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DOSSIÊ GRAMSCI

A INTERPRETAÇÃO DA TEORIA DE GRAMSCI POR


CARLOS NELSON COUTINHO: UMA LEITURA CRíTICA

ensar na trajetória da DANYELLE NILlN GONÇALVES* de Luckács e de Antonio

P obra de Gramsci no
Brasil é refletir sobre o
movimento da história
EDUARDO GOMES MACHADO"
JOSE LlNDOMAR COELHO ALBUQUERQuE***

RESUMO
Gramsci no Brasil. Ressalte-
se, por exemplo, que os
primeiros livros com textos
brasileira dos últimos Este artigo apresenta uma reflexão conjunta acerca da deste último, publicados no
expressiva contribuição que Carlos Nelson Coutinho tem
quarenta anos. É também Brasil entre 1966 e 1968
dado às ciências sociais, no Brasil, considerando em
pensar sobre a trajetória de particular suas vinculações com a obra de Gramsci. Os através da editora Civilização
Carlos elson Coutinho, um autores situam Coutinho como um pensador, intelectual e Brasileira, tiveram a tradução
dos mais importantes intér- militante, no contexto da vida política brasileira, a partir de Carlos elson Coutinho.
dos anos 1960 e, nesses termos, identificam-no como um
pretes do pensador italiano estudioso do pensamento de Gramsci, reconhecido como
O exame da sua traje-
neste país, cuja história de um dos seus principais intérpretes, no Brasil. tória de vida política e
vida se mistura à história intelectual possibilita com-
ABSTRACT
da esquerda brasileira, de preender a especificidade de
This article presents a group reflection surrounding important
seus debates, de suas contra- contributions by Carlos Nelson Coutinho to the social sua interpretação dos texto.
dições e de seus conflitos. sciences, as an analyst of Grarnscis work. The authors de Gramsci. Seu horizonte
É perceber, ainda, uma of this article position Coutinho as a thinker, intellectual de sentido, a partir do qual
and militant, within the context of Brazilian politicallife,
progressiva aceitação das interpreta os conceitos
since the 1960s, and in these terms, identify him as a
idéias gramscianas que prolific specialist of Grarnscis thought, looked upon in the gramscianos, é a singu-
foram tomando corpo, à academic milieu as one of its principal interpreters. laridade da sociedade brasi-
medida que a ditadura mili- leira, bem como seu desejo
. Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal do
tar avançava e a esquerda político em consolidar um
Ceará (UFC).
revia alguns conceitos e •. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraiba socialismo democrático no
estratégias através de um (UFPB) e professor de Ciência Política na Universidade Brasil. Abordamos neste
processo de autocrítica. de Fortaleza (UNIFOR). artigo um pouco da trajetória
... Doutorando em Sociologia, Universidade Federal do
Carlos Nelson Cou- de Carlos Nelson Coutinho,
Ceará (UFC).
tinho é um dos raros inte- nas últimas décadas; em
lectuais brasileiros que articula atuação acadêmica seguida, discutimos criticamente alguns conceitos
e rnilitância política; com ele, a produção do saber fundamentais da obra de Gramsci interpretados
científico insere-se permanentemente no desafio por este autor brasileiro. Por último, apresentamos
ético-político de construção de uma sociedade, de sua interpretação da especifícidade da história
um Estado e de uma economia mais justos. Militante bra sileira a partir dos conceitos gramscianos de
vinculado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e revolução passiva e Estado ampliado. O nosso
posteriormente ao Partido dos Trabalhadores (PT), objetivo, aqui, é efetuar um diálogo com essa
atualmente compõe um núcleo de intelectuais que interpretação da obra gramsciana, desenvolvendo
se desligaram deste partido, em decorrência de algumas anotações críticas acerca dos conceitos
divergências políticas com o Governo Lula. É um de Estado ampliado, hegemonia, sociedade civil
dos grandes estudiosos e divulgadores das obras e revolução passiva',

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DOSSIÊ GRAMSCI ·-'·r-.-· ;~-
B..L... , ,.
PERiOD!CGS
Carlos Nelson Coutinho e a da democracia e do socialismo no Brasil. Não por
interpretação de Gramsci no Brasil acaso, as obras de Gramsci, nos anos 1960,
constituíram o que se denomina um fracasso
No início dos anos 60, as lutas populares editorial. Aliadas a esse fato, a instalação do AI-5
antecedentes do Golpe Militar e a revelação dos e a maior perseguição aos editores" contribuíram
crimes de Stálin forçaram a esquerda brasileira a para que outros textos do autor não fossem
uma abertura pluralista, inclusive, por parte dos publicados", as palavras de Coutinho (990),
seus teóricos. Aos poucos, o pensamento de
esquerda no Brasil passou a encontrar nos escritos (...) nosso autor chegava ao Brasil num
de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder as momento em que amplos setores da
primeiras referências para o pensador italiano, em intelectu alidade de esquerda, radi-
revistas vinculadas ao Partido-. Nesse momento, calizando sua oposição a uma ditadura
Gramsci é reconhecido pelos intelectuais de que também se radicalizaua, não mais
esquerda como um filósofo da práxis, que faz reconheciam nas formulações políticas
uma leitura humanista e historicista do marxismo do PCB (e da cultura marxista que per-
e compõe uma tríade junto com Sartre e Lucáks. manecia sob sua influência) uma respos-
O aprofundamento ele Carlos Nelson ta adequada aos desafios da nova
Coutinho na teoria de Gramsci e na própria língua situação. O FCB, em suas formulações
e cultura italianas ocorreu após o Golpe Militar estratégicas, continuava a própria ima-
de 1964 no Brasil . Coutinho era estudante de gem de um Brasil "atrasado'; semifeudal
Filosofia no período e foi preso sob a alegação e sernicolonial, carente de uma revo-
de ser "um marxista convicto e confesso". Durante lução "democrático-burguesa ,. ou de
a ditadura militar, foi para um exílio voluntário, "libertação nacional" como condição
permanecendo por três anos entre a Itália e a necessária para encontrar o caminho do
França. Apesar de já conhecer a obra de Gramsci, progresso social. Para utilizar as conhe-
na Itália aproximou-se mais da cultura italiana. cidas expressõesgramscianas. o Brasilera
Na década de 1960, passou então a traduzir para visto como uma sociedade "oriental",
o português os Cadernos do Cárcere. Essa que devia ser analisada segundo os
primeira edição brasileira da obra gramsciana paradigmas terceiro-internacionalistas
reproduzia a compilação de Togliatti e trazia títulos elaborados em função da China e não
como Os intelectuais e a organização da cultura como uma formação econômico-social
(966), Literatura e Vida Nacional (968) e já então substancialmente "ocidental".
Concepções dia/éticas da história (968). Esse Assim, num primeiro momento, a dita-
último, por conta da censura, modificado em dura não foi caracterizada como um
relação ao original, 11materialismo storico. meio de que se valeu a grande burguesia
Com o processo de acirramento da ditadura para modernizar ainda mais o capitalis-
e as disputas no interior da esquerda, obras de mo brasileiro, elevando-o à etapa do ca-
autores que propunham uma maior radícalízação, pitalismo rnonopolista de Estado; foi
passaram a ser mais procuradas- que as de Grarnsci, definida, ao contrário. como um instru-
então conhecido somente como o filósofo e teórico mento dos grandes latifundiários e dos
da cultura, incapaz de dar respostas à realidade "agentes imperialistas" para bloquear o
política brasileira daquele momento". Conforme nosso desenvolvimento.
Coutinho, na ocasião não havia nenhuma alusão à
possibilidade de que a obra gramsciana pudesse Além das traduções de Gramsci, Carlos Nelson
ser utilizada para reavaliar radicalmente a questão Coutinho escreveu textos próprios, nas décadas

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de 1960 e 1970, sobre crítica cultural, filosofia e (...) maldição que atravessa a vida po-
análise do realismo na literatura brasileira. No final lítica brasileira, ou seja, a de operar
da década de 1970, com o sopro da redemo- as mudanças que se fazem necessári-
cratizaçào brasileira, se aproxima da reflexão as pela via da conciliação pelo alto,
política, escrevendo um artigo que posteriormente do transformismo, implicando sempre
se converteu no livro A democracia como valor uma cooptação das oposições pelo
universal, em 1984. Neste livro bastante conhecido establisbment (Coutinho, 2003).
e polêmico, o autor explicita sua crença na
democracia moderna e na possibilidade de conciliar Nas últimas décadas, Coutinho publicou
democracia e socialismo, através da máxima sem dezenas de artigos, ensaios e livros que interpretam
democracia não há socialismo e "sem socialismo a obra gramsciana, construiu uma leitura própria
não há democracia". da teoria política desse pensador italiano e, a partir
Nesse mesmo cenário político, houve uma dessas referências, debateu temas caros à esquerda
guinada na obra de Gramsci no Brasil. Somente como democracia, socialismo, Estado, revolução e
na segunda metade da década, quando a luta marxismo, muitas vezes de forma inovadora e
armada já tinha sido dizimada pela ditadura militar polêmica. Dentre os eixos temáticos que permeiam
e a esquerda brasileira se aprofundava num e articulam sua obra, podemos destacar a defesa
processo de autocrítica, 24 títulos foram do marxismo, da democracia e do socialismo,
publicados sobre Gramsci no Brasil, além da problematizando os significados, as determinações
reediçào de todos os livros do pensador italiano, e as articulações recíprocas inscritas nesses termos.
traduzidos e publicados nos anos 1960 por Carlos Atualmente, ocupa o cargo de editor, na
elson Coutinho. Com o avançar das discussões Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e
em torno do processo de abertura política e da pretende, na sua gestão, publicar vários clássicos,
emergência dos movimentos sociais, Gramsci inclusive marxistas, como os de Lucáks e ainda,
passou a ser cada vez mais estudado. Os conceitos as cartas que Gramsci enviava da prisão.
de sociedade civil e hegemonia passaram a ser A vitória eleitoral em 2002 e os conflitos e
centrais para a explicação da nova realidade contradições do governo Lula implicaram
brasileira, estimulando estudos nas áreas de algumas cisões; contudo, permitem perceber a
sociologia, antropologia, serviço social e importância dos conceitos gramscianos na
educação, dentre outras. interpretação atual do Brasil. Nào por acaso,
No início da década de 1980, após intensos portanto, neste início de século, tão conturbado
desgastes internos, Carlos Nelson deixou o PCB em relação às ideologias, Carlos Nelson Coutinho
e passou quase o restante da década sem partido, está sendo responsável pela publicação de dez
filiando-se ao PT, em 1989. No final do primeiro volumes de suas obras políticas, incluindo os
ano do governo Lula, em 2003, se desfiliou do Cadernos do Cárcere (seis já foram publicados),
PT, juntamente com Milton Temer e Leandro possibilitando uma revitalização da trajetória do
Konder. Os motivos alegados foram a decepção pensamento de Gramsci no Brasil.
causada pelas ações do governo, em relação à
política de alianças e na condução das reformas; Estado ampliado e
para Carlos Nelson, estas não passam de contra- hegemonia na interpretação
reformas. O autor utiliza sua própria análise de Carlos Nelson Coutinho
crítica da revolução passiva no Brasil para refletir
sobre os rumos do governo Lula, justificando Carlos Nelson Coutinho (999) situa
sua saída do Partido. Segundo ele, o governo Gramsci no campo do marxismo, na medida
Lula não conseguiu se livrar da em que o pensador italiano aceita seu princípio

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básico, a crítica do modo de produção capitalista detém o monopólio legal da repressão e da


e a construção de uma teoria social, enfatizando violência e que se identifica com os aparelhos de
a perspectiva da política e do Estado moderno. coerção sob controle das burocracias executiva,
. esse contexto, Marx, Engels, Lenin já haviam legislativa e policial-militar", e a sociedade civil,
indicado algumas determinações essenciais ao formada "pelo conjunto das organizações
Estado: 1) o caráter de classe e, portanto, sua responsáveis pela elaboração e/ou difusão das
função de conservação e reprodução da divisão ideologias" (Coutinho, 2003: 127). Essas duas
da sociedade em classes, garantindo que "os esferas vinculam-se à conservação ou promoção
Interesses comuns de uma classe se imponham de uma base econômica de acordo com os
como o interesse geral da sociedade" e 2) a interesses de uma classe social fundamental,
dimensão repressiva como dimensão essencial distinguindo-se pelas funções que exercem na
das relações e do exercício do poder político, "articulação e reprodução das relações de poder"
um momento essencial da dominação de classe, (Coutinho, 1999: 127-128). A seguir, explicitamos
uma das formas através das quais o Estado alguns trechos que nos permitem evidenciar e
explícita sua natureza e exerce suas funções problernatizar sua concepção de Estado ampliado,
classistas (Coutinho, 1999: 122-123; Coutinho, incluídas referências aos conceitos de hegemonia
1996: 51). e de sociedade civil:
Uma primeira reflexão se refere à Examinando a superestrutura, ele distingue
interpretação da leitura desenvolvida por Marx duas esferas em seu interior, que ele chama de
e Engels acerca do Estado, no contexto anterior "sociedade civil" e de "sociedade política". Com
1870, período em que o Estado ainda não tinha essa última expressão, designa precisamente o
e ampliado. Tais pensadores identificaram o conjunto de aparelhos através dos quais a classe
Estado principalmente por seus aparelhos dominante detém e exerce o monopólio legal
repressivos, transmitindo a idéia de que a ou de fato da violência; trata-se, portanto, dos
epressào , a coerção e a violência são as aparelhos coercitivos do Estado, encarnados nos
Jimensões essenciais de exercício do poder grupos burocrático-executivos ligados às forças
e tatal, no período histórico analisado. Será que armadas e policiais e à imposição das leis
e pode generalizar essa interpretação? Esses (Coutinho, 1996: 53-54).
utores não identificaram a dimensão do
onsenso, do consentimento, da disputa cultural- (...) o termo "sociedade civil" designa,
deológica enquanto aspecto inscrito nas relações ao contrário, um momento ou uma
Je poder, na dominação de classe, no Estado? esfera da "superestrutura". Designa,
Carlos Nelson Coutinho afirma que as mais precisamente, o conjunto das ins-
eflexões gramscianas não eliminaram o núcleo tituições responsáveis pela representa-
e encial do que considera a "teoria restrita do ção dos interesses de diferentes grupos
~ stado", o caráter de classe e a dimensão sociais, bem como pela elaboração e/
repressiva do poder estatal, efetuando um ou difusão de valores simbólicos e de
e riquecimento dessa teoria através do acréscimo ideologias (Coutinho, 1996: 53-54)
é novas determinações, configurando o que
enomina de "teoria ampliada do Estado" Em conjunto, as duas esferas formam o
Coutinho, 1996: ')3). Estado em sentido amplo, que é definido por
Para Coutinho, o Estado ampliado, ou Gramsci como "sociedade política + sociedade
mplo, comporta duas esferas principais: a civil, isto é, hegemonia escudada pela coerção"
iedade política, "formada pelo conjunto dos (...) No âmbito da "sociedade civil", as classes
ecanismos através dos quais a classe dominante buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam

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ganhar aliados para os seus projetos através da Para além da hegemonia como mero
direção e do consenso. Por meio da "sociedade domínio ideológico, a concepção de Dias indica
política" - que Grarnsci também chama, de modo que a realização da hegemonia se vincula à
mais preciso, de "Estado em sentido estrito" ou questão central da capacidade de construção de
de "Estado-coerção" -, ao contrário, exerce-se uma visão de mundo; a hegemonia é interpretada
sempre uma "ditadura", ou, mais precisamente, como elaboração de uma nova civilização, sendo
uma dominação fundada na coerção (Coutinho, este o sentido da reforma intelectual e moral de
1996: 54). que fala Gramsci, segundo esse autor:
A primeira interrogação que efetuamos diz
respeito à concepção de hegemonia que permeia c...) A capacidade que uma classefun-
a interpretação coutiniana. Em alguns momentos, damental (suhalterna ou dominante)
parece referir-se à representação de interesses tenha de construir sua begemonia. de-
dos diferentes grupos sociais, à construção de corre da sua possibilidade de elaborar
alianças que permitam a direção política e a sua visão de mundo própria, autônoma
constituição do consenso, visando conquistar C ..) Diferenciar-se, contrapor-se como
aliados para os próprios projetos políticos. visão de mundo às demais classes, afir-
Refere-se também à elaboração e/ou difusão de mar-se como projeto para si e para a
valores simbólicos e de ideologias; porém, ao sociedade: ser direção das classessubal-
não explicitar teoricamente o que compreende ternas e dominadas na construção de
por valores simbólicos e por ideologia, não nos uma nova forma civilizatória (Dias,
permite perceber se essa indicação remete para 1996: 10).
uma concepção mais ampla de hegemonia, que
se articule, por exemplo, aos processos sócio- Segundo Gruppi (2000: 03), o conceito de
culturais de constituição das classes sociais e de hegemonia foi apresentado por Grarnsci
seus projetos societais, em suas concepções de
mundo e de vida, valores, representações C ..) como algo que opera não apenas
coletivas, tradições. Desta forma, cabe-nos sobre a estrutura econômica e sobre a
questionar se as críticas de Dias (996) aplicar- organização política da sociedade, mas
se-iam às reflexões coutinianas: também sohre o modo de pensar, so-
bre as orientações ideológicas e inclu-
(...) Uma boa parte da literatura que se sive sobre o modo de conhecer.
pretende marxista sohre begemonia,
que reivindica o ponto de vista grams- Desta forma, as reflexões sobre hegemonia
ciano, parte da centralidade da ques- tiveram, portanto, caráter gnosiológico, indicando
tão das alianças de classe na sua os processos através dos quais se formam as idéias,
"imediaticidade=politica. Trabalha abs- as concepções de mundo, as relações entre base
tratamente a begemonia como capa- econômica, estrutura social e consciência dos
cidade de uma classe de subordinar/ homens (Gruppi, 2000: 04). Nessa perspectiva, o
coordenar classes aliadas ou inimigas Estado como aparato hegemônico "determina uma
(...) A begemonia épensada instrumen- reforma das consciências, novos métodos de
talmente, como, aliás, sefaz com o Es- conhecimento, sendo assim um evento filosófico"
tado. os partidos. etc, vistos em geral (Gruppi, 2000: 04). Este autor aponta
como "efeitos" de uma determinação ambigüidades inscritas nas reflexões gramscianas,
mecânica do Econômico C .. ) (Dias, nas quais hegemonia, algumas vezes, se refere à
1996: 09). capacidade dirigente, e outras vezes, concerne,

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simultaneamente a direção e dominação. Ademais, de hegemonia. Enquanto os primeiros,


segundo Gruppi, em Gramsci hegemonia é como o nome indica, implicam um
"entendida não apenas como direção política, mas constrangimento do qual o governado
também como direção moral, cultural, ideológica" não pode escapar (se suas determina-
(Gruppi, 2000: 11). No mesmo texto, afirma que ções não são cumpridas, isso tem como
a hegemonia não seria apenas um fato político, efeito uma sanção coercitivamente apli-
mas também cultural, moral, de concepção do cada), os segundos são organismos so-
mundo (idem, ibidem, p. 73). ciais "privados': o que significa que a
Outra reflexào relativa à interpretação adesão aos mesmos é voluntária e não
coutiniana diz respeito à compreensão segundo coercitiva (...) (Coutinho, 1996: 54-55).
a qual, a função da hegemonia seria vinculada
exclusivamente à sociedade civil e a função de Uma primeira questão que formulamos em
dominação/coerção à sociedade política. Assim, relação à sociedade política é: que funções e
nos perguntamos: no âmbito da sociedade civil significados devem ser atribuídos aos organismos
não poderiam ser exercidas funções de coerção/ não-repressivos de Estado e que também não
violência e, no campo da sociedade política, podem ser considerados "organismos sociais
não ocorreria a disputa por hegemonia, entendida coletivos voluntários", pertencentes, por
pelo autor como produção e difusão de exemplo, ao Legislativo e, também, ao Executivo?
ideologias, construção de alianças, direção O papel e as funções das burocracias executivas
política e ideológica? Não seria possível disputar se restringem à dimensão coercitiva?
hegemonia no âmbito da sociedade política e Quanto às sanções das quais os governados
exercer coerção através da sociedade civil? não podem escapar, será que elas também não
Segundo Coutinho, a sociedade política e existem no âmbito da sociedade civil? Quais os
a sociedade civil distinguem-se não somente limites entre voluntário e coercitivo? Constituiriam
pelas funções que desempenham no exercício constrangimentos jurídicos, morais? Pensando, por
do poder, mas, também porque possuem uma exemplo, em organizações fascistas na sociedade
materialidade própria: civil, até que ponto a dimensão voluntária está
Precisamente aqui reside o segundo ponto inscrita em suas práticas? Por outro lado, em todos
de diferenciação entre as duas esferas: elas se os organismos vinculados à sociedade política,
distinguem por uma materia lidade (social- às burocracias executivas, predominam as funções
institucional) própria. Enquanto a sociedade coercitivas e inexistem funções "hegemônicas"?
política tem seus portadores materiais nos Pensamos, assim, em governos contemporâneos,
aparelhos repressivos de Estado (controlados nos quais a produção e a difusão de projetos e
pelas burocracias executiva e policial-militar), programas se tornam poderoso mecanismo de
o portadores materiais da sociedade civil são o representação da realidade, redefinição do
que Gramsci chama de "aparelhos privados de imaginário social, disputa ideológica e articulação
hegemonia", ou seja, organismos sociais coletivos política. Segundo Coutinho, Gramsci define
voluntários e relativamente autônomos em face sociedade política como:
da sociedade política (Coutinho, 1999: 128-129).
( ...) aparelho de coerção estatal que
(...) enquanto a "sociedadepolítica ,.tem assegura legalmente a disciplina dos
seusportadores materiais nos "aparelhos grupos que não consentem, nem ativa
coercitivos do Estado ". os portadores nem passivamente, mas que é consti-
materiais da "sociedade civil" são o que tuído para toda a sociedade, na previ-
Gramsci chama de "aparelhosprivados" são dos momentos de crise no comando

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e na direção [nos aparelhos privados de recriação das políticas e ideologias de segurança


begemonial. quando fracassa o consen- nacional; a postura do Estado norte-americano;
so espontâneo (Coutinho, 1999: 130). as guerras internacionais e o armamentismo
presente em diferentes sociedades modernas,
Nessa interpretação de Coutinho, a função talvez tenhamos que repensar teoricamente as
de coerção do Estado, além de ser vinculada funções desempenhadas pela coerção/violência
somente à sociedade política, é pensada como e pelo consenso/consentimento, e desenvolver
uma dimensão que adquire centralidade apenas instrumentos analíticos que permitam analisar
em momentos de crise no comando e na direção, características, processos e mecanismos através
quando fracassa o consenso espontâneo. Não dos quais se articulam essas dimensões no
se pode ou não se deve falar em coerção/ exercício do poder e nas lutas de classes.
violência enquanto característica inscrita nas Essa articulação se daria, na interpretação
formas e mecanismos de dominação classista, de Coutinho, através da noção de supremacia
mesmo em momentos sem crise de hegemonia? que unificaria, sem homogeneizar, a hegemonia
Entende-se por coerção/violência somente aquilo e a dominação, o consenso e a coerção, a direção
que remete à força física e/ou armada e/ou penal? e a ditadura (Coutinho, 1999: 130), Porém, essa
Quanto à violência simbólica, deve ser inscrita articulação é apenas indicada e não ternatizada
no âmbito da "hegemonia'? A interpretação de ou problernatizada, o que continua deixando sem
Coutinho nào perderia de vista o momento resposta os questionamentos acerca da coerção/
repressivo/ coercitivo/violento, enquanto violência no exercício do poder.
dimensão essencial e permanente no exercício Um outro aspecto da interpretação de
do poder estatal, classista? Gramsci, feita por Coutinho, polêmico para nós,
Essa concepção pode ser um dos fatores se refere à idéia segundo a qual a "necessidade
que explica porque a interpretação coutiniana de conquistar o consenso ativo e organizado como
não evidencia, ou articula teoricamente, a base para a dominação" teria surgido somente
coerção/violência enquanto uma dimensão nas sociedades capitalistas mais avançadas,
cotidiana inscrita na dominação de classe. Essa ocidentais, em virtude da "socialização da política"
dimensão é aceita enquanto determinação (Coutinho, 1999: 129 e 1996: 55). As reflexões de
essencial do Estado classista, mas não é pensada Thompson 0998; 1997), por exemplo, talvez
e problernatizada analiticamente; na articulação possam ser pensadas como contra ponto a essas
teórica interna dos conceitos, somente a concepções: recorrendo à noção de experiência,
hegemonia adquire visibilidade e centralidade este autor percebe que a afirmação do
na luta de classes. a verdade, pode-se trabalhar capitalismo, já no século XIX, ocorre, na medida
com a hipótese de que a interpretação coutiniana em que consegue destruir valores e concepções
subestima o papel da violência/coerção, não incorporados às tradições e costumes herdados
evidencia ou não desenvolve instrumentos e recriados, culturalmente, pelos trabalhadores.
teóricos que permitam perceber essa dimensão Mais do que isto, os processos de auto-
em sua importância contemporânea, e constituição das classes sociais são pensados a
superestima a dimensão da "hegemonía", partir das experiências cotidianas e coletivas dos
Se considerarmos, por exemplo, fenômenos trabalhadores, das formas como estes as pensam,
como: a luta no campo, no Brasil; os movimentos sentem e representam, criando referências e
neonazistas e fascistas contemporâneos; as parâmetros culturais a partir dos quais são
"políticas de tolerância zero" vinculadas ao que enfrentados os problemas, dilemas e situações
alguns autores denominam de Estado penal, com vivenciadas. A disputa do poder político não se
conseqüente criminalização da pobreza e limita à sociedade política; estende-se à sociedade

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'i\ e se insere na disputa cultural de concepções posições", fundada numa batalha permanente
e mundo e de vida, de valores, representações e pela hegemonia e pelo consenso. Temos aqui
r::íticas, no contexto das lutas de classes. um outro paradígrna marxista de revolução: a
Talvez essa reflexão deva ser articulada à revolução como processo, como seqüência
rítica à concepção de hegemonia inscrita na orgânica de rupturas parciais que ocupam toda
erpretação coutiniana. Assim, se pensarmos época histórica, Esta revolução não se contrapõe
_egernonia em um sentido amplo, enquanto à luta por reformas: ao contrário, é através de
constituição permanente de concepções de reformas - e Gramsci fala mesmo em "reforma
undo e de vida, valores e práticas com intelectual e moral" - que se faz agora a
eferencial classista, a partir das lutas de classes revolução (Coutinho, 1991: 100).
enfrentadas pelos trabalhadores reais, concretos,
i toricamente existentes, e nào somente (...) nas formações "orientais': a predo-
enquanto afirmação de concepções, projetos e minância do Estado-coerção impõe à
deologias políticas através das quais são feitas luta de classes uma estratégia de ataque
lianças, talvez possamos estabelecer articu- frontal, uma "guerra de movimento" ou
acões entre as concepções de Gramsci e de de "manobra ': voltada diretamente para
Thornpson. Nessa perspectiva, questiona-se uma a conquista e conservação do Estado em
')()ssível interpretação coutiniana que subordina, sentido restrito; no "Ocidente ", ao con-
u centraliza, a hegemonia à democracia política trário, as batalhas devem ser travadas
Coutinho, 1999: 124-125 e 1996: 52-53). Além inicialmente no âmbito da sociedade
disso, questionamos uma interpretação, derivada civil, visando à conquista de posições e
desta última, segundo a qual, nos contextos de espaços ("guerra de posições "J, da
históricos anteriores ao surgimento dos partidos direção político-ideológica e do consen-
ooliticos, dos sindicatos de massa, do capitalismo so dos setores majoritários da popula-
desenvolvido, teria existido uma escassa ção, como condição para o acesso ao
participação política dos trabalhadores. poder de Estado e para sua posterior
Apontamos, como ilustração dessa crítica, as conservação (Coutinho, 1999: 147).
reflexões que reinterpretarn as características e
significados dos "quebradores de máquinas" em Segundo Coutinho 0999: 149-150), a chave
uma certa perspectiva historiográfica, para além da "guerra de posição", da estratégia adequada
de movimentos "espontâneos", ingênuos, sem aos países "ocidentais" ou que se "ocidentalizam",
organização e consciência política, até mesmo reside precisamente na luta pela conquista da
pré-corporativos, estaríamos diante de movimentos hegemonia, da direção política ou do consenso".
organizados, conscientes. Nos trechos que acabamos de transcrever, nos
De sua interpretação acerca do Estado quais a hegemonia é explicitada enquanto direção
ampliado, na qual adquire centralidade a político-ideológica e constituição do consenso,
ociedade civil, Coutinho deriva o que apresenta poderíamos questionar um maior esclarecimento
como uma nova concepção ou estratégia de sobre o que se compreende efetivamente por
transição ao socialismo. Em substituição à "guerra "direção político-ideológica" e por "consenso".
de movimento", aponta para a "guerra de A capacidade de constituir o consenso das amplas
posições"; em substituição ao que denomina massas evidencia a hegemonia de uma classe
"paradigma de revolução socialista explosiva", social, e é nessa perspectiva que Coutinho afirma
um "paradigma processual". Nessa perspectiva: que o elemento central da estratégia gramsciana
Trata-se de orientar a luta pelo socialismo de transição ao socialismo é a "transformação da
segundo uma nova estratégia, a da "guerra de classe dominada em classe dirigente, antes da

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tomada do poder" (Coutinho, 1999: 154). Quando "significativas e duradouras conquistas sociais e
o país apresenta uma sociedade civil rica e democráticas, certamente mais amplas - sobretudo
pluralista, a obtenção de uma ampla hegemonia no que se refere à democracia - do que aquelas
deve preceder a tomada do poder; ou seja, a obtidas nos países "orientais" que seguiram um
classe que se propõe a uma transformação caminho não capitalista (nos países do chamado
revolucionária da sociedade já deve ser socialismo real)" (idem, ibidern: 43). Os limites
hegemônica antes de ser dominante (Coutinho, desse movimento estiveram na "incapacidade de
1996: ')9). O autor afirma o caráter processual e transformar o significativo processo reformista que
molecular da transição revolucionária nas desencadeou num efetivo movimento de superação
sociedades ocidentais: da lógica do capital e de suas mais gritantes
contradições" (idem, ibidem: 44). Na interpretação
(. ..) a expansão da begemonia das clas- de Coutinho, esses limites têm duas manifestações,
ses subalternas implica a conquista pro- uma econômica e outra política:
gressiva de posições através de um No plano econômico, o limite do
processo gradual de agregação de um reformismo social-democrata reside no fato de
110VO hloco histórico, que inicialmente que a ampliação crescente dos direitos sociais
altera a correlação de forças na socie- é, a longo prazo, incompatível com a lógica da
dade civil e termina por impor a ascen- acumulação capitalista (...). No plano político,
são de uma nova classe (ou bloco de o limite do reformismo social-democrata tem
classes) ao poder do Estado (Coutinho, consistido em sua incapacidade de superar uma
1996: 60). visão "neutra" e "instrumental" da burocracia
estatal (idem, ibidem, p. 44 e 46, respectivamente).
Em outro texto, Coutinho (2000: 39) afirma Ao final, defende sua concepção de
que a estratégia de luta pelo socialismo se orienta revolução:
para a conquista paulatina de espaços no interior
da sociedade civil e, por meio e a partir dela, no (. .. ) ao contrário do que supunha
próprio Estado. A compreensão do Estado Bernstein, não se trata de abandonar o
enquanto expressão da correlação de forças "objetiuo final" quando se opta por uma
existente na sociedade, sempre sob hegemonia política centrada nas reformas: é o "oh-
de uma classe ou fração de classe, parece jetivo final" - ou, mais precisamente, o
evidenciar um deslocamento teórico do autor. projeto de uma nova sociedade - que
Coutinho (2000: 39) fala em alteração na natureza dará a pauta para a bierarquização das
do Estado capitalista, que se tornou permeável às reformas, para a definiçâo dos atores
ações das forças em conflito. Nessa perspectiva, (e das alianças) que podem executá-Ias,
o autor sugere que "tornara-se possível obter, ainda para a constante avaliação do seu êxito
no interior da economia capitalista e sob a e do seu fracasso. Um reformismo que
dominação do Estado burguês, o reconhecimento tem como objetivo explícito aprofundar
e a satisfação de expressivas demandas das classes a democracia e supera r o capitalismo é
subalternas" (idem, ibidern. 42-43). um reformismo revolucionário (idem,
Efetua uma reflexão acerca dos aspectos ibidern: 47).
positivos e das limitações estruturais do reformismo
social-democrata, defendendo, ao final, a O autor afirma, ainda, que
concepção de um reformismo revolucionário.
Indica que o reformismo social-democrata Gramsci concebe a revolução como
possibilitou às classes trabalhadoras do Ocidente um processo global, que - embora

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opere através da conquista de espaços de 1930. A revolução burguesa brasileira se efetivou
e de posições - tem como meta a trans- lentamente, sem rupturas com o passado, mas,
formação profunda da totalidade soci- concretizando uma sociedade capitalista moderna
al (Coutinho, 1991: 100). e dependente. A novidade de Carlos Nelson
Coutinho está na maneira como se apropria dessa
Questionamos se estas reflexões não literatura brasileira, reinterpretando-a a partir destes
perdem de vista as determinações do Estado dois conceitos da teoria de Grarnsci.
capitalista, explicitadas pelos clássicos marxistas, Para Coutinho, a especificidade histórica
. egundo o próprio autor: o caráter de classe e a da sociedade brasileira pode melhor ser
dimensão da coerção/violência. Inexiste uma compreendida através de uma espécie de síntese,
articulação teórica dessas determinações, articulando-se o conceito de via prussiana com
conforme esse raciocínio. Acaso o caráter o de revolução passiva. O conceito de via
classista do Estado ou sua dimensão coercitiva prussiana, de Lênin, diz respeito a mudanças
teria se fragilizado? econômicas feitas "pelo alto", tendo o Estado
como protagonista principal da modernização
Revolução passiva e Estado ampliado, capitalista. Os autores brasileiros que utilizam
na interpretação do Brasil este conceito enfatizam mais as transformações
da infra-estrutura, deixando em segundo plano
A análise crítica dos conceitos abordados o jogo político e ideológico das classes sociais.
anteriormente será acrescida, aqui, de uma Já o conceito de revolução passiva, prioriza a
reflexão sobre a utilização dos conceitos de dimensão política da revolução-restauração, isto
revolução passiva e Estado ampliado, na é, da revolução burguesa sem rupturas com o
interpretação da singularidade histórica brasileira. passado colonial e oligárquico, como aconteceu
A interpretação do Brasil a partir destes na sociedade brasileira.
conceitos, feita por Carlos Nelson Coutinho, nos Carlos Nelson Coutinho entende por
parece ser uma abordagem inovadora, revolução passiva os processos de modernização
possibilitando compreender aspectos estruturais conservadora; ou seja, processos nos quais, as
da formação da sociedade brasileira. Claro que classes dominantes, ao se sentirem ameaça das
vários autores brasileiros já analisaram muitos por setores populares que reivindicam mudanças
aspectos da denominada revolução passiva substanciais, agiriam politicamente de maneira
brasileira, mesmo sem utilizar este conceito. conservadora, excluindo, com bastante violência,
Podemos destacar as interpretações de Caio Prado essas classes populares da cena política, através
Júnior (977), Florestan Femandes (976) e José da força repressora do Estado. E, ao mesmo
de Souza Martins (999). Vale ressaltar, ainda, a tempo, esses grupos dominantes buscariam novas
análise de Luís Werneck Vianna (993) sobre a formas de se legitimarem no poder, por meio
revoluçào passiva, desde o período da da promoção de mudanças políticas, econômicas
Independência e da formação do Estado nacional, e sociais, reivindicadas pelos grupos dominados
enfatizando especialmente o contexto da e excluídos.
denominada revolução de 1930 e os desdo- O conceito de revolução passiva foi
bramentos do período de Vargas 0930-45). utilizado por Gramsci para analisar o processo
Estes autores procuram realçar o papel de unificação e modernização capitalista na Itália
predominante do Estado, a relação entre tradição do final do século XIX, conhecido como período
e modernidade e os diversos acordos e alianças do Risorgimento. Comparando com o caso
entre distintas classes e grupos sociais, no processo francês, Gramsci analisa a especificidade da
de modernização conservadora, a partir da década revolução burguesa na Itálía". Segundo ele, o

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partido moderado de direita conseguiu se tenentista e a organização da Aliança Nacional


constituir num bloco de poder hegemônico no Libertadora, nos anos 1930 - produziu uma reação
interior do Estado Unificado, excluindo os setores violenta do governo de Getúlio Vargas, instituindo
sociais mais marginalizados, especialmente do um regime ditatorial em 1937, que intensificou
sul da Itália, e, ao mesmo tempo, incorporando a modernização industrial e promoveu a
reivindicaçôes destes setores, bem como instítucionalização de direitos trabalhistas e sociais
cooptando lideranças do Partido de Ação para para os setores urbanos. o contexto dos anos
seu projeto político hegemônico. A unidade 1960, ganham espaço as idéias populares pelas
italiana foi fruto desse movimento conservador reformas de base, no período de João Goulart,
que promoveu a modernização capitalista. O mas as classes dominantes (empresários, militares
próprio fascismo foi compreendido por Grarnsci e amplos setores da classe média) reagem e tomam
como um momento da revolução passiva italiana. o poder, pois não admitem a possibilidade de
Mussolini lidera um projeto político das classes haver uma revolução a partir dos setores
dominantes, incorporando setores trabalhistas subalternos. O Estado, através da tecnoburocracia
através do corporativismo sindical controlado militar, se torna o principal protagonista do
pelo Estado. desenvolvimento econômico e da segurança
Nessa análise do caso italiano, podemos nacional. A Ditadura Militar não foi um regime
perceber muitos aspectos semelhantes à história político totalitário e conservador como as
brasileira. O que Carlos Nelson Coutinho faz é experiências nazi-fascistas que tinham como base
justamente sistematizar o conceito de revolução de legitimação as massas organizadas e
passiva (este aparece de uma maneira frag- disciplinadas. Constituiu-se como um autoritarismo
mentada em várias passagens dos Cadernos do modernizador, alicerçado na crença do Brasil como
cárcere') e aplicá-lo ao caso brasileiro. Para o uma potência econômica.
autor, os conceitos de Gramsci são universais, A análise da revolução passiva feita por
não estão presos ao contexto histórico da Itália. Coutinho, nestes contextos autoritários da história
Ainda que sejam sempre produzidos a partir da brasileira, se aproxima da reflexão de José Murilo
análise de experiências históricas singulares, de Carvalho sobre a cidadania no Brasil. Para
adquirem um grau de generalização de acordo este autor, os direitos sociais foram efetivado
com a efetividade de sua aplicação para interpretar nos períodos ditatoriais: no período de Varga
outras experiências históricas. Coutinho reconhece especialmente para os setores trabalhistas urbanos:
diferenças consideráveis entre os casos italiano e no contexto da Ditadura Militar, uma extensão
brasileiro, especialmente o fato de o Brasil dos destes direitos para o mundo rural (Carvalho, 2002).
anos 1930 já ter uma unidade nacional constituída Podemos então acrescentar, com base nesta
e a Itália ter promovido sua modernização leitura de Coutinho, que a expansão dos direito
conservadora no contexto de unificação do Estado sociais no Brasil serviu para legitimar o poder
nacional; mas, diz ele, há muitas semelhanças autoritário dos grupos dominantes que conduzem
que permitem uma boa utilização do referido o Estado através da incorporação de direitos
conceito para compreender nossas singularidades. reivindicados pelas classes populares, porém
A história brasileira está repleta de momentos excluindo-as como forças ativas do bloco de poder
em que ocorreu esse transformismo pelo alto, essa No entanto, a revolução passiva termina
"revolução-restauração". Coutinho destaca por modificar a estrutura da sociedade e do Estad
especialmente os períodos ditatoriais do Estado brasileiros. Se nos prendermos somente na análi -
Novo 0937-45) e da Ditadura Militar no Brasil da história brasileira a partir deste conceito
(1964-85). A ação política das classes populares corremos o risco de cair numa leitura estrutural e
desde os anos 1920 - criação do PCB, movimento determinista das suas transformações. Ancorado

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érn, nos conceitos de ocidentalização da Por que teria sido essa "ocidentalização'
edade e Estado ampliado, referidos no tópico da sociedade brasileira? Esta é uma interrogação
erior, Coutinho assinala mudanças. No modelo pouco trabalhada por Carlos Nelson Coutinho.
ental de organização social. efetivado a partir Quando o autor está analisando o Brasil
final do século XIX, há uma relativa autonomia referenciado no conceito de revolução passiva,
ciedade civil em relação ao Estado e este o que se nota é que pouca margem existe para
-a a ser entendido como um Estado ampliado, mudanças substanciais na sociedade brasileira.
seja, como uma relação intrínseca entre No entanto, ao introduzir o conceito de
edade política e sociedade civil. Já o modelo ocidentalização, já percebe, ao longo de nossa
ental, se caracteriza pelo predomínio do Estado história, várias manifestações que apontam para
uanto instituição coercitiva diante de uma o desenvolvimento de uma sociedade civil
edade civil desorganizada e gelatinosa. autônoma e organizada, condição indispensável
O autor afirma que esta distinção entre para a reflexão sobre o conceito de Estado
'dente e Oriente não é estática e nem ampliado.
gráfica. Uma sociedade de características E preciso enfatizar que a revolução passiva
edominantemente orientais pode se transformar brasileira está também presente nos processos
modelo ocidental. Embora não explique democráticos. O Estado, visto de cima, tem sido
alhadarnente os motivos da mudança, é o principal protagonista do desenvolvimento
• mente isso que Carlos Nelson Coutinho capitalista, não porque a sociedade civil seja
fica no caso da sociedade brasileira. Para "desorganizada e gelatinosa", como na definição
é. o longo processo de revolução passiva de Gramsci. Segundo Coutinho, mesmo com uma
-. ihilitou uma ampliação da sociedade civil, relativa autonomia da sociedade civil, a sociedade
necialmente no contexto de abertura política política brasileira tem uma margem de liberdade
final da ditadura militar, abrindo-se, assim, na condução da economia e da sociedade civil,
paço para se pensar o Brasil, a partir da Nova nos contextos autoritários e democráticos, desde
epública , como uma sociedade ocidental o período da Independência.
rganizada através do Estado ampliado. O autor apresenta de maneira eufórica o
Apoiando-se no conceito de revolução processo de organização da sociedade civil no
assiva, o autor centraliza sua interpretação nos final da ditadura militar, esquecendo-se, no
'1éríodos ditatoriais; e, na análise de momentos entanto, ele frisar que a mudança para a
e relativa democratização da sociedade brasileira, democracia foi "lenta, gradual e segura", conforme
rticu la as noções de "ocide ntaliz ação" e a frase elo general Ernesto Geisel. Os grupos
ormação do Estado ampliado". Apesar das dominantes no interior do Estado inviabilizaram
mudanças feitas de "cima para baixo" e da mudanças substanciais reivindicadas por amplos
'iolência cometida pelo Estado na exclusão dos setores da sociedade civil. Apesar de toelas as
-etores marginalizados, as classes subalternas e manifestações das Diretas Já, em 1983/84, a
-etores médios foram se organizando no contexto eleição para Presidente da República foi indireta,
republicano. Coutinho destaca o papel dos em 1985, e, no próprio contexto da Assembléia
indicatos na Primeira República 0889-1930), do Nacional Constituinte 0986-88), a formação do
movimento tenentista da década de 1920, do chamado Centrão (articulação dos grupos
.rabalhismo e das Ligas Camponesas, no contexto conservadores e dominantes) toldou muitas
Ja década de 1960; e a organização do novo conquistas populares.
indicalismo, movimentos populares e outras Claro que muitas mudanças aconteceram,
antas organizações sociais, no período de abertura apesar do controle elesses setores dominantes. Tem
política no Brasil, a partir dos anos 1970. ocorrido uma alternância de partidos no comando

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A INTERPRETAÇÃO DA TEORIA DE GRAMSCI POR CARLOS NELSON COUTINHO ... P. 84 A 99.
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do Executivo do Estado brasileiro no contexto atual O deslocamento essencial, pensado por


de nossa democracia, diferentemente de muitos Coutinho, a partir da noção de Estado ampliado,
outros países da América Latina. O espectro político indica que o exercício do poder classista se
tem, aos poucos, mudado da direita para o centro- deslocou essencialmente do âmbito da coerção/
esquerda, gerando uma forte expectativa de violência para o campo da hegemonia!consenso.
construção de uma nova hegernonia, capaz de Esse deslocamento poderia ser comprovado,
romper com a lógica de nossa "revolução passiva" empiricamente, examinando-se expressões de
e consolidar um projeto de radicalização da lutas de classes no século XX? Tal compreensão
democracia de massas no Brasil. não obscureceria a dimensão da coerção/
Mas, parece que o peso da tradição violência?
autoritária, elitista e antipopula r continua Podemos questionar interpretação de
oprimindo "como um pesadelo o cérebro dos Coutinho, de acordo com a qual, as lutas
vivos" (Marx, 1997: 21). Os setores de centro- políticas, os processos e as formas de
esquerda, que atualmente ocupam o poder, organização das classes subalternas somente
podem dar continuidade "à política de direita teriam adquirido importância social e peso
com homens e frases de esquerda" (Gramsci, político no contexto das democracias burguesas.
2002: 70), conforme a análise grarnsciana sobre Essa reflexão não é tão simples, se pensarmos
a política de Crispi, no contexto do Risorgimento que estamos examinando o peso e a importância
italiano 0861-1876). da dinâmica e do movimento classista, enquanto
potencial idade de transformação revolucionária,
Considerações finais ou seja, capacidade de gestar e implementar uma
nova concepção de mundo, orgânica, autêntica.
Assinalamos algumas reflexões finais, No que concerne à interpretação da
reforçando que este texto representa uma leitura estratégia de transição ao socialismo (ou das
sintética, preliminar e crítica. Reafirmamos a estratégias, já que parece haver mudanças
importância da leitura coutiníana, no que diz significativas nas concepções), não cairia o autor
respeito a concepções, valores e práticas numa valorização da sociedade política e da
assumidas pela esquerda brasileira nas últimas infra-estrutura e numa supervalorização da
décadas. Desta forma, apresentar criticamente suas sociedade civil?
interpretações acerca de concepções e conceitos A idéia de que a hegemonia se exerce
gramscianos pode vir a cumprir alguns objetivos: somente no âmbito da sociedade civil e a coerção
1) fortalecer a absorção crítica da teoria política no âmbito da sociedade política não apresentaria
gramsciana, 2) evidenciar a especifícidade da uma rigidez, uma esquematização que impediria
leitura coutiniana; 3) indicar a existência de outras se pensar e problernatizar deslocamentos,
leituras possíveis, 4) estimular o debate e a dinâmicas e articulações existentes entre sociedade
polêmica produtivos no campo da teoria marxista civil e sociedade política? O caráter de classe
e da esquerda (marxista e não-marxista), 5) indicar inscrito no Estado ampliado não estaria sendo
a possibilidade de leituras da sociedade brasileira menosprezado, teoricamente, na interpretação
com base em referenciais teóricos de Gramsci. global do autor acerca ela estratégia de transição
Uma primeira reflexão se refere à ao socialismo?
necessidade de problematizar ou explicitar o A hegemonia parece ser centralizada nas
conteúdo dos conceitos gramscianos, em cada dimensões de direção político-ideológica,
interpretação desenvolvida, rompendo com a constituição do consenso das amplas massas e
idéia segundo a qual, estes seriam auto-evidentes, "costura" de alianças políticas. Isto não
prescindindo de uma ternatização específica. envolveria uma sobrevalorizaçào da dimensão

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cultural em um sentido mais amplo (como não é somente lugar da democracia, de consenso,
afirmado em algumas passagens deste texto), e posto que, fundada nas relações sociais de
em detrimento de uma característica central na produção, é contraditória, conflituosa e mesmo
teoria política gramscíana? Parece não adquirir antagônica em seus interesses, projetos, práticas
centralidade em sua interpretação, por exemplo, e valores?
no que se refere à estratégia de transição ao Uma outra reflexão diz respeito à
socialismo, a dimensão de reforma intelectual e identificação entre socialização da política e
moral, inscrita na noção de hegemonia democratização da vida política (Coutinho, 2000:
gramsciana. Embora, em alguns momentos de 28). A socialização da política se vincularia à
uas reflexões, refira-se à hegemonia enquanto política de massas, e também, obrigatoriamente,
direção intelectual e moral, o faz de forma tênue. à participação popular democrática?
O autor não explica a que se refere essa Poder-se-ia indicar que a interpretação
capacidade dirigente, o que termina resultando processual e molecular de transição ao socialismo,
em uma interpretação que não esclarece as traz consigo, implicitamente, uma concepção
dimensões intelectual e moral, e parece "pacífica" de transição ao socialismo, obscurecendo
ubordinar-se somente à capacidade de governo a problernatização da coerção e da violência nas
e de estabelecimento de alianças políticas. relações, nos processos e exercício do poder
A coerção é pensada enquanto dimensão contemporâneos? A institucionalização de
inscrita na política somente nos momentos de mecanismos democráticos, representativos e
crise de hegernonia, não aparecendo enquanto participativos, por si só, é capaz de barrar a coerção
algo intrínseco ao cotidiano das lutas entre as e a violência inscritas nas relações sociais
classes sociais. Nesse aspecto, convém assinalar capitalistas? O autor faz referência à "feliz
que, através de reflexões derivadas da nota 23 expressão de um dos últimos documentos do
dos Cadernos do Cárcere (Gramsci, 2002), se Partido Comunista Italiano", segundo a qual, "a
problematiza como a coerção pode estar inscrita democracia não é um caminho para o socialismo,
na própria constituição do bloco histórico das mas sim o caminho do socialismo" (Coutinho, 2000:
classes subalternas, como a dominação/coerção 24). Essa interpretação teórica não geraria um
não se refere somente aos grupos adversários, menosprezo da coerção/violência, como fenômeno
não se destina somente a liquidar e nem se concreto que deve ser enfrentado, teórica e
exerce somente através da força armada, praticamente, no caminho para o socialismo?
podendo adquirir importância a violência Um aspecto nos incomoda: ao abordar a
simbólica. democracia enquanto valor universal, bem como
Na interpretação coutiniana, em virtude da ao examinar o papel desta na transição ao
mutação histórico-estrutural do Estado capitalista, socialismo, na práxis política das classes
estaríamos diante de um deslocamento obrigatório subalternas, o autor parece enveredar por uma
da luta de classes para o terreno da democracia? análise na qual, implicitamente, a coerção/
A sociedade civil tenderia a ser mecanismo de violência teria significado menor, nas formas de
construção de consenso, de negociação, de dominação e de exercício do poder político. Não
articulação político-ideológica? Não estaria se deveria, neste caso, focalizar as determinações
implícita uma concepçâo de sociedade civil no concretas, existentes em cada contexto histórico?
âmbito da qual, não se visualizam contradições, Obrigatoriamente, no contexto do Estado
conflitos e antagonismos, inclusive classistas, bem ampliado, a coerção adquire papel secundário
como práticas de coerção ou violência? A nas formas de dominação? Teoricamente, poder-
sociedade civil não seria, também, lugar de se-ia tratar de perceber o lugar da coerção/
violência, de coerção, compreendendo-se que esta violência: 1) no contexto da democracia entendida

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A INTERPRETAÇÃO DA TEORIA DE GRAMSCI POR CARLOS NELSON COUTINHO ... P. 84 A 99.
DOSSIÊ GRAMSCI

como valor universal, 2) no contexto da ordem leira, 1965; e Marxismo e a Arte, Rio de janeiro,
capitalista democrática e 3) no contexto da Civilização Brasileira, 1967.
; Segundo Coutinho (990), () racionalismo histórico-
transição ao socialismo. Talvez caiba analisar a
dialético de Gramsci e de Lukács (cujas diferenças
emergência, o caráter, os significados, as formas,
nem sempre eram devidamente apontadas) pas-
conteúdos, instituiçóes, processos, relações e sou a ser visto como expressão de uma tendência
agentes vinculados à coerção/violência, em suas conservadora e anacrônica. Consideravam-se mais
transições dinâmicas, permanências, contradições adequadas às urgentes tarefas impostas pela nova
e características essenciais. situação a "Grande Recusa" de Marcuse e a supos-
A interpretação de Carlos Nelson Coutinho tamente radical "Revolução Epistemológica" de
Althusser. Misturados ecleticarnente entre si, mas
merece críticas e possibilita a formulação de
também com Mao Tsetung e Régis Debray, Marcuse
muitas Interrogações, se associada a uma leitura
e Althusser ganharam um lugar privilegiado na cul-
paralela dos textos do próprio Gramsci e de outros tura da nossa "nova esquerda", que julgava ser a
intérpretes do pensamento gramsciano. Nestes luta armada a única via para derrotar a ditadura e
termos, a interpretação de Coutinho não é estática; resolver os problemas do país. Herbert Marcuse, que
ao contrário, trata-se, isto sim, de uma leitura pregava o impulso revolucionário dos marginaliza-
dinâmica e em constante processo de superação dos, se transformou no autor e ícone da geração de
68. Althusser, eliminando a subjetividade em favor
de suas próprias interpretaçàes anteriores,
de um objetivismo absoluto, "trouxe ao marxismo
impulsionada por novas leituras e pelas mudanças o status de ciência e passou a ser muito estudado
políticas e ideológicas que estão ocorrendo no no interior da esquerda".
mundo ocidental e particularmente no Brasil. Nos 4 Edmundo Dias, em seu artigo "Rabo Preso", in Teo-
seus últimos textos interpretativos, o autor destaca ria e Dehate, nº 1, faz uma crítica feroz a Carlos
principalmente a concepção política de Gramsci Nelson Coutinho, acusando-o de ter sido em parte
responsável por essa visão, já que, segundo Dias,
como o principio básico de sua teoria e de seu
em seus textos e nas obras traduzidas, o que mais
método de exposição, superando a ênfase cultural,
transparecia era esse Gramsci teórico da cultura e
bastante criticada por outros intérpretes. não, um teórico da política.
'5 O editor da Civilização Brasileira, Ênio Silveira, foi preso
Notas várias vezes por causa dos livros lançados pela edi-
tora, serem identificados como comunistas.
I Centralizamos nosso estudo nas seguintes obras: 1) o (,O projeto inicial de tradução da obra gramsciana in-
ensaio A dualidade de poderes: Estado e revolução cluía, também, II Risorgimento Passa to e Presente
no pensamento marxista (COUTINHO, 1996) que e Maquiauel. Destes, somente o último foi traduzi-
teve sua primeira publicação em 1985; 2) a discus- do em 1968.
são sobre Teoria ampliada do Estado, realizada em 7 O conceito ele revolução passiva não foi criado por
Gramsci - um estudo sobre seu pensamento polí- Gramsci. Vincenzo Cuoco 0770-1823) foi o primeiro
tico (COUTINHO, 1999), cuja primeira edição é de autor a utilizar a expressão, no contexto da revolu-
1989, e 3) o ensaio Democracia e Socialismo: ques- ção napolitana de 1799. A revolução passiva em
tões de princípio (COUTNI-IO, 2000), apresentado Nápoles foi fruto do impacto de acontecimentos
pela primeira vez em um seminário do Partido dos externos, advindos da Revolução Francesa - esta,
Trabalhadores, realizado em 1989. uma verdadeira revolução ativa, segundo Cuoco -
2 Carlos elsori Coutinho fez referências a Grarnsci e comandada por um pequeno grupo de intelectu-
em "Problemática Atual da Dialética", in Ângulos, ais que não soube articular seus anseies com as ne-
Salvador, nQ 17, dezembro de 1961 e em "Do cessidades concretas do povo (Gramsci, 2002: 371).
Existencialismo à Dialética: a trajetória de Sartre", H Cadernos do Cárcere: vol.l : 298-300; vol. IV, S57:
in Estudos Sociais, Rio de janeiro, nº 18, dezem- 209, vol.V, SS 11,15,17,25,56,59 e 62, do cader-
bro de 1963. Leandro Konder, em "Problemas do no 15.
Realismo e Socialismo", in Estudos Sociais, Rio de
janeiro, nº 17, junho de 1963 e nos livros Marxis-
mo e Alienação, Rio de janeiro, Civilização Brasi-

98 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 35 N. 2 2004


DOSSIÊ GRAMSCI
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