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Ditadura

do proletariado em Gotham City: Artigo de Slavoj


Žižek sobre o novo Batman

https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/08/ditadura-do-proletariado-em-
gotham-city-artigo-de-slavoj-zizek-sobre-batman-o-cavaleiro-das-trevas-
ressurge/

Publicado em 08/08/2012
Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com
exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.
Adverte-se aos leitores que o texto contém detalhes da trama de Batman – O
Cavaleiro das Trevas Ressurge


Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os
blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da
nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos
depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da
saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os
extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente
erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela
cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de
Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do
mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham)
e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent,
mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce
Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão
enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de
energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando
ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A
lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne
Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus
trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro
da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as
tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência,
Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com
ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra
Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se
juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação
de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter
assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar
Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca
numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de
prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar:
uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade.
Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para
ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-
Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de
Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das
pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer
tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do
qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte
de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane
revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os
prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele
promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a
“tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo
do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as
elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma
sequência mostra uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas
tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham
City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão,
retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar
a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta
e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora
social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão
quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano
de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se
segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da
bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia.
Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser
estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão
bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero
especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde
ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City,
enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem
divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto
Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a
Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua
com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o
sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada
por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um
conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que
faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que
jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um
indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme
apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício
pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à
própria vida para encontrar uma nova. […] Como máxima figura de Cristo,
Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de
Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas
o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que
aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?”
(Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição
da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do
filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso
desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente
sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez
no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena
final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta
sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é
a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme,
Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da
elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam
preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que
poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo
bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa
preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O
filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. […] A ideia de justiça
econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um
bilionário. Isso tem de ser levado em conta. […] E segundo, há muitas coisas na
vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte
do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas
analíticas para saber o que está acontecendo. […] Não acho que existe uma
perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação
honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas
que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles
tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e
especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores
podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o
verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida
com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista
que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e
ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização
dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na
“desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não
tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem
“honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como
afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios:
“Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma
civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em
pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil
imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo
levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que
os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror,
tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance
de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos
possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos
ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o
establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas
brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica
emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto,
quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do
establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” –
na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos,
o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que
realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta
uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no
filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando
o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é
simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a
hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir
suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma
ameaça existencial ao sistema de opressão. […] Sua força não é apenas a
psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las
rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante
organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para
gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais
subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger,
há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a
mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como,
em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia
sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso
(foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao
situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara,
que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras
do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo,
que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É
impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O
que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma
“cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas
(“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos,
irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26])
apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É
preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro
revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser
interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de
Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue
acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes,
violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos
soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é
impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu
vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do
amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto:
o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade
instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse
elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o
transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das
Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do
terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais
cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente
do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização
ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona
na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de
Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça
Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi,
mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker,
acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo,
ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de
A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman
Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como
Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é
libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está
esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s
Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce
deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles
treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que
eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não
é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e
terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim
pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em
Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo:
Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve
violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo
ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado
na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento
Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um
novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane
extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto,
deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos
antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a
imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida
dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-
organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de
Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta
para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que
a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei
Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na
incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. […] Mas todos os
nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por
assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado
à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O
cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve
terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França
inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e
verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós
aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando
afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma
violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para
não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível
verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma
questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX
como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o
comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência
irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas
“negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais
profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os
comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de
transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é
apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo
– os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o
fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa
razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há
potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em
jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é
que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida.
Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal
assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a
lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na
capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã
do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de
eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da
tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o
alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das
cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente
lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana
depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos
foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da
direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram
em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.)
apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente,
um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um
protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática,
o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e
declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias
constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os
cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios
secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e
a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade
toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de
todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um
verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos
eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que
desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica
imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma
ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente
aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos
de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora)
que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a
lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se
fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o
sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente
uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a
polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição
das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto
admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu
monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a
transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome
da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O
Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman
não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo
e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática
contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É
como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a
vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio
vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse
modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao
público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como
Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à
qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme,
Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói
popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem
uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu
ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de
Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de
Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane
não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à
conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça
com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como
parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto
para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento
dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive
Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência,
algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é
permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com
gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado
por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais
ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um
poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também
contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama
do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado
sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda
a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É
como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não
é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja
mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ
AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir
dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres
e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o
poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e
completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a
seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE
HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que
sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A
resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um
potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha
atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o
funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum
detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as
pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as
pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria
ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é
uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de
situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o
Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um
terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em
suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar
rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais
íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do
proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.



[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”,
Hillsdale Natural Law Review, 21 de julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de
julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de
julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York:
Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e
que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.
***
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