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Buscaremos aqui tratar das relações entre linguagem e expressão inauguradas pela arte moderna, e sua
ligação com a percepção e a corporeidade, a cultura e a história, segundo a filosofia de Merleau-Ponty.
In troduç ão
"a linguagem nos ultrapassa, não apenas porque o uso da fala sempre
supõe um grande número de pensamentos que não são atuais e que cada palavra
resume, mas ainda por uma outra razão, mais profunda: a saber, porque esses pen-
samentos, em sua atualidade, jamais foram 'puros pensamentos', porque neles já
havia excesso do significado sobre o significante e o mesmo esforço do pensamen-
to pensado para igualar o pensamento pensante, a mesma junção provisória entre
um e outro que faz todo o mistério da expressão"2. 2. MERLEAU-PONTY, M.
Fenomenologia da per-
cepção. São Paulo:
Henri Matisse, Sem título, 1937, pena e nanquim (38 X 28 cm). Furlan 31
Martins Fontes, 1994,
p. 521.
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2. A s i gn i fi c aç ão i n di r et a
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17. Idem, p. 42-43. cessa em parte alguma para dar lugar ao sentido puro”17.
Um signo na presença de outro torna-se significante, ou entre eles há
significação, quer dizer, não neles, mas entre eles, e isto “nos proíbe de conce-
ber, como estamos habituados, a distinção e a união da linguagem e seu senti-
18. Idem, p. 42. do”18. Ou seja, o sentido não é nem imanente nem transcendente aos signos,
mas brota do “tecido da fala”, tecido que tem dois lados, ou um direito e um
avesso, como diz o filósofo, um que é mostra, e outro que é opacidade. Isto é,
compreendemos a palavra no movimento da língua, e não decifrando seus sen-
tidos, e neste sentido a língua é mostra.
“Para compreendê-la, não temos que consultar algum léxico interior que
nos proporcionasse, com relação às palavras e às formas, puros pensamentosque
estas recobririam:basta que nos deixemos envolver, por seu movimento de dife-
19. Idem, p. 42-43. renciação e de articulação, por sua gesticulação eloqüente”19.
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informuláveis para qualquer outro que não Matisse, porquanto não estavam
definidas e impostas senão pela intenção de fazer aquele quadro que ainda não
existia”23. Da mesma maneira que há esta busca pela significação na pintura, há 23. Idem, p. 46.
busca semelhante na linguagem expressiva, nos dois casos a significação está
em vias de se produzir, e assim como a pintura no exemplo de Matisse não se
compromete com nenhuma significação antes de sua realização, a linguagem
expressiva tateia entre as palavras por esta que ainda não saiu da opacidade:
“temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio
que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda pôr a nu os fios
de silêncio que nela se entremeiam”24. 24. Idem, p. 47.
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suas primeiras obras, nem em suas “vidas interiores”, pois então não
precisariam pintar para se “encontrar”, e podemos dizer a respeito de Cézanne
ou Van Gogh que, na medida do possível, suas vidas exigiam suas pinturas,
como estas exigiam aquelas.
4. Ex pr e ss ã o e m u n do p er ce b i do
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mar. E por que o azul do mar pertencia ao mundo de sua pintura? Como podia
ensinar-lhe algo relativo ao regato das Lavadeiras? É que cada fragmento do
mundo, e particularmente o mar, (...) contém todas as espécies de figuras do
ser, e, pela maneira que tem de responder ao ataque do olhar, evoca uma série
de variantes possíveis e ensina, além de si mesmo, uma maneira geral de expres-
sar o ser”42. Diante do mar, Renoir olhava não sei o quê, e mudava uma parte 42. Idem, p. 57.
de sua pintura, sem que esta ou seu tema se perdessem, como se na ausência
das coisas não pudesse trazer a expressão da sua “idéia”. E em contato com o
mundo, esta pode se revelar como a presença das coisas em seu corpo, da qual
fala Merleau-Ponty, que afirma que desde que o corpo e o mundo aí estão, o
problema da pintura está inaugurado, ou existe um mundo a pintar. Este é o
sentido que a arte abstrata tem para Merleau-Ponty, quando não se degenera à
simples presença dos materiais que ela utiliza. Ou seja, liberada do sentido
visível mais próximo das coisas, presente em nosso cotidiano - que é esse da
“semelhança exterior”, que por muito tempo parecia impor a idéia da pintura
enquanto cópia da realidade, mas que nunca se impôs a todo grande pintor, que
também sempre fez da pintura a criação ou revelação de um sentido desperce-
bido na visibilidade comum -, cabe à pintura tornar visível a essência ou o
princípio gerador do sentido das coisas ou da visibilidade do mundo.
“Questão dos não-figurativos: o quadro não seria ainda mais livre para
dar a essência se todo laço fosse cortado? Pintura do Ser? Na verdade, pode acon-
tecer então que ele recaia sobre si mesmo, como uma coisa, precisamente:
assemelha-se novamente às coisas, bactérias, formas biológicas incômodas - limi-
ta-se ao dado (comovente, aliás) de estruturas físicas bastante gerais: muralha
despedaçada onde não vibra e não sonha senão a coisa colorida ou mesmo a
matéria em geral. Não se deve impor nenhum limite à liberdade do pintor: ele é
livre para se afastar ao máximo da semelhança exterior - mas para obter o ser
mundo (Welten)”43. 43. MERLEAU-PONTY,
M. Notes de cours, 1959-
1961. Paris: Gallimard,
5 . A a rt e e o d es v e l a m e n t o d e se n t i d o s 1996, p. 54-55.
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faz passar por cabelo, sem de fato sê-lo. Ao apresentarem a roupa e o cabelo
com essa matéria dura, no caso das esculturas, ou pastosa, no caso das pin-
turas, tornam-se mais próximas ao percebido, à leveza dos tecidos e ao volume
dos fios sobre a cabeça. Portanto, onde mais aparece a separação entre o real e
o imaginário, como nas estátuas religiosas espanholas, mais o real se desfaz, e
mais a imagem se coloca enquanto imagem, e onde mais se encontram fundi-
dos de maneira indistinta o real e o imaginário, mais o real se presentifica.
Giacometti diz que durante cinco anos começou trabalhando a partir
do modelo em um ateliê, e em casa trabalhava a partir da memória desse mo-
delo. O resultado a que chegou foram placas enormes com figuras minúsculas.
Mas estas não representavam uma redução da figura humana a uma estrutura
elementar. Na verdade, partia de uma figura “analisada”, com pernas, cabeça e
braços e, na medida em que tudo isto lhe parecia falso e buscava a concreção
da forma, o que restava de essencialmente verdadeiro eram apenas dois ocos
essenciais a toda figura, um bloco horizontal e um vertical. “Em casa eu tra-
balhava me esforçando para reconstituir pela memória apenas o que eu sentia
no ateliê de Bourdelle na presença do modelo; e isto se reduzia a muito pouca
coisa. O que realmente eu sentia, isto se reduzia a uma placa colocada de uma
certa maneira no espaço, e onde havia exatamente dois ocos, que eram, se
quisermos, o lado vertical e o lado horizontal que encontramos em toda figu-
46. GIACOMETTI, A. In: ra”46. O que restava era muito pouco, o que para Giacometti foi uma decepção.
CHARBONNIER, G. Mas ali havia algo de semelhante às coisas e a ele, e perguntava-se: “seriam as
Le monologue du peintre.
coisas que eu queria reproduzir, ou seria uma coisa afetiva, ou um certo senti-
Paris: Éditions de la Villette,
2002, p. 122. mento das formas que é interior e que gostaríamos de projetar no exterior? Há
uma mistura aí, da qual nós não sairemos nunca, eu creio!”47.
47. Idem, ibidem. As figuras de Giacometti não são uma simplificação da estrutura do
corpo humano, mas estas presenças humanas que contêm em seu corpo uma
espacialidade originária, assim como as naturezas-mortas de Cézanne podem
ser tratadas como esferas, cubos e cones, como formas de uma geometria ori-
ginária e não como sólidos geométricos. A palavra empregada por Giacometti,
em francês creux, espaço que possui concavidade que pode conter algo, traduz
de forma precisa esta sua procura incessante pela figura humana, a de um
corpo cujo sentido primeiro seria este da sua espacialização. Quer dizer, não no
sentido de estar no espaço, como uma coisa dentro da outra, mas no sentido de
geração do espaço, de ser no mundo, poderíamos dizer com a fenomenologia;
seja quando suas figuras aparecem lançadas em grandes dimensões no espaço,
ou quando reduzidas e contidas em uma ínfima vertical sobre uma densa e
enorme placa horizontal, privilegiando o sentido de sua relação espacial com o
mundo.
A figura humana é, para esse artista, o que foi uma maçã para
Cézanne. Diz Giacometti a este respeito:
“É certo que, para ele, os cubos, cones e esferas seriam apenas meios para
se aproximar um pouquinho da realidade, mas que a apresentação da montanha
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ou da maçã era o essencial. Para ele, a maçã sobre uma mesa é sempre, e bastante,
além de toda apresentação possível. Ele só pode se aproximar um pouco”48. 48. Idem, p. 130.
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6 . O m u s eu e a s ob re vid a d o pa s s ad o
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quem não é pintor se interessa pelo pintar enquanto expressão de algo a ser
visto, como o hoteleiro de Cassis se interessou por ver Renoir pintando, e
percebeu que ele pintava outra coisa diferente do que via62. Ou seja, “viver na 62. Idem, p. 57.
pintura é também respirar este mundo - sobretudo para aquele que vê no
mundo algo por pintar, e todos os homens são um pouco este homem”63. 63. Idem, p. 67.
Em seu diálogo com Malraux, Merleau-Ponty traz também a questão
da reprodução e da ampliação de detalhes que, antes das possibilidades fotográ-
ficas, nem mesmo existiam. Malraux considera nos pequenos objetos as mes-
mas questões de estilo que vê na pintura, apontando assim, também, para a
possibilidade de uma história que reunisse tudo o que se fez em arte, incluin-
do aí obras trazidas de países distantes. No entanto, esta concepção de História
não pode ser mantida quando nos perguntamos como o pintor se coloca no
mundo percebido. Pergunta-se Merleau-Ponty:
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medida em que esta nos insere na história”70. E assim como nossa gesticulação 70. MERLEAU-PONTY,
não é uma expressão que nos é clara e nem mesmo muito visível para nós mes- M. A linguagem indireta
e as vozes do silêncio.
mos, a nossa expressão pictórica e literária não nos é dada a não ser pela
Op. cit., p. 73.
intenção de nossa vontade de exprimir; os gestos do pintor, assim como a
palavra do escritor, não são escolhas deliberadas, escapam de suas mãos, assim
como o escritor envolve de sentido as palavras que escreve sem lhes impor um
sentido de fora.
Se podemos tratar a pintura como uma linguagem é, pois, recuperan-
do em sua origem o percebido, ou seja, este mundo visível a ser pintado, desde
que algo no mundo apela à expressão do pintor. Assim como a linguagem fala-
da, sob suas significações claras, deve descobrir uma linguagem falante, onde
as palavras ainda estão prometidas a significações indiretas ou laterais, também
o mundo percebido está prometido à expressão do pintor.
Diz Merleau-Ponty que as análises formais nas artes plásticas são
questionáveis porque não adentram a obra; sua crítica não é que o formalismo
valorize demais a forma, e assim fazendo perca outros sentidos, mas sim que a
maneira como se refere à forma não a adentre tampouco, e assim perca o sen-
tido. Ou seja, que o formalismo faria da forma uma significação fechada,
enquanto que esta deveria ser analisada como estilo, isto é, como forma que
contém em si um gesto, que caracteriza a pintura de Vermeer, de Cézanne, ou
de outro pintor, assim como a linguagem de Clarice Lispector ou de Machado
de Assis. Em síntese, uma significação sempre aberta, deslizando de signo a
signo e só apreendida na totalidade da obra.
Como dissemos, a arte, seja a literatura, seja a pintura, contém mais
do que idéias, ela é antes “matriz de idéias”, e o que nela é essencial é “nos
fornecer emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver”, porque ela
“se instala e nos instala num mundo” de que não temos a chave, e nos ensina
a ver e nos faz pensar “como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo, porque
a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos”71. 71. Idem, p. 81.
Annie Simões Rozestraten Furlan é formada em artes plásticas pela ECA-USP, e mestre pelo Programa de Pós-
Graduação do Departamento de Psicologia e Educação da USP - Ribeirão Preto. E-mail: annie@usp.br
Reinaldo Furlan é doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de filosofia do Departamento de Psicologia e
Educação da USP - Ribeirão Preto. E-mail: reinaldof@ffclrp.usp.br
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