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[IM]PR

ESSÃO
FICHA TÉCNICA:
EDIÇÃO: Juliana Correia

DESIGN: Juliana Correia

REVISÃO: Juliana Correia e Josinaldo Firmino

FOTOGRAFIA: Juliana Correia e Clara Zamith

PRODUÇÃO: Juliana Correia, Josinaldo


Firmino, Ricardo Costa, Amanda Cuesta
e Vanessa Lima

REPORTAGEM: Josinaldo Firmino, Juliana Correia

ENTREVISTADOS: Gabriel dos Santos e


Flavio Antônio da Silva Nascimento

ARTES: Paola Ribeiro e Moisés Patrício


Referências Bibliográficas:
FREIRE, Paulo (2007) Pedagogia do
Oprimido
DAVIS, Angela (2016) Mulher, raça e
Classe
Jesus, Carolina Maria de (1961) Quarto
de despejo
Hooks, Bell (2007) Ensinando a
transgredir
Fanon, Frantz (2008) Pele Negra,
Máscaras Brancas
em primeira pessoa, do singular ou do plural.

CARTA Abrindo nossa primeira edição, temos

AO LEI Ricardo Costa e Josinaldo Firmino falando de

TOR suas experiências em espaços educativos: o


primeiro nas dificuldades sociais enfrentadas
nos cursinhos populares, enquanto o outro, no
espaço que esbanja refinamento, requinte e falta
I niciar a apresentação da primeira edição
da revista do projeto de pesquisa Diálogos
pecepção às particularidades do próximo, um
olhar crítico ao que muitos gostariam de dizer.
No meio das experiências, apresentaremos
Étnico-Raciais é mais difícil do que pensei, afinal,
um pouco de poesia e arte plástica de artistas e
sinto-me como se tivesse que descrever qual a
artistas-educadores que se movimentam em favor
sensação ao ter algo sob minha responsabilidade.
de uma igualdade cada vez menos teórica e muito
O modo mais prático, singelo e
mais existente, ou seja, provam - não só no discurso,
respeitoso - com você, caro leitor - que
mas muito mais na prática - que ocupar é uma
encontrei, é o da franquza: dizer de onde veio
ação cotidiana que concatena amor pelo que se faz
minha a ansiedade de partilhar tudo que tenho
com a necessidade de tomar conta deaquilo que
aprendido sobre o tema, a preciosidade que
também é nosso: o direito de ser o que quisermos.
tem cada conversa e cada experiência dividida,
Ao recolher todos os dados pertinentes para
é o mecanismo mais apropriado de aproximação
o desenvolvimento desse material, pude perceber
e afeto entre nós: leitor e colaboradores.
a imensidão do que ainda precisamos aprender
Afeto: é essa palavra que alicercia
sobre nós mesmos, nossa cultura e principalmente
cada página desse material. Ao escrever um
do que é o racismo, pois, é justamente o medo de
artigo; apresentar uma obra de arte; dividir
falar sobre esse último que nos impede de chegar
questionamentos com os entrevistados, todos os
no outros temas e ensinar outras pessoas, também.
colaboradores foram convidados a falar de suas
Afinal, a proposta não é segregar mais para o outro
próprias sensações - como é a essência do ser no
lado e sim que não haja mais segregação. Para
espaço em que ocupa, onde ocupa e o por quê é
isso, o diálogo e as parcerias são fundamentais
importante ocupar - ou seja, foram convidados a
e isso ultrapassa qualquer elemento racial.
partilhar histórias de forma à construir um novo
Para concluir essa etapa de boas-vindas, faço
formato da História de nossa ancestralidade
o convite de folear essas páginas como se fosse a
que já foi contada por povos que não os nossos.
carta de um amigo querido destinada à você. Dessa
O afeto é o primeiro passo para a desconstrução
forma, tudo que apresentamos fará mais sentido:
e aceitação, é um dos mecanismos necessários
o sentido de atingir afetos, criar laços e costurar
na educação para falar sobre particularidades
uma nova “colcha” com retalhos de experiências.
e nada melhor que usar a linguagem escrita

Agradecimento especial:

2
SUMÁ
RIO
A posição de elementos entre a ESPECIAL: Flávio Antônio da
hegemonia branca e a resistência Silva Nascimento: A educação
negra reescrevendo a história

3 17
EDUCADOR: Combatendo o racismo:
outra educação é
(indis)sociável

6
ARTE - EDUCADOR: Aproximações ENTRETENIMENTO:
às questões étnico-raciais em Livros e filmes que falam
espaços culturais sobre racismo

9 26
CAPA: Aceita que o outro seja ACERVO [Im]pressão
visível em todos os espaços?

29
12
Agradecimentos
TROCANDO IDEIA: Temos voz no
sistema de educação privado?
31
15
wCombatendo o racismo: Ao explorar ainda mais a prática
A posiç
ão
outra educação é da branquice, encontra-se a brancura que
hegemoni de elementos apresenta-se ainda em uma segunda etapa e
a branca
(indis)sociável. entre a
e a resi está mais no micro da sociedade. Esta por sua
negra stência
vez atinge o sujeito negro mais diretamente,
porque a brancura realiza-se diariamente
com a inferiorização do elemento negro e

E
consequentemente das negras e dos negros.
xistem muitos termos para falar Geralmente acontecem no momento em que
sobre o racismo no Brasil e entender suas a negra ou o negro assumem sua negridade e são
ferramentas. Alguns são conhecidos já na luta diminuídos por isso. Por exemplo quando assumem
negra como branqueamento, embranquecimento aspectos estéticos e culturais de crítica à hegemonia
do negro e branquitude, mas detenho-me aqui cultural eurocêntrica que se apresentam no cabelo, nas
pra tentar abrir dois temas já conhecidos mas roupas, no linguajar, nos hábitos, na música, nas artes.
pouco abordados que são a branquice e brancura.
Por que todos esses termos? Ao longo
dos anos os pesquisadores sobre a questão
racial desenvolveram esses termos para
melhor entender as formas como o racismo age
socialmente, afetando diretamente o negro.*
Branquice e brancura são termos que se
confundem em algumas análises, mas de forma
genérica são responsáveis respectivamente pela
ridicularização e preconceito e, a inferiorização
do negro. Tais práticas afetam o ambiente
macro da identidade negra (negridade), pois
se passa pela busca constante em diminuir Era Carnaval, mas o bloco Cacique de Ramos teve espaço para manifestação
a ancestralidade africana e indígena. (Crédito: Carlos Vergara)

Toda essa discussão tem em seu


centro uma demanda histórica do movimento
B r a n q u e a m e n t o : negro, que é a representatividade, mas
eliminação de elementos uma representatividade real que chegue nas
instituições de poder. Uma representatividade
negros de grupos e/ou que esteja na escola, na TV, na família, na política.
espaços sociais É incrível como até hoje o número
de negras e negras em instituições de poder
As práticas ancestrais que sobreviveram ao sejam tão ínfimos frente à sua proporção na
branqueamento (eliminação do elemento negro) sociedade brasileira, que é um país de maioria
cultural e social no Brasil, foram ao longo dos anos negra. Para além disso em boa parte das
folclorizadas – em um sentido de diminuição e vezes, as negras e os negros que chegam à tais
ridicularização - em sua representatividade e são lugares de poder, precisam se despir de sua
até hoje elementos de resistência na cultura afro- ancestralidade acontecendo o que é chamado
brasileira. Podendo ser exemplificadas aqui muitos de embraquecimento do negro. P o i s ,
bem as religiões de matriz africana que são até hoje mesmo sendo negra e ou negro este individuo
tabus para a moral judaico-cristã e tratadas como precisa ter aspectos “domesticação” por uma
motivo de escárnio social, mas que ao mesmo cultura hegemônica, que é a européia caucasiana.
tempo estão fortemente ligadas à constituição
do próprio cristianismo no país e isso perpassa As negras e os negros que chegam
desde o catolicismo até o neopentecostalismo,
à tais lugares de poder, precisam
que utilizam-se de ritos afro-brasileiros em suas
cerimonias, mas para perpetuação da branquice, se despir de sua ancestralidade
ou seja, para ridicularizar e aumentar o preconceito acontecendo o que é chamado de
frente à matriz africana presente na sociedade. embraquecimento do negro.
3
É preciso fazer o enfrentamento da
branquitude que foi-nos imposta e desmistificar
a ideia por ela colocada de “democracia racial”,
porque estamos longe disso e estaremos enquanto
forem mantidas as estruturas sociais, políticas
e econômicas atualmente exercidas nos países
negros mundiais, que partilham historicamente
de uma outra construção de sociedade que foi
eliminada pelos colonizadores destas terras.

Indios Bororo , coleção Gilberto Ferrez


Inseriu-se elementos brancos-europeus através dos objetos e vestimentas

Al Jolson em “O Cantor de Jazz”: O Primeiro filme falado dá voz ao


preconceito.

Claro que não podemos fugir do dado


de que o Brasil é um país em houve uma
grande miscigenação (não mestiçagem), mas
é importante lembrar que boa parte desta A atriz Butterfly McQueen: A representante negra em
“E o vento levou” - o negro, pela primeira vez, não sendo representado por blackface
misgenação provém do estupro, da animalização
de africanos e indígenas e mais da tentativa
de branqueamento social, tentando de forma
biológica eliminar o elemento negro da sociedade.
Agradecimento especial à Flávio
Antônio da Silva Nascimento, um dos
É preciso fazer o enfrentamento da pesquisadores mais respeitados na temática
e meu eterno professor, que tem em seu livro
branquitude que foi-nos imposta e O beabá do racismo contra o negro brasileiro,
desmistificar a ideia por ela um fomento incrível pra essa discussão.
colocada de “democracia racial”
A luta não para, ela está no dia- Ricardo Costa
a-dia, cada vez que um negro assume Santos
Professor em
qualquer posição de poder é resistência e Cursinhos
cada vez que um negro vê outro exercendo populares,
algumas posição de poder ainda assim pesquisador e
graduando em
é representatividade, só precisamos História –
nos cuidar quanto à folclorização Universidade
Federal de São
destes momentos tão importantes Paulo (UNIFESP –
para pensar uma nova sociedade. Guarulhos)

4
Paola Ribeiro é formada em Artes Visuais
pela Belas Artes.
Carrega sua arte tanto musical quanto
visual pelos espaços educativos onde atua
como educadora

5
w A escola como uma das instituições
Combate de poder do estado, mostra toda sua eficácia
ndo o r quando inferioriza e domestica as crianças
outra e acismo:
ducação – “cof... desculpa²” - um fato necessário
(indis) é a ser dito é que grande parte das crianças/
sociáve
l. adolescentes que frequenta a escola pública
é NEGRA (pretas, pardas e indígenas, pois

E
quando falamos de negro falamos de uma
stranho! Dar aula é estranho. Não existe raça histórica) que sofrem com esse sistema.
naturalidade pra mim, nunca houve. Nunca me Se as crianças/adolescentes não gostam
vi como professor, por que veria? A imagem de da escola, o futebol (ou o crime, sei lá) é um
professor como alguém dono do conhecimento, caminho muito bem alinhado a um plano B que lhe
alguém iluminado - e sem dinheiro - dificilmente é apresentado. A figura do educador como um ser
passa pela cabeça de um jovem para se seguir
como profissão (sim, profissão! Porque não existe
a história de dom ou de “professora Helena”).

Nunca me vi como professor,


por que veria?
Foto: Pedro Ribeiro l Flickr Creative Commons
Na periferia, infelizmente, você precisa
iluminado que foi construída há séculos é
pensar na sobrevivência e em alguns momentos
revivida nesse contexto, apaga-se as luzes
melhorar de vida, tentar uma ascensão social
(negras) dos estudantes e se acende uma só luz,
e, “dar aos filhos o que não se teve”, é um
a do educador - que não necessariamente educa,
raciocínio incrível. Problematizável? Sim. Mas
preferiria chamar de carrasco – esse, por sua vez,
incrível e que guia o imaginário de absolutamente
é responsável por vigiar e punir³ os estudantes,
todas as mães e pais que não tiveram em
por usar todo o poder que foi lhe dado para
sua infância grandes condições financeiras.
construir e garantir uma “ordem para o progresso”.
“Quando eu crescer, quero ser jogador de futebol”:
Na contramão disso tudo, vem a educação
99 entre cada 100 garotos da periferia pensam e
libertadora como ferramenta para uma redução
sonham com isso, e não é ruim. Tal afirmação
e quebra dessas relações de poder: o mesmo
denuncia como o sistema coopta e destrói
educador que assume um papel autoritário na
escola (lembrando que esta é uma instituição de
poder do estado) pode ser um indivíduo abrangente
e didático quando exerce a função de educador
fora da escola. O exercício de poder muda e é
transformado pela práxis. Segundo Paulo Freire,
“Quando a educação não é libertadora, o sonho
do oprimido é ser opressor4”, é o que acontece
com as nossas professoras e os nossos professores
Foto: Arquivo Pé de Meia - Mais em: http://www.unicos.cc/foco-no-fute- que, submersos em um ambiente opressor, muitas
bol-de-varzea/#.WIvcdFMrLcf
as estruturas psicológicas dos jovens negros vezes reproduzem isso em sala e acaba acirrando
periféricos, pois a porcentagem de jogadores a questão do poder nesse espaço, pois as relações
que saem da periferia; recebem proposta e viram de poder ficam mais visíveis em suas extremidades.
jogador profissional é ínfima e inversamente
proporcional aos que recebem e entram para
o crime, em suas múltiplas formas e facetas¹. “Quando a educação não é
Essa denuncia não acaba aí: também mostra, libertadora, o sonho do
por exemplo, a obsolescência da educação.
Ser educadora/educador hoje não é uma das oprimido é ser opressor”
profissões mais concorridas, certamente.

6
É nesse contexto que existe a chamada se ele for escancarado, não se pode lutar contra o
“educação informal” talvez porque não forme que não se vê (ou pelo menos é tampado, velado).
ninguém, e sim, liberte dessa inferiorização Como educador de cursinhos popular há
e domesticação, em uma construção três anos (em SP e MT) acredito na revolução
continua de todos que estão envolvidos. social, e vejo uma revolução toda vez que uma
Até aqui tentei mostrar porque pra mim é ou um estudante pobre, periférica (o) e negra
estranho dar aula ainda hoje, mesmo que poucas (o), ingressa em uma universidade pública (que
dessas aulas tenham sido ministradas na escola historicamente é branca, e não estou falando das
(como instituição). A educação se apresenta como paredes), porque esses que passam são pontos
algo que pode ir além e transformar a sociedade, fora da curva e é a partir de alguns pontos fora da
mas eu não aprendi isso na escola. Aprendi na luta, curva que podemos construir uma nova estrada.
no movimento estudantil, na militância política.
A militância mudou (ou será que moldou?)
o destino alguns jovens que são de periferia, isso
inclui drasticamente o movimento negro dos
anos 70/80, mas não só nesse período e ainda é
contemporâneo. A militância em movimentos
que denunciam as contradições sociais desenha
alguns “pontos fora da curva” da estatística
da periferia, dentre esses pontos, talvez, eu.
Uma busca imensa por encontrar um lugar
na sociedade deu-me a percepção que talvez a
educação fosse o meu “front” de batalha. Em Foto: Arquivo pessoal - Ricardo Costa
uma aula de história é indissociável, não fazer Sem esquecer que aqueles que não passam
uma analogia com o presente, sem isso a história constituem uma estatística brutal, mas que
fica imóvel e longe, ela precisa ser ressignificada mesmo assim também fazem sua revolução no
para que ela seja prazerosa para todos que estão dia-a-dia. Até porque, um diploma universitário
na construção da aula (educadores e educandos). não salva ninguém, inclusive, pode ser tóxico,
pois pode diminuir a consciência de classe.

Uma busca imensa por


encontrar um lugar Vejo uma revolução toda vez
na sociedade deu-me a que uma ou um estudante pobre,
percepção que talvez periférica (o) e negra (o),
a educação fosse o meu ingressa em uma universidade
“front” de batalha. pública

Ao dar aula em um cursinho popular ou Por fim, se a escola é uma instituição


em uma escola pública, em que a maioria dos iluminada, a educação só mudará quando ela escurecer.
estudantes são negros, é impossível não falar de Ricardo Costa
escravidão e de racismo, pois está presente em Santos
TODA a História do Brasil, por exemplo. São quase Professor em
V séculos de história(s) de milhões de pessoas Cursinhos
populares,
que tiveram seus corpos (e alma) assassinados, até
pesquisador e
Foto: Arquivo pessoal - Ricardo Costa

porque ninguém nunca ligou pra morte de um corpo graduando em


preto (sendo ele vindo da África ou nativo da terra). História –
São algumas coisas que precisam ser expostas Universidade
para que consigamos enfrentar as instituições e Federal de São
Paulo (UNIFESP –
culturas hegemônicas que inferiorizam e domesticam
Guarulhos)
o povo. O problema só pode ser enfrentado

7
POESIA [IM]
PRESSA: SOLANO TRIN
DADE

Tem gente com


fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer Só nas estações
tem gente com fome quando vai parando
tem gente com fome lentamente começa a dizer
tem gente com fome se tem gente com fome
dá de comer
Piiiiii se tem gente com fome
dá de comer
Estação de Caxias se tem gente com fome
de novo a dizer dá de comer
de novo a correr
tem gente com fome Mas o freio de ar
tem gente com fome todo autoritário
tem gente com fome manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha Solano Trindade é um dos maiores poetas brasileiros,
Olaria nasceu em Recife/PE em 1908 e faleceu no Rio de
Ramos Janeiro em 1974. Fez o curso propedêutico daAcademia
Bom Sucesso de Comércio do Recife. Foi operário, funcionário
público federal, pintor, poeta, ator e teatrólogo. Junto
Carlos Chagas
com sua esposa Margarida da Trindade, terapeuta
Triagem, Mauá ocupacional, e Edson Carneiro, sociólogo, fundou o
Teatro Popular Brasileiro. Publicou: Poemas de uma
trem sujo da Leopoldina vida simples, 1944; Seis tempos de poesia, 1958;
correndo correndo Cantares ao meu povo, 1961, dentre outras obras
parece dizer (Fonte: SANTOS, L.C; GALAS, M.; TAVARES,
U. (org). Antologia da poesia negra brasileira: o
tem gente com fome
negro em versos. São Paulo : Moderna, 2005).
tem gente com fome

8
Ao longo da exposição Sempre algo entre
nós, parte do projeto curatorial Estou Cá, a pesquisa
Aproxima
ções às de mediação de Juliana Correia, denominada
co-racia questões Diálogos étnico-raciais, recebeu a contribuição
is em es
paços cu Étni- de outras pessoas, que a enriqueceram, dando-
lturais
lhe formatos variados. Eu, enquanto colaborador
estive no lugar da escuta ativa, trocando ideias

P articipar de encontros semanais com Juliana


Correia para conversar sobre questões ligadas à
sobre o mundo da arte e ausência desse debate no
circuito, assim como dividindo reflexões pessoais.

etnia e à raça em espaços culturais e na educação


não formal foi, para mim, uma tentativa de Como o educador pode abordar
aproximação mais aprofundada a esse universo
que me inquieta como afrodescendente, mas a problemática étnico-racial
também como educador e pesquisador. Desde em seu trabalho, sem provocar
o princípio, ficou claro que se tratava de uma
questão delicada e polêmica, mas necessária imposições?
e urgente, de certo modo, para nosso ofício.
Evidentemente, tivemos que rever nossas De forma geral, os espaços culturais são
experiências relacionadas à temática, e logo majoritariamente frequentados por pessoas de
notei uma falta enorme de repertório teórico classes sociais favorecidas e, por consequência,
e discurso mais pessoal a respeito disso, em seu público é formado por pessoas de pele branca.
função talvez de minha formação muito imbuída Isso em um país cuja população é composta por
e construída sobre alicerces eurocêntricos. cerca de 50% de pessoas declaradas negras, de
acordo com o último censo do IBGE (2010).
Como lidar com esse fato? Ou seja, constatada
Desde o princípio, ficou a falta de diversidade étnica nesses locais, como
claro que se tratava de uma gerar reflexões sobre isso e rever o trabalho
que se faz cotidianamente como educador?
questão delicada e polêmica,
mas necessária e urgente, de
certo modo, para nosso
ofício.

A questão principal era:


como se posicionar neste contexto?
Como o educador pode abordar a
problemática étnico-racial em seu trabalho,
sem provocar imposições? Isto é, diante
Aceita ser visível?, Clara Zamith / Juliana
da necessidade de tratar de tal tema, como Correia - BOLETIM PUBLICO

conservar a ética nesse trabalho, provocando


deslocamentos de perspectivas e pensamentos? Como lidar com esse fato? Ou
seja, constatada a falta de
diversidade étnica nesses
locais, como gerar reflexões
sobre isso e rever o trabalho
que se faz cotidianamente
A Cura, Dalton Paula - Diálogos Ausentes
ITAÚ CULTURAL
como educador?

9
Sem dúvidas, nosso trabalho não mudará Chegamos à conclusão de que
de uma hora para outra esse fenômeno. Por outro
lado, ao alterarmos nosso modo de pensar os o artista afrodescendente é
públicos, podemos suscitar debates que ensejarão, visto, em geral, como aquele
a longo prazo, a geração de políticas públicas e a
produção de novas mentalidades sobre o assunto. que se assujeita à sua própria
Desde as visitas agendadas e espontâneas, quando condição, como se não pudesse
for pertinente abordar a discussão, até a produção
de textos, jogos e atividades relacionados a tratar de outros assuntos em
esse contexto, as ações educativas podem seu trabalho.
se tornar politicamente mais ativas e éticas,
Neste sentido, o educador tem à sua
disposição uma gama de parceiros com quem Ao longo dos encontros que tive com
pode trocar experiências e produzir pensamentos, Juliana Correia, a questão sobre a identidade e o
tornando sua atividade mais diversificada, questionamento à própria condição social e política
provocadora e consciente. Ao mesmo tempo, do educador se colocava cada vez mais presente.
é importante salientar que esse trabalho se Daí passamos a pesquisar bibliografias e conteúdos
dá na micro dimensão das coisas, mas que que pudessem alimentar aqueles pensamentos
pode, com o empenho institucional, se tornar historicamente e na atualidade. Discutimos sobre nossa
maior e atingir a sociedade como um todo. prática e, sobretudo, o que se poderia fazer para, de
algumamaneira,introduzirnelaprovocaçõesereflexões.
Como dito anteriormente, o projeto modificou-
como gerar reflexões sobre isso se, por um lado, na medida em que se produziu
e rever o trabalho que se faz um jogo com base nele, e, por outro, recebeu a
colaboração de um educador (professor), que o associo
cotidianamente como educador? à sua prática em sala de aula – educação formal. Na
continuidade desse processo, durante a ocupação
A princípio, o projeto de mediação Boletim Público, a ideia de dialogar a questão étni
Diálogos étnico-raciais buscou analisar três pontos co-racial e seus desdobramentos permanecerá sendo
de vista a respeito dessa questão: a do artista, a reavivada, no intuito de ampliar os seus horizontes.
da instituição e a do educador. Primeiramente,
fizemos um questionário para os educadores da
equipe que buscava colher informações sobre sua
relação com a temática ora apresentada. Chegamos
à conclusão de que o artista afrodescendente
é visto, em geral, como aquele que se assujeita
à sua própria condição, como se não pudesse
tratar de outros assuntos em seu trabalho.
Quanto à instituição, em geral, são poucas as
que trabalham a questão, ou o fazem de forma
insuficiente. É notório, por exemplo, a ausência de
trabalhos de artistas afrodescendentes em muitas REPRODUÇÃO_OSVALDO_FAUSTINO_E_MOISÉS_PATRÍCIO_EM_PRIMEIRO_
PLANO_DURANTE_A_AÇÃO_PRESENÇA_NEGRA_NA_GALERIA_MILAN
coleções de importantes museus brasileiros. Folha de São Paulo, 2016

Josinaldo Firmino
dos Santos
Educador, Graduado
em Arte: História,
Crítica e
Curadoria, PUC-SP

PERFORMANCE_PRESENÇA_NEGRA_REPRODUÇÃO Folha
de São Paulo, 2016

10
Moisés Patrício é artista plástico que
aponta as problemazações do racismo através
de suas obras.
“Aceita” é sua obra que utiliza-se das mãos
e de objetos para essa ação

11
12
13
14
[IM]PRESSÕES:Você sentiu alguma diferença,
em específico, algum tipo de discriminação
trocand
o racial dentro do sistema de ensino que integra?
sistema ideia; Temos
de educ vo
ação pr z no GABRIEL: Sim, é uma violência não direta
ivado?
estar lá todos os dias e ser o único negro na sala.
É ser silenciado quando suas pautas fogem da
N o TROCANDO IDEIAS, a revista
[IM]PRESSÕES apresenta em forma de entrevista
realidade da burguesia branca e são pouquíssimas
pessoas negras e/ou periféricas no espaço.
rápida: perguntas precisas com respostas diretas,
[IM]PRESSÕES: Os professores de sua
uma forma de problematizar a permanência dos
universidade incentivam o debate sobre
pretos e das pretas dentro dos espaços educativos.
igualdade social?
Será que somos recebidos com igualdade em
qualquer espaço? As instituições particulares,
GABRIEL: Nunca! Estou no terceiro ano,
estão preparadas para receber mais alunos e alunas
e apena uma vez debatemos cotas, e mesmo assim
da periferia, por consequência, pretos(as) cada
foi uma tristeza, óbvio. Os discursos reacionários
vez mais frequente após o ProUni: “Programa
não mudam. É um misto de tudo. O capitalismo
Universidade para todos - um programa que
não comtempla os meus (os preto, as pretas,
promove a acessibilidade à educação para quem
xs pobres), então a gente ocupa algo que não é
tem baixa renda. Por meio dele, é possível conseguir
nosso, mas deveria.
bolsas integrais ou parciais para universidades
ou falcudades particulares cadastradas no
[IM]PRESSÕES: Como professor de
programa em todo país” (fonte: Site MEC)
cursinho popular: Qual mecanismo de incentivo
utiliza com seus alunos?
Na primeira edição do trocando ideia,
conversamos com o aluno de Letras na Faculdades
GABRIEL: O incentivo delas e deles
Metropolitanas Unidas (FMU), Gabriel dos
acaba por ser minha história, como a de todxs que
Santos. Ingressante graças ao seu envolvimento
constroem o espaço, são pessoas pobres também,
com o cursinho popular, o jovem que sempre
com dificuldades em comum, sofrimentos em
estudou em escolas públicas da periferia Sul
comum. No mais, nas aulas eu parto da nossa
de São Paulo, agarrou a oportunidade e ocupou
realidade para o conteúdo e não ao contrário como é
o espaço da sala de aula, até então - ou que
feito no ensino público e privado.
ainda é - elitizado. Sabendo de seu potencial e
da necessidade de colaborar om outros alunos
[IM]PRESSÕES:Você acredita que a
como ele, Gabriel, atualmente, é professor
cultura e a arte são ferramentas importantes
coordenador no meso cursinho popular que o
para falar sobre ancestralidade?
abraçou: Carolina Maria de Jesus, localizado
no bairro Valho Velho, Zona sul de São Paulo.
GABRIEL:Sim, é de suma importância
falar dos nossos, de onde viemos e o tanto que
[IMPRESSÕES: Gabriel, conte-nos
construímos, ainda que tentem nos apagar. E a arte,
mais sobre você: Qual sua trajetória até o
a cultura são meios que estão sendo cada vez mais
ingresso na Universidade:
sendo utilizados pra falar de nós mesmos. São meios
de fácil comunicação, entendimento, é a porta, é a
GABRIEL: Estudante de escola pública
chave.
sempre, desde o fundamental ao médio, e por toda
defasagem que existe no ensino público, quando (O “X” substititui as letras A ou O, neutralizando o gênero:
o conclui busquei um cursinho que entrasse Gabriel dos Santos referênciando a qualquer um)
no orçamento da minha família, no caso, algo Professor e
gratuito. Foi quando conheci o Cursinho Popular Coordenador no
Cursinho Popular
Carolina de Jesus, onde hoje sou professor- Carolina Maria de
coordenador. Com o cursinho, melhorei meu Jesus.
resultado no Enem seguinte (2014) e consegui Graduando em Letras
bolsa integral na FMU no curso de Letras. na FMU

15
POESIA [IM]
PRESSA: Carolina Ma
ria de
Jesus

20 de julho de 1955 dinheiro. Mas o juiz foi severo. Castigou


impiedosamente.
Deixei o leito as 4 horas para escrever. Fui no rio lavar as roupas e encontrei D.
Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando Mariana. Uma mulher agradavel e decente. Tem 9
o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. filhos e um lar modelo. Ela e o espôso tratam-se
Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. com iducação. Visam apenas viver em paz. E criar
Enchi minha lata e zarpei. (...) Fui no Arnaldo filhos. Ela tambem ia lavar roupas. Ela disse-me
buscar o leite e o pão. Quando retornava encontrei que o Binidito da D. Geralda todos os dias ia prêso.
o senhor Ismael com uma faca de 30 centimetros Que a Radio Patrulha cançou de vir buscá-
mais ou menos. Disse-me que estava a espera do lo. Arranjou serviço para êle na cadêia. Achei graça.
Binidito e do Miguel para matá-los, que êles lhe Dei risada!... Estendi as roupas rapidamente e fui
expancaram quando êle estava embriagado. catar papel. Que suplicio catar papel atualmente!
Lhe aconselhei a não brigar, que o crime Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela
não trás vantagens a ninguem, apenas deturpa está com dois anos, e não gosta de ficar em casa.
a vida. Senti o cheiro do alcool, disisti. Sei que Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços.
os ébrios não atende. O senhor Ismael quando Suporto o pêso do saco na cabeça e suporto o pêso
não está alcoolizado demonstra sua sapiencia. da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-
Já foi telegrafista. E do Circulo Exoterico. Tem me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar
conhecimentos bíblicos, gosta de dar conselhos. no mundo.
Mas não tem valor. Deixou o alcool lhe dominar, Refleti: preciso ser tolerante com os meus
embora seus conselho seja util para os que gostam filhos. Êles não tem ninguem no mundo a não
de levar vida decente. ser eu. Como é pungente a condição de mulher
Preparei a refeição matinal. Cada filho sozinha sem um homem no lar.
prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinha Aqui, todas impricam comigo. Dizem que
de trigo torrada. O João José, café puro. O José falo muito bem. Que sei atrair os homens. (...)
Carlos, leite branco. E eu, mingau de aveia. Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro
Já que não posso dar aos meus filhos uma escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal
casa decente para residir, procuro lhe dar uma e escrevo.
refeição condigna.
Terminaram a refeição. Lavei os utensílios.
Depois fui lavar roupas. Eu não tenho homem em
casa. É só eu e meus filhos. Mas eu não pretendo
relaxar. O meu sonho era andar bem limpinha, usar
roupas de alto preço, residir numa casa confortável,
mas não é possivel. Eu não estou descontente com
a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja.
Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que
tenho é residir em favela.
... Durante o dia, os jovens de 15 e 18 anos sentam
na grama e falam de roubo. E já tentaram assaltar o
empório do senhor Raymundo Guello. E um ficou
carimbado com uma bala. O assalto teve inicio as
4 horas. Quando o dia clareou as crianças catava
dinheiro na rua e no capinzal. Teve criança que
catou vinte cruzeiros em moeda. E sorria exibindo

16
Flávio
Antônio ESPECIA
da Silv L
a Nasci
mento:
a histó A educa
ria ção ree
screven
do

F lávio Antônio da Silva Nascimento,


nasceu em São Paulo em 1952. Graduou-se em
[Im]pressões: Sobre ancestralidades, é
papel o educador ensinar ao jovem, à criança, em
cursinhos populares? Qual é nosso papel nessa
História e Filosofia na Universidade Federal área? Na revista [Im]pressões, conversamos
de São Paulo na década de 80 e especializou- com educadores para falar sobre como podemos
se em Filosofia pela Universidade Federal de atuar nos espaços onde nos encontramos: Conte-
Mato Grosso - 1988. Doutor em História Social nos um pouco de sua trajetória como professor:
por sua universidade de origem (USP), pós- Professor Flávio: Eu sou professor
doutor em 2005 e Livre Docente desde 2013. aposentado. Lecionava História e Filosofia. Mas
eu acho que a escola, não é que ela não esteja
preparada, isso é muito capcioso. Acho que ela
“Em Rondonópolis, teve ampla precisa de mais investimento, ampliar as vagas,
atuação política, a exemplo dos reformar a educação. Porque senão eu acredito
“80 Domingos Negros” (2006-2013), que nós vamos ficar nesse faz de contas. Você tem
grupos sobre a mulher negra a lei, mas a lei [lei 10.639/03] não funciona…
(2002), grupos de Em Assis, eu percebi uma experiência
discussão sobre a homoafetividade interessante. Eu percebi que a prefeitura de lá, nos
negra (2013), grupos de estudo anos 1980, antes da experiência do PT, portanto,
sobre as doenças falciformes muito antes, tinha um cursinho para gente negra.
(2012), grupo de formação Achei estranho. Era um dos lugares mais reacionários
socialista (2012), grupo de do estado de São Paulo, da região. Eu vi as pessoas se
formação de consciência negra empenhando. Eu fiquei tocado por essa experiência.
(2009), grupo de formação de Eu achei tão simples de fazer. E não entendia por
história econômica e economia que não era feito. Por que o movimento negro não
política (2005).” toma a dianteira isso? Depois eu vi a experiência
(Fonte: A Tribuna Mato Grosso Digital. Disponível em: http://www. do Frei Damião aqui, que conheci por alto. Quando
atribunamt.com.br/2013/09/camara-fara-homenagem-a-flavio-nascimento eu voltei para Rondonópolis, eu pensei nisso. Teve
O Professor Flávio acolheu Juliana aquela marcha dos zumbis dos Palmares. E aí eu falei
Correia e Josinaldo Firmino em sua casa em São não - sendo pedagogo, pensa que tudo se resolve
Paulo - SP, onde reside desde sua aposentadoria. pela educação –, acho que vou fazer isso: vou criar
Em uma conversa amigável e acolhedora, um cursinho para habilitar negro e branco pobre. Na
o Historiador e Filósofo contou um pouco verdade, a intenção era para que eles entrassem na
de sua trajetória, os valores que carrega em questão racial - serem capacitados -, a entendessem
sua militância e deu um exemplo valioso e passassem a militar por ela. Porque eu achava o
de como a educação é transformadora e nível de consciência dos negros, em geral, muito
essencial ferrament no movimento negro. baixo, baixíssimo. Assim, eles poderiam, pelo
Iniciamos o diálogo explicando à ele o menos, tomar pé na situação. Quer dizer, eu daria
que era o Projeto Diálogos Étnico-Raciais e o uma contribuição, assim como o pessoal de Assis
objetivo de somar arte e educação na luta do fazia. Lá eles faziam por motivo político-eleitoreiro,
ensino da ancestralidade. Assim, sem dúvidas, o para o prefeito ganhar voto na eleição, só. Em outros
Professor Flávio tornou-se um importante aliado lugares em que eu vi coisas parecidas, também.
na proposta, sendo modelo e grande mestre.

17
E aí eu comecei. O ponto inicial foi esse: P.F: Está na moda.
levar essa experiência para Rondonópolis, mas [Im]: Aproveitamos que está na moda e
fazendo com negros, por negros, de negros para filtra, ou não, é uma fala só nossa? Porque tem
negros. Por que lá em Assis era o pessoal da até aquela coisa que vira briga de coletivo, que é
prefeitura, burocratizado e tal. Mas não tinha o lugar de fala.
outra finalidade senão a ajuda cristã. Eu cheguei P.F: Não sei. Eu acho que tem que aproveitar
a Rondonópolis, comecei a equacionar como que logo antes que passe. Daqui a pouco a moda é o
seria se seria pertinente. Aí eu achei que sim. fascismo. Tem que aproveitar. Não falo de ser
[Im]: O racismo impede nossa oportunista. Não é isso. Usar com responsabilidade,
identificação. De onde o senhor acredita que com compromisso. Mas e sim. Eles põem cada
isso venha? É uma questão familiar, social? coisa em evidência. Esse negócio da fala que você
P.F: É histórica, é abrangente. Claro que está dizendo seria uma temática dos anos 1980. Está
vai se refletir em cada uma dessas partes que você retornando. Quem que é o sujeito que está falando?
falou. Mas chega até o nível pessoal, individual. Quem que tem, como se diz, quem é gabaritado,
Começa com a história. Tem um pacto social não mal representa o outro? Não distorce
aqui no Brasil, pouca gente fala nisso. Tem uma representação. Já passamos por isso. Eu acho que
psicóloga da USP que escreveu sobre o racismo na não resolveu naquela época, parece que não vai
perspectiva psicológica. E ela disse que, no século resolver hoje, de uma vez. Porque, para mim, é um
XIX, na abolição e na pós-abolição, foi engendrado contrassenso.
um pacto, como que subliminar não declarado, foi É um contrassenso. Você é uma intelectual
posto, que é o negro não falar do racismo e o branco negra. Está gabaritada, você tem histórico de vida,
não falar também. tem a experiência acadêmica, tem a participação na
Parece – para isso teria que voltar à sociedade problemática e tem o negro propriamente dito. Ele
da época – que eles estavam achando que estavam não tem direito à expressão, à livre manifestação?
realizando alguma coisa, abolindo a escravidão. [Im]: Quando falamos de ocupar espaços,
Quando, na verdade, eles estavam começando a ter prcebemos que o negro ainda não se sente
um grande problema. Mas é que o negro entrou com pertencente, por exemplo, a espaços de “arte
uma noção de dádiva, de ter recebido a abolição erudita”, “academicista”. Sobre o espaço da
como uma dádiva, como uma benfeitoria, um educação, isso ainda acontece? E, dentro de um
presente. E o branco assim como tendo realizado cursinho para negros, eles estarem lá já é uma
uma grande coisa, o que é uma tolice. Na realidade, iniciativa?
não era nem, talvez fosse o pensamento majoritário, P.F: É uma iniciativa boa, importante, e,
mas não eram os únicos pensamentos que existiam. claro, lá a recepção é diferente. Porque já se tem
Tinha o pensamento reformista. E parece que se uma expectativa de que o negro vai falar. É o
incorporou como tradição cultural – a Filosofia cursinho do negro. Já se pensa nisso. Por exemplo,
não gosta muito disso, gosta mais das ideias. Sabe nós fizemos como lá [em Rondonópolis]? Como a
quando uma coisa que fica aferrada? gente arranja professores sem dinheiro? Como se
Nós quase que temos vergonha de discutir implanta um cursinho do nada?
o racismo. Não somos apenas nós, os negros, os Nós fomos à universidade [UFMT
brancos também. Eles têm uma – na minha opinião, (Universidade Federal do Mato Grosso)] e pedimos
isso se dá por formação cristã -, como que uma uma reunião com o DCE, com os CAs. Todos os
percepção de que é uma coisa muito feia, malvada. cursos têm negros, mal ou bem, mais inserido, menos
Sabe uma coisa criminosa? E o negro como se fosse inserido. E, claro, lógico, todos se prontificaram a
muito rebaixado com o racismo. E de fato foi. No apresentar trabalho voluntário, e nosso cursinho na
entanto, ele também renúncia. Eu acho que vem de época tinha uma inovação - hoje isso já é comum
certo complexo, um duplo complexo, eu diria. -, tinha História da África, antes do Lula, nós já
[Im]: Sim. Uma coisa que o senhor falou tínhamos essa ideia. Então isso atraía muita gente.
que eu achei interessante foi essa questão de E a gente contava com o estudante do primeiro,
não querer falar. E, atualmente, nas conversas terceiro ano, que ainda é rebelde até o terceiro,
que tive com Josinaldo e o Ricardo, concluímos quarto ano, depois ele começa a ficar conservador.
que falar sobre ancestralidade racismo e virou Então eles se prontificaram, participaram muito.
“cult”. Então a aceitação foi grande, grandiosa.

18
E como não tinha nota, era livre o debate, era Porque eu acho que, dessa maneira, você
acalorado, aberto. Isso criou atraiu muita gente. contempla também, você torna o curso mais leve.
Criou um engajamento muito grande, participação Não discute só burocraticamente o currículo,
muito ampla. Então, minimamente, apareciam embora você tenha que discutir também, você
mulheres também, mulheres organizadas, começam tem uma meta, não pode pensar que a experiência
a dar aula no cursinho. Então, eu acho que isso foi não vai ter duração plena se não houver nenhuma
muito importante, foi bom. Foi um espaço que a gente eficiência. Eficiência é ingresso pelo vestibular.
conseguiu manter nosso. Nós que planejávamos, Nós lá felizmente tivemos. Na última turma que nós
debatíamos. E não tinha remuneração para ninguém. tivemos agora de 140 nós pusemos 50.
[Im]: Em que ano o cursinho foi criado? [Im]: Esses alunos que passaram pelo
P.F: Ele está no décimo ano. Foi em 2005, cursinho, de algum modo, eles chegam à
2006. universidade mais conscientes do seu papel, da
[Im]: E o formato das aulas, essa estrutura sua identidade? E há alguma diferença com um
diferente, num formato caloroso, horizontal, em aluno negro que não passou pelo cursinho, mas
roda. Ele conta também nessa identificação? que entrou na universidade?
P.F A gente sabe que aquele é um espaço P.F: Eles chegam com um pouquinho a mais.
aberto. Mas o que legitima, em última instância, o Mas, não sei se você concorda com a minha opinião,
cursinho - e outros congêneres assim - é aprovação o negro, muitas vezes, é muito afastado de si, tem
no vestibular. Porque tudo bem, se eu tenho uma baixa consciência muito forte. Então aqui ele já é.
autorização na sociedade para funcionar, é até o Agora num centro pequeno, ele é mais ainda. Então,
ponto em que ele tem eficiência. Sem eficiência ele é presa fácil de certas ideologias que distorcem
nenhuma, ele vai ser recusado. E ele teve eficiência a negritude dele. Em linhas gerais, ele chega um
porque, no último turno, em 2016, entraram 50 na pouco melhor.
universidade federal de lá. Você tem que ter esse Eu lembro de um caso que não foi
cuidado, mas também contemplar o interesse mais excepcional. Fomos em uma das piores favelas da
amplo. Por exemplo, em Biologia, a gente tanto cidade. Nós resgatamos, tiramos de lá do fundo do
ensinava currículo quanto levava os alunos para poço uma menina negra que estava para desistir
viagem de campo. Eles ficam dois três dias, viam do ensino. Estava próxima da criminalidade. Ela
a soja, uma pequena propriedade. Já entrelaça, vai fez o nosso cursinho e entrou em sete faculdades.
discutir pequena produção, outras coisas correlatas. Uma coisa assim impressionante. Quer dizer, a
Então soubemos minimamente conciliar o currículo consciência, ela foi lá se prontificar a continuar a
com a liberdade de ensino, com liberdade de experiência dela.
interesse. Ainda conseguimos por gente para dentro Agora, não sei em que medida que você
assim, nessa perspectiva. O Ricardo acho que pegou fala da consciência. Eu também abuso dessa
uma época que podia, não chegava a ser um curso, palavra porque é muito complexa, por causa do
mas uma sequência de filmes. Então havia um racismo brasileiro, a consciência. Porque quando
cinema, que já entrelaçava com a língua portuguesa. a gente fala de consciência a gente não explicita
que consciência é o que a gente está querendo, está
falando. Minimamente mais consciente em termos
de auto-afirmação.
[Im]: Na universidade, por exemplo,
numa instituição privada, a maioria dos alunos
é branca. Haverá aí um enfrentamento, muitas
vezes explícito, às vezes com o professor. O
racismo também é, por outro lado, silencioso,
disfarçado. Os alunos do cursinho tem uma
reação mais consciente, que possa enfrentar o
racismo e promover uma mudança?
P.F: No mínimo, ele fica mais respondão.
É um contraditório tudo isso, entende? Realmente
o cara saí mais consciente, mas aí você aposta que
ele vai fazer muitas grandes coisas, mas um monte
vão ser cooptados mais adiante. É como aqui.

19
Foto: Juliama Correia
Já pensou e
m um lugar
amigos, se d para ver os
iver tir, apro
melhores at veitar as
rações cultu
rais, tudo is
em “uma ta so
cada só?”

Todo penúltimo sábado do mês, na Casa Balaio! Pertinho da estação Jardim Ro-
mano da linha 12 Safira (CPTM)

Casa Balaio: Rua Adobe, 47, Jardim Romano


São Paulo - S.P

Realização:

20
Não tem necessariamente uma trajetória sempre Acho que precisa ensinar mesmo, sabe?
ascendente. Tem gente que estaciona, tem família. O movimento negro devia de se preocupar com
Tem que gente que vai assessorar deputado. isso também, não só isso, tem que militar, é claro.
Nós perdemos muita gente assim. Foi assessorar Mas tem que levar esse entendimento. O racismo
vereador, deputado, e ficou por lá. Fica fazendo é caro, é difícil, e precisa saber o que é, para
trabalho de gabinete. Agora teve uns que, pelo superar mesmo. Porque a primeira discussão, quer
contrário, fizeram a diferença. Mas é a minoria. dizer, sempre coloca “eu não sou racista, não sou”.
[Im]: Percebemos, muitas vezes, É a questão da culpa cristã. A culpa do espectro.
que é muito mais falado sobre racismo Eu sou pecador. Eu não sou pecador. É difícil.
com quem já tem uma certa consciência do Essas coisas estão associadas na mentalidade.
que com quem nunca ouviu falar e não se [Im]: Sobre espaços de arte: como é que
sente pertencente ao espaço. Como agir? esses lugares da representação cultural podem
P.F: Não sei se eu... Posso ter uma visão ser instrumentos ou plataformas, meios, para se
exagerada. Eu acho que a gente tem que ensinar disseminar essa discussão racial? De um lado, tem
para as pessoas o que é racismo. Desculpe, não estou uma valorização da estética negra, por exemplo,
falando, não estou querendo subestimar ninguém. do Black Power. Como é que se equilibra isso?
Eu acho que as pessoas não sabem o que é P.F: Você compreende o que é Black Power,
racismo. Assim, claro, se eu pegar um dicionário, aí historicamente, certo? Você sabe que é Angela
eu olho lá a definição, mas não é isso. Aprender o Devis. Mas uma pessoa comum não sabe disso. Ela
que racismo é delicado, é difícil, é você percorrer sua não sabe essa coisa de negro. Se tiver na moda ela
vida, ir apreciando as experiências. Porque, eu ouso usa também. Ela vai dançar, ela vai pular. Mas o
dizer isso, eu acho, posso ser muita pretensão da que quero frisar é – você tem razão – que nós que
minha parte, que eu aprendi quatro formas principais temos alguma instrução a gente cobra o direito de
de racismo, penso eu. Posso não ter realmente representação nos meios de comunicação de massa.
razão nisso, nem certeza. E são essas principais Agora, se vincular, se continuar, se persistir assim,
formas que nos envolvem, entende? Porque, sabe acho que vai se formar uma negridade. Agora,
aquele negócio do pacto que eu falei no começo da desculpe te decepcionar, mas nós não somos isso.
nossa fala? Enquanto as pessoas tiverem, de certa Nós não somos a Angela Devis. Nós brasileiros, nós
forma, essa visão de que o racismo é uma maldade não somos. Nós também não somos o Olodum. Nós
ou uma fraqueza, nós temos poucas condições de somos negros que somos maioria. Não podemos
aprofundar a questão racial. De relevá-la, debatê-la reagir como minoria. Nós reagimos como minoria.
e, quem sabe, superá-la. Mas então é isso que falta. Nós pedimos conta de 20%. Nós somos a maioria
Quem é militante precisa admitir que o da população. A gente quer uma representação
racismo é em 90% inconsciente. Ele é inconsciente. na Globo com percentual de atores negros na
Ele não é uma ação deliberada. Há uma ação, novela, mas a gente não quer escrever a novela.
sem dúvida. A pessoa não é consciente de O racismo ainda vai persistir em quem
que efetivamente isso é um traço, de que isso escrever a novela, na estrutura da novela, mesmo
significativamente é um traço da estrutura de raça que tenha lá um negro dançando, para contentar a
e de classe. O cara não pega isso. Demora anos pressão do movimento negro. Eu falo que a gente
para você pegar isso, para você sedimentar na sua não sabe, não percebe, no geral, o que é um negro
cabeça. Entende? Eu acho que é isso. A gente dá uma e o que é racismo. A população como um todo não
palestra aqui e não finca raízes. Porque ou você já identifica como racismo não ter uma repórter negra
está preocupado, já num processo de esclarecimento, no Jornal Nacional. Ela não vê isso como racismo.
ou você não consegue ter a dimensão de que – vou
falar uma coisa simples, boba – a África não é um
país. A maioria pensa que a África é um país, e só vê
“A gente quer uma
um povo de lá. Só tem um negro, um tipo de negro. representação na Globo
E ela não sabe que... Você já observou a Umbanda?
Já participou? Aquilo é uma complexidade...
com percentual de atores
Candomblé... Então, agora, uma pessoa comum negros na novela, mas a
de classe média aí, um branco de classe média
bonzinho, do bem, ele não alcança essa... do bem,
gente não quer escrever
ele não alcança essa... Acho que é complexo. a novela.”
21
A Maria Júlia Coutinho, a Majú, eles Na maldição de Cã propriamente dita, no
não estão pensando que estão dando a parte mais mito, tem o Gênesis, né? Porque Cã* era identificado
vulgar do jornal para ela. Não alcança esse nível na Antiguidade como negro. E Deus teria os
de reflexão, sabe? Porque, na minha opinião, filhos negros. O povo de Cã era o Egito, o Antigo
volto à velha tecla, precisa saber o que é racismo, Egito. Eu acho que isso ainda está indiretamente
saber o que é raça, se existe raça biológica, se na nossa cabeça. Não está com todas as partes
não existe, se existe raça histórica. Como é que constitutivas, mas está minimamente. Você vê um
é? Para entender que quando fazem um desfile menino que rejeita a menina negra para namorar.
militar, que ali está cheio de racismo, porque não É a cor, né? A primeira coisa a que ele se opõe.
tem nenhuma representação de quem mais morreu Não sei se me entende, tudo vai se
nas guerras, na Guerra do Paraguai; de quem era aproximando daquela ideia que eu falei no começo
enviado na frente como resistência primeira, de que precisa ensinar o que é racismo. Eu acho
ataque primeiro. Se a gente tivesse uma percepção que tem que ensinar sim. Desculpe minha teimosia.
maior do racismo, a gente não aceitava esse Explicar mesmo. Ter cartilha, ter coisas. Assim
desfile. Mas onde que está minha representação? eles fazem com a História, com o passar do tempo
[Im]: O senhor estava falando da questão eles vão distorcendo a História. Eles fazem livro
dos 20% das cotas, eu me questionei que didático. Mastiga. Acho que a gente devia fazer o
nos espaços centrais de arte contemporânea, mesmo. O movimento negro se ocupa muito com os
nos contentamos com tão pouco... negros que estão com algum nível de informação,
P.F: Você tocou numa questão importante. de entendimento. Acho que deixa no segundo plano
A maioria da população paulistana é negra, mas a grande massa. Acho que o movimento negro tinha
não se aceita como tal. Ela não quer ser negra, que investir nos professores. Questão pedagógica.
ela sempre dá um jeitinho de disfarçar. Mas em
setores ilustrados, esclarecidos, sim, há uma
demanda por negritude, na realidade. Mas muitos, “A maioria da
no comum, em geral, eles acham que não, que só o
preto que tinha que entender, já que não sou preto.
população paulistana
Isso cria problemas, não só de identificação, mas é negra, mas não
do próprio reconhecimento do que é importante,
do que é valor do que fizemos e continuamos
se aceita como tal.
fazendo, de projeções que a gente tem. Ela não quer ser
Eu acho que, volto à grande questão: você
tem que ensinar o que é negro. Se você vai ensinar
negra, ela sempre
o que é racismo, você tem que ensinar o que é negro dá um jeitinho de
também. Mas partindo desse suposto. O racismo
é inconsciente, inclusive, para o próprio negro é
disfarçar.”
inconsciente.
[Im]: Nos espaços teatrais e [Im]: Existe a lei da implantação do
cinematográficos, sempre e ainda nos deparamos ensino da História africana. Mas, muitas
com as problemáticas do black face. vezes, o professor não tem o ímpeto de ir lá
P.F: Isso devia ser proibido porque não tem e enfrentar, de algum modo, todo o sistema,
sentido. No passado já se justificava que não havia e reconhecer que é necessário falar disso.
artistas negros. Então, eu acho que, eu estou falando P.F: Mas essa é a História. Quer dizer,
às vezes mais como pedagogo, porque a experiência não tem como ficar fora da História, faz parte da
que eu tive na universidade foi essa. Porque eu tive História. Se eu vou falar da colonização brasileira,
a experiência no cursinho, na universidade vi os por exemplo, a História do Brasil, de onde vieram
negros não querendo ser negros, se incomodando os africanos? Como que eu não vou contar qual
em ser negro. Precisa conceituar o que é negro, era a África? Mas, quando o próprio professor tem
para a academia. Agora, quando a gente vai falar um bloqueio na cabeça e acha que os negros estão
com a massa, então, a gente tem outro jeito, talvez atrasados, são incapazes, ele não vai fazer isso bem
mais vivo, não sei, mais fácil, para que ele entenda feito. Antes a gente podia falar: “não tinha livro”, na
o que é negro e que não é desdém. Tem gente verdade não tinha mesmo, tinha poucos. Mas hoje
que pensa que negro é sinônimo de coisa ruim. tem bastante. Embora seja um impedimento legal.

22
Os professores não vão contra esse [Im]: Sobre arte-educação: Se numa
impedimento legal. Tem a lei, mas não tem exposição de arte tiver também artistas
espaço na escola para dar aula de História. negros e também um pouco da História,
Eu falo isso porque eu passei dias difíceis, negros e também um pouco da História,
um confronto com um pessoal em Pedra Preta, esse material ajuda a falar da negritude e
uma cidade do interior do Mato grosso. Eu ancestralidade e ao mesmo tempo de literatura,
estava pedindo a colaboração dos professores e de artes, temas que se atravessam, Filosofia?
dos diretores para que inserissem África Negra P.F: Sim, vantajoso sempre é, mas, na minha
paralelamente junto com o currículo. Eles não opinião, eu acho que você tem que levar o aluno
queriam. Eu ficava assim: “mas por quê?”, “será comum, porque eu acho que o sistema  de ensino é
porque são conservadores?” Mas não é. Sabe o uma conquista burguesa, é para todo mundo.
que o diretor fazia? Dizia: “pode inserir, mas só se Não vou ter uma escola de negros, uma escola
vocês vierem trabalhar a mais”. Sem remuneração. de brancos. Posso ter isso? Não posso. Quer dizer,
Entende? até posso se fizer uma mudança social. Mas se não,
Precisa aumentar a carga horária de escola você vai ter que convencer o outro que o conteúdo
para inserir História da África. que é ensinado com ênfase por um professor negro
[Im]: História da África, em algumas é para todos. Eu acho que não pode ter situação em
universidades, é eletiva. Deveria ser obrigatória, que, na escola, a professora é negra assumida, dá aula
não deveria? – e isso tem muito em escola por aí –, no colegial,
P.F: No curso que eu dava aula de para um grupinho. O grupinho chega, fica batendo
História, eu coloquei como obrigatória. Para papo, conversando. Eu fico me perguntando para
acabar com isso aí. A gente mobilizou os alunos que isso aí? Aí você tem um grupinho de negros ali.
contra os professores, e deu certo, foi bom. Vigora ali um pacto. Ela não incomoda os meninos
[Im]: Falando sobre os educadores. que vão para fumar maconha, deixa os caras lá, e
Que educadores devem ensinar sobre eles também não interferem na didática dela. Você
ancestralidade? Há essa divisão? quer isso, sinceramente, como educador? Eu não
P.F: A própria lei já explica isso. Dentro da quero, porque isso tem pé de barro. Isso pode te dar
lei está se dizendo que a manifestação de História um sucesso aparente. Eu acho que a gente tem que
da África tem que ser usada em todas as disciplinas, ter raízes sólidas. Tem que ter a solidariedade do
em História da Arte também, História Africana da branco pobre, não do branco de classe média. Mas
Arte. Mas para encaminhar eu sempre pensei num o branco pobre vem da gente também. Muitas vezes
colegiado na escola, com planejamento. Aí divide- ele é descendente da nossa gente. E se ele for seu
se as tarefas. Não é só o professor de História que aliado ali, se ele entender o que está se passado, ele
vai dar História da África. Tem que se equacionar o vai participar de alguma coisa posterior. Agora, se
problema. A primeira problemática é a insuficiência ele for também um cara que olha para a atuação da
de carga horária. Não tem carga horária para dar docente negra isolada como uma coisa seccionada
aula de História da África e do Império Romano, e se a secretaria do ensino vai questionar qualquer
História da Ásia. Não tem. De alguma maneira, coisa ele vai falar: “só tem aula para gueto”, como
tem que equacionar como você vai fazer, o que nós vamos fazer? Nós não somos americanos. Nós
vai priorizar. Isso é uma questão docente. Agora, temos que assumir que somos brasileiros. Agora
depois disso, na minha opinião, tem que se ver o que é brasileiro é outra discussão. Porque nos
a capacitação docente da escola. Reciclagem, Estados Unidos faz sentido. Tem outra História.
educação contínua. A escola tem que discutir se ela surgiu na África. Eu preciso saber isso, falar para as
tem capacitação para dar Antigo Egito. Ainda vamos pessoas, explicar como foi, que tipo de democracia
promover um curso de professores de Antigo Egito. que era, senão eu não vou acabar nunca essa falácia
[Im]: Então, o senhor acredita que essa de que a democracia surgiu na Grécia. Você conhece.
capacitação tem que ser dada a todos os docentes? Agora, eu acho que a gente tem que
P.F: Não. A estabilidade do ensino... ensinar essas coisas. Isso não te exime de fazer o
Hoje eles estão num escola, amanhã já não movimento negro. Acho que isso é um aspecto
estão mais. E agora com essas leis trabalhistas do movimento negro, sabe? Você tem que lutar
aí, essa flexibilização que eles estão criando. pela segunda abolição. Todas essas coisas são
Vai haver garantia como? A permanência na pertinentes, mas eu não consigo entender como
escola por mais de um ano, por exemplo? que um espaço público vai ficar seccionado.

23
Tenho dificuldades de entender, porque [Im]: Arriscado dizer que é
eu acho que a gente precisa enfrentar essa oportunismo?
questão do racismo, superar essa questão P.F: Oportunismo. Por isso que, se a gente
em que ele parou de que eu discuto com ensinasse o que é, esses tipos também não fariam o
minha turma, eles discutem lá com os deles. que fazem. O Amilton Costa deu uma contribuição
Vocês assistiram “Amistad”? Esse filme relevante, mas agora ele só enfeita. A Glória Pires
é esplendoroso, mostra uma história real. Tem não entende nada de samba. Agora, não é que eu
hora que um navio negro, de tráfico de escravos, estou defendendo que só o especialista tenha que
rebelado - começa ali um motim, eles estavam fazer. Estou defendendo um compromisso com a
precisando voltar para a África -, cruza com um nossa tradição. Iansã não bate com o feminismo de
navio da elite europeia. Eles estavam tocando classe média. É África. Claro a gente pode fazer
Bach, Strauss. Então, um navio cruza o outro como as adaptações necessárias ao Brasil que a gente
fossem mundos separados, mas a ironia do diretor quiser. A gente é livre para isso. Mas eu não posso
desse filme é bem essa. Pedi para a população fazer forçar certas coisas que não tem correspondência.
silêncio para eles não acordarem do pesadelo em Eu acho que está uma usurpação. A diferença
que eles estão. Não existe a burguesia europeia [entre Iansã e o feminismo de classe média] é
finesse sem o outro. É o outro que possibilita a nítida. E acha que apropriação cultural existe e é
riqueza. Então a gente precisa ensina para eles isso legítima. Mas ela tem limites, senão descaracteriza.
que ela falou de passagem aqui. Onde começou [Im]: E as mulheres negras periféricas,
mesmo a democracia? Onde que começaram as já que citou o feminismo, precisam dee um
principais religiões? Onde surgiu o homem? Isso recorte específico dentro do movimento?
daí é conhecimento universal para todo mundo. P.F: Uma boa parte das nossas mulheres
Agora, a escola continua com aquele porque tem traços físicos amenizados em
conteúdo absurdamente seccionado, mas a relação à negridade elas até são aceitas, mas
gente não entra de chofre no racismo. O racismo são raras, são excluídas. Tem aquele livro
é sobretudo ignorância, má fé, manipulação. que fala das negras tidas como bonitas, da
[Im]: Como o senhor vê nas artes, Gislaine Morero - fala das cinderelas negras.
especificamente, a representação do negro hoje? Então, veja bem, a questão não é ter Barbie preta. É
P.F Em parte, eu vejo uma sub- não ter Barbie que é a questão.A gente tem que lutar
representação. Em geral, os meios de comunicação por maior representação na mídia. Acho perfeito.
não propiciam uma expressão na dimensão Na Literatura. Tudo bem. E acho que de fato é
possível, verdadeira. Mas a gente precisa tomar o racismo que impede isso. O racismo de forma
uma precaução de não folclorizarmos nós mesmos. geral, não é o diretor de produção que é racista. O
O carnaval, por exemplo, a gente reclama: “o carnaval racismo, no geral, chega à cabeça dele.
é um espaço negro, foi englobado pelos brancos, Então ele precisaria ter uma formação
a figura do carnavalesco”; se perdeu tudo. Hoje é diferente da que ele tem para não ser racista. Agora,
uma indústria famosa. Eu acho que é verdade, mas desculpe, eu insisto que nós não somos americanos,
acontece que nós não queremos lutar pela verdadeira porque nos Estados Unidos o que o negro passou é
original manifestação do carnaval. uma coisa inaudível. Ele tem essa noção de teoria
Eu posso falar como Historiador. Eu sei do mal às avessas, de teoria da conspiração, mas
contra o que as escolas de samba se contrapunham tem nuances, tem diferenças. É diferente. Então,
na época. Aquele carnaval elitizado, europeizado, a gente mesmo não pode folclorizar, contribuir
de só desfile de fantasia, de salão que seccionava para a folclorização. Como a flor do Exu, tem
a população, poder aquisitivo elevado. Agora, o que explicar. Agora, tem que explicar Exu
carnaval tinha uma proposição mais abrangente. mergulhando na História. Você vai falar que é um
Isso foi perdido na História. A gente não quer sucedâneo do diabo? Por favor! Tem que explicar
recuperar isso. Vocês já assistiram os bailes a noção africana de machismo. Exu é sobretudo a
de carnaval da Globo? Às vezes, eles chamam força da afirmação do machismo nessa religião.
vários negros para ficar comentando aquelas No Pierre Verger tem cidades no Norte da África que
pataquadas lá. Vocês já viram a nova MPB? Eles tem monumentos. Ali mostra a autocracia do macho.
usam muitas palavras em ioruba, mas, santo É isso que, em grande parte, era Exu, mas tem que
Deus, não tem sentido, é desarticulado. É só ver o contexto lá, porque senão você não aprende.
para aproveitar o centenário do samba. Senão você fica com o estereótipo na cabeça.

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