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MESTRADO EM TEOLOGIA
São Paulo
2017
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São Paulo
2017
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Antônio Manzatto – PUC/SP
_____________________________________________
Prof. Dr. Matthias Grenzer – PUC/SP
_____________________________________________
Prof. Dr. Jonas Madureira – FTBSP/SP
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AGRADECIMENTOS
Ao Deus Trino, Pai, Filho e Espírito Santo, “porque dele, e por meio ele, e para ele são
todas as coisas” (Rm 11,36) – inclusive esta dissertação. Por sua bondade e graça que concede
a possibilidade e o privilégio de conhecê-Lo, por meio do labor teológico.
À Isabela Sicsú, pela parceria, incentivo e amor sempre constantes. Não teria dado
conta sem você! Você é a maior prova da graça de Deus na minha vida. Amor inexplicável e
imensurável. “O que acha uma esposa acha o bem e alcançou a benevolência do SENHOR”
(Pv 18,22).
Ao professor Dr. Antônio Manzatto, pela paciência e generosidade desmedida. Mas,
acima de tudo, por demonstrar que extrema erudição pode andar de mãos dadas com
humildade e simpatia. Ganhei mais que um orientador acadêmico, mas uma referência de
vida. Muito, muito obrigado!
Ao Edson Pedruzzi. Seu apoio foi crucial. Você é a encarnação da promessa de Deus
de nunca desamparar os que foram abandonados e acolher os que foram esquecidos. Minha
dívida de gratidão só poderá ser paga na eternidade! Minha admiração e amor por você é de
natureza filial.
À Igreja Batista Urbana, minha casa espiritual e família da fé. A razão da minha
constante busca por refinamento teológico (e espiritual). Por incentivarem e permitirem que
seu pastor trilhe uma carreira acadêmica. Por entenderem que a Igreja de Cristo precisa de
pastores-mestres (Ef 4,11).
Aos amigos Marcelo Berti, Jonas Madureira e Franklin Ferreira. Se um teólogo
precisa ter amigos-teólogos, eu tenho os melhores. As impressões digitais de vocês estão por
todos os lados dessa dissertação. Obrigado pelas conversas teológicas que tanto enriqueceram
este trabalho.
Aos meus colegas e alunos no Seminário Teológico Betel Brasileiro (Santo André/SP)
e Seminário Teológico Servo de Cristo (São Paulo/SP), por serem o laboratório onde testo e
atesto meus devaneios teológicos, onde posso transmitir e repassar aquilo que recebi.
S.D.G.
6
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 HANS URS VON BALTHASAR: BIOGRAFIA .............................................................. 12
2.1 A Vida de Hans Urs von Balthasar .......................................................................................... 13
2.2 A Obra e Teologia de Hans Urs von Balthasar ....................................................................... 21
3 A TRINDADE COMO DRAMATIS PERSONAE ............................................................ 26
3.1 A Doutrina da Trindade: Definição ......................................................................................... 27
3.1.1 A Trindade Imanente (Ontológica)....................................................................................... 30
3.1.2 A Trindade Econômica ......................................................................................................... 31
3.1.3 Fundamentos Bíblicos .......................................................................................................... 32
3.1.4 Documentos Doutrinais e Confessionais .............................................................................. 37
3.1.5 Heresias ................................................................................................................................ 42
3.2 A Doutrina da Trindade: Autores Importantes ...................................................................... 47
3.2.1 Irineu de Lião (130-202 d.C.) ............................................................................................... 48
3.2.2 Tertuliano de Cartago (160-255 d.C.) .................................................................................. 48
3.2.3 Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.) ................................................................................ 50
3.2.4 Atanásio de Alexandria (295-373 d.C.) ................................................................................ 50
3.2.5 Os Pais Capadócios (Séc. IV d.C.) ....................................................................................... 51
3.2.6 Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) ................................................................................... 52
3.2.7 Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.) ..................................................................................... 54
3.2.10 Karl Rahner (1904-1984 d.C.) ............................................................................................ 55
3.2.11 Leonardo Boff (1938-presente) .......................................................................................... 56
3.3 A Teoria do Drama (Theodramatik) de Hans Urs von Balthasar .......................................... 58
3.3.1 Prolegomena (Volume 1) ..................................................................................................... 59
3.3.2 Dramatis Personae (Volumes 2-3)....................................................................................... 62
3.3.3 A Ação (Volume 4) .............................................................................................................. 65
3.3.4 O Último Ato (Volume 5) .................................................................................................... 66
3.4 A Trindade como Dramatis Personae ....................................................................................... 68
3.4.1 A Trindade Imanente em Balthasar: O Amor “Kenótico” como a Natureza de Deus ......... 69
3.4.2 A Trindade Econômica em Balthasar: História da Salvação e o Mistério Pascal ................ 70
3.4.3 A Cruz de Cristo e a Descida ao Inferno .............................................................................. 73
4 BALTHASAR E BARTH: UM DIÁLOGO TRINITÁRIO ............................................ 78
4.1 A Amizade de Barth e Balthasar: Um breve resumo histórico.............................................. 81
4.2 O Trinitarianismo de Barth: Um Breve Resumo .................................................................... 82
4.3 Balthasar e Barth: O Trinitarianismo Sinfônico .................................................................... 85
5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 89
6 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 92
9
1 INTRODUÇÃO
“Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te
e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas
alguém te invocará antes de te conhecer?” (Agostinho de Hipona,
Confissões, Livro I, Cap. I).
a maneira como elas foram determinantes para a construção e refinamento da sua teologia.
Nesta parte da pesquisa, o presente autor é extremamente devedor aos biógrafos mais
importantes de Balthasar, a saber, Edward Oakes (Pattern of Redemption), David Schindler
(Hans Urs von Balthasar: His Life and Work) e Peter Henrici (Hans Urs von Balthasar: A
Sketch of His Life).
O segundo capítulo inicia-se com uma importante discussão acerca da definição
histórica da doutrina da Trindade, observando a fundamentação bíblica, documentos
doutrinais e as eventuais heresias que surgiram no processo de refinamento do dogma
trinitário ao longo da história. Logo em seguida, o presente autor conduzirá uma breve
exposição das concepções trinitárias em algumas das principais contribuições históricas para
o entendimento da Trindade. Vale salientar que embora tenha-se escolhido pelo menos um
representante de cada grande período da história da teologia cristã, este exercício é
demonstrativo e não exaustivo. Isto é, procura-se demonstrar como o dogma trinitário foi
trabalhado ao longo da história por grandes nomes da teologia, mas, por questões de espaço,
alguns nomes importantes foram omitidos.
O movimento seguinte, ainda no segundo capítulo, é a apresentação panorâmica e
resumida da theodramática em si. Neste ponto, o presente autor dedica-se em mostrar a
argumentação de Balthasar ao logo dos cinco volumes que compõe a teoria desenvolvida.
Aqui, vale pontuar que a base desta apresentação não são a versões originais em alemão, mas
as traduções para o inglês pela editora Ignatius (vide Referências). Em alguns momentos
porém, o presente autor usa as versões originais, mas o texto primaz na construção desta parte
da pesquisa são os cinco tomos de língua inglesa.
Em seguida, a discussão que se apresenta é o coração deste trabalho: a investigação da
Trindade como Dramatis Personae (pessoa do drama). A hipótese a ser trabalhada é que no
Theo-Drama, a Trindade é uma personagem do drama da redenção, conforme exposto por
Balthasar. Aqui, procura-se mostrar como as Pessoas da Trindade se apresentam e atuam (no
sentido teatral) para completar a obra de redenção do homem. Como será demonstrado,
Balthasar entende que a única maneira de compreender totalmente a doutrina da Trindade, é
observando como ela se revela economicamente no decorrer do Drama. Neste ponto, a ênfase
da discussão está nos quatro principais elementos da teologia dramática de Balthasar: (1)
Trindade Imanente e o Amor Kenótico; (2) Trindade Econômica e o Mistério Pascal; (3) A
Teologia da Cruz e (4) A Descida ao Inferno.
No último capítulo desta dissertação, o autor apresenta a maneira como o Balthasar e
Barth podem ser complementares na abordagem teológica da Trindade. Este capítulo é aberto
11
com uma breve descrição biográfica do relacionamento entre estes dois grandes teólogos.
Logo em seguida, dirige-se a atenção aos traços peculiares do trinitarianismo barthiano. Neste
ponto, a obra que rege esta parte da pesquisa é The Theology of Karl Barth, escrita pelo
próprio Balthasar. Aqui procura-se demonstrar como as percepções da analogia entis e fidei
são determinantes na construção teológica e diálogo entre Barth e Balthasar.
O último movimento desta dissertação busca apresentar os aspectos convergentes e
divergentes entre Barth e Balthasar. Vale pontuar que esta porção do trabalho está focada em
demonstrar que o diálogo entre as tradições católica e protestante é viável e desejável, para o
enriquecimento teológico de ambos os interlocutores, assim como foi na experiência destes
dois gigantes da teologia do séc. XX.
12
Hans Urs von Balthasar nasceu em Lucerna na Suíça, em 12 de agosto de 1905. Sua
família era tradicional e proeminente no então condado suíço. Na ascendência de Balthasar,
são encontrados oficiais do exército, políticos, acadêmicos e clérigos. Seu pai, Oscar Ludwig
Carl von Balthasar (1872-1946), era o construtor-empreiteiro do condado, responsável, dentre
outros, pela construção da Igreja de St. Karli, uma das primeiras Igrejas Católicas de
arquitetura moderna da Suíça.1 Sua mãe era Gabrielle Pietzcker (m. 1929), cofundadora e
secretária geral da Liga Suíça de Mulheres Católicas, organização devotada à promoção das
artes e cultura. Seu irmão mais novo, Dieter, era oficial da Guarda Suíça; e sua irmã, Renée,
foi por mais de uma década diretora geral da Ordem de Irmãs Franciscanas na Basílica Saint-
Marie des Anges em Roma.2 Balthasar tinha proximidade com o protestantismo por meio de
seu avô, Hermann Pietzcker, que era coronel da cavalaria do exército suíço e membro da
Igreja Reformada Suíça. O próprio Balthasar relata posteriormente suas memórias acerca de
suas visitas à casa de seu avô: “Ocasionalmente, nós costumávamos fazer uma visita ao seu
escritório cheio de armas e fumo” (BALTHASAR, 1984, p. 30).
Graças aos hábitos cosmopolitas de sua família, Balthasar cresceu em um ambiente
trilíngue (alemão, francês e inglês). Sua avó era dona de uma pensão em Felsberg, onde o
pequeno Balthasar tinha acesso a pessoas oriundas de todos os cantos da Europa. Ali, teve
contato com a sofisticação cultural de austríacos e britânicos e mais tarde, durante a primeira
guerra mundial, com soldados franceses de alta patente. Em 1918, com cerca de 13 anos de
idade, Balthasar teve contato com a Casa dos Habsburgo, a família imperial austro-húngara.
Uma experiência marcante e relatada pelo próprio Balthasar em seu livro Unser Auftrag:
Bericht und Entwürfe.
Balthasar também teve uma formação artística e musical privilegiada. Seus talentos
musicais foram logo percebidos por seus avós. Ele era um exímio pianista e cantor, e há quem
diga que ele possuía o talento do “ouvido absoluto”3. Sua paixão por literatura, drama e
música clássica, especialmente Mozart, foi despertada muito cedo em sua vida:
“Por causa das minhas primeiras impressões da música, a Missa de Schubert em Mi
Maior (quando eu tinha cerca de cinco anos de idade) e a Pathétique de
Tchaikovsky (quando tinha cerca de oito anos de idade), passei longas horas a fio no
piano. Na escola de Engelberg tive a oportunidade de participar de orquestras e
óperas. Entretanto, quando meus amigos e eu fomos transferidos para Feldkirch para
os últimos dois anos e meio do ensino médio, percebemos que o departamento de
música era tão barulhento, que lá, perdemos qualquer prazer em tocar. Meus
1
SCHINDLER, 1991. p. 223.
2
Ibid., p. 225.
3
Ibid., p. 254.
14
É importante ressaltar que alguns meses antes de Balthasar completar seu trabalho de
dissertação, seu desejo de desenvolver sua fé e espiritualidade o levou a participar de um
retiro espiritual inaciano de trinta dias, durante o verão de 1927, sob orientação do frei jesuíta
Friedrich Kronseder. Este retiro foi um evento determinante na vida de Balthasar e o
introduziu a uma prática espiritual que o acompanhou por toda a vida.
Antes deste retiro, Balthasar não tinha nenhum interesse ou desejo de se tornar um
sacerdote ou entrar para a ordem religiosa. De fato, até aquele retiro, para Balthasar, era uma
questão de infortúnio alguém mudar a direção da sua vida em direção à ordem religiosa.4
Desta maneira, essa experiência de chamado por Deus para a vida sacerdotal foi tão
impactante que o próprio Balthasar a descreve como tendo sido atingido por um relâmpago:
Mesmo agora, trinta anos depois, ainda poderia ir pela mesma trilha remota naquela
floresta negra, não muito longe da Basileia, e novamente encontrar a árvore onde fui
atingido por um relâmpago [...] e ainda assim não foi teologia, muito menos o
sacerdócio que por um instante veio em minha mente. Foi simplesmente isto: “Você
não tem nada a escolher, você foi chamado. Você não servirá, você será trazido ao
serviço. Você não deve ter planos a fazer, você é apenas uma pequena pedra em um
mosaico que há muito tempo está pronto”. Meu entendimento era que tudo que eu
deveria fazer era deixar tudo e seguir, sem fazer planos, sem desejos ou
perspectivas. Tudo que eu precisava fazer era ficar ali, esperar e ver onde eu seria
útil (BALTHASAR, 1961, p. 22).
Após essa experiência espiritual marcante, somando-se à morte prematura de sua mãe
e a conclusão de seu doutorado, Balthasar decidiu seguir sua vocação espiritual e buscou a
vida na ordem religiosa. Em 18 de Novembro de 1929, foi aceito na Companhia de Jesus para
dar início ao seu treinamento sacerdotal. Ali, Balthasar seguiu o processo natural de formação
religiosa: Foi por dois anos noviço sob orientação do Frei Otto Danneffell, passou por dois
anos de estudos intensos em Filosofia em Pullach, próximo à Munique, e quatro anos de
Teologia em Fourvière, próximo à Lyon. Estes estudos renderam ao jovem Balthasar uma
dupla licenciatura em Filosofia e Teologia. É chocante, porém, notar que Balthasar nunca
4
BALTHASAR, 1961, p. 21.
16
buscou um doutorado nessas áreas, nem uma carreira acadêmica, apesar de seu brilhantismo e
clara aptidão para a cátedra.
A entrada de Balthasar para a ordem religiosa significou, acima de tudo, a renúncia
temporária de seus hábitos culturais cosmopolitas, bem como de seus gostos musicais e
literários. Os estudos obrigatórios na formação religiosa pareciam áridos e bem monótonos
para Balthasar, visto que ele vinha de uma formação cultural muito rica do ponto de vista
estético. Ele via seus estudos teológicos e filosóficos como “languidez no deserto do
neoescolasticismo” (BALTHASAR, 1965, p. 34). Muito embora tenha tido o privilégio de
estudar com grandes nomes de seu tempo, como Johann Baptist Schuster, Henri Vignon e
Henri Rondet, para Balthasar o problema não estava nos professores ou seus colegas de
classe, mas no próprio método teológico predominante em seu tempo. Anos mais tarde, ele
descreve seus anos de formação na Companhia de Jesus como uma dura luta contra a tristeza
e morbidez do método teológico neoescolástico.5
Embora nuca tenha sido oficialmente seu aluno, Erich Przywara se tornou uma grande
influencia e o principal mentor de Balthasar durante os anos de formação religiosa, pois,
segundo ele, Przywara falava da filosofia escolástica com uma atitude de sereno
desprendimento e distanciamento, e a partir disso, lidava com a filosofia moderna,
confrontando Agostinho e Tomás de Aquino com Hegel, Scheler e Heidegger. Ele descreveu
Przywara como um “guia e mestre inesquecível” (BALTHASAR, 1986, p. 9), e durante seus
anos em Pullach, Balthasar o visitava frequentemente em Munique. Mais tarde, Balthasar
chegou a dividir moradia com Przywara quando estava trabalhando na finalização de um de
seus vários artigos para a revista acadêmica que ajudou a criar, a Stimmen der Zeit (As Vozes
do Tempo).
Erich Przywara deixou suas impressões digitais na formação teológica e pessoal de
Balthasar, na medida em que desenvolvia sua analogia entis (analogia do ser), articulando o
relacionamento entre filosofia e teologia nos estudos de Aquino, especialmente na
investigação acerca da transcendência e imanência do ser divino. Quando se encontraram pela
primeira vez, Przywara já era muito conhecido por sua capacidade de articular a teologia
católica especialmente em diálogo com o protestantismo e outros pensadores seculares.
Outra grande referência de Balthasar foi Henri de Lubac, que mais tarde se tornou um
grande amigo pessoal. Foi a partir da influência de Lubac que Balthasar redescobriu a riqueza
da teologia patrística, especialmente a abordagem a teologia da glorificação de Irineu – sua
5
VON SPEYR, 1975, p. 195.
17
grande influência na primeira parte de sua trilogia, Teo-Estética: A Glória de Deus, abrindo
seus olhos para os aspectos estéticos da teologia. Também foi a partir dos longos diálogos e
confrontos teológicos que tiveram que a teoria do drama (theodramatik) começou a ser
rascunhada.6 Foi junto com de Lubac e com o então Cardeal Joseph Ratzinger que Balthasar
fundou a revista Communio, uma revista teológica que tinha um corte crítico à tradição do
Vaticano II, que sobrevive até os dias de hoje e é publicada em mais de 12 idiomas.
Seus anos de formação teológica na França, em Fourvière, não somente introduziram
Balthasar à teologia, mas também aos grandes escritores franceses: Péguy, Bernanos, e acima
de tudo, Claudel. É notório o fato de que 20 anos antes da obra de Claudel ser publicada em
sua forma final, em 1963, Balthasar já havia traduzido grande parte de toda sua obra de poesia
lírica.
Depois de completada sua formação teológica na França, ainda que com muita
dificuldade por causa de constantes infecções intestinais e na garganta, Balthasar foi ordenado
ao sacerdócio em 26 de Julho de 1936, pelo Cardeal Faulhaber. Em 1937, foi enviado para
trabalhar com a revista que ajudou a fundar e estabelecer, a Stimmen der Zeit, mas acima de
tudo, com o propósito de completar seus primeiros livros.
Com o início da guerra em 1939, a ordem Jesuíta lhe ofereceu a oportunidade de
escolher entre mudar-se para Roma (Itália), para atuar como um professor assistente na
Universidade Gregoriana e dar início a um instituto de teologia ecumênica, ou mudar-se para
a Basileia (Suíça) para atuar como um capelão estudantil. Novamente, seu primo, Peter
Henrici, nos informa que a razão pela qual Balthasar decidiu escolher a posição na Basileia,
era que o trabalho pastoral naquele momento lhe era mais atrativo que o trabalho acadêmico.
Além disso, as tensões políticas provocadas pela guerra ainda não estavam em seu ápice
naquela região da Suíça.7
Seus anos como capelão na Basileia foram ricos em termos culturais. Além de servir
como capelão, Balthasar assumiu a função de editor chefe de uma série de publicações
Sammlung Klosterberg: Europäische Reihe (Coleção Klosterberg: Série Europeia), que nada
mais era do que uma tentativa de salvar a herança cultural europeia, durante o período
devastador da guerra. Esta série era composta de cinquenta fascículos retratando a vida e a
obra das grandes mentes da Europa. Balthasar foi o autor de dez fascículos, escrevendo sobre
cinco grandes pensadores: Goethe, Novalis, Nietzsche, Brentano e Borchardt. Além disso,
Balthasar também traduziu Claudel, Péguy, bem como Bernanos e Mauriac.
6
HENRICI, 1991, p. 30.
7
Ibid., p. 31.
18
Um dos estudantes mais próximos de Balthasar foi Robert Rast (1920-1946). Como
Balthasar, Rast era oriundo de uma família de Lucerna, e também tinha passado pela mesma
escola Beneditina em Engelberg. Henrici nos informa que Rast foi talvez o aluno que mais
desafiou Balthasar em termos acadêmicos, e que mais desfrutou de sua companhia durante os
anos em que Balthasar serviu como capelão estudantil. Infelizmente, por causa de uma séria
8
HENRICI, 1991, p. 30.
19
infecção nos pulmões, Rast faleceu em 16 de maio de 1946. A morte de seu mais brilhante
estudante foi um golpe duro para Balthasar.9
Foi enquanto servia como capelão na Basileia que Balthasar teve a oportunidade de
aproximar-se do protestantismo, ao estreitar laços de uma amizade duradoura e valiosa, bem
como um robusto diálogo de natureza teológica com Karl Barth. Embora este relacionamento
seja investigado com mais profundidade adiante, é importante pontuar que naqueles anos, a
Basileia era um centro acadêmico de investigação das humanidades de grande proeminência.
Sem dúvidas, um ambiente onde o protestantismo encontrava uma forte representatividade,
em grande parte, graças ao trabalho de Barth com pastor e professor de teologia. Ao
aproximar-se de Barth, Balthasar não somente tinha interesses de dialogar acerca das
convicções barthianas da doutrina da eleição e predestinação, seu entendimento da analogia
entis, ou ainda a natureza da sua cristologia. Balthasar tinha o alvo muito claro de converter
Barth ao catolicismo. Esse era um traço marcante no caráter de Balthasar: Ele fora um
instrumento muito eficaz no evangelismo e conversão de muitas pessoas ao catolicismo.10
A pessoa, entretanto, que mais profundamente marcou a vida e a trajetória de
Balthasar tanto na esfera acadêmica, como na esfera pastoral e pessoal, foi Adrienne von
Speyr. Adrienne foi uma médica, oriunda de uma família protestante de muita tradição na
Basileia, nascida em 1902, em La Chaux-de-Fonds, uma cidade que fica no noroeste da Suíça,
próximo da fronteira com a França. Adrienne era filha de Theodor von Speyr, um
oftalmologista de grande reputação. Graças à influencia de sua família e seu brilhantismo
acadêmico, Adrienne foi a primeira mulher da Suíça a ser admitida na faculdade de medicina
e, posteriormente, no exercício médico. Ela casou-se em 1927 com o historiador suíço Emil
Dürr. Com a morte prematura de Dürr em 1934, Adrienne passou por um período de profunda
depressão espiritual, a ponto de não ser capaz de recitar a oração do Pai Nosso por anos. Em
1936, ela se casou novamente com Werner Kaegi, professor e sucessor de Dürr como
catedrático na Universidade da Basileia. Adrienne era conhecida como uma mulher de gênio e
temperamento fortes, socialmente popular, devotada a sua vocação médica e de língua afiada.
Em 1940, Adrienne, aos 38 anos, converteu-se catolicismo romano e foi batizada por
Balthasar em 15 de novembro daquele mesmo ano, durante as celebrações da festa de todos os
santos. Henrici nos informa que embora fosse uma mulher de muita disposição e força
9
Ibid., p. 31.
10
HENRICI, 1991, p. 35.
20
espiritual, ela continuamente sofria de problemas de saúde, como artrite, enxaquecas crônicas,
diabetes e, eventualmente, cegueira.11
A produção teológica de Adrienne vai desde a investigação da teologia bíblica do
evangelho de João – obra que lhe fez mais conhecida, até a abordagem mistagógica da
teologia cristã. Conta-se que essa forma de teologia mística desenvolvida por Adrienne era
fruto de experiências pessoais de visões, sonhos e possíveis aparições. Em 1945, Balthasar e
Adrienne fundaram juntos a Johannesgemeinschaft (Companhia de São João), uma
companhia de natureza secular para homens e mulheres – considerada de extrema vanguarda.
A criação deste instituto e os vários pedidos – todos negados – para que a igreja
reconhecesse a natureza espiritual das visões de Adrienne, fizeram com que Balthasar
desgastasse sua relação e posteriormente rompesse com a Companhia de Jesus em 1950, algo
que foi profundamente perturbador e dolorido para Balthasar.
Neste período, ele passou por profunda privação de ordem financeira, sendo apoiado
por amigos e vivendo de maneira muito modesta da sua rotina de palestras, publicações em
sua pequena editora – que mais custava dinheiro, do que gerava renda – e curtas temporadas
de ensino em cursos rápidos de verão em diversas universidades, sempre no nicho secular. Em
1956, Balthasar foi reconduzido à vida sacerdotal como um sacerdote secular, pela diocese de
Chur.
No fim da década de 50, início da década de 60, a saúde de Balthasar que nunca fora
vigorosa, passou a se complicar cada vez mais. Balthasar sofria com recorrentes flebites,
paralisias dos membros inferiores e superiores, e constantes infecções. Ainda assim, Balthasar
nunca parou de trabalhar. Nestes anos de sérias enfermidades, Balthasar completou sua
tradução da obra lírica de Claudel, traduziu a peça de Calderón, O Grande Teatro do Mundo,
para apresentações no teatro de Einsiedeln, e acima de tudo, foi durante este período que ele
começou a rascunhar a sua trilogia, cujo primeiro volume surgiu em 1961.
Ainda neste momento de sua vida, a abordagem estética da teologia que ardia em seu
coração era tratada com desdém e graças ao histórico de rupturas e rachas com a companhia
de Jesus, Balthasar ainda não tinha o respeito do magistério da Igreja, a ponto de nem sequer
ser convidado para participar do concílio do Vaticano II, que teve início em 1962.
Sua ausência no Concílio, no fim das contas, foi muito bom, pois lhe deu tempo e
espaço para produzir toda a primeira parte de sua trilogia, que foi concluída em 1967, ano da
morte de Adrienne, sua grande amiga e parceira na Companhia de São João. Há quem diga
11
Ibid., p. 34.
21
que a publicação dos sete volumes da sua Teologia Estética (primeira parte da trilogia) foi um
“tapa na cara” de seus opositores que barraram sua participação no Concílio do Vaticano II,
pois aqueles que achavam que Balthasar não tinha nenhuma contribuição relevante que
justificasse sua participação no Concílio, tiveram que lidar, dois anos depois do fim do
concílio, com o lançamento da obra de Balthasar que influenciou toda a academia teológica
daquele tempo, chegando a ser reconhecida por João Paulo II, Bento XVI e até mesmo
Francisco, quando ainda era cardeal na Argentina.12
A partir de 1967, começou o período de ascensão teológica de Balthasar a ponto de
sua contribuição teológica ganhar profundo respeito, fazendo com que sua reputação fosse
completamente mudada diante da academia eclesiástica, ao ponto de ser apontado para o
Colégio Cardinalício por João Paulo II. Henrici nos conta que João Paulo II o considerava o
teólogo vivo de maior influência na sua vida.13 Depois de grande relutância em aceitar o
convite para se tornar Cardeal – ele já havia recusado dois convites anteriores –, Balthasar
faleceu na Basileia, em 26 de Junho de 1988, dois dias antes de ser ordenado cardeal-diácono
de São Nicolau no Cárcere pelo Papa João Paulo II.
12
HENRICI, 1991, p. 38.
13
Ibid., p. 42.
22
14
DRU, 1969, p. 421.
15
Ibid., p. 423.
16
BALTHASAR, 1982, p. 17-127.
23
17
Ibid., p. 67.
18
OAKES, 2005, p. 364-374.
19
Ibid.
24
de ser contemplado, mas o ator principal no teatro da redenção agindo de forma dramática, na
redenção do homem, bem como aquele que comissiona Sua Igreja, para atuar de maneira
mimética na tarefa de alcance do homem perdido.
É importante, também, pontuar os aspectos polemistas da obra de Balthasar. A trilogia
de Balthasar se apresenta como uma oposição consciente e direta à trilogia de Kant: A Crítica
da Razão Pura (Verdade – Epistemologia), Crítica da Razão Prática (Bom – Ética) e Crítica
do Juízo (Belo – Estética). Enquanto Kant começa com epistemologia e termina em estética,
Balthasar “condena” seu método apresentando sua trilogia iniciando com a estética e
terminando na epistemologia – sugerindo que o modelo de Kant é a razão pela qual toda a
geração moderna e pós-moderna têm caído no ceticismo. Além disso, Balthasar propõe em
sua obra uma crítica à aversão que Lutero tinha à chamada theologia gloriae (Teologia da
Glória). Ao formular a chamada theologia crucis (Teologia da Cruz), Lutero posicionou-se
contra toda forma e tentativa de validação de uma teologia à partir da estética. Balthasar,
desta forma, apresenta a Teo-Estética, respondendo silenciosamente Lutero e mostrando que é
possível começar com a Estética, sem perder o eixo central da Cruz e da Pessoa de Jesus
Cristo e da Sagrada Escritura na doutrina cristã.
Além da sua exposição na Trilogia, as doutrinas balthasarianas da kenosis e a descida
de Cristo ao inferno, foram sem dúvidas a razão pelas quais Balthasar se tornou mais
conhecido (e também mais criticado). Resumidamente, Balthasar afirma que o fato de Cristo
ter reivindicado ser a verdade (Jo. 14.6) é algo tão provocativo e radical, que isso se constitui
o elemento determinante para sua execução e martírio. Esta reivindicação é tão radical que
somente poderia ser validada pelo Pai na ressurreição do Filho. Mas longe de ser apenas uma
confirmação à afirmação antecedente de Cristo, a validação de Deus na ressurreição de Jesus
torna-se muito mais radicalmente verdadeira em virtude daquilo que aconteceu na descida de
Cristo ao hades. Diz Balthasar:
Se a reivindicação [de Jesus] se sustenta, então toda a verdade [de Jesus] também
possui um lastro, um contrapeso [Schwergewicht] absoluto, que não pode ser
contrabalançado por nada mais; E porque é uma questão de verdade, deve ser capaz
de mostrar que é assim. A pedra desta verdade colocada na balança é tão pesada que
se pudesse ser colocada no outro lado da balança toda a verdade que há no mundo,
toda religião, toda filosofia, toda queixa contra Deus, isso sequer a moveria. Só se
isso é verdade, vale a pena permanecer um cristão hoje (BALTHASAR, 1973, p.
18).
O que está em jogo no Theo-drama é isto: Deus age para tomar sobre si mesmo e
fazer sua a tragédia da existência humana, e assim ir até as profundezas do abismo, e
assim conquistá-la sem ao mesmo tempo roubá-la de seu aguilhão ou contornar essa
tragédia externamente, como se pudesse alcançá-la evitando-a. (BALTHASAR,
1988, p. 22).
Finalmente, este pequeno rascunho da vida e obra de Hans Urs von Balthasar apenas
raspa nos principais contornos de seu pensamento. A melhor maneira de resumir seu
pensamento é que Balthasar é inequivocamente cristocêntrico em sua abordagem teológica,
colocando-o na contramão dos movimentos modernos e pós-modernos da teologia; e que seu
método que é visto como “de ponta cabeça” por muitos, por explorar a teologia do ponto de
vista estético, se apresenta como um “escape” para os que desejam dialogar de maneira
vibrante, contemplativa e relevante com o mundo.
Outro elemento que é importante salientar neste resumo é que Balthasar era
essencialmente um padre. Isto é, alguém devotado à Igreja e às ovelhas de Cristo. O que faz
com que sua contribuição teológica tenha vísceras e não o cheiro de mofo dos livros dos
castelos de marfim dos catedráticos que não se relacionam com o dia-a-dia da vida
eclesiástica. É bem provável que este ponto faça de Balthasar um teólogo tão atrativo para
outros que desejam conciliar a vida pastoral com profundidade teológica: Serviço pastoril e
labor intelectual.
26
O Deus confessado pelo Cristianismo é o Deus de Jesus Cristo: O Pai eterno que
gerou seu Filho unigênito, Jesus Cristo, e dos quais procede o Espírito Santo. Isto é, o Deus
dos cristãos é um Deus trino: Pai, Filho e Espírito Santo. Muito embora a palavra “Trindade”
não apareça na Bíblia e tenha surgido somente no segundo século da era cristã, este é o ensino
acerca da natureza de Deus que ao longo da história foi defendido e transmitido desde os
apóstolos até os tempos modernos.20
A doutrina da Trindade se desenvolveu a partir da missão da Igreja de salvaguardar
uma visão correta acerca de Deus, uma vez que precisava ter bem claro para si mesma o
objeto máximo de sua devoção e adoração. Esta doutrina foi sendo refinada e desenvolvida
visando responder uma pergunta bastante elementar: “Quem é o Deus dos cristãos?”. Desta
maneira, a doutrina da Trindade é um dogma cristão que não é somente fruto do esforço
intelectual e da curiosidade teológica da Igreja, a fim de delinear uma proposição lógica de
Deus, mas principalmente o resultado de um profundo desejo de conhecer e entender o Deus a
quem tributa sua adoração.21
Com o advento da pós-modernidade e o crescimento do movimento do ceticismo,
entretanto, levanta-se a pergunta: Por que a doutrina da Trindade é tão importante? Que
diferença faz defender e afirmar uma visão trinitária de Deus? A resposta para esses
questionamentos é composta por três elementos.
O primeiro elemento é de natureza epistemológica. É importante debruçar-se sobre o
estudo do trinitarianismo para a confirmação de que esta doutrina, como ensinada pela Igreja
cristã, seja verdadeira, isto é, se está de acordo com a autorrevelação Deus. Pois, se tais
convicções trinitárias não estivessem em alinhamento com a maneira como Deus tem se
revelado na história, então, de fato, deveriam ser completamente rejeitadas. Mas, se a doutrina
trinitária estiver de acordo com a autorrevelação de Deus, então esta é a maneira como Deus
deseja ser conhecido e adorado. Assim, sobram razões para a Igreja Cristã buscar
diligentemente entendê-la, com todo coração abraçá-la e consistentemente aplicá-la à sua
realidade. Agostinho, um dos campeões do trinitarianismo na história, pontua:
Com a ajuda do Senhor nosso Deus, devemos comprometer-nos com o melhor da
nossa habilidade para dar-lhes as explicações que [os não-Trinitários] exigem, e
apresentar um só Deus e uma Trindade, mostrando que é correto dizer, crer e
entender que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são de uma mesma substância ou
essência [...] Mas devemos mostrar, primeiro, pela autoridade das Sagradas
20
cf. PANNENBERG, 2009, p. 355-382.
21
Ibid., p. 358.
27
Escrituras se a fé que professamos é correta [...] Para que desta maneira, se há neles
uma partícula sequer de amor e temor por Deus, eles possam voltar para o princípio
e correto ordenamento da fé (HILL, 1991, p. 67).
somente o Cristianismo professa fé em um único Deus que existe eternamente em três Pessoas
distintas. É por isso que essa doutrina é essencial e distintiva na fé cristã. É ao professar um
Deus Triúno, que o cristianismo se separa das outras religiões mundiais e, dentre outras
coisas, assume sua identidade própria.
A doutrina da Trindade é crucial para o cristianismo não somente porque é um
elemento distintivo, mas também porque trata acerca daquilo que é de mais essencial na
natureza de Deus. Essa formulação doutrinária diz respeito a quem Deus é, como ele é, como
age e como devemos nos aproximar dele. Irineu de Lion, no segundo século d.C., disse:
“Deus sempre tem com ele seu Verbo e sua Sabedoria” (LIÃO, 2016, p. 20). Essa afirmação é
uma confissão de que, em sentido profundo, Deus não pode ser entendido sem referência à
sua natureza trina.22
Todos os atributos de Deus são vinculados com sua natureza trinitária. Ao redor dela,
orbitam todos os demais temas da teologia. Esta é a autorrevelação divina sobre a qual se
sustenta toda formulação teológica cristã. O Deus da fé cristã não é um Deus genérico e
abstrato. Falar de Deus sem referência à Trindade é falar sobre uma divindade qualquer e não
o que se revela na Sagrada Escritura e que é confessado pela Igreja Cristã. O Cardeal e
Prefeito emérito da Congregação para Doutrina da Fé, Gerhard Müller, resume:
O conhecimento da vida trinitária de Deus não resulta de uma especulação abstrata
no marco de uma teologia filosófica, mas surge da escuta imediata da autorrevelação
histórico-salvífica de Deus. Por isso, a doutrina da Trindade se situa no centro da
dogmática, logo depois dos tratados da autorrevelação de Deus como Pai, da
revelação do Filho na cristologia e da missão do Espírito Santo na pneumatologia,
como suma e síntese da autocomunicação de Deus (MÜLLER, 2015, p. 297).
como tres personae et una substantia (três pessoas e uma substância). Isso significa que a
essência da fé trinitária está na confissão de um único Deus que existe eternamente em três
pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e que cada pessoa é plenamente divina,
isto é, compartilha a mesma essência divina que não pode ser divida.24
Gerhard Müller, em sua Dogmática Católica, resume o dogma da Trindade de maneira
bem didática em sete enunciados doutrinais, que segundo ele podem, de alguma forma, ajudar
na compreensão e definição da Trindade. Estes são:
(a) A Trindade é um mistério absoluto que, mesmo depois da revelação, não
pode ser inteiramente compreendido, pois é impossível para a razão criada
conceber exaustivamente a natureza divina. Na fé e no amor, porém, há
uma relação dinâmica e cognitiva que permite a razão do próprio Deus.
(b) A Igreja afirma o Deus uno e único nas três Pessoas (hipóstases ou
subsistências) do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essas Pessoas
compartilham uma única natureza (essência) divina, igualmente eternos,
onipotentes, etc.
(c) A distinção entre as três pessoas da Trindade é real, e não somente lógica.
Entre as Pessoas divinas existe uma ordo relationis (ordem de relações): O
Pai está na condição de fons divinitatis, isto é na posse agênita da essência
divina, sendo a partir de sua essência que acontece a eterna geração do
Filho. O Espírito não é gerado, mas procede (i.e. é expirado) originalmente
do Pai e do Filho como de um único princípio.
(d) Na unidade da Trindade, há diversas relações e propriedades realmente
distintas entre si. Entretanto, há uma plena “apropriação” de todas as
atividades nas ações das Pessoas da divindade.
(e) As pessoas divinas não são realmente distintas da essência divina: Em Deus
tudo é uno, tanto quanto não existe uma oposição da relação: In Deo omnia
unum, ubi non obviat relationis oppositio.
(f) As Pessoas divinas não são partes ou manifestações temporais (ou
atemporais), ou ainda momentos da realização divina, mas cada uma é o
Deus uno e verdadeiro. Cada Pessoa divina está nas outras. Elas são
compenetradas mutuamente (perichoresis).
24
GRUDEM, 1994, p. 226.
30
(g) As Pessoas divinas não são separadas um das outras em seu ser e agir, de
modo que quando atuam ad extra, formam um único princípio de ação.
Isso, porém, não implica que na unidade da ação, não haja uma
diferenciação entre as pessoas. A operatio Dei acontece de acordo com a
ordo relationis.25
Outros dois conceitos mais refinados que têm sido desenvolvidos desde o séc. II d.C.,
são os conceitos de Trindade Imanente (também chamado Trindade Ontológica) e Trindade
Econômica. O conceito de Trindade Ontológica diz respeito aos relacionamentos entre os três
membros da Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo. Isto é, fala de Deus na sua realidade mais
essencial e íntima. Esse conceito define que o ambiente de Deus é a própria Trindade. O Deus
Trino é seu próprio ambiente. Dessa maneira, a expressão “autocontido” descreve um
elemento essencial para entender a natureza de Deus. A realidade derradeira não é o “ser” ou
a “existência” abstrata, mas sim a Trindade, o uno e o múltiplo divino, dinâmico, vivo e
pessoal.26
25
MÜLLER, 2017, p. 301.
26
FERREIRA, 2007, p. 179-180.
27
Da Trindade, 6.9.
31
chamada “comunhão do ser”. Nessa imagem, enquanto cada uma das pessoas mantém a
própria identidade, elas também perpassam umas as outras e são por elas perpassadas.28
A Doutrina da Apropriação, por sua vez, é uma decorrência lógica da Doutrina da
Perichoresis. Essa doutrina insiste que as obras da Trindade constituem uma unidade;
portanto, cada uma das Pessoas participa de todas as ações da própria Trindade. Agostinho
explica este conceito ao afirmar que ainda que seja verdade que tenha sido o Filho, embora
distinto do Pai, quem nasceu, sofreu e ressuscitou, é igualmente verdade que o Pai e o Espírito
cooperaram com Filho na realização da encarnação, paixão e ressurreição.29 Ele resume:
Os diferentes nomes aplicados a cada uma das três pessoas na Trindade traduzem
relação recíproca, tais como: Pai e Filho, e o Dom de ambos, o Espírito Santo. Com
efeito, não se pode dizer que o Pai é a Trindade, ou que o Filho é a Trindade, nem
que o Dom é a Trindade. O que é dito, porém, de cada um dos três em relação a si
mesmo, é dito não no plural, mas no singular, pois referente a uma única realidade:
a própria Trindade.30
O conceito de diversidade, por sua vez, enfatiza a distinção das Pessoas da Trindade.
A ortodoxia cristã afirma que o Pai é a fons divinitatis, isto é, a fonte de toda a divindade, a
partir de quem o Filho é eternamente gerado. O Espírito Santo, por sua vez, é procedente do
Pai e do Filho. As ideias de geração e processão são essencialmente concepções extraídas da
tradição joanina, quando apresenta o Filho como Unigênito do Pai (Jo. 3,16) e o Espírito
como aquele que procede do Pai e do Filho (Jo. 15,26).
O conceito de Trindade Econômica, por sua vez, fala acerca das funções (economias)
que as pessoas da Trindade desenvolvem especialmente na revelação histórico-salvífica.
Estes dois níveis de consideração sobre Deus como Trindade imanente e econômica
são similares, mas ao mesmo tempo distintas. O Deus Trino se revelou na história humana,
isto é, economicamente. Ainda que a revelação econômica de Deus seja absolutamente
verdadeira, Deus é infinitamente mais do que ele tem se revelado na história. O Evangelical
Dictionary of Theology comenta:
Esta frase [geração eterna], oriunda de Orígenes, é usada para denotar o
relacionamento intra-trinitário entre o Pai e o Filho, conforme é ensinado na
Escritura. “Geração” deixa claro que há uma filiação divina antes da encarnação,
havendo, assim, uma distinção de pessoas no âmago da divindade (...) mas essencial
é que, como tal, não pode ser interpretada nas categorias da geração natural ou
humana. Assim, isso não subentende que havia um tempo quando o Filho não
existia, conforme argumentavam os arianos. Nem deve esperar que o Filho será
28
MCGRATH, 2005, p. 376-381.
29
Da Trindade, 2.9; 2.18.
30
Da Trindade, 8.1; 6.9 e 5.10-16. (grifo próprio)
32
finalmente absorvido. Nem o fato de o Filho ser uma pessoa distinta significa que
Ele é separado quanto à essência. (ELWELL, 2001, p. 393-394).
A distinção das pessoas, como foi ensinada por Agostinho, fundamenta-se em suas
relações mútuas dentro do âmago da divindade. Embora considerada uma única essência
divina, o Pai se distingue como Pai, por gerar o Filho, e o Filho se distingue como Filho por
ser gerado. O Espírito Santo, por sua vez, distingue-se do Pai e do Filho enquanto “Dom
comum” de ambos. Ele mesmo define:
Com respeito às relações mútuas na Trindade, se aquele que gerou é princípio do
gerado, o Pai é princípio em referência ao Filho, porque o gerou. Entretanto não é
uma investigação de pouca importância inquirir se o Pai é também princípio com
relação ao Espírito Santo, pois está escrito: procede do Pai. Se assim for, é princípio
não somente do que gera ou faz (o Filho), mas também da Pessoa ele dá (o Espírito).
Isso lançaria uma possível luz sobre a questão que a muitos preocupa, sobre a
possibilidade de dizer-se que o Espírito Santo também seja Filho, já que sai do Pai,
como se lê no Evangelho (Jo. 15,26). Saiu do Pai, sim, mas não como nascido, mas
como Dom, e por isso, não se pode dizer, já que não nasceu como o Unigênito e
nem foi criado como nós, que nascemos para a adoção filial pela graça de Deus.31
31
Da Trindade, 5.15; 5.6; 5.8;
32
GRUDEM, 2010, p. 169-175.
33
Trindade, pode-se encontrar várias passagens que dão a entender ou que até impliquem que
Deus existe como mais de uma pessoa.
Por exemplo, em Gn 1,26 lemos: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança” (grifo nosso). Nesta passagem, a pergunta que se levanta é por que o autor
bíblico faz uso de um verbo no plural (“façamos”) e pronomes no plural (“nossa”)? Várias
sugestões interpretativas têm sido dadas. A primeira sugestão entende que estes plurais devem
ser entendidos como plurais maiestaticus (majestáticos), isto é, uma forma de uso da língua
semelhante ao uso plural em referência à realeza. Wilhelm Gesenius, em usa célebre
gramática da língua hebraica, refuta essa interpretação:
Os gramáticos judeus chamam tais plurais de twOxKoh; yWBrI (ribûy hakkōchôt) pluralis
virium ou virtutum; gramáticos posteriores chamam pluralis excellentiae,
magnitudinis, ou pluralis maiestaticus. Esta última designação deve ter sido
sugerida por causa do uso da primeira pessoa plural (nós), muito comum na
linguagem real, quando reis se referem a si mesmos (cf. 1Mac 10,19; 11,31). Por
causa disso, o uso plural encontrado nas falas de Deus em Gn 1,26; 11,7; Is 6,8 tem
sido incorretamente explicado desta maneira [...] O uso do plural como uma forma
de referência respeitosa é um tanto estranha a língua hebraica (GESENIUS, 1910, p.
398, nota 2).
Outra sugestão interpretativa para este uso plural no texto do Antigo Testamento para
se referir a Deus poderia ser uma eventual referência a um diálogo entre Deus e seus anjos.
Algo que não encontra nenhum tipo de respaldo quer de natureza interna ou externa do texto.
Wayne Grudem, refuta esta opção interpretativa: “Outra sugestão é que Deus esteja aqui
falando com anjos. Mas os anjos não participaram da criação do homem, nem foi o homem
criado à imagem e semelhança de anjos; por isso a sugestão não é convincente.” (GRUDEM,
2010, p. 166).
A melhor interpretação, porém, destes usos plurais referindo-se a Deus é que se tratam
de plurais de “auto-deliberação” (pluralis immanentis). Esta categoria sintática denota uma
deliberação cujos agentes deliberativos são obrigatoriamente plurais. Gesenius afirma: “Este
texto é melhor explicado como um plural de auto-deliberação”33 Mais uma vez, Grudem
resume:
A melhor explicação é que já nos primeiros capítulos de Gênesis temos uma
indicação da pluralidade de pessoas no próprio Deus. Não sabemos quantas são as
pessoas, e nada temos que se aproxime de uma doutrina completa da Trindade, mas
implica-se que há mais de uma pessoa. O mesmo se pode dizer de Gênesis 3:22
(“Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”),
Gênesis 11:7 (“Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem e Isaías 6:8 (“A
quem enviarei, e quem há de ir por nós?”) (GRUDEM, 2010, p. 166).
33
GESENIUS, 1910, p. 398.
34
Ainda no que diz respeito ao uso de expressões plurais em referência a Deus, destaca-
se o uso das expressões hebraicas Elohim (~yhiloa/) e Adonay (yn"doa]), pois ambas são formas
plurais e frequentemente conjugam verbos no singular e funcionam como nomes próprios na
Bíblia Hebraica (cf. Gn 1,1.4; 4,25; Gn 18,1-3; etc.).
Ainda na narrativa de Gênesis, encontra-se outra passagem importante como evidência
para o dogma trinitário. Gênesis 18,1-2 diz: “O SENHOR apareceu a Abraão perto dos
carvalhos de Manré, quando ele estava sentado à entrada de sua tenda, na hora mais quente do
dia. Abraão ergueu os olhos e viu três homens em pé, a pouca distância...” (NVI). Aqui, é
notório o fato de que o versículo 1 diz que “O SENHOR (hw"hy>) apareceu a Abraão”. O verso
seguinte afirma que “Abraão [...] viu três homens (~yvin"a] hv'lov.) em pé”. Aqui, o texto está
claramente afirmando que Yahweh apareceu a Abraão e nesta aparição, Abraão viu três
homens. Há discussão intensa acerca da interpretação desta passagem na academia. A tradição
cristã, de maneira geral, tem visto essa passagem como uma das principais referências ao
Deus trino no Antigo Testamento. Andrei Rublev, em sua famosa representação iconográfica
da hospitalidade de Abraão (séc. XV), apresenta o patriarca e sua esposa, servindo três figuras
angelicais que são, de maneira geral, entendidas como a personificação da Santíssima
Trindade.
Matthias Grenzer, por sua vez, alerta para as tensões que estão presentes na narrativa
(que segue uma natureza estética/poética), e defende que não é possível afirmar
categoricamente quem são essas três figuras angelicais. Ele diz:
Ainda assim, será que o leitor deve imaginar que os três homens são Iahweh ou que
“um dos três é o Senhor”? É impossível definir isso matematicamente, pois o
próprio texto reflete sobre o divino de forma poética. Imagens metafóricas, porém,
são limitadas. Não podem ser forçadas. Caso contrário, deixam de existir.
(GRENZER, 2006, p. 69)
35
Ainda assim, mesmo que a repetição tripla não seja um vocativo referente a cada
pessoa da Trindade, a repetição tripla pode apontar para uma realidade plural ou ainda aponta
para o fato de que o cântico dos serafins era incessante. João Calvino, o reformador de
Genebra, afirma:
Os antigos costumavam citar essa passagem, quando desejavam provar que existe
três pessoas em uma essência na divindade. Eu não discordo de suas opiniões; mas
se eu tivesse que debater com hereges, eu preferiria usar provas mais fortes; pois os
hereges tendem a se tornar obstinados e assumir um ar de triunfo, quando
argumentos incontestáveis lhes são apresentados [...] De fato, é melhor entender essa
repetição como se o profeta estivesse dizendo que os anjos nunca cessaram da sua
melodia, enquanto cantavam e louvavam a santidade de Deus” (CALVIN, 1948, p.
198-199).
36
Nestas duas passagens as Pessoas do Pai, Filho e Espírito Santo são tratadas de
maneira distinta, e ao mesmo tempo, colocadas em pé de igualdade como agentes de
dispensação de bênçãos sobre a Igreja e objeto de devoção, respectivamente.
A menção da tradição petrina é também um caso importante: “ [...] eleitos, segundo a
presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do
sangue de Jesus Cristo [...]” (1Pe 1,2 grifo nosso). Finalmente, encontramos a tríade Pai-
Filho-Espírito Santo na passagem de Judas 20-21 “ [...] orando no Espírito Santo, guardai-
vos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida
eterna.” (grifo nosso).
Finalmente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são mencionados juntos pelo menos 117
vezes no Novo Testamento. Muito embora a Igreja Primitiva tenha tomado bastante tempo
37
para articular o conceito teológico da Trindade, está claro que os cristãos da comunidade
cristã primitiva eram completamente trinitários em sua experiência de fé. Esta realidade pode
ser comparada àquilo que é percebido hoje na Igreja Cristã. Muitos cristãos e fiéis expressam
uma adoração essencialmente trinitária, ainda que sejam incapazes de descrever em termos
teológicos o Deus a quem adoram.
Maioria dos estudiosos da história da igreja nos informa que este credo era usado na
preparação dos catecúmenos, professado durante o batismo, servindo também para a devoção
privada dos cristãos. Posteriormente, passou a ser recitado com a Oração do Senhor em
missas públicas.35 No IX séc., foi sancionado pelo imperador Carlos Magno para uso na Igreja
e o Papa o incorporou à liturgia romana.36 Esta é a versão final do texto do credo apostólico:
Creio em Deus o Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra.
E em Jesus Cristo, seu Filho Unigênito, nosso Senhor; concebido pelo Espírito
Santo e nascido da Virgem Maria; que padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado,
morto e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos; que subiu ao céu e
assentou-se à direito do Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir para julgar os vivos e
os mortos.
Creio no Espírito Santo, na santa igreja católica, na comunhão dos santos, na
remissão de pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém. (SCHAFF,
1984, p. 22)
35
SCHAFF, 1984. p. 17.
36
MCKIM, 1992, p. 91
39
Esta ampliação já demonstra algum refinamento no dogma trinitário, uma vez que
além de refutar de uma vez por todas a heresia ariana, que negava que Jesus Cristo era
consubstancial ao Pai, procura afirmar uma definição teológica mais completa e refinada de
cada pessoa da Trindade Santa. Ainda que trate de maneira distinta cada pessoa da Trindade,
enfatizando a diversidade da divindade, esta definição coloca em um único corpus
theologicum a descrição da natureza plural da trindade. Mais uma vez, a unidade e
diversidade da natureza divina já são contempladas na declaração credal de Constantinopla.
De todos os documentos cristãos antigos, aquele que apresenta uma visão muito clara
da Trindade e demonstra um refinamento teológico ímpar, é o Credo Atanasiano, também
chamado Symbolum Quicunque. Este credo que reflete a teologia dos quatro primeiro sínodos
ecumênicos, a saber, Nicéia (325 d.C.), Constantinopla (381 d.C.), Éfeso (431 d.C.) e
Calcedônia (451 d.C.), tem sentenças breves e demonstra uma estruturação artística, poética e
musical. Philip Schaff define o credo como “um credo musical ou um salmo dogmático”
(SCHAFF, 1984, p. 37).
Segundo a tradição, o autor deste credo (ou pelo menos a maior parte dele) foi
Atanásio, o bispo de Alexandria. Também chamado de o “campeão do trinitarianismo”
(HORRELL, 2013, p. 3), Atanásio teria elaborado este credo durante seu exílio em Roma,
oferecendo este texto como uma síntese de sua confissão de fé. Essa tradição, porém, tem sido
cada vez mais rejeitada dentro da academia cristã.
A teoria mais aceita, no que tange a autoria e data deste documento credal, é que tenha
sido escrito por volta do ano 500 d.C. no sul da Gália ou na África do Norte.37 Apesar de
37
SCHAFF, 1984, p. 91-92.
40
várias hipóteses quanto a sua autoria, que vai desde Ambrósio de Milão, passando por Hilário
de Arles, Virgílio de Tapsus, até Paulinus de Aquileja, ninguém conseguiu provar de modo
incontestável a identidade de seu autor.38
A ênfase do credo é apologética. Isto é, apresenta uma ampla defesa da visão ortodoxa
de Cristo e da Trindade. Em sua cristologia, reflete basicamente a definição de Calcedônia:
Na pessoa única de Cristo há duas naturezas, uma divina e outra humana, sem confusão,
alteração, divisão ou separação; e em sua descrição da Trindade, vê-se uma forte influência do
trinitarianismo conforme definido por Agostinho (354-430 d.C.). Assim diz o Símbolo
Atanasiano:
Todo aquele que quiser ser salvo: antes de todas as coisas é necessário que receba a
fé católica; Tal fé, se não guardada plena e imaculado, sem dúvida trará perdição
eterna. E a fé católica é essa:
Nós adoramos um Deus em Trindade, e Trindade na unidade; sem confundir as
pessoas, sem dividir a substância. Porque há uma Pessoa do Pai, outra do Filho e
outra do Espírito Santo. Mas a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma
só: a glória igual, a majestade, coeterna. Como o Pai é, tal é o Filho, e tal é o
Espírito Santo; O Pai incriado, o Filho incriado e o Espírito Santo incriado; O Pai
incompreensível, o Filho incompreensível, e o Espírito Santo incompreensível; O
Pai eterno, o Filho eterno, e o Espírito Santo eterno; no entanto não são três eternos,
mas um eterno. Porque também não há três incriados, nem três incompreensíveis,
mas um incriado e um incompreensível. Assim, do mesmo modo o Pai é Todo-
poderoso, o Filho, Todo-poderoso, e o Espírito, Todo-poderoso. No entanto, não são
três Todo-poderosos, mas um Todo-poderoso. Assim o Pai é Deus, o Filho é Deus e
o Espírito Santo é Deus; No entanto não são três Deuses, mas um Deus. Assim, no
mesmo modo o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, e o Espírito Santo, Senhor; Todavia
não são três Senhores, mas um Senhor.
Pois assim como somos compelidos pela verdade cristã: Reconhecer que cada
Pessoa é por si mesma Deus e Senhor. Também somos proibidos pela religião
católica de dizer: Há três Deuses, ou há três Senhores. O Pai não é feito de coisa
alguma, nem criado nem gerado. O Filho é do Pai somente; não feito, nem criado,
mas gerado. O Espírito Santo é do Pai e do Filho; não foi feito, nem criado, nem
gerado, mas deles procede. Assim, há um Pai, e não três Pais; um Filho, e não três
Filhos; um Espírito Santo, e não três Espíritos Santos. E, nesta Trindade nenhum
deles é antes ou depois do outro; nenhum é maior ou menor do que o outro. Mas, as
três pessoas são coeternas e coiguais. De modo que em todas as coisas, como dito
acima: a unidade na Trindade e a Trindade na unidade deve ser adorada. Aquele,
portanto, que for salvo deve assim pensar sobre a Trindade.
Além disso, é necessário à eterna salvação que, corretamente, se creia também na
encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo. Porque a fé correta é que creiamos e
confessemos que nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem. Deus,
da substância do Pai, gerado antes dos séculos; e homem da substância de sua mãe,
nascido no mundo. Deus perfeito e homem perfeito, de alma racional e subsistindo
em carne humana. Igual ao Pai quanto à divindade, e inferior ao Pai quanto à
humanidade. Que, embora seja Deus e homem, não é, porém, dois, mas um Cristo.
Um, não pela conversão da divindade em carne, mas levando da humanidade a
Deus. Inteiramente um, não pela confusão da substância, mas pela unidade da
pessoa. Porque assim como a alma racional e a carne são um homem, também Deus
e homem são um Cristo; Que padeceu para a nossa salvação, desceu ao inferno,
ressuscitou dentre os mortos ao terceiro dia; Subiu aos céus e está assentado à direita
do Pai, Deus, Todo-poderoso; de onde vira julgar os vivos e os mortos. Em cuja
38
Ibid., p. 92.
41
Este credo foi amplamente usado durante o período da Idade Média: A tradição latina
da Igreja, usava-o diariamente nas devoções matinais e na catequese antiga. Os pais
reformadores, dentro da tradição protestante, também fizeram grande uso deste texto. Lutero e
Calvino fizeram menção em seus escritos, ao ponto de Calvino reconhecer sua importância,
descrevendo como “o cântico da verdade trinitária” (CALVINO, 2008, p. 126). As confissões
luteranas de Augsburgo, bem como a Fórmula de Concórdia citam este texto. As confissões
reformadas clássicas (39 artigos, Confissão Helvética e Confissão Belga) fazem centenas de
menções ao texto do Quincuque.
Heinrich Denzinger, em sua clássica obra Compêndio dos Símbolos, Definições e
Declarações de Fé e Moral (ed. Paulinas), alista muitos outros documentos doutrinais
essenciais e importantes para a plena compreensão do desenvolvimento histórico do dogma da
Trindade. Dentre eles, são: A Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria (ca. 262
d.C.); A declaração de fé do Sínodo Romano de 382 d.C.; Os 14 Cânones produzidos durante
o II Concílio de Constantinopla (553 d.C.); Os Cânones produzidos durante o Sínodo de
Latrão sob Martinho I (649 d.C.); o XI Sínodo de Toledo (675 d.C.); O Sínodo Romano sob o
Agatão I (ca. 680 d.C.); O XV e XVI Sínodo de Toledo (688 d.C. e 693 d.C.
respectivamente); Os Setenta Decretos Reformatórios produzidos durante o IV Concílio de
Latrão (1215 d.C.); A Confissão de Fé do Imperador Miguel VIII no II Concílio de Lião
(1274 d.C.); As bulas papais Laetentur Caeli (1439 d.C.) e Cantate Domino (1442 d.C.)
oriundas do Concílio de Florença (1431-1445 d.C.); A Constituição Cum Quorumdam
Hominum do Papa Pio IV (1555 d.C.), e por fim, a declaração da Congregação da Fé
Mysterium Filii Dei (1972 d.C.).
Estes (e outros) documentos produzidos pela Igreja, em alguma medida, foram
expandindo, refinando, ratificando e cristalizando a doutrina da Trindade ao longo dos
séculos, bem como serviram para refutar e corrigir os eventuais desvios teológicos que
também surgiram na história, colocando em cheque a integridade doutrinaria da Igreja e a
ortodoxia cristã.
42
3.1.5 Heresias
A história do cristianismo tem mostrado que com o passar do anos, uma série de
visões incorretas e distorcidas, isto é, visões heréticas da Trindade surgiram no seio da Igreja
e precisaram ser respondidas e corrigidas. Faz-se necessário, porém, definir o conceito de
heresia, antes de qualquer conjectura acerca de conceitos errôneos da Trindade.
Walter Bauer (1877-1960), em seu estudo Orthodoxy and Heresy in Earliest
Christianity, alegava que algumas formas de cristianismo consideradas “heréticas” por
gerações posteriores, eram, na verdade, muito comuns, mais influentes e melhor recebidas
pela igreja antiga. Com o passar dos anos, segundo Bauer, essas ideias passaram a ser vistas
com suspeita por parte das gerações posteriores, fazendo com que a Igreja, que ficava cada
vez mais institucionalizada com o passar do tempo, deliberadamente as reprimisse,
declarando-as heréticas, e impondo suas próprias ideias como ortodoxas.39 Na visão de Bauer,
a diferença entre o que era ortodoxia e o que era heresia sempre pareceu arbitrária. Para ele,
essa categorização revela muito mais um movimento institucional e representam a criação
posterior do modelo de cristianismo que vemos hoje.
Estudos mais recentes têm lançado dúvidas consideráveis sobre a tese de Bauer,
embora ela ainda conserve sua popularidade nos círculos da teologia liberal alemã. Henry
Chadwick, acadêmico de Oxford, especialista em patrística, refutou a tese de Bauer de
maneira bastante persuasiva em seu ensaio The Circle and the Ellipse,40 afirmando que Bauer
tem uma visão limitada do desenvolvimento teológico da ortodoxia cristã, pois entende que o
padrão ortodoxia se concentrava somente em Roma – centro político do cristianismo. Para
Chadwick, Roma era importante e o grande centro do cristianismo antigo, mas é obvia a
influencia de outros centros como Alexandria e Jerusalém na construção da ortodoxia cristã.
Mais recentemente, o teólogo reformado austríaco Andreas Köstenberger também
apresentou uma importante crítica à tese de Bauer em seu livro The Heresy of Orthodoxy
(2010), mostrando de maneira bem convincente que o problema da tese de Bauer está nos
pressupostos da leitura historiográfica, não necessariamente em sua argumentação. Ou seja, os
óculos de Bauer, segundo Köstenberger, estão invertidos, uma vez que ele lê a história da
doutrina cristã com as categorias do modernismo e por isso tem uma perspectiva
essencialmente moderna (preconceituosa e pragmática) dos conceitos de ortodoxia e heresia.41
39
BAUER, 1971, p. 56-145.
40
CHADWICK, 1959, p. 1-17.
41
KÖSTENBERGER, 2010, p.16-59.
43
42
SCHLEIERMACHER, 2016, p. 6-50.
43
BAUER. 1971, p. 6-36.
44
3.1.5.1 O Modalismo
A expressão “modalismo” é um termo recente introduzido pelo teólogo e historiador
alemão, Adolf von Harnack45 para descrever um grupo de heresias associadas principalmente
a Noetus e Praexas, no século II e Sabélio, do século III. Em essência, o modalismo é uma
tentativa errônea de preservar a unidade da Trindade (uma ousia), em face de sua diversidade
(três hypostaseis). Sua proposta é muito simples: A unidade absoluta de Deus (monarchia)46
se manifestou na história de três maneiras distintas. Isto é, as pessoas da Trindade, segundo o
modalismo, são “modos” de revelação e manifestação de um único Deus, nunca três Pessoas
distintas, existindo em relacionamento pericorético e compartilhando a mesma substância
divina.
Desta maneira, não existe distinção entre as pessoas da Trindade, salvo de “aparência”
e de localização cronológica, visto que o Pai é a revelação de Deus no Antigo Testamento, o
44
SCHLEIERMACHER, 2016, p. 6-50.
45
HARNACK, 1901, p. 231.
46
Esta heresia também é chamada de “monarquianismo” pois não só afirma que Deus se revelou de
“modos” diferentes, mas também enfatiza que só existe um único soberano e absoluto Deus
(“monarca”) sobre todo o universo, e esse é o próprio Deus, que consiste somente numa pessoa.
45
A história nos conta que Sabélio foi advertido, e em seguida, excomungado pelo Papa
Calisto e, antes dele, por Zeferino I. Dionísio de Roma, em 262, apresenta as ideias de Sabélio
como blasfemas: “Este [Sabélio], com efeito, blasfema quando diz que o próprio Filho é o Pai
e vice-versa” (DENZINGER, 2007, p. 112).
O erro fatal do modalismo é negar necessariamente as relações pessoais entre os
membros da Trindade, ou, por lógica, supor que essas relações descritas nos Evangelhos,
como o Filho orando ao Pai, são meramente ilusórias. Além disso, o modalismo nega a
independência de Deus, pois se Deus é somente uma pessoa, não tem capacidade de amar de
se comunicar sem a sua criação. Desta forma, Deus teria tido necessidade de criar o mundo a
fim de preencher uma eventual lacuna relacional e de amor.
46
3.1.5.2 O Triteísmo
A expressão latina que resume o triteísmo é in tribus personis distinctus Deus (Deus
em três pessoas distintas), em oposição à expressão Deus unus in tribus personis distinctis
(Deus uno em três pessoas distintas), que resume o ensino cristão. Aparentemente, essa
expressão foi usada por alguns participantes no Sínodo de Pistoia (1786 d.C.). Esta fórmula
foi refutada pelo Papa Pio VI de maneira veemente:
Primeiro: depois que, legitimamente, considerou que Deus permanece no seu Ser
uno e simplicíssimo, quando em seguida acrescenta que Deus mesmo se distingue
em três pessoas, [o Sínodo] se afasta de modo incorreto da fórmula comum e
aprovado nos ordenamentos da doutrina cristã, pela qual Deus é chamado
verdadeiramente uno em três pessoas distintas, mas não distinto em três Pessoas [in
tribus personis distinctus]; com esta troca da fórmula, por força das palavras,
introduz-se furtivamente o perigo de erro, que consistiria em pensar distinta em
pessoas a essência divina, enquanto a fé católica a confessa de tal modo una em
pessoas distintas que ao mesmo tempo a declara totalmente indistinta em si mesma
(DENZINGER, 2007, p. 594-595).
O XI Sínodo de Toledo (675 d.C.) apresenta uma declaração que estabelece uma
completa e clara distinção entre o dogma trinitário (Deus trinitas) e a heresia triteísta (Deus
triplex): “Assim que convém apresentar a santa Trindade: não se deve dizer e crer que ela seja
tríplice (triplex), mas Trindade (trinitas)” (DENZINGER, 2007, p. 192). Outra declaração que
se opõe não somente ao triteísmo, mas também ao modalismo é a fórmula de Gregório
Nazianzeno que expressa Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo são cada qual um “outro”
(alius) e não uma essência diferente (aliud): “Embora pois, outro [alius] seja o Pai, outro
[alius] o Filho, outro [alius] o Espírito Santo, não são toda vida outra coisa [aliud]”
(DENZINGER, 2007, p. 286).
47
3.1.5.3 O Arianismo
Embora a heresia ariana seja essencialmente uma heresia de natureza cristológica, seus
desdobramentos afetam, sem dúvida, a compreensão ortodoxa da Trindade. Ário (256-336
d.C.), bispo de Alexandria, é conhecido como o precursor das ideias que mais tarde ficaram
conhecidas como arianismo. Ário ensinava que Deus Filho foi em dado momento, na
eternidade passada, criado por Deus Pai e que antes desse momento o Filho não existia, nem o
Espírito Santo, mas somente o Pai. Assim, embora o Filho e o Espírito Santo sejam seres
celestes anteriores ao resto da criação e bem maiores do que tudo que há na natureza criada,
eles não se igualam ao Pai em todos os seus atributos – pode-se até dizer que são “iguais ao
Pai” ou “semelhantes ao Pai” na sua natureza, mas não se pode dizer que é da mesma
substância (homoousios) do Pai.
A controvérsia com Ário estava em duas palavras que ficaram famosas na história da
doutrina cristã: homoousios (“da mesma natureza”) e homoiousios (“de natureza
semelhante”). Enquanto a primeira expressão, quando atribuída ao Deus Filho, insiste em
afirmar que Cristo era consubstancial ao Pai, a segunda expressão afirma que Cristo era
somente semelhante ao Pai.
As implicações teológicas desta afirmação para a doutrina da Trindade vão desde uma
visão inadequada da natureza trina de Deus, até uma forma de subordinacionismo – heresia
correlata e subsequente ao arianismo. O subordinacionismo, partindo do pressuposto que o
Filho era somente semelhante ao Pai, afirmava que em seus atributos, o Filho era inferior ou
“subordinado” no seu ser ao Pai.
As ideias de Ário foram condenadas no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., na
declaração credal acerca de Cristo como “sendo da mesma substância (homoousios) do Pai”.
O repúdio às ideias de Ário foram reafirmadas no Concílio de Constantinopla (381 d.C.). O
grande advogado da visão ortodoxa da Trindade, durante o Concílio de Nicéia, foi Atanásio
que participou como membro não oficial, como secretario de Alexandre, então bispo de
Alexandria. A contribuição de Atanásio para a compreensão ortodoxa da Trindade será
explorada na próxima seção.
Irineu de Lião, foi discípulo de Policarpo de Esmirna, que por usa vez foi discípulo do
apóstolo João, e bispo na Gália. Para ele a doutrina cristã verdadeira estaria contida no
chamado “depósito apostólico”, que seriam as Sagradas Escrituras, a tradição apostólica e a
sucessão apostólica, isto é, os bispos escolhidos e instruídos pelos apóstolos. Seguindo esse
método teológico, Irineu percebeu a Trindade à partir da concepção histórico-salvífica, isto é,
a Trindade como uma unidade essencial que se difere no Pai, Filho e Espírito Santo,
revelando-se na história na encarnação do Filho a fim de redimir o homem e o conduzir para
uma consumação escatológica pelo Espírito. Ele se tornou notável por sua defesa brilhante e
veemente da ortodoxia cristã em face da heresia do gnosticismo em sua obra magna, Adversus
Haereses, especialmente no que diz respeito à formulação trinitária de Deus. Ele diz:
Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu
dos apóstolos e seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e
a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus,
encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a
economia de Deus (LIÃO, 2016, p. 146).
Irineu teve sua teologia profundamente influenciada pelos escritos da tradição Paulina
e Joanina. Por isso, enfatizou que o propósito da encarnação de Cristo seria o de redimir os
pecadores e a criação por meio da obra de recapitulação e restauração, em que Jesus Cristo é o
Novo Adão para refazer tudo que de maneira completamente perfeita, onde Adão errou.
Dessa maneira, seu entendimento trinitário parte essencialmente da sua articulação
cristológica, tendo o Filho como o executor de Redenção, pelo poder do Espírito Santo,
cumprindo os decretos do Pai .
Tertuliano de Cartago, ainda que não seja considerado um Pai da Igreja, é conhecido
como o primeiro grande teólogo latino. Atuou majoritariamente como um apologista na
região da África romana, sendo dos principais opositores de Marcião. É atribuído a ele o
desenvolvimento do vocabulário teológico que dominaria todo o lado ocidental da
cristandade, pois foi o primeiro a usar a expressão “trindade” (trinitas) e quem buscou
elucidar e desenvolver os conceitos de trinitas, substantia e persona.47 Além disso, foi o
47
KELLY, 1978, p. 121.
49
48
Do Atismo, p. 13.
49
Ibid.
50
50
RATZINGER, 2012. p. 31-47.
51
Da Trindade, p. 145.
52
MÜLLER, 2014. p. 314.
53
De Incarnatione Verbi, p. 35.
51
e prosopon, estabelecendo assim uma ponte para a teologia ocidental (que mais tarde
influenciaria Agostinho).54
A segunda razão é pela sua forte atuação apologética em face da causa Ariana. É
importante notar que todos os pais capadócios seguem a tradição trinitária atanasiana, como
herdeiros de da teologia nicena. Entre 325 d.C. (Concílio de Nicéia) e 381 d.C. (Concílio de
Constantinopla), foram eles os responsáveis por salvaguardar a tradição cristã da heresia
Ariana, visto que durante este período, o arianismo tinha forte influência política e apoio
estatal. Essa influência se encerrou quando Teodósio I, um general cristão ortodoxo, se tornou
imperador em 379 d.C.55
A terceira razão pela qual os capadócios tem um papel importante no desenvolvimento
do dogma trinitário é o fato de que sob sua influência, especialmente de Gregório de
Nazianzo, que Constantinopla articulou o dogma acerca do Espírito Santo. Em suma, o Credo
Constantinopolitano, além de reafirmar o trinitarianismo Niceno, expandiu o artigo acerca da
pessoa do Espírito Santo, equilibrando teologicamente os artigos do Credo de Nicéia.
54
GONZALES, 1984, p. 187.
55
Ibid.
53
reciprocidade, desta maneira, o Espírito Santo precisa ser obrigatoriamente uma pessoa para
que seja capaz de amar e ser amado pelas demais pessoas da Trindade.
Desta maneira, o Trinitarianismo agostiniano pode ser resumido da seguinte maneira:
O Pai e principium, fons et origo (princípio, fonte e origem) da divindade inteira, da geração
do Filho e da processão do Espírito56. O Pai é principium sine principio (princípio sem
principio), o Filho principium de principio (princípio do princípio), e o Espírito Santo procede
ab utroque (de ambos).
57
Cf. MÜLLER, 2014. p. 322-323.
56
O método teológico de Rahner, no que diz respeito à Trindade, tem um ponto muito
positivo: Ele insiste que o ponto de partida para a discussão trinitária é nossa experiência da
história da salvação e de sua expressão bíblica. Dessa maneira, o mistério da salvação
acontece primeiro, depois prosseguimos na elaboração de doutrinas relativas a ele. Assim,
esse conhecimento prévio da Trindade econômica, derivado da história da salvação e da
Bíblia, é o ponto de partida do processo da reflexão sistemática. A Trindade imanente, na
concepção de Rahner deve ser entendida como uma concepção sistemática da Trindade
econômica.58
58
MCGRATH, 2005, p. 391
57
a dependência, opressão e desigualdade. Muito embora, Leonardo Boff não cite propriamente
quais sejam essas categorias europeias, seu argumento é simples: A Igreja latino-americana
precisa abrir mão de uma leitura tipicamente europeia da Trindade (que de maneira geral, é
estática e pouco prática), e buscar entender a Trindade como padrão e modelo social
igualitário e comunal, para que seja capaz de responder as demandas que o contexto latino-
americano oferece:
É aqui que a fé na Santíssima Trindade, no mistério da pericórese, da comunhão
trinitária e da sociedade divina ganha especial ressonância, pois a Trindade aparece
como o modelo para todo convívio social igualitário, respeitoso das diferenças e
justo. A partir da fé em Deus trino os cristãos postulam uma sociedade que possa ser
imagem e semelhança da Trindade. Por outro lado, a fé na Trindade de Pessoas, Pai,
Filho e Espírito Santo, vem responder à grande busca por participação, igualdade e
comunhão que incendeia as consciências dos oprimidos. Seja nas bases da
sociedade, seja nos meios eclesiais se rejeita o tipo de sociedade excludente sob a
qual todos sofremos. (BOFF, 2014, p. 28).
O próprio Balthasar deixa claro que o theo-drama foi planejado para ser a obra central
de seu “tríptico” teológico. 59 O volume que abre a série do theo-drama (Prolegomena),
estabelece o cenário, explicando o papel da teoria do drama como ponto intermediário entre a
Teo-Estética e a Teo-Lógica. Aqui, Balthasar demonstra como é mais natural pensar o drama
como elemento central, sendo a continuação mais adequada da teologia estética e não da
teologia discursiva. A nomenclatura que ele usa é: Teo-fania (Estética); Teo-praxia (Drama) e
Teo-logia (lógica).60
Para Balthasar, o drama teológico começa a partir do momento em que o espectador
da glória de Deus é invariavelmente transportando para ação. Sua explicação é rebuscada,
mas o argumento é simples: Na ótica de Balthasar, tudo que é belo possui três elementos
fundamentais. Integritas (integridade), Claritas (brilho/radiação) e Consonantia (harmonia).
O belo é íntegro e não precisa de adições ou correções. Desta maneira, o belo é – nunca será
(pois ainda não é belo) ou foi (pois já deixou de ser). Além disso, o belo é brilhante, radiante.
Isto é, é impossível ser indiferente ao belo, por ele irradia e alcança a percepção humana.
Finalmente, o belo é harmonioso. Isto é, todas as partes que compõe o belo atuam de maneira
extremamente harmoniosa numa relação mútua que compõe o estético. Isso se aplica, segundo
Balthasar, a tudo que é estético no cosmos, especialmente a revelação da glória de Deus e a
Pessoa do Deus Filho.
Sendo totalmente íntegra, radiante e harmoniosa, a glória de Deus em Jesus Cristo é o
belo par excellence. Desta forma o belo produz três efeitos no espectador: (1) atrai; (2)
transforma/modela e (3) comissiona. O expectador da glória de Deus não somente é atraído e
transformado, mas convidado a ação. Aqui é a diferença principal entre a estética do mundo
grego e a estética bíblica/cristã. O estético na perspectiva grega é mero objeto de
59
BALTHASAR, 1988, p. 15.
60
Ibid.
59
Drama: (7) A categoria “Papel”, que investiga e trata de apresentar a teologia de maneira
“encarnada” como uma personalidade; (8) a categoria “Liberdade Humana”, que é central do
desenrolar do Drama, uma vez que no palco do mundo agentes livres são afetados e
respondem a atuação divina; e, finalmente, (9) a categoria “possibilidade do mal”, que lida
com a realidade da dor e do sofrimento (aquilo que dá efetivamente cores e sabores ao drama
humano e divino).61
Depois de lidar com as objeções que poderiam ser levantadas para seu argumento de
que há uma real analogia entre o drama (o teatro) e a teologia cristã, Balthasar passa o resto
de sua prolegomena tentando estabelecer um sistema de categorias dramáticas que ajudarão
na construção e confirmação do Theo-Drama. Ele começa refletindo no mundo como um
grande teatro (palco do drama), logo em seguida passa a considerar a vida humana (e a
história da humanidade) como uma grande peça (o drama em si). Depois, ele passa a deliberar
acerca da existência humana como uma proposta de papel que é apresentado ao homem.
Essa reflexão começa com a ideia do “grande palco do mundo”, reconhecendo que
essa não é uma ideia original, traçando este conceito desde o mundo antigo, passando pela
filosofia grega, mundo antigo, era moderna, chegando até a grande obra de Pedro Calderón de
La Barca, “O Grande Teatro do Mundo” – sua principal referência para o conceito do mundo
como o palco do drama de Deus.
Segundo Balthasar, o conceito do “Teatro do Mundo” se sustenta sobre quatro pilares
temáticos que sustentam a dimensão dramática da existência humana. O primeiro pilar é a
finitude temporal e espacial da peça e seu significado atemporal. 62 Em outra palavras,
Balthasar mostra a maneira como o tempo e o espaço expostos no drama espelham uma
realidade para além do palco, oferecendo significado a existência humana atemporal. O
segundo pilar é a estreita relação entre o “eu real” e o “eu teatral”, isto é, o quão longe o ator
de uma peça deve se identificar com seu papel para que a atuação seja genuinamente
autêntica. O terceiro pilar é a responsabilidade da atuação do ator diante da supervisão e
cuidado do diretor, esse ponto é essencial na argumentação de Balthasar, pois aqui há uma
tensão delicada entre o improviso do ator e o curso do drama descrito no roteiro. O último
pilar é a tensão dramática que há nas perspectivas teatrais que dão tons e personalidade a um
determinado espetáculo.
A partir de então, Balthasar passa a discutir os elementos do drama em si, que são,
neste volume, desenvolvidos em duas tríades: Os três elementos da criatividade do drama
61
BALTHASAR, 1988, p. 25-50.
62
BALTHASAR, 1988, p. 249-250.
61
63
Ibid., p. 259-342.
64
Ibid., p. 259-480.
65
BALTHASAR, 1988, p. 487.
62
O primeiro estágio, como descrito por Balthasar, está articulado nos volumes 2 e 3 de
sua obra. Balthasar reconhece, entretanto, que antes de lidar com a lista de elenco, isto é, as
personagens do drama (dramatis personae), precisa primeiro lidar com dois temas
importantes: O primeiro é simples, mas extremamente importante, e diz respeito ao tipo de
drama que está sendo desenvolvido. O segundo tema é especificamente teológico e diz
respeito a como seres humanos podem atuar e fazer parte deste drama que essencialmente
começa e termina em Deus.
No segundo volume, Balthasar vai argumentar que o drama de Deus é único. O fato de
Deus ter feio sua a tragédia humana, não há categoria dramática que possa descrever ou
comportar o drama de Deus – As categorias “lírica” ou “épica” ajudam a compreensão do
theodrama, mas não conseguem lidar com todas as facetas do drama em si. Dessa maneira,
Balthasar propõe uma convergência em direção ao theodrama. Aqui ele volta nas nove
categorias da prolegomena para provar seu argumento: a multiplicidade de categorias aponta
e culmina no theodrama, visto que somente o drama de Deus, poderia colocar todas essas
categorias juntas, como a imagem é o elemento que une todas as peças de um quebra-cabeças.
Logo em seguida, Balthasar passa a apresentar aquilo que ele chama de
“Hermenêutica Theodramática”. Balthasar sustenta que “ao revelar a si mesmo em Jesus
Cisto, Deus interpreta a si mesmo – e isto deve envolver sua doação de uma interpretação, em
absoluto detalhe, revelando seu plano para o mundo” (BALTHASAR, 1990, p. 91). Essa
chamada hermenêutica teodramática tem características essenciais como convém a qualquer
modelo hermenêutico. O primeiro elemento é o reconhecimento da Igreja como o ofício de
ensino, sendo que ela é participante no drama como arauto e testemunha de Cristo. O segundo
elemento é o reconhecimento de que o testemunho da Escritura não é externo aos eventos que
descreve, mas uma “Palavra que viaja e anda conosco” (BALTHASAR, 1990. p. 102). O
terceiro elemento dessa hermenêutica dramática é o princípio do “ainda maior” que é aplicado
a tudo que diz respeito a Deus e sua revelação (e é a base ultima da compreensão de Balthasar
63
66
BALTHASAR, 1990, p. 130-136.
64
interessante e rica do ponto de vista teológico, apresenta Jesus Cristo a partir de sua missão e
como isso é determinante para o entendimento de sua natureza. É notável o fato que Balthasar
inverte o método de investigação teológica e procurar definir (teologizar) à partir da
contemplação e da ação e missão de Cristo.
Seu ponto de partida é a “Missão como um Conceito Básico” (BALTHASAR, 1992,
p. 149), no qual Balthasar assume que Jesus tinha um senso de missão que era tanto
escatológico quanto universal. Desta maneira, podem ser harmonizadas todas as passagens
bíblicas e temas dogmáticos acerca de Cristo Jesus. Balthasar resume:
Se [...] entendermos o fato de que Cristo estava ciente de que ele pertencia a Deus e
relacionarmos isso à sua missão, então nos não teremos necessidade de agonizar
acerca da relação da sua autoconsciência humana em face de sua autoconsciência
divina. A tarefa dada a ele pelo Pai, é a de expressão a paternidade de Deus em todo
o seu ser, muito embora sua vida e morte no e pelo mundo ocupe totalmente sua
autoconsciência e a preenche de maneira plena (BALTHASAR, 1992, p. 172).
Esta cristologia baseada em missão tem implicações trinitárias que serão exploradas
na próxima seção, mas neste ponto, vale notar que para Balthasar o elemento distintivo
máximo entre o Pai e o Filho, ainda que compartilhem a mesma substância divina, é que o Pai
é o agente doador da missão (arquiteto missional) e o Filho é o executor da missão, por meio
do empoderamento do Espírito Santo.67
Após discutir a pessoa e a natureza de Cristo, Balthasar começa a apresentar sua
perspectiva mariana tanto em termos cristológicos, quanto em termos eclesiológicos.
Balthasar está sobretudo interessado em colocar em diálogo sua perspectiva mariana com as
declarações do Vaticano acerca da Mariologia, especialmente a doutrina da Imaculada
Conceição (1854) e a Ascensão Corpórea de Maria (1950). Resumidamente, para Balthasar,
“Maria é uma personagem dramática porque sua existência se dá entre os vários estados da
natureza humana” (BALTHASAR, 1992, p. 318).
A discussão eclesiológica de Balthasar é entrelaçada com o a discussão Mariana, visto
que Balthasar apresenta a Igreja como a personagem do drama que é a “parceira” (“noiva”) do
personagem principal. Uma vez que Maria é o modelo “corpóreo” da Igreja, como a Mãe do
Redentor, a igreja não somente tem uma característica de “noiva”, mas também de “mãe” de
todos os cristãos que decidem entrar no drama e fazer parte da missão de Cristo.
O terceiro volume é encerrado com um lembrete de Balthasar, lembrando seus leitores
que todos as personagens do drama encontram um papel para atuar por causa do drama que
começa com as pessoas e os relacionamentos da Trindade. Balthasar conclui que sua teoria do
67
BALTHASAR, 1992, p. 183.
65
drama significa para os conceitos tradicionais uma discussão acerca da Trindade econômica e
imanente. Desta forma, o que Balthasar está propondo é que o drama divino que acontece no
palco do mundo encontra seu significado último a medida que é colocado em relação com os
relacionamentos eternos da trindade nos céus.68
68
BALTHASAR, 1992, p. 508.
69
BALTHASAR, 1994, p. 18.
66
A visão de Balthasar acerca da expiação é governada por cinco temas que ele entende
ser centrais no testemunho do Novo Testamento: (1) O Filho de Deus entregou a si mesmo
por todos; (2) a fim de nos substituir e morrer em nosso lugar; (3) nos libertando do pecado e
da morte; (4) levando-nos para a realidade da vida trinitária; e, finalmente, (5) de maneira que
todo o processo de reconciliação seja atribuído pelo amor misericordioso de Deus.70
Tendo apresentado esses temas bíblicos, Balthasar então segue em mostrar como eles
tem sido tratados pela teologia, pois é sua opinião que uma soteriologia genuinamente cristã
depende diretamente que estes temas estejam sendo tratados em relação uns com os outros.
Para ele, qualquer abordagem que não compreenda todas essas realidades e enfatize qualquer
destes cinco temas, resultará na perda da tensão teodramática encontrada na soteriologia.71
Depois de lidar com a argumentação soteriológica de Anselmo, Tomás de Aquino,
Karl Rahner, Karl Barth e Martinho Lutero, Balthasar encerra seu quarto volume apresentado
um excurso quase que doxológico, falando do Cordeiro morto e vitorioso, a partir da
abordagem dos dois adões, as dimensões teodramáticas da libertação e os dilemas da morte.
70
Ibid., p. 240-244.
71
Ibid., p. 244.
67
Ao introduzir seu “Último Ato’, Balthasar lida com aquilo que ele chama de “A Ideia
de uma Escatologia Cristã” (BALTHASAR, 1998, p. 19). Nesta introdução, Balthasar
trabalha três temas que, segundo ele, tem influenciado de maneira profunda a escatologia
cristã. O primeiro tema é “Expectativa Apocalíptica do Judaísmo Tardio”; o segundo tema é
“Expectativa Escatológica do Próprio Cristo”; e o terceiro tema, “A Expectativa da Igreja
Primitiva Acerca do Fim Iminente do Mundo e o Retorno de Cristo”.
Após considerar todos esses temas, a conclusão balthasariana é simples:
O Novo Testamento não mais preserva a ideia da revelação de um theo-drama
horizontal; existe apenas um theo-drama vertical no qual cada momento do tempo,
na medida em que tenha significado escatológico, aponta diretamente para o Senhor
Exaltado, o qual tomou todo o conteúdo da história – vida, morte e ressureição –
consigo para dentro e um reino supratemporal. (BALTHASAR, 1998, p. 48).
Aqui é possível detectar a leitura de Balthasar da cristologia joanina, com sua ênfase
no conceito de escatologia realizada que fora inaugurada pela vida, morte e ressurreição de
Cristo:
Para João, o evento-Cristo, o qual é sempre visto em sua totalidade, é a erupção
vertical do cumprimento na história horizontal; tal erupção não deixa este tempo –
no presente, passado e futuro – modificado, mas traz para dentro de si mesmo e
portanto, oferece um novo caráter. (BALTHASAR, 1998, p. 25).
Depois que Balthasar estabelece suas reflexões iniciais acerca da escatologia, ele passa
a discutir a natureza do novo mundo, o “mundo que vem de Deus” (BALTHASAR, 1998, p.
56). Segundo Balthasar, neste ponto, é necessário delinear uma chamada escatologia
antropológica, visto que as molduras teológicas que orientam a escatologia de natureza
individual é a morte do homem, seu julgamento e destino final.
Desta maneira, essa discussão envolve dois elementos: Em primeiro lugar, um novo
entendimento do relacionamento e interação entre Deus e o homem, com base na imago
trinitatis; e, em segundo lugar, um novo entendimento do relacionamento entre o tempo de
Deus e o tempo do homem, em particular, a primazia do tempo de Deus (kairo,j) sobre o
tempo do homem (crono,j), à luz do tempo de Cristo.
Assim, depois de discutir os temas da esperança (em diálogo com Jürgen Moltmann e
Teilhard de Chardin); a salvação universal, a dor de Deus e a Eleição (em diálogo com Karl
Barth), Balthasar encerra o último volume de sua grande obra, com algumas reflexões finais
acerca do mistério do propósito do drama. Segundo ele, se compreendermos e exaurirmos
completamente o significado do Drama, então teremos uma visão errada e anti-cristã do
Drama, por causa de sua natureza mistagógica. Ele mesmo diz:
Se todas essas formulações devem ter um significado permanente, e se os paradoxos
que são contidos nessas formulações são intransponíveis, este significado poderá ser
68
72
BALTHASAR, 1994, p. 313-323.
73
Ibid.
70
Santo na Trindade, como o Ente divino que une a Trindade, bem como demonstra que a
chamada cláusula Filioque é essencial em seu trinitarismo.
Balthasar entende que o Espírito, portanto, é o beijo ou o selo do relacionamento de
amor entre o Pai e o Filho. Assim, o Pai somente gera o Filho, enquanto ambos o Pai e o Filho
expiram o Espírito Santo. Ainda segundo Balthasar, em termos de suas relações uns aos
outros, o Pai é ativo enquanto gera o Filho, e passivo ao receber de volta do Filho a Sua auto-
doação; O Filho é passivo em receber seu Ser e identidade do Pai, e ativo em ofertar-se de
volta ao Pai; O Espírito é passivo em receber Sua divindade como a plenitude do amor entre o
Pai e o Filho. Aqui, é necessário ser dito que para Balthasar, passividade em nenhuma
hipótese significa inferioridade ontológica ou alguma forma de subordinacionismo.
Assim, Balthasar conclui seu modelo de Trindade imanente, como um modelo de
amor interpessoal, onde este amor é altruisticamente compartilhado – ofertado e recebido –
entre as pessoas distintas da Trindade. Balthasar conclui: “A Trindade imanente deve ser
entendida como sendo uma eterna e absoluta auto-doação, por meio da qual Deus é visto ser,
nele mesmo, como amor absoluto” (BALTHASAR, 1994, p. 323). Desta maneira, para
Balthasar o significado da doutrina da Trindade e que a natureza de Deus é amor interpessoal.
A essência de Deus é o amor compartilhado na esfera intra-trinitária. Assim, o modelo
interpessoal da Trindade é o modelo que melhor explica a relações intra-trinitárias.
Essa visão da Trindade como amor interpessoal é o que sustenta toda a percepção da
Trindade como uma Dramatis Personae (pessoa do drama). Visto que tudo se inicia com uma
autodoação do Pai gerando o Filho, a autodoação do Filho ao Pai como resposta, nada mais é
do que o centro do Drama, visto que é exatamente esta autodoação do Filho ao Pai que lhe faz
assumir o papel de protagonista no drama da redenção, especialmente no Drama da Semana
Santa. Ao se doar de volta ao Pai, o Filho se esvazia (cf. Fp 2,5-11) e se doa aos homens
executando o roteiro de redenção estabelecido pelo Pai, assumindo o papel de ator principal
do Drama. Este drama, portanto, não é iniciado na kenosis do Filho, mas na kenosis do
próprio Pai. Assim, o Pai sai do papel de dramaturgo ou roteirista do Drama, e entra no palco,
visto que a atuação de doação do Filho, é mera mímese da auto-doação do Pai. Todo o papel
do Filho dentro do Drama é uma repetição (uma pantomima) da ação do Pai.
ao modelo trinitário de Barth, visto que ambos entendem a Trindade econômica como uma
fenomenologia das relações imanentes e intra-trinitárias.
O coração da teologia trinitária de Balthasar reside no fato que ele busca fundamentar
cada aspecto da história da salvação na natureza interna e trina de Deus. Balthasar descreve o
Ser e a ação trinitária de Deus dentro da história da salvação como a revelação do amor e
autodoação que eternamente constitui a Trindade imanente. Além disso, Balthasar entende
que este amor e autodoação não somente são revelados na história da redenção, mas também
são os elementos que tornaram a redenção possível.
Assumindo essa correlação entre a Trindade (imanente) e a história da salvação,
Balthasar é capaz de ver que Deus, o Pai, se relaciona com Sua criação na mesma maneira em
que Ele se relaciona com o Filho, isto é, uma relação ad intra. Da mesma maneira em que o
Pai gera o filho por meio de um amor kenótico, o Pai cria o mundo a partir de um derramar de
Seu amor, e até mesmo de um derramar Dele mesmo. Assim, da mesma maneira que o Filho
responde em amor ao amor do Pai, toda a criação é chamada a responder em amor as
iniciativas amorosas do Pai. A criação, como o Filho, recebe tudo o que tem e é do Pai. A
criação é formada pelo amor do Pai, assim como o Filho é gerado pelo amor do Pai.74
A criação, por sua vez, é chamada pela graça para se relacionar com Pai numa postura
de amor filial, da mesma maneira que cada ser humano deveria ser um filho ou filha do Pai,
pela graça da adoção em Cristo, cuja filiação é divina e eterna. Na história da salvação, a
relação entre Deus e a criação reflete e até mesmo subsiste na relação entre o Pai e o Filho.
Balthasar expande o seu modelo interpessoal da Trindade imanente, e inclui as
relações econômicas. Desta forma ele apresenta a correspondência entre a natureza trina de
Deus e a economia trinitária, especialmente na história da salvação. Assim como o Pai gera o
Filho na esfera imanente (eterna geração), Cristo, o Filho encarnado é enviado ao mundo
(missão). Da mesma maneira que o Filho responde de maneira perfeita a iniciativa amorosa
do Pai na Trindade imanente, o mundo é chamado para responder ao dom de Cristo com
ações de conversão, ação de graças e adoração.75 Assim, o mundo é convidado a retornar ao
Pai por meio do Filho no Espírito. O Espírito, por sua vez, é expirado imanentemente pelo Pai
e pelo Filho (processão), e o mesmo Espírito é enviado ao mundo pelo Pai e pelo Filho
(missão).76
74
BALTHASAR, 1994, p. 317-328.
75
Ibid., p. 323.
76
Ibid., p. 319.
72
77
BALTHASAR, 1994, p. 137-191.
78
Ibid.
73
Tanto a processão imanente do Filho, quanto sua missão redentiva econômica são
kenóticas em qualidade. Assim como as relações interpessoais da Trindade imanente são
kenóticas, A missão econômica do Filho é kenótica. Essa missão econômica e kenótica é
claramente vista na Eucaristia e na Cruz, através da qual o Filho entrega a Si mesmo, seu
corpo e seu sangue, ao mundo como expressão de amor auto-sacrificial.
Neste ponto, Balthasar evoca o hino cristológico de Filipenses 2,5-11 para demonstrar
que a missão econômica do Filho nada mais é do que um auto-esvaziamento em amor. O
Filho entrega ao mundo tudo o que Pai lhe deu, na medida em que ele derrama a si mesmo por
causa de seu amor superabundante pela humanidade.79
79
BALTHASAR, 1994, p. 317.
74
cruz, mas ao mesmo tempo ilumina a função do Espírito como o agente que produz a
ressurreição do Filho, reunificando o Pai e o Filho.80
Na teologia trinitária de Balthasar, a doutrina da descida do Filho ao inferno serve
como uma extensão e até mesmo como um aprofundamento do evento-cruz e da solidariedade
do Filho com: (1) os pecadores e (2) com o sofrimento e a morte humana. Essa extensão não
significa que a cruz de Cristo não tenha sido suficiente ou satisfatória. O que Balthasar
argumenta é que depois de morrer na cruz, Cristo vai ainda mais longe, até o mais profundo
ambiente da separação entre o homem e Deus. Antes de ressuscitar de maneira triunfante para
ser reunido ao Pai, ele desce às profundezas do pecado, sofrimento e morte humanos.
Balthasar defende:
“Foi como um ser humano morto que o Filho desceu aos mortos, e não como um ser
vivo e vitorioso com o estandarte pascal, como é retratado em ícones pascais, por
meio de uma projeção antecipatória da Ressurreição no sábado santo.”
(BALTHASAR, 2011, p. 53)
A luz do Domingo de Páscoa, no qual Cristo vence o mal, deve ser precedida pela
escuridão do Sábado Santo, no qual Cristo aparentemente permite que o mal O vença. Assim,
Balthasar apresenta uma imagem explorando um imaginário de horizontalidade/verticalidade.
Para Balthasar, a trajetória horizontal de humilhação e auto-doação entre a manjedoura e a
cruz está no centro de todo o Drama. A encarnação (descida de Cristo ao mundo) e o Sábado
Santo (descida de Cristo ao hades) formam estas molduras dramáticas que estão no início e no
fim da obra de Cristo, no que diz respeito ao movimento de Cristo de fazer seu o drama de
todos os homens. A verticalidade da encarnação e a verticalidade da descida ao hades formam
as molduras que abrem e fecham os atos concernentes ao drama da paixão.
Balthasar afirma que sem a descida de Cristo ao Hades, Cristo não seria totalmente
solidário ao drama humano, experimentando todos os apectos da separação da humanidade de
seu Criador. Cristo precisa ser totalmente solidário ao homem, na medida em que experimenta
todos os níveis e graus de angústia causados pela separação que o pecado produz entre o
homem e Deus.
O Espírito Santo, por sua vez, assume um papel extremamente importante dentro
dessa estrutura teatral da obra salvífica. O Espírito Santo é o agente Trinitário que executa a
encarnação do Filho no ventre de Maria (levando o Filho para ventre humano – fazendo-o
moral), e também é o Espírito Santo que ressuscita o Filho do ventre da terra, do hades. O
Espírito é o agente trinitário que executa o primeiro movimento vertical do filho para iniciar o
80
BALTHASAR, 1994, p. 319-331.
76
drama econômico, e também executa o último movimento ao ressuscitar o Filho, agora como
Cordeiro Vencedor.
Assim, Balthasar entende a descida de Cristo ao Hades como o estágio final de todo o
processo já iniciado na encarnação. Desde a concepção e nascimento até a Cruz e ao hades,
Cristo, guiado e dirigido pelo Espírito Santo, desce cada vez mais, até o ponto de tomar sobre
si toda a condição pecaminosa humana, em absoluta solidariedade. A argumentação é
simples: Uma vez que todas as ações da Trindade econômica no desenrolar do drama divino
estão fundamentadas na Trindade imanente, e a auto-doação (kenósis) do Filho está
fundamenta na Urkenósis do Pai, a descida do Filho ao inferno demonstra de maneira
completa e derradeira a profundidade da auto-doação que há no âmago da Trindade. Balthasar
explica: “Uma vez que a Descida [ao hades] é o último ponto alcançado pela Kenósis [de
Cristo], e a Kenósis é a suprema expressão do amor intra-trinitário, o Cristo do Sábado Santo
é o exemplo perfeito do que Deus é” (BALTHASAR, 1990, p. 7).
Toda a missão do Filho encarnado é kenótica e encontra sua plena expressão na Sua
descida ao inferno, que ao mesmo tempo é a completa revelação da existência intra-trinitária
de Deus como amor interpessoal e kenótico. O Filho encarnado não comente assume a cruz,
mas também aceita o seguinte movimento: Na Sexta da Paixão, o Filho morre; no Sábado
Santo, o Filho está morto. Em outras palavras, o drama performado pelo filho é ativo e
passivo. Ativo na sua auto-rendição (ativa) para morrer na sexta, e na sua passividade de
assumir a morte no sábado. Tanto o “morrer” quanto o “estar morto” são redimidos por Cristo
no drama da Semana Santa. Aqui, Balthasar afirma que no palco do mundo, até quando o
Ator principal morre, ele está atuando redentivamente.
Cristo desce até as profundezas da separação de Deus, a fim de tornar possível o
retorno da humanidade a Deus, da mesma maneira em que ele, dentre os mortos, volta a Deus.
Neste ponto é importante destacar a influência de Adrienne von Speyr neste ponto específico
da teologia de Balthasar. Friesenhahn explica este relacionamento:
As experiências místicas do Sábado Santo, nas quais ela [Adrienne] compartilhou
acerca dos sofrimentos da descida de Cristo, influenciaram grandemente a teologia
do Sábado Santo de Balthasar. Na descida de Cristo, Deus se identifica com a
rejeição de Deus, e tal identificação só é possível apenas no contexto da Trindade
(FRIESENHAHN, 2011, p. 120).
Como exposto anteriormente a separação entre o Pai e o Filho na cruz, aqui na descida
ao inferno é expandida. A Trindade imanente, mais uma vez, é a base para a separação que o
Filho experimenta do Pai, agora, não mais na cruz, durante a Sexta da Paixão, mas durante o
Sábado Santo. Por causa da distinção eterna e infinita entre as pessoas da Trindade, se torna
77
possível a decida do Filho ao inferno. Desta forma, a Trindade é a condição não somente para
a descida dramática do Filho, mas para a existência do próprio inferno, visto que o inferno é a
consequência da liberdade moral do homem, liberdade essa que inclui obviamente a
possibilidade de rejeição de Deus. Essa liberdade moral está fundamentada na Trindade.
Desta maneira a distinção infinita entre as Pessoas da Trindade, especialmente entre o
Pai e o Filho, trona possível a realidade – criação, para Balthasar – do inferno, por meio da
rejeição humana de Deus. A “destruição” do inferno acontece pela redenção kenótica do
Filho, ainda que se mantenha uma possibilidade real, para aqueles que rejeitam a graça
salvífica de Cristo. Assim, o Pai é a pessoa do Drama que atua como Dramaturgo – a partir de
quem todas as coisas são chamadas a existência – e roteirista, visto que é com base nas
relações de eterna geração do Filho e processão do Espírito que o drama se torna real; o Filho
é o Ator Principal do Drama, executando na história e atuando no palco do mundo as cenas da
redenção, levando a cabo toda a beleza e profundidade do amor intra-trinitário; e o Espírito
Santo atua como diretor (assegurando que o Ator Principal atue dentro do roteiro pré-
estabelecido na Trindade Imanente – desde a encarnação até ressurreição) e ator coadjuvante,
uma vez que o Espírito é a Pessoa trinitária que acompanha o Filho Encarnado em sua
peregrinação redentiva, na mesma medida em que Sam está para Frodo no Drama do Senhor
dos Anéis.
Concluindo, Balthasar apresenta a Trindade imanente em termos do amor interpessoal
e kenótico. O Pai gera o Filho em um ato de auto-doação em amor, e o Filho responde
completamente esta auto-doação, doando-se de volta ao Pai, assumindo o Drama e a condição
de Ator principal da redenção. O Espírito é o selo pessoal desta união perfeita entre o Pai e o
Filho. Desta maneira, toda a história da salvação, particularmente a Cruz de Cristo e a
Descida ao hades, é a manifestação econômica da existência intra-trinitária fundamentada em
amor sacrificial. A kenósis da Encarnação, Cruz e Descia de Cristo só pode ser totalmente
contemplada, apreciada e entendida como a promulgação (ou atuação) terrena da forma
eternal e filial de ser de Cristo. Assim, o Drama do Mistério Pascal revela a Trindade de
maneira profunda; mas também se torna possível, pois está ontologicamente fundamentado na
Trindade. Desta forma, o Drama do Mistério Pascal, só poder ser inteligível à luz da própria
Trindade. Como o próprio Balthasar afirma:
A História da Salvação é o Drama Eterno da Trindade performado economicamente.
Mas, a dimensão histórica não apresenta a Trindade, como se Deus requeresse a
criação como seu parceiro dialético. Ao contrário, toda a história da salvação –
especialmente os eventos do Mistério Pascal – pressupõe a natureza imanente do
Deus Trino, que doa a Si mesmo em amor interpessoal (BALTHASAR, 1998, p.
247-8).
78
conhecemos bem. Desta maneira, Deus é como um Pai. Em alguns aspectos, Deus apresenta
essa semelhança, embora em outros aspectos essa semelhança não exista. Existe, porém,
vários pontos de genuína semelhança: Deus cuida da sua criação, assim como pais cuidam de
seus filhos; Deus é a fonte da vida humana, assim como os pais humanos são a origem e a
fonte da nossa existência; Deus exerce autoridade sobre a criação em medida semelhante de
um pai humano para com seu filho. Por outro lado, há pontos de extrema diferença: Deus não
é, por exemplo, um ser humano. Embora todo ser humano tenha uma mãe, isso não implica
que o fato de Deus se revelar como “Pai”, haja a obrigatoriedade da existência de uma mãe.82
O conceito de analogia entis é crucial para o método teológico católico romano. Muito
embora haja bastante discussão acerca dos limites deste modelo analógico, Stephen Bevans,
teólogo católico norte-americano, afirma:
Ao entender esse princípio sacramental fundamental, a pessoa vai longe na direção
de entender o catolicismo tanto como um fenômeno social quanto como um ponto
de partida para fazer teologia. É por causa do sacramentalismo que o catolicismo
valoriza a adoração que atrai todos os sentidos; e é por causa da mesma cosmovisão
sacramental que os católicos podem tirar proveito da devoção à Maria, e também de
um ativismo para a paz mundial ou pelo direito à vida (BEVANS, 1991, p. 32 apud
WOODBRIDGE, 1991, p. 321).
O conceito de analogia fidei (analogia da fé), por sua vez, foi desenvolvido por Karl
Barth e defende a existência de uma analogia ou ponto de contato entre Deus e a criação, que
somente se estabelece com base na autorrevelação de Deus. Neste sentido, Barth sustenta que
a analogia fidei recusa-se a especular sobre a exata natureza da linguagem teológica e, em vez
disso, concentra-se nos princípios gerais que parecem informar a natureza da linguagem
teológica.
Quando definida em termos resumidos, a analogia fidei, conforme Barth, entende que
a teologia natural (a teologia que é fruto da investigação da ordem natural) precisa ser
mediada pela Palavra de Deus. Neste sentido, Barth está reagindo de maneira muito dura à
visão de Emil Brunner, quando este propôs que a natureza humana é constituída de tal
maneira que já traz em si um ponto de contato (Anknüpfungspunkt) que torna possível a
revelação divina. Aqui, Barth entende que este “ponto de contato” é em si mesmo fruto da
revelação de Deus, algo que é evocado pela Palavra de Deus, e não que seja uma
característica permanente da natureza humana ou da ordem natural.83
Balthasar, em sua Teo-Estética de alguma maneira responde Barth, ao propor que a
beleza da ordem criada deve ser resgatada como descrição da revelação divina, e não como
82
cf. DE AQUINO. Summa Theologiae, IA, p. 297-300.
83
cf. MCGRATH, 2005, p. 261-263.
81
conceito humano que possa ser aplicado a Deus. Desta maneira, a analogia entis (de cunho
estético) de Balthasar, torna-se uma via média entre a conceituação clássica de Tomas de
Aquino e a rejeição dura de Barth, pois aproveita e une os pontos positivos de cada
abordagem.
84
Uma excelente introdução ao relacionamento de Balthasar e Barth pode ser encontrada em:
MCGREGOR, Bede; NORRIS, Thomas. The Beauty of Christ: An Introduction to the Theology of
Hans Urs von Balthasar. Edinburgh: T&T Clark, 1994.
82
O relacionamento dos dois teve início quando Balthasar retornou para a Basileia na
Suíça, em 1940, como capelão estudantil. No verão de 1941, Barth convidou Balthasar para se
tornar um membro de seu grupo de pesquisas no Concílio de Trento. A partir de então, a
amizade entre eles se desenvolveu, sendo nutrida por um profundo amor pela música clássica,
especialmente Mozart. No verão de 1948, Balthasar deu uma série de palestras cujo tema era
“Karl Barth e o Catolicismo”. Esta série de palestras se tornou a base para o livro The
Theology of Karl Barth publicado em 1951.
Balthasar e Barth encontravam-se com bastante regularidade em uma taverna chamada
Charon, lugar favorito de Barth para receber amigos e estudantes. Ali, passavam horas
conversando e discutindo teologia. Em 1956, Barth e Balthasar chegaram a viajar juntos para
Paris (Universidade de Paris-Sorbonne) para participar da banca de doutorado de Henri
Bouillard, um padre jesuíta cujo tema de sua dissertação era o pensamento teológico do
próprio Barth.
O último evento que eles participaram juntos aconteceu em 1968, alguns meses antes
da morte de Barth, numa série de palestras que ambos deram para um grupo de líderes
eclesiásticos suíços sob o tema “A renovação da Igreja”.85
Deus. Com isso, Barth apresenta a estrutura revelacional que leva à formulação da doutrina da
Trindade. Assim, Barth entende que a teologia é Nach-Denken, isto é, o fruto de uma reflexão
a posteriori sobre o conteúdo da revelação de Deus. Müller explica:
Já nos prolegômenos da Kirchlichen Dogmatik, Karl Barth aborda a doutrina da
Trindade. Ele pretende demonstrar assim que não se trata de um tema secundário.
Na Trindade, o ser humano tem a ver com o próprio Deus, que vem ao seu encontro
na Palavra eterna do Pai, ou seja, no Jesus de Nazaré histórico, e no Espírito Santo
enviado. É o próprio Deus que fala diretamente aos seres humanos na palavra escrita
da Sagrada Escritura e na Palavra de Deus proclamada na Igreja pelo poder do
Espírito Santo (MÜLLER, 2014, p. 328).
Barth, desta maneira, estabelece o contexto da doutrina da Trindade: Uma vez que a
revelação de Deus aconteceu, o que deve ser verdadeiro a respeito de Deus para que isso
possa realmente ter acontecido? O que a realidade da revelação tem a nos dizer sobre o ser de
Deus? Assim, o ponto de partida de Barth para a sistematização dogmática não é uma
doutrina ou ideia, mas a realidade do fato de que Deus fala e é ouvido.
O paradoxo da teologia de Barth está no fato de que ele começa com a afirmação de
que Deus fala e é ouvido, mas ao mesmo tempo, afirma que o homem é fundamentalmente
incapaz de discernir a palavra de Deus. Barth soluciona essa tensão expondo dois axiomas
básicos: (1) A humanidade é totalmente incapaz de ouvir a Palavra de Deus; (2) Mas, a
humanidade tem ouvido a Palavra de Deus, uma vez que a Palavra lhe revela seus pecados.86
Desta maneira, Barth entende que a humanidade é passiva no processo de recepção da
revelação; o processo de revelação, porém, está do início ao fim sujeito à soberania de Deus.
Pois, para a revelação ser de fato revelação, ela precisa ser capaz de revelar efetivamente para
uma humanidade inapta. Assim, para Barth, Deus deve ser como foi apresentado em sua
revelação divina. É necessário que haja correspondência perfeita entre o revelador e a
revelação. Assim, a revelação é a reiteração no tempo e na história daquilo que Deus
realmente é na eternidade. Muito embora esse conceito seja explorado com maior
profundidade no próximo ponto, vale notar que este conceito se aproxima de maneira muito
intima a visão de Balthasar de Trindade imanente e econômica.
Quando apresenta essa conceituação em termos teológicos, Barth afirma que o Pai
(revelador) é revelado no Filho (revelação). E o Espírito Santo, por sua vez, é o agente que dá
o reconhecimento da revelação (Offenbarsein). Para Barth, somente o Espírito Santo pode
romper a inabilidade do homem, levando-o a uma perfeita compreensão da revelação do Pai,
dada por meio do Filho. McGrath, explica o conceito de Offenbarsein em Barth:
86
cf. MÜLLER, 2014, p. 328-329.
84
Barth também entende que no Novo Testamento a doutrina da Trindade não está
registrada como uma informação teórica sobre a essência de Deus. O dogma, portanto, é a
“compreensão conceitualmente ordenada da confissão de fé, que responde ao acontecimento
da autorrevelação Deus, assim como testemunhado na Escritura” (MÜLLER, 2014, p. 328).
É importante notar que o método teológico de Barth se posiciona contra os termos
clássicos da teologia natural católica romana, que lança mão da analogia entis para defender
que o conhecimento de Deus é acessível e está disponível ao ser humano, sendo este
conhecimento meramente ampliado pela revelação de Deus. Além disso, este método
proposto por Barth se volta contra a teologia protestante liberal, pois conforme definida por
Schleiermacher, antes de uma eventual revelação histórica em Jesus Cristo, há uma
experiência com Deus em nível interior e existencial. Assim, a revelação histórica de Deus
seria nada mais, nada menos que um movimento teológico que visa justificar a experiência
religiosa.
Segundo Barth, tanto a analogia entis, quanto a teologia protestante liberal negam a
soberania da autorrevelação de Deus. Assim, a doutrina da Trindade começa com o conceito
de Deus dixit (Deus fala) e se desenvolve por causa do conceito de Dei loquentis persona
(Pessoa comunicativa de Deus). Isto é, Deus se revela como o Senhor ao se dar a conhecer
como “sujeito, predicado e objeto e, portanto, como titular, como acontecimento e conteúdo
da revelação”. (MÜLLER, 2014, p. 328).
Também é importante afirmar que no trinitarianismo barthiano, não há uma separação
do conteúdo da autorrevelação de Deus na Palavra e no Espírito (Trindade imanente) de sua
forma histórica de autocomunicação (Trindade econômica). Franklin Ferreira, teólogo
brasileiro, resume o trinitarianismo de Barth:
Para Barth, a doutrina da Trindade é a especificação de que Deus pode se revelar a si
próprio assim como Deus de fato se revelou em Cristo. Nas Escrituras, aprendemos
que Deus é a própria revelação de “Deus”. O fato de que Deus, através de si mesmo,
revela-se a si mesmo, significa que ele é o sujeito, o ato e o efeito numa unidade de
revelação e revelador. Barth via na doutrina da Trindade a única resposta possível
para a pergunta: Quem é esse Deus que se revela? A revelação bíblica, então, faz
três perguntas: Quem é revelado? O Que ele fez para se revela? O que a revelação
realiza? A resposta a cada uma deve ser Deus, sem restrição. Deus se revela a si
próprio. Ele se revela através de si próprio. Ele se revela a si próprio. E separada de
cada uma dessas três frases, as outras duas permanecem ambíguas. Toda a doutrina
85
87
POYTHRESS, 2016, p. 54.
86
A segunda convergência teológica entre estes dois gigantes da teologia está no fato de
que em suas abordagens, ambos entendem a Trindade econômica como o caminho
epistemológico para a Trindade imanente. Em outras palavras, tanto Balthasar quanto Barth
entendem que as ações de Deus na história e a autorrevelação de Deus econômica são o
caminho para entendermos a Trindade como ela é. Esta abordagem dedutiva, que infere quem
Deus é a partir de como ele se revelou é evidente tanto na teologia de Balthasar, quanto de
Barth. A máxima barthiana, como exposto diz: “Deus é como ele revela a si mesmo ser”
(BARTH, 1975, p. 382). Balthasar segue o mesmo caminho:
A Trindade imanente deve ser entendida como sendo uma eterna e absoluta auto-
doação, por meio da qual Deus é visto ser, nele mesmo, como amor absoluto; isto,
por sua vez, explica sua livre auto-doação ao mundo como amor, sem sugerir que
Deus “precisava” do processo no mundo, ou da Cruz para se tornar a si mesmo”
(BALTHASAR, 1994, p. 323).
No que diz respeito às divergências entre Balthasar e Barth duas principais podem ser
salientadas. A primeira é o papel predominante do Espírito Santo na Trindade imanente.
Como foi exposto anteriormente, Balthasar entende o Espírito Santo em termos agostinianos,
isto é, o Espírito como a personificação do amor kenótico entre o Pai e o Filho. Barth segue a
tradição calvinista, da qual ele é um dos principais representantes, e entende o Espírito Santo
como a Pessoa divina que é responsável por traduzir a revelação da Palavra de Deus, em
Cristo, ao homem incapaz de responder de maneira própria a autorrevelação de Deus na
88
88
Cf. BARTH, 1975, p. 203.
89
5 CONCLUSÃO
“Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a
Jesus Cristo, a quem enviaste” (João 17,3 NVI)
Um ano antes de sua morte, em 1987, Balthasar publicou uma obra intitulada
Epilogue, cujo propósito era oferecer uma visão panorâmica da sua trilogia. Nesta obra,
Balthasar não apresenta um resumo da trilogia, mas uma explicação do porquê ele adotou esta
abordagem e método teológico distinto, tomando como seu ponto de partida não os temas
doutrinários fundamentais, mas os transcendentais do ser: o belo, o bom e o verdadeiro.
Neste ponto conclusivo é importante salientar esta obra, pois ela mesma serve como
fechamento da argumentação teológica de Balthasar, especialmente no que diz respeito a sua
concepção trinitária. Balthasar entende que a partir disso, há três temas doutrinários
interconectados no coração da fé e cosmovisão cristã, a saber, (1) Cristologia e Trindade; (2)
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A Palavra Encarnada e (3) Frutificação. Nota-se que destes temas doutrinários centrais, o
primeiro deles é Cristologia e Trindade – o objeto de estudo desta dissertação.
Além de contribuir para a formulação de uma visão de mundo essencialmente
trinitária, Balthasar surge como um teólogo-pastor. Como exposto no capítulo 1, a maior parte
de sua vida não se deu no ambiente acadêmico. Balthasar era essencialmente um pastor de
almas, alguém profundamente interessado não somente no debate e engajamento teológico,
mas também, e principalmente, na experiência comum da fé. Seu desejo era fazer com que a
fé praticada por suas ovelhas fosse robusta teologicamente, mas ao mesmo tempo, uma
experiência vibrante e frutífera.
A criação da Companhia de São João, juntamente com von Speyr, mostra o desejo que
Balthasar tinha de diálogo com o público leigo, o cristão de pés descalços e com a audiência
não-cristã em geral. Aqui, percebe-se o interesse de Balthasar em assumir o papel de um
pastor e teólogo público, isto é, um pastor que extrapola das paredes da comunidade
eclesiástica e da academia teológica. Não somente seu método teológico é distinto, mas
também sua postura pastoral, uma vez que Balthasar vai na contramão do movimento que
relegava o pastor e o teólogo somente ao ambiente eclesiástico e acadêmico. Enquanto os
párocos de sua geração estão enclausurados, Balthasar vem para as calçadas, para a praça
central. Sua pauta é debatida num pub com estudantes e colegas, e não dentro de eventos
conciliares.
Embora seja extremamente criticado quanto as suas convicções teológicas acerca da
descida de Cristo ao inferno, sendo eventualmente acusado de estar fora do escopo teológico
católico romano (e da cristandade!), Balthasar está perfeitamente alinhado com a definição
ortodoxa clássica da Trindade. Ainda que, neste ponto, dizer isso pareça redundante, o fato de
Balthasar ter se tornado uma influência teológica fora dos limites da tradição romana, mostra
que o trinitarianismo balthasariano é ortodoxo e alinhado com os dogmas essenciais da fé
cristã.
Como exposto, Balthasar tem influenciado de maneira profunda da teologia
sistemática e pastoral de corte protestante. Seu método teológico estético-dramático e
abordagem à partir dos transcendentais platônicos, tem sido o ponto de partida para diversos
teólogos protestantes na jornada de sistematização da fé protestante. O método de Balthasar é
muito atrativo ao teólogo protestante pois lhe fornece meios de navegar pela natureza
analógica da Escritura, sem perder suas bases epistemológicas. Ao mesmo tempo, tem sido o
teólogo que convida os protestantes a (re)descobrirem a importância da estética no culto
cristão.
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