei-
ro empecilho, vez que a extrema precisão da linguagem só pode ser alcançada à
custa do esvaziamento do conteúdo e do sentido. Sua função revela-se, tão-somen-
te, na orientação inicial da subsunção, quando esta se revelar possível, pois estes
conceitos, para poderem subsumir outros a si, são de uma precisão extrema, inten-
tada por uma linguagem artificial.38
Como se pode extrair dessas afirmações, o pensamento tipológico melhor se
adapta ao raciocínio jurídico, pois é necessariamente analógico, ao permitir a aber-
tura da norma às circunstâncias fáticas. Deste modo, a criação do Direito também
possui um caráter analógico, pois este, ou mais exatamente, os princípios gerais do
Direito e as possíveis situações fáticas da vida antecipadas mentalmente pelo legis-
lador, devem colocar-se em correspondência recíproca, a partir de um processo de
acomodação/assimilação. De acordo com esse posicionamento, a analogia se dife-
rencia da interpretação teleológica, não por uma distinção quanto à estrutura lógi-
ca do processo, mas em relação ao grau de extensão. Com a sua abertura a essas
situações concretas, o Direito se materializa, se concretiza e se positiva.39 Assim, os

36 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 650: “As contraposições pretensamente excluden-
tes revelam-se apenas opostas; o que conceitualmente está radicalmente separado está ligado entre si de
forma multímoda; a abstração levada ao extremo interrompe as concatenações de sentido e acaba por
conduzir-se ad absurdum, pela vacuidade dos conceitos supremos, que já nada dizem sobre a concate-
nação de sentido subjacente.”
37 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 649. Para Radbruch: “Precisamente, esa inadecua-
ción de los conceptos jurídicos a la realidad, ese ignorar los tonos medios, y el benévolo ‘casi’, el recha-
zar con acritud todo ‘no solo sino también’ o todo ‘más o menos’, ocasionan en muchos casos esa repug-
nancia por el derecho, en especial por el derecho romano”. (RADBRUCH, Gustav. Klassenbegriffe und
Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken, “Internacionale Zeitschrift für Theorie dês Redchts”, XII, 1938, pp.
46 e segs., apud ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 414).
38 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 650. Para Engisch, o Direito, assim como as ou-
tras ciências naturais e sociais, tende à tipificação, de acordo com a sua natureza normativa (ENGISCH,
Karl. La Idea de Concreción..., pp. 353 e 394).
39 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, pp. 247-248.

90
Temas de Direito Constitucional Tributário

tipos são mais concretos do que os conceitos, e, ao contrário destes últimos que são
definidos, só podem ser descritos.40
A realidade fática, por sua vez, se configurando em forma conceitual-norma-
tiva, idealiza-se e se constrói. A produção legislativa se revela como a acomodação
da idéia de Direito e das possíveis futuras circunstâncias fáticas da vida. Por sua vez,
o Direito harmoniza a norma legal e as circunstâncias de fato, revelando-se um ter-
tium a promover a mediação entre o “ser” e o “deve ser”. Assim, a norma e o fato
devem guardar relações de sentido, a fim de que possam ser levadas, reciprocamen-
te, à correspondência. Esse sentido, que não se esconde só no Direito, mas também
nas circunstâncias fáticas da vida, é o que Kaufmann designa como natureza das
coisas (ratio juris), que nos leva ao pensamento tipológico.41
Nesse processo de concretização da norma abstrata, os conceitos gerais devem
abrir-se às circunstâncias de fato da vida para chegar a uma decisão jurídica concre-
ta, o que acaba por conferir forma a essa norma abstrata, aumentando a sua dimen-
são lingüística. Com isso, os conceitos de classe, abrindo-se à realidade, acabam por
dar origem aos conceitos de ordem, que compreendem os conceitos globais de senti-
do (conceitos de função ou tipos). Deste modo, mesmo os conceitos abstratos, após a
sua concretização por uma decisão jurídica, não são mais unívocos, e nem poderiam
sê-lo, sob pena de não poderem cumprir sua função de equilibrar as tensões dentro
da idéia de Direito, atendendo a igualdade, a segurança jurídica e a equidade.42

2.2) Os Tipos

Segundo Ricardo Lobo Torres, o tipo é a ordenação de dados concretos exis-


tente na realidade segundo critérios de semelhança, representando a média ou a
normalidade de uma determinada situação concreta.43 Tipificar significa colher o
que é comum e repetitivo em determinado fenômeno, abstraindo-se as particulari-
dades individuais, generalizando e padronizando.44
Os tipos, originados nas ciências da natureza, foram introduzidos por Max
Weber nas ciências sociais,45 tendo Jellinek os inserido na Teoria Geral do Estado,

40 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 176.


41 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 249.
42 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 245.
43 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, pp. 469-470.
44 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 47: “Tipo será, então, o
que resultar desse processo de abstração generalizante, vale dizer, a forma média ou freqüente, ou ainda
especialmente representativa, ou ainda, o padrão normativo ideal.”
45 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: UnB,
2004, pp. 11-12: “As ‘leis’, como habitualmente designadas por algumas proposições da Sociologia
Compreensiva – por exemplo, a ‘lei’ de Gresham –, são probabilidades típicas, confirmadas pela obser-
vação, de determinado curso de ações sociais a ser esperado em determinadas condições, e que são com-
preensíveis a partir de motivos típicos e do sentido visado pelos agentes.”

91
Ricardo Lodi Ribeiro

a partir da classificação entre tipo ideal e tipo empírico. Nessa concepção, o tipo
ideal tem um valor essencialmente teleológico, não sendo algo que é, mas que deve
ser, e constituindo, portanto, a medida do valor dado. Por sua vez, ao tipo empíri-
co não se exige a expressão de um objetivo que transcenda a experiência, traduzin-
do-se apenas na unificação de notas entre os fenômenos, de acordo com os pontos
de vista que adote o investigador.46
Para Larenz,47 os tipos se classificam:

a) Tipos médios ou de freqüência e tipos de totalidade ou configuração: os pri-


meiros se referem àquilo que se espera normalmente, a partir de reações
típicas de uma pessoa ou de uma multiplicidade de pessoas numa mesma
situação, ou de uma característica de certa região, como por exemplo, a
referência a uma temperatura típica de determinada região e época do ano.
No segundo sentido, o tipo alude a situações que reúnem os traços caracte-
rísticos que tipificam uma imagem na sua globalidade, como uma típica
casa rústica da Baixa Saxônia, sem que seja necessário que todos os traços
estejam presentes em todos os casos. Nas duas espécies temos tipos empíri-
cos, cujas reações e evoluções podem ser confirmadas pela experiência.
b) Tipos só imaginados e mentalmente concebidos e tipos empíricos: enquan-
to aqueles são frutos da extração de notas distintivas da realidade (mas ao
contrário dos conceitos abstratos, o tipo pensado não os separa); estes últi-
mos são reconhecidos por intuição, que nem sempre separa os elementos
constitutivos do tipo, apreendendo a realidade como uma imagem.
c) Tipos empíricos, tipos ideais lógicos e tipos ideais normativos: o primeiro se
revela pelos tipos médios, que estejam configurados num maior ou menor
número de exemplares que podem ser encontrados na realidade. O tipo
ideal lógico também deriva da experiência, mas não precisa estar realizado
em toda a sua pureza em nenhum fenômeno empírico, constituindo-se em
uma representação de um modelo, que é obtido a partir da observação de
alguns traços particulares observados na realidade e descurando outros.
Como exemplo, oferece-se economia de livre mercado, economia total-
mente dirigida. Presta-se a estabelecer comparações entre os modelos puros
e as formas híbridas encontradas na realidade. Já o tipo ideal normativo não
quer ser cópia da realidade, mas modelo ou arquétipo. Como exemplo, a
democracia ateniense, que, erigida como modelo de onde se abstraem

46 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad. de Fernando de los Rios. México: Fondo de Cultura
Económica, 2000, p. 79: “El concepto ‘tipo’ puede comprenderse en sentido de ser la expresión de la más
perfecta esencia del género. Se puede representar de un modo platónico, como la idea que vive en más
allá y solo de un modo imperfecto puede realizarse en el individuo, o concebírsele conforme a
Aristóteles, como la fuerza activa que crea y da forma a los ejemplos individuales de un género.”
47 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, pp. 657-660.

92
Temas de Direito Constitucional Tributário

alguns traços de realidade, como a escravidão. Também pode ser exempli-


ficado no tipo ideal do verdadeiro homem de Estado, juiz, médico, educa-
dor, cristão, que cumpra plenamente a sua missão. A partir de um modelo
perfeito, que não pode ser atingido em sua pureza, serve como orientação
para ação humana.

A importância do tipo no Direito se revela quando as normas remetem para


os usos do tráfego, como normas de comportamento socialmente típicos, tendo
para os juristas significado de standards, isto é, pautas normais de comportamento
social correto, aceitas na realidade social, mas que longe de serem configuradas
conceitualmente, de forma a efetuar a simples subsunção por via do procedimento
silogístico, são pautas móveis que têm que ser permanentemente concretizadas
pelo aplicador. Tais standards, a despeito de se manifestarem por tipos reais, são
sempre tipos ideais axiológicos, não no sentido de tipo de totalidade ou configura-
tivo, mas de tipo de freqüência ou tipo médio.48
Ao lado do tipo empírico, extraído da realidade, tem maior importância para
o Direito o tipo normativo, onde o legislador não prescinde de elementos criados
pelo próprio ordenamento jurídico, como o possuidor de animais, que vai utilizar
dados extraídos da regulação da propriedade, por exemplo. Na formação do tipo,
entram tanto elementos empíricos derivados do escopo da norma, como elementos
normativos oriundos pelas idéias jurídicas que estão por trás da regulação. A união
desses dois elementos constitui precisamente a essência do tipo, sendo denomina-
do por Larenz de tipo real normativo.49
Devem ser diferenciados dos tipos reais normativos, os tipos jurídicos-estru-
turais, criados pela realidade jurídica para caracterização mais pormenorizada de
certas situações jurídicas, como os contratos. O Direito não os inventou, mas des-
cobriu-os na realidade fática. Porém, o legislador não precisa delinear o tipo exata-
mente como foi originalmente encontrado, podendo introduzir-lhe novos traços e
descurar outros.50
Enquanto o conceito abstrato apresenta uma rígida união dos elementos dis-
tintivos, à qual um conjunto de fatos pode ser ou não integralmente subsumido, o
tipo apresenta uma totalidade graduável e aberta de notas, admitindo que um con-
junto de fatos seja “mais ou menos” coordenado a um tipo.51
Assim, o tipo constitui uma altura média entre o geral e o particular, se dis-
tinguindo do conceito abstrato-geral definido por um número limitado de caracte-

48 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, pp. 660-661.


49 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 662. Humberto Ávila enquadra os tipos tributá-
rios entre os tipos reais normativos, por terem origem no Direito Tributário tradicional e relação indi-
reta com a Constituição (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 179).
50 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, pp. 662-663.
51 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 171.

93
Ricardo Lodi Ribeiro

rísticas gerais isoladas, por sua grande proximidade com a realidade, por sua clari-
dade gráfica e por sua objetividade. Com efeito, o tipo não se pode definir, mas
somente explicitar, pois embora tenha um núcleo fixo, mantém as fronteiras flexí-
veis, de tal sorte que a falta de um ou outro de seus muitos traços característicos,
não leva a sua descaracterização. Enquanto o conceito, seguindo a lógica do sim ou
não, separa o tipo, acomodando-se ao mais ou menos da realidade, une, tornando
conscientes as conexões de sentido, fazendo o geral ser compreendido de forma
clara e integral. Deste modo, os fatos não se subsumem ao tipo. Este se coordena,
ou se põe em correspondência, em maior ou menor grau, com um suposto fato con-
creto.52 Essa coordenação entre o tipo e a realidade fática baseia-se numa valora-
ção, que deve ser determinada eticamente por uma ponderação de finalidade, a
partir de uma análise minuciosa das condições reais, bem como de uma mensura-
ção dos próprios valores isoladamente aplicáveis.53
No entanto, se correspondência entre fato e tipo não depende da coincidên-
cia em relação a todos os traços particulares, mas sim da imagem global, a aludida
coordenação não deve ser reconhecida quando ausentes no caso particular as notas
distintivas isoladas, ou quando estas forem insignificantes, em nada contribuindo
para a compreensão da regulação.54 Deste modo, como assinala Humberto Ávila, a
abertura do tipo se caracteriza por dois elementos. O primeiro se revela pela pres-
cindibilidade de alguns elementos distintivos, sob pena de tornar o tipo vazio de
conteúdo, e o outro pelo sopesamento, que indica que a correlação não se dá ape-
nas de acordo com a relação dos seus elementos entre si, mas, principalmente, sob
uma perspectiva valorativa.55
Vale destacar que o tipo, assim como a abstração conceitual, extrai momentos
comuns de uma pluralidade de manifestações singulares, iguais ou semelhantes,
mas aquele, diferentemente desta, não leva a um conceito geral, mas a uma união
de traços perceptíveis, que certamente não poderão ser aplicados a um objeto indi-
vidual, mas a um objeto fictício, típico.56
Por outro lado, o tipo se posta “no meio-termo entre o indivíduo e o concei-
to”,57 distinguindo-se dos fenômenos isolados, pois algo único não pode ser típico,

52 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 250. No mesmo sentido: LARENZ, Karl. Metodologia
da Ciência do Direito, p. 645; e ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral –
Uma Perspectiva Luso-brasileira. 2. ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 647.
53 COING, Helmut. Elementos Fundamentais de Filosofia do Direito, pp. 280-281.
54 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 666: “Os desvios notórios da imagem global do
‘tipo normal’ classificar-se-ão como tipos especiais ou como ‘configurações atípicas’. Onde reside em
cada caso a fronteira, até onde é possível ainda uma coordenação a este tipo, não pode indicar-se de
modo geral; quando as fronteiras são fluídas, como é geralmente o caso tratando-se do tipo, a coordena-
ção só é possível com base numa avaliação global.”
55 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 194.
56 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 384.
57 KRETSCHMER, Paul. Über die Methode der Privatrechtswissenschaft, 1914, p. 400, apud LARENZ,
Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 658. Para Radbruch: “Los tipos comparten, con los concep-

94
Temas de Direito Constitucional Tributário

o que pressupõe a comparação e a diferenciação, de onde deriva o seu nível de abs-


tração intermediário.58 Enquanto a abstração conceitual conduz ao conceito geral,
a partir da decomposição do universo em uma pluralidade de conceituações de
notas descontínuas para chegar ao todo do conceito, a abstração individualizadora,
por sua vez, reconhece a profusão perceptível do real, primeiramente em uma tota-
lidade de imagens alcançáveis precisamente por ser objeto de uma percepção, do
qual extrai posteriormente seus traços característicos.59
Em relação ao tipo, não mais tem sentido o pensamento exato, lógico-formal,
pois nos encontramos diante da lógica fuzzy, cujo fundamento é a distinção entre
conceitos determinados e indeterminados, e que se move na zona grísea das tran-
sições graduais entre todavia não e não mais.60
A aplicação do tipo pelo Direito faz nascer o tipo normativo, que se distingue
do tipo de freqüência ou do tipo ideal, de Max Weber. Manifesta-se como ponto
médio entre a idéia de Direito e as circunstâncias de fato da vida em torno das
quais, finalmente, gira todo o pensamento jurídico. É o ponto medido entre a jus-
tiça conforme a norma e a justiça conforme os fatos, sendo, ao mesmo tempo,
modelo de fenômeno passageiro e paradigma da idéia. Recebe luz de ambos, e é, em
conseqüência, mais rico em conteúdo e mais gráfico do que a idéia, e por outra,
mais válido, mais espiritual, mas duradouro que o fenômeno. Não é rígido em seus
contornos, não é imutável. Nós não podemos construir tipos discricionariamente,
pois o tipo é a causa do fenômeno original.61 Assim, enquanto o conceito é fecha-
do, o tipo aberto!62
Porém, a abertura do tipo não significa que a decisão jurídica não seja dotada
de determinabilidade, mas se refere à possibilidade aberta a diversas combinações
de manifestação dos elementos distintivos que somente recebem seu significado
jurídico a partir de um ponto de vista valorativo. Nesse sentido, a indeterminabili-
dade é uma característica da aplicação do Direito.63
Ademais, o tipo é sempre mais rico em conteúdo, é mais espiritual, tem maior
sentido, é mais gráfico que o conceito abstrato, pois o Direito nunca pode ser idên-
tico à lei, já que não é possível que aquele seja apreendido pelos conceitos legais na

tos individuales históricos, la plenitud concreta del contenido, y, al miesmo tiempo, con los conceitos
genéricos propios de las ciencias naturales, la possibilidad de comprender ampliamente manifestaciones
históricas individuales” (RADBRUCH, Gustav. Logos, II, 1911-2, p. 259, apud ENGISCH, Karl. La Idea
de Concreción..., p. 381).
58 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 382.
59 MAIER, H. Philosophie der Wirklinchkeit, I, p. 202, apud ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción...,
p. 383.
60 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 250.
61 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251.
62 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, pp. 660-661; KAUFMANN, Arthur. Filosofía del
Derecho, p. 251; ASCENSÃO, José de Oliveira. A Tipicidade dos Direitos Reais. Lisboa: 1968, p. 63;
CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 315.
63 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 184.

95
Ricardo Lodi Ribeiro

plenitude de seu conteúdo concreto.64 Por isso, o tipo é mais concreto do que o
conceito abstrato.65
Por esta razão, não pode existir um sistema de Direito fechado, axiomático,
mas um sistema aberto e tópico. É falsa a opção entre o tipo e o conceito, pois como
observado por Kant, os conceitos sem tipos são vazios, os tipos sem conceitos são
cegos.66
Diante de todo o exposto, fica evidenciado que o tipo se diferencia do concei-
to abstrato pelos seguintes traços:

a) o conceito é fechado, o tipo aberto;


b) o conceito se revela pela soma rígida dos elementos distintivos, enquanto o
tipo por uma totalidade graduável e aberta de conjunto de fatos;
c) o conceito se subsume, a partir da igualdade entre ele e o conjunto de fatos;
o tipo se corresponde com o fato por uma relação de semelhança;
d) o conceito é definível, o tipo descrito;
e) para a adequação dos fatos em relação ao conceito, todas as notas distinti-
vas devem estar presentes; no tipo algumas delas podem faltar;
f) o tipo é concreto, o conceito é abstrato.

Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o


Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de
adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e
inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador,
inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipos em detrimento dos conceitos
abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo
dos fatos.

3) A Hipótese de Incidência Tributária e o Tipo

O princípio da determinação a que se submetem as leis que configuram as


hipóteses de incidência não constitui óbice à aplicação de tipos no Direito
Tributário, uma vez que determinabilidade não se confunde com uma determina-
ção prévia, mas com a possibilidade de fornecer pontos de partida para o conteúdo
essencial de determinado âmbito normativo. A despeito de seus elementos consti-
tutivos deverem ser definidos com clareza, tais normas não dependem apenas de
determinações lingüísticas e estruturais, são também carentes de concretização,
pois seu significado normativo não pode ser dado absolutamente sem uma adequa-

64 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251.


65 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 385.
66 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251.

96
Temas de Direito Constitucional Tributário

ção a situações de fato, o que vai se dar de acordo com as regras de competência e
os princípios de ordem material.67
Por isso, tais normas de incidência, a exemplo das regras constitucionais que
delimitam competência, se manifestam por tipos, e não por conceitos classificató-
rios, dada a abstração desses últimos, incapazes de descrever com fidelidade toda a
riqueza e dinamismo realidade econômica.68
A utilização da estrutura tipológica pela norma tributária, segundo Engisch,69
desemboca na aproximação dos tipos que fundamentam as exações fiscais com as
relações da vida real, de modo a que o enquadramento dos fatos deve ocorrer con-
forme o seu sentido típico, e não de acordo com a vontade específica dos interessa-
dos. O que se leva em conta, segundo o autor alemão, não é uma individualização,
mas uma tipificação, em que o tipo se determina pela conduta normal, usual, que
se dá pelo termo médio, o que permite o combate à evasão e à elisão abusiva pela
via da interpretação. É que, quando o legislador tipifica, tem em vista a produção
de dado efeito prático.70 Deste modo, a descrição do fato gerador do tributo por

67 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, pp. 304-305: “Deve-se constatar, no caso concre-
to, se a hipótese de incidência atende às determinações constitucionais de competência e aos princípios
substancialmente conexos (inclusive aos direitos fundamentais no seu aspecto objetivo); qual a intensi-
dade da influência e da estrutura material das leis e como a norma e o conjunto de fatos estão estrutu-
ralmente ligados. Deve-se saber, sobretudo, se se trata de um caso normal ou de uma exceção sob os
princípios constitucionais substancialmente conexos, se as assim chamadas ‘correções de elementos
marginais’ [Randkorrekturen] se fazem necessárias em conformidade com a consideração do teor literal
e da finalidade concreta das normas legais a serem aplicadas, ou quais circunstâncias do caso individual
devem ser consideradas na aplicação do Direito.”
68 Não são poucos os autores que reconhecem a natureza tipológica da hipótese de incidência tributá-
ria: ENGISCH, Karl. La Idea..., p. 407; TIPKE, Klaus e LANG, Joachim. Steuerrecht. 17. ed.. Köln: O.
Scchmidt, 2002, p. 133, apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 473; VOGEL, Klaus. Zur
Konkurrenz zwischen Bundes – und Landessteuerrecht nach dem Grundgesetz. In StuW 1971, p.
315, apud: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 170; KIRCHOF, Paul.
“Steuergleichheit durch Steuervereinfachung. In: FISCHER, Peter (Ed.). Steuervereinfachung. Köln:
O. Schmidt, 1998, DSTJG 21:23, apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 474; KRUSE, H.
W. Lehrbuch des Steuerrechts. München: C. H. Beck, 1991, p. 71, apud TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado..., v. II, p. 470: ”O objeto do imposto não se deixa definir, mas descrever”; BEISSE, Heinrich.
“O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente Jurisprudência
Alemã”. In: Brandão Machado (Coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira.
São Paulo: Saraiva, 1984, p. 27; e NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p.
334. Entre nós: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 483; GRECO, Marco Aurélio. Planeja-
mento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 68; ÁVILA, Hum-
berto. Sistema Constitucional Tributário, p. 170; DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e
Meio Ambiente, p. 126; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 34; e
ROCHA, Sérgio André. “Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário?” Revista Dialética
de Direito Tributário 136: 73, 2007. Contra: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário,
Direito Penal e Tipo, p. 286, para quem as hipóteses de incidência tributárias se manifestam prefe-
rencialmente por conceitos abstratos.
69 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., pp. 407-408.
70 ASCENSÃO, José de Oliveira. A Tipicidade dos Direitos Reais, p. 63. No mesmo sentido: CORREIA, José
Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 315.

97
Ricardo Lodi Ribeiro

meio de tipos promove a sua abertura à realidade econômica por meio da sua inter-
pretação teleológica.71
A compatibilização da segurança jurídica com a estrutura tipificante vem
sendo reconhecida pela jurisprudência, aqui e alhures. A Corte Constitucional
Alemã vem aceitando a tipificação pelo legislador tributário, desde que respeitados
os princípios da proporcionalidade e da igualdade e os objetivos da praticidade e da
simplificação fiscal.72 Conforme esclarece Klaus Tipke, o Tribunal Constitucional
Alemão, em diversos julgados, estabeleceu que a exigência da tipicidade é satisfei-
ta quando o legislador encontra a determinação essencial sobre o tributo com sufi-
ciente exatidão, sendo desnecessário decidir sobre todas as questões. Noticia, ainda,
o autor alemão que jamais a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade de
uma norma tributária por indeterminação.73 Casalta Nabais, registrando a mesma
notícia jurisprudencial, ressalta que a utilização pelo Tribunal Constitucional
Alemão de conceitos indeterminados, como “suficientemente” e “certa medida”
para definir o conteúdo do princípio da determinação, acaba por fazer deste, nas
palavras de Papier, uma flor de retórica.74
Em nosso país, o Supremo Tribunal Federal vem, aos poucos, abandonando a
idéia da abstração conceitual baseada na tipicidade fechada. No Direito Penal, seara
onde a segurança jurídica ocupa uma posição de destaque, o STF já admitiu a tipi-
ficação aberta em relação ao crime de tortura, o que demonstra que o referido valor
não é arranhado pelo uso dos tipos.75
No campo tributário, a orientação de nossa Corte Suprema vem se modifican-
do em direção ao reconhecimento de uma maior abertura do tipo. Após a declara-
ção de inconstitucionalidade, da Taxa de Fiscalização Ambiental do IBAMA (TFA)
instituída pela Lei nº 9.969/00,76 dentre outros motivos por ter a lei deixado a cargo
da autoridade administrativa a definição de quais empresas seriam potencialmente
poluidoras, a Corte passou a admitir, no caso do SAT – Seguro de Acidentes do
Trabalho, instituído pelo art. 22, II, da Lei nº 8.212/91, alterada pela Lei nº
9.528/97, que, de acordo com a previsão legal de alíquota variável de 1 a 3% sobre
a sua folha de salários, de acordo com o grau de risco que a sua atividade prepon-
derante gera à saúde de seus empregados, a definição pelo regulamento dos concei-

71 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, pp. 117-118.


72 BverfGE 82, 185: ”O legislador apreende o individual no tipo, generalizando o concreto e esmaecendo
as diferenças. Ele deve se orientar fundamentalmente pela regularidade e não tomar em consideração as
especificidades e as singularidades.” (Apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 480).
73 TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Köln: O. Schmidt, 2000, Vol. 1, p. 138, apud TORRES, Ricardo
Lobo. Tratado..., v. II, p. 486.
74 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pp. 355-356.
75 STF, Pleno, HC nº 70.389, Rel. Min. Sydney Sanches. Rel. p/acórdão: Min. Celso de Mello, RTJ 178/1-
168, DJU 10/08/2003, p. 3.
76 STF, Pleno, ADIN 2.178, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 12/05/00.

98
Temas de Direito Constitucional Tributário

tos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio ou grave”.77 Embora


tenha se utilizado como fundamento da decisão a tese do regulamento delegado,
quando a questão não é de delegação, mas de interpretação de conceitos indeter-
minados, a decisão se traduz numa virada da jurisprudência tributária do STF, que
supera o dogma da tipicidade fechada, e caminha em direção à juridicidade e da
legalidade da sociedade de risco.
É importante ressaltar que a utilização dos conceitos abstratos pelas leis tribu-
tárias, além de ser uma pretensão praticamente inatingível, e de constituir-se em
flagrante prejuízo à capacidade contributiva que se pretende mensurar com a tri-
butação, causa grave lesão também à segurança jurídica, uma vez que o uso de uma
linguagem inequívoca só seria alcançado com o mais alto grau de abstração, o que
levaria a exclusão de toda conexão com a realidade econômica. Tal conclusão é
reforçada pela idéia de que é esta conexão com a materialidade econômica que vin-
cula os atos praticados pelo contribuinte às autorizações constitucionais e legais da
tributação e que lhe conferem certeza quanto à legitimação do ônus fiscal. Por
outro lado, a tentativa de reduzir o papel hermenêutico do aplicador por meio da
adoção de uma estrutura abstrata, nunca irá ser exitosa, pois uma lei tal, que não
requeira qualquer interpretação, precisamente porque nela não existe nada o que
se interpretar, abre caminho para a sua manipulação discricionária.78
Como se vê, ao contrário do que sustenta a doutrina formalista, a estrutura con-
ceitual abstrata não promove uma maior garantia aos direitos do contribuinte, pois a
aplicação da lei a partir unicamente do seu texto, sem considerar o âmbito da norma
e os princípios jurídicos imanentes, leva a uma aplicação irracional do Direito, por
não atingir o significado concreto da norma que, embora limitado pelo seu texto, com
ele não se confunde.79 Assim, a determinabilidade não afasta o compromisso do
Direito Tributário com a juridicidade, uma vez que, se nenhuma regra jurídica é
extraída exclusivamente a partir dos princípios ou da idéia de Direito, também é ver-
dade que nenhuma decisão jurídica deriva apenas a partir da regra jurídica.80
Deste modo, se o formalismo, por muito tempo, serviu de fundamento a uma
concepção de segurança baseada no abuso das formas jurídicas, tais efeitos vêm

77 STF, Pleno, RE 343.446-SC, Rel. Min. Carlos Veloso, transcrito no Informativo STF nº 302.
78 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 244. No mesmo sentido: RIBEIRO, Ricardo Lodi.
Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 32: “A própria segurança jurídica restaria arranhada se os
fatos geradores tributários fossem veiculados por estruturas conceituais, uma vez que os tipos, como
manifestações da realidade social e econômica, são bem mais concretos do que aquelas, sendo portanto
mais adequados a descrever o fato-signo manifestador de capacidade contributiva”. Contra: DERZI,
Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 286.
79 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, pp. 308-309: “às vezes, mesmo a segurança jurí-
dica – no sentido de uma segurança jurídica material – vê-se bloqueada, quando o sentido concreto de
uma norma jurídica não pode ser ‘retrorreferido’ ao texto da norma, em virtude dos conjuntos de fatos
da vida, dos quais o texto da norma depende (e.g. igualdade na aplicação do direito).”
80 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 171.

99
Ricardo Lodi Ribeiro

sendo eliminados por uma legislação tributária que cria mecanismos para superar
as práticas evasivas e elisivas. Por outro lado, tal linha de pensamento formalista
acaba por se impor como obstáculo à efetivação dos princípios materiais que tute-
lam os direitos dos contribuintes, como o princípio da não-surpresa, o princípio da
capacidade contributiva, e o princípio da igualdade.81 Sem falar que a complexida-
de da legislação tributária muitas vezes subordina o cálculo de deduções e benefí-
cios fiscais, a conceitos, como o de despesas necessárias, por exemplo, que não
podem ser fixados previamente pelo legislador, e cuja interpretação formalista
acaba por violar os direitos do contribuinte.
Nesse sentido, a abertura dos tipos, assim como dos conceitos indeterminados,
permite ao Direito Tributário o exame da proporcionalidade da adequação da lei
tributária aos fins a que ela se destina constitucionalmente,82 viabilizando o com-
bate aos abusos de direito e fraudes fiscais. Ademais, o uso dessa estrutura tipoló-
gica atende à generalidade tributária, a partir de uma definição legal baseada na
simplificação. Porém, deve-se advertir que, não se confundindo a justiça tributária
com os interesses da arrecadação, a legitimidade de tais normas simplificadoras
dependerá da proporcionalidade dessas medidas vista sob o ângulo do princípio da
capacidade contributiva. Pouco adianta uma definição legal que, abstratamente,
seja fiel à capacidade contributiva efetiva, mas que, no entanto, dada a complexi-
dade na apuração da base tributável, seja de difícil controle pela Administração. E
diante de tal dificuldade, muitos contribuintes poderão deixar de recolher seus tri-
butos, o que provocará uma injusta repartição das despesas públicas e uma violação
do princípio da isonomia no plano da realidade fática. A rigor, sendo o princípio da
capacidade contributiva uma decorrência do valor da igualdade, uma norma sim-
plificadora que daquele se afaste em alguns casos individuais, mas que venha a
garantir a prevalência da isonomia (que poderia ser violada pela facilidade no des-
cumprimento da legislação tributária pelos contribuintes, ou pelo alto custo para a
sociedade na adoção de medidas que impeçam esse descumprimento), não atenta
contra o referido princípio. É que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o próprio
princípio da capacidade contributiva é violado se não há possibilidade de se esta-
belecer mecanismos de controle do cumprimento das obrigações tributárias pelos
contribuintes menos imbuídos do dever de contribuir para as despesas públicas ou
quando o alto custo desses controles é suportado por toda a sociedade. No entanto,

81 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 306. “Muitas restrições materiais do poder de
tributar, porém – e aqui se evidencia o déficit de uma teoria geral dos conceitos classificatórios –, não
podem ser derivados dos ‘elementos constantes dos conceitos das normas’ por meio da ‘subsunção’, pois
dependem da concretização dos direitos fundamentais e de uma aplicação direta de um conceito abstra-
to no Direito. A proibição de excesso, a proporcionalidade e a razoabilidade, por exemplo, são limita-
ções que, ‘em princípio’, não resultam dos ‘conceitos’ de norma de uma lei, embora ‘em princípio’ deves-
sem determinar o conteúdo da relação obrigacional tributária.”
82 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 128.

100
Temas de Direito Constitucional Tributário

tais medidas simplificadoras não podem descambar em uma tributação que, na


maioria dos casos, não reflita a capacidade contributiva de cada um dos contribuin-
tes, e nem impingir a qualquer deles uma carga tributária radicalmente distinta da
que seria devida caso não houvesse a medida simplificadora.83
Abalizada doutrina vem defendendo que a abertura dos tipos seria maior nas
taxas e contribuições parafiscais do que nos impostos.84 Também o Tribunal
Constitucional da Espanha admite um maior espaço para o regulamento nos tribu-
tos sinalagmáticos.85 Porém, tal conclusão se pode chegar, não por uma caracterís-
tica ontológica dos tributos não-vinculados a uma atuação específica do Estado, uma
vez que nesses é também sensível a influência dos fenômenos da ambigüidade das
palavras da lei, da necessidade de valoração e da abertura da norma à realidade. A
despeito dessa afirmação, é forçoso reconhecer que, historicamente, sendo os impos-
tos frutos de construções legislativas mais antigas, muitas ainda ligadas à moldura do
Direito Civil, o grau de abertura acaba não sendo tão intenso quanto o verificado nos
tributos mais recentes, sejam eles impostos definidos a partir da realidade econômi-
ca, o que constitui a tendência atual,86 seja quanto aos tributos vinculados a uma
prestação estatal. Por outro lado, a liberdade do legislador dos impostos também
encontra limite nas regras de competência constitucional e nas definições de fato
gerador, base de cálculo e contribuintes em lei complementar, o que, indiretamen-
te, acaba por reduzir o grau de abertura do tipo, muito embora tais definições nacio-
nais também sejam quase sempre estabelecidas por conceitos indeterminados.
Enquanto isso, as taxas e contribuições parafiscais (exceto as que se constituem em
impostos afetados travestidos), sempre se referindo a uma atuação estatal, seja por
meio do fato gerador nas primeiras ou da finalidade nas últimas, acabam deixando
ao regulamento uma carga maior de cognição da realidade, especialmente em maté-

83 HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad Económica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamien-
to español a la luz del Derecho alemán. Barcelona: Marcial Pons, 1998, pp. 161-162: “Ahora bien, la ine-
ficacia administrativa lleva consigo una aplicación deficiente del sistema fiscal, y ésta supone necesaria-
mente un reparto desigual de las cargas fiscales en beneficio de aquello menos honrados o con menos
posibilidades de defraudar. A sensu contrario, la eficacia del control administrativo constituye una con-
dición necesaria (no suficiente) del sistema tributario justo.”
84 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, pp. 425-427; HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Meto-
dología del Derecho Financiero y Tributario. México: Porrúa, 2004, p. 109: “pensamos que en los tribu-
tos distintos de los impuestos la verdadera garantía para el ciudadano no radica en la mención indivi-
dualizada del supuesto de hecho de cada pretación por la ley, sino en la existencia de unos criterios de
cuantificación lo más precisos posibles, aunque lo sean medidate conceptos jurídicos indeterminados”.
85 STC 106/2000, apud SÁNCHEZ, Juan Ignácio Gomar. In: HERRERA MOLINA, Pedro Manuel.
Comentarios de Jurisprudencia Tributaria Constitucional – Años 2000-2001, Madri: Instituto de Estu-
dios Fiscales, 2003, p. 79.
86 A tendência da transformação de fatos geradores jurídicos em fatos geradores econômicos se verificou
também no Brasil, a partir da EC nº 18/65, como na substituição do IVC, que incidia sobre as vendas e
consignações, dando origem ao ICM, sobre circulação de mercadorias, e do imposto do selo, que onera-
va os negócios jurídicos, dando lugar ao IOF, a tributar as operações financeiras.

101
Ricardo Lodi Ribeiro

ria técnica. Porém, é preciso deixar claro que o grau de abertura, seja nos impostos,
seja nos demais tributos, será sempre definido pela própria lei tributária.
O mesmo fenômeno ocorre com a tributação extrafiscal que, embora
subordinada ao princípio da legalidade nos mesmos termos do que a tributação
fiscal, se amolda freqüentemente a um tipo legal que deixa, em larga medida,
ao regulamento a definição de aspectos vinculados à realidade fática que pre-
tende regular.87 Mais uma vez, cumpre ter cautela para verificar que esta maior
abertura também vai depender de uma definição legal que atribua maior espa-
ço para valoração objetiva do aplicador, o que vai variar de acordo com a reali-
dade regulada.88
Porém, embora se reconheça que na sociedade de risco ocorre a passagem do
Estado dos Impostos para o Estado das Taxas (em que as despesas públicas tendem
a ser custeadas por tributos contraprestacionais, ficando os impostos para as despe-
sas gerais do Estado), vivemos numa época de transição onde os impostos, justifica-
dos pela capacidade contributiva, ainda possuem importância central,89 como ins-
trumento do Estado Social destinado à redistribuição de riquezas. Assim, também
na seara dos impostos, são aplicadas as idéias oriundas do pós-positivismo tributá-
rio, com a sua juridicidade iluminada pelos valores e princípios, a partir da utiliza-
ção de definições legais que se abram a eles.
Mas se o princípio da legalidade tributária admite a utilização de tipos na des-
crição das hipóteses de incidência dos tributos, exige por outro lado que a lei tome
determinadas decisões a respeito dos seus aspectos essenciais. É verdade que a inde-
terminação da linguagem, que caracteriza a estrutura tipológica, abre a tributação
aos valores materiais consagrados constitucionalmente, mas é preciso determinar
até que ponto pode ir a abertura da norma sem que seja comprometida a reserva
legal, para não se pecar no extremo oposto, de modo a deixar que a autoridade
administrativa escolha as situações econômicas que serão tributadas com base na
abstração oferecida pelos princípios da isonomia e da capacidade contributiva,
afora dos casos previstos em lei.
No momento em que o Direito Tributário se abre aos princípios materiais
previstos em nossa Constituição, é necessário prevenir a tendência, que foi verifi-
cada também no Direito Constitucional e no Direito Administrativo, de pretender
resolver tudo com base nos princípios, esquecendo da importância da correta e

87 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 337; MONCADA. Luís S. Cabral. Lei
e Regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 939; e entre nós: DOMINGUES, José Marcos.
Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 133.
88 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, pp. 143 e 145, onde o autor defende
que no Direito Tributário ambiental não há o princípio da determinação, pois dada a extrafiscalidade
envolvida na matéria, a indeterminação é a regra, e não a exceção.
89 TORRES, Ricardo Lobo. “A Fiscalidade dos Serviços Públicos no Estado da Sociedade de risco”. In: TÔR-
RES, Heleno Taveira. Serviços Públicos e Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 124.

102
Temas de Direito Constitucional Tributário

segura aplicação das regras.90 Por isso, é essencial definir os limites da atribuição
de poder decisório à Administração Fazendária, a fim de preservar as decisões
estabelecidas pelo pluralismo político, que fundamenta a reserva legal tributária
na sociedade de risco.
A resposta a essas questões, se não pode ser universalmente dada a priori,
dependerá do exame da natureza e do grau de densidade normativa da linguagem
utilizada pelo legislador, a que o estudo da doutrina dos conceitos indeterminados
presta um efetivo auxílio.91
Os conceitos indeterminados, gênero do qual os tipos fazem parte, se caracte-
rizam pela indeterminação ou imprecisão da linguagem no plano abstrato da
norma, estabelecendo comandos que serão definidos no momento da aplicação. Sua
utilização não contraria o princípio da determinação, corolário da legalidade, desde
que não resvale para a discricionariedade.
Esses conceitos, quando tomados em sentido estrito se diferenciam da discri-
cionariedade, pois, enquanto nos primeiros o legislador estabelece a solução a ser
adotada no caso concreto, que poderá ser identificada pelo aplicador por meio da
interpretação efetivada a partir de uma valoração objetiva, que se baseará nas idéias
sociais dominantes no tempo e no espaço considerados, nos últimos, o legislador
transfere a decisão sobre o justo ao aplicador, que poderá decidir a respeito da solu-
ção correta com base numa valoração subjetiva.
Nos dias atuais, o princípio da legalidade tributária aceita a utilização dos con-
ceitos indeterminados, capazes de enfrentar a imprevisibilidade e a ambivalência

90 Tal tendência é diagnosticada no Direito Constitucional com grande acuidade por Daniel Sarmento: “Se
quisermos levar a sério a democracia, o impacto negativo que uma ‘panconstitucionalização’ do Direito
pode exercer sobre ela tem de ser devidamente sopesado, Portanto, entendemos que a Constituição não
pode ser vista como fonte da resposta para todas as questões jurídicas. Uma teoria constitucional mini-
mamente comprometida com a democracia deve reconhecer que a Constituição deixa vários espaços de
liberdade para o legislador e para os indivíduos, nos quais a autonomia política do povo e a autonomia
privada da pessoa humana podem ser exercitadas” (SARMENTO, Daniel. “Ubiqüidade Constitucional:
Os Dois Lados da Moeda”. In: SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,
p. 196). E prossegue o brilhante constitucionalista carioca, comentando os efeitos colaterais da inade-
quada compreensão da função dos princípios no Direto Pátrio: “E a outra face da moeda é o lado do deci-
sionismo e do ‘oba-oba’. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibili-
dade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça –, passaram a negligenciar do
seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu
espaço muito maior para a decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politica-
mente correto, orgulhoso com os seus jargões grandioqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sem-
pre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras ‘vari-
nhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser” (“Ubiqüidade
Constitucional...”, p. 200 ). Embora a lição se dirija ao decisionismo dos juízes, também se aplica às auto-
ridades administrativas fazendárias, notadamente quando essas baseiam na capacidade contributiva a
autorização para a tributação não prevista em lei.
91 Para Karl Engisch, o uso dos conceitos indeterminados, das cláusulas gerais, da eqüidade e dos elemen-
tos normativos nas hipóteses, constitui importantes mecanismos de aplicação da práxis jurídica em sen-
tido tipificador (ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 411).

103
Ricardo Lodi Ribeiro

da sociedade de risco, mas não admite a adoção pelo legislador dos conceitos dis-
cricionários, pois violadores do pluralismo político e social que lhe serve de funda-
mento no Estado Social e Democrático de Direito.

104
VI
Conceitos Indeterminados,
Discricionariedade e Tributação
Sumário: 1) O Direito e a Imprecisão Conceitual. 2) Conceitos Indeterminados e Discricio-
nariedade. 3) Reserva Legal Tributária e os Conceitos Indeterminados. 4) Os Limites à
Atribuição Normativa ao Regulamento Tributário.

1) O Direito e a Imprecisão Conceitual

Sendo toda linguagem humana concebida de acordo com a interpretação de


uma determinada cosmovisão da realidade – e neste sentido, conferir um nome é algo
genuinamente criador, pois o que não tem nome, não existe –, a controvérsia sobre
o sentido das palavras constitui um fenômeno típico das sociedades pluralistas.1
A aspiração por segurança nos faz ansiar por uma situação ideal que permitis-
se uma linguagem jurídica unívoca, onde nada precisaria ser esclarecido. Porém, as
modernas ciências naturais descobriram que existem amplíssimos campos da reali-
dade que não podem ser investigados e descritos em forma matematicamente exata.
Elas não buscam mais a exatidão e a congruência até as últimas conseqüências e,
dependendo das circunstâncias, admitem como corretas diferentes representações
de um fenômeno, como ocorre com o elétron, pois a verdade só se impõe de acor-
do com as relações mútuas de afirmações complementares. Paradoxalmente, nas
ciências humanas, ainda predomina um racionalismo primitivo, hoje relativizado
nas ciências naturais.2
No entanto, a redução da jurisprudência a uma matemática do Direito baseia-
se no desconhecimento da sua própria essência, pois “a vida não se apresenta por
causa dos conceitos, mas os conceitos por causa da vida”.3
De acordo com a sua função vinculada à segurança jurídica, a linguagem jurí-
dica busca ser conceitualmente abstrata, exata, unívoca, unidimensional, se
movendo tão-só no plano categorial racional. Contudo, a partir da norma legal abs-
trata, só se pode refletir a realidade na medida em que seus conceitos se abrem às

1 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá:
Universidad Externato de Colombia, 1996, pp. 228-229.
2 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 241.
3 JHERING, Rudolf Von. Geist dês römischen Rechts III. 4. ed., 1888, S. 321, apud COING, Helmut.
Elementos Fundamentais de Filosofia do Direito. Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Fabris,
2002, p. 343.

105
Ricardo Lodi Ribeiro

circunstâncias de fato da vida, pois em nenhuma sentença sobre a realidade apare-


ce um conceito unívoco.4
Porém, em face do pluralismo político e social que marca o Estado Social e
Democrático de Direito, a ensejar distintas cosmovisões da realidade, os conceitos
legais, afora os poucos casos de conceitos numéricos, não são inequívocos,5 e nem
conceitos abstratos-gerais, mas, como vimos, conceitos-tipo, conceitos de ordem,
dotados de flexibilidade, abertura e concretude.
Em consonância com essas idéias, o princípio da determinação a que se
submetem as leis que configuram as hipóteses de incidência não constitui
óbice à aplicação de tipos no Direito Tributário, uma vez que determinabilida-
de não se confunde com uma determinação prévia, mas com a possibilidade de
fornecer pontos de partida para o conteúdo essencial de determinado âmbito
normativo. A despeito de seus elementos constitutivos deverem ser definidos
com clareza, tais normas não dependem apenas de determinações lingüísticas
e estruturais, são também carentes de concretização, pois seu significado nor-
mativo não pode ser dado absolutamente sem uma adequação a situações de
fato, o que vai se dar de acordo com as regras de competência e os princípios
de ordem material.6
Assim, a hipótese de incidência tributária geralmente vem veiculada por meio
de tipos abertos que carecem de concreção por parte do aplicador da norma tribu-
tária. Esses conceitos de tipo, face à abertura e concretude que lhes são intrínsecas,
são legalmente calcados em linguagem dotada de um determinado grau de incerte-
za, vez que a univocidade é apenas resultado de uma operação mental, é uma abs-

4 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 246. Para Kaufmann, os conceitos utilizados pelo
Direito podem ser: a) Conceitos impróprios de Direito, que provém direto da realidade, dando-lhes,
porém, o Direito um significado normativo mais ou menos impregnado, que não deriva de seu signifi-
cado corrente, já que a ciência jurídica, que deve ordenar, determinar, valorar, deve fundamentar em
“deve ser”, confere-lhe um significado normativo; são também chamados de conceitos jurídicos empíri-
cos, pois embora não sejam livres de valores ou descritivos, provém da experiência. b) Conceitos jurídi-
cos próprios, autênticos, ou das categorias jurídicas não provém da realidade extrajurídica, empírica,
sendo os que necessariamente se dão melhor com o Direito (KAUFMANN, Arthur. Filosofía del
Derecho, pp. 193, 202-204).
5 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 244: “Quien considera La Seguridad Jurídica como un
asunto serio tiene que confrontarse con la contradicción entre lenguaje y cálculo; el cálculo lógico, entre
tanto, excluye al lenguaje. El lenguaje aplicado a la realidad – y así también el lenguaje legal – no apun-
ta a la univocidad.”
6 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 304-305: “Deve-se
constatar, no caso concreto, se a hipótese de incidência atende às determinações constitucionais de com-
petência e aos princípios substancialmente conexos (inclusive aos direitos fundamentais no seu aspecto
objetivo); qual a intensidade da influência e da estrutura material das leis e como a norma e o conjunto
de fatos estão estruturalmente ligados. Deve-se saber, sobretudo, se se trata de um caso normal ou de
uma exceção sob os princípios constitucionais substancialmente conexos, se as assim chamadas ‘corre-
ções de elementos marginais’ [Randkorrekturen] se fazem necessárias em conformidade com a conside-
ração do teor literal e da finalidade concreta das normas legais a serem aplicadas, ou quais circunstân-
cias do caso individual devem ser consideradas na aplicação do Direito.”

106
Temas de Direito Constitucional Tributário

tração. A incerteza ou imprecisão dos conceitos pode derivar não só das indetermi-
nações lingüísticas dos seus enunciados, como da indeterminação dos fatos subja-
centes à norma.7
Como observa Sérvulo Correa, a abertura oferecida pelos tipos se dá em duplo
grau: no primeiro, pela adoção de conceitos indeterminados; em outro, pela faculdade
de o órgão administrativo aditar aos pressupostos legalmente anunciados outros de
sua escolha para, em face desse conjunto, optar por um certo sentido de decisão.8
Nessa segunda hipótese, estamos diante da discricionariedade. Mas se esta é incom-
patível com o princípio da determinação, que dá conteúdo material à legalidade tri-
butária e exige um certo grau de densidade normativa na hipótese de incidência, a
primeira hipótese é decorrência natural da utilização da linguagem tipológica, sem-
pre marcada pelo sentido plurissignificativo dos conceitos indeterminados. A incer-
teza ou imprecisão dos conceitos pode derivar não só das indeterminações lingüísti-
cas dos seus enunciados, como da indeterminação dos fatos subjacentes à norma.9
Nesse sentido, longe de representarem realidades distintas, os tipos e os concei-
tos indeterminados guardam a mesma natureza, constituindo os primeiros espécie do
gênero representado pela indeterminação conceitual,10 vez que esta pode, por vezes,
ser encontrada até mesmo nos conceitos abstratos, quando essa imprecisão gramatical
no plano abstrato da norma não for suficiente para afastar o caráter binário, advindo
da reunião artificial de notas constitutivas da estrutura conceitual abstrata revelada
pela subsunção, ou, ao contrário, quando o plano de fechamento pela estrutura con-
ceitual acaba por ser traído pela vagueza da linguagem.11 No entanto, é forçoso reco-
nhecer que a indeterminação se traduz quase sempre na conceituação tipológica. Por
isso, nos tipos tributários é tão comum o uso dos conceitos indeterminados.

2) Conceitos Indeterminados e Discricionariedade

Como vimos, o uso de tipos se caracteriza pela imprecisão conceitual, que não
se releva só pelo uso dos conceitos indeterminados em sentido estrito, mas também

7 MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética,
1999, p. 59.
8 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 322.
9 MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública, p. 59.
10 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 258. No mesmo sentido, RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça,
Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44.
11 Exemplo de conceito abstrato marcado pela indeterminação nos é dado pelo art. 3º do Código Tributário
Nacional, onde o legislador, objetivando conferir maior segurança jurídica ao contribuinte por meio da
subsunção, procurou fechar o conceito de tributo, a partir de uma artificial reunião de notas da realida-
de, o que, de certa forma, revelou-se infrutífero, dada a indeterminação das palavras por ele utilizadas,
levando a intermináveis discussões jurisprudenciais a respeito da natureza tributária de inúmeras exações.

107
Ricardo Lodi Ribeiro

pela discricionariedade. Em virtude da vagueza da linguagem jurídica, quase todos


os conceitos do Direito são marcados pela indeterminação, sendo a ilusão da deter-
minação absoluta uma herança da Escola de Exegese e da Jurisprudência dos
Conceitos.12 No entanto, são denominados conceitos indeterminados, aqueles que
possuem um grau mais alto de indeterminação.13 Nessa seara da indeterminação
conceitual merecem registro as peculiaridades da discricionariedade, onde a lei
deixa ao aplicador a possibilidade quanto à adição de novos pressupostos escolhi-
dos em consonância com a finalidade da norma. Enquanto isso, nos demais concei-
tos indeterminados, a abertura do tipo é menor, se limitando à configuração nor-
mativa de um pressuposto à sua aplicação da lei.14 Esses últimos casos se denomi-
nam conceitos indeterminados em sentido estrito. É nesse sentido que a expressão
é empregada ao longo do texto.
Nos últimos anos, tem sido questionada a distinção entre a liberdade que a
Administração Pública teria na discricionariedade, e a vinculação à lei apresentada
nos conceitos indeterminados. A despeito de ser correto o entendimento de que a
diferenciação se prende mais ao plano quantitativo do que ao ontológico, limitando-
se apenas ao grau da vinculação,15 é forçoso reconhecer que esta diversidade quanti-
tativa produz vários desdobramentos, tornando imprescindível a distinção entre as
duas categorias jurídicas.16 É de se ressaltar que os autores, nacionais ou estrangeiros,

12 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental – O Controle dos


Conceitos Jurídicos Indeterminados e a Competência dos Órgãos Ambientais – Um Estudo Comparativo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 23.
13 SOUSA, Antônio Francisco. “Conceitos Indeterminados” no Direito Administrativo. Coimbra:
Almedina, 1994, pp. 23-24.
14 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 333: “E a abertura é menor porque o ele-
mento da previsão normativa é ideado pelo legislador, que apenas deixa à Administração o poder de
livremente avaliar se ele ocorre ou não no caso concreto.”
15 VEDEL, Georges e DELVOLVÉ, Pierre. Droit Administratif. Tomo I. 12. ed. Paris: PUF, 1992, pp. 318-
319; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos, p. 338; BINENBOJM, Gustavo. Uma
Teoria do Direito Administrativo – Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 39.
16 No sentido do texto: SOUSA, Antônio Francisco. “Conceitos Indeterminados” no Direito Administra-
tivo, p. 21; e JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 158.
Contra a distinção de conceitos indeterminados e conceitos discricionários: MELO, Celso Antônio
Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 23; DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, 131-132; KRELL,
Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., pp. 31-32, onde o autor noticia que a moderna doutri-
na alemã, do que a obra de STARCK, Christian. (“Das Verwaltungsermessen und seine gerichtliche
Kontroll”. In: Franben, E. et alii (Hrsg.). Bürger, Richter, Staat – Festschrift für Horst Sendler.
Münvhen: C. H. Beck, 1991, pp. 167-181) constitui exemplo, tem, aos poucos, abandonado a distinção.
Porém, como o próprio autor esclarece, tal orientação da doutrina tedesca objetiva proteger os atos dis-
cricionários do amplo, e por vezes abusivo, controle jurisdicional, em face da diminuição de importân-
cia da discricionariedade pela tendência de quase sempre reconhecer a existência do conceito indeter-
minado, largamente passível de apreciação jurisdicional. Como o próprio autor reconhece na página 36
da citada obra, no Brasil, onde é tímido o controle jurisdicional do “mérito administrativo”, a distinção
é saudável, na medida em que viabiliza o maior controle dos conceitos indeterminados pelo Poder Judi-

108
Temas de Direito Constitucional Tributário

que negam a existência da distinção entre os conceitos indeterminados e discricioná-


rios, voltam sua preocupação à extensão do controle jurisdicional, uns para ampliá-
lo, como se verifica no Brasil e na Espanha, e outros, como na Alemanha, diante da
consagração das idéias ainda em desenvolvimento nos demais países, para impor um
certo limite, preservando o espaço de conformação do Poder Executivo. Porém,
admitindo-se o controle jurisdicional em ambos, de acordo com o grau de abertura
da habilitação legal utilizada na regulação, é forçoso reconhecer que, em face do
princípio da reserva legal absoluta, há uma questão que antecede a indagação sobre a
extensão da atuação judicial: trata-se da própria possibilidade constitucional de o
legislador atribuir esse espaço de valoração à autoridade administrativa.
Em relação aos conceitos indeterminados, a lei se reporta a uma esfera de reali-
dade cujos limites não aparecem bem precisados em seu enunciado, uma vez que este
não comporta uma quantificação ou determinação rigorosa.17 Porém, tal norma se
refere a um contexto de realidade que será precisado no momento de sua aplicação a
partir de conceitos de experiência ou de valor contidos em seu próprio texto. Tais
conceitos se vinculam a pressupostos concretos e não a definições vagas, imprecisas
ou contraditórias,18 demandando durante a sua aplicação um processo de preenchi-
mento semântico, ou seja, de densificação, por meio de uma valoração.19
Nesses conceitos, a lei não abre espaço para uma escolha subjetiva do aplica-
dor, muito embora careçam eles sempre de um preenchimento valorativo. Isso não
significa que essa valoração resultará em uma escolha entre mais de uma situação
possível, pois a indeterminação do enunciado não leva à indeterminação na aplica-
ção destes, que só autorizam uma unidade de solução justa em cada caso, extraída
por uma atividade de cognição objetiva, e não de volição. Não que só exista uma

ciário. De todo modo, nos parece que, independentemente da maior ou menor atuação judicial, cuja
eventual impropriedade se deve muito mais à incorreta compreensão da distinção do que à sua existên-
cia, é forçoso reconhecer que há elementos de diferenciação entre os dois institutos que guardam muita
importância prática, como se revelará ao longo do texto, especialmente quando se procura delinear o
espaço que o legislador pode deixar à complementação da autoridade administrativa, num ambiente
subordinado à reserva absoluta de lei.
17 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4. ed. Anotada e atualizada por
Geraldo Ataliba. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 118.
18 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.
Vol. I. 10. ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 457: “La Ley utiliza conceptos de experiencia (incapacidad para el
ejercicio de sus funciones, premeditación, fuerza irresistible) o de valor (buena fe, estándar de conducta
del buen padre de familia, justo precio), porque las realidades referidas no admiten otro tipo de determi-
nación más precisa. Pero al estar refiéndos a suspuestos concretos y no a vaguedades imprecisas o contra-
dictorias, es claro que la aplicación de tales conceptos o la calificación de circusntancias concretas no
admite más que una solución: o se da o no se da el concepto; o hay buena fe o no la hay; o el precio es
justo o no lo es; o se ha faltado a la probidad o no se ha faltado. Tertium no datatur. Esto es lo esencial
del concepto jurídico indeterminado: la indeterminación del enunciado no se traduce en una indetermi-
nación de las aplicaciones del miesmo, las cuales sólo permiten una ‘unidad de solución justa’ en cada
caso, a la que se llega mediante una atividad de cognición, objetivable por tanto, y no de volición.”
19 MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública, p. 59.

109
Ricardo Lodi Ribeiro

conduta capaz de merecer, entre todas as possibilidades, a qualificação apontada


pelo conceito, mas que, em determinado caso concreto, o aplicador adota um juízo
disjuntivo de apreciação, já que o objeto de apreciação não pode ser duas coisas
antagônicas ao mesmo tempo: ou o sujeito está de boa-fé ou não está.20
Embora já tenhamos defendido a tese de que nos conceitos indeterminados
sempre há possibilidade de mais de uma decisão, em virtude do caráter plurissigni-
ficativo da linguagem,21 hoje reconhecemos que esta abertura do texto da norma
não leva a essa conclusão, muito embora possa acarretar uma interpretação que ofe-
reça diferentes soluções, de acordo com as visões do aplicador. Porém, é forçoso
constatar que tal indeterminação conceitual, que é própria de toda a linguagem
jurídica, levará a que cada intérprete, a partir de sua compreensão do texto e de
acordo com critérios objetivamente fixados pelo âmbito da norma, só identifique
um único resultado justo, não deixando a lei espaço para uma outra alternativa
naquele caso concreto. A questão é de interpretação da norma, que embora estabe-
leça uma única solução correta, pode ser alvo de resultados hermenêuticos diver-
sos de acordo com o intérprete.
Enquanto isso, na discricionariedade a escolha persiste após o fim da ativida-
de hermenêutica, já que a lei não conferiu a solução a ser adotada, que muitas vezes
extrapola os limites do Direito. Esta técnica faz com que o legislador atribua ao
aplicador da norma a possibilidade de eleger entre os vários caminhos a seguir, a
partir de uma valoração subjetiva, de acordo com suas convicções pessoais. Os con-
ceitos discricionários conferem à autoridade administrativa o poder de determinar,
de acordo com o seu próprio modo de pensar, o fim de sua atuação. Quando a lei
estabelece o conceito de interesse público ou de bem comum, o seu alcance será
determinado por aquilo que a autoridade considerar como sendo integrante desses
conceitos.22 No poder discricionário, a lei deixa a cargo da autoridade administra-
tiva a escolha entre conseqüências jurídicas diferentes,23 mas igualmente aceitáveis
do ponto de vista da regulação. É essencialmente uma liberdade de eleição entre
alternativas igualmente justas, ou, entre indiferentes jurídicos, uma vez que a deci-

20 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.


V. I, pp. 457-458. No mesmo sentido, admitindo a unicidade de decisão dos conceitos indeterminados:
MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão, p. 55; TORRES, Ricardo Lobo.
Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios
Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 438; e SILVA, Almiro do Couto e. “Poder
Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro”. Revista de Direito Administrativo 179/80, 1990, p.
58. Contra, recusando a possibilidade de uma única solução legal: ANDRADE, José Vieira de. O Dever
de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos. Coimbra: Almedina, 1992, p. 367; HÄBERLE,
Peter. Öffentliches Interesse als juristisches Problem, Bad Homburg, 1970, p. 595, apud KRELL,
Andréas, J. Discricionariedade Administrativa...
21 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 42.
22 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 216.
23 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Trad. Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, pp. 47-48.

110
Temas de Direito Constitucional Tributário

são se fundamenta em critérios extrajurídicos não incluídos na lei e remetidos ao


juízo subjetivo da Administração.24 Assim, eles não se caracterizam por uma sim-
ples indeterminação, mas sim por uma valoração pessoal,25 a partir de uma delega-
ção legislativa de poder para tomar uma decisão que o legislador não adotou ele
mesmo, mas remeteu para o agente administrativo ou para o juiz, por só poder ser
estabelecida diante dos fatos e circunstâncias que apenas in concreto podem ser
descobertas. Nessa seara, a lei espera uma posição individual do aplicador, que se
torna o legislador do caso concreto.26
Porém, deve-se, desde já, advertir que na discricionariedade a lei deixa ao
administrador, mediante a redação de um preceito que resulte na abertura do tipo,
a faculdade de completar a descrição legal dos efeitos de direito, de acordo com um
juízo de conveniência, que, contudo, deve ser pautado por uma parametricidade ou
mensurabilidade legal.27 Com efeito, a valoração pessoal discricionária não se faz
ao arrepio da lei, e só será válida se for exercida dentro dos limites desta,28 e do
Direito como um todo, sobretudo quanto aos princípios constitucionais, vez que
não há conveniência e oportunidade fora dos limites da proporcionalidade.29 Por
outro lado, a lei que atribui o poder discricionário “pode deixar em branco a indi-
vidualização de alguns dos efeitos concretos a produzir, mas não pode deixar de
traçar a natureza do poder concedido”.30
Por sua vez, os conceitos indeterminados exteriorizam um critério de decisão
que já consta da lei, apesar da imprecisão quanto aos limites desta exigir uma valo-
ração. Contudo, esta valoração, como explica Engisch, terá o caráter objetivo, a
partir das concepções dominantes no corpo social,31 o que a sujeita a mudanças
quanto às pautas axiológicas adotadas em cada momento, e garante à sua vincula-
ção à lei. No entanto, há, se comparado ao conceito determinado, uma redução do
grau de vinculação do aplicador à literalidade da norma, autorizada pelo próprio

24 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.


V. I, pp. 458-459. No mesmo sentido: SOUSA, Antônio Francisco. “Conceitos Indeterminados” no
Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1994, p. 28. Para FORSTHOFF, o poder discricionário sig-
nifica “um espaço de liberdade para a ação e para a resolução, a escolha entre várias espécies de condu-
ta igualmente possíveis (...) O direito positivo não dá a qualquer dessas espécies de conduta preferência
sobre as outras”. Apud: ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 217.
25 SOUSA, Antônio Francisco. “Conceitos Indeterminados” no Direito Administrativo, p. 30.
26 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, pp. 220, 241-242.
27 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., pp. 316-317.
28 SILVA, Almiro do Couto e. “Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro”. Revista de
Direito Administrativo 179/80:54, 1990.
29 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo..., p. 208.
30 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 313.
31 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 236: “a valoração que aqui se faz, desde que não
se verifique a atribuição de um ‘poder discricionário’, não precisa de ser uma valoração eminentemente
pessoal do órgão aplicador do direito. Os conceitos ‘normativos’ podem antes significar que o órgão apli-
cador do direito deve procurar e determinar as valorações preexistentes num setor social ‘dirigente’ ‘re-
levante’. Nesta medida, falaremos de valorações objetivas.”

111
Ricardo Lodi Ribeiro

legislador que, ao utilizar-se da indeterminação conceitual, atribui ao intérprete o


exame a respeito do chamado halo do conceito, representado por uma zona inter-
mediária entre uma região de certeza sobre a existência do conceito (núcleo do
conceito), e outra sobre a sua inexistência.32
Na região denominada núcleo conceitual estão contidos precisamente os casos
considerados típicos em primeira linha pelo legislador, por serem especialmente
freqüentes ou representativos por possuírem todas as notas representativas do tipo.
No halo do conceito estão abarcados também os casos localizados na sua periferia,
onde se encontram os casos limites.33 Por halo conceitual se entende uma certa
margem de apreciação por parte da administração, onde esta, a partir de uma valo-
ração objetiva, vai interpretar a norma de acordo com as concepções morais domi-
nantes na sociedade, que não se confundem com a moral pessoal do juiz.34 O halo
conceitual segue até a franja marginal do conceito, fronteira além da qual, há um
juízo de certeza negativa sobre sua existência.35 Como salienta Sainz Moreno, “o
conceito chega até onde ilumina o resplendor de seu núcleo”.36
Assim, sempre que há uma noção clara do conteúdo de um conceito, a situa-
ção se insere no domínio do núcleo conceitual; onde as dúvidas começam, inicia-
se o halo do conceito.37
Quanto ao controle jurisdicional dos conceitos indeterminados e discricioná-
rios, a doutrina tedesca, em posição que gerou grande influência nas demais esco-

32 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.


V. I, p. 460.
33 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciência Jurídica Actuales. Trad. Juan José
Gil Cremades. Granada: Comares, 2004, p. 413.
34 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 237: “Saber se o dedo indicador é um ‘membro
importante do corpo’, se os combates de boxe e as lesões corporais que neles se aceitam são compatíveis
com os ‘bons costumes’, se um curador ‘violou gravemente as suas obrigações de curadoria’, se uma repre-
sentação gráfica (George Grosz: Cristo na máscara de gás) é ‘blasfema’ (§ 166 do Código Penal, fórmula
anterior) ou pelo menos ‘injuriosa’ para a Igreja cristã (§ 166 do Código Penal, nova fórmula), se um casa-
mento ‘fracassou’, tudo isso são questões que a lei não quer ver respondidas através de uma valoração emi-
nentemente pessoal do juiz. A lei aqui é antes de opinião de que há concepções morais dominantes pelas
quais o juiz se deve deixar orientar. ‘Decisivas são as circunstâncias do caso concreto tendo em conta as
concepções dos correspondentes setores populacionais’ (SCHÖNKE-SCHRÖDER). Os ‘correspondentes
setores populacionais’ podem sem dúvida ser sempre aqueles setores da população cujo juízo é aceito
como válido por cada ordem estadual e jurídica. Se o próprio juiz se situa dentro destes setores, ele tam-
bém pode, evidentemente, consultar o seu sentimento ético. Mas, ainda neste caso, haverá de ter o seu
cuidado de averiguar se porventura se não encontra bastante isolado na sua concepção. Se o juiz se sabe
inteiramente fora daquele setor populacional que, por força do Direito, representa o padrão ou critério
(se ele é, por exemplo, inteiramente indiferente do ponto de vista religioso ou se os prazeres da multidão
apaixonada pelo desporto são para ele horrores plebeus), não é este seu ponto de vista eminentemente
pessoal que interessa, mas, antes, aquilo que ‘as pessoas’ pensam e sentem nos setores em questão.”
35 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, p. 501.
36 Apud: GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Admi-
nistrativo. V. I, p. 462.
37 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 209.

112
Temas de Direito Constitucional Tributário

las, evoluiu de uma postura que reconhecia sua possibilidade quase total nos pri-
meiros e a negava aos últimos – o que acabou por levar ao artificial agigantamento
do Poder Judiciário a substituir as valorações administrativas, e ao escasso reconhe-
cimento das competências discricionárias38 –, para um modelo que, ao admitir o
controle tanto num quanto noutro, reabre o espaço para as valorações discricioná-
rias do Poder Executivo.
Todavia, não se pode negar a maior amplitude do controle judicial nos con-
ceitos indeterminados, vez que a sua utilização deriva de uma aplicação de uma
categoria legal, configurada com a intenção de acostar pressupostos concretos, a
despeito da imprecisão de limites, resultando em uma única solução justa, cuja
identificação pelo aplicador, pode ser controlada pelo juiz.39
Para García de Enterría, o controle jurisdicional é ilimitado na apreciação dos
conceitos advindos da experiência; enquanto nos conceitos de valor, técnico ou
político, há, dentro do halo conceitual, uma presunção relativa a favor da
Administração, podendo o juiz usar a prova pericial para fiscalizar a aplicação do
conceito indeterminado pela Administração quando os limites da margem de apre-
ciação forem ultrapassados. A presunção é juris tantum e será ilidida se, pelas pro-
vas apresentadas, o juiz verificar que o uso de potestade não foi razoável.40
A intensidade do controle jurisdicional será menor diante de uma matéria de
alta complexidade técnica, ou onde a legitimação democrática do Poder Executivo
deve preponderar, sobretudo quando a decisão tem a participação dos administra-
dos; será intenso quanto maior for o grau de restrição sobre os direitos fundamen-
tais, especialmente diante de ponderações desproporcionais, desde que respeitado
o espaço de conformação atribuído ao administrador pela diretriz normativa.41
Cumpre destacar que o preenchimento dos conceitos técnicos não se baseia
numa discricionariedade, pois não há espaço para várias soluções possíveis, nem
implica ponderação de interesses, vez que estão amarrados aos critérios objetivos
decorrentes da aplicação de tais normas extrajurídicas.42 Assim, o controle jurisdi-

38 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., p. 31.


39 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.
V. I, p. 459.
40 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.
V. I, pp. 461-463. Pela possibilidade de aferição dos conceitos técnicos por perícia: OTERO, Paulo.
Legalidade e Administração Pública – O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 768.
41 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo..., p. 41: “a luta contra as arbitrariedades
e imunidades do poder não pode se deixar converter em uma indesejável judicialização administrativa,
meramente substitutiva da Administração, que não leva em conta a importante dimensão de especiali-
zação técnico-funcional do princípio da separação de poderes, nem tampouco os influxos do princípio
democrático sobre a atuação do Poder Executivo.”
42 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., pp. 767-768; MICHELI, Gian Antonio. Curso de
Direito Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978, pp. 115-116.

113
Ricardo Lodi Ribeiro

cional dos aspectos técnicos tem ainda a função de preservação democrática da uti-
lização deste, a fim de que não se transforme num pretexto para, a partir da prote-
ção por uma redoma tecnocrática, esconder o esvaziamento da vontade da maioria
em favor de uma relação paternalista de clientela com o cidadão.43 Essa tendência
tecnocrática muitas vezes é viabilizada pela pluralidade conflitiva de definições
sobre os riscos civilizatórios e sua quase infinita possibilidade de interpretações
individuais,44 o que quase sempre se associada aos interesses dos grupos de pressão
com maior poder econômico, legitimados pela burocratização sevada no autorita-
rismo científico. Contudo, em casos altamente duvidosos, a prerrogativa de avalia-
ção caberá à Administração Pública, que “está mais perto dos problemas e, de regra,
está mais aparelhada para resolvê-los”.45
Deste modo, embora tanto o conceito indeterminado quanto o conceito dis-
cricionário sejam submetidos ao controle jurisdicional, no último ele restringe-se
aos aspectos formais e externos, bem como aos seus pressupostos de validade, mas
não entra no juízo de conveniência e oportunidade da Administração, senão pela
via da proporcionalidade. No primeiro, ao revés, o controle é total, só esbarrando
na dificuldade fática quanto à cognição a respeito da correção da decisão, onde a
presunção milita a favor da decisão administrativa.46
Essa presunção a favor da Administração, nos casos de grande controvérsia
técnica, se baseia na carência de parâmetros suficientes que permitam aos juízes
proferirem, em estritos termos jurídicos, uma decisão de qualidade material pelo
menos igual à decisão administrativa que pretende corrigir, a fim de evitar a tute-
la da administração por tribunais que querem saber tudo melhor, o que ao invés de

43 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 40.
44 BECK, Ulrich. La Sociedad Del Riesgo – Hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel
Jiménez e María Rosa Borras. Barcelona: Paidós, 1998, p. 37. PARDO, José Esteve. Técnica, Riesgo y
Derecho – Tratamiento del Riesgo Tecnológico en el Derecho Ambiental. Barcelona: Ariel, 1999, p. 26:
“el problema que a los tribunales se les plantea con mayor frecuencia, es el de la ausencia e indefinición
de norma jurídica o el de remisión, a través de la cláusula técnica, a los criterios y reglas de la técnica y
sus expertos. La certeza puede darse ahora no por desconocimiento comúnmente admitido, sino por la
presencia de criterios que no son unánimemente aceptados, con lo que cabe que se mantengan opinio-
nes del todo contrapuestas en los foros científicos y de la técnica.”
45 SILVA, Almiro do Couto e. “Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro”, p. 59; No
mesmo sentido: KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., p. 38.
46 SILVA, Almiro do Couto e. “Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro”, pp. 59-60, onde
o autor ilustra com exemplos a distinção: “Ilustremos isso com dois exemplos. O ato do Governador do
Estado que nomeia juiz para o Tribunal de Alçada, escolhendo-o de lista tríplice que lhe foi apresenta-
da pelo Tribunal (CF, art, 94, parágrafo único), é típico exercício de poder discricionário. Não cabe ao
Judiciário dizer que atenderia melhor ao interesse público a nomeação de A ou B, que seriam mais capa-
citados para a função do que C, que foi nomeado. Competirá, porém, ao Judiciário examinar inteiramen-
te o ato administrativo que proibiu a venda de certo agrotóxico, por considerá-lo prejudicial à saúde
pública, só restringindo sua apreciação caso venha o próprio julgador a verificar que, a propósito da
nocividade do produto, há várias opiniões técnicas divergentes, não podendo ele dizer qual seria a mais
acertada.”

114
Temas de Direito Constitucional Tributário

elevar o grau de segurança jurídica, o diminui. Num rol cada vez mais extenso de
matérias, existe uma maior e melhor preparação técnica do órgão administrativo
competente para realizar complexos juízos de caráter técnico.47
Porém, apenas o juiz, diante das circunstâncias fáticas do caso concreto, e da
viabilidade dele as conhecer profundamente, poderá decidir sobre a possibilidade
de controlar a correção da solução dada pela Administração.48
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, desde o fim da década
de 1980, o controle jurisdicional de decisões técnicas é maior conforme a afetação
dos direitos fundamentais, chegando o tribunal, com a ajuda de peritos, a modifi-
car gabarito de prova acadêmica.49 Para a jurisprudência administrativa portugue-
sa só há controle parcial dos atos administrativos que envolvam discricionariedade
técnica.50 Na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal Federal, já se encontra a
possibilidade de aferição dos juízos de certeza positiva e negativa que entremeiam
a zona de penumbra dos conceitos indeterminados, e a sua impossibilidade quanto
ao halo conceitual a cargo da administração, como se deu na apreciação do requi-
sito de notório saber jurídico para nomeação de conselheiro para o Tribunal de
Contas Estadual.51
Ao lado dos conceitos indeterminados, a lei utiliza ainda, como técnica des-
vinculadora, as chamadas cláusulas gerais, assim entendidas como formulações da
hipótese legal que, em função de sua grande generalidade, abrange todo um domí-
nio de casos subordinados a seu tratamento jurídico. São conceitos plurissignifica-
tivos que se contrapõem a uma elaboração casuística das espécies legais. A sua uti-
lização pelo legislador não significa uma opção por conceitos abstratos, discricio-
nários ou indeterminados, uma vez que não possuem qualquer estrutura própria,
embora quase sempre resultem em um conceito indeterminado. As cláusulas gerais,
ao deixar ao critério do aplicador as notas normativas da hipótese legal carecedo-
ras de valoração, estão em condições de acomodarem-se à situação individual con-
creta, mas pelo fato de serem indeterminadas, precisam ser concretizadas.52
Se a questão da distinção entre os conceitos indeterminados e os conceitos dis-
cricionários talvez não apresente mais tanta importância no Direito Adminis-
trativo, em razão da amplitude de atribuição de poder admitida pelo princípio da

47 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., pp. 43-47.


48 SOUSA, Antônio Francisco. “Conceitos Indeterminados” no Direito Administrativo, p. 210. Para o autor
português, essa decisão deverá levar em consideração: a) sustentabilidade da decisão; b) o erro manifes-
to de apreciação; c) o princípio da proporcionalidade; d) os direitos fundamentais em gerais; e) princí-
pios gerais de Direito e princípios gerais de valoração; f) princípios da igualdade e da imparcialidade;
g) autovinculação da administração; h) opinião média da sociedade (senso comum); i) juízos de expe-
riência comum; e j) juízos de experiência ou do conhecimento técnico (pp. 226-234).
49 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., p. 39.
50 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., p. 47.
51 STF, 2ª Turma, RE nº 167.137-8-TO, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU 25/11/94.
52 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, pp. 156, 228, 229 e 233.

115
Ricardo Lodi Ribeiro

legalidade contido no art. 5º, II, da CF, a ponto de vários autores, como se viu,
negarem a diferença no plano conceitual, o tema é de capital relevância para o
Direito Tributário, submetido aos ditames da legalidade mais rigorosa do art. 150,
I, da CF. Como se verificara a seguir, é exatamente na distinção entre conceitos
indeterminados e discricionariedade que reside a maior proteção aos direitos do
cidadão que o princípio da reserva legal absoluta oferece.

3) Reserva Legal Tributária e os Conceitos Indeterminados

A despeito da já demonstrada compatibilidade do inevitável uso dos conceitos


indeterminados com o princípio da legalidade administrativa, a doutrina formalis-
ta veda, em nome do princípio da reserva legal absoluta, o seu emprego no Direito
Tributário. No entanto, como visto, não há qualquer singularidade nesta disciplina
jurídica que justifique tal postura, uma vez que os conceitos indeterminados devem
possuir um núcleo mínimo de conteúdo semântico, muito embora não se limitem
à interpretação literal e sistemática, já que se abrem facilmente ao método teleoló-
gico. Por meio deles, a abertura da norma não atenta contra a densidade normati-
va mínima exigida pela reserva legal, pois o seu emprego não liberta a Admi-
nistração da necessidade de encontrar na norma a medida positiva material da sua
atividade, nem sujeita os particulares ao arbítrio de um poder sem acepção das cir-
cunstâncias.53
A estrutura tipológica sob a cláusula da reserva legal adotada no Direito
Penal e no Direito Tributário, embora avessa à discricionariedade, não é incom-
patível como os conceitos indeterminados.54 Bem ao contrário. A indeterminação
do conceito legal utilizado pelo legislador não gera a incerteza apregoada pelos
positivistas, uma vez que, como assinalou Amílcar de Araújo Falcão,55 o instituto
é utilizado pelo legislador não porque o conceito é indeterminável, “mas porque,
na norma em que está indicado, a determinação integral do seu conteúdo não foi
possível, por isso que para tanto é necessário considerar dados empíricos, fáticos,
técnicos ou científicos de que somente o intérprete e o aplicador, em cada hipó-
tese concreta, disporão”.
Embora a adoção de conceitos indeterminados seja tabu para a maioria da
doutrina tributária brasileira, não são poucos os autores que defendem a sua possi-
bilidade aqui e alhures. Na Alemanha, Kruse sustenta que, embora o fato gerador

53 CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., pp. 332 e 334.


54 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Legalidade Tributária, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e
Cláusulas Gerais”. Revista de Direito Administrativo 229: 313-333, 2002.
55 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 113. No mesmo sentido:
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual – 2ª série. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988,
p. 64; DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 131.

116
Temas de Direito Constitucional Tributário

deva ser definido com precisão e abundância quanto ao seu objeto, esta meta é sufi-
cientemente atingida pelos conceitos indeterminados e as cláusulas gerais.56 Para
Tipke: “À cláusula geral e aos conceitos indeterminados não se pode renunciar
totalmente.”57
Diante do sistema constitucional espanhol, que também consagra o princípio
da legalidade tributária como princípio da reserva legal,58 Perez Royo admite a uti-
lização de conceitos indeterminados, desde que sejam definidos pela lei os limites
e critérios da fixação tributária.59 Marta Villar Ezcurra os admite, desde que deter-
mináveis.60
Em Portugal, onde também a Constituição adota o princípio da reserva legal
para a instituição de tributos, José Casalta Nabais 61 defende a utilização dos con-
ceitos indeterminados a partir da ponderação do princípio da legalidade e do seu
corolário, o princípio da determinação, com o princípio da praticidade.62
No Uruguai, Valdés Costa63 – mesmo em face de sistema constitucional que
legalidade tributária se confunde com reserva legal mais absoluta, não admitindo
qualquer poder normativo originário ou delegado ao Poder Executivo – sustenta a
possibilidade de a lei tributária utilizar-se de conceitos indeterminados.
No Brasil, Amílcar de Araújo Falcão,64 Ricardo Lobo Torres,65 Marco Aurélio
Greco66 e José Marcos Domingues de Oliveira,67 entre outros, admitem a utiliza-
ção dos conceitos indeterminados pela norma de incidência.

56 KRUSE, Heinrich. Wilhelm. Derecho Tributario – Parte General. Trad. p. Yebra. Madrid: Edersa, 1978,
p. 97.
57 TIPKE, Klaus. Die Steurrechtsordnung. 2. ed. Köln: O. Smchmidt, 2000, p. 143, apud TORRES, Ricardo
Lobo. Tratado..., v. II, p. 485.
58 Art. 133.1 da Constituição de 1978.
59 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 46.
60 VILLAR EZCURRA, Marta. Las Disposiciones Aclaratorias en la Práctica Jurídica – Análisis crítico de
su aplicación en el Derecho Público Español y Comunitario. Barcelona: Cedecs, 1996, p. 33.
61 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 373.
62 A aplicabilidade do princípio da praticidade no Direito Tributário transcende, hoje, às suas origens eco-
nomicistas moldadas pelos cameralistas, de buscar uma maior produtividade com o menor custo. Ganha
modernamente o princípio uma dimensão axiológica que se prende ao princípio da isonomia e ao valor
da justiça, na medida em que o legislador tributário, ciente de que não é onipotente, busca a simplifica-
ção, por meio da adoção de conceitos mais abertos, capazes de captar toda a manifestação de riqueza por
ele considerada relevante, desprezando descrições pormenorizadas do fato gerador que se mostram pas-
síveis de ser facilmente elididas, ou cuja fiscalização, por demais complexa e cara, geraria um custo insu-
portável para a sociedade (NABAIS, Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 378).
63 COSTA, Valdés. Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 144.
64 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 112.
65 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 98.
66 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética,
1998, p. 70.
67 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 129.

117
Ricardo Lodi Ribeiro

A utilização dos conceitos indeterminados pelo legislador tributário também


vem recebendo larga aceitação jurisprudencial. Como noticia Ricardo Lobo Torres,
o Tribunal Constitucional Alemão vem aceitando as tipificações feitas pelo legisla-
dor tributário, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade e da igual-
dade, e os objetivos da praticidade e simplificação fiscais.68 Na Espanha, o Tribunal
Constitucional admite que o uso desses conceitos não afeta a segurança jurídica,
desde que sejam determináveis por ocasião de sua aplicação,69 considerando legíti-
ma a colaboração do regulamento, sempre que seja indispensável por motivos téc-
nicos ou para otimizar o cumprimento das finalidades propostas pela Constituição
e pela lei.70 Em Portugal, os conceitos indeterminados (e até mesmo certa discri-
cionariedade), foram aceitos pelo Tribunal Constitucional, na valoração técnica das
normas fiscais.71 Na Argentina, a Corte Suprema tem entendido que não se pode
julgar inválido, em princípio, o reconhecimento legal de atribuições ao Poder
Executivo, desde que estas sejam exercidas de forma razoável por esse, e de acordo
com uma política legislativa claramente estabelecida.72
No Brasil, o STF admitiu a utilização de conceitos indeterminados pela lei que
criou a contribuição ao SAT – Seguro de Acidentes do Trabalho, instituído pelo art.
22, II, da Lei nº 8.212/91, e alterada pela Lei nº 9.528/97. No entanto, como se viu,
a fundamentação da decisão não se baseia nos conceitos indeterminados, mas na
delegação imprópria. Essa categoria jurídica é encontrada na obra de José Osvaldo
Casás, onde o autor argentino sustenta a possibilidade de a lei conferir uma delega-
ção imprópria para a fixação de alíquotas, a partir de uma clara e precisa política
legislativa.73 Porém, como ressaltado pela decisão anteriormente citada da Corte
Suprema Argentina,74 não existe propriamente uma delegação senão quando uma
autoridade investida de um poder determinado atribui o seu exercício a outra auto-
ridade ou pessoa, descarregando-o nela. Segundo a decisão, existe uma diferença
fundamental entre a delegação de poder para fazer a lei e a fixação de competência
ao Poder Executivo, ou a um corpo administrativo, destinada a regular os porme-
nores e detalhes necessários para a execução daquela. Assim, segundo ainda estabe-

68 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 480.


69 STC 71/1982; STC 76/1990 e STC 150/1991, apud VILLAR EZCURRA, Marta. Las Disposiciones
Aclaratorias..., p. 33.
70 STC 233/1999 e STC 106/2000, apud CAZORLA PRIETO. Luis María. Derecho Financiero y Tributario
– Parte General. Navarra: Aranzadi, 2000, p. 130.
71 AC. 233/94 (DR, II, 17-8-1994), apud NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos,
p. 384.
72 Corte Suprema de Justicia de la Nación, sentença de 20/06/27 no caso A. M. Delfino y Cia vs. Prefectura
Marítima; e sentença de 02/12/93 em Jorge Daniel Cocchia vs. Nación Argentina y Otro. Apud: CASÁS,
José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del Principio de
Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, pp. 355-361.
73 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente..., p. 501.
74 Vide nota nº 71.

118
Temas de Direito Constitucional Tributário

leceu, com razão, o Tribunal Argentino, quando o Poder Executivo é chamado a


exercitar seus poderes regulamentares na presença de uma lei que os defere, assim
procede não em virtude de uma delegação de atribuições legislativas, mas a título
de uma faculdade própria consagrada pela Constituição e cuja maior ou menor
extensão, de acordo com as circunstâncias do caso, será determinada pelo uso que
a mesma faculdade haja sido dada, discricionariamente, pelo Poder Legislativo,
especialmente quanto às matérias que apresentam aspectos muito peculiares, dis-
tintos e variáveis, em que o legislador não se sinta capacitado a prever antecipada-
mente a manifestação concreta que terão os fatos.
Na verdade, o que ocorre quando a Administração aplica um conceito inde-
terminado, seja por meio da tipificação pelo regulamento ou pela tipificação casuís-
tica de acordo com o caso concreto, é a atividade de interpretação deste conceito,75
e não em delegação, uma vez que a atividade hermenêutica concretizadora da
norma, embora tenha um conteúdo valorativo, parte de uma decisão que pode ser
extraída da lei com base em um juízo objetivo.76
Na delegação legislativa o Parlamento atribui ao Poder Executivo a decisão quan-
to às várias opções de regulação,77 o que seria contrário ao princípio da legalidade tri-
butária. É por isso que o relator do citado RE nº 343.446,78 Ministro Carlos Velloso,

75 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 113: “O conceito indetermina-
do não enseja uma opção ou liberdade de escolha entre várias soluções ou atividades possíveis. Pelo con-
trário, ao estabelecê-lo, quer o legislador que uma única solução seja adotada, a que resulta do comando
legal traduzido pelo conceito indeterminado: o problema no caso, para a concreta determinação do con-
ceito, é apenas, como acentuam os autores, de interpretação.” No mesmo sentido: DOMINGUES, José
Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 147.
76 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, pp. 236-237; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça,
Interpretação e Elisão Tributária, pp. 42-43.
77 Sobre tema, vide: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O Congresso Nacional e as Delegações Legislativas.
Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 94. Segundo o autor, a delegação consiste na “transferência da função
legislativa atribuída originária e constitucionalmente ao Poder Legislativo a órgãos ou agentes especia-
lizados do próprio Legislativo, ou integrantes dos demais Poderes do Estado”.
78 STF, Pleno, RE 343.446-SC, Rel. Min. Carlos Veloso, transcrito no Informativo STF nº 302: EMENTA:
– CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEGURO DE ACIDENTE DO TRABALHO –
SAT. Lei 7.787/89, arts. 3º e 4º; Lei 8.212/91, art. 22, II, redação da Lei 9.732/98. Decretos 612/92,
2.173/97 e 3.048/99. C.F., artigo 195, § 4º; art. 154, II; art. 5º, II; art. 150, I. I. – Contribuição para o cus-
teio do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT: Lei 7.787/89, art. 3º, II; Lei 8.212/91, art. 22, II: alega-
ção no sentido de que são ofensivos ao art. 195, § 4º, c/c art. 154, I, da Constituição Federal: improce-
dência. Desnecessidade de observância da técnica da competência residual da União, C.F., art. 154, I.
Desnecessidade de lei complementar para a instituição da contribuição para o SAT. II. – O art. 3º, II, da
Lei 7.787/89, não é ofensivo ao princípio da igualdade, por isso que o art. 4º da mencionada Lei 7.787/89
cuidou de tratar desigualmente aos desiguais. III. – As Leis 7.787/89, art. 3º, II, e 8.212/91, art. 22, II,
definem, satisfatoriamente, todos os elementos capazes de fazer nascer a obrigação tributária válida. O
fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de “atividade preponderante” e
“grau de risco leve, médio e grave”, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, C.F., art. 5º,
II, e da legalidade tributária, C.F., art. 150, I. IV. – Se o regulamento vai além do conteúdo da lei, a ques-
tão não é de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitu-
cional. V. – Recurso extraordinário não conhecido”.

119
Ricardo Lodi Ribeiro

fala no caráter impróprio da delegação, ressaltando que a lei regulou satisfatoriamen-


te todos os elementos necessários para a criação de uma obrigação tributária.79
Como se vê, no caso em questão, a lei utilizou conceitos indeterminados de
natureza técnica, uma vez que o legislador não se considerou apto a definir que ati-
vidades empresariais causariam riscos graves, médios ou leves à saúde do trabalha-
dor, mas quantificou as alíquotas para cada grau de risco, de modo que as empresas
cuja atividade preponderante provocam risco grave estão legalmente submetidas a
uma taxação de 3%, as que geram risco médio, 2% e as que ensejam um grau de
risco leve, 1%.80
Nesse contexto, o papel do regulamento é desempenhado a partir de um juízo
técnico, desprovido de discricionariedade, pois não há espaço entre várias soluções
possíveis ou ponderações de interesses, mas a avaliação quanto aos critérios extra-
jurídicos de natureza objetiva.81 Quanto à qualificação que o regulamento dá a cada
atividade econômica, deverá levar em consideração as estatísticas sobre as doenças
relacionadas ao trabalho, disponíveis nos órgãos administrativos previdenciários.
Afastando-se o regulamento dessas premissas técnicas, perceptíveis por meio de um
juízo objetivo, caberá a revisão jurisdicional, lastreada na prova pericial, o que
poderá ensejar a ilegalidade do ato regulamentar, e não a inconstitucionalidade da
lei habilitadora, que bem se adapta ao princípio da legalidade.
A despeito de o STF não ter baseado a decisão do SAT na doutrina dos concei-
tos indeterminados, o que talvez seja explicado pela falta de construção doutriná-
ria sobre o seu uso em face ao princípio da reserva legal tributária, é muito louvá-
vel que o nosso Tribunal Maior tenha superado o dogma da tipicidade fechada e,

79 Vale transcrever trecho do voto do relator, Min. Carlos Velloso: “Finalmente, esclareça-se que as leis em
apreço definem, bem registrou a Ministra Ellen Gracie, no voto, em que se embasa o acórdão, ‘satisfato-
riamente todos os elementos capazes de fazer nascer uma obrigação tributária válida’. O fato de a lei dei-
xar para o regulamento a complementação dos conceitos de ‘atividade preponderante’ e ‘grau de risco
leve, médio ou grave’, não implica ofensa ao princípio da legalidade tributária, C.F., art. 150, I. Na ver-
dade, tanto a base de cálculo, que Geraldo Ataliba denomina de base imponível, quanto ‘outro critério
quantitativo que – combinado com a base imponível – permita a fixação do débito tributário, decorren-
te de cada fato imponível’, devem ser estabelecidos pela lei. Esse critério quantitativo é a alíquota.
(Geraldo Ataliba, “Hipótese de Incidência Tributária”, 3ª ed., pp. 106/107). Em certos casos, entretanto,
a aplicação da lei, no caso concreto, exige a aferição de dados e elementos. Nesses casos, a lei, fixando
parâmetros e padrões, comete ao regulamento essa aferição. Não há falar, em casos assim, em delegação
pura, que é ofensiva ao princípio da legalidade genérica (C.F., art. 5º, II) e da legalidade tributária (C.F.,
art. 150, I). No julgamento do RE 290.079/SC, decidimos questão semelhante. Lá, a norma primária, D.L.
1.422/75, art. 1º, § 2º, estabeleceu que a alíquota seria fixada pelo Poder Executivo, observados os parâ-
metros e padrões postos na norma primária.” (Transcrito no Informativo STF nº 302).
80 Sobre a fixação de alíquotas pelo Poder Executivo, a partir da definição legal: Em posição semelhante:
UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 46, nota 90: “Na verdade, a alíquota normalmente é fixada pela lei,
mas por vezes resulta de fontes diferentes; isto é considerado legítimo, mas sempre sob condição de que
a lei indique critérios idôneos para limitar a discricionariedade do legislador.”
81 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 767.

120
Temas de Direito Constitucional Tributário

adequando-se à abertura da norma, cada vez mais necessária na sociedade de risco,


admitido o uso de expressões a serem objetivamente valoradas pelo regulamento.
No entanto, a legalidade tributária, assim entendida como a reserva absoluta
de lei, não se contenta com a mera habilitação para que a autoridade administrati-
va crie o tributo, mas que exige que todos os elementos essenciais sejam determi-
nados por lei, o que significa que esta deva ser o veículo que irá regular diretamen-
te a relação jurídica criadora da obrigação tributária a partir de uma regra com alta
densidade normativa.
Essa necessidade de o Poder Legislativo tomar as decisões fundamentais sobre
o critério de partilha do ônus tributário pela sociedade é fruto do pluralismo polí-
tico e social, incompatível com decisões obtidas por uma perspectiva unilateral da
realidade, ainda que sua fonte seja democraticamente legitimada. Na sociedade de
risco, sendo a relação fisco-contribuinte dotada de uma feição horizontal, onde os
interesses de um segmento social se contrapõem muito mais aos interesses de outro
grupo do que ao do Estado, é essencial que a decisão sobre a partilha dos ônus e ris-
cos sociais seja negociada em assembléia, a fim de obter uma solução consensual e
que seja justificada racionalmente ante a opinião pública.
É por essa razão que, a despeito de admitir o uso de tipos e conceitos indeter-
minados, o princípio da legalidade tributária não admite que a lei tributária insti-
tuidora de tributos lance mão de conceitos discricionários.82 Assim, as decisões
sobre quem irá suportar os ônus fiscais e em que medida o fará, devem ser estabe-
lecidas pelo legislador, não havendo que se falar, nessa seara, em juízo de conve-
niência e oportunidade.83

82 Nesse sentido: MAYER, Otto. Deutsches Verwaltungsrecht, I, 3. ed, 1924, p. 316, apud: NABAIS, José
Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 352: “ o imposto como intervenção carece eviden-
temente de fundamento legal. Além disso (...) deve ser disciplinado juridicamente sem a concessão de
qualquer discricionariedade”; FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p.
112, onde o autor admite, como no texto, a adoção de conceitos indeterminados pela lei tributária, mas
não a discricionariedade. No mesmo sentido, afirmando que a atribuição legal ao Poder Executivo não
se confunde com discricionariedade: GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributario I.
2. ed. Salamanca: Plaza Universitaria, 2000, pp. 45-46. Contra, admitindo a discricionariedade: HENSEL,
Albert. Derecho Tributario. Trad. Andrés Báez Moreno, María Luisa González-Cuéllar Serrano e
Enrique Ortiz Calle. Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 143; NABAIS, José Casalta. O Dever Funda-
mental de Pagar Impostos, pp. 357 e 378; MONCADA. Luís S. Cabral. Lei e Regulamento. Coimbra:
Coimbra Editora, 2002, p. 936. Entre nós: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 494.
83 ALTAMIRANO, Alejandro. “Legalidad y Discrecionalidad”. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Tratado de
Direito Constitucional Tributário – Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 167: “El principio de reserva de ley, como derivación del principio de legalidad, conl-
leva la necessidad de reglar todos los elementos esenciales del tributo, vedando a la administración que
integre el hecho imponible con supuestos datros derivados de razones de oportunidad, mérito o conve-
niencia por tanto en dicho ámbito no tiene acogimiento la discrionalidad, es decir, existe un someti-
miento pleno a la ley. Este es uno de los límites más adecuados para establecer.”

121
Ricardo Lodi Ribeiro

Isso não significa que essa definição legal não deixe margem para uma valora-
ção por ocasião da concreção da norma, mas que esta se dará a partir de uma deci-
são suficientemente clara do legislador, capaz de dar uma única opção ao aplicador,
que, por meio de um juízo objetivo irá identificar a solução preconizada pela lei
para aquele caso concreto. Deste modo, não cabe ao Fisco decidir quem paga ou
quem tem direito ao benefício fiscal; ou quanto cada um paga; ou se o pagamento
é à vista ou parcelado; ou ainda se a dedução legal deve ou não ser aplicada. Pode
quando muito chegar a essas conclusões a partir da interpretação dos conceitos
indeterminados adotados pelas normas tributárias e dos dados empíricos oferecidos
pela realidade fática.
Quanto ao uso da analogia84 pelo aplicador da norma tributária, é dominante
a doutrina, aqui e alhures, que enxerga no princípio da legalidade tributária e no
valor da segurança jurídica óbices instransponíveis ao seu uso gravoso, ou seja, na
aplicação da lei de incidência a uma situação não inserida dentro do seu sentido
literal possível.85
No entanto, na Alemanha, desde o início da década de 1980, a doutrina, ainda
que de forma não unissonante, tem admitido o uso da analogia gravosa, reconhe-
cendo as dificuldades de se promover a sua distinção em relação à interpretação
extensiva. Admitindo-a como método de integração da lei de incidência, Tipke
afirma que o recurso à analogia decorre dos princípios da igualdade e da capacida-
de contributiva e nega que seu uso contrarie o princípio da legalidade, porque “efe-
tiva a vontade do legislador manipulada de maneira imperfeita e com lacunas no
texto da lei”. No entanto, o Catedrático Emérito de Colônia adverte que, em nome
da segurança jurídica, a analogia só é lícita quando a lacuna e o princípio suscetí-

84 Para Norberto Bobbio, a analogia é “o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamen-
tado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante” (BOBBIO, Norberto. Teoria do
Ordenamento Jurídico. 10. ed. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UnB, 1999,
p. 151).
85 Por todos: FERRERO LAPATZA. “La Interpretación en el Derecho Financiero Especial Referencia al
Derecho Tributario”. Revista de Direito Tributário 51: 7-20, p. 9; BEISSE, Heinrich. “O Critério
Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente Jurisprudência Alemã”. In:
Brandão Machado (Coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo:
Saraiva, 1984, p. 24. Entre nós: FALCÃO, Amílcar. Introdução ao Direito Tributário. 6. ed. Atualizada
por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 84; e GRECO, Marco Aurélio. Planeja-
mento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária, p. 69. Contra, aceitando a analogia gravosa: BECKER,
Enno. Reichsabgabenordnung, pp. 54 e segs., apud: VANONI, Ezio. Natureza e Interpretação das Leis
Tributárias. Trad. Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p. 206; NABAIS,
José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 385; e VANONI, Ezio. Natureza e
Interpretação das Leis Tributárias, p. 329. Em termos, aceitando a integração analógica desde que pre-
vista em lei e promovida pelo regulamento: BERLIRI, Antonio. Principi di Diritto Tributario. Milano:
Dott. A. Giuffrè, 1952, pp. 88-91; COSTA, Valdés. Instituciones de Derecho Tributario, p. 137.
Aceitando a analogia gravosa como resultado da ponderação entre a segurança jurídica e a igualdade:
HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Metodología del Derecho Financiero y Tributario. México:
Porrúa, 2004, pp. 43-44.

122
Temas de Direito Constitucional Tributário

vel de aplicação analógica possam ser reconhecidos com segurança, pois, caso con-
trário, deve-se decidir contra o fisco.86 Outros autores admitem-na, em caráter
excepcional, como forma de combate à elisão abusiva.87
Como se vê, a vedação da analogia gravosa, que era dogma há algum tempo,
começa a ser questionada pela doutrina moderna, não havendo mais consenso
entre os autores. No entanto, a despeito da controvérsia, duas conclusões se reve-
lam claras. A primeira é a de que, sendo resultado da prevalência da igualdade
sobre a segurança jurídica, o que muitas vezes leva à ilegalidade, não deve ser uti-
lizada senão em casos excepcionais. A segunda conclusão é a de que, ainda que se
considere não haver vedação constitucional ao uso da analogia gravosa no Direito
Tributário, não há óbice a que a legislação infraconstitucional, num juízo de pon-
deração que privilegia o valor da segurança jurídica sobre o da justiça, estabeleça-
a expressamente. Essa última conclusão resta fortalecida pelas lições de Larenz,88
que ressalvam as regras proibitivas do uso da analogia da ineficácia das regras inter-
pretativas por ele sustentada. De acordo com Canaris,89 tais vedações, baseadas na
segurança jurídica, representam um limite válido à eliminação das contradições
valorativas. É de se observar que os próprios defensores da analogia gravosa no
Direito Tributário e da sua compatibilidade com o princípio da legalidade, como
Tipke90 e Vanoni,91 admitem a possibilidade de sua vedação pela lei de cada país.
Nesse sentido, não há obstáculo constitucional ou metodológico para que
nosso Código Tributário Nacional vede o uso da analogia, não só para a regra de
incidência – o que é por ele efetivado no § 1º do art. 108 –, como também para a
regra de isenção, tarefa levada a cabo pelo art. 111, II. No entanto, enquanto no pri-
meiro caso a vedação se dá exclusivamente com base no dispositivo do CTN, não
derivando da Constituição ou da natureza das coisas, no segundo, a proibição da
integração analógica é uma decorrência metodológica. Afinal, sendo a regra de
isenção uma exceção à norma de incidência, a não-ocorrência da situação configu-
rada na primeira não revelará uma lacuna. É que a não-inclusão da situação jurídi-
ca em exame no campo normativo na lei de isenção manterá sua base fática inseri-
da na esfera legal da hipótese de incidência.
Contudo, a despeito da impossibilidade dogmática da utilização da analogia
nas leis de incidência e de isenção, é forçoso reconhecer a dificuldade prática de

86 TIPKE, Klaus. “Limites da Integração em Direito Tributário”. In: NOGUEIRA, Ruy Barbosa (org.).
Direito Tributário Atual – Vol. 3. São Paulo Resenha Tributária, pp. 521-522.
87 ROSEMBUJ, Tulio. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario.
2. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 114; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 568.
88 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 455.
89 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 2. ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996, p. 212.
90 TIPKE, Klaus. “Limites da Integração em Direito Tributário”, p. 556.
91 VANONI, Ezio. Natureza e Interpretação das Leis Tributárias, p. 336.

123
Ricardo Lodi Ribeiro

distinguir tais hipóteses daquelas em que se admite o uso da interpretação extensi-


va, o que, na prática, acaba por esvaziar um pouco a vedação. Na realidade prática,
muitos juízes e doutrinadores, diante da vedação à analogia, procuram transformar
artificialmente um raciocínio nitidamente analógico em interpretação extensiva,
dada a imprecisão quanto à exatidão da fronteira que separa a franja marginal do
conceito utilizado pelo legislador das acepções que ultrapassam o sentido possível
do texto. E vice-versa, com a aplicação da lei a casos por ela não regulados, sob pre-
texto da interpretação extensiva.

4) Os Limites à Atribuição Normativa ao Regulamento Tributário

Diante da sua incapacidade funcional para programar materialmente decisões


tecnicamente adequadas à sociedade de risco, o legislador substitui a programação
material do conteúdo das decisões por uma programação procedimental do proces-
so em que estas devem ser tomadas,92 abrindo espaço para que os conceitos inde-
terminados sejam esclarecidos pelo regulamento.
Nesse contexto, resta superada a idéia, ainda arraigada em nossa doutrina,93 de
que o regulamento em nada inovaria na ordem jurídica, uma vez que lhe cabe não
só dispor sobre os detalhes não reservados ao legislador,94 como, principalmente,
interpretar95 os conceitos indeterminados contidos na lei, a partir de uma valora-
ção objetiva.
Isso não significa que sejam admitidos regulamentos autônomos em matéria
reservada à lei formal tributária,96 pois o Poder Executivo vai sempre se reportar à
lei, que o vincula e o habilita, ainda que implicitamente,97 quando da valoração dos
conceitos indeterminados por meio da norma regulamentar.

92 KRELL, Andréas, J. Discricionariedade Administrativa..., p. 48. No mesmo sentido: FALCÃO, Amílcar


de Araújo. Introdução ao Direito Tributário, p. 50: “Vale recordar que, no exercício do poder regula-
mentar, particularmente no que respeita à emanação de regulamentos de execução, admite-se, plena-
mente, a outorga à Administração de uma competência para construir norma jurídica toda vez que, por
um lado, na lei de habilitação esteja traçado o quadro geral e estejam fixados os elementos fundamen-
tais por que se orientará a norma subordinada e, por outro lado, quando a atuação do comando legal ficar
a depender de uma estimativa ou verificação de elementos de fato, ou de uma apreciação técnica.”
93 Por todos: CARRAZZA, Roque Antonio. O Regulamento no Direito Tributário Brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1981, p. 163.
94 KIRCHHOF, Paul. “Besteuerung nach Gesetz”. Festschrift für Heinrich Wilhelm Kruse, 2001, p. 21.
Apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 475: “a lei cumpre o seu papel através da tipificação
do fato gerador legal simples, compreensível e justificado juridicamente em sua carga, deixando os deta-
lhes e especificidades para o regulamento administrativo e o aplicador.”
95 Sobre a função interpretativa do Regulamento, vide: GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto.
Derecho Tributario I. 2. ed. Salamanca: Plaza Universitaria, 2000, p. 62.
96 MONCADA. Luís S. Cabral. Lei e Regulamento, p. 1.144; FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de
Derecho Financiero Español. Vol. I, 21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 53.
97 GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributario I, p. 57.

124
Temas de Direito Constitucional Tributário

Pelas mesmas razões que vedam o regulamento autônomo, também não é


admitido no âmbito da reserva legal tributária o fenômeno da deslegalização,98 pois
a atribuição de uma matéria que era regulada em lei ao regulamento rompe com o
mínimo de densidade normativa exigido pelo princípio da determinação.99
Para o resguardo da própria segurança jurídica, é melhor que o regulamento
esclareça, por meio de um ato normativo, geral e abstrato, o sentido dos conceitos
indeterminados contidos na lei, do que acreditar na capacidade desta de prever
todos os fatos do mundo real, deixando ao aplicador, diante do caso concreto, intei-
ra liberdade de interpretação da norma legislativa.100 É o regulamento tipificador
ou “concretizador de normas”, a que alude a jurisprudência do Tribunal Constitu-
cional Alemão. De acordo com Vogel, o juiz fica vinculado à decisão tipificadora
da Administração, que se apóia no princípio da igualdade, restando o espaço para
discutir a atipicidade das hipóteses consideradas pelo Poder Executivo.101 Porém,
o regulamento “não deverá, direta ou indiretamente, alterar o mandamento legal e,
assim, nunca poderá conter disposição contra legem”.102
Assim, atacar o regulamento e não a lei que lhe deu cobertura, é deixar a auto-
ridade administrativa livre para agir discricionariamente no caso concreto, o que
muitas vezes levará à quebra não só da segurança jurídica, mas também da igualda-
de.103 Nada prova que a segurança jurídica somente seja realizada pela rigidez na
composição das leis, pois a abertura destas é pressuposto para o atendimento da sua
finalidade. Por sua vez, a liberdade administrativa nem sempre é inimiga das
garantias dos particulares, podendo ser o preço a pagar pela eficiência e racionali-
dade da Administração,104 condição indispensável para o atendimento dos princí-
pios materiais que protegem os cidadãos.
Ademais, é forçoso reconhecer que a imperatividade oriunda dos comandos
hierárquicos do Poder Executivo produz para as autoridades administrativas uma
heterovinculação de grau prevalecente sobre a heterovinculação da produção legis-
lativa, uma vez que a obediência à lei cede perante o cumprimento de ordem, ainda
que ilegal, proveniente do superior hierárquico.105

98 Sobre deslegalização, vide GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de


Derecho Administrativo. V. I, pp. 273 e segs., para quem o instituto se traduz na operação efetuada por
uma lei que, sem entrar na regulação material de um tema, até então regulado por uma lei anterior, abre-
o ao poder regulamentar da Administração.
99 GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributario I, p. 56.
100 Registre-se a posição de Sérvulo Correa, no sentido de que o princípio da legalidade administrativa exige
uma reserva de norma jurídica, ainda que regulamentar, a habilitar a ação da administração (CORREIA,
José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia..., p. 309).
101 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 503.
102 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário, p. 52.
103 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos Serviços Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 327.
104 MONCADA. Luís S. Cabral. Lei e Regulamento, p. 940.
105 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., p. 404.

125
Ricardo Lodi Ribeiro

Por outro lado, cumpre notar que os aspectos técnicos são geralmente mais
bem atendidos pelo regulamento do que pela norma legislativa,106 seja em virtude
de seu maior aparelhamento burocrático, seja por meio da especificidade técnica de
seus órgãos e funcionários, ou ainda pela sua maior proximidade da realidade fáti-
ca. No entanto, para haver aplicação da norma técnica, é essencial que a lei faça
remissão a ela, numa renúncia implícita da normatividade, face à impossibilidade
de cognição daquela realidade. Em conseqüência, se as autoridades administrativas
desrespeitam o conteúdo dessas normas – que devem levar a decisões unívocas
como desdobramento de estudos técnico-científicos –, acabam por violar a própria
lei que lhes emprestou essa força normativa. É que o conteúdo da legalidade com-
preende um processo de juridificação da realidade técnica, que passa a assumir um
efeito vinculativo da atuação administrativa.107
A adequação da norma técnica aos pressupostos fáticos de incidência pelo
regulamento muitas vezes acaba por determinar o montante tributado, sem que
reste violada a legalidade, desde que os critérios para a quantificação sejam esta-
belecidos por lei, como foi admitido pelo STF no citado caso do SAT. Na mesma
linha, decidiu o Tribunal Constitucional Espanhol, também admitindo a quanti-
ficação da norma técnica pelo regulamento, desde que a lei precise um conteúdo
necessário.108
No entanto, cumpre destacar que, com o aumento da incerteza característica
da sociedade de risco, as normas que se vinculavam a explicações causais ofereci-
das pelo passado se mostram inócuas para enfrentar os novos e inesperados desa-
fios.109 Nesse contexto, a generalidade e a abstração da norma, ainda que regula-

106 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 340; UCKMAR, Victor. Princípios
Comuns..., p. 39; HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Metodología del Derecho Financiero y Tribu-
tario, p. 223; GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributario I, p. 47: “Los parlamentos
marcan las grandes directrices políticas, pero las leyes las hacen los técnicos; el poder legislativo, a modo
de coro griego, sierve sólo de contrapunto. Su papel se limita a decir ‘sí’ o ‘no’, cuando se trata de dictar
disposiciones legislativas. De lo anterior se deprende que los parlamentos conservan sus facultades den-
tro del ámbito de ‘lo político’, pero frente al elemento técnico corren el riesgo de perder toda posibili-
dad de control si no crean dentro de su seno las oportunas comisiones permanentes, que les libren de
caer en las manos de la alta burocracia, fugitiva no sólo del Parlamento, sino también del Gobierno.”
Entre nós: FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário, p. 50; DOMINGUES, José
Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 135; e ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional
Tributário, p. 167.
107 OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública..., pp. 763-764, 766 e 1083.
108 STC 6/1983, apud CALVO ORTEGA, R. Curso de Derecho Financiero I – Derecho Tributario (Parte
General). 4. ed. Madrid: Civitas, 2000, pp. 95-96.
109 GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.
19: “Se as normas jurídicas clássicas podiam dirigir a aplicação do direito no modo de um programa con-
dicional, que ligava conseqüências jurídicas precisas e definidas à existência de pressupostos bem deter-
minados de fatos, as normas jurídicas de caráter novo devem se limitar a prescrever às instâncias aplica-
doras do direito, no modo de um programa final, o objetivo de sua atividade e citar vários aspectos que
devem ser considerados na perseguição do objetivo. Normas dessa espécie dirigem a aplicação do direi-
to em proporções muito menores do que os tradicionais programas condicionais. Examinando-se mais

126
Temas de Direito Constitucional Tributário

mentar, não são mais capazes de apreender todos os dados empíricos extraídos do
âmbito da norma, o que, não raras vezes, obriga o legislador a abrir espaço à tipifi-
cação casuística pelo aplicador.110 É o que ocorre, por exemplo, com o conceito de
despesas necessárias, utilizado pela legislação do imposto de renda para autorizar a
dedução dessas no lucro líquido para a apuração do lucro real tributável. Tanto o
art. 47, § 1º, da Lei nº 4.506/64, quanto o art. 299, § 1º, do Regulamento do IR,
embora estabeleçam que podem ser deduzidas as despesas que sejam usuais ou nor-
mais, de acordo com a atividade da empresa, não elencam quais seriam estas. E nem
poderiam fazê-lo, diante da variedade de atividades econômicas, financiadas pelas
mais diversas formas. Nesse exemplo, a tipificação no caso concreto é a única hipó-
tese capaz de não violar a realidade econômica e impedir que a lei ordinária tribu-
tasse algo que não se coaduna com o conceito constitucional de renda. E assim
ocorre na maioria dos casos. Como se vê, a tipificação casuística, longe de afastar a
segurança jurídica, muitas vezes é a sua única garantia.

de perto, resta, muitas vezes, apenas um aparente direcionamento por parte da lei, que exige dos desti-
natários da norma que ajam em direção ao objetivo, mas que coloca a seu critério a decisão sobre o tipo
de ação. Assim, o critério de ação ainda não está traçado na norma, mas é produzido pelo destinatário
da norma em sua execução, mediante constante adaptação a situações diversas.”
110 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 509.

127
VII
A Função da Lei Complementar Tributária

Embora a lei complementar tenha adquirido no Brasil uma feição singular, o


instituto remonta às leis orgânicas, preconizadas na Constituição de 1891 (art. 34, nº
34) e de 1934 (art. 39, nº 1), que visavam à complementação da Constituição, ainda
que sem quórum qualificado ou âmbito de validade constitucionalmente definido.
Tais leis orgânicas buscavam inspiração nas lois organiques francesas, previstas
desde 1875 com o objetivo de organizar os poderes públicos, sem, contudo, apresentar
uma posição superior às demais leis, que podiam alterá-las.1 Porém, a Constituição
Francesa de 1958, em seu artigo 46,2 conferiu um procedimento de maior formalidade,
ainda que com o mesmo quórum, à lei orgânica, que disporá sobre matérias elencadas
na própria Constituição.3 É essa a inspiração que o Congresso Nacional buscou para a
previsão, no artigo 22 da Emenda Constitucional nº 04/61, de “leis votadas, nas duas
casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”, para “comple-
mentar a organização do sistema parlamentar de Governo”.4
Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 18/65 previu a figura da lei complemen-
tar, reservando a ela matérias específicas.5 No entanto, não previa a Constituição um

1 CRUZ, Diniz Ferreira da. Lei Complementar em Matéria Tributária. São Paulo: José Bushatsky, 1978, p. 90.
2 “Article 46: Les lois auxquelles la Constitution confère le caractère de lois organiques sont votées et
modifiées dans les conditions suivantes. Le projet ou la proposition n’est soumis à la délibération et au
vote de la première assemblée saisie qu’à l’expiration d’un délai de quinze jours après son dépôt. La pro-
cédure de l’article 45 est applicable. Toutefois, faute d’accord entre les deux assemblées, le texte ne peut
être adopté par l’Assemblée Nationale en dernière lecture qu’à la majorité absolue de ses membres. Les
lois organiques relatives au Sénat doivent être votées dans les mêmes termes par les deux assemblées.
Les lois organiques ne peuvent être promulguées qu’après la déclaration par le Conseil Constitutionnel
de leur conformité à la Constitution.”
3 Na Espanha, a Constituição de 1978, no seu artigo 81, previu que a lei orgânica, aprovada por maioria
absoluta, é reservada ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e liberdades públicas, o regime elei-
toral geral, as aprovadas pelos Estatutos das Regiões Autônomas e outras previstas constitucionalmente.
4 O pano de fundo de tal previsão é a crise provocada pela renúncia do Presidente Jânio Quadros e pelo
veto dos ministros militares à posse do Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava em visita ofi-
cial à República Popular da China. Para solucionar o impasse militar-institucional, o Congresso Nacional
aprovou, às pressas, emenda constitucional instituindo o regime parlamentarista de governo. A propos-
ta, acordada entre lideranças civis e militares no dia 31/08/61, foi apresentada ao Congresso Nacional na
madrugada do dia 02/09/61, e no mesmo dia aprovada pelas duas casas, sendo promulgada no dia
03/09/61 (MARKUN, Paulo e HAMILTON, Duda. 1961 – Que As Armas Não Falem. 2. ed. São Paulo:
Senac, 2001, pp. 271-273). A urgência na elaboração e aprovação do texto justificou a delegação quanto
ao detalhamento da definição a uma lei que complementaria a emenda. Já a importância da matéria
explica o quórum de maioria absoluta.
5 Eram reservados à lei complementar na EC nº 18/65: a disciplina dos requisitos para a imunidade das
entidades de assistência social e de educação (art. 2º, IV, c); a instituição de empréstimo compulsório

129
Ricardo Lodi Ribeiro

quorum qualificado para a norma, uma vez que a EC nº 4/61 foi revogada pela EC nº
6/63, que restaurou o regime presidencialista, vitorioso em plebiscito.
Somente com a Constituição de 1967, no auge da preocupação centralizadora
da União em restringir, em nome da segurança nacional, a autonomia de Estados e
Municípios, a sua disciplina é institucionalizada com a exigência do quórum de
maioria absoluta (art. 53) e a previsão das matérias que seriam reservadas à lei com-
plementar. Assim, com a idéia de lei nacional,6 que interagiria com as três esferas
da Federação, preservava-se um arremedo desta, atendendo aos anseios de poder
total da elite militar.
Como se vê, a exigência da lei complementar, no contexto em que foi intro-
duzida no nosso ordenamento constitucional, longe de ter como escopo a garantia
dos direitos fundamentais, serviu de instrumento para satisfazer a ideologia da
segurança nacional e transformar a nossa Federação num modelo orgânico, com a
predominância da figura da União sobre os Estados e Municípios.7
Porém, com a promulgação da Constituição de 1988, a lei complementar
ganha um novo fundamento, que a reconcilia com sua inspiração francesa, no sen-
tido de estabelecer normas que são dotadas de importância suficiente para não fica-
rem subordinadas aos caprichos das apertadas maiorias parlamentares, mas não
possuem a dignidade, nem tampouco a aspiração à definitividade, do texto consti-
tucional.8 No entanto, o campo material reservado à lei complementar acabou, ao
menos em parte, sendo herdado do regime constitucional autoritário.
Deste modo, o constituinte de 1988, a exemplo dos anteriores, não estabeleceu
uma categoria de normas a serem, a priori, reservadas à lei complementar, mas ado-
tou um critério casuístico. Deste modo, somente são reservadas à lei complementar
as matérias expressamente indicadas no texto constitucional, podendo as demais ser
tratadas por lei ordinária. No entanto, se o Congresso Nacional estabelecer uma lei
complementar para regular uma matéria que a ela não foi reservada, este diploma
legal só será complementar do ponto de vista formal, tendo eficácia passiva de lei

(art. 4º); o critério de fixação pelo Senado Federal da alíquota interestadual do ICM (art. 12, § 1º); e a
disciplina da não-cumulatividade do ICM (art. 12, § 2º).
6 A discussão sobre lei nacional x lei federal remonta à criação da federação norte-americana, como se
denota em HAMILTON, MADISON e JAY. O Federalista. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2003, p. 239.
7 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Federalismo Fiscal e Reforma Tributária. Disponível na Internet em
www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 13/05/06: “O federalismo orgânico se caracteriza por um mode-
lo em que os Estados-membros são obrigados pela Constituição Federal a reproduzir as regras definidas
pela União, até nos detalhes mais singelos.” Segundo Augusto Zimmermann, no federalismo orgânico:
“As leis estaduais acabam então sem relevância alguma, subordinadas que estão ao princípio sufocante
da hierarquização das normas jurídicas. Assim, transforma-se a autonomia estadual nesta espécie de
princípio desmoralizado, assistindo-se, ademais, à marcha centralizadora que põe termos finais às van-
tagens democráticas da descentralização política” (ZIMMERMANN, Augusto. Teoria do Federalismo
Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 65).
8 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p .168.

130
Temas de Direito Constitucional Tributário

ordinária, o que permite a sua alteração por esse diploma.9 É que não cabe ao legis-
lador infraconstitucional estabelecer as matérias que receberão a proteção especial
do quórum de maioria absoluta (proteção esta que se dirige contra o próprio legis-
lador ordinário). Tal decisão só cabe mesmo à Constituição Federal.
Por outro lado, existem leis que foram editadas como ordinárias, pois na época
da sua edição a matéria não estava reservada à lei complementar (ou por terem sido
editadas antes da aprovação da Constituição de 1967, quando o instituto foi consa-
grado), mas, por tratarem de temas reservados por constituição superveniente à lei
complementar, são recepcionadas com eficácia passiva desta espécie normativa, só
podendo ser alteradas por este tipo de diploma legislativo. É o caso do Código
Tributário Nacional,10 pois o seu objeto, as normas gerais de Direito Tributário, foi
reservado à lei complementar pelas Constituições de 1967 (art. 19, § 1º), de 1969
(art. 18, § 1º) e de 1988 (art. 146, III).
Cumpre registrar que a disciplina sobre normas gerais nem sempre é reserva-
da pela Constituição em vigor à lei complementar. Se assim se estabelece para o
Direito Tributário e para o Direito Financeiro (art. 163, I) é por expressa fixação
constitucional. No entanto, o mesmo tratamento constitucional não é deferido pelo
art. 22, XXVII, por exemplo, às normas gerais de licitações e contratos administra-
tivos, matéria regulada por lei ordinária da União (Lei nº 8.666/93).
Essas observações levam à conclusão de que não há qualquer relação hierárqui-
ca que possa se estabelecer de per si, entre a lei complementar e a lei ordinária,11 mas

9 TÔRRES. Heleno Taveira. “Conflitos de Fontes e de Normas no Direito Tributário – O Princípio da


Segurança Jurídica na Formação da Obrigação Tributária”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.) Teoria
Geral da Obrigação Tributária – Estudos em Homenagem ao Professor José Souto Maior Borges. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 151. No mesmo sentido: STF, Pleno, ADC nº 1-1/DF, Rel. Min. Moreira Alves,
RTJ 156/745. “A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que só se exige lei complementar para
as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a maté-
ria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não daque-
las para que a Carta Magna exige essa modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se têm como
dispositivos de lei ordinária.” No citado julgamento, o STF, em decisão com eficácia erga onmes e efeitos
vinculantes, decidiu que a Lei Complementar nº 70/91, que instituiu a COFINS, não teria força passiva de
lei complementar. No entanto, o STJ vem considerando que a lei ordinária (art. 56 da Lei nº 9.430/96) não
poderia ter revogado o artigo 6º da referida lei complementar, que concedeu isenção da contribuição para
as sociedades civis de prestação de serviços, por violação da hierarquia das leis (Súmula 276 – “As socie-
dades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da COFINS, irrelevante o regime tributário
adotado”). Contudo, o Plenário do STF superou o entendimento do STJ e, referendando a sua posição na
ADC nº 1-1/DF, considerou que a isenção de COFINS prevista na LC nº 70/91, pode ser revogada por lei
ordinária (STF, Pleno, RE nº 377.457-PR e RE nº 381.694/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, que no momen-
to apresenta oito votos favoráveis à constitucionalidade da revogação da isenção, dos Ministros Gilmar
Mendes, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Cezar Peluso, Sepúlveda
Pertence e Celso de Mello, e um contra, do Ministro Eros Grau, tendo os referidos julgamentos sido sus-
pensos em virtude do pedido de vista do Ministro Marco Aurélio).
10 STF, Pleno, RE 93.850, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 105/194, DJU 27/08/1982, p. 8.180.
11 TÔRRES. Heleno Taveira. “Conflitos de Fontes e de Normas no Direito Tributário...”, p. 151. Contra:
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, 236.

131
Ricardo Lodi Ribeiro

uma reserva de competência12 a favor das matérias que, segundo o entendimento


constitucional, merecem a proteção do consenso de vontades da maioria absoluta.
No entanto, não há como se negar a subordinação da lei de incidência tribu-
tária às leis de normas gerais, estas sim verdadeiras leis nacionais, que não se cir-
cunscrevem ao âmbito da União, mas que transcendem a esfera dos três entes
federativos. Por isso, devem ser atendidas pelas leis da União, dos Estados e dos
Municípios.13
No Direito Tributário, a função da lei complementar é definida pelo art.
14
146. No seu inciso I, o referido dispositivo constitucional estabelece caber à lei
complementar a resolução de potenciais conflitos de competência entre os estes
federativos. A previsão se justifica pelas várias zonas de interseção entre as mate-
rialidades econômicas previstas constitucionalmente como regras de competência.
Em geral esta função é exercida pela lei complementar definidora do fato gerador
de cada tributo, como ocorre com o conceito de imóvel rural e urbano, que é o deli-
mitador da competência federal do ITR e da municipal no IPTU. Assim, o CTN
adotou o critério da localização do imóvel em relação à zona urbana, conceito a ser
fixado em lei municipal, a partir do atendimento de critérios mínimos definidos
pelo § 1º do art. 32 do CTN.15 Em outros casos a realidade econômica estabelece

12 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 166.
Na Espanha, a doutrina também não vê hierarquia entre a lei orgânica e a lei ordinária, como noticia CAR-
RERA RAYA, Francisco José. Manual de Derecho Financiero. Vol. I. Madrid: Tecnos, 1993, p. 71.
13 ATALIBA, Geraldo. “Normas Gerais na Constituição – Leis Nacionais, Leis Federais e seu Regime
Jurídico”. In: Estudos e Pareceres de Direito Tributário – Vol. 3. São Paulo. Revista dos Tribunais, 1980,
pp. 15-16: “As normas gerais de direito financeiro e tributário são, por definição e pela sistemática cons-
titucional, leis nacionais; leis que não se circunscrevem ao âmbito de qualquer pessoa política, mas os
transcendem aos três. Não se confundem com a lei federal, estadual ou municipal e têm seu campo pró-
prio e específico, excludente das outras três e reciprocamente. Quer dizer, na mesma forma que domi-
nam o próprio campo constitucional, em caráter privativo, prevalecendo – em razão da delimitação
constitucional e não de hierarquia – sobre tentativas das demais leis de invadir-lhe essa faixa, não podem
estender-se validamente aos objetos próprios da legislação federal, estadual e municipal.”
14 “Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária,
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais
ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente
sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como em relação aos impostos discriminados nesta
Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamen-
to, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo
praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no
caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da con-
tribuição a que se refere o art. 239.”
15 “Art. 32, § 1º. Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal;
observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos
incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I – meio-fio ou calçamento, com canali-
zação de águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistema de esgotos sanitários; IV – rede de ilu-
minação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de
saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.”

132
Temas de Direito Constitucional Tributário

situações em que é quase impossível identificar com clareza qual a materialidade


tributária se faz presente, exigindo do legislador complementar a criação de uma
ficção jurídica para dirimir o conflito. É o caso da venda de mercadorias em con-
junto com a prestação de serviços, como ocorre no fornecimento de alimentos e
bebidas em bares, restaurantes e similares. Para esses casos, a Constituição, por
meio do art. 155, § 2º, IX, b, autorizou a cobrança do ICMS sobre o valor total da
operação, desde que o serviço não esteja inserido na competência municipal defi-
nida em lei complementar. Como a lista de serviços anexa à Lei Complementar nº
116/03 não define tal fornecimento como tributável pelo ISS, o Estado pode exigir
ICMS sobre o valor total da operação como, aliás, já disciplinara a LC nº 87/96. Do
contrário, se o serviço estiver na Lista de Serviços, exige-se ISS sobre o valor total
da operação, salvo nas hipóteses em que a própria lista ressalva a cobrança de ICMS
sobre as mercadorias, casos em que o prestador terá que discriminar o valor dos ser-
viços, que serão tributados pelo tributo municipal, e das mercadorias, oneradas
pelo imposto estadual.
Em seu inciso II, o art. 146 atribui à lei complementar a regulação das limita-
ções constitucionais ao poder de tributar. Nota-se que não se trata de limitar por lei
complementar o poder de tributar, o que num regime federativo só pode ser reali-
zado pela Constituição Federal, mas de estabelecer a regulação das limitações cons-
titucionais. Assim, o papel da lei complementar aqui é o de dar uma maior concre-
tude à abstratividade dos princípios constitucionais, expressos ou implícitos, vincu-
lados aos direitos fundamentais do contribuinte, seja promovendo o seu detalha-
mento, ou a sua valoração. No que extrapolar esse desenho constitucional, o dispo-
sitivo se traduzirá em autolimitação do poder de tributar, só tendo validade na esfe-
ra federal, sob pena de a lei complementar restringir as autonomias legislativas e
financeiras de Estados e Municípios, sem a devida autorização constitucional para
tanto. É nesse contexto que deve ser discutido o Estatuto do Contribuinte.16
Porém, entre as funções que a Constituição Brasileira reservou à lei comple-
mentar, merece maior destaque, no que tange à legalidade na imposição tributária,
a fixação das Normas Gerais de Direito Tributário (inciso III), que, segundo Ricardo
Lobo Torres, “são aquelas que estampam os princípios jurídicos de dimensão nacio-
nal, constituindo-se objeto de codificação tributária”.17
Se as Constituições de 1967 e 1969 limitavam-se a atribuir as normas gerais ao
legislador complementar, sem, contudo, especificar quais as matérias que estavam
inseridas nesse contexto, a Constituição de 1988, diante do alto grau de indetermi-
nação do conceito de normas gerais, as exemplifica como sendo: a definição de tri-
butos e suas espécies, obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tri-

16 Projeto de Lei Complementar nº 649/99, apresentado ao Senado Federal pelo Senador Jorge Bornhausen.
17 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e
Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 430.

133
Ricardo Lodi Ribeiro

butários. Porém, cumpre lembrar que toda essa disciplina já era reservada à lei
complementar desde 1967, por estar inserida entre as normas gerais de Direito
Tributário.18 A inserção dessas matérias no rol das normas gerais de Direito
Tributário, juntamente com legislação e administração tributárias, disciplinas tam-
bém englobadas no Livro Segundo do Código, intitulado “Normas Gerais de Direito
Tributário”, já era reconhecida expressamente pelo CTN. Em conseqüência, todas
essas matérias, independentemente da previsão explícita nas alíneas a e b do inci-
so III do art. 146, CF, possuem caráter nacional a vincular os legisladores federal,
estaduais e municipais.
Todavia, a regra constitucional do art. 146, III, contém ainda um disposi-
tivo na parte final da alínea a, que estabelece a necessidade de definição em lei
complementar do fato gerador, da base de cálculo e dos contribuintes dos
impostos.19 Essa norma tem como objetivo a uniformização da legislação tribu-
tária em todo o território nacional,20 constituindo óbice a um regramento fis-
cal que, por demais discrepante entre os vários Estados e Municípios da
Federação, acabe por promover um festival de pluritributações espaciais, de
guerras fiscais através de benefícios fiscais embutidos nas definições dos ele-
mentos centrais das obrigações tributárias. Assim, a lei complementar atuará
como limite à lei de incidência, no que se refere a esses três elementos da obri-
gação tributária. Não se exige que a lei ordinária reproduza literalmente a defi-
nição da lei complementar, mas se impede que os limites nacionais sejam extra-
polados. Melhor exemplo é o artigo 43 do CTN, que define o fato gerador do
imposto de renda como a disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou de
proventos de qualquer natureza, fenômeno que se traduz em acréscimo patri-
monial. A partir desta definição, o legislador ordinário estabelece centenas de
normas dispondo sobre a hipótese de incidência do IR, todas elas devendo guar-
dar conformação com a lei complementar.

18 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Os Prazos para a Constituição e a Cobrança do Crédito Tributário”. In:
ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor
Aurélio Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 588.
19 Com relação aos impostos que já existiam em 1966, criados ou mantidos pela EC 18/65, a lei comple-
mentar é o próprio Código Tributário Nacional. Lá se encontram os fatos geradores, as bases de cálculo
e os contribuintes do II, IE IR, IPI, IOF, ITR, ITBI (aplicável também, no que couber, ao ITD ) e IPTU.
Para os novos impostos ou aqueles que sofreram grandes modificações posteriores, fez-se necessária uma
norma específica. Para o ICMS, é a LC 87/96; para o ISS, a LC nº 116/03. O IGF, por ser instituído pela
própria lei complementar, dispensa uma outra norma definidora desses três elementos. Quanto ao IPVA,
o STF, no AgRg nº 167.777/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 09/05/97, p. 18.134, enten-
deu, que a ausência de lei complementar não pode impedir que o Estado, pela inércia legislativa da
União, possa exercer sua competência de forma plena, com base no artigo 24, § 3º, da CF c/c artigo 34,
§ 3º, ADCT, uma vez que a ausência de lei de normas gerais não gerou, no caso, um potencial conflito
entre Estados.
20 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, p. 169.

134
Temas de Direito Constitucional Tributário

Entretanto, a exigência de definição do fato gerador, da base de cálculo e do


contribuinte dos impostos em lei complementar, não tem, como já se defendeu em
sede doutrinária,21 o condão de legitimar uma maior determinação ou uma tipici-
dade fechada, uma vez que o dispositivo visa mais à salvaguarda do princípio da
conduta amistosa dos entes federativos22 e da livre circulação de pessoas, bens e
serviços pelo território nacional, do que ao reforço à segurança ao contribuinte, o
que só se obtém de forma oblíqua, por meio do afastamento da norma tributária
quando o ente federado legisla além dos limites definidos em lei complementar.
Cumpre esclarecer que, com a negação do Supremo Tribunal Federal à divi-
são tricotômica dos tributos, a definição dos fatos geradores, das bases de cálculo e
dos contribuintes em lei complementar só é aplicável aos impostos, e não às con-
tribuições parafiscais que possam a vir utilizar o fato gerador deste, como reconhe-
ceu o Tribunal, no julgamento da constitucionalidade da contribuição social sobre
o lucro líquido (CSLL), instituída pela Lei nº 7.689/88. Na oportunidade, o STF con-
siderou que a CSLL, como contribuição social destinada à seguridade social, não
possui natureza jurídica de imposto, a despeito do seu fato gerador, e por isso, não
se subordina à exigência da lei complementar referida na parte final do art. 146, III,
a, da Constituição Federal.23
Registre-se que o art. 146, III, a, da Constituição, ao exigir a definição em lei
complementar do fato gerador, base de cálculo e contribuintes dos impostos, uti-

21 XAVIER, Alberto. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001,
p. 23: “A missão da lei complementar, nos termos da alínea a do inciso III do art. 146 consiste na defi-
nição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. ‘Definir’ significa determinar a
extensão e os limites de um conceito, enunciando de modo preciso os seus atributos essenciais e especí-
ficos. A ‘definição’ da lei complementar é, pois, uma função estritamente interpretativa do núcleo essen-
cial do conceito constitucional, de modo a torná-lo determinado.” E prossegue o festejado autor em nota
de rodapé na mesma página: “Pode, sem dúvida, afirmar-se que o art. 146, III, a, encerra uma proibição
explícita de indeterminação conceitual, incompatível com a ‘ordem de definição”. A indeterminação
conceitual começa onde termina a previsibilidade do cidadão. Repare-se que o art. 5º, XXXIX, utiliza
também a expressão definir para caracterizar a tipicidade dos crimes. Essas considerações respondem a
pergunta de MARCO AURÉLIO GRECO: ‘onde está na CF a tipicidade fechada?’ Cfr. Planejamento
Fiscal e interpretação da lei tributária, São Paulo, 1988, 68 ss.”. Ora, se a tipicidade fechada deriva do
art. 146, III, dispositivo constitucional que só foi inserido no Texto Maior em 1988 e se refere apenas aos
impostos, duas perguntas ficaram sem resposta. A primeira: ela só passou a existir a partir da promulga-
ção da atual Constituição? A segunda: ela só se aplica aos impostos? Na verdade, a tipicidade fechada não
só inexiste no Texto Constitucional brasileiro ou de qualquer país, como constitui uma impossibilidade
metodológica.
22 Sobre o princípio da conduta amistosa: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da
República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1998, pp. 212 e segs., para quem o referido princípio se revela pela fidelidade para com a Federação, não
só dos Estados em relação ao todo e a cada um deles, mas da União em relação aos Estados. Segundo
HESSE, é inconstitucional a iniciativa que fira essa fidelidade federativa, uma vez que se rompe o dever
de boa conduta que deve presidir as relações entre os integrantes da Federação, baseada na colaboração
e cooperação recíprocas.
23 STF, Pleno, RE 138.284-8/CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28/08/92, p. 13.456.

135
Ricardo Lodi Ribeiro

liza a expressão fato gerador para designar somente o aspecto material deste, não
se incluindo na sua regulação os elementos quantitativos e subjetivos, e muitas
vezes nem os de natureza espacial e temporal. A expressão fato gerador, pela pró-
pria previsão no mesmo dispositivo da necessidade de fixação da base de cálculo e
do contribuinte, automaticamente exclui a exigência quanto aos aspectos quanti-
tativos e subjetivos. Mas muitas vezes, a definição do fato gerador em lei comple-
mentar não estabelece o momento e o local de incidência, deixando a sua eleição
a cargo da lei ordinária, como acontece com a fixação do momento temporal da
hipótese de incidência do imposto de importação, estabelecido pelo art. 23 do DL
nº 37/66 como sendo a data de registro da declaração de importação na repartição
competente, uma vez que a definição do art. 19 do CTN, ao escolher a entrada do
bem no Brasil como fato gerador do II, é lacunosa a esse respeito, face aos inúme-
ros atos que compõem o procedimento de ingresso do produto em território nacio-
nal. Tal disciplina não fere a exigência de lei complementar, conforme já enten-
deu o STF, dada a compatibilidade entre os dois dispositivos.24 No entanto, em se
tratando de tributos estaduais e municipais que incidam sobre a circulação de bens
e serviços pelo território nacional, é indispensável que a definição em lei comple-
mentar do fato gerador, preveja o seu aspecto espacial, a fim de evitar a pluritri-
butação. Deste modo, é essencial a definição pelo art. 11 da LC nº 87/96 e pelo art.
3º da LC nº 116/03, quanto aos elementos espaciais dos fatos geradores do ICMS e
do ISS, respectivamente.
Em relação às alíneas c e d do inciso III do art. 146, que prescrevem, respecti-
vamente “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado por socieda-
des cooperativas” e “tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e
para as empresas de pequeno porte”, cumpre destacar que não se tratam de normas
gerais de Direito Tributário, mas de uma legitimação constitucional para um trata-
mento específico a cargo do legislador constitucional para essas empresas.25
Por fim, a EC nº 42/03, introduziu um art. 146-A, que estabelece que a lei
complementar “poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo
de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a
União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. A norma aguarda uma regu-
lamentação capaz de esclarecer o caráter hermético da proposta.26

24 STF, 1ª Turma, RE nº 222.330/CE, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 11/06/99, p. 550.


25 Sobre o alcance do art. 146, III, d, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Tratamento Diferenciado para as
Microempresas e os Regimes Simplificados”. In: ROSA, Eugênio. A Reforma Tributária da Emenda
Constitucional nº 42/2003 – Aspectos Polêmicos e Controvertidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004,
pp. 219-232.
26 Sobre o tema: cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “Tributação e Concorrência: o art. 146-A da
Constituição Federal (Emenda Constitucional nº 42 de 19.12.2003)”. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo
Othon de. (Org.). Reforma Tributária – Emendas Constitucionais nº 41 e nº 42, de 2003, e nº 44, de 2004.
Belo Horizonte: Fórum, 2004, pp. 307-323.

136
Temas de Direito Constitucional Tributário

No âmbito dos Estados e Municípios, nada impede que as Constituições


Estaduais e Leis Orgânicas atribuam funções a leis complementares, dotadas de
quórum mais elevado do que as leis ordinárias. Ao contrário, o princípio da sime-
tria só recomenda. No entanto, é conveniente lembrar que o Sistema Tributário
Nacional não prevê tais figuras, que para efeitos da Constituição Federal, serão tra-
tadas como leis estaduais e municipais.

137
VIII
A Medida Provisória em Matéria Tributária

É da tradição constitucional brasileira que, nos breves períodos democráticos


de nossa história republicana, os atos legislativos fossem emanados exclusivamente
do Poder Legislativo. Assim, as Constituições democráticas de 1891, 1934 e 1946
não previram qualquer mecanismo legislativo a cargo do Presidente da República,
como o decreto-lei. A trajetória dos atos legislativos presidenciais se limitou aos
períodos de exceção, como os decretos dos governos provisórios do Marechal Deo-
doro da Fonseca, que se seguiu à Proclamação da República, e o de Getúlio Vargas,
após a Revolução de 1930, e os decretos-lei, previstos nas constituições autoritárias
de 1937, no Estado Novo, e de 1967 e 1969, na ditadura militar. Esta última ainda
criou as esdrúxulas figuras dos Atos Institucionais e Atos Complementares, que pai-
ravam na esfera da Constituição e das leis complementares, respectivamente, insus-
cetíveis de apreciação judicial, de acordo com o art. 19, I, do Ato Institucional nº 2.
Com o reencontro do país com a democracia, em 1985, com a eleição pelo
Colégio Eleitoral de Tancredo Neves, candidato civil de oposição ao regime mili-
tar, as expectativas da nação eram no sentido de, na onda de remoção do entulho
autoritário, expurgar o decreto-lei no nosso universo constitucional. Porém, esse
desiderato foi concluído apenas em parte, uma vez que a Constituição de 1988,
embora não prevendo a figura execrada historicamente do decreto-lei, cuja ima-
gem ficara associada ao regime militar, criou o instituto da medida provisória. Se
por um lado, esta não poderia ser aprovada tacitamente por decurso do prazo
constitucional diante da inércia do Congresso Nacional, também não possuía, na
sua versão original anterior à EC nº 32/01,1 qualquer limitação material, o que
nem a ditadura militar ousou fazer, vez que o art. 55 da Constituição de 1969
limitava o uso do decreto-lei aos casos de segurança nacional, finanças públicas,

1 Com a promulgação desta, introduziu-se uma limitação material de caráter negativo, com a fixação de
matérias que não podem ser reguladas por medida provisória, de acordo com o § 1º do art. 62: “§ 1º É
vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I – relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direi-
tos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressal-
vado o previsto no art. 167, § 3º; II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou
qualquer outro ativo financeiro; III – reservada a lei complementar; IV – já disciplinada em projeto de
lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.”

139
Ricardo Lodi Ribeiro

inclusive a instituição de tributos e criação de cargos públicos e fixação de ven-


cimentos.2
A despeito do sentimento geral entre os constituintes e entre os segmentos da
sociedade civil organizada de repulsa aos atos legislativos do Presidente da Repú-
blica, a introdução da medida provisória acabou por ser aprovada por três razões
principais:

a) a consciência sobre a necessidade de uma forma rápida e ágil para legislar


no Estado Contemporâneo, a partir da atribuição de poder normativo ao
Governo;
b) a pressão do Governo José Sarney, que não pretendia deixar de ter um ins-
trumento legislativo originariamente deferido pela Constituição;
c) a previsão do instituto da medida provisória no projeto aprovado pela
Comissão de Sistematização, que adotara o modelo parlamentarista, onde o
instrumento legislativo, a cargo do primeiro-ministro, era dotado de outro
fundamento democrático, a exemplo do modelo italiano.3

Com a edição condicionada aos requisitos da relevância e urgência, a exem-


plo do que ocorria com o Decreto-Lei, a medida provisória, no entanto, sempre foi
baixada em casos de discutível presença desses requisitos, o que se deveu, sobre-
tudo, à posição tímida assumida pelo Supremo Tribunal Federal diante da maté-
ria. Já no tempo do decreto-lei, o STF entendeu serem esses requisitos discricio-
nários e, portanto, insuscetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário.4 Embora em
ambiente democrático, o posicionamento do tribunal não mudou muito em rela-
ção à medida provisória, mesmo diante da superação pelo tribunal da teoria da
impossibilidade de controle jurisdicional do ato discricionário,5 o STF não alterou
substancialmente seu posicionamento considerando só caber o controle jurisdicio-
nal em casos de abuso do poder discricionário,6 o que em raríssimas oportunida-
des foi reconhecido.
Cumpre ressaltar que, embora relevância e urgência se traduzam em conceitos
indeterminados, e por isso insuscetíveis de determinação a priori, um ensaio de preci-
são deve ser intentado,7 sendo indispensável o seu cauteloso controle jurisdicional.

2 Sobre as distinções entre o decreto-lei e a medida provisória, vide ÁVILA, Humberto. Medidas
Provisórias a Constituição de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, pp. 28 e segs.
3 ÁVILA, Humberto. Medidas Provisórias a Constituição de 1988. No mesmo sentido: SZKLAROWSKY,
Leon Frejda. Medidas Provisórias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 29.
4 Por todos, vide: STF, Pleno, RE 62.739-SP, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJU 20/12/67, p. 4.408 (RTJ nº
44-01, p. 54).
5 Sobre o controle jurisdicional da discricionariedade, vide Capítulo 9.
6 STF, Pleno, ADI-MC nº 162-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 19/09/97, p. 45.525.
7 CLÈVE, Clemerson. Medidas Provisórias. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 68.

140
Temas de Direito Constitucional Tributário

Quanto à possibilidade de instituição de tributo por medida provisória, deve-


mos nos reportar à semelhante controvérsia doutrinária contemporânea ao decre-
to-lei. Naquela ocasião, vários autores defendiam que o princípio da reserva de lei
exigia que uma lei formal, conceito no qual a referida norma não estava inserida.8
Porém, a alegação foi sepultada pela EC nº 01/69, que, em seu art. 55, II, determi-
nou que a instituição de tributos era matéria passível de ser tratada pelo ato legis-
lativo urgente. Com a promulgação da Constituição de 1988, a controvérsia é reto-
mada, com a doutrina, uma vez mais, questionando a instituição de tributos por
medida provisória, por violação aos princípios da reserva legal e da anterioridade.9
No entanto, o Supremo Tribunal Federal encerrou a discussão, admitindo a insti-
tuição de tributos por medida provisória,10 o que transformou esse veículo no mais
utilizado para as novas normas tributárias.
Por fim, a Emenda Constitucional nº 32/01 reconheceu expressamente a pos-
sibilidade de instituição de tributos por medida provisória, exigindo, porém, que,
em se tratando de instituição e majoração de impostos, salvo aqueles que não se
submetem ao princípio da anterioridade do art. 150, III, b, a conversão em lei no
exercício anterior ao da cobrança.11
No entanto, a medida provisória não poderá instituir tributos que, de acordo com
a Constituição, devam ser criados por lei complementar. Embora existisse doutrina
admitindo o uso do instrumento provisório nesses casos,12 o inciso IV do § 1º do art.
62, com redação dada pela EC nº 32/01, afastou expressamente tal possibilidade.

8 Por todos: ATALIBA, Geraldo. “Decreto-Lei em Matéria Tributária. Não Pode Criar Nem Aumentar
Tributo”. In: Estudos e Pareceres de Direito Tributário – Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980,
p. 45. No mesmo sentido: ROTHMANN, Gerd. W. “O Princípio da Legalidade Tributária”, Revista de
Direito Administrativo 109: 24, 1972.
9 Por todos: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário.
3. ed. Rio de Janeiro: Forense: 1991, p. 310, onde o autor só admite a edição de medida provisória para
instituir o imposto extraordinário de guerra e o empréstimo compulsório de guerra e calamidade públi-
ca. Quanto aos demais, a vedação derivaria da legalidade e anterioridade tributárias. No mesmo sentido:
MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 34; e ÁVILA, Humberto. Medidas Provisórias a Constituição de
1988, p. 127. Contra (aceitando a instituição de tributos por medida provisória): SZKLAROWSKY, Leon
Frejda. Medidas Provisórias, p. 55.
10 STF, Pleno, RE 138.284-8/CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28/08/92.
11 “§ 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts.
153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido converti-
da em lei até o último dia daquele em que foi editada.”
12 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 ..., p. 310. No mesmo senti-
do: MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 36; e SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Medidas
Provisórias, p. 58, que exigia quorum de maioria absoluta para a aprovação da medida provisória que
dispusesse sobre matéria reservada à lei complementar. Contra: GRECO, Marco Aurélio. Medidas
Provisórias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 36; e ÁVILA, Humberto. Medidas Provisórias
a Constituição de 1988, p. 71.

141
Ricardo Lodi Ribeiro

Quanto à reedição da medida provisória, o STF só a admitia em caso de não deli-


beração legislativa no prazo constitucional,13 que antes da EC nº 32/01 era de 30 dias,
e hoje é de 60, prorrogado por igual período. Com a referida emenda, a medida pro-
visória que tiver sido rejeitada ou não for apreciada, só poderá ser reeditada em outra
sessão legislativa, de acordo com a redação do novo parágrafo 10 do art. 62.

13 STF, Pleno, ADIMC nº 1.397-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 26/07/97, p. 30.224.

142
IX
O Princípio da Irretroatividade Tributária
Sumário: 1) A Retroatividade das Leis e a Retroatividade Tributária. 2) A Irretroatividade
e o Fato Gerador Complexivo. 3) A Retroatividade no Direito Tributário. 3.1) As Leis
Interpretativas. 3.1.1) A Interpretação Autêntica na LC nº 118/05. 3.2) A Norma Tributária
Sancionatória. 3.3) As Leis que Estabelecem Novos Critérios de Apuração e Fiscalização do
Tributo.

1) A Retroatividade das Leis e a Retroatividade Tributária

A segurança jurídica no plano do direito objetivo, que encontra seu mais


intenso grau de efetividade no plano da legalidade, possui também uma dimensão
temporal, representada pela necessidade do ordenamento jurídico oferecer previsi-
bilidade para nortear a conduta do cidadão, cuja liberdade de ação está relaciona-
da com a capacidade de mensurar os efeitos jurídicos dos seus atos, a partir do
conhecimento prévio das normas que os regulam. Daí surge, no Estado de Direito,
a proibição da lei retroagir para atingir os direitos fundamentais.1
Embora na sociedade de risco o passado não ofereça explicações hábeis para a
resolução dos problemas do presente, o Estado Social e Democrático de Direito a
ela contemporâneo deve garantir ao cidadão, em nome do pluralismo político exi-
gido na definição dos critérios de repartição dos benefícios, custos e riscos, pelo
menos, a segurança de que os atos praticados no passado seguirão as regras que
foram acordadas de acordo com os conhecimentos e as informações que basearam
as soluções legais então adotadas que, por sua vez, serviram de orientação para a
conduta individual.
Esse pluralismo político e social impõe consensos válidos de acordo com a cor-
relação de forças verificada no presente, a impor leis que irão orientar a conduta do
cidadão daí pra frente. Pretender utilizar esse critério de repartição de riscos e
direitos às situações ocorridas no passado, se traduz em imposição de uma fórmula
que não atendia às deliberações a elas contemporâneas.
No âmbito tributário, a relação entre a segurança jurídica e os efeitos retroa-
tivos da lei adquirem uma importância particular uma vez que o contribuinte deve

1 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 124:
“A partir del Iluminismo, se entiende que la libertad de acción del ciudadano y la consiguiente posibi-
lidad de calcular los efectos de sus actos son incompatibles con normas que extiendan su validez a con-
ductas anteriores a su promulgación. Tales comportamientos fueron realizados en un momento en el
que, para su agente, resultaba imposible conocer el contenido de futuras leyes y, en consecuencia, pre-
ver sus repercuciones.”

143
Ricardo Lodi Ribeiro

orientar-se com base na norma vigente a cada momento, pelo que o conhecimen-
to e a certeza acerca do direito vigente, bem como a previsibilidade sobre a relati-
va permanência frente às mudanças sucessivas, constituem um elemento impres-
cindível à tributação segundo o Estado de Direito.2 Essa vinculação do Estado de
Direito com a certeza e previsibilidade da tributação se justificam pela idéia de que
os critérios de repartição dos custos da vida em sociedade em determinada época,
com base na tributação dos atos então praticados, deve ser definida pelos cidadãos
que nela viveram, e não por aqueles que se sucederam, com suas próprias visões e
prioridades e com sua responsabilidade pelo custeio da máquina estatal a eles des-
tinada. O princípio da responsabilidade que caracteriza a fraternidade na socieda-
de de risco, recomenda que tais custos não sejam transferidos nem às gerações pas-
sadas, nem às gerações futuras.
Quanto à extensão da proteção que o Direito positivo dá em face da retroati-
vidade da lei fiscal, vai variar com o ordenamento jurídico de cada país. A vedação
à retroatividade das leis, em regra, não é garantida, senão a área penal, pela maio-
ria das Constituições. Outras, como a Constituição da Espanha, prevêem generica-
mente o princípio da irretroatividade das leis que restringem direitos, sem que,
necessariamente, o preceito seja adotado automaticamente em relação às leis fis-
cais.3 No Direito Tributário, poucas são as Constituições que estabelecem a garan-
tia expressa da irretroatividade da lei tributária.4 Nem por isso a maioria dos países
deixa de vedar a retroatividade da lei fiscal, sendo a idéia construída pela doutrina
e jurisprudência, como se dá na Alemanha, a partir do princípio do Estado de
Direito, da Segurança Jurídica e da Proteção da Confiança Legítima.5 Porém, são
vários os dispositivos constitucionais que, diante da ausência de disposição expres-

2 RODRÍGUEZ BEREIJO, Álvaro. “Jurisprudencia Constitucional y Principios de la Imposición”. In:


AGULLÓ AGÜERO, Antonia (Coord.), Garantías Constitucionales del Contribuyente. 2. ed. Valencia:
Tirant Lo Blanc, 1999, p. 150.
3 O Tribunal Constitucional da Espanha entende que o art. 9.3 da Constituição, que prevê a irretroativi-
dade das leis restritivas de direitos, não se aplica às leis tributárias, pois estas não restringem direitos,
mas regulam o dever fundamental de custear as despesas públicas (STC 182/1997, apud RODRÍGUEZ
BEREIJO, Álvaro. “Jurisprudencia Constitucional y Principios de la Imposición”, p. 152).
4 Segundo Victor Uckmar, o princípio da irretroatividade tributária é previsto expressamente pelas cons-
tituições do Brasil (1988), art. 150, III, a; da Grécia (1975), art. 78, nº 2, embora admita a retroação em
relação ao ano anterior; do Peru (1993), art. 74, 3º; e da Rússia (1993), art. 57 (UCKMAR, Victor.
Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, pp. 54-55). Também a Argélia o previu na Constituição de 1993, art. 61.2. Em Portugal,
a Revisão Constitucional de 1997 o consagrou expressamente no art. 103.3. A Venezuela, na
Constituição de 2000, em seu art. 317, § 3º, dispõe que a lei estabelecerá a data para a cobrança do tri-
buto, o que, em caso de silêncio, se dará 60 dias após a promulgação. Alguns países como a Áustria, a
França e a Suíça não o consagram (TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”. In: AMA-
TUCCI, Andrea (org.), Tratado de Derecho Tributario, Bogotá: Temis, 2001, p. 341), outros, como se
demonstrará a seguir, extraem a irretroatividade da lei tributária de outros princípios constitucionais.
5 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, pp. 340-354; ÁVILA, Humberto. Sistema
Constitucional Tributário, pp. 450-451.

144
Temas de Direito Constitucional Tributário

sa, são chamados a legitimar a irretroatividade da lei fiscal. A doutrina italiana vai
buscar seu fundamento da capacidade contributiva, na medida em que a
Constituição só admite a tributação da manifestação de riqueza presente, e não da
pretérita.6 Outros o fundamentam no princípio da legalidade, uma vez que, sendo
exigida a lei para a criação do tributo, inexistindo esta no momento da ocorrência
do fato econômico que daria suporte à tributação, não haveria incidência. Assim,
segundo esta corrente, o princípio da legalidade exigiria lei prévia.7
A Constituição Brasileira de 1988, expressamente, consagra:

a) o valor da segurança jurídica (art. 5º), que serve de fundamento para a irre-
troatividade das leis;
b) a proibição da retroatividade das leis em geral que venham a ofender o ato
jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido (art. 5º, XXXVI); e
c) o princípio da irretroatividade da lei tributária (art. 150, III, a).8

Diante desse quadro constitucional, em nosso país é desnecessário buscar sua


fundamentação em outros dispositivos constitucionais. No entanto, sua aplicação
não se dá apenas como regra que impede a tributação em relação a fatos geradores
ocorridos antes da publicação da lei que instituiu ou majorou o tributo, mas tem a

6 Nesse sentido: FANTOZZI, Augusto. Corso di Diritto Tributario. Torino: UTET, 2003, p. 95; TESAURO,
Francesco. Compendio di Diritto Tributario. Torino: Utet, 2002, p. 44; FALSITTA, Gaspare. Corso
Instituzionale Di Diritto Tributario. Padova: Cedam, 2003, p. 102; AMATUCCI, Andrea. “La
Interpretación de la Ley Tributaria”. In: AMATUCCI, Andrea (org.), Tratado de Derecho Tributario,
Bogotá: Temis, 2001, pp. 617-618; MOSCHETTI, Francesco. El Principio da Capacidad Contributiva.
Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 1980, pp. 348 e segs.; e GIARDINA, Emilio. Le Basi Teoriche del
Principio della Capacità Contributiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 442. Em Portugal, que também não
prevê o princípio da irretroatividade na Constituição, Casalta Nabais também fundamenta a proteção na
capacidade contributiva. (NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra:
Almedina, 1998, p. 401). O mesmo se dá na Espanha: RODRÍGUEZ BEREIJO, Álvaro. “Jurisprudencia
Constitucional y Principios de la Imposición”, p. 151; PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y
Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 80 e FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de
Derecho Financiero Español. Vol. I, 21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 137.
7 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente – A Partir del
Principio de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, p. 861; JARACH, Dino. Finanzas
Públicas y Derecho Tributario. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1996, p. 315.
8 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios: III – cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes
do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.” As Constituições anteriores não
previram expressamente a irretroatividade tributária, salvo a Carta de 1934, que no seu art. 17, VII, reco-
nhecia a irretroatividade da lei tributária na figura da proteção ao ato jurídico perfeito: “É vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VII, cobrar, quaisquer tributos sem lei especial
que os autorize ou fazê-lo incidir sobre efeitos produzidos por atos jurídicos perfeitos.” No entanto,
durante a vigência das demais Constituições brasileiras, a irretroatividade também era extraída da pro-
teção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Nas Constituições de 1946 e 1967, é irretroativida-
de é prestigiada no princípio da anualidade, e na Carta de 1969 pela anterioridade (vide Capítulo 12),
além de ser reconhecida pelo art. 105 do CTN.

145
Ricardo Lodi Ribeiro

dimensão de princípio, a partir da obrigação de o legislador buscar o ideal de pre-


visibilidade, de estabilidade e de lealdade no exercício das competências normati-
vas,9 o que estabelece conexões do referido princípio com a legalidade, com a segu-
rança jurídica e com a proteção da confiança legítima.
A conexão com a legalidade se revela pela necessidade de lei prévia para ins-
tituir o tributo, uma vez que, de acordo com esse princípio, a inexistência de auto-
rização legislativa no momento em que ocorreu a conduta praticada pelo contri-
buinte, impediria a sua tributação.10 A segurança jurídica, como um dos valores
decorrentes do Estado de Direito, exige que a atividade estatal seja dotada de pre-
visibilidade11 e certeza,12 que dão fundamento à vedação da retroação da lei tribu-
tária. A proteção da confiança legítima quando relacionada às alterações no Direito
objetivo, também protege o cidadão contra a retroatividade dos atos estatais,
mesmo os legislativos,13 como decorrência da segurança jurídica.
Essa dimensão de princípio, que conecta a irretroatividade tributária com a
pauta axiológica ligada à segurança jurídica, dá origem ao princípio da não-surpre-
sa do contribuinte, que lhe garante o conhecimento da lei tributária que vai one-
rar os atos por ele praticados, permitindo-lhe dentro de um ambiente de liberdade
que marca o Estado Social e Democrático de Direito, optar entre praticar ou não o
ato, ou praticá-lo desta ou daquela forma, ou nesta ou daquela oportunidade, assu-
mindo as conseqüências fiscais daí decorrentes. Com essa roupagem, o princípio da
não-surpresa é dirigido não só ao legislador, mas também ao aplicador, orientando
as práticas administrativas, e a interpretação das regras constitucionais da irretroa-
tividade e da anterioridade.
Em sua dimensão de princípio, vai além das regras constitucionais expres-
sas como as previstas pelo art. 150, III, CF, ensejando a possibilidade de ponde-
ração da proteção da confiança legítima do contribuinte que confiou que o ato
por ele praticado seria regulado pela lei cujo conteúdo era conhecido naquela

9 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 142-143.
10 NOVELLI, Flávio Bauer. “Segurança dos Direitos Individuais e Tributação”, Revista de Direito Tributá-
rio 25-26: 159-175, 1983, p. 165; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro
e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005,
p. 512; PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica, p. 124; CASÁS, José Osvaldo. Derechos
y Garantías Constitucionales Del Contribuyente..., p. 861; JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho
Tributario, p. 315. Contra: TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 341; NABAIS,
José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 399.
11 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 185-186.
12 VILLEGAS, Héctor Belisario. Curso de Finanzas, Derecho Financiero y Tributario. 8. ed. Buenos Aires:
Astrea, 2003, pp. 284-285.
13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra:
Almedida, 1998, p. 250; SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à
Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios
Atos Administrativos: o Prazo Decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei
nº 9.784/99)”. Revista de Direito Administrativo 237:273, 2004.

146
Temas de Direito Constitucional Tributário

ocasião com o interesse coletivo que fundamenta a alteração legislativa. O


Tribunal Constitucional da Alemanha tem admitido a ponderação com a preva-
lência do interesse público quando o aumento é mínimo, ou a lei anterior era
confusa ou ilegítima, ou ainda quando as razões de bem-estar coletivo prepon-
deram sobre a confiança.14 Adotando argumentos baseados também na ponde-
ração entre a proteção da confiança e o interesse público, as Cortes Superiores
de vários países como EUA, Espanha e Portugal aceitam tal ponderação. Na
Itália, a Corte Constitucional adotou como critério de ponderação a previsibi-
lidade da alteração.15
Porém, nem sempre a doutrina desses países aceita automaticamente esse
posicionamento. Na Espanha predomina amplamente a doutrina que, seguindo a
orientação pretoriana, admite a ponderação.16 Em Portugal, a tese da possibilidade
de ponderação predominou17 até o advento da Revisão Constitucional de 1997, que
introduziu o princípio da irretroatividade expressamente na Constituição. Com o
novo dispositivo constitucional, a irretroatividade é reconhecida sem possibilidade
de seu afastamento com base na prevalência do interesse público.18 Mas, se na
Espanha e em Portugal (antes da consagração expressa da irretroatividade na
Constituição) a doutrina assimilou as posições das Cortes Constitucionais que
admitiam a possibilidade de retroatividade em razão da ponderação entre a con-
fiança do contribuinte e o interesse público na alteração legislativa, o mesmo fenô-
meno não ocorreu na Alemanha19 e a Itália,20 onde houve a rejeição pela doutrina
do posicionamento judicial.
Porém, no Brasil, a previsão expressa do princípio da irretroatividade tributá-
ria, além de consagrar o princípio da não-surpresa em nosso ordenamento, tem
como conseqüência fazer da proibição dos efeitos retroativos da lei tributária uma

14 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 345.


15 FALSITTA, Gaspare. Corso Instituzionale Di Diritto Tributario, p. 104.
16 PEREZ DE AYALA, Jose Luis e PEREZ DE AYALA BECERRIL, Miguel. Fundamentos de Derecho
Tributario. 6. ed. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 2004, p. 86; PÉREZ ROYO, Fernando.
Derecho Financiero y Tributario, p. 79; GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica en
Materia Tributaria. Barcelona: Marcial Pons, 2000, p. 177; GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto.
Derecho Tributario I. 2. ed. Salamanca: Plaza Universitaria, 2000, p. 84.
17 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 402.
18 NABAIS. Direito Fiscal. Coimbra: Almedina, 2000, p. 151: “O princípio da segurança jurídica, ínsito na
idéia do Estado de Direito democrático constante do art. 3º da Constituição, está longe, porém, de ter
sido totalmente absorvido pelo novo preceito constitucional. É certo que ele deixou de servir de balan-
ça na ponderação dos bens jurídicos em presença quando estamos perante um imposto afetado de retroa-
tividade verdadeira ou própria. Quando tal acontecer, a solução está agora ditada na Constituição, não
podendo os órgãos aplicadores, sem violação dela, proceder a uma ponderação casuística.”
19 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 345.
20 FANTOZZI, Augusto. Corso di Diritto Tributario, p. 96; e FALSITTA, Gaspare. Corso Instituzionale Di
Diritto Tributario, p. 104. Contra: Aceitando a ponderação feita pela Corte Constitucional Italiana:
TOSI, Lori. “El Principio de Efectividad: Aspectos Subjetivos y Objetivos de la Capacidad Contributiva”.
In: AMATUCCI, Andrea (org.), Tratado de Derecho Tributario, Bogotá: Temis, 2001, p. 318.

147
Ricardo Lodi Ribeiro

regra, que como tal não deve ser ponderada.21 Assim, por aqui, não são admitidas
teses que foram consagradas em países em que a irretroatividade, não tendo dicção
constitucional expressa, acabou sendo extraída de outros princípios como a segu-
rança e o Estado de Direito, como vimos. A ausência de regra e a conseqüente res-
trição da idéia de irretroatividade ao mundo abstrato dos princípios vêm justifican-
do a sua ponderação por parte das Cortes Constitucionais dos citados países, com o
interesse coletivo na modificação legislativa. No Brasil, a regra não deve ser pon-
derada e nem excepcionada,22 uma vez que só a própria Constituição poderia fazê-
lo, o que não aconteceu em nosso país.
Ao contrário, quando a não-surpresa se apresenta em sua dimensão de princí-
pio, garantindo a segurança jurídica do contribuinte para além das regras da irre-
troatividade e da anterioridade, a fim de garantir a previsibilidade, a certeza do
direito e a proteção da confiança legítima, poderá ser ponderado com os interesses
que fundamentam as mudanças.23
No entanto, sendo um princípio que se destina à proteção da confiança do con-
tribuinte, não sendo aplicado a favor do Estado, não impede a retroatividade da lei
que conceda benefícios fiscais e a redução de tributo, desde que expressa nesse sen-
tido.24 Porém, há que atentar se a retroatividade dessas medidas, não viola o princí-
pio da isonomia, em razão do pagamento do tributo por muitos contribuintes.25 Ao
contrário, as revogações de isenção ou outros benefícios fiscais, deve respeitar o
princípio da irretroatividade,26 por se traduzirem em criação ou majoração de tribu-
to. Do mesmo modo, as leis que, embora não alterando os elementos da obrigação
tributária, representam um incremento no desembolso pelos contribuintes, como
aquelas que estabelecem normas mais gravosas relativas aos institutos relacionados
com a materialidade da obrigação e do crédito tributários, como as relativas à res-

21 No mesmo sentido, em Portugal, diante da previsão expressa do princípio com a revisão constitucional
de 1997: NABAIS. Direito Fiscal, p. 151.
22 No sentido do texto em relação à inexistência de exceção constitucional ao princípio da irretroativida-
de tributária no Brasil: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Notas de Atualização de BALEEIRO,
Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.p. 194; AMARO, Luciano.
Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 119.
23 NABAIS. Direito Fiscal, p. 151. Sobre a ponderação do princípio da proteção da confiança legítima e os
interesses na modificação do Direito, no plano da aplicação da norma, vide Capítulo 13.
24 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 342; NABAIS, José Casalta. O Dever
Fundamental de Pagar Impostos, p. 396; GARCIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica...,
p. 177; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 514. No mesmo sentido, jurisprudência pacífica dos
nossos tribunais. Por todos: STF, Pleno: ADIMC nº 712-2/DF. Rel. Min.: Celso de Mello, DJU 19/2/93,
p. 2.032.
25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 250; AMARO,
Luciano. Direito Tributário Brasileiro, p. 119.
26 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 343, citando em apoio à tese da necessida-
de de respeitar a irretroatividade na revogação de isenção decisão do Tribunal Constitucional Alemão.
Sobre a revogação de isenção e a necessidade de respeitar o princípio da anterioridade, vide Capítulo 12,
item 12.7.

148
Temas de Direito Constitucional Tributário

ponsabilidade tributária, à compensação, à prescrição e à decadência, que devem ser


regidas pela lei vigente no momento em que ocorreu o fato gerador. Por outro lado,
os institutos vinculados aos aspectos procedimentais, como o lançamento e o proce-
dimento administrativo fiscal, são regulados por normas contemporâneas a esses
atos, ainda que posteriores ao nascimento da obrigação tributária.27
Por outro lado, há que se esclarecer que a regra da irretroatividade protege o
contribuinte quando, por ocasião da alteração legislativa majoradora do tributo, já
tenha ocorrido o fato gerador da obrigação tributária, não bastando que tenham
acontecido situações preparatórias a este,28 como reconheceu o STF, em decisão
que admitiu a aplicação da alíquota nova em relação à importação de veículos
estrangeiros adquiridos no exterior antes da majoração daquela, mas introduzidos
no país posteriormente à introdução da nova legislação. É que o fato gerador do
imposto de importação incidente na operação é a entrada do bem no Brasil, e não
a aquisição da mercadoria no exterior.29

2) A Irretroatividade e o Fato Gerador Complexivo

De acordo com Perez Luño, a retroatividade se dá pela projeção do âmbito


temporal das normas a fatos ou condutas prévias à sua promulgação. Para o autor
espanhol, nenhuma lei é retroativa em sentido estrito, uma vez que não pode regu-
lar nem modificar o passado, mas somente estender suas conseqüências jurídicas ao
presente a situações que se produziram no passado (retroatividade própria) ou que
nele se iniciaram para prolongar-se no presente (retroatividade imprópria).30
Partindo dessa distinção entre retroatividade própria e imprópria, o Tribunal
Constitucional Alemão passou a entender que a irretroatividade imprópria é admiti-
da no Direito Tributário, o que se justifica pela preponderância do interesse coletivo
na modificação da lei sobre a proteção individual, salvo em casos, muito raros, em
que este se apresente mais relevante. Já a retroatividade própria, segundo o Tribunal,
só é admissível se a confiança do contribuinte não é dotada de dignidade, em razão
do caráter reduzido do aumento do tributo, ou quando as razões de bem-estar cole-
tivo preponderarem sobre a confiança, o que a Corte, ao contrário da retroatividade
imprópria, não reconhece na maioria dos casos.31 Tal posicionamento tem justifica-

27 Sobre a retroatividade das leis que tratam dos aspectos procedimentais, vide item 11.3.3.
28 Contra: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 147.
29 STF, Pleno, RE nº 224.285-9-CE, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 28/05/99, p. 26.
30 PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurídica, p. 123.
31 Vide comentário crítico às exceções estabelecidas pelo Tribunal Constitucional Alemão à retroativida-
de própria em TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 345. No mesmo sentido crí-
tico: AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 619.

149
Ricardo Lodi Ribeiro

do a aplicação da lei tributária germânica em relação aos fatos geradores do imposto


de renda, que estejam pendentes por ocasião da alteração legislativa.32
Esse posicionamento, acabou por influenciar as Cortes Constitucionais da
Itália,33 Espanha,34 de Portugal35 e da Argentina.36 Não é outra a posição da Corte
Suprema dos Estados Unidos,37 e a esposada, no Brasil, pelo STF, com base da
Súmula nº 584,38 e pelo art. 105 do CTN.39
Porém, a distinção entre a retroatividade própria e imprópria, bem como as
exceções que em relação à primeira têm sido admitidas na jurisprudência do
Tribunal Constitucional Alemão, vêm recebendo agudas críticas da doutrina, por
autores como Tipke, Vogel, Lang e Bauer.40 Tais críticas se dirigem, sobretudo, à
possibilidade, admitida pelo Tribunal, de alterar a legislação do imposto de renda
em relação ao fato gerador em curso no ano da modificação legislativa, a partir da
idéia do fato gerador complexivo.41
De fato, a periodicidade anual do fato gerador do imposto de renda não pode
ser pretexto para permitir que uma série de atos praticados antes da alteração legis-
lativa, seja por ela atingida, uma vez que a irretroatividade se identifica com a pre-
visibilidade e a não-surpresa do contribuinte em relação à tributação. Permitir que
uma lei alterada no final do ano incida sobre as operações realizadas pelo contri-
buinte ao longo de todo o exercício que se encerra não só o surpreende como ainda

32 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, pp. 344-345.


33 FANTOZZI, Augusto. Corso di Diritto Tributario, p. 96.
34 RODRÍGUEZ BEREIJO, Álvaro. “Jurisprudencia Constitucional y Principios de la Imposición”, p. 151.
35 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 405.
36 CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente..., p. 796.
37 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 519.
38 Súmula nº 584: “Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigen-
te no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.”
39 “Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes,
assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do arti-
go 116.”
40 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, pp. 344-345. Na Itália a distinção também é
criticada: AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 619; FALSITTA, Gaspare.
Corso Instituzionale Di Diritto Tributario, p. 101; e FANTOZZI, Augusto. Corso di Diritto Tributario,
pp. 95-96. A favor da distinção entre a retroatividade própria e imprópria: NABAIS. Direito Fiscal.
Coimbra: Almedina, 2000, p. 151-152, que diante da segunda, recomenda a ponderação de interesses; e
CASÁS, José Osvaldo. Derechos y Garantías Constitucionales Del Contribuyente..., p. 796, que aceita a
retroatividade nesses casos.
41 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, pp. 345-346: “La crítica de esa distinción entre
retroactividad propia e impropia se funda en la medida en que el Tribunal Constitucional alemán la aco-
pla al principio de periodicidad (anualidad). Además, es cierto que la obligación tributaria, en lo tocan-
te a los impuestos periódicos, solo surge al finalizar el período impositivo y, precisamente, por la reali-
zación de un hecho imponible complejo formado de manera continua a lo largo del año. Si se tienen en
cuenta los motivos que justifican la prohibición de retroactividad, se comprenderá que no solo al final
del año se realizan los actos fundamentales de la ‘cadena’. Si el contribuyente tiene que poder organizar
la forma en que le sean más favorable los hechos más relevantes desde el punto de vista tributário, debe
conocer la ley vigente en ese momento.”

150
Temas de Direito Constitucional Tributário

atinge a operações cujo custo fiscal foi avaliado com base em leis que não serão mais
aplicadas, impedindo que essa despesa repercuta no preço dos produtos. Ainda que
o imposto de renda seja um tributo direto, incidindo sobre o lucro, não há como
negar que toda a despesa da empresa, incluindo a carga tributária composta de tri-
butos direitos ou indiretos (distinção cada vez menos relevante), é um dos princi-
pais componentes do custo, e, portanto, do preço. Alterar o custo depois que a ope-
ração já foi realizada significa tributar em desacordo com a legalidade e com a capa-
cidade contributiva presente, subvertendo toda a pauta axiológica do Direito
Tributário, em nome da ficção jurídica do fato gerador anual, que se destina ape-
nas a facilitar a fiscalização e apuração do imposto.42
No Brasil, o STF, embora não baseando a Súmula nº 584 na teoria da retroati-
vidade imprópria, acabou por consagrar as suas conclusões, ao admitir que o fato
gerador complexivo fosse tributado com base em lei alterada durante o seu curso.43
No mesmo sentido, o art. 105 do CTN, que admite a aplicação da lei tributária aos
fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos como aqueles que já se
iniciaram e ainda não terminaram por ocasião da alteração legal.
Embora o STF tenha chegado a abandonar, em alguns dos seus julgados, o
posicionamento veiculado pela referida súmula,44 acabou por voltar a aplicá-la
mais recentemente,45 fazendo do princípio da irretroatividade mais uma frustração
constitucional.

3) A Retroatividade no Direito Tributário

A despeito da regra constitucional que estabelece a impossibilidade da lei tri-


butária que representa agravamento da situação do contribuinte atingir a fatos

42 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 342: “Si se incrementra con retroactividad
la presión de los impuestos repercutibles, entonces no podrán ser trasladados sucesivamente. Por este
motivo se há opinado siempre que en derecho tributário es necesario tutelar la confianza, en cuanto a
que deben prevalecer las consecuencias jurídico-tributarias producidas en el momento de realizarse los
hechos.” No mesmo sentido: AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 618.
43 A doutrina brasileira é praticamente unânime na condenação da Súmula nº 584. Por todos: AMARO, Lu-
ciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 119-120: “O fato gerador, aí, não
se traduz, isoladamente, nos fatos a ou b (rendimentos), ou no fato c (despesa). O fato gerador é a série “a
+ b + c”. A lei, para respeitar a irretroatividade, há de ser anterior à série “a + b + c”, vale dizer, a lei deve
preceder todo o conjunto de fatos isolados que compõem o fato gerador do tributo. Para respeitar o prin-
cípio da irretroatividade, não basta que a lei seja prévia em relação ao último desses fatos, ou ao término
do período durante o qual os fatos isoladamente ocorridos vão sendo registrados.” Contra, em posição
quase isolada na doutrina pátria: FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4.
ed. Anotada e atualizada por Geraldo Ataliba. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 128.
44 STF, Pleno, ADIn nº 513-DF, Rel. Min. Célio Borja, DJU 30/10/92, p. 19.514 (RTJ 141/739); STF, Pleno,
RE nº 138.284-8-CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28/08/92, p. 13.456.
45 STF, Pleno, RE nº 181.664-3-RS, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 10/12/97, p. 57; STF, Pleno, RE nº
197.790-6-MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 21/11/97, p. 60.600.

151
Ricardo Lodi Ribeiro

geradores ocorridos antes da sua vigência, existem situações em que a retroação da


lei não agride a Constituição, por não colocar em risco a segurança jurídica do con-
tribuinte. Esses casos são previstos nos artigos 10646 e 14447 do CTN. No primeiro,
se estabelece a retroatividade da lei tributária sancionatória mais benigna ao infra-
tor e da lei interpretativa. No último, a retroação da lei que estabelece aspectos pro-
cedimentais, ligados aos critérios de apuração e fiscalização do tributo.

3.1) As Leis Interpretativas

O inciso I do art. 106 do CTN estabelece que as leis expressamente interpre-


tativas retroagem à data da lei interpretada. Trata-se da interpretação feita pelo
próprio legislador, também chamada de interpretação autêntica que, embora tenha
gozado de maior prestígio no passado, ainda é muito utilizada nos dias atuais.
Durante os períodos históricos que precederam à consagração do Estado de
Direito, onde a lei era emanada da vontade do soberano como representante da
vontade de Deus, só o próprio monarca poderia interpretar as leis por ele edita-
das.48 Nesse contexto, como bem observou Carlos Maximiliano, a interpretação
autêntica era filha do Absolutismo.49 Superada a idéia teocrática quanto à origem
do poder, a interpretação autêntica continuou a gozar de grande prestígio, apare-
cendo como única forma de solução para o esclarecimento do sentido das normas,
em vários ordenamentos, como na França, onde, até 1837, em casos de dúvida, os
juízes deveriam consultar o Parlamento, e no Império Brasileiro, em decorrência
do Poder Moderador.50 No entanto, com o advento do Estado de Direito, passou a

46 “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente inter-
pretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados; II – tratando-se
de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de
tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento
e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos seve-
ra que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática.”
47 “Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei
então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada. “§ 1º Aplica-se ao lançamento a legis-
lação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de
apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administra-
tivas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, para o efeito
de atribuir responsabilidade tributária a terceiros. § 2º O disposto neste artigo não se aplica aos impos-
tos lançados por períodos certos de tempo, desde que a respectiva lei fixe expressamente a data em que
o fato gerador se considera ocorrido.”
48 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação do Direito Tributário. 4. ed., Rio de Janeiro: Renovar,
2006, pp. 3-4, onde são encontrados vários exemplos de normas que davam ao rei a exclusividade na
interpretação das leis, como o Corpus Juris, de Justiniano e a Ordonnance civil pour la reformation de
la justice, de Luís XIV.
49 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 91.
50 Conforme noticia Ricardo Lobo Torres, também eram comuns leis que puniam as interpretações abusi-
vas como, em Portugal, a Lei da Boa Razão, de 1769, que cominava a pena de multa de 50$000 réis e seis

152
Temas de Direito Constitucional Tributário

ser cada vez mais aceita a atividade hermenêutica da doutrina como principal meio
de esclarecimento do sentido das leis, passando a interpretação autêntica a ter
importância residual.51
Há vozes na doutrina que negam a existência de lei interpretativa no Brasil,52
uma vez que ou seria inócua, a repetir o sentido da lei anterior, ou direito novo, insus-
cetível, portanto, de sofrer retroação. Porém, a existência da lei interpretativa no
Direito pátrio, que já foi afirmada pelo STF53 e deriva do próprio CTN (art. 106, I), tem
como fundamento a pluralidade de sentidos possíveis oferecidos pela literalidade da
lei, sendo comum que haja controvérsia acerca de qual deles deve prevalecer.
Nesse contexto, a interpretação autêntica se dá quando o legislador procura
identificar, dentre os sentidos possíveis admitidos para a interpretação de uma lei,
qual deve prevalecer, excluindo todos os demais.54 Como conseqüência, as relações
jurídicas anteriores, ainda que pendentes de julgamento, deverão ser julgadas con-
forme a interpretação legislativa.55 Tal possibilidade se fundamenta pela incerteza
jurídica provocada pelo surgimento de diferentes linhas de interpretação, que
fazem com que o cidadão não consiga mais pautar o seu comportamento em fun-
ção da lei, senão de acordo com as cambiantes orientações jurisprudenciais.56
Em nome da segurança jurídica, a norma interpretativa, ainda que tenha efei-
tos retroativos, não atinge às relações jurídicas já esgotadas, devendo respeitar o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.57
Porém, é muito comum que o legislador, sob o pretexto de estar interpretan-
do a lei anterior, promova uma inovação no ordenamento jurídico a partir da impo-
sição de uma solução que não podia ser encontrada na lei interpretada, a fim de for-
çar a alteração da jurisprudência dos tribunais. Nestes casos, não há que se falar em
interpretação autêntica, mas em correção legislativa da jurisprudência, o que
obviamente, não produzirá efeitos retroativos.58

meses de suspensão ao advogado que, dolosamente, incorresse numa interpretação absurda que atentas-
se contra a majestade das leis. Em caso de reincidência, o advogado era punido com a privação de seus
graus universitários. Se ainda assim incorresse na mesma prática pela terceira vez, por meio da assina-
tura de outro advogado, seria degredado para Angola por 5 anos (TORRES, Ricardo Lobo. Normas de
Interpretação..., pp. 5-7).
51 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, p. 670.
52 Por todos: PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967 com a EC nº 1/69. 2. ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 103.
53 STF, Pleno, ADIn nº 605-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 05/03/93, p. 252.
54 BETTI, Emilio. Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici. Milano: Giuffrè, 1949, p. 72.
55 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1987, p. 133.
56 AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 614.
57 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira.
2. ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 603.
58 Sobre a correção legislativa da jurisprudência, com a citação de vários exemplos concretos em nossa
legislação e no direito comparado, vide: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, pp. 447-458.

153
Ricardo Lodi Ribeiro

Para que a retroação da interpretação legal tenha validade, são indispensáveis


os seguintes requisitos:

a) que a lei interpretativa e a lei interpretada sejam da mesma fonte normati-


va;
b) que a lei seja expressamente interpretativa;
c) que a solução adotada pelo legislador esteja entre aquelas admitidas pelo
sentido possível da norma;
d) que haja dúvida quanto o sentido correto da norma, gerando incerteza para
os seus destinatários.

O primeiro requisito se revela pela necessidade de a lei interpretativa ter a


mesma força vinculante da lei interpretada, sob pena que não cumprir o seu desi-
derato, na medida em que não poderá estabelecer os sentidos derivados desta.
Assim, só uma emenda constitucional pode interpretar outra. O mesmo se dá em
relação às leis complementares e ordinárias, e ao regulamento.59
O segundo requisito requer, para a produção de efeitos retroativos, que a lei
seja expressamente interpretativa, pois a produção de efeitos em relação aos fatos
pretéritos não se presume. No entanto, como adverte Baleeiro, tal exigência “não
quer dizer que o novo diploma empregue essas palavras sacramentais, apresentan-
do-se como tal na ementa ou no contexto”, bastando, segundo o mestre baiano, que
a lei se reporte aos dispositivos interpretados, definindo-lhes o sentido e aclarando
as dúvidas.60
O terceiro requisito decorre dos próprios limites da atividade hermenêutica,
encontrados das acepções extraídas da literalidade da lei. Na verdade, da ambigüi-
dade das palavras utilizadas pelo legislador é possível se extrair um variável núme-
ro de significados para cada conceito, a partir de uma interpretação do seu sentido
literal possível. Caso a lei interpretativa adote uma solução fora dos limites possí-
veis oferecidos pelo texto legal, não se está diante de uma interpretação, mas da
criação de uma nova decisão só acolhida pela nova lei.
Por fim, exige-se que a interpretação autêntica deva vir a lume num contexto
marcado pela incerteza jurídica, diante da admissão pela jurisprudência dos tribunais
de mais de uma solução hermenêutica. Nesse sentido, só é legítima a retroatividade da
interpretação legal, se vier a confirmar a interpretação que era dominante,61 sendo

59 AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 615; ASCENSÃO, José de Oliveira. O
Direito: Introdução e Teoria Geral..., p. 134; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do
Direito, pp. 87-88.
60 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, p. 670. No mesmo sentido: ASCENSÃO, José de
Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral..., p. 600.
61 BETTI, Emilio. Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici, p. 80; AMATUCCI, Andrea. “La
Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 615.

154
Temas de Direito Constitucional Tributário

reconhecida pela jurisprudência pacífica,62 ou diante de um cenário que ainda não


houve definição pretoriana quanto a uma orientação segura para os destinatários da
norma. E isso não se dá em nome da separação de poderes, que hoje não pode ser
tão estática. Ao contrário, sob o prisma desta, se o Poder Judiciário estabelece uma
interpretação contrária aos desígnios do detentor da função legislativa, nada mais
adequado ao sistema de freios e contrapesos do que o esclarecimento parlamentar,
sobretudo diante da judicialização da política. A irretroatividade da lei interpreta-
tiva que altera a jurisprudência pacífica dos tribunais repousa na proteção à segu-
rança jurídica do cidadão que, diante do posicionamento incontroverso dos tribu-
nais a respeito da interpretação da lei, confiou legitimamente no sentido da lei
revelado por estes.
Não é por outra razão que a retroatividade da lei interpretativa não encontra
óbice na posição consolidada pelos tribunais quando não altera o posicionamento
já estabelecido por estes, ou o fazendo, estabelece regra mais benéfica ao cidadão.
No primeiro caso, a nova lei não trai a confiança legítima, uma vez que não altera
o sentido que já vinha sendo adotado na aplicação do Direito. No segundo, sendo a
irretroatividade uma garantia do cidadão, não restará atingida pela aplicação da
norma mais benigna.
Contudo, deve-se advertir que a certeza quanto à aplicação correta da lei,
capaz de afastar a aplicação retroativa da norma interpretativa não é obtida se ainda
não houve manifestação da Corte a quem cabe a última palavra sobre a matéria.
Assim, no caso de tema constitucional, a certeza não virá senão pelo julgamento da
matéria pelo STF. O mesmo ocorre em relação às questões que envolvem a inter-
pretação de lei federal, a cargo do STJ. Se assim não fosse, estaríamos estabelecen-
do proteção à confiança cuja dignidade não prevalece em relação aos interesses que
movem o Poder Legislativo a interpretação autêntica. Também não resta configu-
rada a certeza impeditiva dos efeitos ex tunc da lei interpretativa, quando há deci-
sões conflitantes desses mesmos tribunais.

3.1.1) A Interpretação Autêntica na LC nº 118/05

Caso bastante emblemático e polêmico de interpretação autêntica foi levada a


efeito pela Lei Complementar nº 118/05 que, em seus artigos 3º e 4º, determinou o
sentido do art. 168, I, do CTN, fixador do termo inicial do prazo qüinqüenal para a
repetição de indébito tributário, pondo fim à famigerada “tese dos cinco mais
cinco” anos de prazo para a propositura da respectiva ação.63 É bem verdade que a

62 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 531.


63 “Art. 3º Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 –
Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lança-
mento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da refe-
rida Lei.”

155
Ricardo Lodi Ribeiro

tese não se construiu, senão de forma tortuosa,64 com várias idas e vindas que dei-
xavam o contribuinte em completa insegurança diante do caráter pantanoso da
jurisprudência do STJ sobre a matéria. Por outro lado, ainda não havia, quando da
promulgação da LC nº 118/05, um posicionamento do STF a esse respeito, senão em
decisão monocrática.65 Nesse sentido, foi positiva a atuação do legislador, para pôr
fim à controvérsia, que extraía um sentido da letra do CTN, que não havia sido con-
cedido durante os seus 25 primeiros anos de vigência. No entanto, apesar do aci-
dentado caminho percorrido pela tese, e pela inconsistência de seus fundamentos
que não consideravam a prescrição de acordo com os seus alicerces vinculados à
idéia de actio nata,66 ela acabou por prevalecer na 1ª Seção do STJ, que uniformiza
a jurisprudência do Tribunal, gerando uma certeza, nos meios jurídicos nacionais,
em relação à sua correção, vez que aparentemente não tratava de matéria de índo-
le constitucional, a ser alterada pelo STF.

“Art. 4º Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3º,
o disposto no art. 106, inciso I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”.
64 Vale transcrever trecho de decisão monocrática, onde a Ministra Eliana Calmon sintetiza as fases por que
passou a “tese dos cinco mais cinco” na jurisprudência do STJ: “Sobre a prescrição dos tributos lançados
por homologação, a jurisprudência do STJ oscilou durante algum tempo, assumindo as seguintes posições:
1ª etapa – o Fisco tem até cinco anos para homologar o seu crédito e mais cinco para exigi-lo, na ausên-
cia de homologação. Por um raciocínio simplista, inaugurou-se a tese dos “cinco mais cinco”, contando-
se dez anos a partir do fato gerador (os cinco primeiros anos, prazo decadencial, e os cinco restantes, prazo
prescricional). Nesse sentido, dentre outros precedentes, citam-se os seguintes julgados: REsp 75.006/PR,
REsp 69.233/RN, EREsp 43.502/RS, REsp 266.889/SP, AgRg/AG 317.687/SP, AgRg/REsp 256.344/DF e
REsp 250.753/PE; 2ª etapa – inicia-se o prazo prescricional a partir da declaração de inconstitucionalida-
de pelo Supremo Tribunal Federal. Esta posição abrigava variantes, no que se refere ao termo a quo: data
do julgamento, do trânsito em julgado ou do ajuizamento da ação. Advirta-se que não importa, para os
adeptos desta tese, se a declaração de inconstitucionalidade ocorreu em controle difuso ou concentrado.
Daí os precedentes, dentre outros, o REsp 220.469/AL, REsp 209.903/AL, EREsp 43.205/RS e AgRg/REsp
252.846/DF; 3ª etapa – no REsp 329.444/DF, a Primeira Seção deliberou que o termo a quo em comento
inicia-se da data do trânsito em julgado no qual o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstituciona-
lidade da lei pela primeira vez; 4ª etapa – a Primeira Seção, no EREsp 423.994/MG, realinhou o entendi-
mento para concluir que, quando se tratar de controle difuso, inicia-se a contagem da data da Resolução
do Senado e, quando se tratar de controle concentrado, a partir do trânsito em julgado da ADIn.
Finalmente, no julgamento do EREsp 435.835/SC, cujo acórdão será lavrado pelo Ministro José Delgado,
consagrou-se definitivamente a tese dos “cinco mais cinco”, diante das perplexidades causadas pela a ado-
ção de outras teses. Portanto, considerando-se que o tributo em tela está sujeito ao chamado ‘autolança-
mento’, o Fisco pode homologá-lo expressa ou tacitamente. Não havendo prazo fixado em lei para a
homologação, ela será de até 5 (cinco) anos, a contar da ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4º, do
CTN). A extinção do crédito tributário ocorrerá com a homologação e não com o pagamento antecipado,
quando então deverá fluir o prazo prescricional de 5 (cinco) anos previsto no art. 168, inciso I, do CTN”
(STJ, 2ª Turma, REsp nº 917.179-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 18/04/07).
65 STF, Pleno, Pet. nº 3.221-RN, 3.221-RN, Rel. Min. Eros Grau, DJU 25/10/04, onde foi reconhecida a
plausibilidade jurídica da “tese dos cinco mais cinco”.
66 Sobre o princípio da actio nata como fundamento dos termos iniciais dos prazos de prescrição, vide
RIBEIRO, Ricardo Lodi. “Os Prazos para a Constituição e a Cobrança do Crédito Tributário”. In:
ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Tributário – Estudos em Homenagem ao Professor
Aurélio Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 576.

156
Temas de Direito Constitucional Tributário

Por este motivo, a despeito da correção material da solução adotada pelo art.
3º da LC nº 118/05, que nos parece ter adotado a solução hermenêutica correta em
face da redação do art. 168, I, do CTN, é imperioso reconhecer, em face da certeza
jurídica que a posição do STJ se revestia na época da interpretação autêntica, que o
seu caráter retroativo feriu a proteção legítima do contribuinte. Assim, está corre-
ta a aplicação prospectiva que lhe deu a 1ª Seção do STJ.67 Porém, não nos parece
correto o termo inicial atribuído pelo Tribunal aos efeitos da nova lei. Segundo a
referida decisão, a nova interpretação seria aplicada para os processos ajuizados a
partir do dia 09/06/05, data em que entrou em vigor a LC nº 118/05. No entanto,
cumpre destacar que o ajuizamento da ação é fato inteiramente irrelevante para o
nascimento do direito à repetição. Se for correto o entendimento de que a seguran-
ça jurídica exige que a nova interpretação só seja válida a partir da entrada em vigor
da lei, afastando-se os seus efeitos retroativos, deve-se reconhecer que todos aque-
les que já tinham direito a pleitear a repetição até aquela data não são por elas atin-
gidos. Como o direito à repetição surge com o pagamento indevido, ainda que por
antecipação, não devem ser atingidos pela interpretação autêntica os contribuintes
que fizeram pagamentos indevidos até o dia 09/06/05. Quem, até a véspera, efetuou
pagamento de tributo e pretender repeti-lo judicialmente, terá direito, em nome da
proteção da segurança jurídica, a se beneficiar da “tese dos cinco mais cinco”.

3.2) A Norma Tributária Sancionatória

Ao contrário da norma que disponha sobre tributos que, como vimos, ainda
que mais benigna ao contribuinte não retroage, senão expressamente e se não vio-
lar o princípio da isonomia, a lei que estabelece penalidade pecuniária mais favo-
rável ao agente, possui efeitos retroativos.
A sistemática, que é consagrada no art. 106, II, do CTN, se baseia em preceito
do Direito Penal, consagrado no art. 5º, XL, da Constituição e no art. 2º, parágrafo
único, do Código Penal, originada da ausência de legitimidade no estabelecimento

67 STJ, 1ª Seção, EREsp nº 327.043/DF, Rel. Min. João Otávio Noronha, j. 27/04/05 (Aguardando publicação).
No mesmo sentido da aplicação prospectiva do art. 3º da LC nº 118/05: CARVALHO, Paulo de Barros. “O
art. 3º da Lei Complementar nº 118/05, Princípio da Irretroatividade e Lei Interpretativa.” In: PIRES,
Adilson Rodrigues e TÔRRES, Heleno Taveira. Princípios de Direito Financeiro e Tributário – Estudos em
Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 759. Peculiar é a posição
de Sacha Calmon Navarro Coêlho que, além de não dar efeitos retroativos ao art. 3º da LC nº 118/05, sequer
lhe confere efeitos prospectivos no sentido de corrigir a jurisprudência. Assim, para o autor, a “tese dos
cinco mais cinco” continua válida. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro e LOBATO, Valter. “Reflexões sobre
o art. 3º da Lei Complementar 118. Segurança Jurídica e a Boa-fé como Valores Constitucionais. As Leis
Interpretativas no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário 117: 123, 2005.
Nesse mesmo sentido: TROIANELLI, Gabriel. Lacerda. “A Lei Complementar nº 118/05 e o Prazo Inicial
para a Repetição ou Compensação do Indébito”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes
Questões Atuais do Direito Tributário. Vol. 9. São Paulo: Dialética, 2005, p. 143.

157
Ricardo Lodi Ribeiro

de sanção em relação à conduta que não merece mais censura do ponto de vista do
Direito objetivo, em razão da modificação da valoração desta na consciência jurí-
dica da sociedade, ou que, de acordo com esta, merece uma punição mais branda.68
Embora as aludidas normas penais só se apliquem como regras ao chamado
Direito Penal Tributário, que regula os crimes fiscais, na seara do Direito Tributá-
rio Penal, que dispõe sobre as sanções pecuniárias decorrentes do descumprimen-
to das obrigações tributárias acessórias, tais idéias acabam impondo-se como prin-
cípio que ilumina a legislação tributária, a partir da idéia de retroatividade da lei
sancionatória mais benigna ao infrator.
É em conformidade com o princípio da retroatividade da lei sancionatória
mais benigna que deve ser interpretado o art. 106, II, do CTN, que, expressamente
determina a aplicação retroativa da lei que:

a) deixe de definir a conduta como infração;


b) deixe de tratá-la como contrária a qualquer exigência de ação ou omissão,
desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de
pagamento de tributo;
c) lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo
da sua prática.

A despeito da aparente restrição da retroatividade apenas aos casos previstos


no art. 106, a lei que impõe sanções tributárias mais favoráveis ao infrator, em qual-
quer caso, irá prevalecer, o que se extrai não só pela abertura do comando previs-
to na alínea c do comentado dispositivo legal, mas, principalmente, da influência
do já citado princípio constitucional do art. 5º, LX, até mesmo diante da artificiali-
dade da distinção entre o Direito Penal Tributário e o Direito Tributário Penal.69
Deste modo, qualquer modificação na lei tributária sancionatória, desde que seja
mais favorável ao acusado, deve ser aplicada retroativamente.
Uma questão nem sempre simples de resolver é saber se uma lei que traga
aspectos mais favoráveis e outros mais gravosos ao acusado, deve retroagir. A res-
posta a essa indagação não deve ser dada pela comparação de artigos da lei poste-
rior, com os da lei mais nova, mas, ao contrário, surge da atividade de “confrontar
ambas em sua complexidade, formando um conjunto harmônico e fazendo impe-
rar o critério da razoabilidade”.70 O resultado desse exame não pode se traduzir na

68 GARCÍA BELSUNCE, Horácio A. Derecho Tributario Penal. Buenos Aires: Depalma, 1985, p. 108;
ALTAMIRANO, Alejandro. “As Garantias Constitucionais no Processo Penal Tributário”. In: FERRAZ,
Roberto (Coord.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 169.
69 Sobre a inexistência da distinção: GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho Financiero. 7. ed.
Atualizada por Susana Camila Navarrine e Rubén Oscar Asorey. Buenos Aires: Depalma, 2001, p. 682;
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da Sanção Tributária. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 11-12.
70 ALTAMIRANO, Alejandro. “As Garantias Constitucionais no Processo Penal Tributário”, p. 171.

158
Temas de Direito Constitucional Tributário

extração dos “melhores momentos” de cada uma das normas, mas na opção pela
equação legislativa mais favorável ao acusado, uma vez que o legislador pode ter
considerado o abrandamento de determinada situação em função do agravamento
de outra, em conformação que não pode ser quebrada pelo aplicador.
De acordo com a redação dada ao artigo 106, II, a retroatividade da lei sancio-
natória mais benigna não se dá em relação a atos já definitivamente julgados. Ato
não definitivamente julgado é aquele que ainda pode ser questionado, seja na esfe-
ra administrativa, seja no âmbito judicial.71 Assim, enquanto não houver sido
extinto o direito do contribuinte propor ação para questionar a legitimidade da san-
ção, é possível a retroatividade da lei mais benigna.
A retroatividade aplica-se tanto às multas de ofício, impostas pelo descumpri-
mento de obrigações acessórias, quanto à multa de mora, uma vez que o art. 106,
II, não faz distinção quanto à natureza da sanção que será atingida pela lei mais
benigna.72 Porém, por não se tratarem de sanção, os juros de mora e a correção
monetária não são atingidos pela retroação benigna.
Assim como ocorre no Direito Penal, não se aplica a retroatividade da lei tri-
butária penal mais benigna quando a lei que impôs a sanção mais severa tinha
vigência temporária ou excepcional, uma vez que estas normas são ditadas como
exceção, subordinadas a situações de política legislativa muito particulares.73

3.3) As Leis que Estabelecem Novos Critérios de Apuração e Fiscalização


do Tributo

Coerentemente com o princípio da irretroatividade tributária, o art. 144 do


CTN estabelece que o lançamento se rege pela lei vigente na data da ocorrência do
fato gerador, demonstrando que esse procedimento, se constitui o crédito tributá-
rio, ao mesmo tempo apenas declara a existência de uma obrigação tributária que
lhe é anterior.
No entanto, se em relação aos aspectos materiais, assim entendidos aqueles
vinculados aos elementos da obrigação tributária (fato gerador, base de cálculo, alí-
quota, sujeito passivo e imposição de penalidades), o lançamento se reporta à legis-
lação do tempo do nascimento do tributo, no que tange aos aspectos procedimen-

71 MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. V. II (Artigos 96 a 138). São
Paulo: Atlas, 2004. No mesmo sentido: STF, 2ª Turma, RE 95.900/BA, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJU
08/03/85, p. 2.602; STJ, 1ª Seção, EREsp nº 184.642/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 16/08/99, p. 41,
onde o tribunal entendeu que o questionamento pode se dar inclusive em sede de embargos do devedor.
72 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Notas de Atualização de BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário
Brasileiro, p. 194. No mesmo sentido: STF, 2ª Turma, RE nº 98.393-RJ, Rel. Min. Décio Miranda, DJU
17/08/84, p. 12.911; STJ, 1ª Seção, EREsp nº 184.642/SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 16/08/99, p. 41.
73 ALTAMIRANO, Alejandro. “As Garantias Constitucionais no Processo Penal Tributário”, p. 173. No
mesmo sentido: STF, 1ª Turma, RE nº 71.947-GB, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJU 19/11/71, p. 6.482.

159
Ricardo Lodi Ribeiro

tais, de acordo com o princípio processual tempus regit actus, é a lei do tempo do
lançamento que será aplicada, retroagindo à data da ocorrência do fato gerador.
Essa retroatividade quanto aos aspectos procedimentais, contando que se limi-
te a esses, não viola o art. 150, III, a, da Constituição Federal, uma vez que não estão
sendo alterados quaisquer dos elementos necessários a conferir previsibilidade em
relação a que evento vai suscitar a obrigação de pagar, nem ao valor a ser pago, tam-
pouco a quem vai pagar. Tais normas procedimentais e processuais, não se relacio-
nando com a capacidade contributiva definida pela hipótese de incidência, podem
ter efeitos retroativos e até serem aplicadas analogicamente.74
A fim de evitar a discussão sobre quais seriam os aspectos procedimentais em
relação aos quais pode haver retroatividade da lei de regência, esclarece o § 1º do
art. 144 do CTN, que são os relacionados com:

a) novos critérios de apuração e fiscalização do tributo;


b) ampliação dos poderes de investigação das autoridades administrativas;
c) outorga de maiores garantias ao crédito tributário, exceto para o efeito de
atribuir responsabilidade tributária a terceiro.

A ressalva final, de exclusão da retroatividade em relação à fixação de novo


critério de responsabilidade de terceiros é fundamental para a garantia da seguran-
ça jurídica do responsável tributário, para quem, a criação de causa de deslocamen-
to de sujeição passiva após o fato gerador não é mero aspecto procedimental, mas a
criação de uma nova obrigação de pagar tributo, o que, por evidência, deve ser defi-
nido por ocasião da ocorrência do fato imponível.
Estabelecida a obrigação de pagar o tributo com base em legislação vigente
no tempo em que ocorreu o fato gerador, não há que se buscar agasalho no prin-
cípio da irretroatividade para proteger a expectativa do contribuinte em relação
à impossibilidade ou dificuldade fática da Fazenda Pública investigar o não-
pagamento do tributo, uma vez que essa confiança não se baseia na boa-fé, esteio
da tutela da segurança jurídica. Assim, se o contribuinte confiou na proteção do
sigilo bancário para ocultar a sonegação de receitas, não há que se aplicar a irre-
troatividade para conferir efeitos prospectivos ao art. 6º da LC nº 105/01,75 que
o flexibilizou em relação ao fisco, e à Lei nº 10.174/01, que dando nova redação

74 FANTOZZI, Augusto. Diritto Tributario 2. ed. Torino: UTET, 1998, p. 131; TOSI, Lori. “El Principio de
Efectividad: Aspectos Subjetivos y Objetivos de la Capacidad Contributiva”, p. 317.
75 “Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclu-
sive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrati-
vo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela
autoridade administrativa competente.”

160
Temas de Direito Constitucional Tributário

ao art. 11 da Lei nº 9.311/96,76 autorizou o cruzamento de informações da CPMF


com os demais tributos federais.77
É que, como considerou o STJ, não há direito adquirido a se esconder do fisco!78

76 “Art. 11, § 3º. A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o
sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo
tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lança-
mento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o dis-
posto no art. 42 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores.”
77 STJ, 1ª Seção, EREsp nº 726.778-PR, Rel. Min. Castro Meira, DJU 05/03/07, p. 255, cuja ementa se trans-
creve em parte: “3. A Lei 10.174/2001 revogou o § 3º do artigo 11 da Lei nº 9.311/91, permitindo a uti-
lização das informações prestadas para a instauração de procedimento administrativo-fiscal, a fim de
possibilitar a cobrança de eventuais créditos tributários referentes a outros tributos. 4. Outra alteração
legislativa, dispondo sobre a possibilidade de sigilo bancário, foi veiculada pela o artigo 6º da Lei
Complementar 105/2001. 5. O artigo 144, § 1º, do CTN prevê que as normas tributárias procedimentais
ou formais têm aplicação imediata, ao contrário daquelas de natureza material, que somente alcançariam
fatos geradores ocorridos durante a sua vigência. 6. Os dispositivos que autorizam a utilização de dados
da CPMF pelo Fisco para apuração de eventuais créditos tributários referentes a outros tributos são nor-
mas procedimentais e, por essa razão, não se submetem ao princípio da irretroatividade das leis, ou seja,
incidem de imediato, ainda que relativas a fato gerador ocorrido antes de sua entrada em vigor.
Precedentes.”
78 STJ, 1ª Turma, MC nº 7.513-SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJU 30/08/04, p. 199, cuja ementa se transcreve em
parte: “8. A exegese do art. 144, § 1º, do Código Tributário Nacional, considerada a natureza formal da
norma que permite o cruzamento de dados referentes à arrecadação da CPMF para fins de constituição
de crédito relativo a outros tributos, conduz à conclusão da possibilidade da aplicação dos artigos 6º da
Lei Complementar 105/2001 e 1º da Lei 10.174/2001 ao ato de lançamento de tributos cujo fato gerador
se verificou em exercício anterior à vigência dos citados diplomas legais, desde que a constituição do cré-
dito em si não esteja alcançada pela decadência. 9. Inexiste direito adquirido de obstar a fiscalização de
negócios tributários, máxime porque, enquanto não extinto o crédito tributário, a Autoridade Fiscal tem
o dever vinculativo do lançamento em correspondência ao direito de tributar da entidade estatal.”

161
X
O Princípio da Proteção à Confiança
Legítima No Direito Tributário
Sumário: 1) O Princípio da Proteção à Confiança Legítima no Direito Tributário. 2) A Pro-
teção à confiança e a Mudança na Interpretação Administrativa. 3) A Proteção à Confiança
nos Atos Administrativos sem Fundamento Legal e na Valoração dos Fatos. 3.1) A Proteção
à Confiança e os Benefícios Fiscais de ICMS sem Convênio. 4) A Proteção à Confiança e o
Controle da Constitucionalidade da Lei Tributária. 5) Os Efeitos Prospectivos de Decisão
sobre a Constitucionalidade de Lei Tributária.

1) O Princípio da Proteção à Confiança Legítima no Direito


Tributário

Com a crise do positivismo formalista no Estado Social e Democrático de


Direito, restou fortalecida a consciência de que a norma não se resume ao seu texto,
só se completando com a sua concreção em relação ao âmbito revelado pela reali-
dade social que pretende regular.1 Em conseqüência, a previsão da certeza no plano
abstrato da lei, garantida pelos princípios da legalidade e da irretroatividade pres-
tam limitada tutela ao valor da segurança do cidadão se for desprezada a sua dimen-
são subjetiva, extraída das expectativas criadas pela interpretação que a norma vem
recebendo no plano da sua aplicação aos casos concretos.
A proteção à confiança quanto à certeza e ao sentido das normas jurídicas
surge em meio à tensão entre flexibilidade e estabilidade, sendo resultado da pon-
deração entre dois pressupostos antagônicos: a necessidade de garantir a conserva-
ção de estados de posse uma vez obtidos em face de modificações jurídicas poste-
riores (segurança jurídica subjetiva como proteção à confiança) e o dever do Estado
eliminar as posições antijurídicas (segurança jurídica objetiva como legalidade).
Tratando-se de um conflito interno entre dois princípios inspirados no valor da
segurança jurídica, este irá presidir os critérios de decisão sobre qual deles deve
prevalecer no caso concreto, juntamente com os outros interesses tutelados pela
norma violada pelo ato ilegal.
Por isso, tendo a natureza de princípio, e não de regra, o que viabiliza sua pre-
valência sobre a legalidade como resultado de um juízo de ponderação, a proteção
à confiança legítima não tem atuação uniforme, apresentando-se de modo muito
diferente de acordo com o âmbito da norma, e variando, no caso particular, con-

1 Sobre o tema, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte – Legalidade, Não-
surpresa e Proteção à Confiança Legítima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 63 e segs.

163
Ricardo Lodi Ribeiro

forme os atos jurídicos em que se funda, a dignidade da confiança a ser protegida,


a boa-fé do administrado, os fundamentos e o peso a favor da modificação, as con-
seqüências jurídicas da alteração etc.2
De acordo com Hartmut Maurer, são requisitos para o reconhecimento do
princípio da proteção à confiança legítima:

a) que o cidadão tenha confiado na existência do ato administrativo;


b) que sua confiança seja digna de proteção sob a ponderação com o interesse
público em retratação.

Diante desses pressupostos, não há que se falar em proteção, se o ato adminis-


trativo ilegal foi praticado por erro, ameaça ou corrupção do agente público, ou se
a concessão se baseou em informações prestadas pelo administrado de forma falsa
ou incompleta, ainda que culposamente. Também não se aplica o princípio se o
administrado conhecia a antijuridicidade do ato, ou se o seu desconhecimento deri-
va de culpa grave,3 pois a boa-fé pressupõe a lealdade e a lisura na palavra empe-
nhada pela Administração e pelo administrado.4
Como a doutrina e jurisprudência alemães já destacaram com fulcro na Teoria
da Evidência, a boa-fé do administrado, baseada na falta de conhecimento quanto
à ilegalidade do ato, é afastada quando é manifesto e grave o vício que macula o ato
administrativo.5 É claro que para a verificação da evidência quanto à flagrante ile-
gitimidade dos benefícios estatais, é indispensável o exame do caso concreto, de
acordo com a natureza dos direitos e dos seus titulares. A ilegalidade na concessão
de uma vantagem pecuniária nos vencimentos de um servidor público, ou na apo-
sentadoria de um idoso, não é tão evidente para o seu titular quanto uma isenção
fiscal concedida sem lei para um empreendimento empresarial milionário, assesso-
rado por uma estrutura jurídica capaz de apontar com facilidade o vício flagrante.

2 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão, Trad. Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, pp. 68-69.
3 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão, pp. 72-73.
4 SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito
Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos:
o Prazo Decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99)”. Revista
de Direito Administrativo 237: 273.
5 SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança)...”, p. 300, onde
o autor gaúcho critica a adoção da teoria por sua falta de precisão em relação à evidência: “O Critério da
evidência não é, porém, muito preciso. Evidente para quem? Para o jurista? Para qualquer do povo? O
standard geralmente admitido é o da pessoa atenta e de bom senso. Mas a dificuldade também não pára
aí: o que se deverá entender por vício grave? Tem-se afirmado que será o vício formal ou substancial
absolutamente inconciliável com a ordem jurídica. Mas, já se disse, a gravidade, per se, não é suficiente
para conduzir à nulidade. Deverá estar associada à evidência.” A despeito dos argumentos apresentados,
deve-se considerar que, como destacado no texto, a evidência vai depender das circunstâncias reveladas
pelo caso concreto.

164
Temas de Direito Constitucional Tributário

A negação da tutela da proteção à confiança legítima aos casos de evidente ile-


gitimidade do direito concedido ao particular é fruto da sua natureza de princípio,
a ser ponderado, de acordo com a realidade imanente, tendo como outro pólo da
balança o grau de contrariedade ao ordenamento jurídico que a situação concreta
apresenta. Do contrário, a considerar como absoluta a confiança do cidadão em
relação a qualquer ato emanado do Estado, não estaríamos diante de um juízo de
ponderação, mas com o puro e simples afastamento da legalidade, abrindo as por-
tas para todo o tipo de manipulação do interesse público por meio das quase sem-
pre invisíveis teias de relações de grupos de interesse econômico com agentes
públicos. Trata-se, portanto, da tutela da boa-fé subjetiva do cidadão que confiou
em uma situação gerada pelo Poder Público, que seja digna de confiança.6
Deste modo, no que tange à caracterização da credibilidade pelo administra-
do na legitimidade do ato administrativo, embora a comprovação de conluio entre
a autoridade e o cidadão seja suficiente para o afastamento da tutela à confiança
legítima, sendo, em regra, indispensável a este, não se pode desconsiderar que, em
casos de flagrante e grave ilegitimidade do direito concedido, não há que se exigir
esta prova. É que quando a ilegalidade é evidente, a crença do particular na valida-
de do ato estatal é inexistente ou fruto de sua culpa grave, a não merecer a prote-
ção. Comprovado o conluio, o ato não produzirá qualquer efeito. Inexistindo essa
dilação probatória, a evidência da ilegitimidade do ato conspirará contra a prote-
ção à confiança de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
Também fica muito fragilizado o direito do particular, em contraposição à
legalidade, quando o ato é emanado de autoridade ou órgão que manifestamente
não tem o poder de decisão sobre a matéria ou esta não é passível de ser regulada
pela Administração,7 como ocorre na concessão pelo Poder Executivo de direitos
cuja distribuição social é subordinada à reserva legal.

6 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo – Direitos Fundamentais, Democracia e


Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 181-182: “Tendo agido subjetivamente de boa-
fé (boa-fé subjetiva), confiando legitimamente em uma situação digna de confiança gerada pelo Poder
Público (standard de comportamento leal e confiável médio que se aproxima da boa-fé objetiva) e tendo
orientado efetivamente a sua conduta em conformidade com essas premissas, não é justo, em maioria dos
casos, que essa confiança legítima do particular seja frustrada por uma mudança de posição do Estado –
seja ela decorrente da invalidação de um ato ilegal ou da declaração da inconstitucionalidade de uma lei.”
7 SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança)...”, pp. 298-299,
onde o autor utiliza-se da teoria dos atos inexistentes da doutrina administrativista francesa, com apoio
em René Chapus (Droit Administratif General. Paris: Montchrestien, 1993, v. I, p. 807), que considera
inexistentes os atos: “a) emanados de órgãos sem existência legal; b) manifestamente insuscetíveis de
serem referidos a um poder detido pela Administração; c) cujo autor não tem poder de decisão; d) que
impliquem invasão na competência judiciária; e) de ‘nommination pour ordre’, ou seja, atos de nomea-
ção que se destinam, na verdade, não a prover determinado cargo público mas a permitir que o interes-
sado obtenha benefícios pessoais com tal nomeação, por lhe ensejar acesso a outra posição ou outra van-
tagens.” Independentemente da polêmica distinção entre atos inexistentes e anuláveis (cf.: VEDEL,
Georges e DELVOLVÉ, Pierre. Droit Administratif. Tomo I. 12. ed. Paris: Presses Universitaires de Fran-

165
Ricardo Lodi Ribeiro

Por outro lado, no juízo de ponderação com a legalidade, a dignidade da pro-


teção é reforçada quando o beneficiário consumiu as prestações patrimoniais, como
salários, pensões, ou as recebeu em contrapartida ao cumprimento de obrigações,
como a construção de fábricas. Nessa avaliação entre os interesses contrapostos, se
recomenda, em geral, que as prestações passadas não sejam restituídas, em nome da
dignidade da proteção à confiança, mas que não se prossiga com o seu pagamento
ou gozo, em favor da legalidade.8
A manutenção das situações contrárias ao ordenamento em nome da seguran-
ça jurídica deriva da ação do tempo em relação às posições constituídas, fazendo
com que, muitas vezes, o que era contrário à justiça por ocasião do nascimento do
direito subjetivo, consolide-se a partir da sua adequação à realidade fática, que a ela
se conforma. Nesses casos, ainda que injusto na origem, o direito deve ser mantido
como medida que melhor atende à justiça material no presente.9
Cumpre observar ainda que, nesse juízo de ponderação, o passar do tempo
caminha em direção à manutenção do ato ilegal. Assim, quanto mais se consolida
a situação jurídica ilegal, mais se fortalece a confiança do cidadão quanto à sua lega-
lidade.10 Esse movimento do pêndulo em direção à proteção à confiança vai até a
decadência do direito de anular o ato, que encerrando a ponderação, consolida
definitivamente a validade do ato.
Em relação à aplicação do princípio da proteção à confiança legítima ao Direito
Tributário, as mesmas considerações até aqui expedidas são inteiramente válidas, uma
vez que não há qualquer peculiaridade metodológica neste ramo que amplie ou redu-
za a aplicação do valor da segurança jurídica sobre o prisma subjetivo. O que pode
merecer uma abordagem especial nessa seara são os interesses envolvidos na pondera-
ção entre a proteção à confiança legítima do contribuinte e a legalidade tributária.

2) A Proteção à confiança e a Mudança na Interpretação


Administrativa
O legislador tributário brasileiro concebeu o art. 146 do CTN,11 que protege o
contribuinte contra a mudança de critério jurídico adotado pela Administração

ce, 1992), é forçoso reconhecer que tais situações revelam a evidência e gravidade da ilegitimidade dos
atos, critérios que não podem deixar de ser considerados no exame da boa-fé do administrado.
8 MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão, p. 73.
9 SILVA, Almiro do Couto e. “Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança Jurídica
no Estado de Direito Contemporâneo”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul
27: 14, 2004.
10 SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança)...”, p. 306.
11 “Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judi-
cial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somen-
te pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posterior-
mente à sua introdução.”

166
Temas de Direito Constitucional Tributário

Tributária que envolva o agravamento da situação daquele. O dispositivo se refere


à manutenção da interpretação administrativa da lei tributária que fixa um deter-
minado entendimento favorável ao contribuinte, dentre os sentidos possíveis ofe-
recidos pela literalidade da lei. Se a Administração identifica como correta uma
determinada interpretação da norma e depois verifica que esta não é a mais ade-
quada ao Direito, tem o poder-dever de, em nome de sua vinculação com a juridi-
cidade e com a legalidade, promover a alteração do seu posicionamento. Porém, em
nome da proteção à confiança legítima, deve resguardar o direito do contribuinte
em relação aos lançamentos já realizados.12
Embora o referido dispositivo legal se refira apenas à irreversibilidade do lan-
çamento já efetuado, a tutela da segurança do contribuinte não depende de ter
havido a constituição do crédito tributário, se aplicando a qualquer posicionamen-
to da Administração que promova a nova interpretação da norma fiscal em relação
a fatos geradores já praticados,13 incluindo a concessão de isenção, anistia, remis-
são e moratória.14 Assim, a proteção se aplica também aos processos de consulta,15
aos pareceres normativos, aos atos declaratórios ou a qualquer outra manifestação
administrativa que adote determinado critério de interpretação da norma, seja em
relação ao sujeito passivo, seja em relação a outro contribuinte que esteja em situa-
ção legal e fática idêntica.
Portanto, se o tratamento fiscal mais favorável ao contribuinte advém da lei,
por meio da interpretação extraída de um dos sentidos oferecidos pelo seu próprio
texto, deve ser aplicada a regra do art. 146 do CTN que, por já ser fruto de um juízo
de ponderação pelo legislador entre a segurança e a legalidade, não comporta nova
composição pelo aplicador, não tendo este outra opção, a não ser a prevalência da

12 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”. In: AMATUCCI, Andrea (org.), Tratado de
Derecho Tributario, Bogotá: Temis, 2001, p. 351: “A la hora de aplicar es necesario considerar, como
regla general, que se debe decidir de manera que no se incline em forma desfavorable al contribuyente,
según los criterios de interpretación que han guiado su propio comportamiento.”
13 Pela extensão da proteção do contribuinte contra a mudança de critério adotado pela Administração
para além do lançamento: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Notas de Atualização de BALEEIRO,
Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 812: “Mas o ideal – por razões de segurança jurídica e equidade – seria que
estendêssemos à Administração, o princípio da irretroatividade de forma mais ampla (e não apenas
quando já efetuado o lançamento tributário). Trata-se de erro grave limitar o princípio da irretroativi-
dade às leis, como alerta Klaus Tipke, na Alemanha, e, em geral, a Corte Suprema daquele país”. No
mesmo sentido: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001, p. 660; AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 354; e MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. V. III
(Artigos 139 a 218). São Paulo: Atlas, 2005, p. 126.
14 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. “Revisão da Legalidade do Lançamento Tributário e a Coisa Julgada
Administrativa em Matéria Fiscal”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais
do Direito Tributário. Vol. 9. São Paulo: Dialética, 2005, p. 34.
15 Sobre a vinculação da Administração ao resultado da consulta fiscal: STF, 2ª Turma, RE nº 131.741, Rel.
Min. Marco Aurélio, DJU 24/05/96, p. 243.

167
Ricardo Lodi Ribeiro

proteção da situação mais benigna, salvo nos casos de comprovação de conluio


entre a autoridade que proferiu a decisão e o seu beneficiário.
Note-se que essa ponderação legal não fragiliza a legalidade, pois tanto a solução
anteriormente adotada pela autoridade administrativa (mais favorável ao contribuin-
te), quanto aquela posteriormente aplicada (mais favorável ao fisco), são contempla-
das pela literalidade da lei16 Nesse caso, existe norma emanada da fonte constitucio-
nalmente competente para a concessão do tratamento fiscal benéfico, havendo apenas
uma controvérsia quanto à interpretação do seu texto, cuja imprecisão lingüística sus-
cita dúvidas sobre a coordenação do tipo legal aos dados da realidade relativos a deter-
minado contribuinte. Em razão de tais dúvidas, a Administração deve procurar redu-
zir as imprecisões conceituais, estabelecendo certeza à situação concreta.
No campo de aplicação do mencionado artigo, a boa-fé do contribuinte se
limita à inexistência de conluio entre ele e a autoridade que detém o poder de deci-
são, uma vez que, tratando-se de matéria submetida à pluralidade de soluções ofe-
recidas pela própria norma, seria inexigível ao contribuinte o dever de criticar a
escolha pelo agente estatal da melhor interpretação.
A proteção contra a alteração do critério de interpretação administrativa per-
siste ainda que a jurisprudência dos Tribunais Superiores seja alterada em relação à
matéria,17 salvo no caso de decisão do STF no âmbito do controle concentrado,
dotada de efeitos vinculantes e eficácia erga omnes.18
Tratando-se de dispositivo que tutela a confiança do contribuinte, nenhum
óbice existe quanto à retroatividade de interpretação mais benéfica, pois nesse caso
a restauração da legalidade não encontra oposição na segurança jurídica. Apontando
os dois interesses para o mesmo lado, não há que se falar em ponderação.

3) A Proteção à Confiança nos Atos Administrativos sem


Fundamento Legal e na Valoração dos Fatos

Como vimos, o princípio da proteção à confiança legítima vai além da tutela


oferecida ao contribuinte pelo art. 146 do CTN quanto à mudança de critério de

16 Sobre os sentidos possíveis da literalidade da lei como limite da interpretação: LARENZ, Karl.
Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1997, p. 501; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003, p. 97.
17 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 352; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de
Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 571. Nesse sentido o art. 176, 1, do Código Tributário Alemão de 1977:
“Na anulação ou alteração de ato de lançamento notificado, não pode ser considerado em detrimento do
contribuinte o fato de: 1. a Corte Constitucional Federal declarar a nulidade de uma lei, em que até então
se baseava o lançamento; 2. um tribunal superior federal não aplicar uma norma em que até então se basea-
va o lançamento, por considerá-la inconstitucional; ter-se alterado a jurisprudência de um tribunal supe-
rior federal a que havia sido aplicada pela autoridade fiscal nos lançamentos anteriores.”
18 Vide item 4.

168
Temas de Direito Constitucional Tributário

interpretação da norma, protegendo o seu direito em relação a qualquer posiciona-


mento da Administração Pública que lhe traga benefícios, mesmo que fora dos sen-
tidos possíveis oferecidos pela literalidade do texto legal, ou baseados em erros de
fato não provocados pelo sujeito passivo. Porém nessa seara, não se aplica mais a
aludida regra legal, que, como tal, não admite ponderação, já sendo o próprio resul-
tado desta.
A esses últimos casos não protegidos pelo art. 146 do CTN aplica-se a prote-
ção à confiança legítima com toda a sua carga abstrata derivada da sua natureza de
princípio. Por isso, precisará ser concretizada a partir da sua ponderação com o
princípio da legalidade ou com o outro interesse agasalhado pela norma legal cuja
aplicação a Administração pretende restabelecer. Assim, quando o direito é conce-
dido ao contribuinte não por uma interpretação, que embora equivocada poderia
ser extraída das possibilidades oferecidas pela literalidade do texto legal, mas por
uma decisão que não encontra amparo legal em qualquer das soluções hermenêu-
ticas oferecidas por lei, não se aplica a regra do art. 146 do CTN,19 mas diretamen-
te o princípio da proteção à confiança.
Nessa última hipótese, são válidas as mesmas considerações já expedidas em
relação à dignidade da proteção e à boa-fé do administrado. Em conseqüência, não
se aplica o dito princípio quando a posição anterior da Administração (que confe-
ria direitos ao contribuinte), foi obtida por dolo ou culpa grave deste. Também não
há que se falar em proteção à confiança quando o contribuinte conhecia os vícios
da decisão administrativa, ou deveria conhecê-los, incidindo a Teoria da
Aparência, que afasta a aplicação da proteção quando a evidência da ilegitimidade
da decisão desqualifica a boa-fé do contribuinte, estabelecendo o predomínio da
legalidade sobre a segurança jurídica.
Nestes casos não abrigados pelo art. 146 do CTN, a solução da colisão entre a
proteção à confiança legítima do contribuinte (que acreditou gozar de um benefí-
cio emanado do Estado), e o princípio da legalidade (que exige lei específica para a
concessão dos benefícios), só será conhecida pela ponderação no caso concreto,
onde serão de fundamental importância o exame da dignidade da confiança, a par-
tir da mensuração das conseqüências jurídicas da alteração em contrapartida aos
fundamentos, e o peso a favor da modificação.
A dignidade da confiança vai se revelar pelos prejuízos advindos para o con-
tribuinte em caso de perda de incentivos fiscais relacionados a investimentos finan-
ceiros por ele já efetivados. Assim, uma maior proteção se dará aos benefícios fis-
cais condicionados, onde a dignidade da proteção se faz mais intensa, em razão das

19 De acordo com o texto quanto à distinção entre a mudança de critério jurídico adotado pela Adminis-
tração, dentre as possibilidades oferecidas pela letra da lei (merecedora da tutela do art. 146 do CTN), e
o erro de direito a partir da completa desconsideração da norma (que não merece a tutela do dispositi-
vo legal), vide: MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. V. III, p. 128.

169
Ricardo Lodi Ribeiro

obrigações que o contribuinte teve que cumprir para ter direito ao favor legislati-
vo. É que estes possuem uma natureza bilateral que não pode ser desconsiderada.20
Não seria lícito que a Administração atraísse o particular para que investisse em
projeto onde está presente também o interesse público e, num momento seguinte,
cumpridas as condições pelo particular, considerasse ilegítima a concessão do favor
fiscal, motivador da atuação do contribuinte.
Sob outro prisma, é necessário perquirir se a manutenção do ato ilegal não
brindará o contribuinte em questão com uma vantagem fiscal que irá desequilibrar
a livre concorrência no mercado em que atua, em razão de os demais integrantes
deste não possuírem o mesmo tratamento favorecido.
Nessa seara, é imprescindível também o exame da boa-fé do contribuinte, que
não mais se esgota, como nos casos tutelados pelo art. 146 do CTN, na ausência de
conluio, mas exige ainda o desconhecimento pelo sujeito passivo dos vícios conti-
dos no posicionamento fazendário. Aqui, embora se presuma a boa-fé do contri-
buinte, a presunção é ilidida pelo seu conhecimento quanto à ilegalidade da con-
cessão ou à ausência dos requisitos legais no caso concreto, bem como pela culpa
grave quanto ao desconhecimento da contrariedade ao Direito no deferimento do
privilégio. Embora correta a idéia de que a presunção da boa-fé reside no desco-
nhecimento do Direito Tributário pela esmagadora maioria dos contribuintes, por
outro lado, é preciso ter a cautela de pesquisar o âmbito da norma e as condições
subjetivas, status social e a cultura do seu destinatário, não se admitindo a aplica-
ção subsuntiva do standard do homem médio extraído do plano ideal.21
Deste modo, presume-se que os benefícios concedidos a pessoas físicas e
pequenas empresas, que quase sempre não têm condições para avaliar o quadro
jurídico aplicável, geram uma crença maior na sua legitimidade por parte dos seus

20 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 350.


21 Vale transcrever a lição de Judith Martins-Costa que, diferenciando os conceitos de boa-fé objetiva e boa
fé subjetiva, identifica nas duas a presença de dados extraídos da realidade concreta. Ainda que a auto-
ra comente o conceito de boa-fé objetiva no Direito Civil, a inserção da lição num contexto onde se exa-
mina sua feição subjetiva é oportuna por revelar que, em qualquer dos seus contextos, a boa-fé não pode
prescindir do exame quanto aos aspectos subjetivos do agente: “A expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota
‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito
(sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘-
subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da
relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-
fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem. Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer sig-
nificar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão,
de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos paí-
ses da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada
pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com
honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os
fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma
aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé
no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 411).

170
Temas de Direito Constitucional Tributário

destinatários. Ao revés, um benefício fiscal concedido a um grande empreendi-


mento empresarial, onde os interessados são dotados de toda a assessoria jurídica
capaz de traçar um perfeito quadro legal a respeito dos aspectos tributários da ope-
ração, dificilmente poderá se caracterizar como merecedor da proteção à confian-
ça. Afinal, nenhum grupo econômico irá investir vultosas quantias sem um estudo
a respeito dos aspectos fiscais da operação. Dado o peso da carga tributária na eco-
nomia atual, a contratação de um empreendimento de grande porte sem uma asses-
soria tributária revela um grau de negligência comparável à ausência de engenhei-
ros competentes na realização das obras do projeto, o que, por si só, já revela a culpa
grave do contribuinte.
Nesses casos, o contribuinte sabe, ou deveria saber, dadas as suas condições
subjetivas, que a concessão do favor é ilegal, mas mesmo assim, utiliza o benefício,
sabedor que dificilmente alguém o questionará, dada a nossa falta de cidadania fis-
cal, onde todos se preocupam apenas em amealhar benesses estatais sem se preocu-
par com o seu custo coletivo. Diante desse quadro, mesmo que a hipótese infima-
mente provável ocorra e alguém venha questionar o presente governamental, o
contribuinte buscará a tutela do princípio da confiança para salvar a situação.
Obviamente, dada a natureza plural que a segurança jurídica ganha na sociedade
de risco, tal conduta jamais será protegida constitucionalmente.
Por isso é indispensável o exame da realidade imanente, onde é preciso ter em
conta que a ambivalência característica da sociedade de risco faz com que os pode-
rosos se apropriem do discurso a favor da consagração dos direitos fundamentais
para legitimar a sua esperteza e astúcia e assim permanecer, como sempre, auferin-
do dádivas estatais espúrias, em detrimento da grande massa que nada recebe do
poder público, verdadeira destinatária das principais preocupações constitucionais.
A resposta à solução conservadora para essa luta de definições quanto aos riscos
sociais é dar aos direitos fundamentais uma dimensão plural, aberta à realidade do
caso concreto e capaz de superar a retórica pseudo-liberal, a fim de atingir os obje-
tivos emancipatórios do Estado Social e Democrático de Direito.
A despeito disso, é preciso, por outro lado, não olvidar que todas essas presun-
ções são relativas, podendo ser ilididas de acordo com as circunstâncias do caso
concreto.
Repita-se, devem receber essa solução ponderada os benefícios fiscais confe-
ridos sem a devida autorização legal. Não estamos falando daqueles direitos que são
derivados de uma determinada interpretação da lei, extraída de um dos seus senti-
dos possíveis, pois aqui, como vimos, deve-se privilegiar a proteção do direito do
contribuinte, salvo nos casos de comprovação de conluio entre esse e a autoridade
administrativa. Estamos falando de incentivos fiscais deferidos por autoridade que
não tem competência para a sua concessão, bem como do deferimento do favor
àqueles que não cumprem os requisitos legais. É cada vez mais comum a utilização

171
Ricardo Lodi Ribeiro

de decretos para a concessão de isenção e outros incentivos fiscais que, segundo o


art. 150, § 6º, da Constituição, só podem ser deferidos por lei específica.
Quanto aos direitos que a Administração Pública confere ao contribuinte por
erro na apreciação dos fatos, desde que o equívoco não tenha sido provocado, ainda
que culposamente, pelo próprio sujeito passivo, há que considerar também os efei-
tos da confiança deste na sua legitimidade, a partir da ponderação entre da segu-
rança jurídica e a legalidade.22 Porém, quando o erro se refere à inobservância dos
requisitos legais para a concessão de moratória, parcelamento, remissão, isenção e
anistia, a ponderação também já foi feita pelo CTN, com a anulação da decisão con-
cessiva. Contudo, mesmo nesses casos, a proteção à confiança é revelada pelo exau-
rimento da possibilidade de anulação com o transcurso do prazo qüinqüenal de
decadência para o lançamento desses tributos, quando o contribuinte estiver de
boa-fé, ou seja, quando ignorava o descumprimento dos requisitos legais, o que se
presume.23

3.1) A Proteção à Confiança e os Benefícios Fiscais de ICMS


sem Convênio

Da mesma forma que a epidêmica isenção por decreto também prolifera em


nossa legislação a concessão de benefícios fiscais em matéria de ICMS sem a apro-
vação de convênio do CONFAZ, em violação à determinação do art. 155, § 2º, XII,
g, da Constituição e da LC nº 24/75. Aqui, um outro interesse deve ser considera-
do no exame da matéria, além da ilegalidade na concessão do benefício sem apro-
vação em convênio. Trata-se do princípio da conduta amistosa entre os entes fede-
rativos, a inibir a guerra fiscal que sangra os cofres de todos os Estados em favor das
grandes empresas, que passam a promover verdadeiros leilões em busca da melhor
oferta entre as combalidas fazendas estaduais, que enxergam nos novos investi-
mentos a tábua de salvação para a sua desoladora situação, ainda que a custa de
incentivos fiscais desproporcionais aos efeitos positivos do novo empreendimento.
Como é de todos sabido, a presente guerra fiscal no ICMS chegou a níveis que
ameaçam o Pacto Federativo com a concessão de benefícios fiscais que incentivam
a fraude, a simulação e o esvaziamento da arrecadação de um Estado em benefício
de outro. Tratando-se de matéria inteiramente pacífica na jurisprudência do STF
que, em reiteradas vezes, vem declarando a inconstitucionalidade de benefícios fis-
cais conferidos por leis estaduais no ICMS, qualquer acadêmico de Direito poderia
recomendar cautela na assunção de tais compromissos. Sua desconsideração pelos

22 Para Ricardo Lobo Torres, o erro da valoração dos fatos também é, em nome da proteção à confiança legí-
tima, abrangido pela irreversibilidade do lançamento (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 575).
23 Art. 155 e seu parágrafo único, art. 155-A, § 2º, art. 172, parágrafo único, art. 179, § 2º, e art. 182, pará-
grafo único, todos do CTN.

172
Temas de Direito Constitucional Tributário

responsáveis pelos investimentos flutua entre as fronteiras da irresponsabilidade


culposa e do dolo eventual.
O que o princípio da segurança tutela é a boa-fé, a sinceridade de propósitos
e a dignidade da confiança, e não a esperteza e a malícia inerentes a um pacto entre
contribuintes e governantes que, quase sempre, foram alertados quanto à ilegitimi-
dade dos benefícios fiscais e acreditam na impunidade na coibição dessas, em detri-
mento dos demais integrantes do mercado que não tiveram acesso aos requisitos
legais encomendados, e dos demais Estados que vêem sua arrecadação esvaziada
por tais manobras. Ademais, a tutela desse tipo de isenção desarma o sistema cons-
titucional de controle da guerra fiscal, viabilizando um quadro, que atualmente se
verifica, de completo abandono da legalidade na concessão de favores fiscais, con-
cedidos atualmente por decretos individualizados e despachos em processos admi-
nistrativos, acabando por gerar lesão à moralidade administrativa, à isonomia, à
livre concorrência e à impessoalidade.
Ademais, cumpre lembrar que, falecendo competência aos Poderes
Legislativo e Executivo estaduais para decidir sobre a concessão de benefícios fis-
cais em matéria de ICMS, os atos desses entes que os veiculem não gera qualquer
direito subjetivo, como, aliás, já prevê o art. 8º da LC nº 24/75,24 que determina a
nulidade do ato, a exigência do imposto devido e ineficácia dos créditos relativos
aos benefícios fiscais sem aprovação do CONFAZ.
Por todos esses motivos, a ponderação entre a segurança do contribuinte com
a legalidade e o princípio da conduta amistosa dos entes federativos, conspira conta
a manutenção de incentivos fiscais no ICMS sem aprovação do CONFAZ, onde
dificilmente deve ser reconhecida a proteção à confiança legítima.25

4) A Proteção à Confiança e o Controle da Constitucionalidade da


Lei Tributária

No que se refere à relação entre a decisão que declara a lei tributária incons-
titucional (ou constitucional) e os atos de aplicação da referida norma pela Admi-

24 “Art. 8º. A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente: I – a nulidade do ato e
a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria; II – a exigibilidade
do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito corres-
pondente. Parágrafo único – As sanções previstas neste artigo poder-se-ão acrescer a presunção de irre-
gularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspen-
são do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos refe-
ridos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição Federal.”
25 Contra, defendendo a aplicação do princípio da proteção à confiança legítima na concessão de incenti-
vos fiscais no ICMS, sem a aprovação do CONFAZ, a partir de argumentos eruditos e instigantes:
ÁVILA, Humberto. “Benefícios Fiscais Inválidos e a Legítima Expectativa dos Contribuintes”. In:
Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, nº 13, abril-maio, 2002.
Disponível na Internet no sítio: www.direitopublico.com.br. Acesso em 05 de maio de 2005.

173
Ricardo Lodi Ribeiro

nistração Tributária, deve-se atentar para a sede e os efeitos da decisão.26 Caso seja
extraída do controle difuso da constitucionalidade, só valerá para o caso concreto,27
a menos que exista resolução do Senado Federal, nos termos do art. 52, X, da
Constituição, que retire a norma do ordenamento jurídico, em decisão, que por ter
efeitos ex nunc,28 só vale para fatos geradores ainda não ocorridos. Quanto aos fatos
geradores pretéritos, cada contribuinte deverá buscar a declaração da inconstitu-
cionalidade no caso individual, salvo o reconhecimento por parte da
Administração Tributária, como ocorre nos casos previstos no art. 19 da Lei nº
10.522/02.29
Quando a manifestação do STF, seja pela constitucionalidade ou pela incons-
titucionalidade, é exarada no controle concentrado de constitucionalidade, a deci-
são vincula os demais órgãos do Poder Judiciário, bem como a Administração
Pública, de acordo com o parágrafo único do art. 28 da Lei nº 9.868/99, e terá efei-
tos ex tunc, salvo a aludida faculdade da Corte Suprema, nos termos do art. 27 da
Lei nº 9.868/99 e do art. 11 da Lei nº 9.882/99, conferir efeitos prospectivos à deci-
são. Neste caso, o juízo de ponderação entre a proteção à confiança e a supremacia
da Constituição é todo do STF. Assim, se nossa Corte Suprema decidir que a lei de
incidência é inconstitucional, a Administração deve devolver os valores pagos por
todos os contribuintes, respeitada a prescrição qüinqüenal, exceto nos casos em que
o Tribunal determinar a produção de efeitos prospectivos para a sua decisão, na
forma prevista nos aludidos preceitos legais.
A decisão do STF (que decide pelos efeitos prospectivos da decisão que decla-
ra o tributo inconstitucional) vai retirar a norma de incidência do ordenamento
jurídico, impedindo, porém, a repetição do indébito dos tributos pagos antes da sua
edição, sendo fruto da ponderação entre a supremacia da Constituição, que afasta a
norma que a contrarie, e a segurança jurídica baseada no risco para as finanças
públicas na devolução dos tributos para todos os contribuintes.
Parte da doutrina critica a adoção de efeitos prospectivos para a decisão que
declara o tributo inconstitucional,30 sob argumento de que a norma inconstitucio-

26 Contra: TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 351, para quem, em nome da pro-
teção à confiança legítima, os tribunais superiores devem dar efeitos retroativos a declaração de incons-
titucionalidade da lei tributária e prospectivos para a declaração gravosa ao contribuinte.
27 Muito embora os efeitos da decisão judicial só tenham validade para o caso individual, não há dúvidas
de que a jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores estabelece uma certeza quanto à interpretação
da lei, podendo gerar efeitos de precedente em relação aos demais casos, a despertar a tutela da confian-
ça do contribuinte, nos termos expostos no item 5.
28 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 499; TAVARES, Ale-
xandre Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 300.
29 GRECO, Marco Aurélio e PONTES, Helenilson Cunha. Inconstitucionalidade da Lei Tributária –
Repetição do Indébito. São Paulo: Dialética, 2002, p. 35.
30 GARCIA NOVOA, César. La Devolución de Ingresos Tributarios Indebidos. Madrid: Marcial Pons,
1993, p. 138; FALCÓN Y TELLA, Ramón. “Comentario General de Jurisprudencia”. In: Revista Española
de Derecho Financiero 83: 588, 1994, apud TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 542. Entre nós:

174
Temas de Direito Constitucional Tributário

nal, sendo inexistente, não poderia gerar tributo. Porém, não se pode esquecer que
a declaração prospectiva tem justamente o condão de convalidar os atos praticados
durante o tempo em que, em nome da presunção de constitucionalidade das leis,
esta foi aplicada. Há quem defenda também que os efeitos prospectivos, sendo fun-
dados na proteção à confiança do cidadão, não poderiam ser utilizados em favor do
interesse social, como autorizado pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99,31 sendo aplicados
apenas a favor do contribuinte, mas nunca da Fazenda Pública.32 Contudo, dada a
dimensão plural que a segurança jurídica adquire na sociedade de risco, é preciso
prevenir, como destaca García de Enterría,33 a catástrofe financeira ocasionada, em
alguns casos, pela inconstitucionalidade retroativa. Afinal, não tendo o Estado
capitalista recursos próprios e nem adicionais disponíveis para a devolução de tri-
buto a todos os seus contribuintes, deverá optar entre duas alternativas sombrias:
ou estabelece a moratória no atendimento das prestações públicas essenciais para a
população, o que acaba sempre prejudicando mais os extratos de menor renda que
dependerem das ações estatais para a subsistência; ou busca novas receitas na cria-
ção ou majoração da mesma ou de outras exações, o que torna inócua a devolução.
Se todos têm direito à devolução, todos pagarão mais para custear a repetição do
indébito. Assim, o Estado devolve com uma mão e tira com outra, como aconteceu
com a criação do adicional ao FGTS pela LC nº 110/01. Tais situações acabavam por
inibir os tribunais superiores a declarar a inconstitucionalidade de tributos, o que
torna o instrumento da declaração de inconstitucionalidade com efeitos prospecti-
vos um instrumento adequado à ponderação dos interesses em jogo pelo STF.
Quanto aos conflitos entre a decisão do STF sobre a legitimidade da lei tribu-
tária e a coisa julgada inconstitucional, cumpre afastar de plano as soluções aprio-
risticamente favoráveis à retroação das decisões de inconstitucionalidade da norma
de incidência e, ao revés, pelos efeitos prospectivos da que confirma a legitimida-
de da norma. Tais posicionamentos costumam se basear no argumento de que a
tutela constitucional dos direitos individuais deve ser exercida contra o Estado.
Deste modo, este não poderia se valer de institutos como o da coisa julgada e dos
efeitos prospectivos da inconstitucionalidade da lei para deixar de reconhecer a
prevalência da tutela da confiança no caso individual.34

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. O Controle da Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar
na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 134.
31 Nesse sentido: SILVA, Almiro do Couto e. “O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança)...”,
p. 283.
32 TIPKE, Klaus “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 351.
33 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. “Justicia Constitucional. La Doctrina Prospectiva en la Declaración
de Ineficacia de las Leyes Inconstitucionales”. Revista de Direito Público 92: 14, 1989.
34 Por todos, partindo do pressuposto que o Estado não pode invocar a coisa julgada contra o cidadão: FIS-
CHER, Octavio Campos. Os Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Tributário
Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 291-292: “havendo conflito entre (i) uma decisão judicial
prejudicial ao contribuinte (que declarou constitucional ou inconstitucional uma norma), já transitada

175
Ricardo Lodi Ribeiro

Porém, essa posição desconsidera o caráter ambivalente da norma tributária,


entronizando o direito de um contribuinte como se a consagração deste não se
desse senão com o sacrifício do direito de outros contribuintes.35 Ao reconhecer
aprioristicamente a prevalência da decisão transitada em julgado que concede o
direito a um contribuinte de não pagar tributos que, segundo decisão do STF, todos
devem pagar, está se conferindo caráter absoluto à perspectiva individual da segu-
rança jurídica em detrimento, não apenas do Estado, mas principalmente de todos
os outros contribuintes que atuam no mesmo setor econômico e que, por não terem
decisões transitadas em julgado, acabarão por ser submetidos a sentenças harmoni-
zadas com a posição da Corte Maior, no sentido da legitimidade do tributo. Assim,
num mesmo mercado, teremos uma empresa que está liberada de parcela da carga
tributária incidente sobre suas operações, enquanto as demais são obrigadas a
suportar a integralidade do peso fiscal. Trata-se de um privilégio odioso por ofen-
der o princípio da isonomia e da livre concorrência, uma vez que tal situação faria
com que o contribuinte beneficiado tendesse a abarcar fatias cada vez maiores do
mercado, em detrimento dos seus concorrentes. Tal violação de princípios consti-
tucionais tão caros à ordem tributária e à ordem econômica jamais poderia ser per-
petrada pelo legislador, quanto mais pelo Poder Judiciário, ou melhor, pela inter-
pretação quanto aos efeitos de suas decisões.
Por outro lado, a prevalência de uma decisão transitada em julgado que con-
dena o contribuinte ao pagamento do tributo, enquanto todos os seus concorrentes
são dispensados do seu recolhimento em face de posicionamento do STF, represen-
ta uma discriminação odiosa e insuportável, que provavelmente levará ao desapa-
recimento da empresa discriminada, restando igualmente violados os referidos
princípios.36

em julgado (e com o prazo da rescisória já superado) e (ii) uma decisão do Supremo Tribunal Federal que
beneficie aquele (por ter declarado inconstitucional ou constitucional uma norma), esta última deve
prevalecer. Assim, o contribuinte poderia propor ação com o fim de rever a decisão que lhe é desfavo-
rável. Entretanto, ao contrário, se houver conflito entre (i) uma decisão judicial benéfica ao contribuin-
te (que declarou constitucional ou inconstitucional uma norma), já transitada em julgado (ainda que não
tenha decorrido o prazo da rescisória) e (ii) uma decisão do Supremo Tribunal Federal que o prejudique
(por ter declarado inconstitucional ou constitucional uma norma), esta não deve prevalecer nesse caso
específico, não podendo o fisco utilizar-se de ação rescisória. Em suma, não se forma coisa julgada a favor
do fisco e contra os interesses do contribuinte”. No mesmo sentido: PONTES, Helenilson Cunha. Coisa
Julgada Tributária e Inconstitucionalidade. São Paulo: Dialética, 2005, p. 169.
35 Sobre a ambivalência da lei fiscal e do caráter plural da segurança jurídica, vide RIBEIRO, Ricardo Lodi.
“A Segurança dos Direitos Fundamentais do Contribuinte na Sociedade de Risco”. In: SARMENTO,
Daniel e GALDINO, Flavio. Direitos Fundamentais – Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo
Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 731-767.
36 No mesmo sentido do texto, defendendo a prevalência da decisão do STF (seja pela constitucionalidade
ou pela inconstitucionalidade da lei tributária) sobre a coisa julgada individual, em nome do princípio
da livre concorrência, vide: SCAFF, Fernando Facury. “Efeitos da Coisa Julgada em Matéria Tributária
e o Princípio da Livre Concorrência”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais
do Direito Tributário. Vol. 9. São Paulo: Dialética, 2005, p. 135. Registre-se a posição de Júlio César Rossi

176
Temas de Direito Constitucional Tributário

Na verdade, a solução para o conflito entre a decisão do STF dotada de efeitos


erga omnes e a coisa julgada individual deve ser repartida em dois planos. Em rela-
ção aos fatos geradores futuros, a coisa julgada não irá prevalecer, uma vez que os
efeitos vinculantes e gerais da decisão representam uma mudança do quadro jurí-
dico, fazendo cessar os efeitos objetivos da coisa julgada.37 Em relação aos fatos
geradores pretéritos, a solução será conhecida mediante a ponderação entre a segu-
rança da situação consolidada pela coisa julgada, com todos os efeitos que esta pro-
vocou naquele mercado, e a necessidade de harmonização da concorrência pela
decisão do STF, num juízo em que, salvo especificidades do caso individual, a
manutenção da coisa julgada individual terá maior peso, uma vez que os tributos
não pagos não mais podem ser embutidos nos preços dos produtos e serviços for-
necidos pelo contribuinte. Por outro lado, uma eventual vantagem concorrencial
viabilizada pela decisão transitada em julgado a essa altura, já tendo sido, de uma
forma ou de outra, assimilada pelo mercado, não seria revertida pela retroativida-
de da decisão do STF, que constituiria medida inócua para o interesse coletivo, mas
extremamente sacrificante para o direito individual.
Em conseqüência, o afastamento da coisa julgada em relação aos fatos gerado-
res ocorridos após a decisão do STF que estabelece um sentido diverso ao estabele-
cido pela decisão individual, é providência que deve ser adotada de ofício pela pró-
pria Administração Pública, que tem o dever de agir em cumprimento da Consti-
tuição, cancelando lançamentos e exigências inconstitucionais, ou promovendo
lançamentos de tributos declarados constitucionais pelo Pretório Excelso. A resis-
tência da Fazenda Pública em aplicar a decisão pode ser questionada pela reclama-
ção ao STF, no caso de decisão com efeitos vinculantes extraída do controle con-

que defende a possibilidade de afastamento da coisa julgada inconstitucional com base no art. 146-A da
CF, com o manejo da ação rescisória, dos embargos do devedor e da ação declaratória para o enfrenta-
mento da questão. (ROSSI, Júlio César. “O Controle da Constitucionalidade e seus Efeitos sobre a Coisa
Julgada em Matéria Tributária”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes Questões Atuais do
Direito Tributário. Vol. 9. São Paulo: Dialética, 2005, pp. 394-395).
37 MACHADO, Hugo de Brito. “Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária”.
In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária.
São Paulo: Dialética, 2006, pp. 168-169: “O direito à segurança jurídica, do qual a proteção à coisa jul-
gada é desdobramento, é, como todo direito fundamental, relativo. Encontra limite em outros direito
fundamentais, com os quais deve ser ponderado e conciliado. Um deles é o princípio da isonomia.
Prestigiar a coisa julgada mesmo em relação a fatos futuros, em relação jurídica continuativa, como ocor-
re no caso de que se cuida, geraria uma situação de profunda e permanente desigualdade entre o consu-
lente e outros contribuintes em situação equivalente. A solução que, a nosso ver, é a mais adequada, e
que tende a prevalecer, é a de considerar a decisão do STF como direito novo. Trata-se de alteração no
contexto fático/jurídico à luz do qual o acórdão foi proferido, e que impede a produção de sues efeitos
quanto a fatos posteriores que ocorrem no âmbito das relações continuativas. Assim, parece-nos que a
decisão com trânsito em julgado, que tenha apreciado a questão de saber se determinado tributo é devi-
do, ou indevido, e qual o respectivo montante, produz seus efeitos até a data em que se torna definitiva
a decisão do Supremo Tribunal Federal, em sentido oposto.”

177
Ricardo Lodi Ribeiro

centrado, ou, no controle difuso, por ação declaratória, embargos do devedor e até
ação rescisória.38

5) Os Efeitos Prospectivos de Decisão sobre a Constitucionalidade


de Lei Tributária

Como já se viu, o princípio da proteção à confiança tutela o cidadão não só em


relação à alteração de posicionamento do Poder Executivo, mas também quanto à
alteração da jurisprudência, notadamente dos Tribunais Superiores. Nesse sentido,
é possível, mesmo no controle difuso da constitucionalidade exercido por qualquer
juiz ou tribunal, a despeito dos efeitos individuais de esta e de tal situação não ser
prevista pela Lei nº 9.868/99, estabelecer a produção de efeitos prospectivos para a
declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, a partir da pon-
deração de interesses entre a segurança jurídica, que recomenda a manutenção dos
posicionamentos pretorianos, e o primado da Constituição, a indicar a alteração.
Em relação à decisão sobre a constitucionalidade da lei tributária, não é dife-
rente. É que a declaração de que um tributo é devido, após longo tempo em que a
jurisprudência dos tribunais superiores indicou em sentido contrário, causa grave
violação à confiança legítima do contribuinte, que, acreditando no posicionamen-
to dos Tribunais Superiores, planejou os seus negócios, calculou seus custos e pre-
ços, realizou investimentos, na lídima crença da inexistência da obrigação de pagar
o tributo.39
Caso interessante sobre a discussão da proteção à confiança do contribuinte se
deu no STJ no julgamento da revogação da isenção da COFINS em relação às socie-
dades civis, em que, diante da alegação da Fazenda Nacional de que a posição do
Tribunal contrariava precedente do STF, o Ministro Humberto Gomes de Barros,
em corajoso voto que expressou perplexidade em relação às constantes alterações
da jurisprudência do tribunal, desabafou:

“Dissemos sempre que sociedade de prestação de serviço não paga a contribui-


ção. Essas sociedades, confiando na Súmula nº 276 do Superior Tribunal de
Justiça, programaram-se para não pagar esse tributo. Crentes na súmula elas
fizeram gastos maiores, e planejaram suas vidas de determinada forma.
Fizeram seu projeto de viabilidade econômica com base nessa decisão. De
repente, vem o STJ e diz o contrário: esqueçam o que eu disse; agora vão pagar

38 Para Leonardo Greco a superação da coisa julgada em nome da isonomia e da prevalência da posição do
STF só caberia em sede dos casos e prazos da ação rescisória (GRECO, Leonardo. “Coisa Julgada,
Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária”. In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa
Julgada, Constitucionalidade e Legalidade em Matéria Tributária. São Paulo: Dialética, 2006, p. 298).
39 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”, p. 351.

178
Temas de Direito Constitucional Tributário

com multa, correção monetária etc., porque nós, o Superior Tribunal de


Justiça, tomamos a lição de um mestre e esse mestre nos disse que estávamos
errados. Por isso, voltamos atrás. Nós somos os condutores, e eu – Ministro de
um Tribunal cujas decisões os próprios Ministros não respeitam – sinto-me,
triste. Como contribuinte, que também sou, mergulho em insegurança, como
um passageiro daquele vôo trágico em que o piloto que se perdeu no meio da
noite em cima da Selva Amazônica: ele virava para a esquerda, dobrava para
a direita e os passageiros sem nada saber, até que eles de repente descobriram
que estavam perdidos: o avião com o Superior Tribunal de Justiça está extre-
mamente perdido. Agora estamos a rever uma Súmula que fixamos há menos
de um trimestre. Agora dizemos que está errada, porque alguém nos deu uma
lição dizendo que essa Súmula não devia ter sido feita assim. Nas praias de
Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme bóia,
cheia de pessoas é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha
é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da bóia. Para tanto, a lancha
desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa
graus. O jogo só termina, quando todos os passageiros da bóia estão dentro do
mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha.
Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados.”40

Em tal decisão, o Ministro votou a favor da tese que acabou prosperando na


Primeira Seção, no sentido de manter a Súmula nº 276, mesmo reconhecida a sua
contrariedade em relação à posição do STF, em nome da segurança jurídica dos
contribuintes.
No caso em questão, é difícil o juízo de ponderação entre a proteção à con-
fiança e o primado da Constituição, pois, se por um lado, a proteção à confiança se
justifica pela crença na correção da súmula do STJ, de outro, esta restava enfraque-
cida pelo posicionamento reiterado do STF, inclusive em decisão com efeitos vin-
culantes na ADC nº 1-1/DF, no sentido de que a LC nº 70/91 poderia ser alterada
por lei ordinária.
Porém, independentemente de não concordarmos, como já demonstrado,
com os fundamentos da decisão do STJ, e da natureza constitucional da maté-
ria, que a leva a ser decidida em última instância pelo STF, é forçoso reconhe-
cer que a posição sumulada do STJ, acompanhada da recusa inicial do Tribunal
Constitucional em conhecer da questão,41 em posição posteriormente reforma-

40 STJ, 1ª Seção, AgRgREsp nº 382.736-SC, Rel. p/acórdão: Min. Francisco Peçanha Martins, DJU 22/02/04,
p. 91. Voto disponível na Internet no sítio do tribunal: www.stj.gov.br, na seção inteiro teor, acesso em
28/04/07.
41 STF, Pleno, MC Rcl nº 2.518/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 10/02/04; STF, Pleno, MC Rcl nº 2.475/MG,
Min. Carlos Velloso, j. 10/02/04; STF, Pleno, Rcl nº 2.517-9/RJ, Min. Joaquim Barbosa, j. 18/12/03.

179
Ricardo Lodi Ribeiro

da,42 despertaram no contribuinte a certeza de que a discussão estava encerra-


da com a prevalência do entendimento de que o tributo não era devido, em
crença que não pode ser deixada de ser amparada pelo princípio da segurança
jurídica.
Por outro lado, a manifestação posterior do STF, no sentido da constituciona-
lidade da legislação ordinária que revogou a isenção da COFINS das sociedades
civis, não tem como deixar de prevalecer em nosso cenário jurídico, em nome do
primado da Constituição, e da posição de cúpula que nossa Corte Maior ocupa no
cenário jurídico nacional. A ponderação entre esses dois interesses tutelados pelo
nosso ordenamento constitucional recomenda que as decisões dos tribunais que
declarem revogada a isenção tenham efeitos prospectivos. Com isso, se preserva a
segurança do contribuinte em relação à não-exigência da COFINS das sociedades
civis em relação a fatos geradores ocorridos até a publicação da primeira decisão do
Plenário do STF (ou da turma que reiterar o posicionamento de outra) no sentido
da constitucionalidade da revogação do art. 6º da LC nº 70/91 pelo art. 56 da Lei nº
9.430/96. O primado da Constituição e a segurança jurídica no plano do Direito
objetivo são consagrados com a declaração de constitucionalidade da revogação da
isenção a partir do referido evento.43
Se tal solução tivesse sido adotada no referido julgamento do STJ, no
AgRgREsp nº 382.736-SC, a segurança jurídica estaria mais bem protegida do que
na solução adotada, na medida que seriam superadas as divergências entre os
Tribunais Superiores e restabelecida a certeza quanto à validade das normas conti-
das no nosso ordenamento jurídico. Porém, não se sentindo autorizado pela Lei nº
9.868/99 a conferir efeitos prospectivos a sua mudança de posicionamento, o que se
justifica pela ausência de precedentes nesse sentido,44 a Corte Federal preferiu

42 STF, Pleno, RE nº 377.457-PR e RE nº 381.694/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, que no momento apre-
senta oito votos favoráveis à constitucionalidade da revogação da isenção (Ministros Gilmar Mendes,
Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Cezar Peluso, Sepúlveda
Pertence e Celso de Mello) e um contra (Min. Eros Grau), tendo os referidos julgamentos sido suspen-
sos em virtude do pedido de vista do Min. Marco Aurélio.
43 No presente momento em que se escreve, embora a maioria dos Ministros do STF já tenha decidido, em
Plenário, pela constitucionalidade da revogação da isenção concedida pelo art. 6º da LC nº 70/91, o jul-
gamento ainda não terminou (vide nota anterior). Na 1ª Turma, a primeira publicação de decisão no sen-
tido da constitucionalidade da revogação da isenção se deu em 30/06/06 (STF, 1ª Turma, RE nº 419.629-
DF, DJU 30/06/06, p. 16). Na 2ª Turma, ainda não se registra decisão publicada nesse sentido. Assim, de
acordo com o posicionamento adotado no texto, os efeitos da Súmula 276 do STJ ainda estão valendo até
a publicação de acórdão da 2ª Turma, ou do Plenário do STF, o que ocorrer primeiro.
44 A questão foi discutida no Plenário do STF, no RE nº 353.657, onde o Ministro Ricardo Lewandowski
suscitou questão de ordem sobre a possibilidade da Corte conferir efeitos prospectivos à decisão que
negou ao contribuinte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o direito ao crédito do valor do
tributo incidente sobre insumos (matérias-primas) adquiridos sob regime de isenção, não tributados ou
tributados à alíquota zero, em nome da proteção à confiança legítima do contribuinte, face à mudança
de posição do Tribunal (STF, Pleno, RE nº 353.657-PR, Min. Marco Aurélio). A questão foi conhecida

180
Temas de Direito Constitucional Tributário

manter sua posição, mesmo diante da possibilidade concreta de sua superação pelo
STF, em face do precedente da ADC nº 1-1/DF.
Por outro lado, se o peso da dignidade da confiança nesse juízo de ponderação
é alto quando se discute o dever de pagar tributo em relação a fatos geradores que,
na data da propositura da ação, eram futuros, mas que hoje são pretéritos, o mesmo
não se dá em relação a demandas a respeito do direito de repetir ou compensar tri-
butos que já foram recolhidos pelo contribuinte. Tal distinção se justifica pelo maior
grau de lesão à segurança jurídica quando o novo posicionamento jurisprudencial
determina o pagamento de tributos que, ancorados por decisões judiciais anteriores,
não foram recolhidos no tempo próprio e que, por isso mesmo, provavelmente45 não
compuseram a equação de custos dos contribuintes. Já no pedido de restituição ou
compensação, pago o tributo no momento previsto em lei, a repercussão econômi-
ca faz com que esses custos sejam absorvidos pelos consumidores, sendo a negativa
de sua devolução pelo novo posicionamento dos Tribunais, frustração que represen-
ta uma baixa dignidade da confiança, nos termos defendidos no texto.
Assim, nos parece que os Tribunais Superiores não devem, com base no prin-
cípio da proteção à confiança, conferir efeitos prospectivos às decisões que, modifi-
cando posicionamento anterior, negam o direito ao crédito do valor do IPI inciden-
te sobre insumos (matérias-primas) adquiridos sob regime de isenção, não tributa-
dos ou tributados à alíquota zero,46 bem como às que passaram a considerar extinto
o crédito-prêmio criado pelo DL nº 491/69 em relação ao referido imposto.47

pelo Tribunal, porém, rejeitada no mérito, uma vez que o reconhecimento de efeitos prospectivos no
caso subverteria o resultado do julgamento da matéria, uma vez que o direito ao referido creditamento
era discutido somente em relação ao passado.
45 Ainda que o princípio contábil do conservadorismo determine a provisão desses recursos e, em conse-
qüência, a sua repercussão econômica nos preços praticados, a realidade das empresas nacionais, subme-
tidas a uma carga tributária asfixiante, revela, na prática, o imediato aproveitamento nos custos das van-
tagens fiscais obtidas por decisões judiciais provisórias baseadas na jurisprudência pacífica dos Tribunais
Superiores, já que, nestes casos, o grau do risco de perda é considerado baixo pelas auditorias contábeis.
46 Vide nota nº 43.
47 Contra: BARROSO, Luís Roberto. “Mudança da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Matéria
Tributária. Segurança Jurídica e Modulação dos Efeitos Temporais das Decisões Judiciais”. Revista de
Direito do Estado 2: 284, 2006: “nos termos do sistema constitucional em vigor no Brasil, não se pode
admitir a aplicação retroativa de eventual nova decisão do STF que modifique seu entendimento ante-
rior acerca do direito ao creditamento de IPI e gere, do ponto de vista econômico, majoração do tribu-
to a ser pago.”

181
XI
O Princípio da Anterioridade Tributária
Sumário: 1) Introdução. 2) Temporariedade, Anualidade e Anterioridade. 3) A Evolução no
Brasil: da Anualidade à Anterioridade. 4) O Princípio da Anterioridade Tributária na Cons-
tituição de 1988. 5) A Anterioridade Nonagesimal. 6) A Noventena Constitucional. 7) A
Anterioridade e as Emendas Constitucionais. 8) A Revogação de Isenção e a Anterioridade.

1) Introdução

A segurança jurídica do contribuinte, em seu aspecto temporal revelado pela


previsibilidade quanto à alteração da lei tributária, decorre do princípio da não-sur-
presa do contribuinte. Essa garantia não encontrou nos textos constitucionais abri-
go apenas na proteção quanto à retroatividade da norma, mas limitação temporal da
autorização legislativa para a cobrança do tributo, dado o caráter temporário que
estes possuíam em sua origem. Hoje, o princípio da não-surpresa, se libertando de
sua origem vinculada à temporariedade, evolui para a proteção da previsibilidade,
com o dever de o legislador conceder aos contribuintes as condições necessárias para
que possam dispor e planificar seus comportamentos durante longo tempo.1

2) Temporariedade, Anualidade e Anterioridade

A preocupação com a limitação do poder do rei de impor tributos surge no


final da Idade Média, na Europa, diante do crescimento do poder do monarca e da
exigência, cada vez mais rotineira, de tributos para a manutenção das despesas per-
manentes do Estado Nacional, que dava então seus primeiros passos. Diante desse
quadro, os senhores feudais se insurgem contra a imposição de tributos mais pesa-
dos, exigindo a prévia autorização da cobrança pelos seus representantes.
Data dessa época o surgimento dos princípios do consentimento e da tempo-
rariedade,2 germens dos princípios da legalidade e da anualidade. A necessidade de
consentimento na tributação, conseqüência direta da perda do caráter excepcional
dos tributos e do crescimento das despesas estatais, necessário à consolidação do
Estado Nacional, repousava na autotributação, a partir da idéia de autoconsenti-
mento estamental. Se no início do período feudal as contribuições eram voluntá-
rias, com a centralização do Estado, o autoconsentimento surge como contraponto

1 TIPKE, Klaus. “La retroactividad en Derecho Tributario”. In: AMATUCCI, Andrea (org.), Tratado de
Derecho Tributario, Bogotá: Temis, 2001, p. 342.
2 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária.” Revista Forense 267:77.

183
Ricardo Lodi Ribeiro

ao caráter impositivo dos tributos, a partir da prévia aprovação pelos representan-


tes da aristocracia feudal.
A temporariedade se notabilizava pela limitação temporal dessa autorização,
que precisava renovar-se regularmente e que se coadunava perfeitamente com o
caráter provisório dos tributos, pois, até o fim do Estado Patrimonial, estes não
eram responsáveis pelo custeio das despesas ordinárias do Governo. Daí ser neces-
sária a autorização para a sua cobrança por período certo de tempo. Sendo os tribu-
tos temporários, a idéia de autorização pelo Parlamento (consentimento) se con-
fundia com a aprovação temporária (temporariedade), pois à época não havia a
dicotomia posteriormente verificada entre a lei instituidora do tributo e a lei de
orçamento, que inexistia, como hoje a conhecemos, até as revoluções liberais dos
séculos XVII e XVIII.3 Somente na Era Moderna, quando os tributos deixam de ser
responsáveis apenas por despesas extraordinárias, passando a ser a principal fonte
de receita do Estado, é que podemos conceber a tributação destinada a custear
genericamente as despesas públicas.4 Com o advento do Estado Fiscal, expressão
financeira do Estado Democrático de Direito a partir do desenvolvimento do capi-
talismo, as despesas públicas passam a ser financiadas por tributos (ingressos deri-
vados), especialmente impostos, além de empréstimos públicos, em substituição à
exploração do patrimônio do príncipe (ingressos originários).5
Com a consolidação do Estado Fiscal, os tributos são cobrados de forma per-
manente, ocorrendo a separação dos princípios do consentimento e da temporarie-
dade, com o crescimento de importância do primeiro, com base na legalidade, em
detrimento do segundo. Assim sendo, em longa trajetória histórica marcada por
avanços e retrocessos, os sistemas jurídicos dos países desenvolvidos passaram a
consagrar a necessidade de prévia autorização legislativa para a cobrança de tribu-
tos. No entanto, na maior parte dos regimes legais, tal autorização sendo perma-
nente, dispensava a sua previsão orçamentária.
Portanto, se no período em que os tributos eram temporários, a lei que dava
o consentimento era a mesma que autorizava a cobrança por determinado tempo,
passa a existir, na fase dos tributos permanentes, uma divisão entre a lei tributária
material e a lei de orçamento.6

3 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. V – O


Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3.
4 TORRES, Ricardo Lobo. A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 2.
5 TORRES, Ricardo Lobo. A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal, p. 97.
6 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 78: “O princípio, de arraigada inspira-
ção costumeira, que impõe o prévio consentimento do Concilium (como depois o da representação políti-
ca que nele se originou) para a instituição de contribuições extraordinárias, ‘exprimem assim – dizem TRO-
BATAS e COTTERET – a idéia primordial do orçamento, em seu sentido de autorização, mas unicamente
com respeito a certas receitas: a necessidade dessa justificação não se justifica com efeito senão pelo cará-
ter extraordinário dessas receitas’. Mas, como já se terá percebido, num mesmo ato, aquele em que se

184
Temas de Direito Constitucional Tributário

Por outro lado, contribuindo para o declínio do princípio da temporariedade,


na Idade Moderna, a tributação deixa de ser dividida pelo método da repartição, em
que a despesa pública era injustamente repartida pelo número de contribuintes. É
que no regime de repartição a única garantia do contribuinte era a prévia autoriza-
ção anual. Com a adoção do regime da quotidade, onde a autorização legislativa
definia o quantum que cada contribuinte pagava, a garantia da legalidade se forta-
lece em detrimento da anualidade. Embora perdendo importância, o princípio da
anualidade não deixou de existir, pois constituía em alguns regimes constitucionais
uma decorrência do próprio princípio da legalidade, considerado em seu aspecto
temporal.7
Com o advento do Estado de Democrático de Direito, o princípio da tempo-
rariedade ganha uma nova importância com a necessidade não só da prévia autori-
zação contida na lei instituidora, mas da inclusão das receitas tributárias no orça-
mento como requisito para a sua cobrança. Assim, a necessidade de autorização da
cobrança por determinado tempo se converte na obrigação de previsão no orça-
mento anual, dando nascimento ao princípio da anualidade tributária. A certidão
de nascimento do novo princípio é a Constituição revolucionária francesa de 1791
(Título V, art. 1º), que exigia prévia autorização orçamentária para a cobrança dos
tributos. No regime francês, mantido até hoje a despeito das alterações constitucio-
nais, a lei instituidora do tributo só tem validade de um ano, salvo se for renovada
pelo Parlamento, assim como ocorre na Bélgica e em Luxemburgo. No entanto, a
menção expressa à anualidade foi suprimida da Carta francesa de 1875, sem que,
contudo, o princípio perdesse sua efetividade, passando a ser um costume constitu-
cional a ensejar a garantia no artigo final de cada lei orçamentária.8
O princípio da anualidade é previsto expressamente nas Constituições da
Bélgica, no art. 171 (com a redação dada pela Reforma de 1994) da Constituição de
1831, em texto inspirado na Constituição francesa de 1791; no art. 100 da Carta de
1868 de Luxemburgo, que é uma reprodução do dispositivo do texto belga; e na
Carta de 1814, da Noruega (art. 75).9
Também sobrevive de forma consuetudinária, além da França, no México, na
Dinamarca, em Liechtenstein e na Suécia.10

manifesta o consentimento do Concilium, convergem e se confundem funções que, no curso do tempo e


sob o influxo de outras circunstâncias viriam a caracterizar-se bem distintamente. Especializando-se,
inclusive sob o aspecto de sua expressão formal, tais funções seriam afinal realizadas mediante atos distin-
tos e em princípio, substancialmente autônomos: a lei orçamentária e a lei tributária material”.
7 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda Y Derecho. Tomo I. Madrid: Institutos de Estudios
Politicos, 1955, p. 325.
8 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Trad. Marco Aurélio Greco. 2.
ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 53; NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 80.
9 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns..., p. 42.
10 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 81.

185
Ricardo Lodi Ribeiro

Embora tendo origem no princípio da temporariedade na Inglaterra, o princí-


pio da anualidade não foi regra no direito britânico. Ao contrário, os impostos
ingleses há muito têm sua cobrança autorizada permanentemente pela lei institui-
dora, exceção feita ao income tax.
No entanto, em vários países com alto grau de desenvolvimento de suas insti-
tuições jurídico-tributárias, o princípio da anualidade não se apresenta, como os
Estados Unidos,11 a Alemanha, a Argentina, a Itália, o Japão, a Holanda e a Suíça.12
Na Espanha, o princípio da anualidade esteve presente nas Constituições do
Século XIX, seja na de 1812, como na de 1837 e na de 1845.13 No entanto, o prin-
cípio não foi mantido nas Cartas posteriores, estando ausente na Constituição atual
de 1978. Em Portugal, o princípio que era previsto no artigo 70, § 2º, da Carta de
1933, foi suprimido pela Constituição de 1976, embora haja doutrina defendendo
sua sobrevivência.14
Como se vê, o princípio da anualidade encontrou o seu apogeu no século XIX,
com a proliferação de constituições liberais, na esteira da Revolução Francesa. No
entanto, no século XX conheceu significativo refluxo a partir da necessidade do
Estado Social atender às demandas, muitas vezes urgentes, da população. No Estado
Social e Democrático de Direito, desafiado a enfrentar os riscos sociais imprevisí-
veis, o princípio da anualidade passa a ser resquício histórico previsto em poucas
constituições, notadamente as mais antigas, ou naqueles ordenamentos onde o
princípio deitou raízes mais profundas, como é o caso da França.

3) A Evolução no Brasil: da Anualidade à Anterioridade

Embora alguns autores, como Baleeiro, entendam que o princípio da anuali-


dade era expresso no artigo 171 da Constituição de 1824, o referido dispositivo se
limitava a consagrar a previsão de que os tributos seriam aprovados anualmente
pelo Parlamento. No entanto, a Carta Imperial não condicionava a cobrança do tri-
buto à prévia autorização orçamentária.15 Na verdade, a anualidade tributária era
aplicável durante o Império com base na doutrina, muito embora a lei orçamentá-

11 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Atualizada por Misabel de
Abreu Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 185, onde o autor noticia que alguns estados norte-ame-
ricanos adotam o princípio da anualidade, como Califórnia, Indiana, Kansas, Mississipi, Nebraska e
Tennessee.
12 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 81.
13 SAINZ DE BUJANDA, Fernando. Hacienda Y Derecho. Tomo I, p. 325.
14 SANCHES, J. L. Saldanha. Manual de Direito Fiscal. Lisboa: Lex, 1998, p. 49, onde o autor sustenta que
a não-previsão do tributo no orçamento impede a sua cobrança por se traduzir na cessação da autoriza-
ção contida na lei instituidora.
15 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, p. 52, onde o autor também sus-
tenta que o princípio da anualidade estava previsto, conforme concebido pela Constituição Francesa de
1791, no Projeto de Antônio Carlos discutido pela Constituinte de 1823, dissolvida por D. Pedro I.

186
Temas de Direito Constitucional Tributário

ria não discriminasse os impostos e suas receitas, limitando-se a renovar a autori-


zação para a cobrança dos impostos exigidos no ano anterior.16
Ausente da nossa primeira Constituição republicana, de 1891, o princípio foi
aplicado por costume constitucional, aproveitando a tradição doutrinária e juris-
prudencial do período imperial, tendo sido sustentado por autores como Ruy
Barbosa e Carlos Maximiliano, por influência da doutrina francesa de Duguit e
Jèze, e exigido pelo STF.17 Sob a égide dessa Constituição, o princípio da anualida-
de surgiu expressamente no nosso direito positivo por obra do legislador ordinário,
por meio do artigo 27 do Código de Contabilidade da União, de 1922. No entanto,
tal dispositivo não era aplicável aos Estados e Municípios.
O quadro não se altera substancialmente no regime da Constituição de
1934, cujo art. 50 previa apenas a necessidade de os tributos serem previstos na
lei orçamentária. Contudo, a previsão da anualidade nesses termos não conferia
ao contribuinte qualquer garantia contra a cobrança da exação sem previsão
orçamentária, o que não impediu que se mantivesse intacta prática constitucio-
nal da anualidade.
A Constituição de 1937, que a rigor nunca entrou em vigor, dada a inexistên-
cia do plebiscito para a sua aprovação conforme nela previsto, dispunha, no seu art.
68, sobre o princípio da anualidade nos mesmos termos da Carta anterior.
No entanto, a despeito da ausência de previsão expressa da anualidade tribu-
tária como garantia do contribuinte até a Constituição de 1946, o princípio foi res-
peitado na nossa prática orçamentária, e, como vimos, consagrado na doutrina e na
jurisprudência do STF.
Ironicamente, justamente sob a égide da Constituição que o previu expressa-
mente, o princípio, que sempre fora respeitado no Brasil apesar de não agasalhado
no Texto Maior, começou a sofrer conspurcações que acabaram levando ao seu
desaparecimento.
De fato, o artigo 141, § 34, da Constituição de 194618 consagrava, de uma for-
ma sem precedentes no direito comparado,19 a garantia do contribuinte de que o
tributo não seria cobrado sem sua previsão no orçamento.

16 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, p. 52.


17 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 82.
18 “§ 34. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em
cada exercício sem a prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto
lançado por motivo de guerra”.
19 Para Novelli, a novidade do dispositivo do art. 141, § 34, da Constituição brasileira de 1946 residia em
cinco aspectos: a) constituir o princípio uma garantia constitucional; b) extensão genérica a todos os tri-
butos, e não aos impostos ou a uma classe deles; c) a exigência de previsão orçamentária não só da cria-
ção do tributo, mas também de sua majoração; d) incorporação em uma mesma regra da anualidade, rela-
tiva à renovação sucessiva da autorização legal, e da anterioridade, pertinente apenas ao exercício
seguinte da criação do tributo; e) exclusão apenas da tarifa aduaneira e do imposto de guerra (NOVEL-
LI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 83).

187
Ricardo Lodi Ribeiro

No entanto, a amplitude do princípio da anualidade sofreu uma amputação


pela “interpretação patriótica”20 do STF, que, por meio das Súmulas 66 e 67, passou
a entender que o disposto no art. 141, § 34, da CF/46 não impedia a cobrança do
tributo instituído após a aprovação do orçamento, mas antes do início do exercício
financeiro seguinte. Deste modo, embora não tenha o Pretório Excelso utilizado da
expressão anterioridade sob a égide daquela Carta, o princípio da anualidade pas-
sou a ser aplicado como se anterioridade fosse.
É que a Constituição de 1946 determinava, em seu artigo 74, que o orçamen-
to fosse aprovado até o dia 30 de novembro de cada ano. Ocorre que uma lei do
Estado de São Paulo, promulgada em dezembro de 1949, majorou o imposto sobre
vendas e consignações após a aprovação do orçamento, mas antes do início do exer-
cício financeiro. Portanto, entre 30 de novembro e 31 de dezembro. Ou seja, cum-
pria-se a regra da anterioridade, mas não da anualidade, em posição acolhida pelo
Tribunal Federal de Recursos e confirmada pelo STF.21 Depois de reiteradas deci-
sões no sentido de admitir a cobrança do tributo criado ou majorado após a apro-
vação da lei de orçamento, a nossa Corte Maior sumulou o entendimento,22 por
meio dos verbetes nºs 66 e 67, esvaziando o princípio da anualidade, a partir de sua
transformação em mera anterioridade.
Nasce assim, pelas mãos do STF, por meio das Súmulas 66 e 67, o princípio da
anterioridade tributária.
Com a promulgação da EC nº 18/65, o constituinte derivado faz duas restrições ao
princípio da anualidade. A primeira, de ordem material, restringindo a sua aplicação do
princípio aos impostos sobre patrimônio e renda. A outra, na esteira na jurisprudência
do STF, consagrada nas Súmulas 66 e 67, no sentido de considerar legítima a cobrança
do imposto instituído ou majorado após a aprovação da lei orçamentária, desde que a
lei fosse vigente antes do início do exercício financeiro. Sob a égide da EC nº 18/65, foi
promulgado o CTN (Lei nº 5.172/66), que no seu art. 104 previu dispositivo reflexo ao
do art. 2º, II, da referida emenda que substituiu o art. 141, § 34, da CF/46.
A Constituição de 1967 restabeleceu, em seu artigo 150, § 29, o princípio da
anualidade, conforme fora previsto originalmente na Carta de 1946. Na feição que
foi consagrada pelos artigos 141, § 34, da CF/46, e pelo art. 150, § 29 da CF/67, ou
seja, sem as restrições impostas pelos textos constitucionais posteriores e pela juris-
prudência do STF, a anualidade se traduzia na necessidade do orçamento prever o
tributo para que ele pudesse ser lançado, ainda que instituído por lei em sentido
formal, publicada em ano anterior.

20 A expressão é de Aliomar Baleeiro (BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de


Tributar, p. 148).
21 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, pp. 143 e segs.
22 Súmula nº 66. “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas
antes do início do respectivo exercício”. Súmula nº 67. “É inconstitucional a cobrança do tributo que
houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro.”

188
Temas de Direito Constitucional Tributário

No entanto, no curto período de vigência dessa Constituição, o STF, dando


continuidade à aplicação das Súmulas 66 e 67, continuou interpretando a anualida-
de como se anterioridade fosse.
Consolidando o entendimento jurisprudencial do STF, a Emenda Constitu-
cional nº 1/69, retomando a tendência iniciada pela EC nº 18/65 no que tange à
limitação temporal da anualidade, sem, contudo, repetir a restrição material relati-
va aos impostos sobre patrimônio e renda, estatui, no art. 153, § 29, a regra da ante-
rioridade, e abandona o princípio da anualidade tributária.23 Com a promulgação
da Constituição de 1988, a despeito da previsão do princípio da anualidade orça-
mentária, não se consagra a anualidade tributária, uma vez que o art. 165 da CF/88
que preconiza o primeiro é norma referente à gestão de recursos pelo Estado e à
despesa pública, mantendo-se distante da relação jurídica fisco-contribuinte.24

4) O Princípio da Anterioridade Tributária na Constituição de 1988

A regra da anterioridade na Constituição de 1988 não sofreu grandes altera-


ções em relação à disciplina que lhe foi dada pela EC nº 1/69, senão no que se refe-
re à referência sobre a publicação da lei, ao invés da vigência da lei, no exercício
anterior ao da cobrança do tributo. Essa fórmula adotada pelo constituinte de 1988
consagrou a orientação do STF que, ao tempo da EC nº 1/69, já entendia que a lei
publicada em determinado ano, embora vigente no primeiro dia do exercício
seguinte, poderia ser aplicada neste.25
Deste modo, o art. 150, III, b, da Constituição de 198826 estabeleceu a proibi-
ção quanto à aplicação da lei tributária que institua ou majore tributo em relação a

23 Nesse sentido, a maioria da doutrina. Por todos: ATALIBA, Geraldo. Interpretação no Direito Tri-
butário. São Paulo: Saraiva, 1975, pp. 36-37. Contra: NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualida-
de tributária”, p. 75, onde o autor defende a sobrevivência do princípio da anualidade na ordem consti-
tucional de 1969 como princípio implícito, decorrente do art. 62 da EC nº 1/69, que estabelecia a anua-
lidade orçamentária.
24 A doutrina majoritária advoga a substituição constitucional do princípio da anualidade tributária pelo
da anterioridade tributária. Por todos: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional
Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 557; MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 1998, p. 30. Contra: NOVELLI, Flávio Bauer. “Anualidade e Anterioridade na Constituição
de 1988”. Revista de Direito Tributário 51: 22, 1990, que defende ser a anualidade tributária princípio
implícito, decorrente da anualidade orçamentária, da legalidade e do regime democrático. Tal posição,
embora fundamentada de forma instigante e erudita, nos parece demasiada, a medida que tais princí-
pios, que estão presentes em diversas constituições, não levam, necessariamente, à anualidade tributá-
ria, instituto em extinção em todo o mundo.
25 STF, Pleno, RE nº 85.373-SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra, RTJ 83/501.
26 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios: III – cobrar tributos: b) no mesmo exercício financeiro em que haja
sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;”

189
Ricardo Lodi Ribeiro

fatos geradores ocorridos no mesmo exercício financeiro em que tenha ela sido
publicada. Assim, não basta que o pagamento do tributo seja previsto para o ano
seguinte, mas se exige que o fato gerador ocorra no ano seguinte ao da alteração
legislativa. No entanto, em relação a fatos geradores complexos ocorre um esvazia-
mento do seu conteúdo, também no que concerne ao princípio da anterioridade,
em razão da aplicação da Súmula nº 584 do STF, que admite a aplicação da lei tri-
butária no mesmo ano em que ocorreu o fato gerador do imposto de renda.
Embora exista abalizada doutrina27 que lhe atribua eficácia também de prin-
cípio,28 com fundamento na previsibilidade a ser buscada pelo legislador, a anterio-
ridade é eminentemente uma regra,29 uma vez que a tutela das situações que não
estão por ela protegidas, quando baseadas na proteção da confiança legítima em
relação às alterações do ordenamento jurídico-tributário, fundamenta-se no prin-
cípio da não-surpresa, faceta axiológica da irretroatividade. Deste modo, a previsi-

27 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 34: “O dispositivo constitucional segundo o qual se houver instituição ou aumento
de tributos, então só pode haver cobrança no exercício seguinte àquele em que haja sido publicada a lei
que os instituiu ou aumentou, é aplicado como regra se o aplicador entendê-lo como mera exigência de
publicação de lei antes da ocorrência do fato gerador do tributo, e pode ser aplicado como princípio se
o aplicador concretizá-lo com a finalidade de realizar o valor segurança para proibir o aumento de tri-
buto no meio do exercício financeiro em que a realização do fato gerador periódico já se iniciou, ou com
o objetivo de realizar o valor confiança para proibir o aumento individual de alíquotas, quando o Poder
Executivo publicou decreto anterior prometendo baixá-las”.
28 No texto é adotada a concepção de Alexy e Dworkin para a distinção entre princípios e regras: ALEXY,
Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 2002, p. 86: “El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es
que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro
de las possibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimiza-
ción, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la
medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurí-
dicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En
cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de
hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinacio-
nes en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y prin-
cipios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio.” DWORKIN, Ronald.
Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 39-40: “A dife-
rença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões
apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas dis-
tinguindo-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-
ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela
oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (...) Mas não é
assim que funcionam os princípios apresentados como exemplo nas citações. Mesmo aqueles que mais
se assemelham a regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quan-
do as condições são dadas.” Vale o registro da posição de Humberto Ávila, para quem a distinção nem
sempre pode ser aceita, uma vez que as regras também podem ser ponderadas, enquanto existem situa-
ções onde o princípio se aplica ou não (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios..., pp. 41 e segs.).
29 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2000, p. 51; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003, p. 22.

190
Temas de Direito Constitucional Tributário

bilidade e a proteção da confiança do contribuinte não derivam de um suposto


princípio da anterioridade, mas do princípio da irretroatividade. Se assim não fosse,
os demais países que não consagram constitucionalmente o “princípio” da anterio-
ridade30 não ofereceriam tais garantias ao contribuinte, o que não corresponde à
realidade, uma vez essa proteção pode ser extraída do princípio da irretroativida-
de, quando expresso, ou do princípio do Estado de Direito, quando implícito.
A anterioridade é aplicável a todas as espécies tributárias (impostos, taxas,
contribuições de melhoria, contribuições parafiscais e empréstimos compulsórios),
exceto aos impostos previstos no art. 150, § 1º, ou seja, II, IE, IPI e IOF, bem como
aos empréstimos compulsórios previstos no art. 148, I (guerra externa ou sua imi-
nência e calamidade pública) e ao imposto extraordinário de guerra (art. 154, II),
que podem ser cobrados no mesmo exercício de sua instituição ou majoração. Com
a EC nº 33/01, o princípio deixa de ser aplicado em relação às majorações de alíquo-
ta, por ato do Poder Executivo, em relação à CIDE-Combustíveis (art. 177, § 4º, I,
b) e ao ICMS monofásico a ser instituído por lei complementar sobre combustíveis
e lubrificantes (art. 155, § 4º, IV, c).
Tais exceções se justificam:

a) no caso do II, IE, IPI, IOF, ICMS e CIDE sobre combustíveis, pelo caráter
extrafiscal de tributos que funcionam como verdadeiros instrumentos de
política econômica do Governo, que precisa ser dotada de agilidade, a fim
de que tenha eficácia;
b) no caso do empréstimo compulsório de guerra e calamidade pública e no do
imposto extraordinário de guerra, pela urgência exigida pelas despesas a
que se destinam esses tributos, o que os torna incompatíveis com a idéia de
anterioridade.

Em relação às contribuições da seguridade social, não se aplica o princípio da


anterioridade do art. 150, III, b, mas a anterioridade nonagesimal (art. 195, § 6º).
Muito se discute em doutrina sobre os efeitos das regras constitucionais da
anterioridade sobre a lei instituidora do tributo, se são referentes à vigência e efi-
cácia desta. Embora haja ilustres autores31 que defendam o fenômeno da anteriori-
dade como uma postergação da vigência da lei instituidora até o exercício seguin-
te (o que significaria a confusão desse princípio com uma vacacio legis peculiar a
esse tipo de norma), na verdade, a lei tributária, antes do exercício seguinte ao da

30 Embora tendo sido uma criação da jurisprudência do nosso STF, e, por conta disso, uma exclusividade
nacional por muito tempo, o princípio da anterioridade é, hoje, também previsto na Constituição da
Colômbia (1991), art. 338, § 3º, com redação dada pela reforma constitucional de 2004.
31 Por todos: FANUCCHI, Fabio. Direito Tributário – Comentários ao CTN. Vol. 3. São Paulo; J. Bushatshy,
1977, p. 15.

191
Ricardo Lodi Ribeiro

sua publicação, não apresenta qualquer singularidade no plano da vigência. O que


ocorre nesses casos é o adiamento da aplicação da lei, o que ocorre no plano da efi-
cácia. A lei nessa situação não se aplica aos fatos geradores ocorridos até o primei-
ro dia do exercício seguinte.32
Com a edição da EC nº 32/01, que introduziu um § 2º ao art. 62 do Texto
Maior, a instituição ou majoração de impostos, exceto os que não se submetem ao
princípio da anterioridade, se efetivada por medida provisória, não pode ser aplica-
da de imediato. Só produzirá efeitos em relação ao exercício seguinte se for conver-
tida em lei até o último dia daquele em que for editada.33 Caso não ocorra a con-
versão em lei até o último dia do ano de sua edição, só poderá ser cobrada no ano
seguinte ao da sua conversão. Isso vale dizer que não será mais possível que impos-
tos sejam exigidos com base em medidas provisórias, senão em relação a fatos gera-
dores ocorridos no exercício seguinte ao da sua conversão em lei.
A introdução do dispositivo constitucional é muito louvável por reforçar o
princípio da não-surpresa do contribuinte e combater o uso abusivo de medidas
provisórias no fim do ano para a cobrança após poucos dias (ou até horas), embora
exercício seguinte. A sua injustificável restrição aos impostos faz com que os
demais tributos continuem podendo ser cobrados com base em medidas provisórias
ainda não convertidas em lei.34

5) A Anterioridade Nonagesimal

A Constituição de 1988 criou uma original anterioridade mitigada ou anteriori-


dade nonagesimal (art. 195, § 6º) a ser aplicada às contribuições destinadas à segurida-
de social. De acordo com a regra constitucional, só pode haver a aplicação da norma
em relação a fatos geradores ocorridos noventa dias após a publicação da lei que as ins-
tituiu ou majorou, sendo irrelevante que isso ocorra no mesmo exercício ou não.
Em relação aos fatos geradores complexivos, embora o STF tenha entendido
que a lei não poderá atingir os fatos geradores encerrados durante o curso do prazo
de noventa dias,35 acabou por admitir a retroatividade imprópria com a aplicação

32 NOVELLI, Flávio Bauer. “O princípio da anualidade tributária”, p. 90. No mesmo sentido: FERRAZ JR.,
Tércio Sampaio. “Anterioridade e Irretroatividade no Campo Tributário”. In: TÔRRES, Heleno Taveira.
Tratado de Direito Constitucional Tributário – Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 237.
33 “Art. 62, § 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos
nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido
convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 32, de 2001).”
34 Contra: LOPES, Mauro Luís Rocha. “O Princípio da Anterioridade e a Reforma Tributária – E.C.
42/2003”. In: ROSA, Eugênio (Coord.), A Reforma Tributária da Emenda Constitucional nº 42/2003. Rio
de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 153, que sustenta a aplicação do dispositivo a todos os tributos.
35 STF, Pleno, RE nº 138.284-CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 28/08/92, p. 13.456.

192
Temas de Direito Constitucional Tributário

de uma norma em relação a fatos geradores que seriam encerrados após a conclu-
são da noventena, mas que englobava situações fáticas iniciadas antes do referido
prazo, com o que resta esvaziada a regra.36
Conforme também já decidido pelo STF, nas contribuições instituídas por
medida provisória que foi reeditada (o mesmo vale para a que teve o seu prazo
prorrogado com base na EC nº 32/01), o prazo de noventa dias começa a fluir da
primeira edição da norma, e não da publicação da lei de conversão, desde que não
haja alterações significativas e nem solução de continuidade entre as edições.37
Entendeu também o STF que a anterioridade nonagesimal só se aplica em
relação aos tributos instituídos ou majorados pela lei nova e não aos que tiveram
sua vigência prorrogada, como a CPMF.38 Ressalte-se que o entendimento esposa-
do na decisão – embora nos pareça equivocado, uma vez que a prorrogação da
vigência da lei tributária temporária equivale à criação de tributo em relação ao
tempo posterior a previsão original – também se aplica às limitações constitucio-
nais do art. 150, III, b e c.

6) A Noventena Constitucional

Com a promulgação da EC nº 42/03, foi introduzida a alínea c ao art. 150, III,


que estabeleceu regra similar à da anterioridade nonagesimal do art. 195, § 6º, da
Constituição para os demais tributos. No entanto, ao contrário do dispositivo apli-
cável às contribuições da seguridade social, o preceito em comento é conjugado à
anterioridade do art. 150, III, b.39
O resultado da conjugação das regras das alíneas b e c do art. 150, III, CF, é
uma sistemática que privilegia a proteção mais eficaz para o contribuinte. Assim,
se o tributo for instituído ou majorado nos últimos noventa dias do ano (ou seja,
entre o dia 03 de outubro e o dia 31 de dezembro), aplica-se a noventena, só poden-
do ser exigido o tributo, com base na nova lei, a partir do 91º dia da publicação da
norma que efetivou a oneração. Porém, se a lei foi publicada entre os dias 1º de
janeiro e 02 de outubro, só poderá se aplicar em relação a fatos geradores ocorridos
a partir de 1º de janeiro do ano seguinte.

36 STF, Pleno, RE nº 197.790/MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 21/01/97, p. 60.600.
37 STF, Pleno, RE 169.740/PR, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 17/11/95, p. 39.217.
38 STF, Pleno, ADIn nº 2.666/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 06/12/02, p. 51: “Ocorrência de mera pror-
rogação da Lei nº 9.311/96, modificada pela Lei nº 9.539/97, não tendo aplicação ao caso o disposto no §
6º do art. 195 da Constituição Federal. O princípio da anterioridade nonagesimal aplica-se somente aos
casos de instituição ou modificação da contribuição social, e não ao caso de simples prorrogação da lei
que a houver instituído ou modificado.”
39 GRECO, Marco Aurélio. “Anterioridade Nonagesimal na EC nº 42/2003”. In: SARAIVA FILHO,
Oswaldo Othon (Org.). Reforma Tributária – Emendas Constitucionais nº 41 e nº 42, de 2003, e nº 44,
de 2004. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 216.

193
Ricardo Lodi Ribeiro

A regra da noventena, assim como a da anterioridade, também tem suas exce-


ções constitucionais, estabelecidas na nova redação dada pela EC nº 42/03 ao § 1º
do art. 150. Assim, não são submetidos a sua disciplina: o II, o IE, o IR, o IOF, o
IEG, o Empréstimo Compulsório previsto no inciso I do art. 148 (guerra externa e
calamidade pública), e nem a fixação da base de cálculo do IPVA e do IPTU. É de
se estranhar que nessa regra tenha sido excepcionado o IR, e não o IPI, uma vez
que as razões vinculadas à extrafiscalidade deste último que levaram o legislador
constituinte originário a excepcioná-lo em relação à anterioridade clássica, e que
também fundamentam a exceção ao novo dispositivo constitucional em relação ao
II, IE e IOF, se fazem aqui presentes. O que houve foi uma manobra astuta das
bases governistas, para trocar na redação da emenda, a ressalva ao inciso IV do art.
153 pelo inciso III do mesmo artigo.40 Assim, retirou-se a proteção no IR, onde esta
se fazia mais importante à tutela da não-surpresa do contribuinte em face das cons-
tantes alterações da legislação deste imposto nos últimos dias do ano. Em troca,
quase que para fazer a alteração passar desapercebida, se excepcionou a noventena
em relação ao IPI, onde a garantia não faz muito sentido. Porém, tal manobra foi
chancelada pelo legislador constituinte derivado, vinculando o legislador.41 Nota-
se também que não foram excepcionados da regra da noventena das alterações de
alíquota do ICMS monofásico a ser instituído sobre combustíveis e lubrificantes e
da CIDE-Combustíveis, que segundo, respectivamente, o art. 155, § 4º, IV, c, e o
art. 177, § 4º, I, b (ambos com redação dada pela EC nº 33/01), não obedecem ao
princípio da anterioridade. A exceção em relação às alterações das bases de cálcu-
lo do IPVA e do IPTU se destina a mitigar o rigor estabelecido pelos Tribunais
Superiores à aplicação, como vimos sem fundamento, dos princípios da legalidade
e anterioridade no que se refere às plantas de valores dos dois impostos. A despei-
to dessa motivação, com a redação dada pela Emenda Constitucional, qualquer
alteração na base de cálculo dos referidos impostos só obedecerá à regra da alínea
b, mas não a da alínea c, do art. 150, III.
Com a conjugação das exceções das alienas b e c do art. 150, III, passamos a
ter quatro regimes de tributos em relação ao cumprimento da anterioridade:

a) Regra Geral: Aplicam-se as duas proteções, com a anterioridade clássica


prevalecendo em relação às leis publicadas até dia 02 de outubro de cada

40 Como noticia Ricardo Mariz de Oliveira, o texto original da PEC nº 41/03, que deu origem à EC nº 42/03,
não previa a regra da noventena, que foi inserida nas emendas substitutivas aprovadas na Câmara dos
Deputados. Porém, tais emendas não previam a exclusão do IR, o que só veio a se dar com a Emenda
Aglutinativa nº 27, de 03/09/2003. (OLIVEIRA, Ricardo Mariz. “Ampliação do Âmbito do Princípio da
Anterioridade das Leis Tributárias”. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon (Org.). Reforma Tributária –
Emendas Constitucionais nº 41 e nº 42, de 2003, e nº 44, de 2004. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 267).
41 Registre-se a posição de Ricardo Lobo Torres, que defende que, mesmo em face da redação dada a EC nº
42/03, a noventena não se aplica ao IPI (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado...., v. II, Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 563).

194
Temas de Direito Constitucional Tributário

ano, e a noventena em relação às publicadas a partir de 03 de outubro. Essa


sistemática é aplicada em relação ao ITR, ao IGF, ao ITD, ao ICMS (exceto
na modificação de alíquotas em relação à incidência monofásica sobre com-
bustíveis e lubrificantes), ao ITBI, ao ISS, aos demais elementos da obriga-
ção tributária, excetuando-se a base de cálculo, do IPVA e do IPTU, às
Taxas, às Contribuições de Melhoria, às Contribuições Parafiscais (exceto as
contribuições da seguridade social e as alterações de alíquota da CIDE-
Combustíveis) e Empréstimos Compulsórios do art. 148, II (investimento
público de caráter urgente e de relevante interesse nacional).
b) Regra da Anterioridade Exclusiva: Aplica-se só o dispositivo do art. 150, III,
b: IR e alterações na base de cálculo do IPVA e do IPTU.
c) Regra da Noventena Exclusiva: Aplica-se só a norma do art. 150, III, c:
Contribuições da Seguridade Social,42 IPI, alterações de alíquota da CIDE-
Combustíveis e do ICMS monofásico sobre combustíveis e lubrificantes.
d) Regra da Alteração Imediata: II, IE, IOF, IEG e Empréstimos Compulsórios
do art. 148, I (Guerra Externa e Calamidade Pública).43

Quanto à conjugação da nova regra do art. 150, III, c, com a do § 2º do art. 62,
que dispõe que as medidas provisórias que instituírem ou majorarem impostos só
poderão ser aplicadas no exercício seguinte ao da conversão em lei, de modo a exi-
gir que a aplicação da norma editada pelo Presidente da República esteja condicio-
nada não só à sua conversão em lei no exercício anterior ao da incidência, mas tam-
bém que a promulgação legislativa se dê noventa dias antes da cobrança, nos pare-
ce construção que, embora desejável, e até já defendida em doutrina,44 não se possa
extrair do atual Texto Constitucional.

7) A Anterioridade e as Emendas Constitucionais

Questão bastante controvertida é a possibilidade de o constituinte derivado


estabelecer restrições ou exceções ao princípio da anterioridade tributária. O STF,
por ocasião do julgamento da constitucionalidade da EC nº 03/93, que trouxe ao
nosso ordenamento jurídico o IPMF, excepcionando em relação ao imposto a regra
do art. 150, III, b, CF, e as imunidades do art. 150, VI, CF, considerou serem todos
os princípios e imunidades do art. 150 cláusulas pétreas previstas no art. 60, § 4º,
IV, CF, por se inserirem entre os direitos individuais do contribuinte.45

42 Inclusive CPMF (art. 75, § 1º, do ADCT).


43 No mesmo sentido: LOPES, Mauro Luís Rocha. “O Princípio da Anterioridade...”, pp. 147-149, onde o
autor chama de Anterioridade Máxima, Média e Mínima, respectivamente, as regras contidas nas letras
a, b e c do texto.
44 LOPES, Mauro Luís Rocha. “O Princípio da Anterioridade...”, p. 153.
45 STF, Pleno, ADIn nº 939-7/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJU 28/03/94, p. 5.165.

195
Ricardo Lodi Ribeiro

Tal decisão, pela sua amplitude, foi criticada em doutrina, por Flávio Bauer
Novelli, que entendeu, com razão, não ser o referido princípio uma cláusula pétrea,
e nem ter a EC nº 3/93, ao excepcionar a anterioridade em relação ao IPMF, che-
gado a violar o núcleo essencial do aludido direito individual.46 De fato, a decisão
do STF parece se apoiar numa tendência, muito difundida no Brasil após a promul-
gação da Constituição de 1988, de universalização das cláusulas pétreas a situações
que não merecem ser protegidas contra a alteração do legislador futuro. Porém, é
de se notar que a banalização das cláusulas pétreas não encontra adesão pacífica no
próprio STF, como revela o voto do Min. Joaquim Barbosa, no julgamento da cons-
titucionalidade da contribuição dos servidores aposentados, em discussão que tan-
genciou o tema da proteção ao direito adquirido como cláusula pétrea.47
A discussão sobre as cláusulas pétreas se insere no conflito entre a Soberania
Popular e o Constitucionalismo, com a primeira representada pelo predomínio da
vontade da maioria, e o último com a contenção jurídica do poder em nome da
liberdade do cidadão.48 A sua adoção, em nosso ordenamento constitucional, se por

46 NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional? A propósito do art. 2º, § 2º, da
Emenda Constitucional nº 3/93”. Revista de Direito Administrativo 199: 21-57, 1995.
47 STF, Pleno, ADIn nº 3.105-8/DF, Rel. p/Acórdão: Min. Cezar Peluso, DJU 18/02/05, trecho do voto do
Min. Joaquim Barbosa, obtido no sítio do STF (www.stf.gov.br, acesso em 03/05/07): “Contudo, ante a
amplitude desmesurada que se lhe quer atribuir, vejo a teoria das cláusulas pétreas como uma constru-
ção intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão oportunista e utilita-
rista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos pelo nosso sistema constitucional.
Conservadora porque, em essência, a ser acolhida em caráter absoluto, como se propõe nesta ação dire-
ta, sem qualquer possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes,
tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das cláusulas pétreas terá
como conseqüência a perpetuação da nossa desigualdade. Constituiria, em outras palavras, um formidá-
vel instrumento de perenização de certos traços da nossa organização social. A Constituição de 1988 tem
como uma das suas metas fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o
que diz seu art. 3º, incisos III e IV. Ora, a absolutização das cláusulas pétreas seria um forte obstáculo
para a concretização desse objetivo. Daí o caráter conservador da sua pretendida maximização. Essa teo-
ria é antidemocrática porque, em última análise, visa a impedir que o povo, por intermédio de seus
representantes legitimamente eleitos, promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias
à eliminação paulatina das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos. O
povo tem, sim, o direito de definir o seu futuro, diretamente ou por meio de representantes ungidos com
o voto popular. Além de antidemocrática, a tese que postula a imutabilidade perpétua de certas caracte-
rísticas de nosso pacto é ilusória. No constitucionalismo moderno, somente por intermédio dos procedi-
mentos da emenda constitucional e da jurisdição constitucional, fenômeno jurídico hoje quase univer-
sal, é que se consegue manter a sincronização entre a Constituição e a realidade social, cuja evolução é
contínua e se dá em ritmo avassalador. Ou seja, é insensato conceber que o constituinte originário possa
criar aquilo que o professor Canotilho qualifica como uma ‘constituição imorredoira e universal’. A evo-
lução do pacto constitucional deve ser a regra, sob pena de se criar um choque de gerações, que pode até
mesmo conduzir à esclerose do texto constitucional e do pacto político que ele materializa”.
48 SARMENTO, Daniel. “Direito Adquirido, Emenda Constitucional, Democracia e Justiça Social”. In:
SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 5. Sobre a fundamentação
das doutrinas que, historicamente, censuravam e defendiam as mudanças no texto constitucional, vide:
ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y Constitución. Trad. Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2005, pp. 38
e segs. Para o exame do tema nos EUA, onde a Constituição não prevê cláusula pétrea, vide: ACKER-
MAN, Bruce. Nós, o Povo Soberano – Fundamentos do Direito Constitucional. Trad. Mauro Raposo de

196
Temas de Direito Constitucional Tributário

um lado não deixa de impor uma limitação dos poderes de decisão das gerações futu-
ras sobre temas que foram petrificados pela geração que elaborou a Constituição,49
por outro, torna-se fundamental na sustentação do Estado Democrático de Direito
e dos direitos fundamentais que não podem ficar à mercê das paixões de maiorias
legislativas eventuais, a fim de “evitar que pela via formal-legalista de uma lei de
reforma constitucional, o ordenamento constitucional vigente venha a ter suprimi-
dos (beseitigt) sua substância e seus fundamentos, e possa ser indevidamente usado
para posterior legalização de um regime totalitário”.50
Embora sejam achados registros de casos isolados de dispositivos constitucionais
protegidos contra o poder de reforma desde o séc. XIX, é com desmoronamento dos
direitos fundamentais consagrados pela Constituição de Weimar, diante da ascensão
dos nazistas, a partir de um regramento constitucional que não encontrava qualquer
limite material ao poder de reforma, é que o tema das cláusulas pétreas ganhou
importância nos textos constitucionais promulgados após a II Guerra Mundial.51

Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 9-21, onde o autor se opõe ao fundamentalismo na defesa dos
direitos fundamentais contra as alterações constitucionais, defendido por Dworkin e Rawls, e também ao
monismo dos que sustentam a supremacia da vontade popular expressada no Parlamento sobre aqueles
direitos, como Oliver Holmes e John Ely, propondo um dualismo, em que o Congresso é livre para alte-
rar as regras cotidianas, salvo nos temas em que o povo se mobiliza para alterar e redefinir sua própria iden-
tidade política, em julgamentos que devem ser da “corrosão ilegítima, por meio de decisões estatutárias de
um governo regular”. Sobre o debate entre o dualismo de Ackerman e o fundamentalismo de Dworkin e
Rawls, vide também: CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva – Elementos da
Filosofia Constitucional Contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 167-170.
49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra:
Almedida, 1998, p. 943: “O verdadeiro problema levantado pelos limites materiais do poder de revisão
é este: será defensável vincular gerações futuras a idéias de legitimação e a projetos políticos que, pro-
vavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que se
colheram nos Writings de Thomas Jefferson: ‘uma geração de homens tem o direito de vincular outra?’
A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma constituição pode conter a vida
ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos histó-
ricos, e, conseqüentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há
também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa, e esta não é compatí-
vel com a completa disponibilidade da constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o
órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Não deve banalizar-se a sujeição da lei fundamental à
disposição das maiorias parlamentares de ‘dois terços’. Assegurar a continuidade da constituição num
processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição não só de uma revisão
total (desde que isso não seja admitido pela própria constituição), mas também de alterações constitu-
cionais aniquiladoras da identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isso acontecer
é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte mas não perante uma mani-
festação do poder de revisão.”
50 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland. V. I, 2. ed. Munique: C. H. Bech, 1984,
p. 167, apud: NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional?..., p. 47.
51 De acordo com Oscar Vilhena Vieira, apenas a Constituição da Noruega de 1814 e a Constituição
Francesa de 1875, após a Reforma de 1884, previam a limitação do poder de reforma em relação a deter-
minadas matérias, sendo a importância para o tema despertada após a ascensão do nazifascismo: “Nesse
contexto de Constituições flexíveis e de um Estado com pretensões de neutralidade, que atravessa todo
o século XIX, a idéia de cláusulas constitucionais intangíveis é quase inconcebível. Mesmo as Consti-
tuições rígidas do início do século XX, que não foram outorgadas por um monarca, como a Constituição

197
Ricardo Lodi Ribeiro

Deste modo, a interpretação das cláusulas pétreas deve limitar a sua proteção,
como afirma Daniel Sarmento, ao “que é realmente necessário para a continuidade
do projeto constitucional de construção de uma democracia substancial, de cida-
dãos livres e iguais”.52 E não impor decisões conjunturais do constituinte originá-
rio às gerações futuras, incluindo direitos absolutamente secundários para a preser-
vação da democracia e da dignidade humana.53
Nesse diapasão, é de se perquirir se o princípio da anterioridade constitui uma
das garantias fundamentais para a manutenção do Estado Social e Democrático de
Direito e dos compromissos materiais assumidos pelo Texto Maior de 1988.
Considerando a imprevisibilidade do futuro, evidenciada pela sociedade de risco,
onde a segurança se volta para o passado, não podendo ser garantida de forma abso-
luta em relação ao futuro,54 a resposta a essa pergunta nos parece negativa,55 vei-
culando a Constituição uma regra que não se insere entre os elementos essenciais
do Estado Social e Democrático de Direito, pois não constitui nem em garantia da
sua manutenção, nem da preservação da própria idéia de segurança jurídica do con-
tribuinte, muito mais bem agasalhada pelos princípios da irretroatividade e da pro-
teção da confiança legítima. Como bem ressaltou o Min. Francisco Rezek em voto

de Weimar, de 1919, não estabelecem limites materiais ao poder de reforma exercido extraordinaria-
mente pelo Parlamento. As Constituições de diversos países europeus apenas irão se familiarizar com o
conceito de cláusulas dotadas de uma rigidez superior às demais normas da Constituição após a II Guerra
Mundial, como reflexo do nazismo e do fascismo. A tomada do poder por Mussolini e as alterações do
Estatuto Albertino de 1848, levadas a cabo para legalizar o regime fascista, do ponto de vista constitu-
cional não oferecem muitos problemas, visto tratar-se esse Estatuto de uma Constituição de caráter fle-
xível. Assim, a alteração da base da soberania pôde ser realizada sem que houvesse qualquer ruptura com
a Constituição formal. Nesse sentido serão as alterações do sistema constitucional de Weimar, realiza-
das dentro dos limites estabelecidos pela própria Constituição, logo nos primeiros meses de governo de
Hitler, que alertarão para a necessidade de construção de barreiras mais seguras contra a erosão consti-
tucional” (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça – Um ensaio sobre os limi-
tes materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 90-91).
52 SARMENTO, Daniel. “Direito Adquirido, Emenda Constitucional...”, p. 14. Para Konrad Hesse, a limi-
tação ao poder de reforma veda a modificação capaz de “abolir a identidade da ordem histórico-concre-
ta que fundamenta a Lei Fundamental. Isso seria o caso, em uma modificação do núcleo material da
Constituição, isto é, dos elementos fundamentais da ordem democrática e estatal-jurídica da Lei
Fundamental” (HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 512).
53 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça..., p. 246.
54 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 58.
55 NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional?..., p. 33: “a anterioridade, embora
consubstancie, enquanto limitação do poder de tributar, garantia constitucional do contribuinte, não
constitui, entretanto, rigorosamente falando, verdadeiro direito fundamental, ou seja, tal como a “fina-
da” anualidade tributária, não constitui um dos direitos fundamentais ou individuais invioláveis direta
e imediatamente tutelados contra o exercício do poder de emenda, pelo art. 60, § 4º, nº IV, da
Constituição Federal. Segue-se daí, ao nosso ver, necessariamente, que uma emenda constitucional, tal
como a Emenda nº 3/93, poderia, em princípio, não apenas restringi-la, limitá-la, suspendê-la ou derro-
gá-la, mas até mesmo aboli-la, desde que, assim fazendo, não viria a afetar-se o núcleo intangível, o con-
teúdo essencial do direito fundamental também por ela garantido, no caso, o direito individual inviolá-
vel à segurança jurídica”.

198
Temas de Direito Constitucional Tributário

vencido proferido no julgamento da Medida Liminar da aludida ADIn do IPMF, a


anterioridade “não é garantia para ninguém!”56 No mesmo sentido, foi o voto ven-
cido do Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do mérito da referida ação.57
Por outro lado, ainda que a anterioridade constituísse elemento essencial à
tutela do direito individual à segurança jurídica do contribuinte, de modo a impe-
dir a sua supressão por emenda constitucional, há que se reconhecer que a sua
exceção pelo legislador constituinte derivado em relação a determinado imposto,
como já estabelecido pelo constituinte originário em face de outros, não chega a ser
medida tendente a abolir a referida limitação constitucional ao poder de tributar,
como vedado pelo art. 60, § 4º, CF, uma vez que as cláusulas pétreas não impedem
a modificação do conteúdo ou até mesmo a restrição do direito por elas tutelado,
protegendo apenas o núcleo essencial deles.58

56 STF, Pleno, ADInMC nº 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJU 17/12/93, p. 28.066, trecho do voto do
Min. Francisco Rezek, , obtido no sítio do STF (www.stf.gov.br, acesso em 03/05/07): “Mas não acho que
a regra da anterioridade seja um princípio intocável pelo próprio Congresso Nacional, em trabalho de
emenda à Carta. Começaria a ver nessa regra algo parecido com um princípio em favor do cidadão, do
contribuinte, se pelo menos ela pretendesse, para evitar o fato surpresa, estabelecer para nós todos uma
garantia de acomodação, dizendo que não se nos pode exigir um tributo que não tenha sido inventado,
pelo legislador, pelo menos seis, doze ou vinte e quatro meses antes. Embora sujeitos, os brasileiros, a
surpresa de toda ordem no seu dia-a-dia, a regra nos soaria como um princípio que nos previne contra
a surpresa ocasionada pelo Estado enquanto entidade tributante. Mas, não, a regra não diz nada disso.
Ela diz que não se cobra, em certo exercício, aquilo que não tenha sido concebido legislativamente no
exercício anterior. Assim, nenhum de nós está livre de ser legitimamente cobrado, na primeira semana
de janeiro, de um tributo que se tenha inventado na última semana de dezembro. Santo Deus! Isso não
é garantia para ninguém. O que há aí é mera regra de comodidade orçamentária, para que as empresas
se organizem, para que o erário se organize em função do ano civil. Não vejo aí uma regra que venha
estabelecer um intervalo cronológico, justo e razoável, entre o momento em que se institui o tributo e
o momento em que se cobra o tributo. Não vejo, por isso, como dizer que a emenda constitucional ora
em exame viola um princípio concebido para dar segurança aos cidadãos.”
57 STF, Pleno, ADIn nº 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJU 18/03/94, p. 5.165, trecho do voto do Min.
Sepúlveda Pertence, obtido no sítio do STF (www.stf.gov.br, acesso em 03/05/07): “Creio que na demar-
cação de qual seja a extensão da limitação material ao poder de reforma constitucional, que proíbe a deli-
beração sobre propostas tendentes a abolir direitos e garantias individuais, o intérprete não pode fugir a
uma carga axiológica a atribuir, no contexto da Constituição, a eventuais direitos e garantias nela inse-
ridos, E não consigo, por mais que me esforce, ver, na regra da anterioridade, recortada de exceções no
próprio Texto de 1988, a grandeza de cláusula perene, que se lhe quer atribuir, de modo a impedir ao
órgão de reforma constitucional a instituição de um imposto provisório que a ela não se submeta.”
58 NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional?..., pp. 45-46 e 49: “os limites do poder
de emenda não são em absoluto transgredidos (e, portanto, que uma emenda não viola a constituição)
tão-somente porque se dê às matérias postas ao abrigo daqueles limites uma diversa disciplina, ou por-
que sejam elas até mesmo eventualmente restringidas em favor de determinado interesse constitucio-
nalmente valioso. Tais limites propriamente não se transgridem, senão quando a modificação ou a res-
trição trazida pela lei constitucional (emenda), por atingir o cerne constitucional intangível” (PONTES
DE MIRANDA), o chamado conteúdo essencial dos interesses valores ou princípios por ele tutelados,
comprometa – para repetir SCHMITT – a identidade e a continuidade da Constituição, ao ponto de des-
figurá-la, de torná-la uma outra. Assim, uma emenda constitucional viola substancialmente a
Constituição se, por exemplo, por meio dela, um direito fundamental, tal como direito à segurança jurí-
dica é – para usar a mesma expressão empregada por SCHMITT – suprimido ou aniquilado (vernichtet),

199
Ricardo Lodi Ribeiro

Como se vê, a anterioridade não é um direito fundamental do contribuinte,


mas, muito ao contrário, uma norma que já veio excepcionada, por diversas vezes,
pelo constituinte originário, seja em nome da extrafiscalidade, seja para o custeio de
despesas urgentes. Ocorre que nem a extrafiscalidade, nem o atendimento de des-
pesas urgentes podem ser matérias reservadas ao constituinte originário. O Estado
atual, para enfrentar os desafios dos riscos sociais imprevisíveis, deve ter instrumen-
tos ágeis para estabelecer novas políticas extrafiscais, para as quais a exceção à ante-
rioridade é uma das principais características constitucionais. O mesmo se dá em
relação às despesas decorrentes de eventos urgentes, cuja previsibilidade, na socie-
dade de risco, foge completamente da visão do Constituinte de 1988.
Embalada pelo fundamento extrafiscal, a EC nº 33/01, estabeleceu a inaplica-
bilidade da anterioridade anual em relação às majorações de alíquota do ICMS
monofásico a ser instituído sobre combustíveis e lubrificantes (art. 155, § 4º, IV, c)
e da CIDE-Combustíveis (art. 177, § 4º, I, b), em dispositivos que não foram ques-
tionados nos Tribunais.

8) A Revogação de Isenção e a Anterioridade

Questão polêmica é a necessidade de respeito à anterioridade em caso de revo-


gação de isenção. Embora o art. 104, III, do CTN disponha sobre a matéria, o des-
linde da questão não prescinde do exame do conceito de isenção.
De acordo com a doutrina nacional menos recente, na esteira de Rubens
Gomes de Sousa, a isenção se traduziria na dispensa legal do pagamento do tribu-
to. Logo, o fato gerador ocorria, mas a lei dispensaria o seu pagamento.59 Para os
seguidores dessa corrente, a revogação de isenção não significaria criação de tribu-
to. Com isso, o respeito à anterioridade não seria exigível pela Constituição Federal.
Todavia, essa corrente, que apesar dos seus fracos arcabouços teóricos60 foi consa-

ou se um princípio estrutural, como o princípio federativo, é medularmente ferido; em suma, se se atin-


ge, como diz KLAUS STERN, o que é absolutamente intangível (unantasbar): “der Kernbereich der
Verfassungsstaatlichkeit”, ou seja, o “âmbito nuclear da estatalidade constitucional”. Para resumir: a dita
inviolabilidade dos direitos fundamentais ou a dos princípios estruturais do Estado, não significa, desen-
ganadamente, pura e simples imodificabilidade, isto é, inemendabilidade. (...) Resumindo: uma emenda
constitucional tende a abolir um direito ou garantia individual ou um princípio estrutural (e é, então, mas
só então, proscrita), não apenas quando de fato os suprime, mas também quando os atinge de forma equi-
valente, ou seja, quando lhes toca o núcleo inviolável – o seu conteúdo essencial”. Registre-se, porém, a
advertência de Kaufmann, de que o núcleo dos direitos fundamentais não é algo universal-abstrato nem
relativo, mas relacional, uma magnitude histórica: “Los derechos humanos no son válidos como un abs-
tracto universal; sólo son válidos allí donde sean otorgados en concreto” (KAUFMANN, Arthur.
Hermenéutica y Derecho. Trad. Andrés Ollero y José Antonio Santos. Granada: Comares, 2007, p. 203).
59 SOUSA, Rubens Gomes. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 97.
60 Para uma contundente, mas procedente, crítica à tese de Rubens Gomes de Sousa sobre o conceito de
isenção, vide: NOVELLI, Flávio Bauer. “Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988”. Revista
de Direito Tributário 51: 68, 1990.

200
Temas de Direito Constitucional Tributário

grada pela Súmula 615 do STF,61 aplica a anterioridade na revogação de isenção em


relação aos impostos sobre patrimônio e renda por força do art. 104, III, do CTN.
A limitação material do dispositivo do CTN alicerça a posição do STF consagrada
na súmula, no sentido de que o princípio não se aplica quando a revogação fosse
relativa à isenção no ICM, imposto que não incidia sobre patrimônio ou renda. No
entanto, mesmo que fosse aceita a tese de que a isenção pressupõe a ocorrência do
fato gerador, o que só é admitido para se argumentar, a solução dada pelo Pretório
Excelso não nos parece correta, uma vez que, se a isenção pressupõe a ocorrência
do fato gerador, não há aplicação da anterioridade constitucional. E, tampouco,
aplicar-se-ia o art. 104, III, do CTN, que nos parece não ter sido recepcionado pela
Constituição de 1967.
Para justificar nosso raciocínio, recordemos a história do artigo 104 do CTN.
Até a Constituição de 1946 era consagrado expressamente o princípio da anualida-
de. Porém, valendo-se de uma “interpretação patriótica”, como vimos, o STF criou
o princípio da anterioridade, nunca antes visto. Com a EC 18/65, constitucionali-
zou-se a jurisprudência do STF, acabando com o princípio da anualidade, e positi-
vando o que hoje entendemos por anterioridade. Mas a EC nº 18/65 restringiu a
anterioridade (na época ainda chamada de anualidade) aos impostos sobre o patri-
mônio e renda. E esta disciplina foi reproduzida pelo CTN, artigo 104. No entanto,
a Constituição de 1967 acabou com a anterioridade, fazendo ressurgir a velha anua-
lidade. Então, a partir do momento em que a CF/67 deixou de consagrar o princí-
pio da anterioridade, o artigo 104 não foi recepcionado, deixando de existir no
ordenamento, pois como já visto, o papel da lei complementar é regular as limita-
ções ao poder de tributar, e não criar tais limitações. Com a EC nº 01/69 o princí-
pio da anterioridade retorna ao Texto Constitucional, mas, nem por isso, o artigo
104 é repristinado, já que o Direito brasileiro não admite a repristinação, senão de
forma expressa, o que não ocorreu no caso.
Portanto, a discussão não tem como base o artigo 104 do CTN. Ou a anterio-
ridade deve ser obedecida por determinação constitucional, ou não existirá a
garantia, sendo a disciplina do art. 104 do CTN inteiramente irrelevante para o des-
linde da questão.
Para dar cumprimento à regra constitucional do art. 150, III, b e c, é preciso
voltar ao conceito de isenção para verificar se a revogação desta se traduz ou não
em criação de tributo. Sem sombra de dúvida prevalece hoje a corrente que defen-
de ser a isenção uma não-incidência legalmente qualificada, conforme sustentou
José de Souto Maior Borges.62

61 Súmula nº 615: “O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da CF) não se aplica à revo-
gação de isenção do ICM” (DJU 29/10/1984).
62 BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 155.

201
Ricardo Lodi Ribeiro

Na verdade, a relação entre a lei de isenção e a lei de incidência é de especia-


lidade, onde a primeira é a regra geral, que vai se aplicar a todos os casos, e a últi-
ma norma especial, destinada a determinado caso ou sujeito específico. Então, o
reconhecimento da isenção revela a prevalência da lei especial sobre a geral.
Ocorre, portanto, o fenômeno de derrogação, e não de revogação.63
Para essa corrente, a qual nos filiamos, o fato gerador não ocorre na isenção.
Revogada esta o tributo volta a incidir. Portanto, a lei que revoga isenção está
criando tributo, devendo ser respeitada a anterioridade por imposição constitucio-
nal do art. 150, III, b e c, ou, se for o caso, do art. 195, § 6º, em qualquer situação,64
e não apenas nos impostos sobre patrimônio e renda.
A despeito desses argumentos, o STF entendeu, mais recentemente, que a
revogação de isenção não precisa respeitar a anterioridade.65

63 NOVELLI, Flávio Bauer. “Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988”, p. 68.


64 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Teoria e Prática das Isenções Tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 166.
65 STF, 2ª Turma, RE nº 204.062-2/ES, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 19/12/96, cuja ementa se transcreve:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO: REVOGAÇÃO. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE.
I. – Revogada a isenção, o tributo torna-se imediatamente exigível. Em caso assim, não há que se obser-
var o princípio da anterioridade, dado que o tributo já é existente. II. – Precedentes do Supremo Tri-
bunal Federal. III. – R.E. conhecido e provido.”

202
XII
O Princípio da Capacidade Contributiva
Sumário: 1) Introdução. 2) Breve Histórico da Capacidade Contributiva. 3) Fundamento,
Conteúdo e Extensão do Princípio da Capacidade Contributiva. 4) Conflitos da Capacidade
Contributiva com Outros Interesses Almejados pela Tributação. 5) A Capacidade Contri-
butiva como Princípio Interpretativo. 6) Conclusões.

1) Introdução

A doutrina mais moderna, na esteira de Dworkin1 e Alexy,2 entende que o


gênero normas jurídicas divide-se em princípios e regras. Os princípios são normas
de grau de abstração elevada que, segundo Larenz, se traduzem em pensamentos
diretivos de uma regulação jurídica existente e possível. São, em si mesmos, insus-
cetíveis de aplicação, pois carecem das regras para serem concretizados. No entan-
to podem transformar-se em regras.3
Os princípios são comandos de otimização, que se traduzem em enunciados
genéricos posicionados na faixa intermediária, no que tange à abstração, entre os
valores e as regras. Os primeiros, idéias abstratas, dotadas de grande placidez e
amplitude, mas que guardam, porém, um baixo grau de concretitude. Embora não
contidos necessariamente nos textos legais, os valores informam todo o ordena-
mento jurídico, como a Justiça, a Segurança Jurídica, a Liberdade e a Igualdade. As
regras, ao contrário, revelam um alto grau de concretitude, atribuindo direitos e
deveres, se subordinando aos valores e princípios. Segundo Canotilho, as últimas
contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea
de regras contraditórias.4
Situando-se entre os valores e as regras, os princípios, como já exposto, vão
variar, em grau de abstração, entre estes dois pólos. Prevê a Constituição princípios
extremamente abstratos, como a isonomia, onde o constituinte traz para o Texto

1 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Havard University Press, 1980, p. 24.
2 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés: Centro de
Estúdios Constitucionales, 1993, p. 86.
3 LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Etica Jurídica. Tradução de Luis Díez-Picazo. Madrid:
Civitas, 1985, p. 32.
4 Sobre a distinção de princípio e regra, diz J. J. CANOTILHO: “As diferenças qualitativas traduzir-se-ão,
fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impo-
sitivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condiciona-
mentos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência
(impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-
or-nothing fashion);” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedida, 1998, p. 1.035.

203
Ricardo Lodi Ribeiro

Maior o próprio valor da Igualdade, com toda a sua carga abstrata, demandando
uma concretização e integração pela regra. De outro lado, temos princípios, como
o da anterioridade, que se revelam verdadeira regra inspirada no princípio da segu-
rança jurídica.5
Ao contrário das regras, que convivem de forma antinômica, e por isso ado-
tam, quanto à sua aplicabilidade, a lógica do all-or-nothing, os princípios, consti-
tuindo exigências de otimização, são ponderáveis, permitindo o balanceamento de
valores e interesses.
Com efeito, constituindo-se a Segurança Jurídica e a Justiça os valores supre-
mos do ordenamento jurídico, o tributo justo passa a ser aquele que cumpre os
princípios da legalidade e da capacidade contributiva. Não havendo hierarquia
entre os dois princípios, eventuais tensões entre eles são resolvidas pela pondera-
ção. A ponderação de princípios, segundo Daniel Sarmento,6 se dá em duas etapas:
na primeira o intérprete que se depara com uma possível colisão entre eles verifi-
ca, a partir dos limites imanentes, a existência da real contradição. Se esta foi cons-
tatada passa-se à segunda fase, onde o intérprete irá verificar o princípio de maior
peso, que irá prevalecer sobre o outro. Tratando-se de interesses que na escala de
valores apresentada pela Constituição apresentam o mesmo peso genérico, restará
ao intérprete verificar o peso específico que a legalidade e a capacidade contributi-
va possuem no caso concreto.
Na passagem do Estado Liberal para o Estado Democrático e Social de Direito,
o valor da Segurança Jurídica passou a ser efetivado não apenas pela legalidade
numa acepção individualista, mas a partir da sua reaproximação com o valor da
Justiça, vinculou-se com os interesses da sociedade.7
Mediante a aproximação da Segurança Jurídica com a Justiça, a ponderação
entre esses dois valores promove a convivência pacífica entre os princípios deles
decorrentes, em especial, o da legalidade e o da capacidade contributiva.8 Em con-
seqüência, será revelada uma norma tributária que será interpretada de acordo com
a manifestação de riqueza do contribuinte, a partir de uma atividade valorativa, e

5 Nesse sentido SARMENTO, Daniel na obra A Ponderação de Interesses na Constituição Federal (Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 51), onde o autor sustenta ser o princípio da anterioridade, previsto no
art. 150, III, b, da Constituição de 1988, uma verdadeira regra, e não um princípio.
6 Ibidem, p. 102.
7 Para PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique: “La aproximación entre seguridad y justicia se produce ahora a
partir de una concreción de ambos valores. El primero deja de identificarse con la mera noción de lega-
lidad o de positividad del Derecho, para conectarse inmediatamente com aquellos bienes jurídicos bási-
cos cuyo “aseguramiento” se estima social y políticamente necessario. La justicia pierde su dimensión
ideal y abstracta para incorporar las exigencias igualitarias y democratizadoras que informan su conteni-
do em el Estado social de Derecho” (La Seguridad Jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 72).
8 TORRES, Ricardo Lobo. “Legalidade Tributária e Riscos Sociais”. Revista de Direito da Procuradoria-
Geral do Estado do Rio de Janeiro 53, 2000, p. 179.

204
Temas de Direito Constitucional Tributário

não meramente cognitiva, do aplicador do direito, não tendo cabimento soluções


formalistas como as que limitam o fenômeno jurídico aos conceitos fechados.

2) Breve Histórico da Capacidade Contributiva

A idéia de capacidade contributiva foi desenvolvida a partir das reflexões


sobre a Justiça aplicáveis ao Direito Tributário. Embora na Antigüidade greco-
romana sejam encontradas importantes discussões sobre o tema da justiça,9 não há
estudos sobre a sua aplicação aos tributos. A ausência de obras sobre o tema não
impediu, contudo, que desde a mais remota antigüidade determinados tributos fos-
sem graduados de acordo com a riqueza do contribuinte, como ocorria em Atenas,
onde Sólon determinou a exigência de imposto direto por quatro categorias de con-
tribuintes, de acordo com a fortuna de cada um delas.10
A aplicação das reflexões sobre justiça aos tributos somente veio se dar na Idade
Média com a publicação de importantes obras como a de Frei Pantaleão Rodrigues
Pacheco e de Santo Tomás de Aquino. Observe-se que na obra de Frei Pantaleão
Rodrigues Pacheco já pode ser encontrado o gérmen do princípio da proporcionali-
dade: “O terceiro requisito para a imposição do tributo é a proporção, à qual Suarez
chama forma do tributo, de tal modo que os pobres não sejam obrigados a contribuir
com tanto ou com mais que os ricos, como se deduz das Leis Romanas.”11
Em Santo Tomás de Aquino também já havia a preocupação com a tributação
secundum facultatem ou secundum equalitem proportionis, sendo tidos como
injustos os tributos que não seguissem esse critério.12
No entanto, somente a partir da obra de Adam Smith é que foi possível se vis-
lumbrar o princípio da capacidade contributiva. Esta foi então concebida como
manifestação do benefício que os contribuintes auferem das atividades estatais: “Os
súditos de todos os Estados devem contribuir para a manutenção do governo, tanto
quanto possível, em proporção das respectivas capacidades, isto é, em proporção do
crédito que respectivamente usufruem sob a proteção do Estado.”13 Extrai-se da
obra de Smith o princípio da proporcionalidade, baseado na premissa de que os
benefícios estatais são gozados pelos cidadãos na proporção de sua riqueza.
Já com Stuart Mill e seu utilitarismo economicista, a capacidade contributiva
é justificada pela teoria do sacrifício igual e pela utilidade marginal do capital.

9 Nesse sentido, a obra de Aristóteles (Ética A Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2000) é um marco.
10 Exemplo extraído de CONTI, José Maurício (Princípios Tributários da Capacidade Contributiva e da
Progressividade. São Paulo: Dialética, 1997, p. 37).
11 Tratado da Justa Exacção do Tributo. In: AMZALAK, Moses Bensabat. Frei Pantaleão Rodrigues
Pacheco e o seu “Tratado da Justa Exacção do Tributo” . Lisboa: Academia de Ciências, 1957, p. 82.
12 PALAO TABOADA, Carlos. “Isonomia e Capacidade Contributiva”. Revista de Direito Tributário 4,
1978, p. 126.
13 Riqueza das Nações. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999, vol. II, p. 485.

205
Ricardo Lodi Ribeiro

Segundo ela, a riqueza passa a ser menos útil ao seu titular na medida em que
aumenta, o que seria o fundamento da progressividade.14
A visão utilitarista de Stuart Mill inspirou os juristas vinculados à jurisprudên-
cia dos interesses a identificar a capacidade contributiva como a causa do tributo.
Dentro dessa visão economicista, a preponderância da Economia sobre o Direito
influenciaria sobremaneira os tributaristas alemães do início do século XX, como
Enno Becker e Albert Hensel, que a partir de uma visão causalista de capacidade
contributiva, criaram a teoria da interpretação econômica do fato gerador, consa-
grada pelo Código Tributário Alemão de 1919. Embora baseada teoricamente na
justiça e na capacidade contributiva, a doutrina da consideração econômica do fato
gerador, que ignorava a forma jurídica do ato praticado pelo contribuinte, para
atingir os fins econômicos almejados, acabou – num ambiente político em que o
Estado precisava arrecadar cada vez mais para fazer frente às suas novas obrigações
como provedor das necessidades sociais – por desqualificar o fim almejado pela
norma confundindo-o com a necessidade de angariar mais recursos.
Na verdade, o que se buscava nessa visão utilitarista de justiça, não era a sua
condição enquanto valor jurídico, mas uma forma de arrecadar mais recursos, devi-
do ao aumento da demanda das prestações estatais, inerentes ao Estado Social.
Com a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, a doutrina da conside-
ração econômica do fato gerador foi apropriada pelo novo regime, que introduziu
a sua visão do mundo como elemento teleológico a ser seguido pelo intérprete.
Diante de tamanhas contradições com os objetivos que a inspiraram, a teoria da
consideração econômica do fato gerador entrou em declínio, na Alemanha, a par-
tir de 1955, dando-se a retomada ao formalismo do método sistemático.15
Na Itália, as idéias causalistas influenciaram muitos juristas, especialmente os
da Escola de Pavia, como Benvenutto Griziotti, Dino Jarach e Ezio Vanoni, que
desenvolveram a interpretação teleológica por meio da visão funcionalista.
Deve-se a Griziotti, o desenvolvimento da tese da causa do imposto, a partir
na noção de causa utilizada por Ranelletti.16 Segundo Griziotti, a causa jurídica do
imposto se traduziria no fornecimento de serviços e bens capazes de dar satisfação
às necessidades públicas. No entanto, seu seguidor, Dino Jarach, desenvolveu a tese
segundo a qual a causa jurídica do imposto seria, antes de tudo, a capacidade con-
tributiva.17 Desta forma, em obra posterior, Griziotti18 reviu sua posição e passou a

14 Princípios de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290.


15 BEISSE, Heinrich. “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente
Jurisprudência Alemã.” In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa
Nogueira, 1984, p. 13.
16 Natura Giuridica dell’imposto, 1898, apud BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de
Tributar. 7. ed. Atualizada por Misabel de Abreu Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 714.
17 O Fato Imponível – Teoria Geral do Direito Tributário Substantivo, pp. 99-100.
18 Riflessioni di diritto internacionale, politica, economia e finanza, R. Univ. di Pavia, 1937, apud PUGLIE-
SE, Mario, Instituciones de Derecho Financiero, p. 111.

206
Temas de Direito Constitucional Tributário

entender, como Jarach, ser a capacidade contributiva, de fato, a causa do imposto,


embora a considerando como causa específica, ao lado de uma causa geral (as pres-
tações estatais).
Outro representante da Escola de Pavia, Mario Pugliese,19 também identifi-
cou a causa do imposto na capacidade contributiva. Porém, assim, como Griziotti,
paralelamente a esta (causa específica), contemplou uma causa mais ampla: a pres-
tação de benefícios estatais.
A radicalização das idéias da Escola de Pavia levou ao afastamento da legali-
dade para se buscar a manifestação de riqueza ou a capacidade contributiva, inde-
pendentemente da previsão legal. Exemplificativa dessa tendência é a posição de
Ezio Vanoni que admite a cobrança de um tributo em hipóteses não previstas pela
lei, a partir da atividade hermenêutica.20
Porém, foi na própria doutrina italiana que a teoria da capacidade contributi-
va como causa jurídica do tributo, sofreu sua mais dura crítica. A. D. Giannini,21
considerava ser a lei a causa jurídica do imposto. Assim, o imposto seria cobrado
pelo simples fato de estar previsto na lei, a partir do poder de império do Estado,
restando à capacidade contributiva a natureza de uma mera causa pré-jurídica.
Nesse sentido: Blumenstein,22 na Suíça; Giuliani Fonrouge,23 na Argentina; Rubens
Gomes de Sousa,24 e Alfredo Augusto Becker,25 no Brasil.
A teoria da capacidade contributiva como causa jurídica do imposto ganhou
adeptos em outras partes do mundo, como Ottmar Buhler,26 na Alemanha, Louis
Trobatas,27 na França, e Aliomar Baleeiro,28 no Brasil. Porém, a aceitação das dou-
trinas causalistas, baseadas na jurisprudência dos interesses no Brasil, nunca foi
integral. Embora a teoria da consideração econômica do fato gerador tenha tido em
Amílcar Falcão um seguidor, e a tese causalista da capacidade contributiva tenha

19 Op. cit., p. 112.


20 Segundo Vanoni: “a extensão da lei tributária a hipóteses não expressamente compreendidas pelo legis-
lador, ou não previstas por ele, quando ocorra segundo as regras jurídicas e lógicas de interpretação que
temos mencionado, não pode contrariar em caso algum a disposição do art. 30 da Constituição, porque
essa extensão não representa a criação de um novo tributo, mas a realização da norma tributária”
(Natureza e Interpretação das Leis Tributárias. Tradução: Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro:
Edições Financeiras, 1952, p. 189).
21 Il rapporto giuridico dell’imposta, apud PUGLIESE, Mario, Instituciones de Derecho Financiero, p. 111.
22 System des Steuerrechts, Zurich, 1951, vol. I, p. 8, apud GUIMARÃES, Carlos da Rocha. “O Problema
da Causa no Direito Tributário”. Revista de Direito Administrativo 45/1.
23 Derecho Financiero. 7. ed. Atualizada por Susana Camila Navarrine e Rubén Oscar Asorey. Buenos
Aires: Depalma, 2001, p. 452.
24 Compêndio de Legislação Tributária. Edição Póstuma, São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 99.
25 Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 93
26 Apud BALEEIRO. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Atualizada por Misabel de
Abreu Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 727.
27 L’a applicacione della Teoria della causa nel Diritto Finanziario, apud BALEEIRO, Limitações ..., cit., p. 725.
28 Limitações..., cit., pp. 740-741.

207
Ricardo Lodi Ribeiro

encontrado apoio em Aliomar Baleeiro, tais idéias nunca penetraram em nosso país
com a radicalidade verificada nos ordenamentos de seus precursores.
De fato, a teoria da consideração econômica do fato gerador na obra de Falcão
não chegou aos extremos verificados na Alemanha, com o afastamento da legalida-
de e a confusão entre as idéias de capacidade contributiva e da busca do aumento
da arrecadação. Segundo Falcão,29 a interpretação econômica se daria diante da ati-
picidade da forma jurídica adotada pelo contribuinte com a finalidade exclusiva de
evitar o fato gerador, a partir da prática de ato com os mesmos efeitos econômicos
daquele descrito pela lei. Na verdade, o pensamento de Falcão se aproxima muito
mais das idéias hoje defendidas pelos juristas pós-positivistas do que com os segui-
dores da escola funcionalista, o que denota a modernidade, ainda nos dias atuais, da
obra do autor brasileiro.
Por outro lado, Baleeiro, ao adotar as teorias causalistas, não descurou no res-
peito à legalidade tributária como limite à ação do aplicador da lei em busca do
princípio da capacidade contributiva – principal equívoco incorrido pelos juristas
da Escola de Pavia.
Durante o período de retomada formalista, o princípio da capacidade contri-
butiva sobreviveu como mera vedação à arbitrariedade, ou seja, como limite a dis-
tinções que não fossem razoáveis. Não resta dúvida de que nessa fase o legislador
passou a ter uma maior liberdade para a definição dos fatos geradores, e o princí-
pio da capacidade contributiva entrou em crise.30
A redução do princípio da capacidade contributiva a mera vedação à arbitra-
riedade degenerou no Tribunal Constitucional Alemão na simples exigência de
fundamentação. Assim, qualquer justificativa para o afastamento do referido prin-
cípio era aceita, como, por exemplo, a necessidade financeira do Estado, a tradição
do Direito Tributário alemão, a convicção do legislador e a paciência do contri-
buinte. Fenômeno não muito diverso se deu nas jurisprudências constitucionais
espanhola e italiana, onde a simples finalidade extrafiscal do tributo era motivo
suficiente para o afastamento da capacidade contributiva.31
A inocuidade do princípio da capacidade contributiva perante o Tribunal
Constitucional Alemão levou ao seu descrédito frente à doutrina daquele país. A
posição cética de Kruse constitui o melhor exemplo dessa situação. De acordo com
o citado autor tedesco, não existem critérios objetivos para ordenar a tributação,
mas apenas necessidades financeiras que precisam ser atendidas.32

29 Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4. ed. Anotada e atualizada por Geraldo Ataliba. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, p. 71.
30 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamiento
español a la luz del Derecho alemán. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 77.
31 Ibidem, p. 78.
32 Apud HERRERA MOLINA, Op. cit., p. 78.

208
Temas de Direito Constitucional Tributário

Mas se o princípio da capacidade contributiva, em sua visão causalista, entrou


em colapso no final da década de 50 na Alemanha, no começo dos anos 60, na
Itália, começaram a surgir novas obras sobre o tema, com uma visão significativa-
mente diferente da adotada pela escola funcionalista. A mais importante delas é a
de Emilio Giardina,33 datada de 1961, onde o autor buscou dar alguma aplicabili-
dade prática ao dispositivo do art. 53 da Constituição italiana que consagra o prin-
cípio, até então tido como programático pelos tribunais, a partir do afastamento dos
tributos confiscatórios e aqueles que gravam as rendas mínimas e da graduação pro-
gressiva do sistema tributário. A partir daí, vários autores italianos publicaram
obras que buscaram dar uma maior efetividade ao citado dispositivo constitucional:
Manzoni (1965),34 Maffezoni (1970)35 e Frascesco Moschetti (1973).36 Segundo
Moschetti, a capacidade contributiva não se confunde com qualquer manifestação
de riqueza, mas se traduz, tão-somente, na real força econômica do contribuinte
que seja idônea a concorrer às despesas públicas.37
As décadas de 1980 e 1990 foram palco da reabilitação do princípio da capa-
cidade contributiva, não só na jurisprudência dos tribunais constitucionais como
na doutrina européia. São juristas como Tipke, Vogel e Lang, na Alemanha;
Moschetti, Tosi e Fantozzi, na Itália; e Calvo Ortega, Ferreiro Lapatza e Falcón y
Tella, na Espanha, que dão ao referido princípio uma nova dimensão, que vai bem
além da vedação ao arbítrio na escolha dos fatos geradores.38
Nessa nova diretriz, a capacidade contributiva representa não só um limite
negativo que exclui os fatos que não revelam manifestação de riqueza, como cons-
titui critério indispensável para a repartição da carga tributária pelos cidadãos. Essa
reabilitação do princípio, não apenas superou o ceticismo formalista, como foi bem
além do causalismo economicista, buscando conteúdo no valor da igualdade, e no
direito fundamental de pagar tributo na mesma proporção daquele que possui a
mesma riqueza.
Contudo, o princípio não é, como foi considerado na época da jurisprudência
dos interesses, absoluto, devendo ser ponderado com outros interesses buscados
pela tributação, tais como a extrafiscalidade e a praticidade administrativa.39 Assim
– e é aqui que os juristas modernos superam o argumento dos céticos que enxerga-
vam no fenômeno da extrafiscalidade a negação da capacidade contributiva como
princípio cogente – não basta a alegação de que determinada norma tributária

33 Le Basi Teoriche Del Princìpio della Capacità Contributiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 439.
34 MANZONI, Ignazio. Il Princìpio della Capacità Contributiva nell’Ordinamento Costituzionale Italiano.
Torino: G. Giappichelli, 1965.
35 MAFFEZONI, Federico. Il Princìpio della Capacità Contributiva nel Diritto Finanziario. Torino: UTET,
1970.
36 MOSCHETTI, Francesco. Il Princìpio della Capacità Contributiva. Padova: Cedam, 1973.
37 Ibidem, p. 238.
38 HERRERA MOLINA. Op. cit., pp. 73 a 77.
39 Ibidem.

209
Ricardo Lodi Ribeiro

busca um fim econômico diverso da arrecadação para se driblar o princípio da


capacidade contributiva. É preciso que tais motivos sejam justificados, à luz do
princípio da proporcionalidade.
Vale reprisar que, ao contrário do que ocorria na fase áurea das teses causalistas,
a capacidade contributiva, conforme se entende modernamente, busca seu fundamen-
to em valores, como o da Igualdade, e não mas numa visão economicista, vinculada à
necessidade de o Estado angariar recursos para promover as prestações estatais garan-
tidoras da justiça social. É essa característica que difere a Justiça Tributária, na teoria
da interpretação econômica do fato gerador, da sua acepção na fase pós-positivista.
Nota-se aí uma mudança de paradigma. Não vale mais pesquisar quanto o
Estado vai gastar para se atingir o ideal de justiça social, e qual será o quinhão de
cada cidadão para atingir esse montante, como na era da jurisprudência dos inte-
resses. Ao contrário, o ideal da Justiça Fiscal, hoje, se realiza na investigação de
quanto cada cidadão pode contribuir com as despesas públicas,40 à luz dos valores
e princípios reatores do Estado Democrático e Social. Portanto, as despesas públi-
cas devem se limitar ao somatório da capacidade contributiva de cada um, sob pena
de as prestações estatais serem realizadas à custa de parcelas indispensáveis à vida
digna do homem. Resta-nos, assim, concluir que a Justiça é um valor que já deve
ser concretizado no momento de se arrecadar o tributo, e não somente mediante
prestações públicas, viabilizadas com os recursos tributários.
Ora, legitimar a tributação onde não há manifestação de riqueza, em nome das
prestações estatais, por mais relevantes que sejam, constitui uma ilusão, pois
mesmo que o Estado preste serviços públicos que venham a suprir as necessidades
básicas do cidadão, o que nem sempre ocorre, o elevado custo da administração
estatal representa uma diminuição do direito à prestação. Assim, mais vale deixar
que o indivíduo tenha recursos para atender suas próprias necessidades básicas, do
que tributar suas parcas rendas a fim de garantir o atendimento dessas pelo Estado.
Isso não significa, no entanto, que no Estado Democrático e Social de Direito
não seja imperioso que o Estado tribute a capacidade contributiva de alguns para
atender as necessidades básicas de outros que, com seus próprios recursos, não
podem custeá-las.
Convém lembrar que, modernamente, o princípio da capacidade contributiva
goza de aplicação universal, seja como uma derivação do princípio da igualdade,
previsto em todas as constituições,41 seja por meio de cláusulas constitucionais que

40 Segundo TIPKE: “O princípio da capacidade contributiva não investiga o que o Estado e comunidades
podem fazer pelo cidadão isolado, senão o que o cidadão isolado, com base na sua capacidade contribu-
tiva, pode fazer por seu Estado e sua comunidade” (“Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária”. In:
SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos
em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 64).
41 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Tradução: Marco Aurélio
Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 53.

210
Temas de Direito Constitucional Tributário

determinam a tributação proporcional ou mesmo de previsões expressas.42 No


plano normativo, o princípio foi implicitamente consagrado na Constituição revo-
lucionária francesa, de 1791, como decorrência do princípio da igualdade.43 E desse
também se extrai a capacidade contributiva na Constituição Alemã. Já na
Argentina, o princípio também aparece, implicitamente, no artigo 4º da Consti-
tuição de 1994, que prescreve que os tributos serão instituídos eqüitativa e propor-
cionalmente. No México, a Constituição de 1917 adotou modelo semelhante, em
seu art. 31, com a determinação de que os mexicanos contribuíssem em medida
proporcional e equânime. Na Espanha , o princípio da capacidade contributiva está
expressamente previsto no art. 31.1 da Constituição; o mesmo se dá no art. 53 da
carta constitucional italiana.44
No Brasil, a Constituição Federal de 1946, em seu artigo 202,45 agasalhava de
modo expresso, o princípio da capacidade contributiva, que no entanto já integra-
va nosso ordenamento, implicitamente, desde a Constituição de 1824 (art. 179,
XV).46 Embora ausente nos textos autoritários da Constituição de 1967 e da EC nº
1/69, após ser suprimido pela EC nº 18/65, podia a capacidade contributiva ser
extraída do próprio princípio da isonomia.47 Hoje, o princípio ressurge no art. 145,
§ 1º, da Constituição Federal de 1988.48

3) Fundamento, Conteúdo e Extensão do Princípio da Capacidade


Contributiva

Com a previsão constitucional do princípio da capacidade contributiva na


Carta de 1988, não há mais como justificar o ceticismo kelsiniano da doutrina bra-

42 Como salienta Klaus Tipke: “Muitas constituições citam expressamente o princípio da capacidade con-
tributiva como parâmetro. Mas mesmo quando isso não ocorra, o princípio da capacidade contributiva
é o único princípio justo no âmbito tributário; é, portanto, o único parâmetro justo de comparação para
a aplicação do princípio da igualdade. Todas as constituições dos estados democráticos reconhecem o
princípio da igualdade” (“Sobre a Unidade...”, cit., p. 64).
43 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 35.
44 Para uma visão mais ampla da capacidade contributiva na constituição de vários países vide UCKMAR,
Victor (Op. cit., pp. 66-67).
45 Constituição Federal de 1946, art. 202: “Os tributos terão o caráter pessoal sempre que isso fôr possível,
e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte.”
46 Constituição Imperial de 1824, art. 179, XV: “Ninguém será exempto de contribuir para as despezas do
Estado em proporção dos seus haveres.”
47 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador, cit., p. 68. BALEEIRO extraía o princípio do art. 153, § 36, da EC nº 1/69,
que prescrevia: “A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros
direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota” (Limitações..., cit., p. 687).
48 Constituição Federal de 1988, art. 145, § 1º: “Sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

211
Ricardo Lodi Ribeiro

sileira que, diante das dificuldades em definir um conteúdo substantivo para a


Justiça, agarra-se à Segurança Jurídica com se esta fosse o único valor fundamental
na ciência do Direito.
O princípio da capacidade contributiva constitui-se em uma decorrência da
Igualdade,49 na medida em que todos devem contribuir para as despesas públicas,
em razão de suas possibilidades econômicas. Assim, de acordo com esta diretriz,
somente são legítimas as distinções que se baseiem na diferença entre as riquezas
que vários contribuintes manifestam.50
Modernamente, de acordo com Moris Lehner,51 superada a fase em que o
princípio da isonomia se limitava a vedar o arbítrio, o princípio da capacidade con-
tributiva se traduz em parâmetro constitucional da Igualdade.
Como bem assinala Tipke,52 a igualdade, ao contrário da identidade, é sempre
relativa, pois o que é completamente igual é idêntico. Há que se inquirir em rela-
ção a que as coisas são iguais e, a partir daí, averiguar se as distinções encontradas
justificam, de fato, a atribuição de um tratamento diferenciado pelo legislador tri-
butário. As distinções que devem ser levadas em consideração pela lei são as que se
baseiam numa diferente manifestação de riqueza, salvo se presente outro funda-
mento a se ponderar com a capacidade contributiva.
O princípio da igualdade, consagrado na Constituição, não se contenta com a
igualdade formal, mas almeja também sua concepção material. Nesse sentido, está
a capacidade contributiva intrinsecamente vinculada à solidariedade53 e à dignida-
de da pessoa humana.54
Sendo uma das tarefas do Estado Democrático e Social a garantia da dignidade da
pessoa humana – o que está sempre a exigir prestações estatais positivas – é necessário
angariar recursos daqueles cuja sobrevivência digna não depende das prestações esta-
tais para, desta forma, de acordo com o princípio da solidariedade, socorrer os recla-
mes elementares da grande massa que, embora não tenha recursos para contribuir,
necessita das prestações estatais. Nesse sentido, o princípio da capacidade contributi-
va se traduz num instrumento da justiça distributiva e da redistribuição de rendas.55

49 TIPKE, Klaus. “Princípio da Igualdade e a Idéia de Sistema no Direito Tributário”. In: Brandão Machado
(coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 517.
50 Não que sejam impossíveis distinções baseadas em outros critérios diversos da capacidade contributiva,
como se demonstrará ao longo do texto, mas são as distinções baseadas na manifestação de riqueza as
que se fundamentam no princípio em estudo.
51 “Considerações Econômicas e Tributação conforme a Capacidade Contributiva. Sobre a possibilidade de
Uma Interpretação Teleológica de Normas com Finalidades Arrecadatórias”. In: SCHOUERI, Luiz
Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos em Homenagem a
Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 151.
52 “Princípio da Igualdade...”, cit., p. 519.
53 HERRERA MOLINA, Op. cit., p. 92.
54 Ibidem, p. 82.
55 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 88.

212
Temas de Direito Constitucional Tributário

Segundo Ricardo Lobo Torres, o princípio determina: “que cada um deve con-
tribuir na proporção de suas rendas e haveres, independentemente de sua eventual
disponibilidade financeira.”56 Para Aliomar Baleeiro, “a capacidade contributiva do
indivíduo significa sua idoneidade econômica para suportar, sem sacrifício do
indispensável à vida compatível com a dignidade humana, uma fração qualquer do
custo total dos serviços públicos”.57
Deste modo, a capacidade contributiva consiste na manifestação econômica,
identificada pelo legislador, como signo presuntivo de riqueza a fundamentar a tri-
butação. E embora as expressões capacidade econômica e capacidade contributiva
sejam utilizadas como sinônimas, é correta a distinção de Carrera Raya,58 segundo
a qual a primeira designa a disponibilidade da riqueza, ou seja, de meios econômi-
cos, enquanto a última se refere à capacidade econômica eleita pelo legislador
como fato gerador do tributo.
Assim, como não é possível ao legislador identificar a capacidade contributiva
de cada pessoa, ele visualiza situações que a revelam: são os fatos geradores dos
impostos.59 É por esse motivo que a existência de um sistema tributário melhor
atende ao princípio da capacidade contributiva, do que a idéia de imposto único,
desde que, como é óbvio presumir, tal sistema seja concebido à luz de fatos gerado-
res que se revelem em signos de manifestação de riqueza e que sejam harmônicos
entre si, e não por simplesmente se moldarem a uma arrecadação menos complexa.
Dentro da concepção de que o fato gerador se traduz em signo de manifesta-
ção de riqueza é possível vislumbrar-se a acepção objetiva da capacidade contribu-
tiva. E para que esta seja efetivada, o legislador deve escolher como fato gerador do
tributo, um ato que seja revestido de conteúdo econômico. Violada será, portanto,
quando houver tributação de atos que não se revelem em signos presuntivos de
riqueza, como os do uso de barba e bigode, por exemplo.60

56 Ibidem, p. 79.
57 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 259.
58 Manual de Derecho Financiero. Madrid: Tecnos, 1993, vol. I , p. 92
59 Não que os demais tributos também não se subordinem ao princípio da capacidade contributiva, como
abaixo se demonstrará.
60 Com toda a propriedade, assinala Dino Jarach:“Todas as situações e todos os fatos aos quais está vincu-
lado o nascimento de uma obrigação impositiva possuem como característica a de apresentar um estado
ou um movimento de riqueza; isto se comprova com a análise indutiva do direito positivo e correspon-
de ao critério financeiro que é próprio do imposto: o Estado exige uma soma de dinheiro em situações
que indicam capacidade contributiva. É certo que o Estado por capricho, pelo seu poder de império,
poderia exigir impostos com base em qualquer pressuposto de fato, mas o Estado, afortunadamente, não
age assim” (O Fato Imponível – Teoria Geral do Direito Tributário Substantivo. Traduzida por Dejalma
de Campos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 95-96). No mesmo sentido, Victor Uckmar:
“Ademais, o dimensionamento à capacidade contributiva exclui ‘graduações da carga tributária que não
sejam relacionadas a diferenças na condição econômica dos indivíduos’. Único elemento para diferen-
ciar as cargas tributárias entre várias pessoas é a sua capacidade econômica: portanto, não seria consen-
tido estabelecer que ‘os loiros devem pagar mais que os morenos’ ou que todas as pessoas calvas ou mío-
pes devam, enquanto tais, pagar um tributo” (Op. cit., pp. 69-70).

213
Ricardo Lodi Ribeiro

Assim, de acordo com o princípio da capacidade contributiva em seu aspecto


objetivo, os fatos geradores de cada imposto têm origem em duas espécies de rique-
za: a renda e o patrimônio. Os demais fatos geradores previstos no sistema tributário
devem constituir desdobramentos desses dois fenômenos econômicos; constituem
eles técnicas diferentes para se atingir o mesmo resultado. Obviamente quando se
reduzem os signos de manifestação de riqueza à renda e ao patrimônio, estas expres-
sões são utilizadas em sentido bem mais amplo do que lhes são dados pela legislação
que define os impostos sobre patrimônio e renda. Retrata bem essa visão a idéia de
Pérez de Ayala. Segundo o Conde de Cedillo, a riqueza é manifestada por meio de
uma visão fotográfica, e portanto estática, pelo patrimônio. No entanto, a riqueza
também pode ser visualizada por uma visão cinematográfica, dinâmica, a exigir uma
delimitação temporal a determinado período. É o que ocorre com a renda.61
Vale ainda ressaltar que, diante do binômio renda/patrimônio, como signos
presuntivos de riqueza, os impostos pessoais devem ter como fato gerador algum
fenômeno que revele a renda disponível para a pessoa física e o lucro para as
empresas, como assinala Tipke.62
Nos impostos reais, a riqueza é revelada pelo patrimônio, estando a capacida-
de contributiva, neste caso, também relacionada com a função social da proprieda-
de,63 num ordenamento que não absolutiza os direitos do proprietário. A função
social da propriedade, atualmente, não é mais encarada como um limite extrínseco
aos direitos do proprietário, mas como verdadeiro fundamento do direito à proprie-
dade. Nesse sentido, uma de suas funções sociais seria a de contribuir, através de
uma parcela de seus frutos, para o atendimento das despesas públicas. Assim, a tri-
butação não pode atingir, senão, os rendimentos do patrimônio.64
Ainda segundo Tipke,65 não ofende o princípio da igualdade a tributação dos
rendimentos do capital de forma mais onerosa que os rendimentos do trabalho. Ao
contrário, em face do primado constitucional do trabalho, trata-se de uma medida
da mais alta justiça.
Por outro lado, é de acordo com seu aspecto subjetivo, que o princípio se des-
tina a aferir a capacidade de pagamento de cada um, graduando-a de acordo com o
signo de manifestação de riqueza escolhido pelo legislador, ao definir o fato gera-
dor de cada tributo.
Como princípio que é, a capacidade contributiva apresenta grande fluidez em
sua definição, constituindo verdadeiro conceito indeterminado, cujo núcleo é reve-

61 PEREZ DE AYALA, Jose Luis. Derecho Tributario I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1968, p. 89.
62 Segundo o referido autor: “Todo cidadão deve pagar impostos em conformidade com o montante de sua
renda disponível para o pagamento de impostos; toda empresa deve pagar impostos de acordo com o
montante de seu lucro” ( “Sobre a Unidade ...” , cit., p. 64).
63 HERRERA MOLINA. Op. cit., p. 94.
64 TIPKE. “ Sobre a Unidade...”, cit., p. 63.
65 Ibidem, p. 65.

214
Temas de Direito Constitucional Tributário

lado pela riqueza disponível.66 E essa indeterminação constitucional, característica


do halo conceitual, é enfrentada pela regulação de cada imposto, oferecida pelo
legislador, que leva em consideração, não só a definição do fato gerador em seus
aspectos material, temporal, espacial e quantitativo, mas também os subprincípios
da proporcionalidade, da progressividade, da seletividade e da personalização.67 É
desta forma que a riqueza disponível será revelada em atendimento ao aspecto sub-
jetivo do princípio da capacidade contributiva.
A proporcionalidade consiste na variação da tributação em razão da diferen-
ça da base de cálculo, a partir da aplicação da mesma alíquota. É o padrão clássico
para efetivação da capacidade contributiva concebido por Adam Smith a partir da
teoria do benefício, segundo a qual se presume que as pessoas se beneficiam das
prestações estatais na proporção de suas riquezas.68 Contestada por Stuart Mill, a
teoria do benefício encontrou oposição na teoria do igual sacrifício, que acabou por
consagrar o subprincípio da progressividade como grande instrumento do Welfare
State. Juntamente com este, no entanto, a progressividade começou a perder fôle-
go, a partir das décadas de 1960 e 1970, quando a teoria do benefício foi retomada
James Buchanan.69 Nos dias atuais a proporcionalidade é saudada como o melhor
índice de capacidade contributiva por John Rawls70 e Klaus Tipke.71
Por sua vez, a progressividade se concretiza pela elevação da alíquota na
medida em que é aumentada a base de cálculo. Seu fundamento era, originariamen-
te, a distribuição igualitária do sacrifício social da tributação conforme defendido
por Stuart Mill. O economista inglês partia da idéia de que na medida em que o
capital aumentava, sua utilidade para o seu possuidor diminuía, sendo legítima sua
apropriação pelo Estado em parcela maior.
Após a retomada da teoria do benefício pelos economistas neoliberais do final
do século XX, a progressividade, hoje, não mais deve ser extraída de uma visão uti-
litarista de igual sacrifício, mas como importante instrumento de redistribuição de
rendas no Estado Democrático e Social de Direito.
O próprio Rawls, embora defenda que os tributos com finalidade arrecadató-
ria incidentes sobre as despesas ou rendas devam ser proporcionais em sociedades
com alto grau de respeito aos princípios da justiça como eqüidade, uma vez que essa
modalidade de tributação é mais adequada ao estímulo da produção, reconhece
também que nos sistemas tributários de países em que haja maior desigualdade

66 MOLINA. Op. cit., p. 145.


67 Os quatro subprincípios são elencados por Ricardo Lobo Torres (Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 83).
68 SMITH, Adam. Op. cit., p. 485.
69 BUCHANAN, James. The Limits of Liberty – Between Anarchy and Leviathan. Chicago: The University
of Chicago Press, 1975, p. 98.
70 RAWLS. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 307.
71 TIPKE. “Princípio da Igualdade...”, cit., p. 527.

215
Ricardo Lodi Ribeiro

social, a progressividade dos impostos sobre a renda é medida exigida pelos princí-
pios da liberdade, da igualdade eqüitativa de oportunidades e da diferença.72
Nesse mesmo sentido, Tipke entende, na esteira do Tribunal Constitucional
Alemão, que a progressividade rompe com a igualdade, mas este rompimento é jus-
tificado pelo princípio do Estado Social, que tem por objetivo a distribuição de
riquezas.73
Deste modo, numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais
como a nossa, a progressividade é, em vários impostos, o instrumento mais adequa-
do à aplicação do princípio da capacidade contributiva, baseando-se na justiça
social. É que a proporcionalidade, embora seja uma manifestação da capacidade
contributiva, uma vez que não adota um valor fixo na tributação, se traduz num
instrumento bastante tímido na distribuição de rendas. Como bem observa Luciano
Amaro,74 a capacidade contributiva não se esgota na proporcionalidade, uma vez
que aquela exige “a justiça da incidência em cada situação isoladamente considera-
da e não apenas a justiça relativa entre uma e outra das duas situações”.
No mesmo sentido, Pedro Herrera Molina, para quem é a progressividade que
confere conteúdo ao princípio da capacidade contributiva, uma vez que aquela
deriva dos valores da igualdade75 e da solidariedade.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que a progressivi-
dade não é decorrência natural do princípio da capacidade contributiva, que por
sua vez, se realiza pela proporcionalidade, a não ser que o próprio texto constitu-
cional determine expressamente a utilização de alíquotas progressivas.76
Porém, a posição de condicionar a aplicação da progressividade à expressa
previsão constitucional esvazia mortalmente o princípio da capacidade contributi-
va, que encontra, no Estado Democrático Social de Direito, a progressividade como
mecanismo mais eficaz para sua realização, mormente numa sociedade tão desigual
quanto a brasileira.
No entanto, como a tese da necessidade de previsão constitucional expressa
para a aplicação da progressividade foi vitoriosa essa posição no STF, este subprin-
cípio, como instrumento realizador da capacidade contributiva, se limita ao impos-
to de renda, e após a EC nº 29/00, ao IPTU.
Por outro lado, também já entendeu o STF pela impossibilidade de aplicação
de alíquotas progressivas nos impostos reais.77 No entanto, nos parece inexistir qual-

72 RAWLS. Op. cit., p. 308.


73 TIPKE. “Princípio da Igualdade...”, cit., p. 527.
74 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 136.
75 Em sentido contrário: TIPKE (“Princípio da Igualdade...”, cit., p. 527).
76 STF, Pleno, RE nº 153.771/MG, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 05/09/97, p. 41.892, em relação ao IPTU;
e STF, Pleno, RE nº 234.105/Sp. Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 31/03/00, p. 61, em relação ao ITBI.
77 STF, Pleno, RE nº 153.771/MG, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 05/09/97, p. 41.892. No mesmo senti-
do Ricardo Lobo Torres (Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 82).

216
Temas de Direito Constitucional Tributário

quer óbice à progressividade dos impostos reais, uma vez que o patrimônio do con-
tribuinte é índice de riqueza hábil a ser quantificado na fixação do aspecto subjeti-
vo do princípio da capacidade contributiva, como se extrai do próprio art. 145, § 1º,
da Constituição Federal, e, mais recentemente, da EC nº 29/00, que, dando nova
redação ao art. 156, § 1º, do Texto Maior, previu a progressividade no IPTU, vincu-
lada à capacidade contributiva e calculada em razão do valor venal do imóvel.78
Outro subprincípio que vai dar efetividade ao princípio em estudo é a seleti-
vidade, que se materializa pela variação de alíquotas em função da essencialidade
do produto ou da mercadoria, e que representa a modalidade mais adequada à apli-
cação do princípio da capacidade contributiva nos impostos indiretos, como o
ICMS e o IPI, pois afere o índice de riqueza do contribuinte de fato, a partir do grau
de indispensabilidade do bem consumido. Dentro dessa lógica, o consumo de bens
populares é gravado com alíquotas menores, como ocorre com os produtos da cesta
básica. Já os bens supérfluos são tributados com base em alíquotas maiores, como
se dá com cigarros, bebidas e perfumes.
Sendo assim, não é difícil perceber que a aplicação da proporcionalidade nos
impostos incidentes sobre os bens de consumo popular, como gêneros alimentícios
de primeira necessidade, acaba gerando um efeito regressivo, pois retira das classes
menos aquinhoadas, relativamente, mais do que é suportado pelos abastados,79 não
se resguardando o mínimo existencial.
Por sua vez, situação parecida ocorreria na aplicação da progressividade aos
impostos sobre o consumo, uma vez que não suportando o sujeito ativo a carga tri-
butária, a tributação de acordo com a sua riqueza, teria o condão de transferir para
o consumidor, contribuinte de fato, um encargo que não seria necessariamente
adequado à sua capacidade contributiva.80
Por fim, o subprincípio da personalização, que segundo a Constituição Fede-
ral, no art. 145, § 1º, deve ser aplicável sempre que possível, determina que o legis-
lador leve em consideração dados pessoais da vida do contribuinte para mensurar
a tributação, como ocorrem com as deduções de despesas com dependentes, médi-
cas, e de instrução, no imposto de renda. Como parece óbvio, são nos impostos pes-
soais que o princípio da personalização terá aplicabilidade plena. Daí a dicção cons-
titucional do sempre que possível. Porém, há hoje uma tendência à personalização
também dos impostos reais, quando o legislador leva em consideração dados pes-
soais do contribuinte, como ocorre na isenção de IPTU para ex-combatentes e apo-

78 Já existem importantes vozes que se levantam contra a constitucionalidade do IPTU progressivo previs-
to na EC nº 29/00. Por todos, Ricardo Lobo Torres (Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 83). Embora a
discussão do tema não seja objeto desse trabalho, entendemos não ter a referida emenda constitucional,
nesse ponto, violado qualquer cláusula pétrea, sendo compatível com nossa Lei Maior, pelas razões
expostas no texto.
79 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução..., cit., p. 211.
80 VALDÉS COSTA. Instituciones de Derecho Tributário. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 455.

217
Ricardo Lodi Ribeiro

sentados que percebam até determinada renda. Embora tais medidas não importem
na transformação do aludido tributo em um imposto pessoal, vez que suas caracte-
rísticas principais continuam vinculadas ao bem imóvel, há dados de personaliza-
ção que prestigiam o referido princípio constitucional.
Vale ainda advertir que o aspecto subjetivo do princípio da capacidade contri-
butiva encontra como limites o mínimo existencial e a vedação do confisco, que se
revelam como verdadeiras fronteiras delimitadoras do referido princípio em suas
porções mínimas e máximas. Não se pode tributar abaixo do mínimo existencial,
pois não há riqueza disponível. Não se tributa acima dos limites confiscatórios,
onde a seara da capacidade contributiva exaure-se.
Embora não possua dicção constitucional própria, o mínimo existencial deri-
va, segundo Ricardo Lobo Torres,81 da idéia de liberdade, de igualdade e dos direi-
tos humanos, e tem seus contornos definidos pela linha que separa a vida simples
do cidadão humilde da pobreza absoluta que deve ser combatida pelo Estado, não
só por meio de abstenção na tributação, como também por prestações positivas,
envolvendo além dos direitos individuais, os sociais, relativos à saúde, à alimenta-
ção, à educação e à assistência social. Assim, no campo tributário, o mínimo exis-
tencial deixa o contribuinte livre de qualquer tributação até o limite em que sejam
atendidos os requisitos mínimos para uma vida humana digna.82
De acordo com Tipke, o mínimo existencial não deve ser fixado em patamar
inferior ao estabelecido como benefício de aposentadoria, pois, em regra, o cidadão
ativo possui mais necessidades vitais que o aposentado.83 Sustenta ainda o profes-
sor emérito da Universidade de Colônia, que o mínimo existencial não se aplica
somente ao imposto de renda, mas a todos os tributos, e que as parcelas que fica-
rem isentas do imposto de renda não podem ser tributadas por impostos especiais.84
Por seu turno, os impostos indiretos também devem respeitar o mínimo existen-
cial, o que é viabilizado, pelo mecanismo da seletividade, por meio da isenção dos
bens de primeira necessidade.85
No outro extremo, como limite máximo da tributação de acordo com a capa-
cidade contributiva encontra-se o princípio da vedação ao confisco que deriva do
próprio direito de propriedade.86

81 Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, v. III. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 146.
82 LEHNER, Moris. Op. cit., p. 151, citando precedente do Tribunal Constitucional Alemão que delineou
os contornos do mínimo existencial.
83 TIPKE. “Sobre a Unidade...”, cit., p. 61. No mesmo sentido, HERRERA MOLINA (Op. cit., p. 144).
84 TIPKE. “Sobre a Unidade...”, cit., p. 67.
85 HERRERA MOLINA, Op. cit., p. 144.
86 VOGEL, Klaus. “Tributos Regulatórios e Garantia da Propriedade no Direito Constitucional da
República Federal da Alemanha”. In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy
Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 550, onde o autor alemão informa que naquele país, dada
a inexistência de dispositivo constitucional expresso que proíba a tributação confiscatória, o excesso tri-
butário é vedado pelo art. 14 da Lei Fundamental, que consagra o direito de propriedade.

218
Temas de Direito Constitucional Tributário

No Brasil, a Constituição Federal contém dispositivo expresso vedando a tri-


butação com efeito confiscatório.87 Confisco é a perda da propriedade em favor do
Estado em razão de um ato ilícito. Por ser vedado pela Constituição,88 não é admi-
tido que a lei estabeleça a perda da propriedade pela tributação em razão de atos
lícitos. Portanto, é confiscatória a tributação excessiva, que supere a capacidade
contributiva. Embora não exista na legislação, na doutrina ou na jurisprudência um
critério objetivo para identificar o confisco89 – o que permite que, dada a fluidez
desse conceito, em cada caso o aplicador examine se foi superada a capacidade con-
tributiva, o Supremo Tribunal Federal considerou confiscatória a exigência de con-
tribuição previdenciária dos servidores públicos federais no percentual de 25%.90
É interessante perceber que na referida decisão, a Corte Maior considerou, e com
acerto, o efeito confiscatório diante da carga tributária como um todo, e não em
razão de um único tributo. No entanto, essa apreciação só é exeqüível diante de tri-
butos que incidam sobre bases de cálculo similares, como ocorre com o imposto de
renda e a contribuição previdenciária do servidor, que incidem sobre a remunera-
ção deste.
Embora a vedação constitucional não se limite aos tributos incidentes sobre a
propriedade,91 nestes ela ganha uma maior dimensão. É que tais tributos não podem
ter alíquotas muito elevadas, sob pena de haver perda da propriedade após alguns
exercícios. Assim, por exemplo, se o IPTU tivesse uma alíquota de 20%, em cinco
anos haveria a perda da propriedade, revelando-se confiscatória esta tributação.
Durante muito tempo, a doutrina, aqui e alhures, considerou que a existência
de uma finalidade extrafiscal afastava a alegação de confisco. No entanto, quando
examinarmos a relação da capacidade contributiva com a extrafiscalidade, veremos
que os objetivos sociais, econômicos e políticos buscados pela norma tributária
devem justificar, por meio de um juízo de proporcionalidade, o afastamento da capa-
cidade contributiva que, como princípio que é, não é dotada de caráter absoluto,
podendo ser ponderada com outros interesses.92 Assim, não basta a simples alegação
de extrafiscalidade para que se afaste o exame do caráter confiscatório da norma.

87 Artigo 150, IV, da Constituição Federal.


88 Exceto nos casos da pena de perdimento de bens importados irregularmente; do confisco das terras onde
se produzem substâncias entorpecentes, bem como dos instrumentos e produto da prática criminosa.
89 A Suprema Corte argentina fixou o percentual de 33% como limite à tributação sobre uma mesma base
de cálculo, conforme noticia BALEEIRO (Limitações Constitucionais..., cit., p. 566); já a Corte Cons-
titucional Federal da Alemanha, como informa TIPKE (“Sobre a Unidade...”, cit., p. 70) decidiu que o
imposto sobre o patrimônio não pode superar a 50% da renda bruta.
90 STF, Pleno, ADIMC-2010/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 12/04/02, p. 51. No caso em questão o
Tribunal considerou que a contribuição previdenciária dos servidores públicos federais somada aos
outros tributos incidentes sobre a remuneração do servidor, como o imposto de renda, causava o efeito
confiscatório.
91 Note-se que o precedente do STF citado se refere a tributos pessoais.
92 HERRERA MOLINA. Op. cit., p. 178.

219
Ricardo Lodi Ribeiro

Quanto à sua eficácia, a capacidade contributiva é princípio cogente,93 obri-


gando não só o legislador, mas também o aplicador da lei,94 seja por meio da ativi-
dade regulamentar ou jurisdicional. Podemos vislumbrar esta característica quan-
do o Poder Judiciário afasta a aplicação de uma regra que prevê uma isenção que
propicia um privilégio odioso;95 ou, no reconhecimento pelo juiz de que, embora o
tributo esteja previsto em lei, determinado segmento de contribuintes não revela
capacidade contributiva para suportá-lo, por ter sido violado seu mínimo existen-
cial, ou por aquela situação, definida em lei como reveladora de riqueza, não pro-
duzir esse efeito em relação ao segmento considerado.
No entanto, tal possibilidade não habilita o juiz, no caso concreto, a reconhe-
cer a ausência de capacidade contributiva de determinado contribuinte, quando a
lei, em sua acepção genérica, não se revelar violadora do princípio. Se o tributo é
fixado de forma adequada ao signo de manifestação de riqueza, revelado pelo fato
gerador previsto em lei, a exclusão de determinado contribuinte por razões indivi-
duais se traduziria em privilégio odioso.96 O mesmo não ocorre quando a aplicação
da norma se revela inconstitucional para determinado grupo de contribuintes, em
sentido genérico. Neste caso, tal norma não deve ser aplicada a esse grupo, sendo
válida em relação aos seus demais destinatários.
Também não parece possível a modificação judicial da alíquota do tributo pela
declaração parcial de inconstitucionalidade da lei tributária, por apenas em parte
superar a capacidade contributiva.97 Se a tributação tornou-se excessiva em razão
de um aumento de alíquota, a declaração de inconstitucionalidade da lei teria o
condão de restabelecer a legislação anterior do imposto. No entanto, se a fixação
desmedida do tributo se der por ocasião de sua instituição primeira, não restará
solução senão a declaração de inconstitucionalidade da exação. Caso o Poder
Judiciário pudesse reduzir a alíquota do tributo, estaria estabelecendo regra não
prevista pelo Poder Legislativo, invadindo o espaço de conformação deste e legis-
lando positivamente.
Quanto à sua extensão, o princípio não se aplica apenas aos impostos, como
podem imaginar os intérpretes mais apressados do art. 145, § 1º, da Constituição

93 Está inteiramente superada historicamente a tendência de se considerar a capacidade contributiva um


princípio programático, como salienta CARRERA RAYA (Manual de Derecho Financiero. Madrid:
Tecnos, 1993, vol. I, p. 94).
94 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 81, e CARRERA RAYA. Op. cit., p. 91.
95 Sobre o conceito de privilégio odioso, vide TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional,
Financeiro e Tributário. Vol. III ..., cit., p. 341.
96 Em sentido contrário: OLIVEIRA, José Marcos Domingues (Direito Tributário – Capacidade Contri-
butiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 147), que sustenta a possibilidade de a lei ser considera-
da constitucional em sentido genérico, mas ser violadora da capacidade contributiva de determinado
contribuinte.
97 Em posição divergente a do texto: OLIVEIRA, José Marcos Domingues (Ibidem, p. 155), onde o autor
considera ser possível a redução da alíquota pelo magistrado a partir da declaração parcial da constitu-
cionalidade da lei.

220
Temas de Direito Constitucional Tributário

Federal. Se a capacidade contributiva deriva da igualdade, aplica-se mesmo quan-


do não prevista expressamente na constituição, como é o caso da Alemanha, e do
Brasil de 1965 a 1988. Por esse motivo, não se pode afastar sua aplicação em rela-
ção aos demais tributos, que não os impostos, pelo simples fato de o texto constitu-
cional utilizar a expressão impostos, ao invés da palavra tributos.
Embora a Constituição se refira somente aos impostos, uma vez que nesta espé-
cie tributária só há a riqueza do contribuinte a se mensurar, o princípio também é
aplicado aos tributos vinculados, como a taxa, conforme já reconheceu o STF,98 e a
contribuição de melhoria, por meio da desoneração dos hipossuficientes.99
É bem verdade que nos impostos, dado o seu caráter de tributo não vincula-
do, o princípio tem uma acepção mais ampla. Afinal, não havendo atividade esta-
tal a se mensurar, o único critério quantitativo a ser levado em conta pelo legisla-
dor é a riqueza do contribuinte.
Mas isso não significa que os demais tributos não se subordinem ao referido
princípio.100 Ao contrário, devem todos eles apresentar como fato gerador um ato
que revele conteúdo econômico. Nas taxas, por exemplo, embora o fato gerador
seja relacionado com uma atividade estatal específica em relação à pessoa do con-
tribuinte, a capacidade contributiva pode ser reconhecida para a concessão de isen-
ção para aqueles que, embora beneficiários da atividade estatal, não possuam rique-
za a ser tributada. É o que ocorre no fornecimento gratuito de certidões de óbito e
no registro do casamento civil para os comprovadamente pobres (art. 5º, LXXVI, da
Constituição Federal).101
Por outro lado, o valor a ser exigido em razão da taxa pode também variar de
acordo com a capacidade contributiva, como já foi reconhecido pelo STF no julga-
mento supracitado, desde que não seja ferida a referibilidade entre o valor exigido e
a complexidade da atividade estatal. Ou seja, se a maior capacidade contributiva se
dá em decorrência da maior complexidade e onerosidade, para a Administração, da
atividade estatal, é possível a sua consideração, como se deu em relação à taxa da
CVM, no precedente citado, onde as empresas que demandavam maior fiscalização,
de acordo com o critério adotado pelo legislador, eram as empresas de maior patri-
mônio líquido, o que não deixa de ser um signo de maior manifestação de riqueza.
Segundo ficou assentado na decisão do STF, é essencial que o critério de distinção
escolhido pelo legislador para mensurar a taxa, além de atender ao princípio da
capacidade contributiva, deve também guardar relação com a atividade estatal.102

98 STF, Pleno, RE nº 177.835/PE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 25/05/01, p 18.
99 TORRES, Ricardo Lobo, Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 87.
100 CALVO ORTEGA. Curso de Derecho Financiero I – Derecho Tributario (Parte General). 4. ed. Madrid:
Civitas, 2000, p. 85.
101 SEIXAS FILHO, Aurélio. Taxa. Doutrina, Prática e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 58.
102 RE nº 177.835, já citado.

221
Ricardo Lodi Ribeiro

Já em relação às contribuições de melhoria, a capacidade contributiva é medi-


da pela própria valorização imobiliária.103 Ademais, pode haver isenção para aque-
las propriedades que, embora tenham sofrido valorização imobiliária, ainda não
revelam capacidade para contribuir.
Quanto às contribuições parafiscais e empréstimos compulsórios, que não pos-
suam fatos geradores próprios, utilizando-se dos fatos geradores de impostos e
taxas, assim como esses, deverão respeitar a capacidade contributiva, nos termos
anteriormente definidos.104

4) Conflitos da Capacidade Contributiva com Outros Interesses


Almejados pela Tributação

Durante muito tempo uma visão exclusivista do princípio da capacidade con-


tributiva, que lhe concebia como uma orientação de caráter absoluto, levou à crise
do princípio diante da ocorrência de alguns fenômenos, como a extrafiscalidade. Os
contornos normalmente fixados pela doutrina para a formulação da capacidade
contributiva, não pareciam suficientes para a explicação do fenômeno da tributa-
ção extrafiscal. Nesse contexto, o princípio em tela reduziu-se a mera proibição do
arbítrio,105 e embora fosse até levado em consideração pelos tribunais, poderia ser
afastado diante de qualquer alegação fundamentada.
No entanto, não é suficiente a simples alusão a um objetivo extrafiscal ou à
praticidade da arrecadação para afastar, como num passe de mágica, a aplicação da
capacidade contributiva. A contradição entre esta e outros valores caros ao Direito
é resolvida mediante a ponderação de interesses e a aplicação do princípio da
razoabilidade.
Tais conflitos, como assinala Pedro Herrera Molina, podem se dar entre os pró-
prios elementos integrantes da capacidade contributiva, como, por exemplo, a apli-
cação de uma progressividade que afete o princípio da renda líquida, o que o referi-
do autor denomina de conflito interno; ou entre a capacidade contributiva e outros
princípios jurídicos e objetivos almejados pelo legislador, como a extrafiscalidade e
a praticidade administrativa, configurando os denominados conflitos externos.
Os conflitos internos podem aparecer até mesmo entre o distanciamento da
previsão abstrata da norma que concebia determinado critério de distinção como
relevante, do ponto de vista da manifestação de riqueza, e a sua adequação aos fatos
concretos.106 Exemplo desse conflito se dará na legislação do IPTU progressivo, que
venha a determinar uma diferenciação de alíquotas em razão da localização do

103 OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Direito Tributário – Capacidade Contributiva..., cit., p. 109.
104 Ibidem, p. 112.
105 HERRERA MOLINA. Op. cit., p. 77.
106 Ibidem, p. 158.

222
Temas de Direito Constitucional Tributário

imóvel (art. 156, § 1º, da CF , com redação dada pela EC nº 29/00). Se tal diferen-
ciação se traduzir em uma alíquota majorada para os bairros mais nobres, a aplica-
ção desta alíquota aos imóveis de baixo valor, ainda que localizados nesses bair-
ros,107 revelar-se-á desastrosa à capacidade contributiva. A solução desse conflito,
nesse exemplo, se daria pelo afastamento da progressividade.
Podem, por vezes, esses conflitos internos ser resolvidos por meio de uma hie-
rarquização dos elementos internos da capacidade contributiva. Deste modo, uma
progressividade não poderá dar à tributação um caráter confiscatório, do mesmo
modo que a proporcionalidade não pode atingir o mínimo existencial. Em tais
exemplos fica fácil perceber tal hierarquização, pois tanto a vedação ao confisco
como também a imposição de respeito ao mínimo existencial, constituem limites à
capacidade contributiva. No entanto, no mais das vezes, tais facilidades não se
apresentam na prática, devendo o aplicador resolver o impasse pela ponderação
entre os elementos em jogo no caso concreto.
Os conflitos externos ocorrem entre a capacidade contributiva e outros princí-
pios e normas do nosso sistema constitucional. A Justiça e a Igualdade, concretizadas
pelo princípio da capacidade contributiva, podem entrar em tensão com o valor da
Segurança Jurídica e com o princípio da legalidade. A ponderação entre capacidade
contributiva e legalidade, sem que a priori se possa defender a prevalência de qual-
quer delas, não dá margem para que o juiz possa tributar o contribuinte apenas com
base na capacidade contributiva, sem que haja previsão legal do tributo. A capacida-
de contributiva que será tributada estará prevista na lei, em respeito à Segurança
Jurídica. Por sua vez, o legislador definirá o fato gerador do tributo de acordo com a
capacidade contributiva, e o aplicador do direito irá interpretar a lei de acordo com
o referido princípio. As cláusulas antielisivas e a adoção de conceitos indeterminados
e de cláusulas gerais na definição de fato geradores de tributos constituem exemplos
da tendência à ponderação entre legalidade e capacidade contributiva, pelo próprio
legislador, com a primeira cedendo espaço à última. Já a vedação ao uso da analogia
para a criação de tributo pelo § 1º do art. 108, do CTN, constitui exemplo de preva-
lência da segurança jurídica sobre a capacidade contributiva.
Os conflitos externos também aparecem no fenômeno da extrafiscalidade,
tensão muitas vezes não compreendida pela doutrina. Muitos autores, ainda hoje,
defendem o afastamento da capacidade contributiva em nome do estabelecimento
de uma política extrafiscal nos campos social, econômico, ambiental, e da saúde por
meio da tributação.108 E foi justamente essa tendência que ocasionou o desprestí-

107 Vide o caso das favelas localizadas nos morros da Zona Sul do Município do Rio de Janeiro: se adotado
o regime progressivo em razão da localização do imóvel, de acordo com o bairro, teriam os imóveis ali
localizados uma alíquota maior do que imóveis bem valorizados da Zona Norte da cidade, estabelecen-
do-se uma verdadeira regressividade. Registre-se que, até o momento, o Município do Rio de Janeiro
não adotou a progressividade do IPTU na forma da EC nº 29/00.
108 Por todos: CARRERA RAYA. Op. cit., p. 94.

223
Ricardo Lodi Ribeiro

gio do princípio da capacidade contributiva nos anos 60 e 70. No entanto, como é


quase consenso na moderna doutrina, não se pode afastar a aplicação da capacida-
de contributiva diante de um mero objetivo extrafiscal. É preciso, ao contrário, que
o objetivo extrafiscal seja razoável,109 e que prevaleça diante de um juízo de pon-
deração de valores entre a igualdade e a capacidade contributiva,110 a fim de que
não sejam criados privilégios odiosos sob o pano da extrafiscalidade.111
Em nosso país, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de reconhecer
a necessidade do objetivo extrafiscal ser razoável, não transbordando para o arbí-
trio, no julgamento onde se discutia a constitucionalidade do critério temporal de
distinção, promovida pelo art. 6º, do Decreto-Lei nº 2.434/88, para a concessão de
isenção do IOF incidente sobre as operações de câmbio vinculadas às importações
cujas guias tivessem sido expedidas até determinada data.112
De fato, a quebra do tratamento igualitário conferido pelo legislador aos que
revelam a mesma capacidade contributiva só pode se dar em função da finalidade
extrafiscal, como observa Ferreiro Lapatza,113 caso estejam presentes os requisitos
mínimos do referido princípio e quando os fins extrafiscais almejados sejam tam-
bém amparados pela Constituição.
Ainda há que se observar que os fins extrafiscais almejados, num regime fede-
rativo, devem estar inseridos na competência do ente da Federação para promover
aquela política pública, não lhe sendo lícito invadir a esfera de atribuições mate-
riais dos demais entes. Por isso, é inconstitucional a adoção pelos Estados-Membros
de alíquotas diferenciadas para o IPVA em função da origem estrangeira do veícu-
lo, uma vez que o objetivo extrafiscal presente no caso – a proteção à indústria
nacional – é matéria da competência da União.
Outra fonte de conflito externo aparece com as normas de simplificação da
legislação tributária, baseadas no interesse da fiscalização em combater a elisão fis-
cal, reduzir os custos da arrecadação e do contribuinte, e simplificar o procedimen-
to de recolhimento, arrecadação e fiscalização dos tributos.
Não se confundindo, modernamente, a Justiça Tributária com os interesses da
arrecadação, a legitimidade de tais normas dependerá da proporcionalidade dessas
medidas vista sob o ângulo do princípio da capacidade contributiva. No entanto,
pouco adianta uma definição legal que abstratamente seja fiel à capacidade contri-
butiva efetiva, mas que no entanto, dada a complexidade na apuração da base tribu-
tável, seja de difícil controle pela Administração. E diante de tal dificuldade, muitos
contribuintes poderão deixar de recolher seus tributos, o que provocará uma injus-
ta repartição das despesas públicas e uma violação do princípio da isonomia.

109 PEREZ ROYO. Op. cit., p. 37.


110 HERRERA MOLINA. Op. cit., p . 100.
111 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro..., cit., p. 86.
112 STF, 1ª Turma, AGRAG nº 142.348-1/MG, rel. Min. Celso de Melo, DJ de 24/03/95, p. 6.807.
113 Curso de Derecho Financiero Español. 21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 62.

224
Temas de Direito Constitucional Tributário

A rigor, sendo o princípio da capacidade contributiva uma decorrência do


valor da Igualdade, uma norma simplificadora que daquele se afaste em alguns
casos individuais, mas que venha a garantir a prevalência da isonomia (que pode-
ria ser violada pela facilidade no descumprimento da legislação tributária pelos
contribuintes, ou pelo alto custo para a sociedade na adoção de medidas que impe-
çam esse descumprimento), não atenta contra o referido princípio.
É que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o próprio princípio da capacida-
de contributiva é violado se não há possibilidade de se estabelecer mecanismos de
controle do cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes menos
imbuídos do dever de contribuir para as despesas públicas ou quando o alto custo
desses controles é suportado por toda a sociedade.114
No entanto, tais medidas simplificadoras não podem descambar para uma tri-
butação que, na maioria dos casos, não reflita a capacidade contributiva de cada um
dos contribuintes, e nem impingir a qualquer deles uma carga tributária radical-
mente distinta da que seria devida caso não houvesse a medida simplificadora.115
Há, mais uma vez que se analisar a razoabilidade da medida simplificadora.
Em primeiro lugar, deve-se verificar se a mesma é realmente necessária para asse-
gurar a manutenção da isonomia tributária no cumprimento das obrigações pelos
contribuintes, ou se a tributação pela capacidade efetiva já não seria suficiente para
atingir esse objetivo.
Quanto à adequação, deve-se perquirir se a medida simplificadora realmente
resulta em vantagens, no que tange à isonomia e à capacidade contributiva, a par-
tir do cumprimento das obrigações tributárias por todos os contribuintes, em rela-
ção à tributação pela riqueza efetiva, considerando que as dificuldades de controle
levariam a uma grande evasão fiscal.
Por fim, num exame de proporcionalidade em sentido estrito, resta verificar
se na maioria dos casos a capacidade contributiva efetiva é atendida pela medida de
simplificação e se nenhum contribuinte será tributado em valor significativamen-
te maior do que o determinado pela capacidade efetiva.116
É preciso ainda estabelecer uma relação de custo/benefício, a fim de evitar que
a tributação pela capacidade efetiva se revele tão cara para o Estado, e em última
análise para o conjunto dos contribuintes, que acabe por comprometer uma sistemá-
tica que pouco irá distinguir-se, em termos quantitativos, do regime simplificado.

114 Defende Pedro Herrera Molina: “Ahora bien, la ineficácia administrativa lleva consigo uma aplicación
deficiente del sistema fiscal, y ésta supone necesariamente un reparto desigual de las cargas fiscales en
beneficio de aquelloe menos honrados o con menos possibilidades de defraudar. A sensu contrario, la
eficacia del control administrativo constituye una condición necessaria (no suficiente) del sistema tri-
butario justo” (Op. cit., p. 161).
115 Ibidem, p. 162.
116 Ibidem.

225
Ricardo Lodi Ribeiro

Exemplo de norma simplificadora que entrou em conflito com a capacidade


contributiva efetiva nos é dado pela legislação do ICMS, no caso da substituição tri-
butária pra frente, quando o preço da mercadoria, praticado na operação substituí-
da, é inferior à base de cálculo presumida, que serviu de parâmetro para o recolhi-
mento do imposto.
Ora, se a base de cálculo presumida foi maior do que a efetivamente realizada,
seria lógica a necessidade de restituição do indébito. No entanto, o STF, aderindo ao
argumento dos Estados-membros de que a devolução de tal montante acabaria por
comprometer a sistemática da substituição tributária, diante da impossibilidade do
fisco estadual calcular, em cada caso, a diferença entre a base de cálculo presumida
e a base de cálculo realizada consagrou a prevalência das normas de simplificação,
em detrimento da capacidade contributiva efetiva.117 É de se observar que o
Tribunal considerou a necessidade da permanência dessa norma de simplificação
para a manutenção do regime de substituição tributária e a conseqüente promoção
de uma arrecadação mais imune à evasão. Considerou também o Tribunal a ausên-
cia de discrepância entre o valor presumido e o valor efetivo na maioria dos casos,
em face da adoção do regime de substituição tributária em mercados sujeitos a pre-
ços, constituindo a tributação excessiva apenas uma eventualidade.
No entanto, deixou nossa Corte Maior de considerar a possibilidade do regi-
me estabelecer uma radical discrepância em determinados casos individuais, com-
prometedora da própria legitimidade da norma. Por outro lado, o art. 150, § 7º, da
Constituição Federal, como ressaltado nos votos vencidos, não autoriza normas
simplificadoras na substituição tributária que se afastem da capacidade contributi-
va efetiva. É que o referido dispositivo constitucional, ao determinar ser devida a
restituição imediata e preferencial caso o fato gerador presumido não ocorra, esta-
beleceu que a presunção é relativa, negando abertura a qualquer norma simplifica-
dora que evitasse a tributação conforme a riqueza efetivamente auferida.
A rigor, apenas a partir de uma interpretação meramente literal, como a efe-
tuada pelo Tribunal, se poderia admitir que o fato gerador não ocorrido difere do
fato gerador ocorrido sob uma base de cálculo menor, máxime quando a norma não
dispõe de mecanismos para quantificar o montante dessa diferença entre o valor
presumido e o efetivo, a fim de se dimensionar, à luz do princípio da razoabilida-
de, os prejuízos que eventualmente sejam impostos ao contribuinte.

5) A Capacidade Contributiva como Princípio Interpretativo

Observe-se que o princípio da capacidade contributiva não é dirigido apenas


ao legislador, que ao escolher o fato gerador da obrigação tributária deve conside-

117 STF, Pleno, ADIN nº 1.851/AL, rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 08/05/02, noticiado no Informativo STF nº
271 (acórdão pendente de publicação).

226
Temas de Direito Constitucional Tributário

rar um signo presuntivo de riqueza, e ao mensurar a carga tributária por todos os


contribuintes deve levar em consideração os subprincípios que dão efetividade a
este princípio em sua acepção subjetiva.
Ao contrário, o referido princípio é dirigido também ao aplicador da lei, seja
por meio da atividade regulamentar da administração, seja na interpretação do
ordenamento.118 É que a capacidade contributiva, como princípio reator do Direito
Tributário, revela que o objetivo primordial desse ramo é a repartição das despesas
públicas de acordo com a riqueza de cada um.
Traduzindo-se a tributação de acordo com a capacidade contributiva em um
dos objetivos principais, senão o principal, do Direito Tributário, fica evidenciada
a sua estreita ligação com o método teleológico aplicado na interpretação das nor-
mas tributárias.119
De acordo com o sentido que Larenz conferiu ao elemento teleológico, o apli-
cador da lei tributária deverá, na busca da regulamentação materialmente adequa-
da, interpretar, inicialmente, a norma abstrata procurando, dentro dos limites da
atividade hermenêutica, evitar contradições valorativas pela utilização dos princí-
pios ético-jurídicos, notadamente o da igualdade.
Deste modo, dentro do sentido literal possível da norma, deve o intérprete
optar pelo resultado que se coadune com a igualdade, com a generalidade e com a
capacidade contributiva, a não ser que da própria norma se extraia uma acepção
sugerida por outros princípios a ela imanentes, tais como as soluções baseadas na
Segurança Jurídica e as sugeridas pela extrafiscalidade ou pela praticidade adminis-
trativa, a partir de um juízo de ponderação entre os princípios fundados na Justiça
e aqueles alicerçados nos outros valores objetivados pelo legislador.
E justamente dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da
generalidade, utilizados como parâmetros da interpretação da lei fiscal, vai derivar,
segundo Perez de Ayala,120 o princípio da luta contra a evasão fiscal. Em conse-
qüência, o aplicador, dentro do sentido literal possível, irá optar pelo resultado her-
menêutico que não permita ao contribuinte evadir-se da obrigação de pagar o tri-
buto previsto em lei.
Por outro lado, deverá o intérprete atentar para a estrutura material do domí-
nio da norma, que deflui da natureza das coisas. No Direito Tributário, tal idéia irá
permitir ao aplicador a busca do verdadeiro conteúdo econômico do negócio jurí-
dico praticado, independentemente da forma exterior escolhida pelo contribuinte.
Assim, há uma íntima ligação entre o método teleológico – a partir da inter-
pretação dos fatos jurídicos praticados pelo contribuinte, com base na consideração

118 Nesse sentido, TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário.
3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 224, e LEHNER, Moris. Op. cit., p. 152.
119 Nesse sentido, LEHNER, Moris (Op. cit., p. 149) e BEISSE, Heinrich (Op. cit., p. 7).
120 Derecho Tributario..., cit., p. 114.

227
Ricardo Lodi Ribeiro

econômica destes, revelada pela estrutura material do domínio da norma e pelo


princípio da luta contra a evasão fiscal – e o combate à elisão fiscal abusiva.
Se é verdade que o legislador tributário não pode alterar a natureza do ato pra-
ticado pelo contribuinte, não é menos verdade que este também não pode escamo-
tear os efeitos tributários que brotam do ato por ele praticado, por meio da escolha
de uma forma jurídica que não se coaduna à sua intenção negocial, aos resultados
pretendidos com a prática daquela atividade – em suma, com a realidade econômi-
ca subjacente.
Porém, não cabe a associação dessas idéias desenvolvidas pelos tributaristas
vinculados à jurisprudência dos valores com as teorias causalistas que predomina-
ram na Alemanha, no início do século XX, inspiradas na jurisprudência dos inte-
resses. Historicamente, a teoria da consideração econômica do fato gerador foi con-
cebida, primordialmente, como uma regra de interpretação orientada à função de
auferir mais receitas. Como salienta Moris Lehner, a norma do Código Alemão de
1919 consistia em regra voltada para a arrecadação.121 Ao contrário, a utilização,
nos dias atuais, do critério econômico como decorrência do aspecto teleológico,
não deriva de uma preocupação arrecadatória, mas de uma apreciação baseada nos
valores da Igualdade e da Justiça.
No entanto, se o Código Tributário Alemão de 1919 consagrava, expressamen-
te, a teoria da consideração econômica, a não-previsão de dispositivo análogo no
código de 1977 não impediu a apreciação do critério econômico na interpretação
da lei tributária daquele país, como assinalam Lehner122 e Beisse,123 uma vez que o
correto procedimento hermenêutico não depende de regras codificadas.124
Desta forma, o traço fundamental de distinção entre a teoria da consideração
econômica do fato gerador desenvolvida por Enno Becker e o exame do critério
econômico realizado no âmbito da interpretação teleológica, encontra-se nos limi-
tes da atividade hermenêutica da metodologia de Larenz. Enquanto Becker e seus
seguidores se inclinavam, como observou Beisse,125 para a livre criação do Direito,
sem vinculação estreita com a lei,126 os seguidores da concepção hoje dominante

121 Moris Lehner reproduz uma citação de Enno Becker, onde fica clara a associação que o autor do ante-
projeto de Código Tributário Alemão de 1919 faz entre os interesses da arrecadação e a interpretação
econômica: “Diante da importância para a coletividade do procedimento da tributação”, seria “um requi-
sito de primeiríssima ordem que, pouco importando a forma escolhida pelas partes, (...) ou a roupagem
de qualquer caso, fosse encontrada, pelo imposto, seu significado econômico (...) A valorização da situa-
ção fática conforme seu significado econômico e a interpretação da lei tributária conforme sua finalida-
de se encontram em casos como esses” (Op. cit., pp. 147 e 148).
122 Ibidem, p. 148.
123 Op. cit., p. 6.
124 PEREZ DE AYALA. Derecho Tributário..., cit., p. 119.
125 Op. cit., p. 21.
126 Na doutrina italiana funcionalista, representada especialmente pelos autores da Escola de Pavia, também
predominou uma tendência que se caracterizou por não enxergar na lei um limite à atividade herme-
nêutica. Nesse sentido, é emblemática a posição de Ezio Vanoni: “Quando o intérprete pesquisa a von-

228
Temas de Direito Constitucional Tributário

na Alemanha, como se verifica nas obras de Tipke, de Vogel, de Lehner e do pró-


prio Beisse, encontram no sentido literal possível da norma um limite à atividade
de interpretação.
E é a partir do sentido literal possível das palavras utilizadas pelo legislador
que podemos pesquisar a influência das acepções já utilizadas pelo Direito Civil, e
que são encontradas na legislação tributária. Assim, Beisse, a partir da metodologia
de Larenz e das decisões do Tribunal Federal de Finanças da Alemanha, estabele-
ceu uma sistemática cuja aplicabilidade traz benefícios ao tema da relação do
Direito Tributário com o Direito Civil, não só para aquele país, mas também para
outros sistemas jurídicos, como o nosso, a despeito das inócuas regras do CTN bra-
sileiro. Assim, segundo Beisse, a interpretação dos conceitos de Direito Tributário
segue três princípios:

a) Conceitos econômicos de Direito Tributário criados pelo legislador tributá-


rio, ou por ele convertidos para os seus objetivos, devem ser interpretados
segundo critério econômico. É exemplo desta modalidade, em nossa legis-
lação pátria, a expressão renda e proventos de qualquer natureza, que não
é encontrada no Direito Civil, sendo inteiramente delineada pelo legislador
tributário, na Constituição Federal, no CTN, e na legislação ordinária.
b) Conceitos de Direito Civil devem ser interpretados, dentro do sentido lite-
ral possível, economicamente, quando o objetivo da lei tributária impõe, de
forma objetivamente justificada, um desvio do conteúdo do conceito de
Direito Privado, em nome do princípio da igualdade, que poderia ser viola-
do por meio de uma interpretação civilística da expressão legal. Serve mais
uma vez como exemplo a expressão empregadores, contida no artigo 195 da
Constituição Federal, para definir os contribuintes das contribuições da
seguridade social, que não tem a concepção do Direito do Trabalho, abar-
cando empresas que não mantêm empregados próprios.127
c) Conceitos de Direito Civil devem ser interpretados de acordo com a defini-
ção contida na legislação civil quando, conforme o sentido e o objetivo da
lei tributária, se tem certeza de que o legislador cogitou exatamente do con-
ceito de Direito Privado. Da mesma forma, quando o sentido literal possí-
vel da norma tributária não confere outra possibilidade senão aquela ofere-

tade da lei, ainda que vá além da vontade dos órgãos legislativos que elaboraram a norma, não cria direi-
to, mas atribui à lei todo o valor, que o ambiente no qual se movimenta lhe confere. Desta maneira, a
extensão da lei tributária a hipóteses não expressamente previstas por ele, quando ocorra segundo as
regras jurídicas e lógicas de interpretação que temos mencionado, não pode contrariar a disposição do
art. 30 da Constituição, porque essa extensão não representa a criação de um novo tributo, mas a inte-
gral realização da norma tributária” (Op. cit., p. 189).
127 No sentido do texto foi a interpretação autêntica do dispositivo pela EC nº 20/98, que equiparou aos
empregadores as empresas e entidades assemelhadas.

229
Ricardo Lodi Ribeiro

cida pela lei civil. A definição do fato gerador do ITR constitui exemplo
bem ilustrativo desta categoria jurídica. De fato, do próprio texto da lei, se
extrai que será tributada a propriedade imóvel por natureza, conforme defi-
nida na lei civil.128

Ricardo Lobo Torres, em lição que não discrepa da sistemática de Beisse, susten-
ta que a interpretação será mais ou menos vinculada ao critério econômico, de acor-
do com o tributo em exame. Assim, os impostos sobre a propriedade se baseiam numa
interpretação que preserva os conceitos de Direito Privado; já os impostos sobre a
renda e o consumo, por se constituírem de conceitos tecnológicos ou elaborados pelo
próprio Direito Tributário, melhor se abrem à interpretação econômica.129
Como é sabido, o objetivo da lei de incidência é a identificação da manifesta-
ção de riqueza capaz de suportar determinado quinhão do custeio das despesas
públicas. Deste modo, mais do que a forma jurídica adotada, o operador do Direito
Tributário deve se preocupar com a essência econômica efetivamente praticada.
Não é outra a posição de Tipke: “Juristas não raro se equivocam, no Direito
Tributário, quando tomam por bem tributável o pressuposto técnico-jurídico, em
lugar do pressuposto econômico-tributário.”130
Portanto, num sistema jurídico orientado por valores, e donde deriva a con-
seqüente necessidade de o intérprete evitar contradições valorativas, a acepção
econômica há que prevalecer, em caso de dúvida, sobre a interpretação civilísti-
ca.131 A essa afirmação não deve ser oposto o princípio da unidade da ordem jurí-
dica, uma vez que esta não é realizada pelo primado do Direito Civil.132 Ademais,
a idéia de unidade do sistema jurídico repousa muito mais no plano axiológico do
que no lingüístico, não havendo portanto qualquer óbice para que determinada
palavra tenha um sentido diferente no Direito Tributário.
Como se vê, a capacidade contributiva como princípio interpretativo, decor-
rente da aplicação do método teleológico, no Direito Tributário, manifesta-se pela
análise das normas criadoras de tributos a partir do critério econômico,133 tão caro
à revelação da manifestação de riqueza do contribuinte.
No entanto, não se deve confundir a consideração do critério econômico, reco-
mendado pelo princípio da capacidade contributiva, com a teoria causalista da inter-
pretação econômica do fato gerador, uma vez que aquela não parte, como esta, da
interpretação tributária para os negócios jurídicos previstos no Direito Civil, mas da

128 Artigo 29 do Código Tributário Nacional.


129 Normas de Interpretação..., cit., p. 206.
130 Princípio da Igualdade..., cit., p. 522.
131 BEISSE. Op. cit., p. 23.
132 Ibidem, p. 37.
133 BEISSE, Heinrich. Op. cit., p. 7.

230
Temas de Direito Constitucional Tributário

constatação de que a metodologia hermenêutica nesse ramo da ciência jurídica não


se distingue substancialmente da interpretação na teoria geral do Direito.134
Em conseqüência, a utilização do método teleológico não vai afastar a aplica-
ção aos negócios jurídicos, dos conceitos definidos pelo Direito Privado, mas bus-
car o objetivo da norma que possuindo finalidade arrecadatória, não poderá se afas-
tar da apreciação sobre a manifestação de riqueza definida pelo fato gerador.
Assim, como assinala Francesco Moschetti,135 entre duas diversas interpreta-
ções deverá sobreviver aquela que assegura respeito ao princípio da capacidade
contributiva. Não sendo nenhuma das interpretações possíveis adequadas ao refe-
rido princípio, inevitável será a declaração de inconstitucionalidade da norma.136
Diante do exposto, se observa que o resgate do valor da Justiça pelo Direito
Tributário assegura o equilíbrio entre a capacidade contributiva e a legalidade, com
a retomada da primeira sem as conotações vinculadas à arrecadação da maior quan-
tidade de recursos, característica do período da jurisprudência dos interesses; há
sim, uma subordinação aos valores da Justiça e da Liberdade. Como salienta John
Rawls,137 o sistema de tributação tem o intuito de arrecadar a receita exigida pela
justiça, devendo o governo receber os recursos necessários ao fornecimento de
bens públicos para que o princípio da diferença seja satisfeito.

6) Conclusões

Ao longo de todo este estudo, procurou-se demonstrar que o ideal de Justiça


Tributária não se limita a uma mera figura de retórica a ilustrar o discurso do legis-
lador constituinte. Ao contrário, a Justiça é o valor que, ao lado da Segurança
Jurídica, deve alicerçar todo o ordenamento jurídico.
Esse ideal de Justiça vai se realizar, não pela fixação de regras de ouro, mas por
meio da abertura do Direito Tributário aos valores e princípios da Igualdade, da
Capacidade Contributiva e da Generalidade, a partir de uma interpretação, que
longe de se basear em premissas preestabelecidas, vai dar efetividade a esse arca-
bouço axiológico.
Como fica claro no decorrer do presente trabalho, o ideal de Justiça Fiscal e a
efetividade do princípio da capacidade contributiva não vão se revelar apenas pela
adequada configuração legal do fato gerador da lei tributária, vista no plano abstra-
to da norma. Ao contrário, o triunfo de tais idéias passa necessariamente pelo res-
gate ético da vida tributária nacional, a partir de um eficaz combate não só à eva-
são fiscal, mas principalmente à elisão desarrazoada, praticada por meio do abuso

134 LEHNER, Moris. Op. cit., p. 145.


135 MOSCHETTI, Francesco. La Capacità Contributiva. Padova: Cedam, 1993, p. 13.
136 HERRERA MOLINA. Op. cit., p. 113.
137 Ob. cit., p. 307.

231
Ricardo Lodi Ribeiro

de direito, em suas mais variadas nuances. Tal combate pode ser efetivado por meio
da atividade hermenêutica, e ainda da atividade legislativa que promova o fecha-
mento das brechas legais e estabeleça cláusulas antielisivas.
Sem tais providências, o Estado brasileiro continuará indo buscar os seus recur-
sos por meio de tributos que não rendem homenagem ao princípio da capacidade
contributiva efetiva, mas que se coadunam com práticas simplificadoras de comba-
te à evasão e à elisão, como a CPMF, a COFINS e o PIS. Da mesma forma, as pessoas
físicas, especialmente os assalariados e os consumidores, continuarão suportando a
parte mais pesada da carga tributária, consolidando contradições valorativas que
inutilizam todo o discurso constitucional por uma sociedade justa e solidária.
Tais conclusões se baseiam em várias proposições defendidas ao longo deste
trabalho, em especial nas seguintes idéias, a seguir relacionadas.

1) A radicalidade com que a doutrina tributarista brasileira faz a defesa da


tipicidade fechada e da legalidade como princípios absolutos não encontra
paralelo em outros regimes jurídicos, constituindo uma das causas da crise
axiológica em nosso sistema tributário, onde a Justiça é mera retórica, e os
segmentos menos aquinhoados suportam a maior parte da carga tributária,
sem qualquer consideração a respeito da capacidade contributiva.
2) Essa crise se explica pelas possibilidades oferecidas aos detentores de
maior capacidade contributiva de deixar de recolher seus tributos em
detrimento da população mais carente, obrigando o legislador a adotar
figuras tributárias que não se caracterizam por respeito à capacidade
contributiva efetiva, mas por se adequarem à sistemática de simplifica-
ção da arrecadação e combate à elisão, como a CPMF, a COFINS e o PIS.
3) O princípio da capacidade contributiva, superada a sua visão causalista,
que o confundia com os interesses arrecadatórios do Estado, constitui
uma decorrência da Igualdade, e um mecanismo de efetivação da Justiça
Tributária.
4) A capacidade contributiva revela-se pela manifestação de riqueza descri-
ta pelos fatos geradores tributários, e em seu aspecto objetivo, impede a
tributação de fatos que não se constituam em signos presuntivos de
riqueza. Já no seu aspecto subjetivo, visa a distribuir a carga tributária
entre os cidadãos, de forma adequada aos haveres de cada um.
5) Embora seja modernamente identificado com o subprincípio da propor-
cionalidade, a capacidade contributiva não pode, no Estado Social, pres-
cindir da progressividade, por se traduzir em mecanismo de Justiça
Distributiva, notadamente em sociedades com profundo grau de desi-
gualdade social, como a nossa.

232
Temas de Direito Constitucional Tributário

6) A seletividade, baseada na essencialidade dos produtos e mercadorias,


constitui a melhor técnica de efetivação do princípio em relação aos tri-
butos indiretos, como o ICMS e o IPI.
7) A personalização, que deve ser utilizada sempre que possível, de acordo
com a positivação constitucional do princípio da capacidade contributiva,
também está presente, modernamente, nos impostos reais, ainda que de
forma ancilar. Portanto, a classificação entre impostos reais e pessoais, não
leva em conta características que se apresentam de modo exclusivo em
cada imposto, mas de maneira preponderante.
8) A capacidade contributiva encontra como limite inferior o mínimo exis-
tencial, e como limite máximo, o confisco.
9 A capacidade contributiva não vincula somente o legislador, mas também
ao aplicador da lei, servindo não só como princípio hermenêutico, mas
também como limite ao poder de tributar que pode ser utilizado pelo
Poder Judiciário para afastar a tributação violadora do seu conteúdo.
10) O princípio da capacidade contributiva não se aplica apenas aos impos-
tos, mas a todos os tributos, embora naquela espécie tributária ganhe
maior efetividade, uma vez que não há prestação estatal a mensurar,
como nos tributos vinculados.
11) Os elementos que compõem o princípio da capacidade contributiva
podem entrar em conflito interno, como acontece, por exemplo, quando
a progressividade fere a capacidade contributiva efetiva.
12) Também é possível existirem conflitos externos entre a capacidade con-
tributiva e outros interesses buscados pela legislação tributária, como a
extrafiscalidade e as práticas simplificadoras da Administração.
13 Tais conflitos se resolvem pela ponderação de interesses, a partir de con-
siderações pertinentes ao caso concreto, sendo certo que as práticas sim-
plificadoras só prevalecerão sobre a capacidade contributiva quando se
traduzirem em mecanismos que melhor atendam ao princípio da igual-
dade, em uma acepção que vá além de sua formulação abstrata pela
norma, considerando as dificuldades de atingir a generalidade pela tribu-
tação de acordo com a capacidade contributiva efetiva.
14) Em tais casos, a norma simplificadora não poderá, na maioria dos casos,
ter como resultado uma tributação que se afaste da capacidade contribu-
tiva. Por outro lado, em nenhum caso individual o contribuinte poderá
ser obrigado a contribuir em valor que absurdamente se afaste da capa-
cidade contributiva efetiva.
15) Como princípio interpretativo, a capacidade contributiva se vincula ao
método teleológico, a partir da consideração do critério econômico.
16) No Direito Tributário, o método teleológico se manifesta pela intenção
do legislador de repartir a carga tributária, de acordo com a capacidade

233
Ricardo Lodi Ribeiro

contributiva, a partir da consideração econômica do fato gerador, por


uma visão bem diversa daquela oferecida pelo causalismo da primeira
metade do século XX.
17) Assim, as estruturas materiais oferecidas pelo domínio da norma vão
revelar a realidade econômica subjacente à forma jurídica.
18) Por sua vez, os princípios ético-jurídicos vão subordinar a interpretação
aos princípios da isonomia, da generalidade e da capacidade contributiva.
E a partir dessas idéias, surge o princípio da luta contra a evasão fiscal.
19) A partir do sentido literal possível da norma, pode-se pesquisar a
influência da definição e conceito oferecidos pelo Direito Civil, para os
negócios praticados pelo contribuinte.
20) Deste modo, os conceitos criados pelo legislador tributário, ou por ele
convertidos para seus objetivos, devem ser interpretados de acordo com
o critério econômico.
21) Os conceitos de Direito Civil também são interpretados economicamen-
te quando o Direito Tributário promove o seu desvio em nome do prin-
cípio da igualdade.
22) Os conceitos de Direito Civil têm suas acepções preservadas quando há
certeza de que o legislador tributário cogitou esse sentido.
23) O princípio da unidade da ordem jurídica não se efetiva pelo primado do
Direito Civil, mas depende, antes de tudo, da compreensão do sentido da
norma pela utilização de todos os métodos interpretativos.

234
XIII
Competência Tributária
Sumário: 1) Conceito. 2) Competência Tributária e Sujeição Ativa. Indelegabilidade. 3) Clas-
sificação. 3.1) Competência Exclusiva. 3.2) Competência Comum. 3.3) Competência Resi-
dual. 3.4) Competência Extraordinária. 4) Critérios para Partilha da Competência Tribu-
tária. 4.1) Nos Impostos – Fato Gerador. 4.1.1) Impostos da União – art. 153. 4.1.2) Impostos
dos Estados – art. 155. 4.1.3) Impostos dos Municípios – art. 156. 4.2) Nos Tributos
Vinculados – Competência para a Atividade Estatal. 5) Conflitos de Competência. 5.1) Bi-
tributação. 6) Competência Tributária e Federalismo Fiscal.

1) Conceito

A competência tributária é o poder de criar tributos e sobre eles legislar de


forma plena, observadas as limitações contidas na Constituição Federal, nas leis de
normas gerais de Direito Tributário, em especial no CTN, e, no caso dos Estados, na
Constituição Estadual, no caso dos Municípios, na Lei Orgânica do Município (art. 6º
do CTN). Deste modo, salvo as limitações contidas na Constituição Federal e regula-
das na lei de normas gerais de direito tributário (CTN), a legislação federal, estadual
e municipal é exercida plenamente, só podendo o poder central limitar a competên-
cia dos entes periféricos nos casos estabelecidos na Constituição Federal, a quem
compete, no nosso regime federativo, a partilha das competências tributárias.
Só possuem competência tributária os entes da Federação, uma vez que só a
eles é atribuída a competência para legislar. Ou seja, só a União, o Estado, o Distrito
Federal e o Município têm competência tributária. Não a possuem o território, a
autarquia, a fundação e as pessoas jurídicas de direito privado.
É no sistema federativo que o estudo da competência tributária e da sua par-
tilha ganha uma dimensão mais relevante, uma vez que nos estados unitários, todo
o poder deriva do ente central. A doutrina nos países unitários prefere a utilização
da expressão potestade tributária legislativa,1 ao invés de competência, uma vez
que esta pressupõe partilhas e limitações estabelecidas pela Constituição Federal.
Sendo a competência tributária exercida de forma plena, ressalvadas as limi-
tações constitucionais, a competência para a concessão de benefícios fiscais perten-
ce, salvo exceções expressamente previstas na Constituição Federal,2 ao titular da

1 Por todos: GONZÁLEZ, Eusébio e LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributario I. 2. ed. Salamanca: Plaza
Universitaria, 2000, pp. 119 e segs.
2 A única exceção prevista constitucionalmente é o art. 156, § 3º, II, que atribui à lei complementar a fun-
ção de conceder isenção de ISS quanto às operações destinadas ao exterior, o que foi levado a efeito pela
LC nº 116/03, art. 2º, I. Até a EC nº 42/03, também era possível que a lei complementar concedesse isen-
ção de ICMS para os produtos industrializados e semi-elaborados (art. 155, § 2º, XII, e), mas a nova reda-

235
Ricardo Lodi Ribeiro

competência tributária, que o deve fazer por lei específica (art. 150, § 6º, CF). Note-
se que essa disciplina é válida não somente para isenções, mas também para qual-
quer regra que estabeleça tratamento fiscal privilegiado a determinado grupo de
contribuintes. Assim, só a lei de cada entidade federativa pode estabelecer anistias,
remissões, parcelamentos, compensações etc. Nesse sentido, são inconstitucionais
os artigos 152, I, b, e os §§ 3º e 4º do art 155-A, introduzidos pela LC nº 118/05, por
constituírem modalidades heterônomas de moratória e parcelamento, o que preci-
saria ser autorizado pela Constituição.
O não-exercício da competência tributária pelo ente competente não a defe-
re a outra entidade federativa (art. 8º do CTN), ainda que esta seja beneficiária, no
todo ou em parte, do produto da arrecadação.

2) Competência Tributária e Sujeição Ativa. Indelegabilidade

Não se deve confundir a competência tributária, entendida como poder para


instituir tributo, com a capacidade tributária ativa, ou sujeição ativa, revelada no
poder-dever de exigir ou cobrar o tributo. O sujeito ativo, ou titular da capacidade
tributária ativa, é a pessoa jurídica de direito público responsável pela administra-
ção tributária, o que irá se traduzir nas funções de arrecadar, fiscalizar e executar a
legislação tributária.3
Enquanto a competência tributária é sempre indelegável, a capacidade tribu-
tária ativa pode ser delegada à pessoa jurídica de direito público (art. 7º do CTN).
Deste modo, além da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, podem ser
sujeitos ativos do tributo as autarquias, inclusive as chamadas agências executivas,
bem como as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público. Ex. INSS,
Anatel, Fundação Nacional de Saúde, OAB, etc.
A única função que pode ser delegada a pessoa jurídica de direito privado, e
até a pessoa física, é a arrecadação, assim entendida como a atribuição de receber o
pagamento do tributo, o que hoje é feito pela rede bancária (§ 3º do art. 7º do CTN).

3) Classificação

A competência tributária se classifica em competência exclusiva, comum,


residual e extraordinária.

ção dada pela referida emenda ao art. 155, § 2º, X, a, imunizou o ICMS na exportação de quaisquer mer-
cadorias. Logo, não há que se falar mais em isenção, mas em imunidade.
3 Contra a orientação dominante contida no texto, Ruy Barbosa Nogueira, que defende ser o sujeito ativo
o titular da competência tributária (NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 11. ed. São
Paulo: Saraiva, 1993, p. 144).

236
Temas de Direito Constitucional Tributário

3.1) Competência Exclusiva

É aquela atribuída com exclusividade pela Constituição Federal a determina-


do ente federativo. É bastante encontrada na doutrina a denominação de compe-
tência privativa para designar esta modalidade de competência. Porém, em razão
da indelegabilidade já estudada, mais adequada nos parece a denominação ora
empregada.
Assim, a União tem competência exclusiva para instituir:

• os impostos previstos no art. 153 da CF (II, IE, IR, IPI, IOF, ITR e IGF);
• os empréstimos compulsórios (art. 148, CF);
• as contribuições parafiscais (art. 149, CF);4

O Estado tem competência exclusiva para instituir os impostos previstos no


art. 155 (ITD, ICMS e IPVA) e os Municípios os impostos do art. 156 (IPTU, ITBI
e ISS) e a Contribuição de Iluminação Pública (art. 149-A).
O Distrito Federal tem competência para instituir os impostos atribuídos aos
Estados e Municípios (art. 32, § 1º, CF). Já os territórios não possuem competência,
cabendo à União o poder para instituir os impostos federais e estaduais. Quanto aos
impostos municipais, serão cobrados pelo Município, se o Território assim for dividi-
do. Caso contrário a competência municipal caberá também da União (art. 147, CF).

3.2) Competência Comum

É aquela atribuída pela Constituição Federal à União, aos Estados, ao Distrito


Federal e aos Municípios, de acordo com as respectivas atribuições. É, portanto,
aplicada a tributos vinculados a uma atividade estatal específica em relação à pes-
soa do contribuinte.
A competência comum ocorre nas taxas, contribuições de melhoria e contri-
buições previdenciárias dos servidores públicos.
Porém, o exercício da competência comum não significa que possa haver
bitributação, com mais de um ente federativo cobrando tributo sobre um mesmo
fato gerador, pois cada exigirá o tributo de acordo com as atividades estatais com-
preendidas na sua competência material.5

4 Exceto as contribuições previdenciárias dos servidores públicos, que segundo a regra do parágrafo único
do art. 149, são da competência comum, e a contribuição de iluminação pública, que é reservada aos
Municípios (art. 149-A).
5 Vide item 4.2, onde será estudado o critério utilizado pela Constituição Federal para a repartição da
competência tributária nos tributos da competência comum.

237
Ricardo Lodi Ribeiro

3.3) Competência Residual

É a competência que a Constituição Federal deferiu à União para instituir im-


postos (art. 154, I) e contribuições da seguridade social (art. 195, § 4º), não previs-
tas no Texto Maior.
Com base na competência residual, a União pode instituir imposto não previs-
to na Constituição, desde que adotados os seguintes requisitos:

a) seja instituído por lei complementar;


b) não tenha fato gerador e base de cálculo de impostos previstos na Constituição;
c) seja não-cumulativo.

No que se refere às contribuições da seguridade social, a União poderá insti-


tuir novas fontes de custeio, desde que o faça por lei complementar. O Plenário do
STF entendeu que a remissão que o art. 195, § 4º, CF faz ao art. 154, I, não se tra-
duz na exigência dos três requisitos previstos do dispositivo constitucional em
questão, mas apenas à exigência de lei complementar.6 Segundo o Pretório Excelso,
a repartição das competências tributárias previstas nos artigos 153, 155 e 156 é para
impostos e não para outros tributos como as contribuições parafiscais. Contra essa
posição, Luciano Amaro sustenta tese diametralmente oposta, defendendo que a
contribuição residual deve ser instituída por lei ordinária, atendendo o comando
do art. 195, § 4º, que fala em lei, consistindo a remissão ao art. 154, I, apenas exi-
gência dos outros dois requisitos: a não-cumulatividade e a não-utilização de fatos
geradores e base de cálculos de impostos estaduais e municipais.7 No entanto,
entendemos que a remissão que o art. 195, § 4º, faz ao art. 154, I, exige que os três
requisitos da competência residual dos impostos também sejam aplicados às contri-
buições da seguridade social. Tal posição se justifica pela lógica e pelo caráter rígi-
do de nosso sistema tributário nacional, onde a repartição das competências tribu-
tárias não se limita aos impostos, mas a quaisquer tributos que utilizem os fatos
geradores atribuídos pela Constituição Federal à União, aos Estados e aos
Municípios, exceto quando o contrário for expressamente previsto no Texto
Constitucional, como ocorre, por exemplo, no imposto extraordinário de guerra
(art. 154, II, CF).
Deve-se registrar que a competência residual só existe nos impostos e nas con-
tribuições da seguridade social, pois apenas nestes há discriminação constitucional
dos fatos geradores. Assim, não há competência residual em taxas, contribuições de
melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições parafiscais que não sejam des-
tinadas à seguridade, pois nestas modalidades de tributo não ocorre a discrimina-

6 STF, Pleno, RE nº 228.321, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 1º/10/98, DJU 30/05/2003, p. 30.
7 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 97.

238
Temas de Direito Constitucional Tributário

ção de fatos geradores pela Constituição, e logo, não se concebe competência para
instituir exações não previstas.8

3.4) Competência Extraordinária

É a prevista no artigo 154, II, CF, que atribuiu à União competência para ins-
tituir, “na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, com-
preendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gra-
dativamente, cessadas as causas de sua criação”.
Observe-se que o imposto só pode ser instituído no caso de conflito externo,
não sendo legítima a sua cobrança por ocasião de distúrbios internos, como revo-
luções ou guerras civis.
O art. 154, II, da CF, permite expressamente que o Imposto Extraordinário de
Guerra tenha fatos geradores e bases de cálculo de outros tributos previstos na
Constituição, ainda que atribuídos aos Estados e Municípios. Temos aqui uma bitri-
butação expressamente admitida pelo Texto Maior. Assim, o seu fato gerador pode
ser o mesmo do ICMS ou do ISS, por exemplo.
O IEG deve ser gradativamente suprimido quando cessarem as causas de sua
criação, não havendo um prazo preestabelecido para tal.9

4) Critérios para Partilha da Competência Tributária

Num sistema tributário nacional rígido como o nosso, a partilha da competên-


cia tributária é realizada pela Constituição Federal, que utilizará critérios distintos
para essa partilha, de acordo com a natureza do tributo e a sua vinculação com uma
atuação estatal.10

4.1) Nos Impostos – Fato Gerador

Nos tributos não vinculados a qualquer atividade estatal relativa ao contri-


buinte, como o imposto (art. 16 do CTN), o critério de partilha estará baseado na
previsão constitucional dos fatos geradores.11

8 Contra a posição esposada no texto, Hugo de Brito Machado, que defende ser residual a competência do
Estado para instituir taxas, na medida em que o poder para instituir esta modalidade tributária se pren-
de à competência material remanescente, prevista no art. 25, § 1º, da CF (MACHADO, Hugo de Brito.
Curso de Direito Tributário, 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 320).
9 Na Constituição de 1946, o imposto só poderia ser cobrado até 5 anos da celebração da paz.
10 AMARO, Luciano, Ob. cit., p. 94.
11 AMARO, Luciano, Ob. cit., p. 95.

239
Ricardo Lodi Ribeiro

A partir desse critério, a Constituição confere competência à União para ins-


tituir os impostos previstos no art. 153, aos Estados os do art. 155, e aos Municípios
os do art. 156.

4.1.1) Impostos da União – art. 153

I) imposto de importação de produtos estrangeiros (II);


II) imposto de exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacio-
nalizados (IE);
III) imposto de renda e proventos de qualquer natureza (IR);
IV) imposto sobre produtos industrializados (IPI);
V) imposto sobre operações financeiras de crédito, câmbio e seguro, ou rela-
tivas a títulos ou valores mobiliários (IOF);
VI) imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR);
VII) imposto sobre grandes fortunas (IGF).

4.1.2) Impostos dos Estados – art. 155

I) imposto de transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou


direitos (ITD);
II) imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a
prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação (ICMS);
III) imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA);

4.1.3) Impostos dos Municípios – art. 156

I) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU);


II) imposto de transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis e de direitos
reais sobre eles, bem como sobre a cessão de direitos sobre a sua aquisi-
ção (ITBI);
III) imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS).

4.2) Nos Tributos Vinculados – Competência para a Atividade Estatal

Nos tributos vinculados a uma atuação estatal relativa a pessoa do contribuin-


te,12 o critério adotado pela Constituição Federal para a repartição de competência

12 Para maior compreensão sobre a classificação entre tributos vinculados e não vinculados: cf. ATALIBA,
Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, terceira parte,
capítulos II e III.

240
Temas de Direito Constitucional Tributário

se prende às competências materiais para desempenhar a atividade estatal. É que a


Carta Magna indica as competências materiais de cada uma das pessoas jurídicas de
direito público. As federais são previstas nos arts. 21 e 22. As municipais no art. 30,
enquanto os Estados ficam, segundo o § 1º do art. 25, com a competência residual
ou remanescente, para legislar sobre aquilo que não é vedado pela Constituição, ou
seja, o que não é atribuído à União e nem aos Municípios.
Assim, por exemplo, só a União poderá cobrar taxa sobre a fiscalização de
entidades que operam no mercado financeiro (art. 21, VIII). Do mesmo modo, só o
Estado cobrará a taxa de incêndio, vez que a prevenção e extinção desses não se
encontram deferidas à União ou ao Município. Por sua vez, só o Município insti-
tuirá taxa relativa aos serviços públicos de interesse local, como a taxa de coleta
domiciliar de lixo (art. 30, V). O mesmo ocorre em relação à contribuição de
melhoria que só pode ser exigida sobre as obras relacionadas com atividades com-
preendidas nas atribuições de cada ente, bem como a contribuição previdenciária
sobre os servidores públicos, que cada um vai exigir dos seus funcionários.
Nas matérias da competência comum, previstas no art. 23 da CF, é preciso
verificar qual o interesse que prevalece no desempenho da atividade estatal: o
nacional, regional ou local, para identificar qual o ente competente para exigir o
tributo. Se no caso concreto é impossível identificar o interesse predominante, pre-
serva-se o tributo federal em detrimento do estadual, que por sua vez prevalecerá
sobre o municipal. Tal entendimento não viola a igualdade que os entes federati-
vos possuem, mas se baseia no princípio do maior número de beneficiários da atua-
ção estatal, prestigiando a norma aplicável a um maior número de administrados, e
possui o mesmo fundamento do adotado pelo art. 187, parágrafo único, do CTN
para o concurso de credores públicos, referendado pela Súmula nº 563 do STF.13

5) Conflitos de Competência

Sendo o Sistema Tributário Nacional introduzido pela Constituição de 1988


avesso a bitributações e competências constitucionais concorrentes, prestigiando as
competências exclusivas, ainda quando se trate de competências comuns, cujo
exercício vincula às atribuições materiais de cada um, a competência tributária, em
regra, só será exercida por um único ente político.
Por isso, o artigo 146, I, CF, atribui à lei complementar a função de dirimir os
conflitos de competência tributária porventura surgidos entre a União, os Estados
e os Municípios. Como exemplo de potencial conflito de competência resolvido por
lei complementar, temos a tributação da propriedade imobiliária, uma vez que a

13 Súmula nº 563: “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único, do art 187, do Código
Tributário Nacional, é compatível com o disposto no art 9, inciso I, da Constituição Federal.”

241
Ricardo Lodi Ribeiro

rural pertence à União (ITR) e a urbana ao Município (IPTU). O artigo 32 do CTN,


que como é sabido tem eficácia passiva de lei complementar, estabelece que será
considerada urbana a propriedade imobiliária localizada dentro da zona urbana do
Município, que só poderá considerar como tal a região dotada de alguns serviços
públicos contidos no § 1º do referido artigo.
Outro exemplo é a lista de serviços anexa à LC nº 116/03, que delimita, entre
o ICMS estadual e o ISS municipal, a competência para a tributação das operações
de fornecimento de mercadorias acompanhada da prestação de serviços. Se o ser-
viço estiver na competência do Município, o ISS será cobrado sobre o valor total da
operação. Caso contrário incidirá o ICMS sobre o preço total.

5.1) Bitributação

Ocorre a bitributação quando mais de uma pessoa jurídica de direito público


cobra tributo sobre um mesmo sujeito passivo e em relação a um mesmo fato gera-
dor. Em princípio é rejeitada pelo nosso sistema tributário, que atribui competên-
cias exclusivas a todos os entes da Federação, pois geralmente representa a invasão
de um na competência de um outro ente.
Ocorre a bitributação, por exemplo, quando mais de um Município exige
IPTU sobre determinado imóvel. Assim como se dá quando a União exige ITR e o
Município exige IPTU sobre o mesmo imóvel. Nos dois exemplos, alguém está in-
vadindo a competência de outrem, sendo inconstitucional o fenômeno.
Porém, por exceção, podem existir casos em que a Constituição atribua a
mesma competência a mais de um ente federativo, como se dá na importação de
produtos industrializados, onde incidirá o IPI, o II, o PIS e a COFINS federais e o
ICMS estadual. O mesmo ocorre na saída de mercadoria de estabelecimento comer-
cial destinada à produção industrial, onde incidirá o IPI e o ICMS. Nestes casos, a
bitributação é constitucional, pois a Constituição Federal atribuiu competência tri-
butária a mais de um ente, não havendo que se falar em invasão de competência.
Com a posição adotada pelo STF14 quanto à instituição de contribuições para-
fiscais, que segundo o Pretório Excelso não precisam evitar os fatos geradores e
bases de cálculo dos impostos estaduais e municipais, por não se traduzirem em
impostos, surge a possibilidade também de bitributação, como ocorre no AFRMM
que tem o mesmo fato gerador e base de cálculo do ICMS incidente sobre transpor-
tes interestaduais, e na contribuição dos autônomos, com a mesma base de cálculo
do ISS. Porém, entendemos, pelas razões já expostas no tópico relativo à competên-
cia residual, que a União, ao instituir contribuições parafiscais, não pode utilizar

14 Sobre a contribuição dos autônomos ver STF, Pleno, RE nº 228.321, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 1º/10/98,
DJU 30/05/2003, p. 30. Quanto ao AFRMM, ver STF, Pleno, RE nº 177.137-2/RS, Rel. Min. Carlos
Velloso, DJU de 18/04/95.

242
Temas de Direito Constitucional Tributário

fatos geradores atribuídos pela Constituição aos Estados e Municípios, uma vez que
tal bitributação enseja uma invasão de competência não admitida pelo constituin-
te. O mesmo raciocínio deve ser adotado em relação ao empréstimo compulsório
que, salvo em caso de guerra externa ou sua eminência, não pode ter como fatos
geradores aqueles que a Constituição atribuiu aos Estados e Municípios pelos arti-
gos 155 e 156.15 A exceção aos casos de guerra externa é justificada pela autoriza-
ção que a Constituição Federal dá à invasão de competência nesses casos no art.
154, II. É bem verdade que tal dispositivo se refere somente ao imposto extraordi-
nário de guerra. Mas se é admitida a invasão de competência por medida provisó-
ria e sem direito à restituição em caso de conflito bélico, o mesmo deve-se admitir
quando a instituição se dá por lei complementar e há restituição, como ocorre no
empréstimo compulsório.
Não se deve confundir o fenômeno da bitributação com o bis in idem que ocor-
re quando a mesma pessoa jurídica de direito público, titular da competência tribu-
tária para instituir determinado tributo, exerce essa competência através de duas
normas, sobre um mesmo sujeito passivo, em relação a um mesmo fato gerador.
Diferencia-se da bitributação pela unicidade da entidade tributante. No bis in
idem não há que se cogitar em invasão de competência, mas no exercício desta por
duas normas jurídicas diversas, por razões legislativas. Economicamente a sua ins-
tituição produz os mesmos efeitos do aumento de alíquota, que dele se diferencia
no aspecto normativo unificado. Geralmente a lei denomina impropriamente o bis
in idem de adicional, que se diferencia do primeiro pela relação de acessoriedade
com o imposto principal. A diferença é que no bis in idem, temos dois impostos que
incidem sobre a mesma base de cálculo. No adicional, a base de cálculo é o valor
pago a título de imposto principal. Assim, o chamado adicional de imposto de
renda das pessoas jurídicas, instituído pelo § 2º do art. 2º da Lei nº 9.430/96, não é
na verdade um adicional, mas uma nova incidência do IR, um bis in idem admiti-
do pelo nosso ordenamento jurídico-tributário.16
O bis in idem será constitucional sempre que a incidência representada pelas
duas normas não resulte em montante tributado com violação de qualquer outro
princípio constitucional, como o não-confisco, a capacidade contributiva, ou a li-
mitação de alíquota contida na Constituição ou em norma nacional por esta conce-
bida. Assim, o bis in idem será constitucional toda a vez que a carga tributária exer-

15 Em sentido contrário o STF, que, nos julgados citados na nota anterior, considerou a impossibilidade de
a União instituir outros impostos sobre os fatos geradores previstos nos artigos 155 e 156 da CF, e não
outros tributos.
16 A alíquota imposto de renda pessoa jurídica é de 15%, segundo o artigo 3º da Lei nº 9.249/95, para todas
as empresas. No entanto, o § 1º do mesmo artigo, com redação dada pela Lei nº 9.430/96, estabelece um
adicional de 10% incidente sobre o montante do lucro que exceder R$ 20.000,00 por mês. Na verdade,
embora a lei o considere um adicional, trata-se de um bis in idem, uma vez que os dois incidem sobre
uma mesma base de cálculo.

243
Ricardo Lodi Ribeiro

cida através das duas normas seja legítima quando fosse efetivada por uma única lei.
Porém, será inconstitucional quando servir de mecanismo de burla a um dos dis-
positivos constitucionais anteriormente aludidos.

6) Competência Tributária e Federalismo Fiscal

A autonomia das entidades periféricas da Federação pressupõe a auto-admi-


nistração, ou seja, o livre exercício das competências conferidas pela Constituição.
Nunca se pode perder de vista que a auto-administração depende, obviamen-
te, de recursos financeiros para fazer frente aos misteres constitucionalmente con-
feridos a cada um dos entes federativos. Para garantir a possibilidade de cada um
deles cumprir os objetivos impostos pela Constituição Federal, é preciso que haja
uma adequação dos recursos repartidos a essas atividades administrativas que lhe
foram confiadas.
O descompasso entre as atribuições materiais e as receitas tributárias gera uma
sobrecarga comprometedora da auto-administração, e em conseqüência, da auto-
nomia federativa. A Constituição de 1988 contribuiu acentuadamente para a supe-
ração desse descompasso, equilibrando razoavelmente as receitas e despesas de
União, Estados e Municípios.17
Porém, não basta a simples atribuição de recursos aos entes periféricos da
Federação. É preciso garantir um mínimo de competências tributárias próprias para
garantir a sobrevivência da Federação.18
De fato, no âmbito do federalismo cooperativo de viés democrático, consagra-
do pela Constituição de 1988, a simples transferência constitucional do produto da
arrecadação dos impostos federais para os Estados não garante a auto-administração,

17 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional. 22. ed., São Paulo: Saraiva,
1995, p. 48.
18 NOVELLI, Flávio Bauer. “Norma Constitucional Inconstitucional? A propósito do art. 2º, § 2º, da
Emenda Constitucional nº 3/93”. Revista de Direito Administrativo 199, 1995, p. 39: “É bem verdade –
ninguém entende negá-lo – que a autonomia financeira da União e dos Estados-membros indiscutivel-
mente representa um elemento vital da complexa autonomia federativa, e que, conseqüentemente, não
pode deixar de considerar-se a existência daquela como impreterível à substância da própria federação.
Não é menos verdade, porém – e parece ter sido demonstrado – que, em última instância, e mormente
num ordenamento tributário como o nosso, no qual a Constituição federal veda taxativamente os tribu-
tos discriminatórios e confiscatórios, ao amparo dum sistema de amplo controle jurisdicional de consti-
tucionalidade das leis – a autonomia financeira dos entes políticos independe da existência e do alcance
da garantia da imunidade tributária recíproca. Ela tem sim, como se percebe, o seu fundamento mate-
rial e sua verdadeira medida na distribuição da competência legislativa (autonomia normativa) em maté-
ria tributária, ou seja, na atribuição, diretamente pela Constituição Federal, de poderes impositivos pró-
prios e de fontes de receita, independentes e adequadas, respectivamente, à União e às unidades federa-
das.” No mesmo sentido BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Financeiro e Tributário. 3. ed, São
Paulo: Saraiva, 1995, p. 125.

244
Temas de Direito Constitucional Tributário

haja vista que o exercício das competências materiais conferidas aos Estados não
pode depender exclusivamente do exercício da competência tributária da União.
É ínsita à idéia de autonomia, a descentralização territorial do poder, permi-
tindo que os Estados definam suas próprias prioridades, independentemente das
políticas definidas pela União.19 Sem que haja a eleição de suas próprias priorida-
des por parte dos Estados, inútil é a federação.20
Portanto, só através do exercício de sua própria competência tributária, o Estado
pode garantir o cumprimento de suas prioridades, e não as da União, preservando sua
autonomia em relação a esta. Assim, se, hipoteticamente, toda a arrecadação dos
Estados, ou quase toda, dependesse de tributos federais, a concessão de benefícios fis-
cais pela União, atendendo a um interesse que os poderes federais consideram prioritá-
rio, como o incentivo às exportações, poderia impedir que os Estados atingissem as suas
próprias prioridades, como o aumento dos investimentos na área social, por exemplo.
É justamente essa competência tributária própria que vai diferenciar a repar-
tição das receitas tributárias ocorridas na Federação das encontradas nos estados
unitários descentralizados. Há uma tendência à descentralização de recursos e
competências nos estados unitários como Portugal, Espanha e Itália, inclusive com
a criação de regiões autônomas, que possuem competências próprias e muitas vezes
até impostos próprios.
Na Espanha, segundo o art. 142 da Constituição, as fazendas locais devem dis-
por dos recursos suficientes para o desempenho das funções que a lei lhes atribuir,
e se nutrirão de tributos próprios e de participação nos tributos do Estado espanhol.
Salienta Carrera Raya,21 com apoio em decisão do Tribunal Constitucional, que
esses recursos suficientes para que as entidades locais atendam às suas necessidades
não são integralmente arrecadados por tributos próprios, mas também de tributos
do Estado espanhol. Porém, como salienta Ferreiro Lapatza,22 a atribuição de auto-
nomia total e absoluta aos territórios autônomos em matéria de ingressos públicos
é incompatível com a existência do Estado unitário.
Em Portugal, as regiões autônomas possuem também, segundo o artigo 227 da
Constituição, um regime de autonomia político-administrativa, com a competên-
cia de criar seus próprios impostos, mas trata-se de um poder tributário secundá-
rio, dependente de lei do Estado português quanto ao seu conteúdo e limites.23

19 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 4. ed., São Paulo: Malheiros,
1993, p. 81.
20 DALLARI, Dalmo de Abreu. “Competências municipais”, in “Estudos de Direito Público”, Revista da
Associação dos Advogados da Prefeitura do Município de São Paulo, 1983, nº 4, p. 7, apud CARRAZZA,
Ob. cit., p. 82.
21 CARRERA RAYA, Francisco José. Manual de Derecho Financiero, vol. I, Madrid: Tecnos, 1995, p. 63.
22 FERREIRO LAPATZA, José Juan, Curso de Derecho Financiero Español, vol. I, 21. ed., Madrid: Marcial
Pons, 1999, p. 108.
23 CAMPOS. Diogo Leite de. e CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito Tributário, Coimbra:
Almedina, 1998, p. 98.

245
Ricardo Lodi Ribeiro

Na Itália, o artigo 119 da Constituição prevê que as regiões autônomas dis-


põem de impostos próprios, além de uma parte dos impostos do Estado italiano. No
entanto, segundo o mesmo artigo, essa autonomia financeira, inclusive quanto à
instituição de impostos, é limitada pela lei da República.
Já nas federações, os entes autônomos possuem competências tributárias pró-
prias capazes de garantir o custeio de suas despesas, restando às transferências tri-
butárias de tributos federais como um mecanismo, tão caro ao federalismo assimé-
trico, de compensação financeira destinada a superar a desigualdade entre Estados
e garantir a autonomia e independência da federação e dos Estados.24
Deste modo, a autonomia dos entes da Federação depende de que todos eles
possuam competência tributária própria, capaz de fazer frente às responsabilidades
a eles atribuídas pela Constituição Federal.
Contrariando a tendência mundial, verificada inclusive nos países unitários,
como vimos, de descentralização de recursos e competências em favor dos entes
periféricos, a Federação brasileira vem conhecendo, a partir da última década, um
movimento de centralização de recursos em favor da União, que não é acompanha-
da de alteração nas atribuições materiais, causando uma acentuada sobrecarga fis-
cal aos Estados e Municípios.
Entre as medidas que contribuíram para essa sobrecarga fiscal dos entes par-
tes podemos destacar:

a) o Fundo Social de Emergência, aprovado pela ECR nº 1/94, e o Fundo de


Estabilização Fiscal, aprovado pelas ECs nºs 10/96 e 17/97, que desvincula-
ram parcelas significativas das transferências constitucionais de impostos
federais para Estados e Municípios, causando grave sangria nas receitas des-
ses entes;
b) a opção da União, no incremento da arrecadação, pela via das contribuições
da seguridade social, em detrimento do IR, IPI, e dos impostos residuais.
Nos últimos dez anos conheceu-se um aumento expressivo da arrecadação
de tributos federais, sempre pela via das contribuições da seguridade social,
cuja arrecadação pertence exclusivamente à União. Tal opção se deu em
detrimento dos impostos onde a arrecadação é dividida com Estados e
Municípios, por meio dos Fundos de Participação, acarretando perda na
arrecadação dos entes periféricos;
c) a invasão das competências constitucionais de Estados e Municípios pela ins-
tituição de contribuições parafiscais com o mesmo fato gerador ou base de
cálculo dos impostos destes, como ocorreu na contribuição previdenciária

24 HESSE, Konrad, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís
Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, pp. 205-207.

246
Temas de Direito Constitucional Tributário

dos autônomos, que possui a mesma base de cálculo do ISS, e do Adicional ao


Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), com a mesma base
de cálculo do ICMS de transporte interestadual e intermunicipal;
d) a concessão de isenções heterônomas de ICMS na exportação, pela Lei
Complementar nº 86/97 (Lei Kandir), causando prejuízo à arrecadação dos
Estados, a fim de atender às prioridades do Governo Central;
e) a estipulação detalhada sobre a gestão financeira pela Lei Complementar nº
101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que extrapolando a disciplina
das normas gerias de direito financeiro, adota as prioridades do Governo
Central, como norma obrigatória para Estados e Municípios;
f) a proposta de emenda constitucional do sistema tributário nacional, reti-
rando o ICMS da competência legislativa dos Estados, e passando o tributo
para a competência da União.

Tais medidas ferem o Princípio da Conduta Amistosa Federativa, que segun-


do Konrad Hesse, traduz-se na fidelidade para com a Federação, não só dos Estados
em relação ao todo e a cada um deles, mas da União em relação aos Estados.
Segundo o constitucionalista alemão, é inconstitucional a iniciativa que fira essa
fidelidade federativa, uma vez que se rompe o dever de boa conduta que deve pre-
sidir as relações entre os integrantes da Federação, baseada na colaboração e coo-
peração recíprocas.25

25 HESSE, Konrad, Ob. cit., pp. 212-215.

247
XIV
Federalismo Fiscal e Reforma Tributária
Sumário: 1) Introdução. 2) Federalismo: Evolução Histórica. 3) Federalismo: Conceito e
Elementos Constitutivos. 4) Formas de Federalismo no Estado Contemporâneo. 5) Fede-
ralismo Fiscal e a Distribuição de Rendas e Atribuições. 6) Federalismo e Centralização
Fiscal no Brasil. 7) Conclusão.

1) Introdução

O Federalismo brasileiro passa por um momento de crise causada pela tendên-


cia verificada no Brasil, na última década, de centralização do poder e principal-
mente de recursos, que haviam sido distribuídos pela Constituição de 1988, de
forma relativamente compatível com as atribuições constitucionais conferidas à
União, aos Estados e Municípios. As alterações constitucionais introduzidas nos
últimos anos, e aquelas cuja aprovação ora é discutida no Congresso Nacional, alte-
ram, em certa medida, o Pacto Federativo celebrado em 05 de outubro de 1988. A
legitimidade dessas alterações e uma visão crítica do quadro atual constituem o
objeto deste trabalho.
Tema muito presente na mídia e nos pronunciamentos das lideranças econô-
micas, parlamentares e governamentais, a reforma tributária é um paradoxo: todos
a desejam, mas ninguém consegue concebê-la como um projeto global, que possa
atender aos interesses da sociedade como um todo, onerada por uma das maiores
cargas tributárias do mundo; do setor produtivo, que, com o atual regime, perde
competitividade diante da concorrência internacional; da União, cujos recursos são
majoritariamente consumidos pelo pagamento de encargos das dívidas internas e
externas e pelos compromissos da Seguridade Social; dos Estados, que naufragam
diante de um ordenamento constitucional que lhes deu muitas obrigações e poucas
fontes de recursos, e dos Municípios, em sua franca maioria, dependentes do repas-
se das verbas referentes às transferências constitucionais.
Portanto, se todos querem a reforma, resta saber que reforma virá: a da União,
a dos Estados, a dos Municípios, a das empresas ou a do cidadão? A dificuldade
diante da multiplicidade de interesses envolvidos ganha maior dimensão quando se
leva em conta a necessidade de consenso político para garantir o apoio de 3/5 da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal necessário à aprovação de qualquer
emenda constitucional.
Paralelamente às dificuldades de ordem política, a Reforma Tributária ainda
deve superar outros obstáculos importantes: as limitações constitucionais ao poder

249
Ricardo Lodi Ribeiro

de reforma, notadamente, os limites materiais, as chamadas cláusulas pétreas, e em


especial, a da Federação.

2) Federalismo: Evolução Histórica

Embora o gérmen do Federalismo seja encontrado em Platão, em A Repú-


blica,1 a sua concepção é inerente ao Estado Moderno, e tem origem teórica nas
idéias de MONTESQUIEU, ainda que sem uma formulação empírica. Segundo o ilu-
minista francês: “Se uma república é pequena, ela é destruída por uma força estran-
geira, se é grande, destrói-se por um vício interno. Esse duplo inconveniente conta-
mina igualmente as democracias e as aristocracias, sejam elas boas ou más. O mal
está na própria coisa: nada há que possa remediar. Assim, há grandes indícios de que
os homens teriam sido obrigados a viver sempre sob o governo de um só, se não
tivesses imaginado um tipo de constituição que possui todas as vantagens, internas
de governo republicano e a força de monarquia. Refiro-me à república federativa.”
De acordo com MANUEL GARCIA-PELAYO, o Estado Federal aparece como
forma intermediária entre a Confederação e o Estado Unitário, que eram as moda-
lidades conhecidas no final do Século XVIII, quando as treze colônias norte-ame-
ricanas tornam-se independentes.2 A expressão aparece pela primeira vez, segun-
do GARCIA-PELAYO, nas repúblicas germânicas, sem no entanto significar,
senão, o oposto à Confederação.
Se as confederações são conhecidas desde a Antigüidade, com a Confederação
das Tribos de Israel, no séc. XIII antes de Cristo, e com as ligas helênicas, na Grécia
Antiga, passando pela Idade Média, com a Confederação Helvética, no Séc. XIII, e
a dos Países Baixos, no Séc. XVI, até pela Idade Moderna, com a Confederação
Germânica (1815 – 1871), são nos Estados Unidos que temos a primeira Federação,
na acepção moderna da palavra.3
É com a Constituição dos Estados Unidos, de 1787, que surge realmente o pri-
meiro regime federalista do mundo, a partir de uma experiência inicial confedera-
lista, logo após a independência.
Seguem-se os modelos federalistas da Suíça (1848) e da Alemanha (1871).
Tanto o modelo norte-americano, quanto o suíço e o germânico, caracterizam um
federalismo por agregação, em que estados anteriormente soberanos se unem por
um Pacto Federativo. É a chamada Federação por força centrípeta. Ao contrário, da
federação brasileira, que surge de um estado unitário, que por uma decisão consti-

1 RAMOS, Dircêo Torrecillas. O Federalismo Assimétrico. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 26.
2 GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. 7. ed., Madrid: Manuales de la
Revista Occidente, 1964, p. 216.
3 ZIMMERMANN, Augusto. Teoria do Federalismo Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, pp.
217-223.

250
Temas de Direito Constitucional Tributário

tucional sua, confere autonomia às províncias, passando a ser uma Federação. É o


que denominamos de Federação por força centrífuga ou por desagragação.
É óbvio que a origem histórica de cada federação acaba por influenciar a
maior ou menor autonomia dos seus Estados-membros. Geralmente, as federações
por agregação conferem uma maior autonomia aos Estados, em relação às experiên-
cias por desagregação.4
No mundo contemporâneo, assistimos a uma variedade de modelos federalis-
tas. Alguns deles, mantendo a ampla autonomia das entidades federadas, com os
Estados Unidos, e outros, onde a adoção do regime é apenas nominal, como ocor-
reu nos regimes ditatoriais latino-americanos.
Com a globalização e a integração econômica dos Estados nacionais, são for-
mados blocos econômicos tendentes à constituição de regimes federativos que
agreguem os estados nacionais hoje conhecidos, como ocorre com a Comunidade
Européia, após o tratado de Maastrich.

3) Federalismo: Conceito e Elementos Constitutivos

É extremamente complicada a questão relativa à conceituação do Federalis-


mo, pois, como bem observa DALMO DE ABREU DALLARI,5 não há conceitua-
ção uniforme de estado federal.
No entanto, existem traços característicos mínimos para a identificação de um
estado como federação. Segundo KONRAD HESSE, o Estado Federal se traduz em:
“uma união de várias organizações estatais e ordens jurídicas, e, precisamente,
aquelas dos ‘Estados-membros’, e aquelas do ‘estado total’, em que estado-total e
Estados-membros são coordenados mutuamente na forma que as competências
estatais entre eles são repartidas, que aos Estados-membros, por meio de um órgão
especial, são concedidas determinadas possibilidades de influência sobre o estado-
total, ao estado-total determinadas possibilidades de influência sobre os Estados-
Membros e que uma certa homogeneidade das ordens do estado-total e dos
Estados-membros é produzida e garantida.”6
Para REINHOLD ZIPPELIUS: “o Estado federal é uma união de Estados de
natureza tal que também a própria associação organizada de Estados (ou seja, a fede-
ração) reveste a qualidade de Estado. Tenta-se enquadrar a relação entre federação
e Estados-Membros num esquema, distinguindo-se ora dois ou três elementos. Uns
defendem que no Estado federal existem os Estados-Membros e o Estado global;
enquanto os outros dizem que no Estado federal estão reunidos o Estado global, os

4 Ob. cit., p. 56.


5 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal. São Paulo: Ática, 1986, pp. 77-78.
6 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução da
20. ed. alemã por Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, pp. 178-179.

251
Ricardo Lodi Ribeiro

Estados-Membros e o Estado central (Nawiasky III, 158 ss.). Na verdade, a totalida-


de das competências do Estado global é assumida em parte pelos órgãos dos Estados-
Membros e em parte pelos órgãos centrais da associação organizada dos Estados, não
sendo possível materializar, num Estado central separado, as competências dos
puros órgãos centrais. A distribuição das competências no Estado federal é equili-
brada por forma a que nem os órgãos centrais da federação, nem os órgãos dos
Estados-Membros possuem, por si sós, a supremacia das competências.”7
A despeito da dificuldade de sua conceituação, é certo que o federalismo se
fundamenta na descentralização do poder, permitindo a democratização das deci-
sões que passam a ser tomadas numa esfera mais próxima do cidadão, que, com isso,
tem maiores possibilidades de fiscalizar, controlar e influir nas decisões estatais.
Os estados unitários, quando divididos em províncias autônomas, se diferen-
ciam dos federais, segundo KELSEN, pelo grau de descentralização.8 Nesses últimos
existem duas ordens jurídicas, a central, válida por todo o território nacional, e as
locais, válidas somente no território dos Estados-membros. O que caracteriza o
Estado Federal é que a repartição de competências entre a União (poder central) e
os Estados (poder local), é estabelecida pela própria Constituição Federal, que deve
garantir a possibilidade de os Estados participarem da formação da ordem jurídica
central e a existência de órgão judiciário de cúpula capaz de garantir o primado do
Pacto Federativo estabelecido na Constitução.
A despeito dos vários modelos federalistas, são elementos essenciais do regi-
me federativo, segundo RAUL MACHADO HORTA:

a) indissolubilidade do vínculo federativo;


b) pluralidade dos entes constitutivos;
c) soberania da União;
d) autonomia constitucional e federativa dos Estados;
e) repartição constitucional das competências;
f) intervenção federal nos Estados;
g) iniciativa dos poderes estaduais para propor alteração na Constituição
Federal;
h) poder judiciário estadual distinto em sua organização e competência do
poder judiciário federal;
i) competência tributária da União e dos Estados, observada a particulariza-
ção dos tributos de cada um deles.

7 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho. 3. ed.,
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 510.
8 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 451.

252
Temas de Direito Constitucional Tributário

Salienta, no entanto, o constitucionalista mineiro que: “Essas características,


que servem para identificar o Estado Federal, podem não ser encontradas, no seu
conjunto, na totalidade das formas reais de Estado Federal. A ausência de caracte-
rísticas poderá significar a falta de amadurecimento da experiência federal, a resis-
tência de tradições que dificultam a implementação de um federalismo racionali-
zado. A atuação desses fatores negativos, quando não removidos no texto da
Constituição, dará lugar a um federalismo incompleto, a um federalismo não
autêntico, sem que essa deficiência possa acarretar a rejeição do respectivo Estado
no conjunto dos Estados Federais. A inclusão, em atenção ao preenchimento de
requisitos parciais, será sempre acompanhada do registro identificador da ocorrên-
cia de modalidade do federalismo incompleto.”9
São duas as leis capitais do sistema federalista: a lei da participação e a lei da
autonomia. Segundo PAULO BONAVIDES: “Mediante a lei de participação,
tomam os Estados-membros parte no processo de elaboração da vontade política
válida para toda a organização federal, intervêm com voz ativa nas deliberações de
conjunto, contribuem para formar as peças do aparelho institucional da Federação
e são no dizer de Le Fur partes tanto na criação como no exercício da ‘substância
mesma da soberania’, traços estes que bastam já para configurá-los inteiramente
distintos das províncias ou coletividades simplesmente descentralizadas que com-
põem o Estado unitário. Através da lei da autonomia manifesta-se com toda a cla-
reza o caráter estatal das unidades federadas. Podem estas livremente estatuir uma
ordem constitucional própria, estabelecer a competência dos três poderes que habi-
tualmente integram o Estado (executivo, legislativo e judiciário) e exercer desem-
baraçadamente todos aqueles poderes que decorrem da natureza mesma do sistema
federativo, desde que tudo se faça na estrita observância dos princípios básicos da
Constituição Federal.”10
No Brasil, temos uma original experiência de federalismo tridimensional,11
onde o Município também é membro da Federação, recebendo sua competência
diretamente da Constituição Federal.
A autonomia dos Estados e dos Municípios se caracteriza por três elementos:12

a) Auto-organização: poder para elaborar sua própria constituição e legisla-


ção, a fim de exercer a competência que lhe foi definida pela Constitui-
ção. Os limites à auto-organização são os próprios princípios estabeleci-
dos pela Constituição Federal.

9 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 483.
10 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 181.
11 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 322.
12 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 4. ed., São Paulo: Atlas, 1998, pp. 244-247.

253
Ricardo Lodi Ribeiro

b) Autogoverno: possibilidade de os entes federados escolherem seus pró-


prios governantes sem qualquer vinculação com o poder central.
c) Auto-administração: é o livre exercício das competências administrati-
vas, tributárias e legislativas deferidas pela Constituição Federal.

Enquanto na federação, estabelecida por um Pacto Federativo Constitucional,


a soberania se restringe ao Estado Federal, na confederação, a soberania se estende
por todos os seus integrantes que se agregam através de tratado internacional.

4) Formas de Federalismo no Estado Contemporâneo

Em sua origem, a concepção de federação se baseou em um modelo dualista


ou dual, em que prevalecia uma rígida repartição das competências delegadas à
União e as reservadas aos Estados. O exemplo clássico de federalismo dual é o
norte-americano, até a segunda década do séc. XX. Adotava o federalismo dual,
também a Constituição brasileira de 1891.
Com a crise de 1929, e a implementação da política do New Deal, pelo
Presidente Franklin Roosevelt, surge o federalismo cooperativo, caracterizado por
uma maior intervenção da União no domínio econômico, a fim de garantir o mode-
lo do Estado de bem-estar social, a partir de uma livre cooperação da União com as
entidades federadas.
O federalismo cooperativo é definido por REINHOLD ZIPPELIUS como:
“aquele que acarreta uma ‘obrigação ao entendimento’, quer dizer, o dever das par-
tes no sentido de se harmonizarem entre elas e, caso necessário, aceitarem compro-
missos. O envolvimento funcional dos Estados-Membros (e eventualmente até dos
corpos territoriais a nível autárquico) nos processos centrais de planejamento e
regulação, pode servir de exemplo a esse respeito.”13
Maior efetividade ganha o regime cooperativo quando presente o princípio da
subsidiariedade,14 que, segundo ZIPPELIUS, se traduz na seguinte afirmativa: “as
comunidades superiores só deverão assumir funções que as comunidades mais
pequenas, inferiores, não podem cumprir da mesma ou de melhor forma. Efecti-
vamente, quanto mais pequena for uma comunidade, tanto maior será o contribu-
to de cada indivíduo para a formação da vontade comunitária. Portanto, quanto

13 ZIPPELIUS, Reinhold, Ob. cit., p. 512.


14 Observe-se que atá mesmo nos Estados unitários é notável o desenvolvimento do princípio da subsidia-
riedade, como leciona J. J. GOMES CANOTILHO (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 340), a respeito da República Portuguesa:
“Em articulação com a cláusula de integração europeia (art. 7º/6) e com o princípio so Estado Unitário
(art. 6º/1), o princípio da subsidiariedade adquiriu (depois da revisão de 1992, no que respeita à União
Européia, e depois da revisão de 1997 no que se refere à estrutura vertical-territorial do Estado Unitário)
dimensão estruturante da ordem constitucional portuguesa.”

254
Temas de Direito Constitucional Tributário

mais poder decisório se encontrar nas comunidades inferiores, tanto maior será a
medida em que os indivíduos se podem afirmar na vida comunitária.”
No Brasil, o federalismo cooperativo é adotado a partir da Revolução de 1930,
acabando por se deformar em um centralismo usurpador da autonomia dos
Estados-membros, com a Constituição de 1937, caracterizando o denominado fede-
ralismo orgânico.
O federalismo orgânico se caracteriza por um modelo em que os Estados-
membros são obrigados pela Constituição Federal a reproduzir as regras definidas
pela União, até nos detalhes mais singelos.
Segundo AUGUSTO ZIMMERMANN, no federalismo orgânico: “As leis esta-
duais acabam então sem relevância alguma, subordinadas que estão ao princípio
sufocante da hierarquização das normas jurídicas. Assim, transforma-se a autono-
mia estadual nesta espécie de princípio desmoralizado, assistindo-se, ademais, à
marcha centralizadora que põe termos finais às vantagens democráticas da descen-
tralização política.”15
Representativos do federalismo orgânico, são os regimes autoritários estabele-
cidos na América Latina, e nos países do socialismo real, onde o centralismo polí-
tico transformou a idéia federalista em mera retórica constitucional.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o Brasil retorna, depois
dos anos de trevas institucionais, a um federalismo cooperativo, que se revela, entre
outros aspectos, pela definição, no artigo 23, da competência comum para União,
Estados e Municípios legislarem sobre um rol mais amplo de matérias, em relação às
Cartas anteriores, levando em consideração, segundo o parágrafo único do mesmo
artigo, normas para a cooperação entre eles, definidas em lei complementar, tendo
em vista o equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar social em âmbito nacional;
bem como pela previsão de competência concorrente entre União e Estados-mem-
bros. Sob o viés do direito financeiiro, o cooperativismo se dá pela repartição, mais
condizente com as atribuições materiais, das receitas tributárias de impostos fede-
rais com Estados e Municípios e de impostos estaduais com os Municípios.
Por outro lado, as experiências federalistas em países com grande diversidade
cultural, lingüística, social, e religiosa entre os Estados-membros, despertaram a
necessidade de um regime em que fosse possível um tratamento diferenciado entre
eles, em razão de suas distinções. É o que chamamos de federalismo assimétrico.
Segundo DIRCÊO TORRECILLAS RAMOS, o conceito de simetria relevante
para o tema do federalismo se traduz no: “nível de conformidade e do que tem em
comum nas relações de cada unidade política separada do sistema para com o siste-
ma como um todo e para com as outras unidades componentes. Isso em outras pala-
vras significa a uniformidade entre os Estados-membros dos padrões destes relacio-

15 ZIMMERMANN, Augusto, Ob. cit., p. 65.

255
Ricardo Lodi Ribeiro

namentos dentro do sistema federal. O ideal no sistema federal simétrico é que:


cada Estado mantenha, essencialmente, o mesmo relacionamento para com a auto-
ridade central; a divisão de poderes entre os governos central e dos Estados seja vir-
tualmente a mesma base para cada componente político e o suporte das atividades
do governo central seja igualmente distribuído.”16
Segundo o mesmo autor, a assimetria: “Refere-se a uma situação onde as
diversidades dentro de uma sociedade maior encontram expressão política, através
dos governos componentes. Estes possuem vários graus de autonomia e poder. A
unidade componente teria sob esses aspectos uma única característica ou conjunto
de características que distingue seu relacionamento para com o sistema como um
todo, para a autoridade federal e para com outro Estado.”17
O modelo clássico de federalismo simétrico é o dos Estados Unidos, em virtu-
de da homogeneidade relativamente maior dos Estados-membros da mais antiga
das Federações. Já na Alemanha, na Suíça e no Canadá é praticado o federalismo
assimétrico, principalmente no que tange à representatividade dos Estados no
Parlamento Federal.18
No Brasil, em que pesem as profundas diferenças sociais, econômicas e cultu-
rais entre os Estados-membros, e notadamente entre os Municípios, prepondera a
simetria federativa, especialmente no que tange à representatividade dos Estados
brasileiros no Senado Federal, e até na Câmara dos Deputados, inteiramente disso-
ciada da realidade populacional do País.
No entanto, seguindo uma tendência mundial pela assimetria e pela descen-
tralização federativa, a Constituição Federal de 1988, a despeito da reprodução de
velhos vícios quanto à simetria na representação junto ao Congresso Nacional,
apresenta vários dispositivos baseados na assimetria, como os que consagram o estí-
mulo ao equilíbrio inter-regional (art. 3º, III), autorizando, inclusive a União, a
conferir tratamento tributário diferenciado às regiões mais pobres (art. 151, I),
assim como a previsão de fundo de fomento às Regiões Norte, Nordeste e Centro-
Oeste, a partir da arrecadação do IR e do IPI (art. 159, I).

5) Federalismo Fiscal e a Distribuição de Rendas e Atribuições

Conforme já demonstrado ao longo deste trabalho, a autonomia das entidades


periféricas da Federação pressupõe a auto-administração, ou seja, o livre exercício
das competências conferidas pela Constituição.
Nunca se pode perder de vista que a auto-administração depende, obviamen-
te, de recursos financeiros para fazer frente aos misteres constitucionalmente con-

16 RAMOS, Dircêo Torrecillas, Ob. cit., p. 62.


17 Ob. cit., p. 63.
18 ZIMMERMANN, Augusto, Ob. cit., p. 62.

256
Temas de Direito Constitucional Tributário

feridos a cada um dos entes federativos. Para garantir a possibilidade de cada um


deles cumprir os objetivos impostos pela Constituição Federal, é preciso que haja
uma adequação dos recursos repartidos a essas atividades administrativas que lhe
foram confiadas.
O descompasso entre as atribuições materiais e as receitas tributárias gera uma
sobrecarga comprometedora da auto-administração, e em conseqüência, da auto-
nomia federativa. A Constituição de 1988 contribuiu acentuadamente para a supe-
ração desse descompasso, equilibrando razoavelmente as receitas e despesas de
União, Estados e Municípios.19
Porém, não basta a simples atribuição de recursos aos entes periféricos da
Federação. É preciso garantir um mínimo de competências tributárias próprias para
garantir a sobrevivência da Federação, como destacado por FLÁVIO BAUER
NOVELLI: “É bem verdade – ninguém entende negá-lo – que a autonomia finan-
ceira da União e dos Estados-membros indiscutivelmente representa um elemento
vital da complexa autonomia federativa, e que, conseqüentemente, não pode dei-
xar de considerar-se a existência daquela como impreterível à substância da própria
federação. Não é menos verdade, porém – e parece ter sido demonstrado – que, em
última instância, e mormente num ordenamento tributário como o nosso, no qual
a Constituição federal veda taxativamente os tributos discriminatórios e confisca-
tórios, ao amparo dum sistema de amplo controle jurisdicional de constitucionali-
dade das leis – a autonomia financeira dos entes políticos independe da existência
e do alcance da garantia da imunidade tributária recíproca. Ela tem sim, como se
percebe, o seu fundamento material e sua verdadeira medida na distribuição da
competência legislativa (autonomia normativa) em matéria tributária, ou seja, na
atribuição, diretamente pela Constituição Federal, de poderes impositivos próprios
e de fontes de receita, independentes e adequadas, respectivamente, à União e às
unidades federadas.”20 (Grifamos)
Não é outra a opinião de CELSO RIBEIRO BASTOS: “Sem independência eco-
nômica e financeira , não pode haver qualquer forma de autonomia na gestão da
coisa pública. Daí por que a nossa Constituição Federal esmerar-se em conferir tri-
butos próprios às diversas entidades que a compõem (à União, aos Estados-mem-
bros, ao Distrito Federal e aos Municípios).”21
De fato, dentro do federalismo cooperativo de viés democrático, consagra-
do pela Constituição de 1988, a simples transferência constitucional do produto
da arrecadação dos impostos federais para os Estados não garante a auto-admi-

19 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Curso de Direito Constitucional. 22. ed., São Paulo: Saraiva,
1995, p. 48.
20 NOVELLI, Flávio Bauer, “Norma Constitucional Inconstitucional? A propósito do art. 2º, § 2º, da
Emenda Constitucional nº 3/93”, RDA 199, p. 39.
21 BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Financeiro e Tributário. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 125.

257
Ricardo Lodi Ribeiro

nistração, haja vista que o exercício das competências materiais conferidas aos
Estados não pode depender exclusivamente do exercício da competência tribu-
tária da União.
É ínsita à idéia de autonomia a descentralização territorial do poder, permi-
tindo que os Estados definam suas próprias prioridades, independentemente das
políticas definidas pela União.22 Sem que haja a eleição de suas próprias priorida-
des por parte dos Estados, inútil é a federação, como bem salientado por DALMO
DE ABREU DALLARI:23 “O reconhecimento desse poder de fixar sua própria esca-
la de prioridades é fundamental para a preservação da autonomia de cada governo.
Se um governo puder determinar o que o outro deve fazer, ou mesmo o que deve
fazer em primeiro lugar, desaparecem todas as vantagens da organização federati-
va. Realmente, pode ocorrer que a escala de prioridades estabelecida pelo governo
central não coincida com o julgamento de importância de assuntos feito pelo
governo regional ou local. Pode também ocorrer que um governo pretenda que
outro cuide de outros problemas que, no seu julgamento, deveriam merecer prefe-
rência. (...)“Assim, pois, a decisão sobre as prioridades, dentro de sua esfera de com-
petência e afetando seus recursos financeiros, é uma decorrência da autonomia e
cabe a cada entidade política, por preceito constitucional, não se podendo exigir
comportamento diverso sob alegação de ser mais conveniente.”
Portanto, só através do exercício de sua própria competência tributária, o
Estado pode garantir o cumprimento de suas prioridades, e não as da União, pre-
servando sua autonomia em relação a esta. Assim, se, hipoteticamente, toda a arre-
cadação dos Estados, ou quase toda, dependesse de tributos federais, a concessão de
benefícios fiscais pela União, atendendo a um interesse que os poderes federais
consideram prioritário, como o incentivo às exportações, poderia impedir que os
Estados atingissem as suas próprias prioridades, como o aumento dos investimen-
tos na área social, por exemplo.
É justamente essa competência tributária própria que vai diferenciar a repar-
tição das receitas tributárias ocorridas na Federação das encontradas nos estados
unitários descentralizados. Há uma tendência à descentralização de recursos e
competências nos estados unitários como Portugal, Espanha e Itália, inclusive com
a criação de regiões autônomas, que possuem competências próprias e, muitas ve-
zes, até impostos próprios.
Na Espanha, segundo o art. 142 da Constituição, as fazendas locais devem
dispor dos recursos suficientes para o desempenho das funções que a lei lhes atri-

22 CARRAZZA, Roque Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário, 4. ed., São Paulo: Malheiros,
p. 81.
23 DALLARI, Dalmo de Abreu, “Competências municipais”, in “Estudos de Direito Público”, Revista da
Associação dos Advogados da Prefeitura do Município de São Paulo, 1983, nº 4, p. 7, apud CARRAZZA,
Ob. cit., p. 82.

258
Temas de Direito Constitucional Tributário

buir, e se nutrirão de tributos próprios e de participação nos tributos do Estado


espanhol. Salienta CARRERA RAYA,24 com apoio em decisão do Tribunal Consti-
tucional, que esses recursos suficientes para que as entidades locais atendam às
suas necessidades não são integralmente arrecadados por tributos próprios, mas
também de tributos25 do Estado espanhol. Porém, ressalte-se, como salienta FER-
REIRO LAPATZA,26 que a atribuição de autonomia total e absoluta aos territórios
autônomos em matéria de ingressos públicos é incompatível com a existência do
Estado unitário.
Em Portugal, as regiões autônomas possuem também, segundo o artigo 227 da
Constituição, um regime de autonomia político-administrativa, com a competência
de criar seus próprios impostos, mas, segundo DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNI-
CA HORTA NEVES LEITE DE CAMPOS, trata-se de um poder tributário secundá-
rio, dependente de lei do Estado português quanto ao seu conteúdo e limites.
Na Itália, o artigo 119 da Constituição prevê que as regiões autônomas dis-
põem de impostos próprios, além de uma parte dos impostos do Estado italiano. No
entanto, segundo o mesmo artigo, essa autonomia financeira, inclusive quanto à
instituição de impostos, é limitada pela lei da República.
Já nas federações, os entes autônomos possuem competências tributárias pró-
prias capazes de garantir o custeio de suas despesas, restando às transferências tri-
butárias de tributos federais como um mecanismo, tão caro ao federalismo assimé-
trico, de compensação financeira destinada a superar a desigualdade entre Estados
e garantir a autonomia e independência da federação e dos Estados.27
Deste modo, a autonomia dos entes da Federação depende de que todos eles
possuam competência tributária própria, capaz de fazer frente às responsabilidades
a eles atribuídas pela Constituição Federal.

6) Federalismo e Centralização Fiscal no Brasil

Contrariando a tendência mundial, verificada inclusive nos países unitários,


como vimos, de descentralização de recursos e competências em favor dos entes
periféricos, a Federação brasileira vem conhecendo na última década um movi-
mento de centralização de recursos em favor da União, que não é acompanhada de
alteração nas atribuições materiais, causando uma acentuada sobrecarga fiscal aos
Estados e Municípios.

24 CARRERA RAYA, Francisco José. Manual de Derecho Financiero, vol. I, Madrid: Tecnos, 1995, p. 63.
25 CAMPOS. Diogo Leite de e CAMPOS, Mônica Horta Neves Leite de. Direito Tributário, Coimbra: Al-
medina, 1998, p. 98.
26 FERREIRO LAPATZA, José Juan, Curso de Derecho Financiero Español, vol. I, 21. ed., Madrid: Marcial
Pons, 1999, p. 108.
27 HESSE, Konrad, Ob. cit., pp. 205-207.

259
Ricardo Lodi Ribeiro

Entre as medidas que contribuíram para essa sobrecarga fiscal dos entes par-
tes, podemos destacar:

a) o Fundo Social de Emergência, aprovado pela ECR nº 1/94, e o Fundo de


Estabilização Fiscal, aprovado pelas ECs nºs 10/96 e 17/97, que desvincularam
parcelas significativas das transferências constitucionais de impostos federais
para Estados e Municípios, causando grave sangria nas receitas desses entes;
b) a opção da União, no incremento da arrecadação, pela via das contribuições
da seguridade social, em detrimento do IR, IPI, e dos impostos residuais.
Nos últimos dez anos conheceu-se um aumento expressivo da arrecadação
de tributos federais, sempre pela via das contribuições da seguridade social,
cuja arrecadação pertence exclusivamente à União. Tal opção se deu em
detrimento dos impostos onde a arrecadação é dividida com Estados e
Municípios, por meio dos Fundos de Participação, acarretando perda na
arrecadação dos entes periféricos.
c) invasão das competências constitucionais de Estados e Municípios pela ins-
tituição de contribuições parafiscais com o mesmo fato gerador ou base de
cálculo dos impostos destes, como ocorreu na contribuição previdenciária
dos autônomos, que possui a mesma base de cálculo do ISS, e do Adicional
ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), com a mesma
base de cálculo do ICMS de transporte interestadual e intermunicipal.
d) concessão de isenções heterônomas de ICMS na exportação, pela Lei
Complementar nº 86/97 (Lei Kandir), causando prejuízo à arrecadação dos
Estados, a fim de atender às prioridades do Governo Central;
e) estipulação detalhada sobre a gestão financeira pela Lei Complementar nº
101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que extrapolando a disciplina
das normas gerias de direito financeiro, adota as prioridades do Governo
Central, como norma obrigatória para Estados e Municípios.
f) proposta de emenda constitucional do sistema tributário nacional, retiran-
do o ICMS da competência legislativa dos Estados, e passando o tributo para
a competência da União.

Tais medidas ferem o Princípio da Conduta Amistosa Federativa, que segundo


KONRAD HESSE se traduz na fidelidade para com a Federação, não só dos Estados
em relação ao todo e a cada um deles, mas da União em relação aos Estados. Segundo
HESSE, é inconstitucional a iniciativa que fira essa fidelidade federativa, uma vez
que se rompe o dever de boa conduta que deve presidir as relações entre os integran-
tes da Federação, baseada na colaboração e cooperação recíprocas.28

28 HESSE, Konrad, Ob. cit., pp. 212-215.

260
Temas de Direito Constitucional Tributário

A constitucionalidade dessas medidas depende do grau de desequilíbrio que


causam no Pacto Federativo celebrado em 05/10/1988. Como muitas dessas medi-
das foram ou serão veiculadas por emenda constitucional, cumpre examinar a cons-
titucionalidade dessas.
Como é de todos sabido, a reforma da Constituição Federal, a par das limita-
ções implícitas relativas ao titular do poder constituinte derivado e à supressão das
próprias limitações expressas, encontra também os limites circunstanciais (art. 60,
§ 1º), os formais, no que tange ao processo legislativo adotado e, com maior aten-
ção neste estudo, os limites materiais, as chamadas cláusulas pétreas previstas no
artigo 60, § 4º.29
Portanto, sequer serão apreciadas as propostas de emendas tendentes a abolir
as cláusulas pétreas. Não são quaisquer emendas que versem sobre os assuntos pre-
vistos no § 4º que são insuscetíveis de apreciação. Se assim fosse, a Constituição
Federal seria de uma rigidez tal que reduziria o espaço de atuação do legislador,30
impedindo que as gerações futuras implementassem seus próprios projetos políti-
cos.31 Petrificar interesses que são efêmeros significa diminuir a vida de uma
Constituição, num convite à ruptura do Estado de Direito.32
A rigor, só se encontra protegido pelas cláusulas pétreas o núcleo intangível
dos direitos assegurados no artigo 60, § 4º, da Constituição. Ou seja, no dizer do pró-
prio Texto Maior, as emendas tendentes a abolir o direito tutelado. Uma emenda
tendente a abolir um direito é uma proposta que visa à sua destruição, ao seu enfra-
quecimento ou impliquem a profunda mudança de identidade desses direitos.33
No que se refere à emenda constitucional que se proponha a alterar o sistema
tributário nacional, duas cláusulas pétreas podem, em tese, ser violadas: a dos direi-
tos e garantias individuais (inciso IV) e a da forma federativa de Estado (inciso I).
Quanto à primeira, o STF já declarou a inconstitucionalidade de emenda cons-
titucional que excepcionava a aplicação de um dos princípios constitucionais tribu-
tários em relação a determinado imposto. Por ocasião da promulgação da EC nº
3/93, que autorizou a criação do IPMF excetuando em relação a ele a aplicação do
princípio da anterioridade e das imunidades do art. 150, VI, o Pretório Excelso con-
siderou que tais direitos, integrantes do Estatuto do Contribuinte, se traduzem em
direito individual deste.34 Em conseqüência, segundo a posição do Pretório

29 MORAES, Alexandre, Ob. cit., p. 461.


30 HESSE, Konrad, Escritos de Derecho Constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1992, p. 20.
31 CANOTILHO, J. J. Gomes, Ob. cit., p. 943.
32 SARMENTO, Daniel, A Constituição Aberta e Seus Limites, artigo publicado na Revista dos Procura-
dores da Fazenda Nacional, Vol. 2, Rio de Janeiro: CEJ do Sinprofaz/Forense, 1998, p. 153.
33 MENDES, Gilmar Ferreira, Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos, SãoPaulo:
Saraiva, 1990, p. 95.
34 STF, Pleno, ADIn 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18/03/94, p. 5.165.

261
Ricardo Lodi Ribeiro

Excelso, uma emenda que excepcione a aplicação desses princípios em relação a


determinado imposto, estaria tendendo a abolir o princípio, restando violada a
cláusula pétrea do inciso IV do § 4º do artigo 60.35
Ainda que não se adote a posição esposada pelo STF, no que tange à inalterabi-
lidade de todos os princípios constitucionais tributários, é forçoso reconhecer não ser
necessário, para que se considere violada uma cláusula pétrea, que uma emenda revo-
gue expressamente o direito individual, basta uma que fira o núcleo essencial do
direito.36 Da mesma forma, a emenda para ferir a cláusula pétrea da Federação não
precisa declarar abolida a Federação, basta que atende contra a autonomia dos
Estados, inviabilizando sua capacidade de autogoverno e auto-administração.
Como bem assevera JOSÉ AFONSO DA SILVA: “Viola a auto-administração
do Estado uma emenda constitucional que suprima ou reduza sensivelmente as suas
competências tributárias, uma vez que, como vimos, a competência para arrecadar
tributos próprios é ínsita à idéia de auto-administração.”37
Deste modo, a autonomia dos entes da Federação depende de que todos eles
possuam competência tributária própria, capaz de fazer frente às responsabilidades
a eles atribuídas pela Constituição Federal.
Permeando essa idéia, encontramos várias graduações entre as mais diversas
Federações, no que tange à autonomia dos Estados, conforme já exposto. A despei-
to da multiplicidade de experiências históricas que tivemos, no que se refere à
autonomia dos entes federados, o federalismo adotado pela Constituição de 1988
consagra um Pacto Federativo cooperativo de índole democrática em que as figu-
ras da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios se equivalem, todas
gozando de autonomia só restringida pela própria Constituição Federal. Deste
modo, alterações nesse Pacto Federativo que limitem sobremaneira a autonomia
dos Estados e Municípios, ainda que através da redução significativa de sua compe-
tência tributária, tende a abolir a Federação conforme estabelecida pelo constituin-
te originário, para criar um outro modelo que, se não se traduz em um estado uni-
tário, tranformará o regime brasileiro em um federalismo orgânico, se afastando da
idéia federativa cooperativa consagrada em 05 de outubro de 1988. Restaria ferida,
portanto, a cláusula pétrea do inciso I.
Antes de analisar os eventuais obstáculos constitucionais que enfrentam as
propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional tendentes a
promover a federalização da legislação do ICMS, no que tange à Federação, cum-
pre analisar a importância do aludido imposto.

35 Em sentido contrário à decisão do STF na ADIn 939, vide FLÁVIO BAUER NOVELLI, na obra já cita-
da, onde o autor sustenta que a legitimidade de certas derrogações pelo constituinte derivado às normas
contidas nos artigos 150 a 152.
36 CANOTILHO, J. J. Gomes, Ob. cit., p. 470.
37 SILVA, José Afonso da, Ob. cit., pp. 69 e 98.

262
Temas de Direito Constitucional Tributário

Como é de todos sabido, o ICMS representa mais de 85% das receitas arreca-
dadas pelos Estados.38 Portanto, o exercício da competência tributária relativa ao
ICMS é vital para a sobrevivência financeira dos Estados, no que tange à sua auto-
nomia administrativa, conforme anteriormente abordado.
Ocorre que, embora sendo o principal imposto dos Estados, e de longe a sua
principal fonte de recursos, o ICMS é um tributo cujo exercício da competência tri-
butária pelos seus titulares é bastante limitado pela Constituição Federal, a fim de
evitar a danosa para a Federação e suicida para o Erário estadual “guerra fiscal”
entre os Estados.
Os mecanismos principais utilizados pelo constituinte originário para evitar a
guerra fiscal foram:

a) a possibilidade de o Senado Federal fixar alíquotas mínimas e máximas para


operações internas (art. 155, § 2º, V, CF);
b) a necessidade de aprovação por convênio entre Estados das isenções, incen-
tivos e benefícios fiscais (art. 155, § 2º, XII, g).

Tais limitações, portanto, impedem que os Estados fixem qualquer alíquota e


concedam unilateralmente benefícios fiscais, a fim de evitar a guerra fiscal, como
vimos. É indiscutível a legitimidade de tais limitações, haja vista terem sido estabe-
lecidas pelo próprio constituinte originário que conferiu competência tributária
aos Estados para instituir o ICMS. Ao repartir a competência tributária, a Consti-
tuição Federal pode deferir uma competência para instituir determinado tributo,
cujo exercício seja mais restrito do que outra definida para as demais exações.
Quanto à possibilidade de o constituinte derivado estabelecer tais limitações,
se não pode ser negada a priori, sua constitucionalidade dependerá de grau de
influência que tais medidas impliquem no equilíbrio federativo, o que só no caso
concreto pode ser aferido. Porém, não se pode perder de vista nessa análise, que a
competência para os Estados legislarem sobre o ICMS já foi originalmente restrita
pelo constituinte de 1988.
Se a guerra fiscal entre os Estados, que lutam entre si para concederem cada vez
mais benefícios em matéria de ICMS, viola o princípio da conduta amistosa entre os
entes da Federação, a solução proposta pelo Governo Federal não é menos danosa.
Desde a apresentação da primeira proposta de Reforma Tributária pelo
Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, que deu origem à
PEC nº 175, até a PEC paralela à EC nº 42/03, que para ser aprovada teve que pas-

38 No ano de 1998 as receitas arrecadadas pelo Estado de São Paulo totalizaram pouco mais de 30 bilhões
de reais, sendo o ICMS responsável por mais de 26 bilhões, segundo dados da Secretaria de Estado da
Fazenda, disponíveis na Internet.

263
Ricardo Lodi Ribeiro

sar ao largo da questão, deixando para um momento posterior, há uma grande preo-
cupação, até certo ponto louvável, em evitar a guerra fiscal entre os Estados, cada
vez mais ousados na concessão de incentivos numa disputa fratricida pela instala-
ção de empresas estrangeiras em seus territórios, muitas vezes utilizando de expe-
dientes inconstitucionais como a concessão de financiamentos pelo Estado, cujos
recursos não são entregues ao contribuinte, mas compensados com tributos esta-
duais. Na verdade, trata-se de isenções condicionadas concedidas sem autorização
de convênio.
Ocorre que nas propostas hoje em discussão, com vistas ao aumento das limi-
tações ao exercício da competência pelos Estados no que tange ao ICMS, inspiradas
no combate à “guerra fiscal”, há uma verdadeira supressão da competência tributá-
ria dos Estados, que passam a ser tão-somente titulares da capacidade tributária
ativa e destinatários de parte da arrecadação do tributo.
Vale recordar a distinção entre os dois conceitos. Competência tributária é o
poder de instituir o tributo. Ou seja, de criar o tributo através de lei, legislando
sobre todos os elementos necessários à imposição tributária, inclusive no que tange
à concessão de benefícios fiscais. O exercício dessa competência é pleno sendo,
porém, limitada pelas restrições contidas da Constituição Federal.
Já a capacidade tributária ativa se traduz no poder de exigir o tributo, ou seja,
de arrecadar, fiscalizar e executar a legislação tributária, não envolvendo, no
entanto, o poder de legislar sobre ele.39
Há uma terceira figura: a do beneficiário da arrecadação, que não necessaria-
mente é o titular da competência tributária ou o da capacidade tributária ativa.
Como já demonstrado, a autonomia dos entes da Federação exige que estes
possuam competências tributárias próprias, não bastando a mera capacidade tribu-
tária ativa e a posição de destinatário da arrecadação, pois estes últimos não podem
definir as regras relativas à incidência e, em conseqüência, ficam impossibilitados
de estabelecer uma política fiscal condizente com as suas prioridades político-
administrativas.
Na sistemática desse ICMS nacional, a competência para legislar sobre o tri-
buto seria também da União, através de lei complementar. O regulamento do
imposto também seria elaborado pela União. Aos Estados caberia a fiscalização e a
arrecadação do imposto, sem prejuízo da fiscalização suplementar da União.
Quanto aos benefícios fiscais, que hoje são aprovados através de convênios
entre todos os Estados, passam a ser vedados no ICMS cobrado pelos Estados.
Assim, a proposta retira dos Estados e do Distrito Federal a competência sobre
o ICMS, atribuindo-a à União, ferindo a cláusula pétrea da Federação, à medida que

39 Art. 7º c/c art. 119 do CTN.

264
Temas de Direito Constitucional Tributário

subtraem dos primeiros a possibilidade de definir regras a respeito de tributo res-


ponsável pela quase totalidade de sua arrecadação.
Poderia ser objetado a essa conclusão o argumento de que os Estados já
sofriam limitações à sua competência, no que tange ao ICMS, impostas pelo pró-
prio constituinte originário.
Porém, convém não se olvidar que cabe ao constituinte originário estabelecer
o Pacto Federativo e, no exercício desse mister, estabelecer exceções ao exercício
pleno das competências tributárias. Já o constituinte derivado não tem a mesma
liberdade no que tange a essas exceções.
Ademais, as regras estabelecidas pelas propostas de emendas constitucionais
radicalizam sobremaneira tais limitações chegando mesmo a suprimir a competên-
cia tributária dos Estados relativamente ao ICMS. Hoje, um consenso entre os
Estados viabiliza a isenção. Nos projetos em comento inexiste até mesmo essa pos-
sibilidade que, embora estreita, respeita a autonomia dos Estados.
Além do mais, hoje os Estados guardam ainda uma certa discricionariedade
legislativa para estabelecer alíquotas diferenciadas em razão da essencialidade da
mercadoria. Com a aprovação das referidas propostas, tais distinções serão estabe-
lecidas pela União.
Como se vê, a possibilidade de o Estado estabelecer uma política fiscal com-
prometida com as prioridades definidas pelos seus próprios poderes fica inviabili-
zada pelas propostas em discussão. De outro lado, a arrecadação dos Estado depen-
derá quase que exclusivamente do exercício da competência tributária pela União,
o que pode trazer efeitos danosos ao Erário estadual, em prol de objetivos da polí-
tica econômica do Governo Federal, nem sempre afinados com os projetos dos
Estados. Basta lembrar os efeitos danosos aos Estados causados pela Lei Kandir, Lei
Complementar nº 87/96, que ao admitir o creditamento financeiro e não físico, e
ao desonerar as exportações de semi-elaborados e produtos não industrializados em
relação ao ICMS, causou graves prejuízos às já combalidas finanças estaduais. Com
a União definindo todas as regras do tributo, os Estados ficam numa posição ainda
mais fragilizada.
Deste modo, resta evidenciado o desequilíbrio do Pacto Federativo estabele-
cido em 05/10/88, bem como a violação da cláusula pétrea da Federação, inviabili-
zando a apreciação e a aprovação da emenda constitucional da Reforma Tributária
conforme proposto.
Uma alternativa viável, do ponto de vista constitucional, para levar a efeito a
unificação dos impostos sobre a circulação, seria manter o ICMS na competência
dos Estados, transferindo-se parte dos recursos à União, como forma de compensa-
ção pela extinção do IPI, uma vez que este não representa a parcela majoritária dos
recursos federais.

265
Ricardo Lodi Ribeiro

7) Conclusão

Vivemos um momento histórico em todo o mundo em que, paralelamente à


globalização da economia, assistimos, no espectro político, ao fenômeno da descen-
tralização de recursos e competências para os entes locais.
Tal fenômeno, que não se verifica só nas federações, mas também nos Estados
unitários, encontra no Brasil um contraponto anacrônico. De fato, tendo a
Constituição de 1988 consagrado um Pacto Federativo baseado no federalismo coo-
perativo de índole democrática – em que a União colabora com Estados e Municí-
pios, concentrando os três entes esforços para atingir objetivos comuns –, iniciati-
vas do constituinte derivado e do legislador infraconstitucional no sentido de, vio-
lando o princípio da subsidiariedade e na contramão da história, transformar nosso
regime em um federalismo orgânico, em que as prioridades do Poder Central sejam
impostas aos entes locais, violando a cláusula pétrea da Federação.
Esta não é abolida de todo, mas sofre um enfraquecimento na medida em que
deixamos de ter um federalismo democrático para adotarmos um débil regime cen-
tralizado que pouco se diferencia dos Estados unitários descentralizados.
Violam, portanto, o princípio federativo, medidas como o Fundo Social de
Emergência e o Fundo de Estabilização Fiscal, a imposição das prioridades da União
aos Estados e Municípios na Lei de Responsabilidade Fiscal e a tentativa de supres-
são da competência dos Estados para legislar sobre o ICMS. Da mesma forma vio-
lam o princípio federativo, por desatenderem ao princípio da conduta amistosa,
iniciativas como a concessão de isenções heterônomas pela Lei Kandir, a invasão de
competência dos Estados e Municípios por meio da instituição de contribuições
parafiscais, bem como do esvaziamento dos impostos cuja arrecadação é repartida
com os entes locais, em favor de um fortalecimento da parafiscalidade, cujos recur-
sos são inteiramente da União.
A aceitação dessas medidas por parte da sociedade, dos Estados, dos Muni-
cípios e do Poder Judiciário, se traduz na mutação de um federalismo cooperativo,
que caminhava, de acordo com a tendência mundial, para a assimetria capaz de
reconhecer as diferenças entre as várias comunidades, para um federalismo orgâni-
co, centralizado, em que o Governo Central pretende resolver todas as questões
nacionais, com evidentes prejuízos ao regime democrático e à participação política
do cidadão.

266
XV
A Interpretação da Lei Tributária
Sumário: 1) Introdução. 2) Os Métodos de Interpretação e sua Evolução Histórica. 2.1) A
Jurisprudência dos Conceitos e o Método Sistemático. 2.2) A Jurisprudência dos Interesses
e o Método Teleológico. 2.3) A Jurisprudência dos Valores e a Pluralidade Metodológica.
3) A Interpretação no Direito Tributário Brasileiro.

1) Introdução

O presente estudo objetiva analisar, ainda que de forma sintética, a interpre-


tação da lei tributária, inserida dentro da problemática da interpretação da lei em
sentido genérico, recusando a adoção de fórmulas especiais aplicáveis ao Direito
Tributário. A partir de uma perspectiva histórica, examinaremos brevemente como
a interpretação da lei evoluiu ao longo dos últimos dois séculos até a consagração,
na era da jurisprudência dos valores, da teoria da unidade da ordem jurídica e da
virada kantiana, que trouxeram de volta ao panorama jurídico o valor da justiça,
tão olvidado seja pelo positivismo normativista, seja pelo de índole sociológica, his-
tórica ou econômica.
O trabalho objetiva, ainda, demonstrar a dificuldade que as novas idéias tra-
zidas pela jurisprudência dos valores, por meio do fecundo trabalho da jurispru-
dência e doutrinas estrangeiras, têm encontrado para penetrar no nosso direito
pátrio, notadamente no campo tributário, que em pleno século XXI, ainda se vê
embrenhado num positivismo formalista que não mais encontra paralelo nas
nações desenvolvidas e que provoca um dos sistemas tributários mais injustos do
globo, em que pese a previsão constitucional de valores e princípios baseados na
liberdade e na justiça.

2) Os Métodos de Interpretação e sua Evolução Histórica

A interpretação da lei tributária seguiu historicamente um movimento pen-


dular, em que cada um dos pólos representava uma posição apriorística em relação
à proteção do direito do Fisco ou do contribuinte. Em alguns momentos, adotava-
se a parêmia in dubio contra fiscum, em outros, o posicionamento diametralmente
oposto. Outra tendência histórica foi fixação de normas que vedavam a interpreta-
ção, fortalecendo o poder do monarca em determinar o Direito.
O pensamento jurídico moderno nos dois últimos séculos é marcado pelas
opções por métodos de interpretação que, se não se aliam claramente às posições

267
Ricardo Lodi Ribeiro

favoráveis ou contrárias ao Fisco, tendem a assumir, veladamente ou não, tais pos-


turas. Assim, durante o predomínio da jurisprudência dos conceitos, opta-se clara-
mente pelo método sistemático, tendo como pano de fundo uma sociedade indivi-
dualista que caracterizou o século XIX.
Como reação ao formalismo da jurisprudência dos conceitos e em consonância
com o desenvolvimento das idéias socialistas inspiradoras do Estado Social, a juris-
prudência dos interesses adere ao método teleológico, que no direito tributário vai
desaguar na teoria da interpretação econômica do fato gerador e em todos os exces-
sos que a sua apropriação pelo nacional-socialismo revelou ao mundo jurídico.
A derrocada do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State), marca historica-
mente a ascensão da jurisprudência dos valores, alimentada, pouco depois, pela
virada kantiana com o resgate do valor da justiça que andava esquecido nas discus-
sões jurídicas desde o Iluminismo.

2.1) A Jurisprudência dos Conceitos e o Método Sistemático

Surgida num mundo liberal e individualista em que o Direito tinha como obje-
tivo maior a preservação da segurança das relações jurídicas, a jurisprudência dos
conceitos do Século XIX tem em Puchta seu criador e principal defensor. Segundo
Puchta, a ciência do direito se organiza a partir de um sistema lógico no estilo de
uma pirâmide de conceitos, onde cada conceito superior autoriza certas afirmações;
assim, se um conceito inferior se subsume a um de ordem superior, serão necessa-
riamente válidas para aquele todas as afirmações que se fizerem para este.1
A jurisprudência dos conceitos do século XIX lança as bases para a retomada do
formalismo jurídico que depois, no século XX, seria desenvolvido por Hans Kelsen,
em reação ao positivismo sociológico da jurisprudência dos interesses de Philipp
Heck, e do movimento para o Direito Livre, preconizado por Herman Kantorowicz.2
O que há de comum entre a jurisprudência dos conceitos no século XIX e a
obra de Kelsen é o positivismo formalista, que se caracteriza pelo corte entre o
Direito e a Moral, redutor da realidade jurídica à norma. Segundo Kelsen, o que
não está na norma não interessa ao Direito. Assim, para jurista austríaco, a inter-
pretação se limita a estabelecer o significado da norma jurídica:

“A interpretação jurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabele-


cer as possíveis significações de uma norma jurídica.”3

1 Para um exame detalhado da evolução das idéias da jurisprudência dos costumes, vide LARENZ, Karl.
Metodologia da Ciência do Direito, pp. 21 e segs.
2 Segundo CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (Hermenêutica e Argumentação – Uma Contribuição ao
Estudo do Direito, p. 94), a Escola do Movimento para o Direito Livre promove o ressurgimento do direi-
to natural de molde histórico-jusnaturalista.
3 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 395.

268
Temas de Direito Constitucional Tributário

A concepção formalista da jurisprudência dos conceitos entronizou o valor da


segurança jurídica, tão cara ao Estado Liberal clássico, o Estado “Guarda Noturno”,
fruto de uma sociedade individualista, que tinha como valor supremo a proteção da
liberdade do indivíduo contra o Estado.
Nesse contexto, o princípio da legalidade passa a ser o grande pilar do sistema
jurídico, que elege o método sistemático como o mais importante de todos, em
fenômeno que, como não poderia deixar de ser, deita frutos sobre a interpretação
da lei tributária.
A aplicação ao Direito Tributário da tese da supremacia do método sistemáti-
co vai resultar na subordinação dos conceitos tributários aos do Direito Civil, em
detrimento da realidade econômica subjacente ao fato gerador definido em lei.
Assim, estabelecido o império das categorias do Direito Civil aos institutos do
Direito Tributário, independentemente da realidade econômica, o contribuinte
teria liberdade para planejar os seus atos, dando-lhe roupagem jurídica que lhe per-
mita o afastamento da situação definida em lei como fato gerador do tributo,
mesmo que o ato por ele praticado tenha os mesmos efeitos da descrição legal. É
amplamente admitida, assim, a elisão fiscal.
Por outro lado, face à supremacia da legalidade sobre a capacidade contri-
butiva, há vedação ao uso da analogia, adotando-se a legalidade estrita, com a
obrigatoriedade do legislador, herói maior capaz de prever todas as situações
dentro desse ordenamento sem lacunas, prever detalhadamente o fato gerador
do tributo, utilizando conceitos inequívocos, capazes de dispensar a atividade
hermenêutica.
A escola formalista teve muitos adeptos na doutrina tributária no início do
século XX, destacando-se A. D. Giannini,4 Gian Antonio Micheli5 e Georges
Morange.6 No Brasil, a concepção formalista do direito tributário encontrou recep-
tividade ampla na doutrina, destacando-se Alberto Xavier,7 Alfredo Augusto
Becker,8 Rubens Gomes de Sousa,9 Geraldo Ataliba,10 Paulo de Barros Carvalho,11
Sacha Calmon Navarro Coelho.12
Ilustrativa da postura, até hoje muito formalista, da doutrina brasileira é a
posição de Alberto Xavier13 com sua teoria da tipicidade fechada. Segundo o refe-
rido autor:

4 Instituzioni di Diritto Tributario, p. 8


5 Curso de Direito Tributário, p. 43.
6 Corso di Diritto Tributário, p. 50, apud TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 195.
7 Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, p. 37
8 Teoria Geral do Direito Tributário, pp. 441 e segs.
9 Compêndio de Direito Tributário, p. 99.
10 Hipótese de Incidência Tributária, p. 64.
11 Curso de Direito Tributário, p. 6.
12 Curso de Direito Tributário Brasileiro, p. 199.
13 Ob. cit., p. 91.

269
Ricardo Lodi Ribeiro

“A tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa terminologia, uma


tipicidade fechada: contém em si todos os elementos para a valoração dos fatos
e produção dos efeitos, sem carecer de quaisquer recursos a elementos a ela
estranhos e sem tolerar qualquer valoração que se substitua ou acresça à con-
tida no tipo legal.”

E prossegue o mestre luso-brasileiro:

“Como já se viu, uma reserva absoluta de lei impõe que a lei contenha não só
o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério
de decisão que, desta sorte, se obtém por mera dedução da norma, limitando-
se o órgão de aplicação do direito a nela subsumir o fato tributário.”14

Tais conceitos, que reduzem a interpretação da lei tributária à mera subsun-


ção, como se o aplicador da lei fosse um autômato e o legislador capaz de prever
todos os signos de manifestação de riqueza em seus mínimos detalhes, ganhou
muita força na doutrina pátria e até mesmo no STF, fazendo com que a legislação
tributária no Brasil seja casuística e efêmera, e permitindo que a elisão fiscal seja
uma atividade utilizada em escalas que inviabilizam um sistema tributário baseado
na isonomia e na capacidade contributiva, em nome de uma falsa segurança jurídi-
ca, onde impera imensa incerteza sobre a legitimidade dos atos praticados pelos
contribuintes.

2.2) A Jurisprudência dos Interesses e o Método Teleológico

Surgida no final do século XIX como uma reação ao formalismo da jurispru-


dência dos conceitos, a jurisprudência dos interesses, que teve em Philipp Heck seu
principal defensor, surge a partir da virada de Jhering para uma jurisprudência mais
pragmática, abandonando suas posições anteriores vinculadas às idéias de Puchta.15
Vale trazer a análise de Karl Larenz, a respeito da jurisprudência dos interesses:

“A Jurisprudência dos interesses – e esta é a sua afirmação justeorética funda-


mental – considera o Direito como ‘tutela de interesses’. Significa isto que os
preceitos legislativos – que também para HECK constituem essencialmente o
Direito – ‘não visam apenas delimitar interesses, mas são, em si próprios, pro-
dutos de interesses’ (GA, pág. 17). As leis são ‘as resultantes dos interesses de
ordem material, nacional, religiosa e ética, que, em cada comunidade jurídi-

14 Ob. cit., p. 92.


15 LARENZ. Ob. cit., p. 63.

270
Temas de Direito Constitucional Tributário

ca, se contrapõem uns aos outros e lutam pelo seu reconhecimento’. Na toma-
da de consciência disto, garante-nos HECK, reside ‘o cerne da Jurisprudência
dos interesses’, sendo também daí que ele extrai a sua fundamental exigência
metodológica de ‘conhecer com rigor histórico, os interesses reais que causa-
ram a lei e de tomar em conta, na decisão em cada caso, esses interesses’ (GA,
pág. 60). Deste modo, também para HECK, como para JHERING, o legislador
como pessoa vem a ser substituído pelas forças sociais, aqui chamadas ‘interes-
ses’ (o que é justamente uma forma de sublimação), que através dele, obtive-
ram prevalência na lei. O centro de gravidade desloca-se da decisão pessoal do
legislador e da sua vontade entendida psicologicamente, primeiro para moti-
vos e, depois, para os ‘factores causais’ motivantes. A interpretação, reclama
HECK, deve remontar, por sobre as concepções do legislador, ‘aos interesses
que foram causais para a lei’. O legislador aparece simplesmente como um
‘transformador’, não sendo já para HECK nada mais do que a ‘designação
englobante dos interesses causais’ (GA, págs. 8 e 64) – fórmula que STOLL
também viria a fazer sua.”16

Os juristas da jurisprudência dos interesses, rompendo com a lógica formalis-


ta até então dominante, adotam um positivismo científico, que em Eugen Ehrlich
se constitui num viés de índole sociológica, a partir das idéias de Max Weber, a
buscar o nexo causal da conduta humana. Já em Stuart Mill, a jurisprudência dos
interesses ganha cores de um positivismo econômico, com o Utilitarismo,17 enfati-
zando a preponderância dos aspectos econômicos sobre a norma jurídica.
Assim, a jurisprudência dos interesses desloca o centro da problemática jurí-
dica da norma, como anteriormente queria a jurisprudência dos conceitos, para o
fato, seja ele histórico, social ou econômico.
Seu pano de fundo é o Estado Social, que se propõe a garantir ao cidadão as
prestações indispensáveis à manutenção de suas necessidades de saúde, educação,
previdência e assistência social, o que nos países desenvolvidos culminou no chama-
do Welfare State, a partir da ascensão de governos de inspiração social-democrata e
em resposta ao fortalecimento das idéias socialistas e ao surgimento da URSS.
Com o triunfo das idéias de justiça sobre a segurança jurídica, ainda que a pri-
meira se apresentasse sob uma concepção positivista, o princípio da legalidade é
relegado ao segundo plano com a entronização da capacidade contributiva e a
supremacia do método teleológico sobre os demais.

16 Ob. cit., pp. 65 e 66.


17 Segundo Stuart Mill, o utilitarismo consiste no credo que aceita a utilidade ou o princípio da maior feli-
cidade como a fundação da moral e que sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a
promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade (A Liberdade do
Utilitarismo, p. 187).

271
Ricardo Lodi Ribeiro

A aplicação da jurisprudência dos interesses no Direito Tributário dá origem


na Alemanha à teoria da interpretação econômica do fato gerador, a partir da obra
de Enno Becker, autor do anteprojeto do Código Tributário Alemão de 1919. O
referido diploma, em seu art. 4º dispunha:

“Na interpretação das leis tributárias, devem ser observadas sua finalidade, seu
significado econômico e o desenvolvimento das relações.”18

Segundo os seguidores da interpretação teleológica, o Direito Tributário,


sendo ramo autônomo em relação ao Direito Civil, não abre espaço à elisão fiscal,
na medida em que caberia ao aplicador da lei, este sim o grande astro do fenôme-
no hermenêutico, o afastamento da forma jurídica adotada pelo contribuinte, pela
prevalência da realidade econômica subjacente. É a fase da preponderância da
Economia sobre o Direito.
Embora baseada teoricamente na justiça e na capacidade contributiva, a dou-
trina da consideração econômica do fato gerador, que ignorava a forma jurídica do
ato praticado pelo contribuinte, para atingir os fins econômicos almejados, acabou
– num ambiente político em que o Estado precisava arrecadar cada vez mais para
fazer frente às suas novas obrigações como provedor das necessidades sociais – por
desqualificar o fim almejado pela norma confundindo-o com a necessidade de arre-
cadar mais recursos. Como salienta Morris Lehner, a norma do Código Alemão de
1919 consistia em regra voltada para a arrecadação, citando o testemunho em seu
favor do próprio Enno Becker. Afirma Lehner:

“Ademais, o § 4º da RAO 1919 constituía premissa voltada à arrecadação, o que


hoje se aceita ser inadequado para interpretação das normas com finalidades
arrecadatórias. Isso se extrai com clareza do comentário de Enno Becker:
‘Diante da importância para a coletividade do procedimento da tributação’,
seria ‘um requisito de primeiríssima ordem que, pouco importando a forma
escolhida pelas partes, (...) ou a roupagem de qualquer caso, fosse encontrada,
pelo imposto, seu significado econômico (...) A valorização da situação fática
conforme seu significado econômico e a interpretação da lei tributária confor-
me sua finalidade se encontram em casos como esses’. Ainda mais claramente
se encontra a orientação da interpretação teleológica das leis tributárias volta-
da a sua finalidade arrecadatória em Kurt Ball, que anota que a libertação do
direito tributário do direito privado, ‘isto é, o fundamento para uma conside-

18 Apud LEHNER, Morris. Considerações Econômicas e Tributação conforme a Capacidade Contributiva.


Sobre a possibilidade de Uma Interpretação Teleológica de Normas com Finalidades Arrecadatórias. In:
SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos em
Homenagem a Brandão Machado, p. 147.

272
Temas de Direito Constitucional Tributário

ração econômica’ coincide com o tempo de necessidade financeira posterior à


primeira Guerra Mundial: ‘A tendência à autonomia do direito tributário toca
a tendência do Estado em aumentar sua arrecadação tributária e fortalecer sua
soberania’. Também Carl Koch relaciona claramente as regras de interpretação
teleológica à finalidade arrecadatória, já que na finalidade das leis dever-se-ia
‘pensar tanto na finalidade da lei inteira, na qual a norma a ser interpretada
está inserida, portanto, antes de mais nada, arranjar dinheiro para o Estado,
como também na finalidade da norma isolada nesse contexto’.”

A observação histórica revela, pois, que a consideração econômica foi conce-


bida primordialmente como uma regra de interpretação orientada à função de
auferir receitas das normas com finalidades arrecadatórias.19
Com a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, a doutrina da conside-
ração econômica do fato gerador é apropriada pelo novo regime, que introduz a
visão do mundo nacional-socialista como elemento teleológico a ser seguido pelo
intérprete. Diante de tamanhas contradições com os objetivos que a inspiraram, a
teoria da consideração econômica do fato gerador entra em declínio na Alemanha
a partir de 1955, quando se dá uma retomada do método sistemático.
Por outro lado, a preponderância da Economia sobre o Direito influenciaria
sobremaneira os tributaristas italianos, especialmente da Escola de Pavia, como
Benverutto Griziotti, Dino Jarach, Ezio Vanoni, que desenvolveram a interpreta-
ção teleológica por meio da versão funcionalista.20 Deve-se a Benvenuto Griziotti,
o desenvolvimento da tese da causa do imposto, a partir na noção de causa utiliza-
da por Ranelletti.21 Segundo Griziotti, a causa jurídica do imposto se traduziria nos
serviços e bens capazes de dar satisfação às necessidades públicas. Seu seguidor,
Dino Jarach, sustentou que a causa jurídica do imposto seria a capacidade contri-
butiva.22 Em obra posterior, Griziotti23 reviu sua posição anterior no sentido de
serem os serviços e bens públicos a causa do imposto, e passou a entender, como
Jarach, ser esta a capacidade contributiva, embora a considerando como causa espe-
cífica, ao lado de uma causa geral (as prestações estatais). Outro representante da
Escola de Pavia, Mario Pugliese,24 também identificou a causa do imposto na capa-
cidade contributiva. Porém, assim, como Griziotti, paralelamente a esta (causa
específica), contemplou uma causa mais ampla: os benefícios estatais.

19 Ob. cit., pp. 147 e 148.


20 TORRES, Ricardo Lobo, Ob. cit., p. 201.
21 Natura Giuridica dell’imposto, 1898, apud BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de
Tributar, atualizada por Misabel de Abreu Derzi, 1997, p. 714.
22 O Fato Imponível – Teoria Geral do Direito Tributário Substantivo, pp. 99-100.
23 Riflessioni di diritto internacionale, politica, economia e finanza, R. Univ. di Pavia, 1937, apud PUGLIE-
SE, Mario, Instituciones de Derecho Financiero, p. 111.
24 Ob. cit., p. 112.

273
Ricardo Lodi Ribeiro

A teoria da capacidade contributiva como causa jurídica do imposto ganhou


adeptos em outras partes do mundo, como Ottmar Buhler,25 na Alemanha, Louis
Trobatas,26 na França, e Aliomar Baleeiro,27 no Brasil.
Porém, foi na própria doutrina italiana que a teoria da causa jurídica do tribu-
to, como sendo a capacidade contributiva, sofreu a mais dura crítica. A. D.
Giannini,28 considerava ser a lei a causa jurídica do imposto. Assim, o imposto é
cobrado por estar previsto na lei, a partir do poder de império do Estado, sendo a
capacidade contributiva apenas uma causa pré-jurídica. Nesse sentido Blu-
menstein,29 na Suíça, Giuliani Fonrouge,30 na Argentina, e Rubens Gomes de
Sousa,31 Alfredo Augusto Becker32 e Aurélio Pitanga Seixas Filho33 no Brasil.
Outro representante da Escola de Pavia, Ezio Vanoni, identificou como causa a
necessidade do Estado angariar recursos para as despesas públicas, teoria que, no
Brasil, teve como adepto Gilberto de Ulhoa Canto.34
Porém, a aceitação das doutrinas baseadas na jurisprudência dos interesses
no Brasil nunca foi integral. Embora a teoria da consideração econômica do fato
gerador tenha tido em Amílcar Falcão um seguidor, e a teoria causalista da capa-
cidade contributiva encontrado apoio em Aliomar Baleeiro, tais idéias nunca
penetraram em nosso país com a radicalidade verificada nos ordenamentos de
seus precursores.
De fato, a teoria da desconsideração econômica do fato gerador na obra de
Falcão não chegou aos extremos verificados na Alemanha, com o afastamento da
legalidade e a confusão entre as idéias de capacidade contributiva e da busca do
aumento de arrecadação. Segundo Falcão, a interpretação econômica se daria dian-
te da atipicidade da forma jurídica adotada pelo contribuinte com a finalidade
exclusiva de evitar o fato gerador, a partir da prática de ato com os mesmos efeitos
econômicos daquele descrito pela lei.35
Por outro lado, Baleeiro, ao adotar as teorias causalistas, não descurou no
respeito à legalidade tributária como limite à ação do aplicador da lei em busca
do princípio da capacidade contributiva, erro incorrido pelos juristas da Escola
de Pavia.

25 Apud BALEEIRO, Limitações..., p. 727.


26 L’a applicacione della Teoria della causa nel Diritto Finanziario, apud BALEEIRO, Limitações..., p. 725.
27 Limitações..., op. cit., pp. 740-741.
28 Il rapporto giuridico dell’imposta, apud PUGLIESE, Mario, Instituciones de Derecho Financiero, p. 111.
29 System des Steuerrechts, Zurich, 1951, vol. I, p. 8, apud GUIMARÃES, Carlos da Rocha, O Problema da
Causa no Direito Tributário, RDA 45/1.
30 Derecho Financiero, p. 452.
31 Compêndio de Legislação Tributária, p. 99.
32 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 93
33 Teoria e Prática das Isenções Tributárias, p. 82.
34 Causa da Obrigação Tributária, em Temas de Direito Tributário, vol. I, p. 330.
35 Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 71.

274
Temas de Direito Constitucional Tributário

2.3) A Jurisprudência dos Valores e a Pluralidade Metodológica

A partir da força do pensamento neokantiano sudocidental alemão do início


do século XX, filósofos como Rudolf Stammler, Wilhelm Windelband, Heinrich
Rickert e Gustav Radbruch criam a jurisprudência dos valores,36 que na segunda
metade do século, é desenvolvida no campo do Direito por Karl Larenz.
A jurisprudência dos valores rompe com o positivismo, seja de origem norma-
tivista da jurisprudência dos conceitos, seja o de cunho sociológico da jurisprudên-
cia dos interesses, reaproximando a idéia de Direito e Moral, a partir do resgate da
idéia de justiça, tendência que depois, na década de 70, será intensificada, por um
viés neokantiano, na obra de John Rawls.
Após o ocaso da jurisprudência dos interesses e da teoria da interpretação eco-
nômica do fato gerador por volta de 1955, e de uma breve retomada formalista até
1965, os tribunais alemães passam a ser influenciados pelas idéias expostas por Karl
Larenz, em Metodologia da Ciência do Direito, disseminando a jurisprudência dos
valores por todo o pensamento jurídico ocidental.
A partir da adoção do pluralismo metodológico, se afasta a aplicação apriorís-
tica de qualquer dos métodos de interpretação, com a utilização de todos eles, de
acordo com os valores envolvidos no caso concreto e inerentes à norma.
Segundo Karl Larenz,37 a pluralidade de métodos funcionaria a partir da uti-
lização primeira do método literal, a fim de captar o uso lingüístico geral utilizado
pela norma, assim entendido como a linguagem corrente dirigida ao cidadão. Em
outras situações, o legislador opta pelo uso da linguagem técnico-jurídica especial,
na qual pode dispensar maiores explicações a partir da adoção de uma linguagem
mais precisa. A interpretação literal vai levar em conta a utilização, primeiramen-
te, da linguagem geral, a não ser que haja motivos para supor que dela o legislador
se afastou para adotar o sentido mais amplo da linguagem geral. O método literal,
ao mesmo tempo em que representa o início da interpretação, constitui o seu limi-
te, na medida em que o que está além do sentido possível das palavras da lei, não
mais se traduz em interpretação, mas em analogia.38
No entanto, segundo Larenz, a linguagem não é inequívoca, deixando mar-
gem para variantes interpretações. Daí a necessidade da utilização de outros méto-
dos, como o sistemático, que segundo o ilustre professor alemão, tem a função de
introduzir a norma no contexto significativo da lei, atividade imprescindível para
a compreensão do sentido de um termo ou expressão legal, a partir da verificação
se as diferentes normas de uma regulação concordam materialmente entre si. Para
as várias significações do sentido literal de uma norma, prestigia-se a que garanta a

36 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. cit., p. 114.


37 Ob. cit., p. 485.
38 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 195.

275
Ricardo Lodi Ribeiro

concordância material com outra disposição. O método sistemático é utilizado tam-


bém para verificar se o legislador não se afastou da linguagem especial no texto que
se pretende interpretar. Adverte Larenz, porém, que o método sistemático não
deve ser sobrevalorizado quando a comparação se dê com regra contida em outra
lei do ordenamento (sistema externo), uma vez que o legislador nem sempre segue
a esta sistemática, e as regulações nem sempre se deixam arrumar nesse sistema.39
A aplicação do método sistemático produz melhores resultados quando a compara-
ção se dá com outra norma da mesma lei (sistema interno).
Observa Larenz que o método sistemático não pode se desligar do sentido lite-
ral da lei, e nem dos fins da regulação, considerados em suas perspectivas histórica
e teleológica.40 Como observa Ricardo Lobo Torres:

“O método sistemático não é apenas lógico. Possui dimensão valorativa, pois


visa a compreender a norma dentro do sistema jurídico, que é aberto, direcio-
nado para os valores – especialmente a justiça e a segurança – e dotado de his-
toricidade.”41

Porém, sempre que os métodos literal e sistemático derem margem para mais
de uma interpretação, deve-se lançar mão do método histórico, que se traduz na
intenção reguladora do legislador, a partir da situação histórica que deu motivo à
regulação. É por isso que Larenz denomina tal método de histórico-teleológico. A
intenção do legislador reguladora vai se revelar não só pelas exposições de motivos,
mas principalmente pelo próprio conteúdo da regulação, desde que inequivoca-
mente orientada para um fim, sendo de pouca valia as idéias normativas das pes-
soas envolvidas na elaboração da lei, uma vez que não se traduzem na verdadeira
vontade do legislador, que só pode ser extraída da própria norma.42
Deste modo, a interpretação histórica vai ao contexto da elaboração da norma
para buscar o seu sentido, que não é necessariamente aquele almejado pelo legisla-
dor histórico, dado o caráter objetivo desta, como salientado por Carlos
Maximiliano:

“Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se


do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui
o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais pre-
vidente que o seu autor. Considera-na como disposição mais ou menos impe-
rativa, materializada num texto, a fim de realizar sob um ângulo determinado

39 Ob. cit., p. 486.


40 Ob. cit., p. 461.
41 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 210.
42 LARENZ. Ob. cit., p. 486.

276
Temas de Direito Constitucional Tributário

a harmonia social, objeto supremo do Direito”. Logo, ao intérprete incumbe


apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele
olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finali-
dade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva.”43

Se todos esses critérios não forem suficientes para a interpretação, deve ser
utilizado o método teleológico, que vai buscar os fins almejados pela norma. Não é
necessário que o legislador tivesse consciência desses fins, mas devem resultar das
estruturas materiais da norma e dos princípios jurídicos imanentes ao ordenamen-
to jurídico. Por isso Larenz denomina tal método de teleológico objetivo.44
Segundo Ricardo Lobo Torres a interpretação teleológica também demanda a
utilização dos outros métodos:

“a interpretação teleológica não vive da só consideração da finalidade. O fina-


lismo pressupõe o sistema, assim interno que externo, pois os valores jurídi-
cos, os princípios constitucionais tributários e a ciência do Direito também se
organizam em sistema. Tipke, nas edições anteriores de Steuerrecht, distin-
guia entre a interpretação teleológico-sistemática, orientada para o sistema
interno (de princípios, valores, ratio, motivação) e a sistemática-formal, diri-
gida ao sistema externo ou científico e aos aspectos formais da lei; posterior-
mente, absorvendo a finalidade no sistema, passou a falar simplesmente em
‘método sistemático’. A finalidade econômica afirma-se a partir do sistema de
normas e valores, de conceitos e tipos jurídicos, de proposições e enunciados
científico-tributários. O critério teleológico e a consideração econômica, por-
tanto, se orientam pelo próprio sistema tributário, pois, ‘a percepção dos fins
não é emanante a cada norma tomada isoladamente, mas exige uma visão
ampliada da norma dentro do ordenamento’.”45

Tratando-se da interpretação de normas imbricadas na Constituição Federal,


cabe ainda a interpretação conforme a Constituição, que exige dar-se preferência,
dentre as várias interpretações possíveis da lei, àquela que seja compatível com o Texto
Maior. Segundo J. J. Gomes Canotilho46 o princípio comporta várias dimensões:

“(1) o princípio da preponderância da constituição impõe que, dentre as várias


possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não

43 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, pp. 30 e 31.


43 Ob. cit., p. 487.
45 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., pp. 211 e 212, com citação de FERRAZ JR. Tércio Sampaio (Função
Social da Dogmática, São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 1980, p. 153).
46 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1099.

277
Ricardo Lodi Ribeiro

contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais; (2) o prin-


cípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declara-
da inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser inter-
pretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da
interpretação conforme a constituição mas ‘contra legem’ impõe que o apli-
cador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma atra-
vés de uma interpretação conforme a constituição, mesmo através desta inter-
pretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as
normas constitucionais.”

A técnica da pluralidade de métodos pode ser resumida na lapidar lição de


LARENZ:

“Ao sentido literal possível e ao contexto cabe, nestes termos, sobretudo uma
função delimitadora. Adentro dos limites assim traçados são, com freqüência,
possíveis várias interpretações. Então são decisivos, antes do mais, os critérios
teleológicos. Às idéias normativas dos autores da lei há-de recorrer-se de
modo complementar; estas podem alcançar importância decisiva quando, por
exemplo, o legislador se tenha afastado, por motivos de outro modo dificil-
mente perceptíveis, da sua concepção numa questão particular, ou os autores
da lei tenham ocorrido em equívoco na formulação da lei.”47

Vale trazer o comentário de Ricardo Lobo Torres, que traduz com precisão a
pluralidade metodológica adotada no Direito Tributário pela jurisprudência dos
valores:

“O que se observa é a pluralidade e a equivalência, sendo os métodos aplica-


dos de acordo com o caso e com os valores ínsitos na norma: ora se recorre ao
método sistemático, ora ao teleológico, ora ao histórico, até porque não são
contraditórios, mas se complementam e intercomunicam. No direito tributá-
rio os métodos variam de acordo até com o tributo a que se aplicam: os impos-
tos sobre a propriedade postulam a interpretação sistemática, porque apoiados
em conceitos de Direito Privado; os impostos sobre a renda e o consumo
abrem-se à interpretação econômica, porque baseados em conceitos elabora-
dos pelo próprio Direito Tributário ou em conceitos tecnológicos. Os métodos
de interpretação, por conseguinte, devem ser estudados dentro de uma visão
pluralista. Entre eles não existe hierarquia. Têm igual peso, variando a sua
importância de acordo com o caso e com as valorações jurídicas na época da

47 LARENZ. Ob. cit., p. 487.

278
Temas de Direito Constitucional Tributário

aplicação, como sempre reconheceu a doutrina não extremada, seja no Direito


em geral, seja nos ramos especializados do Constitucional e do Tributário.”48

O pano de fundo para o desenvolvimento das idéias concebidas pela jurispru-


dência dos valores é um mundo que sai do ocaso dos regimes socialista e da falên-
cia do Welfare State, numa era globalizada, caracterizada por um Estado de Risco,
incapaz de garantir as prestações sociais que caracterizaram o Estado Social.
A partir do afastamento do positivismo e da superação do corte entre Moral e
Direito, a jurisprudência dos valores, não podendo prescindir desses para a resolu-
ção dos casos concretos, faz ressurgir o relacionamento entre a Ética e o Direito, o
que, com a virada kantiana, resgata a Teoria dos Direitos Fundamentais e a Teoria
da Justiça.49
A virada kantiana e o resgate do valor da Justiça, que andava tão esquecido
após dois séculos de positivismo formalista e sociológico, têm como marco a obra
de John Rawls, Uma Teoria da Justiça, em 1971.
Se na jurisprudência dos conceitos, o legislador era o único intérprete,
posição ocupada pelo juiz na jurisprudência dos interesses, na era da jurispru-
dência dos valores, adota-se a pluralidade de intérpretes, envolvendo todos os
agentes do processo, desde o legislador, passando pelo juiz, pelos doutrinado-
res, empresários, contadores, entidades representativas de classe e todos os
cidadãos interessados.50
Destacam-se entre os tributaristas que utilizaram as idéias desenvolvidas pela
jurisprudência dos valores, Klaus Tipke, Klaus Vogel e Moris Lehner, na Alema-
nha, e Ricardo Lobo Torres, no Brasil.
Os valores da segurança jurídica e da justiça como cânones da interpretação
da lei tributária: os princípios da legalidade e da capacidade contributiva
A doutrina mais moderna, na esteira de Dworkin51 e Alexy,52 divide as nor-
mas jurídicas em princípios e regras. Os princípios são normas de grau de abstração
elevada, que segundo LARENZ se traduzem em pensamentos diretivos de uma
regulação jurídica existente e possível, que, em si mesmos são insuscetíveis de apli-
cação, pois carecem das regras para serem concretizados, mas que podem transfor-
mar-se em regras.53

48 Ob. cit., pp. 206 e 207.


49 TORRES, Ricardo Lobo. Ética e Justiça Tributária, In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando
Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado, p. 179.
50 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição, p. 13.
51 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, p. 24.
52 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 86.
53 LARENZ, Karl. Derecho Justo – Fundamentos de Etica Jurídica, p. 32.

279
Ricardo Lodi Ribeiro

Sobre a distinção de princípio e regra, vale trazer a lição de J. J. CANOTILHO:

“Os princípios interessar-nos-ão, aqui, sobretudo na sua qualidade de verda-


deiras normas, qualitativamente distintas das outras categoria de normas ou
seja, das regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamen-
talmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas
jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de
concretização, consoante os condicionamentos fáticos e jurídicos; as regras
são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permi-
tem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applica-
ble in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual
(Zagrebelsky), a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem,
as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios, ao cons-
tituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e
interesses (não obedecem, como regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoan-
te o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes;
as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra
vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições,
nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre
princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles
contém apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, em ‘primeira linha’ (prima
facie), devem ser realizados; as regras contêm, ‘fixações normativas’ definiti-
vas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias.
Realça-se também que os princípios suscitaram problemas de validade e peso
(importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de vali-
dade (se elas não são corretas devem ser alteradas).”54

Assim, os princípios são enunciados genéricos que se encontram em uma posi-


ção intermediária, no que tange à abstração, entre os valores e as regras. Os primei-
ros, idéias abstratas, mas sem qualquer concretitude, embora não contidos nos tex-
tos legais, informam todo o ordenamento jurídico, como a justiça, a segurança jurí-
dica, a liberdade e a igualdade. As últimas, ao contrário, revelam um alto grau de
concretude, atribuindo direitos e deveres, e se subordinam aos valores e princípios.
Situando-se entre os valores e as regras, os princípios constitucionais tributá-
rios vão variar em grau de abstração entre os dois pólos, prevendo a Constituição
princípios extremamente abstratos, como a isonomia, onde o constituinte traz para
o Texto Maior o próprio valor da igualdade, com toda a sua carga abstrata, deman-
dando uma concretização e integração pela regra.

54 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1.035.

280
Temas de Direito Constitucional Tributário

De outro lado, temos princípios, como o da anterioridade, que se revela ver-


dadeira regra inspirada no princípio da segurança jurídica.55
Sendo a segurança jurídica e a justiça os valores supremos do ordenamento
jurídico tributário, o tributo justo passa a ser o que cumpra os princípios da capa-
cidade contributiva e da legalidade. Não havendo hierarquia entre os dois princí-
pios, eventuais tensões entre eles são resolvidas pela ponderação.
A ponderação de princípios, segundo Daniel Sarmento,56 se dá em duas eta-
pas: na primeira o intérprete que se depara com uma possível colisão de princípios
verifica, a partir dos limites imanentes a existência da real contradição entre eles.
Se esta foi constatada passa-se à segunda fase, onde o intérprete irá verificar o prin-
cípio de maior peso, que irá prevalecer sobre o outro. Tratando-se de princípios que
na escala de valores apresentada pela Constituição apresentam o mesmo peso gené-
rico, resta ao intérprete verificar o peso específico que a legalidade e a capacidade
contributiva possuem no caso concreto.
O princípio da capacidade contributiva, uma decorrência do princípio da iso-
nomia, é previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição de 1988, que determina que
sempre que possível os impostos sejam graduados de acordo com a capacidade eco-
nômica do contribuinte. Segundo Ricardo Lobo Torres, o princípio determina

“que cada um deve contribuir na proporção de suas rendas e haveres, inde-


pendentemente de sua eventual disponibilidade financeira.”57

O princípio tem uma acepção objetiva, significando que o legislador deve


escolher como fato gerador do tributo um ato que seja revestido de conteúdo eco-
nômico, restando violado quando da tributação de atos que não se traduzam em
signos presuntivos de manifestação de riqueza, como o uso de barba e bigode, por
exemplo. Assinala Dino Jarach:

“No mundo concreto em que vivemos, nenhum Estado cria impostos cujo
pressuposto de fato consista, por exemplo, em serem inteligentes ou estúpidos,
ou serem loiros ou morenos, possuir nariz grego ou aquilino, as pernas direi-
tas ou tortas. Não dizemos que o Estado deva ou não cobrar impostos segun-
do esses critérios caprichosos; só dizemos que nenhum Estado, pelo que resul-
ta do direito positivo, obra de tal maneira, dizemos que há um critério segun-

55 Nesse sentido SARMENTO, Daniel, na obra A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, p. 51,
onde o autor sustenta ser o princípio da anterioridade, previsto no art. 150, III, b, da Constituição de 1988,
uma verdadeira regra, e não um princípio.
56 SARMENTO, Daniel. Ob. cit., p. 102.
57 TORRES, Ricardo Lobo, Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 79.

281
Ricardo Lodi Ribeiro

do o qual os legisladores elegem os fatos imponíveis, e que os impostos não se


cobram segundo o capricho dos legisladores providos de fantasias.
Todas as situações e todos os fatos aos quais está vinculado o nascimento de
uma obrigação impositiva possuem como característica a de apresentar um
estado ou um movimento de riqueza; isto se comprova com a análise induti-
va do direito positivo e corresponde ao critério financeiro que é próprio do
imposto: o Estado exige uma soma de dinheiro em situações que indicam
capacidade contributiva. É certo que o Estado por capricho, pelo seu poder de
império, poderia exigir impostos com base em qualquer pressuposto de fato,
mas o Estado, afortunadamente, não age assim.”58

No mesmo sentido Victor Uckmar:

“Ademais, o dimensionamento à capacidade contributiva exclui ‘graduações


da carga tributária que não sejam relacionadas a diferenças na condição eco-
nômica dos indivíduos’. Único elemento para diferenciar as cargas tributárias
entre várias pessoas é a sua capacidade econômica: portanto, não seria consen-
tido estabelecer que ‘os loiros devem pagar mais que os morenos’ ou que todas
as pessoas calvas ou míopes devam, enquanto tais, pagar um tributo”.59

Em seu aspecto subjetivo, o princípio se destina a aferir a capacidade de paga-


mento de cada um, graduando-a de acordo com o signo de manifestação de rique-
za escolhido pelo legislador ao definir o fato gerador de cada tributo. Assim, a capa-
cidade contributiva no IPTU é mensurada pela propriedade de imóveis urbanos, e
não pela renda.
Observe-se que essa ponderação da capacidade contributiva com outros prin-
cípios não é feita só pelo legislador, mas também pelo aplicador da lei.60
Isso não significa que o juiz possa sair tributando o contribuinte apenas com
base na capacidade contributiva, sem que haja previsão legal do tributo, como
defendiam os seguidores da Escola de Pavia, como Ezio Vanoni, e como foi desas-
trosamente aplicado no regime nazista. A capacidade contributiva que será tribu-
tada estará prevista na lei, em cumprimento do valor da segurança jurídica.
Exemplo de ponderação entre a legalidade e a capacidade contributiva efetua-
da pelo aplicador da lei se dá quando o poder judiciário afasta a aplicação de uma
lei que prevê uma isenção que se traduza em um privilégio odioso.61

58 Ob. cit., pp. 95-96.


59 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário, pp. 69-70.
60 Nesse sentido TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação..., p. 224, e LEHNER, Morris. Ob. cit.,
p. 152.
61 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Vol. III, p. 341.

282
Temas de Direito Constitucional Tributário

Outro exemplo se dá quando o juiz reconhece que, embora o tributo esteja


previsto em lei, determinado segmento de contribuintes não revela capacidade
contributiva para suportá-lo, como ocorre quando violado o mínimo existencial.
Não concordamos com a posição de nosso ilustre mestre, José Marcos
Domingues de Oliveira,62 no sentido de que poderia o juiz, no caso concreto, reco-
nhecer a ausência de capacidade contributiva de determinado contribuinte, mesmo
quando a lei, em sua acepção genérica, não se revelar violadora do princípio. Se o
tributo é fixado de forma adequada ao signo de manifestação de riqueza revelado
pelo fato gerador previsto em lei, a exclusão de determinado indivíduo por razões
individuais se traduziria em privilégio odioso.
Também não nos parece correto afirmar, como fez o Professor José Marcos
Domingues de Oliveira, na brilhante obra Direito Tributário – Capacidade Contri-
butiva,63 ser possível a declaração parcial de inconstitucionalidade da lei tributária,
por apenas em parte superar a capacidade contributiva. Se a tributação tornou-se
excessiva em razão de um aumento de alíquota, a declaração de inconstitucionali-
dade da lei teria o condão de restabelecer a legislação anterior do imposto. No
entanto, se a fixação desmedida do tributo se der por ocasião de sua instituição pri-
meira, não restará solução senão a declaração de inconstitucionalidade da exação.
Caso o poder judiciário pudesse reduzir a alíquota do tributo, estaria estabelecen-
do regra não prevista pelo poder legislativo, invadindo o espaço de conformação
deste, legislando positivamente.
A quebra do tratamento igual pelo legislador aos que revelam a mesma capa-
cidade contributiva pode se dar quando presente a finalidade extrafiscal, com o
estímulo ou desestímulo a determinada atividade pela tributação, como observa
Ferreiro Lapatza.64 Segundo o mestre espanhol é possível a capacidade contributi-
va dar lugar à extrafiscalidade, quando presentes os requisitos mínimos da primei-
ra e quando os fins extrafiscais almejados pelo legislador sejam também amparados
pela Constituição. No entanto, o critério utilizado pelo legislador para promover a
distinção baseada em razões extrafiscais, deve ser razoável, como reconhecido pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo Regimental em Agravo de
Instrumento nº 142.348-1, relatado pelo Ministro Celso de Mello.65
Como se vê, a jurisprudência dos valores aplicada ao Direito Tributário asse-
gura o equilíbrio da capacidade contributiva e da legalidade, com a retomada da
primeira sem as conotações vinculadas à arrecadação da maior quantidade de
recursos, verificada na jurisprudência dos interesses, mas a partir da subordinação
aos valores da justiça e liberdade. Como salienta John Rawls, o sistema de tributa-

62 Direito Tributário – Capacidade Contributiva, p. 147.


63 Ob. cit., p. 155.
64 Curso de Derecho Financiero Español, vol. I, p. 62.
65 DJ de 24/03/95, apud GODOI, Marciano Seabra de, Justiça, Igualdade e Direito Tributário, p. 230.

283
Ricardo Lodi Ribeiro

ção tem o intuito de arrecadar a receita exigida pela justiça, devendo o governo
receber os recursos necessários para fornecer os bens públicos para que o princípio
da diferença seja satisfeito.66
Por outro lado, a questão da autonomia dos conceitos de Direito Tributário aos
institutos do Direito Civil fica superada pela Teoria da Unidade da Ordem Jurídica.
Segundo Klaus Tipke, a unidade da ordem jurídica significa que esta deve ser uma
ordem racional, baseada em critérios de justiça, e que constitua uma unidade.
Segundo Tipke, a unidade se dá:

“quando os princípios da justiça são seguidos à risca. Daí surge um direito


homogêneo, consistente e harmônico, livre de contradições axiológicas. A
incoerência leva a infrações ao princípio da igualdade. A observância da igual-
dade é, outrossim, uma característica essencial da justiça. Somente quando
uma ordem jurídica é baseada em um único princípio fundamental é que
surge a unidade ideal da ordem jurídica.
(...) O direito tributário não precisa estar orientado por princípios do direito
civil ou por princípios de outros ramos do direito público; ele deve observar
os princípios de outras ordens jurídicas parciais suficientemente, apenas, para
impedir que ocorram contradições axiológicas na ordem jurídica total.
Nenhum princípio tem validade absoluta. Em caso de colisão ou concorrência
de princípios de ordens jurídicas parciais, então terá preferência aquele que
tiver o maior peso jurídico.”67

Dentro do equilíbrio entre os princípios do Direito Civil e do Direito Tribu-


tário, o combate à elisão fiscal, embora sem os excessos da jurisprudência dos
interesses, é retomado por meio de cláusulas antielisivas capazes de deter o abuso
de forma.68

3) A Interpretação no Direito Tributário Brasileiro

No Brasil, a interpretação da lei tributária vive um momento de isolamento


cultural com as tendências verificadas no exterior. Ainda estamos acorrentados a
um positivismo de índole formalista que não encontra mais paralelo alhures.
A nossa doutrina, animada com a tese da tipicidade fechada, abraça a seguran-
ça jurídica como único valor a ser tutelado, fazendo da justiça, da igualdade e da

66 Uma Teoria da Justiça, p. 307.


67 Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária. In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Auré-
lio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado, p. 60.
68 Nesse sentido, GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, p. 181.

284
Temas de Direito Constitucional Tributário

capacidade contributiva, meros elementos retóricos, quando não objeto de críticas


mordazes.69
A adoção da segurança jurídica como princípio absoluto do Direito Tributário
com a aceitação desse ramo possuiria características peculiares que sequer seriam
encontradas no Direito Penal, reflete, como bem destaca José Marcos Domingues
de Oliveira,70 uma posição ideológica de privilegiar a liberdade vinculada ao patri-
mônio em detrimento da liberdade vinculada à pessoa.
Com a doutrina passando ao largo das discussões sobre justiça, e não sabendo
como dar aplicação ao princípio da capacidade contributiva, a jurisprudência segue
a mesma orientação com poucas exceções a confirmar a regra.
Mas é na legislação tributária que o quadro parece mais distante dos coman-
dos constitucionais vinculados à idéia de justiça. Embora a Constituição de 1988
consagre expressamente o princípio da capacidade contributiva, a legislação tribu-
tária não dá qualquer efetividade ao princípio que deveria ser aplicado sempre que
possível.
Os problemas começam com o CTN, que no capítulo relativo à interpretação
da lei tributária cria regras contraditórias que determinam a adoção de métodos
hermenêuticos apriorísticos. E o que é pior, inteiramente contraditórias sendo rei-
vindicadas por defensores do método sistemático e do método teleológico, como
apontado por Ricardo Lobo Torres:

“O art. 109 do CTN é ambíguo e contraditório, pois pretende hierarquizar


métodos de interpretação de igual peso, sem optar com clareza pelo sistemá-
tico ou pelo teleológico. Demais disso, mistura posições teóricas divergentes,
se filia a correntes doutrinárias conflitantes e emburilha as conseqüências das
opções metodológicas, confundindo as relações entre o Direito Tributário e o
Privado e entre diversas fontes do Direito.”71

De fato, a primeira parte do artigo 109 do CTN parece optar pelo método sis-
temático ao determinar que os princípios gerais do Direito Privado são utilizados
para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos
e formas. Mas dá outra na ferradura, acenando ao método teleológico ao determinar
que os efeitos tributários de tais institutos podem ser definidos pela lei tributária.
Qualquer conclusão fica ainda mais tormentosa, se interpretarmos a referida
norma juntamente com o art. 110 do CTN, segundo o qual a lei tributária não pode

69 Como a de Alfredo Augusto Becker, que considerou que os textos constitucionais, ao consagrarem o prin-
cípio da capacidade contributiva, constitucionalizaram o equívoco (Ob. cit., p. 442).
70 Legalidade Tributária – O Princípio da Proporcionalidade e a Tipicidade Aberta, In Revista da Procurado-
ria Geral do Estado do Rio de Janeiro nº 51, p. 114.
71 Ob. cit., p. 188.

285
Ricardo Lodi Ribeiro

alterar a definição, conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direi-


to privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, dos
Estados e Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, para definir ou limi-
tar competências tributárias. Num primeiro momento parece optar pelo metido sis-
temático. Mas limitando sua disciplina aos conceitos constitucionais o art. 110 não
estaria autorizando o método teleológico para os demais casos? A resposta é com-
plicada! Os dois artigos são dúbios, contraditórios e inúteis, na medida em que nada
contribuem para o intérprete da lei tributária.
No entanto, o mais grave é a contradição axiológica entre os princípios cons-
titucionais tributários e as leis, que pouco dão vida à justiça fiscal, criando um dos
sistemas tributários mais iníquos do mundo, em que os assalariados suportam a
maior parte da carga tributária enquanto as grandes empresas pouco contribuem.
Exemplo de contradição axiológica entre os princípios constitucionais e as leis
tributárias nos é dado por Adilson Rodrigues Pires,72 no imposto de renda, tributo
que a Constituição Federal, atendendo os princípios da capacidade contributiva e
da igualdade, determina que seja informado pelos subprincípios da generalidade,
universalidade e progressividade, além do caráter pessoal, previsto no art. 145, § 1º.
No entanto, a Lei nº 7.713/88 reduziu as antigas dez faixas de alíquota para apenas
duas e uma de isenção. Suprimiu ainda a lei a possibilidade de dedução de várias
despesas necessárias à manutenção da fonte, como habitação, livros técnicos, e pro-
moveu a redução dos limites relativos a dependentes e despesas de instrução. Ora,
leis desse tipo fazem tabula rasa de princípios e valores constitucionais, levando a
contradições axiológicas que resultam no afastamento da norma, com o restabele-
cimento da disciplina anterior.
Klaus Tipke ressalta que a parte da renda que inevitavelmente deve ser gasta
com finalidades profissionais ou empresariais não está disponível para o pagamen-
to de imposto, bem como a renda necessária para a manutenção do contribuinte e
de seus familiares. Por outro lado, não pode a empresa, segundo o festejado tribu-
tarista alemão, ser tributada além do seu lucro, pois contrariaria sua capacidade
contributiva.73 Observa-se que no Brasil, desde há muito, a legislação tem descura-
do de tais princípios produzindo normas tributárias que superam a capacidade con-
tributiva.
No entanto, nossos tribunais e juristas, no afã de defender o contribuinte da
forma mais simples, se apegam aos aspectos formais do direito tributário, permitin-
do que passem despercebidas as maiores violações aos direitos do contribuinte vin-
culados à justiça.

72 Contradições no Direito Tributário, pp. 58 e 59.


73 TIPKE. Ob. cit., p. 65.

286
Temas de Direito Constitucional Tributário

Porém, nesse início de século, começa a despertar, ainda que de forma inci-
piente, uma consciência nos meios jurídicos tributários para a importância do tema
da justiça para a defesa do direito do contribuinte, não só sob uma perspectiva indi-
vidual, para principalmente com vistas à criação de um sistema tributário nacional
efetivamente justo.

287
XVI
A Elisão Fiscal e a Cláusula Geral Antielisiva
Sumário: 1) Introdução. 2) O Combate à Elisão e a Teoria do Abuso de Direito. 2.1) Con-
ceito e Requisitos do Abuso de Direito. 2.2) O Abuso de Direito no Direito Tributário.
2.2.1) Requisitos da Elisão Abusiva. 2.2.2) Distinção entre Abuso de Direito e Simulação.
2.2.3) Modalidades de Elisão Abusiva. 2.2.4) Abuso de Direito e Licitude. 3) O Combate à
Elisão e as Cláusulas Antielisivas. 3.1) As Cláusulas Antielisivas no Direito Comparado.
4) As Cláusulas Antielisivas no Brasil. 4.1) A Cláusula Geral Antielisiva do Parágrafo Único
do Artigo 116 do CTN. 4.2) A Ausência de Regulamentação da Cláusula Geral Antielisiva.
5) Conclusões.

1) Introdução

Com a edição da Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, foi intro-


duzida em nosso ordenamento jurídico uma cláusula geral antielisiva instituída,
por meio do parágrafo único ao artigo 116, provocando grande debate nos meios
jurídicos tributários brasileiros, e gerando uma profunda modificação na jurispru-
dência administrativa, a despeito de não ter logrado êxito a tentativa de sua regu-
lamentação.
Este trabalho pretende examinar a validade e o alcance da LC nº 104/01, à luz
da Constituição Federal, o que exige o estudo da própria cláusula geral antielisão
contida no CTN, transpassando por uma questão que é hoje central no Direito
Tributário: até onde vai a possibilidade de o contribuinte praticar atos com vistas a
pagar menos tributos do que os que estão na mesma situação?
A resposta à indagação é encontrada na teoria do abuso de direito ao planeja-
mento fiscal que fundamenta a cláusula geral antielisiva brasileira, a partir da dis-
simulação do fato gerador da obrigação tributária em suas várias modalidades: a
fraude à lei, o abuso de forma, o abuso no uso da personalidade jurídica da empre-
sa e o vício quanto à intenção negocial.

2) O Combate à Elisão e a Teoria do Abuso de Direito

2.1) Conceito e Requisitos do Abuso de Direito

Modernamente os direitos não são absolutos, sendo o seu exercício limitado à


sua função social e econômica. O abuso de direito – há muito presente em outros
ramos da ciência jurídica, notadamente no direito constitucional, no direito admi-
nistrativo, no direito comercial, no direito civil e no direito processual civil, e tra-
zido para o ordenamento tributário para o combate à elisão fiscal – se traduz no

289
Ricardo Lodi Ribeiro

exercício de uma atividade que, embora seja formalmente permitida ao agente, está
sendo realizada com base em um fim diverso daquele que a norma jurídica tinha
em vista quando a tutelou.1
São requisitos do abuso de direito: o exercício de um direito subjetivo, a par-
tir de um dispositivo previsto estritamente no direito objetivo; o caráter antijurídi-
co desse exercício, revelado pela intenção de causar um dano ou pela inadequação
aos fins almejados pelo legislador; e o dano causado a direito de terceiro.
De acordo com Díez Picazo, o abuso de direito representa um limite implíci-
to à autonomia privada, consistente na inadmissibilidade do exercício desta sempre
que o seu resultado não seja amparado pelo ordenamento jurídico.2

2.2) O Abuso de Direito no Direito Tributário

No direito tributário, a teoria do abuso de direito passa a incidir a partir do


momento em que o contribuinte lança mão de um negócio jurídico, formalmente
lícito, não visando, porém, adequar-se aos efeitos deste, mas tão-somente, ou fun-
damentalmente, à economia do imposto.
Como observa Ernest Höhn,3 o abuso de direito não ocorre no âmbito do
direito tributário, mas no do próprio direito privado, na medida em que o contri-
buinte, utilizando-se de um negócio jurídico admitido por lei, não atende às fina-
lidades almejadas pelo legislador civil, mas outras, que constituem objeto da hipó-
tese de incidência tributária.

2.2.1) Requisitos da Elisão Abusiva

Para a caracterização da elisão abusiva, devem estar presentes, conjuntamen-


te, os seguintes requisitos:

– prática de um ato jurídico, ou um conjunto deles, cuja forma escolhida não


se adapta à finalidade da norma que o ampara, ou à vontade e aos efeitos
dos atos praticados esperados pelo contribuinte.

1 SAN TIAGO DANTAS. Programa de Direito Civil – Teoria Geral. 3. ed. Rio Janeiro: Forense, 2001, p.
318. Para Fernando Augusto Cunha de Sá, o abuso de direito traduz-se “num ato ilegítimo, consistin-
do a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito sub-
jetivo: hão-de ultrapassar os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa-fé, pelos bons costu-
mes ou pelo próprio fim social ou econômico do direito exercido” (Abuso de Direito. Coimbra:
Almedina, 1997, p. 103).
2 El Abuso del Derecho, p. 216, apud ROSEMBUJ, Tulio. Op. cit., p. 40.
3 “Evasão do Imposto e Tributação segundo os Princípios do Estado de Direito”. In: Brandão Machado
(coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 298.

290
Temas de Direito Constitucional Tributário

– intenção, única ou preponderante, de eliminar ou reduzir o montante de


tributo devido;
– identidade ou semelhança de efeitos econômicos entre o atos praticados e
o fato gerador do tributo;
– proteção, ainda que sob o aspecto formal, do ordenamento jurídico à forma
escolhida pelo contribuinte para elidir o tributo;
– forma que represente uma economia fiscal em relação ao ato previsto em
lei como hipótese de incidência tributária.

No primeiro requisito, há que se ressaltar a necessidade de harmonia entre


a vontade do contribuinte, o objeto negocial e os efeitos que são próprios ao
negócio jurídico praticado, com a forma jurídica manifestada. Mesmo nos negó-
cios de forma livre, há que se inquirir se o seu objeto está adequado à relação
jurídica que o contribuinte espera criar, modificar ou extinguir. Analisa-se
também se os efeitos por ele esperados são os normalmente obtidos pela fórmu-
la jurídica utilizada e consagrada pela lei. Ausente essa harmonia entre a von-
tade e a lei que tutela o negócio declarado, este, como sustenta Luís Cabral de
Moncada, resta ineficaz.4
O segundo requisito é revelado pela intenção predominante no negócio jurí-
dico. Se a economia fiscal foi a principal razão para a escolha daquela fórmula, em
detrimento da prevista na hipótese de incidência, é possível a utilização da teoria
do abuso de direito.
Observe-se, porém, que, ao contrário do que defendiam os seguidores das teo-
rias causalistas da consideração econômica do fato gerador, só há que se falar em
elisão abusiva enquanto a economia do imposto for a motivação determinante da
conduta, e não uma mera conseqüência.5
Em relação ao terceiro requisito, há que se verificar a similitude entre os efei-
tos do ato escolhido pelo contribuinte como cobertura e o fato gerador legal. Caso
contrário, não se verifica a manifestação de riqueza escolhida pelo legislador como
signo de manifestação de riqueza, violando-se o princípio da capacidade contribu-
tiva. Neste caso temos a economia fiscal eficaz, e não a elisão abusiva. A similitu-
de é da essência da elisão abusiva, uma vez que o contribuinte promove uma ana-

4 De acordo com o civilista lusitano, a “eficácia se acha fundamentalmente dependente da conformidade ou


harmonia entre a vontade na sua manifestação e a lei. É justamente essa conformidade ou harmonia entre
vontade e lei que nos deu a noção de ato ou negócio jurídico. Se uma tal conformidade existe, diz-se do
ato ou da vontade que eles são juridicamente eficazes e válidos. Se tal conformidade se não dá, diz-se que
eles não são válidos ou são ineficazes. A validade e a eficácia de que aqui falamos, não são produto exclu-
sivamente da vontade, nem exclusivamente da lei, mas da colaboração das duas na realização do direito”
(Lições de Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 706).
5 ROSEMBUJ. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario. 2. ed.
Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 103.

291
Ricardo Lodi Ribeiro

logia às avessas,6 procurando um fato que tenha os mesmos efeitos econômicos,


mas que não seja tributado na mesma proporção, para mascarar a ocorrência do
fato gerador.
É essencial também, para a caracterização do abuso de direito – e é nisso em
que consiste o quarto requisito –, que a fórmula utilizada pelo contribuinte para
ocultar a ocorrência do fato gerador seja, se analisada de per si, lícita. Conforme
adverte Tulio Rosembuj,7 citando Cipollina, só há que se falar em elisão fiscal
quando os meios jurídicos implicados na configuração do fato imponível se inse-
rem, de forma irreprochável, sob a égide do direito positivo estrito. Caso o contri-
buinte utilize-se da simulação, da sonegação ou da fraude na caracterização do
suporte fático, não se fala de elisão, mas de evasão fiscal.
Por último, mas não menos importante, aparece como quinto requisito a eco-
nomia fiscal representada pela diferença a maior entre o pagamento do imposto na
forma do fato gerador previsto em lei e o negócio escolhido pelo contribuinte. Sem
esse requisito, não há o dano à Fazenda Pública, pressuposto para a aceitação do
abuso de direito na teoria geral da ciência jurídica.

2.2.2) Distinção entre Abuso de Direito e Simulação

Cumpre destacar que a elisão praticada com abuso de direito não se confunde
com a simulação fiscal. De acordo com o § 1º, do artigo 167, do Código Civil
Brasileiro (Lei nº 10.406/2002),8 há simulação nos negócios jurídicos quando:

• aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às


quais realmente se conferem ou transmitem;
• contiverem declaração, confissão ou cláusula não verdadeira;
• os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

A simulação é absoluta, quando não oculta qualquer outro negócio jurídico; é


relativa, quando há um negócio jurídico dissimulado, que as partes procuram ocultar.
Na simulação, segundo Ferrara, há uma divergência, querida e deliberada-
mente produzida, entre a vontade e sua manifestação; um acordo simulatório entre
as partes (ou entre o declarante e o destinatário da declaração); e o intuito de enga-
nar a terceiro estranho.9

6 TORRES, Ricardo Lobo. “A Chamada ‘Interpretação Econômica do Direito Tributário’, a Lei Comple-
mentar nº 104 e os Limites Atuais do Planejamento Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.).
O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 240.
7 Op. cit., p. 102.
8 Correspondente ao artigo 102 do Código Civil de 1916.
9 La Simulación de los negocios jurídicos, p. 55, apud ROSEMBUJ (Op. cit., p. 48).

292
Temas de Direito Constitucional Tributário

Há que se distinguir os negócios simulados, que são fictícios, não queridos,


frutos de uma ficção negocial, cujo propósito é a ocultação de uma realidade, dos
negócios realizados com abuso de direito, que são sérios, reais e praticados de tal
forma pelas partes, para obter um resultado idôneo que vise a burlar uma norma
imperativa ou proibitiva. São claramente diferenciados, pois na simulação se cria
uma aparência que oculta a realidade; enquanto no abuso de direito, se materiali-
zam negócios jurídicos desejados pelas partes, reais em seu conteúdo e execução,
mas, ainda que singularmente lícitos, escondem resultados que a lei buscava atin-
gir e que defluem dos atos efetivamente praticados.10
Como se vê, o abuso de direito é obtido por meio da dissimulação dos negó-
cios jurídicos, que é um conceito que abriga não apenas os atos ilícitos – como o
dolo, a fraude e a simulação –, mas todas as condutas, que embora formalmente líci-
tas, denotam o exercício abusivo do ato, revelado pelo descompasso entre a sua
motivação econômica, a forma e os efeitos por ele produzidos, com o intuito único,
ou preponderante, de obter uma economia de imposto, em violação à isonomia e à
capacidade contributiva.

2.2.3) Modalidades de Elisão Abusiva

A doutrina cataloga vários mecanismos para a efetivação do abuso de direito,


que constitui um gênero composto por diversas espécies: a fraude à lei, o abuso de
forma, o abuso da personalidade jurídica das empresas e o descompasso entre a
forma jurídica e a intenção econômica.11
Embora sejam encontradas na doutrina civilista algumas distinções entre tais
figuras, não divergem as mesmas num traço fundamental: em todas elas o titular de
um direito procura exercê-lo em desacordo com os objetivos que fundamentaram
a elaboração da norma, cujo amparo é por ele buscado.
FRAUDE À LEI – De acordo com José Lois Estévez,12 a fraude à lei consiste
em mascarar a flagrante antijuridicidade de um suporte fático tipificado, modifi-
cando habilidosamente os seus vestígios empíricos, para que pareça indiferente ou
permitido pelo direito. Como sustenta Franco Gallo, a fraude à lei não se dá só em
relação às normas proibitivas, mas também em relação às imperativas condiciona-
das, como as normas tributárias.13
Assim, a conceituação de fraude à lei é aplicável ao direito tributário, obser-
vando-se apenas que o contribuinte não mascara a sua conduta por ela ser antiju-
rídica, mas por gerar o pagamento de tributo.

10 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 53.


11 No sentido do texto: TORRES, Ricardo Lobo (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário.
3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 149).
12 Fraude Contra Derecho. Madrid: Civitas, 2001, p. 188.
13 “Elisão, Economia de Imposto e Fraude à Lei”. Revista de Direito Tributário, 52: 7-18, p. 10.

293
Ricardo Lodi Ribeiro

Para Tulio Rosembuj,14 a fraude à lei é um ataque direto ao ordenamento jurídi-


co em seu conjunto, mediante a execução de um ato (ou de uma pluralidade deles) que
se concretiza ao amparo de uma norma de cobertura, na obtenção de um resultado
tipificado pela norma proibitiva ou imperativa, cuja aplicação se pretende evitar.
São requisitos para que seja caracterizada a fraude à lei: os atos devem ser rea-
lizados ao amparo do texto de uma norma; os atos realizados ao amparo do texto de
uma norma devem perseguir um resultado proibido pelo ordenamento ou contrá-
rio a ele (no caso do direito tributário, não há contrariedade ao ordenamento, mas
a conseqüência de pagar tributo); os atos executados em fraude à lei não devem
impedir a devida aplicação da norma que se tentou ocultar.15
Exemplo de fraude à lei tributária ocorre quando uma grande empresa que,
em função do volume de suas receitas, não pode se beneficiar de determinado regi-
me fiscal favorável às pequenas e médias empresas, promove diversas cisões, trans-
formando-se em várias empresas, sem contudo descaracterizar, na realidade, a uni-
dade empresarial. Não há qualquer óbice legal às cisões societárias, mas o contri-
buinte utiliza-se dessa possibilidade legal para gozar de benefício fiscal a que não
faz jus. Assim, sendo a prática abusiva, a partir da fraude à lei, tais cisões, podem,
em tese, ser desconsideradas para os fins de apuração de tributos.
ABUSO DE FORMA – Decorre o abuso de forma de previsão contida no
Código Tributário Alemão de 1919, que autorizava a autoridade administrativa a
desconsiderar o abuso no uso das formas jurídicas oriundas do direito privado.
Nesse caso, é permitido ao aplicador desenvolver considerações econômicas para a
interpretação da lei tributária e para o enquadramento do caso concreto, com base
no sentido da lei que transborda da sua literalidade.16 Segundo Falcão, para a apli-
cação da teoria do abuso de forma, é necessário que o contribuinte utilize-se de
uma forma jurídica atípica em relação ao fato econômico desejado.
Mas, na verdade, não basta apenas que a escolha da forma seja atípica, como
queriam os seguidores das teorias causalistas da consideração econômica do fato
gerador. É preciso que a escolha da forma seja abusiva; ou seja, que não haja moti-
vo razoável, além da economia fiscal, para a escolha daquela modalidade negocial.
Por outro lado, havendo descompasso nos elementos constitutivos do fato jurídico,
pode-se caracterizar o abuso, mesmo diante de uma formulação típica.
A realização do arrendamento mercantil antes da Lei nº 6.099/74 e da inclu-
são do item nº 52 da lista de serviços do ISS, fixada pela LC nº 56/87, constituía um
exemplo de utilização de um contrato atípico que poderia mascarar a realização de
uma compra e venda a prazo, quando o preço do bem fosse quase que inteiramen-

14 Op. cit., p. 38.


15 Ibidem, p. 30.
16 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4. ed. Anotada e atualizada por Geraldo
Ataliba. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 71.

294
Temas de Direito Constitucional Tributário

te diluído nas prestações, restando uma parcela insignificante para que o arrenda-
tário exercesse sua opção de compra, ao final do contrato. Hoje, com a tipificação
do contrato e de sua tributação pelo ISS, ainda há a possibilidade da elisão abusiva,
quando o leasing for utilizado como cobertura a uma compra e venda, dada a des-
proporção entre os valores do “arrendamento”, e o preço residual.
Com o exemplo citado, fica clara a grande proximidade entre as figuras da
fraude à lei e do abuso de forma, que muitas vezes se confundem. Poderiam as duas
situações ser extremadas pelo critério da atipicidade. É que no abuso de forma, na
visão de Falcão, haveria uma atipicidade na forma do negócio escolhido pelo con-
tribuinte. Já na fraude à lei, havendo, segundo a maioria dos autores,17 a necessida-
de de uma norma de cobertura, teríamos um outro negócio jurídico tipificado, a
dissimular o negócio jurídico efetivamente praticado no mundo econômico. No
entanto, reconhecemos que nem a atipicidade é requisito indissociável da teoria do
abuso de forma, e nem a existência de norma de cobertura é essencial à fraude à
lei,18 o que torna praticamente impossível a distinção entre as duas modalidades de
abuso de direito, constituindo a primeira uma subespécie da segunda.19
USO ABUSIVO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA – A teoria
da desconsideração da personalidade jurídica ou do disregard of legal entily, oriun-
da dos países da common law, e utilizada inicialmente no direito privado, autoriza
o levantamento do véu da personalidade da empresa a fim de atingir a substância
do negócio jurídico praticado pelos sócios. Estes, protegidos pela ficção legal da
autonomia da personalidade jurídica da empresa, praticam atos abusivos, fraude e
o descumprimento de obrigações contratuais ou legais.
A utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica das empre-
sas no direito tributário, já é uma realidade em vários países, especialmente na
Argentina, onde, ao amparo da Lei nº 11.683, a Corte Suprema a vem aplicando.20
No entanto, no Brasil, a utilização da teoria ainda esbarra no excesso de for-
malismo representado pela idéia de tipicidade fechada, e na exigência de lei expres-
sa autorizando a desconsideração da pessoa jurídica. A despeito da resistência dou-
trinária, a teoria foi consagrada no artigo 135 do CTN, que estabelece a responsa-
bilização pessoal dos sócios, administradores, dentre outros, nos casos de violação
da lei, do contrato social ou de ação com excesso de poderes. Assim sendo, consti-
tui exemplo da teoria do disregard of legal entily no direito tributário brasileiro a
responsabilização pessoal dos sócios pelos tributos devidos pela sociedade, em caso

17 Por todos, DE LA VEGA (Teoría, Aplicación, y Eficacia en las Normas del Código Civil, p. 232, apud
ROSEMBUJ, op. cit., p. 41).
18 Pela desnecessidade de uma norma de cobertura na fraude à lei, manifestam-se ESTÉVEZ, José Lois (Op.
cit., p. 189) e RODRIGUES, Silvio (Direito Civil, v. 1. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 222).
19 Registre-se que o próprio FALCÃO (Op. cit., p. 73) considerava ser o abuso de forma uma modalidade de
fraude à lei.
20 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação..., cit., p. 154.

295
Ricardo Lodi Ribeiro

de sua dissolução irregular, como já é reconhecido pacificamente pelos nossos tri-


bunais.21
VÍCIO NA INTENÇÃO NEGOCIAL – Por obra da jurisprudência, em países
como os EUA e a Inglaterra, e do legislador, como ocorre na Suécia, no Canadá e
na Austrália, desenvolveu-se a possibilidade de caracterizar a elisão abusiva quan-
do o contribuinte, se afastando de seu propósito negocial, busca obter a economia
fiscal. Assim, deve o fisco perquirir o objetivo negocial do ato jurídico apresentado
pelo contribuinte: o business purpose test.
Tal critério, de fato, que se mostra bastante útil na análise da vontade do con-
tribuinte, indispensável à configuração do abuso de direito, não pode, no entanto,
ser o único indício do caráter abusivo da elisão, pois a mera intenção de praticar
ato menos oneroso do ponto de vista tributário, não gera a sua ineficácia perante o
Fisco, se não estão presentes os outros requisitos da conduta abusiva, como a ina-
dequação entre o negócio jurídico escolhido e a fórmula jurídica adotada.
Sendo o business purpose test pressuposto das demais figuras, todos os exem-
plos expostos se prestam a sua exemplificação.

2.2.4) Abuso de Direito e Licitude

Para a caracterização do abuso de direito não é necessário que o negócio jurí-


dico seja ilícito à luz do direito civil. Assim, não é essencial que tenha sido pratica-
do com dolo, fraude ou simulação, ou que tenha havido sonegação fiscal. O negó-
cio pode ser perfeitamente válido e eficaz para as partes, mas não produzirá os efei-
tos tributários desejados pelo contribuinte, senão os relativos ao negócio que foi
dissimulado. É que o surgimento do fato gerador não depende da licitude, ou forma
ou dos efeitos produzidos pelo ato jurídico, mas da realidade econômica a ele sub-
jacente.22
Vale, a esse respeito, trazer o magistério de Amílcar Falcão: “(...) não é neces-
sário que o ato ou negócio privado em que se consubstancie o fato gerador seja nulo
ou anulável. Pelo contrário, pode tratar-se de um ato perfeitamente válido em
direito privado, como é o caso dos negócios indiretos, dos negócios fiduciários e dos
chamados abusos da forma jurídica (Missbrauch von Formen und
Gestaltungsmöglichkeiten dês bürgelichen Rechts): a interpretação com vistas à
realidade econômica, isto é, a cognominada interpretação econômica terá lugar,
para fins tributários.”23

21 STF, 2ª Turma, RE nº 110.597/RJ, Rel. Min. Célio Borja, DJU de 07/11/86, p. 21.561.
22 CTN, art. 118.
23 FALCÃO. Fato Gerador..., cit., pp. 84/85.

296
Temas de Direito Constitucional Tributário

Assim, é irrelevante, em relação à ocorrência do fato gerador, a discussão


entre os civilistas a respeito dos efeitos do ato abusivo,24 uma vez que a sua nulida-
de não é perquirida por ocasião da desconsideração, pela Fazenda Pública, do ato
abusivo praticado com o intuito de afastar o tributo.
De acordo com Nuno de Sá Gomes,25 tais negócios, “apesar de lícitos já não
integram o direito à poupança fiscal pois podem ser corrigidos pela Administração
Fiscal” por meio das cláusulas antielisivas.
Não dependendo o reconhecimento da elisão fiscal da ilicitude dos atos prati-
cados pelo contribuinte, sua conseqüência será traduzida na obrigação de pagar o
tributo e as parcelas oriundas da mora (juros e multa de mora), mas não envolve,
por si só, a imputação de sanção por infração formal.26

3) O Combate à Elisão e as Cláusulas Antielisivas

As cláusulas antielisivas se traduzem em dispositivos legais que auxiliam o


aplicador da lei, no combate à elisão praticada com abuso de direito, a partir da
autorização para que seja desconsiderada a forma abusiva adotada pelo contribuin-
te, na realização do negócio jurídico, caso esta não corresponda à finalidade da lei,
à vontade manifestada e aos efeitos normalmente verificados, e objetive, única ou
principalmente, a economia do imposto. Tais regras positivas evitam que o contri-
buinte, que se insere na realidade econômica do fato imponível, possa, pelo uso de
uma roupagem jurídica diferente daquela definida em lei como hipótese de inci-
dência, evitar o pagamento do tributo.

24 Para Fernando Cunha Sá (Op. cit., p. 626), o ato abusivo produz os mesmos efeitos que o ato ilícito, ou
seja, é passível de nulidade. No Brasil, Silvio Rodrigues (Op. cit., p. 315) considera que o abuso de direito
se enquadra no âmbito dos atos ilícitos, posição que restou consagrada no novo Código Civil Brasileiro (Lei
nº 10.406/2002, art. 187). Já Caio Mario da Silva Pereira extrema o ato ilícito do abuso de direito
(Instituições de Direito Civil, v. 1. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 468).
25 Evasão Fiscal, Infração Fiscal e Processo Penal Fiscal. 2. ed. Lisboa: Rei dos Livros, 2000, p. 78.
26 No sentido do texto, é indiscrepante a posição de tributaristas como ROSEMBUJ (Op. cit., p. 103),
GOMES, Nuno Sá (Op. cit., p. 78), GALLO, Franco (“Elisão, Economia de Imposto e Fraude à Lei”. Revista
de Direito Tributário 52: 7-18, 1990, p. 14) e AMORÓS RICA (“O Conceito de Fraude À Lei no Direito
Espanhol”. In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São
Paulo: Saraiva, 1984, p. 433), onde este autor noticia que, na Espanha, o Real Decreto nº 1.919/79 veda a
aplicação de penalidades em caso de reconhecimento de elisão abusiva. No direito alemão, a conseqüên-
cia do reconhecimento da elisão abusiva também se limita ao pagamento do tributo, sem a imposição de
sanções; no entanto, na França, o reconhecimento do abuso de direito gera a imposição de multa no valor
de 80% do valor do tributo devido, como informa ROSEMBUJ (Op. cit., pp. 364 e 369). No Brasil, a MP
nº 66/02, prescreve que o procedimento antielisivo não é aplicável em casos de dolo, fraude e simulação,
e exclui a imposição de multa de ofício, caso o contribuinte pague o tributo e os encargos moratórios após
o julgamento da representação que reconheça o abuso de direito (art. 17, § 2º, da MP nº 66/02). No entan-
to, caso o contribuinte não recolha o tributo em trinta dias da notificação desta decisão, haverá o lança-
mento do tributo e da multa de ofício (art. 18 da MP nº 66/02).

297
Ricardo Lodi Ribeiro

A justificação da norma antielisiva, que repousa na própria atividade abusiva


do contribuinte, como leciona Ricardo Lobo Torres, assim se expressa: “A elisão,
como lembra Paul Kierchhof, é sempre uma subsunção malograda (ein fehlgeschla-
gener Subsuntionsversuch), donde se segue que o combate ao abuso de direito, que
implica analogia disfarçada por parte do contribuinte terá sempre o aspecto da con-
tra-analogia. A subsunção malograda e a analogia forçada pelo contribuinte postu-
lam, em nome da igualdade, a norma geral antielisiva e contra-analógica.”27
Portanto, para a caracterização do abuso de direito, como já vimos, não se leva
em consideração apenas a identidade de efeitos entre a hipótese de incidência e a
conduta do contribuinte, como queriam os defensores radicais da teoria causalista
da interpretação econômica do fato gerador. Por outro lado, para configurá-lo,
também não há necessidade, como exigem os formalistas, de que o ato jurídico pra-
ticado pelo contribuinte, seja ilícito, vício que atinge o ato no plano da sua valida-
de. Basta que não haja conexão entre o motivo econômico e os efeitos produzidos
pelo ato, e a finalidade adotada pelo legislador ao tutelar aquela situação jurídica, a
partir do seu exercício abusivo, com vistas à economia fiscal. O fenômeno não é de
licitude do ato, mas sim, de sua eficácia perante o fisco.28

3.1) As Cláusulas Antielisivas no Direito Comparado

Nas últimas décadas do século XX, diversos países desenvolvidos introduzi-


ram, em seus ordenamentos, em cumprimento ao princípio da transparência fiscal,
normas tendentes a evitar o abuso de direito pelo contribuinte, em sua atividade de
planejamento fiscal. Tais normas – a despeito de suas distinções, muito mais refle-
tem peculiaridades da evolução da ciência jurídica em cada país, do que propria-
mente diferenças substanciais de método – já que se baseiam na teoria do abuso de
direito e espelham as várias espécies pelas quais ele se manifesta.
Na Alemanha, onde desde o Código Tributário de 1919 (art. 10) já se prescre-
via que a obrigação tributária não poderia ser evitada ou diminuída, mediante o
abuso de formas e das possibilidades oferecidas pelo direito civil, a elisão abusiva é
combatida pela teoria do abuso de forma. Segundo a doutrina alemã, na esteira de
Hensel, o abuso de forma é a manifestação no direito tributário da teoria da fraude
à lei.29 Tal situação não restou alterada pela promulgação do novo código tributá-
rio, em 1977, que em seu artigo 42 consagrou a teoria do abuso de forma. Para
Hensel, na configuração do abuso de forma devem ser observadas as circunstâncias

27 “A Chamada ‘Interpretação Econômica do Direito Tributário’, a Lei Complementar nº 104 e os Limites


Atuais do Planejamento Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário
e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 240.
28 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética,
1998, pp. 76/78.
29 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 370.

298
Temas de Direito Constitucional Tributário

objetivas, representadas pela anormalidade no exercício do negócio jurídico e pela


ausência de interesse legítimo a ampará-lo, e as subjetivas, vinculadas à vontade de
eliminar ou reduzir o montante devido.30 No entanto, parte da doutrina alemã31
considera tal cláusula dispensável, uma vez que tal providência, fundada na fraude
à lei, não é peculiaridade do direito tributário, sendo uma decorrência dos próprios
princípios gerais do direito.
Por sua vez, a Espanha adotou, no combate à elisão abusiva, a teoria da fraude
à lei, no art. 24 da Ley General Tributaria, com redação dada pela Ley 25/95, que
permite a desconsideração de fatos, atos ou negócios jurídicos realizados com o pro-
pósito de evitar o pagamento do tributo, amparando-se no texto de normas estabe-
lecidas com finalidade diversa, sempre que venham a produzir um resultado equi-
valente ao derivado da hipótese de incidência tributária. Recorde-se que a LGT
admite o uso da analogia no combate à fraude da lei fiscal, o que tem gerado certo
inconformismo de uma parcela, ainda que minoritária, da doutrina espanhola.32
Também adota a teoria da fraude à lei, como mecanismo de combate à elisão
abusiva, a Holanda que, através do art. 31 do Código de Impostos, coibiu a fraus
legis.33
Portugal, que não possuía cláusula geral antielisiva, introduziu, por meio da
Lei nº 100, de 1999, um item 2, ao artigo 38 da Lei Geral Tributária, consagrando
igualmente uma norma de combate à fraude à lei.34
De outro lado, a França adotou a repressão ao abuso de direito enquanto gêne-
ro, no art. 64 do Livre dês Procedures Fiscales, vedando que sejam opostos à admi-
nistração fiscal, atos que dissimulem a verdadeira compreensão de um contrato ou
de uma convenção. Com a desconsideração, cabe ao fisco requalificar os atos, con-
forme a previsão contida na hipótese de incidência. A doutrina francesa, seguindo
a orientação fixada pelo Conselho de Estado a partir de 1981, considera que expres-
são dissimulação, utilizada pelo art. 64 da LPF, é bem ampla, abarcando não só os
casos de evasão fiscal, mas também todas as modalidades do abuso de direito.35
A mesma sistemática foi adotada pela Bélgica, onde, em 1993, foi introduzida
cláusula antielisiva genérica, de inspiração francesa, coibindo o abuso de direito, e
desafiando a tradição formalista do direito tributário belga.36
A despeito da inexistência de norma antielisiva genérica, a Suíça, por influên-
cia da doutrina de Blumenstein, também aplica a doutrina do abuso de direito.37

30 Ibidem.
31 Nesse sentido TIPKE e LEHNER (apud TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação..., cit., p. 151).
32 SAINZ DE BUJANDA. Hacienda Y Derecho. Madrid: Institutos de Estudios Politicos, 1955, t. 4, p. 603.
33 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 363.
34 GOMES, Nuno de Sá. Op. cit., p. 77
35 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 367; e TORRES, Ricardo Lobo. “A Chamada Interpretação Econômica...”, cit., p.
243, nota 30.
36 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 376.
37 Ibidem, p. 377.

299
Ricardo Lodi Ribeiro

Segundo Höhn,38 o Tribunal Federal suíço exige para a configuração da elisão abu-
siva que a forma jurídica do ato se mostre inadequada para a operação econômica;
que a escolha do negócio tenha se dado apenas em razão da economia do imposto;
e que o procedimento escolhido represente uma considerável economia da exação.
Na Itália, também não há cláusula antielisiva geral, mas apenas regras especí-
ficas para determinados tributos. Não obstante, a doutrina majoritária defende o
combate à elisão abusiva, a partir da teoria da fraude à lei, extraída do artigo 1.344
do Código Civil italiano, como sustenta Fraco Gallo.39
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, países do sistema da common law, o com-
bate à elisão abusiva se faz por meio de construção pretoriana da teoria da inten-
ção negocial. Porém, se os dois sistemas apresentam bastante semelhança, possuem
também suas distinções. No sistema inglês, a partir das posições liberais de Lord
Tomlin, predominava a ampla possibilidade da elisão fiscal lícita (tax avoidance),
punindo-se apenas a ilícita (tax evasion). Houve, no entanto, uma grande virada,
na década de 80, com a prolação de decisões judiciais que, baseadas na doutrina
francesa do abuso do direito, constituíram relevante instrumento de luta contra a
elisão abusiva.40
Já nos Estados Unidos predomina a teoria do business purpose test, com o
exame, pela administração fiscal, da intenção negocial do contribuinte. Assim, se
os negócios jurídicos carecem de motivação econômica, senão à economia fiscal,
pode haver a requalificação pela Fazenda Pública. No sistema norte-americano pri-
vilegia-se, por um lado, a realidade econômica sobre a fórmula jurídica adotada;
por outro, procura-se respeitar a conservação dos contratos, em cumprimento ao
princípio da legalidade.41
A teoria da intenção negocial foi introduzida por obra do próprio legislador
na Suécia, na Austrália e no Canadá.42
Na Argentina, a elisão abusiva é combatida a partir da interpretação econômi-
ca do fato gerador, admitida pelo artigo 1º, da Lei nº 11.683/32,43 com todo o tem-
pero que o princípio da legalidade e a superação histórica das idéias causalistas exi-
gem. O artigo 2º da mesma lei consagra a teoria da desconsideração da personali-
dade jurídica da empresa, traduzindo-se numa verdadeira cláusula antielisiva,
baseada no abuso de direito.44

38 “Evasão do Imposto e Tributação segundo os Princípios do Estado de Direito”. In: Brandão Machado
(coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 285.
39 Op. cit., p. 9.
40 HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e Elisão – Rotas Nacionais e Internacionais do Planejamento Tributário.
São Paulo: Saraiva, 1997, p. 197.
41 ROSEMBUJ. Op. cit., p. 385.
42 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação ..., cit., pp. 160 e 161.
43 HUCK, Hermes Marcelo. Op. cit., p. 215.
44 TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação ..., cit., p. 17.

300
Temas de Direito Constitucional Tributário

Todos esses países, cada um por seu meio, e de acordo com sua tradição jurí-
dica, modificaram suas legislações ou consolidaram o trabalho profícuo da doutri-
na a da jurisprudência, no sentido de impedir o abuso de direito na atividade do
contribuinte, tendente a afastar ou reduzir o pagamento do tributo, por meio da
prática de um negócio jurídico que, a despeito de sua aparente não-incidência,
reflete a substância econômica inserida na norma legal como fato tributável, per-
mitindo à administração fiscal que os atos sejam requalificados e tributados, de
acordo com a previsão legal.
Ao seu turno, o Brasil, em que pese todo o formalismo da sua doutrina tribu-
tária, não restou incólume a essa onda moralizadora, introduzindo, pela Lei
Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, um parágrafo único ao artigo 116
do CTN, que consagrou uma cláusula geral antielisiva, inspirada na sistemática
francesa, baseada na teoria do abuso de direito.

4) As Cláusulas Antielisivas no Brasil

No Brasil, desde a década de 80, vinham sendo introduzidas cláusulas antieli-


sivas específicas na legislação do imposto de renda, como a Lei nº 7.450/85 e a Lei
nº 9.430/96. Porém, só em 2001, surgiu uma norma geral antielisiva, insculpida no
parágrafo único do artigo 116 do CTN.

4.1) A Cláusula Geral Antielisiva do Parágrafo Único do Artigo 116


do CTN

Dentro desse contexto internacional de estabelecimento de cláusulas antieli-


sivas pelas legislações tributárias, a Lei Complementar nº 104/2001 introduziu no
CTN um parágrafo único ao artigo 116.45
Como já vimos, a norma em questão, baseada na cláusula geral francesa, com-
bate o abuso de direito, em todas as suas modalidades como a fraude à lei, o abuso
de forma, o abuso na intenção negocial e o abuso no uso da personalidade jurídica
da empresa.46
É que o vocábulo dissimulação engloba também condutas como encobrir,
ocultar, disfarçar ou atenuar os efeitos de algum fato, em fazer parecer real o que
não é – traduzindo-se na expressão verbal do abuso de direito. Possui, portanto, tal

45 “Art. 116. ...


Parágrafo Único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos com a fina-
lidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da
obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
46 Nesse sentido: TORRES, Ricardo Lobo (“A Chamada Interpretação Econômica...”, p. 243), GRECO, Marco
Aurélio (“Constitucionalidade do Parágrafo Único...”, cit., p. 195) e ROLIM, João Dácio (“Considerações
sobre a Norma Geral Antielisiva...”, cit., p. 135).

301
Ricardo Lodi Ribeiro

palavra, um sentido bem mais amplo do que o de simulação contido no art. 102 do
Código Civil de 1916.
Por isso, não assiste razão àqueles que vêem no parágrafo único do artigo 116
do CTN uma inócua cláusula de combate à evasão fiscal, idéia que parte da confu-
são entre os conceitos de simulação e dissimulação.47
Contudo, o dispositivo em tela, a despeito de sua recente introdução no orde-
namento, já foi alvo de uma série de críticas da doutrina positivista formalista, que
considera ser inconstitucional a adoção de cláusula antielisiva no Brasil, em razão
do princípio da legalidade.48
No entanto, como já vimos ao longo desse trabalho, os princípios da legalida-
de e da tipicidade não são exclusividades da Constituição brasileira. Todos os paí-
ses que adotaram as cláusulas antielisivas também consagram a legalidade tributá-
ria. Negar a possibilidade constitucional da adoção de cláusulas antielisivas consti-
tui muito mais uma simplificação mistificadora do que, propriamente, o resultado
de uma construção científica no direito tributário.
Na verdade, a introdução da cláusula antielisiva em nosso ordenamento é
fruto da aplicação do valor da segurança jurídica em conjunto com o da justiça. A
segurança jurídica revela-se pela certeza da aplicabilidade das regras, e efetiva-se
pelo princípio da legalidade, dentro da perspectiva de que a obrigação tributária é
ex-lege, não resultando da vontade das partes. Assim, não é lícito ao contribuinte
que pratica o fato econômico, identificado pelo legislador como indicador de capa-
cidade contributiva, se livrar do pagamento do tributo por meio do abuso no exer-
cício do seu direito.
Portanto, torna-se fácil constatar que a norma antielisiva não viola o princí-
pio da legalidade, mas visa, antes de qualquer coisa, garantir o império da lei.
Também não prospera, pelas razões já apresentadas no decorrer deste estudo,
o argumento daqueles que enxergam na cláusula geral brasileira um recurso à ana-
logia. Vimos que o combate à elisão não se confunde com a analogia, uma vez que,
naquele caso, inocorre a aplicação de uma lei ao fato por ela não previsto, mas sim
a subsunção da própria lei tributária, cuja aplicabilidade ao caso foi ocultada pelo

47 Em sentido contrário ao do texto, entendendo o dispositivo como uma norma antievasão: TROIANELLI,
Gabriel Lacerda “O Parágrafo Único do Artigo 116 do Código Tributário Nacional como Limitador do
Poder na Administração”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei
Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 102.
48 Nesse sentido, entre outros, MARTINS, Ives Gandra da Silva (“Norma Antielisão é Incompatível com o
Sistema Constitucional Brasileiro” In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e
a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 123); MACHADO, Hugo de Brito (“A Norma
Antielisão e o Princípio da Legalidade – Análise Crítica do Parágrafo Único do do Art. 116 do CTN”. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 115); e COELHO, Sacha Calmon Navarro (“Os Limites Atuais do Planejamento
Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar
104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 304).

302
Temas de Direito Constitucional Tributário

contribuinte. Ainda que assim não fosse, restou claro que a integração analógica
não constitui uma violação à legalidade tributária, estando proibida somente pelo
CTN, e não pelo texto constitucional. Ora, se a analogia é vedada pela Lei nº
5.172/66, e o combate à elisão resvalasse para a analogia, a sua previsão pelo pró-
prio Código tem o condão de derrogar, em relação à matéria, a norma vedatória,49
a exemplo do que se dá com a Ley General Tributaria da Espanha, como também
já tivemos oportunidade de apreciar.
Indaga-se ainda se a aplicação da cláusula antielisiva é automática ou vai
depender da introdução da lei ordinária, que estabelecerá os procedimentos a
serem observados pela fiscalização. No caso, há que se considerar que, ocorrendo o
fato gerador, que é, no entanto, escamoteado por expedientes abusivos do contri-
buinte, é imperiosa a tributação com base no ato dissimulado, independentemente
da lei ordinária prevista no parágrafo único, do art. 116 do CTN, que deverá regu-
lar, por meio de procedimentos a serem adotados, a forma pela qual a autoridade
irá afastar a dissimulação.
Afinal, conforme vimos no estudo do combate à elisão no direito comparado,
a aplicação da teoria do abuso de direito à elisão fiscal não prescinde de um dispo-
sitivo explícito, derivando dos princípios gerais do direito civil, como os da proibi-
ção do abuso e da boa-fé, e dos princípios constitucionais tributários da legalidade,
da igualdade e da capacidade contributiva.
Embora a introdução da norma no direito brasileiro não seja supérflua, espe-
cialmente numa cultura extremamente formalista, onde a eficácia dos valores e
princípios está condicionada à sua previsão pelo legislador, por meio de regras – e
até muito pelo contrário, uma vez que a administração tributária foi dotada de
importante arcabouço legislativo para coibir o planejamento fiscal abusivo –, é for-
çoso reconhecer que o combate a este não depende da regulamentação da lei.50
Registre-se que o dispositivo em tela constitui o típico caso de norma de efi-
cácia contida, de aplicabilidade imediata e direta, na clássica definição de José
Afonso da Silva,51 também aplicável aos dispositivos de lei complementar.
A função da referida lei ordinária será a de estabelecer um procedimento
para a desconsideração do ato praticado pelo contribuinte e a sua requalificação,
pressupostos para a tributação, conforme a previsão legal contida na hipótese de
incidência.

49 Nesse sentido: TORRES, Ricardo Lobo (Normas de Interpretação..., cit., p. 244). Também defendendo que
as cláusulas antielisivas constituem exceção à vedação ao recurso da analogia: LEHNER, Moris (apud
TORRES. Ibidem, p. 151).
50 Em sentido contrário ao do texto GRECO, Marco Aurélio (“Constitucionalidade do Parágrafo Único...”,
cit., p. 202).
51 Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 116.

303
Ricardo Lodi Ribeiro

4.2) A Ausência de Regulamentação da Cláusula Geral Antielisiva

Com a edição da Lei Complementar nº 104/01, que introduziu em nosso orde-


namento jurídico a cláusula geral antielisiva no parágrafo único do art. 116 do CTN,
a maior parte da doutrina procurou desqualificar a adoção da nova medida como vio-
ladora da legalidade tributária,52 o que acabou resultando na rejeição pelo Congresso
Nacional da MP nº 66, que pretendia regulamentar a medida. Porém, a despeito da
sua não-regulamentação, é forçoso reconhecer que a prática da elisão abusiva já não
vem mais sendo tolerada pela jurisprudência administrativa brasileira.53
É que os debates doutrinários com a edição da LC nº 104/01 revelaram não ser
mais possível admitir a adoção de práticas abusivas na elisão fiscal, sob o manto de
uma legalidade de se restringia ao plano formal.
No entanto, a ausência de regulamentação da lei complementar, deixou o con-
tribuinte sem a garantia de um procedimento prévio ao lançamento, que pudesse ser
marcado pelo contraditório e pela ampla defesa, a fim de promover uma discussão
sobre a natureza abusiva ou não da conduta do contribuinte, que pudesse ser deci-
dido por outra autoridade que não aquela encarregada de efetuar o lançamento.
Com a introdução da cláusula antielisiva e a rejeição parlamentar da regula-
mentação, as autoridades fiscais passaram a combater o abuso de direito sob o pálio
da simulação. Assim, a exemplo do que ocorrera na Espanha, o fisco passou a não
mais ter interesse na regulamentação da cláusula antielisiva, pois passou a comba-
ter a elisão abusiva pelos mecanismos normais da ilicitude, no âmbito do procedi-
mento do lançamento.

5) Conclusões

01) Modernamente estão superadas as escolas que tornam absoluta a vedação


à elisão fiscal, bem como a admissão desta como um direito constitucio-
nal do contribuinte, sendo admissíveis as cláusulas antielisivas.

52 Por todos, vide MARTINS, Ives Gandra da Silva (“Norma Antielisão é Incompatível com o Sistema
Constitucional Brasileiro” In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei
Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 123); MACHADO, Hugo de Brito (“A Norma Antielisão
e o Princípio da Legalidade – Análise Crítica do Parágrafo Único do do Art. 116 do CTN”. In: ROCHA,
Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética,
2001, p. 115); e COELHO, Sacha Calmon Navarro (“Os Limites Atuais do Planejamento Tributário”. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 304). Para o estudo das várias posições doutrinárias sobre a introdução do instrumento
em nosso direito tributário, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p.
162-170.
53 Como exemplificação, vide acórdãos do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda,
proferidos pela 1ª Câmara, nos Recursos nos 150.450 (j. 01/03/07), 145.171 (j. 24/05/06), 151.995 (j.
29/03/07), e 142.607 (j. 23/03/05) e pela 7ª Câmara no Recurso nº 137.256 (j. 14/04/04).

304
Temas de Direito Constitucional Tributário

02) A elisão abusiva viola o valor da justiça, bem como os princípios da igual-
dade e da capacidade contributiva, obrigando o Estado a criar tributos
que, independentemente de revelarem capacidade contributiva, não são
passíveis de planejamento fiscal.
03) A elisão fiscal que deve ser afastada é a prática abusiva, baseada na dissi-
mulação do fato gerador, que não pressupõe necessariamente a prática de
ato ilícito como ocorre na simulação.
04) O combate à elisão abusiva efetiva-se por meio da interpretação aberta
aos valores, da utilização da teoria do abuso de direito e das cláusulas
antielisivas.
05) O abuso de direito ocorre quando o contribuinte lança mão de uma
norma com intenção não adequada à sua finalidade. Os requisitos para a
sua configuração são: a) exercício de um direito previsto em determina-
do dispositivo legal; b) caráter antijurídico do exercício; c) dano causado
a direito de terceiro.
06) Ocorre a elisão abusiva quando há: a) desarmonia entre a forma do ato e
a finalidade da lei que o ampara ou entre a vontade e os efeitos do negó-
cio jurídico; b) intenção elisiva como única ou preponderante motivação
do negócio; c) identidade ou semelhança entre os efeitos econômicos do
fato gerador e do negócio praticado pelo contribuinte; d) proteção for-
mal do ordenamento ao ato praticado; e) economia fiscal.
07) O abuso de direito não se confunde com a simulação, pois nesta os atos
são fictícios e não queridos pelo contribuinte, que oculta a verdade; já no
abuso de direito, o negócio é sério e real, e é praticado com o intuito de
burlar uma norma proibitiva ou imperativa.
08) A dissimulação é a expressão verbal das condutas que dão origem ao
abuso de direito, e engloba a fraude à lei, o abuso de forma, a desconsi-
deração da personalidade jurídica e o teste da intenção negocial.
09) No abuso de direito não há, necessariamente, uma ilicitude, uma vez que
a ocorrência do fato gerador não depende da validade formal do ato jurí-
dico; o que ocorre é a ineficácia do ato em relação ao fisco.
10) Em conseqüência, o simples reconhecimento de elisão abusiva não auto-
riza a imposição de penalidade pecuniária.
11) O combate à elisão abusiva vem, em diversos países, sendo levado a efei-
to por meio das cláusulas antielisivas, cuja configuração legal, embora
varie de acordo com a tradição jurídica de cada ordenamento, não apre-
senta distinções metodológicas significativas.
12) O Brasil, por meio do parágrafo único, do art. 116 do CTN, introduzido
pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, adotou o mode-
lo francês, ao eleger uma fórmula ampla de combate ao abuso de direito,
o que é revelado pela utilização da expressão dissimulação, contida no

305
Ricardo Lodi Ribeiro

referido dispositivo pátrio, que engloba as modalidades de fraude à lei,


abuso de forma, desconsideração da personalidade jurídica e o teste da
intenção negocial.
13) A cláusula geral antielisiva brasileira é compatível com a Constituição
Federal, uma vez que não fere o princípio da legalidade e não autoriza a
utilização da integração analógica. Ainda que resvalasse na analogia, tal
cláusula constituiria uma exceção legítima ao artigo 108, § 1º, do CTN.
14) A cláusula geral antielisiva é auto-aplicável, cabendo à lei ordinária
apenas a previsão do procedimento a ser adotado pela fiscalização para
o reconhecimento da elisão abusiva. Enquanto não editadas tais leis, as
entidades federativas podem reconhecer a elisão abusiva no lançamen-
to, desde que já tenham regulado em lei o procedimento administrati-
vo fiscal.
15) A rejeição pelo Congresso Nacional da MP nº 66/02 não impediu que a
fiscalização combata a elisão abusiva por meio dos mecanismos tradicio-
nais da ilicitude, no âmbito da própria atividade de lançamento, o que
vem causando graves prejuízos aos direitos dos contribuintes.

306
XVII
A Natureza Interpretativa do Art. 129 da Lei nº
11.196/05 e o Combate à Elisão Abusiva na Prestação
de Serviços de Natureza Científica,
Artística e Cultural
Sumário: 1) Introdução. 2) A Prestação de Serviços Científicos, Artísticos e Culturais e a
Tutela Trabalhista. 3) O Combate à Elisão Abusiva e seus Limites. 4) O Art. 129 da Lei nº
11.196/05: Legitimidade, Alcance e Aplicação. 5) Conclusão.

1) Introdução

Com a edição da Lei nº 11.196/05, originada da conversão em lei da Medida


Provisória nº 255 (a MP do Bem), foi introduzido no ordenamento jurídico um dis-
positivo cuja interpretação e aplicação estão causando grande divergência na dou-
trina, gerando insegurança quanto ao alcance do seu campo normativo, seja do
ponto de vista material, seja no seu aspecto temporal.
A polêmica em torno do tema deve-se ao pano de fundo envolvido na ques-
tão: o planejamento tributário na prestação de serviços de natureza científica, artís-
tica ou cultural exercido por profissionais liberais, artistas e intelectuais, que bus-
cam na organização da sua atividade em pessoas jurídicas um mecanismo para
minorar a avantajada carga tributária incidente sobre as faixas mais altas de remu-
neração das pessoas físicas no Brasil.
Até a edição da norma em comento, a fiscalização tributária e previdenciária,
hoje unificadas no plano federal na Secretaria da Receita Federal do Brasil, vinha
promovendo a desconsideração da personalidade jurídica das empresas, com o
objetivo de exigir o imposto de renda pessoa física e a contribuição previdenciária,
como se tais prestadores fossem pessoas físicas autônomas ou empregadas. Tal pro-
cedimento vinha sendo realizado sob o fundamento do combate à elisão fiscal abu-
siva, na esteira da introdução no direito tributário pátrio da cláusula geral antieli-
siva estabelecida pela Lei Complementar nº 104/01, que introduziu o parágrafo
único ao art. 116 do Código Tributário Nacional.
A análise dessa conduta pelas autoridades fiscais e a natureza dos serviços
prestados constituem pressuposto para o exame da legitimidade, do alcance e da
aplicabilidade do art. 129 da Lei nº 11.196/05, o que constitui objeto desse estudo.

307
Ricardo Lodi Ribeiro

2) A Prestação de Serviços Científicos, Artísticos e Culturais e a


Tutela Trabalhista

Toda a análise da questão a respeito da suposta abusividade do planejamento


fiscal praticado pelos prestadores de serviço científicos, artísticos e culturais tem
partido da premissa, pelo menos na prática fiscalizatória, de que a tutela do direito
do trabalho é universalmente garantida a todas as pessoas físicas que prestam one-
rosamente serviços com exclusividade a uma mesma pessoa jurídica, em determi-
nados horários pré-fixados, com a assunção de determinadas obrigações para o
prestador. Tal entendimento, muito em voga no auge na Sociedade Industrial,
começa a perder espaço na Sociedade Pós-Industrial,1 onde a maioria da população,
especialmente nos países de economia periférica, não possui vínculos trabalhistas
com uma determinada empresa.
No entanto, nos dias atuais, é forçoso reconhecer que a tutela trabalhista, con-
quista do Estado Social, não se apresenta mais como benefício ao prestador de ser-
viço de renda mais alta. Ao contrário, dada a onerosidade da carga tributária sobre
os rendimentos assalariados, o que se estabelece não só pela tributação no imposto
de renda da pessoa física, mas pela exigência de contribuições previdenciárias des-
contadas do salário do próprio trabalhador, bem como de uma penca de tributos a
desfigurar a folha de salários das empresas. A folha de salários é onerada pela con-
tribuição previdenciária dos empregadores, pelo SAT, pelo FGTS, pelas diversas e
cumulativas contribuições ao sistema S (cada empresa paga a diversos serviços
autônomos independentemente de qualquer referibilidade entre a sua atividade e
os benefícios oferecidos pela entidade), pelo salário-educação etc. Como a realida-
de brasileira deixa evidente, em patamares um pouco mais altos de remuneração,
que geralmente são encontrados na prestação de serviços científicos, artísticos e
culturais, a tutela estatal não representa qualquer atrativo para o trabalhador, redu-
zindo a remuneração de sua atividade profissional a menos da metade do montan-
te disponibilizado pelo tomador do serviço para a retribuição do labor. A manuten-
ção da universalidade da proteção trabalhista nos termos atuais vem se mostrando
cara e inexeqüível para uma sociedade que não mais suporta a carga fiscal atual-
mente verificada, e, por isso, é contrária aos interesses da maioria dos trabalhado-
res brasileiros que não tem acesso a essas conquistas, mas que é chamada a custeá-
las. Acreditar que o Estado ou as empresas são as entidades que financiam esse sis-
tema é acreditar em almoço-grátis, o que já se viu, não existe, pois é a remunera-
ção do trabalhador que sustenta todo o sistema, cujos benefícios nem sempre lhes
são dirigidos. Se o custo é certo, o benefício cada vez mais duvidoso.

1 Sobre os conceitos de Sociedade Industrial e Pós-Industrial, vide: MASI, Domenico de. A Sociedade Pós-
Industrial. Vários Tradutores. 4. ed., São Paulo: Senac, 2003.

308
Temas de Direito Constitucional Tributário

Não são poucas as vozes que procuram justificar a pesada contribuição dos tra-
balhadores mais bem remunerados e que não recebem os correspondentes benefí-
cios estatais, no princípio da solidariedade social, a fim de promover o atendimen-
to das prestações estatais positivas para a maioria dos trabalhadores que depende da
tutela estatal. Porém, se a solidariedade constitui valor legitimador de todo o orde-
namento jurídico, não se confunde com uma autorização constitucional para a cria-
ção de tributos, senão por meio da solidariedade de grupo, revelada pela relação
que une o grupo dos que pagam e o grupo dos que contribuem, tal como ocorre na
contribuição previdenciária devida pelos empregadores, a custear a seguridade
social de seus empregados.2
Por outro lado, cumpre destacar que as características da prestação de servi-
ços científicos, artísticos e culturais quase sempre passam bem ao largo da subordi-
nação característica da relação de emprego, uma vez que tais atividades, em geral,
são fruto do espírito livre do prestador, que não é fiscalizado quanto à execução do
trabalho, que não se dobra a um acompanhamento técnico do tomador, mas que é
controlado pelo seu resultado.
Ainda que assim não fosse, deve-se destacar que as expressões que o legislador
tributário utiliza a partir de uma definição anterior do direito trabalhista não têm,
necessariamente, o mesmo sentido nas duas searas da ciência jurídica. É que, como
destaca Beisse,3 a interpretação da lei tributária, a partir de conceitos definidos por
outros ramos do direito segue três princípios:

a) Conceitos econômicos de direito tributário criados pelo legislador tributá-


rio, ou por ele convertidos para os seus objetivos, devem ser interpretados
segundo critério econômico. É exemplo desta modalidade em nossa legisla-
ção pátria a expressão renda e proventos de qualquer natureza, que não é
encontrada no direito civil, sendo inteiramente delineada pelo legislador
tributário, na Constituição Federal, no CTN, e na legislação ordinária.
b) Conceitos extraídos de outros ramos, como o direito civil, o societário ou o
trabalhista, devem ser interpretados, dentro do sentido literal possível, eco-
nomicamente, quando o objetivo da lei tributária impõe, de forma objeti-
vamente justificada, um desvio do conteúdo do conceito de direito privado
ou social, em nome do princípio da igualdade, que poderia ser violado por

2 Sobre o tema da solidariedade social como idéia legitimadora do ordenamento jurídico, mas não como
autorização constitucional para a cobrança de contribuições exóticas, que não guardam a referência ao
grupo, vide: TORRES, Ricardo Lobo. “Existe Um Princípio Estrutural da Solidariedade”, in: GRECO,
Marco Aurélio e GODOI, Marciano Seabra. Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética,
2005, pp. 198-207.
3 BEISSE, Heinrich. “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente
Jurisprudência Alemã.” In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa
Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, pp. 21-23.

309
Ricardo Lodi Ribeiro

meio de uma interpretação civilística da expressão legal. Serve como exem-


plo a expressão empregadores, contida no artigo 195 da Constituição
Federal, para definir os contribuintes das contribuições da seguridade
social, que não tem a concepção do direito do trabalho, abarcando empre-
sas que não mantêm empregados próprios.4
c) Conceitos obtidos nos outros ramos do direito devem ser interpretados de
acordo com a definição contida na legislação não-tributária quando, confor-
me o sentido e o objetivo da lei tributária, se tem certeza de que o legislador
cogitou exatamente do conceito de direito privado ou social. Da mesma
forma quando o sentido literal possível da norma tributária não confere
outra possibilidade senão aquela oferecida pela lei civil ou trabalhista. A
definição do fato gerador do ITR constitui exemplo bem ilustrativo dessa
categoria jurídica. De fato, do próprio texto da lei, se extrai que será tribu-
tada a propriedade imóvel por natureza, conforme definida na lei civil.5

Como é sabido, o objetivo da lei de incidência é a identificação da manifesta-


ção de riqueza capaz de suportar determinado quinhão do custeio das despesas
públicas. Deste modo, mais do que a forma jurídica adotada, o operador do direito
tributário deve se preocupar com a essência econômica efetivamente praticada.
Não é outra a posição de Tipke: “Juristas não raro se equivocam, no direito tribu-
tário, quando tomam por bem tributável o pressuposto técnico-jurídico, em lugar
do pressuposto econômico-tributário.”6
Portanto, num sistema jurídico orientado por valores, e donde deriva a con-
seqüente necessidade de o intérprete evitar contradições valorativas, a acepção
econômica há que prevalecer, em caso de dúvida, sobre a interpretação civilística
ou trabalhista. A essa afirmação não deve ser oposto o princípio da unidade da
ordem jurídica, uma vez que esta não é realizada pelo primado do direito civil.7
Ademais, a idéia de unidade do sistema jurídico repousa muito mais no plano axio-
lógico do que no lingüístico, não havendo, portanto, qualquer óbice para que deter-
minada palavra tenha um sentido diferente no direito tributário.8
Por esses motivos, pretender aplicar os conceitos do direito do trabalho, em
especial os requisitos para a caracterização da relação de emprego, como critério
para a aferição da incidência tributária sobre a prestação de serviços, com o afasta-

4 No sentido do texto foi a interpretação autêntica do dispositivo pela EC nº 20/98, que equiparou aos
empregadores às empresas e entidades assemelhadas.
5 Artigo 29 do Código Tributário Nacional.
6 TIPKE, Klaus. “Princípio da Igualdade e a Idéia de Sistema no Direito Tributário”. In: Brandão Machado
(coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 522.
7 BEISSE, Heinrich. “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente
Jurisprudência Alemã”, p. 37.
8 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 123.

310
Temas de Direito Constitucional Tributário

mento da personalidade jurídica das empresas de serviços científicos, artísticos e


culturais, e a cobrança de tributos incidentes sobre a remuneração, resvala para a
subordinação do direito tributário aos valores que são caros ao direito laborial, mas
que pouco se identificam com o custo-benefício, que rege as contribuições sociais
e à capacidade contributiva, fundamento dos impostos, como o IR, e a realidade
econômica, onde, de acordo com a autonomia da vontade, os prestadores de servi-
ços, considerando inclusive (mas não exclusivamente) os aspectos fiscais, resolvem
organizar empresarialmente a sua atividade profissional.

3) O Combate à Elisão Abusiva e seus Limites

O afastamento da personalidade jurídica das empresas prestadoras de serviço


quase sempre encontra como fundamento o combate à elisão tributária abusiva, a
partir do entendimento de que os prestadores de serviços, ao apresentarem-se
como pessoas jurídicas, estariam cometendo abuso da forma jurídica empregada.
Deste modo, é indispensável examinar os limites da atuação da autoridade adminis-
trativa no combate à elisão abusiva.
Com a edição da Lei Complementar nº 104/01, que introduziu em nosso
ordenamento jurídico a cláusula geral antielisiva no parágrafo único do art. 116
do CTN, a maior parte da doutrina procurou desqualificar a adoção da nova
medida como violadora da legalidade tributária,9 o que acabou resultando na
rejeição pelo Congresso Nacional da MP nº 66, que pretendia regulamentar a
medida. Porém, a despeito da sua não-regulamentação, é forçoso reconhecer que
a prática da elisão abusiva já não vem mais sendo tolerada pela jurisprudência
administrativa brasileira.10
No entanto, para não acabar tributando fora dos parâmetros da legalidade, é
preciso compreender as distinções entre a elisão abusiva, que pode ser objeto de
desconsideração pela autoridade administrativa, e a elisão eficaz, baseada em atos
que devem ser prestigiados pelo Estado.

9 Por todos, vide MARTINS, Ives Gandra da Silva (“Norma Antielisão é Incompatível com o Sistema
Constitucional Brasileiro” In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei
Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 123); MACHADO, Hugo de Brito (“A Norma
Antielisão e o Princípio da Legalidade – Análise Crítica do Parágrafo Único do do Art. 116 do CTN”. In:
ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 115); e COELHO, Sacha Calmon Navarro (“Os Limites Atuais do Planejamento
Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar
104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 304). Para o estudo das várias posições doutrinárias sobre a introdu-
ção do instrumento em nosso direito tributário, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e
Elisão Tributária, pp. 162-170.
10 Como exemplificação, vide acórdãos do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda,
proferidos pela 1ª Câmara, nºs Recursos nºs 150.450 (j. 01/03/07), 145.171 (j. 24/05/06), 151.995 (j.
29/03/07), e 142.607 (j. 23/03/05) e pela 7ª Câmara no Recurso nº 137.256 (j. 14/04/04).

311
Ricardo Lodi Ribeiro

Como já tivemos oportunidade de destacar,11 para a caracterização da elisão


abusiva, devem estar presentes, conjuntamente, os seguintes requisitos:

– prática de um ato jurídico, ou um conjunto deles, cuja forma escolhida não


se adapta à finalidade da norma que o ampara, ou à vontade e aos efeitos
dos atos praticados esperados pelo contribuinte;
– intenção, única ou preponderante, de eliminar ou reduzir o montante de
tributo devido;
– identidade ou semelhança de efeitos econômicos entre os atos praticados e
o fato gerador do tributo;
– proteção, ainda que sob o aspecto formal, do ordenamento jurídico à forma
escolhida pelo contribuinte para elidir o tributo;
– forma que represente uma economia fiscal em relação ao ato previsto em
lei como hipótese de incidência tributária.

No primeiro requisito, há que pesquisar se existe harmonia entre a vontade do


contribuinte, o objeto negocial e os efeitos que são próprios ao negócio jurídico
praticado, com a forma jurídica manifestada. Mesmo nos negócios de forma livre,
há que se inquirir se o seu objeto está adequado à relação jurídica que o contribuin-
te espera criar, modificar ou extinguir. Analisa-se também se os efeitos por ele
esperados são os normalmente obtidos pela fórmula jurídica utilizada e consagrada
pela lei. Ausente essa harmonia entre a vontade e a lei que tutela o negócio decla-
rado, este, como sustenta Luís Cabral de Moncada, resta ineficaz.12
O segundo requisito é revelado pela intenção predominante no negócio jurí-
dico. Se a economia fiscal foi a principal razão para a escolha daquela fórmula, em
detrimento da prevista na hipótese de incidência, é possível a utilização da teoria
do abuso de direito.
Observe-se, porém, que, ao contrário do que defendiam os seguidores das teo-
rias causalistas da consideração econômica do fato gerador, só há que se falar em
elisão abusiva enquanto a economia do imposto for a motivação determinante da
conduta, e não uma mera conseqüência.13

11 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, pp. 145-148.


12 De acordo com o civilista lusitano, a “eficácia se acha fundamentalmente dependente da conformidade
ou harmonia entre a vontade na sua manifestação e a lei. É justamente essa conformidade ou harmonia
entre vontade e lei que nos deu a noção de ato ou negócio jurídico. Se uma tal conformidade existe, diz-
se do ato ou da vontade que eles são juridicamente eficazes e válidos. Se tal conformidade se não dá, diz-
se que eles não são válidos ou são ineficazes. A validade e a eficácia de que aqui falamos, não são produ-
to exclusivamente da vontade, nem exclusivamente da lei, mas da colaboração das duas na realização do
direito” (MONCADA, Luís Cabral. Lições de Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 706).
13 ROSEMBUJ, Tulio. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario.
2. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 103.

312
Temas de Direito Constitucional Tributário

Em relação ao terceiro requisito, há que se verificar a similitude entre os efei-


tos do ato escolhido pelo contribuinte como cobertura e o fato gerador legal. Caso
contrário, não se verifica a manifestação de riqueza escolhida pelo legislador como
signo de manifestação de riqueza, violando-se o princípio da capacidade contributi-
va. Neste caso temos a economia fiscal eficaz, e não a elisão abusiva. A similitude é
da essência da elisão abusiva, uma vez que o contribuinte promove uma analogia às
avessas,14 procurando um fato que tenha os mesmos efeitos econômicos, mas que
não seja tributado na mesma proporção, para mascarar a ocorrência do fato gerador.
É essencial também, para a caracterização do abuso de direito – e é nisso em
que consiste o quarto requisito –, que a fórmula utilizada pelo contribuinte para
ocultar a ocorrência do fato gerador seja, se analisada de per se, lícita. Conforme
adverte Tulio Rosembuj,15 citando Cipollina, só há que se falar em elisão fiscal
quando os meios jurídicos implicados na configuração do fato imponível se inse-
rem, de forma irreprochável, sob a égide do direito positivo estrito. Caso o contri-
buinte utilize-se da simulação, da sonegação ou da fraude na caracterização do
suporte fático, não se fala de elisão, mas de evasão fiscal.
Por último, mas não menos importante, aparece como quinto requisito a eco-
nomia fiscal representada pela diferença a maior entre o pagamento do imposto na
forma do fato gerador previsto em lei e o negócio escolhido pelo contribuinte. Sem
esse requisito, não há o dano à Fazenda Pública, pressuposto para a aceitação do
abuso de direito na teoria geral da ciência jurídica.
Como se vê, independentemente da discussão sobre a necessidade de regula-
mentação da cláusula antielisiva para o combate a elisão abusiva, discussão que foi
atropelada pela jurisprudência administrativa federal,16 que a despeito de não fazer
expressa referência ao parágrafo único do art. 116, não considera eficaz a elisão pra-
ticada com abuso de direito.
Porém, deve-se advertir, que, com ou sem aplicação da cláusula antielisiva, a
desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa, com o fito de tributar
a pessoa física dos sócios, só pode se dar se atendidos, de forma cumulativa, os re-
quisitos para o reconhecimento da elisão abusiva, conforme anteriormente expos-
to, sob pena da tributação violar os princípios da capacidade contributiva e da lega-
lidade, pela extrapolação da regra de incidência estabelecida pelo legislador.
Como é comum aos momentos de transição, a passagem de um modelo tribu-
tário alicerçado na tipicidade fechada e no amplo espaço para qualquer elisão que
não se escorrace na prática de um ato ilícito, para um sistema aberto onde é possí-

14 TORRES, Ricardo Lobo. “A Chamada ‘Interpretação Econômica do Direito Tributário’, a Lei Comple-
mentar nº 104 e os Limites Atuais do Planejamento Tributário”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira
(Coord.). O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 240.
15 ROSEMBUJ, Tulio. El Fraude de Ley, La Simulación, y El abuso de Las Formas en Derecho Tributario,
p. 102.
16 Vide decisões citadas na nota nº 10.

313
Ricardo Lodi Ribeiro

vel a desconsideração do ato praticado com abuso de direito,17 a partir da dissimu-


lação do fato gerador por um ato que não se traduza necessariamente em sonega-
ção, fraude ou simulação, não se fez sem exageros por parte dos aplicadores do
direito. Esses exageros muito se devem à insistência da doutrina formalista em
recusar qualquer mecanismo de combate à elisão tributária, em detrimento da pes-
quisa dos limites à atuação da autoridade administrativa nessa tarefa.
Tais exageros muitas vezes se fizeram presentes na sistemática desconsidera-
ção da personalidade jurídica das empresas prestadoras de serviço, máxime quando
presentes algumas das características da relação empregatícia, como a habitualida-
de, o contrato exclusivo com um só tomador de serviço e a remuneração fixa.
Portanto, partindo de premissas caras ao direito do trabalho, a fiscalização acabou
por desprezar os citados requisitos necessários, à luz dos princípios constitucionais
tributários, para a configuração da elisão abusiva.
De fato, não há por parte da fiscalização, ao desconsiderar a empresa prestado-
ra de serviços, qualquer preocupação em pesquisar se houve a prática de atos abusi-
vos na criação da pessoa jurídica, mas apenas verificar a existência da economia do
imposto. Na verdade, longe de revelar abuso pelo descompasso entre os elementos
constitutivos do negócio jurídico, a criação da pessoa jurídica, ainda que de peque-
no porte, é medida que adequa-se plenamente à realidade econômica. Como vimos
anteriormente, a criação de uma pessoa jurídica por um prestador de serviços cien-
tíficos, artísticos e culturais vai muito além de um mero planejamento fiscal, mas se
revela como a forma mais adequada ao desempenho da uma atividade livre, desen-
volvida com autonomia em relação ao tomador de serviço, onde o conhecimento e
criatividade do prestador não podem ser controlados pelo contratante.
Procurar a tributação fora dos sentidos oferecidos pela lei, apenas buscando a
identidade dos efeitos econômicos entre o ato praticado pelo contribuinte e a hipó-
tese de incidência tributária é, afastando-se da moderna doutrina pós-positivista,
retornar à teoria da interpretação econômica do fato gerador, tão cara aos causalis-
tas da primeira metade do século XX, mas rejeitada nos dias atuais, mesmo nos regi-
mes que não adotam a teoria da tipicidade fechada.
Para evitar tais exageros hermenêuticos, o art. 129 da Lei nº 11.196/05 estabe-
leceu a seguinte disciplina:

“Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelec-


tuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter per-
sonalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios

17 Embora o Código Civil de 2002 (art. 187) tenha equiparado, quanto à invalidade dos efeitos, o ato ilíci-
to ao abuso de direito, é forçoso reconhecer que ainda sobrevivem distinções quanto aos seus elementos
formadores. Sobre o tema, com a distinção entre a dissimulação abusiva e a simulação ilícita, vide:
RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 148.

314
Temas de Direito Constitucional Tributário

ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realiza-


da, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem pre-
juízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro
de 2002 – Código Civil.”

Tal dispositivo se insere na regulação da elisão tributária, não no âmbito da


cláusula geral antielisiva, mas na disciplina da elisão específica a uma determinada
operação.
Nesse particular, não são oferecidas pelo legislador apenas regras que, aumen-
tando o espaço de tributação, fecham as brechas para a elisão. Mas também normas
que, em determinada situação específica, promovam a contenção da ação fiscal. É
que cada cláusula antielisiva específica é fruto da ponderação legislativa entre a
legalidade e a capacidade contributiva. É natural que o exame de ponderação entre
os dois interesses nem sempre privilegie a interpretação que a fiscalização vinha
adotando.

4) O Art. 129 da Lei nº 11.196/05: Legitimidade, Alcance


e Aplicação

Como vimos, a introdução do art. 129 na Lei nº 11.196/05 nada mais represen-
tou do que a inserção no nosso ordenamento jurídico de uma cláusula antielisiva
específica, a partir da ponderação de interesses entre a legalidade e a capacidade
contributiva, estabelecendo uma solução que se adequa ao regime constitucional tri-
butário brasileiro, cuja fase de legitimação é também marcada pela ponderação entre
a segurança e a justiça fiscal, e que fundamenta um sistema onde os dois interesses
sejam reconhecidos de forma ótima pelos princípios específicos e as regras.18
A solução de ponderação adotada pelo legislador não admite a desconsidera-
ção da personalidade jurídica das empresas prestadoras de serviços científicos,
artísticos e culturais sem que reste caracterizado o abuso de direito com todos os
seus requisitos de configuração, afastando a interpretação que vinha sendo efetiva-
da pela fiscalização, que desconsiderava a personalidade jurídica pela mera identi-
dade (nem sempre bem demonstrada) de efeitos econômicos entre a atividade do
prestador de serviços e o regime empregatício.
Não é outro o sentido da remissão do artigo em comento com o art. 50 do
Código Civil, que admite o afastamento da personalidade jurídica nos caso de abuso

18 Sobre a ponderação entre a segurança jurídica e a justiça fiscal na fase de legitimação do ordenamento
jurídico, vide: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol.
II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 227. No mesmo
sentido: RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não-surpresa e
Proteção à Confiança Legítima). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 27.

315
Ricardo Lodi Ribeiro

de direito, assim caracterizado como desvio de finalidade ou confusão patrimonial


entre a empresa e o sócio. Não que o abuso só possa, como na lei civil, ser declara-
do pelo judiciário. De fato, inexiste óbice em nosso regime tributário a que o reco-
nhecimento seja efetivado pela autoridade fiscal, dado o mister de investigar a rea-
lidade, intrínseco à função fiscal. No entanto, a competência desta não lhe dispen-
sa o ônus da prova quanto ao abuso na personalidade jurídica, a partir da demons-
tração do descompasso entre os elementos constitutivos do negócio jurídico e a rea-
lidade econômica. E não a mera alegação de identidade de efeitos jurídicos.
Deste modo, o art. 129 da Lei nº 11.196/05 impede a desconsideração da per-
sonalidade jurídica da empresa, salvo se comprovada pela fiscalização que a pessoa
jurídica não existe na realidade econômica, ou que a sua criação tem vício quanto
à finalidade, ou ainda, haja confusão patrimonial com os seus sócios, sendo insufi-
cientes as alegações caras ao Direito do Trabalho, como a exclusividade e habitua-
lidade da prestação, notadamente nessa seara científica, artística e cultural.
Sendo uma cláusula antielisiva que condiciona a desconsideração aos casos de
abuso de direito, pressuposto da legitimidade do combate à elisão tributária pelo
Estado, o art. 129 da Lei nº 11.196/05, tem a natureza de norma interpretativa, nos
termos do art. 106, I, do CTN, e como tal, retroage a data da lei interpretada. Ou
seja, à data das leis que estabeleceram as hipóteses de incidência dos tributos inci-
dentes sobre a prestação dos ditos serviços.
A retroatividade do dispositivo em análise é evidenciada pela necessidade
constitucional, derivada do princípio da legalidade tributária, do combate à elisão
pela Fazenda Pública ter como pressuposto o abuso de direito pelo contribuinte,
não podendo resvalar para a tributação por analogia.
Para que a retroação da interpretação legal tenha validade, são indispensáveis
os seguintes requisitos:

a) que a lei interpretativa e a lei interpretada sejam da mesma fonte normativa;


b) que a lei seja expressamente interpretativa;
c) que a solução adotada pelo legislador esteja entre aquelas admitidas pelo
sentido possível da norma;
d) que haja dúvida quanto ao sentido correto da norma, gerando incerteza
para os seus destinatários.19

O primeiro requisito revela-se pela necessidade de a lei interpretativa ter a


mesma força vinculante da lei interpretada, sob pena de não cumprir o seu deside-
rato, na medida em que não poderá estabelecer os sentidos derivados desta. Assim,

19 RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não-surpresa e Proteção à


Confiança Legítima). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 196.

316
Temas de Direito Constitucional Tributário

só uma emenda constitucional pode interpretar outra. O mesmo se dá em relação


às leis complementares e ordinárias e ao regulamento.20
O segundo requisito requer, para a produção de efeitos retroativos, que a lei
seja expressamente interpretativa, pois a produção de efeitos em relação aos fatos
pretéritos não se presume. No entanto, como adverte Baleeiro, tal exigência “não
quer dizer que o novo diploma empregue essas palavras sacramentais, apresentan-
do-se como tal na ementa ou no contexto”, bastando, segundo o mestre baiano, que
a lei se reporte aos dispositivos interpretados, definindo-lhes o sentido e aclarando
as dúvidas.21
O terceiro requisito decorre dos próprios limites da atividade hermenêutica,
encontrados das acepções extraídas da literalidade da lei. Na verdade, da ambigüi-
dade das palavras utilizadas pelo legislador é possível se extrair um variável núme-
ro de significados para cada conceito, a partir de uma interpretação do seu sentido
literal possível. Caso a lei interpretativa adote uma solução fora dos limites possí-
veis oferecidos pelo texto legal, não se está diante de uma interpretação, mas da
criação de uma nova decisão só acolhida pela nova lei.
Por fim, exige-se que a interpretação autêntica deva vir a lume num contex-
to marcado pela incerteza jurídica, diante da admissão pela jurisprudência dos tri-
bunais de mais de uma solução hermenêutica. Nesse sentido, só é legítima a retroa-
tividade da interpretação legal, se vier a confirmar a interpretação que era domi-
nante,22 sendo reconhecida pela jurisprudência pacífica,23 ou diante de um cenário
que ainda não houve definição pretoriana quanto a uma orientação segura para os
destinatários da norma. E isso não se dá em nome da separação de poderes, que hoje
não pode ser tão estática. Ao contrário, sob o prisma desta, se o Poder Judiciário
estabelece uma interpretação contrária aos desígnios do detentor da função legis-
lativa, nada mais adequado ao sistema de freios e contrapesos do que o esclareci-
mento parlamentar, sobretudo diante da judicialização da política. A irretroativi-
dade da lei interpretativa que altera a jurisprudência pacífica dos tribunais repou-
sa na proteção à segurança jurídica do cidadão que, diante do posicionamento
incontroverso dos tribunais a respeito da interpretação da lei, confiou legitima-
mente no sentido da lei revelado por estes.

20 AMATUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”. In: AMATUCCI, Andrea (org.), Tratado
de Derecho Tributario, Bogotá: Temis, 2001, p. 615; ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução
e Teoria Geral..., p. 134; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1991, pp. 87-88.
21 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado
Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 670. No mesmo sentido: ASCENSÃO, José de Oliveira. O
Direito: Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira. 2. ed. brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 600.
22 BETTI, Emilio. Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici. Milano: Giuffrè, 1949, p. 80; AMA-
TUCCI, Andrea. “La Interpretación de la Ley Tributaria”, p. 615.
23 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 531.

317
Ricardo Lodi Ribeiro

Nota-se que no caso em questão, os quatro requisitos para a interpretação


autêntica se fazem presentes. O primeiro se revela pela sua introdução no ordena-
mento jurídico por meio da lei em sentido formal, do mesmo modo do que as hipó-
teses de incidência que se aplicam às operações em questão. Por outro lado, o sen-
tido hermenêutico extraído do art. 129 da Lei nº 11.196/05 é não só expresso, mas
imperativo ao revelar que tais prestações se sujeitam apenas à legislação das pessoas
jurídicas, afastando de forma inequívoca, a legislação aplicável às pessoas físicas.
Quanto ao terceiro requisito, a possibilidade de extrair tal possibilidade hermenêu-
tica dos textos interpretados se revela pela própria natureza das normas em comen-
to, que se dirigem explicitamente às pessoas jurídicas. Não há como deixar de reco-
nhecer que uma das possibilidades hermenêuticas é justamente aquela mais óbvia:
que as empresas serão tratadas como empresas, e não como pessoas jurídicas, salvo
em caso de abuso no uso da personalidade jurídica da sociedade. Por fim, o último
requisito está configurado com a ação da fiscalização dirigida contra a interpreta-
ção majoritária na doutrina e encontradiça na realidade fática, em controvérsia que
ainda não encontrou uma definição pacífica na jurisprudência dos Tribunais. Daí a
necessidade da intervenção legal.
Portanto, é inequívoca a retroatividade do entendimento agasalhado pelo art.
129 da Lei nº 11.196/05.

5) Conclusão

O art. 129 da Lei nº 11.196/05 estabeleceu uma cláusula antielisiva específica


dirigida à regulação do combate à elisão tributária através no abuso no uso de pes-
soas jurídicas por prestadores de serviços científicos, artísticos e culturais, sendo
fruto da ponderação entre os princípios da legalidade e da capacidade contributiva,
tendo como resultado uma regra que exige a comprovação pela fiscalização da prá-
tica do abuso de direito, a partir da manipulação do uso da pessoa jurídica para
esconder a fraude à lei praticada pelas pessoas físicas, não sendo suficiente a mera
demonstração de que estão presentes alguns dos traços da relação de emprego ou a
demonstração de identidade de efeitos econômicos entre a atuação como pessoa
física e como pessoa jurídica.
Sendo a configuração do abuso de direito requisito para a legitimidade do
combate à elisão tributária, a sua exigência pelo art. 129 da Lei nº 11.196/05 se tra-
duz em norma interpretativa, que, nos termos do art. 106, I, do CTN, deve retroa-
gir à data das leis que estabeleceram as hipóteses de incidência dos tributos envol-
vidos na prestação de serviços.

318
XVIII
O Fato Gerador da Obrigação Tributária
como Acoplamento Estrutural entre
o Sistema Econômico e o Sistema Jurídico
Sumário: 1) Introdução. 2) O Direito e a Economia na Teoria dos Sistemas Autopoiéticos.
3) O Fato Gerador da Obrigação Tributária como Acoplamento Estrutural entre o Direito
Tributário e a Economia. 4) Conclusão.

1) Introdução

A evolução da idéia de que a tributação deva recair sobre a manifestação de


riqueza foi desenvolvida a partir das reflexões sobre a justiça aplicáveis ao direito
tributário, tendo como fio condutor a capacidade contributiva. Embora na
Antigüidade greco-romana sejam encontradas importantes discussões sobre o tema
da justiça,1 a sua aplicação em relação aos tributos somente veio se dar na Idade
Média com a publicação de importantes obras como a de Frei Pantaleão Rodrigues
Pacheco e de Santo Tomás de Aquino. Em Santo Tomás de Aquino também já havia
a preocupação com a tributação secundum facultatem ou secundum equalitem pro-
portionis, sendo tidos como injustos os tributos que não seguissem esse critério.2
No entanto, somente a partir da obra de Adam Smith é que foi possível se vis-
lumbrar o princípio da capacidade contributiva como medida a mensurar a tribu-
tação. Esta foi então concebida como manifestação do benefício que os contribuin-
tes auferem das atividades estatais: “Os súditos de todos os Estados devem contri-
buir para a manutenção do governo, tanto quanto possível, em proporção das res-
pectivas capacidades, isto é, em proporção do rédito que respectivamente usufruem
sob a proteção do Estado.”3 Extrai-se da obra de Smith o princípio da proporciona-
lidade, baseado na premissa de que os benefícios estatais são gozados pelos cidadãos
na proporção de sua riqueza. Surge então o vínculo da tributação com a manifesta-
ção de riqueza.
Por outro lado, com o advento do Estado de Direito, a tributação passa a ser
limitada pelo direito tributário, que passa a limitar o poder dos soberanos em esta-
belecer tributos.

1 Nesse sentido, a obra de Aristóteles (Ética A Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2000) é um marco.
2 PALAO TABOADA, Carlos. “Isonomia e Capacidade Contributiva”. Revista de Direito Tributário 4, 1978,
p. 126.
3 Riqueza das Nações. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999, vol. II, p. 485.

319
Ricardo Lodi Ribeiro

Com a subordinação da tributação à capacidade contributiva e à legalidade, os


sistemas econômico e jurídico vão se esbarrando e gerando muita dificuldade entre
os tributaristas que ora vão defender a prevalência das fórmulas do direito privado
sobre os efeitos econômicos dos negócios tributários, ora vão privilegiar esses últi-
mos aspectos sobre os primeiros.
A relação entre o sistema jurídico que vai oferecer um veículo normativo para
a tributação, e o sistema econômico, de onde deflui a riqueza que se pretende tri-
butar, e o objeto desse estudo.

2) O Direito e a Economia na Teoria dos Sistemas Autopoiéticos

A teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann oferece grande subsí-


dio para a compreensão da relação que a tributação estabelece entre o direito e a
economia. De acordo com Luhmann, tanto o direito quanto à economia constituem
sistemas autopoiéticos e auto-referenciais, o que se revela pela autoprodução de
seus próprios elementos. Assim, o sistema jurídico é capaz de criar as suas próprias
regras, ainda se abra cognitivamente para o entorno. Cada sistema atua de acordo
com a aplicação de um código próprio e o código binário do direito é o que distin-
gue o jurídico do antijurídico.4
Embora o sistema jurídico apresente um fechamento operativo, já que a com-
preensão do que é ou não jurídico só se dá no âmbito das fronteiras do direito, a
partir de suas próprias regras, ele se abre cognitivamente para o seu entorno e se
relaciona com os outros sistemas por meio de um acoplamento estrutural que, ao
mesmo tempo que admite a comunicação entre os sistemas, estabelece os limites
dos encargos que cada sistema é capaz de suportar sem sofrer corrupção.5
Assim, se modernamente a tributação se deita sobre a idéia de manifestação
de riqueza, a partir do código econômico binário riqueza/escassez, no Estado
Democrático de Direito ela é regulada pelas normas estabelecidas pelo direito tri-
butário.
Se a tributação fosse estabelecida apenas de acordo com as regras do sistema
econômico, ao Estado bastaria identificar a capacidade contributiva entre os cida-
dãos, independentemente de qualquer previsão legal. No entanto, no Estado de
Direito, renuncia-se à possibilidade de se subtrair da economia recursos politica-
mente condicionados e institui-se um acoplamento estrutural entre o sistema eco-

4 LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. México, DF: Universidad Ibero Americana/Colección


Teoria Social, 2002, p. 101.
5 LUHMANN, Niklas “La costituzione come acquizione evolutiva”, in: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTI-
NARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg (org.), Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, pp. 83-128,
p. 112.

320
Temas de Direito Constitucional Tributário

nômico e o político mediante o instrumento da tributação, que, no entanto, é con-


trolado pela constituição, salvaguardando a autopoiésis da economia.6
No Estado de Direito, o sistema jurídico impõe limites à atividade arrecadató-
ria do Estado só permitindo que este tribute aquelas riquezas que são descritas no
fato gerador da obrigação tributária. No Brasil, a Constituição Federal, ao delimitar
as situações que poderão constituir fatos geradores de tributos, jurisdiciza o código
riqueza/escassez, a partir da definição do que poderá ser tributado.
Dessa matriz constitucional que define a competência tributária, o legislador
vai definir o fato gerador da obrigação tributária. Assim, é o fato gerador do tribu-
to, previsto em lei, é o elemento que oferece o acoplamento estrutural entre o
direito e a economia na seara da tributação.

3) O Fato Gerador da Obrigação Tributária como Acoplamento


Estrutural entre o Direito Tributário e a Economia

Como vimos, a manifestação de riqueza oferecida pelo sistema econômico é


observada pelo sistema jurídico como fato gerador da obrigação tributária. A partir
dessa eleição pela lei, o fato gerador deve ser estudado a partir dos elementos ofere-
cidos pelo próprio direito, e não de acordo com elementos econômicos, como defen-
diam os autores adeptos da teoria da interpretação econômica do fato gerador.
A interpretação econômica do fato gerador da obrigação tributária foi conce-
bida a partir da obra de Enno Becker, autor do anteprojeto do Código Tributário
Alemão de 1919. O referido diploma, bastante influenciado por essas idéias, assim
dispunha em seu art. 4º: “Na interpretação das leis tributárias, devem ser observa-
das sua finalidade, seu significado econômico e o desenvolvimento das relações.”7
Foi a fase da preponderância da economia sobre o direito.
Triunfante na Alemanha, a teoria da interpretação econômica do fato gerador
se preocupava mais com os efeitos econômicos do fato praticado do que com a pre-
visão legal do fato gerador, admitindo a tributação por analogia gravosa. Com a
ascensão do nacional-socialismo, tais idéias foram cooptadas pelo regime, criando,
afastada a legalidade, a tributação vinculada aos ideais do Estado nazista. Mesmo
com o ocaso do regime totalitário, a teoria da interpretação econômica do fato gera-
dor ainda continuou demonstrando certo vigor na Alemanha, até meados da déca-
da de 50, quando se deu a retomada formalista.

6 Ob. cit., p. 113.


7 Apud LEHNER, Moris. “Considerações Econômicas e Tributação conforme a Capacidade Contributiva.
Sobre a possibilidade de Uma Interpretação Teleológica de Normas com Finalidades Arrecadatórias”. In:
SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos em
Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 147.

321
Ricardo Lodi Ribeiro

Como salienta Moris Lehner, a norma do Código Alemão de 1919 consistia em


regra voltada para a arrecadação.8
No entanto, se o Código Tributário Alemão de 1919 consagrava, expressamen-
te, a teoria da consideração econômica, a não-previsão de dispositivo análogo no
código de 1977 não impediu, desta feita a partir dos próprios elementos do direito,
a apreciação do critério econômico na interpretação da lei tributária daquele país,
como assinalam Lehner9 e Beisse,10 uma vez que o correto procedimento herme-
nêutico não depende de regras codificadas.11
Com a queda do nazifascismo, a teoria da interpretação econômica, apesar de
ainda sobreviver por alguns anos, mais em função do marasmo ideológico do pen-
samento alemão diante da perplexidade com as descobertas do Holocausto, dá lugar
a uma retomada formalista a que o direito tributário não se mostrou insensível.
Em outro extremo, os autores de índole formalista têm procurado interpretar
o fato gerador por meio das definições estabelecidas pelo direito civil, afastando-se
da real dimensão econômica que se pretende tributar, acabando por corromper o
próprio direito, ainda que tal corrupção se faça em seu nome.
Essa tendência de privilegiar os aspectos formais dos negócios jurídicos mar-
cou as discussões jurídicas do Estado Liberal, influenciando os autores do início
do século XX, como Kruse na Alemanha, e A. D. Giannini, na Itália. No Brasil,
Rubens Gomes de Sousa, Alfredo Augusto Becker, Gilberto de Ulhôa Canto,
Alberto Xavier, Geraldo Ataliba e Paulo de Barros Carvalho, foram muito
influenciados por este positivismo formalista, iluminando, até os dias atuais, a
maior parte de nossa doutrina. Exemplo mais representativo do formalismo posi-
tivista na doutrina tributária do Brasil é a teoria da tipicidade fechada, desenvol-
vida por Alberto Xavier.12
Tal visão – que reduziu a interpretação da norma tributária à mera subsunção,
como se o aplicador da lei fosse um autômato e o legislador capaz de prever todos

8 Moris Lehner reproduz uma citação de Enno Becker, onde fica clara a associação que o autor do antepro-
jeto de Código Tributário Alemão de 1919 faz entre os interesses da arrecadação e a interpretação econô-
mica: “Diante da importância para a coletividade do procedimento da tributação”, seria “um requisito de
primeiríssima ordem que, pouco importando a forma escolhida pelas partes, (...) ou a roupagem de qual-
quer caso, fosse encontrada, pelo imposto, seu significado econômico (...) A valorização da situação fática
conforme seu significado econômico e a interpretação da lei tributária conforme sua finalidade se encon-
tram em casos como esses” (“Considerações Econômicas e Tributação conforme a Capacidade Contribu-
tiva. Sobre a possibilidade de Uma Interpretação Teleológica de Normas com Finalidades Arrecadatórias”.
In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tributário. Estudos
em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, pp. 147 e 148).
9 Ibidem, p. 148.
10 “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente Jurisprudência
Alemã.” In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São
Paulo: Saraiva, 1984, p. 6.
11 PEREZ DE AYALA. Derecho Tributário..., cit., p 119.
12 Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

322
Temas de Direito Constitucional Tributário

os signos de manifestação de riqueza em seus mínimos detalhes – ganhou muita


força na doutrina pátria, fazendo com que a legislação tributária no Brasil se tor-
nasse casuística e efêmera. Com isso permitiu-se que a elisão fiscal passasse a ser
uma atividade utilizada em escalas que inviabilizaram um sistema tributário basea-
do na isonomia e na capacidade contributiva, em nome de uma falsa segurança jurí-
dica, geradora de imensa incerteza sobre a legitimidade dos atos praticados pelos
contribuintes.
De fato, em nosso país, o direito tributário ainda vive um momento de isola-
mento cultural. Ainda estamos acorrentados a um positivismo de índole formalis-
ta que não encontra mais paralelo alhures. É que a nossa doutrina, animada com a
tese da tipicidade fechada, abraça a segurança jurídica como único valor a ser tute-
lado, fazendo da justiça, da igualdade e da capacidade contributiva, meras figuras
retóricas, quando não, objeto de críticas mordazes.13
A adoção da segurança jurídica como princípio absoluto do direito tributário,
mediante a íntima convicção de que esse ramo possuiria características peculiares
que sequer seriam encontradas no direito penal, reflete, como bem destaca José
Marcos Domingues de Oliveira,14 uma posição ideológica de privilegiar a liberda-
de vinculada ao patrimônio em detrimento da liberdade vinculada à pessoa.
Ilustrativa da postura, até hoje muito formalista, da doutrina brasileira é a
posição de Alberto Xavier com sua teoria da tipicidade fechada. 15
Segundo o festejado autor, o princípio da tipicidade tem como corolário:

a) o princípio da seleção, segundo o qual a lei tributária deve selecionar os


fatos que revelem capacidade contributiva, sendo impossível a tributação
com base num conceito geral ou cláusula geral de tributo;
b) o princípio do numerus clausus, que determina que os tributos devem estar
taxativamente previstos na lei, não havendo espaço para a analogia na
imposição tributária, em face da regra nullum tributum sine lege;
c) o princípio do exclusivismo, que obriga o tipo tributário a abrigar uma des-
crição completa dos elementos necessários à tributação, capaz de conter

13 Como a de Alfredo Augusto Becker, que considerou que os textos constitucionais, ao consagrarem o prin-
cípio da capacidade contributiva, constitucionalizaram o equívoco (Teoria Geral do Direito Tributário.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 442).
14 Direito Tributário e MeioAmbiente ..., cit., p. 114.
15 Para XAVIER: “A tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa terminologia, uma tipicidade
fechada: contém em si todos os elementos para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer
de qualquer recurso a elementos a ela estranhos e sem tolerar qualquer valoração que se substitua ou
acresça à contida no tipo legal. (...) Como já se viu, uma reserva absoluta de lei impõe que a lei contenha
não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão que, desta
sorte, se obtém por mera dedução da norma, limitando-se o órgão de aplicação do direito a nela subsumir
o fato tributário” (Os Princípios da Legalidade..., cit., p. 92).

323
Ricardo Lodi Ribeiro

uma valoração definitiva da realidade, sem carecer ou tolerar qualquer


outro elemento valorativo estranho a ela; e
d) o princípio da determinação, pelo qual o conteúdo da decisão deve ser rigo-
rosamente previsto na lei, limitando-se o órgão aplicador à mera subsunção
do fato ao tipo tributário, uma vez que todos os elementos componentes
deste são minuciosamente descritos pela norma, que não pode conter con-
ceitos indeterminados.

Para a definição de tipo fechado, Alberto Xavier, segundo indicado na própria


obra citada,16 partiu de uma classificação adotada por Karl Larenz na obra
Metodologia da Ciência do Direito, de tipo aberto e fechado, sendo este último
caracterizado por elevado grau conceitual.
No entanto, conforme relatado por Misabel de Abreu Machado Derzi,17 Karl
Larenz abandonou a tese da possibilidade do tipo fechado a partir da terceira edi-
ção de sua obra, datada de 1975. De fato, segundo o posicionamento adotado pelo
citado autor alemão nas últimas edições de sua obra clássica, a estrutura tipológica
é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais, apre-
senta-se fechado.18
Por sua vez, Misabel de Abreu Machado Derzi, reconhecendo a inexistência
de uma estrutura tipológica fechada,19 parte de outro pressuposto teórico para
entronizar o valor da segurança jurídica no direito tributário. Segundo a referida
autora, neste ramo do direito, assim como no direito penal, em razão da necessida-
de exacerbada de segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos
classificatórios sobre a estrutura tipológica.20
Contudo, a abstração dos conceitos afasta a possibilidade de sua utilização para
a qualificação do fato gerador da obrigação tributária, que como descrição de uma
conduta do contribuinte, é necessariamente estruturado de forma tipológica, como
reconhece o próprio Karl Larenz ao elencar os tipos jurídico-fiscais, ao lado dos
tipos jurídico-penais, entre as espécies tipológicas.21

16 Os Princípios da Legalidade..., cit., p. 92, nota de rodapé nº 16.


17 Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 61.
18 LARENZ, Metodologia..., cit., p. 646. Larenz, citando Strache, deixa evidente o caráter aberto do tipo: “Os
usos do tráfego, os usos comerciais e a ‘moral social’, enquanto tais, têm para os juristas o significado de
stardards, quer dizer, de ‘pautas normais de comportamento social correto, aceites na realidade social’.
Tais stardards não são, como acertadamente observa STRACHE, regras configuradas conceitualmente, às
quais se possa efetuar simplesmente a subsunção por via do procedimento silogístico, mas pautas ‘móveis’,
que têm que ser inferidas da conduta reconhecida como ‘típica’ e que têm que ser permanentemente con-
cretizadas, ao aplicá-las ao caso a julgar” (Ibidem, pp. 660-661).
19 Direito Tributário, Direito Penal..., cit., p. 61.
20 Ibidem, p. 113.
21 Metodologia..., cit., p. 656.

324
Temas de Direito Constitucional Tributário

A própria segurança jurídica restaria arranhada se os fatos geradores tributá-


rios fossem veiculados por estruturas conceituais, uma vez que os tipos, como
manifestações da realidade social e econômica, são bem mais concretos do que
aquelas,22 sendo, portanto, mais adequados a descrever o fato-signo manifestador
de capacidade contributiva.
Partindo ainda da distinção que Larenz oferece entre conceito abstrato e tipo,
não é difícil perceber as dificuldades teóricas por que passa a teoria da tipicidade
fechada, ao defender a subsunção do fato imponível à hipótese de incidência. Sendo
a norma tipológica aberta à realidade social e econômica, não ocorre a subsunção,
fenômeno peculiar ao conceito. Mas a coordenação do fato ao tipo. Segundo Larenz,
o ideal em um sistema jurídico seria a subsunção de todos os casos jurídicos a con-
ceitos legais. Sendo esse ideal inatingível, não tendo sido alcançado sequer no auge
da jurisprudência dos conceitos, surge a necessidade de, na maioria dos casos, o
legislador lançar mão de tipos, que muitas vezes revelam uma pauta de valores que
carecem de preenchimento. Afinal, são eles capazes, ao contrário dos conceitos abs-
tratos, de coordenar a conduta humana em toda a sua riqueza e mutabilidade.23
Como se vê, portanto, a subsunção de um fato imponível a um tipo tributário
inexiste como fenômeno representativo de uma atividade desprovida de apreciação
valorativa da realidade.24 O que ocorre por ocasião da incidência tributária é a
coordenação de um fato jurídico praticado pelo contribuinte a um tipo legal, que
como tal, ao ser aplicado, carece sempre, ou quase sempre, de uma apreciação axio-
lógica, em maior ou menor grau, por parte do aplicador da lei. É a definição da
hipótese de incidência pelo legislador que vai definir a maior ou menor abertura

22 No sentido do texto LARENZ, Metodologia..., cit., p. 656, citando Karl Engisch em defesa de sua posição.
23 De acordo com LARENZ: “O que o jurista freqüentemente designa, de modo logicamente inadequado,
como ‘subsunção’, revela-se em grande parte como apreciação com base em experiências sociais ou numa
pauta valorativa carecida de preenchimento, como a coordenação a um tipo ou como a interpretação da
conduta humana, particularmente do sentido juridicamente determinante das declarações de vontade. A
parte da subsunção lógica na aplicação da lei é muito menor do que a metodologia tradicional supôs e a
maioria dos juristas crê. É impossível repartir a multiplicidade dos processos da vida significativos sob
pontos de vista de valoração jurídicos num sistema tão minuciosamente pensado de compartimentos
estanques e imutáveis, por forma a que bastasse destacá-los para encontrar um a um em cada um desses
compartimentos. Isso é impossível, por um lado, porque os fenômenos da vida não apresentam fronteiras
tão rígidas como as exige o sistema conceitual, mas formas de transição, formas mistas e variantes numa
feição sempre nova. É impossível, ainda, porque a vida produz constantemente novas configurações, que
não estão previstas num sistema acabado. É também impossível, por último, porque o legislador, como
várias vezes sublinhamos, se serve necessariamente de uma linguagem que só raramente alcança o grau de
precisão exigível para uma definição conceitual. Não pode portanto causar espanto que o ideal de um sis-
tema abstrato, fechado em si e isento de lacunas, construído com base em conceitos abstratos, nem mesmo
no apogeu da ‘Jurisprudência dos conceitos’ tenha sido plenamente realizado” (Ibidem, pp. 644 e 645).
24 Em sentido contrário ENGISCH, Karl (Ob. cit., p. 259), que entende ser possível a utilização da expressão
subsunção para designar aquilo que Larenz designa como coordenação do fato ao tipo. Observe-se, no
entanto, que a divergência é muito mais de nomenclatura, não constituindo a posição de Engisch uma
oposição real às conclusões de Larenz.

325
Ricardo Lodi Ribeiro

do tipo. No entanto, sempre restará ao intérprete um espaço de adequação da nor-


ma à realidade.
Assim, o fato gerador da obrigação tributária se manifesta, indubitavelmente,
pela descrição de uma conduta humana, descrição tipológica, que por natureza
sempre é aberta. Como salienta Karl Engisch, os tipos se abrem à aplicação teleoló-
gica do direito.25 Desta forma, não existe tipicidade fechada no direito tributário,
nem em qualquer outro ramo do direito, sendo admissível, de acordo com a defi-
nição de fato gerador adotada pela Constituição Federal, a utilização de conceitos
indeterminados.
A constante comparação estabelecida por parte da doutrina – de que, aliás, a
citada obra de Misabel de Abreu Machado Derzi é o mais eloqüente dos exemplos
– entre o tipo penal e o tipo tributário se baseia na subordinação da instituição de
tributos, crimes e penas ao princípio da reserva de lei. No entanto, há mais disso-
nâncias do que identidades entre os dois ramos do direito.
A diversidade entre as funções das normas tributária e penal constitui o prin-
cipal ponto de distinção a inviabilizar a equiparação dos critérios de interpretação
estabelecidos em cada um dos referidos ramos. A norma penal tem a função retri-
butiva, visando a evitar a prática do ato típico antijurídico.26 Portanto, é uma
norma odiosa punitiva.
Já a lei tributária – abstraindo-se a radicalidade de parte da doutrina que a
considera como norma de rejeição social,27 posição superada em quase todo o
mundo28 – tem como função identificar a manifestação de riqueza, suscetível de ser
objeto da tributação, sem nunca perder de vista a quantificação do quinhão que
cada contribuinte deve arcar no custeio das despesas públicas.
Assim, se um fato praticado por um agente – ainda que pareça repulsivo e
antijurídico à sociedade – não é considerado descrito na norma penal, a atipicida-
de não ensejará conseqüências punitivas para quem quer que seja.
No direito tributário ocorre fenômeno distinto. Se as despesas públicas são
custeadas por exações instituídas conforme a capacidade contributiva dos mais
variados segmentos de contribuintes, a caracterização da atipicidade de determina-
da conduta que revela o mesmo signo de riqueza identificado pelo legislador aca-
bará por gerar conseqüências nocivas aos demais segmentos da sociedade.
Se a absolvição de um acusado não leva qualquer outro cidadão à cadeia, o
não-pagamento de tributo por alguém que revela capacidade contributiva, vai

25 ENGISCH, Karl. Ob. cit., p. 257.


26 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – A Nova Parte Geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1986, p. 2.
27 Considerando a norma tributária como norma de rejeição social: MARTINS, Ives Gandra da Silva. Sistema
Tributário na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 12.
28 JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributário. 3. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1996, p.
298.

326
Temas de Direito Constitucional Tributário

gerar, mais cedo ou mais tarde, a necessidade do Estado negar prestações positivas
a outro cidadão, ou, o que é mais freqüente, a imposição tributária a quem não
revela capacidade contributiva.29
A consagração da teoria da tipicidade fechada na doutrina brasileira represen-
tou o triunfo de uma peculiar opção, fora do contexto histórico mundial e sem
paralelo em outros ramos do direito pátrio, da segurança jurídica como valor abso-
luto e insuscetível de ponderação com qualquer outro.30
A adoção do princípio da legalidade tributária pela nossa Constituição Federal
– que longe de representar uma peculiaridade nacional, como parecem sustentar
alguns, brota como fruto da evolução da ciência do direito em todo o globo31 – não
é desprestigiada pela superação das teorias ligadas ao positivismo formalista que
recomendam a vinculação absoluta do aplicador do direito à norma.
Na verdade, a maior prova de que essa tão propalada legalidade tributária
absoluta não deriva da Constituição brasileira é o exame dos textos constitucionais
dos países que adotam outros paradigmas na interpretação da lei tributária. Tais
constituições, a exemplo da nossa, também consagram o princípio da reserva legal.
Nos EUA, o art. 1º, Seção VIII da Constituição de 1787, atribui ao Congresso
Nacional a criação de tributos. Na Alemanha, o artigo 105 da Constituição de 1949
garante que os impostos serão objeto da competência legislativa exclusiva da
Federação ou dos Landers (Estados). Na Constituição Espanhola de 1978, embora o
artigo 31.3 admita a possibilidade de instituição de prestações patrimoniais ou pes-
soais na forma da lei, o art. 133.1 dispõe que a potestade de estabelecer tributos é
exercida mediante lei. Por sua vez, a Constituição Francesa de 1958, em seu artigo
34, cumprindo o compromisso firmado pelo povo francês desde a Declaração dos
Direitos do Homem de 1789, garante que a lei deva fixar os impostos, taxas e as
modalidades de sua cobrança. Na Argentina, a Constituição de 1994, em seu art. 4º,

29 No Brasil, o fenômeno é por demais conhecido, como se verá adiante, com a criação de tributos que a des-
peito de não se adequarem ao princípio da capacidade contributiva, são prestigiados pelo legislador pela
menor suscetibilidade à elisão fiscal.
30 Observe-se que os próprios seguidores da doutrina formalista reconhecem o caráter peculiar dessa opção
no panorama do direito comparado. Por todos, vide COELHO, Sacha Calmon Navarro (O Controle da
Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Del Rey,
1992, p. 335) e MARTINS, Ives Gandra da Silva (“Direitos Fundamentais do Contribuinte”. In Martins.
Ives Gandra da Silva (coord.). Direito Fundamentais do Contribuinte. Pesquisas Tributárias – Nova Série
– nº 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 45-81, 2000, pp. 77 e 79) que justifica a necessidade do contri-
buinte brasileiro ter maior proteção do que é conferido em outros países, em virtude da ganância de o
Estado brasileiro, e do subdesenvolvimento das instituições nacionais, despreparadas para a utilização de
mecanismos de combate à elisão adotados alhures, numa apreciação que obviamente extrapola os limites
da ciência do Direito.
31 Vide UCKMAR, Vitor (Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Tradução: Marco Aurélio
Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 24), onde o autor revela que o princípio da legalidade
tributária é adotado em todos as constituições vigentes, exceto, à época, na da ex-URSS, e reproduz, inclu-
sive, o dispositivo constitucional de diversos países.

327
Ricardo Lodi Ribeiro

determina que todas as contribuições ingressas no Tesouro serão impostas pelo


Congresso Nacional. No Uruguai, a Constituição de 1966, em seu artigo 10, tam-
bém subordina a criação de tributos à lei. A exceção fica por conta da Itália, que
por prever um dispositivo genérico para todas as prestações pessoais e patrimoniais,
adota, no artigo 23 da Constituição de 1947, o princípio da legalidade em sentido
amplo, a partir da cláusula em virtude do disposto em lei. Mas nem por conta dessa
previsão constitucional, a doutrina italiana admite a criação de tributos por outro
instrumento que não a lei, e nem a delegação à autoridade administrativa da fixa-
ção dos elementos da obrigação tributária.32
O que diferencia a Constituição Brasileira de 1988 dos textos constitucionais
supracitados é uma minuciosa repartição de competências entre os entes federati-
vos, o que só indiretamente é pertinente à matéria da legalidade. Na verdade, o
tema da competência se prende muito mais à delimitação da capacidade contribu-
tiva visualizada pelo legislador constituinte, e que serve de limite à ação do legis-
lador ordinário, do que à forma, mais ou menos casuística ou detalhada que este
último vai utilizar para a definição do fato gerador. Buscar na repartição constitu-
cional das competências tributárias o arcabouço constitucional para uma tipicida-
de fechada é extrair da Constituição uma sistemática que não só nela não é previs-
ta, como contraria todos os princípios por ela consagrados.
Como se vê, a Constituição brasileira, no que tange à consagração do princí-
pio da legalidade tributária, não apresenta qualquer peculiaridade em relação ao
direito comparado. O que há de diferente em nosso país, é uma criação doutrinária
sem lastro constitucional e em desacordo com os valores e princípios mais caros ao
nosso ordenamento. Como bem observado por Ricardo Lodo Torres,33 a utilização
das expressões tipicidade “fechada”, legalidade “estrita”, e reserva “absoluta” de lei,
não derivam da nossa Constituição, mas de construção de nossa doutrina, embala-
da por razões mais ideológicas que científicas.
A possibilidade de o aplicador da lei expedir atos administrativos normativos
para interpretar e detalhar a lei, a partir de uma valoração objetiva, não se traduz
em aceitação do regulamento autônomo no direito tributário, o que contrariaria o
princípio da reserva de lei. O regulamento sempre precisará se basear em uma

32 Pela necessidade de lei definindo todos os elementos da obrigação tributária mesmo em face do art. 23 da
Constituição Italiana, vide GIANNINI, A. D. (Instituzioni di Diritto Tributario. 3. ed. Milano: Giuffrè,
[194_], p. 12), PUGLIESE, Mario (Instituciones de Derecho Financiero. Mexico: Fondo de Cultura
Economica, 1939, p. 116) e MICHELI, Gian Antonio (Curso de Direito Tributário. Tradução: Marco
Aurélio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 19).
33 “Direitos Fundamentais do Contribuinte”. In MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Fundamentais do
Contribuinte. Pesquisas Tributárias – Nova Série – nº 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 167-186, 2000,
p. 185.

328
Temas de Direito Constitucional Tributário

habilitação legal mais ou menos precisa34 e respeitar o conteúdo mínimo e essen-


cial reservado à lei.35
Porém, os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial, talvez os
mais emblemáticos do século XX, são caracterizados pela polarização e guerra fria
entre os dois principais vitoriosos do conflito: os Estados Unidos e a União
Soviética. Era o auge do Estado Social.
No campo do Direito é uma época marcada pela crise da justiça enquanto
valor, espremida entre os positivismos de índole formalista e sociológica, e substi-
tuída pela busca da materialização dos prestações estatais exigidas pela justiça
social.
Na seara tributária, o esforço arrecadatório para financiar o agigantamento das
despesas públicas levava o pêndulo hermenêutico a confundir justiça fiscal com o
interesse da arrecadação tributária. Afinada com a melodia fiscalista, soavam os
acordes da progressividade em nome da distribuição de rendas e dos incentivos fis-
cais setoriais como trampolim para o desenvolvimento econômico em uma visão
keynesiana.
Todavia, a crise do petróleo do início dos anos 70 deflagra o início da deses-
truturação do Estado Social, que elevou, além dos limites do previsto, as expectati-
vas do cidadão em relação ao Estado, gerando a dificuldade, cada vez mais crescen-
te, para os governos adimplirem com seus compromissos sociais.
Na década de 80, os governos neoliberais de Reagan, nos Estados Unidos, e de
Thatcher, na Inglaterra iniciam um processo de sepultamento do Welfare State,
restringindo as prestações sociais e reduzindo impostos.
Ao mesmo tempo, o avanço tecnológico promove a revolução da tecnologia
da informação, que explode nos anos 90, a partir das sementes plantadas nos anos
70, dando origem a uma nova economia.36
O final da década de 80 e o início dos anos 90 são sacudidos pelo desmorona-
mento do socialismo real. Em 1989, os ventos da liberdade, canalizados pela
Glasnost e pela Perestroika de Gorbatchev, põem abaixo o Muro de Berlim, símbo-
lo maior da divisão bipolar entre os mundos capitalista e o comunista, levando,
pouco tempo depois, e com inacreditável velocidade, ao fim da própria União
Soviética, em 1991. Se até o início dos anos 70 os países do socialismo real, com sua
economia centralizada e baseada na indústria pesada, conseguiram acompanhar os
níveis de crescimento do ocidente, com o advento da economia eletrônica global,

34 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financero Español, vol. I. 21. ed. Barcelona: Marcial
Pons, 1999, p. 53.
35 CALVO ORTEGA, Rafael. Curso de Derecho Financero I – Derecho Tributario (Parte General). 4. ed.
Madrid: Civitas, 2000, p. 100.
36 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Trad. Roneide Majer. São Paulo: Paz e Terra. 7. ed., 2003, p. 189.

329
Ricardo Lodi Ribeiro

perderam competitividade e seus governos não mais conseguiram impor o contro-


le ideológico e cultural diante de uma mídia global.37
A partir do esgotamento do Welfare State, num mundo unipolar, o avanço
científico e tecnológico traz os fenômenos da globalização, sociedade de risco e do
pluralismo jurídico, onde o Estado Nacional não detém mais o monopólio do
Direito. Com isso, as empresas multinacionais, organismos internacionais, as orga-
nizações não-governamentais, a sociedade civil organizada e as comunidades de
países passam a emitir regras que, muitas vezes, escapam à percepção dos que se
acostumaram com a dinâmica binária até então verificada na Era Moderna. É o que
alguns denominam de Estado Subsidiário, que intervém apenas onde a sociedade
não pode atuar.
A perplexidade com que os pensadores no fim do século XX assistiram ao fim
do socialismo real intensificou as discussões a respeito do tema da modernidade e
da pós-modernidade ao longo dos anos 90, tempos que já fazem lembrar a Belle
Époque a anteceder os horrores no início do século XXI, com a negação dos direi-
tos fundamentais em nome do combate ao terrorismo, após o 11 de setembro de
2001, com o ataque da Al Quaeda de Bin Laden às torres gêmeas do World Trade
Center em Nova York e ao Pentágono, em Washington.
Como fruto do oportunismo político que se aproveita dos novos riscos sociais
para a consolidação do poder, a autonomia dos povos é colocada em cheque, com a
criação do conceito de guerra preventiva, a justificar a invasão norte-americana no
Afeganistão e no Iraque. Nesse contexto, os direitos fundamentais são questionados
por aqueles que buscam em medidas de exceção, como as previstas no Ato Patriótico
de George W. Bush, resposta ao terrorismo do islamismo fundamentalista.
A reação da doutrina norte-americana às tentativas de concessão de poderes
especiais ao presidente dos Estados Unidos, em função do 11 de setembro, não tem
sido uníssona. De um lado, encontram-se aqueles, como Ackerman,38 que admitem
restrições aos direitos civis com a criação de uma espécie de emergency constitui-
tion, sem prejuízo da preservação dos mecanismos de deliberação da sociedade que
sejam capazes de controlar a necessidade do estado de exceção. Em contraponto,

37 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole – O que a Globalização Está Fazendo de Nós. Trad. Maria
Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 24. Imagem ilustrativa dessa situação, é lembrada por
Ulrich Beck: nos estertores do império soviético, Boris Yeltsin, então presidente da República Russa, em
cima de um tanque, faz um discurso contra os líderes da URSS que golpearam Gorbachev. Enquanto as
rádios do regime comunista censuravam o discurso, a CNN transmitia ao vivo para todo o mundo. Era o
triunfo da mídia global sobre o controle nacional dos meios de comunicação (BECK, Ulrich. O que é
Globalização? – Equívocos do Globalismo, Reposta à Globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 41).
38 ACKERMAN, Bruce. “The Emergency Constitution”. In: The Yale Law Journal, vol. 113, nº 5, 05/03/04,
pp. 1029-1079, acessado em www.yalelawjournal.org, em 09/07/05.

330
Temas de Direito Constitucional Tributário

Tribe39 rechaça o afastamento da ordem constitucional e a supressão dos direitos


humanos no combate ao terrorismo.
Vale aqui destacar o alerta de Agambem contra as medidas destinadas a con-
ferir poderes de legislar ao poder executivo, a fim de restabelecer a segurança em
períodos de grande instabilidade, que tendem sempre a evoluir para um estado de
exceção permanente.40
No entanto, embora não se possa negar o fracasso do socialismo real, a falên-
cia do Estado do Bem-Estar Social, o terrorismo e os desafios da sociedade de risco,
por outro lado, também é preciso reconhecer que nem a pax americana de Clinton,
e muito menos o Estado de Exceção Permanente de George W. Bush, são respostas
aos problemas do homem, num mundo que confere liberdade para o capital volá-
til e apátrida, mas a nega para a maioria das pessoas do planeta, excluída do acesso
aos bens mais elementares para a digna sobrevivência.41
Por isso, é preciso construir novos paradigmas para a época atual, que, pela
proximidade, ainda não pode ser denominada, senão provisoriamente. São usadas
expressões como pós-modernidade, modernidade reflexiva, modernidade ambiva-
lente, modernidade tardia, Estado de Risco, Estado Subsidiário, Estado Pós-Social,
entre tantas outras, para designar os tempos atuais, captando várias características
da nossa época. No entanto, só o distanciamento histórico será capaz que identifi-
car que facetas prevalecerão, a fim de caracterizar esses dias.42
Contudo, aos estudiosos do Direito não é dado procurar as soluções para os
complexos fenômenos atuais, a partir de categorias jurídicas que foram forjadas no
início da Era Moderna, vez que estas não são mais capazes de dar respostas aos pro-
blemas com que nos defrontamos hoje.
No campo das idéias jurídicas, esse período de crise do Estado Social é marca-
do pela superação das idéias positivistas, sejam as de índole formalista, sejam as de
cunho sociológico ou economicista, a partir do resgate da justiça enquanto valor.
No Estado Democrático e Social de Direito, superada a dicotomia entre a von-
tade do monarca e a do povo representado pelo parlamento, e estabelecida a neces-

39 TRIBE, Laurence H. e GUDRIDGE, Patrick O. “The Anti-Emergency Constitution”. In: The Yale Law
Journal, vol. 113, nº 8, 30/04/04, pp. 1801-1870, acessado em www.yalelawjournal.org, em 09/07/05.
40 AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Pulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 19.
Entre nós, traçando um paralelo entre a situação da Alemanha da República de Weimar e a dos países em
desenvolvimento como o Brasil, Gilberto Bercovici fala em estado de exceção econômico: “Com a globa-
lização, a instabilidade econômica aumentou e o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises
econômicas passou a ser mais utilizado, com a permanência do estado de emergência econômico” (BER-
COVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente – A Atualidade de Weimar. São Paulo:
Azougue Editorial, 2004, p. 179).
41 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Motta. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 2000, p. 18: “A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega
liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo à maioria.”
42 MASI, Domenico de. A Sociedade Pós-Industrial. Vários Tradutores. 4. ed., São Paulo: Senac, 2003, p. 33.

331
Ricardo Lodi Ribeiro

sidade de harmonização e interdependência entre os poderes, o regulamento passa


a ser um instrumento essencial para a definição dos aspectos técnicos das regras
jurídicas, com a adequação à realidade de alguns conceitos indeterminados de ori-
gem científica ou tecnológica, que nem sempre podem ser precisados pela dinâmi-
ca do Parlamento. Desse modo, é compatível com a feição atual do princípio da
legalidade, que os aspectos técnicos da norma sejam definidos em regulamento,
ficando o Poder Legislativo com a definição das grandes diretrizes políticas nacio-
nais, fenômeno que não se revela estranho ao direito tributário.43
Nos dias atuais, superados os excessos formalistas e economicistas, revela-se o
acoplamento estrutural entre o direito e a economia na tributação, a partir do res-
gate do exame do conteúdo econômico, não apenas dos conceitos utilizados pelo
legislador, mas também dos fatos tributários previstos na norma.44
Esse exame não vai resultar necessariamente na atribuição de um sentido tri-
butário diverso para os conceitos adotados pela lei civil, na definição dos fatos jurí-
dicos tributados, como propunham os economicistas. Mas deverá, partindo do pro-
cesso hermenêutico comum a todos os ramos do direito, buscar, diante da ausência
de univocidade da linguagem jurídica e dentro do ordenamento jurídico, a finali-
dade da lei tributária, sempre – embora quase nunca com exclusividade –, vincula-
da à repartição da carga tributária, de acordo com a capacidade contributiva de
cada um.
É que, como já vimos, não é incomum que o legislador utilize conceitos de
mesmo significado lingüístico para designar situações de conteúdo normativo
diverso. Desse modo, a interpretação dos conceitos utilizados mais de uma vez pelo
legislador de uma ou várias normas, orienta-se pela função que cada um deles pos-
sui no sistema jurídico. São os, chamados por Larenz,45 conceitos jurídicos deter-
minados pela função.
De acordo com o sentido que Larenz conferiu ao elemento teleológico, o apli-
cador da lei tributária deverá, na busca da regulamentação materialmente adequa-
da, interpretar, inicialmente, a norma abstrata procurando, dentro dos limites da
atividade hermenêutica, evitar contradições valorativas pela utilização dos princí-
pios ético-jurídicos, notadamente o da igualdade.
Deste modo, dentro da positividade que o código direito/não direito, repre-
sentado pelo fato gerador da obrigação tributária oferece, deve o aplicador optar
pelo resultado que se coadune com a igualdade, com a generalidade e com a capa-

43 GONZÁLEZ, Eusébio/LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributário I. 2. ed. Salamanca: Plaza Universitaria,


2000, p. 47
44 BEISSE. “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente
Jurisprudência Alemã.” In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa
Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 6.
45 Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997, p. 692.

332
Temas de Direito Constitucional Tributário

cidade contributiva, a não ser que da própria norma se extraia uma acepção suge-
rida por outros princípios a ela imanentes, tais como as soluções baseadas na segu-
rança jurídica e as sugeridas pela extrafiscalidade ou pela praticidade administrati-
va, a partir de um juízo de ponderação entre os princípios fundados na justiça e
aqueles alicerçados nos outros valores objetivados pelo legislador.
E justamente dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da
generalidade, utilizados como parâmetros da interpretação da lei fiscal, vai derivar,
segundo Perez de Ayala,46 o princípio da luta contra a evasão fiscal. Em conseqüên-
cia, o aplicador, irá adotar a solução que não permita ao contribuinte evadir-se da
obrigação de pagar o tributo previsto em lei, com o que se estaria usando o direito
contra o direito.
Por outro lado, deverá o intérprete atentar para a estrutura material do domí-
nio da norma, que deflui da natureza das coisas. No direito tributário, tal idéia irá
permitir ao aplicador a busca do verdadeiro conteúdo econômico do negócio jurí-
dico praticado, independentemente da forma exterior escolhida pelo contribuinte.
Assim, há uma íntima ligação entre o método teleológico – a partir da inter-
pretação dos fatos jurídicos praticados pelo contribuinte, com base na consideração
econômica destes, revelada pela estrutura material do domínio da norma e pelo
princípio da luta contra a evasão fiscal- e o combate à elisão fiscal abusiva.
Se é verdade que o legislador tributário não pode alterar a natureza do ato pra-
ticado pelo contribuinte, não é menos verdade que este também não pode escamo-
tear os efeitos tributários que brotam do ato por ele praticado, por meio da escolha
de uma forma jurídica que não se coaduna à sua intenção negocial, aos resultados
pretendidos com a prática daquela atividade – em suma, com a realidade econômi-
ca subjacente.
Dessa forma, o traço fundamental de distinção entre a teoria da consideração
econômica do fato gerador desenvolvida por Enno Becker e o exame do critério
econômico realizado no âmbito do próprio fato gerador da obrigação tributária.
Enquanto Becker e seus seguidores se inclinavam, como observou Beisse,47 para a
livre criação do direito, sem vinculação estreita com a lei,48 os seguidores da con-

46 Derecho Tributario I. Madrid: Editorial de Derecho Financiero, 1968, p. 114.


47 Ob. cit., p. 21.
48 Na doutrina italiana funcionalista, representada especialmente pelos autores da Escola de Pavia, também
predominou uma tendência que se caracterizou por não enxergar na lei um limite à atividade hermenêu-
tica. Nesse sentido, é emblemática a posição de Ezio Vanoni: “Quando o intérprete pesquisa a vontade da
lei, ainda que vá além da vontade dos órgãos legislativos que elaboraram a norma, não cria direito, mas
atribui à lei todo o valor, que o ambiente no qual se movimenta lhe confere. Dessa maneira, a extensão da
lei tributária a hipóteses não expressamente previstas por ele, quando ocorra segundo as regras jurídicas e
lógicas de interpretação que temos mencionado, não pode contrariar a disposição do art. 30 da
Constituição, porque essa extensão não representa a criação de um novo tributo, mas a integral realização
da norma tributária” (Natureza e Interpretação das Leis Tributárias. Tradução: Rubens Gomes de Sousa.
Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p. 189).

333
Ricardo Lodi Ribeiro

cepção hoje dominante na Alemanha, como se verifica nas obras de Tipke, de


Vogel, de Lehner e do próprio Beisse, encontram no próprio direito um limite à ati-
vidade de interpretação.
Assim, é a partir do estudo do próprio fato gerador é que podemos pesquisar
a influência das acepções já utilizadas pelo direito civil, e que são encontradas na
legislação tributária. Assim, Beisse, a partir das decisões do Tribunal Federal de
Finanças da Alemanha, estabeleceu uma sistemática cuja aplicabilidade traz bene-
fícios ao tema da relação do direito tributário com o direito civil, não só para aque-
le país, mas também para outros sistemas jurídicos, como o nosso, a despeito das
inócuas regras do CTN brasileiro. Assim, segundo Beisse, a interpretação dos con-
ceitos de direito tributário segue três princípios:
Conceitos econômicos de direito tributário criados pelo legislador tributário,
ou por ele convertidos para os seus objetivos, devem ser interpretados segundo cri-
tério econômico. É exemplo dessa modalidade, em nossa legislação pátria, a expres-
são renda e proventos de qualquer natureza, que não é encontrada no direito civil,
sendo inteiramente delineada pelo legislador tributário, na Constituição Federal,
no CTN, e na legislação ordinária.
Conceitos de direito civil devem ser interpretados, dentro do sentido literal
possível, economicamente, quando o objetivo da lei tributária impõe, de forma
objetivamente justificada, um desvio do conteúdo do conceito de direito privado,
em nome do princípio da igualdade, que poderia ser violado por meio de uma inter-
pretação civilística da expressão legal. Serve mais uma vez como exemplo a expres-
são empregadores, contida no artigo 195 da Constituição Federal, para definir os
contribuintes das contribuições da seguridade social, que não tem a concepção do
direito do trabalho, abarcando empresas que não mantêm empregados próprios.49
Conceitos de direito civil devem ser interpretados de acordo com a definição
contida na legislação civil quando, conforme o sentido e o objetivo da lei tributá-
ria, se tem certeza de que o legislador cogitou exatamente do conceito de direito
privado. Da mesma forma, quando o sentido literal possível da norma tributária
não confere outra possibilidade senão aquela oferecida pela lei civil. A definição do
fato gerador do ITR constitui exemplo bem ilustrativo desta categoria jurídica. De
fato, do próprio texto da lei, se extrai que será tributada a propriedade imóvel por
natureza, conforme definida na lei civil.50
Ricardo Lobo Torres, em lição que não discrepa da sistemática de Beisse, sus-
tenta que a interpretação será mais ou menos vinculada ao critério econômico, de
acordo com o tributo em exame. Assim, os impostos sobre a propriedade se baseiam
numa interpretação que preserva os conceitos de direito privado; já os impostos

49 No sentido do texto foi a interpretação autêntica do dispositivo pela EC nº 20/98, que equiparou aos
empregadores às empresas e entidades assemelhadas.
50 Artigo 29 do Código Tributário Nacional.

334
Temas de Direito Constitucional Tributário

sobre a renda e o consumo, por se constituírem de conceitos tecnológicos ou elabo-


rados pelo próprio direito tributário, melhor se abrem à interpretação econômica.51
Como é sabido, o objetivo da lei de incidência é a identificação da manifesta-
ção de riqueza capaz de suportar determinado quinhão do custeio das despesas
públicas. Desse modo, mais do que a forma jurídica adotada, o operador do direito
tributário deve se preocupar com a essência econômica efetivamente praticada.
Não é outra a posição de Tipke: “Juristas não raro se equivocam, no direito tribu-
tário, quando tomam por bem tributável o pressuposto técnico-jurídico, em lugar
do pressuposto econômico-tributário.”52
Portanto, num sistema jurídico orientado por valores, e donde deriva a con-
seqüente necessidade do intérprete evitar contradições valorativas, a acepção eco-
nômica há que prevalecer, em caso de dúvida, sobre a interpretação civilística.53 A
essa afirmação não deve ser oposto o princípio da unidade da ordem jurídica, uma
vez que esta não é realizada pelo primado do direito civil.54 Ademais, a idéia de
unidade do sistema jurídico repousa muito mais no plano axiológico do que no lin-
güístico, não havendo portanto qualquer óbice para que determinada palavra tenha
um sentido diferente no direito tributário.
No Brasil, os problemas relativos à interpretação da lei tributária se devem,
em grande parte, ao positivismo formalista de nossa doutrina, o que acabou por
influenciar nossa legislação, em especial o CTN, que, no capítulo relativo à inter-
pretação da lei tributária, cria regras que se chocam, determinando a adoção de
métodos hermenêuticos apriorísticos. E o que é pior: métodos inteiramente contra-
ditórios, sendo reivindicados tanto pelos formalistas, defensores de uma interpre-
tação civilística, como pelos seguidores da teoria da interpretação econômica do
fato gerador, como apontado por Ricardo Lobo Torres.55
De fato, a primeira parte do artigo 109 do CTN parece optar por uma inter-
pretação civilística, ao determinar que os princípios gerais do direito privado são
utilizados para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos,
conceitos e formas. Mas sugere conclusão diversa, que acena para o critério econô-
mico, ao estabelecer que os efeitos tributários de tais institutos podem ser defini-
dos pela lei tributária.

51 Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 206.
52 “Princípio da Igualdade e a Idéia de Sistema no Direito Tributário”. In: Brandão Machado (coord.).
Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 522.
53 BEISSE. Ob. cit., p. 23.
54 Ibidem, p. 37.
55 Segundo TORRES: “O art. 109 do CTN é ambíguo e contraditório, pois pretende hierarquizar métodos de
interpretação de igual peso, sem optar com clareza pelo sistemático ou pelo teleológico. Demais disso, mis-
tura posições teóricas divergentes, se filia a correntes doutrinárias conflitantes e emburilha as conseqüên-
cias das opções metodológicas, confundindo as relações entre o Direito Tributário e o Privado e entre
diversas fontes do Direito” (Normas de Interpretação..., cit., p. 188).

335
Ricardo Lodi Ribeiro

Qualquer conclusão fica ainda mais tormentosa, se interpretarmos a referida


norma juntamente com o art. 110 do CTN, segundo o qual a lei tributária não pode
alterar a definição, conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direi-
to privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, dos
Estados e Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, para definir ou limi-
tar competências tributárias. Assim, num primeiro momento, a norma parece optar
pela orientação civilista. Mas limitando sua disciplina aos conceitos constitucio-
nais, o art. 110 não estaria autorizando o critério econômico para os demais casos?
A resposta é complicada. Os dois artigos são dúbios, contraditórios e inúteis, na
medida em que nada contribuem para o intérprete da lei tributária.56
Por sua vez, o artigo 118 esvazia a possibilidade de uma interpretação civilís-
tica, ao desconsiderar, na interpretação do fato gerador, a validade jurídica dos atos
efetivamente praticados e de seus efeitos efetivamente ocorridos. Nota-se que o
dispositivo revela-se dispensável, como quase todas as normas interpretativas, uma
vez que a consideração econômica deriva dos princípios ético-jurídicos e da natu-
reza dos atos econômicos praticados pelo contribuinte.
Se o citado artigo tem um mérito, é o de desautorizar a teoria, dominante
entre a nossa doutrina positivista, de prevalência da forma jurídica sobre a essên-
cia econômica do fato jurídico escolhido pelo legislador como hipótese de incidên-
cia tributária.
Porém, deve ser evitado o entendimento, que poderia brotar do exame exclu-
sivamente literal do dispositivo em comento, segundo a qual, a ocorrência do fato
gerador não depende da eficácia do negócio jurídico (resultados efetivamente ocor-
ridos). Se a forma jurídica não é relevante, a ponto de ser tributável o ato ilícito ou
inválido, do ponto de vista do direito civil ou comercial, o mesmo não se pode dizer
do ato ineficaz.
É que a ineficácia do ato não se prende necessariamente à sua invalidade ou
ilicitude, uma vez que a produção de efeitos poderá se dar a despeito de sua irregu-
laridade jurídica, devendo ser tributado, na forma do art. 108, já que ocorrido o fato
gerador. No entanto, se a invalidade do ato evita a sua produção de efeitos no
mundo fático, não ocorre o fato gerador, inexistindo capacidade contributiva a ser
tributada.
Como bem observa Ricardo Lobo Torres, a disciplina do art. 118 do CTN é
despicienda, já que a solução por ele proposta deriva dos próprios princípios da
legalidade e da capacidade contributiva.57
No entanto, como a atividade hermenêutica, atividade do espírito humano
que é, não se vincula a regras interpretativas, há quase consenso, nos meios jurídi-
cos tributários quanto à inserção da norma fiscal no ordenamento jurídico geral,

56 Ibidem, p. 197.
57 Ibidem, p. 270.

336
Temas de Direito Constitucional Tributário

vez que o sistema é único, e em conseqüência, à necessidade de superação de uma


forma peculiar de interpretar a lei tributária, a despeito das regras interpretativas
previstas no CTN.
O passo seguinte será, portanto, a consolidação entre os operadores e estudio-
sos do direito tributário brasileiro, de uma tendência, ainda muito incipiente nesse
início de século XXI, valorizadora do tema da justiça para a defesa do direito do
contribuinte, não só sob uma perspectiva individual, para principalmente com vis-
tas à criação de um sistema tributário nacional efetivamente justo.
Reflexo dessa tendência, empurrada pelo princípio da transparência, é a ado-
ção, em nosso país, de medidas já consagradas em várias nações como as cláusulas
antielisivas, a flexibilização do sigilo bancário e o fortalecimento dos direitos dos
contribuintes como contrapartida às novas armas obtidas pela Administração
Tributária.58
Por outro lado, a despeito de termos defendido ao longo desse trabalho que o
princípio da legalidade tributária não apresenta as singularidades apontadas pela
doutrina pátria, e que a interpretação tributária se dá de acordo com a mesma
metodologia aplicável aos demais ramos do direito, é forçoso reconhecer um outro
dado, que não deriva do CTN, mas da Constituição Federal, e que caracteriza a
interpretação da lei tributária no Brasil.
É que, a partir do elemento lógico-sistemático, torna-se fácil compreender
que o fato gerador da lei tributária, fixado em lei ordinária,59 deve-se adequar ao
dispositivo constitucional, que confere competência à União, Estados, Distrito
Federal e Municípios para instituir tributos, e à lei de normas gerais de direito tri-
butário (CTN), bem como, em relação aos impostos, à lei complementar definido-
ra do fato gerador, da base de cálculo e dos contribuintes.60
Aqui sim, temos uma peculiaridade brasileira que, embora esteja longe de ter
os efeitos apontados pelos formalistas, deriva de uma repartição constitucional de
competências tributárias bastante detalhada61 e da figura uniformizadora da lei
complementar.62
Se essas singularidades não impõem uma tipicidade fechada ou um maior peso
à segurança jurídica em sua ponderação com a justiça, ao menos recomendam, ao
aplicador, uma maior cautela no manejo do método lógico-sistemático, a fim de
interpretar o fato gerador do imposto de acordo com a lei complementar definido-

58 TORRES, Ricardo Lobo. “Princípio da Transparência Fiscal”. Revista de Direito Tributário 79: 7.
59 Salvo nos casos de empréstimo compulsório (art. 148, CF), de imposto sobre grandes fortunas (art. 153,
VI, CF) e de tributos residuais (art. 154, I, e art. 195, § 4º, ambos da CF), em que sendo a lei de incidên-
cia uma lei complementar, esta é que deverá definir o fato gerador.
60 Art. 146, III, a, da Constituição Federal.
61 No direito comparado, só a Constituição alemã apresenta uma repartição constitucional de competências
entre os entes da Federação semelhante, embora não tão detalhada como a nossa.
62 Espécie normativa só encontrada no Brasil.

337
Ricardo Lodi Ribeiro

ra do fato gerador, da base de cálculo e dos contribuintes, bem como com o dispo-
sitivo constitucional definidor da competência tributária.

4) Conclusão

Desse modo, é forçoso concluir que, nos dias atuais, superados os excessos do
positivismo formalista e dos economicistas, a definição do fato gerador da obriga-
ção tributária se traduz no acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o
entorno econômico, dando a segurança de que os contribuintes precisam, a partir
de operações realizadas pelo próprio direito. Com isso, não se tributará a riqueza
que não é descrita pelo fato gerador da obrigação tributária.
No entanto, sob pena de ser corrompido pelas manobras formais pelos contri-
buintes, o sistema jurídico se abre cognitivamente ao entorno econômico na medi-
da em que a aplicação da lei tributária se nutre dos elementos vinculados à função
do direito tributário, que é a regulação da captação das manifestações de riquezas
que irão financiar as despesas comuns. Assim, a aplicação da lei tributária não se
dará em conformidade à capacidade contributiva de cada cidadão.

338
XIX
Os Elementos Constitutivos da Definição de Imposto
Sumário: 1) Introdução. 2) Breve Histórico. 3) Conceito de Imposto e os Elementos Cons-
titutivos da Definição. A) Elementos Comuns à Definição de Tributo. B) Elemento de Dis-
tinção em Relação a outras Espécies Tributárias: o Fato Gerador. C) O Elemento de Legi-
timação: a Capacidade Contributiva. D) O Elemento Finalístico: a Destinação do Produto
da Arrecadação do Imposto.

1) Introdução

O imposto é a figura típica do gênero tributo.1 Como leciona FERREIRO


LAPATZA, são os impostos regidos pelo regime geral dos tributos, restando às
demais espécies tributárias a disciplina estatuída em normas especiais que excep-
cionam o regime geral.2
Em alguns sistemas tributários, o estudo do tributo se limita ao imposto,
tendo as outras exações natureza jurídica diversa, como em Portugal, onde a
expressão Direito Tributário se confunde com a Direitos dos Impostos. Segundo
SOARES MARTÍNEZ,3 o regime constitucional atualmente vigente em Portugal
não subordina as outras exações, como a taxa,4 ao regime jurídico tributário,
inclusive no que tange ao princípio da legalidade.5 Porém, tal característica,
peculiar a poucos ordenamentos constitucionais, não se aplica ao Brasil, onde a
Constituição Federal insere as taxas e contribuições de melhoria, ao lado dos
impostos, no regime tributário.6
A despeito das distinções adotadas pelos vários regimes constitucionais, vale
destacar um traço comum em todos eles: é no imposto que as características do tri-
buto vão se manifestar de forma mais ampla, o que se revela não só no que tange à
sua causa (capacidade contributiva), mas aos seus aspectos finalísticos (custeio das
despesas do Estado). Por isso, o estudo do imposto irá revelar na verdade, muitas

1 MICHELI, Gian Antonio. Curso de Direito Tributário. Traduzida por Marco Aurélio Greco e Pedro
Luciano Marrey Jr., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 75.
2 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero Español. 21. ed., Barcelona: Marcial
Pons, 1999, p. 199.
3 SOARES MARTÍNEZ, Pedro Mário. Direito Fiscal. 9. ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 37.
4 Contra a posição de SOARES MARTÍNEZ, encontram-se CAMPOS, Diogo Leite/CAMPOS, Mônica
Horta Neves Leite (Direito Tributário. Coimbra: Almedina, 1997, p. 20) que assinalam a aplicabilidade
do regime do Direito Tributário em relação às taxas.
5 A Constituição Portuguesa de 1976, em seu art. 106, nº 2, só submete ao princípio da legalidade a insti-
tuição de impostos, e não de outras exações.
6 Constituição Federal de 1988, art. 145.

339
Ricardo Lodi Ribeiro

características comuns a todos os tributos, a despeito de, no nosso ordenamento


jurídico, os dois conceitos não se confundirem, distinguido-se a espécie em estudo
das demais, como se revelará ao longo deste estudo, pela desvinculação do fato
gerador deste a uma atividade estatal específica em relação a pessoa do contribuin-
te. Assim, faz-se mister não só estudar as características do imposto que se verifi-
cam em todas as espécies do gênero tributo, como os elementos que distinguem
este das demais exações tributárias.

2) Breve Histórico

A história do imposto se confunde com a evolução da própria tributação.7 Na


Antigüidade, a principal fonte da receita pública era a pilhagem e o saque dos povos
vencidos, caracterizando a fase denominada por ALIOMAR BALEEIRO, de parasi-
tária.8 A despeito de sua importância secundária dentro desse contexto histórico,
os impostos já eram conhecidos dos povos antigos do Oriente, do Egito, da Grécia
e de Roma, muitas vezes pagos in natura, por meio de uma percentagem da produ-
ção agrícola, mineral ou animal. Há registros históricos de tributação, no período
clássico, sobre a importação, sobre consumo, sobre as terras, as heranças, as vendas
e as pessoas, incluindo o gérmen do imposto de renda, experimentado na Grécia, a
eisfora.9 Tais impostos tinham o cunho de receitas extraordinárias, exigidas para
fazer frente às despesas que as cidades-estado helênicas, e depois o Império
Romano, despendiam nos seus conflitos bélicos.10
No início da Idade Média, a receita pública teve o caráter predominantemen-
te dominial, com o recebimento de receitas pela exploração do patrimônio do prín-
cipe, que se confundia com o do Estado. Com o desenvolvimento do feudalismo, o
tributo tem sua importância elevada, na feição de direitos regalianos exigidos pelo
senhor feudal dos seus vassalos, cobrados por meio da capitação, ou seja, da divisão
de determinada quantia pelos habitantes do feudo. Também eram cobrados os
pedágios dos comerciantes que transitavam pelos territórios dos senhores feudais.
Por sua vez, a nobreza feudal também pagava tributo ao rei para a defesa do terri-
tório do reino e manutenção das despesas deste.

7 A respeito da evolução histórica da tributação, incluindo detalhado estudo sobre os impostos na Grécia,
na Macedônia, em Roma, entre os visigodos, nas Idades Média, Moderna e Contemporânea, incluindo a
disciplina nos regimes totalitários fascista, nazista e soviético, vide SAINZ DE BUJANDA, Fernando.
Hacienda Y Derecho. Madrid: Institutos de Estudios Politicos, 1955, v. 1.
8 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 14. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 116.
9 BALEEIRO, Op. cit., p. 255.
10 SAINZ DE BUJANDA, Op. cit., p. 142.

340
Temas de Direito Constitucional Tributário

A partir do século XI, os senhores feudais começam a se insurgir contra a


imposição de tributos mais pesados, exigindo, em determinados casos, a autoriza-
ção da cobrança pelos seus representantes.11
Porém, o marco histórico da primeira declaração de direitos contra a tributa-
ção arbitrária pelo rei é a Magna Charta, em 1215, ocasião em que os barões feu-
dais ingleses impõem ao Rei João Sem Terra, a exigência de aprovação pelo com-
mune consilium regis para a cobrança de tributos, exceto quando destinados ao
pagamento do resgate do rei, quando este caísse cativo em suas guerras, para armar
seu filho como cavaleiro e para pagar o dote de casamento de sua filha, e cobrados
em medida razoável (art. XII, da Magna Charta). A exceção se justificava por já
estar sedimentado pelo costume o pagamento de tributos em tais casos.12
Contudo, é só na época moderna, quando os tributos deixam de ser responsáveis
apenas por despesas extraordinárias, passando a ser a principal fonte de receita do
Estado, é que podemos conceber a tributação como hoje a conhecemos, ou seja, destina-
da a custear genericamente as despesas públicas. Segundo RICARDO LOBO TORRES:

“é inútil procurar o tributo antes do Estado Moderno, eis que surge ele com a
paulatina substituição da relação de vassalagem do feudalismo pelos vínculos
do Estado Patrimonial, com as incipientes formas de receita fiscal protegidas
pelas primeiras declarações de direitos.”13

Com o advento do Estado Fiscal, feição financeira do Estado Democrático, a


partir do desenvolvimento do capitalismo, as despesas públicas passam a ser finan-
ciadas por tributos (ingressos derivados), especialmente impostos, além de emprés-
timos públicos, em substituição à exploração do patrimônio do príncipe, o que
caracterizava o Estado Patrimonialista (ingressos originários).14
Como alternativa à via revolucionária pregada pelos socialistas, a partir do iní-
cio do Século XIX, surge o Estado Social, com a idéia de dar à tributação uma fei-
ção extrafiscal, capaz de produzir alterações na estrutura social e econômica da
nação. Superando a idéia liberal de neutralidade do imposto,15 que se limitaria a

11 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. Traduzida por Marco Aurélio
Greco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 11, onde o autor registra interessante caso de autoriza-
ção prévia para cobrança de tributos, quando, em 1192 foram realizadas assembléias e reuniões, na
Inglaterra, para discutir a cobrança de tributos para o pagamento de cem mil libras esterlinas para o resga-
te de Ricardo I, aprisionado pelo Duque da Áustria, o que acabou sendo autorizado pelos contribuintes.
Assinala o autor que, embora fosse um direito consuetudinário exigir tributos dos vassalos para o resgate
do senhor feudal, em tal oportunidade a soma exigida foi tão pesada que não prescindiu da autorização.
12 UCKMAR, Op. cit., p. 13.
13 TORRES, Ricardo Lobo. A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal, Ed. Renovar,
Rio de Janeiro, 1991, p. 2.
14 TORRES, Ricardo Lobo, Ob. cit., p. 97.
15 Segundo o financista norte-americano Walker, o imposto neutro é aquele que não dá origem a qualquer
alteração na situação material relativa dos contribuintes (apud SAINZ DE BUJANDA, op. cit., p. 94).

341
Ricardo Lodi Ribeiro

servir de instrumento para a arrecadação de recursos pelo Estado, a extrafiscalida-


de surge entre os financistas norte-americanos, tendo como fundamento da tribu-
tação, o exercício do poder de polícia pelo Estado.16 Já em 1898, Thomas Cooley,
nos Estados Unidos, defende a cobrança de exações fiscais baseada no poder de
polícia, a fim de regular direitos e deveres entre indivíduos, a conservação da or-
dem na sociedade e o incentivo e o desestímulo a certas atividades econômicas e
comportamentos sociais.17
Desse modo, hoje, além das suas finalidades arrecadatórias, que visam à obten-
ção de recursos para as despesas públicas, sua função clássica, os impostos possuem
uma feição extrafiscal vinculada à intervenção do Estado na economia e na socie-
dade, por meio do incentivo de determinadas condutas relevantes para a coletivi-
dade, e do desestímulo a atividades que, embora sejam lícitas, não são do interesse
comum, como por exemplo, a exportação de produtos essenciais em caso de desa-
bastecimento. Paralelamente, a extrafiscalidade representa um instrumento de
redistribuição da renda nacional, como se dá com a tributação progressiva da pro-
priedade rural que não cumpre a sua função social.

3) Conceito de Imposto e os Elementos Constitutivos da Definição

Sendo a espécie típica de tributo, o imposto tem o seu conceito muito marca-
do pela própria definição do gênero tributário, tendo os dois institutos alguns ele-
mentos constitutivos comuns. No entanto, há traços característicos do imposto que
o distinguem das demais espécies tributárias.18
É clássica a definição de ACHILLE DONATO GIANNINI de que o imposto é
a prestação pecuniária que a entidade pública tem o direito de exigir em virtude de
seu poder de império, originário ou derivado, no caso, na medida e no modo esta-
belecido pela lei, tendo em vista conseguir uma certa entrada. A grande contribui-
ção de GIANNINI foi de apontar o fato gerador como elemento identificador dos
tributos, destacando o do imposto como um fato vinculado exclusivamente à pes-
soa do obrigado e à sua esfera de atividade.19
Na esteira da definição de GIANNINI, preconizou GIULIANI FOUROUGE
que são impostos as prestações em dinheiro ou em espécie exigidas pelo Estado em
virtude do poder de império, de quem se ache nas situações consideradas pela lei
como fatos imponíveis.20

16 BALEEIRO, op. cit., p. 180.


17 Treatise on the Law of Taxation, Callaghan & Co., 2. ed., 1896, p. 586, apud BALEEIRO, op. cit., 176.
18 Para um exame detalhado do conceito de imposto na doutrina e nas várias legislações, vide MORAES,
Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, vol. I, pp.
411 e ss.
19 GIANNINI, Achille Donato. Instituzioni di Diritto Tributario. 3. ed., Milano: Giuffrè, [193_], p. 37.
20 GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho Financiero. 2. ed., Buenos Aires: Depalma, 1970, p. 263.

342
Temas de Direito Constitucional Tributário

Partindo da teoria de GIANNINI sobre o fato gerador como elemento de dis-


tinção dos tributos, mas fundamentando a cobrança do imposto em algo mais do
que o poder de império do Estado, que poderia, segundo a tese então vigente, tri-
butar qualquer fato desde que previsto na lei, DINO JARACH, com base ainda nos
estudos de Benvenuto Griziotti no âmbito da Ciência das Finanças, identifica a
capacidade contributiva como elemento causal no conceito de imposto.21
Na Espanha, FERREIRO LAPATZA define o imposto como uma obrigação de
Direito Público estabelecida por lei para a satisfação dos gastos públicos de acordo
com o princípio da capacidade contributiva. Como o próprio mestre da
Universidade de Barcelona reconhece, a sua definição coincide com a definição de
tributo, pois este é a espécie que segue a regra geral dos tributos.22
No entanto, embora incorporando em sua definição a capacidade contributi-
va como fundamento do imposto, e o elemento finalístico baseado na destinação
aos gastos públicos, a definição de LAPATZA não extrema o imposto de outras
espécies tributárias.
Mais atento ao elemento diferenciador do imposto em relação a outros tribu-
tos, CARRERA RAYA23 leciona que a definição de imposto se decompõe dos
seguintes elementos:

a) o imposto é uma obrigação legal; sendo a lei não só a sua fonte, como ainda
quem determina o fato gerador, e os demais aspectos objetivos, subjetivos e
quantitativos;
b) é uma obrigação de direito público; é o interesse público subjacente que
determina a sua classificação como obrigação de direito público;
c) é uma obrigação pecuniária; normalmente satisfeita em dinheiro;
d) é devida a um ente público fixado pela lei;
e) surge através de um fato gerador realizado exclusivamente pelo sujeito pas-
sivo.

No direito tributário brasileiro, como relata BERNARDO RIBEIRO DE


MORAES, as primeiras definições legais conceituavam imposto como o tributo
destinado a atender indistintamente às necessidades de ordem geral da administra-
ção pública.24 Tal concepção, que pecava por se utilizar de um critério exclusiva-
mente econômico completamente estranho ao direito, só foi alterada pela edição
do CTN, Lei nº 5.172/66, que em seu artigo 16, na esteira da doutrina de RUBENS

21 Op. cit., p. 95.


22 Op. cit., p. 199.
23 CARRERA RAYA, Francisco José. Manual de Derecho Financiero. Madrid: Tecnos, 1993, vol. I, p. 198.
24 MORAES, Bernardo Ribeiro. Op. cit., pp. 411-412, onde o autor reproduz textos da Constituição Federal
de 1937, do DL nº 1804/39 e do DL nº 2416/40.

343
Ricardo Lodi Ribeiro

GOMES DE SOUSA, autor de seu anteprojeto, e seguindo a linha de GIANNINI,


definiu o conceito de imposto como sendo:

“o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de
qualquer atividade específica, relativa ao contribuinte.”

A partir da promulgação do CTN, a maior parte da doutrina brasileira, ado-


tando o conceito legal, deixou de incluir na noção de imposto outros elementos não
contidos nessa definição. Nesse sentido: o próprio RUBENS GOMES DE SOUSA,
GERALDO ATALIBA,25 ALIOMAR BALEEIRO,26 BERNARDO RIBEIRO DE
MORAES,27 PAULO DE BARROS CARVALHO,28 RUY BARBOSA NOGUEI-
RA,29 FÁBIO FANUCCHI,30 SACHA CALMON NAVARRO COELHO,31 LUCIA-
NO AMARO,32 LUIZ EMYGDIO DA ROSA JR.,33 HUGO DE BRITO MACHA-
DO,34 entre outros.
Assim, segundo a corrente doutrinária majoritária no Brasil, o imposto se
caracteriza por ser um tributo cujo fato gerador não se relaciona com qualquer ati-
vidade estatal específica em relação à pessoa do contribuinte. Desse modo, este
paga imposto, não porque o Estado lhe preste uma atuação estatal (serviço público,
poder de polícia ou obra pública), mas porque revela manifestação de riqueza atra-
vés dos vários signos escolhidos pelo legislador, quando da definição do fato gera-
dor do imposto.
Como se vê, na definição positivista adotada pela doutrina brasileira falta um
elemento importantíssimo dessa definição: a capacidade contributiva, que como já
vimos, já era encontrada nas definições de DINO JARACH e FERREIRO LAPATZA
É de se observar que, no Brasil, AMÍLCAR FALCÃO, antes do CTN, já iden-
tificava a capacidade contributiva como elemento integrante do conceito de impos-
to, assim definido por ele:

25 SOUSA, Rubens Gomes, ATALIBA Geraldo, CARVALHO, Paulo de Barros. Comentários ao Código
Tributário Nacional (Parte Geral). 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 136.
26 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed., atualizada por Misabel Abreu Machado
Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 197.
27 MORAES, Bernardo Ribeiro. Op. cit., p. 422.
28 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 5. ed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 28.
29 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 11. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 157.
30 FANUCCHI, Fábio. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., 11. tiragem, São Paulo: Resenha
Tributária, 1986, vol. I, p. 70.
31 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999,
p. 441.
32 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 80.
33 ROSA JR., Luiz Emygdio F. da. Manual de Direito Financeiro & Tributário. 11. ed., Rio de Janeiro:
Renovar, 1997, p. 338.
34 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 13. ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 204.

344
Temas de Direito Constitucional Tributário

“O imposto caracteriza-se por ter como fato gerador um fato da vida comum
tomado como índice de capacidade econômica, de modo que, por isso mesmo,
o tributo se destina ao custeio de serviços gerais da administração ou, pelo
menos, não tem sua cobrança condicionada à utilização do serviço público.”35

Outro elemento que vem sendo negligenciado pela doutrina na definição de


tributo é o finalístico. Embora não mais seja o elemento primordial na distinção das
espécies tributárias, como no período anterior ao CTN, a destinação genérica dos
impostos não é apenas econômica, guardando importância jurídica, de acordo com
o artigo 167, IV, da Constituição Federal, que consagra o princípio da não-afetação
dos impostos.
Portanto, a definição mais completa de imposto no Direito Tributário brasi-
leiro é a de RICARDO LOBO TORRES. Segundo destaca o referido autor, a defini-
ção do CTN é insuficiente e abreviada por não contemplar outros elementos do
imposto, como o princípio da capacidade contributiva e aqueles comuns ao concei-
to de tributo. Para ele imposto:

“é o dever fundamental consistente em prestação pecuniária, que, limitado


pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva do princípio constitucional da
capacidade contributiva e com a finalidade principal ou acessória de obtenção
de receita para as necessidades públicas gerais, é exigido de quem tenha reali-
zado, independentemente de qualquer atividade estatal em seu benefício, o
fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência especificamente
outorgada pela Constituição.”36

Nota-se que na definição referida destaca-se:


a) os elementos comuns à definição de tributo, componentes do conceito legal
contido no art. 3º do CTN;
b) o elemento de distinção em relação a outras espécies tributárias: o fato
gerador, sem vinculação com qualquer atividade específica em relação à
pessoa do contribuinte;
c) o elemento causal, a capacidade contributiva;
d) o elemento finalístico, a destinação para as despesas gerais do Estado.

Observe-se que, se os elementos comuns encontram-se em todos os tributos,


e o elemento diferenciador somente no imposto. Já os elementos causal e finalísti-

35 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4. ed., anotada e atualizada por
Geraldo Ataliba, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 36.
36 TORRES, Ricardo Lobo, Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 308.

345
Ricardo Lodi Ribeiro

co, embora possam existir em outros tributos, são características que melhor se
verificam na espécie tributária em estudo.

A) Elementos Comuns à Definição de Tributo

No conceito de imposto encontram-se presentes os elementos da definição de


tributo, contida no artigo 3º do CTN. O referido dispositivo legal define tributo
como toda a prestação pecuniária, compulsória, em moeda ou em valor que nela se
possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada
mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Essa definição é compos-
ta por seis elementos:
Prestação pecuniária – a expressão prestação significa que o tributo é o obje-
to de uma relação obrigacional, que vincula um credor (Estado) e um devedor (con-
tribuinte ou responsável). Tal prestação deve ser pecuniária, ou seja, em dinheiro.
Assim, o objeto da obrigação (prestação) que o sujeito passivo deve cumprir é dar
dinheiro ao Estado.
Compulsória – significa que a manifestação de vontade do contribuinte é irre-
levante para o nascimento da obrigação tributária, não havendo opção entre cum-
pri-la ou não, visto que esta deriva da lei. Este é o elemento mais importante da
definição e que distingue o tributo de outras exações, como o preço público, por
exemplo.
Em moeda ou em valor que nela se possa exprimir – o tributo deve, por prin-
cípio, ser pago em moeda corrente no país. Porém, o dispositivo abre a possibilidade
de a obrigação ser extinta por outro meio, desde que admitido por lei, como o paga-
mento em títulos da dívida pública, ou imóveis. É a dação em pagamento no direi-
to tributário, admitida nos termos e limites da lei.
Que não constitua sanção de ato ilícito – este elemento vai diferenciar o tri-
buto da multa, que embora tenha todos os cinco outros elementos, se traduz numa
pena. Assim, a tributação não deve ter o caráter de pena. Tal elemento, porém, não
impede a tributação de fatos imponíveis praticados em circunstâncias ilícitas, desde
que a hipótese de incidência seja admitida pelo ordenamento jurídico. Assim,
admite-se, por exemplo, a tributação pelo IR daqueles que auferiram renda com o
tráfico de drogas. É a consagração do princípio do non olet.
Instituída em lei – em face do princípio da legalidade, só a lei em sentido for-
mal37 pode instituir o tributo. A cobrança que reunir todos os outros cinco elemen-
tos, mas não for instituída em lei, será uma tentativa inconstitucional de criar um
tributo.

37 Admite o STF a criação de tributos por medida provisória (STF, PLENO, RE nº 138.284-8/CE, Rel. Min.
Carlos Velloso, DJU de 28/08/92).

346
Temas de Direito Constitucional Tributário

Cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada – a cobran-


ça do tributo não só deverá ser feita mediante atividade administrativa, ou seja, por
pessoa jurídica de direito público (art. 7º do CTN), como deverá ser plenamente
vinculada à lei, não havendo qualquer discricionariedade nessa função.

B) Elemento de Distinção em Relação a outras Espécies Tributárias: o Fato


Gerador

Conforme já assinalado, é pacífica a doutrina inspirada em GIANNINI, no


sentido de identificar a natureza jurídica do tributo pelo seu fato gerador. GERAL-
DO ATALIBA38 foi quem melhor desenvolveu a tese no Brasil, a partir da distin-
ção dos tributos em vinculados e não-vinculados. Assim, o imposto é um tributo
não vinculado, uma vez que o seu fato gerador não se vincula a qualquer atividade
estatal específica em relação à pessoa do contribuinte, mas se constitui em um fato
de sua esfera jurídica. Ao contrário, nas taxas e nas contribuições de melhoria, o
fato gerador é uma atividade estatal, um serviço público específico e divisível e o
exercício regular do poder de polícia nas primeiras, e uma obra pública que venha
a valorizar o imóvel do contribuinte, nas últimas.
A partir do anteprojeto de RUBENS GOMES DE SOUSA, inspirado nas lições
de GIANNINI, o CTN, em seu art. 4º, adotou o critério do fato gerador como elemen-
to de distinção entre as várias espécies tributárias, considerando como irrelevantes, o
nomen iuris do tributo e as demais características formais adotadas pela lei, bem
como a destinação legal do produto da arrecadação. Por sua vez, o art. 16 da nossa lei
de normas gerais, definiu, como vimos, o fato gerador do imposto como um ato des-
vinculado de qualquer atividade estatal específica em relação ao contribuinte.
Se é a partir do exame do fato gerador que vamos identificar a natureza jurí-
dica específica do tributo, não é correto olvidar um dos elementos quantitativos
desse fato gerador, que é a base de cálculo. Alguns autores, entre eles ALFREDO
AUGUSTO BECKER39 e FERREIRO LAPATZA40 chegam a identificar a base de
cálculo como elemento diferenciador das espécies tributárias. Em parte esses auto-
res estão corretos, à medida que um imposto que tenha base de cálculo própria de
taxa, por exemplo, não terá a natureza jurídica de imposto. Desse modo, a base de
cálculo, como elemento quantitativo do fato gerador, deve ser adequada à nature-
za jurídica do tributo.
É por isso que o art. 145, § 2º, da Constituição Federal de 1988, prescreve
que as taxas não podem ter base de cálculo própria de impostos. Isso significa

38 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 4. ed., 2. tiragem, São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 1991, pp. 121 e ss.
39 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 338.
40 FERREIRO LAPATZA. Op. cit., p. 197.

347
Ricardo Lodi Ribeiro

que a lei instituidora da taxa não pode identificar como base de cálculo uma
situação relativa à vida do contribuinte, tendo que ser preservada a referibilida-
de com a atividade do Estado, de forma que o critério adotado pelo legislador
para fazer variar a taxa tem que estar relacionado com a prestação estatal. Por
isso, o STF considerou inconstitucional que taxas de lixo tivessem como base de
cálculo o tamanho do imóvel, pois esse critério reflete a riqueza do contribuin-
te (base de cálculo de imposto), e não a atividade estatal.41 Pelo mesmo argu-
mento, o STJ considerou inconstitucional a taxa de expediente exigida pela
CACEX pela expedição de guia de importação, que embora tivesse como fato
gerador o exercício regular do poder de polícia, tinha como base de cálculo o
valor da mercadoria importada.42
Ao revés, o imposto, por não se relacionar com qualquer atividade estatal, tem
sua base de cálculo vinculada à atividade do contribuinte, e não a qualquer atuação
estatal.43 Por isso a sua base de cálculo vai refletir, à luz da capacidade contributi-
va, a expressão de riqueza que será tributada.

C) O Elemento de Legitimação: a Capacidade Contributiva

Prosperavam no passado teorias contratualistas que procuravam fundamentar


o imposto como contraprestação de atividades estatais. Nessa idéia se baseava a teo-
ria do preço de troca, que preconizava o tributo como uma compensação exigida
dos contribuintes pelos serviços estatais prestados. Semelhante alicerce tinha a teo-
ria da retribuição pela segurança, segundo a qual o imposto seria uma contrapres-
tação pela segurança que o Estado dispensa aos bens e às pessoas.
Porém, nenhuma delas logrou êxito em explicar a causa que serve de funda-
mentação à cobrança do imposto. Enquanto as taxas e contribuições de melhoria
encontram na atividade do Estado relativa à pessoa do contribuinte o fundamento
para a tributação, a doutrina sempre teve muita dificuldade de identificar a causa
do imposto.
Predominou na doutrina italiana, especialmente na Escola de Pavia, a tese de
que a causa jurídica do imposto seria a capacidade contributiva. Deve-se a Ben-
venuto Griziotti o desenvolvimento da tese da causa do imposto, a partir na noção
de causa utilizada por Ranelletti.44 Segundo Griziotti, a causa jurídica do imposto
seriam os serviços e bens públicos capazes de dar satisfação às necessidades públi-
cas. Seu seguidor, DINO JARACH sustentou que a causa jurídica do imposto seria

41 Acórdão do STF, Pleno, RE nº 204.827, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 25/04/97, p. 15.213.
42 Acórdão do STJ, 2ª Turma, REsp 45.757/ES, Rel. Min. José de Jesus Filho, DJU de 20/06/94, p. 16.092.
43 Nesse sentido: SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Taxa – Doutrina, Prática e Jurisprudência. Rio de
Janeiro, Forense, 1990, p. 3.
44 RANELLETTI. Natura Giuridica dell’imposto, 1898, apud BALEEIRO, Aliomar. Limitações..., p. 714.

348
Temas de Direito Constitucional Tributário

a capacidade contributiva.45 Em obra posterior, Griziotti46 reviu sua posição ante-


rior no sentido de serem os serviços e bens públicos a causa do imposto, e passou a
entender, como JARACH, ser esta a capacidade contributiva, embora a consideran-
do como causa específica, ao lado de uma causa geral (as prestações estatais). Outro
representante da Escola de Pavia, MARIO PUGLIESE47 também identificou a
causa do imposto na capacidade contributiva. Porém, assim, como Griziotti, para-
lelamente a esta (causa específica), contemplou uma causa mais ampla: os benefí-
cios estatais.
A teoria da capacidade contributiva como causa jurídica do imposto ganhou
adeptos em outras partes do mundo, como Ottmar Buhler,48 na Alemanha, Louis
Trobatas,49 na França, e ALIOMAR BALEEIRO,50 no Brasil.
Porém, foi na própria doutrina italiana que a teoria da causa jurídica do tribu-
to, como sendo a capacidade contributiva, sofreu a mais dura crítica. ACHILLE
DONATO GIANNINI51 considerava ser a lei a causa jurídica do imposto. Assim, o
imposto é cobrado por estar previsto na lei, a partir do poder de império do Estado,
sendo a capacidade contributiva apenas uma causa pré-jurídica. Nesse sentido
Blumenstein,52 na Suíça, GIULIANI FONROUGE,53 na Argentina, e RUBENS
GOMES DE SOUSA,54 ALFREDO AUGUSTO BECKER55 e AURÉLIO PITANGA
SEIXAS FILHO56 no Brasil. Outros como Vanoni, identificam como causa a neces-
sidade do Estado em angariar recursos para as despesas públicas, teoria que, no
Brasil, tem como adepto GILBERTO DE ULHOA CANTO.57
Hoje, porém, podados os excessos causalistas e formalistas, a capacidade con-
tributiva aparece como elemento de legitimação do imposto. É que tal princípio

45 JARACH, Dino. O Fato Imponível – Teoria Geral do Direito Tributário Substantivo. Traduzida por
Dejalma de Campos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 99-100.
46 GRIZIOTTI, Riflessioni di diritto internacionale, politica, economia e finanza, R. Univ. di Pavia, 1937,
apud PUGLIESE, Mario, Instituciones de Derecho Financiero, tradução mexicana de José Silva, Mexico:
Fondo de Cultura Economica, 1939, p. 111.
47 PUGLIESE, Mário. Op. cit., p. 112.
48 BUHLER, Ottmar. Apud BALEEIRO, Limitações..., p. 727.
49 TROBATAS, Louis. L’a applicacione della Teoria della causa nel Diritto Finanziario, apud BALEEIRO,
Limitações..., p. 725.
50 BALEEIRO. Limitações..., op. cit., pp. 740-741.
51 GIANNINI, A.D. Il rapporto giuridico dell’imposta, apud PUGLIESE, Mario, Instituciones de Derecho
Financiero, p. 111.
52 BLUMENSTEIN, Ernst. System des Steuerrechts, Zurich, 1951, vol. I, p. 8, apud GUIMARÃES, Carlos
da Rocha, O Problema da Causa no Direito Tributário, RDA 45/1.
53 GIULIANI FONROUGE Derecho Financiero, p. 452.
54 SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. Edição Póstuma, São Paulo: Resenha
Tributária, 1975, p. 99.
55 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, p. 93
56 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Teoria e Prática das Isenções Tributárias, p. 82.
57 CANTO, Gilberto de Ulhoa. “Causa da Obrigação Tributária”, publicada em Temas de Direito
Tributário. Rio de Janeiro: Financeiras, vol. I, p. 330.

349
Ricardo Lodi Ribeiro

aparece como idéia central na fase de legitimação de todo o ordenamento jurídico


tributário, no que se refere aos impostos, uma vez que se traduz no seu fundamen-
to de validade e seu elemento axiológico. Como assinala DINO JARACH:

“No mundo concreto em que vivemos, nenhum Estado cria impostos


cujo pressuposto de fato consista, por exemplo, em serem inteligentes ou
estúpidos, ou serem loiros ou morenos, possuir nariz grego ou aquilino, as
pernas direitas ou tortas. Não dizemos que o Estado deva ou não cobrar
impostos segundo esses critérios caprichosos; só dizemos que nenhum
Estado, pelo que resulta do direito positivo, obra de tal maneira, dizemos
que há um critério segundo o qual os legisladores elegem os fatos imponí-
veis, e que os impostos não se cobram segundo o capricho dos legisladores
providos de fantasias.
Todas as situações e todos os fatos aos quais está vinculado o nascimento
de uma obrigação impositiva possuem como característica a de apresentar um
Estado ou um movimento de riqueza; isto se comprova com a análise induti-
va do direito positivo e corresponde ao critério financeiro que é próprio do
imposto: o Estado exige uma soma de dinheiro em situações que indicam
capacidade contributiva. É certo que o Estado por capricho, pelo seu poder de
império, poderia exigir impostos com base em qualquer pressuposto de fato,
mas o Estado, afortunadamente, não age assim.”58

De fato, sendo o imposto destinado ao custeio das despesas genéricas da cole-


tividade, que deve repartir a carga tributária segundo as possibilidades de cada
indivíduo, tem a referida espécie tributária na capacidade contributiva o seu fun-
damento ético-político.59 Assim, se as despesas públicas custeadas pelos impostos,
dizem respeito a todos os cidadãos, sem que se possa dividir as prestações estatais
financiadas pela espécie tributária em estudo a atribuí-las a cada um deles, a justi-
ça tributária se realiza à medida que cada um contribui de acordo com os seus have-
res. Deste modo, se as prestações estatais se traduzem no fundamento ético-jurídi-
co para a cobrança das taxas e contribuições, no imposto este fundamento é a capa-
cidade contributiva.60
No Brasil, a Constituição Federal de 1946, em seu artigo 202,61 agasalhava o
princípio da capacidade contributiva, que no entanto, encontrava-se implícito

58 JARACH, Dino. Ob. cit., pp. 95-96.


59 VILLEGAS, Héctor. Op. cit., pp. 10 e ss.
60 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário: Capacidade Contributiva – Conteúdo e
Eficácia do Princípio. 2. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 82.
61 Constituição Federal de 1946, art. 202: “Os tributos terão o caráter pessoal sempre que isso fôr possível,
e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte.”

350
Temas de Direito Constitucional Tributário

desde a Constituição de 1824, no seu art. 179, XV.62 Embora ausente nos textos
autoritários da Constituição de 1967 e da EC nº 1/69, após ser suprimido pela EC nº
18/65, o princípio era extraído do princípio da isonomia.63 Hoje previsto nas cons-
tituições de diversos países e aceito por vários autores brasileiros e estrangeiros,
como demonstra JOSÉ MARCOS DOMINGUES DE OLIVEIRA,64 o princípio res-
surge no art. 145, § 1º, da Constituição Federal de 1988.65
Segundo RICARDO LOBO TORRES, o princípio da capacidade contributiva
determina “que cada um deve contribuir na proporção de suas rendas e haveres,
independentemente de sua eventual disponibilidade financeira”.66
O princípio tem uma acepção objetiva, significando que o legislador deve
escolher como fato gerador do tributo, um ato que seja revestido de conteúdo eco-
nômico, sendo destituída de capacidade contributiva a tributação de atos que não
se traduzam em signos presuntivos de riqueza, como o uso de barba e bigode, por
exemplo. Nessa acepção objetiva, o princípio da capacidade contributiva se traduz
em pressuposto ou fundamento jurídico do imposto e diretriz para a eleição das
hipóteses de incidência deste.
Em seu aspecto subjetivo, o princípio se destina a aferir a capacidade de paga-
mento de cada um, graduando-a de acordo com o fato gerador de cada tributo e
limitando a tributação, a fim de preservar o mínimo existencial. Assim, a capacida-
de contributiva no IPTU é mensurada pela propriedade de imóveis urbanos, e não
pela renda. Então, se uma senhora viúva possui um patrimônio imobiliário vasto,
herdado do falecido marido, que, no entanto lhe deixou uma pífia pensão do INSS,
há capacidade contributiva para pagar o imposto sobre a propriedade, embora não
haja disponibilidade financeira. No sentido objetivo, o princípio funciona, portan-
to, como critério de graduação do imposto e limite à tributação.67
Embora a Constituição se refira somente aos impostos, uma vez que nesse tri-
buto só existe a riqueza do contribuinte a se mensurar, o princípio também é apli-
cado aos tributos vinculados, como a taxa, conforme já reconheceu o Pleno do STF

62 Constituição Imperial de 1824, art. 179, XV: “Ninguém será exempto de contribuir para as despezas do
Estado em proporção dos seus haveres.”
63 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador da Obrigação Tributária, p. 68. BALEEIRO extraía o princípio do art.
153, § 36, da EC nº 1/69, que prescrevia: “A especificação dos direitos e garantias expressos nesta
Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.”
(Limitações..., p. 687).
64 Sobre o tema da capacidade contributiva é indispensável a consulta à obra do referido autor, Direito
Tributário: Capacidade Contributiva – Conteúdo e Eficácia do Princípio.
65 Constituição Federal de 1988, art. 145, § 1º: “Sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
66 TORRES, Ricardo Lobo, Curso..., p. 79.
67 DERZI, Misabel Abreu Machado, nota de atualização à obra Limitações..., de BALEEIRO, p. 691.

351
Ricardo Lodi Ribeiro

no RE nº 177.835,68 e a contribuição de melhoria, por meio da desoneração dos


hipossuficientes.69
O princípio da capacidade contributiva se realiza através dos seguintes sub-
princípios:

a) progressividade: elevação de alíquota a medida que aumenta a base de cál-


culo. É o instrumento mais adequado à aplicação do princípio da capacida-
de contributiva, tomando por base o princípio da justiça social e a presun-
ção de que uma alíquota uniforme é mais sacrificante para quem possui
uma riqueza menor, do que em relação aos mais afortunados. Como exem-
plo de progressividade utilizada como mecanismo de capacidade contribu-
tiva, temos o imposto de renda, que segundo o artigo 153, § 2º, I, da CF,
deve ser progressivo. O STF entendeu que a progressividade no IPTU não
pode se dar em razão da capacidade contributiva, sequer em razão da loca-
lização do imóvel, uma vez que o Texto Constitucional só prevê a progres-
sividade, neste imposto, por razões extrafiscais, relacionados ao cumpri-
mento da função social da propriedade. Outro argumento utilizado pelo
STF, é que o IPTU, sendo um imposto real, não se adapta ao princípio da
progressividade, que visa a mensurar a riqueza da pessoa.70 Nos parece que
a posição de condicionar a aplicação da progressividade a expressa previsão
constitucional, esvazia mortalmente o princípio da capacidade contributi-
va, que encontra na progressividade o seu mecanismo mais eficaz de reali-
zação. Afinal, se o art. 145, § 1º, da CF determina que os impostos serão gra-
duados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, sendo
facultado à autoridade administrativa identificar o seu patrimônio para dar
efetividade ao princípio, não é necessária a previsão expressa de progressi-
vidade em cada um dos impostos. Ademais, a utilização da classificação
entre impostos reais e impostos pessoais para afastar a aplicação da progres-
sividade aos primeiros é falha por fechar os olhos à realidade do País, onde
os mais ricos só pagam impostos sobre o seu patrimônio pessoal, sendo os
demais impostos suportados pelas empresas e repassados aos consumidores.
Logo, os chamados impostos reais são os mais adequados a aferir, através do
patrimônio pessoal, a capacidade contributiva dos segmentos mais bem
aquinhoados da sociedade.

68 Acórdão cuja ementa foi transcrita no RE nº 198.868/DF, publicado no DOU de 06/09/99, p. 60.
69 TORRES, Ricardo Lobo, Op. cit., p. 83. No mesmo sentido, OLIVEIRA, José Marcos Domingues de, op.
cit. pp. 91 e ss., onde o autor sustenta a aplicação do princípio não só em relação às taxas, contribuições
de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições parafiscais, mas ainda em relação aos preços
financeiros.
70 Acórdão do STF, Pleno, RE nº 153.771/MG, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 05/09/97, p. 41.892.

352
Temas de Direito Constitucional Tributário

b) proporcionalidade: variação da tributação em razão da diferença da base de


cálculo, a partir da aplicação de uma mesma alíquota. Embora seja uma
manifestação da capacidade contributiva, uma vez que não adota um valor
fixo na tributação, a proporcionalidade é um instrumento bastante tímido
de realização do princípio, que, como bem observa LUCIANO AMARO,
não pode se esgotar nela, “pois exige que a justiça da incidência em cada
situação isoladamente considerada e não apenas a justiça relativa entre uma
e outra das duas situações”.71
c) seletividade: é a variação de alíquotas em função da essencialidade do pro-
duto ou mercadoria. Traduz-se na modalidade mais adequada à aplicação
do princípio da capacidade contributiva nos impostos indiretos, como o
ICMS e o IPI, pois afere a capacidade econômica do contribuinte de fato, a
partir do consumo de bens populares (alíquotas menores), como os produ-
tos da cesta básica, ou supérfluos (alíquotas maiores), como cigarros, bebi-
das, carros e perfumes.
d) personalização: é aplicável quando o legislador leva em consideração dados
pessoais da vida do contribuinte para mensurar a tributação, como ocorre
com as deduções de despesas com dependentes, médicas, e com instrução,
no imposto de renda pessoa física. Como se vê, mesmo no IR, que é o
imposto mais adequado à aplicação da personalização, é muito parca a apli-
cabilidade do princípio, dada a timidez dos critérios de personalização ado-
tados pelo legislador.

Sendo o imposto fundamentado no princípio da capacidade contributiva, o que


a sua base de cálculo irá mensurar é a riqueza do contribuinte, de acordo com o fato
gerador de cada um dos impostos. Desse modo, o cidadão paga IPTU, por exemplo,
porque possui propriedade imobiliária urbana, o que revela certa manifestação de sua
capacidade contributiva, pouco importando, do ponto de vista jurídico, se o
Município presta ou não qualquer atividade estatal específica em relação a ele.

D) O Elemento Finalístico: a Destinação do Produto da Arrecadação do Imposto

O destino do produto da arrecadação dos tributos é irrelevante para definir a


natureza específica do tributo, segundo o artigo 4º, II, do CTN, seguindo a orienta-
ção doutrinária dominante no Brasil e alhures.
No entanto, determinadas exações, como o empréstimo compulsório e a con-
tribuição parafiscal, vão se caracterizar pela destinação legal do produto da sua
arrecadação.

71 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, p. 136.

353
Ricardo Lodi Ribeiro

Pela lógica tricotômica adotada pelo art. 5º do CTN, tais tributos se utilizam
dos fatos geradores dos impostos, taxas e contribuições de melhoria, mas deles se
distinguem pela destinação legal do produto da arrecadação. Por isso, não teriam
natureza jurídica própria, uma vez que o elemento distintivo seria irrelevante para
definir a natureza jurídica do tributo. Ocorre que mesmo os tricotômicos atual-
mente aceitam a existência de distinções normativas entre as contribuições parafis-
cais e empréstimos compulsórios, de um lado, e os demais tributos, de quem tomam
emprestado o fato gerador, de outro. Tais distinções são exigidas pelos artigos 148,
149 e 195, da Constituição Federal.72 Assim, a destinação legal do produto da arre-
cadação será relevante para determinar o regime jurídico do tributo, como por
exemplo, quanto à aplicação da anterioridade do art. 153, III, b, da CF, ou a nona-
gesimal, prevista no art. 195, § 6º. Ou em relação às imunidades tributárias, se apli-
cam-se as do art. 150, VI, ou a do art. 195, § 7º, ambos da CF.
Registre-se inclusive que o Plenário do STF, no julgamento do RE nº
138.284-8,73 relatado pelo Ministro Carlos Velloso, considerou que as contribui-
ções da seguridade social não precisam ter seus fatos geradores, base de cálculos e
contribuintes definidos em lei complementar, conforme exigido pelo art. 146, III,
a, da CF, em relação aos impostos, por se constituírem espécie diferente destes, a
despeito de possuírem o seu fato gerador e dele só se distinguirem pela destinação
legal do produto da sua arrecadação à seguridade social.
Como se vê, independentemente da teoria que se adote a respeito das espécies
tributárias,74 é forçoso reconhecer que no nosso direito constitucional positivo, a
destinação legal do produto da arrecadação é relevante para determinar a aplicação
de determinadas regras jurídicas ao tributo.
Deste modo, o imposto cujo produto da arrecadação seja legalmente destina-
do às despesas urgentes previstas no art. 148 da CF, e num segundo momento à res-
tituição ao contribuinte, será empréstimo compulsório. Por sua vez, se o imposto
tiver sua receita destinada pela lei às finalidades parafiscais, previstas no art. 149 da
CF, será uma contribuição parafiscal, submetendo-se às regras constitucionais pró-
prias dessas exações.
Porém, os impostos que não se caracterizem em empréstimos compulsórios e
contribuições parafiscais pela destinação, não podem, segundo o art. 167, IV, da
Constituição Federal, ter as suas receitas vinculadas a despesas, órgãos ou fundos,
salvo exceções previstas expressamente pela CF, a saber:

72 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Op. cit., p. 73.


73 Acórdão do STF, PLENO, RE nº 138.284-8/CE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 28/08/92.
74 Sobre as controvérsias doutrinárias a respeito da classificação dos tributos em espécies no Brasil, vide
LUCIANO AMARO, ob. cit., pp. 63 e ss.

354
Temas de Direito Constitucional Tributário

• garantias oferecidas pelos Estados e Municípios quanto ao adimplemento


das obrigações resultantes das operações de crédito com a União, ou por ela
garantia (§ 4º do art. 167, CF);
• repartições constitucionais das receitas dos impostos de um ente da
Federação com os demais (arts. 158 e 159, CF); e
• despesas para a manutenção e o desenvolvimento do ensino (art. 212).

Portanto, são inconstitucionais, como já reconheceu o STF,75 a tentativa de


alguns Estados de vincularem a majoração de alíquota do ICMS a finalidades espe-
cíficas, como o aumento de capital de empresas públicas estaduais, por exemplo.
A vedação de afetação do produto da arrecadação dos impostos deriva de sua
destinação às despesas genéricas do Estado. Se no passado, tal destinação era utili-
zada, como vimos, para definir a natureza jurídica do imposto, hoje, constitui o seu
elemento finalístico, mais vinculado ao Direito Financeiro e à Ciência das Finan-
ças, do que ao Direito Tributário. No entanto, no precedente do STF citado, se
observa que nossa Suprema Corte confere efeitos tributários à afetação, declarando
inconstitucional o aumento de alíquota, em caso de destinação das receitas do
imposto à finalidade específica.
Essa destinação dos impostos à arrecadação de recursos para custear os servi-
ços gerais do Estado não desqualifica como fenômeno tributário a extrafiscalidade,
haja vista que esta sempre será exceção. Portanto, em regra, os impostos se desti-
nam a custear as despesas estatais em prol das exigências do bem comum.

75 Acórdão do STF, PLENO, RE nº 183.906-SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 30/04/98, p. 18.

355
XX
A Não-Cumulatividade do PIS e da COFINS
Sumário: 1) Introdução. 2) A Não-Cumulatividade e a Tributação sobre o Faturamento.
3) A Não-Cumulatividade das Leis 10.637/02 e 10.883/03 e o Princípio da Isonomia. 4) O
Creditamento das Despesas Necessárias: o Caso da Mão-de-Obra das Pessoas Físicas.
5) Conclusão.

1) Introdução

Reagindo às freqüentes críticas sobre a tributação em cascata sobre a receita


bruta das empresas, o Governo Federal promoveu importantes alterações nas con-
tribuições incidentes sobre o faturamento. Com a edição das Medidas Provisórias
nºs 66/02 e 135/03, convertidas, respectivamente, nas Leis nºs 10.637/02 e
10.883/03, a legislação do PIS e da COFINS passou a contemplar uma sistemática
que se convencionou denominar de não-cumulativa.
A partir da vigência da nova disciplina, a alíquota do PIS aumentou de 0,65%
para 1,65% e a da COFINS de 3% para 7,6%, com o direito de o contribuinte dedu-
zir da base de cálculo as contribuições incidentes sobre os bens e serviços adquiridos.
Pouco tempo depois, a promulgação da Emenda Constitucional nº 42, de
19/12/03, ao introduzir o parágrafo 12 ao artigo 195, trouxe para o panorama cons-
titucional brasileiro o tema da não-cumulatividade do PIS e da COFINS. Embora
promulgada após a edição das referidas medidas provisórias que estabeleceram a
novidade no plano infraconstitucional, é indispensável a verificação da compatibi-
lidade das normas legais com o novo texto constitucional e com o vigente à época
das inovações legislativas.

2) A Não-Cumulatividade e a Tributação sobre o Faturamento

A introdução da sistemática não-cumulativa na legislação da COFINS e do PIS


era medida há muito reivindicada pelos setores empresariais, diante dos pesados
efeitos da tributação sobre o faturamento nos preços dos bens e serviços, diante de
sua incidência sobre todos os agentes da cadeia produtiva.
No entanto, o fenômeno financeiro da chamada tributação em cascata sobre o
faturamento, jamais poderia ser confundido com o da cumulatividade dos impostos
multifásicos, uma vez que, como o Supremo Tribunal Federal1 já teve oportunida-

1 Observe-se que, como ressaltado pelo Plenário do STF no RE nº 230.337/RN, relatado pelo Min. Carlos
Veloso: “o fato gerador do PIS não se identifica com o fato gerador do ICMS, tampouco a hipótese de

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Ricardo Lodi Ribeiro

de de decidir, faturamento é um fenômeno econômico indivisível que abrange toda


a receita da empresa, não confundindo com a circulação de bens e serviços pela
cadeia econômica.
Na verdade, a rigor, só há que se falar no fenômeno da cumulatividade, como
conhecida no Direito Tributário brasileiro, em tributos que incidam sobre a circu-
lação de bens e serviços sobre as várias etapas da cadeia econômica. O faturamen-
to, base de cálculo do PIS e da COFINS, não diz respeito ao fenômeno circulatório,
senão a partir de uma visão exclusivamente vinculada à repercussão econômica. É
claro que a incidência do PIS e da COFINS sobre todos os agentes da cadeia econô-
mica acaba gerando um ônus fiscal em cascata para o preço final do bem ou servi-
ço, mas não há que se confundir essa circunstância econômica com o fenômeno
jurídico da cumulatividade tributária, realidade restrita aos tributos sobre circula-
ção de bens e serviços.
Assim, o que as Leis nºs 10.637/02 e 10.883/03 criaram não foi um sistema
não-cumulativo, mas um brutal aumento de alíquota adoçado por um invulgar
direito a crédito-prêmio, o que quebra a lógica sistêmica de tributos que, pelas suas
características constitucionais, não se subordinam ao regime de conta corrente de
débitos e créditos.
A idéia de não-cumulatividade é afastada ainda quando se verifica na legisla-
ção de regência das contribuições que, embora a base de cálculo englobe toda a
receita bruta das empresas, incluindo receitas não-operacionais, a dedução se limi-
ta aos bens, serviços e despesas expressamente previstas no art. 3º da Lei nº
10.833/03. Portanto, afasta-se a idéia de tributação sobre o valor agregado, que
caracteriza o regime não-cumulativo do ICMS e do IPI, pois enquanto a incidência
ocorre sobre a base de cálculo receita bruta, o regime de crédito segue a lógica do
aproveitamento do tributo pago na operação anterior. Faz-se, portanto, uma desas-
trosa mescla do sistema “imposto sobre imposto” com a sistemática “base sobre
base”, gerando algo bem distante da técnica de não-cumulatividade e do conceito
de faturamento, matriz constitucional para a exigência das contribuições em tela.
Diante do quadro infraconstitucional posto, em que se traduziria então, a
cláusula constitucional do artigo 195, § 12, introduzida pela EC nº 42/03, que, ao
contrário do que ocorre com o IPI e o com ICMS, vem desacompanhada de um
balizamento de seus limites e possibilidades?
É forçoso reconhecer que a não-cumulatividade não tem um sentido consti-
tucional próprio, sendo uma técnica de cálculo do montante de determinados tri-
butos. Em conseqüência, a sua sistemática não pode se dissociar da matriz consti-
tucional de incidência do tributo.

incidência do PIS se constitui, conforme vimos, em operações relativas a minerais, de forma específica,
mas sobre o faturamento, que é abrangente de inúmeras operações” (DJU 28/06/02, p. 93).

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Temas de Direito Constitucional Tributário

Como bem observa Marco Aurélio Greco, “o referencial das regras legais que
disciplinam a não-cumulatividade de PIS/COFINS são eventos que dizem respeito
ao processo formativo que culmina com a receita e não eventos que digam respei-
to ao processo formativo de determinado produto”.2
Desse modo, o estabelecimento de sistemática verdadeiramente não cumula-
tiva no PIS e na COFINS não levaria em consideração a incidência das contribui-
ções na entrada e saída de bens e serviços, lógica própria dos tributos incidentes
sobre a circulação econômica. Mas as receitas auferidas pela empresa e as despesas
inerentes aos fatores de produção pertinentes a essas receitas.3
Como se vê, o que se pode extrair da não-cumulatividade aplicada pela nossa
Constituição aos tributos sobre o faturamento, foge da lógica da tributação sobre
mercadoria ou produto, aproximando-os da tributação sobre a renda ou o lucro. No
entanto, com esta não se confunde, à medida que a matriz constitucional de PIS e
COFINS não se liga ao conceito de acréscimo patrimonial, peculiar ao Imposto de
Renda e, em conseqüência, à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Portanto, se as receitas consumidas no processo de aquisição de novas recei-
tas configuram uma realidade que se aproxima das despesas necessárias que podem
ser deduzidas na apuração do lucro real no IR, a mesma semelhança não é encon-
trada na comparação de renda com o faturamento sob a ótica não-cumulativa, defi-
nição que não exclui, por exemplo, as receitas de caráter indenizatório. Estas,
embora não integrando a base de cálculo do IR, por não constituírem acréscimo
patrimonial, compõem o faturamento das empresas, ainda que sob a sistemática
não-cumulativa.
Assim, se em relação às mercadorias e produtos, a não-cumulatividade signifi-
ca que o imposto a ser pago na operação de saída é a diferença entre o imposto inci-
dente nesta e os que foram pagos nas operações anteriores, o mesmo não acontece
quando o instituto é transmutado para os tributos incidentes sobre a receita bruta
ou faturamento. Nestes, não-cumulatividade significa que o tributo a pagar é encon-
trado pela aplicação da alíquota sobre a diferença entre as receitas auferidas e as
receitas necessariamente consumidas pela fonte produtora (despesas necessárias).
A conclusão referida é afiançada pela impossibilidade de se considerar crédi-
tos referentes à contribuição incidente sobre bens e serviços ingressos no estabele-
cimento, uma vez que a COFINS e o PIS não incidem sobre a circulação destes. Em
outras palavras, a única possibilidade constitucionalmente viável de se conjugar
não-cumulatividade e tributação sobre o faturamento é a adoção do sistema “base
sobre base”, a partir da tributação das receitas após a dedução das despesas indis-
pensáveis à sua produção, pois outra coisa não tributa a COFINS e o PIS – e isto é

2 GRECO, Marco Aurélio. “A Não-Cumulatividade no PIS e na COFINS”, in: PAUSEN, Leandro. A Não-
Cumulatividade no PIS e na COFINS. São Paulo: IOB Thomson, 2004.
3 Ibidem.

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Ricardo Lodi Ribeiro

uma decisão constitucional que não restou modificada pela EC nº 42/03 – do que o
faturamento ou a receita.
Estabelecido este pressuposto, evidencia-se que a solução adotada pelo legis-
lador ordinário, ao definir o regime de crédito sobre a contribuição incidente sobre
alguns bens e serviços, enquanto determina a tributação de todas as receitas aufe-
ridas, afasta-se do pressuposto constitucional das referidas contribuições, que dei-
xam de incidir sobre o faturamento das empresas para buscar um esboço capenga
de tributação sobre valor agregado em tributos que não incidem sobre circulação
econômica. Desse modo, restam violados o artigo 195, I, b, e seu parágrafo 12, e o
art. 239 da Constituição Federal.
Por outro lado, a previsão constitucional de que o regime não cumulativo no
PIS e na COFINS será aplicado aos segmentos econômicos definidos em lei, não
autoriza ao legislador a criação de um regime, que sobre a capa de uma suposta não-
cumulatividade, esconde uma tributação que se afasta das acepções possíveis do
conceito de faturamento. Cumulativo ou não, PIS e COFINS só podem incidir
sobre faturamento ou receita, nunca sobre circulação de bens.
Ademais, cumpre destacar que a equação legislativa que introduziu a novida-
de em nosso direito positivo está indissoluvelmente acompanhada de um penoso
aumento de alíquota, que procura se justificar numa dinâmica não-cumulativa de-
bilmente definida, vício que acaba por comprometer toda a fórmula legal.

3) A Não-Cumulatividade das Leis 10.637/02 e 10.883/03


e o Princípio da Isonomia

A despeito da gravidade da desfiguração legal do perfil constitucional do PIS


e da COFINS, a pior conseqüência para os contribuintes na adoção do citado regi-
me é o abandono do princípio da isonomia tributária, a partir da adoção genérica
do regime “não-cumulativo” a segmentos econômicos que não possuem volume de
aquisições de bens e serviços significativo, capaz de gerar créditos que possam com-
pensar o brutal aumento de alíquota das contribuições, como é o caso das empre-
sas prestadoras de serviços e de vários segmentos da indústria e do comércio. Para
a maioria dessas empresas o aumento da carga tributária chega muito perto do per-
centual do aumento de alíquota. Ou seja, os efeitos das novas medidas são quase o
de simples aumento de alíquota na ordem de 153,42%! Embora alguns setores com
mais poder de barganha no Congresso Nacional tenham obtido a exclusão do regi-
me não-cumulativo com a Lei nº 10.865/04, a grande massa das empresas brasilei-
ras continua submetida ao garrote fiscal.
Infelizmente, o que se imaginava ser um alívio na carga fiscal, tornou-se um
elemento multiplicador da tributação. Paradoxalmente, sendo a regra geral o novo
regime, como se depreende dos artigos 1º e 2º da Lei nº 10.833/03, a obtenção de

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Temas de Direito Constitucional Tributário

medida legislativa que exclua determinado setor dessa disciplina é comemorada


como benefício fiscal. E diante das regras postas, de fato, o é. Com a tributação pela
totalidade das receitas e o crédito restrito a alguns bens e serviços previstos pela
Lei, é absolutamente pontual e excepcional o caráter beneficente das medidas.
Não se deve olvidar que o Governo Federal, por ocasião da edição da MP nº
135/03, pela Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da
Presidência da República,4 justificou a medida pela necessidade de desonerar os bens
produzidos pelos segmentos de grande cadeia produtiva, especialmente os exporta-
dores, reconhecendo o aumento da carga tributária para os prestadores de serviços.
Segundo a argumentação oficial, não haveria aumento de carga tributária, pois o
sacrifício de uns segmentos seria compensado pelos benefícios a outros, o que acaba-
ria por incentivar o desenvolvimento econômico em favor de toda a sociedade.
Como o tempo não demorou a demonstrar, a medida representou expressivo
aumento da carga tributária em relação à COFINS. Segundo dados da própria
Secretaria da Receita Federal, a arrecadação da contribuição de março de 2003 a
março de 2004 aumentou em 13,41%, período em que a economia brasileira restou
estagnada, o que foi atribuído pelo secretário-adjunto da SRF aos efeitos da Lei nº
10.883/03.5
No entanto, mesmo que não existisse qualquer aumento, o benefício fiscal que
as novas medidas puderam trazer a uns poucos segmentos econômicos não pode se
fazer à custa de um brutal aumento da carga tributária de outros, sob pena de grave
violação ao princípio da isonomia.
De acordo com o referido princípio, basilar em nosso sistema tributário, as
distinções entre contribuintes devem atender ao princípio da capacidade contribu-
tiva e às políticas extrafiscais tuteladas pelo nosso ordenamento constitucional.
Cumpre de início afastar a possibilidade de justificar tal distinção com base na
capacidade contributiva, uma vez que esta não é revelada pelo segmento econômi-
co em que a empresa atua. De fato, o recebimento de R$ 1.000.000,00 de receita para
o setor de serviços revela a mesma capacidade contributiva do que a demonstrada
pelo setor industrial, comercial ou financeiro quando obtêm a mesma soma. Por
outro lado, no campo da extrafiscalidade também não se verifica qualquer razão para
desestimular as atividades das empresas prestadoras de serviços ou da maioria das
empresas comerciais e industriais, pois o fato de não gerar créditos que compensem
o aumento de alíquota é totalmente irrelevante no ponto de fiscal extrafiscal.
Ainda que o legislador entenda ser necessário utilizar a tributação como estí-
mulo à competitividade dos produtos brasileiros no exterior, o que não só é legíti-
mo, mas louvável, deve-se considerar que não se pode afastar a aplicação da capa-
cidade contributiva diante de um mero objetivo extrafiscal. É preciso, ao contrário,

4 Boletim “Em Questão n° 104/2003”, editado pela no “site” http://www.brasil.gov.br/emquestao/


5 Entrevista publicada pelo Jornal O GLOBO, na página 27 da edição de 15/04/04.

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Ricardo Lodi Ribeiro

que o objetivo extrafiscal seja razoável,6 e que prevaleça diante de um juízo de pon-
deração de valores com a capacidade contributiva,7 a fim de que não sejam criados
privilégios odiosos sob o pano da extrafiscalidade.8
De fato, a quebra do tratamento igualitário conferido pelo legislador aos que
revelam a mesma capacidade contributiva só pode se dar em função da finalidade
extrafiscal, como observa Ferreiro Lapatza,9 caso estejam presentes os requisitos
mínimos do referido princípio e quando os fins extrafiscais almejados sejam tam-
bém amparados pela Constituição.
Deste modo, num juízo de ponderação entre a capacidade contributiva e os
interesses extrafiscais almejados, os últimos não podem simplesmente suprimir a
primeira, de forma a atribuir a determinado segmento um ônus fiscal que, afas-
tando-se significativamente de sua capacidade contributiva efetiva, se traduza
numa situação de grande discriminação odiosa em relação aos demais segmentos
econômicos.
Embora o desenvolvimento econômico e o incentivo às exportações sejam
medidas tuteladas constitucionalmente, não podem servir de pretexto ao aniquila-
mento dos direitos constitucionais de vários segmentos econômicos discriminados
pela medida, de proporcionalidade duvidosa, vez que não passou, como se viu, de
estratégia para o aumento da já insuportável carga tributária, o que é incompatível
com o desenvolvimento econômico, utilizado como pretexto para o inconfessável
objetivo de aumento de arrecadação.
Ademais, a superação da capacidade contributiva dos contribuintes que não
possuem créditos significativos, aliada ao grande aumento de alíquota das duas con-
tribuições, acarreta um efeito confiscatório, vedado pelo artigo 150, IV, da Consti-
tuição Federal, consubstanciado numa tributação de quase 10% sobre o faturamen-
to, o que eleva ainda mais a carga tributária total das empresas, inviabilizando o
funcionamento da fonte produtora de riqueza.10

6 PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 37.
7 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamiento
español a la luz del Derecho aléman. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 100.
8 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 86.
9 Curso de Derecho Financiero Español. 21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 62.
10 No julgamento da ADIn nº 2.010-MC/DF, o Plenário do STF entendeu que o efeito confiscatório é verifi-
cado em função da carga tributária como um todo, como consta da ementa do acórdão, relatado pelo Min.
Celso de Mello (DJU de 12/04/02, p. 51): “A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em fun-
ção da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte –
considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os
tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver
instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade
econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutra-
lizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o cará-
ter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas in-

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Temas de Direito Constitucional Tributário

Em outro giro, não procede a alegação de que o artigo 195, § 9º, da Constituição
Federal estaria a autorizar tal distinção ao dispor que as contribuições sociais das
empresas poderão ter alíquotas e bases de cálculo diferenciadas em razão da ativida-
de econômica ou da intensidade da mão-de-obra utilizada. É preciso entender a
mens legis da Emenda Constitucional nº 20/98, que introduziu tal dispositivo no
Texto Maior. O que se pretendia com tal disciplina, à época, era rechaçar as alega-
ções das instituições financeiras, que questionavam a elevação de alíquota da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Por outro lado, a emenda procurou evi-
tar que os setores que não empregam trabalhadores tenham uma carga tributária
total menor, em razões da não-incidência das contribuições sobre folha de salários.
Por isso o § 9º do art. 195 não autoriza distinções anti isonômicas em razão da
atividade econômica e do grau de mão-de-obra utilizada, mas, ao contrário, se des-
tina a esclarecer que tal princípio cardeal não exige que todas as empresas tenham
as mesmas alíquotas e bases de cálculo. Exige sim uma equação legislativa que não
provoque privilégios ou discriminações odiosas entre contribuintes integrantes dos
vários segmentos econômicos. Deste modo, quando as instituições financeiras não
sofriam a incidência da COFINS, poderia se alegar a necessidade, por essa lógica, de
uma alíquota compensatória de CSLL. Do mesmo modo que as empresas que não
possuem empregados poderiam ter outras obrigações tributárias que restabeleces-
sem o regime legislativo equânime.
Portanto, o § 9º do art. 195 não se traduz numa exceção ao princípio da iso-
nomia. Se assim fosse seria repelido pelo sistema constitucional, por ferir a cláusu-
la pétrea do art. 60, § 4º, IV. Mas, ao revés, deve a obra do constituinte derivado
ser interpretada de acordo com a igualdade tributária.
Neste contexto, poderão ser legítimas distinções de alíquota e base de cálculo
em razão da atividade econômica e do grau de mão-de-obra utilizada nas contri-
buições ou em outros tributos, já que tal disciplina deflui diretamente do art. 150,
II, tendo o § 9º do art. 195 sentido meramente declaratório do arcabouço axiológi-
co há muito consagrado constitucionalmente em todo o mundo.
No entanto, deve-se advertir que tais distinções somente serão válidas quan-
do tais fatores, identificados no § 9º do art. 195, CF, estabelecerem características
que resultem numa diferenciação de carga tributária que não se funde na capacida-
de contributiva ou na extrafiscalidade legítima, o que não se apresenta em relação
às Leis nºs 10.637/02 e 10.883/03, que elevaram, desarrazoadamente, a carga tribu-
tária de vários segmentos para estimular as exportações.
Como vimos, a promulgação da Emenda Constitucional nº 42/03, com a intro-
dução do § 12º ao artigo 195, que autorizou a lei a definir os setores de atividade

cidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira
irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte.”

363
Ricardo Lodi Ribeiro

econômica para os quais as contribuições sobre o faturamento ou receita seriam


não-cumulativas não constitucionalizou tais normas. Tal impossibilidade se revela
não só por terem as referidas leis precedido cronologicamente a emenda constitu-
cional, que não poderia recepcionar o que já era inconstitucional sob a égide do
texto original da constituição, uma vez que já restavam violados os artigos 150, II
e IV, 195, I, b, e 239, como pelo caráter derivado do poder constituinte da EC nº
42/03, que não poderia excepcionar os princípios da isonomia e do não-confisco.
Contudo, convém ressaltar que a interpretação correta do novel dispositivo
constitucional não revela o impossível intento. Ao contrário, ao permitir ao legis-
lador a introdução da não-cumulatividade, expressão que quer designar, como
vimos, a tributação do resultado da subtração das despesas necessárias do montan-
te da receita bruta, o constituinte da EC nº 42/03 recomendou que fossem destaca-
dos pelo legislador ordinário os setores que seriam atingidos pela medida, o que,
como é óbvio perceber, deve ser feito criteriosamente levando em conta os princí-
pios constitucionais tributários. De notar ainda que a decisão constitucional tam-
bém revela que a atribuição genérica da não-cumulatividade a todos os setores da
economia não era medida possível, o que fica claro pela autorização da fixação da
sistemática não para todos, mas apenas para os segmentos definidos criteriosamen-
te por lei.
É que sendo a aplicação da não-cumulatividade geradora de efeitos tão díspa-
res entre os vários segmentos econômicos, não poderia ser adotada sem que o legis-
lador tributário observasse as peculiaridades de cada setor, sob pena de contrarie-
dade à igualdade tributária.
Ao criar um critério genérico aplicável a todos os segmentos, excetuados
alguns poucos, o legislador deixou de atentar para a incompatibilidade do regime
para os segmentos cuja receita é auferida sem grandes despesas. Como isso, tratou
igualmente os desiguais, gerando profunda crise axiológica pela elevação confisca-
tória da carga fiscal de vários setores econômicos.
Deve-se destacar que o expressivo tratamento antiisonômico entre os vários
segmentos econômicos, não só viola um dos valores centrais de nosso sistema tri-
butário, como constitui um grave embaraço ao exercício de determinada atividade,
o que se mostra incompatível também com o princípio da livre iniciativa, pilar
constitucional reator da atividade econômica, de acordo com o artigo 170.
Cumpre também enfatizar a impropriedade dos critérios adotados pelo legis-
lador para distinguir os contribuintes que se encontram sob a égide da não-cumu-
latividade, que, como se viu, se mostra mais onerosa para a maioria dos setores,
daqueles que permanecem na sistemática anterior cumulativa, que curiosamente
passou a ser enxergada como mais benéfica ao contribuinte.
De fato, não se pode vislumbrar qualquer critério constitucionalmente legíti-
mo capaz de justificar a discricionariedade legislativa, que no caso em questão, se

364
Temas de Direito Constitucional Tributário

baseou em parâmetros completamente dissociados das razões que legitimamente


servem de escopo ao tratamento fiscal específico.
O estudo das leis em exame, bem como de suas cada vez mais numerosas alte-
rações, revela que a distinção entre os segmentos excluídos do garrote não-cumu-
lativo e os que estão condenados ao regime mais oneroso, se baseia no grau de pres-
são exercido no Congresso Nacional ou no Poder Executivo.
Senão vejamos: conseguiram se eximir da nova disciplina, setores que auferem
receitas oriundas, por exemplo, de transporte coletivo, hospitais, educação infantil,
fundamental, médio e superior, edição de catálogos telefônicos, telemarketing,
hotelaria e parques temáticos, serviços postais, turismo etc. Não há dúvida de que,
sendo prestadoras de serviços, as referidas atividades não geram créditos suficien-
tes para justificar um aumento de alíquota de 153%.
Mas não se pode dizer que uma escola de ensino médio, por exemplo, gere
mais ou menos crédito do que um curso de idiomas. Ou uma editora de catálogos
em relação às editoras de livros em geral. Ou que qualquer desses setores esteja,
para os fins em questão, em situação diversa de qualquer prestador de serviços do
Brasil, segmento que tem como principal insumo a mão-de-obra de pessoas físicas,
que não pode ser objeto de crédito, de acordo com o § 2º do art. 3º da Lei nº
10.833/03.
Resta cristalino que a quebra da isonomia não se deu apenas com a inclusão
de vários setores que não possuem créditos suficientes na sistemática não cumula-
tiva, mas na própria delimitação das exclusões do regime majorado, excessivamen-
te casuísta e detalhista, gerando discriminações e privilégios odiosos.
Também estão excluídas da sistemática não-cumulativa as receitas sujeitas à
substituição tributária da COFINS (art. 10, VII, b, da Lei nº 10.833/03), o que obvia-
mente não constitui elemento hábil para tamanha distinção entre segmentos econô-
micos. Se a substituição tributária constitui técnica de simplificação da fiscalização e
arrecadação dos tributos, especialmente para setores que apresentam características
de concentração empresarial na indústria e pulverização no comércio varejista, deve
constituir-se em elemento neutro do ponto de vista da quantificação do montante
tributário devido, não se prestando como critério hábil a definir tratamento tão dis-
tinto entre os que estão submetidos à sua disciplina e os demais contribuintes.
A par da injustificada discriminação entre segmentos econômicos, a sistemá-
tica legal estabelece ainda distinções entre contribuintes que desempenham a
mesma atividade econômica, gerando outra grave violação à isonomia, sob o viés
da igualdade entre os concorrentes, interesse que mereceu do constituinte dicção
específica no art. 170, IV, e que hoje, com a EC nº 42/03, é expressamente consa-
grada em nosso Sistema Constitucional Tributário, por meio do princípio da neu-
tralidade fiscal (art. 146-A). De acordo com as referidas pautas valorativas, a tribu-
tação deve se constituir em elemento neutro, não servindo como fator de desequi-
líbrio entre os concorrentes.

365
Ricardo Lodi Ribeiro

A distinção, violadora da livre concorrência, entre empresas que atuam na


mesma seara econômica se manifesta pela exclusão do regime geral não-cumulati-
vo das empresas tributadas pelo lucro presumido ou arbitrado. Como se sabe,
podem ser optantes do lucro presumido as pessoas jurídicas que tenham receita
anual inferior a 48 milhões de reais, que não escriturem receitas oriundas do exte-
rior, que não gozem de isenção ou redução do IR, e nem tenham efetuado paga-
mento mensal pelo regime de estimativa, excluídas as instituições financeiras e as
empresas de factoring.11
Se esses critérios são, em tese, hábeis para estabelecer distinções quanto à apu-
ração do imposto de renda, máxime quando estas distinções partem da presunção
legal de que a receita presumida equivalerá ao que seria realmente apurado, não são
razoáveis para determinar quais os contribuintes são excluídos do regime não
cumulativo, o que ensejará diferenças abissais na apuração do PIS e da COFINS.
Diante desse quadro podemos ter, por exemplo, o absurdo de condenar uma
empresa ao regime majorado da não-cumulatividade por ser isenta ou ter direito à
redução do IR, motivo que leva à imposição da apuração pelo lucro real, de acordo
com o artigo 14, IV, da Lei nº 9.718/98. Assim, encontra-se no regime mais gravoso
uma pessoa jurídica que tenha desenvolvido projeto de modernização de setor eco-
nômico prioritário para o desenvolvimento regional nas áreas abrangidas pelas extin-
tas SUDENE e SUDAM, pois goza de redução de IR, de acordo com o artigo 1º da
Medida Provisória nº 2.199-14/01, cuja vigência foi indefinidamente prorrogada pela
EC nº 32/01. Como não é difícil perceber, o incentivo fiscal em questão se baseia no
combate ao desequilíbrio inter-regional. Justamente por este motivo, a empresa deve,
de acordo com a citada lei, apurar o IR pelo o lucro real, estando, por este motivo, a
ela atribuída a disciplina majorada da não-cumulatividade de PIS e COFINS.
Não é outro o caso das sociedades civis sem fins lucrativos, isentas do IR pelo
artigo 15 da Lei nº 9.718/98. Embora sejam também isentas da COFINS pelo artigo
14 da Medida Provisória nº 2.158-35/01, igualmente prorrogada pela EC nº 32/01,
o benefício se limita às suas receitas próprias, assim consideradas pela Receita
Federal como as que não são decorrentes de aplicações financeiras e contrapresta-
ções de venda de mercadorias e serviços ainda que aos seus associados.12 Com isso,
as empresas mercantis com fins lucrativos, que cumpram os demais requisitos
legais, podem optar pelo lucro presumido, e com isso, serem excluídas da sistemá-
tica não-cumulativa do PIS e da COFINS. O mesmo direito não tem uma socieda-
de civil sem fins lucrativos, que por este motivo, sofrerá a incidência majorada das
contribuições sobre o faturamento em relação às receitas das vendas de mercado-
rias e serviços.

11 Art. 14 da Lei nº 9.718/98, com redação dada pelo art. 46 da Lei nº 10.637/02.
12 Solução de Consulta nº 5 da COSIT (DOU de 16/05/02), apud HIGUCHI, Hiromi e HIGUCHI, Celso
Hiroyuki. Imposto de Renda das Empresas. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 423.

366
Temas de Direito Constitucional Tributário

Os dois exemplos mostram a total desarmonia entre a legislação do imposto de


renda e os critérios para a sua apuração em relação aos casos de exclusão do regime
não-cumulativo de PIS/COFINS. Os mesmos critérios que servem para dar um tra-
tamento mais benéfico no IR, considerando a ausência de fins lucrativos ou o com-
bate às desequilíbrios regionais, são indevidamente utilizados pelo legislador para
dar aos contribuintes a um tratamento mais oneroso nas contribuições sociais, em
flagrante violação aos princípios da isonomia e da unidade da ordem jurídica.
Portanto, com a atual sistemática legal, dentro de um mesmo segmento eco-
nômico teremos empresas que, podendo optar pelo lucro presumido, conseguem
fugir da carga tributária de 9,25% de PIS/COFINS, sendo tributados no percentual
de 3,65%. Já as empresas que, por qualquer das razões apontadas, forem obrigadas
à apuração pelo lucro real, estão inexoravelmente condenadas à tributação mais
gravosa. A comparação da carga tributária desses dois contribuintes do mesmo
setor econômico fará da tributação do PIS/COFINS ser um elemento decisivo na
concorrência, uma vez que o segundo não terá capacidade de oferecer as mesmas
condições que o primeiro oferece aos seus clientes.
A contradição axiológica fica mais evidente ainda quando verificamos que o
contribuinte que apura o imposto de renda pelo lucro arbitrado está excluído da
sistemática não-cumulativa. Ora, como se sabe, o lucro é arbitrado quando o con-
tribuinte não mantém sua escrituração correta, ou quando, não podendo optar pelo
lucro presumido, o faz. Portanto, o enquadramento no lucro arbitrado pressupõe a
prática de ato ilícito. Sendo o regime não-cumulativo mais gravoso, a exclusão dos
faltosos deste se traduz num incentivo do legislador à iliticitude, pois propicia um
tratamento mais favorável do que aquele imposto ao que, tendo cumprido suas
obrigações acessórias, deve obrigatoriamente apurar o imposto pelo lucro real.
Assim, o ilícito será compensador toda vez que os acréscimos tributários oriundos
da apuração pelo lucro arbitrado forem inferiores ao aumento de tributo no regi-
me não-cumulativo, o que, pelas regras vigentes, não é situação invulgar.
Todas as apontadas contradições axiológicas levadas a efeito pelas Leis
10.637/02 e 10.833/03 revelam que os critérios adotados pelo legislador, para dis-
tinguir os contribuintes que vão se submeter a dois regimes jurídicos tão díspares
quanto os resultados econômicos e jurídicos, não são constitucionalmente tutela-
dos, o que leva inexoravelmente ao afastamento total do novo modelo legal.

4) O Creditamento das Despesas Necessárias: o Caso da


Mão-de-Obra das Pessoas Físicas

Como vimos, a sistemática constitucional não-cumulativa do PIS e da COFINS


não segue a lógica da dedução dos tributos incidentes sobre as entradas em relação

367
Ricardo Lodi Ribeiro

aos tributos incidentes sobre as saídas, mas da dedução das despesas necessárias do
montante da receita auferida.
Deste modo, a vedação ao creditamento das despesas necessárias à produção
do resultado fere a não-cumulatividade constitucional e a própria idéia de fatura-
mento. Como corolário desta premissa, a lei reguladora do regime não-cumulativo
deve admitir o aproveitamento como crédito de todos os insumos da atividade eco-
nômica, a partir de uma acepção bem mais ampla do que a adotada nos tributos
incidentes sobre a circulação de bens.
Assim, só uma interpretação extensiva da expressão insumo, contida no arti-
go 3º da Lei nº 10.833/03 como geradora do direito ao crédito, a despeito de não sal-
var a referida norma de todos os vícios apontados, é compatível com a não-cumu-
latividade estabelecida constitucionalmente para as contribuições sobre o fatura-
mento.
Em conseqüência, a vedação de dedução das despesas com a contratação de
mão-de-obra prestada por pessoas físicas acentua a discriminação odiosa contra os
que estão inseridos no regime não-cumulativo, especialmente as empresas presta-
doras de serviço, cuja carga tributária elevou-se assustadoramente, sem o devido
crédito de seu principal insumo.
Muitos têm sustentado o acerto da medida, considerando que não incidem
COFINS e PIS sobre os pagamentos efetuados a pessoas físicas, o que justificaria a
inexistência do direito ao crédito. No entanto, cumpre esclarecer, de logo, que tal
raciocínio só faz sentido na sistemática da não-cumulatividade do ICMS e do IPI,
onde o imposto incide sobre mercadorias e produtos saídos do estabelecimento
contribuinte. Nesse universo, gera direito a crédito, o imposto incidente sobre as
mercadorias e produtos entrados no estabelecimento.
Porém, a mesma lógica não pode ser adotada no PIS e na COFINS, uma vez
que, como visto, estas incidem sobre toda a receita bruta da empresa, que passou a
ser tributada de forma majorada em razão do novel direito de crédito. Logo, como
visto, a vedação ao creditamento de todas as despesas necessárias à obtenção da
receita é violadora do artigo 195, I, b e seu § 12, c/c o art. 239 da CF.
Ademais, a vedação em questão constitui um velado incentivo à artificiosa
criação de pessoas jurídicas prestadoras de serviços, que teriam como único objeti-
vo a terceirização da mão-de-obra. Se esta empresa puder optar pelo lucro presu-
mido, a contratante, embora retendo a COFINS e o PIS na fonte, vai obter grande
vantagem fiscal, pois será onerada em apenas 3,65% sobre tais receitas. Mais uma
vez, o legislador das Leis 10.637 e 10.833 estaria prestigiando valores constitucio-
nalmente consagrados. Neste caso, olvidados estaria o primado do trabalho, pilar
do nosso ordenamento constitucional econômico (art. 170, VIII), provocando
redução dos direitos trabalhistas dos empregados.

368
Temas de Direito Constitucional Tributário

5) Conclusão

Diante de todo o exposto, ficou demonstrado que a não-cumulatividade do


PIS e da COFINS segue disciplina constitucional própria, diversa daquela destina-
da ao ICMS e ao IPI, uma vez que as contribuições sociais em questão incidem
sobre receita ou faturamento, realidade que não se confunde com a circulação de
bens e serviços pela cadeia econômica.
Em conseqüência, a não-cumulatividade das contribuições incidentes sobre o
faturamento é obtida a partir da dedução, em relação ao faturamento das despesas
necessárias para a produção do resultado econômico e auferimento da receita, a
partir do modelo de dedução “base sobre base”.
Deste modo, fica clarificada a inconstitucionalidade da adoção da chamada
não-cumulatividade do PIS e da COFINS pelas Leis nºs 10.637/02 e 10.883/03, por
violação das matrizes constitucionais de competência tributária, extraídas dos arti-
gos 195, I, b, e 239, da não-cumulatividade aplicável às referidas contribuições (art.
195, § 12), e dos princípios da isonomia tributária e do não-confisco, consagrados
no artigo 150, II e IV, todos da Constituição Federal.
Por outro lado, uma regulamentação da não-cumulatividade conforme a
Constituição leva ao reconhecimento do direito de crédito em relação a todas as
despesas necessárias à produção do resultado econômico, inclusive as referentes à
mão-de-obra prestada por pessoa física.

369
XXI
A Prescrição e a Decadência do Crédito Tributário
Sumário: 1) Introdução. 2) Decadência e Prescrição e os seus Conceitos na Teoria Geral do
Direito. 3) A Decadência e a Prescrição no Direito Tributário. 4) A Decadência Tributária
no Direito Brasileiro. 5) A Prescrição Tributária no Direito Brasileiro. 5.1) Causas de Sus-
pensão da Prescrição. 5.2) Causas de Interrupção da Prescrição. 5.3) A Prescrição
Intercorrente. 6) Conclusões.

1) Introdução

A questão dos prazos para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário e


promover a sua cobrança judicial é um dos temas que tem apresentado maior difi-
culdade aos operadores do direito tributário nos últimos anos, o que se deve não só
à oscilação da jurisprudência dos tribunais, mas à abundante ação legislativa nos
últimos anos.
Na verdade os dois fatores se justificam, em alguma medida, a uma estrutura
legislativa do Código Tributário Nacional que se apresenta um tanto distante da
realidade atual, em que praticamente todos os tributos são lançados por homologa-
ção, bem como uma apreciação do fenômeno da prescrição e da decadência sem a
devida consideração ao valor da segurança jurídica, fundamento dos dois institutos.
Por outro lado, o exame do tema da extinção do direito de a Fazenda Pública
lançar e cobrar o crédito tributário envolve uma intricada equação onde não só são
fundamentais os conceitos que a teoria geral do direito estabelece para os institu-
tos da prescrição e da decadência, como ainda engloba o estudo das normas que
cada direito positivo prescreve no que tange à liquidação e cobrança da dívida tri-
butária.
Nesse sentido, é indispensável a pesquisa do conteúdo da prescrição e da deca-
dência, indo além das definições que só examinam os institutos pelos seus objetos
e efeitos, para verificar a natureza do direito a que se dirige cada um deles.
Na aplicação desses conceitos ao direito tributário, faz-se mister examinar a
natureza do lançamento tributário e da cobrança do crédito a ele relativo, pois a
sistemática legal adotada em cada direito positivo vai nos trazer decisivas revela-
ções nesse campo, especialmente quanto à estruturação unitária ou dualista no que
se refere ao direito de lançar e ao direito de cobrar, estabelecida nos diplomas legis-
lativos.
Estabelecida a natureza jurídica dos institutos previstos na nossa legislação será
então possível verificar os termos iniciais dos prazos, restando resolver a problemá-
tica sobre as possibilidades de sua suspensão e interrupção. No entanto, a tarefa

371
Ricardo Lodi Ribeiro

revela maior dificuldade à luz de uma Constituição Federal, como a nossa, que atri-
bui a disciplina da prescrição e da decadência tributárias à lei complementar.
Tratando-se de institutos que, em nome da segurança jurídica, admitem a pre-
valência de uma situação de injustiça, a prescrição e a decadência devem ter seus
prazos – bem como os termos iniciais destes – expressamente fixados em lei.
Outrossim, tal lei não deve perder de vista os contornos que os referidos institutos
possuem na teoria geral do direito, especialmente quanto ao princípio da actio nata.
Por todas essas dificuldades, a matéria revela-se extremamente controvertida,
não se encontrando, seja na doutrina, seja na jurisprudência, uma posição consen-
sual a seu respeito, o que torna o tema, embora por diversas vezes já explorado,
sempre atual.

2) Decadência e Prescrição e os seus Conceitos na Teoria Geral


do Direito

O conteúdo dos institutos da prescrição e da decadência, bem como a distin-


ção entre os dois institutos, sempre foi matéria controvertida na teoria geral do
direito e no direito civil. Embora os dois tenham em comum o fundamento na
segurança nas relações jurídicas e os elementos da inércia do titular do direito e o
decurso do prazo legal, há muito a doutrina procura apontar, sem consenso, as dis-
tinções entre as duas modalidades extintivas de direitos.
A patente dificuldade de promover tal distinção era agravada pelo Código
Civil Brasileiro de 1916, que previa indiscriminadamente casos de prescrição e de
decadência. Já o atual Código Civil (Lei nº 10. 406, de 10 de janeiro de 2002), mino-
rou o problema, estabelecendo uma disciplina própria para os casos de decadência.
É bastante comum se encontrar na doutrina que a distinção se opera a partir
do objeto do que é extinto. Na decadência estaria extinto o direito, e na prescrição
a ação que reveste esse direito. Em conseqüência, a prescrição, ao contrário da
decadência, seria suscetível de interrupção e suspensão de seu prazo.1
Explica Câmara Leal que tal distinção se origina da concomitância ou não do
nascimento do direito ao nascimento da ação:

“a) a prescrição supõe uma ação, cuja origem é distinta da origem do direi-
to, tendo, por isso, um nascimento posterior ao nascimento do direito;
b) a decadência supõe uma ação, cuja origem é idêntica à origem do direi-
to, sendo, por isso, simultâneo o nascimento de ambos.”2

1 Por todos, Silvio Rodrigues. Direito Civil. Vol. 1, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 326.
2 LEAL, Antônio Luis da Câmara. Da Prescrição e da Decadência. 2ª edição. Rio de Janeiro: Rio, 1959, p. 114.

372
Temas de Direito Constitucional Tributário

No entanto, embora correta, a distinção apresentada pela doutrina leva em


consideração apenas a origem, o objeto e o efeito dos dois institutos, não apontan-
do um caminho seguro para se definir previamente, quais os direitos que nasceriam
juntamente com a própria ação.
Resposta mais adequada a tal indagação nos é dada por Agnelo Amorim
Filho,3 que a partir das lições de Chiovenda sobre direitos postetativos e direitos a
prestação, estabeleceu um critério bastante eficaz para a distinção de prescrição e
decadência.
Segundo Chiovenda4 os direitos subjetivos se dividem em direitos que têm
por finalidade a obtenção de um bem da vida, a partir de uma prestação, positiva
ou negativa, por um sujeito passivo, denominados pelo mestre italiano de direitos
a uma prestação; e os que compreendem poderes a que a lei confere a determina-
das pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas
das outras sem o concurso da vontade dessas e sem que essas tenham que prestar o
que quer que seja – denominados de direitos potestativos.
Os direitos potestativos não se confundem com as meras faculdades, na visão
de Chiovenda: “Esses poderes (que não se devem confundir com as simples mani-
festações jurídicas como a faculdade de testar, de contratar e semelhantes, a que
não corresponde nenhuma sujeição alheia) se exercitam e atuam mediante simples
declaração de vontade, mas, em alguns casos, com a necessária intervenção do juiz.
Têm todas de comum tender à produção de um efeito jurídico a favor de um sujei-
to e a cargo de outro, o qual nada deve fazer, mas nem por isso pode esquivar-se
àquele efeito, permanecendo sujeito à sua produção. A sujeição é um estado jurídi-
co que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude dele.”5
Assim, os direitos potestativos são aqueles que se originam de uma sujeição do
sujeito passivo à vontade do sujeito ativo, onde o primeiro, mesmo não devendo
fazer o que quer que seja, é obrigado a suportar os efeitos jurídicos de uma decla-
ração de vontade do segundo. É por exemplo o direito que um filho tem de pleitear
o reconhecimento da paternidade, ou o do condômino vender a coisa comum.6
Já os direitos a uma pretensão são satisfeitos por meio de uma prestação posi-
tiva ou negativa que o sujeito passivo dá ao sujeito ativo, como, por exemplo, as
obrigações. Estas são compostas por dois elementos: o débito (schuld) e a responsa-
bilidade (haftung), onde o primeiro elemento representa o dever à prestação de
dar, fazer ou não fazer, a ser cumprido espontaneamente pelo sujeito passivo e o

3 AMORIM FILHO, Agnelo. “Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e Para
Identificar as Ações Imprescritíveis.” Revista Forense nº 193, Rio de Janeiro: Forense, p. 30.
4 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, traduzida da 2ª edição italiana por J.
Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1965, pp. 15 e 16.
5 Ibidem.
6 Exemplos extraídos de AGNELO AMORIM JÚNIOR, ob. cit., p. 35.

373
Ricardo Lodi Ribeiro

segundo, o poder coativo do sujeito ativo sobre o devedor, ou seja, o direito de exi-
gir o cumprimento da obrigação.7
Fixada a distinção entre pretensão e sujeição, e por conseqüência, entre direi-
tos a uma pretensão e direitos potestativos, Agnelo Amorim Júnior estabelece que
os direitos a uma pretensão, por serem passíveis de uma violação por parte daque-
le que deve prestar, têm extintas as ações que os revestem pela prescrição, enquan-
to que os direitos potestativos, por não poderem ser violados pelo sujeito passivo,
que nada pode fazer para evitar a produção de efeitos da declaração de vontade do
titular do direito, são extintos pelo decurso do prazo para o seu exercício.
Prossegue Agnelo Amorim Júnior estabelecendo a disciplina da decadência e da
prescrição em relação às sentenças constitutivas, condenatórias e declaratórias.
Seguindo mais uma vez as lições de Chiovenda, o mestre paraibano leciona que as ações
condenatórias são as que visam à obtenção de uma prestação (positiva ou negativa) do
réu, pois a condenação é corolário da existência de uma prestação. Por sua vez, a ação
constitutiva não se destina à obtenção de uma prestação, mas à criação, modificação ou
extinção de um estado jurídico. Já as ações declaratórias têm como objeto o estabeleci-
mento de uma certeza jurídica, certificando a existência ou não de um direito.8
Como conseqüência, se as ações condenatórias visam a uma prestação, e são os
direitos à prestação atingidos pela prescrição, esta as extinguirá. Nas ações, em que
não haja prestação, mas criação, extinção e modificação de um estado, a extinção se
opera pela decadência, que atingirá a sujeição decorrente do estado que se criou,
modificou ou extinguiu. No entanto, as ações declaratórias não são atingidas pela
prescrição ou pela decadência,9 uma vez que o seu objeto se limita a conferir cer-
teza jurídica. A sentença declaratória nada modifica no mundo jurídico. Não sujei-
ta o réu a uma pretensão, nem cria, modifica ou extingue qualquer direito. Se não
se relaciona a uma pretensão ou sujeição, não se compatibiliza com os institutos da
prescrição ou da decadência.
A razão pela qual a decadência extingue o direito e a prescrição a ação é escla-
recida por mais uma lição de Agnelo Amorim Júnior:

“Tal conseqüência (a extinção do direito) tem uma explicação perfeitamente


lógica: é que (ao contrário do que ocorre com os direitos suscetíveis de lesão)
nos direitos potestativos subordinados a prazo, o que causa intranqüilidade
social não é, propriamente, a existência da ação, mas a existência do direito,
tanto que há direitos dessa classe ligados a prazo, embora não sejam exercitá-
veis por meio de ação. O que intranqüiliza não é a possibilidade de ser pro-
posta a ação, mas a possibilidade de ser exercido o direito. Assim, extinguir a

7 GOMES, Orlando. Obrigações. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 15.


8 AMORIM JÚNIOR. Ob. cit., p. 35.
9 Ibidem, p. 41.

374
Temas de Direito Constitucional Tributário

ação, e deixar o direito sobreviver (como ocorre na prescrição), de nada adian-


taria, pois a situação de intranqüilidade continuaria de pé. Infere-se, daí, que
quando a lei fixa prazo para o exercício de um direito potestativo, o que ela
tem em vista, em primeiro lugar, é a extinção desse direito, e não a extinção
da ação. Esta também se extingue, mas por via indireta, como conseqüência
da extinção do direito.
“O mesmo fato não é observado com referência à outra categoria de direitos (os
‘direitos a uma prestação’): a lei não fixa, e nem tem motivos para fixar, prazo
para o exercício de nenhum deles. Com relação a esses direitos, os prazos, que
existem, fixados em lei, são tão-somente para a propositura das ações por meio
das quais eles são protegidos. Assim, o decurso do prazo, sem a propositura da
ação, implica extinção desta, e não na extinção do direito que ela protege, pois
– repita-se – em face dos denominados ‘direitos a uma prestação’, a ação fun-
ciona como meio de proteção e não como meio de exercício.”10

Parece-nos correta a distinção, desde que, e isso não fica evidente na obra de
Agnelo Amorim Júnior, se dê uma concepção mais ampla ao vocábulo ação, afinal,
a prescrição atinge não apenas a possibilidade do titular do direito prescrito utili-
zar-se de uma ação judicial para exigir seus direitos; perece com a prescrição a pró-
pria pretensão jurídica.11
Seguindo essa linha, o Código Civil de 2002, estabelece em seu art. 189, que a
prescrição extingue a pretensão.
Segundo Pontes de Miranda a pretensão é:

“a posição subjetiva de exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa.”12

Ou seja, o direito torna-se inexigível.


Na prescrição, não bastam a inércia do titular do direito e o decurso do tempo. É
preciso ainda a negação do direito por parte do seu sujeito passivo. Por isso, a prescri-
ção, ao contrário da decadência, é renunciável. Isso significa que a dívida prescrita que
foi paga não deve ser restituída.13 Nota-se que esse quadro não foi alterado pelo adven-
to da Lei nº 11.280/06, que, dando nova redação ao § 5º do art. 219 do CPC,14 permi-
tiu ao juiz o reconhecimento da prescrição de ofício. É que a referida lei, se revogou o
artigo 194 do Código Civil, não alterou o artigo 191 do mesmo diploma legal.

10 Ob. cit., p. 40.


11 No sentido do texto, vide PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado – Tomo 5. Parte Geral.
Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2000, p. 135).
12 Ob. cit., p. 504.
13 Art. 161 do Código Civil de 1916 e art. 191 do Código Civil de 2002.
14 “§ 5º O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição” (Art. 219 do CPC).

375
Ricardo Lodi Ribeiro

Quanto ao termo inicial do prazo prescricional, não se pode olvidar que a


prescrição pressupõe a violação de um direito. Logo, é preciso identificar o nasci-
mento da ação, ou a actio nata, ou seja, o momento em que o direito começou a ser
violado, dando margem a sua proteção pela ação que o reveste, como leciona
Câmara Leal:15

“O momento de início do curso da prescrição, ou seja, o momento inicial do


prazo, é determinado pelo nascimento da ação – actioni nondum natae non
praescritur.
“Desde então o direito está normalmente exercido, ou não sofre qualquer obs-
táculo, por parte de outrem, não há ação exercitável.
“Mas, se o direito é desrespeitado, violado, ou ameaçado, ao titular incumbe
protegê-lo e, para isso dispõe da ação.”

Por isso, é da natureza do instituto que o prazo de prescrição seja suspenso ou


interrompido. As causas de suspensão correspondem a períodos que o direito de
ação não pode ser exercido,16 ou em que o exercício resta improvável, o que se dá,
por exemplo, quando as relações de afeto entre as partes não assim recomendam,
como as ações entre os cônjuges na constância do casamento.17 Os efeitos da sus-
pensão fazem parar a contagem do prazo, que começará a correr de onde parou, tão
logo cesse a causa suspensiva que lhe originou.
Já as causas de interrupção dizem respeito às manifestações do titular do direi-
to que, ora rompe a inércia em que se encontrava, ora reconhece o direito por parte
do devedor. No primeiro caso, deixa de existir o requisito da inércia do titular do
direito; no segundo, a própria violação desaparece. Em ambos os casos o efeito é o
mesmo: anular a prescrição já iniciada, que recomeça a contar do início.18
De outro lado, os prazos de decadência não se subordinam à regra da actio
nata, uma vez que se efetivam sem qualquer prestação por parte do devedor. O seu
termo inicial é o mesmo do exercício do próprio direito, que nasce com prazo pré-
fixado para o seu exercício. Assim, o seu curso independe de lesão ao direito a ense-
jar o exercício do direito de ação. Por isso mesmo, o prazo decadencial não deve,
em princípio, ser suspenso ou interrompido. Porém, nada impede que a lei preve-
ja a possibilidade de um direito potestativo ter o seu prazo de exercício interrom-
pido ou suspenso. Não é da lógica do sistema, mas não constitui uma negação da
natureza decadencial do prazo, do que é exemplo os §§ 2º e 3º do artigo 26 do

15 Ob. cit., p. 256.


16 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. I. 21ª edição. Atualizada por Maria
Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 698.
17 Ob. cit., p. 697.
18 Idem, p. 698.

376
Temas de Direito Constitucional Tributário

Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Na verdade, a previsão de in-


terrupção ou suspensão de prazo decadencial nada mais é do que uma ampliação do
prazo legal, em caso de ocorrência de certas circunstâncias consideradas relevantes
pelo legislador. A possibilidade de o prazo de decadência ser suspenso ou interrom-
pido por expressa disposição legal é reconhecida pelo artigo 207 do novo Código
Civil (Lei 10.406/2002).

3) A Decadência e a Prescrição no Direito Tributário

A despeito da indispensável contribuição que a teoria geral do direito dá ao


tema – e nesse sentido todas as conclusões anteriormente expostas são válidas
para o direito tributário – é forçoso reconhecer que a extinção do direito de cons-
tituir e cobrar o crédito tributário se subordina às regras ditadas pelo direito posi-
tivo de cada país. E essa afirmação se confirma pela resposta que cada legislação
dá a duas questões. A primeira indagação diz respeito à estrutura que o direito
positivo confere à liquidação e cobrança do crédito tributário. O Código Tributá-
rio Nacional do Brasil, por exemplo, adota uma estrutura dualista, estabelecendo
uma fase inicial para a constituição do crédito, que é fenômeno que não se con-
funde com o nascimento da obrigação tributária, e outra para a sua cobrança. Na
maioria dos países, tal dualismo não se manifesta. A outra indagação se prende à
expressa previsão legal do conceito de prescrição e decadência pela legislação tri-
butária, ou a opção pela utilização das definições extraídas do direito civil, como
prefere o nosso CTN.
De fato, não é raro encontrarmos da doutrina dificuldade na distinção entre a
prescrição e a decadência no direito tributário. No entanto, a questão dependerá de
como a legislação de cada país estrutura a liquidação e cobrança dos tributos. Como
bem observa Giuliani Fonrouge,19 a distinção entre prescrição e decadência só tem
sentido se adotada como premissa a tese desenvolvida pela doutrina alemã de Otto
Mayer – anterior ao atual código tributário germânico, que estabeleceu uma natu-
reza constitutiva ao lançamento. Assim, se a legislação dá um prazo diferenciado
para a liquidação do imposto e outro para a cobrança desse crédito, sendo a primei-
ra pressuposto da segunda, teremos prazos diferenciados para a prescrição e para a
decadência.
No Brasil, o CTN, adotando a tese de que o lançamento é declaratório em rela-
ção à obrigação tributária e constitutivo em relação ao crédito, estabeleceu, nos arti-
gos 173 e 174, prazos distintos para o lançamento e a cobrança. Fxam também pra-
zos distintos para a extinção do direito de lançar e do direito de cobrar o Código de

19 GIULIANI FONROUGE, Carlos M. Derecho Financiero. Vol. 1. 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 2001, p.
611.

377
Ricardo Lodi Ribeiro

Processo Tributário de 1991 de Portugal,20 o Código Tributário do Equador,21 e o


Código Fiscal da Província de Buenos Aires.22
Na estrutura adotada pelo nosso CTN, a obrigação tributária nasce com o fato
gerador. Mas tal obrigação não tem como paralelo a obrigação civil,23 pois um cré-
dito a ela não corresponde. Se à obrigação civil correspondem, como vimos, o débi-
to e a responsabilidade, a obrigação tributária é desprovida de responsabilidade. Ou
seja, é inexigível. A exigibilidade surgirá com o lançamento. Deste modo, antes do
lançamento, o contribuinte tem o dever de pagar – exceto no caso dos tributos lan-
çados de ofício e por declaração, em que o pagamento pressupõe o lançamento –; a
Fazenda, no entanto, ainda não tem o direito de exigir o tributo.
Adotada essa estrutura dualista pelo CTN, vale examinar se o direito de lan-
çar e o direito de cobrar se inserem nos direitos submetidos à prescrição ou à deca-
dência.
Em primeiro lugar, vale registrar que nosso CTN não define prescrição e deca-
dência no direito tributário, limitando-se a determinar a extinção do direito de lan-
çar, no artigo 173, e a prescrição da ação de cobrança no artigo 174. Não havendo
definição dos institutos pela lei tributária, recorre-se aos conceitos, conteúdo e
forma adotados no direito privado, com base no art. 109 do CTN.
Mas teriam os direitos de lançar e de cobrar a mesma natureza? Para Aurélio
Seixas Filho, a resposta é afirmativa.24 Segundo o festejado autor, o direito de lan-
çar não seria um direito potestativo, pois não subordinaria o contribuinte a uma
sujeição. Porém, a tese parte do pressuposto de que o lançamento não é imprescin-
dível. Como o referido autor mesmo reconhece, sendo adotada a teoria da impres-
cindibilidade do lançamento, caminho seguido pelo CTN, a conclusão seria a de
que o direito de lançar seria extinto pela decadência.25
A despeito das valorosas contribuições doutrinárias que se afastam do CTN, e
que se adaptam perfeitamente aos regimes legais de outros países, entendemos que
procurar fora da lei pátria explicação para a prescrição e a decadência, especialmen-
te quanto aos seus prazos, termos, causas de suspensão e interrupção, significa esva-

20 MARTÍNEZ, Pedro Mário Soares. Direito Fiscal. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 308.
21 GIULIANI FONROUGE. Ob. cit., p. 611.
22 VILLEGAS, Héctor. Curso de Direito Tributário. Tradução por Roque Antônio Carrazza. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1980, p. 142.
23 A utilização pelo nosso CTN da expressão obrigação tributária provoca grande confusão na doutrina, que
acaba por lhe conferir conteúdo privatista que ela não possui, como bem observa SEIXAS FILHO,
Aurélio (Estudos de Procedimento Administrativo Fiscal Estudos de Procedimento Administrativo
Fiscal. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2000, p. 21).
24 “O Lançamento Tributário e a Decadência”, cit., p. 35.
25 Pela tese da extinção do direito de lançar pela decadência MICHELI, Gian Antonio. Curso de Direito
Tributário. Tradução por Marco Aurélio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978, p. 260. Contra FERRERO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financiero Español.
21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 430, que defende ser o prazo prescricional.

378
Temas de Direito Constitucional Tributário

ziar tais institutos daquilo que eles possuem de mais genuíno: a proteção à seguran-
ça jurídica.
Por isso, e pelo exame da estrutura adotada pelo CTN, o prazo para lançar o
tributo se traduz em direito potestativo da Fazenda Pública constituir o crédito tri-
butário em face do contribuinte. Revela-se aí uma sujeição do contribuinte a uma
declaração do Fisco. Ocorrido o fato gerador, o Estado tem o direito potestativo de
efetuar o lançamento, sujeitando o contribuinte – que nada poderá fazer para evi-
tar os efeitos próprios a este procedimento. Este se tornará então devedor do cré-
dito lançado. A partir daí – após o lançamento – é que surgirá o direito de cobrar o
crédito, exigindo-se do contribuinte a prestação tributária. Logo, de acordo com a
classificação proposta por Agnelo Amorim Júnior, o direito de lançar seria extinto
pela decadência e o direito de cobrar pela prescrição.26
O CTN elenca tanto a prescrição, quanto à decadência como causas de extin-
ção do crédito tributário. De fato, ambas têm esse efeito extintivo sobre o crédito.
Assim como se dá no direito civil, a prescrição tributária extingue a pretensão, a
exigibilidade, que é justamente o que o crédito, segundo a sistemática do CTN, tem
de plus em relação à obrigação. Porém, a decadência extingue o próprio direito de
lançar, atingindo a obrigação tributária em seu cerne. Extinta a obrigação, extin-
gue-se em conseqüência o crédito. Assim, dentro da sistemática adotada pelo nosso
CTN, a prescrição extingue o crédito tributário, como prescreve o seu art. 156, V,
mas não atinge a obrigação, ou seja, o débito. Logo, quem paga tributo prescrito não
tem direito à restituição.27
A questão de saber se a prescrição tributária pode ser reconhecida pelo juiz,
ganha novos contornos com a edição da Lei nº 11.051/04, que inseriu um § 4º ao
artigo 40 da LEF (Lei nº 6.830/80) e da Lei nº 11.280/06, que alterou o § 5º do art.
219 do CPC. Chegamos a defender, antes da edição das referidas leis, a impossibi-

26 Partindo da mesma classificação proposta por Agnelo Amorim Júnior, SEIXAS FILHO, Aurélio (Ob. cit.,
p. 35), conclui que o direito de lançar não gera uma sujeição, mas uma prestação, extinguindo-se pela
prescrição. No mesmo sentido do texto, Hugo de Brito Machado: “A diferença essencial entre decadên-
cia e prescrição, no Direito Tributário, está em que a primeira diz respeito ao direito de lançar, ou de
rever o lançamento, enquanto a segunda diz respeito ao direito de haver o tributo lançado. O direito de
lançar é da categoria dos direitos potestativos, pois sua satisfação depende exclusivamente de seu pró-
prio titular. Ficando este inerte até o final do prazo fixado em lei para o exercício do direito, este pere-
ce pela decadência. O direito de haver o crédito tributário, vale dizer, o direito de haver o tributo lan-
çado, é da categoria dos direitos a uma prestação, pois sua satisfação depende da colaboração de outrem.
O direito que tem a Fazenda de receber o valor do tributo lançado depende da colaboração do sujeito
passivo da obrigação tributária, vale dizer, depende de que este efetue o pagamento. Se tal não ocorre, a
Fazenda Pública precisa da ação de execução, para compelir o sujeito passivo ao pagamento. Assim, a
morte do direito de ação, pela inércia da Fazenda em promovê-lo no prazo que a lei estabelece para esse
fim, denomina-se prescrição (“Lançamento Tributário e a Decadência”. In MACHADO, Hugo de Brito
(coord.). Lançamento Tributário e Decadência, cit., p. 236).
27 Nesse sentido FANCCHI, Fábio. A Decadência e a Prescrição em Direito Tributário. 4. ed., 11. tiragem.
São Paulo: Resenha Tributária, 1986, vol. I, p. 126. Contra MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de
Direito Tributário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, vol. I, p. 472.

379
Ricardo Lodi Ribeiro

lidade de reconhecimento de ofício pelo juiz.28 Nossa posição, que inclusive encon-
trava apoio na jurisprudência do STJ,29 se baseava no argumento de que a prescri-
ção podia ser renunciada pela parte a quem aproveita. Assim, representando a pres-
crição extinção da pretensão, e não do tributo, não caberia ao juiz a iniciativa de
reconhecê-la.
No entanto, hoje é forçoso reconhecer que a alteração do § 5º do artigo 219 do
CPC pela Lei 11.280/06 produziu uma revolução em todo o sistema legislativo que
cuida da prescrição, projetando seus efeitos também sobre o subsistema tributário,
onde alteração análoga já havia sido produzida pela Lei 11.051/04. É bem verdade
que esta se referiu apenas à prescrição intercorrente, aplicada no caso de suspensão
da execução fiscal por impossibilidade fática de constrição patrimonial do devedor
(art. 40 da LEF). Contudo, tendo o legislador processual tributário adotado critério
que hoje é a regra geral de todo o sistema jurídico, e inexistindo qualquer outra
norma em sentido contrário na legislação tributária, não há antinomia a reconhe-
cer. Assim, a partir da vigência da Lei nº 11.51/04, a prescrição tributária pode ser
reconhecida de ofício pelo juiz, mesmo fora dos casos previstos no artigo 40 da LEF.
Quanto à decadência, nunca houve óbice ao reconhecimento de ofício pelo juiz.

4) A Decadência Tributária no Direito Brasileiro

Como vimos, o prazo de decadência se destina à Fazenda Pública promover o


lançamento (constituir o crédito tributário). Elenca o CTN a decadência entre as
causas de extinção do crédito tributário. Mas, se é causa impeditiva do lançamen-
to, melhor estaria, juntamente com a isenção e a anistia, entre as causas de exclu-
são do crédito.30
O artigo 173 do CTN confere o prazo de cinco anos para ser efetuado o lança-
mento.31 Por sua vez, o § 4º do art. 150 do CTN estabelece um prazo específico para
a homologação nos tributos assim lançados.32

28 RIBEIRO, Ricardo Lodi. “A prescrição e a decadência no direito tributário”, Revista Tributária nº 52. São
Paulo: Revista dos Tribunais: 2003, p. 194.
29 Nesse sentido era a jurisprudência pacífica do STJ, de que constituia exemplo o RESP nº 8381, da 2ª
Turma, DJU de 29/04/91, p. 5.259.
30 FANUCCHI, Fábio, Ob. cit., p 142.
31 “Art. 173 – O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos,
contados:
I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
II – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento
anteriormente efetuado.
Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do
prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela
notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento.”
33 “Art. 150 – O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao
sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-

380
Temas de Direito Constitucional Tributário

Ocorre que, segundo o modelo concebido por Rubens Gomes de Sousa no


CTN, todo tributo deve ser lançado, ainda que por homologação tácita. Logo, pelo
nosso código, homologar significa lançar. Quem homologa, lança (por homologa-
ção). Então, na verdade, temos 4 regras no CTN tratando da decadência: a do art.
173, I; a do art. 173, II, a do art. 173, parágrafo único e a do art. 150, §4º (em rela-
ção aos tributos lançados por homologação). Todas elas estabelecem o prazo de
cinco anos. Resta saber os termos iniciais desse prazo.
A regra geral é a estabelecida pelo artigo 173, I: o prazo começa a contar do 1º
dia do exercício seguinte àquele que poderia ter sido efetuado o lançamento. Ora,
salvo disposição de lei em contrário, ocorrido o fato gerador, o tributo já pode ser
lançado. A disposição em contrário incide, por exemplo, no imposto de renda, cujo
lançamento por homologação só ocorre após o encerramento do prazo para a entre-
ga da declaração de renda. Deste modo, o termo inicial do prazo se dá em 1º de
janeiro após a ocorrência do fato gerador, ou em 1º de janeiro após a ocorrência de
evento do qual dependa o lançamento (como a declaração do imposto de renda).
Por sua vez, o parágrafo único do artigo 173 do CTN prevê a possibilidade de
o prazo previsto no inciso I começar a contar antes do dia 1º de janeiro, desde que
o contribuinte tenha recebido qualquer notificação de algum ato preparatório
indispensável ao lançamento, como o pedido de esclarecimentos ao contribuinte
ou a exibição de documentos. Na verdade, a única aplicação deste parágrafo único
se dá antes de 1º de janeiro. Após essa data, deixa de ser aplicável o referido dispo-
sitivo, que não tem o condão de interromper o prazo decadencial.34
No entanto, a regra geral não se aplicará aos tributos lançados por homologa-
ção, quando houver antecipação de pagamento e não ocorrer dolo, fraude ou simu-
lação. É que, sem prejuízo da regra geral do art. 173, I, do CTN, o § 4º do artigo 150
do mesmo diploma legal prevê que se a lei não determinar prazo menor, será de
cinco anos o prazo para que a Fazenda Pública homologue o pagamento efetuado
pelo contribuinte.
Como é sabido, no caso dos tributos lançados por homologação – hoje quase
todos35 – cabe ao contribuinte declarar a ocorrência do fato gerador, calcular o

se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obri-
gado, expressamente a homologa.
§ 4º – Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de 5 (cinco) anos, a contar da ocorrência do fato
gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologa-
do o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude
ou simulação.”
34 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 384. Aurélio
Seixas Filho sustenta que o parágrafo único representa o termo inicial do prazo para lançar, para aque-
les contribuintes que não estejam cadastrados junto ao Fisco. Contudo, nos parece que o referido dispo-
sitivo deve ser interpretado de acordo com o inciso I do mesmo artigo; ou seja, não dá início a qualquer
prazo após o primeiro dia do exercício seguinte ao que o tributo poderia ter sido lançado.
35 Entre os impostos apenas IPTU, IPVA e ITD não são lançados por homologação.

381
Ricardo Lodi Ribeiro

montante devido e antecipar o pagamento antes de qualquer procedimento admi-


nistrativo tendente a verificar a correção do valor pago. Cabe à Fazenda Pública –
em cinco anos se a lei não estipular prazo menor – homologar o procedimento a
cargo do contribuinte. Afinal, segundo o CTN, o lançamento se dá com a homolo-
gação do pagamento antecipado pelo contribuinte.
Ora, se o § 4º do art. 150 do CTN estabelece um prazo específico para essa
modalidade de lançamento, afasta-se a regra geral em nome do critério da especia-
lidade. São duas as diferenças entre a regra específica e a regra geral. A primeira diz
respeito ao termo inicial. É que na regra específica o referido termo é a data da
ocorrência do fato gerador, ou o dia do seu exaurimento, no caso dos fatos gerado-
res complexivos. Já a regra geral remete para 1º de janeiro (primeiro dia do exercí-
cio) após essa data. Portanto, na regra específica há uma antecipação do termo ini-
cial do prazo. A outra distinção é encontrada no fato de haver possibilidade de a lei
de cada entidade da Federação prever prazo menor que cinco anos para a regra
específica. Embora o § 4º do art. 150 do CTN não exija expressamente que o prazo
fixado em lei ordinária seja menor, tal disciplina se extrai da sistemática adotada
pelo aludido diploma legal.36 Afinal, não seria lógico que a lei fixasse maior prazo
de decadência para lançar quando o contribuinte antecipa o pagamento, e menor,
no caso de dolo, fraude ou simulação, bem como naqueles que não ocorre qualquer
antecipação de pagamento. Interpretação diferente levaria ao absurdo de prestigiar
o sonegador em detrimento do inadimplente.
É inconstitucional a previsão em lei ordinária de prazo para lançar maior do
que o qüinqüênio previsto pelo CTN, uma vez que a matéria é reservada à lei com-
plementar, de acordo com o art. 146, III, b, CF, como já decidiu a Corte Especial do
STJ, que declarou a inconstitucionalidade do art. 45 da Lei nº 8.212/91, que fixa o
prazo de 10 anos para prescrição e 10 anos para a decadência das contribuições da
seguridade social.37
A aplicabilidade da regra específica do artigo 150, § 4º, se dá nos casos em que
o contribuinte antecipa o pagamento, já que quando se queda inerte, nada há que
homologar, aplicando-se a regra geral do art. 173, I.
Também se aplica a regra geral nos casos de dolo, fraude ou simulação, por
expressa exclusão desses atos ilícitos do texto legal da regra específica. Não sendo
aplicada a regra do § 4º do art. 150, não se pode advogar a aplicação dos prazos do
Código Civil, pois não há que se buscar a solução dessas situações em outros diplo-
mas quando no próprio CTN há norma geral que deve ser aplicada sempre que não
existir regra específica, inclusive quando houver dolo, fraude ou simulação.

36 Nesse sentido AMARO, Luciano (Ob. cit., p. 385) e FANUCCHI, Fábio (Ob. cit., p. 129).
37 STJ, Corte Especial, Argüição de Inconstitucionalidade no Recurso Especial nº 2003/0229004-0 (AI no
Resp 616348/MG), Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU 15.10.2007, p. 210.

382
Temas de Direito Constitucional Tributário

Não encontra justificativa a posição adotada pela Primeira Seção do STJ no


ERESP nº 148.565,38 de fixar como termo inicial do prazo do art. 173, I, o termo
final do prazo do § 4º do art. 150, ambos do CTN, duplicando, na prática, o prazo
legal de decadência.
Tal equívoco é manifesto, pois confere dois prazos para que a Fazenda Pública
efetive o lançamento. Na verdade, diante de uma regra geral e outra específica não
cabe ponderá-las, mas sim fazer uso dos mecanismos para solução de antinomias
que, no caso em questão, se resolvem pela especialidade.
No entanto, registre-se que em julgado posterior – ERESP nº 101.40739 –, a
Primeira Seção do STJ reviu o seu posicionamento, adotando a sistemática defen-
dida no presente texto, muito embora ainda sejam encontradas nas turmas e na
própria primeira seção decisões posteriores que refletem o posicionamento esposa-
do no ERESP nº 148.565.40
Já o inciso II do art. 173 prevê uma curiosa causa de interrupção do prazo deca-
dencial. Em que pese a estranheza da existência de uma causa interruptiva do prazo
decadencial – pois, como vimos, o direito potestativo pode ser exercido independen-
temente de qualquer atividade do sujeito passivo –, o legislador decidiu conferir uma
nova oportunidade para a Fazenda lançar, quando o lançamento anterior for nulifica-
do por vício formal. Afinal, como já tivemos oportunidade de demonstrar, embora não
seja da natureza do prazo decadencial, a sua interrupção pode ser determinada por lei.
O prazo de revisão do lançamento, que se dará nos casos previstos no artigo
149 do CTN, e nas oportunidades elencadas pelo artigo 145 da mesma lei, será o
mesmo para se lançar, exceto na hipótese prevista no inciso II do artigo 173, caso
em que a Fazenda Pública tem o prazo restituído.
Assim, ressalvada a hipótese prevista no artigo 146 do CTN, que protege o
contribuinte contra a mudança do critério jurídico adotado pela Fazenda Pública,
o Fisco poderá rever o lançamento sempre que este for feito em desacordo com a
lei, no mesmo prazo para lançar.
Após o lançamento, ainda que impugnado pelo sujeito passivo, não há mais
que se falar em decadência, pois inexiste inércia do titular do direito.41

5) A Prescrição Tributária no Direito Brasileiro


A prescrição tributária como vimos, extingue o crédito tributário, na medida
em que se traduz na extinção da pretensão do fisco a prestação tributária. Mais que

38 DJU de 25/10/99.
39 DJU de 08/05/2000.
40 Ressalte-se que até o presente momento, a despeito da edição da LC nº 118/05, que pôs termo à tese dos
cinco mais cinco para repetição do indébito, o STJ continua adotando o prazo de dez anos para o lança-
mento, como demonstra decisão da Primeira Seção em Embargos de Divergência no REsp nº
572.603/PR, julgado em 08/06/05 e publicado em 05/09/05.
41 STF, 2ª Turma, RE nº 95.365/MG, DJU de 04/12/81, p. 12.322.

383
Ricardo Lodi Ribeiro

o direito do fisco ajuizar a execução fiscal, a prescrição, extinguindo a pretensão


jurídica, inviabiliza qualquer mecanismo de cobrança, como a inscrição do contri-
buinte em cadastros de inadimplentes e a expedição de certidões positivas.
O CTN estabelece a prescrição nos seguintes termos:

“Art. 174 – A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5


(cinco) anos, contados da data da sua constituição definitiva.”

Por constituição definitiva do crédito tributário entende-se o escoamento do


prazo para pagamento do tributo lançado. É com o não-pagamento que surge a
actio nata. Em caso de impugnação do lançamento, o termo inicial da prescrição
será o fim do prazo para recorrer da decisão administrativa que confirmou o lança-
mento, ou caso esta seja a última na esfera administrativa, o fim do prazo para paga-
mento (o que geralmente se dá 30 dias após a notificação da decisão).42 Esses fenô-
menos caracterizam o início do direito de ação. Findo o prazo para pagamento,
impugnação ou recurso, fica caracterizada que a pretensão da Fazenda começa a ser
resistida pelo sujeito passivo, gerando o direito de ação daquela contra esse, em face
da violação do direito a uma prestação.
É por isso que durante o processo administrativo fiscal não corre o prazo de
prescrição, como há muito já sedimentado na jurisprudência do STF. Afinal, o fisco
ainda não possui o direito de ação.43
Nos tributos lançados por homologação, a constituição definitiva do crédito se
dá com a própria homologação, seja esta expressa ou tácita, desde que não haja
impugnação, caso em que se aplicará a regra citada.44 No entanto, o STJ tem enten-
dimento pacífico de que a entrega de declaração do imposto, como a DCTF nos tri-
butos federais ou a GIA no ICMS, sem que tenha havido o pagamento, já se traduz
em constituição definitiva do crédito tributário, sendo, portanto o termo inicial do
prazo de prescrição.45

5.1) Causas de Suspensão da Prescrição

O CTN não elenca expressamente as causas que suspendem a prescrição. No


entanto, a legislação prevê três situações que a ensejam:

42 Art. 21, § 3º, do Decreto nº 70.235/72.


43 STF, 2ª Turma, RE nº 95.365/MG, DJU de 04/12/81, p. 12.322.
44 TRF da 4ª Região, Primeira Seção, EIAC nº 1999.04.01.130979-5/PR, Rel. Des. Fed. Wellington Mendes
de Almeida, DJ 14/08/2002.
45 STJ, 1ª Turma, REsp nº 389.089/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 16/12/2002, p. 252; STJ, 2ª Turma, REsp nº
285.192/PR, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 07/11/2005, p. 174.

384
Temas de Direito Constitucional Tributário

1) a suspensão do crédito tributário, na forma do artigo 151 do CTN – embo-


ra não prevista expressamente pelo referido dispositivo legal, decorre natu-
ralmente do artigo 151, uma vez que suspensa a exigibilidade do crédito tri-
butário, a Fazenda Pública fica temporariamente impedida de exercer o
direito de ação para cobrá-lo. De acordo com a norma em questão, suspen-
dem o crédito tributário:
a) moratória, inclusive o parcelamento, que não deixa de ser uma modali-
dade de moratória (art. 151, I e VI);
b) o depósito de seu montante integral (art. 151, II);
c) recursos e reclamações na esfera administrativa (art. 151, III); e
d) liminar ou tutela antecipada no mandado de segurança ou qualquer
outra ação judicial (art. 151, IV e V);
2) a inscrição em dívida ativa (Lei de Execução Fiscal, artigo 2º, § 3º) – suspen-
de a prescrição por 180 dias, ou até o ajuizamento da execução, o que ocor-
rer primeiro;
3) a suspensão da execução fiscal, quando não encontrados bens a serem
penhorados, ou o próprio devedor (Lei de Execução Fiscal, art. 40) – sus-
pende a prescrição por até um ano. Há quem entenda pela possibilidade de
a Fazenda Pública prosseguir a execução a qualquer tempo, quando encon-
trados bens a serem penhorados. No entanto entendemos que § 3º, que
admite o desarquivamento a qualquer tempo, deve ser interpretado de
acordo com a sistemática do instituto. Logo, analogicamente, utiliza-se o
prazo de um ano para a suspensão da prescrição, fixado pelo § 2º do art. 40
para o arquivamento dos autos.46

Ocorre que das três causas previstas em lei, apenas a primeira é veiculada por
lei complementar. De fato, as causas que suspendem o crédito tributário estão pre-
vistas no artigo 151 do CTN, que, como é sabido, possui eficácia passiva de lei com-
plementar.
O problema se apresenta nas duas outras, previstas na Lei de Execução Fiscal
(Lei nº 6.830/80), uma vez que a Constituição de 1988, em seu artigo 146, III, b,
determina que as normas gerais de direito tributário, especialmente as que dizem
respeito a crédito, obrigação, lançamento, prescrição e decadência, sejam previstas
em lei complementar.
Estaria a suspensão do crédito tributário englobada nessa reserva à lei comple-
mentar? A resposta é afirmativa, uma vez que o reconhecimento da prescrição é
matéria indissolúvel dos seus prazos de suspensão e interrupção.47

46 Nesse sentido STJ, 2ª Turma, RESP nº 6783/RS, DJU de 04/03/91, p. 1981.


47 DERZI, Misabel Abreu Machado. Nota de Atualização à obra de Aliomar Baleeiro, Direito Tributário
Brasileiro. 11. ed., atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 910.

385
Ricardo Lodi Ribeiro

No entanto, sendo a exigência fixada pela Constituição de 1988, esta não teria
recepcionado com eficácia passiva de lei complementar, os dispositivos da Lei de
Execução Fiscal que tratam da matéria, dada a inexistência de inconstitucionalida-
de formal superveniente? A resposta é negativa, uma vez que o tema já era reser-
vado à lei complementar desde da Constituição Federal de 1967. Embora aquela
Carta, como também a Emenda Constitucional nº 01/69, fizesse menção apenas às
normas gerais de direito tributário, tem-se que a dita expressão genérica já englo-
bava a matéria relativa à obrigação e ao crédito tributário, onde estão incluídas a
prescrição e a decadência. A menção expressa de tais institutos na Constituição de
1988 é meramente declaratória e exemplificativa.
Deste modo, são válidas as causas de suspensão da prescrição previstas no CTN,
como as do artigo 151, ou as decorrentes do princípio da actio nata, cuja aplicabili-
dade é inerente à própria previsão do instituto da prescrição pelo nosso código.48
Já as duas outras causas de suspensão da prescrição, previstas na Lei de
Execução Fiscal, além de ausentes do CTN ou de qualquer lei complementar que
disponha sobre normas gerais de direito tributário, não decorrem da actio nata e
nem representam qualquer impedimento à possibilidade da Fazenda Pública cobrar
o crédito tributário. Na inscrição em dívida ativa, o prazo de 180 dias de suspensão
da prescrição era justificado pela existência de cobrança amigável no âmbito dos
órgãos responsáveis pela cobrança judicial do crédito tributário. No entanto, esta
nunca se mostrou eficaz, tendo hoje caído em desuso no âmbito das procuradorias
responsáveis por tal mister. Hoje, o ajuizamento, na prática, se dá logo após a ins-
crição do débito em dívida ativa, não havendo qualquer razão que justifique a sus-
pensão da prescrição nos moldes do artigo 2º, § 3º, da LEF.
Quanto à suspensão da execução fiscal prevista no artigo 40 da LEF, também
não há que se buscar socorro no princípio da actio nata, vez que a suspensão do
processo de execução fiscal a fim de que a Fazenda encontre bens do devedor, não
constitui qualquer óbice ao direito de ação. Na verdade, pretender suspender a
prescrição por um ano, sem que também ocorra suspensão do direito de ação, sig-
nifica transformar um prazo que o CTN fixou em cinco anos, em um prazo de seis
anos, o que obviamente viola o artigo 146, III, b, da Constituição Federal.

5.2) Causas de Interrupção da Prescrição

Segundo o parágrafo único do artigo 174, a prescrição se interrompe:

48 Em sentido contrário FANUCCHI, Fábio (Ob. cit., p. 132), que sustentava poder a lei ordinária prever
outras causas desde que não fosse contrariado o CTN, bem como o STJ, que vem admitindo as causas de
suspensão da prescrição previstas na LEF por não contrariarem o artigo 174 do CTN (Por todos,
Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 37.087, DJU de 08/11/98, p. 04).

386
Temas de Direito Constitucional Tributário

I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal (redação


dada pela LC nº 118/05);
II – pelo protesto judicial;
III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em
reconhecimento do débito pelo devedor.

Antes da Lei Complementar nº 118/05, que alterou a redação do artigo 174,


parágrafo único, inciso I, existia um conflito aparente entre o referido dispositivo,
que previa a citação pessoal do devedor como causa interruptiva, e o artigo 8º, § 2º,
da Lei de Execução Fiscal, que determina ser causa interruptiva da prescrição o des-
pacho citatório do juiz da execução fiscal.
No entanto, com a nova redação do inciso I, os comandos dos dois artigos
orientam no mesmo sentido. Assim, a prescrição é interrompida pelo despacho do
juiz que ordenar a citação.
Parece-nos que a alteração não se deu em sentido correto, pois o exeqüente
não tem controle sobre o momento em que o magistrado irá determinar a citação.
Como visto as causas de interrupção da prescrição devem se relacionar com os ele-
mentos constitutivos desta. Neste caso, com a citação, o abalo se daria com a cessa-
ção da inércia do credor, circunstância que não se relaciona com o despacho cita-
tório. Entendemos que a questão se resolve pela aplicação da Súmula nº 106 do STJ,
segundo a qual, ajuizada a ação no prazo para o seu exercício, a demora na citação,
inclusive do despacho citatório, por motivos inerentes aos mecanismos da justiça
não justifica o acolhimento da prescrição. Em se tratando de execução fiscal, que
deve ser acompanhada do termo de inscrição e da certidão de dívida ativa – docu-
mentos em que, sob pena de nulidade, constam o nome e o endereço do devedor –
e que se traduz em procedimento onde se dispensa a Fazenda Pública do adianta-
mento das custas da citação, não há qualquer providência do Fisco entre o ajuiza-
mento da ação e a efetiva citação que possa gerar o acolhimento da prescrição.
Quanto à segunda e à terceira causas de interrupção da prescrição, vale ressal-
tar que são expedientes inteiramente inócuos, diante da ausência de previsão em
nossa legislação processual tributária. De fato, o protesto só teria sentido se existis-
se algum óbice ao direito de ação da Fazenda Pública. E existindo tal óbice, o prazo
de prescrição não seria contando, em respeito ao princípio da actio nata. Daí a falta
de previsão na LEF. Porém, nada impede que a legislação de cada ente federativo
preveja o protesto judicial de forma a substituir, como causa interruptiva, a citação
para os devedores que não são encontrados. Da mesma forma, não há qualquer ato
judicial que constitua o devedor em mora no regime da Lei nº 6.830/80. Nada impe-
de, aqui também, de previsão legislativa de tal providência, e seria até útil que
assim fosse, para interromper a prescrição nos casos de ausência de bens do deve-

387
Ricardo Lodi Ribeiro

dor, ou a evasão do seu domicílio. Porém, a LEF adotou outro caminho, o do art.
40, que tem se revelado totalmente inócuo e em descompasso com o CTN.
Já a quarta causa de interrupção traduz-se no reconhecimento do devedor, o
que ocorre, por exemplo, na confissão irretratável do débito por ocasião do reque-
rimento do parcelamento, ou na declaração do tributo, quando não há pagamento.
Tal reconhecimento interromperá a prescrição, desde que esta já tenha tido o seu
termo iniciado pela constituição definitiva do crédito tributário.

5.3) A Prescrição Intercorrente

Interrompida a prescrição, recomeça o prazo a correr novamente de seu iní-


cio. Não se aplicam aqui o disposto no Decreto 20.910/32 e no artigo 169 do CTN,
que determinam a contagem do prazo pela metade, por ausência de disposição
nesse sentido.
Citado o devedor, a Fazenda terá cinco anos para ultimar a cobrança do cré-
dito tributário. Obviamente, a morosidade inerente aos mecanismos da justiça pode
impedir que a execução fiscal seja concluída no prazo legal, fato que, no entanto,
não ensejará o reconhecimento da prescrição, como já tivemos oportunidade de
examinar.49 No entanto, não poderá a Fazenda Pública deixar de tomar as devidas
providências, sob sua responsabilidade, no prazo legal. É o que ocorre com a sus-
pensão do processo na forma do artigo 40 da LEF. Suspensa a execução por ausên-
cia do devedor ou de seus bens, o prazo prescricional irá escoar findo o qüinqüênio
legal50 posterior ao arquivamento, caso a Fazenda Pública não apresente novos
dados sobre o executado.

6) Conclusões

Diante de todo o exposto, é possível concluir-se que:


a) os institutos da prescrição e da decadência têm em comum a inércia do titu-
lar do direito e o decurso do tempo fixado em lei;
b) os dois institutos se diferenciam pela natureza do direito a que se dirigem:
enquanto a decadência extingue o direito potestativo, a prescrição extingue
a ação que protege o direito a uma prestação;
c) os termos do prazo prescricional estão subordinados ao princípio da actio
nata, se relacionando com o nascimento do direito de ação e com a viola-
ção do direito; por isso podem ser suspensos ou interrompidos, de acordo
com as vicissitudes que atingem o direito de ação;

49 Súmula nº 106 do STJ.


50 Se considerarmos a suspensão da prescrição por um ano, prevista no referido dispositivo legal, findo o
prazo de seis anos, ocorrerá a prescrição intercorrente.

388
Temas de Direito Constitucional Tributário

d) já os prazos de decadência, por não se relacionarem com o direito de ação


ou com a violação do direito, em princípio, não se suspendem ou interrom-
pem, mas nada impede que a lei preveja possibilidade de um direito potes-
tativo ter o prazo para o seu exercício dilatado, suspenso ou interrompido;
e) pressupondo uma violação ao direito a uma prestação, o prazo de prescri-
ção pode ser renunciado, ao contrário do que se dá na decadência; assim, a
dívida prescrita e paga – inclusive a de natureza tributária – não deve ser
restituída, o que não ocorre na decadência;
f) a prescrição para a cobrança do crédito tributário pode ser declarada de ofício
pelo juiz, seja no caso previsto no artigo 40, § 4º, da LEF, seja em qualquer
outro caso, em face da nova disposição do artigo 219, § 5º, do CPC.
g) os conceitos de prescrição e decadência no direito tributário vão variar de
acordo com o direito positivo de cada país, de acordo com a sistemática
adotada – unitária ou dualista – para a cobrança do crédito tributário, bem
como com a natureza que se atribua ao lançamento;
h) na sistemática adotada pelo nosso Código Tributário Nacional, que se apro-
veita das definições de prescrição e decadência do direito privado, o direi-
to de a Fazenda Pública lançar é subordinado ao prazo de decadência (art.
173 do CTN) e o direito de cobrar o crédito já lançado extingue-se pela
prescrição (art. 174 do CTN);
i) a prescrição extingue o crédito tributário, mas preserva a obrigação,
enquanto a decadência fulmina esta, levando, em conseqüência, à extinção
daquele;
j) a decadência, cujo prazo fixado pelo CTN é de cinco anos, tem como termo
inicial, em regra, o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lan-
çamento poderia ter sido efetuado (art. 173, I, do CTN) – prazo este que
pode ser antecipado se a Fazenda Pública notificar o contribuinte de algum
ato preparatório ao lançamento (parágrafo único do art. 173);
k) no entanto, nos tributos lançados por homologação, caso tenha o contri-
buinte antecipado o pagamento e não tenha havido dolo, fraude ou simula-
ção, aplica-se a regra especial do § 4º do art. 150, ou seja, o termo inicial
será o da data do fato gerador se a lei não dispuser prazo menor;
l) a decadência pode ser interrompida pela decisão que anula por vício formal
lançamento anterior (art. 173, II);
m)são inconstitucionais os dispositivos de lei ordinária que dilatam os prazos
de prescrição e de decadência estabelecidos no CTN, inclusive para as con-
tribuições da seguridade social;
n) a prescrição, com prazo fixado também em cinco anos pelo CTN, tem como
termo inicial a data da constituição definitiva do crédito tributário, que se
dá com o escoamento do prazo para pagamento, impugnação ou recurso
administrativo;

389
Ricardo Lodi Ribeiro

o) a prescrição se suspende apenas pelas causas suspensivas da exigibilidade do


crédito tributário (art. 151 do CTN), não sendo válidas as causas previstas
na Lei nº 6.830/80;
p) a prescrição se interrompe pelas causas previstas no parágrafo único do arti-
go 174 do CTN, que no seu inciso I (despacho do juiz que ordena a citação),
deve ser interpretado em consonância com o entendimento esposado na
Súmula nº 106 do STJ;
q) a prescrição intercorrente se manifesta após a interrupção da prescrição,
começando a correr, novamente, o prazo em sua integralidade, observado
o disposto na Súmula nº 106 do STJ.

390
XXII
Tratamento Diferenciado para as Microempresas
e os Regimes Simplificados na Constituição
Sumário: 1) Introdução. 2) Fundamento Constitucional do Tratamento Diferenciado para
as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. 3) Vedações Legais à Adesão ao Regime
Simplificado. 4) Exclusões do Regime Simplificado. 5) O Regime Unificado e a Federação.
6) Conclusões.

1) Introdução

A promulgação da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003,


alardeada pelo Governo Federal como pressuposto da volta do desenvolvimento
econômico, causou grande frustração nos segmentos que esperavam significativas
alterações no Sistema Tributário Nacional, notadamente no que tange ao combate
da guerra fiscal no ICMS, que era a pedra de toque da reforma, e acabou por ser
postergado para um segundo momento.
A despeito da timidez da reforma, um ponto que passou quase que desaperce-
bido por todos até a edição da Lei Complementar nº 123/06, provoca alvissareira
expectativa, especialmente para as microempresas e empresas de pequeno porte,
gerando profundas conseqüências no panorama jurídico dessas entidades. Trata-se
da introdução da alínea d ao inciso III do artigo 146 da Constituição Federal.
O referido dispositivo constitucional insere entre as normas gerais de direito
tributário, reservadas à lei complementar, a definição de tratamento diferenciado
e favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte, in verbis:

“d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas


e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplifi-
cados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas
no art. 195, I, e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também
poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que:
I – será opcional para o contribuinte;
II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por
Estado;
III – o recolhimento será unificado e centralizado, e a distribuição da parcela
de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, veda-
da qualquer retenção ou condicionamento;

391
Ricardo Lodi Ribeiro

IV – a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas


pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes.”
Por outro lado, a mesma emenda constitucional, introduziu um artigo 94 no
Ato das Disposições Constitucionais Provisórias dispondo sobre a recepção
das atuais leis reguladoras dos regimes simplificados, nos seguintes termos:
“Art. 94. Os regimes especiais de tributação para microempresas e empresas
de pequeno porte próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios cessarão a partir da entrada em vigor do regime previsto no art.
146, III, d, da Constituição. “

Tais dispositivos se somam ao inciso IX do artigo 170, introduzido pela


Emenda Constitucional nº 6/95, que estabelece o “tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua
sede e administração no País”, como um dos princípios reatores da atividade eco-
nômica; e ao artigo 179 que determina tratamento diferenciado às aludidas empre-
sas, em norma com a seguinte redação:

“Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão


às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tra-
tamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de
suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou
pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”

Como se vê, a EC nº 42/03 acentuou uma preocupação, já verificada desde a


Constituição de 1988, com o tratamento diferenciado às microempresas e empre-
sas de pequeno porte, a partir da simplificação de sua gestão tributária e da redu-
ção da sua carga fiscal.
O aprofundamento desse tratamento especial se verifica nos seguintes pontos:

a) introdução da reserva de lei complementar para a disciplina da matéria;


b) constitucionalização do regime simplificado;
c) menção expressa à inserção do ICMS e das contribuições da seguridade
social incidentes sobre a empresa, previstas no art. 195, I, além do PIS
(art. 239);
d) previsão de um regime de único que envolva todos os entes federativos,
na forma definida em lei complementar.

Diante do quadro constitucional ora posto, cabe examinar o fundamento desse


regime fiscal diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte,
bem como a dimensão desse novo regime e o seu desdobramento na legislação
infraconstitucional.

392
Temas de Direito Constitucional Tributário

2) Fundamento Constitucional do Tratamento Diferenciado para


as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte

Com o atual estágio da economia mundial, num quadro de globalização,


desenvolvimento tecnológico, crescimento do setor de serviços em relação à indús-
tria, ao comércio e à agropecuária, com o desemprego desestabilizador das relações
sociais, as microempresas e empresas de pequeno porte passaram a desempenhar
um papel fundamental na geração de emprego e renda na economia tanto dos paí-
ses desenvolvidos como das nações em desenvolvimento, fenômeno que no Brasil,
vem apresentando destaque acentuado.
Segundo dados do SEBRAE,1 as micro e pequenas empresas representam cerca
de 98% dos empreendimentos empresariais, sendo responsáveis por 44% da mão-
de-obra na indústria, comércio e serviços, percentual que se eleva sobremaneira no
setor de serviços, em crescente expansão. Já se pode antever que, num futuro pró-
ximo, a esmagadora maioria dos postos de trabalho será oferecida por essa modali-
dade de empreendimento.
Por outro lado, a proliferação dos pequenos negócios é a solução social mais
bem sucedida para a redução do emprego nos setores industriais e comerciais, além
de constituir obstáculo à formação de setores oligopolizados e à concentração eco-
nômica. Enfim, a proliferação dos pequenos empreendimentos aparece como cami-
nho mais viável para um capitalismo mais humano e democrático.
Sensível a esses fenômenos o legislador constituinte de 1988, bem como o
constituinte derivado, consagravam uma disciplina diferenciada, de forma a esti-
mular o surgimento e a consolidação das microempresas e empresas de pequeno
porte.
Tal disciplina constitucional justifica o tratamento diferenciado que o legisla-
dor infraconstitucional vem dando ao tema com o Estatuto da Microempresa (Lei
9.841/99), e especificamente, em matéria tributária, com o surgimento do SIM-
PLES, o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das
Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Lei nº 9.317/96) e do SIMPLES
NACIONAL (Lei Complementar nº 123/06).
A compatibilidade do tratamento diferenciado às pequenas empresas com o
princípio da isonomia tributária vai muito além da constatação da ausência de
identidade entre a situação jurídica de uma grande empresa em relação a uma
microempresa. Se a questão fosse apenas de tratar desigualmente os desiguais, a
simples aplicação do regime da proporcionalidade, a partir de alíquotas iguais sobre
bases de cálculo diversas já seria suficiente para tributar cada um de acordo com a

1 Cartilha da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, disponível no site www.sebrae.com.br, em


18/05/2004.

393
Ricardo Lodi Ribeiro

sua riqueza, como exige o princípio da capacidade contributiva, pois uma tributa-
ção menor já derivaria de uma base de cálculo menos expressiva.
No entanto, a capacidade contributiva não é a única fonte de diferenciação
tributária admitida pelo nosso ordenamento constitucional, e nem o fator determi-
nante no caso concreto. Também as razões extrafiscais podem servir de fundamen-
to para a atribuição de carga tributária que se afaste da capacidade contributiva efe-
tiva. No entanto, deve-se ter cuidado com os meros pretextos extrafiscais que visam
apenas o afastamento do aludido princípio, a partir de criação de privilégios ou dis-
criminações odiosas.
Ainda que o legislador entenda ser necessário utilizar a tributação como estí-
mulo ou desestímulo a determinada conduta, deve-se considerar que não se pode
afastar a aplicação da capacidade contributiva diante de um mero objetivo extrafis-
cal. É preciso, ao contrário, que o objetivo extrafiscal seja razoável,2 e que prevale-
ça diante de um juízo de ponderação de valores com a capacidade contributiva,3 a
fim de que não sejam criados privilégios odiosos sob o pano da extrafiscalidade.4
De fato, a quebra do tratamento igualitário conferido pelo legislador aos que
revelam a mesma capacidade contributiva só pode se dar em função da finalidade
extrafiscal, como observa Ferreiro Lapatza,5 caso estejam presentes os requisitos
mínimos do referido princípio, e quando os fins extrafiscais almejados sejam tam-
bém amparados pela Constituição.
Desse modo, num juízo de ponderação entre a capacidade contributiva e os
interesses extrafiscais almejados, os últimos não podem simplesmente suprimir a pri-
meira, de forma a atribuir a determinado segmento um ônus fiscal que, afastando-se
significativamente de sua capacidade contributiva efetiva, se traduza numa situação
de grande discriminação odiosa em relação aos demais segmentos econômicos.
No caso em questão, os objetivos extrafiscais são representados pelo especial
tratamento que o legislador constituinte determinou às micro e pequenas empre-
sas, visando a facilitar a sua criação e desenvolvimento. Note-se que o estímulo às
pequenas empresas é um dos princípios que alicerçam a ordem constitucional eco-
nômica, devendo o desenvolvimento desses setores ser perseguido pelo legislador
infraconstitucional.
Cumpre enfatizar que o adequado tratamento legislativo ao tema, não deve
visar apenas atender ao critério de justiça, que determina uma tributação compatí-
vel com a menor capacidade contributiva dessas empresas. O legislador constituin-

2 PEREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario – Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 37.
3 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamiento
español a la luz del Derecho aléman. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 100.
4 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
p. 86.
5 Curso de Derecho Financiero Español. 21. ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 62.

394
Temas de Direito Constitucional Tributário

te exige mais. Quer que o Estado estimule o crescimento dessas empresas de forma
a transformá-las em um dos principais pilares do nosso desenvolvimento econômi-
co, sintonizado com a distribuição de riquezas. Além desse objetivo, o constituinte
apresenta os caminhos dessa jornada no campo tributário, com a simplificação dos
procedimentos para a administração tributária por parte dessas empresas e a redu-
ção ou eliminação da carga fiscal incidente sobre as suas atividades.
Como é fácil perceber, tais objetivos prevalecem, num juízo de ponderação de
interesses, sobre a proporcionalidade tributária, vez que os pressupostos mínimos
de atendimento do princípio da capacidade contributiva se mantêm presentes, pois
os contribuintes que apresentam menor riqueza são desonerados.

3) Vedações Legais à Adesão ao Regime Simplificado

Definidos os objetivos constitucionais, cumpre analisar a legislação comple-


mentar sobre a matéria, tendo em vista a sua compatibilidade com os dispositivos
constitucionais que tratam do tema das pequenas e microempresas.
E é justamente nesse aspecto que a promulgação da EC nº 42/03 apresenta
novidades. Num primeiro exame, um intérprete apressado poderia supor que as
mudanças foram superficiais em relação ao texto já consagrado constitucionalmen-
te. Mas, de fato, as novas regras elevam o peso que as razões extrafiscais apresen-
tam num juízo de ponderação com a proporcionalidade de alíquotas extraída da
capacidade contributiva.
Se, até então, a Constituição legitimava a diferenciação em relação às peque-
nas empresas, hoje, com a EC nº 42/03, se constitucionaliza a idéia de um regime
especial, como concebido pelo legislador complementar por meio do SUPERSIM-
PLES e de sua extensão aos tributos estaduais e municipais, a partir de um regime
unificado.
Com a constitucionalização do regime especial e simplificado, o que vai muito
além de uma mera diferenciação de alíquotas, passa a ser a adesão a esse regime um
direito constitucionalmente garantido às micro e pequenas empresas. Assim, se
afasta do desiderato constitucional a adoção de regras proibitivas para a adesão,
quando baseadas em critérios estranhos à condição de micro e pequena empresa,
como o segmento econômico em que atua a empresa, ou a situação fiscal dos seus
sócios, conforme estabelecido pela Lei Complementar nº 123/06.
Se até a EC nº 42/03 o assunto vinha sendo tratado, inclusive pelo Supremo
Tribunal Federal,6 no âmbito exclusivo do princípio da isonomia, a partir da aferi-
ção da razoabilidade da vedação a determinados contribuintes da adesão à discipli-

6 STF, Pleno, ADIN nº 1.643-1, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 14/03/2003.

395
Ricardo Lodi Ribeiro

na simplificada, hoje a questão envolve a supressão da faculdade de gozar de um


direito constitucional do contribuinte.
Desse modo, a partir da promulgação da EC nº 42/03, passam a ser de discutí-
vel constitucionalidade as normas contidas no § 4º do art. 3º (restrições à adesão ao
regime geral do SUPERSIMPLES) e no art. 17 (restrições à adesão ao regime tribu-
tário do SUPERSIMPLES).
Senão vejamos. As vedações contidas nos dois incisos do art. 3º da LC nº
123/06 efetivamente se referem à definição do que seja microempresa e empresa de
pequeno porte, a partir de um critério quantitativo em relação a sua receita bruta,
constituindo-se em distinção hábil para a adesão ao regime simplificado, desde que
os valores sejam estabelecidos em patamares razoáveis. No entanto, as demais são
estranhas a esse critério, merecendo um exame mais apurado.
As discriminações quanto aos segmentos econômicos das empresas, contidas
na maioria dos incisos do art. 17, excluem do regime uma gama de atividades que
são desempenhadas por pequenos empreendedores e profissionais liberais.
Cumpre de início afastar a possibilidade de justificar tais distinções com base
na capacidade contributiva, uma vez que esta não é revelada pelo segmento econô-
mico em que a empresa atua. De fato, o recebimento de R$ 10.000,00 de receita
para o setor industrial revela a mesma capacidade contributiva do que a demons-
trada pelo setor prestador de serviços quando obtém a mesma soma.
Por outro lado, no campo da extrafiscalidade, ao contrário do que foi reconhe-
cido pelo STF no julgamento anteriormente aludido, não há qualquer razão para
desestimular as atividades excluídas pela LC nº 123/06.
Dizer que o legislador pode estabelecer exclusão do tratamento diferenciado,
partindo do pressuposto de que essas pessoas jurídicas não sofrem as mesmas difi-
culdades das microempresas legalmente reconhecidas, significa estabelecer distin-
ção que não foi feita pela Constituição, que amparou sem distinções as microem-
presas e empresas de pequeno porte.
Distancia-se em muito da realidade a perigosa afirmativa de que esses setores
pouco contribuem para a criação de empregos no Brasil. Além de não existir qual-
quer estudo sério demonstrando esse dado, não se pode esquecer que este objetivo
não é o único almejado pelo legislador ao tutelar a pequena empresa.
Não se pode olvidar que o desenvolvimento econômico almejado pelo legisla-
dor constituinte se coaduna com um cenário de democracia econômica, de comba-
te à concentração econômica e de estímulo aos pequenos empreendimentos. Negar
acesso aos pequenos empresários a esses setores constitui um grande estímulo a que
tais atividades sejam concentradas em grandes empresas, condenando o pequeno
empreendedor a atividades mais singelas.
Como se vê, uma política extrafiscal que se extraísse dessa discriminação se
traduziria numa distinção por critério não tutelado pela pauta de valores consagra-

396
Temas de Direito Constitucional Tributário

da pelo legislador constitucional, estabelecendo grandes dificuldades ao estabeleci-


mento dos jovens profissionais liberais e dos pequenos empreendedores.
Em outro giro, cumpre verificar se as restrições baseadas na forma societária
da empresa, como ser sociedade por ações; ter sócio estrangeiro, residente no exte-
rior; que seja filial, sucursal, agência ou representação, no país, de pessoa jurídica
com sede no exterior; cujo titular ou sócio participe com mais de 10% do capital de
outra empresa; cujo capital participe, como sócio, outra pessoa jurídica; que parti-
cipe do capital de outra pessoa jurídica; que seja resultante de cisão ou qualquer
outra forma de desmembramento da pessoa jurídica; cujo capital participe entida-
de pública, direta ou indireta, federal, estadual ou municipal. Por princípio, não se
pode perder de vista que a forma societária escolhida pela sociedade é critério que
não pode ser levado em consideração pelo legislador para dispensar ao contribuin-
te tratamento fiscal diferenciado, visto que tem como único objetivo a união de
esforços para a consecução de um objetivo comum, como assinala Betina Treiger
Grupenmacher.7
No entanto, verifica-se pelas citadas vedações legislativas vinculadas à forma
societária à adesão ao regime simplificado, a nítida e louvável preocupação do legis-
lador em estabelecer uma barreira a que grandes empresas venham, por meio de
criativas, mas artificiais, construções societárias, gozar dos benefícios destinados às
microempresas e às empresas de pequeno porte. Nesse sentido, tais vedações cons-
tituem cláusulas antielisivas específicas.
Contudo, pela forma genérica que tal disciplina foi estabelecida, restou viola-
do o direito à adesão de uma série de empresas que não buscam na forma societá-
ria escolhida qualquer intuito abusivo.
A escolha pelo uso da sociedade por ações não revela maior capacidade con-
tributiva, nem qualquer intuito de burlar as regras estabelecidas na Lei
Complementar nº 123/06. Se normalmente os grandes empreendimentos econômi-
cos são realizados por meio das sociedades anônimas, o que à primeira vista pode-
ria justificar a vedação, cumpre observar que não se trata de uma regra destituída
de muitas exceções. Se a própria lei do SUPERSIMPLES já estabelece um limite
quantitativo capaz de excluir os grandes empreendimentos, sejam eles realizados
na forma de sociedade por ações ou limitada, mostra-se totalmente desarrazoada a
previsão, que, se é inócuo em relação às grandes sociedades anônimas, cuja adesão
já encontra óbice nos incisos anteriores, acaba por excluir, sem justo motivo, as
micro e pequenas sociedades anônimas.
Quanto à vedação a participação de estrangeiro residente no exterior no capi-
tal social da empresa constitui também uma regra discriminatória aos investimen-
tos estrangeiros nos pequenos empreendimentos, revelando uma reação xenófoba

7 “Sociedade Profissionais e Tributação Fixa frente à Lei Complementar nº 116/2003”. In: ROCHA, Valdir
de Oliveira (Coord.), O ISS e a LC 116. São Paulo: Dialética, 2003, p. 48.

397
Ricardo Lodi Ribeiro

não agasalhada pela nossa ordem constitucional econômica, que trata tal empresa
como brasileira.
A mesma discriminação às microempresas e empresas de pequeno porte é
verificada em relação aos investimentos realizados por entidades públicas, que não
podem participar do capital das empresas optantes do regime.
Dentre as vedações encontramos regras que visam a evitar que o empresário
ou sociedade empresária que não se enquadrem nos limites quantitativos do SU-
PERSIMPLES procurem participar do programa a partir da constituição de várias
empresas que individualmente se enquadrariam nos requisitos legais. Deste modo,
é vedada a adesão de empresas cujo titular ou sócio participe com mais de 10% do
capital de outra empresa, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite admi-
tido para a adesão; ou a participação da empresa optante no capital social de outra
empresa, e vice-e-versa. Veda-se ainda a participação de empresa que seja resultan-
te de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento da pessoa jurídica.
A legitimidade de tais regras, no entanto, se limita aos casos em que as empre-
sas em questão pertençam ao mesmo ramo de atividade econômica. Apesar de tal
restrição à limitação não constar da lei, é a única forma de compatibilizar as nor-
mas em questão com o regramento constitucional das microempresas, uma vez que
o escopo constitucional é a tutela aos pequenos empreendimentos, sem restrições
quanto à maior ou menor atividade econômica dos seus sócios, como se extrai da
disciplina constitucional analisada.
Se deve o legislador evitar que uma empresa que, pelo volume de suas ativi-
dade não poderia optar pelo SUPERSIMPLES, o faça por meio de mais de uma pes-
soa jurídica, a lei fiscal não deve desestimular que um empresário invista seus
recursos em diferentes empresas nos mais variados segmentos econômicos, pois
neste último caso fica evidente a inexistência do intuito fraudulento.
Ainda há vedações quanto à adesão em relação à situação fiscal da empresa e de
seus sócios. É vedada a adesão de empresas inscritas em dívida ativa da União ou do
INSS, com débito sem suspensão de exigibilidade. Parece óbvio que tal disposição
carece de legitimidade, pois não se pode negar o tratamento constitucionalmente mais
benéfico no caso de dificuldades econômicas que levam ao inadimplemento fiscal.
Se no regime da Lei nº 9.317/96 tais vedações já se revelavam de duvidosa
constitucionalidade, com a promulgação da EC nº 42/03, que estabeleceu, como
vimos, um direito constitucional à adesão, resta inequívoca a incompatibilidade
destas com o Texto Maior.

4) Exclusões do Regime Simplificado

Os artigos 28 a 30 da Lei Complementar nº 123/06 prevêem os casos de exclu-


são do SUPERSIMPLES, a partir da solicitação do contribuinte e da alteração da

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Temas de Direito Constitucional Tributário

situação fática que permitiu o enquadramento no regime, em dispositivos de legi-


timidade indiscutível, uma vez que baseados, no primeiro caso, no caráter opcional
do regime, e no último, na existência de requisitos legais que devem ser verifica-
dos, não só por ocasião da adesão, mas por todo o tempo em que o contribuinte esti-
ver regido pelas normas pertinentes ao programa.
Porém, também são encontrados no art. 29 casos de exclusão de ofício em
razão de irregularidades praticadas pelo contribuinte, em regra que enseja um
exame mais acurado. Nos incisos II e III do dispositivo encontra-se o permissivo
para a exclusão nos casos de embaraço ou resistência à fiscalização, caracterizados
pela negativa não justificada de exibição de livros e documentos a que estiver obri-
gado o contribuinte e pelo não fornecimento de informações sobre bens, movimen-
tação financeira, negócio ou atividade, próprios ou de terceiros, quando intimado,
pela negativa de acesso ao estabelecimento, ao domicílio fiscal ou a qualquer outro
local onde se desenvolvam as atividade da pessoa jurídica ou se encontrem bens de
sua posse ou propriedade, bem como nos casos de necessidade do uso do auxílio da
força policial para a efetivação da fiscalização e do desacato à autoridade fiscal.
Como vimos, a prática de atos ilícitos não pode servir de causa à não-adesão
ao regime simplificado. Do mesmo modo que também não pode servir de motivo à
exclusão do contribuinte. No entanto, quando os atos ilícitos praticados pelo con-
tribuinte efetivamente impedem a fiscalização do cumprimento dos requisitos legi-
timamente estipulados para o gozo do benefício, é justificada a exclusão.
Exemplificando, não há qualquer razão para a exclusão do contribuinte que ofen-
da a honra do agente fiscal. Ainda que possa constituir ilícito penal, a ofensa não
tem o condão de fazer com que a empresa perca o direito ao tratamento constitu-
cional que lhe é próprio. Mas, se o contribuinte esconde livros, cria empecilhos à
verificação da sua receita, a exclusão se legitima pela impossibilidade da verifica-
ção fática dos requisitos legais.
Com o mesmo intuito sancionatório, o inciso IV do art. 29 prevê a exclusão em
caso de constituição de pessoa jurídica por interpostas pessoas que não sejam os ver-
dadeiros sócios ou acionistas, ou o titular, no caso de firma individual. Trata-se de
simulação fiscal, conduta tipificada criminalmente pela Lei nº 8.137/90. No entan-
to, a caracterização da simulação na esfera tributária leva à imposição de penalida-
des pecuniárias e à desconsideração do negócio simulado, mas não ao agravamento
da imposição tributária. Assim, a autoridade fiscal deve desconsiderar o chamado
“laranja”, para identificar o verdadeiro sócio da empresa, e daí extrair as conseqüên-
cias para o enquadramento ou não no SUPERSIMPLES. Se, a despeito dessa descon-
sideração, a empresa continuar cumprindo os requisitos legitimamente fixados pela
lei, não deverá ser excluída. Caso contrário, a exclusão se dá pelo não-cumprimen-
to dos requisitos legais para a adesão, e não como sanção pela ilicitude.
No inciso V do mesmo artigo, a exclusão se dá pela prática reiterada de infra-
ção à legislação tributária. Mais uma vez se procura punir o contribuinte que não

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Ricardo Lodi Ribeiro

apresenta um comportamento correto. É preciso nunca esquecer que o regime fiscal


diferenciado não é destinado aos contribuintes de “bom comportamento”, mas aos
empreendimentos de pequena monta. Mais uma vez se tenta tributar o ato ilícito, o
que, como vimos, não se coaduna com o conceito de tributo. A infração só será con-
siderada se da sua apuração se verificar o descumprimento dos requisitos legais para
a adesão ao regime, mas nunca como uma conseqüência do caráter ilícito da condu-
ta. As mesmas observações são pertinentes ao inciso VII, que determina a exclusão
em caso de trânsito em julgado de decisão condenatória em crime fiscal.
Por fim, o inciso VI permite a exclusão da empresa considerada inapta, e no
inciso VII a que comercializar mercadorias objeto de contrabando ou descaminho.
Aqui também, é ilegítima a exclusão, pois o reconhecimento desses crimes não
compromete a existência dos requisitos legais para a adesão ao regime.
Nos incisos VIII, é excluída a empresa por falta de escrituração do livro-caixa
ou que não permitir a identificação da movimentação financeira, inclusive bancá-
ria. Quanto à primeira parte do dispositivo, não há qualquer ressalva, uma vez que
a própria condição de microempresa depende da correta apuração de suas receitas,
o que só se obtém por meio de uma escrituração correta. No entanto, a disponibi-
lização de dados bancários, afora os casos estritamente previstos em lei para as pes-
soas jurídicas em geral, não pode ser condição para a manutenção do contribuinte
no regime simplificado. Nos incisos IX e X se determina a exclusão da empresa que
durante o ano-calendário teve o valor das despesas superando em 20% o valor dos
ingressos; e o valor das aquisições de mercadorias para a comercialização ou indus-
trialização superando em 80% o dos ingressos, excluído, nos dois casos, o ano de
início das atividades. Mais uma vez, procura-se coibir a fraude de forma abusiva,
prejudicando-se, ilegitimamente, as empresas que fazem investimento no cresci-
mento de suas atividades.
Em qualquer caso, a exclusão deve ser precedida de procedimento administra-
tivo fiscal, onde sejam garantidos ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa.

5) O Regime Unificado e a Federação

Conforme já abordamos, a EC nº 42/03 reservou a disciplina do tratamento fis-


cal diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte à lei comple-
mentar, que instituiu um regime unificado de recolhimento de tributos para a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Não há que se alegar ofensa ao princípio federativo com a unificação do reco-
lhimento e fiscalização do SUPERSIMPLES, uma vez que a simplificação adminis-
trativa não é alternativa à regular arrecadação de tributos pelos três entes federati-
vos, mas à informalidade, que leva às fazendas de todos os integrantes da
Federação.

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Temas de Direito Constitucional Tributário

Ademais, sendo a simplificação uma medida constitucionalmente efetivada, a


fim de garantir a descentralização econômica e a criação de emprego, inviabilizá-
la sob o pretexto de terem que existir três fazendas tributando o cidadão é colocar
este subordinado aos interesses daquela, quando o objetivo do regime federativo é
justamente melhor atender aos interesses da cidadania.
Cumpre destacar ainda que, de acordo com o novo desenho constitucional, se
reduz a autonomia dos Estados e Municípios para legislar sobre a matéria, deven-
do suas leis observarem os contornos do regime unificado da LC nº 123/06, sem,
contudo, afetar o núcleo essencial do regime federativo.8

6) Conclusões

Diante de todos os argumentos expostos, pode-se, em síntese, concluir que:

a) a EC nº 42/03 reforçou os incentivos fiscais que a Constituição Federal já


conferia às microempresas e empresas de pequeno porte, com a determi-
nação de um regime especial unificando os tributos federais, estaduais e
municipais, a ser definido em lei complementar;
b) a nova disciplina estabelece um direito constitucionalmente conferido às
microempresas e empresas de pequeno porte de adesão ao regime simpli-
ficado;
c) a disciplina legal vigente deve se adequar à nova ordem constitucional,
especialmente no que tange às vedações e exclusões ao regime simplifi-
cado, a partir de critérios hábeis a quantificar a receita das microempre-
sas e empresas de pequeno porte, evitando-se distinções baseadas no seg-
mento econômico e forma societária, ou vinculadas à prática de sanção
de atos ilícitos praticados pelo contribuinte;
d) o regime da EC nº 42/03 e da LC nº 123/06, embora reduzindo a autono-
mia de Estados e Municípios para legislar sobre a tributação das peque-
nas e microempresas, não viola o núcleo essencial do regime federativo.

8 Sobre os limites das clásulas pétreas tributárias, vide: RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do
Contribuinte – Legalidade, Não-surpresa e Proteção à Confiança Legítima. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, pp. 219 e segs.

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