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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

AO SOAR DO APITO DA FÁBR ICA: IDAS E VINDAS DE OPERÁR IAS(OS)


TÊXTEIS EM VALENÇA-BAHIA
(1950-1980)
Neli Ramos Paix ão

Dissertação apresentada ao
Mestrado de História da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas
da UFBA, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre.

ORIENTADORA: Profª Drª Lina Maria Brandão de Aras

SALVADOR-BAHIA
2006
2

A d o n a Da lva ( in m emo r ia n ),
p a ra q u e m fu i a fi lh a q u e n ã o te ve.
A o s meu s p a i s, co m a fe t o e g ra tid ã o .
3

AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho não seria possível sem o apoio e a


colaboração de várias pessoas, às quais gostaria de expressar toda a minha
gratidão. Agradeço a orientação competente e sempre atenciosa da Professora
Doutora Lina Maria Brandão de Aras que, mais do que orientar, me deu a mão
ao longo de todo o caminho, corrigindo, sugerindo, oferecendo possibilidades,
construindo comigo uma relação de confiança e de estímulo fundamentais
para a concretização deste trabalho.
Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em História,
pela contribuição trazida pelas discussões durante o período de aulas, e aos
funcionários da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas pela
disponibilidade em informar, esclarecer e agilizar os trâmites do Curso.
Agradeço especialmente as contribuições do Professor Doutor Antônio
Fernando Guerreiro de Freitas e da Professora Doutora Cecília Maria Bacellar
Sardenberg, que compuseram a banca de qualificação.
Obrigada aos meus sobrinhos Albert, Indiana, Indeandro e Augusto pela
força na sistematização dos dados da pesquisa.
Minha gratidão toda especial aos operários e operárias que tão
gentilmente cederam seu tempo e suas lembranças, permitindo-me revisitar o
passado através de seus relatos.
Sou grata também à Companhia Valença Industrial, especialmente a
Ana Cláudia, Matheus, Humberto, David e José Almeida, que não mediram
esforços para possibilitar meu acesso aos arquivos da fábrica e tornaram
agradáveis meus dias de pesquisa, e a Jorge Malheiros, por disponibilizar o
acervo fotográfico da fábrica.
Agradeço à Direção e aos colegas dos Colégios onde leciono: o
Perspectiva, o Social, o COESVA e o João Leonardo, pela vibração solidária
4

desde a minha aprovação na seleção do Mestrado e pelo constante interesse e


estímulo durante a construção do trabalho.
Agradeço pelos incentivos que recebi de amigos e amigas: Ana Maria
Carvalho, Wilson de Mattos, Augusto Moutinho, Indinéia Paixão, Alene Lins.
Meu muito obrigada a Edmilson França e Mariângela Ramos, colegas
historiadores que tão gentilmente compartilharam seus livros, textos e fontes.
Meus agradecimentos ao senhor Corinto Menezes e senhora Roselita pela
cessão de seu acervo fotográfico, e a Carlos Henrique Passos, pela gentileza
em partilhar informações. Obrigada também a Telma Saraiva, Raquel Saraiva,
Vanusa e Edvaldo Pitanga, que me acolheram em suas casas durante minha
estada em Salvador.
Quero aqui abraçar, agradecida, todos os colegas do Mestrado, em
especial Elivaldo, Vânia, Kleber Simões e Maricélia, amigos queridos que
partilharam comigo os anseios, angústias e as conquistas ao longo de toda
trajetória do Curso, e Jacira Primo, pela efetiva representação da turma junto
ao Colegiado.
Obrigada à minha família, que me amparou de todas as formas, sem a
qual eu não seria nem poderia nada.
Finalmente, a minha gratidão a Marcelo Lins, amor da minha vida, com
quem compartilhei muito de perto cada segundo desta trajetória.
5

LISTA DE TABELAS

I Percentual produtivo dos produtos agrícolas de 27


Valença
II Escolaridade do(a) trabalhador(a) X Sexo 45

III Sexo do(a) Trabalhador(a) 47

IV Sexo do(a) Trabalhador(a) X Meses trabalhados 48

V Sexo do(a) Trabalhador(a) X Recomendação quanto a 50


readmissão
VI Funções na produção têxtil 54

VII Funções fabris X Sexo 57


6

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

I Ficha funcional deteriorada 18

II Ficha funcional de operária não alfabetizada 18

III Mapa das Ilhas Tinharé, Cairu e Boipeba 25

IV Ficha funcional de operário admitido aos 15 anos de 53


idade
V Festa do Amparo 96
7

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ..................................................................... 3
LISTA DE TABELAS ..................................................................... 5
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ............................................................. 6
SUMÁR IO....................................................................................... 7
RESUMO ........................................................................................ 8
ABSTRACT .................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ............................................................................... 11
CAPÍTULO I .................................................................................. 24
1 – OS CENÁRIOS: A FÁBR ICA E A CIDADE ................................. 24
CAPÍTULO II ................................................................................ 44
2 - O ESPAÇO FABRIL: A TRAMA SOCIAL NO INTERIOR
DA FÁBR ICA ................................................................................ 44
2.1 - CONSTRUINDO PERFIS ........................................................ 47
2.2 - CONHECENDO AS RELAÇÕES .............................................. 58
CAPÍTULO III ........................................................................... 74
3 - PARA ALÉM DAS PAREDES DA FÁBRICA ............................. 74
CONS IDERAÇÕES FINAIS ......................................................... 98
BIBLIOGRAFIA ........................................................................... 102
FONTES ........................................................................................ 106
ANEXO ....................................................................................... 111
8

RESUMO

O presente trabalho objetiva discutir o cotidiano e as relações sociais


intra e extra-fabris estabelecidas por operárias da Companhia Valença
Industrial, uma fábrica têxtil situada na cidade baiana de Valença, cuja
fundação remonta ao século XIX. Por sua importância, revelada pela memória
da sociedade valenciana, a Companhia e seus trabalhadores constituíram-se
como elementos históricos significativos para a compreensão da dinâmica da
cidade, de sua trajetória socioeconômica, de suas particularidades culturais. O
estudo utilizou-se das fontes orais, como fonte privilegiada e, além delas,
fontes escritas dos arquivos da fábrica e jornais de circulação local, dentre
outras. A discussão proposta evidencia a importância da mão de obra feminina
para a fábrica, as condições de trabalho, a hierarquia fabril, um perfil daquele
grupo de trabalhadores, as relações sociais, o cotidiano doméstico, as formas
de socialização e lazer, situando os sujeitos em estudo na sociedade
valenciana.

Palavras-chaves: Valença-Bahia – História – Indústria Têxtil – Operários –


Cotidiano – Mulheres – Relação de gêneros – Cultura.
9

ABSTRACT

WHEN THE FACTORY WHISTLE BLOWS: TEXTILE WORKERS’


COMINGS AND GOINGS IN VALENÇA-BAHIA (1950-1980)

This stud y is aimed at discussing the textile workers’ everyd ay life and
social relations built both inside and outside their factory (Companhia
Valença Industrial), located in the Cit y of Valença (Bahia, Brazil) and dating
back to the 19 t h century. As revealed b y the importance assigned b y that
cit y’s societ y, the factory and its workers represent significant historical
elements to understand the cit y’s d ynamics, socioeconomic course and
cultural specificities. By drawing basicall y on oral sources and also written
records from the factory files and the local newspapers then in print, the
discussion herein proposed builds a profile of those workers from 1950 to
1980, shows where they stand within the cit y’s societ y and highlights the
importance of the female workers’ labor for the factory, the working
conditions, the factory’s hierarch y, the social relations, the everyday life in
the household and the kinds of socialization and leisure.

Key Words: Valença-Bahia - History - Textile Industry - Workers – Everyday


Life - Women - Gender Relations – Culture.
10

“ Na q u el e t emp o , d a m in h a ép o ca , a Co mp a n h ia ta va co m d o is
mil e ta n to s o p e rá rio s t r a b a lh a n d o . Qu a n d o la rg a va o s en h o r
to ma va med o , p a r ec ia u ma p ro ci s sã o , e ra a s si m em to d o s o s
h o rá rio s d e t ra b a lh o ”.

(S r. S a b in o Go me s, ex- o p erá rio )

“T in h a g en te q u e só en t ra va n o t ra b a lh o . ..
q u e a fá b r ica a p ita va n a q u ela ép o ca ...
p o rq u e a fá b ri ca a p i ta v a ! ”
(S ra . A mé r ica d a Co n c ei çã o , ex- o p e rá r ia )
11

INTRODUÇÃO

“T r at a - se d e d e s ve nd ar ho j e a s co mp le xa s r e laç õ es
en tr e a mu l h er , a so c i ed ad e e o fa to , mo s tr a nd o
co mo o ser so c ia l q ue e la é ar t ic u la - se co m o f ato
so c ial q u e ela me s ma fab r ic a e d o q u al é p a r te
in te gr a nt e”.
Mar y Del P r io r e

As últimas décadas do século XX favoreceram a construção de um novo


ambiente historiográfico com o alargamento das possibilidades temáticas e do
campo de investigações em pesquisa histórica. Temas que privilegiam o
campo da cultura, como família, vadios, mendicância, festas populares, entre
outros, vem firmando espaço entre as investigações da História Social,
preenchendo lacunas deix adas pela historiografia tradicional, ao dar voz às
chamadas minorias – grupos sociais oprimidos, dominados, cujas aspirações,
experiências e necessidades, por não serem hegemônicas, ficaram durante
muito tempo à margem das preocupações dos estudos históricos –, garantindo-
lhes, assim, o estatuto de sujeitos históricos.
Neste contexto estão inseridos os estudos que incorporam as mulheres e
as relações de gênero. Em franca expansão, os estudos sobre a mulher 1 vêm,
desde a década de 1970, conquistando espaços nas Ciências Sociais e
encontrou campo fértil na conduta historiográfica em ascensão. Tem sido
notável o crescimento das produções acadêmicas que, em função da
visibilidade conquistada pelas mulheres, seja por sua presença no mercado de

1
Entre outros, SCOTT, Joan . “História das Mulheres”. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.; SOIHET, Rachel. “História das Mulheres”. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion. e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e de metodologia. Rio de Janeiro:
Campos, 1997.; MATOS, Maia Izilda Santos de. Estudos de gênero: percursos e possibilidades na historiografia
contemporânea. Campinas, Cadernos Pagu, nº 11, 1998.
12

trabalho, seja pela expansão de suas lutas em espaços diversos de participação


social, primam pela reconstrução das suas experiências, vidas e expectativas
nas sociedades passadas e presentes, tomando-as como objeto de estudo.
As inovações teóricas e metodológicas que foram se instituindo ao
longo das últimas décadas, e que abriram espaços para a construção – entre
outras temáticas – de histórias de mulheres, possibilitaram também a prática
de um exercício de construção histórica que se autocritica, se reavalia, se
expande e sofre, conseqüentemente, mudanças e novas revisões teórico-
metodológicas, seja no tocante aos temas, aos espaços focalizados, à
abordagem ou aos conceitos e categorias utilizados.
Assim, a categoria gênero se estabeleceu como possibilitadora de
análises que inserem o feminino – a mulher – na complexidade das relações
sociais em constante processo de mutação, rompendo com uma pretensa
bilateralidade estanque e simplista entre masculino e feminino. A partir dessa
categoria analítica, é possível historicizar a constituição de papéis sociais
femininos e masculinos enquanto constructos identitários que estabelecem
entre si estreita relação.
Ao tomar as/os trabalhadoras/es da Companhia Valença Industrial como
objeto de pesquisa histórica procurou-se identificar, na teia das relações
travadas no dia-a-dia fabril, os papéis/posições atribuídas a cada sujeito, a
definição de seus “lugares” nessa complex a rede, os quais foram
estabelecidos por uma diversidade de elementos constituintes do contexto em
que estão inseridos, com todas as suas particularidades.
Abordar tal objeto sob a perspectiva da categoria analítica “gênero”
permitiu uma leitura inter-relacional das experiências de sujeitos sociais
femininos e masculinos, ambos inseridos em um leque de referências a partir
das quais constituem seus papéis e estabelecem relações de poder – esta
prática social multifacetada que tem nas diferenças sexuais socialmente
estabelecidas o elemento fundante de sua estruturação nos diferentes
contextos históricos.
No contexto do espaço e do tempo balizados por este estudo, são as
mulheres as responsáveis pelo trabalho realizado na feitura do produto final
comercializado pela Companhia; entretanto, nenhuma mulher assumiu, na
C.V. I., funções de chefia. Esta hierarquização de funções/papéis no interior
13

da fábrica pode ser traduzida como uma hierarquia de poder que dá


predomínio ao masculino. Entretanto, esse “predomínio” não era perene,
homogêneo ou absoluto. Nos limites do espaço fabril, embora estivessem sob
uma administração masculina, as operárias experimentavam e utilizavam
“poderes” 2, que relativizavam essa aparente hegemonia masculina. Sutil ou
abertamente, a hierarquia estabelecida era questionada em diversas ocasiões.
É o que revela a ficha funcional de dona Alexandrina Fonseca, tecelã,
admitida em 1945 e funcionária até o ano de 1975, quando se aposentou.
Constam, no referido documento, quatro registros de suspensões com as quais
a operária fora penalizada, três delas, “por estar sentada, discutiu e ofendeu o
superior hierárquico.” 3
Os comportamentos – que denotam não apenas estratégias de
resistência, mas o quão complexas podem ser as relações sociais – não se
fazem notar apenas no universo fabril. A mulher operária é também filha,
esposa, administradora do orçamento doméstico, mãe, comadre, membro da
comunidade religiosa... Em cada uma dessas esferas ela exercita a sua
condição de sujeito e, inserida numa teia de relações que estabelece papéis, é
também responsável por tal tessitura. Observe-se, por exemplo, a fala de dona
Dalza Sarmento, operária da Companhia entre os anos de 1958 e 1974
“E u... me u mar id o n u n c a q uer ia q ue e u fo s s e t r ab al h ar p o r q u e ele
p as sa v a... e le er a ele tr i ci sta ... e q u a nd o e le p a s sa va v ia o co ntr a -
me s tr e d eb ai xo d a má q ui n a o l ha nd o o s o utr o s, aí el e d iz ia q ue o s
co n tr a - me s tr e faz ia aq u ilo p r a p ud er ve r a s m ul é... p o r b ai xo , né?
E u p r a ir t r ab a l har p r ec iso u. .. ad u lo u ta nto , q u e el e não . .. não p r a
tir ar a car t eir a... el e n ão d e u d i n heir o p r a tir ar a c ar t eir a. Aí e u ,
co s t ur a no , tir ei a c ar te ir a e f u i tr ab al h ar 4.”

Nas recordações de dona Dalza, observamos como a firmeza em sua


decisão de trabalhar fora de casa – na fábrica – revela um sujeito social
feminino que faz opção, decide, manifesta-se e enfrenta a negativa do

2
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993.
3
Arquivo da Companhia Valença Industrial. “Registro de Empregados e Funcionários”, caixa nº 1, letra A,
1970.
4
Depoimento da sra. Dalza Sarmento. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em 1998, aos
63 anos.
14

companheiro ante à sua vontade. Esse ex ercício de poder permeia as relações


nas várias esferas de presença/atuação feminina.
Se as falas das operárias exprimem as visões de expectativas do
feminino em relação às suas experiências, a memória dos sujeitos masculinos
estabeleceu o contraponto. Das falas de ambos, foi possível construir o
mosaico dessas relações, colhendo a visão que se tinha de si mesmo, enquanto
sujeito sexualmente definido como masculino ou como feminino, e do outro,
bem como, o que se acreditava ser o papel social e os limites de cada um.
A esfera sindical constituiu um outro espaço no qual a atuação
feminina, em sua interação com sujeitos masculinos, foi investigada. Nos
depoimentos coletados, a participação feminina parecia oscilar entre a repulsa
e a participação em momentos pontuais como os de paralisação. As diferentes
impressões sobre a atuação do sindicato e sobre a participação feminina nele
são reveladoras da diversidade de elementos componentes daquela realidade.
A falta de acesso à documentação sindical não permitiu fazer análises mais
profundas. Este, entretanto, é um dos aspectos que pretendo discutir neste
trabalho.
É neste quadro de reflexões e de abordagens historiográficas que se
enquadra o presente trabalho. Identificar os papéis históricos das operárias da
C.V. I., através do conhecimento da dinâmica de suas atividades no interior da
fábrica e fora dela, das estratégias de superação das dificuldades e da
exploração inerente às relações de produção capitalistas foi, sem dúvida, um
desafio que implicou na leitura das entrelinhas e que exigiu o esforço de
enxergar através da visão do outro, vasculhando-lhe a memória para trazer à
tona o cotidiano, este lugar de construção da vida e das relações sociais. É na
cotidianidade que os indivíduos adquirem, constroem e desenvolvem as
habilidades imprescindíveis para relacionar-se na sociedade em que estão
inseridos. Tratar a história na sua diversidade cotidiana é reconhecer, como
Braudel que a “história é a soma de todas as histórias possíveis”. 5 Assim,
além de sujeito-objeto de investigação, as operárias da C.V. I. constituíram-se
em fontes históricas que possibilitaram a concretização deste trabalho.

5
BRAUDEL, Fernand apud DOSSE, François. História em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo:
Ensaio, 1992. p. 253.
15

O recorte cronológico balizador da pesquisa foi o período de 1950-


1980, justificado pelo fato de que a década de 50 marcou um momento de
maior viabilização das atividades industriais na Bahia. Segundo Nelson
Oliveira:
“A d écad a d e c i nq üe nt a se co ns ti t ui u e m te r mo s r e gio n ai s n u ma
fr o n tei r a n ít id a e ntr e u ma e tap a d i ta i mo b il is t a e a r eto ma d a d e
no va s e xp ec tat i va s ( . .. ) is so no li mi ar d e u m no vo cic lo d e
d ese n vo l vi me nto d e â mb ito nac io na l o nd e a ind u str ia li zação se
tr a n s fo r ma n u ma p a la vr a c ha ve ”. 6

Na mesma época, dados do IBGE apontaram a atividade industrial em


Valença como “a mais importante atividade econômica do município”. 7 Em
contrapartida, a década de 1980, baliza final do recorte, corresponde ao
período em que a Companhia Valença Industrial começou a enfrentar
dificuldades que interferiram na configuração do seu quadro pessoal e
trouxeram alterações às condições de sobrevivência de muitos de seus
trabalhadores, pois a crise determinou os “cortes” de muitos funcionários,
chegando a uma paralisação quase total (exceto manutenção de máquinas) de
suas atividades alguns anos depois.
. Esta baliza permitiu a construção de um trabalho capaz de evidenciar o
desenrolar das expectativas, do desempenho das atividades exercidas pelas
mulheres operárias da C.V. I. dentro e fora do ambiente fabril, através das
quais elas participaram da história da cidade e se inscreveram como agentes
históricas, desmontadoras de ideologias, reelaboradoras de relações sociais,
construtoras de estratégias de sobrevivência não somente material, mas,
principalmente, social.
O eixo teórico-metodológico da pesquisa foi construído com base na
História Social, cujo repertório temático transita pela circularidade das ações
humanas sociais e culturais no tempo e nos espaços, sem perder de vista as
peculiaridades dos indivíduos e dos grupos. Desse modo, as operárias da
C.V. I., como sujeitos de uma interação sócio-cultural específica, não podem
ser compreendidas com base em parâmetros e concepções generalizadas.

6
OLIVEIRA, Nelson. Notas sobre a Recente Expansão Industrial na Bahia. Caderno do CEAS, nº 112. Nov/Dez.
1987. p. 45.
7
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, XX Volume, Rio de Janeiro, 1958. p. 409.
16

Nesta proposta de trabalho, a opção foi a de “escrever contra o peso das


ortodoxias dominantes” 8, reavaliando os amplos esquemas teóricos e a rigidez
dos paradigmas em favor de uma história que prioriza a cultura e a dinâmica
social, que busca as minúcias dos movimentos sociais e descortina as
experiências das minorias, sua cultura, seus valores, empreendendo reflexões
do processo histórico sob a perspectiva “dos vencidos”, no dizer de Edgar de
Decca. 9
Thompson produziu um dinâmico resultado teórico quando analisa a
plebe inglesa no século XVIII partindo do conceito de cultura – com o qual
preenche lacunas do marxismo quanto a valores, crenças, costumes, modos de
vida e de luta – vinculado ao conceito de experiência social, reconstituindo,
assim, a dinâmica da vida social a partir do conjunto de elementos que tais
conceitos abarcam.
Trabalhando o conceito thompsoniano de experiência social, travaremos
o difícil enfrentamento com as racionalizações em torno da teoria, buscando
recuperar o “fazer-se” histórico das operárias em Valença, sob a perspectiva
tanto do labor como das ações cotidianas mais fugidias, investigando as
atitudes que lhes conferiram visibilidade histórica e através das quais se
posicionaram diante das situações de luta pela sobrevivência, diante das
relações de poder constituídas nas diversas esferas de sua presença/atuação e
reelaboraram as teias de relações sociais, de trabalho e de gênero em que
estavam inseridas.
Nas obras de Thompson, a ação humana emerge, desvelando sua
historicidade e projetando homens e mulheres como construtores da própria
história e os reconhecendo como sujeitos capazes de modificar,
continuamente, as circunstâncias em que vivem, numa concepção teórica
compreendida como “uma exploração aberta do mundo e de nós mesmos”. 10
Assim, na perspectiva de trabalho a que este estudo se propõe, travamos
com as fontes e com a bibliografia o diálogo que permitiu estabelecer a
relação entre as orientações teóricas que valorizem, tanto a prática da
investigação – abrindo caminhos para a produção do conhecimento –, como a

8
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.
12-13.
9
DECCA, Edgard Salvadori de. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
10
THOMPSON, E. P. op. cit.
17

idéia de contribuir para a transformação da sociedade, trazendo novo sentido


político ao abordar as novas propostas temáticas que dão ênfase a agentes
históricos “comuns” e às ações por eles implementadas no seu cotidiano.
A trajetória dos agentes históricos, objeto desta pesquisa, pode ser
desvelada, não só, pelos depoimentos por eles concedidos, mas, por fontes
escritas mantidas sob a guarda da Companhia, como os Registros de
Empregados e Operários 11.
As fichas analisadas 12, localizadas nos arquivos da Companhia Valença
Industrial, dizem respeito às informações funcionais de 4 682 trabalhadores
em suas diversas funções: médico, professora, chefes de seção, serventes,
tecelões, porteiros, motoristas, enfim, profissionais que atuavam no chão da
fábrica têxtil, como também, nos demais setores e empreendimentos da
Companhia, quais sejam: oficina mecânica, carpintaria, usina hidrelétrica do
Candengo, fazendas, serraria e fundição.
As 4 682 fichas arroladas foram arquivadas segundo o critério da
década (1950, 1960, 1970) ou do ano (1978, 1979, 1980) de desligamento dos
trabalhadores, e utilizei as caixas indicativas do período entre 1950 e 1980.
Algumas das informações contidas nas fichas foram suprimidas ao
longo desse período, na medida em que o padrão da ficha era modificado. O
espaço para a assinatura do empregado, por ex emplo – que poderia ser um
indicador do número de alfabetizados entre os trabalhadores da fábrica no
período – desapareceu no novo formato de ficha utilizado em boa parte do
material arquivado nas caixas da década de 1960 e, mais ainda, no formato
das caixas referentes às décadas de 1970 e 1980.
As condições de arquivamento das caixas não são as mais adequadas,
armazenadas em estantes de madeira, em um espaço restrito, sujeito a
constantes infiltrações e goteiras provocadas por chuvas e à ação de insetos
xilófagos, como os cupins. Por essa razão, as fichas mais antigas
principalmente – expostas há mais tempo às más condições – carregam marcas
de deteriorização, o que, muitas vezes, impossibilitou a legibilidade parcial
ou total do conteúdo de muitos documentos, como no caso da ficha abaixo:

11
O “Registro de Empregados” em fichas padronizadas passou a ser uma exigência legal a partir de 1935.
12
Apesar de diversas tentativas anteriores, o acesso às fichas funcionais da C.V.I. só foi autorizado no final do
ano de 2005, quando o curso já estava em andamento.
18

FOTO 01 – Ficha funcional deteriorada

Fo nt e: Co mp a n hi a Va l en ça I nd us tr i al. Re g is t r o d e T r ab alhad o r es e Op er ár io s,
1 9 5 0 -1 9 8 0 .

Entre os dados disponíveis, só estão registradas 556 informações sobre


a alfabetização ou não dos trabalhadores. Em 538 desses casos, é a própria
assinatura do(a) operário(a) que revela se ele(a) sabia, no mínimo, assinar o
próprio nome. Em outras fichas funcionais, uma quantidade ínfima, o
departamento pessoal da fábrica registrou a expressão “não sabe ler”,
justificando a ausência de assinatura, ou usou da assinatura de terceiros “a
rogo” do(a) operário(a) não alfabetizado(a), como exemplifica a ficha abaixo.

FOTO 02 – Ficha funcional de operária não-alfabetizada

Fo nt e: Co mp a n h ia Val e nç a I nd us tr ial. R e gi str o d e E mp r e gad o s e Op er ár io s, 1 9 5 0 -


1980.
19

Essas fichas funcionais de empregados revelaram-se muito importantes


para a constituição de um perfil – ou perfis – das/os operárias/os da
Companhia. Nos dados catalogados foi possível vislumbrar algumas
inferências. Há, por exemplo, um grande volume de fichas que têm o espaço
reservado para a assinatura do empregado(a), cujo espaço foi deixado em
branco, o que pode sugerir a não-alfabetização desses operários/operárias. Um
fato a considerar, no entanto, é que muitas dessas fichas foram preenchidas
alguns dias, meses e até anos após a efetiva admissão do funcionário, o que
pode ter acontecido à revelia do trabalhador para quem não fora solicitada
assinatura no referido documento. Mas há casos em que, apesar desse
distanciamento de tempo entre a admissão e o preenchimento da ficha, o
empregado atesta os dados do documento com sua assinatura. E outras, ainda,
que explicitam a informação “Não sabe ler”.
Além da alfabetização ou não dos operários/as, as fichas ofereceram
informações sobre a faixa etária dos trabalhadores ao serem admitidos na
fábrica, as funções predominantemente masculinas e femininas, os ganhos
salariais, a rotatividade de empregados em determinados serviços, a
naturalidade, as licenças – inclusive as licenças-maternidade – , os acidentes.
Este conjunto de aspectos constituíram parte da trama das relações no
interior da fábrica e apontaram para outros aspectos presentes nas
experiências/vivências extra-fabris que compunham o cotidiano dessas
trabalhadoras/es.
O cotidiano – esse terreno movediço – é, pois, a via de construção da
base social. Nele dissolvem-se e revelam-se os aspectos sociais e culturais
dos agrupamentos humanos, cuja investigação sugere a necessidade de
caminhos alternativos. Desta forma, a História Oral coaduna-se com a
História Social, na medida em que possibilita reconstituir a dimensão
subjetiva dos processos históricos e instituir sujeitos históricos, os quais,
transitando entre passado e presente, oferecem informações, dados e
impressões que qualquer registro escrito jamais poderia oferecer.
As fontes orais oferecem a possibilidade de se estabelecerem novos
enfoques e reflexões ao capturarem-se as histórias significativas de
indivíduos ou grupos sociais que não estão registradas em documentos
20

escritos, e ao permitir o reexame de realidades não contempladas pela história


oficial. Cabe salientar que não é compreensível que o uso dessas fontes
estejam apenas a serviço da “história dos vencidos”, afinal as classes
dominantes também falam e, igualmente, vivenciam experiências que, uma
vez apreendidas pela memória, podem ser fontes reveladoras de
informações/interpretações de um determinado contexto histórico. O seu uso
nesta pesquisa atende aos propósitos aqui definidos, uma vez que o uso de
fontes orais – e toda sorte de contingências que possam derivar desta opção
metodológica – são “dimensões da pesquisa ricas em possibilidades que se
abrem ao historiador preocupado em surpreender o vivido e as estruturas de
sentimento, entendidas como criações culturais, no cerne dos processos
históricos em que a luta entre projetos de mundo, entre interesses, ganha
visibilidade”. 13
Por essas razões, os depoimentos das operárias da C.V. I. foram
utilizados como instrumentos capazes de revelar valores e costumes gestados
num tempo próprio, onde memória e história se fundem. O tempo histórico,
nas fontes orais, “não vem inscrito enquanto duração cronológica de
experiências e vivências numa progressão linear”, 14 mas aponta para uma
multiplicidade de lembranças e esquecimentos, que possibilitarão, com
excelência, compreender e desvelar áreas inexploradas da vida diária das
trabalhadoras, fazendo emergir a memória expressa na voz, nos gestos e no
semblante desses seres sociais.
A fonte oral exige do pesquisador uma postura cuidadosa, paciente e
criteriosa, uma vez que “a escuta do outro é a entrada num universo
desconhecido, um universo a ser desvendado 15”, passível de revelar o
implícito, aquilo que só se evidencia ao olhar atento na leitura das
informações gestuais, da entonação, das expressões fisionômicas e dos
silêncios.
Em consonância com Alessandro Portelli, “o ritmo do discurso popular
carrega implícitos os significados e conotações sociais irreprodutíveis na

13
SANTANA, Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-
1980. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 21-22.
14
SANTANA, Charles D’Almeida. “Lugares e Memória de Luzes na Cidade de Salvador”. Anais do Encontro
de História Oral do Nordeste. Salvador: 2000. p. 322.
15
CALDEIRA, Teresa. Memória e Relato. “A Escuta do Outro”. Revista do Arquivo Municipal Memória e Ação
Cultural. São Paulo: nº 200. p. 65.
21

escrita”. 16 Este diálogo com a memória possibilita a compreensão das visões


de mundo e dos valores concebidos pelas operárias, ao provocar a interação
entre o sujeito e o seu passado, atribuindo à história a condição de lugar de
memória e de construção da identidade de indivíduos e/ou grupos sociais.
Obras como a de Antônio Torres Montenegro apontam para a elucidação do
passado que predomina na memória coletiva e individual, descortinando
histórias em contraposição à idéia de uma história única e totalizante,
instigando o pesquisador ao desafio de “resgatar os registros das memórias e
a forma como estes atuam na determinação da compreensão do passado, do
presente e do futuro”. 17
A partir destas reflexões, “revisitei” dois dos espaços onde operários e
operárias transitaram, nos quais inscreveram sua história, elaboraram e
reelaboraram suas vivências, construíram e foram influenciadas por valores e
visões de mundo, imprimiram significados às suas ações, talharam, ao menos
em parte, a realidade em que viviam. Tais espaços, divididos pela linha tênue
do muro fabril, são: o interior da fábrica – no qual se teceu o cotidiano da
vida profissional - e o ambiente doméstico, aqui compreendido como espaço
da vida cotidiana familiar e comunitária. Considerando estas duas dimensões,
este estudo foi organizado em três capítulos, a saber: o primeiro, intitulado:
“Os cenários: a fábrica e a cidade”, apresenta uma construção panorâmica do
contexto sócio-econômico mais amplo o qual, vinculado às especificidades
dos fatos pesquisados, interferiram no desenrolar das relações de trabalho,
sociais e culturais que envolveram as(os) operárias(os) da C.V. I. Nele, fez-se
uma breve retrospectiva ao século XIX que permitiu vislumbrar o surgimento
de Valença como cidade e sua estreita ligação com a fábrica têxtil que lhe deu
o título de “A Industrial”. Ao retornar às suas origens, pretendeu-se dar a
dimensão da importância da fábrica Todos os Santos para a cidade, e
acompanhar a sua trajetória até meados do século XX, quando representava, já
como C.V. I., uma das mais relevantes atividades econômicas de Valença.
Para a construção deste capítulo foram utilizadas as seguintes fontes:
Atas das Assembléias Gerais (1899-1918; 1919-1941; 1942-1966; 1967-1984),

16
PORTELLI, Alessandro. “Forma e Significado da História Oral. A pesquisa como experimento em
igualdade.” In “Projeto História”. São Paulo: nº 14, Fev/97. p. 26.
17
MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória. A Cultura Popular Revisitada São Paulo:
Contexto, 1994.
22

Relatório da Diretoria e Parecer do Conselho Fiscal (1903, 1904, 1910-12,


1915, 1918-1983), Estatuto Social da Companhia Valença Industrial (1977)
localizadas no Arquivo da Companhia Valença Industrial; Atas da Câmara
Municipal de Valença, localizadas no Arquivo da Câmara Municipal de
Valença; Relatórios e correspondências dos Presidentes Provinciais –
Disponível na Internet, site http://www.uchicago.edu; além das fontes
bibliográficas: OLIVEIRA, Waldir Freitas. A industrial Cidade de Valença:
um surto de industrialização na Bahia do século XIX.. Salvador: UFBA, 1985;
ENC ICLOPÉDIA DOS MUNIC ÍPIOS BRASILEIROS. XX volume, Rio de
Janeiro: IBGE, 1958; IPAC-BA – Inventário de Proteção do Acervo Cultural
da Bahia, vol. V. Monumentos e Sítios do Litoral Sul. Salvador: Secretaria da
Indústria, Comércio e Turismo, 1988.
O segundo capítulo recebeu o título: “A trama social no interior da
fábrica” e seu conteúdo trata da estrutura e das condições de trabalho no
interior da C.V.I., com ênfase nas funções atribuídas às mulheres operárias.
Trata também das relações estabelecidas com os diversos sujeitos que faziam
parte do cotidiano fabril, buscando compreender a teia de relações que ali
foram tecidas, rompidas, reestruturadas ao longo do período recortado para
este estudo. As seguintes fontes foram utilizadas para a análise feita neste
capítulo: Atas das Assembléias Gerais (1899-1918; 1919-1941; 1942-1966;
1967-1984); Registro de Empregados e Operários (1950-1990),
disponibilizados pela Companhia Valença Industrial; Depoimentos orais de
ex-operárias(os).
O terceiro e último capítulo foi intitulado: “Para além das paredes da
fábrica”. Nele, propõe-se uma discussão, a partir principalmente da
perspectiva feminina, acerca das condições de sobrevivência dos operários,
das atividades domésticas e sua conciliação com o trabalho fabril, da
convivência comunitária, das possibilidades de lazer, da religiosidade dos(as)
trabalhadores(as) manifestada, especialmente, na festa de Nossa Senhora do
Amparo, e da cultura que perpassa ambos os espaços: o ambiente fabril e o
externo a ele. Os depoimentos orais de ex-operárias(os) foram,
essencialmente, as fontes a partir das quais buscamos conhecer essas relações
que, perpassando o cotidiano doméstico e de vizinhança, têm a marca da
23

informalidade que sugere a necessidade de caminhos específicos de


investigação histórica.
As lutas presentes nas práticas sociais das operárias da C.V.I. podem
contribuir para a construção plural de identidades no interior da análise
histórica . Assim, explicar a forma como as trabalhadoras lidavam com as
questões relativas à sua condição de mulher e de trabalhadora no conjunto das
relações sociais pode revelar possibilidades de uma reconstrução histórica na
qual elas – mulheres e trabalhadoras – reelaboraram sua existência e se
instituíram como sujeito da sua história.
As práticas e atitudes cotidianas de um grupo de mulheres dos meios
populares, suas relações com a família e com outros agrupamentos sociais são
reveladoras de crenças, aspirações, valores ideológicos e padrões de condutas
próprias e são, também, expressão de um período histórico e da configuração
socioeconômica própria da região onde estão inseridas, elementos que
possibilitaram, portanto, vislumbrar uma história das mulheres operárias de
Valença.
24

CAPÍTULO I
OS CENÁRIOS: A FÁBRICA E A CIDADE

Este capítulo apresenta informações que possibilitem ao leitor um


panorama histórico da cidade baiana de Valença e de sua fábrica têxtil,
situando a problemática estudada. Para isso, foi necessário buscar notícias do
século XIX, compreendendo-se que remontam a essa época as origens dos
elementos históricos que marcaram e caracterizaram a vida da cidade e, por
conseguinte, dos operários e operárias, sujeitos deste estudo.
Valença surgiu como área pertencente, desde 1534, à Capitania de
Ilhéus 18, sob a jurisdição da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Cairu 19,
tendo à frente do território o donatário Jorge de Figueiredo Correia e seu
tenente Francisco Romero.
Originalmente habitado por povos tupiniquins, o território foi, ao longo
do século XVI, palco dos enfrentamentos entre estes nativos, os portugueses
colonizadores e os aimorés, estes últimos frustrando por diversas vezes os
planos de exploração econômica dos colonizadores 20.
Segundo Silva Campos, o povoamento português na região se deu a
partir de 1557 em torno de dois engenhos de açúcar instalados por Sebastião
de Pontes, na área chamada Ponta do Curral e na primeira cachoeira do Rio
Una. Entretanto, os conflitos com nativos aimorés desestruturaram o então
Povoado do Una, levando a população a refugiar-se nas Ilhas de Tinharé,
Cairu e Boipeba.

18
Situada entre as Capitanias da Bahia e Porto Seguro, a Capitania de São Jorge dos Ilhéus “tinha 50 léguas de
largura e iniciava-se na foz do Rio Jaguaripe até a barra do Rio Coxim”. Extraído de
www.escolavesper.com.br/historia/costa_do_pau_brasil_capitanias_hereditarias.htm em 06/07/2006. De acordo
com Carta de Doação assinada por D. João III, Rei de Portugal, em 26 de Junho de 1534, a Capitania, com as
suas “50 léguas de costa” e entrando “na mesma largura pelo sertão adentro, quanto puder entrar”, foi doada a
Jorge Figueiredo Correia, escrivão da Fazenda Real, sob o sistema de donataria.
19
AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições práticas da Província da Bahia: com declaração de todas as
distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1979.
20
CAMPOS, João da Silva. Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1981.
25

FOTO 03 – Mapa da Ilha de Tinharé.

Fo nt e: Câ mar a M u ni cip a l d e Val e nça . Acer vo fo t o gr á f ico .

Uma paz relativa foi estabelecida entre nativos e colonizadores a partir


da segunda metade do século XVII, quando foram fundados povoados na
região para exploração da extração de madeira e de atividades agrícolas.
A partir de 1750, um novo povoado se estabeleceu em torno da Capela
de Nossa Senhora do Amparo, conhecido como Povoado do Amparo. Seu
desenvolvimento garantiu à região a elevação à categoria de Vila em 1799,
com o nome de Nova Valença do Sagrado Coração de Jesus. Mais tarde, em
1849, a sede municipal recebeu o foro de Cidade, sob a denominação de
Industrial Cidade de Valença. Este novo nome e a vida da cidade estavam
26

estreitamente vinculados à atividade econômica que ali se iniciara desde o


ano de 1844: a indústria têxtil, tópico que será abordado mais adiante.
A localização litorânea de Valença, aliada às características de clima e
solo, “são o pano de fundo de toda trajetória econômica dessa Região de forte
identidade física e cultural desde o Brasil-Colônia 21”, com fortes tradições
agrícola, pesqueira e portuária, articulando-se com os processos produtivos
dominantes do Recôncavo, da região de Salvador e com os espaços mais ao
sul, como Ilhéus.
Dessa forma, estudos-diagnósticos de iniciativa governamental
identificaram na região onde Valença se insere e da qual é pólo uma vocação
articuladora, em que os agentes econômicos estabeleceram vínculos com áreas
de maior potencial de riquezas e de maior alcance comercial sem, contudo,
depender das “flutuações cíclicas que tem caracterizado as economias
regionais agro-exportadoras na Bahia 22”.
A antiga área provincial de Valença especializou-se na oferta de
madeira, pescado, mariscos e produtos de subsistência, em especial, a
mandioca. Esta forte tradição agrícola, marcada pela diversificação de
produtos, constituiu-se numa característica econômica de Valença ao longo do
século XIX, que manteve uma importância significativa durante todo o século
XX. De acordo com a Revista dos Municípios:
“. .. o s 2 1 .6 5 8 hab ita n te s d e Va le nç a, o cc up a m- se, na s ua ma io r i a
d o p la nt io d a ma nd io ca p ar a o lad o d o No r t e, d o caca u p ar a o lad o
d o Su l e p ar a o Oe st e, no s p o vo ad o s d e Se r r a Gr a nd e, Gar ap a e
Fo uj o , d o ca fé. ( .. .) P ar a o lad o d o S u l, at é a ma r ge m e sq uer d a d o
r io Gr a cio sa , e nco n tr a m- s e mu i t a s faz e nd a s d e cac a ueir o s, e
gr a nd e s p la n ta çõ e s d e la r an g eir as , j aq ueir a s e d e nd e zei r o s.
De sta ú lt i ma la vo ur a q ue se no ta u m gr a nd e au g me n to to d o s o s
an no s, V al e nça j á v ae faz e nd o u ma b o a e xp o r taç ão d e aze it es,
to r na nd o - se, p o r i sto , u m gr a nd e co mp et id o r d e Sa ntar é m, Ca ma mu ,
I gr ap i ú na, E nc ar naç ão e Co st a d o No r te d a B a h i a 23”.

A característica agrícola de Valença e região marcou a sua feição


econômica por todo século XX e é um aspecto ainda muito presente na
realidade destas sociedades. Dados relativos ao final dos anos 1980 informam

21
Série Desenvolvimento Regional – 16. Diagnóstico de Municípios. Tabuleiros de Valença. Salvador: agosto de
1995. p. 27.
22
Idem. p. 28.
23
Revista dos Municípios, 1924.
27

que a região figurava com o destaque de alguns de seus produtos agrícolas na


pauta produtiva da Bahia e mesmo do Brasil.

TABELA 01
Percentual produtivo agrícola na Bahia e no Brasil.
PRODUTO AGR ÍCOLA BAHIA BRASIL
Cravo-da-índia 94,8% 94,2%
Dendê 72,9% 60%
Piaçava 62,5% 56%
Seringueira 51% 39,5%
Fo nt e: S ér i e De se n vo l v i me nto Re g io na l – 1 6 . Dia g nó s tico d e M u ni cíp io s. T ab ul eir o s d e
Val e nça. S al vad o r : a go s to d e 1 9 9 5 . p . 2 8 .

Os dados demonstram alguns elementos particularizadores do potencial


essencialmente agrícola da região, próprios de suas condições geográficas
naturais e de seu direcionamento produtivo.
“E s sa s p ar tic u lar id ad es d a Re g ião d e Va le nç a n ão se e vid e nc iar a m
p o r acaso , se nd o , d e fa t o , o fr uto d e u ma l e nta ma t ur a ção , d e sd e o s
ano s 6 0 co m o co nc ur s o d e ó r g ão s co mo a C E P L AC – Co mi s são
E x ec ut i va d o P la nej a me nto d a L a vo ur a Cac a uei r a, a SU DH E VE A –
S up er i nte nd ê nc ia do De se n vo l vi me n to da B o r r ac h a, a
B AHI AT U R S A – E m p r es a d e T ur i s mo d a B ah ia S / A, o
DE S E NB AN C O – B a nco d e De se n vo l vi me nto d o E s tad o d a B a hia , e
a Sec r et ar i a d e Agr ic ul t ur a d o E s tad o , q ue zo ne ar a m o so lo ,
r ev el ar a m as p o te n ci al i d ad es r e g io nai s e i n ce nt i var a m, téc n ic a e
f i na nc eir a me nt e, o s p r o d ut o r e s lo ca i s e d e o u t r as ár ea s a i n ve st ir
no s T ab ule ir o s”.

Ao lado do potencial agrícola e pesqueiro de Valença, desenvolveu-se


nesta cidade, no século XIX, a atividade têxtil, marcando profundamente, não
somente, a sua história econômica, mas também, aspectos de sua organização
sociocultural, com “um surto de industrialização com características muito
especiais 24” que contribuiu para uma nova dinâmica, absorvendo para o
trabalho fabril parte significativa da mão-de-obra local.
A instalação da fábrica promoveu paulatinamente um certo
desenvolvimento interno, que se revelou através da reorganização urbana,
com a criação da vila operária; do serviço de distribuição de água potável e
de energia elétrica para a cidade - energia gerada pelas turbinas hidráulicas

24
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Industrial Cidade de Valença: Um surto de industrialização na Bahia do século
XIX. Salvador: UFBA, 1985.
28

da fábrica 25. As informações acerca do fornecimento destes serviços são


corroboradas na Revista dos Municípios:
“Se el la, a Co mp a n hi a, u s u fr ue r es u lt ad o s d o s e u v u lto so cap it al, al i
e mp r e gad o , t a mb é m é cer to , q ue te m o f fer eci d o ao s va le nc ia no s,
exp o n ta ne a me n te, e p o r p r eço s mi n i mo s, o s s er viço s ma i s
i mp o r t a nte s e n ece s sar i o s a u m p o vo c i vi li s ad o , ta es co mo a g ua , l uz
e fo r ça, a cr e sc id o s co m o e mb el lez a me n to d a cid ad e , co m gr a nd e
n u me r o d e no v as co n str u çõ e s; no o f fer eci m en to d e me io s d e
tr a n sp o r t e, ao co m me r c io lo cal p o r p r e ço s b a ixo s, na s s ua s t r e s
gr a nd e s e mb ar c açõ e s; n o a u xi lio p r e st ad o a t ud o q u e d iz r e sp e ito a
sa l vaç ão p úb l ic a d o Mu n ic íp io ; e mu i to p r in cip al me n te , p o r q ue
d isp e ns a a 1 0 2 4 o p er ar i o s, o s me io s d e s ub si st en cia , b e ne fi cio e st e
26
q ue at ti n g e a ma i s d e 3 0 0 0 p es sô a s d e s ua s fa mí l ia s ”.

A Fábrica Todos os Santos surgiu em um contexto bastante


desfavorável, enfrentando problemas para a aquisição de matéria-prima e
dificuldades em relação ao mercado. Segundo Pamponet Sampaio,
“n a d écad a d e 1 8 4 0 -1 8 5 0 , mo t i vo s d e o r d e m t éc ni ca i mp ed ir a m q u e
as fáb r ica s tr ab al ha s se m co m to d a a s u a c ap acid ad e. Ne st e ca so
es ta va a fáb r ica T o d o s o s Sa n to s, f u ncio n a nd o co m ap e na s a q u ar t a
p ar te d e s e u maq ui n ár io e co m u m n ú me r o i ns u f ici e nte d e o p er ár io s
ad es tr ad o s, ( . ..) Só no c o me ço d a d éc ad a d e 1 8 6 0 -1 8 7 0 , a tr ib u i u - se
a cap ac id ad e o cio sa d a s fáb r ic as a p r o b le ma s d e me r cad o . A me s ma
fáb r ic a, T o d o s o s Sa n t o s, si t uad a e m Va le nç a , é me ncio n ad a na
Fal a [ d o P r e sid e n te d a P r o ví n cia] d e 1 8 6 0 co m o p r o d uz i nd o ap e n as
a me tad e d e s ua cap a ci d ad e, e m v ir t ud e d a nã o co lo caç ão d e se u s
p r o d u to s na P r o ví n cia 27.”

No que se refere à questão da matéria-prima para a indústria têxtil, o


autor situou a produção algodoeira na Bahia a partir do século XVI e em
processo de expansão até o século XIX, salientando a evidência do seu
declínio por volta de 1850. Apesar disso, constatou-se o aumento na produção
das fábricas de tecidos, dada à necessidade de sacos para a exportação de
produtos agrícolas, e, de tecidos para a confecção de roupas dos escravos e
das camadas mais humildes da população. O autor conclui que “a matéria-
prima para as fábricas de tecidos era oriunda, em grande parte, de outras
Províncias, não se havendo constituído o algodão da Bahia, portanto, em fator
determinante para o aumento do número dessas fábricas 28”

25
IPAC- BA. Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia. Vol. 05. Monumentos e Sítios do Litoral Sul,
Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo, Salvador, 1988. Ver também AGUIAR, Durval Vieira de. Op. cit.
p. 251.
26
Revista dos Municípios, 1924.
27
SAMPAIO, José Luiz Pomponet (Coord.) . A Inserção da Bahia na evolução nacional – 1850-1889.
Atividades Produtivas, Vol 2. Salvador : Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia / Fundação de
Pesquisas – CPE, 1978. pp. 207-8.
28
SAMPAIO, José Luiz Pomponet. Op cit. p. 229.
29

Ao referir-se à fábrica têxtil existente em Valença, menciona-a como


consumidora diária de 45 arrobas de algodão proveniente de Alagoas, em
virtude da inferioridade da qualidade do produto baiano. Além de Alagoas,
figuram Sergipe, Pernambuco e Minas Gerais como províncias exportadoras
de algodão para a Bahia, especialmente nos anos 50 do século XIX.
Além das oscilações provocadas pelo contexto internacional (demanda,
concorrência), a produção algodoeira baiana enfrentava dificuldades relativas
ao transporte, encarecido pelas distâncias entre o sertão baiano – principal
zona produtora – e o centro fabril e exportador, razão pela qual utilizava-se a
matéria-prima advinda de outras províncias a partir das quais o transporte era
mais fácil. Apesar de todos esses embaraços, a fábrica acabou por constituir-
se “um empreendimento de grandes proporções sustentado por vultosos
capitais 29”.
Os limites impostos ao desenvolvimento da indústria no Brasil são
cicatrizes da nossa origem colonial. Desde esse período, as atividades
industriais desenvolvidas sempre tiveram papel secundário, e qualquer
tentativa de diversificação que configurasse desafio aos interesses da
metrópole era tolhida por sérias medidas restritivas. De acordo com Pamponet
Sampaio,
“As d i f ic u ld ad e s p ar a cr i ar i nd ú s tr i as no B r as il r e mo nt a m às
in ter d içõ es d a ép o c a co l o ni al, q ua nd o o al v ar á d e 0 5 d e j aneir o d e
1 7 8 5 p r o ib i u a e xi s tê nc i a d e fáb r ic as na Co lô nia , o r d en a nd o q u e se
fe c ha s se m a s q ue e xi st ia m, e xce to a s d e p r o d uç ão d e p a no s
gr o s sei r o s u sad o s p ar a ve s tir e sc r a vo s e e n f ar d ar p r o d uto s d e
30
exp o r ta ção ”.

Apesar das medidas liberalizantes adotadas em 1808, quando da


transferência da Corte portuguesa para o Brasil, as fábricas surgidas eram
estabelecimentos de pequeno porte, e tiveram, em geral, vida efêmera, uma
vez que esbarraram em uma série de limitações. José Luiz Pamponet Sampaio
avaliou que tais medidas, ao contrário de estimular a atividade industrial no
Brasil, trouxeram-lhe outras dificuldades. Seu argumento se apóia nos estudos
de Celso Furtado e ele conclui que:
“J á e n tão , p o r é m, a no v a s it u ação p o l ít ica , d e c o r r e nte d a mu d a nç a
d es sa Co r te p ar a o R io d e J a n eir o , p er mi t ia q ue a s ma n u f a t ur a s
in g le sa s e n tr a s se m no B r as il, p a g a nd o ta x a s í n fi ma s. Ao lad o d is so ,

29
OLIVEIRA, Waldir Freitas. Op. cit. p. 5.
30
SAMPAIO, José Luiz Pamponet. Op. cit. p. 199.
30

o p r eço d o s s e u s p r o d ut o s er a tão b a i xo e m d eco r r ê n ci a d a s


p r i me ir a s i n v e nçõ e s m ecâ ni ca s, q ue ‘to r no u d i fíc il a p r ó p r ia
s ub si st ê nci a d o p o uco ar te sa n ato tê x ti l q u e j á e xi s tia no p aí s. A
b ai xa d e p r e ço s fo i d e tal o r d e m q ue s e to r na v a p r at ic a me n te
i mp o s s í vel d e fe nd er q ua lq uer i nd ú s tr i a lo cal p o r me io d e
tar i f a s ’ 31”.

Não obstante a situação desfavorável, ocorreram durante a primeira


metade do século XIX várias tentativas de implantação de fábricas, que foram
paulatinamente ganhando importância. A Bahia tornou-se, então, nos anos 60
do século XIX, o maior centro têxtil do Brasil, sediando seis das nove
fábricas de tecidos existentes no país. Na década de 1870, as fábricas
valencianas figuravam com destaque: a Todos os Santos, empregando 250
trabalhadores, e a Nossa Senhora do Amparo, 180 operários, ambas
produzindo 1.100.000 m/ano e 600.000 m/ano de tecidos, respectivamente. 32
O setor têxtil ascendeu no período e tornou-se relevante para a
economia industrial brasileira e, também, baiana, devido a dois fatores
fundamentais. Um deles teria sido a série de medidas protecionistas do
governo, as quais serão abordadas mais adiante. O outro fator diz respeito às
oscilações do câmbio, que levaram grandes comerciantes importadores a
diversificar a aplicação de seus capitais, “uma vez que passassem a
produtores dos artigos que importavam, poderiam ganhar como produtores, o
que deix avam de ganhar como importadores, nas épocas do encarecimento das
importações” 33. De fato, a fábrica de tecido Todos os Santos, em Valença, foi
um empreendimento mantido pelo capital de três empresários residentes em
Salvador: o português Antônio Francisco de Lacerda, o norte-americano John
Smith Gillmer e Antônio Pedroso de Albuquerque.
Antônio Francisco de Lacerda era membro da Associação Comercial da
Bahia em 1840. De acordo com Waldir Freitas Oliveira:
“É p o s sí ve l q ue, a e x e mp lo d e mu i to s o utr o s, ho u v e ss e es tad o
li gad o , e m o u tr o s t e mp o s, ao tr á f ico d e e sc r a vo s, d e sd e q ue, e m
ma io d e 1 8 3 0 , o Co n s u lad o B r i tâ n ico na B a h ia co mu n ic a va ao se u
Go ver no s u as s u sp e ita s acer ca d a p ar ti cip a ç ão no co mé r cio d e
afr ic a no s , d o na v io “An gé li ca”, co ma nd ad o p o r J o aq u i m I g n ácio d o

31
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 11 ed., São Paulo: Fundo de Cultura, 1964. p. 106-107.
Apud SAMPAIO, José Luiz Pamponet. Op. cit. pp. 199-200.
32
SAMPAIO, José Luiz Pamponet. Op. cit. pp. 203-204.
33
VERSIANI, Flávio Rabelo & VERSIANI, Maria Tereza R. O. A industrialização brasileira antes de 1930:
uma contribuição. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 125-6. Apud SAMPAIO, José Luiz Pamponet. Op. cit. pp. 199-
200.
31

L i vr a me n to , co n sid er ad o ‘ap ar e nte me nt e, d a p r o p r ied ad e d e An tô nio


Fr a nc i sco d e La cer d a, C o me r ci a nt e ne st a P r aç a ’ 34”.

Segundo registro das Companhias e Sociedades Comerciais da


Secretaria do Tribunal de Comércio da Província da Bahia, citado por Waldir
Freitas Oliveira, Antônio Francisco de Lacerda participou da firma “Ribeiro,
Costa & Companhia”, cuja atividade ligava-se ao
“. .. tr á f e go d e tr a n sp o r tar p o r mar e m al v ar en g as d e to d o s o s
gê n er o s d e i mp o r ta ção e e xp o r t ação p ar a c ar r eg ar e d e s car r e g ar
e mb ar c açõ e s na cio na i s e es tr a n ge ir a s d e lo n go c ur so , gr a nd e e
p eq u e na cab o ta ge m, no p o r to e an co r ad o ur o s d es ta C id ad e e b e m
as si m r eb o c á -lo s p o r me io d e v ap o r e s, e f az er q u ai sq uer o u tr o s
ser v iço s o u tr ab al ho s i n er e nt es ao d i to tr á fe go 35”.

O segundo sócio, John Smith Gillmer, nasceu na Pensilvânia, e, na


Bahia, fez-se sócio de uma firma comercial, a “John S. Gillmore”, assumiu o
Consulado dos Estados Unidos na Bahia entre 1851 e 1862, e foi eleito um
dos diretores da Associação Comercial da Bahia entre 1843 e 1846 e, em
outra gestão, entre 1848 e 1857. 36
O terceiro sócio da Todos os Santos, Antônio Pedroso de Albuquerque,
era um dos mais bem sucedidos negociantes da Bahia. Góes Calmon a ele se
referiu como um homem que “tudo adquiria em paga das avultadas dívidas
que com ele tinham os senhores de engenho 37” e, dessa forma, fazia fortuna
recebendo como pagamento terras, casas, metais e pedras preciosas, engenhos,
tornando-se assim um “símbolo local do poder capitalista 38”. Além disso, foi
sócio de duas Companhias de Navegação – a “Santa Cruz” e a “Bomfim” – e,
ocupou-se, antes dos anos 50 do século XIX, do tráfico negreiro, tornando-se
“um dos maiores comerciantes de escravos 39”.
Juntos, estes negociantes se tornaram industriais, investindo capitais
em um empreendimento que, naquele momento, foi um exemplo de inovação
tecnológica no seu aparato mecânico, importado dos Estados Unidos e
Inglaterra, cuja força motriz era hidraulicamente acionada.
34
OLIVEIRA, Waldir Freitas. Op. cit. p. 61-62.
35
Idem, p. 64.
36
Idem, p. 69-71.
37
CALMON, Francisco Marques de Góes. “Ensaio de retrospecto sobre o comércio e a vida econômica e
comercial da Bahia, de 1823 a 1900”. In: Diário Oficial do Estado da Bahia. Edição especial do Centenário.
Bahia: 1923. pp. 384 e 386.
38
OLIVEIRA, Waldir Freitas. Op. cit. p. 58-61.
39
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Ed. UNESP; Salvador: EDUFBA, 2001. p.
286.
32

Ao discutir as dificuldades encontradas por diversas fábricas baianas,


Thales de Azevedo salientou esta particularidade da Todos os Santos que, ao
contrário de outras unidades fabris, não encontrava embaraços quanto ao tipo
de energia que movimentava seu maquinário:
“O co mb u st í vel ut il izad o p el as fáb r ic as a vap o r er a, o u o c ar vão -
d e-p ed r a i mp o r tad o d a I n g la ter r a, o u a l e n ha, c uj o co n s u mo
e mp o b r ec ia a p r ó p r i a r e gi ão e er a j á tr a zid a d e mu i to lo n g e p o r q u e
o s e n ge n ho s e u si na s ha v ia m p r o mo v id o o d es f lo r e st a me n to d o
Re cô nca vo d esd e o p er ío d o co lo n ia l. So me n te e m V ale n ça ha v ia
en er gi a hid r á ul ica ace s s ív el à s ua fá ci l ut il iza ç ão , o q ue e xp li ca o
f lo r e sc i me n to d a i nd ús tr ia lo ca l 40”.

Além da energia hidráulica, a presença de outros equipamentos atesta o


elevado nível de investimento tecnológico feito na Fábrica. Nos anos iniciais
de funcionamento já contava com seis esfarrapadeiras 41 de fabricação
americana, que esfarrapavam 2.000 libras de algodão enfardado diariamente;
sessenta cardadeiras 42 e vinte e duas maçaroqueiras 43, máquinas de primeira
torção e de separar mechas para o início da fiação; dez armações com 200 ou
180 fusos; cento e trinta e cinco teares. Possuía, ainda, uma fundição de ferro
e bronze equipada com foles, uma ferraria, carpintaria e mercearia,
demonstrando um elevado grau de autonomia.
É, inclusive, questionável a razão de tamanho investimento em uma vila
distante e de pouca importância no cenário econômico da Província,
especialmente se considerarmos que seus investidores residiam justamente no
centro comercial e financeiro da Província, Salvador, que comandava, em
grande parte, as transações da economia baiana do século XIX.
A atividade comercial centrada em Salvador poderia ser, supostamente,
muito mais atrativa do que o investimento na atividade industrial, por si só
cercada de entraves num país de origem colonial, que tinha nos discursos
políticos da época um reforço ao seu “destino agrário” 44, os quais apontavam

40
AZEVEDO. Thales de. & LINS, Edilberto Quintela Vieira. História do Banco da Bahia, 1858-1958. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympia Editora, 1969. pp. 192.
41
Esfarrapadeira: Equipamento utilizado para abrir o algodão prensado em fardos.
42
Cardadeira: Equipamento utilizado para o destrinçamento das fibras de algodão e, posteriormente, sua
limpeza.Desfazendo-se nós e limpando as fibras, a cardação permite que se forme uma fita própria para ser
fiada.
43
Maçaroqueira: Equipamento onde se processa a mudança de embalagem do material de fita para pavio,
adequado ao melhor uso nos filatórios e possibilitando a fabricação do fio desejado.
44
SAMPAIO, José Luiz Pomponet. Op. cit.
33

a agricultura de exportação como a mais viável possibilidade de


desenvolvimento econômico.
Os entraves se avolumavam, então, ante a ausência/inconstância de
incentivos fiscais à indústria, ainda mais no interior da Província, estagnada
por uma crise agrícola que atingia boa parte da sua produção. Esses
incentivos fiscais, apontados por Pamponet Sampaio como um dos fatores de
sobrevivência da indústria têxtil na Bahia entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do XX, estiveram presentes de forma ambígua e
inconstante. Mesmo assim, não se pode desconsiderar sua importância,
reconhecida pelos próprios industriais, como revelam as correspondências
entre estes e representantes dos poderes públicos, bem como, registros de
falas e relatórios de presidentes da província.
“A I nd us tr i a da P r o ví n cia ta mb é m ap r e se nt a al g u m
d ese n vo l vi me nto , ap e sa r d as ca u sa s q u e e n to r p ece m a s ua ma r c ha,
e q ue f aze m me s mo mur c h ar e m flô r a s mai s l i so n ge ir a s
esp e r a nça s. E s ta s ca u s a s s ão , no meo e n te nd er , a f al ta d e c ap i tae s,
d e s e g ur a nç a, e d e e sp ír ito d ’ as so c ia ção .
P er mit ti, Sr s. , q ue al g u ma s b r e ve s r e fl e xõ e s d e se n vo l vão e sta
o p i nião . T e mo s v i st o ma lo gr ar e m- s e e nt r e nó s e mp r eza s
ind u s tr i ae s, a liá s mu i b e m co mb i n ad a s, não ta n to p o r n ão p o d er e m
co mp et ir o s s eo s p r o d uc to s, co m o s q ue exp o r tão o s P ai ze s
E st r a n ge ir o s, co mo p o r q ue o s E mp r e sár io s d e sa n i mão , fa lto s d e
r ec ur so s p e c u niá r io s, p a r a p er s e ver ar e m e m s u as esp ec u laçõ e s, e se
q uer ei s d i sto u ma p r o va co n ve n ie n te, r eco r r er ei à h is to r ia d o s
no s so s E s tab e lec i me n to s I nd us tr i ae s, e ver ei s q ue aq u el le s q u e
d e ma nd ão o e mp r e go d e gr a nd e s cap it ae s s ão mai s o u me no s
au x il iad o s p ela As se m b léa Ger al Le g is la ti v a p ar a s e p o d er e m
ma n ter 45.”

O apoio governamental poderia advir sob forma de empréstimo, como o


que o deputado Dr. Eduardo França propôs em projeto à fábrica de Valença, a
Todos os Santos (1846-1847), ou, através de leis protecionistas, como a Lei
nº 374, de 12 de novembro de 1849, que impunha 2% sobre o produto
exportado que fosse encapado ou enfardado com tecidos estrangeiros 46.
As condições gerais de uma sociedade agrário-escravista provocaram
uma certa oscilação nas ações de proteção à indústria por parte do governo, o
que levou a Todos os Santos a queixar-se, em ofício de 1876, que “esse
benefício pouco nos tem aproveitado, pois que só de uma medida geral e

45
Fala que recitou o presidente da província da Bahia, o dezembargador João José de Moura Magalhães, na
abertura da Assembléia Legislativa da mesma província em 25 de março de 1848, Typ. De João Alves Portella,
1848. Extraído de www.crl.edu/content/brazil/BAH.htm . Grifo meu.
46
Idem. p. 205.
34

permanente é que devemos esperar a certeza do futuro para podermos marchar


desembaraçados 47”. Entretanto, a mesma Todos os Santos reconheceu, em
ofício posterior (1881) emitido por seus diretores que “este estabelecimento
tem sido desde a sua creação isento de todos os Impostos provinciaes, em
virtude de leis especiaes feitas em seu favor e d’outras fabricas”.
O abastecimento inicial da matéria-prima para a Todos os Santos fora
realizado pela produção algodoeira da Comarca de Rio de Contas, região do
sertão baiano de produção significativa do início do século XIX:
“E n fat izo u q ue , 2 5 a no s a nt es , o “Ar r aia l d e Ca it it é” er a “p o b r e,
d ese r to e só ma nej a va o d i mi n u to co mér cio d e g ad o ”. J á n aq uel a
alt ur a d e fi na l d o sé c ul o XVI I I , to r nar a - se ‘o ma i s r ico d aq u el es
ser tõ e s ’, d ep o i s d a c u lt ur a d o al go d ão . D e ve - se r eg i str ar q ue, a lé m
d o a mp lo co n s u mo i nt er no , p elo s t ear e s ma n u ai s , e xp o r ta v a - se p ar a
o s f u so s mec â nico s d e Ma nc he s ter , L i ve r p o o l e o ut r o s ce n tr o s
tê xt ei s i n gle se s e fr a n ce se s 48”.

Entretanto, as oscilações impostas especialmente pela conjuntura


internacional, que acarretaram dificuldades de crédito para a lavoura
algodoeira, produção de qualidade inferior, queda de produção,
dificuldades de transporte, determinaram a importação, por parte da Todos
os Santos, do algodão de áreas mais distantes, como as vizinhas províncias
de Sergipe e Alagoas.

Pamponet Sampaio dispõe alguns dados sobre um desses entraves à


comercialização do algodão do Rio de Contas para a Vila de Valença:

“A d i f ic uld ad e d e tr a ns p o r te p ar a o ser t ão b ai ano se mp r e fo i u m


d o s gr a nd e s fa to r e s ne g ati vo s p ar a o se u d e s e n vo l v i me n to . As si m,
o s p r o d uto r e s d e a l go d ão d es sa r e g ião e n fr e nt a va m o s maio r es
o b st ác ulo s p ar a f azê - lo ch e gar à s fáb r i ca s d e te cid o s q u e se fo r a m
es tab e lec e nd o no Re cô n ca vo .
Na Fa la d e 1 8 4 7 49, r ef er ê nc ia s são f ei ta s ao al go d ão vi nd o d o R io
d e Co n ta s atr a vé s d a e s tr ad a d e M ar a cá s, q ue s e e nco n tr a va co m a
d e V ale n ça, c he ga nd o à v il a d e V ale n ça d ep o i s d e mu i to s d ia s d e
vi a ge m. E s se tr a n sp o r t e, so b r e o q ua l se co b r av a fr ete b a st a nte
alto , er a fei to p o r mu la s 50”.

47
Idem. p. 206.
48
BETENCOURT, José de Sá. Memoria sobre a plantação dos algodões e sua exportação; sobre a decadência da
lavoura de mandiocas, no Termo da Vila de Camamú, Comarca dos Ilhéos, Governo da Bahia. [Lisboa]: Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1798. Apud NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma Comunidade Sertaneja: da Sesmaria
ao Minifúndio (um estudo de História Regional e Local). Salvador: EDUFBA/UEFS, 1998.
49
Refere-se à fala do Presidente da Província da Bahia, o Conselheiro Antônio Ignácio d’Azevedo, de 02 de
fevereiro de 1847.
50
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit. p. 197.
35

A opção da firma Lacerda e Cia. de instalar a Todos os Santos,


apesar do contexto aparentemente desfavorável, e a sua evolução marcou e
marca visceralmente a história de Valença, tanto do ponto de vista
econômico, como pelos efeitos culturais e sociais produzidos em sua
sociedade.

“ T r ata v a -s e d a i ns ta laç ã o d e u ma fáb r i ca d e g r a nd e s p r o p o r çõ e s, a s


ma r ge n s d o r io U na, e m Val e nça , à a lt ur a d a se g u nd a cac ho eir a, a
p ar tir d a fo z, co nt a nd o co m ab u nd a n te fo r ç a h id r á u li ca e u m
in ic ia l me n te p r e s u mid o fá ci l ab a st eci me nto d e ma tér ia p r i ma, a s er
fo r n ecid a p e la s t er r a s d a Co ma r ca d o Rio d e Co n ta s 51”.

As dificuldades se impunham não só do ponto de vista da produção,


mas também, no que diz respeito à comercialização. O mercado consumidor
dos tecidos da Todos os Santos acabou por limitar-se, praticamente, à
própria província e à vizinha Pernambuco e – apesar do seu grande
potencial produtivo, pelo qual mereceu ser considerada “a melhor do
Império e talvez Sul-América 52” – a fábrica jamais chegou a operar em
toda sua capacidade. No seu primeiro ano de funcionamento, “a fábrica
estava a trabalhar com pouco mais da quarta parte das suas máquinas 53”.

Diferentes desafios se impunham à indústria têxtil baiana ao longo de


sua existência no século XIX, restringindo suas possibilidades de produção.
Entre 1840-50, por motivos de ordem técnica; problemas de mercado foram
apontados como os entraves dos anos 1860-70; por fim, a difusão de
estabelecimentos do mesmo ramo em diversas províncias, entre os anos
1870-80 provocou uma concorrência acirrada, trazendo dificuldades às
fábricas 54.

O projeto da Lacerda e Cia. enfrentava dificuldades que os


proprietários não puderam antever. Para vencê-las, solicitavam
constantemente o apoio das autoridades governamentais, o qual não
chegava a contento. Solicitava-se a proteção ao empreendimento, esperando
retribuí-la com a prosperidade e “os incalculáveis benefícios que dos seus
bons resultados provirão ao país”. Reconhecia-se que “os embaraços e

51
OLIVEIRA,Waldir Freitas.op.cit., p. 36.
52
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit. p. 202.
53
OLIVEIRA,Waldir Freitas.Op. cit. p. 38.
54
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit.
36

despesas com que tem lutado (...) e ainda lutam vão muito além de todos os
cálculos e previsão que em seu começo haviam imaginado 55”.

O governo provincial e o imperial, por certo, não despenderam o


apoio na medida das necessidades. A despeito, inclusive, da visita do
próprio Imperador, em 1860 – que descreveu a fábrica como “um excelente
estabelecimento onde trabalham como em família 200 para 300 operários,
pela maior parte do sexo feminino com bellas máquinas, sobretudo as
americanas 56” – a Todos os Santos acumulou prejuízos.

Uma rentabilidade sempre aquém das expectativas, dificuldades


quanto ao suprimento de matéria-prima, a dura concorrência com o tecido
estrangeiro, a exigüidade do mercado consumidor na Província – todos
esses fatores aliados determinaram a dissolução da sociedade Lacerda e
Cia. Apenas Antônio Pedroso de Albuquerque permaneceu à frente do
empreendimento, agora como seu único proprietário. Pedroso de
Albuquerque adquiriu as partes do patrimônio pertencentes aos sócios
Antônio Francisco de Lacerda e John Smith Gillmer por 250:000$000
(duzentos e cinqüenta contos de réis) e, sob sua exclusiva propriedade, a
fábrica funcionou por mais 16 anos até o encerramento definitivo de suas
atividades em 1876.

Desde o ano de 1860 já funcionava em Valença uma outra fábrica


têxtil: a Nossa Senhora do Amparo, também às margens do rio Una, cuja
propriedade era da firma Madureira e Dultra, dos senhores Bernardino de
Sena Madureira e Lu iz Rodrigues Dultra Rocha Filho.

Sena Madureira era valenciano de nascimento, filho de família


abastada. Na cidade, era proprietário de uma serraria a vapor, uma fundição
e uma fábrica de vidro, além de embarcações. Segundo Waldir Freitas, teria
sido Madureira o anfitrião que hospedou o Imperador D. Pedro II em 1860,
quando de sua visita a Valença, conforme relatou em seu Diário de Viagem:

“A ca sa e m q ue e sto u é mu ito b o a e b e m ar r a nj ad a. P er te nc e ao s
Mad ur e ir a ( C as i mi r o e B er nar d i no ) e sô b r e a p o r ta te m – Do is
ir mã o s – 1 8 5 0 .

55
OLIVEIRA,Waldir Freitas.Op. cit. p. 38.
56
Idem. p. 40-41.
37

6 h. – P elo r io l e va a té a ser r ar i a d e B er n ar d i no d e Se na Mad ur eir a .


( ...) T e m u ma co mp o r ta q ue ser v e p ar a e st a f áb r ica e a d e T o d o s o s
Sa n to s mai s e m c i ma 57”.

Dultra Rocha Filho era comerciante estabelecido em Salvador e foi


um dos fundadores do Banco da Bahia. Figurava na capital da província
como um dos “elementos de maior conceito e responsabilidade financeira
na praça 58”.

A fábrica têxtil fundada por estes empreendedores era mais modesta


que a Todos os Santos, mas contava com equipamentos mais modernos e
objetivava confeccionar – além dos tecidos grossos que já tinha lugar no
mercado – tecidos mais finos. Essa tendência foi verificada em outras
fábricas têxteis que, em 1881, diversificaram sua produção, embora ainda
predominasse a produção de tecidos mais grosseiros.

A Fábrica Nossa Senhora do Amparo produzia nesse período brins


brancos para roupas, brins riscados, toalhas, guardanapos, lonas, além de
tecidos para sacos de açúcar e café 59. Todavia, ela não teve muito melhor
sorte que a Todos os Santos. Enfrentou as dificuldades similares àquelas
enfrentadas pelos sócios da Lacerda e Cia. Os entraves econômicos que
“afligiam as indústrias de tecido instaladas na Província 60” levaram a Nossa
Senhora do Amparo a buscar novos investidores, capazes de injetar capitais
que garantissem sua manutenção. Assim, Bernardino de Sena Madureira
associou-se a Luiz Rodrigues Dultra Rocha Filho, compondo a firma
Madureira e Dultra. Sílvio Humberto Cunha faz referência a essa
associação:

“O s co mer c ia n te s i n ve st ir a m t a mb é m na i nd ú str ia, p ar ti cip a nd o


d ir et a me n te d a f u nd aç ã o d e fáb r ica s o u e ntr a nd o co m ap o r te d e
cap i tal , co mo f ize r a L u iz Ro d r i g ue s D u ltr a Ro ch a Fi l ho , u m d o s
f u nd ad o r e s d o B anco d a B ah ia, q ue s e as so c i o u a B er nar d i no d e

57
Diário de D. Pedro II. In: LIMA, Joaquim Manoel Rodrigues. (org). Memória sobre o estado da Bahia.
Salvador: 1893. pp. 189-191.
58
CALMON, Francisco Marques de Góes. “Ensaio de retrospecto sobre o comércio e a vida econômica e
comercial da Bahia, de 1823 a 1900”. In: Diário Oficial do Estado da Bahia. Edição especial do Centenário.
Bahia: 1923. pp. 384 e 388. Apud OLIVEIRA,Waldir Freitas.Op. cit. p. 84.
59
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit. p. 210-211.
60
OLIVEIRA,Waldir Freitas.Op. cit. p. 42
38

Se na Mad ur e ir a, p r o p r i etár io d a fáb r ica d e te c id o s No s s a Se n ho r a


d o Amp ar o , co n st it u i nd o a fir ma M ad ur e ir a & D ul tr a 61”.

Em 1869, sem ver superada a crise que assolava a fábrica desde o seu
nascedouro, a Madureira e Dultra vendeu a Nossa Senhora do Amparo a
Antônio Francisco de Lacerda, antigo sócio da Todos os Santos, que a
registrou como pertencente à firma Lacerda e Irmãos, constituída por filhos
de Antônio Francisco.

Como as dificuldades não cessaram, a Lacerda e Irmãos vendeu a


fábrica. Segundo Waldir Freitas Oliveira, isto teria ocorrido após o
falecimento de Antônio Francisco de Lacerda, momento em que seus filhos
Antônio, Augusto Frederico e Joaquim de Lacerda deixariam de ser tão
somente proprietários nominais da fábrica e deveriam assumir “a
responsabilidade pelas suas dívidas na precária situação que ela se
encontrava 62”. Os herdeiros não demonstraram disposição em desgastar-se
com negócios tão pouco rentáveis.

Em 1877 procedeu-se à venda da Nossa Senhora do Amparo à firma


Moreira, Irmão e Cia – constituída pelos irmãos José e Luiz Pinto da Silva
Moreira e pelo sócio Domingos Gonçalves de Oliveira – a qual adquiriu,
seis anos mais tarde, a inativa Todos os Santos. 63

A partir da década de 70 do século XIX, especialmente entre 1875 e


1890, os dados disponíveis referentes permitiram inferir uma tendência de
crescimento das fábricas têxteis existentes na Bahia, traduzido pela
expansão de seus capitais e pela ampliação de suas instalações. A respeito
da fábrica têxtil valenciana, Pamponet Sampaio relata:

“O a u me n to d e cap it al d a N. S . d o A mp a r o p r o ces so u - se a p ar t ir
d o s só cio s j á e x i ste n t es e m 1 8 7 7 : Mo r ei r a, I r mão & C., co m
2 0 0 :0 0 0 $ 0 0 0 ( d u ze nto s co n to s d e r éi s) , e Do mi n go s Go nç al ve s d e
Oli v eir a, co m 1 0 0 :0 0 0 $ 0 0 0 ( ce m co n to s d e r éi s ) , u ti li za nd o - se es se
cap i tal p ar a e xp a n são d a cap ac id ad e p r o d ut i va 64”.

61
CUNHA, Silvio Humberto dos Passos. Um Retrato Fiel da Bahia: Sociedade-Racismo-Economia na Transição
para o Trabalho Livre no Recôncavo Açucareiro, 1871-1902. Tese de doutorado. UNICAMP, 2004.
62
Inventário de Antônio Francisco de Lacerda. Arquivo do Estado da Bahia. Apud OLIVEIRA,Waldir
Freitas.Op. cit. p. 44.
63
Quando da aquisição da Todos os Santos, a firma compradora estava sob nova razão social: Moreira, Oliveira
e Cia. OLIVEIRA,Waldir Freitas.Op. cit. p. 45.
64
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit. p. 221.
39

No final dos anos 1880, mudanças significativas ocorreram na


organização econômica do setor, com uma tendência ao estabelecimento de
sociedade por ações, que concentrou e verticalizou empresas. Data desse
período (1887) a fundação da Empresa Valença Industrial, que englobou as
fábricas Todos os Santos e a Nossa Senhora do Amparo, além de uma
fundição, uma serraria, fazendas, trapiches, barcos, chafarizes e
encanamento d’água.

Em 1899, firmava-se a sociedade anônima sob a denominação de


Companhia Valença Industrial (C.V.I.), conforme atesta a ata:

“O S nr P r e sid e nte fe z sci e nte q ue e st a r e u n ião ti n h a p o r f i m,


co n fo r me o s a n n u n cio s q ue o s co n vo car a, a tr a n s fo r ma ção d a
So c ied ad e e m Co ma n d i t ta p o r acçõ es, d a q ua l e r a m só c io s, e m u ma
co mp a n hi a a no n y ma so b a d e no mi n ação d e C o mp a n h ia Va le nç a
I nd u str ia l 65”.

A organização das sociedades anônimas não foi uma ação exclusiva


da C.V. I. Era uma alternativa que se revelou viável em vários pontos da
Província, como forma de fazer frente às adversidades que a atividade
industrial sempre enfrentara no Brasil.

“An t es , p o r é m, d e s ta d ata, te ve i níc io , e m 1 8 8 7 a fo r ma ção d e


so c ied ad es p o r açõ es , i nco r p o r a nd o a s u n id ad e s fab r i s e x is te n te s
até e nt ão . O p r o ce sso a ti n gi u se u a u ge e m 1 8 9 1 , q ua nd o to d a s as
fáb r ic as i mp la n tad a s an te s d e 1 8 9 0 f u nd ir a m- s e e m g r a nd es
so c ied ad es a nô ni ma s 66”.

Com um capital inicial de 800:000$000 (oitocentos contos de réis) 67,


a Companhia Valença Industrial revelou uma tendência ao crescimento, o
que pode ser denotado pela construção de um novo pavilhão em 1907-08;
pela exigência posterior, em 1922, da construção da Usina Hidrelétrica do
Candengo, a princípio com duas turbinas e, depois, na década de 30,
ampliada para três, o que representou significativa melhoria no
abastecimento elétrico da cidade, pela instalação de novos telhados, usando

65
Companhia Valença Industrial. Livro de Actas das Assembléias da Companhia Valença Industrial. Acta da
Assembléia de 24 de julho de 1899. p. 01.
66
SAMPAIO, José Luís Pamponet. Op. cit. p. 202.
67
Idem, ibidem. p. 223.
40

telhas de fibrocimento 68 em 1948, além da aquisição de novas máquinas e


pela instalação de laboratório de controle entre 1958-61 69.

As possibilidades de modernização e crescimento ficaram evidenciadas nos


registros da empresa, como se pode verificar no excerto seguinte:

“A As se mb lé ia, co n s id er a nd o o p r o gr a ma d e in v es ti me nto s d a
e mp r e sa na aq ui s ição d e maq u i nar ia p ar a m o d er n iz ação d e s e u
p ar q u e i nd u s tr i al es t i mad o e m ap r o x i mad a me nt e e m Cr $
1 0 .0 0 0 .0 0 0 ,0 0 0 ( d e z mi l hõ e s d e c r uze ir o s) , d e li b er o u a d i str ib ui ção
ao s ac io ni st as d e u m d iv id e nd o d e 3 % ( tr ês p o r ce n to ) , se nd o o
r es ta nt e l e vad o a co nt a d e r es er va p ar a a r e no vaç ão d o
eq u ip a me n to , ap ó s d ed u zid a a p r o v is ão p ar a p a ga me n to d o i mp o s to
d e r e nd a 70”.

Os empreendimentos industriais desenvolvidos em Valença a partir


do século XIX tiveram significativa repercussão no cenário econômico da
província e, mesmo, do Império, e contribuíram para efetivar mudanças na
cidade ao longo das primeiras décadas do século XX. Para além dos
entraves que marcaram de forma aguda a história das fábricas têxteis que
deram origem à Companhia Valença Industrial, prevalece o fato de que esta
se tornou um referencial para a cidade.

Os periódicos locais atestaram, em diversas ocasiões, a importância


que de maneira geral era imputada à fábrica. Um dos mais emblemáticos foi
o editorial do jornal “O Manacá”:

“M ui to o b r i g ad o mi n h a q uer id a C. V.I ., vo cê fa z p ar te d o no s so
co r ação , vo cê é a g e nte , vo cê é p o et a, vo c ê é vi v a e vo cê e x i st e,
vo c ê no s a co r d a p ar a o d ia a d i a d e to d o s o s d ia s, vo cê é p r o f uso e m
P r o gr e s so 71”.
Ou ainda:

“Fáb r ic a No s sa Se n ho r a d o Amp ar o – Cel eir o d a cl as se h u mi ld e,


o nd e ma i s d e h u m mi l o p er ár io s d i sp ut a m d iar ia me n te o P ão No s so
d e cad a d ia 72

68
Telhas de fibrocimento: Telhas constituídas por fibras de amianto e cimento, fabricadas em diversos modelos,
tamanhos e espessuras, segundo www.escolher-e-construir.eng.br , consultado em julho de 2006.
69
IPAC- BA. Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia. Vol. 05. Monumentos e Sítios do Litoral Sul,
Secretaria da Indústria, Comércio e Turismo, Salvador, 1988.
70
Companhia Valença Industrial. Livro de Actas das Assembléias da Companhia Valença Industrial. Assembléia
Ordinária de 30/04/1975. p. 98.
71
Acervo da Câmara Municipal de Valença. Jornal “O Manacá” – Ano IV – 31/03/1979. nº 090 – Valença-
Bahia. Capa.
72
Acervo da Câmara Municipal de Valença. Jornal “Folha da Cidade” – Ano V I – 10/11/1970. Nova Fase nº
154 – Valença-Bahia, capa. O texto figurava como legenda de uma fotografia da fachada da Fábrica Nossa
41

No imaginário de parte significativa da população esta noção de


grandiosidade, de importância econômica e, até mesmo, de benevolência
atribuída à fábrica também se fez presente.

“Q ue m f ez o me r cad o d e Va le nç a fo i a fá b r ica, q u e m fe z a
r ecr ea ti v a fo i a fáb r ica, q ue m f ez aq u el as d u as c asa s d a e ntr ad a fo i
a fáb r i ca. Fo i a v il a e f o r a a s p r o p r ied ad es q u e ti n ha p o r aq u i, q ue
er a d a f áb r i ca. Q ue m ma nt i n ha o ho sp it al er a a f áb r ic a 73”.

Acreditava-se, não sem alguma razão, que em torno da fábrica se


dera o crescimento e desenvolvimento que se efetivou em Valença, não
somente, do ponto de vista econômico, com a absorção crescente da mão-
de-obra urbana, mas também, promovendo alterações na organização social,
urbanística e cultural da cidade. Na visão do senhor Arlindo Paes: “A
fábrica é o celeiro da produtividade e o celeiro do desenvolvimento da
cidade. Sem a fábrica a cidade não produzia porque o comércio é muito
fraco, a lavoura é fraca 74”.

Serviços de água potável e energia elétrica 75, que a princípio


atendiam apenas à manutenção da indústria e dos trabalhadores habitantes
da vila operária, estenderam-se gratuitamente a órgãos públicos e casas
filantrópicas e acabou por beneficiar toda a população, mediante o
pagamento de tarifas à fábrica. Além disso, ofereceu efetiva contribuição
no que diz respeito aos meios de transporte, uma vez que dispunha de
embarcações que traziam a matéria-prima e levavam a produção fabril para
Salvador e outras cidades, cujo acesso era realizado por via marítima.

Dentre as embarcações merece destaque a Escuna Industrial,


inaugurada em dezembro de 1925, de construção alemã, que se constituiu a
mais significativa possibilidade de transporte para a cidade quando a

Senhora do Amparo e fora produzido por Albino Farias de Sousa, aluno da Escola Técnica de Comércio da
cidade de Valença.
73
Depoimento do senhor Nelson Palma aos 85 anos. Trabalhador aposentado.
74
Depoimento do senhor Arlindo Paes da Fonseca aos 75 anos. Trabalhador aposentado e ex-sindicalista.
75
Revista dos Municípios, 1924.
42

Companhia de Navegação Bahiana deixou de prestar os serviços regulares


de transporte, dificultados pelo acúmulo de detritos na foz do rio Una 76.

Até mesmo a estrutura urbana sofreu modificações a partir de


intervenções da fábrica. Em 1922 criou-se a Vila Operária, com a
edificação de 143 casas, ampliada em mais 23 novas casas em 1928. Um
investimento que, de acordo com a análise de Marilécia Santos, atendia aos
propósitos da fábrica:

“A v il a p o s sib il it a va u ma i nter f er ê n cia r a cio n al no co tid ia no d o s


tr ab a l had o r e s e h a via u ma f i sca li zaç ão co n sta n t e. A p er ma n ê nc ia d a
f is cal iz ação j u st i fi ca va - se p el a ne ce ss id ad e d e v ig iar o s háb ito s q ue
er a m d i ve r so s n u ma B a h ia tão me s ti ça. N ão q u e st io nar fo r ma l me n te
o r eg u la me n to e s ub me t er - s e à s no r ma s d i sc ip l i nar e s ta mb é m p o d e
ser u ma e str até g ia d o s t r ab al h ad o r e s p ar a ter e m aces so ao s p r ê mio s
e mer eci me nto s d e st i nad o s àq uel es c o n sid er ad o s “b o ns
tr ab a l had o r e s ” e me s mo a co n ti n ua ção d a mo r a d ia, p o is tr ab al h ar e
77
ter o nd e mo r ar er a u ma co nd ição i nd is so c iá v el .”

A criação de vilas operárias foi um fenômeno presente em todos os


países que se industrializaram e, de acordo com Paul Singer: “Trata-se de
uma resposta do grande capital ao movimento operário, cuja ideologia
(anarquista, socialista ou comunista) é sempre anticapitalista 78”. Além
disso, criavam-se condições para que mulheres operárias, sobre quem a
sociedade imputou a responsabilidade pelo lar, pudessem conciliar casa e
trabalho, através da proximidade que a vila lhes assegurava.

Os contornos urbanos da cidade passaram, então, a obedecer à lógica


do sistema capitalista: de um lado, os trabalhadores, concentrados num
espaço geográfico limitado, sob o controle e a disciplina da fábrica, agora
estendido aos próprios lares; do outro, separado pelo rio Una, membros de
camadas sociais mais abastadas, instalados em meio ao centro comercial-
financeiro e administrativo da cidade.
Dialeticamente, a Vila, em sua função disciplinadora 79 dos operários
e operárias, constituiu-se também num espaço de uma cultura operária,

76
SILVA FILHO, Basílio Machado da. Notas geográficas sobre a cidade de Valença. Valença-Bahia:
Tipografia Tupy, 1958.
77
SANTOS, Marilécia Oliveira. A “cidade do bem”: uma escola de disciplina. Extraído de
http://www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos em outubro de 2006.
78
SINGER, Paul. A formação da classe operária. São Paulo: Atual; Campinas: UNICAMP, 1988. p. 73.
79
Para discussão acerca do papel disciplinador das vilas operárias, ver: SINGER, Paul. A Formação da Classe
Operária. São Paulo: Atual; Campinas: UNICAMP, 1988. SANTOS, Marilécia Oliveira. Empório da Utopia: o
43

permeada pela solidariedade entre os trabalhadores, pela postura político-


eleitoral de oposição, pela religiosidade marcante. Uma cultura tão
significativa que extrapolou os limites da vila e converteu-se em marca
histórica em toda a cidade.
Assim é que a Nossa Senhora do Amparo 80, padroeira dos operários
(vale recordar que a Santa dava nome à segunda fábrica, uma das quais
originou a C.V.I.), é, ainda hoje, amplamente homenageada, não somente
pelos operários, mas por toda a cidade, a tal ponto que o 8 de novembro,
dia de N. S. do Amparo, é feriado municipal, e mobiliza, desde as novenas
que o antecedem, a população valenciana, superando, inclusive, a festa
daquele que é o padroeiro oficial do município, o Sagrado Coração de
Jesus. Sua repercussão estava presente nos periódicos locais:
“Fo i u ma fe st a e sp eta c ul ar , g ar b o sa e se m ma io r co n f u são a fe st a
d e No s sa Se n ho r a d o Amp a r o , p ad r o eir a d e Va l en ça.
Mu it a a ni ma ção na s n o ve n as o nd e o e sp et á cu lo d o s fo go s d e
ar ti f íc io d a va m u m b r il ho a ma g e sto sa o b r a r ea liz ad a p e la
P r ef eit u r a no ad r o d o A mp ar o . A p r o ci s são d e en cer r a me n to no
úl ti mo d i a 8 fo i u ma d as mai s b o n ita s j á v i sta s e m Va le nç a 81”.

Eis uma demonstração de como os trabalhadores e trabalhadoras da


C.V. I., em seu movimento de constituição como grupo social específico,
atuaram na sociedade valenciana, não somente, como força de trabalho,
mas, também, como força social que interfere decisivamente na história.
Essas e outras manifestações culturais, sociais e políticas que marcam
profundamente a história de Valença têm estreitas ligações com a fábrica, a
partir da qual a cidade cresceu, modificou-se, a qual fez orbitar em torno
de si durante muito tempo o cotidiano de homens e mulheres, cuja história
e identidade por ela perpassam e vão se manifestar de uma forma muito
peculiar nas relações sociais, na cultura e na religiosidade do povo
valenciano.

projeto industrial de Luís Tarquínio. Dissertação de Mestrado, PPGH-FFCH-UFBA, 2000. LOPES, José Sérgio
Leite. A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés. São Paulo: Marco Zero, 1988.
80
PASSOS, Carlos Henrique Ferreira dos. Histórico da Igreja do Amparo.Valença: exemplar digitado, 1988. De
acordo com este autor, o culto a Nossa Senhora do Amparo data de 1757, embora a capela que deu origem a
Igreja do Amparo date de 1597, nesta ocasião dedicada a Nossa Senhora da Boa Morte. Segundo Passos, a data
original da Festa do Amparo era o 15 de fevereiro, transferida para 8 de novembro por Bernardino de Sena
Madureira, proprietário da fábrica Todos os Santos. Entre 1912 e 1941, por causa de um sinistro que destruiu
parte da Igreja, a festa teria sido celebrada no interior da fábrica têxtil e estendida às ruas da vila operária.
81
Associação Baiana de Imprensa. Jornal Tribuna Litorânea. Ano II – 15/11/1977 - nº 19 – Cidade Industrial
de Valença.
44

CAPÍTULO II
O ESPAÇO FABRIL: A TRAMA SOCIAL NO INTERIOR DA
FÁBRICA

O presente capítulo objetiva revisitar a estrutura e as condições de


trabalho dos operários e operárias da Companhia Valença Industrial, com
especial atenção ao trabalho feminino, bem como, analisar os meandros das
relações que se estabeleceram no cotidiano fabril entre os agentes sociais
presentes naquele contexto.
Para tanto, concentrou-se especial atenção nos dados e informações
contidas nas fichas funcionais, cujos conteúdos – embora partam do ponto de
vista dos patrões ou de profissionais com cargos de chefia que, não
raramente, se alinhavam às perspectivas patronais – oferecem significativos
caminhos para a análise. Como contraponto, os relatos e depoimentos de
operários e operárias possibilitam vislumbrar a maneira como estes sujeitos
apreenderam e interiorizaram suas próprias experiências no mundo fabril, o
que permitiu seguir-se “o fio condutor da mediação subjetiva dos próprios
dominados”. 82
A Tabela abaixo oferece alguns números extraídos das fichas
analisadas, relacionando o sexo dos trabalhadores com as informações
registradas quanto à escolaridade:

82
LOPES, José Sérgio Leite. A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés. São Paulo: Marco
Zero, 1988.
45

TABELA 02
Escolaridade do(a) trabalhador(a) X Sexo
Sexo do (a) Alfabetizado(a) Não- Total de
trabalhador(a) alfabetizado(a) indicações
quanto à
escolaridade
FEMININO 198 10 208
MASCULINO 340 8 348
TOTAL 538 18 556
Fo nt e: Co mp a n hia Va le n ça I nd u str ia l. Re g is tr o d e T r ab al had o r es e Op er á r io s , 1 9 5 0 -1 9 8 0 .

Estes números refletem apenas 11,9% do total de fichas analisadas,


razão pela qual não se pode inferir detalhadamente sobre as condições de
escolaridade do conjunto dos trabalhadores fabris do período em estudo.
O número acentuado de trabalhadores masculinos indicados como
“alfabetizados” pode ser reflexo de uma acessibilidade desigual entre os
gêneros à escola, mas, se considerarmos alguns fatores presentes na realidade
da Companhia Valença Industrial no período, algumas flexibilizações neste
raciocínio serão necessárias. Consideraram-se dois deles: o primeiro diz
respeito às diferentes funções ocupadas por homens e mulheres, com destaqu e
para o fato de que funções administrativas, de chefia ou técnicas – atividades
que estavam em um plano hierárquico superior – eram quase que
exclusivamente ocupadas por homens. Supõe-se que, nestes casos, a
escolaridade era uma exigência, condição sine qua non para a ocupação do
cargo. O segundo fator leva em consideração uma significativa rotatividade
entre trabalhadores do sexo masculino, tópico que discutirei adiante, a qual
acentua a presença masculina nos registros.
Entretanto, os casos que omitem tanto a assinatura do(a) empregado(a)
quanto a observação do departamento pessoal não nos permitem assegurar a
condição de analfabeto(a) do operário(a), uma vez que a assinatura pode,
simplesmente, não ter sido solicitada, em razão de um preenchimento da ficha
posterior ao ano de admissão, ou por outras razões, que não foi possível
conhecer.
Os dados levantados apontam algumas questões significativas para a
construção de um quadro de atividades, comportamentos e conflitos presentes
no interior daquelas relações fabris, bem como, possibilitam vislumbrar um
46

perfil dos(as) trabalhadores(as) que atuaram na C.V. I. durante o período


estudado, e permitem, a partir do uso da categoria gênero, analisar a presença
feminina na complex idade dessas relações.
A partir desta perspectiva, é possível construir um estudo das
trajetórias dessas mulheres trabalhadoras no âmbito fabril, um dos espaços
onde constantemente vivenciam as tramas das relações de poder
freqüentemente reforçadas, mas também reelaboradas nas experiências do
cotidiano.
Refletir sobre as relações sociais de gênero é incluir na pauta um dos
importantes instrumentos de organização das sociedades através dos tempos.
Não se trata apenas da diferenciação do sexo, mas de uma reflexão acerca dos
perfis – feminino e masculino – socialmente estabelecidos e hierarquizados.
Homens e mulheres estão muito além de serem apenas naturalmente macho ou
fêmea: são categorias histórica e culturalmente construídas, e que
estabelecem entre si profundas relações.
De acordo com Lia Zanotta Machado, “a noção de gênero aponta para o
caráter implicitamente relacional do feminino e do masculino”, 83 em que “o
princípio da existência da masculinidade baseia-se na repressão necessária
dos aspectos femininos.” 84 É relevante, portanto, a concepção dessa distinção
de mundos no que tange à dominação do masculino sobre o feminino, o que
promove de maneira constante uma desigualdade imbricada no sistema de
relações sociais, sob diversas formas, e desde tempos remotos. Entretanto,
esta relação de dominação, vinculada que está às formas de organização social
e aos processos de elaboração mental e cultural de cada povo, em cada tempo,
não se constitui tão absoluta e fechada: de fato, outras formas de relações de
poder puderam ser e efetivamente foram engendradas ao longo do tempo.
A análise dos comportamentos, das relações, dos enfrentamentos e
reconstruções dos(as) trabalhadores(as) da C.V. I. permitiu que se
visualizassem mecanismos de alteração das normas estabelecidas pela
ideologia masculinizante, que promoveram oscilações e/ou rupturas nos
padrões de comportamento dominante. No cotidiano desses(as) operários(as),

83
MACHADO, Lia Zanotta. Introdução. In: COSTA, Albertina de Oliveira. e BRUSCHINI, Cristina (org). Uma
Questão de Gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 9.
84
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. In: Revista Educação e Realidade. Porto
Alegre: v. 16, nº 2, jul/dez, 1990.
47

as suas relações mesclam dominação masculina e afirmação feminina, o que


torna transitáveis as fronteiras entre esses diferentes “mundos”.

CONSTRUINDO PERFIS

Partindo-se dos números representados pelas fichas funcionais, uma


quantidade muito maior de trabalhadores masculinos que de trabalhadoras
compõem o quadro das 4 682 fichas analisadas, conforme a tabela abaixo:

TABELA 03
Sexo do(a) trabalhador(a)
Sexo do(a) Freqüência Percentual válido
trabalhador(a) numérica
FEMININO 1 464 31,3%
MASCULINO 3 218 68,7%
TOTAL 4 682 100%
Fo nt e: Co mp a n hia Va le n ça I nd u str ia l. Re g is tr o d e T r ab al had o r es e Op er á r io s . 1 9 5 0 -1 9 8 0 .

Aparentemente, a tabela construída a partir dos dados apresentados nas


fichas arroladas parece contradizer as notícias de uma intensa presença
85
feminina nas fábricas têxteis, e, mais especificamente, na Companhia
Valença Industrial 86 . Entretanto, é justamente sobre as fichas de
trabalhadores do sexo masculino que incide a grande maioria das demissões
freqüentes, com períodos relativamente curtos de contratação e permanência
no emprego, o que indica uma elevada rotatividade em algumas das funções
por eles exercidas. Observe-se a tabela:

85
Ver referências à presença eminentemente feminina nas tecelagens em LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem
dos conflitos de classe na Cidade das Chaminés. São Paulo: Marco Zero, 1988, p. 317; DECCA, Maria
Auxiliadora Guzzo, A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo (1920-1934). Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987, p. 23; BLAY, Eva Alterman. Trabalho domesticado: a mulher na indústria paulista. São Paulo:
Ática, 1978. pp. 137-138, entre outros.
86
O Diário da visita de D. Pedro II (1860) faz referência “à maioria feminina de trabalhadores na Fábrica
Amparo”.
48

TABELA 04
Sexo do(a) trabalhador(a) X Número de meses trabalhados 87
Sexo do Número de meses de trabalho (inferior a um ano)
trabalhador
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Total
FEMININO 44 25 30 33 27 28 23 16 15 18 17 276
MASCULINO 356 209 170 135 131 112 77 71 62 53 59 1 435
TOTAL 400 234 200 168 158 140 100 87 77 71 76 1 711
Fo nt e: Co mp a n hia Va le n ça I nd u str ia l. Re g is tr o d e T r ab al had o r es e Op er á r io s . 1 9 5 0 -1 9 8 0 .

É notável a prevalência de trabalhadores masculinos entre aqueles que


ficaram por menos de um ano empregados na fábrica. Em todos os quadros,
desde a permanência por um mês apenas até à permanência por 11 meses no
emprego fabril, foram os trabalhadores homens a maioria dos que, por razões
diversas nem sempre explicitadas nas fichas, entraram e saíram da fábrica sem
manter-se estavelmente empregados. Esse dado pode ser considerado um fator
explicativo do acentuado número de trabalhadores do sexo masculino
registrados nas fichas utilizadas nesta pesquisa. Eles não compunham a
maioria dos trabalhadores em atividade no período estudado, mas foram
contratados em maior número, devido à rotatividade visível em 1 711 das 4
682 fichas arroladas.
No que se refere à permanência de trabalhadoras no emprego fabril, os
dados revelam uma certa perenidade incidindo mais sobre a presença feminina
do que sobre a presença masculina. Entre os 398 trabalhadores que tiveram
sua aposentadoria registrada nas fichas analisadas, 212 são do sexo
88
feminino. Este número de registro de aposentadoria corresponde a apenas
8,5% do total de trabalhadores arrolados. Sobre os demais, embora o cálculo
entre a data de admissão e a data de desligamento possa sugerir tempo
suficiente ou não para o encaminhamento da aposentadoria, não há registro
explícito sobre esse dado.
De resto, como não é possível saber se o(a) trabalhador(a) tinha em
carteira o registro de outro emprego, fora da fábrica, que pudesse ser somado

87
O número de meses trabalhados na tabela restringe-se a períodos inferiores a um ano de serviço.
88
De acordo com a Lei 3 807, de 26 de agosto de 1960 da Lei Orgânica da Previdência Social, em seu artigo 32:
“A aposentadoria por tempo de serviço será concedida ao segurado que completar 30 (trinta) e 35 (trinta e cinco)
anos de serviço, respectivamente, com 80% (oitenta por cento) do “salário do benefício” no primeiro caso, e,
integralmente, no segundo”. Esta informação está disponível no site www.previdenciasocial.gov.br/sislex,
acessado em novembro de 2006.
49

como tempo de serviço para aposentadoria, não enveredei por estes cálculos.
Em outros casos, a ausência dessa informação pode estar ligada às condições
de conservação de muitos dos documentos, que, entre desaparecidos 89 e
deteriorados, não nos permitiram inferir se outros(as) tantos(as)
trabalhadores(as) alcançaram, através do trabalho na fábrica, a sua
aposentadoria.
Com o foco apenas no que estava explicitamente registrado nas fichas
da fábrica, os dados da Tabela 03 e as informações possíveis sobre o alcance
da aposentadoria sinalizam que, em alguma medida, muitas trabalhadoras da
fábrica conseguiram, para além da contratação, uma permanência no emprego,
que pode ser reveladora de certos mecanismos de luta e autodefesa, de
estratégias de sobrevivência ou, por outra, de garantia da preservação dos
meios de sobrevivência conquistados.
A política do “fazer por viver”, a astúcia presente em certas atitudes –
dissimuladas, em alguns momentos; “indisciplinadas”, em outros –, frente aos
superiores hierárquicos, a dedicação obstinada ao trabalho e ao máximo
possível de produção eram elementos presentes nas ações de mulheres
operárias para fazer frente ao complexo de relações existentes no espaço
fabril em cujas relações elas estavam inseridas.
De acordo com Carla Beozzo Bassanezi, “o ‘jeitinho [feminino]’
reproduz o sistema desigual, mas, por outro lado, ameaça, e até contribui para
subverter este sistema.” 90 Trata-se de uma maneira própria de conduzir os
relacionamentos que pode admitir uma diversidade de leituras e
interpretações. Submissão ou estratégia? As falas das operárias entrevistadas
– que logo trarei à discussão –, e mesmo, as fichas funcionais, nas anotações
registradas pelos chefes de seção, revelam a mescla de um e outro elemento,
em diferentes dosagens, a depender das circunstâncias. O fato é que,
entremeando uma e outra, um número significativo de mulheres operárias
trabalharam durante décadas na fábrica, conquistando, ao final desse período,
a sua aposentadoria.

89
Saliento aqui o fato de não ter localizado fichas de trabalhadores conhecidos, inclusive, alguns dos
entrevistados, nas caixas correspondentes ao seu período de emprego na fábrica.
90
BASSANEZI, Carla Beozzo. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-
mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 344.
50

Mesmo quando não é a permanência, mas o desligamento do(a)


trabalhador(a) da fábrica o fator observado nos dados das fichas funcionais, o
que se nota é um número considerável de anotações que recomendam a não
recontratação de determinados operários homens.

TABELA 05
Sexo X Recomendação quanto à readmissão
Sexo do(a) Recomendação Total
trabalhador(a)
POSITIVA NEGATIVA
FEMININO 14 29 43
MASCULINO 86 315 401
TOTAL 100 344 444
Fo nt e: Co mp a n hia Va le n ça I nd u str ia l. Re g is tr o d e T r ab al had o r es e Op er á r io s . 1 9 5 0 -1 9 8 0 .

Entre os trabalhadores masculinos, esse número é de 315


recomendações negativas, isto é, de não recontratação. Foi um total de 444
recomendações explícitas quanto à possibilidade de readmissão ou não de
trabalhadores afastados da fábrica.
Embora se leve em consideração a intensa rotatividade que incidiu
sobre trabalhadores masculinos, percebe-se, pelos dados da tabela, que, para
cada recomendação positiva referente a trabalhadoras havia cerca de duas
recomendações negativas. No caso dos homens, para cada “pode ser
readmitido” constante nas fichas, havia aproximadamente 3,7 orientações de
“jamais readmiti-lo novamente”. Em outras palavras, do total de
recomendações feitas para trabalhadores homens, 78,6% propunham não
permitir o retorno do trabalhador como empregado da fábrica. Entre as
mulheres, o número cai para 67,5% dos registros referentes a esse tipo de
recomendação.
Estes dados, aliados aos já citados, podem, de modo genérico, atestar
comportamentos ou desempenhos diferenciados entre operários e operárias,
que favoreceram uma permanência mais longa no trabalho ou uma apreciação
mais positiva destas em relação àqueles. Tais comportamentos podem revelar
não apenas uma adequação ao sistema fabril de onde extraem sua
sobrevivência, mas, além disso, a construção de meios para, na condição de
sujeitos, reelaborarem e reconstruírem constantemente a dinâmica de suas
relações com o sistema fabril, abrindo frestas em meio à dominação – de
51

classe e de gênero –, que favorecem a visibilidade da presença e atuação de


mulheres operárias.
Do mesmo modo, quando são observados os dados referentes à
ocorrência de advertências ou à aplicação de suspensões 91, nota-se, de novo,
uma prevalência do trabalhador masculino. Nas fichas analisadas,
registraram-se 125 suspensões, das quais 109 foram aplicadas sobre
trabalhadores homens por diversos motivos, sendo o mais freqüente as “faltas
injustificadas” ou “faltas excessivas” ao trabalho. Entre as advertências
registradas nas fichas, encontrei 94 dirigidas a trabalhadores do sexo
masculino, e 14 casos em que operárias foram advertidas.
Se, de um lado, a ocorrência de punições relativamente menor sobre o
contingente feminino de trabalhadores da fábrica pode sugerir um
comportamento feminino de adequação estratégica ou não às regras do sistema
fabril, por outro lado, os registros dos casos de punição permite relativizar
uma pretensa passividade ou submissão atribuída às trabalhadoras. Casos
como o da operária Alexandrina Fonseca, tecelã admitida em 1945 e
funcionária até o ano de 1975, quando se aposentou, e que foi
reincidentemente punida por “desacatar superior hierárquico”. Esta operária,
através de seu comportamento, atesta uma não perenidade no exercício do
poder de seus superiores hierárquicos no ambiente fabril. Ela desafiava a
ordem estabelecida ao sentar-se para um descanso não permitido no horário
do trabalho, partia para o enfrentamento contra os chefes de seção a que
estava subordinada, ainda que isso lhe valesse a punição da suspensão e
conseqüente redução em sua remuneração. Tais situações não a impediram de
chegar aos trinta anos de admissão na Companhia, que culminou com a sua
aposentadoria.
A maioria dos trabalhadores presentes na fábrica no período em estudo
era de solteiros no momento da admissão. O estado civil dos operários
aparece em 4 383 do total de fichas analisadas, dentre as quais constam 2 288
solteiros e 953 solteiras. Ainda que este dado diga respeito à condição civil
formal definida pelo casamento legal, dois outros fatores levam a crer que a

91
A advertência consistia em uma repreensão verbal, cujo registro era assinado pelo(a) trabalhador(a) para efeito
de arquivamento. A suspensão implicava em ausência compulsória ao trabalho, por um período estabelecido
pela administração da empresa, com descontos sobre o salário referentes ao período deste afastamento.
52

maioria desses “solteiros(as)” não tivessem de fato família por eles


constituída no momento da admissão: primeiro, a grande quantidade de jovens
de 12, 13, 14 anos contratados pela fábrica, especialmente nas primeiras
décadas do século XX, perpassando o período balizado neste estudo – dado
este informado tanto pelo registro da idade/ano de nascimento como
visualizado nas fotos de operários(as) ainda fixadas em algumas fichas
funcionais, cujas fisionomias ainda guardavam sinais de infância; segundo, a
ausência de nomes de filhos no quadro reservado ao registro de dependentes.
Observe-se, por exemplo, as informações contidas na ficha da operária
Anarolina Sacramento que, tendo nascido em 1915, tornou-se trabalhadora
fabril em 1928, aos 13 anos de idade, assumindo a função de encruzadeira.
Sua ficha consta das caixas analisadas porque, até o ano de 1963, ela ainda
trabalhava na fábrica, como é possível notar no registro de férias de sua ficha
funcional. Constata-se que D. Anarolina trabalhou pelo menos 35 anos da
C.V. I., e, embora esta informação não esteja explicitada em seus registros de
trabalho, é possível supor que tenha se aposentado com este tempo de serviço,
uma vez que o último registro de suas remunerações foi feito em julho de
1963.
Em seguida, a ficha do aprendiz Rosalvo Luzia Café dos Santos, que,
com seus 15 anos incompletos, entrara na fábrica e cuja fotografia anexada ao
seu registro funcional atesta a fisionomia de menino já incorporado ao mundo
do trabalho.
53

FOTO 04 – Ficha funcional de operário admitido aos 15 anos.

Fo nt e: Co mp a n h ia Val e nç a I nd us tr ial. R e gi str o d e E mp r e gad o s e Op er ár io s, 1 9 5 0 -


1980.

É possível, portanto, supor a partir dessas e de outras fichas analisadas


que um número significativo de moças e rapazes de camadas sociais populares
buscavam na fábrica o emprego para seu próprio sustento ou para o
auxílio/sustento de sua família ascendente. Os depoimentos das operárias D.
Mariinha 92 e D. Zélia 93 confirmam essa perspectiva quando elas dizem que
começaram a trabalhar aos 12 e 11 anos, respectivamente, por causa do
falecimento do pai e a conseqüente necessidade de ajudar a mãe a manter a
casa.
Em alguns casos, foi possível acompanhar a mudança de estado civil.
Observações quanto à alteração de nomes das trabalhadoras e mesmo a
inscrição “casado(a)” presente em nova ficha preenchida pela fábrica para
operários já contratados denotam a evolução na vida particular do(a)

92
Depoimento da sra. Maria Almeida Baião (D.Mariinha). Ex-operária aposentada, residente em Valença.
Entrevistada em 1999, aos 84 anos.
93
Depoimento da sra. Zélia Pereira Paixão. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em 199,
aos 84 anos.
54

trabalhador(a) da C.V. I. que, tendo os meios para prover o sustento de uma


família, constitui a sua própria.
A condição de casado(a) no momento da admissão estava presente em
1 116 fichas, dos quais 69,6% eram homens. Entre os viúvos, o sexo feminino
compunha a maioria (57,7%) dentre os 26 trabalhadores neste estado civil.
Oficialmente casadas ou não, as mulheres que pariam tinham
aparentemente assegurada, a licença- maternidade de 3 meses. Os registros
com a expressão “parto” nos quadros reservados à anotação de salários
aparecem em 167 fichas e, em poucos casos, notou-se coincidência entre o
retorno da licença e a demissão. Alguns registros, num total de 10 entre as
fichas observadas, explicitam casos de aborto como motivo para o
afastamento do trabalho, por alguns dias, de operárias.
A maioria das operárias da fábrica ocupava as funções diretamente
vinculadas à fiação e tecelagem. Na Tabela seguinte, compôs-se um quadro
das principais tarefas femininas e o número de profissionais que, ao longo do
período em estudo, ocuparam tais funções, excetuando-se aqueles registrados
como aprendizes.

TABELA 06
Funções na produção têxtil
FUNÇÃO NÚMERO
FEMININOS MASCULINOS
Tecelã 94(o) 448 149
Fiandeira 95(o) 151 102
Massaroqueira(o) 135 16
Verificador(a) de tecidos 46 15
Op. de Conicaleira 96 31 3
Op. de Liçadeira 97 25 0
Op. de Espuladeira 98 14 4
TOTAL 850 199
Fo nt e: Co mp a n hia Va le n ça I nd u str ia l. Re g is tr o d e E mp r e g ad o s e Op er ár i o s. 1 9 5 0 -1 9 8 0 .

94
Operário(a) responsável por um grupo de teares na operação de tecimento.
95
Profissional responsável pelo patrulhamento de máquinas cujas funções são manter todos os fusos emendados,
substituir maçarocas vazias por cheias, limpar constantemente as máquinas e observar a regularidade da
produção de fios.
96
Profissional responsável por rebobinar toda a sobra de fio para serem reaproveitados na urdideira.
97
Profissional que prepara os quadros de liços (armações que contêm lâminas de aço com furos por onde passam
os fios de urdume)
98
Profissional cuja função é encher as espulas, que são recipientes para condicionar o fio que é usado na
lançadeira.
55

Nota-se a prevalência feminina especialmente na função de tecelã ou


tecedeira, como se referiam à sua atividade nas entrevistas. Sobre essas
atividades profissionais incidiam uma forma de pagamento, que nas inscrições
das fichas são registradas com a expressão “remuneração por tarefa”. São os
casos em que o(a) trabalhador(a) é remunerado(a) de acordo com o volume de
sua produção individual.
Desta forma, criava-se um “estímulo” para que os(as) trabalhadores(as)
se dedicassem ao trabalho, o que lhes garantia um ganho maior, além do
reconhecimento da empresa materializado de duas formas: através de uma
remuneração extra, que aparece nas anotações salariais das fichas com a
inscrição “prêmio de produtividade”, como também, através do destaque ao
nome do(a) operário(a) mais produtivo, conforme relatou a operária D. Dalza,
ao fazer referência a uma lista onde se expunha o nome dos mais produtivos
por seção, salientando que enfrentou o desafeto de colegas por causa de sua
alta produtividade. Acirrava-se assim uma certa competitividade entre os(as)
operários(as) remunerados sob esta condição, o que acabava se alinhando aos
interesses de produção da fábrica.
Em menor número nas funções citadas, os operários do sexo masculino
ocupavam-se das tarefas ligadas à operação de máquinas, transporte de peças
e produtos, atividades de mecânica e eletricidade, carpintaria, construção,
fiscalização e chefia de seção, além das funções administrativas da fábrica.
Em número significativo, trabalhadores homens aparecem ocupando a
função de servente, tarefa presente nos diversos setores de atividade da
fábrica. O servente era “responsável pela limpeza geral do setor (varrer,
limpar o piso, parede, teto, etc.) e auxiliava na limpeza das máquinas” 99. O
elevado número de 853 homens que ocuparam esta função no período
estudado explica-se pela rotatividade já referida anteriormente, que incidia
principalmente sobre o setor de “serviços gerais”.
As funções que implicavam em chefia ou fiscalização do trabalho eram
essencialmente masculinas: mestres, contramestres, fiscais, chefes de setores.
Dentre as fichas arroladas, nenhuma mulher aparece assumindo tais funções, o

99
Conforme formulário da previdência de “informações sobre atividades com exposições a agentes agressivos
para fins de instrução de processos de aposentadoria especial”, anexado a algumas fichas.
56

que reforça o enquadramento feminino em funções subalternas não apenas por


sua origem social, mas também por sua condição de mulher.
Os registros funcionais revelam a existência de uma divisão sexual do
trabalho no interior da fábrica, concentrando as mulheres nas funções
supostamente condizentes com o “jeito feminino”, como os serviços de
tecelagem, o que pressupõe a necessidade de atributos socialmente
compreendidos como inatos às mulheres, tais como atenção a detalhes,
paciência, habilidade manual. Aos homens cabiam as tarefas para as quais
fossem requeridas força física e, de maneira mais acentuada, habilidade
intelectual.
Em seus depoimentos, as ex-operárias não fazem referência a esta
discriminação sexual das funções fabris. Ao contrário, a fala, a entonação e o
sorriso presente nas narrativas sobre suas tarefas, atestam um certo orgulho
pelo bom desempenho de suas funções, sem que o caráter discriminatório, as
diferenças de valorização e remuneração e o seu lugar na hierarquia funcional
pareçam ser questões presentes em sua memória. Segundo Maria Lúcia
Vannuchi:
“E s sa fo r ma d e ap r e e n são d a p r ó p r i a r ea lid ad e ( ...) e vid e n ci a a
ef ic áci a d e meca n i s mo s p o r me io d o s q uai s se ca mu f l a m a s r el açõ e s
hi er ar q u izad a s d e gê ner o e ma s car a m - s e a s d e si g u ald ad es q ue s e
ap r e se nt a m j u s ti f icad a s, le gi ti mad a s 100”.

A Tabela seguinte apresenta uma amostra da distribuição por função de


trabalhadores e trabalhadoras da C.V. I.:

100
www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos
57

TABELA 07
Funções fabris X Sexo
FUNÇÕES SEXO
FEMININO MASCULINO
Chefe de setor 0 18
Contra-mestre 0 53
Fiscal 1 5
Mecânico(a) 0 38
Mestre 0 8
Motorista 0 28
Supervisor(a) 0 4
Técnico 2 11
Costureira(o) 4 0
Encruzadeira(o) 31 7
Fiandeira(o) 151 102
Massaroqueira(o) 135 16
Tecelã(o) 448 149
Fo nt e: C. V.I . - R e gi st r o d e E mp r e g ad o s e Op er ár io s.1 9 5 0 - 1 9 8 0 .

As sete primeiras funções da tabela, cujo desempenho implica em


exercício de poder hierárquico, comando, fiscalização ou força física foram
predominantemente ocupadas por homens. A única fiscal feminina que
aparece nos registros é descrita como “fiscal de qualidade”, o que supõe uma
vinculação do seu trabalho ao produto, e não diretamente a outros(as)
trabalhadores(as) sobre os(as) quais exercia superioridade hierárquica. Não
foram acrescentados aqui os cargos de gerência, sub-gerência, diretoria, pois
localizaram-se apenas duas fichas com registro das duas primeiras funções,
invariavelmente ocupadas por profissionais masculinos.
Quanto à procedência de seus operários, a C.V. I abrigou trabalhadores
das diversas cidades que compunham a microrregião, cujo eixo era Valença:
Nilo Peçanha, Ituberá, Taperoá, Cairu, Camamu, entre outras. Em número
menor, contou com trabalhadores de diversos estados do Brasil e alguns de
nacionalidades diversas.
Entre as fichas em estudo foi possível contar 30 trabalhadores
originários do estado de Sergipe. Encontramos ainda 36 outros procedentes do
Rio de Janeiro, Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e São
Paulo. Entre os estrangeiros figuraram 4 profissionais advindos da Espanha,
Polônia, Alemanha e Itália.
58

Especialmente quando se nota o significativo número de brasileiros


não-baianos pertencentes ao quadro funcional da fábrica, é possível inferir o
quanto a presença de uma indústria têxtil na cidade pode ter se revelado uma
alternativa promissora de emprego para estes trabalhadores.
As fichas não revelam as motivações que trouxeram essas pessoas à
Bahia e a Valença, mas a idéia corrente em Valença de que a Fábrica era o
“celeiro do desenvolvimento da cidade” – como dissera em entrevista o ex-
operário e ex-sindicalista Arlindo Paes – pode ter sido um atrativo para
migrantes que, uma vez instalados na cidade, buscaram na C.V. I. a
oportunidade de trabalho.
Entre as 4 682 fichas, 3 312 indicavam Valença como local de origem
do(a) trabalhador(a) fabril. Em segundo plano, aparecem 184 cairuenses que
tendo migrado para Valença, tornaram-se operários(as) da fábrica. Verifica-se
a importância econômica da C.V.I. não somente para a cidade de Valença,
mas para as cidades próximas de onde vieram outros tantos operários e
operárias.
Assim, a C.V. I. absorveu um significativo número de pessoas entre a
população economicamente ativa do município e, dentre estas, uma
quantidade notável de mulheres, constituindo-se em importante referencial,
não somente econômico, mas também sociocultural para Valença, e
inscrevendo-se na história da cidade através de seus diversos trabalhadores e
trabalhadoras esquadrinhados nas informações de 4 682 fichas funcionais.

CONHECENDO AS RELAÇÕES

Ao pensar nas(os) operárias(os) da C.V. I. como agentes sociais,


procurou-se situá-las(los) em um contexto mais amplo de relações sociais,
produção econômica, constituição e preservação de hábitos culturais,
vivências de embates políticos, compreendendo-as(os) como sujeitos que
criaram e recriaram comportamentos e atitudes e construíram suas diversas
experiências no meio em que inscreveram a história de suas vidas.
59

Portanto, a partir da memória e da voz desses sujeitos históricos,


daquilo que evocam do seu passado, da recuperação das suas lembranças de
tempos e espaços diversos, da explicitação de seus conhecimentos, valores e
percepção de mundo é possível escrever a história-vivida, isto é, reconstituir
a dimensão subjetiva dos processos históricos, ao conhecer não somente as
experiências vivenciadas pelos sujeitos, mas também a maneira como eles as
apreenderam, guardaram e como as rememoram.
Os relatos dos(as) trabalhadores(as) fabris entrevistados(as) trazem à
tona aspectos das suas relações com o trabalho, com os(as) colegas e chefes,
da maneira como essas relações moviam-se em seu cotidiano e do modo como
marcaram sua trajetória.
Recorrentemente, recordam que suas atividades profissionais tiveram
início muito cedo, quando muitas ainda eram crianças ou adolescentes. O
objetivo de um ingresso tão prematuro no mundo do trabalho era a
necessidade patente de contribuir e, em alguns casos, de garantir o sustento
da família. O depoimento de Dona Mariinha testemunha acerca da necessidade
que caracterizou a admissão da maioria das depoentes:
“E u e st a va n a e sco la n es se te mp o co m p r o f es s o r a Do r i n ha, aí fo i
fa lt a nd o a s co i sa s p o r q ue p ap a i j á t i n ha sa íd o ( ...) p o r mo ti vo d e
d o en ça ( ...) t it ia ta mb é m n ão ti n h a sa úd e p e r f eit a e er a p e s so a d e
no ve n ta e t a nto s a no s. Mi n ha mãe ... Me u p a i.. .Me u p a i mo r r e u i a
fa zer 9 9 a no s, e s se, d e cr ia ção . Aí fi co u... e u p eg u ei, e d i ss e... Aí
eu p e g u ei e d i s se ‘e u não q uer o ma i s ir p ar a a esco la, e u q uer o
tr ab a l har ’ ”.

A forma como Dona Mariinha expressou essas palavras denota um certo


orgulho pela tomada de decisão, pela postura madura que ela, menina de 12
anos, teve que assumir. Ela, como outras operárias da companhia, acabou
sacrificando as já tão escassas possibilidades de estudo para tornar-se um dos
pilares de sustentação da sobrevivência familiar. Tal situação, coerente com a
lógica capitalista, colocava-a sob a exploração do capital industrial: por ser
menor e por ser mulher, sem recursos e sem dispositivos legais que a
protegessem, a operária ingressava na fábrica na condição de aprendiz, o que
justificava o não recebimento inicial de salário.
60

É o que atesta D. Mariinha, quando diz: “Enquanto tava aprendendo não


ganhava nada. Não ganhava, que tava aprendendo.” 101 A fala de D. Mariinha
sinaliza para um dos mais correntes mecanismos de exploração do trabalho –
e, especialmente, do trabalho feminino, pelas funções que assumiam – na
fábrica, quando esta, a pretexto de ensinar e habilitar, utilizava gratuitamente
a mão-de-obra das trabalhadoras iniciantes.
Uma outra exigência, que garantia o empenho das aprendizes no
processo de produção, era a aprendizagem rápida, que demonstraria interesse
e disciplina por parte da operária, condições fundamentais para a permanência
no emprego. Esse período de aprendizagem durava cerca de um ou dois meses,
até a aprendiz mostrar-se capaz de controlar bem uma máquina. Com o tempo,
uma única trabalhadora passava a operar mais de uma, chegando a operar até
quatro máquinas simultaneamente.

Enquanto aprendiam a tecer, crianças de 11, 12, 13 anos tinham sua


infância irremediavelmente comprometida, eram cerceadas da possibilidade de
estudar; aprendiam, quando muito, a ler e escrever. Como D. Mariinha, por
exemplo, que, com esforço, chegou a estudar até o terceiro ano, “...
professora Dorinha fazia cadernos pra mim de papel de embrulho pra eu não
perder nada...”

Muitas das operárias da C.V. I. tiveram que fazer a opção entre a


sobrevivência – e sobrevivência, aqui, significa principalmente a alimentação
– ou o estudo, que, aliás, não seria possível sem condições mínimas de
sobrevivência. Desse modo, o termo “opção” talvez nem seja o mais
adequado. O engajamento prematuro dessas crianças no mercado de trabalho e
a exploração que o caracterizou foram, certamente, ditadas pelas
circunstâncias de pobreza e absoluta ausência de alternativas.

“E u f ui p r a f áb r i ca co m 1 1 a no s d e id ad e. Me u p ai mo r r e u. Dep o is
d o fal eci me nto d e le e u co mp le te i 1 1 a no s, Aí ma mãe d i s se : ‘ vo c ê
va i p r a fáb r i ca p o r q ue eu t e n ho q u e p a gar o f u ner al d o s e u p ai e
não te n ho d i n he ir o e a g en te v ai p as sa r mu i ta f al ta. ’ ” 102

Em geral, todos os adultos da família trabalhavam para, juntos, garantir


o sustento mínimo da casa, e não eram raras as famílias em que maridos, pais,

101
D. Mariinha. Depoimento citado.
102
D. Zélia Pereira Paixão. Depoimento citado.
61

filhos ou outros parentes eram também operários da fábrica. É o que atesta o


depoimento de várias operárias, como D. Naninha: “E assim, na turma que eu
entrada, meu marido... ficou eu e ele em horário diferente.” Nas recordações
de D. Mariinha, era o seu pai o trabalhador da fábrica: “Papai já tinha saído,
103
ele trabalhava no Candengo (...) trabalhava em negócio de eletricidade pra
fábrica.” D. Zélia relata a presença tanto dos filhos como do marido:
“trabalhou eu e trabalhou meus filho... tudo na Companhia (...) O marido
também trabalhava na fábrica.”
Quando as dificuldades se avolumavam, como no caso do falecimento
do pai de D. Zélia, as crianças eram chamadas a colaborar com o orçamento
doméstico, e o trabalho operário era a alternativa mais viável, uma vez qu e
acolhia menores, não exigia qualquer nível de escolaridade, bastando apenas a
habilidade manual que, em alguns meses de trabalho, já começava a se
revelar. Além disso, tinha um caráter permanente, o que fazia o senso comum
atribuir-lhe a característica de “emprego certo”, isto é, aquele que
apresentava grandes possibilidades de ser mantido.

O ritmo de trabalho era intenso, ditado pelo ritmo da máquina e da


necessidade de produzir. Como o pagamento a receber dependia da
produtividade das operárias, elas não somente se empenhavam arduamente no
trabalho, evitando as conversas, trabalhando com várias máquinas ao mesmo
tempo, como também, faziam hora extra, segundo relato de D. Vitalina: “E
esse trabalho era em pé. Quando fazia extraordinário também emendava...
ficava em pé” 104.
Era preciso se empenhar de todas as formas, inclusive, não se
permitindo ficar doente.

“E u ti v e u ma ve z u m d iac ho d e u ma gr ip e c o mo e s sa, vo cê t a
en te nd e nd o ? ... e u d ei so r te p o r q u e a f áb r ic a ta v a p ar ad a, não ti n h a
r o lo p á b o tar na s máq u in a e fi ca va p ar ad a. N ã o vi n h a p á ca sa p á
não p er d er o d ia, e u c ur ti a mi n h a, d e itad a no c i me nto , no a v e nt al,
tr ê s d i as ” 105.

103
Candengo é uma cachoeira do município, cuja força hidrádulica fornecia energia para as turbinas da fábrica
Todos os Santos, a primeira fábrica têxtil de Valença, e energia elétrica para a cidade.
104
Depoimento da sra. . Vitalina Oliveira de Sousa. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada
em 1999, aos 72 anos.
105
Idem.
62

Para produzir mais e, assim, ganhar mais – o que não é sinônimo de


ganhar o suficiente -, operárias e operários, cujas funções eram remuneradas
por produtividade, sacrificavam domingos e horas de refeições, levando
marmitas para o trabalho, a fim de não se afastar por muito tempo de sua(s)
máquina(s), segundo o depoimento de D. Dalva: “Trabalhava em pé, com a
marmita na mão comendo... em pé.” Impunha-se um ritmo intenso de trabalho
que atendia duplamente aos interesses da empresa. De um lado, a mais alta
produtividade possível de cada trabalhador(a); de outro, um certo
enquadramento do operariado que se adequava ao esquema disciplinar
imposto.

Travavam, ainda, uma outra luta, que comprometia o tempo da


produção: lutavam contra os freqüentes defeitos das máquinas, a quebra de
fios, além da constante tensão para produzir tecidos perfeitos.
“A g e nt e ti n h a q ue se m o vi me nt ar p r a p o d er a g en te tr ab al h ar , p r a
p o d er a ge n te d ar aq ue la q u a nt ia cer ta d e 5 0 me tr o . Se a g e nt e
p ud e s se tr ab al h ar p r a p o d er d ar d ua s p eç as p o r d ia er a b o m, ma s às
ve ze s o fio er a a ss i m mu ito fr a co , q ueb r a v a mu ito , a ge nt e
p r eci sa v a p ar ar a máq ui n a p r a p o d er e me n d a r o fio , p r a p o d er
d es ma n c har e aí d e s ma nc h a va aq uel e co i sa p r a n ão ir t ec id o co m
d ef ei to ” 106.

“Se a g e nte fo s se co n v er s ar , o p r ej u ízo er a no s so , q u e a máq u i na


q ueb r a va u m f io , a ge n t e n ão vi a, ia f aze nd o d e f eito ” 107.

O pagamento por produtividade acabava cumprindo dois papéis: tanto


fazia aumentar a produção, dado o interesse e a necessidade das operárias de
produzir o máximo possível, gerando lucros cada vez maiores, como também
estimulava uma certa competição entre as(os) trabalhadoras(es), o que
certamente contribuía para inviabilizar, ou, pelo menos, dificultar uma união
efetiva entre elas(es) contra a opressão do trabalho fabril. Tanto era assim,
que havia uma lista classificatória diária, que dava destaque à melhor operária
do dia em cada seção; a melhor operária era a que mais produzia, como atesta
o depoimento de D. Dalza:

“O no me d a p e s so a q ue ma i s p r o d u z naq u el a se ç ão a í ia p r a p ed r a,
u ma li s ta né? Aí c ha m av a p ed r a . Aí d a va p r o d uç ão . T i n ha ge n te
q ue fico u i n i mi g a mi n h a p o r q u e e u p r o d u zi a ma i .” 108 .

106
Depoimento da sra. Maria dos Anjos Ramos. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
1998, aos 71 anos.
107
D. Mariinha. Depoimento citado. O grifo é meu.
63

Mas não somente o interesse pessoal das operárias garantia a alta


produtividade. Ela estava também sob o controle dos mestres e contramestres
– funções essencialmente masculinas -, cabendo ao primeiro a supervisão de
uma dada seção e o controle disciplinar dos operários, inclusive, dos
contramestres, seus auxiliares e subordinados diretos.

Os contramestres exerciam uma certa autoridade sobre um grupo de


trabalhadores e tinha o seu salário também vinculado à produtividade do
setor pelo qual era responsável. Era natural, portanto, que eles “fizessem o
jogo” da empresa, fiscalizando e garantindo uma maior eficiência dos
operários.
“T i n ha al g u é m p á ta o l ha nd o o s er vi ço , se a g en te me r e nd a va, se
d e mo r a va mu i to no b a n he ir o , ti n ha s e mp r e as q ue i xi n h a, t i n ha a
s u sp e n são ... ti n h a es sa s co is a... ma s a ge n te d av a p á q u eb r ar o
ga l ho ... er a o s co n tr a m es tr e né? O s co n tr a me s tr e q ue f az ia e s se
ser v iço . Ma s não d a va p r a ma tar a ge nt e não . ” 109

Era com certa naturalidade que as operárias conviviam com o serviço


disciplinador dos seus superiores. Tão introjetada estava a aceitação da
vigilância, que algumas falas das depoentes, como a de D. Rita Vidal,
parecem até achá-la necessária, pois: “dava uma disciplinada de trabalho, não
era também ao léu não, é... tinha disciplina.”

Segundo Leite Lopes, “o vigor de uma forma de dominação pode ser


avaliado por sua interiorização pelo próprio grupo dominado.” 110 No relato de
D. Rita a ação disciplinadora, fiscalizadora do contramestre, que impunha
limites sobre a ida ao banheiro, sobre o lanche – ainda que gerasse “as
queixinha” – tinha uma aceitação e uma anuência da própria operária, que
parecia compreender esta ação, não como um elemento no interior do esquema
de exploração, mas, um fator de seriedade e valorização do ato de produzir
que, segundo suas próprias palavras, “não era ao léu”.

108
D. Dalza Sarmento Ribeiro. Depoimento citado.
109
Depoimento da sra. Rita Reis Vidal. Ex-operária demitida em 1986, residente em Valença. Entrevistada em
1999, aos 54 anos.
110
LOPES, José Sergio Leite. Op. cit. p. 32.
64

Nesse depoimento, para além das palavras transcritas, é significativa a


maneira, o tom com que elas foram ditas. Como escreveu Charles Santana:
“Al é m d is so , acr e sce n ta aq ui lo q ue p e n so ser a esp ec i fic id ad e da
hi s tó r i a o r al : a o r a lid ad e mes ma. I mp lic a co n si d er ar não ap e n a s as
p ala vr as, a s o r açõ e s e a s fr a s es r e gi s tr ad a s no gr a vad o r e
tr a n scr ita s no p ap e l; ma s a p l e ni t ud e d o d ep o i me n to co m a
q ua lid ad e d e nar r a ti v a o r al.” 111.

D. Rita, por sua fala, deixa transparecer uma certa concordância com o
papel vigilante e, por vezes, punidor exercido pelo contramestre.

Além da função fiscalizadora, cabia também ao contramestre a


manutenção do maquinário. Ao sinal da operária, indicando a quebra da
máquina, a falta de rolos de fios ou qualquer outro problema com o
equipamento, o contramestre deveria cuidar imediatamente para que fosse
resolvido. Por vezes, o atendimento era feito com maior presteza àquelas que
produziam mais velozmente ou àquela cuja disciplina estava devidamente
enquadrada nos padrões da empresa. Esse favoritismo despertava
aborrecimentos naquelas que deles não desfrutavam.

“. .. q ua nd o é u m d i a, ele [ o co ntr a me str e] es ta va d e... d a nd o


r ecad o a e la, e u só ve nd o ela fa la nd o a s si m co m a mão , ma s n ão to
sab e nd o o q ue er a. E l a tr ab al h a va... er a u ma J úl ia. .. p o r no me
J úl ia, er a u ma p r et a, mo r av a lá e m São Fél i x. Q ua nd o fo i d e o u tr a
ve z q ue e le ve io p r a a v i sar , aí e le c h e go u a mi m e d i ss e: ‘o l he, e u
ch e g uei aq u i p r a l he d i zer , não q ue vo cê n ão cu mp r a co m t ud o ,
ma s a s u a vi zi n h a, d a ú lti ma v ez q u e e u t i ve aí , el a me p er g u n to u
p o r q ue er a q u e e u não ch e ga va p r a l he d i zer , s ó c he ga v a p r a d izer
a e la, er a p o r q ue ela er a p r eta e a se n ho r a e r a b r a nc a? ’ Ma s e u,
gr a ça s a De u s, se mp r e f ui tr a tad a co m d el icad e za, q ue e u t a mb é m
não d a va l u gar a ni n g u é m me c h a mar p o r nad a ” 112.

Havia ainda os casos em que uma proximidade maior entre operária e


contramestre, seja por uma relação de amizade, amorosa ou de pura e simples
subserviência, garantia àquela e à(s) sua(s) máquina(s) maior atenção por
parte deste. Esta circunstância foi explicitada pelo depoimento de D. Vitalina.

“E u d i s se a ss i m a u ma vi zi n h a a s si m: a máq u i na tá d e sc e no p a no ,
s u sp e nd e nd o p a no , q ue m d i s se q ue el e v eio co n ser tar ? Aí el a f alo u
as si m: a mi n h a tá so l ta n o a la nç ad ei r a 113, aí el e p a s so u p r a l á e p r a
cá e não co n s er ta , ma s e u n ão d o u me r e nd a a ele . Aí e u f al ei as s i m:

111
SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e ventura camponeses. Trabalho, cotidiano e migrações. Bahia:
1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998, p. 21.
112
D. Mariinha. Depoimento citado.
113
Acessório do tear que recebe uma espula com fio. A lançadeira leva a trama (fio transversal) de um lado para
outro do tear, formando – juntamente com o urdume (fio longitudinal) – o tecido.
65

Q ue hi s tó r i a d e me r e nd a é e ss a? E la d i ss e a s si m : A s ua v iz i n ha d á
me r e nd a a e le to d o d i a, r ep ar e se a má q ui na d el a d á d e f ei to .”

Entretanto, prevalece nos depoimentos a fala favorável à pessoa dos


contramestres, ou, pelo menos, à manutenção de uma boa relação com eles,
como revelam as palavras de D. Naninha: “Meus contrameste que botavam lá
era tudo gente boa... Eu respeitava todos eles e todos eles também me
respeitava.” Seja por uma questão de estratégia, seja por submissão, a maioria
das operárias preferiam evitar os atritos com os seus superiores, cumprindo
aquilo que lhe era definido como sua obrigação. Segundo Charles Santana, as
“práticas sociais constituintes do modo de tratar a dominação punham a
ambigüidade do conformismo ao resistir e também a da resistência ao se
conformar” 114.
Mostrar-se cordata, obediente e produtiva era condição para a boa
relação com os contramestres. Como contrapartida, a operária tinha a
produção elevada pelo ritmo intenso e quase ininterrupto de trabalho e, pelo
breve atendimento do contramestre em caso de necessidade de conserto do
tear ou de reposição de rolos.
“E u não go st a va d e ta p r o cu r a nd o c aso co m co n tr a me s tr e ne m co m
me s tr e, q u e a g e nte ta v a al i s ub al ter n a a e le. E nt ão e u le va v a co m
j eito ” 115.

“E u e nt e nd o as s i m: a g e nt e tr ab al h a aq ui , p o d e b o tar u m ca c ho r r o ,
a ge nt e t i n ha q ue r esp eit ar , é o me s tr e d a g en te, né? T e m q u e
r esp eit ar . E p o r i s so e u me d ei b e m. ” 116

De maneira geral, respeitava-se a hierarquia que se constituíra no


ambiente fabril. A superioridade da função do contramestre, uma função
técnica vinculada ao controle, vigilância e punição, aliada à proximidade
cotidiana deste com os operários, fazia deles alvo do temor, mas também da
hostilidade de alguns:

“. ..ad o nd e ti n h a u m J uc a d o f u mo , q ue er a o mai s mi s er a ve,


Ar l i nd o P aes, Ar l i nd o P aes, não , Ar l i nd o d e Mar i a, q u e mo r a na
Vil a Op er ár i a, er a o s m ai s mi ser a v e q u e ti n ha ( ...) p o r q u e ele s er a
r u i m mer mo ( ...) a nd a v a er a a tr á s d a g e nt e p á tr ab a l har , a ge nt e

114
SANTANA, Charles D’Almeida. op.cit, p. 43.
115
Depoimento da sra. Beatriz Silva Sousa. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
1999, aos 72 anos.
116
Depoimento da sra. Adalzuíta Almeida (D. Naninha). Ex-operária aposentada, residente em Valença.
Entrevistada em 2000, aos 74 anos.
66

não ti n ha d ir e ito d e ap a r a a máq ui n a u ma ho r a ne m p á co mer , n e m


p á mer e nd ar , q ue o al mo ço não , q u e o a l mo ç o a ge nt e vi n h a p á
cas a” 117.

“O p e sso al fa la v a mu ito d ele, p o r q ue d i s se q ue ele er a u ma p e sso a


q ue go st a va mu i to d e p i r r açar e e ntão q u e e u ia ver q ue m er a e le e
tud o ” 118.

“Pirraçar”, nesse contexto, assume a conotação de denunciar, punir ou


não cooperar com as operárias que fugiam um pouco à disciplina imposta,
“que gostava muito de sair da máquina pra ir conversar no sanitário”, 119
criando assim mecanismos de resistência ao mecanicismo e à rigidez do
trabalho, fazendo a contrapartida da subordinação 120.
Diferentemente do que ocorria com os contramestres, mestres e
gerentes, em geral, que gozavam de relevante prestígio junto às operárias.
Eram respeitados e mantinham-se a certa distância, o que impedia o contato
direto ou freqüente. Eram valorizados e elogiados por atitudes simples como
um mero cumprimento, por exemplo, que denotava não somente a sua
superioridade, mas especialmente a sua humanidade e cordialidade.
“O me s tr e q ue ti n h a l á mu i to d o b o m, b o m, b o nd o so me s mo er a o
f i nad o Ad a r b er to Cab o r é, q u e er a o me str e d a s ala.. . aq ui lo fo i u m
me s tr e b o m” 121.

“Mar ti n ia no Ca r q uej a m el ho r o u a i nd a, b o m me s tr e aq u el e, go st a va
mu i to d e mi m ta mb é m, p o r q u e gr aç a s a De u s e u não f azi a
b alb úr d i a n e m nad a , el e q ua nd o p as sa v a al i e u t a va no tr ab al ho ,
n u nc a f ui c ha ma d a no es cr itó r io ” 122.

O tratamento cordial dos superiores para com as operárias, o fato de a


relação entre ambos não sofrer o desgaste do contato cotidiano contribuíam
para a construção de uma imagem de homens justos e bons.
“A g e nt e só fa la v a co m el e se a g e nte t i ve s s e p r ec i são d e fa lar
al g u ma co i sa ...” 123

117
Depoimento da sra. Maria Celidalva (D. Dalva). Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada
em 2000, aos 75 anos.
118
D. Maria dos Anjos. Depoimento citado.
119
Idem.
120
FENELON, Déa Ribeiro. “O Historiador e a cultura popular: história de classe ou história do povo?” In:
História e Perspectiva, Revista do Curso de História da Universidade Federal de Uberlândia, nº 6, jan/jun/1992.
121
D. Dalva. Depoimento citado.
122
Depoimento da sra. Julieta Pereira Santos. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
1998, aos 88 anos.
123
Idem.
67

“. .. q ua nd o t i n ha n ece s s id ad e d e f alar a s si m al g u ma co is a, a ge n te
q uer ia f al ar a l g u ma co i sa d e tr ab a l ho ... al iá s, não fal a va b e m co m
ele não , f al a va co m o s me s tr e p r a e n v iar as co i sa q ue a ge n te
q uer ia p r a e le” 124.

A concessão de empréstimos, o atendimento às solicitações de uma casa


na Vila Operária configuravam-se como benemerências atribuídas aos chefes,
pelo que as operárias deveriam ser gratas. Na prática, a gratidão da
funcionária já era previamente garantida, uma vez que tais concessões eram
feitas exclusivamente às que estavam devidamente enquadradas nas normas
comportamentais e produtivas da empresa. Tal gratidão se expressava pela
manutenção da subserviência, pela constante pré-disposição em servir, na
medida das necessidades da fábrica, e pela máxima produtividade possível,
além do discurso defensivo e favorável ao patrão.
“T i n ha u ma me i a d úz ia d e ge nt e a li q u e er a tr ab al had e ir a , e le d a v a
o ma io r car t az. P r a mi m, D r . J o sé [ J o s é So ar e s, ger e n te] fo i u ma
p es so a mar a v il ho sa ” 125.

Mas também as tensões – como não poderia deixar de ser em uma


relação capitalista – existiam e são perceptíveis nas falas de algumas
depoentes:

“A ma io r ia d o p o vo d e sej a va até q ue e le [ “Dr .” Ra ul] mo r r e s se,


q ue j o ga v a p r a ga a e le e t ud o ... E l e t a mb é m n a ho r a q ue e le ta va
d an ad o , e le f az ia, s u sp e nd i a mu i ta ge nt e... ” 126

As formas de resistência levadas a cabo pelos operários mais ousados


não passavam despercebidas pela gerência. Em sua inspeção diária pela
fábrica e através das informações advindas dos mestres e contramestres, os
gerentes conheciam as atividades e os comportamentos dos seus trabalhadores
e trabalhadoras. Conversar durante o trabalho, não alcançar a produção
individual determinada, vincular-se a dirigentes sindicais com quem o chefe
tivesse divergências eram circunstâncias que determinavam a não concessão
de “favores”, o que, no entender dos operários, poderia ser traduzido por
“perseguição”. O caso de D. Beatriz e Sr. Claudionor, operários, marido e
mulher, são exemplificadores dessa situação.

124
D. Naninha. Depoimento citado.
125
D. Dalza. Depoimento citado.
126
D. Dalza. Depoimento citado.
68

“C h e g uei no e scr itó r io t r ês v eze s, aq ue le ho me m me e nr o la no p ela


u ma n ece s sid ad e b e st a, q ue e s te d i n h eir o er a co b r ad o co m o no s so
tr ab a l ho , ia p a gar . O ho me m fe z u ma s uj eir a , q ue aq ui lo n ão é d e
ge n te. E u saí tão e nr a i v ad a” 127.

Interessante notar esse trecho do depoimento de D. Beatriz: “que esse


dinheiro era cobrado com o nosso trabalho.” Uma interpretação possível dessa
fala é que a idéia do empréstimo como um ato benemérito não fazia parte da
visão da operária. Ela parece compreendê-lo como uma espécie de
adiantamento que, a despeito de depender da boa vontade do gerente, seria
devidamente cobrado, devolvido, através do seu próprio trabalho. A sua
negação, portanto, era muito mais que simples má vontade; era “uma sujeira”
que provocava grande indignação.

A negativa a D. Beatriz teve suas raízes nas divergências entre o


gerente e o sr. Claudionor, marido da operária, que era dirigente sindical.
Uma perseguição indireta, que atingia aquela que se relacionava com pessoas
– e, nesse caso, de forma bastante próxima – que, no entender do patronato,
tinham a “ficha suja”, por não aprovarem e por se manifestarem contra os
desmandos dos mestres e gerentes sobre os operários e operárias.
“Nó s q u e n ão q u is er tr ab al h ar , não q ui ser tr ab al h ar d ia d e
d o mi n go , e le mar c a va ta mb é m, q ue m não q uer ia tr ab al ha r d e
d o mi n go . Q ua nd o c h e g av a a ho r a d e s air , vi n ha o co n tr a me s tr e,
b o ta va a má q ui na , er a 4 e 1 5 o ho r ár io p r a sa ir , b o ta va 6 e 1 5 , ma i s
d ua s ho r as , ma s q ue m não q u i se s se f icar ta mb é m fic a va ma r cad o
ta mb é m, p o r q u e d ei xa o tr ab al ho e n fo n ad o , ti n ha i s so t ud o né?
Mãe d e fa mí lia a s ve z ti n ha nec es s id ad e d e v i m p r a c a sa, v ê o s
f il ho , f ic a va al i p r a não ser p er se g uid a. Q ua lq ue r co i sa p er se g u ia a
ge n te” 128.

Conciliar as atividades domésticas, a assistência aos filhos com a


rigidez do trabalho fabril era um difícil desafio. Nem sempre era possível
administrar bem essa dupla jornada de trabalho, e o atraso - do qual elas
fugiam num corre-corre típico, que enchia as ruas da cidade -, às vezes, era
inevitável, embora, eventual.

“E u f ui u m d ia d aq ui, c o r r e no , e sb a f u r id a , mã e d e fa mí l ia né? Sa í
d o id a. Q ua nd o ap it a va aq u el e tr eco tr ê s ve z es q u e a ge n te n ão
co mp ar e ce u, p o r tão na car a. L á va i e u co r r e n o , co r r e no , q u a nd o
ch e go u a li, j us to o nd e J o sé Au g u s to mo r o u, mai s p r a lá u m p o u co ,
eu ca n sa no co mo o q u ê, f u i co r r e no , co mo é q ue p o d e n é? Fec ho u o

127
D. Beatriz. Depoimento citado.
128
Depoimento do sr. Claudionor Gomes de Sousa. Ex-operário aposentado, residente em Valença. Entrevistado
em 1998, aos 75 anos.
69

p o r tão , n e m p r a r esp ei t ar u ma p e s so a id o sa c o r r e nd o . O p ão e u
b o ta va d e ntr o d o , d o , d o , b o l so d o a ve n ta l p r a co mer lá e sco nd id o
q ue não co mia cá p o r q u e não d a v a t e mp o , aí q u and o a ge n te j á ta v a
sa i no , ele j á t a va co m a mã o no p o r tão p r a f ec har e a g e nte
o lh a nd o aq u el e r e ló gio gr a nd e q ue te m al i fo r a . Me n i na, o q ue é
is so ? ! Aí e u b o t a va o p ão , ia p r a d e nt r o d a sa la, e me n d a va a
máq u i na, tir a va o p ão , o lh a va p r o s q u atr o c a nt o s, t ir a va o p ed a ço .
I s so é v id a? ” 129

O trabalho tornava a vida extremamente agitada e cansativa. Diante das


condições e dificuldades individuais femininas, absolutamente
desconsideradas pela lógica fabril – uma lógica essencialmente masculina – ,
as operárias buscavam adequar-se às limitações que lhes eram impostas.

“. .. s e a g e nte p a s sa va o d ia to d o fo r a d e ca sa, o s tr ab a l ho fic a va


ac u mu l ad o d e n tr o d e c asa , ia ter t e mp o p á b ate p ap o ? O t e mp o
f ico u c ur to , n é? ” 130

Um outro elemento deve ser adicionado a esse estado de coisas, que


tornava o ambiente fabril palco de significativas tensões sociais: as condições
materiais de trabalho, as quais não oferecia segurança contra acidentes que,
exatamente por isso, aconteciam com alguma freqüência. Entre as fichas
trabalhadas constam 335 ocorrências de acidentes, dentre os quais, um
significativo número de casos em que o(a) mesmo(a) trabalhador acidenta-se
mais de uma vez.

Quando o equipamento quebrava, como, por exemplo, a soltura da


lançadeira, uma peça pontiaguda do tear, podia provocar acidentes graves,
como vazamento dos olhos.
“A mi n h a mã e me s mo ... a la n çad e ir a d a máq u i n a s al to u, p e go u no
o lh o d ela , v azo u o o l ho ( ...) f ico u co mo u m nad a q ue , n es se te mp o ,
aq u i não ti n ha o c ul is ta, não ti n h a d e nt i st a e el es n ão se
in ter es s ar a m e m ma nd a r p r a Sa l vad o r p r a f az er u m tr a ta me n to .
Fic o u a s si m me s mo , u m en f er me ir o d a Co mp a n hi a er a q ue m f a zia o
cur at i vo .” 131

Esse acidente, especificamente, foi um dos fatores que fizeram com que
D. Mariinha se tornasse operária aos 12 anos de idade, abrindo mão dos já tão
parcos estudos a que tinha acesso.

129
D. Beatriz. Depoimento citado.
130
D. Naninha. Depoimento citado.
131
D. Mariinha. Depoimento citado.
70

Durante muito tempo, a ausência de leis trabalhistas e de uma


organização sindical que aglutinasse os trabalhadores da Companhia 132
criaram condições para que as vítimas de acidentes não fossem devidamente
tratadas nem indenizadas. Ficava-se à mercê da atenção limitada que a
Companhia se dispunha a oferecer.

“Q ua nd o fo i u m d ia , n ã o sei se fo i se u I sa ur o o u se u Al me id a, q u e
d is se : b o m, nó s fa ze mo s a i nd e n iza ção , ma s só se q ua nd o el a fi car
b o a não q ue ir a vo lt ar m ai s ao tr ab a l ho .” 133

Mas esta realidade sofreu alterações a partir dos anos 30, segundo Leite
Lopes, ao analisar o que chamou de “sistema fábrica e vila operária” na
Companhia de Tecidos Paulista, em Recife:

“No d eco r r er d o s a n o s 3 0 , co m a p r e s s ão e xer c id a p e la


f is cal iz ação tr ab a l hi s ta sa nc io na nd o a s j á p r o mu l gad a s l ei s e
r eg u la me n t açõ e s, no s c in co p r i me ir o s a no s d es sa d écad a, a d o s
‘d o is ter ço s ’, a d o tr ab a lho d o me no r e d a mu l h er , a d a j o r n ad a d e
tr ab a l ho d e 8 ho r a s, a d a car t eir a p r o fi s sio n al, a d e f ér i as , a d o
r eg i str o d e e mp r e g ad o s ; o ‘co r p o d o c u me nt al ’ d a f áb r i ca t e m q ue
ad eq uar - se ao c a mp o na cio na l d e id e n ti f ica ção i nd i v id ua l.” 134

Nas fichas da C.V. I. analisadas, os registros de licenças por causa de


acidentes no trabalho, o pagamento de “auxílio enfermidade” ou a
possibilidade de um afastamento mais longo, recorrendo-se ao I.A.P. I. 135,
sinalizam uma outra forma de se tratarem as questões ligadas a acidentes e
doenças do trabalho, diferentemente daquele tratamento dispensado à mãe da
depoente D. Mariinha. As leis trabalhistas impunham limites aos possíveis
desmandos das empresas e, em alguma medida, proporcionavam certa garantia
aos trabalhadores, constantemente expostos à possibilidade de problemas de
saúde vinculados à sua atividade profissional.

O próprio ambiente conspirava contra a salubridade do espaço fabril. A


poeira do algodão, o superaquecimento da sala, a falta de ventilação, o

132
Quando da entrada de D. Mariinha na fábrica (1927), ainda não havia o Sindicato dos Trabalhadores de
Fiação e Tecelagem de Valença, fundado em 1934. Apud FONSECA, Arlindo Paes da. História de Valença,
exemplar datilografado.
133
D. Mariinha. Depoimento citado.
134
LOPES, José Sérgio Leite. Op. Cit., p. 60-61.
135
Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, criado através da Lei nº 367, de 31 de dezembro de
1936, durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas.
71

barulho intenso provocado pelo movimento ininterrupto das máquinas em um


lugar fechado, a pouca liberdade de movimento do corpo, a posição física –
constantemente, de pé, ou, constantemente, sentada, a depender da função –
tudo isso acarretava uma série de prejuízos à saúde dos operários.

“T r ab a l ha va e m p é, co m a mar mi ta na mão co me nd o ... e m p é. L á


ni n g u é m se n ta va n ão ( ...) er a u m l u ga r ab a f a d o ... ab a f ad o ... só
ti n ha al i... n ão t i n ha n ego ço d e v e nt ilad o r , n ão ti n h a nad a, não
ti n ha j a n ela , nad a , nad a , na d a.” 136

Entre a maioria das operárias havia uma grande consciência da gama de


precariedades a que estavam submetidas: “Naquele tempo não tinha nada que
fosse a bem-estar do trabalhador. Tudo era a bem-estar do dono da
empresa.” 137 Entretanto, apesar de toda exploração, controle e insegurança em
que orbitavam suas atividades, notou-se, entre elas, uma certa distância, e,
mesmo, uma resistência para o envolvimento na política sindical. Não se pôde
perceber, entre a maioria das depoentes, disposição em travar lutas por
melhores condições de vida e de trabalho através do sindicato.
Estratégia para a manutenção do emprego? Submissão pura e simples?
Descrença na entidade? De acordo com a fala da operária, a atuação do
sindicato limitar-se-ia, segundo ela, ao aviamento de receitas médicas. As
operárias limitavam-se, pois, à filiação ao sindicato. Sua participação de
cunho mais político restringia-se ao processo de eleição do presidente
sindical. Ademais, quando o sindicato conseguia mobilizar os trabalhadores
para movimentos grevistas, algumas operárias participavam.

Até que ponto as operárias reconheciam como importante e necessária a


sua participação no movimento grevista, isso é difícil mensurar. As que
participavam eram aquelas mesmas que, nos depoimentos, faziam críticas
severas aos seus superiores, aquelas que provavelmente no dia-a-dia fabril
criavam condições para burlar o enquadramento disciplinar, e se atreviam, em
momentos mais decisivos, ao enfrentamento, respaldadas pela união com
outros operários e pelo sindicato.

136
D. Dalva.Depoimento citado.
137
D. Mariinha. Depoimento citado.
72

As que primavam pela obediência, pela idéia de jamais serem


“problemáticas dentro do seu trabalho”, optavam pelo ingresso na fábrica,
mesmo quando companheiros e companheiras de trabalho arriscavam o
pagamento do dia ou o próprio emprego nesta relação de enfrentamento.

Isso certamente provocava um certo desentendimento no ambiente de


trabalho, que atritava as relações entre as colegas. “Ficava em ponto de vista
quem, quem ficou na greve, né? Tudo... fazia... era suspensão, vinha suspensa
pra casa, essas coisa...” 138 Além desse tipo de desentendimento interno, a
convivência cotidiana propiciava desavenças de toda ordem:

“Ás v eze s er a za n g a at é p o r p ar te d e ca sa, d e f il ho s, à s ve ze s,


na mo r ad o ... ma s aq u ilo er a u ma za n ga d e la s, fi ca va p o r al i mes mo
( ...) Di sc u ti a... a go r a, a d e sco n f ia nç a er a p o uc a, n ão sab e? Se
co n ta va a s q ue ti n h a a s xe nd a” 139

Dona Mariinha entremeava sua fala com risos, como que a não
considerar graves tais desavenças. Ao contrário, a expressão séria, quase
aborrecida de D. Benedita testemunha uma maior freqüência nos
desentendimentos internos entre colegas: “... era o que não faltava.” E quando
foi questionada se lembrava de algum caso desse tipo, ela foi tax ativa: “Me
lembro, mas... tô fora.” E simplesmente silenciou a respeito. O silêncio, tão
significativo quanto a fala, foi capaz de informar o desagrado da operária com
tais lembranças. Observe-se que ela não nega a existência das desavenças,
mas assume a postura de limitar-se a esta informação, impondo a construção
de um novo rumo para a entrevista. O silêncio quase aborrecido de D.
Benedita contrasta com o riso de D. Mariinha, o mesmo riso que entremeou a
fala de D. América a este respeito: “Agora... porque existia também muita
briga, viu? As vezes existia tapa, tudo dentro da fábrica, e brigava com a
outra e tal”.

A contrapartida era a rede de solidariedade e amizade que era possível e


necessário tecer. A boa convivência com as colegas prevaleceu nos
depoimentos, dando mostras de que, apesar - e talvez por causa – das tensões

138
Depoimento da sra. Benedita do Rosário. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
1999, aos 84 anos.
139
D. Mariinha. Depoimento citado.
73

do ambiente de trabalho, de alguma forma, as trabalhadoras se uniam,


amenizando as hostilidades que a faina lhes impunha.

“E r a ó t i mo . Mi n h as co l eg a d e tr ab a l ho er a mar av il ho sa . São t ud o
b o a, mi n ha fi l ha, mi n ha s co le g ui n h a d e t r ab al ho , er a t ud o
ca mar ad i n ha , ge n te b o a. N ão t e n ho o q ue d izer d a s mi n h a s
co le ga .” 140

“Q ua nd o le va v a u ma f r u ta, a í er a u m p ed ac in h o p r a u m, u m
p ed aci n ho p r a o u tr a. ” 141

“Al i er a to d o mu n d o d i vid ia o q ue ti n ha . S e t i n ha u m p ão d i vid ia


no me io , se t i n ha q ua lq u er mer e nd a d i vid ia no meio . E r a u m
r ela cio na me nto mu i to b o m. .. no me u te mp o .” 142

Esta rede de solidariedade, de convivência amistosa edificada e


fortalecida no ambiente de trabalho extrapolava os portões da fábrica e ia
revelar-se na convivência comunitária nos bairros da cidade e, de forma muito
especial, na Vila Operária. É esse cotidiano exterior ao ambiente fabril, mas,
estreitamente ligado a ele, entrecortado de dificuldades e sacrifícios, mas
também, de união e alegria, que discutiremos no capítulo seguinte.

140
D. Naninha. Depoimento citado.
141
D. Mariinha. Depoimento citado.
142
D. Rita Vidal. Depoimento citado.
74

CAPÍTULO III
PARA ALÉM DAS PAREDES DA FÁBRICA

Este capítulo discute os caminhos através dos quais operários e,


principalmente, operárias da C.V. I. construíram suas experiências cotidianas
em espaços extra-fabris onde estabeleceram relações de convivências. E, mais
ainda, procura analisar o modo como as experiências individuais da vivência
familiar, comunitária foram apreendidas pela memória 143, permitindo uma
incursão pelo universo subjetivo das lembranças que operárias e operários
guardaram de processos socioculturais, oferecendo perspectivas diferenciadas
sobre os acontecimentos do passado.

Esta análise resultou das entrevistas que foram realizadas com 20


operários(as), a maioria deles(as) aposentados(as). O roteiro de entrevista
apresentava questionamentos sobre o cotidiano e as relações fabris, mas
também, enveredou por questões do universo familiar e comunitário,
perpassando as experiências e lembranças sobre as condições de vida, as
relações familiares, as dificuldades econômicas, as possibilidades de lazer, o
exercício da administração doméstica, procurando compreender, a partir das
falas e das formas como foram ditas, a trajetória de sujeitos, cuja história está
fortemente ligada ao trabalho fabril.

As narrativas das (os) ex-operárias (os) expressam suas experiências,


nas quais se imbricam memória e oralidade, descortinam possibilidades e
perspectivas para a pesquisa histórica que encontra campos cada vez mais
férteis no universo historiográfico. Assim é que tais expressões se
consubstanciam em fontes orais para a pesquisa histórica ou, como preferem

143
“A memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de
fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um
indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.” ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que
era”. In: AMADO, Janaína. e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da História oral. Rio de Janeiro:
Ed. FGV, 2002. Para outras discussões sobre memória, consultar BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:
lembranças de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994; MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e
memória. A cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994; HALBWACHS, Maurice. A memória
coletiva. São Paulo: Editora Vértice, 1990, entre outros.
75

outros pesquisadores – a despeito dos debates acerca do uso do termo -, em


“história oral”. 144
As fontes orais oferecem a possibilidade de estabelecer novos enfoques
e reflexões ao capturar as histórias significativas de indivíduos ou grupos
sociais que não estão registradas em documentos escritos, e ao permitir o
reexame de realidades não contempladas pela história oficial. É obvio que
este não é um atributo exclusivo das fontes orais, nem tão pouco, elas servem
apenas à “história dos vencidos”, afinal, as classes dominantes também falam.
Mas importa salientar que o uso de fontes orais – e toda sorte de
contingências que possam derivar desta opção metodológica – são
“d i me n sõ e s d a p e sq ui sa r ica s e m p o s s ib i lid ad e s q ue se ab r e m ao
hi s to r i ad o r p r eo c up ad o e m s ur p r ee nd er o vi v id o e a s e str u t ur a s d e
se n ti me n to , e n te nd id a s co mo cr ia çõ e s c ul t ur ai s, no cer ne d o s
p r o ce sso s hi stó r ico s e m q ue a l ut a en tr e p r o j et o s d e mu nd o , en tr e
in ter es s es , ga n ha vi sib il id ad e” . 145

A partir da voz dos sujeitos históricos que compunham o quadro de


trabalhadores da Companhia Valença In dustrial, das lembranças que evocam
do seu passado, obtém-se um descortinar de conhecimentos, valores e
percepção de mundo, através dos quais é possível chegar a aspectos
tradicionalmente marginalizados pela história, dando-lhes visibilidade.

A fala – a palavra dita – foi, então, o veículo fundamental de


construção e reconstrução da história e vivências das operárias, através da
qual, ao remontarem suas experiências, estabeleceram referências do contexto
profissional, sociocultural e pessoal que constituem a sua história. Há que se
destacar, entretanto, que o uso de fontes orais não implica considerar somente
o “dito”, o verbalizado; a plenitude do depoimento abarca movimentos,
gestos, expressões fisionômicas, entonações e silêncios carregados de
sentidos. Segundo Charles Santana:
I mp li ca, ta mb é m, p e n sa r a fo nte o r a l i mp r e g na d a d e si g n i fic ad o s
q ue e me r ge m d e d i fe r en te s p er fo r ma n ce s c o r p o r ai s, n e ga nd o

144
A respeito dos debates sobre o termo “história oral” ver AMADO, Janaína. e FERREIRA, Marieta de Moraes.
Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002. Ver também ALCÁZAR I GARRIDO, Joan
del. “As fontes orais na pesquisa histórica: uma Contribuição ao Debate”. Revista Brasileira de História, vol. 13,
nº 25/6. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, set. 92/ago. 93, pp. 33-54.
145
SANTANA, Charles d’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações. Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 21-22.
76

r ati f ic a nd o o u e xp l ic ita nd o o co n te úd o d a s p a l avr a s d e u ma fo r ma


d is ti n ta d aq uel a e xp r es s a p el a e n a e scr it a”. 146

Na fala de trabalhadoras e trabalhadores entrevistadas (os), a


diversidade de respostas e reações a um questionamento ajuda a tecer os fios
das relações sociais de outros tempos, as quais, extrapolando a experiência
individual, dizem das estruturas políticas, econômicas e culturais de um dado
espaço numa determinada época.

Dentre os espaços ex tra-fabris, onde as vivências se davam, e ao qual se


fez referência durante as entrevistas, estava o sindicato. De acordo com as
depoentes, não se tratava de um ambiente em que a presença feminina fosse
muito freqüente. Ainda assim, o sindicato figura na memória das
trabalhadoras, ora, como uma agremiação através da qual se conseguiam
benefícios imediatos e materiais, como remédios; ora, como uma entidade que
mediava as relações entre patrões e operários, onde a participação da maioria
consistia essencialmente em aderir às greves propostas pelas lideranças
sindicais, adesão tantas vezes motivada pela força das circunstâncias ou pelo
temor de ser mal vista(o) entre os colegas.

A ex-operária D. América diz não se recordar muito bem da atuação do


sindicato. Lembra de informações gerais, como o desconto mensal para a
contribuição sindical, da presença de “gente de Salvador” que vinha à cidade
em momentos mais tensos de greves, mas a conversa em torno deste assunto
foi entremeada de muitos “não me lembro”. Cecília Sardenberg propõe uma
discussão acerca desta “não lembrança” das operárias em torno das lutas
sindicais, analisando o gênero da memória e conclui que:

“P o r cer to , a s mu l he r e s não e st ão eq u i vo cad as ao se ma nt er e m


d is ta n te s: el a s er a m d e fato mar g i na li zad a s n es se p r o ce s so . Não
cu s ta le mb r ar q ue ne s se p er ío d o , o p r o ce sso d e ci só r io r el at i vo ao s
mo v i me n to s gr e vi s ta s c o nc e ntr a va - se na lid er a nç a d o s s i nd ic ato s. E
es te s, va le r e s sal tar , e r a m q u a se q ue e x cl u si va me n t e d o d o mí nio
ma s c ul i no 147.”

146
SANTANA, Charles d’Almeida. Op. cit. P. 21.
147
SARDENBERG. Cecília Maria Bacellar. “O Gênero da memória”. In: PASSOS, Elizete. ALVES, Ívia.
MACEDO, Márcia (orgs). Metamorfoses: gênero na perspectiva interdisciplinar. Salvador: NEIM/UFBA, 1998.
p. 159.
77

O depoimento do operário Gerci Januário apresentou um teor


diferenciado da fala feminina. Ele, que teve a oportunidade de ocupar uma
função da diretoria do sindicato, se recorda com riqueza de detalhes a atuação
do sindicato e a avaliação que ele, sindicalista, fazia da entidade na época:

“U ma o c as ião q ui ser a m faz er u ma gr e ve. F izer a m a gr e ve. O


p r es id e nt e d o si nd ica to d izi a ao p e s so a l, o p o vo só c io d o s i nd i cato :
‘ Va mo s faz er a gr e ve ’ . E p o r d etr á s el e ia d i ze r ao ger e nte : ‘É ! O
p o vo q ue r faz er gr e v e. E u to d a nd o co ns el ho a ele s p r a não fa zer
is so . E e le s co n ti n u a m a gr e ve. ’ E nt ão fa zi a ma l p r a ge n te, q u er
d izer , p r a ge n te ta v a f az end o b e m d e me n tir i n ha e faze nd o b e m p r a
e mp r e sa q ue e u a c ho q u e n ão d e va ta mb é m fa ze r mal p r a e mp r es a,
ma s d e ve d ar a C és ar o q ue é d e C é sar 148.”

O dado que a ex-operária mais se recorda, no que se refere ao sindicato,


era a mediação deste com as farmácias para possibilitar o acesso à compra de
remédios:

“E u me l e mb r o d e si n d ica to p o r q ue e u co mp r av a... o si nd ica to


ve nd ia r e mé d io . O s i nd ica to , co mo é q ue d i z, co mp r a v a o q ue a
ge n te p r ec i sa va. .. se r ec eit a va, não ti n h a co mo co mp r ar o r e mé d io ,
ele aí t i n ha u ma f ar mác ia o u d ua s q ue a g e nte se d e sp a c ha va p o r
co n ta d o si nd ica to . E o s i nd i cato d e sco n ta va , né? I a p a g a nd o p o r
se ma n a.” 149

O depoimento da ex-operária D. Naninha foi surpreendentemente


enfático ao ser questionada sobre a atuação do sindicato e sua participação na
entidade.

“P ar ti cip a va. E r a r e mé d io q ue a g e nte ad q uir ia ... só er a r e méd io .


E u n u nca l e ve i p r o b le m a p r a si nd ica to ! E u n u n ca f u i p r o b le má t ica
d en tr o d o me u tr ab al ho ! ( ...) E u nã o i a [ p ar a as r e u n iõ e s] . Não
go st a va n ão . Não go s ta v a d e s se n e gó cio . N ão go sto d e n ad a ! N u nc a
go st ei d e n ad a ! Só faz i a tr ab al h ar . E s s as co is a d e r e u nião , d i s so ,
d aq u ilo , não p ar ti cip a va d e nad a. ( ...) Ne m p r o cur a va sab er o q ue
fo i q ue ho u ve lá, ne m o q ue n ão ho u ve. N ã o ia não . Nad a . Só
cu mp r ia co m a s mi n h a s o b r i gaç ão d e n tr o d o set o r d o me u tr ab a l ho .
O r e sto ? N ão p r o c ur a va sab e r nad a ! ”. 150

A sua resposta, marcada pela rigidez da expressão fisionômica, o fechar


dos olhos e o frenético manear da cabeça, revela que a operária não
concordava com a maneira como o sindicato atuava e traduz a sua visão sobre

148
Depoimento do sr. Gerci Januário da Costa. Ex-operário aposentado residente em Valença. Entrevistado em
2001, aos 75 anos.
149
Depoimento da sra. América da Conceição. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
2006, aos 82 anos.
150
D. Naninha. Depoimento citado.
78

a organização política do grupo profissional de que participava. A atuação do


sindicato era por ela compreendida como “coisa de problemáticos” e a sua
participação nessa entidade limitar-se-ia ao aviamento de receitas médicas.
Outras operárias compartilhavam da mesma visão expressa por D. Naninha:
“Ma s e u n u nca me e n v o lv i e m nad a ( ...) [ D ur an te a gr e v e] ... e u
tr ab a l ha va ... tr ab a l ha va . N u nc a me e n vo l v i e m n ad a d is so ( ...)
E n tr a va q ue m q u i se ss e t r ab al h ar ; q u e m não q u i s es se. ..”. 151

É difícil mensurar até que ponto as operárias reconheciam como


importante e necessária a sua participação no sindicato e nos momentos
pontuais de lutas coletivas como as greves. É fato, entretanto, que muitas
operárias participavam ativamente das paralisações, a tal ponto que D.
Benedita afirmou em seu depoimento:
“Q ua nd o ti n h a gr e v e... O si nd ica to er a q ue ir i a r e so l v er t ud o
p o r q ue q ua n to ti n h a g r e ve o p e sso á v i n ha. .. n ão tr ab al h a va. F ic a va
tud o d o lad o d e fo r a s e m q u er er e ntr ar e o s ind ic ato e r a q ue ia
r eso l ver . Ve io a té g e n. .. p o vo d e Sa l vad o r , P l ín io Sa mp aio , e ss e
p es so a r e so l ver e ss e s p o b r e ma”. 152

E acrescentou, quando questionada a respeito da sua participação na


greve: “Eu fazia sim... Era a fábrica toda... era... era a fábrica toda, não era
só eu não.”

A presença feminina nesses movimentos – embora nem sempre figure


como um dado significativo nos relatos sobre as greves operárias,
invisibilizada pelo mérito atribuído às lideranças sindicais – teve um caráter
importante, se não decisivo, uma vez que as operárias compunham a maioria
dos trabalhadores fabris envolvidos de forma direta nas linhas de produção.
Portanto, “qualquer tentativa de greve seria malograda sem a mobilização das
mulheres 153”. No entanto, prevalece nos relatos uma certa ausência de
reconhecimento dessa importância, a liderança do sindicato como força
mobilizadora – um sindicato apartado delas, identificado pelos pronomes em
terceira pessoa – e a identificação do ambiente doméstico, e não o sindical,
como efetivo espaço de atuação feminina.

151
D. Mariinha. Depoimento citado.
152
D. Benedita do Rosário. Depoimento citado.
153
SARDENBERG. Cecília Maria Barcellar. Op. cit. p. 159.
79

Em consonância com os estudos de Cecília Sardenberg, as operárias da


C.V. I. também “afirmam, entretanto, que embora cumprissem as palavras de
ordem do sindicato no tocante à parede, iam para casa porque tinham ‘mais o
que fazer em casa’ 154...” As diferentes impressões sobre a atuação do sindicato
são reveladoras da diversidade de elementos componentes daquela realidade.
No exemplo mencionado, de um lado, trabalhadoras (es) que participavam
ativamente dos embates que envolviam os interesses de operários e os de
patrões (ou seus representantes); de outro, aquelas (es) que primavam pela
obediência e pela idéia de jamais serem “problemáticos” dentro do seu
ambiente de trabalho. Entre um e outro pólo, outros tantos sujeitos, cuja
conduta, nem tão conflitiva nem tão submissa, aumentava ainda mais as
tramas que compunham a teia daquelas relações sociais.

Através dos depoimentos, as trabalhadoras(es) atestaram sua


participação nos movimentos grevistas promovidos pelo sindicato
correspondem às mesmas (os) que fizeram críticas severas aos seus
superiores, provavelmente aquelas (es) que, no dia-a-dia fabril, criavam
mecanismos para quebrar, ou pelo menos, flexibilizar, a rigidez do
enquadramento disciplinar, e se atreviam, em momentos decisivos, ao
enfrentamento, respaldadas pela união com outras (os) operárias (os) e pelo
sindicato. O depoimento de D. Benedita – que afirmou participar das greves –
e o de D. Mariinha – que assumira a postura da não-participação – são
lapidarmente exemplificadores da diferença de relações mantidas com os
patrões:
“Dr . Ra u l e se u Mo r á 155 ... Aq ue le se u Mo r a e r a u ma mi s er a.. .
P in ta va o d i ab o co m a ge n te.. . E d r . J o sé So ar es, aq u ilo er a o utr o
mi s er a ve ... er a g er e n te.. . S e u Mo r á sa i u, fo i e m b o r a, e el e fo i q ue m
f ico u, J o s é So ar e s. Aq u ilo é u m mi s er a ve ... Q u ar q u é b o b a ge zi n ha
ele s u sp i nd ia, p a ga va m ul ta ”. 156

“Ma s e u, gr a ça s a De u s, se mp r e f u i tr a tad a co m d elic ad ez a, q ue e u


ta mb é m não d a va l u g ar a ni n g ué m me c h a mar p o r nad a. ( ...) E l e
[ ‘d r ’ Ra u l, g er e nt e] b r i n ca va mu i to co mi go , não d en tr o d o tr ab a l ho ;
fo r a...” . 157

154
Idem, ibidem.
155
Os senhores Raul Malbouisson e Jesus Moral eram gerentes da Companhia Valença Industrial.
156
D. Benedita do Rosário. Depoimento citado.
157
D. Mariinha. Depoimento citado.
80

A reconstituição dessa dimensão subjetiva dos processos históricos é


uma possibilidade que as fontes orais oferecem de forma singular. Uma de
suas maiores riquezas é a própria oralidade em toda sua substância, com todas
as suas nuances e com seu amplo leque de possibilidades de penetrar em
dimensões do modo de vida de sujeitos, as quais dificilmente seriam
percebidas em outros tipos de fontes.
A oralidade constitui-se, ainda, uma primorosa fonte de comunicação
entre sujeitos – pesquisador (a) e entrevistado (a) – que juntos, ao
construírem o depoimento, constroem um recurso a mais para as descobertas e
conhecimento sobre a complexidade humana. A partir da oralidade, geram-se
novas fontes para a pesquisa, capazes de produzir conhecimentos históricos
que, permeando o âmbito subjetivo das lembranças, permite ao pesquisador
“v er - se d e f r o nte e ap r o xi mar - se b a sta n te d e u m asp ec to ce n tr a l d a
vid a d o s s er e s h u m ano s : o p r o ce s so d a co mu n i caç ão , o
d ese n vo l vi me nto d a l i n g ua g e m, a cr i ação d e u ma p ar te mu i to
i mp o r t a nte d a c u lt ur a e d a e s fer a s i mb ó l ic a h u m an as 158”.

As relações extra-fabris eram, inevitavelmente, permeadas por laços


criados dentro da fábrica, no cotidiano do trabalho. O sindicato e a vila talvez
sejam os exemplos mais lapidares dessa vinculação que deixa tênue a linha
divisória entre o que faz parte das experiências vividas no interior da fábrica
e aquelas vivenciadas fora de suas paredes. Vila e sindicato foram espaços de
convivência extra-fabril, cuja razão de existir era a fábrica. Dessa forma,
mesmo quando se pretende discutir as ex periências e lembranças extra-fabris,
o olhar pode, vez por outra, adentrar a fábrica e buscar em seu interior os
laços, as redes de relações sociais que ali se estabeleceram.
A vila erguida e administrada durante seis décadas pela empresa
constituía a morada, o lar, o espaço mais privado e íntimo dos trabalhadores e
sua família. Entretanto, este vínculo entre empresa e morada operária
repercutiu significativamente na vida dos trabalhadores. Por um lado, era uma
alternativa de habitação desejada e até disputada entre operários. Por outro,
um mecanismo de controle da fábrica sobre seus trabalhadores, estendendo-se
para além do ambiente produtivo. Segundo Marilécia Santos:

158
LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. “Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea”. In:
AMADO, Janaína. e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da História oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2002. pp. 15-25.
81

“A d is cip li na e a o r d e m er a m f u n d a me n ta is p ar a a s eq üê nc ia d a
p r o d uç ão no si s te ma f ab r il e a s si m o co n tr o le s e fe z p r e se nt e e fo i
ut il iz ad o so b d i ve r s as f o r mas , d en tr o e fo r a d o a mb ie n te p r o d ut i vo .
As v il as o p er ár ia s i n ser e m- s e no s q u ad r o s d e m ud a n ça d a es tr a té g ia
p atr o na l e m r el ação à d isc ip l i na d o o p er ar i ad o , q u e p as sa a
e mp r e gar méto d o s p u n it ivo s d i fer e nt es d o s u ti li zad o s at é e n tão 159.”

Os depoimentos reiteram a dificuldade para se obter uma casa na vila e,


se havia restrições ao acesso, é possível inferir que o comportamento do(a)
operário(a) que fosse considerado “adequado” pela fábrica poderia constituir
um fator determinante para se ter acesso ao “benefício” da moradia na vila.
Como analisou Paul Singer:
“E s ta s vi la s ser vi a m a vár io s p r o p ó s ito s : e nc u r tar o tr aj eto e n tr e
mo r ad ia e lo ca l d e tr ab al ho ; a u me n tar a d ep e n d ên cia d o o p er á r io
e m r ela ção à e mp r es a, p o is e m ca so d e ser d e mit id o el e p er d i a
ta nto o e mp r e go q ua n t o o teto ; s up e r vi sio n ar a vid a p r i v ad a d o s
tr ab a l had o r e s : e nq ua n to o s q ue se r e v ela v a m b eb ed o r e s, j o g ad o r e s
o u mu l her e n go s er a m d e sp ed id o s, o s a s sí d uo s ao s s er vi ço s
r eli g io so s , só b r io s e p o up ad o r e s ga n ha v a m p r e fer ê n ci a na s
p r o mo çõ e s” 160.

Esta possibilidade de perder “tanto o emprego quanto o teto” foi


explicitada pelo relato de D. Dalza:

“E u vi ú v a, fiq u ei v i ú va, eu fo r me i tr ê s fi l ho s e ai nd a co ns tr uí u ma
cas i n ha p o r q ue e u t i n h a med o d a Co mp a n h ia, q ue a Co mp a n hi a
q ua nd o a p e s so a sa ía d a f áb r ic a, q ue el a b o t a va a p e s so a p ar a fo r a ,
p er d ia a ca sa , e n tão e u ti n ha med o d e p a gar al u g ue l, d e ne gó c io d e
co n tr a to p r a d ep o i s sa ir . Aí e u d is se : vo u co ns tr uir u ma c as a p r a
q ua nd o me b o tar p r a fo r a e u t er o nd e b o tar a c ab eça 161.”

A dificuldade do acesso exposta na fala de D. América, “era um


protocolo danado, precisava sorte,” revela que casa na vila era uma conquista
ante à necessidade de um teto, cuja obtenção implicava em fazer parte de uma
lista de pretendentes que iam sendo, gradativamente, atendidos. Mas o poder
de persuasão das operárias, em alguns casos, antecipava a consecução da casa.
“Q ua nd o e u vi m p r aí.. . q ue e u p ed i ta n to a ca s a, p ed i ta n to a ca sa,
p ed i ta n to a ca sa... Dr . Zeq u i n ha, u m j o go d ur o , n ão q u er i a me
d ar ... e u c ho r e i ta nt o ... aí ele me d e u e s sa c h av e, sa í d e lá e v i m
mo r ar na r u a 2 .” 162

159
SANTOS, Marilécia Oliveira. A “cidade do bem”: uma escola de disciplina. Extraído de
http://www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos em outubro de 2006.
160
SINGER, Paul. A formação da classe operária no Brasil. São Paulo: Atual; Campinas: UNICAMP, 1988. p.
73.
161
D. Dalza Sarmento Ribeiro. Depoimento citado.
162
D. Vitalina. Depoimento citado.
82

O apelo da ex-operária D.Vitalina oferece visibilidade àquilo que Leite


Lopes denominou de “padrão fábrica com vila operária”, analisado como uma
forma específica de dominação.

“P o is q ue o f ato d e c er ta s i nd ú s tr i as fo r n ec er e m ca sa s a se u s
o p er ár io s, e m co n tr ap ar tid a sej a d e u m a lu g u el ger al me n te
d esco n tad o d o sa lár io , s ej a d a s o b r i ga çõ e s eco nô mi ca s e não
eco nô mi ca s g er a l me n t e não e xp li ci tad a s e m co ntr a to , ma s
in co r p o r ad as ao co mp o r ta me n to d o s o p er á r i o s co mo p ar t e d as
r eg r a s d o j o go , s i g ni f ic a d e fa to u ma i nt er fer ê nc ia d ir e ta e v i sí ve l
d a ad mi n is tr a ção d a f á b r ica so b r e a v id a so c ial e xtr a - f ab r il d o s
tr ab a l had o r e s 163.”

Porém, o teor dos depoimentos não permite afirmar que a maioria das
operárias compreendesse a vila como um prolongamento do universo fabril 164 ,
instrumento de controle e pressão, inclusive, pressão política em época de
eleições para favorecer com o voto dos operários a este ou àquele candidato,
como testemunha D. Benedita:

“Q ua nd o c he g a va te mp o d e ele ição aq u ele s af ad o d aq uel e Z é


So ar e s ( ...) q uer ia q u e as p e sso a vo ta ss e p á q u e m e le q u i se s se. Aí
aq u i t a va co ns er t a nd o .. . a ca s a, t a va co n s er ta nd o a ca sa , e e le
q uer ia q u e e u vo r ta ss e, vo t a ss e p á u m ta l E r a ld o T ino co – ai nd a é
vi v o es se sa fad o – co mo e u não q u i s vo tar p á E r ald o T ino co , o
ma ter ia l q u e ta v a aq ui ele ma nd o u p e g ar to d o e le vo u p o r q ue não
vo t ei. ”

Ao invés de uma possível consciência acerca de uma dominação ou


controle por parte da fábrica, prevalecem, na maioria dos depoimentos
referentes à vila, dois elementos: o primeiro, os laços de amizade e
solidariedade, que se construíram entre seus moradores; o segundo, a
possibilidade de uma moradia digna, a preços acessíveis. As despesas
incluíam, para as moradoras da Vila, o pagamento do aluguel da casa, o qual
já incluía taxa pelo consumo de água e energia elétrica, ambas fornecidas pela
própria fábrica. Era um valor que, segundo as próprias depoentes, era
irrisório, “uma ridicularia” como expressou D. Naninha. Com ela corroboram
outras testemunhas:

163
LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na “Cidade das Chaminés”. São Paulo: Marco
Zero / Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1988. p. 17.
164
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Cotidiano de trabalhadores na República – São Paulo 1889/1940.
São Paulo: Brasiliense, 1989.
83

“P a g a va d o is mi r éi s... p ag a va p o r se ma na. .. E r a p o r s e ma n a o u p o r
mê s? E r a p o r se ma na. Q ua nd o d e sco nt a... q ua nd o ga n ha v a, n ão
sab e? O d i n he ir o d a ca s a vi n h a d es co nt ad o . Ma s p aga v a a ca sa co m
ág u a, l uz, t ud o . P a ga va u ma c as a, co m á g ua, co m l uz ... d o i s mi r éi s
( ...) [ a ca sa] er a d a fáb r i ca” 165.

O valor do aluguel cobrado – previamente descontado no “envelope” –


era bastante acessível, ainda mais, pelo fato de cobrir, como já se disse, as
despesas da habitação com água e energia elétrica, de acordo com depoimento
já citado. Mais tarde, a casa tornou-se propriedade dos operários, que a
adquiriam mediante negociação com o gerente e pagamento do valor
estipulado pela Companhia. Segundo D. Benedita, uma cobrança indevida:

“Dep o is ... a go r a d ep o i s u ns a no a í fo i q ue e s se s a fad o d e s se Zé


So ar e s i n ve n to u d e ve nd er a s ca sa, ma s a s c asa n ão er a p á ser
ve nd id a. E r a p á co m d e z ano d o ... o o p er ár io t i v es se n a ca sa g a n har
a ca sa. ”

Mesmo considerando razoável o pagamento do aluguel da casa na vila –


quando recebiam o salário da semana, “o envelope”, que já trazia este valor
descontado – muito pouco restava para suprir as necessidades domésticas.
“Naq ue le t e mp o a g e nt e ti n ha nad a, me ni n a? Naq ue le te mp o er a
tud o p o b r e. Co zi n h a va d e no i te p r a co mer n o o utr o d ia, aq u el a
b o b ag e, aq uel a p a nel i n h a, u m b ucad i n ho d e f eij ão , u m b ucad i n ho ...
u m p ed ac i n ho d e car n e.”

“E u vi v ia co me nd o no me u p o vo , né? Co mi a... n aq uel e t e mp o t ud o


er a b ar a to ... er a... co mp r a va aq ue la s b o b a g e... não d a va p r a
nad a” 166.

“E r a só feij ão e f ar i n ha , mi n h a fi a. Ar r o z n ão t i n ha ... er a só fe ij ão
e f ar i n h a. M e us f i l ho , o p ão d e ma n h ã er a d o n ze lo , o p ão n ão t i n ha
ma n te i ga” 167.

A cesta básica da família das operárias era essencialmente composta por


feijão, farinha de mandioca, carne seca, café e pão. Peixes baratos, como
pipira e massambê 168, pescados abundantemente nos arredores da cidade,
substituíam a carne bovina nas refeições diárias. Esta era um luxo esporádico,
geralmente reservado para os domingos. A carne de frango, também rara,

165
D. Benedita. Depoimento citado.
166
Idem.
167
D. Vitalina. Depoimento citado.
168
Pipira e massambê são peixes marítimos, muito comuns no comércio de pescados da cidade. Geralmente
vendidos a preços módicos por se tratarem de “peixes miúdos”, como popularmente são adjetivados.
84

ficava reservada para os dias de festa, como São João e Natal. Diante das
dificuldades, o acesso aos pescados que a cidade oferecia constituía uma boa
opção alimentar, como relata D. Zélia: “Eu tenho que dar graças a Deus que
inda tenho pipira pra dá a meus filho, que eles não vão ficar comeno feijão
puro” 169.

As outras despesas – com vestuário e a educação dos filhos – eram


administradas ainda com mais dificuldade. A educação formal dos filhos era
preocupação constante, sempre presente nas entrevistas. Mesmo em meio às
dificuldades, a maioria das operárias percebia a importância de assegurar aos
filhos a oportunidade – que elas não tiveram – de estudar. Porém, mantê-los
na escola exigia maiores gastos com fardamento e material escolar, que, por
mínimos que fossem, já que eram escolas públicas que eles freqüentavam,
representava mais uma despesa a ser administrada.

Comprava-se roupa, ou mais comumente tecido para cosê-las, apenas


em caso de extrema necessidade, como, por exemplo, quando determinada
peça já não cabia na criança, ou, para compor o uniforme escolar. Tecidos
confeccionados na fábrica eram de uso corrente, o que caracterizava e
discriminava os operários e seus filhos, face às categorias sociais um pouco
mais abastadas, pois “... tinha família que não queria saber de operário, que
dirá pra chegar em uma loja comprar, ver o pano que eu vestia e comprar
igual” 170.
No depoimento de operários e operárias da C.V.I. as narrativas relatam
de forma bastante significativa o valor que esses sujeitos davam às relações
de coleguismo, de amizade e solidariedade que se consolidaram no interior da
fábrica, se estenderam para fora dela e se perpetuaram como uma lembrança
agradável presente nas falas das depoentes. Ao relembrarem e relatarem suas
experiências, abrem um caminho de questionamentos sobre o trabalho fabril,
as relações de poder, as redes de solidariedade, as estratégias de
sobrevivência e de superação das dificuldades, enfim, a teia de relações
sociais que permearam a vida desses indivíduos circunscritos em um tempo e
em um espaço históricos.

169
D. Zélia Paixão. Depoimento citado.
170
Depoimento da sra. Leonor Gomes Negrão. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada
em1999, aos 80 anos.
85

“E r a ó ti mo . Mi n h as co l eg a d e tr ab a l ho er a ma r av il ho sa . S ão t ud o
b o a, mi n h a f il ha , mi n ha s co l e g ui n ha d e t r ab al ho , er a t ud o
ca mar ad i n ha , g e nte b o a. Não t e n ho o q ue d izer d a s mi n ha s
co le ga ”. 171

No depoimento de D. Naninha, como em outros, são sinalizados outros


elementos das relações que envolviam aqueles sujeitos sociais: a boa
convivência expressa nas palavras da ex-operária é um indicativo de que a
rede de solidariedade e de amizade tecida no ambiente fabril era um dado
significativo.

A memória dessas relações permeia as lembranças e as falas desses


indivíduos que, ao compartilhar as vivências cotidianas do trabalho, não raras
vezes, convertiam tal partilha em estratégias para amenizar as tensões e
dificuldades, burlar a fiscalização e o enquadramento disciplinar impostos por
seus superiores, e vencer obstáculos que garantissem a sua permanência no
emprego. Esta rede intrincada de solidariedade e cumplicidade foi
patentemente expressa por D. Aída:
“E u co m q ui nz e d i a ap r end i lo go tr ab al h ar . F ui tr ab a l har co m u ma
máq u i na só . E a v izi n h a mi n ha, d e j u nto , a í q ua nd o e u não s ab i a e u
ch a ma va e la es co nd id o d o fi sc al, aí e la: é as si m, a s si m. Aí sa ía
lo g o p r a o f i sca l não ver ”. 172

Fora da fábrica, a convivência na Vila era amistosa, marcada pelas


conversas na porta, pelo companheirismo nas idas e vindas do trabalho, pela
solidariedade entre os vizinhos. Isso ficou patente em todos os depoimentos,
entre os quais o de D. Aída é o mais representativo:

“E u e o s vi zi n ho n u nc a ti ve d i s i nte nd i me n to , g r aça s a De u s. Aq ui
to d o mu nd o é u nid o , aq ui na v ila . T e m ta n ta ge nt e q u e q u er mo r ar
na Vi la. T e m mu i ta g e nt e q u e q uer mo r ar aq u i n a v il a. P o r q ue aq u i
não s e... q ua nd o gr i ta u ma a c as a fi ca a s si m ó . Q ua nd o me u fi l ho
mo r r e u a cas a f ico u a s si m ó d e ge n te. M e u f il ho tr ab al ho u t a mb é m
na f áb r i ca. ”

As lembranças das boas relações com os vizinhos afloram nos


depoimentos das operárias, especialmente entre aquelas que compartilhavam,
além das rotinas do trabalho fabril, a convivência no conjunto habitacional da
vila operária. Muitas delas fazem referência a colegas de trabalho chamando-

171
D. Naninha. Depoimento citado.
172
Depoimento da sra. Aída Santos Barbosa. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em
1999, aos 72 anos.
86

as de “minha comadre”, o que revela um estreitamento dos laços através das


relações de compadrio.

As atitudes solidárias entre os vizinhos no caso de doença ou


falecimento de parentes, expressas no relato de D. Aída quando diz que “a
casa fica assim ó” – a fala acompanhada do gesto de bater as pontas dos
dedos da mão para dar idéia da presença de uma grande quantidade de pessoas
– também se reavivaram em outros depoimentos, confirmando a existência de
uma rede de relações em que a partilha, tanto das alegrias quanto das
dificuldades, ajuda a tecer os fios das características específicas do grupo de
operários(as) estudado.

Tais relações, inscritas na dinâmica da cotidianidade, constituem os


fios da tessitura em que indivíduos adquirem o estatuto de sujeitos históricos.
A História Social oferece instrumentos que possibilitam ao historiador
apreender o potencial desse imenso cenário que é o cotidiano e, ampliando os
horizontes temáticos, abstrair os sujeitos da vida por eles mesmos criada, ou
seja, analisá-los a partir da perspectiva do cotidiano, ele que é, segundo
Agnes Heller, “a verdadeira ‘essência’ da substância social”. 173
As vivências inscritas no cotidiano são reavivadas pela memória que,
mediando as experiências passadas em sua relação com o presente, faz aflorar
uma vastidão de significados acerca do tempo vivido. Mais do que um
processo parcial e limitado de recordar fatos passados, a memória funda-se na
construção de referências sobre o passado e o presente de indivíduos e/ou
grupos sociais que, de um lado, estão ancorados nas tradições; de outro,
intimamente associados a mudanças culturais. Desse modo, memória e
oralidade constituem instrumentos preciosos para o trabalho do historiador
que pretende desvelar universos individuais e sociais – trabalho, cultura, vida
cotidiana... – de agentes sociais populares, a partir daqueles que os
vivenciaram.
Nesse sentido, ao penetrar na memória das (os) operárias (os) da C.V. I.,
pisa-se em uma seara instigante e desafiadora, que nega a rigidez cronológica
e a linearidade, que é marcada por oscilações que envolvem a lembrança e o

173
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1985, p. 20.
87

esquecimento, subjetividades coletivamente construídas, o passado e sua


recriação em um outro momento: o presente, com todas as suas contingências.
De acordo com Maurice Halbwachs, 174 a memória é sempre permeada
por uma essência coletiva, ainda que o ato de rememoração seja subjetivo e
individual, uma vez que nenhum sujeito histórico é isolado; ele é
essencialmente social, e suas experiências/vivências são social e
coletivamente construídas. Observe-se, por exemplo, a fala de D. Mariinha:
“ E u e s t a v a n a e s c o l a n e s s e t e mp o c o m p r o f e s s o r a D o r i n h a , a í fo i f a l t a n d o
a s c o i s a s p o r q u e p a p a i j á t i n h a s a í d o ( . . . ) p o r mo t i v o d e d o e n ç a ( . . . ) . T i t i a
t a mb é m n ã o t i n h a s a ú d e p e r f e i t a e e r a p e s s o a d e n o v e n t a e t a n t o s a n o s .
M i n h a m ã e . . . M e u p a i . . . M e u p a i mo r r e u i a f a z e r 9 9 a n o s , e s s e , d e
criação. Aí ficou... eu peguei e disse... Aí eu peguei e disse ‘eu não quero
m a i s i r p a r a a e s c o l a , e u q u e r o t r a b a l h a r ’ ” . 175

As lembranças que emergem de sua memória situa-a socialmente em


uma série de coletividades: a família – a partir da qual constrói a explicação
para sua inserção no mundo fabril; a escola – espaço social cuja permanência
foi “sacrificada” em favor da luta pela sobrevivência, luta essa que sugere a
possibilidade de sua inserção em um novo espaço de vivência coletiva que é o
mundo do trabalho. Uma tal abordagem em relação à memória pode exigir um
certo exercício de reflexão quanto àquilo que Henry Rousso chamou de
“obstáculo teórico”, uma vez que:
“Se o c ar át er co l et i vo d e to d a me mó r ia i nd iv id ua l no s p a r ec e
ev id e n te, o me s mo não se p o d e d iz er d a id éia d e q ue e x is te u ma
‘ me mó r i a co le ti v a ’, i sto é u ma p r e se n ça e p o r tan to u ma
r ep r e se nt ação d o p a s sa d o q u e sej a m co mp ar ti lh ad a s no s me s mo s
ter mo s p o r to d a u ma co l eti v id ad e ”. 176

Entretanto, essa “aura” coletiva que permeia a memória não pretende –


nem poderia – uniformizá-la. Se é fato que cada indivíduo é essencialmente
social, é fato também que sua presença na sociedade ocupa e marca um lugar
que lhe é exclusivo. Suas reminiscências, ou aquilo que dentre elas seleciona
e decide explicitar, bem como, as maneiras de expressá-las apresentam um
inconfundível traço de subjetividade que aqui pode ser compreendida como
individualidade. Segundo Halbwachs:

“Ha ve r ia e n tão , na b as e d e to d a a le mb r a nç a , o c h a mad o a u m


es tad o d e co n s ciê n ci a p ur a me nt e i nd i v id ual q ue – p ar a d is ti n g u i -lo

174
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
175
D. Mariinha. Depoimento citado.
176
ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era”. In: AMADO, Janaína. e FERREIRA, Marieta de
Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.
88

d as p e r cep çõ e s o nd e e n t r a m ta n to s e le me n to s d o p en sa me nto so cia l


– ad mi tir e mo s q ue se c h a me i n t ui ção s e ns í ve l”. 177

Dessa forma, memória individual e memória coletiva estão atreladas,


pois que são geradas nas inter-relações que cada sujeito trava com as esferas
sociais de que participa.

Concordando com Henry Rousso, a memória “constitui um elemento


essencial da identidade, da percepção de si e dos outros”. 178 Trabalhar com as
experiências rememoradas por ex-operárias (os) de uma fábrica têxtil –
memórias recompostas com a sensibilidade do presente sobre o seu passado –
constitui uma oportunidade de descortinar histórias de vida, comportamentos,
visões de mundo de sujeitos que, sendo agentes de sua história, fazem parte
da trama social de um tempo, de um lugar e de um conjunto de relações, e que
imprimem sua “marca” na sociedade em que vivem/viveram e são, ao mesmo
tempo, marcadas (os) por ela e dela são sinais.

O papel da memória nos estudos históricos tem sido, pois, um papel


“subversor”. Para além dos debates teórico-metodológicos, o fato é que ela
vem – para usar uma expressão de Alistair Thomson – “subvertendo a
179
história” e assumindo relevância significativa nas produções históricas. Ao
fazê-lo, o historiador alarga as noções de evidência histórica, incluindo as
fontes orais como válidas para os estudos da história social e cultural. Nas
palavras de Thomson:

“. .. não ser ia d e ma is a f ir mar q u e a hi s tó r i a o r a l – j u n ta me n te co m


o ut r o s ar t e fa to s, d ad o s e ‘ te x to s ’ c ul t ur a i s – p r o vo u - se cr uci al p ar a
o p r o ce sso d e s up er ar no çõ es co n ve n cio na i s acer c a d o q ue v ale
co mo hi stó r ia e, p o r ta n t o , d o q ue a hi stó r ia p o d e co nt ar ”. 180

Assim, as recordações e narrativas das ex-operárias (os) da C.V. I.


tornaram-se fontes para responder aos questionamentos sobre a vida
cotidiana, o trabalho operário, as relações de poder, de solidariedade e de
disputas, as ações e relações no ambiente doméstico.
177
HALBWACHS, Maurice. Op cit. p. 37.
178
ROUSSO, Henry. Op. cit. p. 95.
179
THOMSON, Alistair. , FRISCH, Michael. e HAMILTON, Paula. “Os debates sobre memória e história:
alguns aspectos internacionais”. In: AMADO, Janaína. e FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos
da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.
180
THOMSON, Alistair. Op. cit. p. 76.
89

São questões que perpassam a ex periência de sujeitos, cujas


visões/impressões dificilmente estão registradas em documentos escritos,
como, por exemplo, esse registro no testemunho de D. Dalza:

“A ge n te não t i n ha te mp o ne m d e s e e nco st ar p o r q ue é p r a o l h ar a s
máq u i na na fr e nte , a tr ás. Al i é u m tr ab a l ho d e r o d ar me s mo .
Q ua nd o e u c he g a va e m casa e u j á não d a v a ma i s p r a nad a. ( . ..)
T r ab alh a va na fáb r ic a, tr ab a l ha va e m ca sa e er a u ma vid a d e
co r r er i a. ( ...) E u me a ca b av a me s mo p r a p o d er .. . p o r q u e no d ia, n a
se ma n a q ue e u ga n h a va p o u co me u s f il ho n ão ti n ha d i n he ir o ne m
p r a co mp r a r u ma mer e nd a ( ...) ” . 181

Despontam nas lembranças de D. Dalza uma série de elementos que


compunham aquele universo social: as exigências e condições para a
realização do trabalho na tecelagem, as dificuldades em administrar a dupla
jornada de trabalho – na fábrica e em casa - , as características da relação de
trabalho que estabelecia, por exemplo, o ganho por produtividade, as
motivações para se dedicar ao máximo de sua capacidade produtiva expressa
em “eu me acabava mesmo”, para garantir a satisfação das necessidades de
seus filhos.

A rotina doméstica exigia uma reorganização que permitisse conciliar o


trabalho na Companhia e a vida familiar. Nos discursos das operárias, a
família – seja aquela em que nasceu ou aquela que constituiu – figurava como
elemento motivador para a própria inserção no mundo do trabalho. Por
mínimas que fossem as condições de sobrevivência, as operárias atribuíam à
fábrica a possibilidade de manter o sustento, ainda que precário, da família:
“E u es ta va na e s co la n es se t e mp o ( ...) a í fo i fa lta nd o a s co is a s
p o r q ue p ap ai j á t i n ha s a íd o ( .. .) Me u p ai.. . me u p ai mo r r e u ia faz er
9 9 ano s, e s se, d e cr i aç ão . Aí f ico u.. . e u p e g u ei e d i s se. .. Aí e u
p eg u ei e d i s se ‘ e u n ã o q uer o mai s ir p ar a a esco la, e u q uer o
tr ab a l har 182’. ”

“Gr a ça s a De u s, lá cr ie i me u s f il ho ! ” 183

Se, em nome da subsistência da família, homens e mulheres convertiam-


se em operários e operárias, imperava – especialmente no caso das operárias –

181
D. Dalza Sarmento Ribeiro. Depoimento citado.
182
D. Mariinha. Depoimento citado.
183
D. Júlia Brasília Conceição, 82 anos. Ex-operária aposentada, residente em Valença. Entrevistada em 2002,
aos 80 anos.
90

a necessidade de se criar alternativas e meios de conciliar o universo fabril e


o doméstico:
“Ma s naq ue la ép o ca e u me le va n ta v a ci n co ho r as d a ma n h ã p o r q ue
eu t i n ha co mi go sa ir , d e ix ar mi n h a ca ma , q ue D eu s me d e u naq ue la
ép o ca, f o r r ad i n ha co m le nço l q u e D e us me d e u, q ue er a u m
le nço lzi n ho d e al go d ão z in h o co m b ico d e cr o c h ê, co m es s as co i sa s
to d a s, ma s t ud o li mp i n ho , d o b r ad i n ho ( ... ) Co zi n ha va d e vé sp er a ,
p o r q ue fo go d e l e n ha ! É ! Fo go d e le n ha é b r i nc ad ei r a? ( ...) M as
naq u ela ép o c a, e u d ei x av a, j á d e i xa va mi n h a b ó ia p r o n ta. ( ...) E u
ch e ga va q ua tr o e q u i n ze d a tar d e , ti n ha mu i to te mp o . Aí e u ia
var r er a ca sa to d a , b o t a va lo go á g ua no fo go p r a e sq ue nt ar p r a d ar
b an ho [ no s fi l ho s] , fa zia lo go ca f é... 184”.

Deixar filhos em casa, com uma assistência limitada e definida pelos


ditames do relógio, do apito e do trabalho fabril era um dos muitos
contratempos que a mulher operária enfrentava no seu cotidiano. A vida se
tornava uma constante corrida contra o tempo, o que causava fadiga e
descontentamento.

Ao sinal do apito, que soava três vezes convocando os operários e


operárias, um novo dia de labuta começava. A jornada de trabalho feminina se
iniciava cedo, em casa, preparando café da manhã que nem sempre podia
tomar, arrumando filhos para encaminhá-los para escola ou creche 185,
tomando, enfim, as primeiras providências domésticas sob sua
responsabilidade. Prolongava-se, depois, no ambiente fabril, sob o controle, a
vigilância e exigências que cercavam seu trabalho. E se estendia, ainda, numa
outra jornada doméstica, noturna, quando se ia preparar comida para o dia
seguinte, cuidar da higiene da casa, acompanhar as atividades escolares dos
filhos.
“L a va v a d e no i te, co zi n ha v a d e no ite , f azi a mi n ha s co i s a t ud o d e
no i te p r a d e ma n h ã tá e m fo r ma p r a tr ab a l har . Car r e ga va me u s f il ho
tud o p r a cr ec he. A me t ad e d o s me u s fi l ho s f o i tud o cr i ad o d e n tr o
d e u ma cr ec he, aí d a m es ma Co mp a n h ia. M e u s f il ho s fo i cr i ad o a
me tad e l á. A al i me n ta çã o sa ía d a mi n h a c as a p r a ele s. ” 186

184
D. América da Conceição. Depoimento citado.
185
O relatório da Direção, apresentado à Assembléia de acionistas em 15 de março de 1940, confirma a
existência da creche, argumentando ser “Motivo de attenção e especial cuidado tem sido sempre para nós a fiel
observância das leis sociaes, e assim vimos, dentro das nossas possibilidades, contribuindo com a assistência
devida no (...) amparo e carinho aos filhos dos que trabalham, e que são entregues aos desvelos de pessoal
habilitado em nossa Creche.”
186
D. Naninha. Depoimento citado.
91

“À no i te me s mo , e u b o ta va e le s t ud o [ o s fi l h o s] p r a e st ud ar p r o
o ut r o d i a...” 187

Os depoimentos das operárias revelam o que Ana Paula Vosne Martins


chamou de “adequação à ideologia da domesticidade” 188, reforçando os papéis
normativos de gêneros socialmente construídos, segundo os quais a esfera
doméstica seria intrinsecamente feminina. A fala das entrevistadas continha
uma naturalidade, uma aceitação dos papéis de gênero socialmente
estabelecidos, de modo que, em nenhum momento, essa exclusividade
feminina sobre os afazeres doméstico foi questionada. Ao contrário, a
expressão “tinha muito tempo” dita por D. América demonstra que na rotina
feminina havia uma espécie de cronograma das atividades fabris e domésticas,
que se cumpria quase que naturalmente.
Em muitos casos, as tarefas domésticas se acumulavam para o final de
semana, isto é, para o domingo, o que impossibilitava o necessário descanso e
o lazer.
“E u l a va va er a r o up a ! J u nt a va a r o up a d a se ma na to d a. E u l a va va
as mi ú d a d ia d e se ma na , q ua nd o er a d ia d e d o mi n g o er a p r a la var
r o up a ” 189.

“Di a d e d o mi n go la va v a r o up a. E r a ! L a va va r o up a d e ma n h ã, q u e
eu ti n ha fo n te no q ui n t al, a í la v a va r o up a d e ma n h ã. As p e ça q ue
p r eci sa v a fic ar no s ab ão aí d e i xa va q u ar a nd o , p o r q u e s e u s a va
q uar ar r o up a, aí d ei xa v a q u ar a nd o s e ti n h a u ma ma n c ha d e
azei te, u ma co i sa q ua lq u er ti n ha q ue q uar ar p r a o so l co mer aq u ilo
ali. Aí d e i xa va j á no s eg u nd o s ab ão p r a no o ut r o d i a d e ma n h ã,
aco r d a va ced o , ti n ha fo nt e no q ui n tal , e n x a g ua va, j á d ei x a va t ud o
na s co r d a 190”.

Nessas circunstâncias, mecanismos de reelaboração da situação


concretamente vivida convertiam a dureza do trabalho de domingo em
oportunidade de descontração. Lavar roupa, por exemplo, enormes trouxas de
roupas lavadas na “fonte” – córregos, riachos ou cachoeiras da cidade – dada
à escassez de água nas casas, constituía-se para as operárias num momento
singular de conversa com as amigas (o trabalho era, em geral, feito em
grupo), de tomar um banho de rio, de aproveitar a companhia dos filhos que,

187
D. Mariinha. Depoimento citado.
188
MARTINS, Ana Paula Vosne. “Memórias maternas: experiências da maternidade na transição do parto
doméstico para o parto hospitalar”. In: Revista de História Oral. Rio de Janeiro: v. 8, p. 61-76, 2006.
189
D. Dalza. Depoimento citado.
190
D. América da Conceição. Depoimento citado.
92

muitas vezes, as acompanhavam. Em circunstâncias assim, rompia-se com o


ritmo e as imposições do trabalho fabril.

Além das tarefas de casa – limpar, cozinhar, arrumar – cuidar dos filhos
era uma outra atividade atribuída à mulher operária, com a qual ela lidava
com alguns embaraços. Em alguns casos, contava-se com parentes, geralmente
as avós ou filhas mais velhas, com vizinhas, ou, mais raramente, com o pai
da(s) criança(s).
“. .. q ue er a p á q ua nd o e u tá e m ca s a, e le [ o mar id o ] t á tr ab al h a nd o ,
q ua nd o e u ta v a t r ab a l h and o , e le ta v a e m ca s a. Me u s f il ho s n u nca
f icar a m so z i n ho não . ” 191.

[ o s f il ho s] a h, d ei x a va e nt r e g ue a De u s e ao p o v o . E u sa ía, d ei x a va,
p o r q ue se mp r e ti n h a aq ue la s p e sso as q ue a ge n te d ei x a va o s fi l ho s
p r a to ma r co nt a. E a g en te p a ga va to d a se ma na, q ue e u n ão me
le mb r o ma is t a mb é m q u an to er a q ue e u p a ga va . Aí fo i p as sa nd o o
te mp o , fo i p a ss a nd o o t e mp o , a í u m, o s q u e er a maio r fo i to ma nd o
co n ta d o s me n o r d e n tr o d e ca sa e vi v ia e ntr e g ue a D e us 192”..

Uma outra alternativa era a creche, que acabava por tornar-se mais um
laço que atrelava o(a) trabalhador(a) à fábrica. Mas era a alternativa mais
viável para as operárias, que nem sempre tinham com quem deixar os filhos,
como aconteceu com D. Naninha: “Carregava meus filho tudo pra creche”

A rotina desgastante caracterizou a vida das operárias ao longo dos


anos em que estiveram empregadas na fábrica. Muitas delas, especialmente as
mais antigas dentre as entrevistadas, se aposentaram depois de 30, 35 anos de
trabalho, todos e cada um deles vividos assim: correndo contra o tempo, numa
dupla jornada de trabalho que varava os finais de semana, sem alimentar
ambições pessoais de estudar ou buscar outra alternativa de trabalho. Estar na
fábrica parecia ser a melhor, senão a única opção, pois o que elas entendiam
como o mais importante da vida era a sobrevivência mesma, cotidianamente
garantida, mínima que fosse, graças àquele trabalho.

Garantir a manutenção do emprego era, portanto, vital, o que talvez


explique posições como a enfatizada na fala de D. Mariinha, bem como, a
sujeição ao ritmo intenso de trabalho que lhes obrigava a conciliar, com
dificuldade, casa e fábrica.

191
D. Naninha.Depoimento citado.
192
D. América da Conceição. Depoimento citado.
93

“. .. o s e n ho r sab e q ual é o me u p ar tid o ? É a Co mp a n h ia Val e nça


I nd u str ia l. Sab e q u e m s ão me u s ca nd id a to ? São as q u atr o má q ui n a
q ue e u t r ab a l ho , q ue é d ela s q ue e u v i vo ...” 193

Assim, nos depoimentos das mulheres trabalhadoras da C.V. I. se tornam


mais visíveis tanto as dificuldades advindas dessa “dupla jornada” de
trabalho, como as reelaborações e alternativas construídas no cotidiano
doméstico e comunitário para superar os percalços.

As atividades de lazer quase que não figuram nos depoimentos. Quando


questionadas a este respeito, a resposta imediata traz à tona as conversas com
vizinhos e parentes nas portas de casa, como relatou D. América:

“Ah , p r a se d i s tr a ir ... o l he, n u m te mp o q ue não t in h a te le vi são ... er a


hi s tó r i a, se n tad a na p o r ta p r a co nta r h is tó r i a n o ite d e l ua , q u e as
lu ze s er a mu i to p o u ca q ue ti n ha , n ão er a e m to d a r ua q ue t i n ha
lâ mp ad a. E nt ão a vid a er a es s a: co n tar hi stó r ia até no v e ho r a, p o r
aí a s si m. ‘V ai d o r mir q u e a ma n h ã é d ia d e tr ab al ho ! ’ 194

As raras possibilidades de lazer que quebravam essa rotina – em que o


trabalho era o elemento dosador do tempo das conversas descontraídas na
porta de casa – eram aproveitadas com euforia, e uma das mais
representativas formas de diversão, que rompia drasticamente com a rígida
rotina de trabalho eram as festas na Recreativa, especialmente, o Carnaval.

A Recreativa era uma espécie de clube dos operários, cujo prédio fora
inaugurado em 1929 e doado para instalação do Sindicato dos Trabalhadores
de Fiação e Tecelagem no ano de 1953 195 , onde aconteciam atividades de
lazer, como jogos de dominó e os bailes de carnaval e micareta 196 e outras
festividades, recordados com saudade por D. Naninha:

“As fe st a d a r ecr e at i va er a b o a. A ge nt e ia b eb er , d a n çar


ma s car ad o . Só b r i ncar ... só b r i n car . Só al e gr i a... er a só ale g r ia. .. só
ale gr ia.. . Ah ! E u saí e m mu i to co r d ão , sa í mu i to e m gr up o ... ”

As boas recordações de D. Naninha são compartilhadas por outras


operárias. No relato de D. América:

193
D. Mariinha. Depoimento citado.
194
D. América da Conceição. Depoimento citado.
195
FONSECA, Arlindo Paes da. op. cit.
196
A micareta é uma espécie de carnaval fora de época que acontecia anualmente em Valença, geralmente alguns
meses depois do Carnaval oficial.
94

“T i n ha fe st a q ue er a só p r o ... er a só ... a Recr eat iv a n u ma b o a ép o ca


só er a d o s o p er ár io . T o d as a s fe s ta b o a q u e ti n ha e ta l er a d o s
o p er ár io s. ( ...) a nt i ga me nt e er a, q ue t ud o er a d e c id id o lá.”

As lembranças dos carnavais apareceram com bastante força e, segundo


os relatos até mesmo os operários que estavam cumprindo turno de trabalho
na fábrica criavam meios de não estar de todo excluídos da festa:
fantasiavam-se e percorriam as seções cantando, dançando, jogando talco uns
nos outros, criando um momento único no interior da empresa.

Burlava-se a fiscalização para adentrar a fábrica portando os objetos


necessários para a folia. A adesão era grande, embora alguns, temerosos, não
participassem. Em alguns casos, até os mestres eram envolvidos pela
brincadeira. É o que nos revela a fala de D. Dalva:

“A ge n te, no te mp o d e car na vá , j o g a va t ar co ne ci ma d e le s [ o s
ger e nt es] , q ue ele s e ntr av a d e n tr o d a f áb r i ca a ge n te e nc h ia e le s
to d o d e tar co .”

Leite Lopes analisa este “clima de reinvenção criativa” da fábrica ao


estudar as experiências de operários da cidade pernambucana de Paulista e
considera que:

“Co n f i nad a s a p o uco s d ia s p o r ano , e s sa s f es ta s tê m, no e n ta nto , a


ver co m u m cl i ma co t id i ano d e ntr o d a f áb r ic a. E s se c li ma co t id ia no
es tá i n tr i n se ca me n te li gad o a u ma co nc ep ção d e tr ab a l ho , q ue
in cl u i ta nto a co n str u ção d a s u p o r tab il id ad e d as co nd içõ e s d e
tr ab a l ho f ab r i s, q ua nto p ad r õ e s de so ciab il id ad e s e ntr e
co mp a n he ir o s d e tr ab al h o s ub me t id o s ao p o d er d a ad mi n i s tr aç ão d a
fáb r ic a. E s sa i nco r p o r a ção a n ti tét ic a d a fe s ta no co tid ia no r e ve la -
no s u ma fa ce o c ul ta d o p r ó p r io tr ab a l ho f ab r i l t al co mo e le s e p a s sa
co n cr e ta me n te p ar a o s o p er ár io s d e car n e e o s so : a b us ca d a
tr a n s fo r ma ção d a mo no t o ni a d o tr ab al ho , me s mo q ua nd o há o r g u l ho
no tr ab a l ho b e m f ei t o e n a p r o fi s são , e m a co nt eci me nto s
in e sp er ad o s, e m mo ti vo p ar a b r i n cad e ir a , e m co n ver s a 197.”

Aparentemente, as manifestações culturais do povo, ao invadirem os


portões da fábrica, não provocavam maiores conflitos em relação aos patrões.
De acordo com o que se pode apreender do depoimento de D. Dalva, mesmo
os gerentes acabavam sendo enredados pela festa carnavalesca ímpar que
acontecia dentro da Companhia.

197
LOPES, José Sérgio Leite. Op. cit. pp. 82-83.
95

É possível que tal concessão tivesse o propósito de permitir um


momento limitado e determinado de descontração, com vista a aliviar as
tensões e, conseqüentemente, contar com trabalhadores mais satisfeitos e, por
isso, mais produtivos.

Um interessante processo dialético se revela: os operários apreendem a


sua realidade, nela abrindo brechas para se contraporem à sua rigidez; os
patrões apreendem as manifestações dessa contraposição e converte-as em
instrumento de exploração do trabalho.

Há um outro traço marcante na história dessas mulheres para as quais a


devoção e a fé eram um sustentáculo e contribuía enormemente para ajudá-las
a suportar a labuta: a festa de Nossa Senhora do Amparo, padroeira dos
operários.

“Eu olhava pra Nossa Senhora do Amparo pedino que ela me ajude que
e u s a i a v i v a d a q u i , c h e g a s s e a h o r a q u e e u m e a p o s e n t a s s e ” 198.

A Festa do Amparo era organizada por uma comissão que incluía


representantes dos operários da fábrica, com destaque para a participação
feminina. Segundo D. América, os trabalhadores contribuíam, inclusive, com
recursos financeiros para o evento:

“O s o p er ár io p a ga va .. p ag a va... er a d e sco n tad o no e n velo p e aq u ela


fr a ção z i n ha q ue e u n ão me le mb r o o d i n he ir o na ép o c a... a ge nt e
p ag a va o a no i n teir o p r a p o d er c us tea r t ud o d a fe s ta, e o q ue i a
fa zer d e li mp eza n a i gr e j a, es sa s co i sa t ud o ( ...) T in ha Mo ça zi n h a...
T in ha mu i ta ge n te [ na c o mis s ão d e o r g a niz ação d a fe st a] , ma s q ue
eu me le mb r o d aq ue la b o a ép o c a a i nd a é Mo ç azi n ha . ( ... ) T i n ha
mu i ta ge n te q ue tr ab al h av a na Co mp a n hi a V al e nç a e er a d a d ir eç ão
d a I gr ej a N o s sa S e n ho r a d o Amp ar o 199.”

A Festa do Amparo, o maior evento religioso da cidade, era ocasião de


adquirir roupa nova. Esse fato dá uma mostra da importância que a devoção à
Santa tinha no universo operário da cidade. Economizava-se, reorganizava-se
o orçamento doméstico, fazia-se hora extra, adquiria-se empréstimo, tudo para
se comprar tecido e coser as roupas para si e seus filhos e para comprar
sapatos, geralmente artesanalmente confeccionados e vendidos a preços mais
acessíveis.

198
D. Beatriz. Depoimento citado.
199
D. América da Conceição. Depoimento citado.
96

A maioria dos operários se mobilizava de algum modo para participar


do evento: seja através da participação na comissão de organização da festa,
seja contribuindo financeiramente para as despesas com flores, foguetes, etc.,
seja simplesmente assistindo às novenas e à festa.

FOTO 05 – Festa de Amparo. 1964

Fo nt e: Câ mar a M u ni cip a l d e Val e nça . Acer vo fo t o gr á f ico .

A cidade inteira participava (e ainda hoje participa) e se emocionava


com a festa. A chegada da procissão, ao final da tarde, era um momento de
verdadeiro êxtase que fazia muita gente chorar.

Os operários tinham na festa, enquanto protegidos da Santa, um certo


destaque frente à população e, provavelmente, só o experimentavam nessa
ocasião. Era a sua padroeira arregimentando o povo da cidade. Ao lado dela,
eram eles o cerne da festa. Criava-se um sentimento de proporção tão tamanha
que se tornou seguramente o maior evento religioso de Valença. Participar e,
na medida do possível contribuir, era quase um dever, prazerosamente
cumprido por D. Leonor:

“Sa ía d a f áb r i ca à s q ua tr o e me ia, q ua nd o tr ab al ha va d e no i te, a


Co mp a n h ia me ced ia d o te mp o d a f es ta vi u? Ca n se i d e ir to d a tar d e
na i g r ej a, e u e Di n a e o u tr a mai s, p r a va r r er , p r a sac ud ir , p r a mu d ar
97

as flo r e q ue ta va fed e n o no j ar r o , mud ar aq u e la s f lo r e to d a , p r a


d ep o i s v i m p r a ca sa, to ma r b an ho , j an tar e vo lt ar p r a no ve n a. T ud o
is so e u a lca nc ei, i s so t u d o e a g üe n te i a l ut a.”

Dessa forma, pode-se dizer que também fora do ambiente fabril as


operárias valencianas travavam um enfrentamento cotidiano com
dificuldades, estreitamente vinculadas à sua condição de operárias. Mas
também construíram possibilidades outras de sobrevivência, interagindo com
a sua realidade e criando em seu interior alternativas de conciliação, de
lazer, de participação, construindo de forma efetiva a história da Companhia
e da cidade industrial.
98

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A existência de uma fábrica têxtil em Valença possibilitou, desde o


século XIX e por mais da metade do século XX, a construção de uma
configuração econômica e social bastante peculiar da cidade. Consolidou-se,
ao longo do tempo, a idéia de que a Companhia Valença Industrial era a
principal fonte empregadora e a razão do progresso local, sendo esta visão
recorrente nos periódicos que circulavam na cidade entre as décadas de 1950-
1970 e nos depoimentos de operários e operárias entrevistados. Somente nos
anos 80 esta idéia perdeu a vitalidade, pois neste período a fábrica entrou em
crise – em que muitos trabalhadores foram penalizados com a redução de
pessoal –, chegando a interromper suas atividades na década subseqüente.
Apesar da pluralidade econômica de Valença, fortemente vinculada a
atividade agrícola, extração de madeira e pesca, foi a atividade industrial que
deu nome à cidade, historicamente conhecida como a “Industrial Cidade de
Valença”. Também foi a indústria têxtil ali instalada que se responsabilizou,
durante muito tempo, pelo abastecimento de energia elétrica e de água para a
população valenciana.
A fábrica delineou uma imagem de cidade com características muito
próprias, que estão presentes nas lembranças dos(a) entrevistados de maneira
recorrente: as idas e vindas de operários e operárias pelas ruas, o apito da
fábrica – que acabou por tornar-se uma referência temporal não só para a
troca de turnos no trabalho fabril, mas para a população em geral, que se
orientava pelo soar do apito em suas atividades cotidianas –, a ponte que
corta o rio Una com sua estrutura elevadiça para a travessia das embarcações
da Companhia, a visão da fábrica como a alternativa mais promissora de
emprego, todos estes elementos revelam a relação estreita que se estabeleceu
entre a C.V. I. e a população valenciana, contribuindo para a compreensão de
aspectos muito particulares da história e da cultura da cidade.
As marcas históricas encontradas nas lembranças dos trabalhadores
têxteis permitem vislumbrar a importância da fábrica como palco do exercício
profissional desses sujeitos e, principalmente, como cenário onde se teceram
99

relações sociais que mesclaram exploração e resistência, conflitos e


cumplicidades, submissão e enfrentamentos, disputas e afetividades.
Os relatos evidenciaram as dificuldades enfrentadas pelos
trabalhadores, pressionados pela exigência da produtividade, vigiados
continuamente por superiores, com uma remuneração que nem sempre atendia
às suas necessidades, expostos aos acidentes de trabalho; mas também
descortinaram atitudes de rebeldia e indignação, gestos de solidariedade,
partilha de alimento e de experiência técnica, cumplicidades entre colegas no
caso de falhas cometidas no exercício da função, laços e amizade e
apadrinhamento cuja origem fora o coleguismo no chão da fábrica.

Entre os sujeitos desse emaranhado de relações, destacou-se a presença


de mulheres trabalhadoras, que dentro e fora do ambiente fabril,
administraram sua condição de operárias e de mulheres, inseridas em um
conjunto de atribuições, funções e papéis supostamente femininos, definidos
por uma ideologia masculinizante que predomina em nossa sociedade, pautada
pela desigualdade de poder entre homens e mulheres.
A desigualdade entre gêneros tornou-se patente no interior da fábrica
através da distribuição de homens e mulheres nas diversas funções,
reproduzindo uma estrutura social em que os homens assumiam de forma
exclusiva os cargos de chefia e administração e as mulheres ocupavam
posições menos valorizadas e que exigiam, em sua maioria, as habilidades
tidas como naturalmente femininas.
Fiar e tecer eram funções eminentemente femininas por sua exigência
de habilidade manual e de atenção a detalhes, por seu caráter repetitivo e
subalterno. Também no ambiente doméstico, a definição social de papéis
femininos e masculinos estabelece diferenças entre gêneros que podem ser
compreendidas como desigualdades, uma vez que as tarefas da esfera
doméstica são, em sua maioria, identificadas como função da mulher. Às
operárias da Companhia Valença Industrial impunha-se uma reorganização do
tempo, de modo a conciliar o trabalho fabril e o doméstico, circunscrevendo-
as no que se convencionou chamar de “dupla jornada de trabalho”.
Entretanto, esta desigualdade não pode ser compreendida como algo
perene, uma vez que, na cotidianidade das relações travadas entre sujeitos
100

femininos e masculinos, a pretensa submissão feminina nem sempre se


efetivava. Em situações diversas, as mulheres em estudo – operárias e donas
de casa – reelaboraram os termos das relações de gênero, utilizando, de forma
aberta ou sutil, “poderes” que relativizavam a aparente hegemonia masculina.
As atitudes femininas que questionavam a hierarquia de gênero estabelecida
denotam não apenas estratégias de resistência, mas a reconstrução constante
das relações travadas no cotidiano fabril e doméstico, nos quais estas
mulheres foram sujeitos, responsáveis pela tessitura de tais relações.
Assim, este trabalho procurou explicitar aspectos da vida dessas
mulheres nos âmbitos doméstico e fabril, enquanto sujeitos que atuaram no
sentido de extrapolar os limites da submissão, da exploração e dominação e
que, nos diversos contextos sociais em que se inseriram, produziram,
trabalharam, criaram, resistiram, festejaram, enfim, vivenciaram experiências
que, analisadas em seu caráter coletivo, permitiram reconhecê-las como
agentes históricos que imprimiram sua marca na história da cidade de
Valença.
Ingressar na fábrica, em muitos casos ainda crianças, contribuir
financeiramente com o orçamento doméstico, enfrentar a rotina do trabalho,
marcado pela exigência da alta produtividade como requisito para melhorar
um pouco o irrisório salário, “levar com jeito” a vigilância dos superiores
hierárquicos, tomar parte nos momentos de reivindicações, organizar e
participar de festividades que quebravam momentaneamente a rotina do
cotidiano fabril – todas essas experiências marcaram significativamente a
vida das operárias e operários, estabelecendo os marcos de um tempo alegre e
dinâmico, embora entremeado de dificuldades.
O modo de ser e de viver dessas operárias, expressos em suas falas, são
reveladores de valores identitários da própria população valenciana que, a
despeito da prática de outras atividades econômicas além da industrial,
inseriu no seu modo de viver novos contornos e uma dinâmica absolutamente
peculiar a partir e em torno da fábrica.
Longe de pretender esgotar as discussões acerca do tema, nosso
trabalho tem, antes, a intenção de suscitar outras tantas questões, outras
tantas leituras que possibilitem o resgate de sujeitos históricos e de culturas
que só recente e paulatinamente vem sendo retirados dos bastidores da
101

história, e assim contribuir para o reconhecimento da identidade de um povo,


do qual mulheres operárias, funcionárias da Companhia Valença Industrial
fizeram e fazem parte, cujas histórias de vida marcaram, com seus valores e
cultura, a história da sociedade valenciana.
102

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local. São Paulo: Marco Zero, 1990.
SILVA FILHO, Basílio Machado da. Notas geográficas sobre a cidade d e
Valença. Valença-Bahia: Tipografia Tup y, 1958.
SINGER, Paul. A formação da classe operária no Brasil. São Paulo: Atual;
Campinas: UNICAMP, 1988.
SMITH, Bonnie G. Gênero e história: homens, mulheres e a prática histórica.
Bauru-SP: EDUSC, 2003.
SULLEROT, Evel yn e. A mulher no trabalho. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura, 1970.
TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: UNESP;
Salvador: EDUFBA, 2001.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma
crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
_____. Formação da classe operária inglesa (03 volumes). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
105

THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1992.
TILLY, Louise A. “Gênero, história das mulheres e história social”. Cadernos
Pagu, nº 3, Campinas: 1994.
VANNUCHI, Maria Lúcia. Gênero, trabalho e subjetividade na produção
calçadista de Franca. Extraído do site www.fazendogenero7.ufsc.br, em
outubro de 2006.
VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo, PEIXOTO, Maria do Rosário de Araújo &
KHOURY, Yara Maria Aun. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 1990.
106

FONTES

“. .. e s se s d o c u me n to s são r ar o s , p o r q ue as
mu l h er e s f o r a m, so b r et ud o as q ue tr ab al ha m, o s
p er so n a ge n s s ec u nd ár io s d a h is tó r ia e, n ão e sta n d o
no p o d er , d ei xa r a m p o uco s v e st í gio s d e s ua s
p r o va çõ e s”. 200

Fontes Orais

a) Adalzuíta Almeida (D. Naninha). Nascida em 24/10/1926. Ex-operária,


residente em Valença. Admitida aos 19 anos de idade na C.V.I.. Aposentou-se
após 30 anos e 02 meses de serviço. Funções: Encruzadeira e embaladeira.
Entrevistada em 2000.
b) Aída Santos Barbosa. Nascida em 24/08/1927. Ex-operária da C.V. I.,
residente em Valença. Admitida aos 12 anos de idade. Aposentou-se após 32
anos de serviço. Função: Tecedeira. Entrevistada em 1999.
c) América da Conceição. Nascida em 15/11/1924. Ex-operária residente em
Valença. Admitida em 1939, e aposentada em 1972. Função: liçadeira.
Entrevistada em 2006.
d) Beatriz Silva Sousa, 70 anos de idade. Ex-operária, residente em Valença.
Admitida na C.V.I. em 1945, e aposentada em 1975. Função: espuladeira.
Entrevistada em 1999.
e) Benedita do Rosário. Nascida em 27/06/1915. Ex-operária da C.V. I.,
residente em Valença. Admitida com cerca de 13 anos de idade. Aposentou-se
após 32 anos de serviço. Função: Tecedeira. Entrevistada em 1999.

200
SULLEROT, Evelyne. A mulher no trabalho. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1970. p. 12.
107

f) Claudionor Gomes de Sousa, 73 anos de idade. Ex-operário residente em


Valença. Entrevista concedida a Mariângela Sousa Ramos, concluinte de
graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V). 201
g) Dalza Sarmento Ribeiro, 63 anos de idade. Ex-operária, residente em
Valença. Entrevistada em 1998. Entrevista concedida a Mariângela Sousa
Ramos, concluinte de graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V).
h) Eulina Maria do Desterro. 73 anos de idade. Ex-operária residente em
Valença. Admitida em 1940, e aposentada em 1972. Função: espuladeira.
Entrevistada em 1999.
i) Gerci Januário da Costa. 75 anos de idade Ex-operário residente em
Valença. Admitido em 1946, e aposentado em 1982. Funções: fiandeiro e
tecelão. Entrevistado em 2001.
j) Júlia Brasília Conceição. 80 anos de idade. Ex-operária residente em
Valença. Entrevistada em 1999. Entrevista concedida a Mariângela Sousa
Ramos, concluinte de graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V).
k) Julieta Pereira Santos. 86 anos de idade. Ex-operária residente em Valença.
Entrevistada em 1999. Entrevista concedida a Mariângela Sousa Ramos,
concluinte de graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V).
l) Leonor Gomes Negrão. 80 anos de idade. Ex-operária residente em Valença.
Entrevistada em 1999. Entrevista concedida a Mariângela Sousa Ramos,
concluinte de graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V).
m) Maria Almeida Baião. Nascida em 07/07/1915. Ex-operária da C.V.I.
residia em Valença. Admitida aos 12 anos de idade. Aposentou-se após
202
35anos e 64 dias de serviço. Função: Tecedeira. Entrevistada em 1999.
n) Maria Celidalva (D. Dalva). Nascida em 31/05/1925. Ex-operária da C.V.I.,
residia em Valença. Admitida em 1938. Aposentou-se após 31 anos e 4 meses
de trabalho. Função: Tecedeira. Entrevistada em 2000. 203
o) Maria dos Anjos Ramos. 69 anos de idade. Ex-operária da C.V.I., residente
em Valença. Entrevista concedida a Mariângela Sousa Ramos, concluinte de
graduação em História em 1998 (UNEB-CAMPUS V).

201
Vale ressaltar que tive acesso a todas as fitas cassete que guardam as entrevistas concedidas a Mariângela
Sousa Ramos, emprestadas a mim gentilmente, oportunizando-me ouvir, transcrever, interpretar e estabelecer
critérios pessoais de uso das informações nelas contidas.
202
D. Mariinha faleceu em agosto de 2005.
203
D. Dalva faleceu em 15 de junho de 2003.
108

p) Nelson Augusto Palma, 83 anos de idade. Ex-operário residente em


Valença. Admitido em 1924, aposentou-se em 1970. Assumiu a função de
contramestre em 1970, afastando-se definitivamente em 1973. Funções:
torneiro mecânico e contramestre. Entrevistado em 1999.
q) Rita Reis Vidal. Nascida em 07/07/1946. Ex-operária da C.V. I., residente
em Valença. Admitida em 31/01/1974. Trabalhou por 12 anos. Foi demitida
em 1986. Função: costureira, tendo trabalhado, eventualmente, também como
embaladeira. Entrevistada em 1999.

r) Sabino Gomes Santos. 76 anos de idade. Ex-operário, residente em


Valença. Admitido em 1941, e aposentado em 1961. Funções: tecelão e
contramestre. Entrevistado em 2001.
s) Vitalina Oliveira de Sousa, 71 anos de idade. Ex-operária, residente em
Valença. Admitida em 1945, e aposentou-se em 1975. Função: tecelã.
Entrevistada em 1999.
t) Zélia Pereira Paixão. 84 anos de idade. Ex-operária residente em Valença.
Admitida em 1947, e aposentou-se em 1967. Função: tecelã. Entrevistada em
1999.

Fontes Primárias Escritas:

ARQUIVO DA COMPANHIA VALENÇA INDUSTR IAL


- Registro de Empregados e Operários (1950-1989)
- Atas das Assembléias Gerais (1899-1918 / 1919-1941 / 1942-1966 / 1967-
1984)
- Relatório da Diretoria e Parecer do Conselho Fiscal (1903, 1904, 1910-12,
1915, 1918-1983)
- Estatuto Social da Companhia Valença Industrial (1977)

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA


- Registros das Companhias e Sociedades Comerciais da Secretaria do
Tribunal de Comércio da Província da Bahia
- Cartas do engenheiro João Monteiro Carson
109

- Inventário de Antônio Francisco de Lacerda (proprietário)


- Inventário de Bernardino de Sena Madureira (proprietário)
- Atas da Câmara Municipal de Valença

INSTITUTO BRAS ILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA


- Censos do IBGE (décadas de 1950-80)

ASSOC IAÇÃO BAHIANA DE IMPRENSA


- Jornal Correio do Interior – junho-julho/1978
- Jornal Tribuna Litorânea – agosto/1976.
- Jornal Tribuna Litorânea – 15/11/1977.
- Jornal O Município – 11/06/1938
- Jornal Correio Valenciano – 16/03/1935
- Jornal O Commercio – 23/03/1935

BIBLIOTECA CENTRAL DA BAHIA


- Jornal do Estado da Bahia – 13/04/1950

CÂMARA MUNIC IPAL DE VALENÇA


- Livro de Atas da Câmara Municipal de Valença – Setembro de 1887 a Maio
de 1892.
- Revista dos Municípios, 1924.
- Jornal O Cacauicultor – outubro/1971.
- Jornal A Tarde – 27/04/1964.
- Boletim Mensal nº 5 do Rotary Clube de Valença – 1965.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano X, nº 294 – 27/10/1973.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº 38 – 27/04/1971
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº 36 – 13/04/1968.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano III – 12/11/1966.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano III – Nova fase, nº 9 – 30/09/1967
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº154 – 10/11/1970.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano X – Nova fase, nº 287 – 01/09/1973.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº 57 – 27/09/1968.
- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº 36 – 13/04/1968.
110

- Jornal Folha da Cidade – Valença, Ano IV – Nova fase, nº 54 – 31/08/1968.


- Jornal O Manacá – Valença – Ano IV, nº 90 – 31/03/1979.
- Jornal O Manacá – Valença – Ano II, nº 48 – 18/06/1977.
- Jornal O Manacá – Valença – Ano III, nº 74 – 29/05/1978.
- Jornal A Semana – Valença – Ano IX, nº 427 – 15/12/1956.
- Jornal A Semana – Valença – Ano V, nº 245 – 28/03/1953.
- Jornal de Valença – Segundo ano – 16/05/1964.
- Jornal de Valença – Ano I, nº 50 – 25/01/1964.

Fontes Bibliográficas:
ENC ICLOPÉDIA DOS MUNIC ÍPIOS BRASILEIROS, XX volume, Rio de
Janeiro: IBGE, 1958.
IPAC-BA – Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia, vol. V.
Monumentos e Sítios do Litoral Sul. Salvador: Secretaria da Indústria,
Comércio e Turismo, 1988.
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Industrial Cidade de Valença (Um surto d e
industrialização na Bahia do século XIX). Salvador: UFBA, 1985.
111

ANEXO

FOTOGRAFIAS

a) Festa da lavagem do Amparo, no adro da Igreja do Amparo com a Vila


Operária em segundo plano. 1964.

Fo nt e: Acer vo p ar t ic u lar d o se n ho r Co r i n to M e n eze s.


112

b) Vista da Vila Operária, do Rio Una e da ponte de acesso à Companhia


Valença Industrial.

Fo nt e: Câ mar a M u ni cip a l d e Val e nça


113

c) Ponte General Inocêncio Galvão, com estrutura elevadiça para a travessia


das embarcações da C.V. I.

Fo nt e: Câ mar a M u ni cip a l d e Val e nça

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