Nº 1329 . 23/8 A 29/8/2018 . CONT. E ILHAS: €3,50 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

YUVAL HARARI
AS PROFECIAS
DO ESCRITOR AS RENOVADAS
MAIS INFLUENTE CAVES
DO MUNDO DO VINHO DO
FAMÍLIA MIRPURI PORTO
OS NOVOS VOOS
E A FUNDAÇÃO
MISTERIOSA
QUEIROZ PEREIRA
UM IMPÉRIO PARA
TRÊS HERDEIRAS

A D A A T R A Ç Ã O
I
A CIÊNCERTAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DO CHEIROÕ, DEOSSAGMEONREOSS, AS.
AS NOVAS DESCOB SONALIDADE E DA MEMÓRIA NAS DECIS
ER
DAS HORMONAS, DA PO O CÉREBRO ESCOLHE A “PESSOA CERTA”
COM

Tatiana e Bruno, fotografados num jardim

de Oeiras, estão juntos há 12 anos
 VISÃO
23 AGOSTO 2018 / Nº 1329

10 Entrevista: Isabel Ventura

RADAR
14 Imagens da semana
LUÍS BARRA

20 Raio X
22 A semana em 7 pontos
24 Holofote
26 Almanaque 42 O império de PêQuêPê
A morte do sétimo homem mais rico do País deixa em aberto o futuro
27 Inbox do grupo Semapa. Terão as três filhas de Pedro Queiroz Pereira capacidade
28 Transições e desejo de manter a obra do pai que, em poucas décadas, reconstruiu
29 Próximos capítulos o império da família desmantelado após o 25 de Abril?

FOCAR 32 Leis da atração

72 Turquia, o fantasma Enquanto subsistem aspetos da paixão que a Ciência não consegue
explicar – como a faísca inicial, que não se reproduz em laboratório
dos mercados –, já há muitos outros que deixaram de ser um mistério. Afinal, como
76 Escrava adolescente funciona a química do amor?
78 Manipulação na rede
80 Guia para salvar as férias 50 A nova viagem dos Mirpuri
A família por detrás da companhia aérea Hi Fly e do primeiro A380
VAGAR a aterrar em Portugal volta à ribalta para embarcar noutros voos:
os da filantropia, com a criação da Mirpuri Foundation. Um regresso
84 Yuval Harari, que oscila entre a visibilidade e o mistério que sempre a caracterizou
o pensador-estrela
92 Pessoas
94 Tendências
60 As crises do café
Enquanto o consumo do café permanece em alta e a subir, a produção
sofre com as secas, as doenças e a subida das temperaturas. Conseguirá
VISÃO SETE a indústria fazer frente às alterações climáticas?

66 Modelos na prisão
Uma iniciativa, na cadeia de Tires, colocou 11 reclusas em cima de uma
passerelle, num desfile de moda. Um banho de autoestima para quem
muitas vezes perde a esperança

Roteiro pelas caves

97
Online W W W.V I S A O . P T
Últimos artigos na BOLSA DE ESPECIALISTAS VISÃO
renovadas de Vila
Nova de Gaia

OPINIÃO
6 António Lobo Antunes
8 Mafalda Anjos Pedro Graça Hugo Rodrigues Ana Alexandra Carvalheira
NUTRICIONISTA PEDIATRIA AMOR E SEXO
30 Rita Rato Praias de Portugal Resista aos ecrãs! Dois metros quadrados de
83 José Carlos Vasconcelos sem água. Porquê? pele para o amor e o prazer
96 Miguel Araújo
130 Ricardo Araújo Pereira Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

23 OSTO 2018 VISÃO 3

 LINHA DIRETA Correio do leitor

De desconhecido
do Sud-Express
a cidadão do mundo
Ademar Costa, Póvoa de Varzim

MEDO DE PSL
Curioso acompanhar a preocupação (para
não dizer pânico...) da “intelectualite”
de esquerda com a hipótese de Pedro
Santana Lopes criar um novo partido.
Se PSL foi tão mau como dizem, se está

Guia de restaurantes,
politicamente morto, se não poderá
ter nenhum sucesso, se só vai dividir
a direita, etc., etc., então que medos
causa à esquerda? Que diga algumas

grátis com a próxima edição

verdades pouco convenientes?
José Serra, Santarém

GREVE JUSTA NO SNS

Este e o ex-ministro contabilista
São 101 restaurantes, de norte a sul do País, alguns de alta-cozinha e da Saúde (PSD) são cara e coroa
requintados e outros tradicionais e de ambiente familiar. da continuada destruição do SNS!
Pode conhecer este novo guia de restaurantes já na próxima semana: Dois sindicatos convocaram cinco dias de
greve justíssima. Uma enfermeira disse
ao comprar a VISÃO, que estará nas bancas a partir de dia 30, irá receber que há dez anos não progride na carreira
este 101 Restaurantes, que conta com a colaboração de Manuel Gonçalves e o seu salário é igual há 25 anos!
da Silva, crítico gastronómico da VISÃO Se7e. Ele próprio assina três Este exemplo repete-se e, além
de desmotivador, é grave para
roteiros. Um por terras do Interior, no qual elege alguns dos locais que os doentes. Inqualificável. Esta gente
resistiram aos incêndios, outro na costa alentejana e outro ainda no Algarve. do arco-da-velha governação, no fundo,
Além das casas escolhidas por Manuel Gonçalves da Silva, o guia integra quer entregar a saúde pública à ganância
outras seleções de restaurantes no Norte, no Grande Porto, no Centro, dos lucros da saúde privada!
Vítor Colaço Santos, João das Lampas
na Grande Lisboa e no Sul. Todos os que estão incluídos na lista foram
visitados, pelo menos uma vez, pela equipa da VISÃO, e o preço médio DIZER UMA COISA, FAZER OUTRA
indicado em cada um deles contempla uma entrada, um prato principal, Leio sempre a VISÃO e gostei muito
uma garrafa de água, um copo de vinho ou uma bebida equivalente, do artigo de opinião desta semana do
diretor- executivo, Rui Tavares Guedes,
sobremesa e café. A si, caro leitor, resta-nos desejar-lhe bom apetite. pois de facto ouvimos muitas vezes o sr.
primeiro-ministro dizer uma coisa e fazer
outra totalmente diferente...
A derrota será realmente a condenação
Já nas bancas das gerações de trabalhadores a
rendimentos cada vez mais baixos, e os
dos gestores cada vez mais elevados.
O desnivelamento salarial que existe em
Portugal é assustador. Grata pela atenção
e por este vosso espaço que permite
a publicação e a opinião dos leitores.
Joana Margarida da Fonseca Fernandes
Madureira, Coimbra

Contactos
CORREIO: Rua Calvet de Magalhães, 242,
2770-022 Paço de Arcos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
25 MAIS RICOS AUTOMÓVEL VIVER MAIS de 60 palavras e conter nome, morada
Quem detém O fim da E MELHOR e telefone. A revista reserva-se
as maiores fortunas Era Dourada O que há de novo na o direito de selecionar os trechos
do País Ciência da longevidade que considerar mais importantes.

4 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 CRÓNICA
Há outro mundo mas está
dentro deste:
4 crónicas romenas – Quarta
POR ANTÓNIO LOBO ANTUNES
D
epois da dramática e ruidosa queda de
Ceausescu, que mais do que uma revolu-
ção popular foi uma manobra do Partido
Comunista e das todo poderosas forças mais
ou menos secretas, como a Securitate. O País
virou automaticamente democrático, todo o
mundo odiava a Ditadura, ninguém, é claro,
colaborara com ela, já se podia falar com
estrangeiros na rua sem ter de comunicar à
Securitate, podiam convidar-se pessoas para
casa, podia-se falar quase livremente, a crítica era mais
ou menos aceite, as pessoas pareciam livres, embora
fosse estranho que os membros do Partido, instan-
taneamente reciclados, tivessem mudado completa-
mente o seu discurso, os lugares de chefia passaram a
ser ocupados por súbitos democratas que, na véspera,
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO
eram repressores ferozes, criaturas mais resistentes
desapareceram como por magia, se havia alguém que
fosse desagradável era logo considerado um sinis-
tro comunista cruel e torturador, denunciavam-se
6 VISÃO 23 AGOSTO 2018
antigos amigos ou rivais a fim de receber vantagens,
uma nova classe dirigente tomou o lugar da anterior,
os próceres mais habilidosos do antigo Partido eram,
afinal, democratas convictos, as pessoas sentiam-se ao
mesmo tempo contentes e com receio dessas súbitas
cambalhotas e o País continuou a ser governado pelas
mesmas criaturas que afinal eram liberais tolerantes,
já se podiam convidar pessoas para casa, já se podia
falar com estrangeiros, acabou-se a violência, acabou
a crueldade, o povo tinha, ao mesmo tempo, esperan-
ça e medo, a Roménia tornou-se magicamente uma
democracia embora toda a gente desconfiasse de toda a
gente, as pessoas denunciavam-se umas às outras mas
éramos livres, éramos tolerantes, éramos felizes. Se
alguém nos fazia sombra era imediatamente apelidado
de colaborador ou torcionário do antigo regime, filhos
e amigos de velhos dirigentes tomaram o lugar dos
anteriores, ninguém sabia que ninguém era de facto
e de súbito, tirando uns tantos assassinados e presos,
ninguém colaborara com a Ditadura Popular. Esta
foi a Roménia que encontrei, a Roménia das constantes cada vez mais residual e inimportante. Dinu continuou
denúncias e dos constantes ajustes de contas entre an- a escrever e a lutar com a mesma coragem, a qualidade
tigos camaradas e uma nova classe dirigente emergiu de da sua poesia continuou a crescer e é hoje, sem dúvida,
súbito, imaculada, virtuosa, sem qualquer relação com os um dos mais importantes artistas romenos. No meio do
antigos patrões, a maior parte deles que, ainda na véspe- medo, da confusão, da perplexidade, mas também da co-
ra, faziam parte dos infinitamente privilegiados membros ragem, fizeram-se na Roménia coisas importantes. Uma
do regime. Mas o povo, desconfiado, mantinha-se num delas é o Museu da Literatura, com a estátua de Fernando
pavor reticente. Eu tinha estado em Berlim mais ou me- Pessoa à entrada e um acervo magnífico. Não compreen-
nos na altura da queda do muro e assistia, de boca aberta, do porque não temos também um Museu da Literatura,
a uma repetição do que se passava na Alemanha, embora com quem colaborava, por exemplo, o grande escultor
latinamente mais desordenado e confuso. Toda a gente Mircia Dumitrescu e que é uma instituição exemplar.
tinha medo de toda a gente, toda a gente desconfiava de Porque motivo não temos um igualmente, com manus-
toda a gente, quem tinha estado no poder continuava no critos e livros dos nossos autores de todos os tempos?
poder, agora rotulados de democratas convictos desde O Museu da Literatura, em Bucareste, foi-se transfor-
sempre. Lembro-me, por exemplo, do mando numa instituição cada vez
presidente da minha editora na RDA, mais importante e um local que atrai
um feroz adepto do socialismo tota- O trabalho de José novos leitores através do seu traba-
litário, mal educado e cruel, temido Pacheco Pereira, lho e das suas iniciativas. Seria um
por todos, com um defeito físico que polo de atracção vital que arrastaria,
lhe aumentava a autoridade, que se em Portugal, é sem dúvida, muitos e novos leitores.
transformou de súbito num toleran- extraordinário e único. Queixamo-nos que os portugueses
tíssimo democrata, todo amor todo
bondade como dizia João de Deus
Um homem como não lêem: essa seria uma forma de
interessar os portugueses pelos seus
mas que, na realidade, continuava ele seria certamente grandes autores e por autores de
a comandar a editora com a feroz e capaz de organizar, outros países também. Actualmen-
autoritária energia de sempre. Tudo te a Roménia, mais pobre ainda do
isto me deixava de boca aberta e tudo aqui, um monumento que nós, tem uma grande actividade
isto era possível. Quando se queria desses. Haverá outros, nesse campo, com festivais por todo
apear alguém afirmava-se que era um
perigoso comunista e aparecia logo
talvez, mas é, sem o lado e o Museu seria sem dúvida
um polo aglutinador vital, se devi-
um qualquer virtuoso no seu lugar, dúvida, uma pessoa damente dirigido e administrado.
apeado, pouco tempo depois, por ser, excepcional. Estão à É dos países que conheço com mais
quase de imediato, apelidado de pe- actividade nesse campo. Há semanas
rigoso extremista também. Claro que espera que ele morra deram-me, por exemplo, o Grande
várias pessoas me segredaram abun- para o homenagearem Prémio do Centenário da Unificação
dantemente que Dinu era um comuna
de pele de cordeiro. Nunca acreditei
devidamente? Porque da Roménia, que eu julgo devia ser
atribuído a um autor romeno, com
nisso porque éramos como irmãos e não aproveitamos o toda a pompa e circunstância. Por-
eu o conhecia muito bem. Tivera-o
em minha casa em Portugal, conhecia
que felizmente temos? que não temos qualquer coisa assim
em Portugal? Um povo é respeitado
as suas ideias e a sua luta durante a pela sua Cultura e a nossa é muito
ditadura, tínhamos inclusive, se a situação se mantivesse, rica. Porque motivo nada fazemos pelos nossos Grandes
elaborado um plano para sair da Roménia através Homens? Um Museu da Literatura, que celebre escritores
dos Cárpatos, região que ele conhecia bem por ser filho do mundo inteiro, é, na minha pobre opinião, uma ini-
de camponeses desta zona. Mas, avisos de ciativa importantíssima. O trabalho de José Pacheco Pe-
– Toma cuidado com ele reira, em Portugal, é extraordinário e único. Um homem
eram constantes. Homens que eu conhecia e respei- como ele seria certamente capaz de organizar, aqui, um
tava, como o Presidente da Associação de Escritores, monumento desses. Haverá outros, talvez, mas é, sem
organização poderosa e influente, foram acusados de dúvida, uma pessoa excepcional. Estão à espera que ele
traição e expulsos das organizações que chefiavam e a morra para o homenagearem devidamente? Porque não
que pertenciam, tudo isto de uma forma violenta, trágica aproveitamos o que felizmente temos? Ele poderia ser o
e terrível. Se no 25 de Abril o Partido Comunista tives- polo aglutinador de um trabalho cultural que teria certa-
se ganho a vida em Portugal tornar-se-ia um inferno. mente um imenso sucesso entre nós. Não o conheço mas
Lembro-me, por exemplo, do Diário de Notícias onde tenho por ele o maior respeito e a maior admiração. Ele
mandava Saramago, e do modo ignóbil com que escreveu é, sem dúvida, a pessoa que mais tem lutado pela nossa
contra Ernesto Melo Antunes. Lembro-me da crueldade cultura. Por que não dar-lhe todos os meios necessários?
despropositada, da violência, da injustiça. Porém, a pouco Quer se queira quer não é a criatura fulcral, o guardião
e pouco, o nosso Partido Comunista foi-se transforman- dos nossos mais altos valores. De que estão à espera para
do no grupinho meio perdido que agora é, condenado o irem buscar? O nosso País merece um homem assim.
a dissolver-se, em meia dúzia de anos, uma agremiação visao@visao.pt

23 AGOSTO 2018 VISÃO 7

 OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
A infeliz
odisseia grega
P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora
1

O
momento é simbólico para a Euro- de um ano. Meio milhão de jovens gregos e
pa: esta semana ficou marcada pelo educados viu-se obrigado a sair do país.
fim de uma longa crise da dívida O salto nas exportações é periclitante: foi
europeia que pôs em sério risco o feito sobretudo à custa de uma subida em
euro. Vista de longe e olhando só petróleo e derivados, um produto forte-
para dois ou três grandes números, mente dependente da procura externa e
a saída da Grécia do programa de com preços flutuantes. Os bancos estão
assistência financeira até parece atolados em dívida má: quase metade dos
caso para celebrar. Finalmente, o povo gre- empréstimos da banca é crédito malparado.
go vê-se livre de oito anos de austeridade Cerca de 40% das empresas são zombies Uma imagem
forçada, e pode agora finalmente gozar do à beira da falência. O investimento não ar- próxima de um
beijo é uma capa
estatuto de “membro pleno” da Zona Euro, rancou e a procura interna é baixa.
bonita... mas já
com contas públicas reequilibradas, cres- O sentimento geral é, ainda hoje, de enor-
está muito vista.
cimento das exportações (+25% num ano) e me desesperança. Angelos Athanasopoulos,
PIB em crescimento (1,4% no ano passado). um jornalista sénior grego que conheci re-
O problema é que a realidade muitas centemente num encontro europeu, subli-
vezes escapa aos grandes números. O diabo nha outros problemas menos mensuráveis
está nos detalhes, é sempre assim. E os
grandes números não mos-
mas tão ou mais comprometedores adiante:
a falta de proteção social,
2
tram o país destroçado que
ficou depois de passar a vaga
É desnecessário a erosão das instituições,
a educação destruída, o
de austeridade. Não é preciso fazer de uma clientelismo. Há um país
escavar muito para perceber melhoria na inteiro de gregos que
que ainda há bastante para re- tragédia um lutam com dificuldade
cuperar desta “ajuda” europeia. para se manterem à tona
Um cartoon da Economist não romance da água, para quem os
podia colocar as coisas em com final feliz. sacrifícios económicos
melhor perspetiva: mostra um E esquecer parecem uma tortura sem
pequeno bote grego esburaca- fim. Com muito poucas
do a afundar-se e um enorme o que se disse razões para celebrar o fim E se for uma
e sólido navio europeu que atrás também de um bailout. cena romântica
ao pôr do Sol?
oferece uma solução questio- Sem mais medidas
Hum, demasiado
nável: um cabo ao qual os gregos têm de se e reformas, poucos são os que acreditam
piroso...
segurar para não irem ao fundo. O barco, numa recuperação sólida da economia grega,
esse, continua esburacado e a afundar-se... que continua altamente frágil. E o problema
Os números finos mostram uma Grécia é que, com eleições em outubro do próximo
em estado desolador. Décadas de má gestão ano, a tentação de Alexis Tsipras para facili-
das contas públicas, encapotamento de tar seja grande. Sendo certo que tem como
dívida e clientelismo deixaram a economia
e as finanças em falência perante a crise fi-
compromisso atingir ambiciosos excedentes
primários de 3,5% do PIB em 2022...
3
nanceira mundial. E os remédios impostos Tudo isto pode escapar ao cidadão co-
para sair deste estado – cortes brutais na mum europeu, mas não pode escapar ao
despesa pública e reformas do estado bu- presidente do Eurogrupo. Sobretudo quando
rocrático e ineficiente que ascenderam a 72 o presidente do Eurogrupo experimentou e
mil milhões de euros (cerca de 40% do PIB) criticou, como ministro das Finanças portu-
– deixaram o país a agonizar ainda hoje. guês, o peso da austeridade e os seus efeitos
A economia encolheu em um quarto devastadores nos PIGS. Não admira pois
desde o início da crise – a Grécia é o quarto que o vídeo de Mário Centeno de apenas um
país mais pobre da Europa, apenas atrás da minuto e dez segundos a elogiar a situação
Bulgária, da Croácia e da Roménia. Há um grega tenha caído que nem uma bomba, com
terço da população em risco de pobreza e críticas à esquerda e à direita. É desneces- Vamos para uma
o desemprego, embora a cair ligeiramente, sário fazer de uma melhoria na tragédia um foto quente mas
real, de um casal
ainda está nos 20%. Quase metade dos de- romance com final feliz. E esquecer o que se
(Tatiana e Bruno)
sempregados está nesta condição há mais disse atrás também. manjos@visao.pt
fotografado pelo
José Carlos
Carvalho.

8 VISÃO 23 AGOSTO 2018

Isabel Ventura Investigadora e professora universitária

A ideia de que os homens

são racionais, mas depois,
perante uma oportunidade
sexual, se descontrolam,
parece-me altamente ofensiva
para o sexo masculino
VÂ N I A M A I A LUÍS BARRA
 A
A primeira vez que leu o acórdão
judicial de um caso de violação ficou
em choque. Muitos outros abalos se
seguiram ao longo da investigação no
âmbito da sua tese de doutoramento,
que deu origem ao livro Medusa no
Palácio da Justiça ou Uma História
da Violação Sexual (Tinta da China,
408 págs., €21,51). Isabel Ventura,
43 anos, percorreu séculos de leis
e centenas de casos judiciais para
traçar o retrato da violência sexual em
Portugal. E identificou os preconceitos
que mais facilmente se voltam contra
as vítimas do que contra os agressores.
O estudo foi distinguido pela
Associação Portuguesa de Apoio
à Vítima e, mais recentemente, recebeu
o prémio Maria Lamas para estudos
sobre a mulher, género e igualdade.
No ano passado, foram apresentadas
408 queixas por violação, em Portugal
(mais 73 do que em 2016), de acordo
com o Relatório Anual de Segurança
Interna. A docente da Escola de
Direito da Universidade Católica do
Porto não duvida de que a agressão
sexual é alimentada pela desigualdade
de género. E não faltam acórdãos
ilustrativos de uma visão conservadora
da sexualidade da mulher.
No livro, descreve uma ideologia
“compreensiva para com o agressor
e desconfiada para com a vítima”.
Quais as raízes desta desconfiança?
São ancestrais. Há um conjunto
de práticas e de discursos sociais,
reforçado por muitas instâncias, que
descreve o feminino como não sendo
confiável. A ideia de que as mulheres
são ardilosas, calculistas, irracionais...
Quando acusam alguém, em particular
um homem, não é por lhes ter
acontecido alguma coisa, mas antes
para prejudicar o outro.
A culpabilização das vítimas
é o principal obstáculo
às denúncias de violação?
Atualmente, quando alguém diz que
foi vítima de um crime sexual,
a primeira reação é de desconfiança,
só depois de a pessoa dar muitas
provas é que começamos a acreditar
nela. Mas devemos confiar na pessoa
desde o início. Não é verdade que se
acuse habitualmente de forma leviana,
só por vingança; existirão casos, mas
não é comum ao ponto de nos fazer
desconfiar disso à partida.
Escreve que persiste o preconceito
do “corpo feminino que seduz e
que é fonte de fraqueza masculina”.
Isso explica a tendência de
desculpabilização do agressor?
Uma das formas habituais de
desculpabilização é a ideia da tentação.
Numa decisão do início dos anos 90,
em que um adulto tinha violado uma
menina de 6 anos, o tribunal dizia
que era preciso ter em conta que a
menor tinha precipitado o crime, não
por querer mas porque atravessava,
regularmente, um corredor para ir
buscar água, passando assim pelo
agressor. Os discursos não são sempre
tão primários. O acórdão do juiz
Neto de Moura [na Relação do Porto,
em que desvalorizou um crime de
violência doméstica pelo facto de
a vítima ser adúltera] gerou tanta
animosidade porque é muito primário,
ninguém se revê em acórdãos
que falam da Bíblia e de mulheres
adúlteras, mas isso não quer dizer
que esses cânones não apareçam de
forma mais sibilina. A ideia de que os
homens são racionais, mas depois,
perante uma oportunidade sexual, se
descontrolam, parece-me altamente
ofensiva para o sexo masculino.
Existe um estereótipo
relativamente à violação?
Quanto mais um arguido se afasta
da imagem típica do agressor, maior
é a desconfiança que incide sobre a
palavra da vítima. Se o arguido for
jovem e se tiver capital erótico, uma
das perguntas que se põe é por que
razão um homem tão bonito haveria
de violar alguém? Escapa-nos a
ideia de que o que pode estimular
sexualmente uma pessoa seja
precisamente a violência. Em relação
às vítimas, espera-se que sejam
mulheres em idade fértil e atraentes.
O caso de idosas que são violadas,
por exemplo, é frequentemente
descrito como uma bizarria. Deveria
dar-se formação para não serem
reproduzidas ideias como as de um
acórdão da Relação do Porto, que dizia
que uma vítima, ao anotar a matrícula
do carro do agressor, tinha tido um
comportamento que não se coadunava
com o de uma pessoa em choque. Isto
é de uma ignorância tremenda.
Cruzou-se com casos em que as
vítimas foram prejudicadas por não
corresponderem ao perfil esperado?
Há muitas categorias que constroem
a credibilidade de uma vítima, uma
delas é a forma como exprimem
o trauma, o que chamo “trauma
show”. Quando as vítimas estão em
dissociação do eu e falam como se não
tivesse acontecido com elas, fazendo
uma descrição seca e distante, isso não
corresponde à ideia de uma pessoa
em trauma. Houve um julgamento
em que a testemunha era o namorado
da vítima, ele tinha sido obrigado a
assistir à violação – este rapaz não
chorou durante o depoimento, mas
chorou na sala das testemunhas.
Muitas vezes, as emoções não estão
dentro da sala de audiências.
A demora na denúncia é um
dos comportamentos menos
compreendidos...
Com as denúncias do movimento
#MeToo isso viu-se muito bem.
As vítimas precisam de tempo,
sobretudo se os agressores não
correspondem ao estereótipo do
abusador. Quando se pergunta às
pessoas por que razão apresentam
queixa, um dos principais motivos é
garantir que aquele agressor não volta
a fazê-lo. Já quando retiram a queixa,
o principal motivo é o medo. Muitas
vezes, há ameaças do agressor ou dos
seus familiares, e também há medo do
processo judicial – algumas vítimas
dizem que o julgamento foi uma
segunda violação. Se nos pusermos no
lugar do outro, percebemos que quem
agride é frequentemente alguém com
quem há algum tipo de relação, e essa
pessoa não é um agressor o tempo todo.
Considera as agressões sexuais
sintomáticas de uma desvalorização
histórica do consentimento da
mulher. Porquê?
Na altura em que fui pesquisar se
era mesmo plausível os homens
entenderem mal quando as mulheres
dizem “não”, verifiquei que, ao lhes
perguntar se percebiam uma rejeição
sexual, todos diziam que entendiam,
mesmo quando as pessoas não se
exprimiam por palavras. Não estou a
dizer que não possa haver casos em
que há dúvidas, mas a investigação não
corrobora a ideia de que os homens
entendem mal a rejeição feminina.
23 AGOSTO 2018 VISÃO 11
A chamada “cultura da violação”
é sinónimo de que tipo
de representações?
A teorização da cultura da violação
prende-se com um conjunto de
práticas e de discursos que legitima
e naturaliza a violência sexual de
homens sobre mulheres, ao se dizer,
por exemplo, “um homem não é de
ferro”. Um homem pode sentir a
necessidade de ter um carro, mas não
será desculpabilizado em tribunal por
o ter roubado. Não da mesma forma
que será desculpabilizado se recorrer
a um ato ilícito para conseguir ter sexo
com uma mulher.
Acusa os tribunais de criarem
“narrativas pornográficas”...
Quando li um acórdão pela primeira
vez fiquei chocada com a forma
crua como tudo era descrito. Estas
narrativas ultrassexualizam um ato
extremamente violento, que as vítimas
não encaram como sexo mas como
violência. Adota-se a perspetiva do
agressor e não da vítima. Ao mesmo
tempo, estas narrativas mostram uma
reduzida dimensão daquilo que a
vítima sentiu. Houve um caso horrível,
eu sei que não foi com intenção,
mas o texto era muito romantizado,
falava de carícias e de beijos, palavras
que associamos a coisas agradáveis.
Quando lemos o registo da gravação,
porque o agressor também estava
detido por gravar os abusos, é um
horror, porque aí está descrito o
menor abusado a chorar e a dizer não.
É de uma violência tremenda.
Acredita que os tribunais
especializados em crimes violentos
poderiam resolver este tipo
de problemas?
Sugiro a criação de tribunais
especializados como uma forma de
encontrar um maior equilíbrio entre
a necessidade de assegurar os direitos
e as garantias dos arguidos, sem ser
à custa da obnubilação completa
do trauma da vítima. Uma coisa
não pode ser feita à custa da outra.
Estamos a falar de crimes que afetam
a estabilidade das pessoas, por isso
são precisos profissionais capazes de
prestarem o melhor acompanhamento.
Os tribunais especializados poderiam
resolver questões tão simples como
garantir que as vítimas não se cruzam
com os agressores nos espaços
comuns do tribunal.
A agressão sexual é alimentada pela
desigualdade de género?
Podemos olhar para a violência
12 VISÃO 23 AGOSTO 2018
Não vamos
infantilizar
homens
e mulheres,
achando que os
homens, coitados,
não percebem
a diferença entre
assédio e sedução.
Tenho a certeza
de que percebem
essa diferença se
for outro homem
a seduzi-los
sexual e pensar que esta resulta de
problemas de personalidade dos
indivíduos, mas essa visão só seria
verdade se a violência sexual fosse
rara. Toda a reação social à violência
sexual é de desvalorização ou de
incentivo à conformidade. No caso das
raparigas, diz-se para ignorarem, “não
vale a pena dizer nada, até pode ser
pior”. Se não houvesse desigualdade,
como se explicaria o número de
mulheres mortas por companheiros
ou ex-companheiros, sem que
exista o mesmo número de homens
assassinados?
O movimento #MeToo contribuiu
para alterar comportamentos
relativamente ao assédio sexual?
Em Portugal, foi muito positivo ter-se
falado do assunto. É importante pôr
as pessoas a debater e a pensar se
apresentariam logo queixa ou não.
Vi uma mulher, numa reportagem na
televisão, que ilustra a internalização
da culpa. Ela tinha sido vítima
de agressão sexual e dizia que a culpa
de isso ter acontecido era das mulheres
que permitem essas situações. Um dos
grandes perigos deste discurso é onde
fica o agressor. Quando transferimos
a responsabilidade para a vítima, deixa
de haver agressor.
Compreende que se discutam as
fronteiras entre assédio e sedução?
Não vamos infantilizar homens e
mulheres, achando que os homens,
coitados, não percebem a diferença
entre assédio e sedução. Até porque
eu tenho a certeza de que percebem
essa diferença se for outro homem
a seduzi-los. Aí já sabem muito bem
quais são as fronteiras.
Como se posiciona relativamente
ao tema das quotas de género?
Faz sentido impor a presença
de mulheres?
Não é uma questão de impor... Eu sou
a favor. Já alguém disse uma frase
muito ilustrativa do que eu penso.
“As quotas são como o aparelho nos
dentes: é feio, mas corrige.” Podemos
dizer que as mulheres não estão em
cargos de poder porque não têm
capacidade? Então como é que têm
melhores notas?
Diz-se, muitas vezes, que
as mulheres não querem...
E não querem porquê? Será que não
querem porque estas instituições
funcionam, muitas vezes, de forma
pouco amigável na conciliação entre
família e trabalho? Será que não
querem porque o modelo considerado
adequado é masculino? Ou não
querem porque são hostilizadas?
Antes de se dizer isso é preciso
perceber se elas concorrem, ou não, a
esses lugares e como é feita a escolha.
Como reage perante mulheres
que dizem não ser feministas?
As pessoas confundem,
frequentemente, feminismo com
uma ideologia de supremacia de
fêmeas sobre machos; muitas pessoas
desconhecem que o feminismo é
uma corrente teórica e que há uma
complexidade dentro dos movimentos
feministas. Muita gente afirma “eu não
sou feminista, mas...”, isso significa que
há o reconhecimento da desigualdade.
As mulheres dizem que não são
feministas por vários motivos, um
deles é porque sabem que é muito
penalizante – ser feminista é quase
criminoso.
Os homens feministas são mais
autoconfiantes?
[Risos.] Não sei se os homens
feministas são mais autoconfiantes,
mas claramente não estão em negação,
não dizem que não é verdade que as
mulheres ganhem menos do que os
homens; reconhecem a desigualdade.
Não significa que sejam ativistas,
mas querem ter um papel ativo no
sentido de não serem cúmplices da
desigualdade. Isso deixa-me muito
feliz, porque é fundamental que os
homens tenham um papel no caminho
da igualdade. vfmaia@visao.pt
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 RADAR

> As piores inundações

do século
Assim já o consideraram
as autoridades perante os
acontecimentos em Kerala,
no Sul da Índia, com a
quantidade de precipitação
em algumas áreas bem acima
do dobro do que seria normal
para a estação das monções.
Cerca de 800 mil pessoas
tiveram de abandonar
as suas casas e o número
de mortos é ainda incerto
(várias agências noticiosas
apontam para números entre
os 200 e os 400), ao mesmo
tempo que se desenvolvem
todos os esforços para levar
água potável às áreas mais
afetadas: pelo menos dois
comboios, carregando mais
de 1 500 litros de água,
já passaram pelas zonas
inundadas, nos bairros
de Madhya Pradesh e de
Maharashtra. Entretanto,
milhares de funcionários das
equipas de resgate tentam
ainda salvar as pessoas que
continuam atoladas na região.

Foto: Sivaram V/Reuters

14 VISÃO 23 AGOSTO 2018

14 600 000 bolívares 2 500 000 bolívares
O preço de um frango (€2) Um quilo de esparguete (€0,33)

3 000 000 bolívares 8 000 000 bolívares

Um quilo de cenouras (€0,40) Um pacote de toalhitas (€1,07)

7 500 000 bolívares 9 500 000 bolívares

Um quilo de queijo (€1) Um quilo de carne (€1,27)

16 VISÃO 23 AGOSTO 2018

2 500 000 bolívares
Um quilo de arroz (€0,33)
5 000 000 bolívares
Um quilo de tomate (€0,67)
2 600 000 bolívares
Um rolo de papel higiénico (€0,35)
> Inflação galopante
Nicolás Maduro, o Presidente
da Venezuela, insiste que
se tem esforçado para
evitar que as contas do país
descarrilem de vez, atingindo
a inimaginável inflação
de um milhão por cento.
Dentro do pacote de medidas
anunciadas, a mais visível
é a substituição da moeda
bolívar pelo bolívar soberano,
com o corte de cinco zeros.
Dessa forma, 50 milhões de
bolívares passaram a valer
500 bolívares soberanos.
Por outro lado, o país terá
também a criptomoeda
venezuelana – o Petro –, que
será a unidade monetária
contabilística de uso
obrigatório para todas as
operações relacionadas com
a atividade petrolífera. E ainda
um novo sistema salarial,
cujo valor terá por base
0,50 de Petro e que vai fazer
aumentar quase 35 vezes o
salário mínimo mensal dos
venezuelanos – que passou
de 5,19 bolívares para 1 800
bolívares. Qualquer coisa
como 39,50 euros. É conferir
quanto dá, aqui ao lado...
Foto: Carlos Garcia Rawlins/Reuters
23 AGOSTO 2018 VISÃO 17
18 VISÃO 23 AGOSTO 2018
 > A ponte colapsada
Chamava-se Morandi, porque
herdou o nome do engenheiro
que a projetou, Ricardo
Morandi, e era um troço da
autoestrada A 10, que liga
Sampierdarena a Cornigliano.
Também conhecida por
viaduto Polvacera, a ponte
foi construída em 1967, tem
perto de 1 200 metros de
comprimento e 45 metros
de altura. Boa parte da
construção é sobre uma
zona densamente habitada,
mas o troço que colapsou
atingiu uma área industrial
nos arredores de Génova,
cruzada por várias linhas
ferroviárias. Num vídeo da
polícia divulgado esta semana,
é possível perceber como
alguns segundos sem trânsito
foram suficientes para evitar
uma tragédia maior. A última
contagem estava nos 43
mortos, depois de um homem
internado também não ter
resistido aos ferimentos.

Foto: Paolo Rattini/Getty Images

23 AGOSTO 2018 VISÃO 19

 RAIOS X

Grécia navega sozinha Pela primeira vez em oito anos, este país está
sem rede de segurança nos mercados financeiros.
Mas estará melhor do que em 2010?

N U N O A G U I A R naguiar@exame.pt

% do PIB 0,6
249,9 ECONOMIA GREGA 0,4
EM MIL MILHÕES DE EUROS
0

-10,2

190,6 Banca
O crédito malparado
representa quase -15,1
metade dos
empréstimos 2008 09 10 11 12 13 14 15 16 17 2018
2008 09 10 11 12 13 14 15 16 17 2018 concedidos pela

24% 20%
Banca grega.
Isto é, pertence a
devedores que não
pagam há mais
de 90 dias. É o rácio O desemprego na Grécia ronda hoje
Enquanto Portugal deverá regressar este mais elevado os 20%, mais do dobro do observado
ano ao nível de riqueza de 2008, a economia da Zona Euro em 2008, quando estava abaixo de 8%.
grega terminará 2018 muito longe do pré-
O emprego até está a crescer, mas
crise, com o PIB ainda 24% abaixo do ponto
essencialmente com vínculos precários
em que estava há dez anos. Depois de ter
e salários muito abaixo dos que eram
enfrentado violentas vagas de austeridade,
praticados antes da crise
a Grécia tem tido uma recuperação
especialmente lenta. Por comparação, seis TAXA DE DESEMPREGO
anos depois do início da Grande Depressão, % DA POPULAÇÃO ATIVA
a economia norte-americana já tinha
27,5
regressado ao nível pré-crise
20,1

7,8

2008 09 10 11 12 13 14 15 16 17 2018

“Hoje é um dia especial para a Grécia. Sei que os benefícios ainda não são sentidos por toda a
população, mas gradualmente vão sentir. A Grécia regressou hoje à normalidade. Bem-vinda de volta”
MÁRIO CENTENO, PRESIDENTE DO EUROGRUPO

20 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 7
PONTOS DA SEMANA
POR
FILIPE LUÍS*
TIAGO MIRANDA
ORÇAMENTO AQUECE OS MOTORES
As declarações de Mário Centeno, no
vídeo em que felicita a Grécia pela sua
“saída limpa” do programa de ajusta-
mento, terão todos os méritos menos
o de facilitar as negociações que, dentro
de pouco mais de uma semana, sentarão
à mesa Governo e parceiros à esquerda,
nas negociações do Orçamento do Esta-
do para 2019. As lições de bom compor-
tamento orçamental e sobre os méritos
da austeridade, dadas aos gregos pelo
presidente do Eurogrupo, que provoca-
ram reações negativas dentro do próprio
PS, colocam uma espécie de reserva
mental para o que aí vem, sabendo-se
da secreta ambição do ministro das
Finanças em atingir “défice zero”.
A principal dificuldade a inquinar o
debate – e esta é, sobretudo, levantada
pelo PCP – tem que ver com um grave
problema por resolver: o da contagem
do tempo para reposição dos rendimen-
tos congelados aos professores. António
Costa, em declarações ao
Expresso, já mostrou sinais de falta de
paciência com os sindicatos, que acusa
de serem inflexíveis. Estes, por seu tur-
no, começam a exercer pressão para que
a esquerda chumbe o Orçamento, caso
a reposição total dos rendimentos con-
gelados durante o período da Troika não
seja efetuada, conforme prometido para
o ano de 2018. E esta posição sindical
*Editor-executivo
fluis@visao.pt
22 VISÃO 23 AGOSTO 2018
parece ser unânime, unindo na reivin-
dicação a Fenprof, liderada por Mário
Nogueira, e a FNE, de João Dias da
Silva, tradicionalmente mais moderada.
Podemos dar de barato que esta pressão
apenas servirá como jogo de forças do
processo negocial. Mas a verdade é que
o secretário-geral do PCP, Jerónimo de
Sousa, veio defender que a “contagem
do tempo todo” já estava inscrita no OE
para 2018. Portanto... Ora, mesmo tendo
em conta que o documento salvaguar-
dava a posição governamental, falando
na reposição, se observadas as neces-
sárias “possibilidades orçamentais”,
restará saber que tipo de possibilidades
orçamentais são essas: se for para exibir
uma folga para além do que foi estipula-
do com Bruxelas, como aconteceu neste
ano, estamos mal...
Na sua habitual análise de domingo,
na SIC, Marques Mendes falou numa
espécie de solução em que as cedências
à esquerda podem salvar o Orçamen-
to, e que já estaria a ser estudada: entre
outras novidades possíveis, o aumento
de pensões, acertos no IRS para aliviar
a carga fiscal e uma descida do IVA no
preço da eletricidade. Faz sentido:
é possível que estas e outras medidas
próprias de anos eleitorais deixem toda
a gente contente... A fatura fica para
mais tarde.
300
NÚMERO
padres
do estado da Pensilvânia,
nos EUA, foram acusados
de exercerem atos
de pedofilia sobre mais
de mil vítimas, ao longo
dos últimos 70 anos,
tendo sido encobertos
pelos bispos locais.
A ampla investigação
ouviu depoimentos de
vítimas e de prelados,
e o relatório abarca as
dioceses de Allentown,
Erie, Greensburg,
Harrisburg, Pittsburgh
e Scranton. O documento
é o mais abrangente já
feito pelas autoridades
norte-americanas sobre
o abuso sexual infantil
na Igreja Católica.
PIROTECNIA
Cessar fogo
A Associação Portuguesa
dos Industriais de
Pirotecnia e Explosivos
(APIPE) voltou a repudiar
a decisão de o Governo
proibir o lançamento de
fogo-de-artifício em todo
o País, como uma das
medidas de prevenção
dos incêndios florestais.
Os industriais queixam-
-se de que a decisão é
“indiscriminada” por não
distinguir as zonas de
risco das zonas seguras,
e chegou a classificar
a medida como
“eleitoralista”. Entretanto,
o alerta vermelho vigorou
em sete distritos, até
meados da semana, e a
ordem de “cessar fogo”
mantém-se...
FRASE
Um vídeo lamentável, que apaga
o desastre do programa
de ajustamento grego e que
branqueia todo o comportamento
das instituições europeias”
João Galamba, deputado e ex-porta-voz do PS, no Twitter,
sobre o vídeo em que Mário Centeno saúda a saída da Grécia
do programa de ajustamento financeiro
SPORTING
Novela mexicana
A comissão de gestão do
Sporting diz que vai proces-
sar o ex-presidente Bruno
de Carvalho por fraude e
usurpação de funções. No
final da semana passada,
Bruno de Carvalho afirmou
estar na posse de uma
decisão judicial que anula-
va a sua destituição. Mas,
analisados os documentos,
verificou-se que não era bem
FERROVIA
assim. Mais tarde, o ex-di-
Muito pouca terra rigente leonino foi acusado
de ter procurado congelar
A degradação quase total das Linhas do Oeste e do as contas da SAD do clube,
Alentejo, onde, como horário, os comboios chegam o que é desmentido por ele,
quando chegam e partem quando partem, é o retrato mais num comunicado que assina
elucidativo do estado a que chegou a ferrovia nacional. Já
não se sabe se as linhas estão ao abandono porque não
como “presidente”. Também
enviou mensagens a alguns
há passageiros, ou se não há passageiros porque estão jogadores, assinando como
ao abandono. O material circulante, na maior parte dos “o vosso presidente”. O susto
casos, já ultrapassou, há muito, o prazo de validade. Ainda provocado no balneário levou
assim, a CP anunciou o aluguer de várias composições à intervenção de elementos
à Renfe espanhola, aumentando em 3,3 milhões de euros da SAD, para tranquilizarem
os encargos com este tipo de contratos, que já iam em os atletas, mas a novela
7 milhões de euros em alugueres. Pouquíssima terra. parece não ter fim...
VERÃO
Coura “on fire”
O festival de Paredes de celebrando 18 anos de
Coura celebrou, este ano, existência, também atingem
as “bodas de prata”. Os a “maioridade”. A banda
25 anos daquela que é uma canadiana, que terminou a
das “Mecas” dos festivais atuação com os acordes do
de verão em Portugal foram clássico Walk On The Wild
festejados, na última noite Side, de Lou Reed, abriu
do certame, com a atuação o concerto com o tema de 27 mil pessoas presentes.
dos Arcade Fire, cabeças Everything Now (tudo agora) Foi tudo (por) agora, mas
de cartaz deste ano e que, e não desiludiu as cerca para o ano há mais...
23 AGOSTO 2018 VISÃO 23
 HOLOFOTE

Asia Argento E agora é ela a acusada de abuso sexual

Duetos com #MeToo
Paulo Furtado EM ABRIL, A ATRIZ E do avesso
O pai convidou-a
para entrar num REALIZADORA ITALIANA Foi uma das
pioneiras do
filme – Trauma
– aos 18 anos.
QUE ENCABEÇOU movimento que
teve como objetivo
A partir daí, Asia
foi colecionando
O MOVIMENTO #METOO denunciar os
abusos sexuais
Histórias de papéis e prémios, PAGOU 330 MIL EUROS em Hollywood
mas também quis e acabou por se
terror para
adormecer experimentar PARA CALAR UM JOVEM O episódio
Bourdain
espalhar ao resto
Asia Argento foi
uma criança infeliz.
o outro lado
das câmaras. ATOR AMERICANO. A lista de homens
famosos ligados
do mundo. Meses
depois de o seu
A própria já o disse Começou por
curtas-metragens
OS FACTOS REMONTAM ao seu nome
nome ter aparecido
num artigo da New
em entrevistas
e até o escreveu e documentários, A 2013, TINHA ELE é extensa, a
começar pelos
Yorker, emocionou
quem estava no
antes de se
na autobiografia,
I Love You Kirk aventurar numa 17 ANOS E ELA 37 dois com quem se
casou – o músico
Festival de Cannes
(1999). Filha do longa, com Scarlet ao contar ter
ROSA RUELA Marco Castoldi e o
cineasta Dario Diva (2000), sido violada pelo
realizador Michele
Argento e da atriz a par com a produtor Harvey
Civetta. Mas foi
Daria Nicolodi, carreira de atriz. Weinstein, nos
por causa do
Aria Maria Vittoria Pelo caminho, anos 90. Agora,
último namorado,
Rossa Argento tem escrito em soube-se que em
Anthony Bourdain,
cresceu a sentir-se revistas e canta. abril pagou
que fez manchetes
abandonada pelos Em 2009, entrou 330 mil euros ao
em junho. Cinco
pais (sim, chama- no projeto Femina, ator americano
dias antes do
-se mesmo Aria do português Jimmy Bennett
suicídio, aos
porque há 42 anos Paulo Furtado (aka para que não
61 anos, do autor
Asia não constava The Legendary apresentasse
do programa
da lista de nomes Tigerman), e queixa por abuso
Parts Unknown,
possíveis). Do pai, em 2013 lançou sexual. Segundo
um paparazzo
mestre do cinema o álbum Total o New York Times,
apanhou-a aos
Giallo (thriller e Entropy. Bennett acabara
beijos com o
terror), recorda-se de fazer 17 anos
repórter francês
sobretudo que lhe quando os dois
Hugo Clément, de
lia guiões se encontraram
28 anos. Segundo
de filmes à num quarto do
os amigos, o casal
noite – e que, Ritz-Carlton em
tinha uma “relação
ao pé daquilo, Marina del Rey,
aberta”, mas os
O Capuchinho na costa de Los
fãs do chefe de
Vermelho era Angeles. Depois
cozinha não lhe
uma história para de lhe mostrar
perdoam a traição.
meninos. Hoje, não umas notas que
tem uma relação escrevera no papel
próxima com ele timbrado do hotel,
e confessa que só Asia beijou-o,
se tornou atriz empurrou-o para
(aos 9 anos, numa a cama e fez-lhe
série de televisão) sexo oral. Por fim,
para conquistar a sentou-se em cima
sua atenção. dele e fizeram
sexo.

24 VISÃO 23 AGOSTO
 UM BRINDE AOS
CLÁSSICOS
FINAIS DE TARDE
E AOS MOMENTOS
SEJA RESPONSÁVEL, BEBA COM MODERAÇÃO.

SUPERIORES

3000
hectares de histórias
ALENTEJO | PORTUGAL WWW.RAVASQUEIRA.COM
 ALMANAQUE
Teclar como um (antigo) egípcio
Hieróglifos propostos para integrarem linguagem dos telemóveis
Milénios depois de ser usada pela última
vez, a escrita dos antigos egípcios toca
o sonho da imortalidade no mundo
digital: o complexo universo dos
hieróglifos está agora no centro das
atenções do Unicode, como é conhecido
o padrão que permite aos computadores
representar e manipular, de forma
consistente, o texto de qualquer sistema
de escrita existente. O consórcio que
o promove e o desenvolve acaba de
tornar público um documento que
traduz a antiga linguagem para gifs
universais. “Contar com estes novos
A L I M E N TA Ç Ã O
Portugueses cada vez mais bio
Aumento da procura de produtos biológicos leva
cada vez mais hipermercados a criarem linhas
de marca branca para rentabilizar a tendência.
A aposta comercial é suportada pelos últimos
números – de um estudo do Centro de Estudos
Aplicados da Católica Lisbon School of Business
& Economics (realizado em parceria com a
Associação Nacional para a Indústria da Proteção
das Plantas) – que mostram que, se dependesse
apenas da vontade dos portugueses, sem olhar
a preço ou a disponibilidade, 65% consumiriam
exclusivamente alimentos biológicos.
26 VISÃO 23 AGOSTO 2018
carateres permite que todos possam
enviar textos sem fontes especiais ou
não estandardizadas”, disse ao El Mundo
Deborah Anderson, linguista e diretora
do Script Encoding Initiative, projeto da
Universidade da Califórnia em Berkeley,
que apoia a missão de preservar idiomas
através do Unicode. A organização sem
fins lucrativos já tinha desafiado
a linguagem corrente quando, em 2011,
e depois de um primeiro passo da Apple,
passou a integrar os emojis no seu
sistema, o que fez muitos chamarem-lhe
o esperanto do século XXI.
NÚMEROS DA SEMANA
4 mil
Número dos prédios vazios
pertencentes ao Estado.
Segundo detalha o último
relatório da DGTF, são
exatamente 3 891 os imóveis
edificados que estão sem
ocupação por parte dos
organismos públicos
– correspondendo a 14%
do total.
5,1%
Descida na procura do turismo
em Portugal, durante o mês de
junho, face ao mês homólogo
do ano anterior. A redução
no número de dormidas
deveu-se, alega-se, à procura
de destinos mais baratos por
parte dos ingleses – ao que o
Governo português acrescenta
o campeonato do mundo de
futebol e ainda, claro, o clima.
41 mil
Casos de sarampo na Europa,
durante o primeiro semestre
de 2018, número superior ao
de qualquer outro ano desta
década. No ano passado,
foram contabilizados 23 927
casos e, em 2016, não eram
mais do que 5 273, avança
a Organização Mundial de
Saúde, num relatório que
inclui 53 países (os 28 da
União Europeia, a Rússia
e a Europa de Leste), com uma
população aproximada de
900 milhões de habitantes.
124 499
Licenças de caça atribuídas,
quase mais 3 mil do que no
ano passado. Associações
dizem que estará
condicionada nos distritos
em alerta vermelho, devido
ao agravamento de risco
de incêndio, mas não está
proibida.
INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Não
Sou casado com
o SNS há 30 anos
podemos
e nunca cometi virar as
um pecadinho
MANUEL ANTUNES
Cirurgião cardiotorácico que,
costas a este
durante anos, dirigiu o centro
público com o seu nome, em
Coimbra, e que foi obrigado a sair problema
[migrantes],
aos 70 anos por ter atingido
o limite de idade

nem serve de
nada olhar
para o outro
lado
PCP e BE estão PENÉLOPE CRUZ
errados quanto Atriz espanhola e membro da ONG
Proactiva Open Arms, dedicada ao resgate
aos professores de migrantes no Mediterrâneo
ANTÓNIO COSTA
Primeiro-ministro a revelar
porque há pretensões sindicais FRASE DA SEMANA
que vão ficar pelo caminho

Nenhuma ponte
Não chega
é segura pedir desculpa.
FERNANDO BRANCO
Catedrático do Instituto Superior
As estruturas
Técnico a comentar que, sem
manutenção, não há construção
C H O Q U E F R O N TA L que permitiram
que fique incólume
abusos devem ser
É fundamental
destruídas
DIARMUID MARTIN
aproximar os Arcebispo de Dublin, nas vésperas da visita
do Papa Francisco ao país, a pedir menos
consumidores do leite palavras e mais ação
MARIA CÂNDIDA
MARRAMAQUE
Diretora-geral da Associação
dos Industriais de Laticínios,
a defender que os produtos
lácteos são nocivos para a saúde Acabo de chegar [Musk] trabalha
da fábrica. Posso de uma forma
precisar de dormir, fora de época,
A reforma mas mudar não anticientífica
é um direito, é uma opção e ineficiente
não é um dever ELON MUSK ARIANA HUFFINGTON
Empreendedor, fundador A também autora de um
BAGÃO FÉLIX da Tesla, a responder livro sobre os benefícios
Antigo ministro (Finanças, à letra às críticas do sono pegou-se com
Segurança Social e Trabalho), da cofundadora o fundador da Tesla
a apoiar o fim da aposentação do Huffington Post
obrigatória aos 70 anos

Fonte: Diário de Notícias, El País, Expresso, Público, SIC Notícias, Twitter

23 AGOSTO 2018 VISÃO 27
 TRANSIÇÕES

MORTE
Foi o Magnífico Reitor da
Universidade de Coimbra
entre 1982 e 1998, o
mandato mais longo em
democracia. Rui Alarcão
era também considerado um
dos mais brilhantes juristas
da sua geração, defensor
acérrimo da autonomia
universitária. “Um espírito
livre e um homem de
liberdade”, elogiou Marcelo
Rebelo de Sousa; “de um
profundo empenhamento
cívico, sempre generoso
e desinteressado”,
acrescentou António
Guterres. Ou, como remata
a nota do atual reitor, João
Gabriel Silva, “a ele se
devem, entre muitas outras
iniciativas, a construção do
polo II, o início do polo III,
e uma forte expansão dos
serviços de Ação Social. KOFI ANNAN (1938-2018)
Teve ainda a visão de iniciar
a internacionalização da
UC (...) Era, além disso,
uma pessoa com um trato
pessoal de inquebrantável
O secretário-geral agridoce
gentileza.” Dia 19,
aos 88 anos.
Arriscou em fazer da ONU o árbitro ativo na prevenção de conflitos
no mundo. Nos êxitos, surgia o homem afável e de “sorriso luminoso”.
Nos fracassos, era amargo na responsabilização de terceiros
DESPEDIDA
Robert Redford, icónico
Mostrava sempre uma calma e uma Guterres, à época primeiro-ministro,
ator americano, que afabilidade imperturbáveis. Por isso, evoca Annan como “uma força que
começou a carreira aos quando ascendeu a secretário-geral da guiou o bem”. Jorge Sampaio, na altura
21 e ficou famoso nos ONU, em 1997, o diplomata Kofi Annan Presidente da República, enaltece o
anos 1960 ao protagonizar suscitou a expectativa de ter sido “olhar frontal e o sorriso luminoso”
Descalços no Parque, ao encontrado o líder certo para colocar do “filho do Gana”, o seu “sentido de
lado de Jane Fonda, veio as Nações Unidas na intermediação humor”, e a “sabedoria funda, feita
a público anunciar que ativa que prevenisse conflitos no de experiência e inteligência rara”.
tenciona retirar-se da mundo ou restabelecesse a paz. Annan empenhou-se ainda na luta
representação. “Nunca E Annan – “o filho do Gana”, como contra a disseminação da pobreza, da
digas nunca, mas penso é recordado, que morreu no sábado, sida e da tuberculose entre os mais
que este terá sido mesmo 18, aos 80 anos, “após uma curta desfavorecidos. Em 2001, recebeu
o fim”, fez saber durante a doença”, segundo a família – assumiu o Prémio Nobel da Paz, mas os dois
promoção daquele que será esse arriscado objetivo. Entre os seus mandatos em que liderou a ONU, até
o seu último filme. Chama- primeiros compromissos, estava um 2006, foram marcados por grandes
se The Old Man & the Gun, que nos dizia muito: a resolução fracassos – do genocídio ruandês
uma realização de David do drama dos timorenses, subjugados à guerra nos Balcãs ou à desastrosa
Lowery, sobre a personagem pela ocupação militar indonésia, invasão do Iraque pelos EUA.
verídica de Forrest Tucker,
de repressão brutal. Fruto do seu Sacudia responsabilidades para
especialista em fugas
intenso trabalho diplomático de Estados-membros e perguntava,
de prisões. Com estreia
nos EUA agendada para
bastidores, o próprio secretário-geral já em tom amargo, se os jornalistas
setembro, o filme deverá supervisionou a assinatura do acordo também o culpavam por tsunamis ou
chegar aos ecrãs nacionais histórico de 5 de maio de 1999, entre terramotos... Há quatro meses, na BBC,
a 8 de novembro. Portugal e Indonésia, que permitiu insistia: o mundo precisa de líderes
o referendo em que os timorenses com “cabeças ponderadas e decisões
escolheram ser independentes. Atual sóbrias”. Estaria a pensar em alguém?
secretário-geral da ONU, António J.P.J.

28 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Santana
PRÓXIMOS CAPÍTULOS de “menino
guerreiro”
a “menino
da Aliança”

PERISCÓPIO

AFICIONADO...
... mas pouco
À medida que endurecem o discurso e o
ativismo contra as touradas, o deputado
socialista João Soares, que abomina o
politicamente correto, parece que ainda faz
pior – e anuncia, galhardamente, no Facebook,
a sua presença em vários espetáculos taurinos.
À revista Sábado contou como ia ver com um
tio materno por afinidade as touradas às Caldas
da Rainha, pelo 15 de agosto. No entanto,
confessou que ainda não sabe distinguir entre
uma “verónica” e uma “chicuelina”...

TROIKA
PA R T I D O S
Centeno, quem o viu...

Aliança à procura de dedo

O antigo ministro das Finanças grego, Yanis
Varoufakis, considerou o vídeo com que o
presidente do Eurogrupo, Mário Centeno,
assinala a saída da Grécia do programa de
Santana Lopes aparece como o único, desde resgate digno de “propaganda norte-coreana”.
o Bloco de Esquerda, com hipótese de reconfigurar Em Portugal, as reações negativas, que vieram
desde o PSD ao Bloco de Esquerda, foram
o tabuleiro partidário. Daqui a um ano, falamos
lideradas por... João Galamba, conhecido
deputado e ex-porta-voz do PS. Mas logo o seu
Personalista, liberalista e solidário, europeísta mas não demasiado, colega de bancada Ascenso Simões acorreu, no
sem cedências à “agenda da extrema esquerda” – leia-se, fugindo ao Facebook: “Pensei que João Galamba já tinha
politicamente correto da capitulação em matéria de temas fraturan- esgotado as suas doses de radicalismo barato.
tes. Pedro Santana Lopes não perdeu tempo e, poucos dias após se Enganei-me! Bem, estamos na época estival
ter desfiliado do seu partido de sempre, o PPD/PSD, voltou a andar e até um cheiro Syriza pré-histórico fica bem
por aí. Numa primeira análise ao que aí vem, Santana parece apostar no bronzeado burguês de Galamba.” A coisa
num programa de “convicções”, ideias firmes e definidas e porto de aquece...
abrigo a uma certa direita desorientada e um tanto ou quanto órfã.
Em suma, um partido que não tem vergonha de ser de direita.
A Aliança – assim se chama a nova formação partidária – surge já
com a intenção de ir a jogo nas próximas eleições europeias. A ima-
gem fortemente mediática do seu fundador e (primeiro) líder garante
a publicidade necessária à assimilação, por parte do eleitorado, do
novo projeto. Santana ainda não arrastou consigo a boa parte do PSD
desiludida com Rui Rio que, aparentemente, prefere esperar para ver.
Mas, nas redes sociais, onde as bases se exprimem com mais à-von-
tade do que os barões, há quem não regateie simpatia pela Alian-
ça... Reconheça-se-lhe coragem: um dos temas que enfrenta sem
paninhos quentes é o da defesa da liberalização – leia-se, assumida
abertura à privatização – da Segurança Social e da Saúde.
Os estragos eleitorais a PSD e CDS, a serem feitos, assentarão numa
comunicação em plataformas digitais. E os modelos de sucesso são
o Ciudadanos, em Espanha, e o de Macron,
em França. A diferença essencial é que o RECORDAÇÕES
UM DOS TEMAS principal e único protagonista conhecido Victor Espadinha revisitado
QUE ENFRENTA da nova Aliança não surge de novo, como os
que entende por seus congéneres europeus,
Depois das imagens da CMTV, com o cantor
romântico Victor Espadinha a oferecer “duas
SEM PANINHOS mas antes aparece com o rosto conhecido bofetadas” a Bruno de Carvalho – afirmando
QUENTES É de 40 anos de exposição constante na po-
lítica, nas televisões e nos média, inclusive,
repetidamente que, mesmo com 80 anos, ainda
era capaz de lhe afinfar –, os pais e avós dos
O DA ABERTURA cor de rosa. Uma mais-valia ou um han- adeptos mais jovens do Sporting passam a ter
À PRIVATIZAÇÃO dicap? Só o futuro (aliás, um futuro muito
próximo) o dirá. Para já, Santana constitui-
a dupla tarefa de transmitir aos filhos e netos
qual é a sensação de ser campeão – e de lhes
– DA SEGURANÇA -se, desde o Bloco de Esquerda, como explicar quem é Victor Espadinha. Que não tem
SOCIAL E oo único com ambições de reconfigurar
tabuleiro de forças partidárias. Daqui
80, mas 79 anos, feitos em julho.

DA SAÚDE a um ano, falamos.

23 AGOSTO 2018 VISÃO 29
 OPINIÃO

Entre Alvito e Vila Nova

da Baronia vai gente
a pé na linha
P O R R I T A R A T O / Deputada do PCP

C
asa Branca é a estação de comboios pública e a subcontratação cada vez mais
de transbordo de passageiros do internacional, insistindo na sangria de recursos
intercidades Évora-Lisboa para a públicos para as PPP.
automotora regional que segue até Nos últimos 30 anos, o País perdeu 1 500 km
Beja. A 3 de agosto, entre Alvito e de caminho de ferro, 19 000 postos de trabalho
Vila Nova da Baronia, a composição no setor e 43% de passageiros/km, e o “sucesso”
avariou-se, as luzes e a ventilação da estratégia de Bruxelas tem sido proporcional
desligaram-se e os passageiros ao desastre em que se encontra a ferrovia
viveram momentos de pavor. Após nacional. Os constantes atrasos, supressões
longa espera sem água nem comida, e redução de oferta agora concretizados não
sob um calor insuportável e sem informações, são danos colaterais, antes são o resultado
alguns percorreram 4 km a pé até à estação mais inequívoco de opções contrárias às necessidades
próxima, outros aguardaram pelo transporte das populações e do País. A opção pela venda
alternativo e chegaram a casa de madrugada. e pela concentração capitalista do transporte
Nos últimos dias, a profunda ferroviário, pela degradação
degradação e a iminente rutura da soberania dos estados
do transporte ferroviário
ganharam dimensão mediática, Não é de ontem que periféricos, pela negação
do direito à mobilidade e pela
mas o problema é antigo, a estratégia para precarização das relações
gravíssimo e desde há muito
denunciado pelo PCP.
o setor ferroviário laborais é desastrosa.
Quem ganhou com isto?
Nada disto é ironia da nacional tem sido A Siemens alemã comprou
estação do ano, tem causas e definida em Bruxelas, o essencial das empresas
responsáveis concretos. Não é
de ontem que a estratégia para aprovada lá fabricantes e adquiriu a
principal rival (a francesa
o setor ferroviário nacional e concretizada cá Alstom), e a DB alemã
tem sido definida em Bruxelas,
aprovada lá e concretizada cá
por PS, PSD e CDS construiu um dos maiores
impérios de operadores
por PS, PSD e CDS. Tal só torna ferroviários do mundo,
mais hipócritas as lágrimas de dominando o transporte
crocodilo de dirigentes do CDS e do PSD tão ferroviário de mercadorias na Europa e presença
empenhados numa privatização da CP anunciada significativa na gestão da infraestrutura e no
e a bom tempo derrotada. transporte de passageiros em vários países
O atual Governo deve investir na – só em Portugal detém 100% da Arriva
modernização e na manutenção da linha férrea (Transportes Sul do Tejo e Metro do Porto)
existente e na contratação dos trabalhadores e 30% da Barraqueiro.
necessários, pois mais do que anúncios de As opções não se esgotam entre a privatização
investimentos estratégicos à boleia do “Portugal e a rutura. Outras soluções passam pela
2030”, urge concretizar os investimentos do reconstrução de uma empresa única, nacional
“Portugal 2020”. De resto, não lançou um e pública para todo o setor ferroviário,
único concurso para a aquisição de material devolvendo coerência e articulação ao setor,
circulante, manteve o bloqueio à contratação instrumentos estratégicos ao Estado e condições
dos trabalhadores operacionais necessários de desenvolvimento ao País. Obviamente isso
nas empresas ferroviárias e continuou o exige outra política que assegure serviços
desmantelamento da engenharia ferroviária públicos fiáveis e de qualidade. visao@visao.pt

30 VISÃO 23 AGOSTO 2018


O Homem-Aranha
está de volta
Ele é um dos super-heróis mais famosos do mundo. A 7 de setembro empresta as suas teias
em exclusivo à PlayStation 4 para uma nova aventura em forma de videojogo e falada em português
OS AFICIONADOS DAS AVENTURAS do mais
espirituoso e ágil super-herói da Marvel –
criado por Stan Lee e Jack Kirby – podem
começar a riscar os dias no calendário. O
novo jogo “Marvel’s Spider-Man”, criado
em parceria entre a Marvel e a Insomniac
Games, está quase a chegar ao mercado, em
exclusivo para a PlayStation 4. O lançamento
mais esperado do ano tem estreia marcada
para 7 de Setembro e apresenta um Spider-
Man mais adulto e maduro.
Peter Parker, o homem que se esconde por
detrás da máscara de Homem-Aranha, já
não é um jovem estudante. Ele trabalha
e já carrega de 8 anos de experiência de
super-herói a combater o crime na cidade
de Nova Iorque. Claro que nem tudo são
rosas: a vida pessoal continua caótica e um
Peter de 23 anos debate-se para manter
algum equilíbrio entre ela, a carreira e o
destino constantemente ameaça-do de
nove milhões de nova-iorquinos.
Além da destreza acrobática, da capacidade
de improviso, do manejo das teias e das
incontornáveis piadas que deram fama ao
Spider-Man, este jogo conta ainda com
elementos cinematográficos, que fazem com
que o cenário ganhe vida e seja possível
viajar de teia por bairros que vibram de
vida. Aos jogadores, é dada a possibilidade
de utilizar elementos do ambiente à sua
volta para derrotar os vilões, em sequências
de acção dignas de um blockbuster. Mas as
surpresas não acabam aqui. O novo jogo
traz um elenco de voice over de actores
portugueses. Tiago Teotónio Pereira (que
CONTEÚDO PATROCINADO
actualmente desempenha na SIC o papel
de Lou na novela “Paixão”) empresta
a voz a Peter Parker. Fã de videojogos,
o actor confessou que sente o peso da
responsabilidade de falar pelo super-herói,
embora confesse que sente afinidades com
o aracnídeo. “O Spider-Man tem muito a
ver comigo. Divirto-me muito mais a fazer o
Spider-Man do que a fazer o Peter, que é um
geek”, conta o actor, que se estreou aqui na
dobragem de um videojogo. E logo com um
“papel” cheio de acção, ao longo de mais de
setenta horas de gravação. “Foi complicado.
Ele está a trepar pelos prédios e eu faço os
‘ah’ ‘uh’, as interjeições de esforço, tudo.
Todas as reacções, do suspiro, ao respirar,
o correr... somos nós que fazemos. Estar braço direito, só lhe falta vestir o fato”,
numa sala de headphones a fingir que conta a actriz.
estou a correr é mais difícil do que correr na Jani Zhao é a segunda personagem feminina
realidade, implica mais esforço. E como não do jogo. Ela dá voz a Yuri Watanabe, que é
tinha muita experiência, não coloquei a voz o contacto de Spider-Man dentro da Polícia
como devia para a poupar, então sai tudo de Nova Iorque. “ela entra muito na acção,
em esforço. O que é bom, é mais real, mas e é uma personagem interessante porque,
acabava o dia sem voz e de rastos”, revela mesmo nas alturas de maior caos e aflição,
Tiago Teotónio Pereira. ela é sempre a que mantém a calma. A
A Mafalda Luís de Castro calhou o “papel” Yuri é muito pragmática, metódica, eficaz,
de dar voz a Mary Jane, a eterna namorada incisiva, rígida, forte, perspicaz. É uma
do Spider-Man. Também ela está diferente cabeça feminina no que toca a sangue frio.
neste jogo: mais calma e madura, ela é Acaba por ser uma mais-valia na acção, um
uma experiente repórter que investiga elemento crucial”, conclui a actriz.
as ocorrências suspeitas da cidade. “Ela é “Marvel’s Spider-Man” chega
jornalista, muito focada em ajudar o Spider- já no dia 7 de setembro e é
Man a salvar a cidade. Neste jogo sente-se um exclusivo PlayStation 4
que ela fica muito obstinada em ser o seu totalmente em português.
As leis da
atração
A paixão continua a ser um mistério
– para quem a sente e também para quem a estuda.
Mas há muitos aspetos que a Ciência já consegue explicar
SARA SÁ
ROSÁRIA E JORGE
CONHECERAM-SE HÁ
20 ANOS, NUM EVENTO
DESPORTIVO. AMBOS
COM 47 ANOS, FORAM
FOTOGRAFADOS EM S.
PEDRO DO ESTORIL
U
Um rapaz entra num bar, percorre a
multidão com o olhar, fixa-se numa
rapariga... Pode ser o ponto de parti-
da para uma comédia romântica mas
também um assunto que interessa à
Ciência. Envolve hormonas, neuro-
transmissores, muita Biologia e Teoria
da Evolução. Avaliar se alguém nos é
atraente, ou não – algo que fazemos
num ápice, de forma puramente in-
tuitiva –, é das tarefas mais complexas
a que o nosso cérebro se dedica. E,
como dizia o pai da Teoria da Evolu-
ção, Charles Darwin, não há padrões
universais quanto à beleza humana.
Porém, já há algumas pistas, parâ-
metros encontrados por todo o reino
animal, incluindo o bicho Homem.
Com um só encontro, Susana Lima
resolveu as duas principais questões
da vida: trabalho e amor. Cientista,
logo curiosa, a agora investigadora da
Fundação Champalimaud meteu na
cabeça que haveria de descobrir como
o cérebro sabe quando se encontra a
“pessoa certa” e se dá o “clique” – que
fenómeno a ligou de uma forma úni-
ca à pessoa que viria a tornar-se seu
marido, poucos meses após se terem
conhecido. Susana começou, então,
por estudar, precisamente, a escolha
do parceiro.
Para o fazer, analisou duas subes-
pécies europeias de rato doméstico,
que há dez mil anos eram uma só
espécie. Descobriu que existem duas
variáveis que condicionam a escolha:
o estado reprodutivo e a disponibi-
lidade. “Quando a fêmea estava no
período fértil, preferia machos da sua
subespécie. Se estava na fase do ciclo
em que não podia engravidar, então
não manifestava preferência por uma
ou outra subespécie”, explica na pu-
blicação da fundação, Ar Magazine.
“Em laboratório, verificámos que as
34 VISÃO 23 AGOSTO 2018
Onde está o amor
Através de ressonância magnética,
a professora de Antropologia
Helen Fisher, da Universidade de
Rutgers, montou um mapa cerebral
dos sentimentos envolvidos no amor
O QUE SE “ACENDE”,
NO CÉREBRO
Núcleo accumbens
Aqui mora o desgosto amoroso.
Os voluntários que tinham estado
muito apaixonados, mas tinham sido
abandonados, mostravam grande
atividade nesta região cerebral
Ventral pallidum
Numa relação de longo prazo,
é esta a região cerebral que se
acende. Está associada à hormona
oxitocina, que favorece a ligação
afetiva entre pessoas
Área tegmental
ventral
Importante no circuito
da recompensa, esta
área está associada
a um novo amor
Núcleo da rafe
Nos amores duradouros, esta parte
do cérebro liberta serotonina,
uma substância que funciona como
um neurotransmissor, transmitindo
uma sensação de bem estar
FONTE Universidade de Rutgers e AP INFOGRAFIA VISÃO
fêmeas, quando têm opção, escolhem
animais da mesma subespécie; sem
opção, copulam com o macho que
estiver disponível”, descreve.
No entanto, isso não quer dizer que
as fêmeas de rato doméstico não têm
qualquer critério de seleção. A questão
está em saber como estas decidem: são
os genes que mandam, ou a escolha
de um parceiro é um comportamento
aprendido, que passa de geração em
geração?
NÃO HÁ AMOR COMO O PRIMEIRO
Para esclarecer o efeito que o ambien-
te circundante pode ter, os investiga-
dores colocaram um grupo de filhotes
de rato, fêmeas, em famílias adotivas
da outra subespécie. Depois, testaram
a sua preferência. Metade escolheu,
para acasalar, parceiros da mesma
subespécie; a outra metade preferiu
machos da adotiva. Analisando caso
a caso, a cientista percebeu que, na
verdade, as fêmeas criadas em famílias
de acolhimento elegiam livremente,
sem condicionalismos, o macho para
a primeira relação sexual. Na prática,
acasalavam com o primeiro que lhes
aparecesse à frente.
No entanto, nos contactos seguin-
tes, a subespécie com que tinham
tido a primeira relação passava a ser
a preferida. “Não há amor como o
primeiro”, resume Susana Lima. “Ao
alterarmos as condições iniciais, nos
primeiros tempos de vida, altera-se
a escolha”, mas em todo este pro-
cedimento existe uma “componente
genética e outra social, ou ambiental,
num processo complexo que envol-
ve os genes, as interações sociais e a
memória”.
Todos os altos e baixos de atração e
de repulsão, ao longo do ciclo repro-
dutivo, são mediados pelas hormonas
MARIANA E JOÃO
JUNTOS HÁ TRÊS ANOS,
ESTE JOVEM CASAL estrogénio e progesterona, que con-
(ELA TEM 18 ANOS, ELE 21) trolam não só os órgãos reprodutivos
mas também o cérebro. Em particular,
FOI FOTOGRAFADO os neurónios do hipotálamo, uma re-
NA HARLEY-DAVIDSON gião que está envolvida na regulação
DE JOÃO, NUMA RUA de diversos comportamentos instin-
tivos, como a fome, o sono e também
DE CARCAVELOS a atividade sexual. “A atividade destes
neurónios [no hipotálamo] muda, de-
pendendo do estado reprodutivo da
fêmea. Quando não há possibilidade
de engravidar, a atividade dos neuró-
nios é semelhante nos encontros com
machos e com fêmeas. No entanto,
quando a gravidez é possível, a ati-
vidade dos neurónios é aumentada,
apenas quando as fêmeas interagem
com os machos”, explica no artigo
da Ar. “Este trabalho mostra que há,
de facto, uma região no cérebro que
integra informação sobre o estado
hormonal e a interação social.”
O CIRCUITO DA RECOMPENSA
Em vez de corações, os postais do Dia
dos Namorados deviam ter cérebros,
porque é aqui que se lê o amor. Apesar
de haver grandes semelhanças com
os animais, sobretudo os mamíferos,
como os ratos, tudo se torna mais
complexo quando analisamos os se-
res humanos – atração sexual, amor
romântico (aquela excitação quando
surge uma nova paixão), ligação (a
23 AGOSTO 2018 VISÃO 35
confiança criada numa relação de
longo prazo) e recompensa.
Num trabalho que se tornou uma re-
ferência, a antropóloga Helen Fisher
estudou 166 sociedades e encontrou
sinais de amor em 147 delas. “Se isto
assim é, há boas razões para acredi-
tarmos que o amor existe entre nós,
por ser algo elementar à nossa natu-
reza biológica”, sublinha o psiquiatra
e professor da Universidade de Har-
vard, Richard Schwartz. Num estudo
posterior, Helen Fisher submeteu os
cérebros de 2 500 pessoas a “morrer”
de amores a ressonâncias magnéticas
funcionais (RMf), que medem a ativi-
dade cerebral. Às suas “cobaias”, es-
tudantes universitários, a antropóloga
mostrou imagens de alguém que lhes
era especial. Depois mostrou a foto de
um mero conhecido. Mediu, então, a
atividade cerebral em cada uma das
observações e comparou os resulta-
dos. Quando olharam para a pessoa
amada, os cérebros dos estudantes
tornaram-se ativos em regiões ricas
em dopamina, o neurotransmissor do
prazer. “Duas das regiões cerebrais
que mostraram atividade na RMf
foram o núcleo caudado, uma região
associada à deteção e à expectativa
de recompensa e à integração de
experiências sensoriais no compor-
tamento social, e a área tegmental
ventral, associada ao prazer, à atenção
e à motivação para ir à procura de
recompensas”, lê-se numa publicação
do Instituto de Neurociência Harvard
Mahoney sobre o trabalho de Fisher.
Como é que tudo começa continua
a ser um grande mistério. Aparência
física, traços de personalidade, inte-
resses partilhados, tudo isso conta.
Porém, o momento inicial, a faísca,
a biologia da atração, continua por
esclarecer, até porque não é possível
simular ou reproduzir em laboratório.
O ODOR DA COMPATIBILIDADE
É sabido que o cheiro, este sentido
primordial, tem aqui um papel deter-
minante. O olfato permite-nos detetar
ameaças, escapar de ambientes tóxi-
cos, pressentir o perigo ao “cheirar” o
medo no odor dos pares. Também na
atração, é pelo nariz que nos chegam
as feromonas, secretadas no suor e
noutros fluidos corporais, como o
sémen ou a urina. Entre os animais,
estas substâncias químicas são essen-
ciais para a comunicação. Nos huma-
nos, não há tantas certezas. Mesmo
assim, é sabido já há algum tempo
36 VISÃO 23 AGOSTO 2018
A BIOLOGIA
DA ATRAÇÃO
Sistema
imunitário
Procuramos pessoas com um sis-
tema de defesa complementar ao
nosso, porque crianças que herdam
sistemas imunitários diferentes, de
cada um dos progenitores, têm uma
imunidade mais vasta. E é pelo chei-
ro que topamos o melhor par: é-nos
mais atrativo o odor de pessoas cujos
genes codificam para sistemas imu-
nitários (MHC) distintos do nosso.
Voz
Há já algum tempo que se conhe-
ce a preferência das mulheres por
homens com vozes graves; por outro
lado, os homens escolhem mulheres
com vozes mais agudas. Um estudo
recente acrescentou mais pormeno-
res: um som relativamente agudo,
com maior amplitude a pronunciar
as vogais, e um ligeiro sussurro é a
voz feminina mais apelativa. Já as
vozes eleitas das mulheres são as
graves, com pouca amplitude, mas
também com um ligeiro sussurrar.
Indicam a quem as ouve que estamos
perante mulheres de corpo pequeno
e homens grandes e fortes, mas não
agressivos
Mediania
Temos tendência para procurar a
média, em termos de características
físicas – relação entre o compri-
mento do rosto e a distância entre
MARISA E FRANCISCO
os olhos e a boca. São um sinal de ELA TEM 29 ANOS
maior diversidade genética e melhor
saúde reprodutiva.
E É TERAPEUTA HOLÍSTICA
NA MALVEIRA DA SERRA;
ELE TEM 27 E É ANIMADOR
Simetria
SOCIOCULTURAL.
É garantido que ter uma cara ESTÃO JUNTOS HÁ UM ANO
praticamente igual do lado esquerdo
e do lado direito deixa qualquer um
bem posicionado no campeonato
da atração. Mesmo de forma
inconsciente, este equilíbrio dá-nos
uma pista quanto à boa qualidade
dos genes daquela pessoa.
 O YIN E O
YANG DO SEXO
Susana Lima recebeu quase dois
milhões de euros para estudar, em
ratinhos, a forma como o cérebro
controla a disponibilidade para o sexo

No laboratório da Fundação
Champalimaud, dirigido por Susana
Lima, os dias começam quase sempre
da mesma maneira: a inspecionar
qual a fase do ciclo em que as fêmeas
de ratinho se encontram. Para isso,
Susana e a restante equipa de mais
13 cientistas colhem material da
vagina dos animais e analisam-no ao
microscópio. A partir daqui, torna-se
claro se a fêmea está no período de
ovulação ou numa outra altura do ciclo
sexual, com uma duração de cinco
dias. Este modelo de trabalho torna
tudo “logisticamente mais difícil”,
mas Susana está convicta de que é a
forma certa para chegar a resultados
válidos. Os avaliadores do Conselho
Europeu de Investigação certamente
concordam com a neurocientista,
já que no final de novembro lhe
atribuíram um financiamento de quase
dois milhões de euros para estudar
como o cérebro controla a forma de
as fêmeas reagirem aos machos: ora
com recetividade, ora com uma certa
agressividade, em função da fase do
ciclo em que se encontram. “As fêmeas
têm um comportamento social e sexual
diferente, conforme a fase. Se estão
fora da ovulação, o macho vai lá tentar
e ela nada; se o macho insistir, chega
a ser agressiva. O mesmo macho,
três dias depois, já é bem recebido.
Queremos perceber quais os circuitos
neuronais envolvidos nesse processo”,
resume. É como quando se avista o M
da cadeia de fast food McDonald’s. Se
tivermos fome, começamos a salivar.
Se estivermos cheios, somos capazes
de ficar enjoados. “Acredito que vamos

O mistério do momento
encontrar princípios fundamentais e
universais que explicam por que razão
respondemos de forma diferente, em

inicial, da faísca,
função do estado interno.” E nisso, os
humanos não serão muito diferentes
dos outros mamíferos.

não se reproduz
em laboratório
23 AGOSTO 2018 VISÃO 37
 TATIANA E BRUNO
A ATRIZ, 37 ANOS, E O
PRODUTOR, 43, ESTÃO
JUNTOS HÁ 12 ANOS. FORAM
FOTOGRAFADOS NO PARQUE
DOS POETAS, EM OEIRAS
que, através do cheiro, as mulheres
conseguem detetar quão simétrico
um homem é – sendo que a simetria
é tida como um importante fator de
atração, tanto para as mulheres como
para os homens.
Além da simetria, o cheiro também dá
pistas sobre a fertilidade. Num estudo
da Universidade do Texas, em Austin,
foi dado a cheirar, a um grupo de ho-
mens, t-shirts usadas, durante a noite,
por várias mulheres, em diferentes
fases do ciclo. A resposta masculina
foi inequívoca: a roupa usada pelas
mulheres que estavam no período
fértil era mais agradável e sexy.
O olfato parece guiar-nos ainda
na direção de um parceiro que seja
o mais diferente possível de nós, em
38 VISÃO 23 AGOSTO 2018
termos de sistema imunitário. Isto faz
DIOGO
todo o sentido se tivermos em mente E CAROLINA
que o objetivo primordial de uma re- O AMOR AOS 20 ANOS,
lação amorosa é o sexo e a procriação.
E não é, certamente, porque manda A VER O MAR NA
a Bíblia – é a sobrevivência da espé- BAFUREIRA, PAREDE.
cie que assim o dita. Nos animais, já ESTE CASAL DE
se verificou, há algum tempo, que a
compatibilidade imunológica deter- ESTUDANTES
mina a escolha do parceiro, a partir ESTÁ JUNTO HÁ
de pistas olfativas. As moléculas que
fazem parte deste sistema estão loca- QUATRO ANOS
lizadas à superfície das células, sendo
chamadas a atuar na distinção entre
material do próprio e material estra-
nho, ou seja, potencialmente patogé-
nico. Entre os ratinhos, por exemplo,
se houver opção, o animal escolhe um
parceiro com moléculas do sistema
 IMPORTÂNCIA
DAS HORMONAS
Reprodução
Mulheres mais bem fornecidas com
a hormona feminina estrogénio e homens
com mais testosterona dão mais garantias
de serem bons reprodutores.

Avaliação
Esta apreciação é feita através de pistas
visuais: a relação entre o tamanho do peito
e o da cintura, nas mulheres; e o tamanho
relativo entre os dedos indicador e anelar
da mão direita, nos homens – quanto mais
longo for o anelar, mais elevado terá sido
o teor de testosterona a que esteve exposto
no útero.

Sentidos
O olfato tem aqui um papel muito
importante. Numa experiência em que se
deram t-shirts a cheirar a um grupo de
mulheres, estas preferiram as que tinham
sido usadas por homens com níveis mais
elevados de testosterona.

SINTOMAS
DO AMOR
A fase da paixão pode, facilmente,
confundir-se com uma doença. Três
neurotransmissores – norepinefrina,
dopamina e serotonina – são responsáveis
pelas manifestações físicas

TRANSPIRAÇÃO
Produz-se suor na palma das mãos

RITMO CARDÍACO ACELERADO

A atuação da norepinefrina, envolvida
na resposta ao perigo, de luta ou fuga,
altera o bater do coração

FALTA DE APETITE
É comum perder-se peso, porque os

As mulheres em apaixonados até se esquecem de comer

PERDA DE SONO

período fértil têm As noites podem ser passadas em claro,

a sonhar acordado com a pessoa amada

um cheiro mais
OBSESSÃO
Uma necessidade exacerbada de ver, sentir
e estar com a pessoa amada, tida como

agradável para o
única e especial

olfato masculino
23 AGOSTO 2018 VISÃO 39
de histocompatibilidade diferentes
do seu. Do ponto de vista evolutivo,
isto representa uma vantagem: quanto
maior for a variabilidade, maior será
a resistência das crias – se houver
um vírus que ataque os filhotes, a
probabilidade de haver sobreviventes
é maior no caso de os seus sistemas
imunitários serem complementares.
Nos vertebrados, a escolha é guiada
pelo cheiro, já que partes das proteí-
nas que compõem o sistema de de-
fesa são detetadas em fluidos, como
a saliva, a urina e o suor. Também se
suspeita de que estas moléculas in-
fluenciam micro-organismos da pele,
envolvidos na formação dos odores
corporais, explica-se num artigo da
publicação Scientific Reports. Nos hu-
manos, este sistema é designado por
HLA. É este tipo de compatibilidade
que está em causa num transplante
– neste caso, o objetivo é encontrar
um dador o mais parecido possível,
em termos de histocompatibilidade,
com a pessoa que irá receber o órgão.
Desde o final da década de 90 do
século passado que se discute a capa-
cidade de os humanos detetarem, pelo
cheiro, as características imunitárias
do sexo oposto – e até a preferência
por um semelhante ou por um com-
plementar. Num estudo publicado na
revista Psychological Science, anali-
saram-se 48 casais. Verificou-se que
aqueles que partilhavam menos genes
do sistema HLA estavam mais satis-
feitos com a sua vida sexual do que os
que tinham mais genes em comum.
Num estudo feito na Universidade
de Dresden, foram recrutados 254
casais, em relacionamentos entre
um mês e 32 anos de duração. Os
cientistas analisaram o sistema de
histocompatibilidade destes parceiros,
através de uma análise ao genes que
o determinam. Também foi feito um
questionário, individualmente, a cada
um dos elementos do casal. Os resul-
tados não deixam dúvidas. Parceiros
com sistema HLA diferente ganharam
em quase todas as categorias: maior
satisfação sexual e de relacionamento
e um maior desejo de ter filhos, nas
mulheres (e aqui só nas mulheres) que
tinham um parceiro pouco compatível
em termos de HLA. Também o odor
corporal de um parceiro com sistema
imunitário bem diferente era mais
apreciado.
Apesar de estes resultados serem
muito robustos, os próprios autores
do estudo admitem tratar-se apenas
40 VISÃO 23 AGOSTO 2018
AMOR
DIGITAL
Como a internet veio mudar as
formas de encontrar o par perfeito
Se aprecia investigações
laboratoriais na área do
comportamento humano, não
estranhe se lhe disserem que os
encontros online – excentricidades
partilhadas por geeks e minorias
sexuais nos anos 1990 – são uma
indústria lucrativa, eficiente e, ainda,
uma experiência social em grande
escala. Os serviços de encontros
digitais são usados mensalmente
por mais de 200 milhões de pessoas
em todo o mundo. E resulta? Nos
Estados Unidos da América, um
terço dos casamentos teve origem
em emparelhamentos online, ou
seja, os sites e apps de encontros
são o segundo meio mais popular,
a seguir aos amigos de amigos,
para encontrar um parceiro. Adeus,
bailes e festas de bairro, bares
e locais de trabalho. Agora, o
ponto de encontro é o bar virtual,
sempre aberto e à distância de um
clique. Ou de um deslizar de dedo
no ecrã do telemóvel. O segredo
do sucesso está justamente no
imediatismo, no registo pessoal e
público, como sucede no Tinder,
a aplicação que revolucionou o
jogo de sedução online desde que
foi lançada, em 2013, com perfis
assentes no Facebook. Seguiram-
-se outras apps, à medida das
necessidades e preferências
do mercado (relacionamentos,
encontros casuais, companheiros
de viagem, encontros em que só ISABEL E DANIELA
elas podem iniciar conversa após
um “match”, etc.). Se é certo que
FORAM FOTOGRAFADAS
a diversidade e a abundância são NA SUA CASA EM
mais-valias reconhecidas, com LISBOA, ONDE VIVEM
impacto na sociedade, o lado menos
apelativo consiste na infinidade de JUNTAS. UM AMOR QUE
opções disponíveis e na valorização DURA HÁ QUATRO ANOS
de pormenores que não são tão
amplificados num primeiro encontro
na vida real. Como as habilitações
literárias, que ganham na internet
uma importância fulcral na escolha
do parceiro. Por fim, não deixa de
ser inquietante a ideia de que os
caminhos do amor possam estar
centralizados no algoritmo, o Big
Brother casamenteiro que vale
milhões. C.S.
 de uma parte da questão. “A atração é
um milagre para a maior parte de nós,
e apenas alguns dos muitos fatores
envolvidos na escolha de um parcei-
ro passam pelo odor. No entanto, no
mundo do olfato humano, parece não
haver um parceiro sexual perfeito,
mas um companheiro perfeito, e isto
depende da compatibilidade HLA.”

SIM, A PERSONALIDADE CONTA

É claro que, como seres pensantes,
não nos ficamos apenas pela química
ou pela aparência pura e dura. Alguns
traços de personalidade podem tornar
uma pessoa mais atraente, mostrou
um estudo da Universidade de Hua-
zhong na China. Os investigadores
testaram um grupo de 120 pessoas
de ambos os sexos. Cada voluntário
foi convidado a classificar 60 fotos
de mulheres desconhecidas. Numa
segunda ronda, dividiu-se o grupo
em três: 20 pessoas classificaram fotos
acompanhadas por uma descrição po-
sitiva (gentileza e honestidade), outras
20 deram pontos às mesmas fotos,
mas acompanhadas por uma descrição
negativa (maldade e desonestidade) e
os restantes mantiveram-se no grupo
de controlo, avaliando apenas as caras,
numa expressão neutra. Na primeira
ronda de avaliação, as pontuações fo-
ram semelhantes. Na segunda ronda,
as caras associadas a características
positivas receberam uma pontuação
mais alta do que no grupo de controlo,
tendo sido consideradas mais atraen-
tes. As fotos acompanhadas por uma
descrição de personalidade desagra-
dável receberam uma pior pontuação.
“Do ponto de vista evolutivo, há
muitas maneiras de demonstrar a
aptidão e o valor como parceiro, o
que certamente se estende ao domí-
nio mental e comportamental”, num
artigo sobre o estudo, publicado no
Huffington Post, explica Scott Barry

Os estudos mostram
Kaufman, professor de Psicologia
da Universidade da Pensilvânia. “Ser
capaz de avaliar, com precisão, o ca-

que alguns traços de

ráter de alguém pode ser ainda mais
importante para a sobrevivência e para
a reprodução do que uma avaliação

personalidade podem
das suas características físicas. Afinal
de contas, um psicopata fisicamente
atraente pode comprometer mais a

tornar uma pessoa

propagação de bons genes do que
uma pessoa considerada atraente, com
base na sua personalidade”, justifica.

mais atraente
Em resumo, os autores do estudo
escrevem: “O que é bom é belo.” Seja!
ssa@visao.pt

23 AGOSTO 2018 VISÃO 41

 P E D R O Q U E I R O Z P E R E I R A
1 9 4 9 / 2 0 1 8

PÊQUÊPÊ
UM IMPÉRIO
PARA TRÊS FILHAS Quem são e como foram preparadas as três
herdeiras de Pedro Queiroz Pereira para gerir
o império empresarial, que se estende dos
cimentos ao papel, que o pai reconstruiu
ao longo de 25 anos, tornando-o o sétimo
homem mais rico do País
PA U L O M . S A N T O S

42 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 23 AGOSTO 2018 VISÃO 43
 O
O destino tem destas ironias. O homem que,
durante vários anos, arriscou a vida a pilotar
automóveis acabou por ser traído pelo coração,
a bordo de um iate.
Tal como nas pistas, Pedro Queiroz Pereira,
o PêQuêPê, como era conhecido na competi-
ção, enfrentou governos, políticos, empresários
poderosos e até a própria família. Saiu quase
sempre por cima e, em 25 anos, reconstruiu
o império empresarial que, outrora, fora de
seu pai, desmantelado após a Revolução de
Abril de 1974.
Com a sua morte em Ibiza, no passado dia
NA HERDADE
DE VIALONGA
Pedro Queiroz Pereira
com os irmãos, Manuel
e Maude, na década
de 50, durante uma
viagem à Quinta da
Vialonga, que pertencia
à família. Esta
sociedade ainda hoje é
proprietária da Herdade
dos Fidalgos, no
concelho de Coruche,
com mais de dois mil
hectares de terreno
do dia seguinte. Depois de afinado, fomos
testá-lo para a pista. Como o carro não tinha
luzes, obrigou-nos a acender os faróis de veí-
culos ligeiros para ele poder ver o circuito”,
relembrou à VISÃO, em 2004, Duarte Can-
cela de Abreu, o seu manager na década de
80. O piloto PêQuêPê rodeava-se de pessoas
entendidas e exigia esforço e dedicação para
atingir os objetivos. Seguiu-lhe o exemplo o
empresário Pedro Queiroz Pereira.
Estava a preparar a sua saída das empresas.
Passou os últimos três anos a reestruturar o
modelo societário e a gestão das suas empre-
sas, deixando assegurado que o Grupo Sema-
pa, com interesses nos cimentos, no papel,
no imobiliário, na agricultura, pecuária e na

19 de agosto, Pedro Queiroz Pereira deixa uma

fortuna avaliada em 779 milhões de euros,
segundo a última edição da revista Exame, às
suas três filhas, Filipa, Mafalda e Lua.
Nunca deixou nada ao acaso e gostava de
se preparar ao máximo para qualquer disputa.
Nas corridas, afinava os carros até ao último
minuto. “Uma noite, ficámos a trabalhar no
carro até às três da manhã, quando os outros
pilotos já dormiam para enfrentar a prova

hotelaria, entre outros, se mantivesse indivi-

MENINO DA LUZ
Entrou no Colégio Militar em 1959, com o número 140.
Em 2010, a associação de antigos alunos atribuiu-lhe o Prémio
Barretina – Colégio Militar no Mundo, que pretende distinguir
ex-alunos cuja ação na sociedade seja “sinónimo de excelência”
sível no futuro.
A estrutura de topo está dividida em vá-
rias holdings, entre as quais estão a Vértice, a
Sodim, a Cimigest e a Cimipar, numa teia de
participações difícil de desfiar. Porém, acima
de todas estas, está a Herdeiros de Pedro Men-
donça de Queiroz Pereira, que controla uma
boa parte destas sociedades.
Nas empresas propriamente ditas, como a
Navigator, a Semapa e a Secil, colocou gestores
profissionais de topo. Não tendo formação
académica (sempre corrigiu quem lhe chamava
doutor), soube rodear-se de gente competente
em cada uma das áreas a quem dava carta-
-branca para administrar as empresas. Como
ele próprio afirmou, por várias vezes, “eu não
sou gestor. Sou um empresário”.
Caberá agora às filhas a última palavra nas
decisões dentro do grupo. E nem essa compo-
nente foi descurada. Logo após ter conseguido
ficar com o controlo da Semapa, depois de uma
guerra com Ricardo Salgado, com a sua irmã

44 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Filipa
A irmã mais velha é a mulher das
Matemáticas Aplicadas. Seguiu
uma carreira ligada à informática,
mais propriamente o software para
desenvolvimento de sites. Agora está
na gestão do Hotel Ritz
Lua
Está mais ligada ao dia a dia
da Semapa. Gere ainda a empresa
que está a apostar nos negócios
da chamada economia de rápido
crescimento, criando uma
aceleradora de startups
Mafalda
Atleta olímpica na Coreia do Sul,
em 1998, formou-se em Arquitetura
de Interiores. Está mais virada
para a gestão do vasto património
imobiliário do grupo

As herdeiras e o império
As três irmãs ficam a controlar o império empresarial reconstruído pelo
seu pai, que se estende dos cimentos até à pasta de papel, passando
pelo turismo e pelo imobiliário. Eis os principais negócios

Sodim Semapa
Holding familiar Holding empresarial
A estrutura de topo do grupo 79,1%
está assente num emaranhado Onde se concentram as principais
de participações cruzadas em atividades da família, com
várias holdings, mas é nesta negócios que se espalham pela
empresa que se concentra Europa, pela América, por África
a maior posição do controlo e pela Ásia, nas áreas de pasta
da Semapa de papel, cimentos
e ambiente

Imobiliário Navigator EDSA Secil

Diretamente, a família tem
variados negócios ligados
ao turismo e ao imobiliário.
Os maiores são o edifício do
Hotel Ritz, a Herdade dos
Fidalgos e a herdade da Costa
Terra, para a qual está previsto
um investimento superior
a 600 milhões de euros
Pasta de papel
69,4%
Com um volume de
negócios de quase dois mil
milhões de euros, é um
dos maiores exportadores
nacionais. Representa
3% do total das vendas
de Portugal ao exterior
Ambiente
99,99%
É um dos negócios novos
da família. Dos principais
investimentos está
a incineradora de resíduos
não tóxicos, nomeadamente
de animais mortos
Cimentos
99,99%
Tem oito fábricas
espalhadas por
quatro continentes,
emprega mais de 2 600
trabalhadores e tem uma
capacidade instalada de
produção de 9,75 milhões
de toneladas de cimento

23 AGOSTO 2018 VISÃO 45

LUA É, ATUALMENTE,
DAS TRÊS FILHAS
A QUE MAIS ESTÁ
PRESENTE NA GESTÃO
DIÁRIA DA SEMAPA
Maude e com os primos da família Carrelhas, UMA LONGA RELAÇÃO
Pedro Queiroz Pereira assumiu que o passo Pedro Queiroz Pereira, com 17 anos, ao
seguinte seria assegurar que o império que lado de Maria Rita Mendes de Almeida,
construiu durante 25 anos ficaria indissolúvel na altura com 15 anos. Viriam a casar-
nas mãos das filhas. se seis anos mais tarde, em 1972. Desta
E elas foram preparadas para esse fim. Em união nasceram as três filhas, Filipa,
2014, rumam as três para a famosa escola Mafalda e Lua. Em 1975 rumaram os
de gestão Insead, onde fizeram um curso de dois ao Brasil, após o Verão Quente.
Gestão Global. Logo a seguir, frequentam Maria Rita faleceu em 2014, com 63
a London Business School, na formação de anos, vítima de doença prolongada
A Sustentabilidade dos Negócios Familiares,
e, no ano seguinte, entram para a Universi-
dade de Harvard, para o Programa Tornar os
Conselhos de Administração mais Eficientes.
Só depois começaram a integrar os conselhos
de administração das empresas.
Lua Queiroz Pereira foi ainda mais longe
e, durante o tempo no Insead, fez mais cinco
módulos: Dinâmica de Negociação, Programa
Internacional para Gestores, Criação de Valor,
Desafios das Empresas Familiares e o Progra-
ma Avira (liderança).
Lua é a mais nova das três irmãs. Nasceu
em 1981, no tempo em que os pais estavam no
exílio no Brasil. Regressou a Portugal quando
já tinha seis anos. Dedica uma enorme paixão
pela arte equestre. É uma exímia cavaleira com
vários troféus conquistados. A sua primeira
experiência empresarial foi a criação de uma
empresa de atividades desportivas ligadas
à equitação.
Atualmente, é das três filhas a que mais
está presente na gestão diária da Semapa. Está
ainda muito envolvida num dos projetos mais
recentes do grupo, a Semapa Next. Trata-se
de um braço do Grupo Semapa para novos
negócios da chamada economia de cresci-
mento rápido.

NOVOS NEGÓCIOS
Fez recentemente uma associação com os nor-
te-americanos da Techstars, uma das maiores
aceleradoras mundiais de startups, fundada
em 2006, na cidade de Boulder, no Colorado.
Através deste programa, irão candidatar-se
500 startups, das quais serão escolhidas dez.
A Semapa Next garante um investimento ini-
cial de 120 mil euros em cada um destes dez
novos negócios. O programa é ainda apoiado O PÊQUÊPÊ
pela Singularity University, de Silicon Valley, Era o nome de guerra
focada no progresso científico e nas tecnolo- do jovem Pedro Queiroz
Pereira quando estava ao
gias exponenciais.
volante de um automóvel
Para se integrar melhor na gestão deste de competição. O nome foi
projeto, Lua Queiroz Pereira frequentou, no criado para que o seu pai
ano passado, o Programa para Executivos desta não soubesse desta sua
universidade. outra faceta. Como piloto,
Filipa, a mais velha, é a mulher das Mate- conheceu Ayrton Senna
máticas Aplicadas, curso que concluiu em 1997. (ao seu lado, na segunda foto
Ainda como estudante universitária, entrou a contar de baixo). Tornaram-
para a Microsoft, onde trabalhou durante dois -se grandes amigos

46 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 À PORTA DE CASA
Em 2004, recebeu a VISÃO com a filha Filipa e os netos
Pedro e Maria, à porta do apartamento no Restelo, onde
morava. Fazia questão de os levar à escola todas as
manhãs antes de ir para as suas empresas. Há poucos
meses, tinha acabado de construir uma vivenda, também
no Restelo, para onde se mudou com toda a família
A EQUITAÇÃO COMO HOBBY
É na Herdade dos Fidalgos, que se estende pelo
concelho de Coruche tocando o território da autarquia de
Benavente, no Sul do Ribatejo, que criava os seus cavalos.
Montou desde pequeno, mas a paixão da sua filha Lua
pela arte equestre, exímia cavaleira com vários prémios
conquistados, levou-o a retomar o gosto pelos cavalos
anos no desenvolvimento de software para
páginas na internet. Mais tarde, foi responsável
pela informática do fundo First Portuguese e,
em 2002, fundou a sua empresa de criação de
sites, a Bestweb. Fez ainda uma pós-graduação
em Sistemas de Informação, na Universidade
de Harvard.
Atualmente, está mais dedicada à hotelaria.
Integrou o conselho de administração do Hotel
Ritz, um dos ex-líbris da família, que é mais do
que um ativo nas contas do grupo – é também
um património sentimental. “Foi feito pelo
meu pai. Ele passou muitas noites a trabalhar
com arquitetos, engenheiros e decoradores,
para o conceber”, confessou, em 2004, Pedro
Queiroz Pereira, em entrevista à VISÃO.
Porém, a atividade turística do grupo não
se esgota neste símbolo da hotelaria de Lisboa.
Em 2008, Pedro Queiroz Pereira comprou a
herdade da Costa Terra, em Melides, que com-
preende uma área de mais de 850 hectares, ao
suíço Andreas Reinhart, após o seu projeto
para aquele espaço ter sido bastante contestado
pelas associações ambientalistas. Classificado
em 2005 como projeto de potencial interesse
nacional (PIN), o empresário suíço queria in-
vestir um total de 600 milhões de euros em
quatro fases de desenvolvimento. No projeto
inicial, estava prevista a construção de três
hotéis, quatro aparthotéis, quatro aldeamen-
tos turísticos, uma estalagem, 204 moradias
de turismo residencial, um campo de golfe,
um centro equestre de cavalo lusitano, uma
clínica de medicina desportiva, com talasso-
terapia e geriatria, dois clubes de ténis, um
fórum comercial e um centro ecuménico. Ao
comprar a herdade, Queiroz Pereira admitiu
23 AGOSTO 2018 VISÃO 47

CABERÁ AGORA ÀS
FILHAS A ÚLTIMA
PALAVRA NAS
DECISÕES. E NEM
ESSA COMPONENTE
FOI DESCURADA,
COM O RECURSO À
FORMAÇÃO DE TOPO
NOS ÚLTIMOS ANOS
que iria fazer alterações ao projeto que fossem
ao encontro das exigências das organizações
ambientalistas. O projeto foi desbloqueado
pelo tribunal, em julho de 2009.
Mafalda, a irmã do meio, é mais ligada às
artes, como a mãe. Fez um curso técnico de
Arquitetura de Interiores e formação específica
na Fundação Ricardo Espírito Santo. Está mais
envolvida com os projetos de investimento e
de gestão imobiliária do grupo. E são muitos.
Além da Costa Terra, onde existe ainda um
longo trabalho de planeamento pela frente, a
família tem também a Herdade dos Fidalgos,
que poderá ter um processo de loteamento
em curso.
Tal como Lua, Mafalda herdou do pai o
espírito competitivo. Foi muito dedicada ao
desporto, chegando mesmo a participar nos
Jogos Olímpicos de Inverno de Nagano, na
Coreia do Sul, em 1998, numa modalidade um
pouco estranha para uma portuguesa: o esqui
acrobático. Começou a praticar com 16 anos
em Évian, na Suíça, e em poucos anos con-
seguiu ficar em quinto lugar no Campeonato
do Mundo que se realizou no Canadá, o que
lhe deu pontos suficientes para ir aos Jogos
Olímpicos. Ficou em 21º lugar.
Pela frente, as irmãs terão agora um maior
desafio: manter e solidificar o império em-
presarial que o pai reconstruiu. Depois de ter
vindo do Brasil, onde esteve entre 1975 e 1987,
Pedro Queiroz Pereira teve como primeiro ob-
jetivo a compra da Secil e das cimenteiras de
Maceira e de Pataias. A privatização foi polé-
mica, e o empresário travou várias guerras com
48 VISÃO 23 AGOSTO 2018
os responsáveis do governo de Cavaco Silva,
que estavam a preparar a operação, nomea-
damente o secretário de Estado das Finanças
da altura, Elias da Costa. Como concorrente
tinha o empresário macaense Stanley Ho.
Não se intimidou com o poder do adversário
e acabou por comprar a Secil por 80 milhões
de contos (cerca de 400 milhões de euros), em
19 de abril de 1994.
Dez anos depois, entrou na corrida à pri-
vatização do Grupo Portucel/Soporcel, hoje
Navigator. Pôs como condição não ir à priva-
tização se Belmiro de Azevedo se mostrasse
interessado em concorrer, pois a Sonae já tinha
COMISSÃO DE INQUÉRITO
Era avesso à exposição
25% do capital da empresa e Pedro Queiroz
Pereira não queria uma guerra entre grupos
pública e evitava portugueses. Belmiro desistiu, e a Semapa,
dar entrevistas. No holding da família onde são arrumadas as par-
entanto, em caso de
ticipações empresariais, comprou os 30% da
necessidade, sabia
usar os média como
Soporcel que o Estado estava a vender e mais
poucos. A sua última
os 25% da Sonae. Nesse mesmo ano, garantia
67,1% do capital da empresa.
grande aparição nos
meios mediáticos
deu-se em 2014, no A ÚLTIMA BATALHA
Parlamento, durante a Com todas estas aquisições e com o investi-
Comissão de Inquérito mento numa máquina de papel completamente
nova, o endividamento do grupo subiu consi-
ao BES. Chamado
como testemunha – deravelmente. Foi obrigado a vender a empresa
afinal, foi ele que fez de energia Enersis aos australianos da Babcock
a primeira denúncia & Brown, por 420 milhões de euros. Quatro
ao Banco de Portugal anos depois, a empresa entrou em insolvência.
sobre a situação do No entanto, a luta mais fratricida teve-a há
Grupo Espírito Santo poucos anos, quando entrou em rutura com a
–, esclareceu os sua irmã, Maude, os seus primos Carrelhas e os
deputados sobre a aliados da família desde 1937: os Espírito Santo.
guerra com Ricardo Com as holdings financeiras do Grupo Espírito
Salgado que levou à Santo perto do colapso, Ricardo Salgado quis
queda do BES. tomar o controlo do Grupo Semapa, ficando
Admitiu que já assim dono da Secil e da Soporcel. Comprou
desconfiava das contas
a participação das irmãs de Queiroz Pereira,
há cerca de dez anos e
Margarida e Maude, e conseguiu ainda arre-
considerou que Ricardo
Salgado tinha “um
gimentar para o seu lado a família Carrelhas,
problema, porque não que tinha uma posição importante no grupo.
lida maravilhosamente Quando descobriu o que se estava a passar,
bem com a verdade” Pedro Queiroz Pereira reuniu uma equipa de
advogados e de contabilistas para passarem as
contas das holdings do BES no Luxemburgo a
pente fino. O que descobriram foi suficiente
para que o empresário ameaçasse Ricardo
Salgado de que iria denunciá-lo ao Banco de
Portugal. Perante esta pressão, Ricardo Sal-
gado acabou por chegar a acordo com Pedro
Queiroz Pereira. Os Espírito Santo deixaram
de ter qualquer participação em empresas da
família de Pedro Queiroz Pereira, e este ven-
deu as participações que tinha em empresas
do GES. Maude Queiroz Pereira recebeu um
chorudo cheque. Ainda assim, o ataque do
industrial foi certeiro e ajudou à descoberta
das irregularidades no GES.
Tal como nas corridas, PêQuêPê não temeu
um adversário mais forte e enfrentou-o, olhos
nos olhos. Foi assim que pautou a sua vida. Irão
as filhas seguir-lhe o exemplo? pcsantos@visao.pt
AS LONGAS ASAS
DOS MIRPURI
Depois de um longo silêncio de uma década, a família Mirpuri
volta aos holofotes, apresentando um dos maiores aviões
de passageiros do mundo e uma fundação envolta em mistério
M A R G A R I D A VA Q U E I R O L O P E S E PA U L O Z A C A R I A S G O M E S

50 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Em família Carlos, Marianela,
Sílvia e Paulo, fotografados
ainda na altura em que os
Mirpuri detinham a Air Luxor,
entretanto declarada insolvente.
Hoje a família gere a HiFly

LUÍS BARRA

23 AGOSTO 2018 VISÃO 51

Q
Quando, há um mês, o Airbus A380 aterrou
na pista do Aeroporto de Beja, o que fez no-
tícia foi a estreia de um dos maiores aviões
de passageiros do mundo em solo português.
Mas havia, pintadas no gigante de azul e bran-
co, outras mensagens a capitalizar o espanto
do momento: um alerta para a preservação
dos recifes de coral; e as duas palavras discre-
tamente inscritas na base do aparelho – Mir-
puri Foundation – levantavam um pouco do
véu de silêncio caído na última década sobre
um nome com ligação umbilical à aviação.
Entre a tripulação do Airbus estava um dos
membros da família, Carlos Mirpuri, vice-
-presidente da HiFly e irmão do líder da com-
panhia criada em 2005 para o negócio de wet
lease, o aluguer de aeronaves a companhias
aéreas com tripulação, manutenção e seguros.
Em terra, coube ao administrador financeiro,
Sérgio Bagorro, fazer as apresentações oficiais
insolvente, deixando atrás de si uma rota de
dívidas), e que há dois anos criou a fundação
da família, a Mirpuri Foundation.
Em abril, num comunicado da HiFly, o
empresário fora o primeiro a anunciar a
chegada do novo avião à frota, manifestan-
do “orgulho” por receber o “nosso primei-
ro A380”. Semanas depois, no festival de
Farnborough, no Reino Unido, justificava a
escolha do aparelho com as necessidades do
mercado – apesar de o avião ser hoje consi-
derado pouco apelativo, dada a dimensão e os
custos de operação – e assegurava que havia
uma “fila” de interessados em usar o avião,
inédito na sua frota de quase uma dezena e
meia de aeronaves.
Embora a HiFly se tenha referido oficial-
mente à transação como tratando-se de uma
“aquisição”, o A380 continua a ser proprie-
dade de um fundo alemão de investimentos
do avião à chegada a Beja. Ausente – ou, pelo alternativos, a Doric. Fonte oficial do fundo
menos, fora do ângulo das objetivas – estava confirmou que o avião se encontra entre os
o CEO da empresa, Paulo Mirpuri, o mesmo seus ativos e explicou à VISÃO que o aparelho
que liderou por vários anos outra compa- foi cedido em regime de leasing à empresa
nhia aérea, a Air Luxor (entretanto declarada portuguesa. Os valores do negócio não são

Por dentro do gigante

Lançado em 2005, o Airbus A380 está atualmente
ao serviço em 13 companhias aéreas com frotas próprias.
Quase metade do efetivo total mundial está nas mãos Dois pisos
de uma companhia: a Emirates, que detém 104 aparelhos

Cabine de Peso total

478 metros de 577 000
quadrados quilos

52 VISÃO 23 AGOSTO 2018

conhecidos, devido a questões de confiden-
cialidade, mas uma nota da Doric diz que o
contrato é válido por quase seis anos e que
deseja manter com a HiFly uma “relação longa
e frutuosa”.
A HiFly tornou-se, assim, a primeira a
receber um A380 em segunda mão (vinha da
Singapore Airlines, onde esteve vários anos)
e deverá em breve juntar outro exemplar
semelhante à sua frota. A expectativa é a de
que a operação dê novo fôlego a um modelo
que viu a produção cortada por várias vezes
pela Airbus, nos últimos anos, face à queda
na procura. Para já, a aposta parece ganha.
Poucos dias depois da ida a Beja, o gigante dos
céus começou a fazer voos diários entre Lon-
dres e Nova Iorque para a Norwegian. Fonte
oficial da HiFly disse à VISÃO que também
as companhias Air Austral e Thomas Cook
se juntaram, entretanto, à lista de clientes
do aparelho, contribuindo para alimentar
as contas de uma empresa que concentra o
“grosso” do negócio fora das fronteiras de
Portugal: será em Malta, onde desde 2013
tem uma subsidiária, que estará registada a
EMBORA A HIFLY maior parte das suas operações financeiras,
que não foi possível consultar.
SE TENHA REFERIDO A direção de comunicação da HiFly con-
À TRANSAÇÃO COMO firmou à VISÃO que a empresa não conso-
lida as suas contas no País, já que “apenas
UMA “AQUISIÇÃO”, uma pequena parte das [suas] operações são
O DONO DO A380 realizadas em Portugal – 99% do negócio
da HiFly e do grupo onde se insere são rea-
OPERADO lizados no exterior”. Nas contas da empresa,
PELA COMPANHIA que está registada no País, em 2016 – o ano
mais recente para o qual há informação fi-
É O FUNDO ALEMÃO nanceira –, a HiFly teve uma faturação de 97
DE INVESTIMENTOS milhões de euros e lucros de 1,93 milhões.
Entre 2013 e 2016, as vendas desta unidade
ALTERNATIVOS DORIC caíram 23%, enquanto os lucros mais do que
duplicaram – 152%.
Nas últimas semanas, a VISÃO procurou
falar com o CEO sobre a atividade da em-
presa e sobre os contornos da contratação
do A380, mas o gabinete de comunicação
da companhia alegou indisponibilidade de
agenda. Tal como aconteceu em relação a
um pedido de entrevista sobre a atividade
da Mirpuri Foundation e o seu ângulo alar-
gado de finalidades, que vão desde a náutica

Capacidade para
471 passageiros –
ou 853 em classe
económica
Equipado
com motores
Rolls-Royce Emissão de
Trent 900 75 gramas de CO2
por passageiro,
por quilómetro

72 metros de
comprimento

23 AGOSTO 2018 VISÃO 53

30 anos de voos
Hoje é impossível dissociar os Mirpuri da aviação:
primeiro nos jatos privados, depois no transporte
regular de passageiros (com a já desaparecida
Air Luxor) e há mais de uma década no negócio São
de wet lease com a HiFly. E até na fundação inauguradas
novas rotas Mirpuri
da família, constituída há dois anos, vendem
a aeronáutica ocupa um lugar central e adquiridos
novos aviões participação
na Air Luxor
NetJets Macau a
Europe faz o Stanley Ho
Crise do seu primeiro
Golfo impacta roadshow
contas da e garante
empresa, mas 1994 licenças para
a Air Luxor voar para toda 2000
sobrevive
1993 a Europa

1988 1992 1995 1997 2002

1990 1996
Air Luxor
Air Luxor faz
estima faturar
o 1º serviço
Executive Jets, 100 milhões
de transporte
Zimex e Air de euros e
executivo
Luxor criam Air Luxor entra transportar
a NetJets em Macau em um milhão de
Europe parceria com passageiros
Stanley Ho.
Nasce Início dos voos
a Air Luxor comerciais de
longo curso

à medicina, passando pela aeronáutica, pela vinha tendo presença regular nos média, so-
pecuária e pela proteção do ambiente – onde bretudo na imprensa cor de rosa.
se incluem as mensagens de proteção dos
recifes de coral e de combate à poluição ÁLBUM DE FAMÍLIA
pelo plástico, inscritas em dois aviões com É preciso recuar mais de três décadas para
a insígnia da HiFly. tentar perceber o caminho e a importância
Desde a criação, a fundação vai conquis- da família no País, onde se estabeleceu defi-
tando parcerias que garantem visibilidade nitivamente em Lisboa, em 1975, depois de
mútua e lastro ao projeto: com a Akzo Nobel, vários anos de viagens regulares entre An-
que revestiu os aviões com as mensagens da gola, onde tinha negócios, e Portugal. Arjan
instituição; com o Teatro Nacional de S. Car- Mirpuri, patriarca da família e natural do
los, com o qual assinou um acordo de coo- Norte da Índia, tinha conseguido engordar
peração; com o Museu do Teatro e da Dança, a fortuna do seu pai através da continuida-
ao qual ofereceu desenhos originais de dois de dos negócios de abastecimento de navios
pintores russos; com a marca sueca Karün, em Angola, bem como de fornecimento de
para produzir óculos de sol a partir de redes companhias de construção civil nas colónias
de pesca; e com o Jardim Zoológico de Lis- portuguesas de África.
boa, onde apadrinha uma espécie ameaçada, No final da década de 1970, já Carlos Mir-
o leopardo da Pérsia. puri era comandante da TAP, com cursos de
Com a fundação, reconhecida no início do aviação feitos nos EUA, e Luís Mirpuri tinha
ano pelo Estado, o nome Mirpuri regressou acabado o curso de Gestão. Paulo estava a
às luzes da ribalta e a família ganhou espaço terminar a licenciatura em Medicina. Seriam
regular na agenda mediática, depois de uma estes os três irmãos fundadores da Air Luxor,
década de ausência pública e silêncio prati- registada em dezembro de 1988 e que operou
camente absoluto. De todos os elementos, até 2006. Dos sete filhos de Arjan e Maria de
apenas Marianela (a segunda de sete irmãos) Lurdes Côrte-Real, só três não têm ligações

54 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 HiFly é
Família Mirpuri
considerada
vende a Air
uma das
Luxor ao
250 maiores
Longstock
empresas
Financial
nacionais
(julho).
pelo Diário
Companhia
Económico.
perde licença
Volume de
para voar e
negócios
aeronaves são
supera os
arrestadas
120 milhões
(setembro)
Nasce o HiFly faz de euros Mirpuri
National proposta Foundation
Investment vinculativa pela anuncia
Bank, em exploração do participação
São Tomé 2006 Aeródromo de 2015 na Volvo
e Príncipe Tires Ocean Race

2005 2007 2011 2016 2018

2004 2008 2017

Nascem a National HiFly anuncia

HiFly (abril) Investment Nasce a contrato
e a Mirpuri Bank perde Mirpuri de leasing
Investments licença do Foundation operacional
(setembro) Air Luxor vai Banco Central para o Airbus
à falência, de São Tomé A380 e Mirpuri
com dívidas e Príncipe Foundation
superiores por falta de estabelece
a 86 milhões atividade. parcerias com
de euros HiFly inicia organismos
a mais de negociações públicos,
50 credores para como o Zoo
construção de de Lisboa e a
um hangar de OPART
manutenção
no Aeroporto
de Beja

conhecidas à companhia entretanto extinta:
Ivone, Filomena e Sílvia, a mais nova, que
assume hoje o papel de relações-públicas da
HiFly. Marianela entraria na Air Luxor, em
1992, para tomar conta da parte comercial,
tendo, entretanto, lançado negócios próprios
na área do imobiliário de luxo.
A história daquela companhia aérea não é
propriamente desconhecida dos portugueses:
em 1992, iniciava um serviço de transporte
executivo a jato, que lhe deu projeção e di-
nheiro; em 1996, fez parte da equipa funda-
dora da NetJets Europe; e, em 1997, decidiu
QUANDO A AIR
expandir-se para a Ásia, em parceria com o LUXOR PERDEU
milionário Stanley Ho – a quem Paulo Mir-
puri venderia a sua participação da Air Lu-
A LICENÇA
xor Macau, três anos depois. É nessa altura DE TRANSPORTE
que a Air Luxor decide dar o passo para a
aviação comercial regular – e há quem diga
AÉREO, PAULO
também que este terá sido o princípio do fim MIRPURI
da companhia.
A empresa decide então começar por operar
JÁ ESTAVA NO AR,
o Lockheed da Air Madeira, à época pertença NOVAMENTE,
do grupo Pestana, em algumas rotas das Ca-
raíbas e do Canadá. A atividade parece correr
AOS COMANDOS
bem e a companhia decide trocar toda a sua DA HIFLY
frota de aviões de médio curso por aparelhos
Airbus. Em 2002, numa notícia datada de 15 de
julho desse ano, o Público escrevia que a em-
presa esperava faturar 100 milhões de euros e
transportar cerca de um milhão de passageiros.
Em declarações àquele jornal, Luís Mirpuri,
financeiro da Air Luxor, explicava que estavam
“a trabalhar sem desafogo de tesouraria”, mas
com uma “enorme vantagem: o único passivo
financeiro da empresa é o leasing de aviões”.
O IMPÉRIO MIRPURI
Nesta altura, a família já tinha criado também
a Air Luxor Tours, uma operadora turística,
e, em 2004, aventura-se em São Tomé e
Príncipe, com a criação do National Invest-
ment Bank. Nesse ano, Paulo Mirpuri fala,
ao entretanto extinto, jornal O Independente
sobre a possibilidade de, dali a dois anos, a
Air Luxor entrar em Bolsa. Esta foi uma das
últimas entrevistas a meios de comunicação
nacionais, havendo poucos registos de de-
clarações suas nos anos seguintes. E, embora
nesse ano a companhia já acumulasse dívidas
no pagamento do leasing de aeronaves que
operava, os planos ainda eram de expansão.

23 AGOSTO 2018 VISÃO 55

“Não havia capitais
para uma aventura destas”
João Marques da Cruz foi CEO da Air Luxor, entre dezembro de 2002
e fevereiro de 2005. À VISÃO, assume que houve erros internos
de gestão, mas olha com confiança para o futuro da HiFly
Foi diretor-geral da TAP depois de estrutura financeira para aguentar
ter exercido diversas outras funções o investimento. E não havia. E, por
na companhia e acumula 20 anos fim, não me posso escusar, como
de experiência no setor da aviação. antigo presidente da comissão
Assumiu, em 2012, a presidência executiva, a admitir que houve
da Câmara de Comércio Luso- erros internos de gestão. O projeto
-Chinesa, cargo que acumula com falhou.
o de conselheiro de administração Houve, como se disse na altura,
da EDP – Energias do Brasil. João passagem de ativos da Air
Marques da Cruz recordou, em Luxor para a HiFly?
declarações à VISÃO, o tempo em Não. A Air Luxor não tinha bens.
que liderou a Air Luxor e a relação As aeronaves eram alugadas.
com Paulo Mirpuri. A HiFly surge para fazer wet lease,
que não tem nada que ver com o
O que falhou na Air Luxor? que fazia a Air Luxor. Os aviões da
Se me tivesse feito essa pergunta Air Luxor desapareceram todos
há 11 anos, respondia com emoção. porque houve pagamentos em
Agora, a esta distância, consigo falta, e, portanto, os aviões foram
dizer-lhe com alguma frieza que levados.
acho que houve três coisas que Foi ouvido no âmbito
contribuíram para a sua queda: a do processo de insolvência
primeira foi o facto de a legislação da Air Luxor?
portuguesa nunca ter autorizado Fui. Não fiz grandes declarações,
a Air Luxor a fazer voos de mas o dr. Paulo Mirpuri chamou-
longa duração – ou seja, penso me como testemunha e eu
que é justo dizer que o sistema respondi às perguntas que me
português protegia o incumbente; foram feitas.
depois, não havia capitais Como é a sua relação
suficientes para uma aventura com Paulo Mirpuri?
destas. Claro que nos primeiros É boa. Vejo-o, talvez, de dois
anos uma rota dá sempre prejuízo, em dois anos, mas acho que
mas por isso é que é preciso ter é um empreendedor que
aprendeu com os erros da
Air Luxor. Fico contente por
o projeto da HiFly estar a dar
certo.
Como vê este reaparecimento
mediático da família?
O reaparecimento dá-se muito
porque o A380 aterrou em Beja.
Se tivesse aterrado em Badajoz,
não teria tanta visibilidade.
Fico contente por ter visto este
crescimento lento mas sustentável
da HiFly – começou com dois
aviões e tem 13, mais de 10 anos
depois. Mostra que aprenderam
com os erros. O projeto da
Air Luxor era de enorme risco
comercial. A HiFly, por seu lado,
foi fiel à sua ideia de wet lease.
Chega o mês de julho de 2006 e a família
decide, num movimento surpreendente para
o mercado, vender a totalidade da empresa,
fundada em 1988, ao Longstock Financial,
um grupo de investidores luso-canadianos,
cuja origem nunca foi confirmada, que era
liderado por Vítor Pinto da Costa, um empre-
sário igualmente desconhecido. A Longstock
adquiria assim a holding familiar que incluía,
além da Air Luxor, a Air Luxor STP (São Tomé
e Príncipe), a Air Luxor GB (Guiné-Bissau) e
ainda a Air Luxor Tours.
Dois meses antes da venda, no entanto,
Paulo Mirpuri já tinha criado a HiFly. Por
isso, quando a Air Luxor perdeu a licença de
transporte aéreo e viu duas aeronaves se-
rem arrestadas no Aeroporto de Paris-Orly,
França, o empresário estava novamente a
voar, e totalmente desligado de quaisquer
problemas que pudessem ser imputados à
Air Luxor. Agora, o seu negócio era pura e
simplesmente o wet lease, uma atividade com
risco bastante baixo e uma vantagem adicio-
nal: poucos concorrentes. Na altura, a única
empresa portuguesa que atuava na área era a
EuroAtlantic Airways, fundada em 1993 por
Tomaz Metello, que ainda hoje é o presidente
do conselho de administração.
Ao leme da HiFly, Paulo Mirpuri e a fa-
mília continuariam a ver os seus negócios
florescer. Em setembro, de 2005, nasceria
a Mirpuri Investments SGPS, a holding fa-
miliar sob a qual operam atualmente seis
empresas. E em 2011 era criada a Mirpuri
Investments Ltd, com sede na Irlanda
– uma empresa que, a par da ligação à
Mirpuri Foundation e aos seus desígnios
de proteção do meio ambiente, mantém,
segundo o seu site, investimentos em em-
presas ligadas ao petróleo, como a Chevron
e a Galp. Quanto à Air Luxor, o processo
de insolvência que envolve 51 credores e
dívidas no valor de 86 milhões de euros
continua a ser tratado em sede própria,
não estando ainda encerrado.
João Marques da Cruz, que ocupou o cargo
de CEO da Air Luxor entre o final de 2002 e
o início de 2005, lamenta o desaparecimen-
to da empresa e atribui à legislação nacional
parte da culpa pelo falhanço do projeto. “As
autoridades portuguesas nunca permitiram
à Air Luxor efetuar voos regulares de longa
duração, para fora da Europa, e isso significou
muito dinheiro”, explica à VISÃO. No entanto,
não se exime de culpas e admite ter havido
“erros internos de gestão”, também durante
a sua liderança (ver caixa). Seja como for, o
gestor relativiza a falência da empresa lem-
brando que a Air Luxor “falhou”, à semelhança
de outras companhias nacionais.
Com a Air Luxor para trás das costas, e
três anos depois do surgimento da HiFly,
em 2008, os Mirpuri voltariam a aparecer
Ligação ao mar Paulo Mirpuri
juntou a paixão à filantropia
e foi um dos tripulantes
do veleiro apoiado pela Mirpuri
Foundation na Volvo Ocean Race
na imprensa nacional com as notícias de que
tinham entregado uma proposta vinculativa
para a exploração do Aeródromo de Tires.
O concurso lançado pela Câmara Municipal
de Cascais foi, entretanto, anulado, mas ne-
nhum membro da família falou sobre o tema
nem durante nem depois do processo. Em
2011, a HiFly é de novo notícia, desta feita
com o anúncio de que estaria a negociar a
construção de um hangar de manutenção no
então futuro Aeroporto de Beja. A informação
foi avançada pelo jornal Diário Económico
– ao qual os Mirpuri se escusaram a prestar
declarações – e veio a confirmar-se, com as
obras a começarem em 2017.
Nesse mesmo ano intensifica-se a vi-
sibilidade da Mirpuri Foundation, através
de comunicados e de uma série de mate-
rial institucional para apoio a uma equipa
na Volvo Ocean Race. No início de 2018, e
com esta competição como pano de fundo,
Paulo Mirpuri faz algumas declarações a
jornalistas, todas relacionadas com a sus-
tentabilidade, os oceanos, a vela e a funda-
ção. Seria o início do fim das prolongadas
ausências da família Mirpuri dos meios de
comunicação social. Desde fevereiro deste
ano que as atividades que juntam a HiFly e
a Mirpuri Foundation têm sido amplamente
divulgadas pelos respetivos gabinetes de
comunicação, embora continuem a ser ra-
Laços
ras as declarações diretas dos responsáveis
de cada projeto.
de Família IN MEMORIAM
Criada em 2016 por Paulo Mirpuri, em me-
mória dos pais, a Mirpuri Foundation re-
ceberia o reconhecimento de fundação por
Pai parte do Estado no início deste ano, após
Arjan Issardas Mirpuri duas alterações estatutárias. Assume-se como
uma instituição para fins de exclusivo inte-
resse social, e na configuração original previa
Mãe uma dotação inicial de um milhão de euros
Maria de Lourdes em dinheiro, que seria revista para 250 mil
Côrte-Real Mirpuri euros na primeira alteração aos estatutos. Os
mesmos que determinam que, em caso de ex-
tinção, os bens da Mirpuri Foundation devem
Filhos ser distribuídos, em partes iguais, por outras
Filomena Mirpuri três fundações nacionais: Anna de Sommer
Marianela Mirpuri Champalimaud, Oceano Azul e Calouste Gul-
Ivone Carla Mirpuri benkian. Contactadas pela VISÃO, todas elas
Carlos Mirpuri garantiram não ter conhecimento desta in-
Luís Mirpuri tenção nem ter recebido qualquer informação
Paulo Mirpuri oficial sobre o assunto ou sobre os bens que
Sílvia Mirpuri estão em causa. A VISÃO tentou contactar a
Mirpuri Foundation, através dos seus canais
oficiais, para pedir esclarecimentos sobre as
suas áreas de atuação, orçamento, estatutos e
plano de atividades, mas não obteve resposta.
A discrição e o mistério são características
que a família não perdeu.
No entanto, segundo a página oficial da
23 AGOSTO 2018 VISÃO 57
instituição, exclusivamente apresentada em
inglês, são seis os seus principais eixos de
atuação: artes performativas, responsabilidade
social, conservação marinha, conservação de
vida selvagem, educação e investigação médi-
ca, e educação e investigação aeronáutica. É ali
que vai sendo dada publicidade aos projetos
apoiados, como o protocolo recentemente
assinado com o Teatro Nacional de São Car-
los, válido até 2022, que prevê a “realização
de uma gala por ocasião da cerimónia de
entrega dos Prémios Dança, Música e Teatro
2018 da Mirpuri Foundation”, na sala principal
do teatro e com a participação da Orquestra
Sinfónica Portuguesa; o apoio à limpeza e ao
restauro da fachada principal do teatro, em
2019, ou “a doação de uma superfície própria
e adequada para atuações de dança no palco
do teatro, ainda em 2018”. A VISÃO questio-
nou o Teatro Nacional de São Carlos e a Mir-
puri Foundation sobre o montante envolvido,
mas não obteve resposta. O Teatro Nacional
de São Carlos remeteu a informação para a
fundação, que, até ao fecho da edição, não
respondeu às tentativas de contacto.
Entre as iniciativas desenvolvidas pela
fundação contam-se ainda a criação de um
Observatório de Migrantes, o patrocínio ao
surfista António Silva, o financiamento de três
expedições à Arménia e ao Irão, para visita ao
habitat natural do leopardo da Pérsia, e bol-
sas de estudo para jovens com dificuldades
financeiras, que podem devolver o dinheiro Filantropia cultural com a HiFly e também com a fundação.
assim que consigam um emprego. Quer ainda Uma das últimas Licenciado em Medicina, tirou o brevet de
patrocinar a construção de um futuro museu aparições públicas piloto de longo curso ainda na década de
nacional do ar e do Espaço, que será batizado de Paulo Mirpuri, 1980 e dedicou-se desde novo à aviação. Mas
com o seu nome e que contará com um plane- aquando da assinatura as suas paixões parecem ser diversificadas:
tário, galerias de exposição e um observatório do protocolo entre a surge como tripulante do veleiro apoiado pela
fundação familiar e o
público. A fundação, com sede no edifício da Mirpuri Foundation na Volvo Ocean Race, na
Teatro de São Carlos
HiFly, no centro de Lisboa, espera que este função de skipper, e também é visto a escalar
projeto abra portas ao público em 2020. montanhas – houve mesmo uma expedição
ao Evereste com o alpinista João Garcia.
OS IRMÃOS DOS SETE OFÍCIOS Além dos hobbies, o empresário acumula
Segundo a pouca informação disponível so- ainda uma quantidade significativa de cargos
bre o pai, Arjan, consta que sempre foi um de direção em empresas de áreas diversas. É
generoso empresário de sucesso. Diz-se até presidente do conselho de administração da
que Maria de Lourdes era quem impedia que Mirpuri Investments, gerente da pecuária
muitas vezes esbanjasse dinheiro para aten- Feitos de Bravura e da CPTI – Companhia
der aos sonhos de alguns dos seus sete filhos. Portuguesa de Tecnologias de Informação,
Ainda assim, foi Arjan quem lhes ofereceu os
OS IRMÃOS todas maioritariamente detidas pela Mirpu-
primeiros aviões e quem providenciou uma MIRPURI PARECEM ri Investments. Aparece ainda referenciado
vida relativamente desafogada – quem o diz como gerente da Defense Sky Technologies
são os irmãos Paulo e Luís, na referida entre-
TER UMA VEIA e da MESA – Manutenção, Engenharia e
vista ao jornal Público. E a verdade é que a des- EMPREENDEDORA Serviços de Aeronaves, que detém o hangar
cendência deste casal luso-indiano parece ter em Beja.
alimentado uma veia empreendedora: tirando
QUE SE MANIFESTA Com exceção da fundação, a cuja adminis-
Filomena, a mais velha, todos os irmãos apa- EM VÁRIAS ÁREAS tração pertence, não são conhecidas ligações
recem ligados a órgãos de gestão de empresas de Filomena às várias empresas da família.
da família ou de marcas que criaram por si, e
DE ATUAÇÃO, QUE Atualmente, integra a mesa da Assembleia
com áreas de atuação que coincidem com os COINCIDEM COM Geral da Prómudança, uma associação cultural
objetivos da Mirpuri Foundation. relacionada com a promoção da dança. Maria-
Paulo Mirpuri é o líder dos negócios da
OS OBJETIVOS DA nela, que foi responsável pela área comercial
família: foi assim com a Air Luxor, é assim FUNDAÇÃO da Air Luxor, é atualmente a CEO da Luxor

58 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Mirpuri
barco da Mirpuri Foundation em algumas
expedições. Já Sílvia, a mais nova dos sete

Investments irmãos, ocupa o cargo de relações-públicas

A holding familiar tem
como administradores
os irmãos Paulo,
Carlos e Marianela
Mirpuri. A empresa
esteve envolvida
em processo
administrativo de
dissolução/liquidação
por, durante dois anos,
não ter procedido ao
registo de prestação
de contas. Regularizou
a situação em
novembro de 2017
com a publicação das
contas de 2014, 2015
e 2016
Empresas em que
tem participação:
da HiFly, é presidente da Assembleia Geral da
Mirpuri Investments e foi ainda administra-
dora da extinta Construções Mirpuri.
A OPÇÃO AIRBUS
Quando se anunciou a aterragem do A380 no
Aeroporto de Beja, a questão que se punha era:
porquê a escolha de Portugal? Uma vez que a
HiFly tem por norma estacionar as suas aero-
naves em Malta, a opção pela pista do Alentejo
não deixou de causar estranheza. João Marques
da Cruz acredita que foi por uma questão de
impacto mediático, por exemplo (ver caixa),
mas a companhia garante que a escolha do
destino teve que ver com “familiarização das
tripulações” e com “treino e formação das
equipas de operações de terra, engenharia e
manutenção sediadas em Portugal”.
As mesmas razões foram apresentadas para
justificar a escolha do Aeroporto de Beja, onde
a empresa tem o seu hangar de manutenção.
Embora nenhum valor envolvido neste ne-
gócio fosse divulgado, a empresa dos irmãos
Mirpuri nota que a introdução de um novo
tipo de aeronave é sempre mais dispendiosa
do que o eventual aumento da frota. Por isso,
escusou-se a dar uma data para a chegada do

Home Label, uma empresa que fundou e que

se dedica a dar um selo de garantia de luxo a
propriedades imobiliárias em redor do mun-
do. O seu nome não aparece ligado a nenhuma
empresa familiar nem há referência a que faça
parte dos órgãos da Mirpuri Foundation. Por
seu lado, Ivone é, tal como o irmão Paulo,
formada em Medicina, e tem em seu nome
uma clínica dedicada à modulação hormonal
e à medicina antienvelhecimento no centro
de Lisboa. É a única atividade comercial a que
terá laços, segundo a informação disponível.
O irmão Carlos, que com Paulo fundou a
Air Luxor e que é reconhecido por várias fon-
100%
da Feitos de Bravura
segundo A380. Mas, tal como aconteceu neste
caso, é provável que a próxima aeronave tam-
bém seja entregue à empresa portuguesa em
(comércio de animais vivos) regime de leasing, uma opção mais barata e
com risco consideravelmente menor.
Fontes do setor referiram à VISÃO que é
100%
da Defense Sky
natural esta opção dos Mirpuri pela Airbus,
desde logo, porque o fabricante europeu for-
nece toda a frota da HiFly e porque Carlos
Technologies Mirpuri fez praticamente toda a sua forma-
ção neste tipo de aeronaves, sendo inclusive
consultor da Airbus Training UK. No entanto,
96%
da HiFly
desvalorizam o aparato mediático à volta da
aquisição do A380, lembrando que a Airbus
lança desafios semelhantes, de cedência por
leasing, a várias empresas de wet lease, para

tes do setor da aviação como um “excelente
comandante”, tem também ligação a várias
atividades empresariais, nomeadamente à
da CPTI – Companhia
Karo Investimentos, uma empresa de con-
sultoria financeira e comercial e de gestão de
imóveis que faturou mais de um milhão de
euros no ano passado. É ainda gerente dos
Mirpuri Hotels & Resorts, administrador da
Mirpuri Investments, sócio-gerente da Safe-
port e vice-presidente da HiFly.
Luís Mirpuri, também fundador da Air
Luxor, parece ter-se dedicado totalmente
à gestão e tem ligações a uma empresa de
consultoria financeira, a Moeda Universal, e à
Construções Mirpuri (extinta no final do ano
passado). Além disto, partilha dos interesses
do irmão Paulo e integrou a tripulação do
90%
rentabilizar os seus aviões parados.
Uma dessas fontes, que pediu para não ser
identificada, e que chegou a trabalhar com os
Portuguesa Mirpuri, refere mesmo que “os A380 estão
de Tecnologias acabados. Quando a Emirates deixar de os
de Informação usar, acabam”, numa referência à primeira
cliente destes aviões. Mas enquanto esse ce-
nário estiver longe – e o contrato de leasing
90%
da Safeport
se mantiver –, são as mensagens e os nomes
da Mirpuri Foundation e da família que vão
continuar a correr mundo, pintadas nos
73 metros de comprimento do A380 e de
mãos dadas com o seu projeto industrial
90%
da Mirpuri Hotels
bandeira, a HiFly. Voos com asas de maior
envergadura e que tornam os Mirpuri mais
visíveis num radar do qual, afinal, nunca saí-
& Resorts ram verdadeiramente. visao@visao.pt

23 AGOSTO 2018 VISÃO 59

O FIM
DO CAFÉ?
AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS ESTÃO A AMEAÇAR
O FUTURO DE UM PRODUTO QUE A HUMANIDADE
CONSOME CADA VEZ MAIS. A INDÚSTRIA UNE-SE PARA
DEFENDER AS FAZENDAS EM PERIGO E ENCONTRAR
O GRÃO QUE RESISTA À SECA E À SUBIDA
DAS TEMPERATURAS
J U S T I N W O R L A N D / T I M E M A G A Z I N E , E M A L A J U E L A , C O S TA R I C A
H
Howard Schultz pergunta-me se bebo um café. O patrão
da Starbucks está sentado numa varanda com vista para a
frondosa fazenda da empresa, na província costa-rique-
nha de Alajuela, onde me disseram que o café – colhido
e torrado no local – é dos que tenho mesmo de provar.
Como mais de 60% dos norte-americanos, bebo café, pelo
menos, uma vez por dia e às vezes duas ou mesmo três. O
lote Costa Rica que Schultz me serve tem um sabor especial
que mistura citrinos e chocolate.
No entanto, o futuro da minha chávena de Arábica da
Costa Rica não está garantido, diz Schultz. Depois de quase
quatro décadas de trabalho na Starbucks – reformou-se
três meses depois desta reportagem – e quase 15 meses
no cargo de presidente-executivo, tem-se debru-
88%
çado sobre as oportunidades e os desafios a longo
prazo. As alterações climáticas são um dos princi-
pais. À medida que a temperatura sobe e a seca se
intensifica, o bom café tornar-se-á mais difícil de
cultivar e mais caro de comprar. Uma vez que os
governos estão a reagir lentamente ao problema,
empresas como a Starbucks tomaram nas mãos a
sua salvação, descendo à base da cadeia para ga-
rantir um acesso seguro à matéria-prima. “Não se PERCENTAGEM
iluda”, diz-me Schultz, “as alterações climáticas vão DE TERRA
desempenhar um papel maior, afetando a qualidade OCUPADA
e a integridade do café”. PELA CULTURA
Esta fazenda, com as suas vistas verdejantes e DO CAFÉ NA
uma pequena queda de água, parece estar muito AMÉRICA LATINA práticas agrícolas. “Toda a gente fala do clima, mas
longe da subida dos níveis dos mares, do calor QUE PODE SER
escaldante e das tempestades destruidoras que IMPRODUTIVA
caracterizam as alterações climáticas. Mas o aque- EM 2050
cimento global é precisamente a razão por que a
Starbucks comprou o terreno de 300 hectares em 2013, e
por que Schultz faz várias vezes ao ano a viagem de 5 600
quilómetros desde Seattle. A fazenda é o laboratório de
campo da Starbucks para as ameaças colocadas ao café,
pelas alterações climáticas, e a sua base de testes para se
adaptar ao desafio. Schultz espera que os estudos aqui
feitos resultem em informação sobre práticas agrícolas
62 VISÃO 23 AGOSTO 2018
inovadoras para milhões de produtores em todo o mundo,
incluindo os que fornecem a empresa. “Temos de estar na
terra, a cultivar café, para perceber em primeira mão como
retificar e consertar a situação”, diz.
INOVAR OU MORRER
Estudo após estudo, tornou-se evidente a ameaça que as
mudanças climáticas significam para a indústria do café.
O aumento das temperaturas trará a seca, multiplicará o
leque de doenças e matará grandes quantidades de insetos
que polinizam os cafezeiros. Cerca de metade das terras,
hoje usadas para produzir café de alta qualidade, poderão
ser improdutivas em 2050, de acordo com um estudo pu-
blicado recentemente na revista Climatic Change.
Outro estudo, na publicação Proceedings, da Aca-
demia Nacional das Ciências (dos Estados Unidos
da América), sugere que esse número pode atingir
os 88% na América Latina.
O aumento global da temperatura apanhou mui-
tas indústrias de surpresa, mas as empresas do café
responderam em força, aumentando a sua presen-
ça no terreno em países produtores como a Costa
Rica, a Etiópia e a Indonésia. Em vez de apenas se
dedicarem à compra da matéria-prima, trabalham
com os pequenos produtores para os ajudarem a
adaptar-se às novas condições, fornecendo semen-
tes, monitorizando a produção e sugerindo novas
o único setor que está na verdade a fazer alguma
coisa com escala é a indústria do café”, diz-me M.
Sanjayan, o CEO da Conservation International,
numa volta pela fazenda da Starbucks em Alajuela.
A indústria não tem alternativa. Fornecimentos em
baixa e uma procura em alta significam que as alterações
climáticas podem transformar o cafezinho da manhã num
luxo caríssimo, ameaçando o contínuo crescimento da
base de consumidores. Enfrentar este problema foi uma
importante faceta do trabalho de Schultz nos seus últimos
anos na Starbucks. “Não tem que ver só com o ambiente”,
 “NÃO SE ILUDAM,
AS ALTERAÇÕES
CLIMÁTICAS VÃO
AFETAR A QUALIDADE
E A INTEGRIDADE DO
CAFÉ”, DIZ HOWARD
SCHULTZ, EX-CEO
DA STARBUCKS
EMPENHADO EM LUTAR
CONTRA OS EFEITOS
DO AUMENTO DAS
TEMPERATURAS
afirma. “Trata-se também de conseguir café de elevada gócio. A venda ao público sempre foi um setor separado
qualidade, ter os melhores grãos ao melhor preço possível.” do cultivo dos grãos. E como em todo o mundo o café é
Durante a nossa visita à fazenda da Starbucks, Schultz produzido por uns estimados 25 milhões de pessoas, as
para no centro de apoio ao produtor costa-riquenho. A grandes empresas cafezeiras normalmente iam à procura
estrutura destina-se a acomodar colheitas trazidas dos de fornecedores a quem a colheita tivesse corrido bem.
campos, mas ainda mantém o brilho de um escritório para Se a colheita de um dado país corria mal, as empresas
executivos de topo que passam por ali ocasionalmente. simplesmente viravam-se para outro.
Schultz saúda Carlos Mario Rodriguez, diretor global de
agronomia da Starbucks, com um grande sorriso e um ARÁBICA – PERIGO DE EXTINÇÃO
aperto de mão familiar. Neste edifício, Rodriguez reú- Com as alterações climáticas, essa cadeia de fornecedores
ne-se com produtores locais, oferecendo-lhes diferentes deixou de estar garantida. O café Arábica – a variedade
variedades de sementes desenvolvidas no terreno e acon- que encontramos na Starbucks, na Dunkin’ Donuts, na
selhando-os quanto à melhor forma de protegerem as McDonald’s e em praticamente todos os retalhistas nor-
suas colheitas em face de um clima em mudança. te-americanos – cresce numa região estreita dos

25milhões
Quando não está a formar agricultores, Rodri-
guez, antigo chefe do Instituto Nacional de Café da
Costa Rica, passa os seus dias entre os cafezeiros
na propriedade, vigiando experiências destinadas
a desenvolver o grão perfeito – aquele que consiga
sobreviver à seca e ao calor, mantendo ao mesmo
tempo os padrões de qualidade da empresa. É ele
que me mostra um campo de 390 metros quadra-
dos, onde estão a ser testadas 50 novas variedades
de café, tanto em termos de resistência ao clima
como a nível de sabor.
Rodriguez e a sua equipa são a vanguarda dos
esforços de adaptação da Starbucks, que, desde N Ú M E R O D E
2013, decidiu investir nos países produtores de café. P R O D U T O R E S
Tem hoje centros de apoio em nove países – um D E C A F É E M
número que Schultz diz poder triplicar nos tempos T O D O O M U N D O público bebedor de café.
mais próximos – e um fundo de investimento a dez
anos de 437 milhões de euros, que apoia programas
sustentáveis, como a formação de adaptação para cultiva-
dores e testes de novas variedades de café.
Todo este trabalho no terreno pode parecer óbvio.
Empresas de setores que vão da energia à tecnologia in-
vestem em investigação e desenvolvimento para melhorar
os seus produtos. Porém, o foco dos colossos do café nas
fazendas locais representa uma mudança sideral no ne-
trópicos conhecida como Cinturão do Café, que se
estende da América Central até à Ásia, passando pela
África subsariana. As condições têm de ser perfeitas
ou toda a colheita se perde. No passado, algumas
áreas tinham ocasionalmente anos maus devido a
uma tempestade mais violenta ou à flutuação das
temperaturas. Os cientistas dizem que no futuro
tais desafios serão constantes. Os agricultores de
algumas regiões poderão adaptar-se, levando as
plantações para terrenos mais altos, mas os de outras
não têm para onde mudar as plantações. Regiões
inteiras arriscam-se a deixar de poder continuar a
produzir café Arábica, e Schultz e outros afirmam
que não há maneira de tornar a mais resiliente
variedade Robusta agradável ao palato do amplo
Os estudiosos também alertam para o facto de
as alterações climáticas aumentarem a possibilidade
de doenças, incluindo a temível la roya, ou ferrugem-
-do-café. Esta doença reduziu em cerca de 15% a safra da
América Central, no ano de colheita 2012/13. Devido, em
grande parte, à ferrugem, o preço da libra de café para os
consumidores dos Estados Unidos da América aumentou
cerca de 33% entre 2011 e 2013. “As alterações climáticas
são boas...”, ironiza William Corrales Cruz, um pequeno

23 AGOSTO 2018 VISÃO 63

REFAZER O COMPLEXO
SISTEMA DE
ÁRVORES, PLANTAS
E VIDA SELVAGEM
QUE PERMITE AO
CAFÉ VINGAR NUM
DETERMINADO LUGAR
EXIGE UM CUIDADOSO
TRABALHO AO LONGO
DE UM VASTO PERÍODO
DE TEMPO
produtor da região costa-riquenha de Naranjo. “Se ven-
deres ferrugem.”
A Starbucks declara que está desejosa de partilhar o
que aprende acerca da cultura adaptativa do café com
produtores de todo o globo. Para as grandes empresas,
que compram a uma variedade de pequenos fornecedores,
não vale de nada tentar ganhar uma vantagem competitiva
guardando segredos de técnicas. Aumentar a capacidade
de todos os produtores de sobreviver às alterações
€876
climáticas beneficia toda a indústria, afirma Schultz.
A rede de centros de apoio ao produtor da empresa
distribui sementes gratuitamente, ensina novos mé-
todos de adaptação e serve de recurso aos agriculto-
res desejosos de se adaptarem, independentemente
de fazerem ou não negócio com a empresa. “Pode
milhões
ser difícil para as pessoas perceberem por que razão
estamos a partilhar toda esta informação”, declara
Schultz. “Mas se não o fizermos, vai haver uma tre-
menda pressão negativa sobre a indústria do café.”
A Starbucks terá certamente lucros dos resulta-
dos da sua investigação. Um fornecimento em queda
é um problema para uma indústria que prevê que I N V E S T I M E N T O conduzida pela Starbucks, os resultados desta
a procura mundial de café passe para o dobro em A N U A L D A
2050, motivada pelo aumento da população e por I N D Ú S T R I A
uma crescente classe média, na Ásia e em África, D O C A F É
viciada em cafeína. Por isso, quase todos os gigantes N E C E S S Á R I O
da indústria estão a dar mais atenção do que nunca PA R A FA Z E R
às suas fontes de matéria-prima. As empresas cujos FA C E À S
produtos entram em casa de praticamente todos A LT E R A Ç Õ E S
os norte-americanos – pense-se na Starbucks, na C L I M ÁT I C A S ,
Keurig Green Mountain, na J.M. Smucker e em tan- S E G U N D O A
tas outras – instalaram-se no nível básico da cadeia I L LY C A F F È
de fornecimento de uma forma que era impensável
há uma geração. Os pequenos produtores interagem hoje
diretamente com grandes retalhistas de nome conhecido
mundialmente depois de anos a negociar apenas com os
intermediários locais.
OS CUSTOS DA ADAPTAÇÃO
“No início, foi um susto”, diz Sara Bogantes Vargas, coor-
denadora regional da World Coffee Research (WCR), uma
organização financiada pela indústria, referindo-se à reação
64 VISÃO 23 AGOSTO 2018
dos produtores ao verem a fazenda da Starbucks ao lado
da sua. Mas Sara diz que os agricultores rapidamente pas-
saram a dar as boas-vindas à ajuda da indústria. A WCR é
um consórcio apoiado por dezenas dos maiores retalhistas,
distribuidores e exportadores de café. O instituto injeta
milhões de euros em pesquisas laboratoriais e em testes
de campo todos os anos.
A escala é imensa. Os mais de 15 milhões de euros do
programa de monitorização da WCR, por exemplo,
cobrem 1 100 fazendas em 20 países. O programa
inclui formação no terreno de produtores, assis-
tência técnica ao longo das experiências e análise
da cadeia de fornecimento. Em cada uma destas
fazendas, localizadas do Peru ao Quénia, a WCR
ocupou uma pequena parcela do terreno dos
produtores, para experimentar novas variedades
e vários métodos de cultivo alternativos. A WCR
e os seus parceiros agrónomos plantam diversos
híbridos de café, colhem amostras de solo e testam
técnicas como plantar árvores de sombra junta-
mente com os cafezeiros. Tal como a investigação
serão tornados públicos e partilhados, diz a WCR.
Os retalhistas individuais também investiram
no combate aos efeitos das alterações climáticas
nos seus negócios. Em El Salvador, nas Honduras
e na Nicarágua, a Keurig financiou um programa
para ensinar os agricultores a pôr em prática no-
vas técnicas agrícolas concebidas para tempos em
que a disponibilidade de água é limitada. O pro-
grama é parte integral dos cerca de 8,5 milhões de
euros que a empresa gasta anualmente em apoio
aos produtores. “Quando há desafios climáticos
em locais particulares, temos a possibilidade de ir buscar
café a outros lados”, diz Colleen Popkin, gestora sénior
de sustentabilidade da Keurig. “Já os agricultores não
têm essa flexibilidade… e esses produtores fazem parte
da nossa trajetória de crescimento a longo prazo.”
A Illycaffè tem uma abordagem semelhante através
daquilo a que a empresa chama Universidade do Café,
um programa com cerca de 30 mil participantes em todo
o mundo. A iniciativa começou em Itália, em 1999, como
 No terreno Gigantes da indústria de venda de café,
como a Starbucks, têm reagido à ameaça das alterações
climáticas. O desafio, desenvolvido em laboratórios junto
dos produtores locais, é o de encontrar o grão de café
perfeito: que sobreviva ao calor, à seca e às doenças

um fórum para um amplo leque de profissionais, de donos
de cafetarias a agricultores interessados em melhorar os
seus negócios, e, desde então, tem-se focado na formação
dos agricultores, ensinando-lhes práticas que possam vir
a ser sustentáveis face às alterações climáticas. O progra-
ma dá formação a milhares de agricultores em mais de
20 países e é o centro da “nossa estratégia”, diz Andrea
Illy, presidente da Illycaffè, calculando que a indústria, no
seu conjunto, gasta mais de 87 milhões de euros
um especialista em clima do Centro Internacional para a
Agricultura Tropical, sediado na Colômbia, “podem dar
frutos maduros só daqui a cinco ou dez anos”.
E por muito dinheiro que a indústria aplique na inves-
tigação, por muitos homens que as empresas ponham no
terreno para reciclagem de conhecimentos, o futuro do
café continua à mercê de uma população mundial que
não para de bombear gases de estufa para a atmosfera.
As temperaturas médias do planeta devem ultra-

€438
todos os anos para se adaptar. Mas Illy acrescenta
que esse montante tem de ser multiplicado. “Há
um fosso gigante”, afirma. “O palpite mais funda-
mentado é que, para nos adaptarmos às alterações
climáticas, vamos precisar de que toda a indústria
invista algo como 870 milhões de euros por ano
passar os 14,7°C em 2100 (a temperatura média
registada no século XX foi de 13,7°C), mesmo que
os países cumpram os seus compromissos na re-
dução do aquecimento global, segundo dados do
Programa das Nações Unidas para o Ambiente. Isto
é ficar muito perto do objetivo da ONU de conter o

milhões
para renovar plantações, desenvolver novas va- aumento da temperatura abaixo dos 15,7°C.
riedades, melhorar o equipamento e até migrar Tudo isto tem graves implicações no futuro do
algumas plantações de café.” café. De volta à fazenda da Starbucks, Schultz lan-
ça-se na contestação da política governamental.
UM LONGO CAMINHO Diz-me que os Estados Unidos da América precisam
A doce fragrância que impregna os ares na região de de trabalhar para mitigar as alterações climáticas
Naranjo, na Costa Rica, a 40 quilómetros da fazenda VA L O R D E U M A e voltar ao Acordo de Paris, que a Administração
da Starbucks, é inconfundível. Por muito doce que O F E R TA D E Trump abandonou em 2017. “Temos de nos despir de
seja, o aroma das plantas também é ameaçador. Es- O B R I G A Ç Õ E S políticas”, afirma, “e fazer tudo o que pudermos para
tamos no início de março e as plantas aqui deviam “ V E R D E ” D A preservar e melhorar a nossa indústria”. (Schultz,
estar a semanas de florir, explica Sara. A colheita de S TA R B U C K S , que é muitas vezes dado como potencial candidato
uma planta que floresce tão cedo pode perder-se D E S T I N A D A À S presidencial Democrata, sublinha que continua a
por toda uma temporada. A LT E R A Ç Õ E S ser um cidadão comum, apesar de parecer pronto
Na Costa Rica, os agricultores dizem que as C L I M ÁT I C A S para fazer campanha.)
alterações climáticas já tornam difícil prever as E A O U T R A S Quando saímos da quinta da Starbucks, Sara Bo-
colheitas. A estação das chuvas “num ano é curta, Q U E S T Õ E S gantes Vargas, filha de um produtor de café, aponta
noutro ano é longa de mais”, diz Corrales Cruz. Há D E S U S T E N TA - para as plantações que acabaram, resultado de anos
BILIDADE
15 anos, uma fazenda de café média da Costa Rica de falta de água. Algumas estão transformadas em
produzia 29 sacas de café por hectare. Hoje esse estâncias de turismo. Outras jazem abandonadas.
número baixou para menos de 20 sacas. Os campos, verdejantes nuns sítios, castanhos noutros,
É um prenúncio de desgraça para a indústria e um sinal são um lembrete de que Schultz, a indústria do café e as
da gravidade do seu desafio de adaptação: as alterações autoridades encarregadas de travar as alterações climáticas
climáticas estão a acontecer agora e depressa. Refazer o precisam de agir depressa. visao@visao.pt
complexo sistema, de árvores, plantas e vida selvagem, que
permite ao café vingar num determinado lugar exige um
cuidadoso trabalho ao longo de um vasto período de tempo. © 2018, TI­­ME Inc. To­­dos os di­­rei­­tos re­­ser­­va­­dos. Tra­­du­­zi­­do da TI­­ME
“As mudanças que fazemos hoje”, lembra Peter Läderach, Ma­­ga­­zi­­ne e pu­­bli­­ca­­do com au­­to­­ri­­za­­ção da TI­­ME Inc.

23 AGOSTO 2018 VISÃO 65

UM PALCO
ATRÁS DAS
GRADES
Subitamente, devolveram-lhe o sorriso e convidaram-na a desfilar.
Andreia foi uma das onze reclusas de Tires que aceitaram desafiar a rotina
ordeira dos dias na prisão, a sonhar com a liberdade
TERESA CAMPOS J O S É C A R L O S C A R VA L H O
Dias de ensaio Durante meses, as quarta-feiras em Tires
permitiram dar corpo à ousadia de uns sonhadores que
transformaram reclusas, como Andreia – a pouco tempo
do fim da pena – em modelos por um dia
A vida segue dentro
de momentos
O consultório dentário
improvisado, numa das alas
da cadeia, é uma das etapas
fundamentais da recuperação
das reclusas. Com consumos
de droga misturados
com o tráfico, muitas delas
perderam a saúde dos dentes.
Segue-se a preparação para
o desfile, que também conta
com manequins profissionais
(na foto, vestidas de vermelho)

A
A
Andreia está empoleirada na parte da frente
do barco de madeira da família, atracado
no porto de abrigo, em Sesimbra, a esfregar
o vidro novo que protege o leme. É dia de
festa – ao início da tarde, as embarcações
locais devem alinhar-se ao largo da baía
para agradecerem ao Senhor das Chagas, o
padroeiro da terra –, e o El Chispu, nome
daquele pesqueiro salva-vidas, também quer
estar à altura dos acontecimentos. Carlos, o
marido, 41 anos, vai limpando do outro lado.
A ajudar, está ainda o filho, 16 anos, aluno do
Ensino Profissional. E no cais, a gravar tudo
com a câmara do telemóvel, a filha, 15, sen-
tada numa cadeira de rodas. É o último dia
da precária de uma semana, saída autorizada
pela juíza e pelo Estabelecimento Prisional de
Tires. Presa há três anos por tráfico de droga,
a mulher de 36 anos já cumpriu quase dois
A liberdade
aqui tão perto
terços da pena e está a contar os dias para E se preparar-se para
sair de vez em setembro. Entretanto, caiu-lhe a saída implica arranjar
um presente inesperado no colo. os dentes, o resto do
“Sim, sim, puseram-na toda boneca”, elo- projeto pode resumir-se
gia o marido, que foi preso e julgado na mes- a essa ideia de dar um
ma altura, mas saiu em liberdade condicional, punhado de confiança
há um par de meses, depois de cumprir me- a quem está privado de
tade da pena –, e ela logo mostra os dentes, liberdade e sonha com
agora alinhadinhos. Se introduzíssemos aqui ela. No fim daqueles dias
um flashback, era justo dizer que foi uma extraordinários, até as
Andreia bem formosa e segura que desfilou guardas prisionais, sempre
pela passerelle improvisada no auditório de vigilantes, assumiram
Tires, perante a diretora e mais uma série de estar a “torcer” por todas
outras instâncias, a aplaudir a ousadia de uns as reclusas
sonhadores que transformaram reclusas em
modelos por um dia.
A história começa com uma artista, a
cantora Laura Azenha, 25 anos, e a sua ideia
de oferecer algo àquelas mulheres. Podia ser
23 AGOSTO 2018 VISÃO 69

Sonhos pouco doces
Na passerelle, por
momentos, Andreia parece
esquecer o que a trouxe
aqui. Assume os consumos
de droga desde os 18 anos,
quando vivia em Alfama e
ganhava a vida em torneios
de luta livre. Nessa altura,
conheceu o marido e pai
dos seus filhos. E tudo
corria mais ou menos bem
até os apanharem com 100
gramas de droga em casa
um concerto de beneficência, acabou por
ser um punhado de autoconfiança a quem
está privado de liberdade e vive a sonhar
com ela, todos os dias. A equipa de produ-
ção entusiasmou-se de tal forma que logo
pensou em ensiná-las a concorrer a um
emprego ou a apresentar-se em público.
Mas... sem poderem sorrir? A interrogação
nem foi logo compreendida. A maioria das
cerca de quatro mil mulheres presas em
Tires cumpre pena por ilícitos relacionados
com droga, de pequenos furtos ao tráfico.
Em muitos casos, há consumos à mistura –
entre o prazer e a dor da privação, dá-se a
erosão do esmalte e a retração da gengiva.
Não há sorriso bonito que resista.
COMEÇAR A RENASCER
Ilkenia Tavares, médica dentista, 53 anos, sabe
bem que o sorriso é a forma de comunicação
mais poderosa do mundo e pode ser a fer-
ramenta que lhes dita a sobrevivência. “Vão
precisar muito dele quando saírem”, sublinha.
E com a dentista à cabeça, o projeto arrancou,
apoiado por uma mão-cheia de gente deci-
dida a fazê-las esquecer a dureza da prisão e
o medo pelo que as espera cá fora. Durante
meses, as quartas-feiras à tarde passaram
a ter outro sabor para as contempladas pelo
Art4Life, a associação que teve a ideia de
lançar este Integrarte, como lhe chamaram.
Primeiro, chegou a equipa que lhes corrigiu
a boca, incluindo cirurgia de implantes. De-
pois, entraram as estilistas, com os tecidos,
brilhantes e coloridos, além da tesoura e fita
métrica. Seguiram-se escovas e secadores de
cabelo, pincéis de maquilhagem e batons,
fitas, pentes e espelhos – tudo atrelado à
promessa de um banho de autoestima.
A combinação de tragédias nas histórias
das raparigas que desfilam diante dos nossos
olhos permite ver como o projeto é muito
mais do que um escape. É a vida que se joga
ali. Encostada à ombreira da porta do cama-
rim, Kimberley, uma venezuelana de 21 anos,
um filho de sete anos e outro com poucos
meses, anui – ela que aceitou trazer droga
na bagagem, desde o outro lado do Atlântico,
por três mil euros: “Para quem não tem nada
é uma fortuna.” Já Brígida, 45, foi apanhada
pela segunda vez atrás das grades por ter
voltado a ceder à tentação do dinheiro fácil.
“Disparates...” Muitas esboçam apenas um
leve sorriso quando se lhes pergunta o que
as levou ali. Ninguém gosta de falar do pas-
sado. “Roubei o que não devia”, deixa escapar

Ana, 29 anos, presa desde os 21, à conta de
ter um bom beber, que é como ela descreve
a dependência do álcool que desenvolveu na
adolescência.
Encontramos Andreia à porta do consul-
tório improvisado numa das alas da cadeia.
Está em regime semiaberto, ou seja, trabalha
na prisão, na manutenção elétrica. Pouco de-
pois, chamam-na para experimentar um dos
fatos que vai usar no dia do desfile. Ela apa-
rece confiante e sorridente. Tal como Jessica,
Rafaela e Jennifer, outras que serão modelos
por um dia, Andreia assume que o mais difícil
foi aguentar-se em cima dos saltos. Salvou-a
o elogio de uma vida. “Nunca me tinham dito
que era bonita.”
OUTRO FUTURO
Kiara Timas, 34 anos, ex-cantora das Just
Girls e atualmente produtora de eventos, foi
outra das pessoas que nem hesitaram perante
o apelo de Ana e de João Serra Fernandes,
os responsáveis da Art4Life. “Sabemos que
as pessoas não vão mudar de um dia para o
outro e que elas vão ter sempre o carimbo
de ex-reclusas. Somos todos iguais: não há
ninguém que mude se não se sentir bem
consigo”, afirma, enquanto distribui dicas a
quem experimenta vestidos.
A manhã desse dia D ainda vai a meio
quando encontramos a sala de maqui-
A vida é feita
de escolhas
Durante uma precária,
seguimos Andreia até
lhagem e cabelos num corrupio. Alguém Sesimbra. É dia de festa
mais distraído nem notaria nas guardas e o barco da família tem
prisionais sempre vigilantes, a manter as de estar à altura. Até
mulheres debaixo de olho. Na plateia, já ao verão de 2020, mais
estão as reclusas das outras alas que foram precisamente 26 de junho,
convidadas a assistir, sempre ladeadas de quando espera ganhar
guardas – além da diretora da prisão, Fá- a liberdade definitiva,
tima da Corte, e de Celso Manata, diretor- em vez da condicional
-geral de Reinserção e Serviços Prisionais. que deverá ver ser-
A música, essa, também já se faz ouvir, -lhe atribuída já em
premonitória: “Sweet dreams are made of setembro, todos os
this...” Lá dentro, as estilistas fazem figas e cuidados serão poucos.
até as guardas não resistem a desejar que Curiosamente, aquele
“arrasem”. Primeiro, entra Sheila, depois é o Dia Internacional
Joana... e, de repente, aquelas duas horas contra o Abuso e Tráfico
e meia passam num ápice. Ilícito de Drogas
Andreia anseia pelo dia do adeus à prisão,
embora saiba que o que a espera em Sesimbra
é a vida de sempre. Talvez preferisse outro
futuro, quem sabe ancorado em projetos
produzidos pela equipa do Integrarte. Ela e
o marido estão sentados lado a lado numa
esplanada ao pé do mar. As mangas curtas
revelam que ambos tatuaram os nomes dos
filhos nos braços. A bênção aos pescadores
já não demora. O tempo a passar lembra An-
dreia, a todo o momento, que no dia seguinte
tem de se apresentar em Tires, novamente.
Várias vezes se lembra do que ouviu no fim
do desfile: “Alguém nesta sala acredita que
não pode ser o que quiser?!” tcampos@visao.pt
23 AGOSTO 2018 VISÃO 71
 Turquia, a tempestade
CRISE

FOCAR

“Ter dinheiro é
melhor do que ser
pobre, nem que
seja por motivos
financeiros”
Woody Allen
Realizador de cinema
perfeita
Numa altura em que se aproxima o décimo
aniversário da queda do Lehman Brothers, que
ficou como símbolo da última e devastadora
crise financeira mundial, a instabilidade turca é o
grande fantasma dos mercados. Mas pode um país
que representa menos de 1% da economia mundial
iniciar um ciclo de destruição que chegue até nós?
TIAGO FREIRE

72 VISÃO 23 AGOSTO 2018


Uma questão de orgulho
O Presidente Erdogan defende
que não há uma fraqueza
económica da Turquia e sim um
ataque internacional ao seu país
A
queda da lira turca é a
face mais visível do pro-
blema, mas esta é conse-
quência de questões mais
profundas: económicas,
financeiras mas também
eminentemente políti-
cas. Um intrincado no-
velo de influências entre
EUA e Rússia, com venda
de armamento e tarifas
comerciais à mistura, que
faz tremer o líder turco, que continua a
descrever a situação como um ataque
internacional à Turquia. Aqui ficam
seis questões para entender a situação,
nomeadamente o impacto que pode ter
sobre a nossa economia.
1 DE ONDE VEM,
AFINAL,
A FRAQUEZA
DA ECONOMIA
TURCA?
Há muito que os observadores
internacionais vêm pedindo reformas
económicas e financeiras na Turquia.
O modelo turco não é neutro, no sen-
tido em que não obedece estritamente
a uma estratégia tecnocrata. Ao invés, o
Presidente Recep Tayyip Erdogan tem
encarado a economia da mesma forma
que o faz em relação à política: popu-
lismo e arremedos nacionalistas estão
na origem de muitas das decisões com
impacto económico. Os principais re-
ceios internacionais prendem-se com a
grande dependência externa da econo-
mia turca. O endividamento externo é
elevado e, na verdade, não há um plano
claro para a sua diminuição nem provas
de que exista essa intenção. A economia
está muito dependente do crédito e
do consumo, com uma inflação muito
elevada (o que é histórico, na Turquia,
e já foi bem pior do que é hoje em dia).
A estratégia defendida internacional-
mente é que a Turquia reduza o endi-
vidamento e trave a inflação, mesmo
que tal possa arrefecer o crescimento
económico, embora o possa tornar mais
sustentável. Ora esse é exatamente um
ponto que os responsáveis turcos não
aceitam. Uma medida óbvia, há muito
23 AGOSTO 2018 VISÃO 73
 CRISE
debatida, seria a subida das taxas de
juro por parte do banco central. Em
julho, essa decisão era largamente es-
perada: serviria para fortalecer a lira e
moderar o crédito. Quando tal não su-
cedeu, o veredicto internacional foi que
o banco central, formalmente indepen-
dente, não o era de facto. Erdogan tem
defendido repetidamente que taxas de
juro altas são o problema, prejudicando
o povo turco. A decisão do Banco da
Turquia foi vista como uma irrespon-
sabilidade e, pior, como uma prova de
que estaria manietado pelo poder po-
lítico, o que não é de estranhar dada a
concentração progressiva de poder na
figura de Erdogan.
2
O QUE MUDOU
PARA AS COISAS
PIORAREM
AGORA?
Há uma razão financeira e outra
política. A primeira tem que ver com a
diminuição dos fluxos de dinheiro das
maiores economias mundiais – com
os EUA à cabeça – para os mercados
emergentes, nomeadamente a Tur-
quia. O longo e agressivo programa de
compra de ativos (Quantitative Easing)
da Reserva Federal norte-americana,
na prática, “encharcou” o mercado de
dinheiro. Dinheiro esse que, em boa
parte, foi aplicado em zonas do Globo
com maior potencial de risco e de re-
torno, como os mercados emergentes.
No entanto, com a economia norte-a-
mericana estabilizada, o Quantitative
Easing terminou, cortando os fluxos
de investimento que, durante anos, se
instituíram. No caso da Turquia, por
exemplo, isso significa que começou a
diminuir o investimento financeiro ex-
terno e há menos liquidez disponível.
O que é um problema quando a econo-
mia não arranjou, entretanto, um mode-
lo alternativo e continua dependente de
financiamento externo, nomeadamente
para a renovação de linhas de crédito
internacionais ao sistema financeiro
e às empresas turcas. Este efeito mais
geral juntou-se à decisão de não subir as
taxas de juro e à ofensiva política norte-
74 VISÃO 23 AGOSTO 2018
-americana para um cocktail explosivo.
Nos últimos dias, a tensão aumentou
ainda mais com o corte da classificação
da Turquia por parte de várias agências
de rating.
3
QUAL A
INFLUÊNCIA
NORTE-
-AMERICANA
NA DERROCADA?
Os EUA têm normalmente boas
relações com a Turquia, mas Donald
Trump já se encarregou de pôr isso em
causa. O rastilho oficial foi a recusa da
Turquia em libertar um padre missioná-
rio norte-americano, Andrew Brunson,
detido desde 2016, acusado de conspirar
contra o Estado turco, pelas suas alega-
das ligações aos rebeldes curdos do PKK.
Brunson tem alegado inocência mas
continua detido, mais recentemente em
prisão domiciliária. Trump deu atenção do que a detenção de um missionário.
a este problema só nos últimos meses, A Turquia tem estreitado laços com a
levando a uma escalada diplomática. Rússia, que considera uma aliada na
A Turquia, pela voz do próprio Erdogan, questão da Síria e dos curdos. Recente-
tem lembrado que, nos EUA, está a viver mente, o país comprou um importante
Fethullah Gulen, considerado pelas auto- sistema aéreo de defesa à Rússia, algo
ridades locais o mentor do golpe contra que terá enfurecido Donald Trump, que
o regime, em 2016. Erdogan chegou a vê isto como um indesejado aprofunda-
sugerir uma troca, Brunson por Gulen, mento da relação militar entre a Turquia
algo liminarmente rejeitado pelos EUA, e a Rússia.
4
até porque Gulen não é sequer um prisio-
neiro dos EUA. Foi no auge desta guerra
diplomática que Trump anunciou a su-
bida das tarifas à importação de algumas
O QUE PODE
das principais exportações turcas, com a A TURQUIA
Turquia a responder na mesma moeda.
Há, no entanto, quem sublinhe que a FAZER?
ira da Administração norte-americana
se deve a questões menos humanitárias
O FACTO DE O MINISTRO
Há dois grandes caminhos, con-
DAS FINANÇAS SER soante a Turquia queira ceder e seguir
O GENRO DE ERDOGAN por um caminho mais tecnocrata, ou
manter-se orgulhosamente nacionalista,
NÃO AJUDA A DAR rejeitando as pretensões ocidentais, que
tem considerado ingerências inadmis-
CREDIBILIDADE ÀS síveis em questões internas.
Na primeira opção, a medida óbvia
SUAS DECISÕES seria a subida das taxas de juro, que,

pelo menos, enviaria um sinal de que
há flexibilidade técnica para responder
aos problemas económicos e financeiros,
apesar da oposição ideológica do Gover-
no. Tal poderia ser complementado com
um plano de reformas. O ministro das
Finanças turco já apresentou um plano
para várias áreas da economia turca, na
sequência da crise da lira, mas pouco
efeito teve na confiança internacional.
O facto de o ministro ser o genro de
Erdogan, nomeado no início do ano
na última remodelação governamental,
não ajuda a dar credibilidade às suas
decisões. Diplomaticamente, a liberta-
ção de Andrew Brunson poderia levar a
Administração Trump a recuar na ques-
tão das tarifas. No entanto, é altamente
improvável que Erdogan esteja disposto
a fazê-lo, tendo em atenção a escalada
retórica das últimas semanas, que o dei-
xou praticamente sem recuo. Por outro
lado, Brunson está, formalmente, a cargo
da Justiça e não do Governo.
A segunda hipótese, a mais prová-
vel, é o aprofundamento das relações
com outros parceiros que não os EUA.
Rússia, Qatar e China são os principais
candidatos, enquanto a União Europeia
continua praticamente imóvel, mais uma
vez incapaz de definir uma postura sólida
perante um importantíssimo candidato
O vício das tarifas Donald Trump agudizou,
e muito, a tensão à volta da lira, subindo as
tarifas à importação de bens turcos, como
resposta à recusa da Turquia em libertar um
missionário americano detido desde 2016
ao alargamento da União, pelo menos até
há poucos anos. A China tem tido investi-
mentos importantes no país e anunciou,
recentemente, um empréstimo ao setor
público, o mesmo acontecendo com o
Qatar, que tem na Turquia um raro aliado,
depois de a Arábia Saudita (próxima dos
EUA) ter imposto um embargo ao país.
Também o Irão é um parceiro próximo da
Turquia. Ou seja: o panorama diplomá-
tico internacional, mais especificamente
no complexo xadrez do Médio Oriente,
tem também um papel nesta crise in-
ternacional.
5
QUAIS OS
EFEITOS DESTA
CRISE SOBRE
A ECONOMIA
MUNDIAL?
Vários analistas têm defendido
que o grande perigo é psicológico,
com impacto sobre a confiança dos
investidores. A Turquia, apesar da sua
dimensão relevante e do seu impor-
tante papel geopolítico, não pesa muito
na economia mundial. A nível macro,
novas barreiras comerciais são sempre
uma má notícia para o crescimento
económico. Além disso, outros países
emergentes estão a ver as suas moedas
penalizadas: é o caso do México, da
Índia ou da Argentina. O já referido
efeito do fim do Quantitative Easing
também afeta estes mercados, mas
o receio é que, com a visibilidade da
crise da lira turca, o efeito da retirada
de investimentos de outros países seja
ampliado, revelando debilidades eco-
nómicas em vários países ao mesmo
tempo, sendo que alguns deles en-
frentam já problemas próprios (como
é o caso do Brasil, por exemplo). Ou
seja: um possível efeito – ainda que
alegadamente limitado – seria um
crescimento económico mundial mais
reduzido.
Há, ainda, outro efeito, que pode
entrar pelas portas da Europa, ligado
ao sistema financeiro. Vários bancos
europeus têm uma grande exposição
à Turquia, através de empréstimos em
moeda estrangeira (euros ou dólares,
por exemplo). A questão é que, com a
queda da lira turca, as empresas locais
precisam de cada vez mais liras para
pagarem a mesma prestação mensal,
denominada em dólares. Agravando-se
a situação, daqui ao incumprimento
é um pequeno passo que pode gerar
buracos nos bancos da União Euro-
peia. Segundo o Banco de Pagamentos
Internacionais e a JP Morgan Asset
Management, os bancos espanhóis são
os mais expostos, com um valor de
4,5 mil milhões de euros (de acordo
com as mesmas fontes, a exposição
portuguesa é de 400 milhões). O es-
panhol BBVA e o italiano UniCredit,
com operações físicas na Turquia,
têm estado entre os mais penalizados,
em Bolsa.
6
COMO PODE
PORTUGAL SER
AFETADO POR
ESTA CRISE?
Além do contágio em termos de
comércio internacional, difícil de pre-
ver e de medir, há a já falada questão
dos bancos espanhóis, com presença
grande em Portugal, sendo Espanha o
nosso principal parceiro comercial e
um verdadeiro barómetro para a nossa
própria economia. Depois, há o lado
concreto da lira turca, que torna muito
mais baratas as nossas importações de
produtos turcos (devido à força relati-
va do euro) e muito mais caras as ex-
portações para a Turquia (as empresas
turcas precisam de cada vez mais liras
para comprarem a mesma quantidade
de produtos ao estrangeiro). De acordo
com os últimos dados do INE, a nos-
sa balança comercial relativamente à
Turquia foi negativa, em 184 milhões
de euros, ou seja: importamos mais do
que exportamos. As nossas principais
exportações para a Turquia são as pastas
celulósicas e papel, com quase um terço
das vendas, seguindo-se a maquinaria
e os plásticos e borrachas. Em sentido
inverso, as nossas maiores importações
da Turquia, que ficarão mais baratas, são
os veículos e outro material de trans-
porte (peso de 27,1%), matérias têxteis
e metais comuns. tfreire@exame.pt
23 AGOSTO 2018 VISÃO 75
 REFUGIADOS

A escrava eterna
Ashwaq Hagi Hami, uma jovem iraquiana refugiada
na Alemanha, teve de regressar ao seu país natal, após ser
ameaçada numa rua germânica pelo jihadista que a comprou
e a violou durante meses, em 2014

N
FILIPE FIALHO

adia Murad tem 25 anos
e é conhecida nos cinco
cantos do mundo. A jovem
iraquiana, que foi agracia-
da em 2016 com o Prémio
Sakharov para a Liberdade
de Pensamento, atribuído
pelo Parlamento Europeu, e
que é também embaixadora
da Boa Vontade das Nações
Unidas para a Dignidade dos Sobrevi-
ventes de Tráfico Humano, acaba de ser
notícia em vários jornais e televisões
por causa do seu casamento com um
antigo tradutor-intérprete das tropas
dos EUA, seu conterrâneo. A viver na
Alemanha, com o estatuto de refugiada,
ela é hoje um símbolo da resistência ao
autoproclamado Estado Islâmico (EI) ou
Daesh. Há exatamente quatro anos, foi
uma das vítimas da campanha de terror
contra a comunidade yazidi no Nordeste
do Iraque. A sua aldeia, Kocho, foi arra-
sada e palco de um massacre. A mãe e
seis dos seus dez irmãos acabariam por
ser também executados, e Nadia Murad
foi sequestrada, vendida e convertida
em escrava sexual. Com base no que
aconteceu no verão de 2014, a ONU
considerou que mais de meio milhão
de yazidis foram alvo de perseguições
sistemáticas e de genocídio. Na ocasião,
considerou-se prioritário dar assistên-
cia aos sobreviventes, resgatar as mais
de cinco mil mulheres e meninas feitas
escravas pelo EI e apresentar este drama
junto do Tribunal Penal Internacional,
com sede em Haia.
No entanto, na última semana, ficou a
conhecer-se outra história tão dramáti-
cas como a de Nadia Murad, igualmente
protagonizada por uma yazidi. A 3 de
agosto de 2014, Ashwaq Hagi Hami,
então com 15 anos, assistiu à chegada
dos militantes do EI ao local onde vivia
– Khanasor, nos arredores de Sinjar, no
Curdistão iraquiano. De acordo com o
seu testemunho, recolhido pelo site
noticioso curdo Basnews, durante 45
dias, ela e mais de 60 elementos da sua
família ficaram em prisão domiciliária.

76 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Refém do passado A jovem
iraquiana, 19 anos, pretende agora
refugiar-se na Austrália e diz que
jamais irá voltar à Alemanha
O grupo seria depois dividido, e Haswaq
acabou por ir parar a Shaddadiya, na
Síria. Nessa altura, já estava mentalizada
para o pior. Os muçulmanos sunitas, em
geral, e o Daesh, em particular, consi-
deram que os yazidis são aduladores
do Diabo e, portanto, merecem um
tratamento implacável como infiéis: os
homens devem ser mortos, os meninos
devem ser doutrinados como crianças-
-soldado, para serem depois usados em
atentados suicida, enquanto as mulheres
e as meninas devem ser feitas escravas
sexuais.
ADQUIRIDA POR 100 DÓLARES
É já nesta última condição que Ashwaq
aparece na capital iraquiana do EI, Mos-
sul, onde fora proclamado o novo Cali-
fado, no início desse verão. Num hotel
da cidade, conhece Abu Humam, perso-
nagem que a terá comprado por cerca de
100 dólares (86 euros) e que a escravizou
e a molestou sexualmente durante mais
de três meses. As circunstâncias em que
consegue fugir do cativeiro parecem mal
explicadas e são algo rocambolescas,
mas ela garante que, com a ajuda de
outras quatro jovens yazidis, terá posto
soporíferos na comida de Abu Humam
e de 17 homens que partilhavam um
repasto noturno. A fuga permite-lhe
reencontrar-se com os pais e, em junho
de 2015, chega mais ou menos sã e salva
à Alemanha. Pelo meio, descobre que
cinco dos seus irmãos desapareceram
sem deixarem rasto e que uma irmã per-
manece – até hoje – como prisioneira e
escrava do Daesh.
A pacata cidade medieval de Schwä-
bisch Gmünd, a pouco mais de 50 qui-
lómetros de Estugarda, torna-se o novo
lar de Ashwaq, que começa logo a apren-
der alemão, recebe apoio psicológico e
“DISSERAM-ME QUE ELE
ERA UM REFUGIADO
COMO EU E QUE NÃO
PODIAM FAZER NADA
SOBRE O ASSUNTO.
DERAM-ME APENAS UM
NÚMERO DE TELEFONE’’
TRAGÉDIA SEM FIM
650 mil
Alvos
Estimativa da população yazidi no Iraque
quando o Daesh, em agosto de 2014,
iniciou uma campanha para exterminar
esta minoria curda que pratica uma
religião milenar, pré-islâmica, que
os muçulmanos sunitas consideram
herética. Se contabilizarmos a Síria, a
Turquia e a diáspora (Arménia, Alemanha,
Geórgia e Rússia), a comunidade conta
com perto de um milhão de indivíduos.
10 mil
Mortos
A ONU classificou, em 2016, a campanha
contra os yazidis no Iraque e na Síria de
genocídio. A barbárie do Daesh obrigou
mais de metade da população nos dois
países a abandonar as suas casas. O caso
chegou ao Tribunal Penal Internacional
e um dos seus promotores é a advogada
Amal Clooney, a mulher do ator George
Clooney.
6 mil
Escravas
Por considerá-los aduladores do Diabo,
o Daesh quis converter à força os
yazidis que não executou anteriormente,
com as mulheres e as menores a serem
convertidas em escravas sexuais.
Apesar da sua derrota militar, calcula-
se que o grupo ainda mantenha três mil
prisioneiras, sobretudo na província
síria de Idlib.
100 mil
Refugiados
Número de yazidis que, desde 2014,
solicitaram apoio ao Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados,
manifestando o desejo de se instalarem
na Europa, nos EUA, no Canadá e na
Austrália. Perto de 300 mil continuam a
viver em acampamentos temporários da
ONU, no Norte do Iraque e no Sudeste da
Turquia.
estuda para conseguir um dia trabalhar
no país que a acolheu. Os traumas con-
tinuavam a persegui-la e foram várias
as vezes que confessou à mãe sentir-se
ameaçada. “Isto é a Alemanha, ninguém
te vai magoar”, terá replicado a progeni-
tora. Só que, a 21 de fevereiro passado, o
caso tornou-se deveras grave. Quando,
de regresso a casa, passava junto a um
supermercado, um carro estacionou a
seu lado e o condutor perguntou-lhe,
em alemão: “És a Ashwaq, certo?”
A jovem ficou paralisada e reconhe-
ceu o indivíduo da “cara feia e barba
ameaçadora” que abusou dela vezes
sem fim no Iraque. Abu Humam, cujo
verdadeiro nome será Mohammed
Rashid, estava novamente a seu lado
e, desta vez, para lhe dar conta de que
conhecia a sua nova morada e muitos
outros pormenores da sua nova vida.
Em pânico, correu para junto da família.
No dia seguinte, de acordo com a versão
que deu ao site Basnews, foi à polícia e
apresentou queixa. Na esquadra, após
ser interrogada, ouviu algo que a deixou
atónita: “Disseram-me que ele era um
refugiado como eu e que não podiam
fazer nada sobre o assunto. Deram-me
apenas um número de telefone, caso
Abu Humam voltasse a incomodar-me.
Após esta resposta, decidi que tinha de
voltar ao Curdistão e que jamais regres-
saria à Alemanha.”
A viagem para o Iraque é feita poucas
semanas depois e sem receber explica-
ções adicionais das autoridades germâ-
nicas. Na última semana, na sequência
da história dada em primeira mão pela
Basnews, vários meios de comunicação
social relatam a odisseia de Ashwaq, e
ela concede novas entrevistas à BBC, à
Associated Press e à RT. E surge, então,
a polémica: a Procuradoria alemã ad-
mite estar a decorrer uma investigação,
mas alega desconhecer a identidade do
suposto refugiado, que foi combatente
do Daesh, e invoca ainda “pouco rigor”
no testemunho prestado pela jovem ira-
quiana. Ela defende-se e explica que de-
veriam ter sido analisadas as imagens de
videovigilância do supermercado, onde
tem de estar registado o seu encontro
com Abu Humam. E nesta segunda-fei-
ra, 20, gravou um vídeo, em alemão, em
que alerta para a possibilidade de haver
outros “refugiados” como o homem
que ela denunciou – algo de que a ONG
Hawar.help, com sede em Berlim, diz
também ter conhecimento e que pro-
mete denunciar em breve... ffialho@visao.pt
23 AGOSTO 2018 VISÃO 77
 Sem controlo
INTERNET Os serviços de “lavagem
cerebral” para particulares
estão a dar os primeiros passos

Manipulação ao domicílio
Uma empresa oferece pacotes personalizados para influenciar
as vontades alheias. Podem encomendar-se “serviços” para
levar alguém a deixar de fumar ou a estar disponível para
amar. Uma espécie de vodu dos tempos modernos

N
SARA SÁ

o passado, era a publicidade,
declarada ou mais sublimi-
nar, a influenciar a compra
de um carro, de um deter-
gente, a fazer desejar um cer-
to estilo de vida. No futuro, é
possível que as nossas vonta-
des e opiniões sejam mani-
puladas durante os sonhos,
como se prevê no thriller de
Christopher Nolan, A Origem, de 2010,
e, muito antes disso, no romance Ad-
mirável Mundo Novo, escrito em 1931
por Aldous Huxley. No presente, somos
bombardeados nos computadores, te-
lefones ou tablets com anúncios/artigos
que vêm ao encontro das nossas prefe-
rências ou dos nossos anseios. Quem
nunca visitou a página do turismo de
uma cidade e passou a ser inundado com
anúncios de hotéis ou ofertas de viagens
para esse mesmo destino?
Tudo isto acontece graças aos cookies
– informação que fica guardada nos
dispositivos de cada vez que visitamos
um website, uma espécie de pegada
ou rasto digital, e que está na base do
marketing na era da internet. Agora, uma
empresa registada em Londres oferece o
que pode ser visto como um serviço de
manipulação ao domicílio. Com a apli-
cação The Spinner é possível controlar
os artigos que são apresentados a uma
determinada pessoa, de forma a influen-
ciar o seu comportamento. Os textos vão
aparecendo nos dispositivos eletrónicos
utilizados pelo visado, recheados de uma
mensagem específica.
É possível, por exemplo, encomendar
uma campanha a favor de um animal
doméstico. São os adolescentes os prin-
cipais clientes deste serviço e o visado,
ou os visados, neste caso os pais, recebe-
rão artigos com títulos como “12 razões
para a sua família ter um cão”. Também
se pode tentar convencer alguém a dei-
xar de fumar ou a pensar em mudar de
emprego (imagine que quer ver-se livre
de um colega de trabalho...). O pedido
mais comum, revelou um responsável
da empresa ao jornal Financial Times,
é o pacote que predispõe uma mulher
a dar o primeiro passo no sexo. Neste
caso, o computador e o telemóvel da

78 VISÃO 23 AGOSTO 2018

visada são inundados com supostos
artigos de revistas femininas, nos quais
se louvam as virtudes de dar o primeiro
passo numa relação amorosa.
De acordo com as informações dispo-
níveis no site, a aplicação, não disponível
em Portugal, funciona de uma forma
bastante simples: o cliente recebe um link
de aparência inocente, criado pela The
Spinner, que o envia ao visado. Assim que
este abre o link, o pacote encomendado
(deixar de fumar, por exemplo) fica as-
sociado ao telefone e a partir daí começa
o “ataque”. Durante três meses, a pessoa
irá receber dez artigos diferentes, todos
com o mesmo objetivo, em 180 pop-ups,
numa técnica que se socorre do poder de
sugestão bem conhecido na psicologia.
Este pacote básico custa à volta de 25
euros e, de acordo com a própria empre-
sa, é perfeitamente legal. “Hoje, no vasto
mercado de média online, o anexo de
cookies é legal. Terceiros podem recolher
ou receber informação sobre os utiliza-
dores, com vista a fornecer conteúdo,
publicidade ou funcionalidades ou ainda
para medir e analisar o desempenho de
um determinado anúncio”, explica-se.
Desde que o serviço foi lançado, em
janeiro deste ano, mais de cinco mil
pessoas, de acordo com o Financial
Times, já pagaram para influenciar al-
guém de quem gostavam, ou não. “Há
linhas que não cruzamos, se nos senti-
mos desconfortáveis”, assegurou Elliot
Shefler, responsável pelo marketing da
empresa, que dá como exemplo “ques-
tões altamente sexuais” (o detalhe des-
tas propostas fica a cargo de cada um).
“É uma ferramenta poderosa”, admite
o responsável.
UM EMPURRÃOZINHO
É esta capacidade de influenciar, em-
bora a uma escala mais vasta, visando
toda a sociedade, que está na base do
trabalho de Richard Thaler, Nobel da
O PEDIDO MAIS COMUM
É O PACOTE QUE VISA
INFLUENCIAR UMA
MULHER A DAR O
PRIMEIRO PASSO PARA
UMA RELAÇÃO SEXUAL
À caça de dados
As análises de big data que
põem em causa a democracia
Acedendo, sem permissão,
a dados pessoais de mais
de 50 milhões de pessoas
utilizadoras do Facebook, a
consultora britânica Cambridge
Analytica enviou publicidade
personalizada que influenciou
o voto a favor de Donald
Trump. A estratégia passa
essencialmente pelo fabrico
de notícias falsas e terá sido
usada também na campanha
pró--Brexit e, suspeita-se, nas
eleições indianas. A fuga de
informações pessoais poderá
ter chegado a entidades russas,
com interesse em condicionar
o resultado das eleições
norte-americanas de 2016.
Depois de uma série de notícias
reveladoras, a empresa acabou
por abrir falência, atolada em
processos judiciais. Quanto
ao Facebook, fez o mea culpa,
pela boca do seu fundador,
Mark Zuckerberg, mas tarde
demais. Desde 2015 que os
responsáveis da rede social
sabiam da fuga, mas nada
fizeram para a travar.
Aliás, um relatório recente
da Universidade de Oxford,
no Reino Unido, identificou
iniciativas de “manipulação do
debate público”, para influenciar
eleições e políticas em 48
países, nos últimos oito anos.
Difusão de notícias falsas e
contratação de grupos para
escreverem nas caixas de
comentários são os esquemas
mais usados. E as redes sociais
são o palco privilegiado para
estas manobras que atentam
contra a democracia.
Economia em 2017. O economista social
criou o conceito de nudge, empurrão-
zinho, que parte da ideia de que é pos-
sível influenciar o comportamento das
pessoas, de forma positiva, através de
medidas simples. Um exemplo clássico
é o sistema de doação de órgãos que
vigora em Portugal e que tem vindo a
ser adotado noutros países europeus.
O facto de todos os portugueses serem,
à partida, dadores de órgãos – para não
o serem é necessário deixarem esta
vontade expressa – resulta numa boa
taxa de doação. Noutro exemplo mais
prático, o Aeroporto de Amesterdão
pôs o desenho de uma mosca nos uri-
nóis, para levar os utilizadores a fazer
pontaria. Com isto conseguiu-se uma
poupança na ordem dos 80% em de-
tergentes.
Inspirado nesta teoria, Diogo Gonçal-
ves, psicólogo e especialista em econo-
mia comportamental, criou a empresa
Nudge Portugal que, neste momento,
trabalha numa campanha com a qual se
pretende aumentar o consumo de fruta
e legumes, numa determinada cadeia
de hipermercados. Sem poder revelar
muitos pormenores, o empreendedor
conta que a estratégia passará pela alte-
ração dos carrinhos de compras. A ideia
desta startup é de que a sua utilização
seja pró-social. “Não me imaginaria a
participar numa campanha para aumen-
tar a venda de doces a crianças”, refere
o responsável.
Porém, pode não ser sempre assim.
Aliás, o especialista está a organizar
uma conferência em Lisboa, envolven-
do decisores políticos e organizações
internacionais, na qual se discutirá
precisamente os riscos e as poten-
cialidades das aplicações de nudging.
“É preciso promover a discussão pú-
blica acerca da utilização de aplicações
como The Spinner, que promovem in-
fluência direcionada e não declarada.
Hoje em dia, o espaço digital permite
que as empresas saibam mais sobre as
pessoas do que elas próprias. Faz falta
avaliar a moralidade dos mercados. As
políticas públicas têm sido dominadas
pelos economistas. Precisamos de ou-
vir outros cientistas sociais, como os
neurocientistas”, acrescenta. Depois
deste debate, defende Diogo Gonçalves,
“deve haver regulação neste setor de
atividade”. Afinal, uma questão deverá
estar sempre em cima da mesa: até que
ponto queremos que nos entrem pela
vida adentro? ssa@visao.pt
23 AGOSTO 2018 VISÃO 79
 DIREITOS
Férias estragadas?
Não, obrigado
É hora de partir? Previna-se. A sua viagem está
a ser um pesadelo? Saiba como reclamar.
Já regressou e correu tudo mal? Faça valer
os seus direitos. Porque o azar não bate
só à porta dos outros
A
RUI ANTUNES
pós quase um ano sem des-
ligar do trabalho, entramos
em contagem decrescente, a
pensar naqueles dias em que
afugentamos a rotina e nos
dedicamos a reciclar ener-
gias. Finalmente, férias! En-
tre o que se idealiza e o que
a realidade oferece, porém, a
distância pode ser tal que os
aguardados momentos de descontração
se transformam num martírio sem fim.
Esperas intermináveis em aeroportos,
casas alugadas que nem sequer existem,
serviços contratados que, afinal, não são
exatamente como se anunciavam...
Sofia Antunes que o diga. Já estava em
Portugal, após uma viagem a Itália com o
namorado, em julho, quando foi notifi-
cada para pagar 139 euros à empresa de
aluguer de automóveis a que havia recor-
rido. “Quarenta euros por danos numa
jante e o resto em taxas”, esclarece, sobre
a nota de cobrança. “Deixámos o carro
muito cedo no aeroporto, antes do voo
de regresso, no local que nos indicaram.
E pusemos a chave no depósito para o
efeito. Como ninguém ia verificar o veí-
culo, tirámos fotografias para termos a
prova de que não havia danos, mas agora
alegam que essas imagens não servem.”
O que é válido é o que refere o contrato de
aluguer, “em letras pequenas”: durante o
período em que o automóvel permanece
no estacionamento, até à abertura das
oficinas da empresa, qualquer eventual
80 VISÃO 23 AGOSTO 2018
dano é responsabilidade do cliente. Li-
ção a reter: “Nunca mais alugo um carro
que não seja verificado na entrega. Agora,
vamos ter de pagar e acabou-se, porque
deixámos uma caução de 800 euros no
cartão de crédito.”
Pode não ser bem assim. No entender
GETTYIMAGES
de Mário Frota, presidente da Associação
Portuguesa do Direito ao Consumo, as
empresas de aluguer não podem descar-
tar-se da responsabilidade de verificação
do carro no momento da entrega. “Eles
é que têm de estar presentes”, sustenta.
Se optar por reclamar, Sofia deve re-
correr ao Centro Europeu do Consumi-
dor, indica Margarida Cunha, jurista da
DECO. Com delegação em Lisboa, este
organismo tenta uma resolução amigá-
vel ou encaminha o consumidor para a
via judicial, o procedimento para ações
“CALCULA-SE QUE
85% DOS PASSAGEIROS
LESADOS, COM DIREITO
A INDEMNIZAÇÃO,
NÃO A RECEBEM”,
DIZ MÁRIO FROTA
de pequeno montante (até cinco mil eu-
ros). Todos os litígios relacionados com
consumo, dentro do Espaço Económi-
co Europeu, podem ser ali contestados,
de forma gratuita. O dinheiro cobrado,
por supostos danos, após a entrega dos
veículos, está entre as principais queixas
registadas. No topo, surgem as reclama-
ções relacionadas com voos.
“TURBULÊNCIA” E BURLAS
É uma realidade a crescer a cada ano, a
ponto de já existirem empresas, como a
AirHelp, dedicadas a substituírem-se aos
passageiros para reclamarem, em nome
deles, as indemnizações a que têm direito.
Em troca, arrecadam uma percentagem
do valor que conseguirem. Apenas cir-
cunstâncias extraordinárias, como con-
dições meteorológicas adversas ou falhas
de segurança, ilibam as transportadoras.
“Calcula-se que 85% dos passageiros le-
sados, com direito a indemnização, não
a recebem. Por inércia ou ignorância mas
também porque as companhias aéreas se

recusam a atender aos direitos dos clien-
tes”, nota Mário Frota.
A Autoridade Nacional de Aviação Civil
(ANAC) recebeu quase sete mil queixas de
passageiros no segundo semestre de 2017,
contra menos de cinco mil em período
homólogo do ano anterior. À DECO, no
primeiro semestre de 2018, chegaram
1 244 reclamações por cancelamentos,
atrasos, overbooking e danos ou extravio
de bagagem. “Nota-se um crescimento
destes casos, assim como estão a aumentar
as burlas nas reservas de alojamento à dis-
tância”, alerta a jurista Margarida Cunha.
Gonçalo Ferreira viveu esse pesadelo
em setembro do ano passado. Ao pes-
quisar no OLX, viu um anúncio de uma
casa de férias para alugar em Portimão,
com “um preço bem razoável” (€350
por semana), e estabeleceu contacto por
email, depois de um telefonema para o
número indicado ter ido parar à caixa de
correio. A interlocutora pediu-lhe para
comunicarem por correio eletrónico,
“para não acordar uma criança peque-
na”, e enviou-lhe uma fatura do gás,
conforme solicitado. Gonçalo ficou mais
seguro e aceitou pagar 150 euros de sinal,
por transferência bancária, contra as re-
comendações que lera no próprio OLX.
Ao chegar à morada, com a mulher e as
duas filhas, de 7 e 3 anos, o edifício que
visualizara nas imagens do anúncio não
existia. “Fui enganado, erro meu. Nunca
mais pago adiantado. Só depois me aper-
cebi de que a fatura do gás tinha números
rasurados”, lamenta.
A de Gonçalo é uma das 354 denún-
cias que a PSP recebeu em 2017. No ano
anterior tinham sido 309 e, até 31 de ju-
lho, 2018 vai com 282, segundo dados do
Departamento de Investigação Criminal
desta força de segurança. Apesar de seguir
o rasto a 68 suspeitos, a PSP reconhece ser
“muito difícil investigar” este tipo de bur-
las. “Muitas vezes só as detetamos meses
depois da transferência do dinheiro, pois
os burlados só se apercebem ao chegar ao
local”, admite um agente do Núcleo de
Análise Criminal.
GUIA PRÁTICO
PARA SALVAGUARDAR
OS DIAS DE DESCANSO
As principais sugestões para se
precaver e os seus direitos quando
os planos falham
Alojamento
214
Processos contraordenacionais
instaurados pela ASAE em 2018
354
Denúncias de burla recebidas
pela PSP em 2017
Minimize os riscos:
1) Solicite faturas de eletricidade,
gás ou água para comprovar a
morada e os dados de identificação
do proprietário
2) Peça a uma pessoa de confiança
para tentar reservar a mesma
casa em datas coincidentes
3) Certifique-se de que o nome
associado ao NIB é o mesmo
do proprietário
4) Consulte o Google Maps para
verificar se as imagens do exterior
no anúncio correspondem
às da morada indicada
5) Evite pagamentos para entidades
bancárias (pagamento de serviços)
7) Desconfie de anúncios em redes
sociais e de preços muito
reduzidos
EM CASO DE FURTO NO INTERIOR
DO QUARTO, OS HOTÉIS NÃO PODEM
RECUSAR RESPONSABILIDADES,
MESMO QUE COLOQUEM AVISOS
A DIZER O CONTRÁRIO
23 AGOSTO 2018 VISÃO 81
 DIREITOS

Pedir um recibo, como fez Gonçalo

Ferreira, é uma das medidas de preven-
ção. Outras passam por confirmar as
coordenadas GPS da casa, agendar um
encontro pessoal com o proprietário,
telefonar a estabelecimentos comerciais
nas imediações ou verificar se as fotogra-
fias são usadas noutros anúncios (uma
pesquisa por imagens no Google pode
esclarecer). “A regra é desconfiar sempre
da galinha gorda por pouco dinheiro”,
atira Mário Frota.
No Departamento de Investigação
Criminal da PSP, ficou célebre o caso de
uma vivenda em Armação de Pera, com
cinco quartos e piscina, pela qual um
burlão pedia 700 euros por quinzena e,
afinal, o que existia na morada era um
campo baldio. Mesmo em plataformas

online conhecidas, todo o cuidado é
pouco, avisam as autoridades. O OLX,
por exemplo, não se responsabiliza em
caso de fraude, uma vez que o conceito é
pôr em contacto anunciantes e potenciais
interessados, e “não é possível reservar
ou alugar qualquer tipo de alojamento”,
justifica o diretor para Portugal, Gian-
carlo Bonsel. No Booking, estas situações
“são avaliadas individualmente”, o que
abre espaço a todas as possibilidades.
E a Airbnb não respondeu até ao fecho
desta edição.
Em viagens organizadas através de
agências, o consumidor tem mais ga-
rantias na hora de reclamar, e é possível
recorrer a uma comissão arbitral do Tu-
rismo de Portugal, cuja decisão tem ca-
ráter vinculativo. O mesmo acontece com
o provedor da Associação Portuguesa das
Agências de Viagens e Turismo, no caso
das agências ali filiadas. Vera Jardim, o an-
tigo dirigente do PS que exerce o cargo há
mais de 15 anos, dá como exemplos mais
banais os atrasos e cancelamentos dos
voos e a não conformidade das instalações
hoteleiras, mas acrescenta os furacões ou
Agências
de viagens
90% a 100%
A percentagem de reembolso
a que tem direito se um furacão
já esperado afetar toda a viagem
Em viagens organizadas, com
transporte e alojamento, exija um
contrato assinado, com todas as
condições acordadas. Se qualquer
serviço é mencionado num catálogo,
tem de ser disponibilizado
Reclame de imediato com a
agência, assim que detetar um
incumprimento durante a viagem
Saúde
Se o destino for dentro da União Eu-
ropeia, deve solicitar com a maior
antecedência possível o Cartão Eu-
ropeu de Seguro de Doença, junto
da Segurança Social, que dá acesso
a todos os cuidados de saúde públi-
ca nos diferentes países.
Se for para mais longe,
aconselha-se a contratualizar
um seguro que cubra despesas
médicas
Marque a Consulta do Viajante, no
Instituto de Medicina Tropical, para
se informar sobre os cuidados a ter
no destino e se é necessário tomar
alguma vacina

a mudança de local de partida e chegada,
uma novidade deste ano entre os aero-
portos de Lisboa e de Beja. No primeiro
caso, há lugar a indemnização sempre
que a agência de viagem tenha conheci-
mento antecipado da probabilidade de
ocorrência daquele fenómeno no destino
de férias; no segundo, concede 2,5% a 3%
do pagamento total pelo “incómodo” de
uma viagem inesperada de autocarro para
o Aeroporto Internacional de Beja. “Tudo
o que acontece que não seja a contento do
cliente é passível de ser reclamado”, rema-
ta. Palavras para ter em mente quando as
coisas correm mal. rantunes@visao.pt
Aluguer de carros
Não se esqueça:
Tire fotografias ao receber
20%
De todas as queixas
o veículo e no momento da
entrega deste
Exija cópia do contrato
relacionadas com transportes que chegam cumprido, de modo a
ao Centro Europeu do Consumidor são precaver-se de cobranças
relativas ao aluguer de carros posteriores
TENHA EM ATENÇÃO QUE OS PREÇOS DE ALUGUER MUITO REDUZIDOS
INCLUEM SEGUROS BÁSICOS, QUE PODEM DEIXÁ-LO DESPROTEGIDO

82 VISÃO 23 AGOSTO 2018


Voos
6 956
Reclamações feitas à ANAC
no 2º semestre de 2017
Atraso
Se for superior a cinco horas, tem
direito ao reembolso do bilhete
Entre duas e cinco horas, consoante
a distância do voo, a companhia
deve disponibilizar comunicações,
refeições, transporte e alojamento
Se a chegada ocorrer mais de três
horas após o previsto, há lugar a
indemnização de €250 a €600 salvo
motivos de ordem maior (segurança,
mau tempo)
Cancelamento
Salvo os mesmos motivos extraordiná-
rios, tem direito a indemnização
(€250 a €600) se tiver sido notificado
menos de sete dias antes da viagem,
e se a companhia não tiver disponibili-
zado alternativa com partida até uma
hora antes da inicialmente definida
e chegada até duas horas depois (ou
partida duas horas antes do previsto
e chegada até quatro horas depois no
caso de receber a notificação entre
sete e 14 dias antes da viagem)
Atraso, perda ou danos na bagagem
Indemnização até perto de €1 300
EM CASO DE GREVE, OS CLIENTES SÃO
REEMBOLSADOS, MAS NÃO TEM HAVIDO
LUGAR A INDEMNIZAÇÃO. NO ENTANTO,
JÁ HÁ ENTENDIMENTOS DIFERENTES
EM TRIBUNAIS EUROPEUS
Onde reclamar: Direção-Geral do Consumidor,
Centro Europeu do Consumidor, Centros de Arbitragem
de Conflitos de Consumo, Julgados de Paz, ANAC
(Autoridade Nacional da Aviação Civil), ASAE, provedor
da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e
Turismo (APAVT), Turismo de Portugal, Polícia
Fontes: PSP, DECO, Associação Portuguesa de
Direito ao Consumo, Direção-Geral do Consumidor,
Centro Europeu do Consumidor, Instituto de
Medicina Tropical
OPINIÃO
O Presidente
da gravata azul
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S
E
m período ainda estival,
permita-se-me que este es-
ao ombro. Tantas vezes, sem estar
rodeado de segurança, no meio de
paço tenha hoje um registo gente comum, admirada de o encon-
diferente. Para dizer que se trar assim e poder falar-lhe como a
Marcelo Rebelo de Sousa não outro qualquer cidadão. Uma bonita
tivesse muito melhores e mais imagem de democracia evoluída e de
fortes motivos para vir a ser quem não precisa de se sacralizar,
recordado, julgo que poderia nem formalmente, para ser respeita-
ficar conhecido como “o Presidente do e admirado.
da gravata azul”. Ora, tenho a certeza de que se dei-
Ocorreu-me a ideia ao vê-lo na xar o casaco, o colarinho apertado, a
televisão, à torreira do sol de agosto, sacramental gravata azul, pelo menos
com a frequência de sempre e como neste período estival, pelo menos à
sempre falando mais ou menos sobre torreira do sol de agosto, ficará mais
tudo. Inclusive sobre aquilo de que já cómodo e ninguém deixará de o
falou incontáveis vezes, mas jornalis- apreciar como aprecia – as pessoas
tas, ou candidatos a jornalistas, pela até o sentirão ainda mais próximo,
enésima vez lhe perguntam. À tor- por andar vestido como elas, como
reira do sol de agosto, a visitar áreas toda a gente.
devastadas pelo fogo, numa feira de Admito, porém, que a ter cogno-
qualquer coisa ou numa me, como os nossos
romaria, mas invariavel- reis, do “conquista-
mente de casaco, camisa Se deixar dor” ao “desaven-
branca e gravata. Azul. o casaco, turado”, também
Como já nos tempos o colarinho lhe ficaria bem, por
dos comentários televi- exemplo e por razões
sivos, desde que entra- apertado, óbvias, o de Presi-
ram na moda e Marcelo a sacramental dente “sem sono”
logo as começou a usar: gravata azul, – se “homens sem
gravatas “azul cueca” – a sono” não tivessem
que no seu caso cha-
Marcelo ficará sido chamados os
marei “azul celeste”… E mais cómodo capitães de Abril
mais cueca menos cue- e não será menos na fase heroica da
ca, perdão, mais celeste
menos celeste, o nosso
respeitado revolução; ou, por
similares óbvias mas
Presidente não deixa e admirado… ampliadas razões, o
a sua gravata azul, por de Presidente “todas
esse País fora, atento aos problemas e as estações e todo o terreno”.
perto das pessoas. Cá por mim, gosto mais de “Presi-
E isto é que é mais importante, dente da gravata azul”. Embora talvez
reconheço e sublinho. O que não me preferisse que mudasse de hábi-
impede de perguntar que misteriosa to, que no seu caso, aliás, não faz o
razão levará Marcelo, felizmente tão monge… Seja como for, e isto é que
informal e imaginativo, a ser tão for- é o mais importante, repito, Marcelo
mal e repetitivo nesse domínio. Quase está a ter um excelente desempenho
parecendo tratar-se de uma espécie e a mostrar todas as virtualidades do
de farda presidencial – e, ainda por sistema semipresidencial. Mormente
cima, a de verão igual à de inverno, quando usa o veto político em relação
sempre casaco e colarinho apertado… a diplomas que fundamentadamen-
A sorte de Marcelo é que quando te lhe levantam dúvidas ou com os
vai tomar os seus diletos banhos de quais não está de acordo, obrigando o
mar, não vai de Presidente, vai só de Parlamento a reanalisá-los com mais
Marcelo. E no Guincho, em Cascais atenção, ou sob um novo ângulo, ou
ou em qualquer parte do mundo, ele tendo em conta pertinentes questões
aí está de calções, tronco nu, toalha jurídicas. jcvasconcelos@jornaldeletras.pt
 VAGA R
FENÓMENO

“Um intelectual
é alguém que
Yuval
Noah Harari
descobriu um
tema mais
interessante
do que o sexo”
Aldous Huxley
Escritor e filósofo
(1894-1963)

O profeta do século XXI

OS FANTASMAS DO PRESENTE E DO FUTURO
TECNOLÓGICO SÃO A MATÉRIA-PRIMA DESTE
“PROFETA” QUE PRECONIZOU O FIM
DO HOMO SAPIENS NO PRAZO DE UM SÉCULO.
O NOVO LIVRO, 21 LIÇÕES PARA O SÉCULO XXI,
TEM LANÇAMENTO MUNDIAL A 30 DE AGOSTO,
E FALA DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, CLIMA,
FAKE NEWS, NACIONALISMOS, PRIVACIDADE…
E MEDITAÇÃO
S Í LV I A S O U TO C U N H A

84 VISÃO 23 AGOSTO 2018


U
FENÓMENO

Uma rock star intelectual, é um rótulo potencialidades de eventuais “novos espaço para a privacidade, uma comu-
frequentemente aplicado a Yuval Noah Frankenstein”, trazidas pela bioenge- nidade cujos elementos médicos são
Harari, o filósofo israelita que cruzou os nharia, pela engenharia ciborgue (seres manipulados por empresas... Harari
muros demarcados da academia e, hoje, que conjugam componentes orgânicos alvitra um cenário capaz de subverter a
se faz ouvir na praça pública, transfigu- e inorgânicos, “como um humano com presente “igualdade básica entre todos
rado em guru recomendado por líderes mãos biónicas”), pela criação de seres os humanos”, no qual as classes sociais
como Barack Obama, Bill Gates e Mark inorgânicos (programas de computador, ricas poderiam ser “melhoradas”, trans-
Zuckerberg (o trio transformou o seu vírus informáticos). Uma visão que re- formadas em superciborgues, através de
livro de estreia, Sapiens - História Breve clamava estar já a acontecer: “De certa progressos tecnológicos e médicos aos
da Humanidade, originalmente publi- forma, quase todos nós somos biónicos quais os mais pobres não têm acesso…
cado em 2011, numa bíblia de cabeceira). nos dias que correm, uma vez que os A esta possibilidade, que há uma década
Os seus dois livros editados até à data nossos sentidos e funções naturais são muitos considerariam um guião de série
(ver caixa “Grandes números”) totalizam complementados por aparelhos como B ou uma aspiração inconfessável, Yuval
13,5 milhões de exemplares vendidos em óculos, pacemakers, próteses e mesmo Noah Harari chama uma possível “sin-
todo o mundo, e demonstram, exem- computadores e telemóveis.” gularidade”, ou seja, um ponto em que
plarmente, o impacto deste pensador Uns parágrafos à frente no ensaio, todas as leis conhecidas da Natureza não
no zeitgeist da época: fulminante como as questões já levantadas em Sapiens existem – como o Big Bang.
um meteoro. Porém, as únicas espécies ecoam nas manchetes recentes: um Mas é essa outra frase, depurada em
ameaçadas de extinção por ele aparen- mundo digitalizado que deixa pouco Sapiens, que alimenta, ainda hoje, pa-
tam ser os volumes histórico-filosóficos
bem-comportados, que sussurram bai-
xinho as suas verdades.
Harari tem um posicionamento di-
ferente: ataca as grandes questões com
convicção e confiança, usa uma prosa
clara e direta, como a de um pregador,
não foge da provocação. O historiador
manobra com agilidade toda uma massa
de informação oriunda de disciplinas
diferentes, e apresenta uma síntese am-
biciosa. Uma tapeçaria liberta de nós,
coerente, acessível, que oferece nada
menos do que uma visão total da Huma-
nidade – do seu passado, do seu futuro,
do seu presente, e até do seu potencial
desaparecimento. “Num mundo peja-
do de informação irrelevante, a lucidez
dá-nos poder”, afirma logo às primeiras
linhas do novo livro, 21 Lições para o
Século XXI (edição Elsinore). “Como
historiador, não consigo dar alimento
e roupa às massas – mas posso tentar
oferecer-lhes alguma clareza, contri-
buindo assim para pôr o mundo em pé Caminhos incertos O Homo sapiens rico transformar-se-á num superciborgue?
de igualdade. Se isto permitir que mais
algumas pessoas, por poucas que sejam, rangonas: “Não é claro que a bioenge-
participem no debate sobre o futuro da nharia possa, realmente, ressuscitar os
nossa espécie, terei cumprido a minha neandertais; mas pode, certamente, pôr
missão.” fim ao Homo sapiens. Brincar com os

BRAVO NOVO E VELHO MUNDO

Os leitores renderam-se como mari-
posas a este holofote por ele apontado,
varrendo tanto o passado como o futuro
da Humanidade. Recordem-se as razões:
Em Sapiens, o autor percorreu cerca de
70 mil anos da História humana iniciada
com a Revolução Cognitiva, passando
pelas Revoluções Agrícola e Industrial,
até chegar à atualidade tecnológica.
Aqui, ele abordava, por exemplo, as
“COMO HISTORIADOR, nossos genes não vai, necessariamente,
matar-nos. No entanto, poderíamos
NÃO CONSIGO DAR alterar o Homo sapiens de tal forma,
que deixaríamos de sê-lo.” E, nesse caso,
ALIMENTO E ROUPA como é o futuro? Harari arregaçou as
ÀS MASSAS, MAS POSSO mangas e respondeu com um segundo
best-seller, Homo Deus - História Breve
TENTAR OFERECER-LHES do Amanhã (2015), no qual discorre so-
bre as próximas etapas da evolução hu-
ALGUMA CLAREZA”, mana. Aquela que emerge de um mundo
onde os deuses foram substituídos pelo
DEFENDE HARARI Homem, em que o ADN pode ser desco-

86 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 Grandes números
Yuval Noah Harari é um fenómeno de vendas,
raro no género do ensaio: à data, soma 13,5 milhões
de exemplares vendidos no mundo inteiro,
um valor que continua em expansão

Sapiens: Homo Deus:

História Breve da Humanidade
O primeiro livro
do pensador israelita
examinava o passado
da espécie humana, uma
história com 70 mil anos
em que “um primata
insignificante se tornou
dono e senhor do planeta
Terra”. Está editado em
cerca de 49 idiomas
e em mais de 60 países.
Em Portugal, Sapiens
(Elsinore, 512 págs.,
€22,99) vai na sua 13ª
edição, e contabiliza cerca
de 30 mil exemplares
vendidos.
traduzida em 34 idiomas e publicada em mais de 50 países.
Mundo
História Breve
do Amanhã
O segundo livro
do autor explorava o futuro
a longo prazo da vida,
“ponderando de que modo
os seres humanos podem
acabar por se tornar
21 Lições para o Século XXI deuses e qual poderá
ser o destino último
Com lançamento mundial agendado para 30 de agosto, da inteligência
o novo livro de Yuval Noah Harari ambiciona “abordar e da consciência”.
especificamente o aqui e agora”, e centrar a análise na Homo Deus (Elsinore,
“atualidade e no futuro imediato das sociedades”. Temas 480 págs., €22,99)
contemporâneos como o Brexit, a imigração e os apoios está editado em
sociais juntam-se aos temas familiares dos avanços 43 idiomas, em mais
tecnológicos e da Inteligência Artificial, em 21 lições... de 60 países. No nosso
(Elsinore, 398 págs., €21,98). A primeira edição será país, vai na 9ª edição.
Mundo

9 milhões Tiragem
internacional
4,5 milhões
prevista

Portugal 30 mil
850 mil exemplares Portugal 25 mil

dificado à distância de um tubo enviado
pelo correio, em que os processos de
decisão – dos mais simples aos mais
complicados – passarão para as gran-
des empresas tecnológicas, esvaziando
a Humanidade da sua autonomia e in-
tegrando-a numa “imensa rede global”.
SOBERANOS TECNOLÓGICOS
Um mundo em que um gigante tec-
nológico, quando questionado sobre
uma dúvida amorosa, poderá respon-
der nos termos referidos por Yuval em
Homo Deus: “E a Google dirá: ‘Bem,
conheço-te desde que nasceste. Li to-
dos os teus emails, gravei todas as tuas
chamadas, sei quais são os teus filmes
preferidos, conheço o teu ADN e todo
o teu historial cardíaco. Tenho dados
precisos sobre todos os teus encontros
e, se quiseres, posso mostrar-te gráficos,
ao segundo, do teu ritmo cardíaco, da
tua tensão arterial e dos teus níveis de
açúcar de cada vez que saíste com o João
ou o Paulo.” O Homem é descodificado,
mas as sociedades também se transfor-
mam profundamente na visão de Homo
Deus: Harari postula que “os costumes
liberais como as eleições democráticas
tornar-se-ão obsoletos, porque a Google
será capaz de expor as minhas opiniões
políticas melhor do que eu”.
“Assim que a Google, o Facebook e
outros algoritmos se transformarem em
oráculos omniscientes, é bem possível
que depois disso evoluam para agentes
e, por fim, se transformem em sobera-
nos.” É um cenário que reconhecemos
da cultura popular. Este futuro abordado
no segundo ensaio de Yuval Noah Ha-
rari revisita o Big Brother inventado por
George Orwell (1903-1950) no romance
distópico 1984 (originalmente publicado
em 1949). E o autor não se coibiu de re-
correr ao passado europeu para melhor
caracterizar o papão presente: “Se não
tivermos cuidado, podemos acabar num
Estado policial à maneira de Orwell que

23 AGOSTO 2018 VISÃO 87

 FENÓMENO
vigia constantemente e controla não
apenas as nossas ações, mas até mesmo
tudo aquilo que acontece nos nossos
corpos e o que está dentro das nossas
cabeças. Basta pensar no que Estaline
faria com sensores biométricos omni-
presentes – e naquilo que Putin ainda
poderá fazer.”
Porém, nas influências deste pen-
sador israelita outro escritor tem mais
peso: Aldous Huxley (1894-1963), in-
ventor de uma distopia futurista cujos
bebés são moldados geneticamente no
clássico Admirável Mundo Novo (1932),
e a que Yuval chamou “o livro mais pro-
fético do século XX”. As suas próprias
profecias futuristas incluem “castas
biológicas” e elites de super-humanos,
massas desprezadas, seitas dedicadas ao
tecno-humanismo, populismos basea-
dos em governantes ignorantes, uma re-
ligião/ciência organizada em torno dos
dados. “Segundo o Dataísmo, a Quinta
Sinfonia de Beethoven, uma bolha de
mercado bolsista e o vírus da gripe são
apenas três padrões de fluxos de dados
que podem ser analisados com recur-
so às mesmas ferramentas e conceitos
básicos”, escreveu.
REENCONTROS E CONFISSÕES
Para os leitores mais familiarizados
com o universo do intelectual israelita,
21 Lições para o Século XXI (ver cai-
xa “Estas lições não terminam com
respostas simples”) proporciona um
reencontro com velhos desafios e fan-
tasmas, à maneira de um best of. Ha-
rari regressa ao controlo tecnológico,
ao Dataísmo, à bifurcação biológica
da espécie humana, ao esvaziamento
do poder económico e político das so-
ciedades face à escala tecnológica, aos
futuros da espécie submetida à bioen-
genharia. “Viveremos na matriz, ou no
Truman Show [o filme de 1998, com
Jim Carrey, sobre um ator involuntário
numa sitcom que acompanha toda a
sua vida]. Feitas as contas, trata-se de
uma simples questão empírica: se os
algoritmos realmente compreenderem
o que se passa connosco melhor do que
nós próprios, a autoridade passa para
as mãos deles”, refere. A estrutura do
livro, 21 temas arrumados em cinco
partes (O Desafio Tecnológico, O De-
safio Político, Desespero e Esperança,
Verdade, Resiliência), reforça a sensação
de familiaridade e conforto, à maneira
de um glossário “quitado”, que realça o
tal sentido de missão pró-Humanidade.
88 VISÃO 23 AGOSTO 2018
“Estas lições
não terminam
com respostas
simples”
21 Lições para o Século XXI , o terceiro
livro de Yuval Noah Harari, após os
colossos Sapiens: História Breve da
Humanidade e Homo Deus: História Breve
do Amanhã, tem data de lançamento
mundial marcada para 30 de agosto.
Nele, o investigador israelita contempla
o momento presente e o futuro imediato,
sem recorrer à narrativa histórica. Prefere,
antes, um modelo de lições arrumadas
em cinco partes, versando conceitos
familiares ao seu corpo de trabalho
(as ameaças da bioengenharia, a “religião”
do Dataísmo) mas também temas atuais
(os nacionalismos, os desafios ecológicos,
o Brexit, as fake news).
O DESAFIO POLÍTICO
Eis algumas lições importantes:
Nacionalismo
“A onda nacionalista que se tem
O DESAFIO TECNOLÓGICO espalhado pelo mundo não pode reverter
“Quando fores grande, o calendário para 1939 ou 1914.
talvez não tenhas uma profissão” A tecnologia mudou tudo ao criar um
conjunto de ameaças existenciais que
“Nenhum emprego humano remanescente nenhum país consegue resolver sozinho.
Um inimigo comum é o melhor catalisador
estará completamente a salvo da ameaça
da automatização futura, porque a para a criação de uma identidade comum,
aprendizagem automática e a robótica e a Humanidade, agora, tem pelo menos
três inimigos desses: guerra nuclear,
vão continuar a melhorar. Um caixeiro de
supermercado com 40 anos que, através alterações climáticas e disrupção
tecnológica. Se, apesar destas ameaças
de um esforço sobre-humano, consiga
reinventar-se como piloto de drones partilhadas, os seres humanos optarem
por dar mais valor às lealdades nacionais
talvez tenha de se reinventar novamente
dez anos mais tarde, pois é provável que de cada um do que a tudo o resto,
as consequências podem ser muito
a pilotagem de drones também se torne
piores do que foram em 1914 e 1939.”
automatizada. Esta volatilidade dificultará
igualmente a formação de sindicatos e
a garantia de direitos laborais. Hoje, já
DESESPERO E ESPERANÇA
temos muitos empregos em economias
avançadas que implicam trabalho Terrorismo, não entrar em pânico
temporário sem proteção laboral, trabalho
por conta própria e trabalhos esporádicos. “Embora o terrorismo do presente seja
Como sindicalizar uma profissão que, sobretudo teatro, o terrorismo nuclear,
como um cogumelo, surge do nada o ciberterrorismo e o bioterrorismo do
e desaparece ao fim de uma década?” futuro podem representar uma ameaça

muito mais séria e que exigirá reações
muito mais drásticas por parte dos
governos. Precisamente por causa disso,
devemos ter muito cuidado em distinguir
esses hipotéticos cenários futuros dos
ataques terroristas que testemunhámos
até aqui. Recear que os terroristas, um
dia, consigam obter uma bomba atómica
e destruir Nova Iorque ou Londres não
justifica uma reação histérica a um
terrorista que mata uma dezena
de transeuntes com uma metralhadora
ou os atropela com um camião.” “QUANDO MIL PESSOAS
ACREDITAM NUMA
VERDADE
“Certas notícias falsas HISTÓRIA INVENTADA
duram para sempre” DURANTE UM MÊS,
“Sei que muitas pessoas podem ficar CHAMAMOS-LHE FAKE
incomodadas com o facto de eu pôr a
religião e as notícias falsas no mesmo NEWS. QUANDO MIL
plano, mas é exatamente aí que quero
chegar. Quando mil pessoas acreditam
MILHÕES DE PESSOAS
numa história inventada durante um
mês, chamamos-lhe fake news. Quando
ACREDITAM NISSO HÁ
mil milhões de pessoas acreditam nisso
há mil anos, dizemos que isso é uma
MIL ANOS, DIZEMOS
religião e é-nos dito que não devemos QUE É UMA RELIGIÃO”
Grandes
questões
Yurval Harari
saltou das
páginas para
os ecrãs
e palcos das TED
Talks, onde as
suas ideias têm
chegado a cada
vez mais pessoas
chamar-lhe ‘notícias falsas’ para não
ferir os sentimentos dos crentes (ou
despertar a sua ira). Note-se, porém, que
não estou a negar a eficácia ou a potencial
benignidade da religião. Precisamente
o oposto. Para o melhor e para o pior,
a ficção conta-se entre as ferramentas
mais eficazes do estojo de ferramentas
da Humanidade.”
RESILIÊNCIA
Crenças modernas
“A história liberal diz-me que procure
a liberdade para me exprimir e para
me realizar. Mas tanto o ‘eu’ como a
liberdade são quimeras mitológicas
saídas de contos de fadas dos tempos
antigos. O liberalismo tem uma noção
particularmente confusa de ‘livre-arbítrio’.
Os seres humanos, evidentemente, têm
vontade, têm desejos e, por vezes, são
livres de cumprir esses desejos. Se por
‘livre-arbítrio’ entendermos a liberdade de
fazer o que se deseja, então, sim, os seres
humanos têm livre-arbítrio. Mas se ‘livre-
arbítrio’ significar a liberdade de escolher
aquilo que se deseja, então, não, os seres
humanos não têm livre-arbítrio.”
23 AGOSTO 2018 VISÃO 89
 FENÓMENO

6 LIVROS, 6 TEORIAS
Mas o facto é que Yuval Harari ex-
plora aqui outros temas, contemporâ-
neos e omnipresentes: as fake news e
o conceito de pós-verdade, o trumpis-
O fenómeno Yuval Harari tem sido o motor,
mo, os nacionalismos, o terrorismo, a
e a face mais visível, de um renovado interesse
imigração, o Brexit, os filmes de ficção em torno dos textos que exploram a humanidade
científica, as religiões, as escolhas indi- contemporânea. Eis alguns exemplos bem-sucedidos
viduais. E, talvez por estar tão confor-
tavelmente instalado dentro do edifício
teórico que erigiu, o autor permite-se,
neste novo livro, abordar questões ali-
cerçadas nas suas experiências pessoais.

UMA CARTA FORA DO BARALHO

Israelita nascido em Haifa, em 1976,
Yuval narra assim a sua reação aos de-
safios patrióticos, ao debruçar-se sobre
os nacionalismos: “Quando era ado-
lescente em Israel, também eu fiquei
fascinado com a promessa nacionalista
de me tornar parte de algo maior do
que eu próprio. Quis acreditar que,
se desse a minha vida à nação, viveria
para sempre na nação.” A mente inqui- ANTÓNIO DAMÁSIO
sitiva, no entanto, começou a esmiuçar A ESTRANHA ORDEM
as glórias prometidas: “Alto. Se estiver DAS COISAS
morto, como é que posso ter a certeza A Humanidade
de que estes miúdos estão mesmo a re- AT U L G AWA N D E
confrontada pela
S E R M O R TA L
citar poemas em minha honra? (...) Mais, tecnologia, tema
O autor, cirurgião, partiu
aos 13 anos eu já sabia que o Universo central nas análises do
da sua experiência
tinha uns quantos milhares de milhões israelita Yuval Harari,
familiar para escrever
de anos e que, provavelmente, conti- é igualmente objeto
uma longa e premente
nuaria a existir durante outros tantos. de análise nesta obra
meditação sobre
Poderia eu esperar que Israel durasse (Temas e Debates, 384 CHIMAMANDA
como os indivíduos, e
tanto tempo? Filhos de Homo sapiens págs., €21,90), lançada NGOZI ADICHIE
a Humanidade, podem
vestidos de branco recitarão poemas em em 2017. Apontando a TODOS DEVEMOS SER
viver melhor os seus
minha honra, 200 milhões de anos de- falta de reconhecimento FEMINISTAS
últimos dias em Ser
dos sentimentos como Lançado em 2015, antes
pois? Havia qualquer coisa de estranho Mortal (Lua de Papel,
verdadeiros motores da do livro-carta Querida
naquela conversa.” A ironia não ignora 272 págs., €16,50).
exploração humana, Ijeawele – Como Educar
a vizinhança: “Se o leitor é palestinia- o neurocientista
Confrontado com um
no, não se sinta superior. É igualmente diagnóstico terminal para o Feminismo (2018),
português questiona- este pequeno ensaio
improvável que haja algum palestinia- dado ao pai, Gawande
-se, por exemplo, sobre da autora nigeriana
no daqui a 200 milhões de anos.” Mas, discorre sobre a
os efeitos negativos da criou um despertar
acrescenta, qualquer mamífero terá a relação distanciada,
investigação tecnológica social nos leitores,
mesma sorte... quase mecânica, dos
dedicada à procura uma revitalização do
O tema da perenidade da passagem médicos com os seus
da imortalidade, que movimento feminista
humana pelo mundo serve-lhe para pacientes, e explora
alteraria a relação com no debate público,
mencionar a tragédia familiar: “Em 1934, o paradoxo de uma
o próprio tecido da vida, contribuindo para a
sociedade teimosamente
a minha avó Fanny emigrou para Jerusa- ou sobre os efeitos da reflexão em torno das
empenhada na
lém com os seus pais e duas irmãs, mas eliminação do prazer, questões de género
longevidade da vida, mas
a maioria dos seus parentes ficou nas que produziriam um e de educação. Todos
desfalcada de condições
cidades de Chmielnik e Czestochowa, “universo zombificado”. Devemos Ser Feministas
e de critérios para essa
na Polónia. Alguns anos mais tarde, realidade. (Dom Quixote, 112 págs.,
apareceram os nazis e chacinaram-nos €7,50) assumia-se como
a todos, até à última criança. (...) Tanto um projeto de futuro
quanto sei, não deixaram para trás qual- civilizacional.
quer criação cultural – nem um poema,
nem um diário, nem sequer uma lista de
compras.” E há a surpreendente referên-
cia à meditação, que Harari defende po-
der amparar-nos numa “era de perplexi-

90 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 dade, quando as velhas histórias faliram
e ainda não emergiu uma nova narrativa
que as substitua”. É, diz, a amplificação
do “conselho mais antigo de todos os
tempos”: “Conhece-te a ti mesmo.”
É algo que o próprio começou a praticar
aos 24 anos, quando era estudante em
Oxford, começando com um curso de
dez dias de meditação Vipassana, ba-
seada nos ensinamentos budistas. Hoje,
dedica duas horas diárias à meditação e
faz longos retiros anuais, e abandonou
o telemóvel no ano passado.
Antes de Yuval se ter transforma-
do no “Harari” cujos ensaios criaram
um fenómeno editorial – ou seja,
venderam milhões, transformando
os livros dedicados ao pensamento
numa tendência –, ele era a antítese
de uma rock star: académico discreto,
óculos e calvície precoce, vegetaria-
no, especialista em História Militar
Medieval, professor na Universidade
STEVEN PINKER Hebraica de Jerusalém. “A história
ENLIGHTENMENT NOW: não deveria ser apenas um entrete-
THE CASE FOR REASON, nimento cultural, deveria fazer-nos
SCIENCE, HUMANISM AND pensar e preocupar-nos”, defendeu
JARED DIAMOND PROGRESS em entrevista, em 2016. Há quem lhe
ARMAS, GERMES E AÇO Nem só de Yuval Harari tenha chamado sensacionalista. Outros
Harari referiu-se a este vive a mesinha de apontam-lhe a falta de precisão nas
ensaio como “um livro cabeceira de Bill Gates,
de grandes questões
profecias grandiloquentes, quando
que recentemente se fala em acontecimentos que poderão
e grandes respostas”. pronunciou sobre este
Argumentando que ocorrer “daqui a um século ou dois”.
PETER volume, declarando-o Ou ainda a cautela com que ele ressalva
os fatores geográficos “o seu novo livro
F R A N K O PA N e político-culturais que o seu trabalho usa “especulação”,
AS ROTAS DA SEDA favorito”. Isto apesar de e que o futuro pode ser isto... ou algo
marcam indelevelmente o considerar demasiado
Diretor do Centro de as civilizações, completamente diferente. John Thor-
Investigação Bizantina, otimista no que
nomeadamente no que nhill, editor responsável pela área de
em Oxford, o académico concerne às questões
respeita à inovação inovação no Financial Times, refere,
Frankopan revê as noções da Inteligência Artificial,
tecnológica, o autor tema a que o israelita
por exemplo, que os “horizontes” de
de centro do mundo de Armas, Germes e 21 Lições para o Século XXI aparentam
consideradas no passado atribui sombras maiores.
Aço (Temas e Debates, Enlightenment ser “estranhamente limitados, apenas
recente, reposicionando 664 págs., €27,70)
Now (Viking, abordando ao de leve a Ásia e a África”
e rememorando a debruça-se sobre
importância do Oriente, 528 págs., €14,40, – os centros onde está concentrada a
os fundamentos, grande maioria de Homo sapiens, as
da sua história e das suas ainda não disponível em
razões e contextos potências que reclamam o protagonis-
conquistas, na História da tradução portuguesa)
que permitiram às mo no futuro imediato.
Humanidade. Chegado às faz uma análise do
civilizações da Europa Mas o papão algorítmico espreita
livrarias em 2018, estado da Humanidade,
e do Norte de África mais perto de casa, e é a ele que Yuval
As Rotas da Seda afastando noções de
procederem à conquista
(Relógio D’Água, 744 que a Humanidade Noah Harari dedica, com toda a clareza,
de outras.
págs., €26) oferece um vive uma distopia, as últimas linhas: “Serão os algoritmos
outro ponto de vista, que antes sublinhando as a decidir, por nós, quem somos e o que
desloca o eixo da análise conquistas humanas, deveremos saber acerca de nós mesmos.
histórica. nomeadamente em Durante mais alguns anos ou décadas,
termos de longevidade ainda teremos escolha. Se fizermos o
e condições de vida. esforço, ainda conseguimos investigar
quem realmente somos. Mas se que-
remos aproveitar esta oportunidade, o
melhor é fazê-lo já.” E o trabalho de casa
também passa por estas 21 Lições para
o Século XXI. sscunha@visao.pt

23 AGOSTO 2018 VISÃO 91

 PESSOAS
As mulheres
de Greta Gerwig
Simone de Beauvoir brincava com a irmã às
Mulherzinhas, Susan Sontag disse que não
teria sido escritora se não fosse o romance
escrito por Louisa May Alcott, em 1868, e
Nora Ephron enumerava-o sempre como
uma das suas inspirações. Ainda não
há certezas sobre quem será quem
na adaptação cinematográfica
que Greta Gerwig vai fazer do
romance, mas desconfia-se de
que será um dos filmes de 2019.
Saoirse Ronan, Emma Stone,
Florence Pugh e Timothée
Chalamet vão juntar-se a Meryl
Streep e a Laura Dern para nos
deliciarem com os detalhes das
vidas das irmãs Meg, Jo, Beth
e Amy – as quatro irmãs que
vivem com a mãe, Margaret,
em Nova Inglaterra, durante
a Guerra Civil Americana.
Espera-se que Saoirse, que se
saiu muito bem na história
de crescimento e tropeções
que é Lady Bird (2017) – a
muito elogiada estreia de
Gerwig na realização –, seja
a emblemática Jo March, a
personagem que, em pleno
século XIX, tentava desatar
os espartilhos de género, já
interpretada, com mais ou
menos vigor, por atrizes
como Winona Ryder
e Katharine Hepburn.
O argumento do filme
deverá centrar-se
na fase mais adulta das
irmãs, já depois
de saírem da casa
de família. R.M.C.
92 VISÃO 23 AGOSTO 2018
João Viana
NA CINEMATECA
DE BERLIM
A Batalha de Tabatô (2013) e Our Madness
(2018), as duas longas-metragens de
ficção do realizador português, serão
exibidas na Cinemateca de Berlim, dia
28 de agosto, com o título genérico
Cinema Pós-Colonial. É uma forma de
apresentar João Viana como artista
convidado do DAAD 2018, programa
que recebe criadores na capital alemã,
concedendo-lhe uma bolsa de €16 300.
O tempo deverá ser usado para escrever
o argumento do seu próximo projeto,
Kwanza (título provisório).
Nos filmes anteriores, ele viajou até à
África Lusófona, primeiro à Guiné-Bissau,
depois a Moçambique, para contar
histórias locais, num estilo característico
que explora as fronteiras entre a ficção
e o documentário. Todos os filmes
aí realizados, curtas e longas, foram
selecionados para o Festival de Berlim
e circularam por importantes certames.
Recentemente, a curta Madness ganhou
o prémio para melhor documentário no
Festival de Vila do Conde.
João Viana é ainda autor da curta-
-metragem A Piscina (2004), que
passou pelo Festival de Veneza, e do
documentário Alfama (2011), exibido em
Clermond-Ferrand. Sobre as obras mais
recentes, a Cinemateca de Berlim destaca
“os efeitos da História Colonial Portuguesa
no presente pós-colonial africano num
formalismo idiossincrático”. Our Madness
deverá estrear-se em Portugal no final
deste ano. M.H.
A convite da VISÃO, a cantora portuguesa MEMÓRIA
despede-se da diva que iluminou

Querida Aretha
a história da soul e do R&B. Faleceu no
dia 16, com 76 anos, 18 prémios Grammy
e mais de 75 milhões de discos vendidos

POR MARIZA

Quando recebi o convite da VISÃO para fa-

lar sobre si, que me é tão querida, confesso
que me deixou bastante apreensiva…
É uma enorme responsabilidade fazer justi-
ça, por palavras, sem que nada de tamanha
importância me escape, a alguém como a
Aretha, que tanto me acompanhou, que me
viu crescer, me inspirou e foi a maior
das minhas referências…
Nestes breves instantes em que lhe
escrevo, falo-lhe apenas do quão é
importante para mim, e por tudo, seja por
ser mulher, pelas raízes africanas, pela
profissão que escolhi… Quando a conheci,
era apenas uma adolescente. Recordo-
-me de uma tarde soalheira em Lisboa,
quando tive o primeiro contacto com um
tema seu: Respect. A força contagiante,
o timbre, as notas alcançadas, o poder
das letras deixaram-me sem perceber
muito bem o que ali estava a acontecer,
o que estava a ouvir. Durante meses,
incansavelmente, era a Aretha o que eu
apenas ouvia, e o mais curioso é que,
sempre que “me cantava” (clichés à
parte), sentia-a como se fosse a primeira!
Foram anos a tentar cantar como a
Aretha… Mesmo antes da minha carreira
a solo, e com as inúmeras bandas que tive
ao longo dos tempos, era uma obrigação
cantar algo seu. Ainda para mais quando
formamos a nossa personalidade, quando
tomamos consciência não só do poder
da sua voz mas das palavras que canta,
dos hinos que traz ao mundo. É, para mim,
a grande referência da música feita
por mulheres negras, a grande fonte
de inspiração que, apesar destes anos,
se mantém tão atual, tão necessária!
Querida Aretha, agradeço-lhe por todos
estes anos de incrível vitalidade, de luta,
de superação, de respeito! É verdade que
haverá muitas princesas neste mundo, mas
a verdadeira rainha, do soul, da música,
não só americana mas de todos nós,
é e sempre será a Aretha. Obrigada!

23 AGOSTO 2018 VISÃO 93

 TENDÊNCIAS

Poderosa Edulcorante natural

não calórico, bastam três folhas
de stevia para substituir o açúcar
de uma lata de refrigerante

Stevia, a erva doce

Adoçante natural cada vez mais popular, a planta originária
do Paraguai passou de ingrediente raro e caro a alternativa
democratizada ao açúcar presente em gelatinas, chocolates,
compotas, iogurtes, sumos e cereais. Sem calorias, sem culpas

U
SÓNIA CALHEIROS

ma planta que adoça como o parado de crescer. O mercado global

açúcar poderá ser a maneira
mais simplista de descre-
ver a stevia, uma presença
recente, entretanto gene-
ralizada, na lista de ingre-
dientes de chocolates, ge-
latinas, compotas, iogurtes,
sorvetes, néctares, cereais,
rebuçados, bolachas e bo-
los como açúcar de adição.
Para a nutricionista Ana
Ni Ribeiro, a indústria tem substituído
outros adoçantes por este, fazendo com
que se torne cada vez mais popular.
De uso milenar, a Stevia rebaudiana
Bertoni deve o seu nome científico a
Moisés Bertoni (1857-1929), naturalista
suíço que estudou as plantas medicinais
utilizadas pelos índios guaranis. Desde
a sua inserção na produção de alimen-
tos e bebidas, no Japão, na década de
1970, o cultivo desta planta originária
do Paraguai para uso comercial não tem
STEVIA
Adoçante não calórico natural,
extraído das folhas de Stevia
rebaudiana. Tem efeitos
benéficos e não se conhecem
contraindicações ao seu uso.
Adequado para diabéticos,
porque não aumenta os níveis
de glicose no sangue. Consumo
moderado para grávidas
e crianças.
deste edulcorante natural deverá atingir
perto de €84 milhões já daqui a dois
anos, enquanto em termos de consumo
o crescimento anual deverá andar entre
os sete e os oito por cento. No mundo
ocidental, só agora a utilização da stevia
como substituto do açúcar tem ganhado
relevância, democratizando este ingre-
diente que começou por ser raro e caro.
Segundo dados do PureCircle Stevia
Institute, cerca de cinco mil milhões
de pessoas, em todo o mundo, já usam
stevia na sua dieta diária.
Uma guerra aberta contra o açúcar
na indústria alimentar – por parte de
alguns governos, incluindo o portu-
guês, e de consumidores cada vez mais
esclarecidos sobre os seus riscos para a
saúde – está na base dos motivos que
têm popularizado a stevia, também
conhecida como “erva doce”, em países
como Argentina, Brasil, Chile, Paraguai
e Uruguai. “O açúcar é um veneno, uma

94 VISÃO 23 AGOSTO 2018


droga, pelo que o consumo de adoçan-
tes químicos de forma muito modera-
da seria um substituto a ter em conta.
Atualmente, os adoçantes presentes no
mercado são seguros, desde que con-
sumidos com moderação”, explica Ana
Ni Ribeiro. “Há tendência para preferir
sempre os produtos naturais aos quí-
micos, mas nem sempre ser químico é
mau, nem natural é bom. Não se pode
generalizar”, alerta.
350 VEZES MAIS DOCE
Não há muito tempo, falar de adoçantes,
como aspartame ou sacarina, causava
desconfianças, mas para Patrícia Almeida
Nunes, nutricionista e diretora do ser-
viço de Dietética e Nutrição do Centro
Hospitalar Lisboa Norte, não se podem
colocar todos os edulcorantes no mesmo
saco. “Algumas pessoas associavam-nos
ao que fazia mal à saúde em geral, di-
ziam que eram muito tóxicos, existindo
algumas notícias que os ligavam também
ao aparecimento de determinados tipos
de cancro. Os estudos têm demonstrado
que são seguros desde que consumidos
em determinadas doses”, afiança. Ana
Ni Ribeiro, pelo contrário, lembra que,
de facto, existem diversos estudos que
associam os adoçantes a doenças como
o cancro, como o caso do ciclamato,
cuja venda foi banida em vários países,
incluindo Portugal. “Não é mito, há fac-
tos, pelo que devemos reduzir ou evitar
o seu consumo.”
Será a stevia a melhor alternativa
natural ao açúcar? Para Patrícia Almeida
Nunes, também autora do livro Uma
Especialista em Nutrição no Supermer-
cado, depende do objetivo que leva ao
seu consumo. “Comer alimentos com o
sabor adocicado pode trazer mais des-
vantagens do que vantagens, em especial
nas pessoas que pretendem controlar o
peso”, esclarece. “Se por um lado pode
“ATUALMENTE, OS
ADOÇANTES PRESENTES
NO MERCADO SÃO
SEGUROS, DESDE
QUE CONSUMIDOS
COM MODERAÇÃO”
ANA NI RIBEIRO, NUTRICIONISTA
MAIS ALTERNATIVAS
Vantagens e desvantagens
de alguns adoçantes usados
nos alimentos
ACESSULFAME-K
Vários estudos atestam a segurança
deste adoçante não calórico, sintético,
sem efeitos adversos significativos.
Não se aconselha o seu consumo em
caso de hipertensão ou doença renal.
ASPARTAME
Adoçante calórico composto por dois
aminoácidos que lhe conferem o sabor
doce. Apesar da sua segurança nas
doses aceitáveis estabelecidas, não é
resistente a temperaturas elevadas
e não pode ser consumido por
pessoas com fenilcetonúria (doença
metabólica), por ser fonte
de fenilalanina.
SACARINA
Adoçante não calórico, o mais antigo
dos adoçantes artificiais, deixa um
sabor residual amargo em elevadas
concentrações. Estável a elevadas
temperaturas, é considerado seguro.
Não se aconselha o seu consumo em
caso de hipertensão ou doença renal.
SUCRALOSE
Adoçante não calórico, sintético,
derivado da sacarose. Estável
a elevadas temperaturas, não induz
o aparecimento de cáries dentárias
e não apresenta efeitos adversos, nem
se conhecem contraindicações.
ser vantajoso, sobretudo para diabéticos
e pessoas com excesso de peso e obe-
sidade, na medida em que auxiliam no
cumprimento do plano alimentar com
menor restrições de sabores, por outro
lado é importante compreender que os
edulcorantes não são essenciais na die-
ta do diabético ou numa alimentação
com vista à perda de peso, podendo
mesmo ser excluídos da alimentação”,
acrescenta Ana Ni Ribeiro. O facto de
ser natural, derivada de uma planta,
não torna a stevia totalmente inócua.
Patrícia Almeida Nunes sublinha que
“um produto alimentar por ter stevia
não deve ser considerado saudável ou
mais saudável. Não significa que não
tenha outros edulcorantes e até outros
açúcares como sacarose, frutose ou mel”.
A stevia só chegou à Europa a meio
do século XX, e desde então, tem sido
estudada para determinar se é possível
comercializá-la como edulcorante natu-
ral não calórico, com um poder adoçante
350 vezes superior à sacarose (adoçante
calórico). A doçura de aproximadamen-
te três folhas de stevia pode substituir
o açúcar presente numa lata de refrige-
rante carbonatado.
Em 2011, a União Europeia aprovou
a sua utilização, passando a ser comer-
cializada oficialmente como aditivo ali-
mentar em chocolates, doces, bebidas e
cereais. A Organização Mundial da Saúde
recomenda que o consumo diário de
açúcar de adição não ultrapasse 10% das
calorias ingeridas diariamente (cerca de
50 g de açúcar por dia). Já a Ingestão
Diária Aceitável (IDA) foi fixada pela
Autoridade Europeia para a Segurança
dos Alimentos em 4 mg/kg de peso cor-
poral. “Este parâmetro é uma estimativa
da quantidade de aditivo que poderia ser
consumida todos os dias, durante toda a
vida, sem risco significativo para a saúde e
inclui um fator de segurança de 100 vezes,
excedendo, em muito, os níveis médios de
consumo. No geral, os valores ingeridos
de aditivos alimentares e, especificamen-
te, de edulcorantes, são muito inferiores
aos valores de IDA definidos”, explica Ana
Ni Ribeiro. Uma pessoa de 70 quilos, por
exemplo, precisaria de consumir cerca de
40 pacotes de adoçante de mesa de stevia
por dia, durante o resto da sua vida, para
alcançar a IDA.
Já o açúcar comum, ou sacarose,
é frequentemente ingerido em quan-
tidades absurdas para as necessidades
diárias, muito para lá do que manda
o bom senso. scalheiros@visao.pt
23 AGOSTO 2018 VISÃO 95
 CRÓNICA

A
minha música não é nova nem é portuguesa.
Não é nova porque o instrumento através do
qual eu me exprimo não é novo. É a guitarra. A
origem deste instrumento andará na Idade Média
mas não é possível de determinar, porque as
coisas não nascem, fundem-se umas nas outras.
Mas esta guitarra, a que eu toco, deixou de ser
P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico inovada há 40 anos. Pessoas como o Van Halen
foram os últimos dos inovadores porque, além de uma vontade de
inovar o instrumento que vinha de dentro, tinham a tecnologia do lado

Nova
deles, como motor criativo paralelo. O Van Halen ia para as fábricas
exigir ferramentas novas. Mas a indústria abdicou de inovar desde
essa altura. Não existem modelos novos desde esse tempo. A guitarra

música
é o instrumento do rock and roll e esse estilo deixou de apresentar
novidade desde o metal dos anos 80. As Washburn Spitfire, as Jackson,
as B.C. Rich, etc., foram os últimos modelos novos. Nunca mais foi

portuguesa
apresentado nada de novo. O rock dos anos 90 é revivalista, foi aí que
começou a sua autofagia, que se alastrou até à tecnologia. Mas isso não
me aflige. Para mim, a guitarra é um mero instrumento. Um meio que
me permite aceder às melodias que cantam dentro de mim. A minha
paixão é essa. Não é a de inovar coisa nenhuma. No meu último disco,
rodeei-me de instrumentos de outros séculos. A guitarra clássica,
o contrabaixo, o piano e o violoncelo são o coração dessas músicas.
Significa que estou a fazer música do séc. XVIII? Olho para
os instrumentos quase como quem olha para um eletrodoméstico e
acho que amá-los como fim em si é quase provinciano, é como ir andar
de escadas rolantes por andar, como fim em si. Acho que este complexo
de inovar por inovar será até um dia visto como algo meio pacóvio,
uma neura deste tempo em que o conceito de tempo ganhou pela
primeira vez uma elasticidade, uma sinuosidade como nunca antes se
viu. Um tempo que não é novo é a grande novidade deste tempo (uma
gravação do Robert Johnson de 1936 que apareça agora pela primeira
vez é tão ou mais novidade do que uma canção nova da Adele). A minha
música, mais do que fazer referência a músicas de outros tempos,
presta reverência. Uma reverência natural. A minha música olha de
baixo para cima para a música intemporal onde se formou e acena-lhe
com deferência, duma maneira automática, anterior a qualquer decisão
estética da minha parte. Ambiciono que a minha expressão musical
tenha a naturalidade de um sotaque, que é algo que, quando parte
de uma qualquer escolha, resulta sempre patético. Quem opta por um
determinado sotaque, quase sempre procurando encobrir o seu de raiz,
incorre sempre no ridículo. Primeiro, porque não consegue, depois
porque é uma coisa pacóvia. O desafio é uma pessoa reconhecer-se
e aceitar-se tal como é, e não como presunçosamente acha que
poderia, deveria ou quereria ser. A minha música não é nova. É velha.
Mas julgo-a tão viva como uma língua que se fala há centenas de anos.
Que se autorregenera discretamente e nunca por decreto ou decisão.
É a língua da canção, que anda por aí vadia há tempos imemoriais.
É renovada por incidências e agentes vários, que muito provavelmente
não procuram renovação nenhuma. E a minha música também não
é portuguesa. Umas calças de ganga feitas em Portugal podem ser
consideradas “vestuário português”? A ganga vem de França, foi levada
por um judeu alemão para a América para vestir garimpeiros e caubóis.
A minha música não Os jeans são americanos? São franceses? São alemães? São do mundo,
tal como a música que se impregnou em mim de uma forma natural e
é nova. É velha. Mas fecundou a minha criatividade de uma forma que desdenha fronteiras
julgo-a tão viva como e vem dos jograis europeus da Idade Média, passa por Nashville
uma língua que se fala e Liverpool e pousa como a andorinha que sobrevoa continentes e faz
ninho num poste de eletricidade em Grândola, sem ter conhecimento
há centenas de anos das fronteiras que atravessou sem apresentar cartão. visao@visao.pt

96 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 VAI UM PORTO?
Roteiro pelas renovadas caves de Vila Nova
de Gaia – em vésperas da abertura do museu
e enoteca da Real Companhia Velha
 De novo
no cais
A Real Companhia Velha
celebra 262 anos com
a abertura de uma enoteca e
de um museu para o século
XXI, na Marginal de Vila
Nova de Gaia. É o regresso
da casa produtora de vinhos
à beira do rio Douro
S U S A N A S I L V A O L I V E I R A scoliveira@visao.pt
LUCÍLIA MONTEIRO

E
ste é o mapa original da primeira
demarcação do Douro, a peça mais
emblemática do espólio do museu.”
Pedro Silva Reis, presidente da Real
Companhia Velha (RCV), conhece bem
o documento e as marcas dos anos que
este passou dobrado, no escritório da
empresa – tal como o alvará régio de
D. José I, ali mesmo ao lado, que funda
a Companhia Geral da Agricultura
das Vinhas do Alto Douro, a 10 de
setembro de 1756. Estamos no novo
centro de visitas da empresa, na zona histórica
de Vila Nova de Gaia, com a abertura ao público
marcada para dia 30 deste mês. É um regresso
1756 ao passado, às antigas instalações da companhia,
Fundação da junto ao cais, paredes-meias com o Convento
Companhia Geral Corpus Christi, agora com um museu para o
da Agricultura
das Vinhas do
século XXI, uma enoteca, loja e vista para o Porto.
Alto Douro, depois Fundada no tempo dos reis, a Real Companhia
denominada Real Velha celebra 262 anos de atividade ininterrupta,
Companhia Velha, de persistência, de longas e agitadas travessias nas
por alvará régio do águas do rio Douro, para fazer chegar o vinho ao
rei D. José I, a 10
de setembro desse
destino que lhe deu o nome. Sem pretender ser
ano, sob a proteção uma alternativa “nem uma área museológica das
do Marquês de caves”, realça Pedro Silva Reis, o novo 17.56 Museu
Pombal & Enoteca é “o” museu do Douro, da primeira
demarcação vitícola, ligado à História e à região.

98 VISÃO 23 AGOSTO 2018

São três mil metros quadrados, repartidos
por dois pisos, nos quais o mundo do vinho,
a gastronomia e a História se interligam. Tem
no nome o ano da constituição da companhia
(o ponto a “quebrar” o ano, 17.56, faz com que seja
mais fácil de o memorizar e de dizer), o mesmo
da demarcação da primeira região vinícola do País,
impulsionada pelo Marquês de Pombal, com o
objetivo de organizar o setor do vinho do Porto.
À data, a ideia era limitar a influência dos ingleses
no comércio do licoroso fortificado.
Além do mapa e do alvará régio – na versão
original, intocável, e em duas versões digitais
para serem “folheadas” –, encontram-se ainda
objetos e documentos do acervo da RCV, entre
1765 garrafas históricas, a ação número 1 da empresa
Data da garrafa e alguns instrumentos agrícolas, muito simples,
mais antiga de vinho usados para moldar os socalcos. Pedro Silva
do Porto produzi-
da pela empresa,
Reis mostra ainda o impressionante quadro de
que, por enquanto, D. José I, cedido pelo Museu Hermitage, em São
vai manter-se na Petersburgo. Seguem-se referências à Revolução
garrafeira particular, de 1974 e às visitas dos reis da Suécia e de Ayrton
passível de ser Senna. A viagem no tempo ganha dinâmica pela
visitada, nas caves
da Real Companhia
interatividade da exposição, pensada também
Velha, fora do centro para as crianças. O bucólico vale do Douro e
histórico de Gaia as origens da demarcação que, atualmente, se
estende por 250 mil hectares, também ali estão
em imagens de grande formato, que mostram

23 AGOSTO 2018 VISÃO 99

a paisagem de cortar a respiração, o passeio de
vistas desafogadas sobre os socalcos. A Real
1852
Companhia Velha detém 550 hectares de vinha, Termina a era ma-
distribuídos por cinco quintas: Quinta das jestática. Decretado
Carvalhas, onde no alto de uma colina está a Casa o fim dos privilégios,
a Companhia deixa
Redonda, que oferece uma paisagem de 360 graus de desempenhar
sobre o Douro; a Quinta do Cidrô, com um belo as funções que
palácio e jardins envolventes; a Quinta Casal da a lei lhe atribuía
Granja, situada no planalto de Alijó, no coração da e passa a atuar
maior mancha da casta Moscatel Galego; a Quinta como qualquer
do Síbio, onde, em 2016, nasceram os primeiros firma comercial
vinhos biológicos, e a Quinta dos Aciprestes,
que se estende por mais de dois quilómetros
na margem esquerda do rio Douro.
1955
Manuel da Silva
À saída do museu, no piso zero, fica a loja Reis (pai de Pedro
e uma sala de prova para grupos. Quem vem Silva Reis, atual
sem marcação, segue para o piso 1, subindo pela presidente da RCV)
escada rolante, que ocupa o centro do moderno começa a comprar
edifício, até porque o bilhete para o museu dá ações da empresa,
direito a prova de vinhos. assumindo a direção
em 1960. O seu
mandato, o mais
FAZER O VINHO BRILHAR longo na história
Afirmar o Porto como uma das dez capitais da companhia, viria
mundiais do vinho, aliado a uma oferta a terminar em 2002.
gastronómica diversificada, é o objetivo da Inspirado nos lati-
cínios suíços, levou
enoteca, no primeiro piso, com ampla vista para o Douro o aço
sobre a cidade, seja na varanda ou no interior. inox em recipientes
“Não somos um restaurante, mas um lugar desenvolvidos em
onde a oferta pretende valorizar a experiência Vale de Cambra.
da prova”, frisa Pedro Silva Reis. Ali, além do Inaugurou as cubas
de cimento para
alargado portefólio da Real Companhia Velha, fermentação, apre-
encontram-se os melhores vinhos nacionais, sentou o trator e o
com todas as regiões representadas na Carta dos camião-cisterna à
Amigos, lado a lado com mais uma centena de viticultura duriense
grandes referências internacionais. “Tínhamos
de ter o melhor que se faz no mundo.” Mesmo
assim, garante Pedro Silva Reis, não é um sítio 2011
caro, mas pode ser convidativo a gastar dinheiro. Venda das insta-
Apesar de o vinho ser rei, na sóbria e elegante lações no Cais de
Gaia, transferin-
enoteca, há diferentes (e tentadoras, acrescente- do-se as caves
-se) propostas para o acompanhar. Na fromagerie, e a sede para outra
à entrada, desfila a seleção de meia centena de zona da cidade
queijos, para consumir ali mesmo ou levar para
casa. Seguem-se opções de cozinha tradicional,
pratos de peixe e marisco, além de sanduíches 2018
gourmet, uma steak house com carnes maturadas Abertura do 17.56
e um rawbar, de inspiração asiática. Há ainda uma Museu & Enoteca
zona lounge, uma sala de fumo, o cigar club (para
quem aprecia o charuto com um bom vinho do
Porto), duas salas privadas de prova (orientadas
online por Álvaro Martinho, engenheiro
responsável pela viticultura da Quinta das
Carvalhas) e um terraço panorâmico, onde apetece
ficar a olhar o rio e o casario encavalitado na outra
margem, com a companhia de um cálice de Porto
e saboreando cada momento, sem pressas, até que
o lusco-fusco chegue de mansinho.


17.56 Museu & Enoteca da Real Companhia Velha
> Alameda da Rua Serpa Pinto, 44, Vila Nova de Gaia
> T. 22 244 8500 > museu: seg-dom 10h30-19h, enoteca:
seg-dom 11h-23h > €15 (visita e prova)

100 VISÃO 23 AGOSTO 2018

Quem as viu e quem as vê
Nas visitas a estas 11 caves, continua a contar-se as histórias
dos produtores e a provar-se o vinho do Porto. É a forma como
tudo é apresentado que está, agora, mais apelativa

POÇAS JÚNIOR
O MAIS RECENTE
É necessário ir além da Marginal, seguindo até à parte alta
do centro histórico de Vila Nova de Gaia, para conhecer esta
história que se conta em português, algo raro nas empresas
de vinho do Porto. A Poças Júnior, que se mantém na mes-
ma família desde a fundação, em 1918, acaba de abrir um
novo centro de visitas, em dois armazéns da companhia.
Ali, onde descansam cerca de 900 pipas de vinho do Porto,
cruza-se o trabalho diário da adega, e, em breve, o dos
tanoeiros, com a história de uma empresa famíliar e com
os detalhes sobre a região do Douro. A visita termina numa
sala de provas para 50 pessoas, onde aguardam dois Portos
reserva (um branco e um tawny), embora se possa fazer
uma prova harmonizada. Na parede, em frente às muitas
garrafas e a alguns cartazes antigos, surgem as esculturas
do designer Luís Mendonça, uma encomenda da Poças
Júnior, que aliou o vinho à arte, para celebrar o centenário
da fundação da empresa mais portuguesa do Douro.


R. Visconde das Devesas, 168, Vila Nova de Gaia > T. 22 320 3257
> seg-dom 10h-20h > a partir de €6,50 (visita e prova)
 Burmester
Debruçada sobre o rio Douro,
junto à Ponte de D. Luís I,
nesta cave respira-se o aro-
mático perfume do vinho do
Porto. Além da emblemática
coleção de garrafas de Porto
vintage, há muitos episódios
do percurso da empresa, fun-
dada por Henry Burmester,
e recantos para descobrir,
ao longo da visita.


Lg. da Ponte de D. Luís I, Vila Nova
de Gaia > T. 91 328 8994 > seg-dom
10h-19h > a partir de €10 (visita
e prova)

Espaço Porto Cruz

A vista do terraço é imperdí-
vel, mas a visita a este centro
multimédia, onde se celebra
a cultura do vinho do Porto,
começa logo à entrada. Além
de uma área informativa,
com mesas interativas,
exposição de objetos e filmes
ligados à região duriense,
tem uma loja, salas de prova,
restaurante e bar. Para beber
um cocktail com vinho do
Porto, é subir ao Lounge Ter-
race 360o, no último piso.

CÁLEM 
Lg. Miguel Bombarda, 23, Vila Nova
de Gaia > T. 22 092 5340 > ter-sáb
A V I S I TA M A I S T E C N O L Ó G I C A 11h-20h (bar e restaurante até 24h),
dom 11h-19h (bar e restaurante
12h30-19h) > a partir de €3 (visita
Tem um inovador centro de visitas, com uma forte componente tecnológica, e prova)
cujo percurso começa numa área informal, onde se passeia livremente.

Ferreira
Além de um mapa tridimensional da região do Douro, há amostras das
garrafas mais emblemáticas, módulos sobre as castas autóctones, caixas
de vidro com cortes do solo, para melhor entender este terroir tão especial, É uma narrativa com cerca
e um filme 5D, para ver como se faz o vinho. Através do olfato, descobrem- de 250 anos, construída em
-se os aromas escondidos no vinho do Porto, do chocolate ao alperce. redor de D. Antónia Ferreira,
Segue-se a visita guiada ao armazém – garrafas, enormes balseiros figura ímpar num negócio
(são necessárias 74 mil garrafas para encher cada um deles, fica-se dominado por homens no
a saber) e muitas pipas –, que conduz depois à sala de provas, onde século XIX. Depois da sala de
se sentam 200 pessoas. O percurso termina na loja, mas há uma série objetos pessoais, o percurso
de outras propostas, desde harmonizações a sessões de fado diárias. é feito através de uma série
de armazéns ligados por cor-
 redores, onde não faltam foto-
Av. Diogo Leite, 344, Vila Nova de Gaia > T. 91 611 3451 > seg-dom 10h-19h
> €12 a €30 (visita e prova)
grafias antigas da vindima.


Av. Ramos Pinto, 70, Vila Nova
de Gaia > T. 22 374 6106 > seg-dom
10h-18h > a partir de €12 (visita
e prova)

23 AGOSTO 2018 VISÃO 103

TAYLOR’S
PA R A E X P L O R A R S O Z I N H O
É com imagens das quintas do Panascal e
de Vargellas que se conta parte da história
da empresa The Fladgate Partnership, nesta
que foi uma das primeiras caves a abrir ao
público, há 35 anos. O percurso foi renovado,
recentemente, para permitir uma visita de
forma autónoma, que pode ser feita em
30 minutos ou durante um par de horas.
Além da mezzanine, onde se mostra todo o
processo produtivo do vinho – desde o tipo de
solo à vindima – e da garrafeira, com 15 mil
garrafas de vintage, assiste-se ao trabalho
habitual numa adega, como a trasfega do
vinho. Nas novas salas de exposição, podem
ver-se também os primeiros mapas do Douro,
muita documentação histórica de uma das
mais antigas famílias da região, a técnica e as
ferramentas usadas na tanoaria. No final da
visita a estas caves, com chão em areia, onde
descansam 1 500 pipas e um balseiro, uma
pessoa poderá, ainda, atravessar os jardins
e provar dois vinhos harmonizados com trufas
de chocolate ou amêndoas de Moncorvo.
 marcação prévia)
R. do Choupelo, 250, Vila Nova de Gaia > T. 22 374
2800 > seg-dom 10h-18h > €15 (visita e prova)
104 VISÃO 23 AGOSTO 2018
COCKBURN’S
E S P R E I TA R A TA N O A R I A
É provavelmente o maior armazém de vinho
do Porto no centro histórico de Vila Nova
de Gaia, onde descansam mais de seis mil
pipas. A profunda renovação, há pouco mais
de um ano, permitiu inaugurar um museu,
duas salas de prova e abrir ao público a sua
tanoaria. À entrada, a área museológica
conta alguns factos relevantes da história
da empresa fundada em 1815, por Robert
Cockburn, e que, em 2010, passou para as
mãos da Symington. O percurso pela adega,
de paredes de granito e chão de terra, faz-se
entre enormes balseiros, com mais de
30 mil litros, onde descansam os Cockburn’s
Special Reserve, durante sete a oito anos,
centenas de pipas e tonéis. Ao lado, fica
a tanoaria, onde é possível ver a lida diária
de manutenção das pipas, e a escura
garrafeira, em que repousam os lendários
vintage de 1868 e de 1896.

R. Serpa Pinto, 346, Vila Nova de Gaia > T. 91 300
7950 > seg-dom 9h30-18h > €12 a €50 (visita e prova,
SANDEMAN Graham’s
Vale a pena percorrer a
DORMIR ONDE TUDO ACONTECE acentuada rua para se chegar
Na última remodelação das caves, feita já neste ano a esta casa de histórias.
– e em simultâneo com a abertura do The House of Ali repousa uma fantástica
Sandeman Hostel & Suites, nos andares superiores do garrafeira de vinho de Porto,
edifício –, a área museológica passou a ocupar o hall, cerca de 3 500 cascos, e um
à entrada, sendo de acesso livre. Ali fica-se a saber pequeno museu que inclui,
mais sobre o excêntrico fundador, o escocês George entre outras peças, o relógio
Sandeman, e alguns factos relevantes da história da feito por Patek Philippe,
empresa, criada em 1790. O interior manteve o caráter para a rainha Maria Pia de
rústico, dominado por tetos altos, com velhas traves Portugal. Depois da prova,
de madeira escurecida, onde sobressaem pipas e no wine bar e no restaurante
cubas. Ninguém resiste a espreitar a antiga garrafeira Vinum ou no Atrium, o jardim
dos ingleses, cujo vinho do Porto mais antigo data de inverno, com vista para
de 1904, ou a deixar-se levar rumo ao Douro, durante o Porto, prolonga a visita.
a exibição de um filme sobre a marca e a região,
no renovado auditório. A iluminação discreta e o ar 
marcado pelo penetrante perfume do vinho conferem R. do Agro, 141, Vila Nova de Gaia
> T. 22 377 6484 > seg-dom 10h30-
um toque misterioso à visita, acompanhada sempre -17h30 > a partir de €15 (visita
por um guia trajado tal qual o Don, figura de capa e prova, marcação prévia)
negra e de chapéu que é a imagem da Sandeman.


Lg. Miguel Bombarda, 3, Vila Nova de Gaia > T. 22 374 0534
Kopke
Com vista sobre o rio Douro
> seg-dom 10h-19h > €12 a €40 (visita e prova)
e o casario da Ribeira,
a mais antiga casa de vinho
do Porto recebe as suas visi-
tas num recuperado edifício
de três andares. À entrada,
fica a loja e, nos dois pisos
superiores, as salas de
prova, com capacidade para
receber até 50 pessoas. Para
uma visita tranquila, aconse-
lha-se a reservar uma hora
ao final da tarde, geralmente,
menos movimentada.


Av. Diogo Leite, 312, Vila Nova de
Gaia > T. 22 374 6660 > seg-dom
10h-19h > a partir de €3,30 (prova)

Ramos Pinto
A visita ao majestoso edifício
da empresa, fundada por
Adriano Ramos Pinto, tem
como principal atrativo
a passagem pelos antigos
escritórios, instalados aqui
desde 1909. Em painéis
de azulejo e nas antigas
secretárias transformadas
em vitrinas, traça-se o
percurso de uma marca
ousada para a época.


Av. Ramos Pinto, 380, Vila Nova
de Gaia > T. 93 680 9283 > seg-dom
10h-18h > €12 (visita e prova)

23 AGOSTO 2018 VISÃO 105

 Manifesto
O QUE ANDAMOS A GOSTAR (OU NEM POR ISSO) DE DESCOBRIR POR AÍ

J O A N A L O U R E I R O jloureiro@visao.pt

> muitíssimo bom > bom

PALÁCIO ABERTO LISBOA MÁGICA
Os jardins do Palácio Começa esta terça, 28, o Festival
Internacional de Magia de Rua de
de Belém voltam a Lisboa. Até 2 de setembro, há deze-
nas de espetáculos, em vários locais
acolher, de 30 de agosto a da cidade – do Largo do Carmo ao
Parque das Nações, da Ribeira das
2 de setembro, a Festa do Naus ao Campo das Cebolas
Livro. Além de contar com
bancas de meia centena
de editoras, lançamentos, > bonzinho
debates e sessões de EM FOGO LENTO
autógrafos, terá sessões Já estão à venda os bilhetes para o
de cinema e concertos. primeiro Chefs on Fire, no dia 23 de
setembro, no Estoril. O festival junta
A entrada é livre sete chefes a cozinhar com fogo
(Ljubomir Stanisic, João Rodri-
gues, Manuel Maldonado, António
Galapito, entre outros) e música.
A entrada custa €55, crianças até
aos 12 anos pagam €25

> assim assim

COIMBRA AO LUAR
Até 8 de setembro, a Universidade
de Coimbra organiza, aos sábados,
visitas guiadas noturnas aos seus edi-
fícios, com direito ao tradicional fado.
Os bilhetes custam €15 (menores
de 13 anos não pagam) e a inscrição
deve ser enviada para reservas@uc.pt

> para esquecer

RESTAURANTES UPA UPA
Jantar fora está cada vez mais
caro. Do couvert à sobremesa, sem
perdoar no preço dos cocktails, a
conta ultrapassa (e bem) o razoável.
E não estamos só a falar dos
restaurantes que estão na moda

106 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 CO MER E BEBE R
Geographia Lisboa
Linguagem universal
O novo restaurante da cidade quer pôr os pontos cardeais na cozinha portuguesa
e trazer para a mesa as suas ligações a diferentes países, culturas e povos
A gastronomia Começamos pelo rinoceronte no meio
portuguesa da sala. Imponente, Ulisses recebe
mistura-se com quem entra com o orgulho de ser um
os sabores de dos primeiros exemplares da espécie a
países como chegar à Europa do séc. XVI, oferecido
Cabo Verde, ao rei D. Manuel I. O desenho,
Angola ou assinado na época pelo artista alemão Albrecht
Timor, como Dürer, vê-se no toldo exterior, a ocupar uma das
é o caso desta paredes e também nos pratos da Vista Alegre ou
salada morna
nos guardanapos, como símbolo da ligação dos
com frango,
portugueses ao mundo. É isso que se celebra na
laranja
e batata-doce
cozinha do Geographia, o novo restaurante do
bairro da Lapa, perto do Museu de Arte Antiga,
como nos conta Ruben Obadia, antigo jornalista
e um dos sócios (juntamente com Miguel Júdice,
empresário, e a polaca Lucyna Szymanska, ligada
à moda). “Pensámos nos lugares por onde os
portugueses passaram e, a partir daí, imaginámos
como poderiam trabalhar-se esses sabores em
conjunto”, resume. A pesquisa levou-os a Macau,
a Cabo Verde, a Angola, a São Tomé e Príncipe e a
Timor, à procura de receitas de outros tempos
com margem para reinterpretações. Até porque
este não é um restaurante para nostalgias, mas
sim uma cozinha de mente aberta, com vontade
de fazer experiências, que tanto “pode estar aqui,

R. do Conde, 5, Lisboa > T. 21 396 0036 > seg-sáb 12h-15h, 19h30-23h
MANUEL GOMES DA COSTA
em Lisboa, como noutras cidades”, diz Ruben.
Nas entradas, a escolha é difícil, mas os
fritinhos dos quatro continentes (€6) chamam
por nós assim que os vemos passar em direção
a outra mesa. A salada morna timorense (€7),
com frango, laranja e batata-doce, é uma
deliciosa surpresa, enquanto a sopa de peixe
com maionese de garam masala (€7) é servida no
ponto. Depois, é seguir caminho com a cachupa
vegetariana (€12), o original escondidinho de
puré de mandioca e leite de coco com bacalhau
à Bulhão Pato (€13) ou com o arroz gordo
de Macau (€14), aqui numa versão mais leve.
As mesmas ideias de fusão foram aplicadas aos
cocktails e às sobremesas, como no groguito, um
mojito feito com grogue de Cabo Verde, ou na
laranja com azeite. Os vinhos são quase todos de
pequenos produtores nacionais e há blends de
chá e café feitos de propósito para o Geographia.
Do restaurante original, de grelhados, manteve-
-se a ligação à comida tradicional portuguesa,
o chão de pedra e o balcão corrido, agora pintado
em tons de encarnado e verde, os mesmos que
dominam a decoração, cheia de pormenores
e histórias do mundo, tal e qual a nossa cozinha.
Rosário Mello e Castro
23 AGOSTO 2018 VISÃO 107
 COME R E B E BE R
Porta Bragança
É entrar e usufruir
POR
MANUEL
Alta-cozinha em terras transmontanas a aprimorar sabores e a dar outro brilho aos produtos locais
G O N ÇA LV E S
D A S I LVA
comer&beber@visao.pt
A vitela e Em vez de alta-cozinha, podia chamar-
pipoca é um dos -lhe simplesmente contemporânea
atuais pratos com técnica evoluída, produtos de
da carta, todos qualidade e sentido estético. Podia,
com sabores mas não daria o devido realce ao facto
envolventes e de o chefe André Silva ter saído
apresentação do restaurante Casa da Calçada, em Amarante,
apelativa onde conquistou uma Estrela Michelin, em dois
anos seguidos, para abrir um restaurante em
Bragança, com o mesmo conceito de fine dining,
ou seja, fino, requintado, de categoria. Inaugurado
há pouco mais de um ano, num prédio de dois
pisos, junto do Mercado Municipal, tem ótimas
instalações: em cima, sala principal ampla,
cheia de luz natural, com decoração leve e sóbria,
talvez para não distrair o olhar da cidade, que se
estende ali em frente; em baixo, sala para grupos.
A ementa vem acompanhada por um menu
executivo que inclui entrada ou sopa, prato
de peixe ou de carne, doce ou fruta, café e petit
fours (€19). É semanal, está disponível ao almoço
e ao jantar e depende do que o mercado oferece
(produtos frescos, muitos dos quais biológicos,
de agricultores locais). Na ementa surgem mais

Largo Forte S. João de Deus, 204, Bragança > T. 273 098 516 > ter-sáb 12h30–15h, 19h30–23h > €19 (menu executivo),
€40 (preço médio, à carta)
108 VISÃO 23 AGOSTO 2018
LUCÍLIA MONTEIRO
quatro menus: de quatro pratos (€55), de sete
(€85), vegetariano (quatro pratos, €45) e infantil
(€17,50), além do serviço à carta. Todos os pratos,
sejam do menu executivo, sejam da ementa
propriamente dita, são de alta-cozinha, cujas
técnicas tanto permitem respeitar a integridade
dos produtos nobres como valorizar outros.
Nota-se isso em tudo: no molho, no puré,
no ponto do peixe e da carne, no legume bem
cozido. As refeições são para desfrutar, desde
a trufa de alheira com castanha (sabores quentes
delicadamente irmanados, numa cortesia do
chefe, servida sobre uma língua de careto) até ao
carabineiro no carvão e à sapateira e espinafres
(entradas frias); ao ovo e pipoca (entrada quente,
com sabores naturais e suaves); à pescada e lula,
ao rodovalho e bivalves, à vitela e pipoca,
e ao cachaço de porco bísaro e cenoura, atuais
pratos à carta, todos com notável equilíbrio,
texturas delicadas, sabores envolventes e
apresentação apelativa. Sobremesas de muito bom
nível, incorporando sempre, e bem, frutos frescos
e/ou secos. Garrafeira interessante, ainda em
construção. Serviço muito atento e dedicado.
Tertúlia da Quinta Almeirim
O restaurante deve o nome –
e boa parte das instalações
– à antiga garrafeira Quinta
de Sant’Ana, que foi local
de tertúlia, ligada ao vinho,
ao petisco e à cavaqueira
sobre toiros. Depois, fez-se
garrafeira, que acabou
por ser convertida em
restaurante. Está muito
bem localizado, na zona
de maior concentração de
restaurantes, em Almeirim,
junto à praça de touros.
O ambiente é descontraído.
Três curiosidades: a receita
da sopa da pedra está em
exposição, à entrada da sala
principal, com descrição
pormenorizada dos
ingredientes e dos passos a
seguir na confeção; a carta
de vinhos está em cima de
um cavalete, aberta, com
informação interessante
sobre castas, vinhas e
vinhos; no cartão de visita
do restaurante figura um
monge com ar bem-disposto,
e a seguinte legenda: “Até o
frade recomenda a Sopa da
Pedra da Tertúlia.”
Para entrada sugerem-se os
enchidos da sopa da pedra,
os queijos (ribatejanos e
alentejanos, servidos na
frigideira, com cogumelos) e
a sopa da pedra, obviamente,
não faltando quem faça dela
prato principal; a seguir, o
touro assado no forno, com
o sabor intenso e a textura
macia da carne; a costeleta,
o lombinho e a vazia de
touro bravo, os lagartos e
o cachaço de porco preto
grelhados, todos com arroz
de feijoca a acompanhar;
o borrego assado, aos fins
de semana; os molhinhos
de carneiro (tripas), típicos
de Almeirim; e o bacalhau
com broa, que tem merecida
fama. A doçaria é boa e
diversificada. Garrafeira
muito interessante. Serviço
eficiente e simpático.

Largo da Praça de Touros, 37 A,
Almeirim > T. 243 593 008
> ter-dom 12h-15h, 19h-22h30
> €12 (preço médio)
Vale dos Ares Alvarinho
Monção e Melgaço 2017
Uvas colhidas à
mão com demora
de três minutos,
em média, a che-
garem à adega. O
mesmo rigor em
todo o processo
de vinificação.
Daí este vinho de
aspeto brilhante,
cor citrina, aroma
fino com notas de
flores (tília, flor de
laranjeira) e frutos
(citrinos e outros
frescos), paladar
Alvarinho Monção e Melgaço
com estrutura, mi-
neralidade. €9,90
Casta diva
Quinta de Cidrô
Alvarinho 2017
Um Alvarinho dife-
O seu território de eleição continua a ser o Minho mas rente, de guarda.
já é determinante noutras regiões do País – e não só Cor citrina com
reflexos dourados,
aroma delicado
É uma casta antiga que se enraizou no com envolventes
notas florais e
Noroeste da Península Ibérica, em ambas as
frutadas, desta-
margens do rio Minho, com nomes que soam
cando-se a flor
ao mesmo: Albariño, na banda da Galiza,
de laranjeira e os
e Alvarinho, no lado português (termos citrinos. Paladar
homófonos, com típica troca nortenha cheio, encorpado,
do V pelo B…). Encontrou aqui, nas terras de Monção fresco, e final
e Melgaço, condições propícias para produzir vinhos longo com acidez
de qualidade excecional. Porém, o seu grande potencial e mineralidade
fez com que a casta se expandisse por outras regiões, cativantes. €9
não só do Minho mas também do País e do mundo.
Os vinhos a que dá origem diferem entre si, mas sempre
com o perfil floral e frutado característico, a estrutura Quinta da Alorna
equilibrada e rica, o bom teor alcoólico, a acidez viva,
a elegância no porte, enfim, a sua personalidade, que é
Alvarinho 2017
cativante. E está ainda por explorar devidamente aquele A cor é amarela-
que poderá vir a ser o seu melhor filão: Alvarinho com citrina, o aroma
idade. Há, todavia, quem esteja a trabalhar nesse campo é complexo
com resultados e com futuro, como Anselmo Mendes marcado pela
(ou não fosse ele “o Senhor Alvarinho”). fruta, com boas
notas de laranja,
Os concelhos de Monção e Melgaço são referências
pêssego e maçã,
incontestáveis dos grandes vinhos Alvarinho, que são
e um ligeiro toque
sempre uma boa surpresa, onde quer que apareçam. floral. Paladar
Os enófilos mais atentos já provaram, certamente, cheio, bem
Alvarinhos de diferentes terroirs do País e anotaram estruturado, com
as suas diferenças de perfil, de aromas e de sabores. excelente acidez
O Alvarinho de Monção e Melgaço irá distinguir-se e final atraente.
do Alvarinho do Douro e do Alvarinho do Ribatejo, Gastronómico,
mas todos terão coisas a dizer. Eis três exemplos para acompanha
início de conversa, que terá pelo menos um ponto de entradas, pratos
consenso: Alvarinho é a mais querida e admirada casta de marisco e de
portuguesa, a grande atração, a diva. peixe, e massas
italianas. €4,99
23 AGOSTO 2018 VISÃO 109
 COME R E B E BE R
Café Príncipe Real Lisboa
Viajar pelo mundo sem sair da mesa
Há novos pratos para provar no restaurante do hotel Memmo, um terraço
que todos podem aproveitar, festas ao cair do dia... e ainda mais três brindes
Há três coisas garantidas
numa refeição no Café
Príncipe Real, o restaurante
do hotel Memmo, em
Lisboa. Apercebemo-nos
da primeira antes de entrar,
quando somos surpreendidos por uma
vista sobre a cidade que nos paralisa.
A segunda é o sossego – apesar de
estar no coração da movida lisboeta,
aqui só vem quem sabe, o que significa
uma eficaz triagem. A terceira, a que
finalmente tem que ver com comida,
é o facto de embarcarmos numa
viagem pelo mundo, em novos pratos,
sem sairmos da mesa.
A isso Vasco Lello tem habituado
os seus clientes, que se sentam nesta
elegante sala à espera de ir ao Brasil,
por exemplo, através de um caranguejo
de casca mole em tempura (€19,50)
ou de um pastel de massa tenra de
rabo de boi com chutney de abacaxi
e molho mineiro (€2,50). Também
são transportados ao México depois
de trincarem o taco de salmão com
abacate, sementes de sésamo e ovas
 Av. Infante Dom Henrique, Cais
Hotel Memmo Príncipe Real > Rua D. Pedro V, 56 J, Lisboa > T. 96 184 4248 > seg-dom 12h30-15h,
19h30-23h
110 VISÃO 23 AGOSTO 2018
(€3,50) ou ao Oriente com um delicioso
atum em tataki com braseado de
topinambur, cebolo e pistácios (€12). Cais da Pedra Lisboa
Abra-se aqui um parêntesis para
avisar que, mesmo sem almoçar ou A partilha já não se resume
jantar, estes snacks estão incluídos na apenas às entradas, pratos
ementa bits&bites, pequenos mimos principais e sobremesas
servidos na esplanada, junto à piscina do restaurante Cais da Pedra,
(não há razão para ficar perturbado do chefe Henrique Sá Pessoa,
com as braçadas dos hóspedes). De em Lisboa. Passou agora a
quinta a sábado, a partir das cinco da estender-se aos cocktails,
servidos em jarros com dois
tarde, ainda se junta o plus de lá estar
litros, o equivalente a quatro
um DJ a compor o ramalhete.
doses. Para beber no interior
A viagem pode prosseguir a bordo da sala ou na esplanada vira-
de um churrasco de picanha e porco da para o Tejo, há diferentes
com molho de feijoada ou de um pato combinações à prova, como o
asiático, com molho hasin, noodles Black Forest Mule (individual
e legumes. É também da cabeça de €8, jarro €23,90), preparado
Vasco Lello que saem as pecaminosas com uma mistura de moran-
sobremesas, que provocam, na certa, gos e amoras-pretas, com
excessos alimentares a quem se arrisca vodka, canela, sumo fresco
neste campeonato. Destaque-se de arando e um toque de
o suspiro com gelado de framboesa, ginger beer. Já o Ladybird
só porque sim, pois o prato de (€5, jarro, €14,90), mais
chocolate de São Tomé, em mousse, encorpado, é preparado com
areia ou gelado, não lhe fica nada atrás. rum Havana perfumado e
Luísa Oliveira folhas de coentros. Sugere-se
ainda o Gin Garden (€6, jarro,
€17,90), feito com um blend
de gin Beefeater e folhas de
hortelã, e o Cais da Pedra
com Gin Mare, aromas florais
e um toque de baunilha (€7,
jarro €20,90). Para acom-
panhar, escolha-se um dos
hambúrgueres, especialidade
da casa, ou o tártaro de
robalo (€8) com gengibre,
maçã, creme de abacate, wa-
sabi, acompanhado por uma
salada de chicória. Enquanto
se bebe e se petisca, nada
melhor do que deixar o olhar
navegar até ao imenso azul
do rio, apenas interrompido
pelos grandes navios ali
atracados. S.P.
D.R.
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da Pedra, Armazém B, lj. 9, Lisboa
> T. 21 887 1651 > dom-qui 12h-24h,
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 este verão
Ninguém vai querer
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A Pastorinha Cascais
Um clássico é um clássico é um clássico
Há pequenas mudanças no restaurante da Linha de Cascais. Está mais elegante e na ementa,
dedicada aos sabores do mar, há mais pratos de marisco. O ambiente e o serviço mantêm-se
Parece que recuamos no tempo,
ao glamour de antigamente, quando
entramos no restaurante A Pastorinha,
na Praia de Carcavelos, em Cascais.
Repara-se no piano de cauda que
todas as noites, e aos almoços de
domingo, dá música ambiente. Também não
deixamos de notar o serviço impecável, com
os funcionários a comunicar entre si com um
simples olhar. E muito menos se ignora a vista
de mar, seja da sala seja da varanda, protegida
do vento, mas aberta à brisa e à maresia.
Desde que passou de simples bar a restaurante,
há mais de três décadas, que ali se faz um
serviço à inglesa. “E como em equipa vencedora
não se mexe, quisemos manter a excelência e
o profissionalismo”, explica Vasco David, atual
diretor d’A Pastorinha que continua a ser um
clássico da Marginal. Também há serviço
de babysitting (sáb-dom, 13h-17h), e parque de
estacionamento exterior com voiturier, fica a nota.
Quem for cliente habitual – e são muitos
os que ali são tratados pelo nome – apercebe-se
das pequenas alterações que foram feitas com
a mudança de proprietários, pertencendo desde
março ao grupo Sana. As paredes estão pintadas
de branco, há candeeiros novos e retiraram-se

Av. Marginal, Praia de Carcavelos, Cascais > T. 21 457 1892 > seg-dom 11h-23h
112 VISÃO 23 AGOSTO 2018
MARCOS BORGA
os panos do teto. “Demos uma certa elegância A sala e o bar,
e frescura à sala”, refere o diretor. Na ementa, envidraçados,
especializada em peixes e mariscos, preparada amplos e cheios
pelo chefe João Almeida, também se encontram de luz natural,
novidades, principalmente na categoria dos estão separados
mariscos. Agora, para lá das lagostas e dos apenas por um
lagostins, que se podem ver no aquário, há piano de cauda,
também caranguejo do Alasca, camarão de e a varanda
Espinho, gambas-tigre, ostras, entre outras é protegida
do vento mas
variedades, servidas ao natural ou incluídas,
aberta à brisa
por exemplo, no arroz de marisco descascado.
e à maresia
Na hora do pedido, sugerem-nos o cavaco dos
Açores cozido (semelhante a uma lagosta), que
vamos acompanhando com pão torrado e um
copo de vinho branco bem fresco. Num olhar
atento pela sala, constata-se que tudo sai da
cozinha em carrinhos, desde os pratos principais
até às sobremesas. E é assim que escolhemos,
à mesa, o prato seguinte: uma dourada numa
“casquinha” de pão crocante. O peixe é escalado,
retira-se a espinha e depois é envolto no pão.
A seguir vai ao forno. Também há algumas
sugestões de carne, como o lombo de novilho
ou a carne maturada na grelha, e para rematar
a refeição, boa doçaria tradicional portuguesa. É
bom ser recebida com esta delicadeza e, no final,
ainda sair com uma flor na mão. Sandra Pinto
SA IR

Torre e Igreja do Castelo de S. Jorge Lisboa

Abençoada vista
Graças à imaginação do padre Edgar Clara, a cidade ganhou um novo miradouro.
Lá em cima, tocar o sino é o mais divertido, mas contemplar a paisagem é o mais relaxante
É, sem dúvida, das alturas que Lisboa
ganha outro encanto e o Tejo parece
sempre novo. Ainda assente no que
resta de muralha fernandina, esta torre
do século XVIII é uma lufada de ar
fresco num bairro claustrofóbico
durante o dia, com apenas meia centena de
moradores, mas milhares de turistas ruínas acima,
vielas abaixo. Não precisamos de entrar no Castelo
de S. Jorge para descobrir a renovada Igreja de
Santa Cruz do Castelo e a sua torre sineira. Basta
passar as bilheteiras do monumento, seguir até
um pouco mais à frente e encontrar um amplo
largo com a igreja pintadinha de fresco.
Abrir o património à vida cultural e turística
dos bairros está na génese do trabalho diário do
padre Edgar Clara, pois manter igrejas fechadas
ou cobrar bilhete também não lhe faz sentido.
Degradada, a Igreja de Santa Cruz do Castelo, no
lugar onde se julga ter existido uma mesquita,
estava ao abandono e a servir de poleiro aos
pombos. “Tenho criado projetos sustentáveis para
obter receita para as obras e a manutenção dos
lugares”, explica o pároco da freguesia. Nesta igreja
foi escuteiro e nessa altura tinha de se sentar no
coro alto, perto do órgão, tal era a lotação esgotada
nos bancos. “Agora, só celebro uma missa, ao
sábado às cinco e meia, e quando tenho 15 pessoas
sinto-me o Papa no Vaticano”, brinca.
Em parceria com a Signinum, empresa
especializada em gestão de património cultural,
o padre Edgar Clara garante o restauro da igreja,
mais uma equipa de oito funcionários para vigiar
e guiar as pessoas nas visitas diárias, cobrando
bilhete apenas para subir à torre. É com a receita
da torre que vai gerindo a manutenção da igreja,
e trabalho de restauro não lhes falta.
A subida à torre faz-se sem grande dificuldade,
apesar dos 54 degraus da exígua escadaria. Lá em
cima podem estar até 15 pessoas, em simultâneo.
Os quatro sinos de bronze são de 1789, uma década
após a construção da igreja. A panorâmica estende-
-se a São Vicente de Fora, à Ponte Vasco da Gama,
ao terminal de cruzeiros de Santa Apolónia, ao Mar
da Palha – ali estamos mais elevados do que nos
miradouros da Senhora do Monte ou da Igreja da
Graça. E só o repicar dos sinos interrompe
o momento de contemplação. Sónia Calheiros

Depois da
Igreja de
Santa Cruz,
o padre
Edgar Clara
irá reabrir a
Igreja de São
Cristóvão, já
com as obras
finalizadas,
após angariar
verba com
a venda de
telhas e de
biscoitos
artesanais e
uma exposi-
ção de arte
JOSÉ CARLOS CARVALHO

contemporâ-
nea.

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Lg. de Santa Cruz do Castelo, Lisboa > T. 21 580 6032 > seg-dom 9h-21h (verão), até 18h (inverno) > €2, €3 (acesso rápido,
sem espera), €6 (visita guiada) > torredaigrejadocastelo.pt

23 AGOSTO 2018 VISÃO 113

 SA IR

JOSÉ FRADE

Lisboa na Rua Lisboa

A desbravar as Sete Colinas
Os jardins, parques, praças e até alguns reservatórios de água lisboetas são, mais uma vez,
ocupados pelo festival, que cruza música, cinema, teatro, dança e muito mais

É um programa com múltiplas jardins (Quinta de Santa Bárbara, Arco do

O festival ter- camadas, que convida o público
mina a 30 de a (re)descobrir Lisboa, com propostas
setembro, no
culturais ao ar livre e entrada gratuita,
Altice Arena,
a partir desta quinta-feira, 23. Algumas
com o con-
certo Venham
iniciativas deste Lisboa na Rua são
mais 20!, pela repetidas, resultado da adesão alcançada em
Orquestra edições anteriores: no Parque do Vale do Silêncio,
Metropolitana o pulmão dos Olivais, voltarão a ouvir-se o Coro
de Lisboa e e a Orquestra Gulbenkian, dirigidos pela
com Mário maestrina Joana Carneiro (8 de setembro).
Laginha, a O repertório foi sujeito a votação e escolheram-se
recordar o algumas das bandas sonoras mais memoráveis
encerramento da Sétima Arte, como as de Amadeus, West Side
da Expo’98. Story – Amor sem Barreiras, 2001: Odisseia
do Espaço Apocalypse Now.
Outras sonoridades percorrerão a cidade
até ao final de setembro. Os 70 anos do Hot
Clube de Portugal serão assinalados com quatro
concertos de jazz (da escola da casa), agendados
para os finais de tarde de sábado, em quatro
Cego, Torel e Parque Recreativo dos Moinhos
de Santana). Também se procurarão ouvir os
próprios sons de Lisboa, nomeadamente aqueles
que saem dos reservatórios de água (Mãe d’Água
e Patriarcal). A partir de 20 de setembro, o Lisboa
Soa juntará instalações, workshops, passeios
sonoros e residências artísticas, protagonizados
por nomes como o do alemão Lukas Kühne
(autor da escultura sonora Listening Station)
ou da japonesa Tomoko Sauvage, tendo a água
como elemento comum. Já as noites pertencerão
ao fado, com a Praça do Município a acolher
concertos de Paulo Bragança, Teresinha Landeiro,
Sara Correia e Katia Guerreiro.
Nas tardes de domingo, às 18h, será a vez
de convidar o público a Dançar a Cidade, em
diferentes jardins. Haverá vários estilos à escolha,
do forró e do samba ao flamenco, passando pela
kizomba e pela salsa, com mestres a ensinar
todos os passos. A outro ritmo decorrerá o ciclo

114 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 PORTO INSÓL ITO
G E R M A N O S I LVA

Chuva
estraga
festa real
Ano de 1852. A rainha,
D. Maria II, está no Porto.
As senhoras da alta
sociedade portuense
aproveitaram para
homenagear a soberana
com uma festa “elegante e
original”. Estava-se em maio.
O ar primaveril aconselhava
que o acontecimento fosse
ao ar livre. O local foi a
Quinta da Boa Vista, junto
à Rua de Cedofeita, com
belíssimos jardins, hortas
cuidadas, caramanchões,
bosques e pomares, além de
ruas com nomes sugestivos:
Nogueiras, Loureiros,
Pereiras, Limoeiros.
Contrataram-se dezenas
de trabalhadores que,
rapidamente, construíram
uma ampla esplanada.
DR

Vieram carpinteiros,
montaram-se mesas e houve
Os Cafés e outras Constelações de Encontro da A dança volta o cuidado de colocar o
Avenida de Roma (1-23 setembro), conversas a invadir
e percursos à volta do Bairro de Alvalade, várias zonas
enlevados pelas memórias, desde os Verdes Anos da cidade, do
ao despontar do movimento rock nos anos 80. forró ao samba,
A Artista na Cidade 2018, a autora, encenadora da Quinta das
e realizadora brasileira Christiane Jatahy, Conchas à pala
apresentará Moving People, um projeto sobre do Pavilhão de
refugiados e migrantes, que trabalha (como é Portugal. Já
a Open House
habitual na sua obra) a fronteira entre o teatro
volta a celebrar
e o cinema, entre as grandes narrativas e os
a arquitetura,
episódios do quotidiano, entre o espaço teatral abrindo 70
e o espaço público. Um espetáculo exibido no lugar da rainha debaixo das
locais com laranjeiras para a abrigar
Jardim do Palácio Pimenta – Museu de Lisboa, visitas gratuitas do sol. Ficou tudo “num
de 20 a 23 de setembro. Pede-se ao público
brinco”. Jarras com flores,
para levar pequenos objetos, que considere cristais, porcelanas finas,
importante ter numa casa, para serem incluídos pratas e iguarias variadas.
neste documentário ao vivo. É também neste Uma hora da tarde de 20 de
jardim que acontece o CineCidade, com sessões maio. Começam a chegar
marcadas para as noites de sexta-feira. Esta os primeiros convidados
terceira edição é dedicada ao desporto, com em suas seges, carruagens,
filmes sobre futebol, patinagem, ginástica cadeirinhas, e, de súbito,
artística, saltos para a água, fórmula 1 e alta cai um autêntico dilúvio. Era
competição, comentados por atletas, desde os uma vez uma festa. Quem
clássicos de Leni Riefenstahl, sobre os Jogos não teve culpa da borrasca
Olímpicos de Berlim, ao documentário sobre a que desabou sobre o Porto
vida e a carreira do piloto Ayrton Senna – uma foram os fornecedores.
das muitas iniciativas do Lisboa na Rua, que tem A esses, as senhoras da
mantido um público fiel. Joana Loureiro organização tudo pagaram,
assim como aos sete criados
fardados, contratados para

Vários locais de Lisboa > 23 ago-30 set > grátis
servir o almoço…

23 AGOSTO 2018 VISÃO 115

 CO MPRA R

Mukubais
São as crenças e os
costumes de um povo
que desenham uma
parte da sua identida-
de. Mónica Rey e Lau-
ra Correia, duas portu-
guesas que vivem
entre Lisboa e Luanda,
não são designers,
mas decidiram criar
uma marca que pega

D.R.
nessas referências

Monte Campo
e as transforma em
imagens de moda, tão
capazes de celebrar
uma cultura como de

As Gardunha estão de volta

altertar para o seu
desaparecimento.
A Mukubais começa,
então, com uma
A marca portuguesa relançou o seu modelo mais emblemático, primeira coleção de
t-shirts de algodão
uma mochila moderna e revivalista q.b., com novos detalhes estampadas com
de design e 17 novas combinações de cores a essência da tribo
Mucubal, do Sul de
Angola, que observou
Embora a produção da Gardunha Clássica nunca tenha de perto até chegar
parado na pequena fábrica familiar da Monte Campo, a colagens de ima-
Ao lança- fundada em 1978 por Eduardo Pinheiro, em São João da gens e palavras que
mento da Madeira, durante vários anos não se ouviu falar desta ajudassem a contar a
Gardunha MC sua história. Mais tar-
mochila, que muitos ainda guardam religiosamente em casa.
juntam-se de, a ideia é continuar
Resistente, impermeável e de design simples, foi, durante
outros dois, a encontrar inspiração
as décadas de 80 e 90 do século passado, objeto inseparável de várias nas tradições africa-
o de uma gerações de jovens, e não só, que a levavam às costas para todo o lado.
bolsa de cin- nas das suas tribos,
Vinte anos depois, a Gardunha está de volta numa nova versão, sempre com um lado
tura e o de um
a Gardunha MC (€59), que ao desenho clássico acrescentou detalhes, solidário. Por cada
boné, ambos
disponíveis
como o novo logótipo bordado no tampo da mochila, as fitas peça vendida, um euro
nas mesmas estampadas com o nome da marca, a bolsa interior para levar reverte para ajudar
cores da o computador e os fechos vulcanizados à prova de água. Com 22 litros aquela comunidade,
mochila mas, de capacidade, continua a permitir transportar muita coisa, dos livros em especial na época
por enquan- e cadernos da escola ao equipamento desportivo, tal como se fazia nos das secas. R.M.C.
to, apenas à anos 80 e 90. O processo de fabrico ainda implica muita mão de obra
venda na loja manual, como a das costureiras responsáveis pela junção final das 
Sky Walker, diferentes partes que compõem a mochila. A garantia de durabilidade À venda em
www.mukubais.com
em Lisboa. das peças Monte Campo é, por isso, um dos fatores que distinguem > a partir de €50
a marca portuguesa, atualmente a funcionar com três gerações da
família Pinheiro, avô, filho e neto, todos com o nome Eduardo. A nova
Gardunha MC está disponível em 17 combinações de cores, tal como
a bolsa de cintura e o boné, que chegam em setembro – mais duas
novidades que assinalam o relançamento da marca portuguesa
e os seus 40 anos de vida. S.L.F.

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À venda em várias lojas multimarca e em www.montecampo.pt

116 VISÃO 23 AGOSTO 2018

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Jesuton Porto
Filha de mãe jamaica-
na e de pai nigeriano,
a cantora inglesa
radicada no Brasil
estreia-se em palcos
europeus para apre-
sentar o seu mais
recente disco, Home,
feito em parceria

GETTY IMAGES
com Mario Caldato
Jr (produtor dos
Beastie Boys), Jack
Johnson e Seu Jorge.

Vilar de Mouros Caminha Jesuton começou

como artista de rua e
foi através dos vídeos

O peso da história
partilhados nas redes
sociais que chegou a
um popular programa
televisivo.

O lendário festival volta a trazer o rock à pacata aldeia minhota 

que lhe dá o nome Casa da Música > Av. da
Boavista, 604-610, Porto
> T. 22 012 0220 > 24 ago,
sex 22h > grátis
Foi 1965 o ano em que Vilar de Mouros recebeu aquele que
A exemplo ficaria na história como o primeiro festival de música em
dos anos an-
teriores, ha-
Portugal. Organizado por António Barge, um médico da
terra, viria nos anos seguintes a alargar o espetro a estilos
Vai-m’à Banda
verá também
uma aposta
como o fado ou a música erudita, mas seria preciso esperar
até 1971 para que o rock começasse finalmente a ouvir-se na
Guimarães
na gastro-
nomia local, pacata aldeia minhota. Assistiu-se então a algo nunca visto, com cerca The Legendary
com dezenas de 30 mil pessoas, vindas de toda a Europa, para assistir a um dos Tigerman, a dupla Tó
de restauran- primeiros festivais de rock a ter lugar no Velho Continente, como a Trips e João Doce,
tes da região imprensa internacional destacou na altura. Os dias de liberdade que Toulouse, Mathilda, o
presentes no então se viveram, ao som de Elton John e Manfred Mann, marcariam coletivo Suave Gera-
recinto, para toda uma geração, influenciada pela cultura hippie. Ainda sob a batuta ção e DJ Fitz são os
dar a provar de António Barge, o Vilar de Mouros voltaria dez anos depois, artistas da 2ª edição
os melhores trazendo até ao Minho nomes como U2, The Stranglers, Echo & the do festival que troca
sabores Bunnymen ou os novinhos GNR, mas também Duo Ouro Negro, o palco convencional
da cozinha Amália Rodrigues e Carlos Paredes. Regressaria entre 1996 e 2006, já pelas tascas de
minhota. sob moldes mais comerciais, e foi novamente ressuscitado em 2016, Guimarães. O roteiro
com uma filosofia que recupera o legado das primeiras edições, como começa na Tasca Ex-
novamente se comprova pelo ambicioso cartaz deste ano. Um dos presso, no Largo da
pontos altos do primeiro dia, esta quinta, 23, – que contará também República do Brasil,
com a presença de PIL, Human League e Pretenders – é o concerto segue pelo teleférico
até à Penha, à Adega
de celebração dos 40 anos dos Bauhaus, durante o qual os antigos
do Ermitão, e acaba
membros Peter Murphy e David J irão partilhar o palco. O festival
no Largo do Trovador,
continua na sexta e no sábado, dias 24 e 25, com nomes tão diversos com os petiscos do
como Incubus, Editors, David Fonseca, GNR, James, dEUS, Los Lobos, Tio Júlio e da Taberna
Crystal Fighters, John Cale e Luís Severo, entre outros. Miguel Judas do Trovador.

 
Vilar de Mouros, Caminha > 23-25 ago, qui-sáb 17h > €35 a €70 (passe) Vários locais de Guimarães
> 25 ago, sáb 15h > grátis

118 VISÃO 23 AGOSTO 2018

Festival do Crato Crato Zigurfest Lamego
Durante quatro dias,

Rock in Alto Alentejo

Morcheeba e Ugly Kid Joe são as estrelas internacionais do cartaz, que conta
ainda com os portugueses Raquel Tavares, Slow J e Xutos & Pontapés
É já longa a história deste
festival, que surgiu vai para
mais de três décadas como
parte integrante da feira de
gastronomia e artesanato do
Crato e, em 2010, ganhou
uma identidade própria, assumindo-
-se, ano após ano, como uma
alternativa cada vez mais a ter em conta
no já de si bastante preenchido
calendário nacional de festivais de verão
– devido ao preço acessível dos bilhetes,
mas especialmente à oferta musical.
Com as duas últimas edições
esgotadas, é, portanto, com a fasquia
elevada que o Festival do Crato se
apresenta ao público, com uma edição
que, este ano, se prolonga por cinco
dias. Como já é tradição, a primeira
noite (terça, 28) é de entrada livre e
serve para dar as boas-vindas a todos
os que vão ao festival. Além de Bispo e
de Bárbara Bandeira, atuam também
os Quinta do Bill, num espetáculo
a meias com a Filarmónica do Crato.
Na quarta, 29, serão os sons do
hip-hop, da kizomba e do reggae a
marcar a noite, com um alinhamento
composto por Slow J, Calema e
Richie Campbell. No dia seguinte, 30,
sobem ao palco as primeiras estrelas
internacionais convidadas para a
edição deste ano, os rockers norte-
-americanos Ugly Kid Joe, antecedidos
pelos portugueses Os Quatro e Meia,
Wet Bed Gang e Tiago Bettencourt.
Na sexta, 31, o estatuto de cabeça
de cartaz pertence aos britânicos
Morcheeba, numa noite também
marcada pelo rock dos suecos Mando
Diao e pelo fado da portuguesa Raquel
Tavares. Para sábado, 1 de setembro,
estão reservados Blaya, Expensive Soul
e Xutos & Pontapés, aos quais caberá
o concerto de encerramento da edição
deste ano do festival. M.J.
D.R.
24 nomes da nova música
portuguesa irão apresentar-
-se em oito palcos
espalhados por Lamego,
em mais uma edição do
Zigurfest, que apresenta
também aos visitantes
alguns dos locais mais
emblemáticos da cidade,
como o Teatro Ribeiro
Conceição, o Museu
de Lamego, o Núcleo
Arqueológico da Porta
dos Figos, o castelo, a Rua
do Castelinho e o Parque
Isidoro Guedes. Além da
música, o festival volta a
integrar uma vertente de
arte contemporânea, com
exposições, instalações
e workshops através
da plataforma ZONA
– Residências Artísticas
de Lamego.

Centro histórico de Lamego > 29
ago-1 set, qua-sáb 17h30 > grátis
Soundville Viana do Castelo
O cantautor norte-americano
Emperor X, os portugueses
Ermo e The Twist Connection
e o brasileiro O Gringo
Sou Eu são algumas das
propostas para a edição de
2018 do festival Soundville,
recentemente distinguido
com um primeiro lugar no
concurso Programa Sê-
-Lo Verde, instituído pelo
Ministério do Ambiente, com
vista incentivar a adoção de
medidas verdes nos grandes
eventos de música. Tem
como cenário um dos mais
bonitos recantos do concelho
de Viana do Castelo,
a Azenha das Pesqueiras,
junto ao rio Neiva, que aqui
serve de fronteira entre as
freguesias de Barroselas
e Durrães, esta última já
pertencente ao município
de Barcelos.


 Azenha das Pesqueiras, Barroselas,
Campo 1º de Maio, Crato > 28 ago-1 set, ter-sáb 22h > €12 a €32 (passe) Viana do Castelo > 24-25 ago,
sex 22h, sáb 14h > €3

23 AGOSTO 2018 VISÃO 119

 VER
Festa do Teatro Setúbal
Lugar à equidade de género
A 20ª edição do festival privilegia os temas ligados à mulher e ao feminino,
com um programa que reúne 31 espetáculos espalhados pela cidade
Não há volta a dar-lhe, a equidade
de género tem sido uma das questões
da ordem do dia, e os frutos das ações
dos movimentos ativistas acabam por
extravasar para outros “lugares”. Foi
o que aconteceu com a organização
da XX Festa do Teatro quando, a dada altura, se
apercebeu da recorrência do tema nas peças que
estava a programar e decidiu tornar a mulher e o
feminino na temática deste festival, que começa
esta quinta-feira, 23, em Setúbal. “O festival trata
da repressão exercida sobre a mulher durante
tantos anos”, refere José Maria Dias, diretor do
Teatro Estúdio Fontenova, a companhia anfitriã.
“As mulheres que não se encaixavam no padrão,
era fácil acusá-las de bruxaria ou de prostituição,
e iam para a fogueira. Isso acontece ainda hoje,
como é o caso do castigo por apedrejamento
devido a adultério.”
A XX Festa do Teatro – Festival Internacional de
Teatro de Setúbal conta com cinco estreias, duas
delas no primeiro dia: We Do Not Know How to
Dance, dos Yellow Collective (Escola Secundária

Vários locais de Setúbal > T. 265 233 299 > 23 ago-2 set > €8 (bilhete), €6 (estudantes, menores de 25 anos, maiores de 65 anos)
120 VISÃO 23 AGOSTO 2018
Sebastião da Gama), e Ah! Minha Dinamene!,
do Teatro Estúdio Fontenova (Forte de S. Filipe).
O texto da segunda peça, escrito por Luísa
Monteiro, partiu de investigações feitas acerca de
uma antiga casa de recolhimento para mulheres
pobres setubalenses, de uma carta de amor de
uma freira do Mosteiro de Jesus, encontrada
200 anos depois, das cartas de pedidos de perdão
enviadas a D. João II e das cartas de Mariana
Alcoforado, uma freira de Beja que se apaixonou
por um tenente francês, aquando das invasões
francesas e lhe escreveu cartas até ao fim da vida.
E também da figura de Dinamene, a antítese
da ideia de clausura: a musa do canto camoniano
que se crê ter sido uma pirata dos mares.
As outras três estreias são Hoje Durmo em
Berlim, do White Noise Teatro, Corpo Futuro,
da companhia 33 Ânimos, e Rimance de Mateus
e da Baleia, da Cães do Mar, vencedora da secção
Mais Festa da edição passada. Há ainda uma
mostra de curtas-metragens, workshops, duas
exposições e dois concertos – um de abertura
e outro de fecho da festa. Cláudia Marques Santos
Casa da
Cultura de
Setúbal, Esco-
la Secundária
Sebastião da
Gama, Forte
de S. Filipe,
Fórum Mu-
nicipal Luísa
Todi, Largo
do Sapalinho,
Parque do
Bonfim, Praça
do Bocage
e Parque
Urbano de
Albarquel
são os locais
onde decorre
a XX Festa
do Teatro.
LEONARDO SILVA

Between the Devil and the Deep Blue Sea
– Entre a Espada e a Palavra Lisboa
Homem branco, câmara negra
A retrospetiva dedicada ao fotógrafo sul-africano Pieter Hugo tem imagens poderosas, retiradas
de quinze séries, todas elas dedicadas a retratar a Humanidade – frágil, brutal, filha da História
O primeiro instinto é procurar
as imagens que trouxeram
reconhecimento internacional a Pieter
Hugo: a série fotográfica sobre os
saltimbancos nigerianos, domadores
de hienas, mas também de cobras
pitão-africanas e macacos. Uma reportagem
feita em 2005, quando o fotógrafo recebeu
um email de um amigo, mostrando-lhe a
imagem bizarra de homens a passear pelas ruas
de Lagos com uma hiena acorrentada. Hugo
encontrá-los-ia na periferia de Abuja, tendo
passado oito dias com a família de tratadores,
que incluía uma menina pequena. Regressaria
numa segunda viagem, procurando ir além
do exotismo ou das relações de domínio e
submissão. O impacto mantém-se: a perceção
da dimensão absurda destas presenças no meio
urbano, a latência da selvajaria a deslocar-se
intermitentemente entre humanos e animais,
a fisicalidade poderosa de todos os retratados,
a ambivalência emocional de quem observa,
capturado entre o fascínio e o repúdio,
renovam-se. Porém, o corpo de trabalho

Museu Coleção Berardo > Pç. do Império, Lisboa > T. 21 361 2878 > até 7 out, seg-dom 10h-19h > €5, sáb grátis
D.R.
de Pieter Hugo é abrangente e forte demais, para As quinze
ser reduzido às “fotos das hienas”. E não deixa séries, agora
de ser um sinal de que a entrada em Between the apresentadas no
Devil and the Deep Blue Sea - Entre a Espada e Museu Berardo,
a Palavra, se faça através dos retratos de compreendem
crianças, brancas e negras, encostadas a árvores, uma década
deitadas no chão queimado, acocoradas de trabalho de
ou indefesas – um reflexo do olhar novo que Pieter Hugo,
o fotógrafo ganhou após ser pai (os autorretratos em vários
continentes:
com a filha e o filho, bebés, estão patentes).
África, Ásia
A dureza social de um país como a África do
e América
Sul, a lamber as feridas pós-apartheid, perpassa
os olhares dos trabalhadores das lixeiras de
Musina, as famílias de afrikaners, as empregadas
da sua própria família. Há uma consciência
da morte e da fragilidade da vida, das perpétuas
injustiças, manifestada igualmente quando
ele capta outras geografias: as novas gerações
chinesas, os coletores de mel silvestre do Gana,
os atores de Nollywood, os sem-abrigo de Los
Angeles, os viajantes adormecidos em voos de
longo curso, zombies fotografados com câmara
de infravermelhos, a sua geração marcada
pelo sol. Imperdível. Sílvia Souto Cunha
23 AGOSTO 2018 VISÃO 121
 VER

Milla
Bonnie & Clyde têm um bebé
Um filme naturalista, de uma humanidade comovente, que nos fala da grande aventura do amor
e da maternidade na juventude

Tal como os irmãos Dardenne e Ursula
Meier (em Irmã), Valérie Massadian
encontra o substrato do seu filme na
classe baixa e trabalhadora da Europa
desenvolvida. Não o faz em torno de
imigrantes ou de comunidades étnicas
socialmente discriminadas, na denúncia de uma
espécie de “negligência xenófoba” de Estado, mas
antes entre os próprios nacionais, loiros,
brancos, dando um retrato abrangente de uma
pobreza que subsiste independentemente dos
fluxos migratórios. Milla, como Rosetta ou Irmã,
conta uma história totalmente europeia, sem
discurso racial ou margem de fluxos migratórios,
sendo apenas um reflexo de uma assimetria
social ancestral e avassaladora, que a tão
desenvolvida Europa está longe de erradicar.
Milla começa por levar-nos numa maravilhosa
aventura juvenil. A primeira parte do filme é um
hino ao amor e à liberdade. Milla e Leo partem
para a vida, com uma criança por nascer,
com uma irresponsabilidade sonhadora própria
de quem é jovem. É como se Bonnie e Clyde, em
vez de assaltarem bancos, fugissem para ter um
filho, o que se revela uma experiência tanto
ou mais radical.
O confronto com a realidade, dura e crua
– de quem se vê forçado a enfrentar a vida
– é dado também com um naturalismo quase
poético. O mundo não desaba, apenas se
reconstrói e se transforma no sorriso e na graça
do bebé que nasceu. Milla torna-se assim um
poderoso e endiabrado retrato da maternidade
adolescente, sem nunca correr risco de moralizar.
É filmado num estilo realista-documental, mas
com um extraordinário sentido de câmara, que
nunca se apressa e sabe tirar o melhor de cada cena,
o que só é possível com um argumento solto,
em que o realizador encontra flexibilidade e tempo
para deixar que os atores ajudem a construir
o filme. No meio desta toada quase documental,
Valérie arrisca interlúdios, deliberadamente
artificiais, que acabam por dar força e carisma
à narrativa, como as leituras do ator para a câmara,
em jeito de quem nos interpela, ou o extraordinário
momento musical, em que os Ghost Dance
apresentam uma visceral e minimalista versão de
Add it Up, dos Violent Femmes. Manuel Halpern

Coprodu-
zido pela
portuguesa
Terratreme,
Milla revela
Séverine Jon-
ckeere, uma
“não atriz” de
uma huma-
nidade e de
uma fotogenia
deslum-
brantes, que
contracena
com o próprio
filho, Ethan.
O registo hí-
brido, entre o
documentário
e a ficção, va-
leu-lhe o mais
importante
prémio do
DocLisboa.
DR


De Valérie Massadian, com Séverine Jonckeere, Luc Chessel, Ethan Jonckeere > 128 minutos

122 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 L IVR OS E DISC OS

A Mulher de Cabelo
Ruivo Orhan Pamuk

D.R.
Afirma Pereira
A mulher de
cabelo vermelho,
pintada por Dante
Gabriel Rossetti,

Pierre-Henry Gomont/Antonio Tabucchi tem importância

arquetípica neste
décimo romance de

Anti-herói ao quadradinho
Pamuk. Porém, aqui,
há outra ruiva que
escolheu um destino
sacrifical semelhante
ao das musas do
Uma banda desenhada que fecha bem o verão: a adaptação feliz, simbolista. Ela é a
graficamente bela, de um dos melhores romances do autor italiano segunda narradora
de A Mulher de
Cabelo Ruivo
O cinema já tinha dado o rosto de Marcello Mastroianni (Editoral Presença,
a este Pereira, jornalista acomodado, alheado, católico 248 págs., €17,90),
obcecado com a ressurreição da carne – sobretudo quando livro que desvenda
esta ameaça ser a tormenta de um corpo volumoso para toda uma narrativa
a eternidade. No entanto, aqui, o traço aparentemente leve, inspirada no mito de
anguloso, fantasista e algo rétro que o desenhador Pierre- Édipo. Nas primeiras
-Henry Gomont aplica ao personagem de Antonio Tabucchi aguça-lhe páginas, a voz é a de
Cem, miúdo de 16
as contradições e adoça-lhe os gestos. Fato claro, bigodinho de ator
anos, cujo pai, dono
Afirma Pereira antigo, figura rotunda, a destilar suor, lirismo e hesitação, este é um
da farmácia Hayat
(G. Floy Studio, anti-herói cheio de dúvidas e cobardias, que, num crescendo, adotará (Vida), prefere os
160 págs., €18) um gesto redentor e heroico. Portugal sufoca, sob o jugo do Estado sonhos políticos às
partilha nome Novo e da PIDE em 1938. O solitário Pereira, intelectual de serviço num responsabilidades
e história com jornal da capital, mantém deliberada distância das tensões políticas à familiares. Nas
o romance sua volta – um jornalista que faz de conta que não o é. Viúvo férias escolares,
de Tabucchi, inconsolável, tem por únicas companhias o retrato da esposa morta e a o rapaz aprende
publicado em sua própria consciência, mantendo conversas imaginárias com ambas com o rude Mahmut,
1994, quando (sequências desenhadas graciosamente). Há ainda um padre que lhe figura paternal,
a ditadura
pergunta em que mundo vive ele, já que se mostra cego perante a a escavar um poço
salazarista
violência que acontece à sua porta, e uma porteira delatora. de água. O amor
começou
a perder
Este entorpecimento existencial é sacudido por Monteiro Rossi, um também o ronda, num
idealista que arrisca contratar para escrever obituários higienizados formato inesperado.
contornos nas
de escritores, e que acabará por espoletar nele a crise moral reprimida. Um drama acontece,
gerações mais
Uma caminhada até ao fim da noite salazarista, fiel ao espírito do mudando o rumo
novas e Silvio
romance, desenhada com sensibilidade, bom senso e mão que gosta do futuro, e será
Berlusconi
do pormenor – as fachadas dos edifícios, a planície de telhados, a voz da mulher de
ascendeu ao
as pinceladas que evocam a luz mediterrânica, as cores emocionais, a cabelo ruivo que ata
poder em Itália
silhueta tragicómica de Pereira que ora pesa ora flutua sobre as elegantes pontas
soltas desta história.
as páginas... S.S.C.
S.S.C.

23 AGOSTO 2018 VISÃO 123

 L IVROS E DI S C OS

Joy as an Act of Resistence Idles

A luta continua, mas sorridente
A “melhor banda punk britânica” regressa com um disco Version 2.0 20th
apontado contra todos os preconceitos e desigualdades
Anniversary Edition Garbage
Quando surgiu, em 1995, com
o álbum homónimo, a banda
composta pela escocesa
Shirley Manson (voz) e pelos
norte-americanos Steve
Marker (baixo), Duke Erikson
(guitarra) e Butch Vig (bateria)
foi uma autêntica pedrada
no charco. Numa época em
que as guitarras dominavam,
o modo como uniram os
samplers e a eletrónica à
estética do rock alternativo
conseguiu não só agradar a
gregos e troianos, mas tam-
bém chegar a uma audiência
muito mais alargada (leia-se
mainstream) do que o inicial-
D.R.

mente esperado. Apesar de

continuarem a editar até hoje,
Foi um dos momentos memoráveis da edição os Garbage nunca mais con-
deste ano do Primavera Sound, o concerto seguiram o sucesso desses
dos Idles. Eles regressam agora com o segundo tempos, especialmente com
álbum de originais, Joy as an Act of Resistence, o segundo álbum, Version
que foi então apresentado em primeira mão 2.0, lançado em 1998, que foi
aos sortudos presentes no Parque da Cidade, recentemente reeditado, por
no Porto. Este é um título que resume na perfeição a música ocasião do seu 20º aniversá-
do quinteto de Bristol que, com um único álbum, Brutalism rio. Além dos temas originais,
(2017), conseguiu fazer renascer das cinzas o punk Joy as an Act todos eles remasterizados, a
britânico, reinventando-o e tornando-o novamente vital of Resistence caixa inclui ainda um segun-
– tanto no plano musical como no gesto político. Não é antecede a do CD com raridades, lados B
surpreendente que, de imediato, tenham sido brindados oportunidade e até um inédito. O que real-
com epítetos “modestos” como “melhor banda punk que o público mente importa é como, duas
britânica” (como se houvesse outra...) ou, mais português vai décadas depois, Version 2.0
simplesmente, “a banda do momento”. Porém, estas ter de ver os consegue soar tão (ou mais)
Idles atuar em atual como então. Talvez seja
fórmulas são insuficientes para resumir a música destes
dois concertos, isto que significa, afinal, ser
rapazes, assim como é insuficiente classificá-la apenas com
a 26 de uma banda à frente do seu
o rótulo de punk rock. Herdeiros de uma linha comum a tempo. M.J.
novembro
bandas tão diversas como os norte-americanos Pixies e
no Hard Club,
Black Flag, ou os compatriotas Gang of Four, os Idles têm no Porto, e a
o talento de transformar a crueza do punk e do hardcore 27 no Lisboa ao
em arte, e de a cruzar com muitos outros ingredientes. Um Vivo, na capital
feito que é igualmente demonstrado neste novo trabalho:
um disco “despido até à pele”, de modo a “encorajar
a vulnerabilidade”, defende a banda. Como se fosse “um
sorriso despido de preconceitos num mundo de merda”,
criado para “celebrar a diferença”. Os seus alvos estão, aliás,
bem identificados: o machismo, o nacionalismo, as políticas
anti-imigração e todo o tipo de desigualdades sociais. Tudo
isto cantado e tocado a uma velocidade estonteante, que
desperta a vontade de cantar e dançar sem parar. M.J.

124 VISÃO 23 AGOSTO 2018

 TV
Unidade 42 RTP2
Uma companhia segura
O novo policial belga vem reforçar a oferta de séries europeias de qualidade no horário
nobre do canal 2
Há três anos, a programação dos serões
da RTP2 surpreendia tudo e todos,
mesmo sem bater recordes de
audiência. A série dinamarquesa
Borgen levava os telespectadores pela
mão a conhecerem os jogos políticos
na Dinamarca, com a eleição de uma primeira-
-ministra que descobriu como o cargo lhe trazia
tantas responsabilidades imprevistas. Era um
tempo televisivo ainda sem Netflix para ver sem
hora marcada. Para quem não aprecia telenovelas
portuguesas, debates acesos sobre futebol,
blockbusters de ação norte-americanos ou
dramas nos hospitais, o horário nobre do canal
dois da estação pública nacional passou a ser
sinónimo de séries europeias de qualidade,
algumas em línguas totalmente desconhecidas,
outras em idiomas mais percetíveis. Quem
não se lembra de Príncipe, um policial com muito
romance à mistura, em espanhol; de Gomorra,
dedicada à história da máfia italiana; de
A Agência Clandestina sobre os serviços secretos
franceses e o terrorismo; de Eternos Rivais, acerca
Com dez
episódios,
a série policial
belga leva-nos
pelos meandros
dos crimes
cibernéticos

Estreia 24 ago, sex 22h15 > exibição seg-sex 22h15
dos fundadores da Adidas e da Puma, em alemão?
Ou, mais recentemente, O Agente Secreto, sobre
espionagem russa em terras britânicas, e
O Restaurante, uma produção sueca que começa
em 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial.
Agora, no final deste mês de agosto, estreia-
-se Unidade 42, sobre os meandros dos crimes
cibernéticos, cada vez mais virais e menos fáceis
de detetar. Nesta série policial de dez episódios,
para ver de segunda a sexta-feira, por detrás de
cada caso há sempre uma história humana para
ser contada. Na Unidade de Delito Cibernético
da polícia belga, Sam e Billie não se conhecem,
mas o agente pouco experiente em tecnologias
e a ex-hacker vão ter de aprender a trabalhar
juntos. No episódio de estreia, várias mulheres
são encontradas mortas, nuas, em frente aos seus
computadores. A ligação à internet foi alvo
de um ataque informático e agora a dupla terá
de conseguir perceber todas as pistas falsas que
o serial killer coloca nos computadores para não
ser apanhado. Ao mesmo tempo, é preciso prever
e impedir novos ataques e novas vítimas. S.C.
D.R.
23 AGOSTO 2018 VISÃO 125
 ES CA PA R
Vila Galé Collection Braga
Reencontro com o passado
A reabilitação do antigo Hospital de São Marcos quis respeitar a história
e a arquitetura do edifício. Sem esquecer a inovação e o conforto de um quatro estrelas
Tanto nas áreas Fala-se de Braga como a cidade dos
comuns como arcebispos e o certo é que este hotel
nalguns dos ajuda a contar a enorme influência do
quartos do clero nos seus destinos. Relata, em
hotel recorda- painéis informativos, como o antigo
-se a História de Hospital de São Marcos nasceu, em
Braga e deste 1508, por iniciativa de D. Diogo de Sousa,
edifício, com reunindo aqui todas as instituições assistenciais.
referências a Até 2011, manteve-se em funções, tendo sido
personalidades
posteriormente cedido pela Santa Casa da
ilustres ou
Misericórdia de Braga ao grupo Vila Galé, para
a épocas
marcantes
instalar uma das unidades hoteleiras que
integram o conceito Collection (com serviços
premium), pelo seu interesse patrimonial, uma
vez que está classificado como imóvel de
interesse público. Pelos corredores exibem-se
paramentos e peças usadas nas liturgias, assim
como objetos ligados à medicina, respeitando
a história do edifício.
Houve uma certa solenidade na transfor-
mação, tanto na conservadora reconversão
arquitetónica como na decoração clássica,
sobretudo na ala mais antiga, à volta dos
claustros ajardinados. Mas permitiram-se alguns

Lg. Carlos Amarante, 150, Braga > T. 253 146 000 > a partir de €120
126 VISÃO 23 AGOSTO 2018
LUCÍLIA MONTEIRO
desvios contemporâneos, como acontece no Bar
Euforia, de cores vibrantes, e na sala de estar
S. Marcos, onde se exibe um filme de realidade
virtual e uma experiência em holograma sobre
os interesses turísticos da cidade. “Queremos
mostrar que Braga, em termos de inovação, é
uma referência a nível mundial”, conta Carlos
Alves, o diretor do hotel. Existem 123 quartos,
confortáveis e modernos, 20 deles familiares,
como tem sido política nos hotéis Vila Galé,
dotando-os de uma oferta mais económica
para as famílias. Além de uma adega onde
fazem provas de vinhos (o grupo é produtor no
Alentejo), existem dois restaurantes, abertos
ao público: o Fundação, com buffet (€26, sem
bebidas) e a decoração a remeter para as origens
de Portugal; e o Bracara Augusta, refletindo a
influência romana, com serviço à carta e pratos
da gastronomia regional. Entre as áreas de
lazer, destacam-se as piscinas exteriores (a das
crianças, com escorregas, tem sucesso garantido)
e o spa Satsanga, com piscina interior, salas para
massagens e tratamentos, e ginásio. Serviços
abençoados. Joana Loureiro
 O gosto dos outros

Tamara
O canivete suíço
“é a melhor
invenção de todos os tempos!”,
assegura a artista, que nunca
Algures entre a
Alves
larga o seu. “Há sempre uma
situação que este objeto pode
resolver”
street art, as tatuagens Metro Lisboa
e a ilustração, a artista Gosta de andar neste transporte
público com phones nos ouvidos,
pinta com as emoções música bem alto e tempo para ver
e o instinto, como se as pessoas. Tamara explica melhor:
pode ver um pouco “Acho que faz parte do meu trabalho,
tenho de observar, estudar, aprender.
por toda a Lisboa. Gosto de contrariar o stresse da
Para breve, está cidade, andar devagar entre multidão
uma intervenção e não me preocupar com o tempo.”

na Amadora e outra
em Itália
Vale da Lapa Lagoa ROSÁRIO MELLO E CASTRO
rcastro@trustinnews.pt
No Carvoeiro, onde cresceu, há uma
praia que durante o ano inteiro é de
ninguém. “Chama-se Vale da Lapa
e está sempre vazia porque o acesso
é difícil, exceto para um casal de
corvos que vive num buraco de uma
rocha, onde fez o seu ninho”, conta. Dima Rebus é “um artista
“Olhar o mar dá-me uma noção de russo incrível que descobri há
horizonte e liberdade, é das coisas pouco tempo, porque tenho
que me fazem mais falta no dia a dia.” pintado muito a aguarela”.
Além deste, tem vários artistas
favoritos que a inspiram, e é-lhe
difícil eleger só um

“Lunário”,
de Al Berto
Impossível ficar
indiferente a este
Lightnin’ Hopkins livro, já o leu por
várias vezes e tem
Tamara Alves adora blues e destaca sempre qualquer
este emblemático guitarrista norte- coisa nova para
-americano, em especial o disco lhe dizer.
Lightnin’ Strikes Back, de 1981, “As palavras de
que o pai lhe ofereceu. “Música Al Berto inspiram a forma de me
hipnotizante, perfeita para um dia exprimir e a minha linha de trabalhos,
JOSÉ CARLOS CARVALHO

de calor ou para trabalhar”, descreve. e também me dão coragem”, diz.

23 AGOSTO 2018 VISÃO 127

 J O GOS

Palavras cruzadas O S T E R M O S - C H AV E D A AT U A L I D A D E

>> HORIZONTAIS >> 1. Comida processada e embalagens de plástico podem ser

maus para os seus filhos – pediatras da Academia Americana vêm alertar para os
perigos da exposição excessiva dos mais pequenos aos (…) que se juntam à comida
e que existem nas embalagens de plástico ou em latas. Instituto Camões (abrev.).
// 2. Contr. dos pron. me e a. Não apto. // 3. Planta do tipo da família das anonáceas.
Rio da Suíça. // 4. Colocar-se sobre uma cavalgadura. Parte anterior do navio.
// 5. Um certo. Mulo. // 6. Por (ant.). Esquemas suspeitos na reconstrução de Pedrógão
– o truque de alterar a morada (…), depois dos incêndios, funcionou: várias habitações
foram reabilitadas apesar de já estarem em ruínas antes do fogo ou de nem serem
residência permanente dos proprietários. // 7. Chefe do posto fiscal na antiga Índia
Portuguesa. // 8. Antes de Cristo (abrev.). Cair em marasmo. // 9. Designa horror
ou espanto. Grande porção. Cloreto de polivinilo (sigla). // 10. Designa dor, espanto,
admiração, repugnância (interj.). Variante enclítica do pron. pess. compl. a.
// 11. Misturar ou preparar com ópio. Nome científico de tremor de terra.
> > V ERTICAIS > > 1. Diz-se do cavalo malhado de preto e branco. Já fez pelo
menos 80 mortos e levou 35 mil pessoas a receber tratamento hospitalar em três
semanas, a onda de calor no (…) – a maioria dos mortos são idosos, mas também
há crianças entre as vítimas. // 2. Prejuízo. Certa árvore de Angola. // 3. Dia anterior
ao de hoje. Interjeição designativa de dor. // 4. Experimentaram. Hectare (abrev.).
// 5. Formosa porcelana amarela fabricada na China, no séc. XVII. Oferecer. // 6. Seis
em numeração romana. Lâmpada potente de automóvel e de outros veículos.
// 7. Organização das Nações Unidas (sigla). Observaras. // 8. Sociedade Anónima
(abrev.). Vurmo. // 9. Pessoa que dança, em relação àquela com quem dança. “Um
dos grandes benefícios desta revolução tecnológica é que podemos escolher onde
trabalhar, desde que haja um bom wi-fi” – em entrevista à VISÃO, Pedro Santa-Clara,
professor universitário e responsável pelo recente (…) da Nova SBE. // 10. Casa
de pedra (Brasil). Avenida (abrev.). // 11. Enrubesce. Carne de porco tirada de entre
o chispe e a parte mais gorda da espádua.

>> Q U I Z >> 1. a. // 2. c // 3. b // 4. c // 5. b // 6. b // 7. a // 8. a // 9. c // 10. b

SOLUÇÕES

Hui. // 4. Tentaram, Ha. // 5. Aal, Dar. // 6. VI, Farol. // 7. ONU, Miraras. // 8. SA, Pus. // 9. Par, Campus. // 10. Itaoca, Av. // 11. Cora, Larcão.
// 8. AC, Marasmar. // 9. Poh, Ror, PVC. // 10. Uh, La. // 11. Opiar, Sismo. >> V E RT ICAIS > > 1. Amame, Japão. // 2. Dano, Paco. // 3. Ontem,
>> HO R I ZO NTA I S >> 1. Aditivos, IC. // 2. Ma, Inapto. // 3. Anona, Aar. // 4. Montar, Proa. // 5. Tal, Mu. // 6. Per, Fiscal. // 7. Jamadar.

Sudoku FÁC I L Quiz

POR FILIPE FIALHO

1. Uma família russa, 6. Quanto emprestam diariamente

os Korol, são chamados os bancos às famílias portuguesas?
os Novos Robinson Crusoe. Porquê? A. €4,7 milhões
A. Viveram 22 anos isolados numa ilha B. €47 milhões
B. Viveram 15 anos isolados numa ilha C. €470 milhões
C. Viveram 10 anos isolados numa ilha
7. Madonna está a promover uma
2. Qual a atriz mais bem campanha de angariação de fundos
paga da atualidade, a favor de que país africano?
segundo a Forbes? A. Malawi
A. Angelina Jolie B. Moçambique
B. Meryl Streep C. Madagáscar
C. Scarlett Johansson
8. A TAP vai passar a cobrar bilhete
3. Gedson Fernandes, a quem?
a nova coqueluche do Benfica, A. Aos membros do Governo
tem a alcunha de... B. Aos juízes
A. Geo C. Aos funcionários da empresa
B. Paco
C. Feni 9. Elon Musk pretende construir,
em Los Angeles, um túnel de alta
4. Na última semana, velocidade. Para onde?
a inflação na Venezuela atingiu... A. Passeio da Fama
A. 827% B. Estúdios de cinema da Universal
B. 8 270% C. Estádio dos LA Dodgers
C. 82 700%
10. Qual o valor do património
5. Qual o cognome declarado pelo ex-Presidente
da falecida diva Aretha Franklin? Lula da Silva ao Fisco brasileiro?
DÊ-NOS NOTÍCIAS > T.21 469 8000 > T. 22 099 3810 A. Lady Music A. €178 mil
> VISAOSE7E@VISAO.PT B. Lady Soul B. €1,78 milhões
C. Lady Jazz C. €17,8 milhões

128 VISÃO 23 AGOSTO 2018

Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.
Sede: Rua Rodrigo Reinel, 9, 1.º - Esq. 1400-319 Lisboa.
NIPC: 514674520.
Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000,00 euros,
Principal acionista: Luís Delgado (100%)
Publisher: Mafalda Anjos

“NÃO FAZEMOS
PASSEIOS,
Diretora: Mafalda Anjos
Di­re­to­r-Executivo: Rui Ta­va­res Gue­des REALIZAMOS
Subdiretora: Sara Belo Luís
Edi­to­res-Exe­cu­ti­vos: Catarina Guerreiro e Filipe Luís SONHOS”
Ga­bi­ne­te Edi­to­rial: Jo­sé Car­los de Vas­con­ce­los (Coor­de­na­dor) É na mais arrebatadora das praias onde
EXAME/Economia: Tiago Freire (diretor) o sonho começa e a magia acontece.
Edi­to­res: Alexandra Correia (So­cie­da­de), Fi­li­pe Fia­lho (Mun­do), Inês Be­lo
(VISÃO Se7e), João Car­los Men­des (Grafismo), Ma­nuel Bar­ros Mou­ra (vi­sao.pt)
Descubra as paisagens naturais da Comporta,
e Pe­dro Dias de Al­mei­da (Cul­tu­ra) onde o verde dos arrozais se mistura com o
Re­datores Prin­ci­pais e Gran­des Re­pór­te­res: Cláudia Lobo, José Plácido imenso azul do mar. Viva uma experiência
Júnior, Mi­guel Car­va­lho, Patrícia Fonseca e Ro­sa Rue­la única num paraíso à sua espera.
Re­da­ção: André Moreira, Carmo Lico (online), Cesaltina Pinto, Cla­ra Car­do­so, Cavalos na Areia - Reservas e outras informações:
Cla­ra Soa­res, Clara Teixeira, Flor­be­la Al­ves (Coor­de­na­do­ra VI­SÃO Se7e/Por­to), www.cavalosnaareia.com
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Sociedade), Margarida Vaqueiro Lopes, Nuno Aguiar, Octávio Lousada Oliveira,
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+351 93 507 53 53 l +351 91 900 25 45
Sete), Rui Antunes, San­dra Pin­to, Sa­ra Ro­dri­gues, Sara Santos (redes sociais), Sa­ra Sá,
Síl­via Caneco, Síl­via Sou­to Cu­nha, Só­nia Ca­lhei­ros, Su­sa­na Lo­pes Faustino, Su­sa­na
Silva Oli­vei­ra, Te­re­sa Cam­pos (Coordenadora Radar) e Vânia Maia
Gra­fis­mo: Pau­lo Reis (Editor adjunto), Te­re­sa Sen­go (Coor­de­na­do­ra),
Ana Ri­ta Ro­sa, Edgar Antunes, Hugo Filipe e Patrícia Pereira
In­fo­gra­fia: Álva­ro Ro­sen­do e Ma­nue­la To­mé A VACA QUE RI QUEEN BEE – SÉRUM
Fo­to­gra­fia: Fer­nan­do Ne­grei­ra (Coordenador), Diana Tinoco,
José Carlos Carvalho, Lucília Monteiro, Luís Barra e Marcos Borga LIGHT AGORA Antienvelhecimento holístico
Inspirada na mais valiosa dádiva da colmeia – a geleia
Co­pydesk: Rui Car­va­lho
Se­cre­ta­ria­do: Sofia Vicente (Di­reção), Te­re­sa Ro­dri­gues (Coor­de­na­do­ra),
Ana Pau­la Fi­guei­re­do e Luís Pin­to
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Aproveite de forma mais saudável
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O verão chegou e traz novidades! Os famosos em lipossomas com 12%
Pe­dro Nor­ton, Ricardo Araújo Pereira, Rita Rato e Thomas Piketty
Co­la­bo­ra­do­res Texto: Manuel Gonçalves da Silva, Manuel Halpern, Mi­guel Ju­das
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 BOCA DO INFERNO

E este calor?
POR RICARDO ARAÚJO PEREIRA

H
averá alguma característica
especificamente portuguesa, que se possa
identificar sem corrermos o risco de cair
numa generalização grotesca?
A minha resposta, que não surpreenderá
os leitores habituais desta coluna,
é: não faço a mínima ideia. Mas gostaria
de arriscar um palpite. Se há traço que
distingue o povo português dos outros
é este: a gente gosta de comer e de falar
sobre comida. Sendo duas coisas diferentes, na
verdade são a mesma. A língua portuguesa tem um
valor nutritivo que as outras não têm. Creio que
é possível engordar a falar de comida em português.
Vai um chouricinho? E se amanhã fizéssemos uma
bacalhauzada? Boa sorte a traduzir estas perguntas
para inglês, francês ou alemão. Eles sabem
(vagamente) o que é chouriço e bacalhau.
Mas nunca hão-de saber o que é um chouricinho
e uma bacalhauzada. Falar de comida, em português,
enche. Já tenho tomado refeições com gente de
outros países e nunca vi nada parecido. Numa mesa
de portugueses, come-se, recordam-se refeições
passadas e projectam-se refeições futuras.
E obtém-se tanto prazer da comida como da
conversa sobre comida. Estamos a comer umas
sardinhas mas alguém lembra aquela vez que comeu
grande sopa de cação e depois conclui-se que o que
ia bem ao jantar era uma cabidela.
A gente ama através da comida – e é um amor bruto,
como o único amor que vale a pena. Dizemos coisas
que, apesar de carinhosas, estão bastante próximas
do universo do crime. Por exemplo: “Você não sai
daqui sem provar este salpicão.” Isto é vocabulário
de sequestrador. E, no entanto, é ternura.
Pelo contrário, a conversa sobre o tempo não
tem interesse nenhum. É, digamos, intransitiva.
Dizemos coisas que,
Está calor, não está? Sim, e então? Ui, que frio. apesar de carinhosas,
Nunca mais vem o tempo quente. Pois, pois.
Não há nada para acrescentar. Ninguém recorda
estão bastante próximas
uma tarde muito gira em que estavam 17 graus, do universo do crime.
nem diz a um amigo que não vai sair lá de casa sem
sentir uma brisa quente que às vezes corre Por exemplo: “Você não
ILUSTRAÇÃO: JOÃO FAZENDA

no jardim. A única maneira de tornar interessante sai daqui sem provar este
uma conversa sobre o tempo (ou sobre outra
coisa qualquer) é acrescentar uma nota sobre salpicão.” Isto é vocabulário
comida. Está calor, não está? Está. Quando
as noites estão assim quentes, o que sabe bem
de sequestrador.
é uma saladinha de polvo. E, no entanto, é ternura

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