Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais – UNESP – Câmpus Marília
Disciplina: Teoria das Ciências Sociais, 2° semestre de 2018.
Professor: Dr. Anderson Deo Aluno: Silvio de Azevedo Soares FOUCAULT, Michel Foucault. “Aula de 17 de março de 1976”. In: _________. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 285-315. Autor: No conjunto de sua obra, Michel Foucault (1926-1984) apresenta uma abordagem original e crítica das relações históricas de poder, saber e subjetivação. Na construção de sua perspectiva analítica, Foucault constituiu uma síntese original a partir de diversos autores (como Nietzsche, Dumézil, Canguilhem, Kant, Hyppolite). Em inúmeros ditos e escritos, Foucault apresenta também um diálogo e um debate crítico com Marx e com o marxismo acadêmico francês. Perspectiva analítica e metodológica: Através de uma perspectiva não apriorística, não essencialista, não teleológica, Foucault descreve e analisa, em uma série de estudos históricos, como as relações de poder se exerceram, em específicos contextos sociais, sobre a materialidade dos corpos humanos. A analítica das relações de poder em Foucault implica em uma problematização histórica das práticas e técnicas de poder, que engendram discursos de saber e que, articulados, constituem modos de subjetivação (modos nos quais os sujeitos se compreendem e são apreendidos pela sociedade). Tornou-se comum, ao menos para fins de introdução à obra de Foucault, comentaristas segmentarem – ainda que de forma imprecisa – a sua trajetória intelectual em três momentos: a) nos anos 1960, uma arqueologia dos saberes, das regras de enunciação e de circulação de discursos; b) nos anos 1970, uma analítica genealógica sobre os sistemas de poder-saber, sobre os dispositivos de poder que produzem discursos de saber e sujeitos; c) nos anos 1980, uma fase ética de problematização do sujeito, de leituras éticas das práticas de si – os modos como o ser humano, a partir de certas técnicas, pode-se constituir enquanto sujeito. Obra e seus objetivos: A obra é o resultado da transcrição das 11 aulas a partir do áudio e das anotações de Foucault referentes ao curso ministrado entre janeiro e março de 1976. Nesse curso, Foucault realiza uma análise histórica do discurso da guerra entre dois antagonistas (“dominante” X “dominado”, “vencedores” X “vencidos”) como princípio de análises das relações de poder (modelo utilizado por Foucault na primeira metade dos anos 1970 e que Foucault percebe também no modelo marxista de luta dialética de classes como “motor da história”). A partir dessa questão – “Quem procurou no ruído e na confusão da guerra, na lama das batalhas, o princípio da inteligibilidade da ordem, das instituições e da história? Quem pensou primeiro que a política era a guerra continuada por outros meios?” (p. 320) – por meio de uma genealogia do presente, de “escavação” das camadas históricas de poder-saber a partir do presente, Foucault assinala a proveniência do discurso binário da guerra no discurso histórico e político da guerra das raças (nos séculos XVI e XVII, na Revolução Inglesa, e no XVIII, na França) e destaca suas transformações nos séculos XIX e XX (com a emergência do racismo moderno e sua utilização pelo Estado moderno). Dois modelos binários de análise da Discurso histórico e político Constituiu história e das relações de poder (séc. da guerra de raças (séc. XVII XIX): o racismo de enfrentamento e XVIII): Inglaterra e França. biológico e a luta dialética entre duas classes. Unidades de análise: O discurso histórico-político sobre a luta das raças presentes nos Levellers e nos Diggers ingleses – textos de John Lilburne e Edward Cook – enquanto discursos de reivindicação popular e da pequena burguesia do séc. XVII e, na França, em Boulainvilliers, Augustin Thierry, Du Buat-Nançay, enquanto discursos da nobreza contra a monarquia ao final do reinado de Luis XIV. Aula e seus objetivos: Nessa última aula do curso, Foucault analisa como esse discurso histórico- político da guerra das raças transforma-se, a partir da consolidação do biopoder (com a articulação da disciplina com a biopolítica no século XIX), no racismo de Estado, com o desenvolvimento de uma guerra interna (a partir da produção, em torno do racismo, de tecnologias de poder e discursos de saber, como a teoria da degenerescência e a eugenia) contra os perigos biológicos e sociais que nascem da própria sociedade (criminosos, doentes mentais, sifilíticos, etc.). Desenvolvimento da aula: Do poder de soberania (fazer morrer ou deixar viver) ao poder sobre a vida (fazer viver e deixar morrer). - Em virtude do aumento da população europeia e do início do processo de industrialização entre fins do século XVII e meados do XIX, Foucault constata uma reconfiguração na estratégia geral de poder. Da preponderância de uma lógica de poder denominada soberania, que se exercia essencialmente no direito do soberano sobre os súditos de “fazer morrer ou deixar viver” (p. 287), houve a passagem para a prevalência, no século XIX, do biopoder que, tomando como objeto o corpo e a vida do ser humano, caracteriza-se como poder “de fazer viver e de deixar morrer” (p. 287). - Desde fins do séc. XVII, a disciplina submeteu o corpo individual às práticas disciplinares no interior de instituições. Sujeição disciplinar que objetivava produzir corpos úteis (qualificados como corpos capazes de trabalhar) e dóceis (obedientes, disciplinados e com menor força política de resistência). Poder Soberano Poder Disciplinar Súdito, povo, território Indivíduos, corpos Suplício e morte do sujeito Vidas e corpos individuais Existência física do Soberano e Estado Instituições: prisões, escolas, oficinas, hospitais... Discursos de verdade: Leis e regras jurídicas Discursos de verdade: Ciências Humanas (psicologia, criminologia, pedagogia, psiquiatria) Leis Normas Descontinuidade dos mecanismos de poder Continuidade dos mecanismos de poder (arrecadação de tributos, suplícios) Existência física e visibilidade do Soberano Imperceptibilidade da disciplina Sociedade monárquica Sociedade disciplinar -Desde meados do séc. XVIII, a biopolítica toma o corpo-espécie, a espécie humana e seus fenômenos biológicos (morbidades e endemias; natalidade, mortalidade, longevidade; velhices e anomalias). Disciplina (individualizante) Biopolítica (massificante) Homem-corpo, corpo individual Homem-espécie, População Corpo Vida Anátomo-política do corpo humano Biopolítica da espécie humana Continuidade dos mecanismos de poder Continuidade dos mecanismos de poder Vigilância, adestramento Regulação Maximização da força individual Otimização da vida coletiva Organo-disciplina da instituição Bio-regulamentação pelo Estado Instituições: prisões, escolas, oficinas, hospitais... Mecanismos de regulamentação globais, estatais Norma: Normalização do corpo individual Norma: Normalização do equilíbrio global Discurso de verdade: Ciências Humanas (Psicologia, Discursos de verdade: Estatística, Biologia, Criminologia, Pedagogia, Psiquiatria) Demografia, Medicina Social, etc. Sociedade disciplinar Sociedade da normalização - Articulação disciplina e biopolítica: medicina, sexualidade e projetos de cidades operárias. - Sociedade da normalização: cruzamento perpendicular da norma disciplinar com a norma biopolítica. Biopoder e racismo - Em um sistema de poder que tem por objetivo gerir a vida, otimizar a vida dos indivíduos e da população, como vai se exercer o poder de matar, o poder soberano de morte? Para Foucault, o racismo moderno permitiu aos dispositivos de biopoder realizar um corte na população entre quem deve viver e quem deve morrer, através da hierarquização das raças “defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros” (p. 304). Deixar morrer as ameaças biológicas à espécie ou à raça (os degenerados, os anormais) como forma de fortalecer a vida humana. - Racismo reconfigura o poder soberano de matar no contexto do biopoder. -Racismo de Estado: racismo institucionalizado nos mecanismos de Estado, nas instituições de governo que operacionalizam o corte entre quem deve ser feito viver e quem deve ser deixado morrer. Nazismo (biopoder e racismo) -O nazismo representa o paroxismo da preocupação biopolítica de gestão e proteção da população contra possíveis desvios biológicos (a ordenação eugênica da sociedade, a exposição dos próprios alemães à morte para sobrevivência dos mais aptos e constituição de uma raça purificada, uma “estatização ilimitada” que realizou a exaltação da superioridade de uma raça/sangue e o genocídio sistemático dos outros). - a sociedade nazista, simultaneamente, “generalizou absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar.” (p. 311). Socialismo e biopoder “A ideia, em suma, de que a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biológicas, parece-me que isso foi retomado tal qual pelo socialismo.” (p. 313). Problema biopolítico não reside em “fazer viver”, mas na articulação intrínseca entre “fazer viver e deixar morrer” (os doentes mentais, os criminosos, os adversários políticos).