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Capa de
SÉRGIO FRAGOSO
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DOM QuiXOTE
Um apólogo da alma ocidental
Prefácio de
AUGUSTO FRB]DERICO SCHMIDT
Depoimento de
AFONSO ARINOSDE MELOFRANCO
SBD-FFLCH-USP
fP.c'
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20900095164
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Cü4a4.À
ÍNDICE
Prefácio :
Augusto Ft'ederico Schmidt XI
Depoimer to :
.$ Afonso Arinos de Meio Franco xvn
3
QUASE UMPREFÁCIO
1 -- SEN'HDO DO QUIXOTn. A refle-
xão sôbreas reflexões. As grandescon-
tradições. A comédia,e o drama. O louco 9
e discreto. Julgamento da cavalaria,
l
)
t
No fundo, bem no fundo, não seriam PREFÁCIO
+
tão opostos o personagem cervanti-
&
.+
Não, não é impossívelo'paralelo ou, pelo me-
nos, não são tão contrários os dois: o nosso intelec-
tual ou político, e o personagemfilho apenasdo ho-
mem e marcado para as grandes tarefas reparado
+
XI
o herói cervantino.de uma estapafúrdiainstrumen- taco que, para desculpar-se do seu sangue de nobre,
tália de combate, e se oferecia de peito aberto aos aceitava as tarefas menos condizentes com a sua
seus inimigos imaginários; preparou-se, também, grandezaintelectual e com a força de suasarmas.
J)antas, longamente, para a conquista do poder. Compreendera excessivamente (como sempre Ihe
Desde a adolescência estudou, aliou a espada, uti- acontecia) a realidade -- mas a compreenderade
lizou a poderosa máquina de compreender de que } tal forma, que essarealidadeIhe fugira afinal e
eta dotado. Ao Senhor Dom Quixote, vestiu-o o passara a ser um conceito, uma fuga, uma evasão.
seu autor com a túnica de pureza, a fim de pre- -- ''Se conheço o pensamento grego" -- meditaria
serva-loùnicamente da loucura, ou para que esta & certamente o Mestre brasileiro na sua humildade
não o imolasse; San Tiago nasceu para classificar
--, ''se dou nome certo aos problemas mais incer-
e clarificar as coisas, distingui-las, nomes-las, reti- tos, devo corrigir-me guardando os "patos" do meu
ra-las da obscuridade, fazê-las acessíveis ao enten-
Senhor. É a minha clarividência que me cega.'
dimento sem, no entanto, vulgarizá-las -- conser- + Dessameditação quase mística é que incidia o seu
vando-lhes a elgância necessáriagraças a uma julgamento da política num êiro fundamental:
formulação correm, simples. Dom Quixote man- a(omodar-see aceitai a grande penitência dos con-
teve-secoerente com o seu alto e nobre engano até
a vésperada morte; San.Tiago Dantes,até o fim T tados inconvenientes e inadequados. O antiquixo-
te aparenteficou dias e dias de cabeçabaixa na
defendeu-se da pecha de incoerência e permaneceu
Serra Morena do partídarismo. Quando aos seus
impávido, fiel a tudo aquilo a que se abandonara;
olhos desVendadores passava a verdadeira ])u]ci-
l)om Quixote convem-teu-se, porém, à lucidez e caí- + néia, julgava-aSan Tiago a labregade hálito for-
mm-lhe as escamasdos olhos. Seu fim foi terrível
te, que tangia pelas estudas bichos Úteise jamais
porque se despiu de tal maneira de suas fantasias era seguida pelos falcões ou pelas aves insólitas e
que terminou por deformam essa realidade à força + noturnas. Via com olhos magroso que era para
de escravizá-la,de retirar-lhe qualquer sonho, qual- ser visto planturoso, gordo, abundante. Descarna-
quer encantamento. .Foi tão longe a negação quixo- va os sonhosaté o ponto de reconduzi-losde novo
tesca,no filial da vida do Cavaleiro,
que as pró- à suaprópria origem. O Senhorfidalgo de La Man-
prias pedras se comoveram e Sancho Pança .cuidou
cha, porém, era de uin perfeito equilíbrio em tudo.
que houvesseenlouquecido o seu aDIo de realidade.
Ao contrário de San Tiago Danças, buscava o abso-
San Trago Danças,político, nada renegouporém.
Na hora supremada agonia,ou da luta final, con-
fidenciou aos seus amigos que chegara para ê]e a
l luto, desdenhava as honrarias; não se verificava em
sua alma nenhum movimento pendular; inclina-
va-se invariàvelmente para uma só direção: aque-
fan de Job. Mantinha a máscma do "não está
la que Ihe trazia maiores riscos, maiores perigos,
acontecendo nada". Permanecia aparentemente fiel
maiores sofrimentos e jamais qualquer proveito.
aa sõupersonagemexterior, à sua atitude de polí- San Tiago, porém, se desventuiava ao dizer-se con-
Xll xm
tente com o que praticou contra a sua própria eco- Êsse "Dom Quixote", "um apólogo da alma
nomia espiritual e intelectual. ocidental", é uma espéciede estudoiemá7zficodo
Insisto no tcma da penitência de San Tiago; personagemde Miguel de CervantesSaavedra.San
de um certo momento de sua vida em diante, trans- Tiago apalpa com as pinças do entendimento as
formou-seem político, em lí(ter do antigo petebis- + transformações
do tipo até vê-loinstaladona sua
y
categoria de símbolo, em símbolo mudado. É uma
nlo. Pala San Trago, deve ter sido uma verdadei-
verdadeira viagem essaclarificadora, definidora ou
r.i expiação a permanência nesse baixo plano es-
transfiguradora. Em Quixote,. saído das mãos do
tagnado da política. Como herói cervantino que,
na SerraMorena, ficava de cabeçapara baixo em
+ seuautor frescoe virginal, mas curvo e triste, en-
contramos perenemente êsse homem humaníssimo
vigilância e atenção ao seu perfeito Amor, Mestre
Danças se penitenciava de .ser quem era, de sua al- e bom -- D. Miguel de Cervantes Saavedra--, cuja
vida foi uma ininterrupta seqüência de fracassos,
tura intelectual,'qio seu preparo, de sua cultura, r
rnilitando num pa\tido político que, então, ainda uma cadeia de frustrações,como hoje se diz: frus-
tações nas guerras que o deformaram, no casamen-
não estavaem condiçõesde compreendê-lo,que não
se motivava senão pelo interêsse, pela conquista to que o deixou ainda mais solitário, nos trabalhos,
do poder i 4 ilo ganha-pão burocrático que o levou ao cárcere
por imprudência (dinheiro público colocado em
Mas não quero insistir no que me poderia banco que faliu) ; durante toda a sua vida Cervan-
ocupar muitas páginas. Acho apenasnecessáriodi- tes foi habitado por Dom Quixote.
zer ainda que essa espécie de paralelismo absurdo
'}
enfie o assunto desta conferência admirável e o Reencontro apoia o tema de minha própria
seu conferencistanasceu-mêda lembrança de um l
conferência,na mesma série em que falaram ma-
gistralmente Francísco Campos e Francisco Cllemen-
jôgo a que outrora nosentregávamos
os dois -- San
Tiago e eu. Distraíamo-nos, muitas vêzes, proce- -t- tino San Trago Dantas, entre outros. Êssemeu tra.
galho -- de que já não me lembro mais e cujo tcx-
dendo a uma crescentesimplificação dos sêrespara,
em seguida, tentarmos aproxima-los, por mais opos- to estáperdido -- s6 reviveu porque mereceua re-
ferência de San Tiago quando êste,na sua admi-
tos que fossem.
rável conferência,observou o fato de ter sido a "so-
lidão de Dom Quixote" o tema por mim escolhi-
esta conferência -- uma das realizadas na co- do. A maior das razõesda solidão do bom Fidalgo
memoração do IV Centenário de Cervantes, eiu
+.
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volucionária de 1842,também minha parenta e so- conduzir ao êrmo. Quando chamava a atenção de
gra do Visconde de Abaeté.
San Trago para esta verdade, e para os perigos pa-
Cultuavaigualmentemuito a mem(áriada av(5 radoxais que ela encerra, êle respondia sempre, rin-
paracatuense, teãqo por ela uma espécie de curio- do, que não compreendia a minha afirmativa e que,
sidade construtiva, que logo me pareceu influen- se ela fossecerta, não haveria remédio para êle, que
ciada pelas leituras de Marcel Proust, para quem, não conseguiaagir senão em função de prévios es-
como se sabe, personifica também, em outra quemas racionais.
geração,a mãe amada,e é objeto de uma análise "Já reparei que você -- disse-me êle um dia --
psicológica cujo rigor ofuscante só parece atenuada só consegue pensar de pena na mão, ou instalado
pela ternura. O retrato da avó, que me mostra-
na tribuna; elaborar e compor são,para você, aios
va num .velho daguerreótipo, envolta em sêda ne- conjuntos, mas eu não sou assim. No fundo não sei
gra, parecia-me a mim, também leitor de Proust, o
bcm se você faz o que pensa, ou pensa o que faz.
símbolo de uma atitude literária; portanto artifi-
Confesso que esta resposta à minha crítica atingiu-
cial. Mas êstejulgamento era um êrmo,como mais
tarde vim a verificar. O intelectualismo de San
me em cheio. Por isto mesmonão gostei. Mas
aquela que eu Ihe fazia não era menos exala. O
Trago, fosseêle literário, jurídico ou político, não
mal de uma inteligênciapolítica superlúcida,como
era artificial , mas instrumental. Certos espíritos
a de San.Tiago, é que, abandonadaa seupróprio
captam o real pelo sensível, intuitivamente; outros,
movimento e distanciada da sensibilidade, tende
fortes mas rombudos, devastam a realidade quando
invencivelmentea sobrepor,ao que é, aquilo quc
supõemapresá-lapela força; finalmente alguns,e,
deve ser. A Filosofia do Direito alemã, principal-
entre êsses,conspicuamente,o de San Trago, só são
mente depois de Hans Kelsen, vulgarizou as duas
capazesde penetrar a realidade com o agudo esti-
n.oções sociais do ser (sem) e do dever ser (ioZZen).
lête do raciocínio. Não que êle, San Tiago, fosse
Alas se, na construção das hipótesesjurídicas, nas
insensível. Ao contrário, sensível era, e muito. Mas,
altitudes rarefeitas do pensamento kelseniano, o Di-
nêle, a sensibilidade só funcionava no campo afe-
reito se funde mais no abstrato do se/Ze7z
do que no
tivo; nunca incluía na conduta, cuja pauta só era
concreto do hein (porque, de certa forma, a essên-
marcactapelas notas da inteligência. Verifiquei,
cia ética e racional do Direito transcende e supe-
aos poucos,que isto Ihe era inerente e, pois, nada
i;i a sua exisfê?Teia
social) já em política isto é im-
tinha de artificial. Em toda a sua vida, principal-
possível.Em política não se pode atingir o que
mente na sua vida pública, os erros de apreciação e
deve ser senão pelo que é. Esta marcha, às vêzes
de conduta em que incorreu provieram, paradoxal-
pcclregosa, às vêzes pantanosa, através do irracional,
!nente, dêste claríssimo poder de raciocínio. Poi-
é que San Trago. era incapaz de empreender. Falta-
queáem certasoportunidadesda política, a inteli-
ram àquele Anel as necessárias gatas do sangue de
gência, tanto mais clara seja, mais riscos corre dc
Caliban. Êle tomava pelo real o que não era, prà-
xvm
priamente, fanblÊja, mas aparência, criada pelo ra« expunha,criava com a suahabitual facúndia e lu-
ciocínio. (]onstruià uma realidadelógica,que pre- cidez. Quando chegamosà porta do hotel o moto-
tendia tomar como vital. Incidia, então, nos erros rista perguntou-nos se tínhamos pressa. Que não,
que surpreendiam mais aos amigos que a êle pró- foi nossa resposta surprêsa. Então o rapaz pediu-
prio, porque encontrava, sempre, outras razões ló- -nos apenas esta coisa extraordinária: que ficásse-
gicas para explicar os motivos do seu êrro, razões +
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-#
{
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O estudo a que me proponho, QUASE UM
.& nos breves limites desta pa- PREFÁCIO
lestra, e com o qual espero Contribuir
modestamente para a homenagem que
se vem aqui rendendo ao gênio de CEn-
VANTES
e à perenidadede sua obra, #
não pertence ao domínio da crítica lite-
4 rária, e ainda menos ao das investiga-
ções históricas ou filológicas .
Se me é lícito empregar um dos têr-
L
mos favoritos da filosofia moderna, di-
rei que vou tratar do Quixote como sím-
&'
bolo, isto é, do sentido que o próprio
Quixote adquiriu refletindo-se secular-
mente na consciência .ocidentalj onde
se tornou, a meu ver, uma fábula cons-
trutiva, um episódio exemplar, a cuja
luz julgamos muitas de nossaspróprias
experiências, e de que tomamos mode-
lo para muitas de nossas aspirações .
a
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vel, um incessanteintercâmbio se ini- bula quixotesca vem sendoum.dos múl-
cia, pois, de um lado, a obra de ar.te irra,- tiplos moldes em que o espírito moder-
dia sabre a existência a sua fôrça per- no tem plasmadosua concepçãodifusa
suasiva, e de outro lado recebe da cons- da existência.
ciência humana novos matizes de com- JAEGIR,no seu grande livro sôbre
preensão,que Ihe enriquecem o sentido. a cultura helênica, mostra como o poe-
.l)e modo que o sentido de um fato ma homérico e o herói homérico servi-
artístico ou histórico é sempre o estado
+ ram de exercício espiritual para a for-
atual de um laborioso e permanente pro- mação do ideal aristocrático do bnmem
cessode trocas entre êle e o espírito que f. antigo:
o considera : êste, elaborando a signifi-
cação e a eficácia exemplar do que exa- ''O patAos do alto destino he-
mina ; aquêle, operando, por sua vez, sa- 4 róico do homem é o alento espiri-
bre a realidade, pela fulguração mo- tual da llíada. O etAos da cultura
mentânea que lança sabre a obscurida- e da moral aristocráticas acha o
de da existência. J poemade sua vida na Odisséia.''
Ao dizer que vou tratar do Quixote (Paide4a, 1, p. 57)
como símbolo, quero significar, portan-
to, que não me vou ocupar dessa obra Entre os exercícios espirituais que
como fato literário, mas do sentido que têm servido à formação do homem mo-
ela adquiriu ao se projetar na cons- derno, ou por Ihe apontarem exemplos,
ciência do mundo ocidental, especial- ou por fixarem seus permanentes pro-
mente do mundo hispânico. Como apó- blemas, quero indicar o posto saliente
logo, o Quíxote- torna inteligíveis certos que cabe ao Qwiaofe, de Miguel de CKn-
recessos dessa consciência; dêle advém VANTES. E para isso nada melhor do
u m a considerável contribuição de que examina-lo à luz do nosso próprio
advertências e de exemplo; não há exa- entendimento, mirando-o na imagem
gêro em dizer, segundo penso, que a fá- que êle deixa refletida em nossa própria
6 7
,F
de cada leitor
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17
A comédia Cabe a ORTEGA y GAssET ter efetivamente o fosse, e se aspirar a uma
e o drama .giJ;o a palavra que encami- superior missão entre os homens é su-x
nha a explicação da comicidade do Qui- b blime, acreditar que se possui essamis-
xotc. Por ela podemos alcançar o valor são é ridículo .
, dramático que em nós recebe o exem- CERVANTES,concebendo a novela do
plo quixotesco, e conjugar no plano do
/nge»ãoõo .HidaZgo como uma fai'êa, ao
entendimento, o sentido trágico e o apa- mesmotempo nos deu, do heroísmo, o
rato cómico de que CERVANTES dotou*a
sua fábula: exemplomais grave e eficaz que encon-
tramos no nosso património de idéias, #
e a mais aguda advertência contra o pe-
''Do querer ser ao crer que já, rigo da sua degenerescência . ......Querer
se é, vai a digtãliiõiã-do trágico ao salvar, é sublime; julgar-se um sãlVã=
cómico. ÊsSempasso entre o su- dor, é ridíõiilo., Eis por que nos sewi-
blime e o ridíõííkol'' (.IUedifacione8 mos da exprQgsãoquixotismo, ora para
deZ Ç?a{.fofa,p. 153) exaltar uma virtude, ora para denun-
ciar uma fraqueza .
/' A aspiração de D. Quixote à aven-
tura, o seu desejo de renova:r, no mun- A êsse primeiro ponto se 0 louco
do povoado de injustiças, do seu tempo,. } prendeasolução dasduasou- e discreto
a anão ptii;amadora da andante cavala- trás perplexidadesque apontei: Já que
ria, e de operar essa anão pelo dom de o seu Quixote continha o: que há de alto
\ si mesmo,é, em si, um dos mais altos e o que pode haver de baixo no heroís-
.€1 anseios a que tendeu o espírito huma- mo, CznvAmvES não podia impedir que
no, e a provação a que se sujeitou para sabre êle caíssea venda mágica da lou-
cumpri-lo, um drama do tipo messiâni- F
cura. -- Sím, dir-se-á; porque só um
co . Mas D. Quixote não se limitou a as- louco se poderia acreditar cavaleiro.
pirar à condição de um novo Amadas ou Mias penso que CznvANTES,com a lou-
q
Felixmarte de Hircânia; pensou que cura de Quijano visou mais longe; só
18
19''\
/
r
lr um louco poderia fizer.gg,.gi.,mesmoç.a- o personagemda comédia, ]nas não cl\
{'P valeiro.e .ÍicQTJsentQ -dg..ippost;ura, herói dramátiõõWe a novela oferece \+
l guardando intacta a sinceridade dos
sr;us motivos' como um exemplo, e que aos nossosl
\ olhos sintetiza a contribuição de Cun- l
Ç... Não foi para Ihe permitir que se
VANVES para a formação espiritual doJ
expusesseao ridículo de tomar armas
homem moderno. Eis porque é de suma
e cobrir-se de falsas couraças, que CEn-
$ importância na exegesedo D . Quixote
VANTES revolveu a mente, fatigada de
estabelecera integridade absoluta da
leituras, do seu Quixote'Plf=Qi
para que sua crença em si mesmo,posta à prova
essa loucura protegem.Uureza Bgral/ $ em diversas aventuras fundamentais :
de qlE o Quixote ia dar testemunho, pu:. não tenho a intenção de me deter recor-
reza qüõ''seria iiiêõiiipatível com fada
dando essas aventuras, entre as quais
simulação consciente, com qualquer '+' são de suma importância as que provam
parcela de mistificação voluntária .
o total desamparo de si mesmo, a que
Os mistificadores conscientes, tão
D. Quixote se votava, como a chamada
comunsentre os servidoresde ideolo-
aventura do cavaleiro dos Leões, ou as
+
gias, são os réprobos da novela cervan-. ]. que mostram que êle mantinha, quando
tina . Réprobos'são os duques que aco-
sózinho, a mesma regra e os mesmos in-
lhem D .(ãiiiiõae, e eré:iiêin--eiy: terno
tentos que enunciava perante suas habi-
dêle um falso cenário cara Ihe experi- tuais testemunhas, como sucedeu na
mentarem os limites da-demência . Ré-
Serra Morena, onde reproduziu solitário
probo é o bacharel limão Carrasco,
as penitências de Amadas no exílio da
quando se arma de ÍCavaleiro dos Espe- Penha Pobre .
lhos para dar miserável combate ao au-
têntico, ao genuíno, ao indiscutível Ca- t
valeiro da Triste Figura. Mais laboriosa de explicar Julgamento
será a antinomia que re- da Cavalaria
D. Quixote sem a loucura, que o sêde em todas as partes do Quixote,
fêz acreditar em''si i;iêimo, poderia ser +
com relação à Cavalaria Andante. Al-
21
Runs autozõe-pretendem que ela i'eílete A apóstrofe contra as obras menti-
o juízo contraditório do próprio CEn- rosas não é uma inovação cervantina;
VANTES, amigo dessas leituras, de que pertence, pelo contrário, à cultura do l
üê enchera o seu século, mas advertido seu tempo, e séculos antes já se encon- l
contra os males que ela produzia no es- tra em autores enfadados das fábulas \
pírito e sobretudo no gôsto dos leitores . sem sentido, de que o modêlo literário.\
Pois a literatura de cavalaria, a chama- mais digno de aprêço seriam .Los qwütro l
da matéria de p'raHçaou de Brefanha, cle .Amadas Que tal literatura estava \
foi no Renascimento espanhol o que são morta e superada, em Espinha,.pelo al- 'i
,iil os contos policiais dos almanaques de to labor intelectual dd..sécwZo de owroC
J la (iHI (:lllêliêD o passatempo dos preguiçosos, e ninguém poderia ter dúvidáls, ao tempo
também o devaneio das cabeças mais em que CERVANTES compunha o seu D
1. frívolas
Por tudo isso não podia CZKVAWTES } Quixote. De sorte que me pareceridí-
culo atribuir
intuito
à novela predestinada
polêmico que o autor anuncia., e
o
1.. .E?.:....
nP»{x''''w" '7
A pl:i!!vira caractei'estica da mito-L . .uma i'esÜrreição no mundo dos símbo-
«
l.ogia, tal como hoje"ã"õoncebelnos, é que \l .los . !'odo o Quixote prova. que a..pera:
nada,de da Cavalaria não está nas .puas.
L nela não se a(:l'edi;i!&T-Enquanto foi pos-
sível aci'editar erlíma, houve por cel'- exterioridades. e aparências, mas no
to um paganismo, não, porém, uma mi- molde espiritual invisíve!,.,que, . depois
tologia. Transformando os deusesem de se haver modelado s8Voreela, se sepa-
mitos, os homens operam a recupera- rou do seu corpo transitório. Eis porque
ção estética de certas formas parecidas, a novela cervantina pode ser implacável
e passam a servir-se delas como de um com a Cavalaria e os Livros de Cava-
material incorruptível, sôbreque já não laria, para os quais aponta o caminho
tem poder nem a fé, nem o tempo. Criar da morte, -- ao mesmo tempo que o es-
a mitologia não será, por ventura, re- pírito e a ética da Cavalaria entram pe-
encontrar o tempo perdido? la sua mão no clima da vida eterna.
Tudo o que existiu, e cuja forma Todo o Quíxote se abre, assim, em
efêmera não logrou resistir à fatal de- dois, quando rompemos, pela análise, a
unidade vital da aventura e dos perso-
composição..do tempo, pode ser salvo,
nagens . Pela sublimidade da sua voca-
seo espíritodo homemali souberen-
contrar o símbolo, em.que se personifi- ção, o triste herói cervantino se ergue
às proporçções de um confessor do espí-
cam as essênciasuniversais.. QBgg4oJ
rito moderno; mas, acreditando que já,
é que -- miseráveis indivíduos, i--':i=i;;'"f. \.{ y/
era o que aspirada a ser, marca para
seguimossalvar da morte em nós, as lt3hi'ill#l sempre, ante os nossos olhos, a linha
nossas aventuras de amor? F©ao é seda.o l lç..lilf''
quando as transformamos em mitolo- ..) p"'
imaginária que separao heroísmoda
fantasia, a sublimidade da ridiculez . A
gia . Pois CERVANTES,segundo pensoll
Cavalaria Andante, cujos livros Ihe ti-
concebeu o D. Quixote para extrair ajr
nham "secado el cerebro'', está presen-
Cavalaria da forma histórica em que vi- l te nas duas metades do seu ser. O es-
verá, e da ingênua literatura fabulosal
pírito da Cavalaria é que Ihe ilumina a
em que agonizava,e para Ihe assegurarl
24 t
l metade hei'ói:ca; as aparências fabulo-
sas e as roupagens sem sentido reves-
R tem a que morrerá nêle, antes mesmo
que o recolha a morte.
\
11
\,
preendQr.e-exprixnir o heroísmo--E' cer- reversibilidade, que recolhe no tesouro
to que o quixotismo não é a forma per- comum o valor aparentemente. perdido
manente do heroísmo espanhol, mas é das boas ações.
sem dúvida a mais pura e original, e a E' o Quixote um herói fracassado?
que, em certo sentido, representa a sín- t Sim, se atentarmos apenas no desvario
tese da tradição heróica com o Cristia- de suas aventuras e arremetidas contra
nismo .
l alvos imaginários, e no fatal insucesso
Trê.s heróis, pelo menos, nascem da que, uma por uma, Ihe encerrou tôdas
alma espanhola,e dela passamao oci- as anões.; Mas quando passamos a últi-
dente: o Cid, o Quixote e D. Fernando, ma página do livro inimitável, compre-
o ''príncipe constante'' de CALDEnÓN endemos que a efusão do heroísmo não
(VogsLEn, .La Zife2'alwralê paãoZadeZ õê' ficou perdida; que os atou malogrados
gZo de :oro) . E' interessante observar
F do último cavaleiro foram recebidos a
que o Cid é a encarnaçãoespanholado crédito, para compensalção das injusti-
herói aristocrático de to(nosos tempos, ças e agravos que êle não soube ver,
primeiro em tudo, e sustentadona sua nem reparar; e finalmente que dêle bro-
primazia pelo sufrágio incessante do ta um ensinamento contrário ao {deaZ
êxito. Com o Príncipe Constante, a fé da e/iciê c ü, que é o da simples entre-
cristã, e não mais o simples valor pes-
b ga de si mesmo, para operar pelo exem-
soal extraordinário, assume o papel de plo e pela germinação.
centro e motivação da conduta e dos su- Cada vez que, em nossa própria vi-
cessos do herói. Com o Quixote, pode- da, nos recusamos a uma jazida, porque
mos enfim contemplar o heroísmo isen- sabemosque o nosso ato não terá força
to de todo êxito, e elevar a nossa refle- n sabre as coiadições externas e assim
xão até a eficácia da anão heróica, não não poderá remover os obstáculos opos-
pelo resultado imediato alcançado, mas tos ao nosso intento, estamos agindo
pela repercussão do exemplo e por essa r
contra o espírito de D. Quixote.
\ /
33
/
E cada vez que saímos para o im- cujos temas, mutuados de língua em lín- l
possível, deixando nas mãos de Deus o gua, atestam a ampla comunhão euro- /
segrêdo da germinação de nossas anões, péia em que se elaborou a vida intelec- /
ê conforme o Quixote que estamospro- tuas da Idade Média. Assim como GoE-
cedendo. TnE recolheu no Fausto um dos temas
Sua técnica é, pois, o dom de si mes- constaiates da imaginação eui'opéia --
mo . Uma técnica que, em face do mun- o tema do mágico que ensaia o seu po-
do ant.igo, seria mais a do martírio que der sabre a própria alma -- q??im CZR-l
a do heroísmo, mas que se tornou para
nós 'b heroísmo por excelência. Tornou-
se, sobretudo, o recurso supremo, a re-
serva, com que contamos para sobrevi-
[. VANTnS recolheu o tema geral do cavam
'leito andante-nas páginas. do Quixote /
Para CEnvANTES os precedentes liter:
rios eram os livros de cavalaria, a cuj
Auto-da-Fé assistimos no graciosíssimo\
episódio do escrutínio feito pelo cura, e
'' As qualidades do herói quixotesco,-:
pelo barbeiro na biblioteca de D: QXit
não foi CERVANTESque as inventou . Êle
;mte; pal'a GoEvnu, os precedentes lite-
apenas as recolheu, purificou e crista- 7 rários foram as representaçõespopula-
lizou para sempre no seu personagem, res do Dr. Fausto no teatro de mar4on-
que ficou sendo, assim, o ponto de che- tz.elles: as p'awõfspieZeH,o roZkõbwch
gada de uma longa, complexa e difusa de Fausto e as composições eruditas de
tradição literária: os romancesde ca- LEASING e MIARLOWE .
valaria.
Já vimos que CERVJl4íl ESnão podia
Literàriamente falando, o Quixote ter senão as reservas do llomem de gas-
é a síntese e o superamento dessalite- to perante os estalidos livros que Ihe
ratura, em parte popular, em parte ge- iam servir de material; mas é claro quc
mi-erudita, que no século X.VI se con- êle compreendeu o tema universal, a
densou,em Espanta, numa obra típica, contribuição já consumadapara a for-
"Os quatro livros de Amadas'', e:/ mação européia, que nêles se continha .
3.1 35
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Com(i GoEvnx tirou do mágico pre- O heroísmo quixotesco é, (":\. Os atributos
sunçoso e sensual do yoZhõbwc# alemão portantos um coHceF'uo de ' '\-..,.. do herói
a fábula e a figura do Prometeu mo- atributos, que se fundem num todo mo:
derno, CEnvANTESsuperou a legenda ral , Vejo:os, sobretudo, traduzidos em
cavalheiresca, ainda tratada ingênua- três notas essenciais:
l.', o domde si
mente pelos escritores do seu século. mesmo; 2.', a fé; 3.', a pureza. Todas
fêz dela uma nova mitologia, e fixou o essas qualidades vêm do perfil cava-
tema na significação definitiva que te- lheiresco, tal como o desenharam, ainda
ria para o espírito ocidental. que com traços discordantes e, às vê-
Desde logo o heroísmo do cavalei- zes, contraditórios, os livros de Cava-
ro não está nosseusfeitos, está nas laria . No Quixote elas atingem um teor
suas disposições de alma. O fracasso. absoluto,e erguem diante de nós uma
o insucesso, o ridículo, irão'obüml)ram. figura incorruptível, na qual nada exis-
antes fazem resplandecer o heroísmo te de angélicoou de feminino. E' notá-
de D. Quixote.. E aumentam a eficácia vel o caráter masculinopuro do Quixo-
/
/. espiritual dos seus fitos. Nisto a cria- te. Nenhumoutro heróié tão viril. na
ção cervantina liberta o heroísmoda mais íntima minúcia de sua natureza,
concepção aristocrática, que se transe quanto êssemodêlo de castidade,de
mitiria aos romances medievais, e dei- + idealismo, de desinterêsse,de sacrifí-
ta suas raízesno solo mais nobre do cio, de bondade compassiva,.mas isenta
Cristianismo . Pois só o Cristianismo de emoção.
revelou que fracassar é, muitas vêzes.
apenas o ponto de partida para vencer. Pela pureza de D. Quixote de- A pureza
e estendeu, assim, às ações humanas. vemos começar o exame de
t
no plano do tempo, a idêia evangélica l seus atributos, pois parece ser a pure-
da sementeque morre, e se transfor- za o assento iaatural das qualidades do
ma em árvore, e ain(ilà produz muitos herói. Puro é o que está isento de mis-
frutos . f tura . Puro é o que não deixa eil+.i:ar em
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si o mundo de objetos desejáveis,pela zer receber, como insuportáveis agra-
possedos quais todo dia caímosem vos, anõesmiserandos como a mistifi-
contradição com nós mesmos. cação dos duques, ou o disfarce do Ca
Os maiores campeões não merecem valeiro de Branca Lua e dos Espelhos
o nome de heróis, se são impuros. He-
rói não foi Alexandre, nem Júlio César, A pureza do herói quixotesco se A fé
pois o heroísmo não se afirma apenas completa com a 'integridade e
em relação a um objetivo externo; afir- inaeessibilidade de sua fé. Fé na graça
ma-se, ao mesmo tempo, em direção do divina, fé na boa fortuna, fé em si mes-
nossopróprio ser, como um firme pro- B mo, dão ao cavaleiro essa serenidade e
pósito de resguardar algo de íntimo. imediata resolução de ânimo, sem a qual
Por isso escreveumuito bem ORTEG.A y missão alguma passará do devaneio, ne-
GASSET : nhum destino I'omperá o envólucro em
que germina, no fundo de nós.
.,!'' ''herói é o que quer ser quem
A fé heróica, tal como a exprime
é.'' (OP. oif., P. 145)
o Quixote, é, porém, uma fé hierarqui-
A vitória do Quixote sabre o leitor, zada pela consciência formada no Cris-
a que momen'cosantes aludi, é a vitória d-' t.ianismo. A fé em si mesmo é própria
da irredutível e irresistível pureza de do herói antigo, do herói, sem humilda-
consciência, que dêle faz um outro D. de, em caminho para o semideus. A fé
Galaaz, o cavaleiro do ciclo arturiano na fortuna é a própria fé em si mesmo,
que se podia assentar, sem receio, na quetanto faz esperarmos
o êxito do
cadeira fatal aos impuros. E' essa. pu- nosso próprio esforço como da nossa
reza que, sejam quais forem as nossas predestinação .: A fé quixotesca, porém,
iniciais disposições de espírito, nos vn.i está informada na tríplice ordem da
comprometendo na causa do Quixote à graça divina, da boa fortuna e do mé-
medida que o lemos, e acaba por nos fa- rito próprio, o que permitiria ao Qui- l
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xote dizer algumas vêzes,tomando pa- rega e efetivamente seja, ao mesmo
+
ra si os versos de CAI.nERÓN:
tempo, uma humilde bacia de barbeiro :
''Duos defenderá mi causa
pues yo defendo la suya.'' ''Vive Duos! seãor caballero de
la Triste Figura, que no puedo su-
Toda sua fé, derivada dêssespla- prir ni elevar en paciencia algunas
nos superiorese inferiores, o 1.Quixote
- ' ' cosas que vuestra merced dize, y
a localiza e concentrana sua missão.
que por ellas vesgo a imaginar que
na tarefa que se deu a si mesmo,e a
que reciprocamentedeu os seus dias. todo quanto me dize de caballerias,
Fé em sua própria causa -- o requisi y de alcanzar reinos e imperios, de
to do heroísmo. ' dar insular, y de haver otras mer-
Com a consciência impregnada de cedes y grandezas, como es uso de
confiança, D. Quixote fita os desafios caballeros andantes, que todo dele
e rechassa os desmentidos. Em vão sâ. de ser cosa de viento y mentira, y
bre êle desabam provas contrárias; ne- todo pastraíía, o como lo llamare-
nhum fato o demove; nenhuma evidên- mos; porque quien oyere devir a
cia o atinge; nenhuma surprêsa o en- vuestra merced, que una bacia de
contra desarmado; fatos?provas, argu-
barbero es el yelmo de Mambrino,
mentos contrários, evidências, rompem-
se contra as malhas inquebráveis do y que no salga deste error en más
seu pensamento. Sou mesmo tentado de quatro dias, qué há de pensar
vos Í sino que quien tal dize y affirma,
g®Q..de
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que a faz arder é essa fé inabordável.
que tudo desbarata, que tudo converte trazer à senhora Bellerma, na ponta de
e transfigura em tardo de si. uma adaga, o coração que Ihe enviava
o seu enamorado Durandarte. E não
.+
tardou que Montesinos Ihe mostrasse.
O episódiode Levantaram alguns críti. presos e encantados naquela Cova, por
Montesinos cos, neste ponto, uma sus- artes de Merlin, à esperade quem os
peita, que merecea consideração mais libertasse, Durandarte, Bellerma e ca-
amurada,pois, se procedente,alteraria valeiros e donzelas de seu séquito, aos
ou, pelo menos, abalada em grande par- quais nos desenvolvimentos da história
te a exegesedo Quixote . Trata-se do di- outros se vão juntando, inclusive a rai-
fícil e misterioso episódio de Montesi- nha Ginebra e sua dama Quintaãona.
nos.
e três lavradoras, entre as quais D. Qui-
Recordais que D. Quixote, vindo xote reconhece "la sin par Dulcinéa del
das bodas de Camacho, o rico, emir)re- Toboso". Três dias e três noites se te-
endeu na companhia de Sancho e de um riam passado na incomparável aventu-
primo do Cavaleiro do Verde Gabão ra, autênticadescidade D. Quixoteao
uma excursãoao sítio onde se abre a Inferno da Cavalaria. ]] o que é de se
Cova de Montesinos, nas cercanias do
l
notar é o tom humorístico, a verdadei-
Guadiana e de Alcaraz, e ali se fêz des- ra pantomima infernal construída des-
cer ao fundo da gruta, onde seus com- preocupadamente por ]). Quixote, que
panheiroso deixaram ficar por meia não tinha, nos seus tidas comuns, para
hora Voltando à luz, que lhes narrou tratar êsses temas, senão o tom grave
o veraz, o sincero, o simples e nunca fe- do respeito e da convicção.
lnentido D. Quixote? Que encontrara Teria D. Quixote inventado a vi-
no fundo da Cova -- transformada num são da, Cova de Montesinos? O próprio
.Erebo de cavaleiros medievais -- aquê- ganchonão Ihe deu crédito, e o intér-
le mesmo Montesinos a quem coubera prete encontra,páginas adiante, umü
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breve frase, de que desce Febre a since-
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ridade e, portanto, sabre a inteireza da a quebra da sinceridade e exclui tôda
fé do Quixote o único instante de dúvi- impostura, fazendo do episódio, como
da e de perigo. E' quando, apeados do diz lgIAnAnIACA, uma fábula na fábula
cavalo Clavilegno, gancho descreve o -- ''ilusíón en la ilusíón'' -- é o valor
que vira no céu. E D. Quixote Ihe con- puramente estético da fantástica nar-
testa: rativa, da qual D. Quixote apenas tira
o prazer gratuito da criação.
''gancho, pues vos quereis que
Daí vem o inesperado humorismo,
se os área lo que hábeis visto en el
as liberdades poéticas que se permite,
cielo, yo quiero que vos me areais e que destoamdo estilo geral de suas
a mi lo que vi en la cueva de Mlon-
práticas e da própria narração: a Mon-
tesinos, y no os digo más.'' tesinos, que Ihe promete o desencanta-
mento,
Na corda estendida em que cami-
nha, vendado por sua loucura, mas guia-
do pela integridade da sua incorruptível ''Y quando asi no sea'', respondia
consciência, D. Quixote, nessa altura, el lastimado Durandarte con voz
pisa em falso. Toda a sua obra está em lastimada y baia, ''oh! primo! digo,
jogo. Haverá uma farsa na descida a paciencia y barajar''
Montesinos?
Por mim recuso que o episódio te- E quando dá à donzela as alvíssa
nha sido uma alucinação ou sonho, tese ras de quatro reais:
sugerida a muitos pela pergunta que D.
Quixote faz à O'abeça adivinhadora, em
Barcelona. A narrativa da Cueva foi, ''Tomando los quatro redes, en la-
a meu ver, uma criação intelectual, for- gar de hacerme una reverência, hi-
jada em tôdas as suas peçasno espírito zo una cabriola, que se levantó dos
de D. Quikote. O que, porém, impede varas de medir en el abre.''
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\
Montesihos ?
poética que nêle irrompe, reconstrói o & -- A lo de la cueva -- respon-
mundo conforme .uma instantânea vi-
são das coisas,e não se pode dizer que
g. dieron -- hay mucho que devir: de
todo tiene.''
minta, porque na verdade enriquece A pureza e a fé não exprimem, en-
com sêres e objetos novos o mundo tretanto, os totais atributos do herói
-q quixotesco.
real: Não foi possível ao insano cava-
leiro saber, depois, se a maravilhosa fá-
bula, que se !he desprendeu do espírito
num momento inspirado, era uma pura
g O herói crê na sua missão,
confia em Deus e em si mes-
O dom de
si mesmo
fantasia ou um acontecimento vivido ; mo, conserva a alma isenta de mescla e
.e
L
delam o curso dos tempos . O amor mo- xidade que Ihe daria a consciência mo-
derno é diferente do amor medieval e do derna. O drama de amor por excelên-
amor antigo. Pouco importa que êle cia do homem antigo é a recusa do obje-
se OI'igine sempre da mesma inclinação to amado -- o mais simples, embora tal-
afetiva e que aspire ao mesmo resulta- vez o mais constante dos dramas. Dêle
do. O que importa é que o sentimento se alimenta toda a literatura pastoril e
amorosose projeta no ''écran'' da alma arcádica, até as églogas virgilianas . A
humana, e aí se combina com outros êsse,:as tragédias acrescentam o drama
problemas, entra em antagonismos, so- do amor ilegítimo, isto é, o conflito en-
fre desvios, recebe estímulos,= e conhece tre a paixão amorosa e a ordem estabe-
triunfos e desastres,que variam radi- lecida pelos deuses imortais . Em todos
calmente de época para época, de povo os casos, com.o observou M.AX SCnELLEn
para povo, de geração para geração. no seu estudo sabre o ressentimento na
Muitos dramas de amor do nosso moral, o amor antigo é sempre o amor
de baixo para cima, isto é, em que o
tempo não assaltariam as consciências
amante aspira a algo que se acha colo-
do mundo romano ou mesmo do século
cado acima dêle, que Ihe parece maior,
de Luís XIV. O que não quer dizer que
sob qualquer aspecto que seja, ao seu
não conservemos, nas possibilidades
próprio ser. Coube ao Cristianismo ope-
sempre ampliadas da nossa alma, a
rar a primeira revoluçãona essênciae
compreensão das experiências do ho- na existência do amor, concebendo-o
mem antigo, e a faculdade de repeti-las. como uma efusão de cim.a para baixo,
comoamor do criador pela criatura, de
O amor antigo Por imensa que tenha sido a Deus pelo homem, do forte pelo fraco,
capacidadedos antigos de ex- do maior pelo menor. A caridade apa-
plorar as contradiçõese os limites do rece,assim, como o primeiro amor que
homem, o problema do amor na antigui- oferece, em vez de pedir. Já não pode
dade não atinge nem entrevê a comple- ter sentido para a consciênciarefundi-
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da pelo Cristianismo a frase de Pi.A- destino a cumprir, que se tornaria uma
não: antinomia permanente do homem mo-
derno, coma Go T:n exprimiu nos ver-
''Se fôssemos deuses, não ama- sos:
rlamos.''
''So tauml ich von Begierde zu
Em toda antiguidade,quer consi- Genuss und in Genuss verchmacht
dei'emosa tradição trágica ou a lírica, ich nach Begierde. . .''
o amor é uma paixão que, mesmo sob
suas formas mais nobres,vive na esfe- Outro já foi o panorama em Heloísa e
ra dos sentidos, como, aliás, se depreen- que se construiu a experiência Abelardo
de do Simpósio platónico, e a inteligên- amorosa do homem medieval. Não é
cia está sobretudo empenhada, como meus. desejo desenvolver êste tema,
atesta Ovídio, na formação da ars amü- apressadocomo estou de retornar ao
foria, que cerca a vida amorosade ex- D. Quixote. Ihllas não quero deixar de
perimentados conselhos para dela eo- cllamar a vossa atenção para um epi-
Ihêr todo o fruto.
sódio, ém que vejo o amor medieval fi-
O primeiro poema antigo em que''Í xar-se no que poderia ter de mais espe-
se esboçaum drama de amor de estilo cífico e infungível. Refiro-me ao amor
ocidental e moderno. é, como observou de Abelardo e Heloísa. Êle, no esplen-
HAEKER,a Eneida . Enéias, abandonan- dor da sua irradiação intelectua,l,mes-
do o amor de Dadopara não deixar de tre incontestável da "Blscola de Paras,
cumprir o seu destino, é o primeiro he- cheio da tentação da glória e da santi-
rói que exprime o conflito entre o an- dade, que naquele instante o levava a
seio do destino no homem e as satisfa- uma carreira sacerdotal; ela, a culta e
ções do amor. O amor-prêmio do herói discretíssima abadessa do Parácleto,
homérico cede lugar ao conflito entre empenhada na glória e na i'ealização
a satisfaçãomomentâneae o ando do da carreira do professor genial. E sõ-
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bre êles desatando:se a mais furiosa
paixão sensual, que correspondência
l nem a realização do próprio gozo,-ou da
própria experiência, o que comandado
amorosa registra, paixão para que êle espírito sob o império da paixão . OnTu-
propõe o casamento secreto, a que ela, ll GAy GAssnT,nos seus ensaios sôbre o
querendo resguardar sempre a oportu- amor, pretende mesmo que não se deve /
nidade final do arrependimentoe da ver nesse estado de alma o amor-pai-t
vocação, prefere opor uma recusa e ofe- xão, todo feito de um insaciável apetite ?ú
recer o amor sem casamento. (E. Gn.- da pessoaa que amamos,porém anal
son, .HeZoiseef .AbeZa7'd,p. 59 e seg.) forma especial de amor, a que chama l
Não haverá, talvez, drama em que q ''amor-enamoramiento':(.Eõtwdios ao: l
}
l
reza, que passaram para a nossa expe-
amor satisfeito é a imagem perfeita do q- riência literária, e de que alguns poe-
doce {nõtü te; todo o espírito de GoE- mas ficaram sendo os testemunhos
TnE, por um de seus epicentros, aspira mortais. Mas não tarda que o jovem
a se entregar, a se consumir no doce GoEV.UE sinta o aterrador perigo que re-
i õíla?zfe,
a consentir nessa satisfação presenta para êle o amor de Frederica,
plena, que nos transpor'ta à delícia da justamente porque o seu espírito encon-
intimidade momentânea,
e pede um
abandono sem resistêuici&s. Mas por
{ tra nesse amor uma satisfação perfeita,,
uma realização que não pede senão a
outro lado, GoETnn aspira a uma reali- repetição indefinida, e que assim paci-
zação consciente (ile si mesmo, que Ihe .+
.i
de'Ft'ederica, e nisso está o drama es- Ao amor fáusticoZsecontra- O amor
catológico do amor titânico, que não põe o amor quixotesco, tão quixotesco
pode retribuir &"Léo fim o amor recebi- radicalmente aue nos custa reconhecer
do, e tem de ferir e perder para retor- l k entre êles uma essência comum. .No
nar à liberdade. !.
o doutor Fausto penetra nos céus. sa, isto é, a perpétua tentação de corres-
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ponder às oportunidades amorosas que viesse moído da aventura dos langue
se nos deparam, e que nos lançam na se8, pois, disse,
insaciável curiosidade das mulheres que
Indo amamos. D. Quixote, tendo con- ''ha querido la fortuna ponerme en
signadoà Dulcinéia todo o seu amor,
J latia tem para dar à aventura amoro-
+ este lenho, donde yago tan mondo
y quebrantado, que aunque de mi
voluntad quisiera satisfacer a, la
sa, mesmo quando esta corre para êle,
tomo no episódiode ]UaritorHes,'ou de
} vuestra, fuera impossible.''
.kZtiõidora. Vale a pena reler a respos-
ta de D. Quixote a .AZtisidora. O caso Mias a resposta aos cantos e della
de ]Marêtor#es, que todos temos bem
{ i'anões de .4Zfãõidora. é indubitável :
presente ao espírito, sabemosque não
passou de coincidência infeliz, pois a .L ''Que tengo de ser tan desdi-
trêfega asturiana entrou no quarto em chado andante,que no ha de caber
busca do arrieiro, justamente no ins- doncella que me mire, que de mi no
tante em que D. Quixote imaginava a se enamore! Que tenda de ser tan
corta de ventura la sin par Dulci-
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ra sola Dulcinéa soy de mesa y al- pessoas libertadas pelos seus feitos de
feííique, y para todas las demos soy' cavaleiro fossem mandadas prostrar-se
de pedernal;para ella solo soy ante Dulcinéía e contempla-la, eis o que
miel, y para vosotras acabar.; para respondeu D. Quixote:
mi sola Dulcinéa es la hermosa, la
discreta,la honesta,
la gallarday ''Oh que necio y que simple
la bien nacida, y las demos,..las ei'es! Tu no ves, gancho, que eso to-
feas, las necias, las levianas y las do redunda en su mayor ensalza-
de peor linaje: para ser yo suyo, y miento? Porque has de saber que
no de otra alguma,me arrojo la na- en este nuestro estilo de caballel'ia
turaleza al mundo. Llore o cante es grau honra tener una damamu-
Altisidora, desesperese madama chos caballeros andantes que la sir-
por quien me aporrearon en el cas- van, sin q.ue se extiendan más sus
tillo del moro encantado, que yo pensamientos que a servila por solo
tengo de ser de Dulcinéa coado o ser ella quien es, sín esperar otro
alado, limpio, bien criado y hones- pago de sus muchos y buenos de-
to,a pesar de todaslas potestades seos, sino que ella se contente de
hechiceras de la berra.'' acetarlos por sus caballeros.''
70
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