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FOLHA DE ROSTO_1nova.

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Governo Federal
Ministro de Estado Extraordinário de
Assuntos Estratégicos – Roberto Mangabeira Unger

Secretaria de Assuntos Estratégicos

Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, o


Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais,
possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de
desenvolvimento brasileiro, e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e
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Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

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Estratégias e Instituições
João Sicsú
Pedro Miranda
Organizadores

Armando Castelar Pinheiro


Eduardo da Motta e Albuquerque
Fernando José Cardim de Carvalho
Miguel Bruno
Autores

Rio de Janeiro, 2009

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© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2009

Crescimento econômico: estratégias e instituições/João Sicsú e Pedro Miranda,


organizadores. – Rio de Janeiro: Ipea, 2009.

112 p.: gráfs., tabs.

1. Crescimento econômico 2. Desenvolvimento econômico 3. Brasil I. Sicsú, João


II. Miranda, Pedro Carvalho de III. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

ISBN - 978-85-7811-015-4 CDD 338.981

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira


responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto
de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou o da Secretaria
de Assuntos Estratégicos.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde


que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.

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Sumário

apresentação 7

CAPÍTULO 1
A RELAÇÃO ENTRE CURTO E LONGO PERÍODOS NAS
PRINCIPAIS CORRENTES TEÓRICAS DE ECONOMIA 9
Fernando José Cardim de Carvalho

Capítulo 2
PIB POTENCIAL E SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL 25
Armando Castelar Pinheiro

capítulo 3
Catching up NO SÉCULO XXI: CONSTRUÇÃO COMBINADA
DE SISTEMAS DE INOVAÇÃO E DE BEM-ESTAR SOCIAL 55
Eduardo da Motta e Albuquerque

CAPÍTULO 4
ACUMULAÇÃO DE CAPITAL E CRESCIMENTO ECONÔMICO
NO BRASIL: UMA ANÁLISE do período 1950-2006 85
Miguel Bruno

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APRESENTAÇÃO

Crescimento econômico e desenvolvimento não são fenômenos espontâneos.


Exigem impulsos, coordenação de expectativas e estabelecimento de incentivos
aos agentes econômicos. Crescimento é condição básica para que haja desenvol-
vimento. O crescimento pode ser realizado em curto espaço de tempo, mas é sua
continuidade que abre as portas para o desenvolvimento. Os primeiros sintomas de
uma relação sinérgica entre crescimento e desenvolvimento são: queda acentuada
do desemprego, aumento drástico do grau de formalização da força de trabalho,
elevação dos rendimentos, melhor distribuição funcional da renda e redução do
déficit orçamentário nominal.
Desenvolvimento socioeconômico, entretanto, é muito mais que sintomas
iniciais. É uma articulação que promove resultados sociais e envolve diversos
sistemas e dimensões. O desenvolvimento é alcançado quando existe uma sólida
articulação entre um sistema nacional de inovação maduro, um sistema de segu-
ridade social de qualidade e de acesso universal, um sistema financeiro funcional e
um modelo macroeconômico eficiente, ou seja, é aquele que promove crescimento
com estabilidade.
Tanto o crescimento quanto o desenvolvimento requerem estratégias e
instituições. Estratégias são escolhas que ligam ações imediatas com objetivos
esperados. Estratégias de crescimento e desenvolvimento podem ser também cha-
madas de planejamento. O planejamento pode ser participativo ou impositivo. As
experiências reais de planejamento impositivo falharam, seja no Leste Europeu,
seja nos regimes militares latino-americanos, durante décadas do século passado.
Contudo, no mesmo período, o planejamento participativo que vigorou na Europa
do bem-estar social mostrou-se bem-sucedido e transformou-se em lição a ser
apreendida. Instituições ativas e eficientes são elementos essenciais de estratégias
de planejamento participativo.
O primeiro capítulo deste livro traz uma revisão das idéias de diferentes
correntes de pensamento econômico a respeito da temporalidade. Abordando os
clássicos, e também Marshall, Keynes e Schumpeter, Cardim de Carvalho explora
a relação entre curto e longo períodos e a aceitação do conceito de dependência
de trajetórias, contrapondo teorias de origem keynesiana e schumpeteriana com
as demais. Com isso, fica claro o grau de importância dado por estas correntes à
função exercida pelas políticas econômicas.

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8 JOÃO SICSÚ – PEDRO MIRANDA

O papel das instituições é discutido por Armando Castelar Pinheiro, no


segundo capítulo. O autor mostra a necessidade de elevados investimentos em
infra-estrutura como forma de viabilizar o crescimento do produto potencial
brasileiro, a taxas equivalentes àquelas verificadas nos anos 1950-1980. Castelar
Pinheiro salienta, ainda, o papel da segurança jurídica como forma de reduzir a
incerteza presente nas interações humanas e defende a idéia de que, mesmo após
a conquista da estabilidade dos preços, o Brasil ainda conta com um baixo nível
de segurança jurídica. O aumento da segurança jurídica é então apresentado como
forma de estimular os agentes privados, promover o investimento e elevar a eficiência
na alocação dos recursos na economia brasileira.
No terceiro capítulo, Eduardo Albuquerque sublinha, com base no diag-
nóstico do caso brasileiro, a importância do sistema de inovação e do sistema de
bem-estar social como alicerce da estratégia para o desenvolvimento. Ao analisar
experiências exitosas em processos de catching up, como as da Alemanha, do Japão
e da Coréia do Sul, o autor salienta o caráter dinâmico essencial das inovações
institucionais e apresenta elementos que devem ser inseridos em estratégias a serem
adotadas no século XXI.
Miguel Bruno trata do papel do investimento em capital fixo produtivo no
capítulo 4. O autor realiza uma análise das tendências do crescimento econômico
brasileiro e de seus determinantes de longo prazo na segunda metade do século
XX, salientando as relações entre lucro, acumulação e distribuição funcional da
renda. Como conclusão, Miguel Bruno mostra a importância da acumulação de
capital fixo produtivo e os efeitos negativos gerados pelo regime de crescimento
adotado em anos recentes pela economia brasileira, o crescimento econômico com
dominância financeira.
Assim, este livro é uma contribuição e um estímulo ao debate acerca do cres-
cimento e do desenvolvimento socioeconômico. Trata-se de leitura importante para
os interessados em aspectos teóricos e empíricos relacionados a esses temas.

João Sicsú
Diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea

Pedro Miranda
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea

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Capítulo 1

A RELAÇÃO ENTRE CURTO E LONGO PERÍODOS NAS


PRINCIPAIS CORRENTES TEÓRICAS DE ECONOMIA

Fernando José Cardim de Carvalho*

Pois o tempo, que é o centro da principal dificuldade encontrada em quase todas as questões econômicas,
é absolutamente contínuo: a Natureza desconhece forma de fracionar o tempo em longo e curto períodos;
ambos transformam-se um no outro através de imperceptíveis gradações e o que é curto período para
um problema, é longo período para outro.
Alfred Marshall

1 INTRODUÇÃO
Duas noções de atividade econômica fundam abordagens completamente opostas
da questão da temporalidade dos processos econômicos. De um lado, a economia
política clássica via na produção de riqueza e nas formas de sua apropriação o con-
ceito apropriado de atividade econômica. Não por acidente, a obra fundadora da
teorização econômica moderna se chamou precisamente Uma investigação sobre as
causas da riqueza das nações. Essa perspectiva se impôs aos autores que se seguiram,
notadamente Ricardo e Marx, e prosseguiu, com modificações importantes, na
tradição neoclássica associada a Alfred Marshall, incluindo John Maynard Keynes.
Nas tradições clássica e marshalliana, o papel do mercado era o de organizar a
atividade produtiva privada, através da compensação oferecida a cada atividade,
sob a forma de receitas de venda de bens e serviços. Como na tese da mão invisível
de Adam Smith, o que se buscava mostrar era que a coordenação da atividade
produtiva – aí incluída a divisão social do trabalho, fenômeno de grande comple-
xidade – poderia ser satisfatoriamente alcançada através da interação espontânea
dos agentes econômicos buscando favorecer seus próprios interesses.
A outra noção de atividade econômica foi conceituada de modo mais consistente
por Leon Walras e foi perpetuada através dos chamados modelos neowalrasianos.
* Professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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10 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

Para Walras, a troca, mais do que a produção, é a atividade econômica que deve
ser objeto da economia. A produção assim como o consumo e a acumulação de
riqueza material são os resultados da atividade econômica, mas não são eles mesmos
uma atividade econômica. O objeto da economia deve ser explicar as proporções
em que os bens são trocados, isto é, seus preços relativos. O que resulta desta troca
é de interesse apenas subsidiário para a economia. Assim, Walras (1954, p. 143)
definiu o objetivo da teoria econômica (utilizando a expressão “teoria da riqueza
social”) do seguinte modo:

A troca de um bem por outro em um mercado perfeitamente competitivo é uma operação na qual todos
os detentores de uma das duas mercadorias, ou de ambas, podem obter o maior grau de satisfação
possível de seus desejos, mantendo a condição de que os dois bens sejam comprados e vendidos a um
mesmo valor de troca em todo o mercado.
O objeto principal da teoria da riqueza social é generalizar esta proposição mostrando primeiramente que
se aplica à troca de diversos bens entre si assim como à troca entre dois bens, e, em segundo lugar, que
em concorrência perfeita, esta regra se aplica à produção assim como à troca. O objeto principal da teoria
da produção de riqueza social é mostrar como os princípios de organização da agricultura, da indústria
e do comércio podem ser deduzidos como uma conseqüência lógica da proposição acima.

Em ambas as abordagens, o papel do mercado como local de interação entre


agentes privados é essencial, mas na tradição clássica e na marshalliana, as tran-
sações de mercado são uma das fases do processo produtivo (aquelas com fatores
de produção antes da atividade produtiva propriamente dita e as outras, com
produtos finais, depois). É o processo como um todo que se constitui no objeto
da teorização econômica. Na tradição walrasiana, o consumo dá sentido às tran-
sações de mercado, diretamente, no caso da determinação dos preços relativos de
bens finais, ou indiretamente, no caso do mercado de fatores de produção. Mas
são as trocas que importam ao economista. O consumo propriamente dito se dá
quando o mercado já encerrou suas atividades e os valores já estão estabelecidos.
O mesmo vale para a atividade produtiva que se inicia apenas quando o mercado
de fatores de produção já cumpriu sua tarefa de precificar e distribuir os fatores
pelas diversas firmas.
A troca, ao contrário do processo de produção, pode ser concebida como ins-
tantânea ou, melhor, atemporal. Esta é, de fato, a opção feita na tradição walrasiana
e também na neowalrasiana. Isto porque, nessa abordagem, o que importa entender
não é o processo de trocas mas, sim, encontrar o vetor de preços relativos com o
qual o equilíbrio competitivo se atinge. É óbvio que Walras e seus seguidores têm
consciência de que mercados operam ao longo do tempo.1 Analiticamente, porém,
1. “Assim é o mercado contínuo, que está sempre tendendo ao equilíbrio sem nunca realmente alcançá-lo, porque o mercado não possui
outra maneira de se aproximar dele que não seja pelo processo de tateio…” (WALRAS, 1954, p. 380).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 11

Walras se vale de um artifício para descrever o processo de tateio (tatonnement,


groping), que equivale a eliminar sua temporalidade.2
Desse modo, não faz sentido qualificar o equilíbrio geral walrasiano como
uma posição de equilíbrio de longo prazo, por exemplo. Já a atividade produtiva é
um processo com temporalidade intrínseca. O mesmo vale para a acumulação de
capital. Ambos trazem para o presente resultados futuros sob a forma de expectativas
e se projetam para este mesmo futuro, dada a duração dos processos produtivos e de
acumulação de capital. Mas essas projeções são complexas, envolvendo não apenas
expectativas, mas também estratégias, contratos, bens duráveis, especialmente sob
a forma de bens de capital, convenções etc. Além disso, tudo tem de se resolver no
momento presente, que é onde convivem as expectativas do futuro e as heranças
do passado, que por sua vez transforma-se continuamente em herança para o
momento seguinte. A articulação dessas dimensões é extremamente complexa e é
a isto que se referia Marshall na epígrafe deste capítulo.
No que segue, diversas estratégias de solução deste conundrum são apresen-
tadas. Excluiremos a abordagem walrasiana pelas razões dadas nesta introdução,
isto é a ausência de uma temporalidade específica na atividade econômica. Segui-
remos, alternativamente, a seqüência clássicos/Marshall/Keynes, com um detour
pela abordagem também explicitamente temporal de Schumpeter. Iniciaremos,
na seção seguinte, com o apropriado: a visão historicizante que caracterizou a
economia política clássica. A seção 3 abordará as idéias do mais importante teó-
rico da temporalidade em economia, Alfred Marshall, criador dos conceitos e da
linguagem empregada nesse tipo de análise até os nossos dias. A seção 4 discutirá
as idéias de Keynes, como continuador e, ao mesmo tempo, crítico de Marshall.
A herança que seguidores de Keynes receberão se manifestará especialmente na
discussão dos efeitos de política econômica, como se mostrará. A seção seguinte
tratará de Schumpeter. A seção 6 concluirá o capítulo.

2 ECONOMIA POLÍTICA CLÁSSICA


A economia política clássica nasceu da tentativa de mostrar que agentes privados,
operando livremente em defesa do interesse próprio, poderiam alcançar um grau

2. Esse processo é descrito por Walras como equivalente a um em que o tateio se dá através da troca de bilhetes que darão direito à
retirada de mercadorias apenas quando os preços de equilíbrio forem encontrados. Até que isso ocorra, todas as ofertas e demandas
são apenas tentativas, não podendo se concretizar senão em equilíbrio. Sobre o uso dos bilhetes, ver Walras (1954, p. 242 e 282).
Hicks, em Value and Capital, obra maior da tradição de equilíbrio geral da primeira metade do século XX, também bane as operações a
preços de desequilíbrio, chamadas por ele de “falsas trocas”. Sobre o conceito de falsas trocas, ver Hicks (1946, p. 128-129). De fato a
atemporalidade do processo econômico nesta perspectiva foi mostrada de modo mais marcante exatamente por Hicks, na mesma obra.
Ali Hicks cria o artifício de realizar todas as trocas na “segunda-feira”, ficando o resto da “semana” dedicada à atividade de produção,
conforme decidida na segunda-feira. Não há qualquer descrição analítica do que ocorre durante a semana, precisamente porque isso
não tem qualquer importância nessa linha de abordagem.

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12 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

de coordenação de suas ações suficiente para garantir a consistência e a replicabi-


lidade desse padrão de relacionamento. Nem Smith nem, na verdade, qualquer
outro autor clássico ou posterior foi realmente capaz de demonstrar essa afirmação,
que é assumida como pressuposto, em vez de provada como resultado.3 O ideal de
replicabilidade, de qualquer forma, implicaria a regularidade de comportamentos.
Para tanto, era necessário identificar leis de comportamento. A existência de regu-
laridades na atividade econômica privada seria sinal de consistência interna, em
contraposição à existência de regularidades causadas pela ação de algum agente
externo, como o Estado.
A identificação de leis implica a possibilidade de separação entre relações
essenciais, que se manifestam regularmente, e acidentais, que não seguem padrões
estabelecidos. Essa separação é obtida, em ciências naturais, no laboratório, que
nada mais é que uma construção artificial onde se testam hipóteses sobre o que
constitui uma relação essencial simplesmente pela eliminação deliberada da
influência daquilo que se julga acessório. A impossibilidade (ou, pelo menos, a
limitação) do uso de métodos dessa natureza em ciências sociais levou a economia
política clássica a adotar uma hipótese heróica: a da neutralidade do curto período.
A atividade econômica estaria a cada momento obedecendo a forças essenciais e
a forças acidentais. As primeiras seriam regulares, sistemáticas e exerceriam um
impacto identificável sobre a atividade. As últimas seriam erráticas, imprevisíveis
na sua ocorrência e no seu impacto. Assim, a atividade econômica a cada momento
estaria sujeita a estímulos variados, combinações complexas de forças essenciais e
acidentais. Os elementos acidentais, porém, não seriam sistemáticos (por definição)
e, por isso, seu efeito teria duração curta. A observação histórica, nesse sentido,
permitiria separar o essencial do acidental, observando-se as regularidades que
marcariam o que é sistemático.
A economia política clássica se apoiou, portanto, numa espécie de neutralidade
do curto período, no sentido de que o que acontecesse a cada momento seria o
resultado não apenas de forças sistemáticas, mas também de todos esses choques
acidentais que têm lugar o tempo todo. No longo período, apenas os elementos
essenciais ocorreriam com a freqüência necessária para permitir a identificação das
regularidades que seriam, então, qualificadas de leis.
A perspectiva historicizante do método clássico, naturalmente, se coadunava
perfeitamente com a própria escolha de objeto dessa corrente. Desde Smith, para
tomarmos um ponto de partida relativamente arbitrário na literatura, que a preo-
cupação da economia política clássica voltou-se prioritariamente para o processo de

3. A mão invisível é uma metáfora, não uma prova, da consistência mútua de operações livremente decididas por agentes privados.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 13

acumulação de capital. O foco da investigação de Smith não era propriamente por


que algumas sociedades são ricas, mas por que elas enriquecem, e isto prosseguiu
em Ricardo e Marx. A utilização de uma concepção de tempo histórico, portanto,
na economia política clássica obedeceu a uma dupla demanda: a busca de iden-
tificação de leis através da repetição ao longo do tempo, e a postulação de que as
leis relevantes eram leis de movimento, isto é, concepções de processos sistemáticos
característicos das economias baseadas na atividade privada individual.
No que concerne mais diretamente à presente discussão, a principal impli-
cação do que acaba de ser proposto é que na economia política clássica não existe
nenhuma influência relevante do que ocorre no curto período sobre o que ocorre
no longo. O curto período, na verdade, é considerado ininteligível, exatamente
porque não é possível estabelecer causalidades com relações que são acidentais em
natureza. Isto se estabelecerá, por exemplo, na discussão da relação entre preços
naturais e de mercado, como em Smith e Ricardo, onde os segundos gravitam em
torno dos primeiros, sem contudo afetá-los.4
Para usar uma linguagem mais contemporânea, poder-se-ia dizer que o que
ocorre no longo período depende apenas dos fatores tendenciais, sem qualquer
influência de elementos conjunturais, cujo impacto seria apenas momentâneo. Na
verdade, o curto período não é, nem pode ser, sequer objeto de teoria.5

3 MARSHALL E A INVENÇÃO DO TEMPO EM ECONOMIA


A ênfase da economia política clássica nas condições de produção foi sucedida,
nos primeiros salvos do que viria a ser a revolução neoclássica, pela ênfase na
formação da demanda por bens e serviços através da análise do comportamento
de consumidores individuais. Este não é o lugar, naturalmente, para examinar as
razões e resultados da reação neoclássica. O que importa é que a contraposição
entre duas proposições radicalmente diferentes (a proposição clássica de que o
valor das mercadorias depende de suas condições de produção e a proposição
neoclássica de que o valor das mercadorias depende de sua utilidade, direta ou
indireta, para consumidores) foi o mote para Marshall criar sua famosa “tesoura”,
o modelo de oferta e demanda que se tornou segunda natureza para economistas
modernos. Nesse modelo, oferta e demanda interagem para determinar os preços
e as quantidades transacionadas de equilíbrio para cada mercadoria.

4. Marx, como sempre, recusa a linguagem naturalizante adotada por Smith e Ricardo, mas propõe basicamente a mesma relação entre
valor e valor de mercado ou entre preço de produção e preço de mercado.
5. Isto permanece assim em abordagens que se propõem como continuadoras dos métodos clássicos. Por exemplo, Eatwell (1977, p. 64),
um expoente do neoricardianismo, observa que “acreditava-se que preços de mercado fossem influenciados por uma gama de forças
– como incerteza, quebra de safra e monopólio, entre outras – e que por isso não poderiam ser analisados como resultantes de forças
sistemáticas, como era o caso dos preços naturais.” ( ênfase minha).

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14 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

Oferta e demanda são essenciais para a determinação de preços, argumentava


Marshall, do mesmo modo que são necessárias as duas lâminas de uma tesoura
para cortar um objeto. Ambas as forças estão presentes em todos os momentos,
mas, e esta percepção está na raiz da inovação dramática introduzida por Marshall
na teoria econômica, seu impacto sobre a formação de preços não é o mesmo em
diferentes momentos. A interação entre oferta e demanda é mais complexa do
que a simples contraposição estática entre duas forças opostas, mas imutáveis.
Na verdade, propôs Marshall, tanto demanda quanto oferta tendem a mudar, em
parte endogenamente, mas, e é o que realmente nos importa aqui, também assin-
cronicamente. Foi exatamente para lidar com essa assincronia, isto é, com o fato de
que condições de produção e demanda variam de forma independente, inclusive
temporalmente, que Marshall introduziu explicitamente tempo como instrumento
analítico na teoria econômica.
Em Marshall, reconhecer a temporalidade dos processos econômicos não
se resume à trivial constatação de que certos comportamentos são datados, ou à
simples indexação de intervalos arbitrariamente definidos.6 A solução de Marshall
foi, na verdade, bastante complexa, introduzindo dois conceitos centrais diversos,
o de prazo e o de período. Estes conceitos seriam depois cruciais na consideração
da temporalidade dos processos econômicos na teoria de Keynes.7
Em relação ao tema deste capítulo, o que interessa frisar, inicialmente, é
que a análise de Marshall contrapôs ao método clássico a idéia de que o curto
período é tão inteligível quanto o longo, no sentido de que é possível identificar
forças sistemáticas atuando no curto período tanto quanto no longo. O curto
período deixa de ser, portanto, apenas a esfera do acidental e passa a ser teorizável
tanto quanto o longo. Ainda mais pertinente ao tema em discussão, os processos
que determinam as posições de longo período estão enraizados nos resultados
verificados nas posições de curto. Isto significa que há um encadeamento entre
as posições que pode, ele mesmo, ser descrito teoricamente. Assim, na economia
marshalliana, é essencial conhecer-se o que ocorre no curto período para que se
possa prever para onde convergirá a economia no longo. O que Marshall propôs,
portanto, é o que bem mais tarde se conhecerá como “dependência de trajetórias”
(path-dependence).
A chave para se entender a construção marshalliana é a compreensão de que
seu objeto são as interações entre constrangimentos às ações dos agentes privados

6. Como na discussão que caracterizou o nascimento de modelos dinâmicos de economia, onde se contrapunham modelos cuja natureza
dinâmica era definida ou pela datação de variáveis ou pela proposição de taxas de variação em vez de níveis das variáveis.
7. O presente autor discutiu detalhadamente esses temas em Carvalho (1990).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 15

e a geração de incentivos para a mudança desses mesmos constrangimentos. As


mudanças nos constrangimentos, porém, duram períodos variados, de acordo
com o seu grau de fixidez. Assim, por exemplo, na sua aplicação universalmente
conhecida à teoria da firma, Marshall assume, razoavelmente, que mudanças no
grau de utilização de capacidade podem ser obtidas mais rapidamente que variações
na capacidade instalada. Assim, variações na demanda (deslocamentos da curva
de demanda) devem levar a novas posições de equilíbrio, que, no curto período,
são concebidas como resultantes de variações no grau de utilização do capital
disponível. Essas variações, no entanto, alteram as taxas de lucro sobre o capital
que, por sua vez, podem estimular investimentos (ou desinvestimentos). É o que
aconteceu no curto período, portanto, que explica o que ocorrerá no longo. Não
há, como na economia política clássica, a neutralidade do curto período com a
posição final de equilíbrio permanecendo a mesma, não importa o que ocorra
conjunturalmente nesse mercado.8
A construção marshalliana representou um enorme progresso na concepção
de processos econômicos. No entanto, de modo importante, apesar das aparências
em contrário, a concepção marshalliana ainda é teleológica, no sentido de que se
bem se possa dizer que os processos de ajuste de longo período sejam disparados
pelas características das posições de equilíbrio de curto período, são os desequilíbrios
de longo período, na verdade, que movem o processo. Quando oferta e demanda
são iguais no curto período, em posição de equilíbrio, mas resultam na geração
de lucros anormais (por excesso de utilização da capacidade instalada), haverá
mudanças na capacidade instalada precisamente porque a existência desses lucros
indica um desequilíbrio de longo período. Em outras palavras, do ponto de vista da
posição de curto período, há dependência de trajetórias, no sentido que o que virá
pela frente depende dos valores das variáveis nessa posição de equilíbrio de curto
período. Contudo, é a partir do que esses valores representam de desequilíbrio
de longo período, isto é, é em referência aos valores que deveriam apresentar no
equilíbrio de longo período que os valores de curto período induzirão mudanças
na atividade. O longo período marshalliano, assim, continua funcionando como
um atrator, e a análise continua sendo basicamente teleológica. É o fim do caminho
que nos permite interpretar o que representam os valores de curto período e prever
o que deveria vir pela frente.
Para Marshall, esta trajetória do curto para o longo período é uma idéia
tão importante que ele é levado a afirmar que, nos casos onde essa teleologia não

8. Embora a preocupação de Marshall com tempo emirja em praticamente toda a obra (ver citações relevantes em Carvalho, 1990),
Marshall enfrenta diretamente a questão aqui tratada no cap. 5 do livro 5 dos Principles (p. 302 a 315).

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16 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

possa ser estabelecida, não há possibilidade de se fazer teoria econômica. Apenas


os casos onde se possam relacionar equilíbrios de curto e de longo períodos seriam
realmente teorizáveis, isto é, apenas aqueles casos em que o sentido fundamental de
uma posição de equilíbrio de curto período deve ser avaliado é dado pela posição
final de equilíbrio de longo período.

4 KEYNES, A CRÍTICA DO MARSHALLIANISMO E A CONSIDERAÇÃO DA


POLÍTICA ECONÔMICA
É precisamente no caráter inevitavelmente teleológico e restritivo da construção
marshalliana que Keynes vai concentrar suas críticas metodológicas. É quase um
clichê, e nem por isso menos verdadeira, a afirmação de que Keynes continuará
Marshall, mas de forma a superá-lo, ultrapassando seus limites. Talvez seja exata-
mente na consideração da temporalidade dos processos econômicos e na conexão
entre diferentes horizontes de comportamento que isto fique mais claro.
Fundamentalmente, será na recusa em atribuir a posições de longo período
qualquer relevância como atratores que Keynes romperá com Marshall. Keynes
enfatizará o velho conhecido conceito de incerteza, e irá usá-lo para propor uma
forma diversa de consideração dos processos econômicos, em que a idéia de de-
pendência de trajetórias será adotada, desta vez sem qualificações. Os processos
econômicos não serão mais explicados pelas posições finais de equilíbrio, como na
economia política clássica e em Marshall. De fato, Keynes proporá uma abordagem
dinâmica em que processos de gravitação a posições de equilíbrio no longo prazo
estarão conspicuamente ausentes.
A peculiaridade metodológica mais importante da construção keynesiana reside
na postulação de que não é ilegítimo inferir trajetórias da economia ignorando as
limitações da informação que orienta as decisões econômicas individuais. Segundo
Keynes, não é possível a cada tomador de decisão individual conhecer o futuro
(e, assim, tomar as decisões que otimizem sua posição futura) porque este último
depende, ele próprio, do que cada indivíduo decide fazer. Não existe um futuro a
ser descoberto, determinado por parâmetros fixos do sistema. Para Keynes, o futuro
é construído pela ação dos indivíduos. Mas os indivíduos decidem isoladamente,
enquanto o futuro é construído coletivamente, como resultado da ação de todos,
cada um orientado pelas suas próprias expectativas, inclusive a respeito da ação
dos outros. Nestas circunstâncias, posições de equilíbrio tendem a ser acidentais
e, possivelmente, nem seriam reconhecidas como tais, mesmo se eventualmente
atingidas. Keynes adota, assim, uma visão historicizante do tempo econômico, mas,
paradoxalmente, chega ao resultado oposto: o longo período é uma ficção teórica,
válida apenas para uso em debates teóricos. Não há atratores, nem equilíbrios de

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 17

longo período podem funcionar como tal porque as variáveis que o definem não
se traduzem em móveis da ação dos indivíduos.
A proposta teórica de Keynes se apóia na percepção da importância de se
considerar que decisões econômicas são tomadas em condições de incerteza fun-
damental. Uma crítica tola e simplista deve ser enfrentada de imediato, para que se
possa prosseguir rumo a argumentos mais importantes. Alegam alguns que a ênfase
na incerteza das decisões destrói a possibilidade de teorização porque implica que
qualquer coisa é possível. Para Keynes, o reconhecimento da incerteza que cerca
as decisões dos indivíduos é importante por dois motivos centrais. O primeiro é
questionar a validade de teorias de gravitação, que supõem implicitamente que a
“história ocorre pelas costas dos indivíduos”. Teorias de gravitação assumem de-
terminantes das posições de equilíbrio que simplesmente não têm qualquer papel
do processo de decisão dos agentes econômicos. Essas teorias assumem, portanto,
que economias funcionam como o mito platônico da caverna, onde os indivíduos
percebem apenas as sombras do que acontece, mas deuses ex machina garantem
a operação da economia segundo “leis” objetivas. Na perspectiva de Keynes, as
expectativas e decisões dos agentes econômicos, e suas interações, são os fatores
determinantes do movimento de economias modernas. Argumentos baseados
em deuses ex machina transformam o que poderia ser uma metáfora útil numa
proposição metafísica a respeito de “leis da história” reificadas e independentes da
ação humana.
O mais interessante, porém, pode ser o segundo motivo para consideração
da incerteza, que é a postulação não de que o futuro é incerto, o que é, em si,
trivial, mas da constatação de que, sob incerteza os comportamentos econômicos
se alteram, especialmente pela adoção, pelos indivíduos, de estratégias defensivas
que mudam a dinâmica dessas economias, inclusive inviabilizando processos de
gravitação para equilíbrios. Em outras palavras, incerteza é importante, porque
os agentes a reconhecem quando tomam decisões, especialmente aquelas que
comprometem recursos em maior escala e por horizontes temporais mais distantes
como as ligadas à acumulação de riqueza.9 Na verdade, a Teoria Geral de Keynes
é quase um catálogo de comportamentos que são identificáveis como relevantes
apenas se se considera que os agentes econômicos julgam necessário proteger-se

9. É assim que o próprio Keynes define suas inovações teóricas em um de seus trabalhos, explicando e defendendo suas proposições
feitas na Teoria Geral: “O objetivo final da acumulação de riqueza é produzir resultados, ou resultados potenciais, em um momento
relativamente ou, algumas vezes, indefinidamente, longínquo. Assim, o fato de que nosso conhecimento em relação ao futuro é volátil,
vago e incerto, torna a riqueza um objeto peculiarmente inapropriado para os métodos da teoria econômica clássica” (CWJMK, 14, p. 113,
ênfase adicionada). O artigo em que esta afirmação está contida, The general theory of employment, publicado em 1937 e reproduzido
integralmente na fonte citada, é talvez a mais fundamental das fontes bibliográficas para a compreensão do projeto teórico de Keynes
apresentado na obra Teoria geral do emprego, juros e moeda.

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18 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

contra as conseqüências da tomada de decisões erradas. Preferência pela liquidez,


poupança precaucionária, comportamento convencional são apenas algumas das
mais importantes formas de comportamento defensivo que Keynes identifica como
resultantes da percepção de incerteza.
Em Keynes, portanto, o fenômeno da dependência de trajetórias se estabelece
porque o futuro realmente se decide no presente. As decisões do presente se trans-
formam em restrições sobre as possibilidades futuras, sob a forma de contratos,
estoques de bens de capital, de conhecimento, de qualificação da força de trabalho,
de padrões competitivos e de ocupação de mercados, de regulações, de convenções
etc. A cada momento essas variáveis são recebidas do passado e retransmitidas ao
futuro, modificadas pelas novas ações, orientadas, por sua vez, pelas expectativas
do futuro e pelas precauções tomadas para minimizar os custos de adoção de
estratégias inadequadas.
Se o estado de confiança em expectativas de expansão é fraco (Keynes chamaria
de animal spirits deficiente10), mesmo aqueles agentes que esperam mercados me-
lhores no futuro podem adotar tantas precauções (por exemplo, mantendo parte
de seu capital em forma líquida) que a acumulação efetiva de capital será limitada
e o crescimento da economia no futuro comprometido.
É precisamente em relação ao papel da incerteza na tomada de decisões em
economias baseadas na propriedade privada que a política econômica assume a
grande importância que tem. O Estado pode ser um poderoso sinalizador de de-
senvolvimentos futuros e, assim, um elemento redutor de incertezas que reforce o
estado de confiança e o animal spirits dos tomadores de decisões. A influência do
Estado pode se dar, de fato, de duas formas: pela sinalização de políticas e pelo grau
de estabilidade do processo de seleção de políticas. O primeiro caso é relativamente
óbvio: governos podem sinalizar, por exemplo, que preocupações excessivas com
presumidas pressões inflacionárias os levarão a manter taxas de juros elevadas por
períodos prolongados de tempo, sufocando iniciativas de expansão de investimen-
tos e do nível de atividades.11 Alternativamente, governos podem sinalizar o apoio
continuado a estratégias privadas de expansão da economia.12

10. Para os conceitos de animal spirits e estado de confiança, ver Keynes (1964, cap. 12).
11. Keynes definiu na verdade o conceito de não neutralidade da moeda exatamente com essa possibilidade em mente: “A teoria a qual
considero indispensável trataria… de uma economia onde a moeda possui um papel próprio e afeta motivações e decisões e é, em
suma, um dos fatores determinantes nessa situação, de modo que o curso dos acontecimentos não possa ser previsto, quer no longo ou
no curto período, sem o conhecimento do comportamento da moeda entre o primeiro e o último estado. E é a isto que deveríamos nos
referir quando falamos de uma economia monetária” (CWJMK, 13, p. 408-409). Os motivos de Keynes para justificar a centralidade da
moeda são expostos na fonte citada na nota de rodapé 9.
12. Keynes levantou essa possibilidade na discussão do papel da política fiscal na sustentação da demanda agregada. Ver CWJMK, 27,
p. 322, e também 122 e 268. As idéias de Keynes a respeito de política fiscal são discutidas com algum detalhe em Carvalho (1997),
Kregel (1983) e Wilson (1982).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 19

A política econômica pode, no entanto, influenciar a economia em um sentido


algo menos evidente, que é seu grau de estabilidade. Políticas erráticas, estratégias
sujeitas a mudanças freqüentes contribuem para aumentar a incerteza dos agentes
privados e tendem a penalizar decisões que comprometam esses agentes no longo
termo, como é o caso, especialmente, do investimento produtivo. Em outras pa-
lavras, estratégias de política econômica voláteis aumentam a incerteza que cerca
decisões já por si mais arriscadas, como o investimento produtivo, e estimulam
comportamentos defensivos, como a preferência pela liquidez, enfraquecendo o
estado de confiança e deprimindo o animal spirits empresarial.
A dependência de trajetórias na teoria keynesiana é estabelecida, assim, gene-
ricamente, pela possibilidade de substituição de formas produtivas de acumulação
de riqueza por não-reprodutivas, quando os retornos esperados das primeiras fossem
menores ou excessivamente incertos em relação aos retornos das segundas. Vale
notar que o sacrifício de investimentos produtivos em um determinado momento
não é compensado pelo aumento de investimentos em um período posterior, em
um processo de flutuação em torno de uma média fixa. Na visão de Keynes, um
investimento sacrificado é uma perda líquida de capacidade de acumulação de
riqueza. Um investimento maior no futuro apenas indica que o estoque de capital
poderia ter sido maior (e a taxa de crescimento da economia superior) caso o in-
vestimento no presente não tivesse sido sacrificado. A perda de investimentos de
um dado momento, portanto, é uma perda para sempre.
A atenção ao papel da política econômica como determinante de dependência
de trajetórias tornou-se tema comum às várias tradições keynesianas. Um tema,
nesta área, que se tornou particularmente importante refere-se ao mix de políticas
macroeconômicas empregadas por governos nacionais. Em 1958, lorde Kahn o
mais próximo dos colaboradores de Keynes, observou (KAHN, 1972, p. 127):

Ao longo de qualquer intervalo de tempo, a economia está inevitavelmente sujeita a interrupções bruscas
e recomeços (fits and starts) (…) as interrupções tendem a ser tratadas por uma maior flexibilidade
orçamentária do que monetária, enquanto as retomadas tendem a ser enfraquecidas mais pela con-
tração monetária do que por medidas fiscais restritivas. Na medida em que esta tendência é válida (...)
a participação do consumo cresce mais e a do investimento diminui mais do que seria desejável pela
simples comparação de mérito entre os dois.

Em uma palestra ministrada em 1986, James Tobin insistiria no mesmo


ponto (TOBIN, 2003, p. 127):

(…) a estratégia de administração da demanda afeta a capacidade produtiva de longo período da economia.
A combinação de políticas é responsável por esta ligação. A razão é que a composição do produto

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20 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

nacional será diferente com uma combinação de políticas diferente, mesmo que o PIB agregado seja o
mesmo com uma ou outra. A combinação de restrição na oferta monetária com uma política fiscal mais
flexível prioriza o consumo em detrimento do investimento (...) Taxas de juros elevadas desestimulam
o investimento, enquanto a política fiscal expansionista incentiva o consumo através da redução dos
impostos, de transferências elevadas ou do aumento dos gastos correntes do governo. Na realidade, as
compras governamentais não são sempre para o consumo; se o governo estiver aumentando seu déficit
para acumular capital público, o qual melhoraria a produtividade e a capacidade da economia a longo
prazo, esta explicação não seria válida.

Autores de orientação keynesiana identificarão outros fatores de dependência


de trajetórias. Um desses fatores foi identificado através do conceito de histerese.13
O termo é empregado em economia para designar situações onde um determinado
resultado persiste mesmo depois que sua causa original tenha sido removida.
Embora esta noção possa ser aplicada a qualquer característica da economia, ela
tornou-se influente na análise do desemprego persistente.14 O desemprego além
de uma certa duração tende a diminuir as habilidades dos trabalhadores, dificul-
tando o seu reemprego. Assim, numa dada economia, uma política contracionista
concebida como passageira pode levar a um aumento do desemprego que torne
alguns dos atingidos não-empregáveis depois. Um aumento posterior equivalente
da demanda agregada, por uma política expansiva, pode não eliminar todo o
desemprego adicional gerado. Assim, os efeitos de uma política contracionista
passageira pode vir a ter efeitos duráveis ou permanentes sobre a economia, numa
ilustração da dependência de trajetórias citada.
Outra possibilidade de persistência é aberta pelo emprego do conceito de
“corredor de estabilidade”, proposto por Leijonhufvud (1981) e Clower (1986).15
Esses autores propõem a noção de que uma economia de mercado moderna reage
de forma diferente a choques de intensidade diferente. Choques de dimensão
relativamente reduzida tendem a ser absorvidos pela economia, sem maior per-
turbação no seu funcionamento. Mudanças no perfil da demanda agregada, por
exemplo, podem ser digeridas através de mudanças de preços relativos, preservado
o nível de atividades. Choques além daquela dimensão, contudo, podem bloquear
os mecanismos de auto-ajuste da economia, perturbando sua operação ao ponto
mesmo de paralisá-la. Este seria o caso dos colapsos de demanda efetiva descritos
por Keynes. Assim, flutuações de curto termo, inclusive as induzidas por mudanças

13. “A histerese é definida como uma resposta específica do sistema à mudança no valor de um insumo: o sistema exibe certa memória
quando há um efeito permanente na saída depois do valor do produto ter sido modificado e trazido de volta à sua posição inicial.”
(AMABLE et al., 1995, p. 155).
14. A referência clássica aqui é certamente Summers e Blanchard (1990).
15. Ver Leijonhufvud (1981, cap. 6), Clower (1984, cap. 15) e Howitt (1990, cap. 7).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 21

de política macroeconômica, poderiam ou não ser neutras em relação à trajetória


da economia, dependendo de sua magnitude. Políticas que implicassem mudanças
relativamente suaves nos valores, por exemplo, da política monetária ou da política
fiscal, poderiam levar a nada mais que uma acomodação no perfil de atividades da
economia, enquanto outras, representando rupturas mais violentas com o padrão
normal de operações, causariam sérias repercussões e mesmo mudanças de traje-
tórias, trazendo também para cá o fenômeno da dependência de trajetória.16

5 CICLO E TENDÊNCIA EM SCHUMPETER


A última grande escola de pensamento a ser tratada aqui não tem raízes na economia
marshalliana. O pensamento de Schumpeter foi formado na tradição austríaca,
em que a reflexão sobre a temporalidade dos processos econômicos desenvolveu-se
com foco no conceito de capital. Para a tradição austríaca, capital era, na verdade,
tempo, no sentido de que a introdução de bens de produção era suposta como
capaz de alongar o processo produtivo (já que agora a produção de um bem deveria
incorporar também a duração dos processos necessários à produção dos bens de
investimento). Assim, a introdução de bens de capital no processo produtivo era
tratada como equivalente a tornar o processo de produção cada vez mais indireto,
dedicado em proporção crescente à produção do próprio capital, antes da produção
do bem propriamente dito.
Este conceito, apesar de engenhoso, envolve extraordinárias dificuldades,
como foi mostrado especialmente na primeira controvérsia sobre o conceito de
capital na década de 1930, mas também na segunda controvérsia, a chamada
Controvérsia de Cambridge, nos anos 1960 e 1970 (ver HARCOURT, 1972).
Schumpeter, porém, escolheu um caminho diverso, propondo uma análise
de natureza dinâmica de economias capitalistas. Sua abordagem não distingue
curto e longo prazos. Na verdade, Schumpeter propõe que movimentos cíclicos,
usualmente domínio das teorias de curto prazo, e tendenciais, de longo prazo, são
de fato inseparáveis. O que Schumpeter propõe é a noção de que o desenvolvimento
de uma economia capitalista é cíclico (SCHUMPETER, 1964, p. 170).17
O núcleo do argumento de Schumpeter seria a propensão permanente de
uma economia capitalista a promover a introdução de inovações no processo
produtivo.18 Inovações seriam introduzidas de modo descontínuo no tempo,

16. Considere-se, por exemplo, o efeito violentamente destrutivo das elevações de taxas de juros utilizadas nas crises de balanço de
pagamentos nos anos 1990, no Brasil, na Ásia etc.
17. Na verdade, Schumpeter aceita a distinção entre ciclo e tendência no sentido estatístico apenas.
18. O sumário da teoria de ciclos de Schumpeter apresentada aqui se baseia em Schumpeter (1964), especialmente os capítulos 3 e 4.

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22 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

dando origem a ondas de investimentos que tenderiam a acelerar a expansão da


economia (fase da prosperidade no ciclo econômico). Quando os investimentos
maturassem, contudo, a pressão competitiva exercida pela nova capacidade instalada
forçaria as firmas incapazes de introduzir as inovações para fora do mercado, o que
Schumpeter chamou de destruição criativa. O desemprego de fatores de produção
antes empregados nas firmas agora falidas marcaria a fase recessiva do ciclo. Com
o tempo, porém, esses fatores seriam reabsorvidos nas firmas sobreviventes, com
maior produtividade. Assim, o equilíbrio seria restabelecido, mas a um nível de
renda superior ao inicial, por causa dos ganhos resultantes da introdução de ino-
vações. O ciclo se completaria, mas num ciclo evolutivo, em que o nível de renda
no equilíbrio final é superior ao do equilíbrio inicial.
A dependência de trajetória se manifestaria na abordagem de Schumpeter
principalmente a partir da essencialidade que esse autor reconhece na oferta de cré-
dito bancário para financiar a introdução de inovações. Na medida em que a oferta
(e os termos) de crédito sejam sensíveis, por exemplo, à política monetária, emerge
também aqui um canal pelo qual mesmo políticas concebidas para serem aplicadas de
modo passageiro podem acabar tendo efeitos duráveis, se um de seus resultados for
precisamente a inibição do espírito empresarial que, segundo Schumpeter, é necessário
para que inovações sejam afinal introduzidas no processo produtivo.

6 CONCLUSÃO
Como se sugeriu nesta relativamente breve survey de abordagens e correntes de
pensamento, Marshall certamente tinha razão quando escreveu sobre a dificuldade
envolvida no exame da temporalidade dos processos econômicos. Isto porque, de
fato, o tempo é aquilo que muda à medida que o tempo passa. A passagem do
tempo é medida pelo que se permita (ou espere) que aconteça enquanto o tempo
passa. Portanto, discutir tempo é discutir a dinâmica da economia. A dificuldade
que isso implica se explica pela complexa e assincrônica convivência de muitas
dinâmicas em uma economia moderna.19
As teorias de equilíbrio geral de origem walrasiana resolveram esse problema
cortando o nó górdio, simplesmente optaram pela atemporalidade. Já os herdeiros
das tradições clássica e marshalliana não tinham essa alternativa por terem optado
por privilegiar a atividade produtiva e de acumulação de riqueza como objeto

19. O tema era recorrente nos Principles of Economics, a obra mais influente de Marshall. Assim, Marshall (1920, p. 304) viria a insistir:
“O elemento tempo é uma das causas principais desses problemas nas investigações econômicas que fazem com que o homem, com
seus poderes limitados, tenha que ir passo a passo; desmembrando uma questão complexa, analisando uma parte de cada vez, e, ao
final, combinando suas soluções parciais, para formar uma solução mais ou menos completa da questão por inteiro.”

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 23

da análise econômica. Neste objeto a temporalidade é intrínseca e não pode ser


simplesmente ignorada, como na tradição walrasiana.
Neste capítulo, contudo, não se tratou realmente desse problema, da tem-
poralidade. Explorou-se apenas um aspecto dele, a relação entre o que Marshall
chamou de curto e longo períodos. Em particular, interessamo-nos pelo conceito
de “dependência de trajetórias” (path dependence), mostrando que ele é plena e
explicitamente aceito apenas nas teorias de origem keynesiana, dentre as aqui dis-
cutidas, ainda que a abordagem de evolução cíclica de Schumpeter também admita
essa possibilidade. Em particular, mostrou-se que a consideração de uma noção
substantiva, mais do que puramente formal, de temporalidade, em que a incerteza
do futuro e a possibilidade da inovação, da ruptura, são idéias irmãs, abre um es-
paço novo e profícuo de reflexão em torno da ação do Estado em uma economia
moderna de mercado: o Estado como coordenador de planos e expectativas, como
garantidor não apenas da ordem social mas também como sinalizador e promotor
de possibilidades futuras, reduzindo, assim, as incertezas que cercam as decisões
privadas, especialmente as dos empresários, de que dependem produção, emprego
e investimento. É em tal contexto que se torna possível examinar alternativas de
coordenação estatal que preservem a liberdade essencial dos indivíduos, em contraste
com os sistemas de planejamento centralizado das economias de comando que
floresceram e morreram no século XX. A política industrial ativa, o planejamento
indicativo ao estilo francês do pós-segunda guerra são exemplos de possibilidade
de intervenção democrática e eficaz do Estado na economia consistentes com as
abordagens pós-marshallianas discutidas neste capítulo.

REFERÊNCIAS
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v. 15, n. 1, Mar. 1977.

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24 FERNANDO JOSÉ CARDIM DE CARVALHO

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New York: McGraw-Hill, 1964. Edição reduzida por Rendig Fels.
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CAPÍTULO 2

PIB POTENCIAL E SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL

Armando Castelar Pinheiro*

1 INTRODUÇÃO
Embora não haja definição única ou consensual para Produto Interno Bruto (PIB)
potencial, e menos ainda medição oficial ou universalmente aceita de seu valor
em cada momento, este conceito é de grande relevância na análise econômica e na
definição das políticas públicas. No curto prazo, ele é um importante indicador
a ser seguido, por exemplo, na gestão da política monetária; de uma perspectiva
mais longa, ajuda no entendimento dos determinantes da expansão da oferta
agregada de bens e serviços, e, portanto, na identificação das restrições críticas
à sua aceleração. Essa informação, por sua vez, pode ser usada para alimentar o
desenho das políticas públicas.
A capacidade de produção ou, mais precisamente, de adicionar valor em um
país é determinada pela disponibilidade e qualidade da sua mão-de-obra, pelo seu
estoque de capital físico, aí incluídos recursos naturais como terra e água, e pela
tecnologia e eficiência com que esses são utilizados. A relevância desses fatores,
enquanto limitantes ao crescimento do PIB potencial no Brasil, variou ao longo do
tempo. Mas a maioria dos estudos recentes aponta a baixa qualidade da mão-de-
obra, o chamado capital humano do país, e a escassez de capital físico, notadamente
em infra-estrutura, como as principais restrições à expansão do PIB potencial no
Brasil. Em especial, exercícios de decomposição das fontes de crescimento pelo
lado da oferta mostram que a forte queda nas taxas de expansão do PIB entre os
períodos 1951-1980 e 1995-2007 resultou quase inteiramente do ritmo bem mais
lento de acumulação de capital físico neste segundo período. Isso é consistente
com a observação de que, apesar de a economia ter crescido meros 2,8% ao ano
(a.a.) em 1998-2007, o país entrou o ano de 2008 enfrentando, além da escassez

* Analista da Gávea Investimentos, professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador licenciado do Ipea.

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26 ARMANDO CASTELAR PINHEIRO

de trabalhadores qualificados, sérias limitações na infra-estrutura e níveis recordes


de utilização da capacidade instalada na indústria.
Assim, a principal razão para o crescimento relativamente lento do PIB po-
tencial nas duas últimas décadas tem sido a baixa taxa de investimento, que, depois
de despencar nos anos 1980, não se recuperou até hoje, apesar da estabilização de
preços com o Plano Real, das reformas estruturais dos anos 1990 e de haver no
país muitos projetos com grande potencial de retorno. De fato, mesmo depois do
forte aumento da formação bruta de capital fixo (FBCF) no triênio 2005-2007, a
taxa de investimento permaneceu abaixo do patamar atingido uma década antes.
Assim, o Brasil tem uma economia plena de oportunidades, mas que esbarra, de
um lado, no alto risco para quem investe e, de outro, no alto custo e na falta de
financiamento que também reflete o risco elevado que cerca a atividade econômica
no país, entre outros fatores. A economia também sofre com a baixa produtividade
dos investimentos, estruturados, em parte, para protegê-los desses riscos e reduzir
os custos de realizar negócios em um ambiente de grande incerteza.
Este capítulo analisa a importância da segurança jurídica para fomentar o
investimento e a eficiência econômica – e, portanto, para estimular o crescimento e a
melhoria do bem-estar social. O seu argumento subjacente é que se o Brasil gozasse
de maior grau de segurança jurídica a economia cresceria mais rapidamente, pois
o risco seria menor e as taxas de investimento e de crescimento da produtividade
aumentariam. Mais crescimento geraria mais emprego, melhoraria as condições
sociais e favoreceria a estabilidade política, o que, por sua vez, contribuiria para
promover a segurança jurídica, criando um círculo virtuoso.
O capítulo está estruturado em sete seções. A seção 2 apresenta alguns re-
sultados que mostram como a baixa taxa de investimentos se tornou a principal
restrição a uma expansão mais célere do PIB potencial brasileiro. A seção 3 discute o
princípio da segurança jurídica, em particular, no que ele importa para a economia.
As seções 4, 5 e 6 analisam como a segurança jurídica influi nos custos de transação,
na intensidade com que se recorre a ativos específicos e na decisão sobre o tipo e a
quantidade de investimento. A seção 7 tece algumas considerações finais.

2 RESTRIÇÕES AO CRESCIMENTO DE LONGO PRAZO NO BRASIL


Uma forma comum de analisar os determinantes do PIB potencial (Y) é representando-o
como uma função Cobb-Douglas, com retornos constantes de escala, dos estoques de
capital físico (K) e humano, este obtido como o produto da força de trabalho (L) pela

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 27

média de capital humano por trabalhador (H), e da produtividade com que o total
dos fatores (trabalho e capital, físico e humano) é utilizado para produzir (A):1

Yt = At K tα ( H t Lt )1−α

Dividindo-se ambos os lados da expressão acima pela força de trabalho,


obtém-se que o PIB potencial por trabalhador (y) pode ser expresso como:

yt = At ktα H t1−α

em que o capital humano por trabalhador é definido como:

 η 1−ψ 
H t = exp[φ(ht )] = exp  ht 
1 − ψ 

Tirando logaritmos e fazendo-se a primeira diferença no tempo, obtém-se


que a taxa de variação no PIB potencial por trabalhador entre dois anos pode ser
aproximada por:

∆y = ∆A + α∆k + (1 − α )∆H

(ln xt + n − ln xt )
onde ∆x =
n
A tabela 1 mostra os resultados obtidos utilizando-se as expressões acima
para decompor as taxas de crescimento do PIB potencial, aqui aproximadas pelas
variações do PIB efetivo em períodos longos e iniciados e terminados em anos si-
tuados em pontos semelhantes do ciclo econômico, de forma a minimizar o efeito
de diferenças no grau de utilização dos fatores de produção. Na comparação entre
os três períodos, selecionados de forma a representar a fase de alto crescimento no
pós-guerra, o período de crise externa e alta inflação, e os anos pós-Plano Real,
observa-se que:
l A taxa de crescimento do PIB potencial despenca em 1981-1994, recuperando-
se muito parcialmente em 1995-2006.
l Ambas as variações refletiram essencialmente o comportamento da produti-
vidade do trabalho (PIB/trabalhador), que era menor em 1994 do que em 1981.

1. A derivação a seguir acompanha de perto Pinheiro, Bonelli e Pessoa (2008).

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28 ARMANDO CASTELAR PINHEIRO

TABELA 1
Decomposição da taxa de crescimento do PIB
(Médias anuais, em %)

1951-1980 1981-1994 1995-2006

PIB 7,1 1,9 2,6

Pessoal ocupado 3,0 2,1 2,1

PIB/trabalhador 4,1 –0,2 0,5

Contribuições para as variações no PIB/trabalhador

Capital/trabalhador 2,6 0,5 –0,9

Capital humano 0,1 0,8 0,7

PTF 1,4 –1,5 0,7

Fonte: Pinheiro, Bonelli e Pessoa (2008).

l Na passagem do primeiro para o segundo período, a queda no crescimento


do PIB por trabalhador resultou da forte redução nas taxas de variação da pro-
dutividade total dos fatores (PTF) e do estoque de capital físico por trabalhador,
sendo estas parcialmente compensadas pela melhoria da média de capital humano
do trabalhador brasileiro.
l Já o aumento da taxa de crescimento na produtividade do trabalho ocorrido
no período pós-Plano Real resultou inteiramente do ritmo mais acelerado de expansão
da PTF, enquanto a taxa de variação do capital humano manteve-se estável e a do
capital físico por trabalhador declinou. Chama a atenção, em especial, o fato de
que em 2006 o trabalhador brasileiro contava em média com menos capital para
auxiliá-lo a produzir do que em 1994 e, de fato, também do que em 1981!
Este último resultado chama a atenção para a queda quase contínua observada
no ritmo de acumulação de capital físico experimentada pelo país desde o início
dos anos 1980. Isso é ilustrado no gráfico 1, que mostra a taxa de investimento a
preços constantes de 2000. Como se observa, depois de atingir um pico histórico
em meados dos anos 1970, a taxa de investimento caiu quase 1% do PIB a.a. na
década seguinte, recuperou-se um pouco com o Plano Cruzado, despencou outra
vez nos anos seguintes, para só voltar a subir com o Plano Real. Esta retomada
teria, porém, vida curta, e a taxa de investimento voltou a recuar na virada do
século, chegando em 2003 a um patamar próximo à metade do recorde da década
de 1970. Desde então se observou nova recuperação, especialmente no biênio
2006-2007, mas essa não foi suficiente sequer para elevar a taxa de investimento
ao nível observado uma década antes.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 29

De quanto seria necessário elevar a taxa de investimento, em relação ao


patamar de 2007, para que o PIB potencial pudesse crescer a uma média anual
de, por exemplo, 5%? Uma resposta aproximada pode ser obtida utilizando-se a
última expressão, que pode ser reescrita como:

∆Y − ∆L = ∆A + α( ∆K − ∆L ) + (1 − α )∆H

onde:
∆Y = ∆A + α∆K + (1 − α )( ∆H + ∆L ), e, utilizando-se o fato de que
I − δK Y I − δK
∆K ≈ = , deriva que
K K Y
 Y I − δK 
∆Y ≈ ∆A + α   + (1 − α )( ∆H + ∆L ). Resolvendo-se a expressão
K Y 
anterior na taxa de investimento ( I Y ) , se obtém:

I [ ∆Y − ∆A − (1 − α )( ∆L + ∆H ) + αδ]

Y Y
α
K
A partir dos resultados da tabela 1 e das estatísticas mais recentes das Contas
Nacionais (CN), os seguintes valores são aqui utilizados para os parâmetros e
variáveis na expressão acima
Y
α = 0,45, δ = 3,5%, ∆A = 0,7%, ∆H = 1,3%, ∆L = 2,2% e = 0,41
K

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de onde derivam os resultados da tabela 2. Como se vê, a taxa de investimento


estimada para 2007 (16,8% do PIB) é suficiente para sustentar um crescimento
pouco acima de 4,0%, que é um patamar relativamente bom, se comparado ao
desempenho médio da economia brasileira na última década (2,8% a.a.). Porém,
para se atingir uma taxa de expansão sustentada de 4,5% a.a. será preciso elevar a
taxa de investimento em cerca de 2% do PIB, e para atingir 5,0% a.a, mantidas
as demais suposições do exercício, ampliá-la em quase 5% do PIB. Patamares de
crescimento mais elevados que esses possivelmente exigirão que, simultaneamente
à ampliação da taxa de investimento, se eleve, por exemplo, o ritmo de expansão
da produtividade.

TABELA 2
Requisitos de investimento para diferentes taxas de crescimento do PIB potencial
(Em %)

DY I/Y (a preços de 2000)

4,0 16,1
4,5 18,8
5,0 21,6
5,5 24,3
6,0 27,0
6,5 29,7
7,0 32,4

A principal conclusão do exercício anterior é que para elevar a taxa de cres-


cimento do PIB potencial per capita a um patamar próximo ao observado na fase
áurea de 1951-1980 (pouco menos de 4% a.a), supondo uma expansão demográfica
um pouco acima de 1% a.a, ter-se-á de aumentar a taxa de investimento em cerca
de 5% do PIB. Uma parcela considerável desse aumento terá de ser direcionada
à infra-estrutura. Como mostra a tabela 3, 2/5 da queda na taxa de investimento
entre a década de 1970 e a atual ocorreram nesse setor, que atualmente apresenta
gargalos importantes ao crescimento, especialmente em eletricidade e transporte. De
acordo com os estudos mais recentes, cerca de metade do aumento agregado na taxa
de investimento de que o país necessita teria de ser direcionado à infra-estrutura,
com destaque para uma crescente participação do setor privado, tendo em vista as
limitações fiscais à elevação dos investimentos públicos (BANCO MUNDIAL,
2007; FRISCHTAK, 2008). E para isso, assim como para a ampliação do investi-
mento no setor imobiliário, é fundamental aumentar a segurança jurídica.

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TABELA 3
Investimentos em infra-estrutura
(Em % do PIB)

1971-1980a 1981-1989a 1990-1999a 2000-2006b

Eletricidade 2,39 1,65 0,86 0,65

Telecomunicações 0,90 0,48 0,78 0,84

Transporte 2,28 1,66 0,71 0,51

Saneamento 0,52 0,27 0,16 0,28

Total de infra-estrutura 6,08 4,06 2,51 2,28

Total de investimento 26,34 20,23 17,02 16,29

Fontes: Bielschowsky (2002) e Frischtak (2008).


a
Preços de 2000.
b
Em valores correntes.

3 O PAPEL DA SEGURANÇA JURÍDICA NA ECONOMIA2


Em economia se utiliza o termo segurança jurídica para se referir ao respeito à lei e
aos direitos de propriedade, o que na literatura anglo-saxã se denomina a prevalência
da regra da lei (rule of law). Assim como no direito, se entende que esse é um dos
mais importantes pilares sobre os quais se assentam as sociedades modernas. No
direito, porém, e como seria de se esperar, o princípio da segurança jurídica é objeto
de um tratamento analítico muito mais elaborado. Para este, o objetivo precípuo
da segurança jurídica é facilitar a coordenação das interações humanas em geral,
reduzindo a incerteza que as cerca, tanto em relação às interações já consumadas
quanto aos efeitos jurídicos futuros das condutas e relações que são decididas no
presente. Esse princípio se inspira, portanto, na confiança que deve ter o indivíduo
em que os seus atos, quando alicerçados na norma vigente, produzirão os efeitos
jurídicos nela previstos.
No direito positivo, a segurança jurídica é assegurada por um amplo con-
junto de princípios, motivo por que é, às vezes, descrita como um sobreprincípio,
sendo aqueles vistos como corolários do princípio maior. Vários desses princípios
se voltam para assegurar a continuidade das normas jurídicas e a estabilidade das
situações constituídas, incluindo, entre outros, a irretroatividade da lei, a coisa
julgada, o respeito aos direitos adquiridos e ao ato jurídico perfeito. Orientam-se
esses princípios pela regra de que a lei é feita para reger o futuro, e não as situações
pretéritas. Também se inspira nesse objetivo a tendência a se apaziguar as situações

2. Esta e as próximas duas seções são parcialmente baseadas em Pinheiro (2006).

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jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo, por meio da


consolidação dos direitos exercidos e não disputados.
A certeza das relações jurídicas é outro objetivo importante buscado pelo
princípio da segurança jurídica. Isso abarca, de um lado, o princípio da ficção
do conhecimento obrigatório da lei, que significa que cabe às pessoas conhecer a
norma, identificar o que é obrigatório, proibido e permitido, e, com base nesse
conhecimento, definir seu comportamento e estruturar suas relações. De outro,
que as relações jurídicas baseadas na norma devem ser protegidas pelo e do poder
público, ou seja, a expectativa de que, atendo-se à legislação, o indivíduo contará
com o apoio do Estado para proteger suas relações jurídicas e dele não sofrerá
sanção, prevalecendo o princípio da legalidade, de que “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.3
A segurança jurídica também objetiva permitir aos indivíduos programar,
em bases razoáveis de previsibilidade, suas expectativas em relação às implicações
futuras de sua atuação jurídica. No que tange às relações jurídicas de cunho econô-
mico, em especial, deve a norma dar ao indivíduo a possibilidade de calcular, com
alguma previsibilidade, as conseqüências de suas ações. Isso requer, entre outras
coisas, que a norma seja trazida a público clara e tempestivamente. Inspiram-se
nesse objetivo princípios como a anterioridade da norma tributária e a prévia lei
para a configuração de crimes e transgressões. Sobre esse objetivo, observa o juiz
Mauro Nicolau Júnior que “a segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade
necessária que o Estado de direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de
quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais
pode travar relações jurídicas válidas e eficazes”(ver NICOLAU JUNIOR apud
COELHO, 2005).
Em particular, dado o duplo papel exercido pelo poder público – que ao
mesmo tempo é parte em grande número de relações jurídicas e responsável por
definir e aplicar a norma –, um objetivo fundamental do princípio da segurança
jurídica é proteger o particular nas suas relações com o Estado. A esse respeito, se
manifestou o desembargador Sérgio Pitombo:

De fato o ordenamento jurídico impõe limites à prerrogativa da Administração Pública de rever e modificar
ou invalidar seus atos. Um desses limites, fundado no princípio da boa-fé e da segurança jurídica, reside
na mudança da orientação normativa interna ou jurisprudencial. Assim é que a alteração da orientação
da Administração, no âmbito interno ou em decorrência de jurisprudência, não autoriza a revisão e

3. Constituição Federal de 1988, artigo 5o, inciso II.

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invalidação dos atos que, de boa-fé, tenham sido praticados sob a égide de orientação então vigente, os
quais, por assim dizer, geram direitos adquiridos.4

Há, portanto, duas dimensões subjacentes à segurança jurídica, como desen-


volvido pelo professor e jurista português Canotilho (1991):
l A relativa à estabilidade ou à eficácia ex post da norma, que rege que esta
não deve poder ser arbitrariamente modificada, a não ser que se verifiquem fatos
especialmente relevantes.
l A atinente à previsibilidade ou eficácia ex ante da norma, que se traduz,
fundamentalmente, na exigência de que os indivíduos possam ter certeza e cal-
culabilidade em relação aos efeitos jurídicos dos seus atos, das relações em que se
envolvam, e dos atos a que estão submetidos.
A segurança jurídica se traduz, portanto, por uma norma jurídica estável,
certa, previsível e calculável, não apenas no que tange às relações jurídicas entre
particulares, mas, principalmente, naquelas em que participa o Estado.
No Estado de direito, porém, a segurança jurídica não decorre apenas da
estabilidade, certeza, previsibilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico
positivo, mas também do respeito a esses preceitos gerais na sua interpretação e
aplicação pelo Judiciário. Mais especificamente, a segurança jurídica requer que
esses preceitos sejam respeitados em quatro dimensões da atuação da Justiça:
l Na informada, fiel e imparcial aplicação da lei pelos magistrados.
l Na própria construção da norma, que ocorre quando o Judiciário interpreta
as regras gerais e abstratas criadas pelo legislador, estabelecendo a jurisprudência
por meio de um conjunto consistente de sentenças, acórdãos e outras decisões
uniformes, ocorridas independentemente ao longo do tempo. Nesse sentido, em-
bora a jurisprudência não chegue a constituir fonte formal do direito, ela contribui
para completar a norma e torná-la mais certa, além de ajudar a estabilizar a sua
aplicação e interpretação.
l Na uniformidade da interpretação e aplicação da norma pelos diferentes
tribunais.
l No controle do arbítrio estatal, freando as ações da administração pública que
vão contra a norma ou que sejam voltadas para rever, modificar ou invalidar seus atos
pretéritos, enfatizando, nesses casos, o seu papel de protetoras da previsibilidade e

4. Relatório do Desembargador Sérgio Pitombo, em 11.8.1997, conforme reproduzido em Nicolau Junior apud Coelho (2005).

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da não-surpresa nas relações jurídicas. Atua o Judiciário, nesse caso, como guardião
maior do princípio da segurança jurídica.
A importância da segurança jurídica para a economia sempre foi, se não ex-
plícita, pelo menos implicitamente reconhecida pelos economistas.5 Não obstante,
o detalhamento, formalização e mensuração da influência da segurança jurídica
sobre o desempenho econômico só tiveram início em um passado mais recente, a
partir dos ferramentais desenvolvidos pela teoria econômica neo-institucionalista
e o movimento de Direito & Economia. Ainda que utilizando abordagens distintas,
ambos enfatizam o papel da segurança jurídica na promoção do investimento e
da eficiência econômica, seja reduzindo os custos de transação, seja estimulando
uma alocação eficiente de recursos.
Olson (1996) destaca entre as instituições que considera mais importantes
para determinar o desempenho econômico das nações “os sistemas legais que
garantem os contratos e protegem os direitos de propriedade”. Esse ponto é assim
colocado por North (1992):

De fato, a dificuldade de se criar um sistema judicial dotado de relativa imparcialidade, que garanta o
cumprimento de acordos, tem-se mostrado um impedimento crítico no caminho do desenvolvimento
econômico. No mundo ocidental, a evolução de tribunais, dos sistemas legais e de um sistema judicial
relativamente imparcial tem desempenhado um papel preponderante no desenvolvimento de um com-
plexo sistema de contratos capaz de se estender no tempo e no espaço, um requisito essencial para a
especialização econômica.

Na mesma linha, Sherwood, Shepherd e Souza (1994) observam que:

Em economias de mercado, a estrutura legal (idealmente pelo menos) estabelecerá direitos de propriedade
duradouros – os quais dificilmente serão alienados de forma arbitrária – e fornecerá os meios para que
esses direitos permeiem e se façam valer ao longo de toda a estrutura de propriedade; permitirá um
nível substancial de atividade; e garantirá liberdade suficiente para a associação no que diz respeito à
formação de empresas e, considerando e definindo o caráter limitado da responsabilidade das partes, irá
encorajar o crescimento do capital, estabelecendo as bases para a dissolução ordenada de associações,
firmas, joint ventures, e assim por diante.

Em especial, a falta de segurança jurídica aumenta o risco e os custos das


transações econômicas. Como observa Arida “[d]o ponto de vista da racionalidade
econômica, o princípio fundamental do Direito é o do pacta sunt servanda”. Por-
tanto, a diminuição da calculabilidade dos contratos cria:
5. De fato, Adam Smith lecionou Law and Jurisprudence em Edimburgo antes de se tornar professor na Universidade de Glasgow, onde
escreveria suas obras mais conhecidas. Em seu livro Theory of Moral Sentiments, que precedeu o clássico An Inquiry into the Nature and
Causes of the Wealth of Nations – Adam Smith tratou com razoável detalhe “daquele ramo da moral que se relaciona à justiça”, em
que analisou “o gradual processo de jurisprudência”.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 35

um elemento adicional de risco e incerteza na avaliação de seus efeitos. Como bem observou Max Weber,
a predominância de formas de produção estruturadas através do mercado requer um sistema legal com
efeitos calculáveis racionalmente pelas partes; a sobre-determinação dos contratos por considerações
que não podem ser racionalmente calculadas pelas partes afeta negativamente a produção e o emprego
(ver ARIDA, 2005).

A partir dessas observações, pode-se constatar que são vários os canais por
intermédio dos quais a segurança jurídica estimula o crescimento econômico. Uma
forma de abordar essa questão de modo sistemático consiste em analisar como a
segurança jurídica afeta os fatores determinantes da expansão do PIB potencial: a
quantidade utilizada de cada fator de produção e a produtividade com que esses
são empregados, cujas variações podem resultar tanto do progresso tecnológico
como do aumento da eficiência com que a tecnologia disponível é utilizada.
Nas próximas seções será mantida essa abordagem ao se analisar como a falta
de segurança jurídica distorce o sistema de preços, ao elevar o risco e o custo dos
negócios; desencoraja investimentos e a utilização do capital disponível; estreita a
abrangência da atividade econômica, desestimulando a especialização e dificultando
a exploração de economias de escala; e diminui a qualidade da política econômica,
tornando-a mais instável e deixando de coibir a expropriação pelo Estado, desesti-
mulando, dessa forma, o investimento, a eficiência, e o progresso tecnológico.

4 SEGURANÇA JURÍDICA, EFICIÊNCIA E CUSTOS DE TRANSAÇÃO


Quanto menos segurança jurídica houver, mais arriscadas se tornam as relações
sociais e, em especial, as transações econômicas. Isso porque as bases sobre as quais
estas repousam ficam mais instáveis; os seus efeitos, mais difíceis de prever; e os
seus custos e benefícios, mais complicados de calcular. Há três reações possíveis
a essas incertezas, todas elas implicando sacrifício da eficiência econômica: não
realizar as transações que têm alto nível de risco, abrindo-se mão dos ganhos que
elas poderiam gerar; realizá-las de outra forma, incorrendo-se na perda parcial de
ganhos; ou compensar a baixa segurança com o uso mais intenso das instituições
jurídicas disponíveis, consumindo mais recursos em atividades-meio. Em geral,
duas abordagens principais são utilizadas para analisar esses impactos da segurança
jurídica: uma enfatiza seu efeito sobre a boa definição e proteção dos direitos de
propriedade; a outra focaliza o seu impacto sobre os custos de transação.
Nas sociedades modernas, é papel do Estado assinalar e proteger os direitos
de propriedade.6 Quando isso não ocorre ou é malfeito, gera-se incerteza sobre o
6. Entende-se como direito de propriedade a habilidade de se dispor de maneira absoluta, no todo ou em parte, das coisas que se possui,
ou dos serviços e benefícios que elas podem produzir, desde que sem conflitar com o que é proibido pela legislação.

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valor desses direitos, o que dificulta a sua negociação e prejudica o desempenho


da economia, pois:
l As pessoas passam a dedicar parte do seu tempo a proteger seus bens da
expropriação de outros agentes (privados e públicos), menos eficientemente do
que pode fazer o Estado – por exemplo, policiando, escondendo ou remetendo
seus bens para outras jurisdições que considerem mais seguras.
l As trocas se tornam mais arriscadas, difíceis e custosas de se realizarem, pois
não se tem certeza de que direitos serão efetivamente recebidos como contrapartida.
l O potencial de utilização dos ativos diminui, visto que nem todos os direitos
a eles associados são certos, previsíveis e calculáveis. Um exemplo é a impossibilidade
de se utilizar certos bens como colateral de forma a obter recursos mais líquidos ou
de menor valor para financiar a realização de uma determinada atividade.
De Soto (2000) discute a perda que isso representa para os pobres de todo o
mundo, cujos direitos de propriedade estão definidos de forma muito limitada – e
apenas dentro de seus círculos sociais mais próximos –, não sendo passíveis de uso
como garantia em operações de crédito ou negociados no mercado em geral, o que
os torna “capital morto”, pois sua contribuição para a economia é relativamente
pequena. De Soto contrasta esta situação com a dos ativos detidos por indivíduos
e empresas em países ricos, onde não apenas a posse, mas também a propriedade
são bem-definidas, o que, conclui, permitiu-lhes alcançar a riqueza e a prosperidade
de que gozam atualmente.
Ao tornar as transações econômicas mais incertas, a insegurança jurídica
aumenta os custos de realizar negócios. Coase observa que esses custos estão para
a economia como o atrito está para a física: quanto maiores forem, mais esforço
precisará ser realizado para se obter o mesmo resultado. Como observa Coase
(1988):

De forma a realizar uma transação no mercado é necessário descobrir com quem se quer transacionar,
informar às pessoas que se quer negociar e em que termos, conduzir negociações que levem a um acordo,
redigir um contrato, monitorar o seu cumprimento de forma a garantir que os seus termos estão sendo
respeitados, e assim por diante.

Na presença de direitos de propriedade bem-definidos, a melhor forma de o


direito estimular a eficiência econômica é reduzindo os custos de transação. Essa é,
claramente, uma das funções da segurança jurídica, na medida em que ela reduz
os custos incorridos em “redigir um contrato (e) monitorar o seu cumprimento de
forma a garantir que os seus termos estão sendo respeitados”. Considerem-se, sepa-

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 37

radamente, essas duas etapas: ex ante, a redação do contrato, e ex post, se e quando


sua execução for colocada em risco.
Dois elementos, implícitos ou explícitos, de qualquer transação são a previsão
dos fatores de risco que podem impedir a sua realização conforme desejam as partes
e a definição de como as mesmas se ajustarão a essa ocorrência. Em tese, esses dois
elementos deveriam constar explicitamente dos contratos, formais ou informais,
que sustentam cada transação. Mas os contratos são, em geral, incompletos, seja
porque as partes podem, inadvertidamente, esquecer de incluir alguma contingência,
seja porque, propositalmente, se decide não especificar todas as possibilidades
futuras no contrato.
Há várias razões para se redigir contratos incompletos: por exemplo, a difi-
culdade de prever todas as futuras contingências, a complexidade de especificar por
escrito todas as regras que prevalecerão para cada contingência que se possa prever,
e a dificuldade de se observar e verificar a ocorrência de muitas contingências, para
que se possa determinar se as ações contratualmente previstas devem ser colocadas
em prática. É racional, pois, não ter contratos completos, ainda que haja riscos em
deixar um contrato muito em aberto.
O nível ótimo de lacunas contratuais dependerá dos riscos e do custo de tornar
o contrato mais completo. A função da norma é, exatamente, reduzir esse risco, sem
implicar custos elevados. Quando a norma é clara, certa, previsível e calculável, ela
completa os contratos, na medida em que determina como proceder em diversas
situações. Isso dispensa as partes de mencionarem, explicitamente, essas situações
no contrato. Assim, a segurança jurídica permite que as partes reduzam os custos
de transação envolvidos na negociação e elaboração de contratos.
A segurança jurídica também reduz os custos de transação ex post, no caso
de alguns dos riscos não explicitados no contrato se materializarem.7 Sobressai,
nesse caso, a importância de uma jurisprudência estável e previsível que, de um
lado, ajude as partes a remediarem o contrato – em vez de rompê-lo – e, de outro,
facilite a obtenção de uma solução para o conflito sem a necessidade de recurso
ao Judiciário. Esse ponto é enfatizado em comentário de Gorga (2005) sobre a
doutrina do stare decisis:

[A] natureza de bem público do precedente fará com que terceiros se beneficiem do precedente sem terem
para isso gasto recursos em processos judiciais. Assim, nos próximos litígios, a existência de precedente

7. Obviamente, é desnecessário frisar a importância da norma e, em especial, do Judiciário para fazer cumprir as cláusulas relativas
às contingências explicitamente previstas no contrato. Entende-se, aqui, que, sendo contratualmente prevista, a repartição de perdas
e ganhos derivada da ocorrência de uma contingência é um “direito de propriedade”, sendo as conseqüências econômicas da sua
adequada proteção as discutidas anteriormente.

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38 ARMANDO CASTELAR PINHEIRO

eficiente induzirá a que as partes não entrem em conflito judicial, já que o precedente, como diz Barzel,
tem a função de delinear direitos (de propriedade). As partes, sabendo do precedente, poderão resolver
seus conflitos fora da corte (settlement), adotando as definições manifestadas no precedente.

Na ausência de uma jurisprudência estável, uniforme e previsível, a eficiência


da economia também será reduzida por conta do consumo direto de recursos escassos.
Litígios requerem advogados, o tempo e a atenção das partes, e um Judiciário
aparelhado. Trata-se de serviços altamente especializados, pois a sociedade tem de
gastar recursos consideráveis para formar e treinar juízes, advogados e outros quadros
envolvidos no litígio. Além disso, a falta de previsibilidade normativa estimula o
uso indevido dos tribunais. Na ausência de uma jurisprudência bem estabelecida,
os magistrados podem se ver às voltas com enorme carga de trabalho, pois cada
caso terá de ser julgado individualmente, havendo incentivos fortes para que to-
dos os conflitos sejam levados à apreciação da Justiça, em vez de resolvidos entre
as partes. Portanto, a jurisprudência, devidamente pacificada, dá mais agilidade
aos tribunais, reduzindo a carga de trabalho resultante das demandas repetitivas e
liberando os magistrados para se dedicarem a casos singulares.
A falta de estabilidade na norma também implica custos de monitoramento
constante, pois esta precisa ser bem conhecida pelos agentes econômicos para que
possam estruturar suas transações:

O Estado de Direito significa em parte que as pessoas usam o sistema legal para estruturarem suas
atividades econômicas e resolverem suas contendas. Isso significa, entre outras coisas, que os indivíduos
devem aprender o que dizem as regras legais, estruturar suas respectivas transações econômicas utili-
zando essas regras, procurar punir ou obter compensações daqueles que quebram as regras e voltar-se
a instâncias públicas, como os tribunais e a polícia, para a aplicação dessas mesmas regras (HAY; SHLEIFER;
VISHNY, 1996).

Em especial, quando há mudanças na norma – incluindo a jurisprudência


até então estabelecida – os agentes econômicos incorrem em custos de atualização
e adaptação:

Os custos de ajuste (adjustment costs) são os que recaem sobre os agentes privados que se valem da
estabilidade da norma para fazer investimentos por ela amparados. A reversão de precedentes dá margem
a custos de ajuste significativos se as partes tiverem de se ajustar a um novo regime jurídico devido à
mudança do precedente (GORGA, 2005).

Quando tomam suas decisões, os agentes econômicos procuram minimizar


a soma dos custos de produção e transação, assim como levar em conta os riscos

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envolvidos – inclusive aqueles presentes em contratos incompletos. Custos de tran-


sação e riscos elevados podem, portanto, estimular um uso ineficiente de recursos
e de tecnologia. Em especial, as empresas podem optar por não desenvolver certas
atividades; deixar de se especializar e explorar economias de escala; combinar insu-
mos e distribuir a produção entre clientes e mercados ineficientemente; inclusive,
manterem recursos produtivos ociosos.
Nem todos os setores da economia são penalizados pela falta de segurança
jurídica que, tipicamente, prejudica principalmente as transações que comportam
contrapartidas diferidas no tempo – como o investimento e as operações de crédito
–, envolvem bens não rivais e com baixo custo marginal de produção – como os
intensivos em tecnologia –, e são muito complexas – por exemplo, por envolverem
muitos participantes ou riscos. Atividades de compra e venda, à vista, de bens
de baixo valor unitário são, comparativamente, pouco dependentes do grau de
segurança jurídica.
Ocorre, porém, que nos setores mais afetados a reação natural à falta de
segurança jurídica é a elevação de preços, como forma de compensar os custos de
transação e os riscos mais altos.8 Isso distorce o sistema de preços, reduz a eficiência
alocativa e compromete o desempenho de toda a economia. É o que ocorre, por
exemplo, com a elevação dos custos do crédito e dos serviços de infra-estrutura
como conseqüência da falta de segurança jurídica: suas conseqüências não ficam
restritas a esses setores, mas se espalham por toda a economia, comprometendo a
sua competitividade. É por isso que a evidência empírica sugere que países com
menor grau de segurança jurídica se afastam mais das melhores práticas de produção
e, assim, crescem mais devagar.

5 ATIVOS ESPECÍFICOS, ESPECIALIZAÇÃO E SEGURANÇA JURÍDICA


Não há muito espaço para preocupações com a segurança jurídica na teoria
econômica neoclássica. Nela se supõe que os agentes econômicos são dotados de
racionalidade ilimitada – sendo capazes de absorver e processar toda a informação
disponível – e respeitam inteiramente as regras. Suas interações são orientadas pela
busca da máxima satisfação individual, mas, como tudo é previsto e respeitado,
uma vez concluída a barganha não há problemas em estruturar e monitorar as
transações, nem necessidade de recorrer a uma terceira parte para que seja cum-
prido o que foi acertado.

8. Por exemplo, o spread bancário no financiamento à aquisição de veículos, protegido pela alienação fiduciária, uma garantia bem aceita
pelo Judiciário, foi em média de 18,7% em 2004, contra um spread de 45,5% no financiamento para a compra de outros bens de consumo.
Observa-se um contraste semelhante entre os spreads de juros no crédito consignado e em outras modalidades de crédito pessoal.

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40 ARMANDO CASTELAR PINHEIRO

Essas são, obviamente, simplificações da realidade. Por isso, para entender a


importância da segurança jurídica para a economia é mais interessante recorrer-se
à teoria econômica neo-institucionalista de Coase, North, Williamson e outros.
Esta utiliza suposições mais realistas sobre a conduta dos agentes econômicos; em
especial, que esta é caracterizada por:
l Racionalidade limitada, uma forma de racionalidade imperfeita que assume
que as pessoas buscam maximizar o seu bem-estar, mas sujeitas a restrições cog-
nitivas que limitam sua capacidade de processamento mental e podem torná-lo o
fator mais importante a ser economizado.
l Oportunismo, definido como uma forma forte de busca do interesse
próprio, que pode passar por práticas desonestas, incluindo mentir, trapacear e
roubar. Isso não significa que todo mundo se comporte assim, mas que é possível
que isso ocorra.
Na seção anterior, discutiu-se por que os contratos são em geral incompletos,
sendo a racionalidade limitada, e a idéia de que a capacidade de processamento
mental é algo a ser economizado, uma razão importante para que assim seja. Nesta
seção, o interesse se volta para a interação entre racionalidade limitada, oportunismo
e ativo específico, e como sua conjunção torna a segurança jurídica essencial para
fomentar o investimento e a eficiência econômica.
De acordo com Azevedo (2005), “um ativo é considerado específico se uma
fração relevante de seu retorno depende, para a sua realização, da continuidade
de uma transação específica”. Ou seja, seu aproveitamento em outra atividade é
impossível ou, se realizado, implica grande perda de valor. Esse conceito incorpora
a constatação de que nem sempre um determinado ativo pode ser transferido de
uma atividade para outra sem que sua produtividade seja afetada. Esse é o caso, em
especial, de ativos que são desenvolvidos ou acumulados com vista a uma atividade
específica, para a qual são muito produtivos, mas que perdem valor quando des-
locados para outros fins. Por exemplo, um trem de alta velocidade será de pouca
serventia se utilizado em outra via férrea que não tenha recebido o tratamento
adequado para acomodá-lo. Todo o conhecimento acumulado por um funcionário
sobre as pessoas e a cultura de uma empresa se tornará improdutivo se ele trocar
de emprego. O mesmo se aplica ao conhecimento acumulado por um fornecedor
sobre as exigências técnicas e gerenciais de um grande cliente. O tamanho dessa
perda vai depender de como foi criado o ativo; se ele foi desenvolvido especifica-
mente para amoldar-se a uma determinada transação, a perda com a mudança de
uso tende a ser grande.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 41

Quando há o risco de as partes em uma transação se conduzirem com opor-


tunismo, é possível que uma oportunidade de negócios mutuamente lucrativa se
veja inviabilizada, caso esta dependa de que uma das partes invista em um ativo
específico à transação. Se este problema não for resolvido, ele pode levar a um
severo nível de subinvestimento, pois a parte que tiver de investir vai olhar para a
frente e reconhecer que o retorno esperado no investimento pode ser expropriado
pela outra parte. Haverá um prêmio pela liquidez dos investimentos e pela flexi-
bilidade que eles tenham para serem reorientados. Investimentos menos líquidos e
mais específicos serão naturalmente penalizados. Esse problema de inconsistência
dinâmica – quando um negócio é atraente antes de feito o investimento, mas deixa
de sê-lo depois, tornando a transação inviável – pode ser mais bem-entendido se
analisado por etapas:
l Há transações muito caras ou mesmo inviáveis de realizar, a menos que
baseadas em elevados investimentos em ativos específicos que, freqüentemente, cabe
a uma das partes fazer. Para essa parte, a transação embute um risco adicional que
é a interrupção prematura da relação comercial, que levaria à perda, pelo menos
parcial, do valor investido no ativo específico.
l Para se proteger, essa parte tentará prever todas as possibilidades futuras
que podem afetar sua relação comercial, definindo remédios e ações para cada con-
tingência. Mas a condição de racionalidade limitada inviabiliza essa ação, fazendo
com que subsistam lacunas contratuais.
l Neste caso, a outra parte tende a conduzir-se com oportunismo, aproveitando
a ocorrência de uma situação imprevista para redefinir os termos da barganha a
seu favor. Essa possibilidade será tão mais provável quanto mais fácil for para ela
ab-rogar suas obrigações contratuais.
l Assim, uma vez que a parte fez o investimento, ela se torna vulnerável às
demandas da outra parte para renegociar o contrato e, assim, redividir em proveito
próprio o lucro, demandas feitas sob a ameaça de dissolução de toda a parceria.
Sabedora disso, ela pode desistir da transação para não ter de investir no ativo
específico, colocando-se como refém.
A segurança jurídica ajuda a eliminar esse problema de inconsistência temporal
e permite que firmas e indivíduos façam investimentos específicos. Quando essa segu-
rança não existe, as transações que dependem de investimentos em ativos específicos
para serem realizadas de forma eficiente podem se tornar inviáveis. Mas essa não é a
única alternativa. Em certas situações, o negócio pode ser concretizado desde que seu
retorno seja tão alto que compense o risco ou a menor produtividade resultante do uso
de ativos genéricos ou desde que se estabeleçam arranjos institucionais que eliminem o

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risco de oportunismo, ainda que penalizem a eficiência. Essas alternativas podem


ser mais bem compreendidas utilizando-se o diagrama a seguir, adaptado de vários
trabalhos de Williamson.

Quando há segurança jurídica (ramo superior do diagrama), se investe no


ativo específico e há especialização com baixo risco. No ramo inferior se exploram
as diferentes alternativas na ausência de segurança jurídica. A segunda bifurcação
no diagrama aponta que uma forma de se escapar do problema de inconsistência
dinâmica anteriormente descrito, e levar a cabo a transação que interessa às duas
partes, é se utilizar ativos genéricos – definidos como aqueles cujo retorno não se
altera quando são transferidos de uma atividade para outra. Nesse caso, o risco de
expropriação desaparece, pois se isso for tentado o ativo será simplesmente vendido
no mercado e utilizado para outro fim, sem perda de valor. Essa seria uma boa
solução, não fosse o fato de que os ativos específicos são mais produtivos do que
os genéricos quando usados nas transações para as quais foram desenvolvidos. O
uso do ativo genérico, como no nó B, implica, portanto, perda de produtividade
vis-à-vis a situação no nó A.
Em se utilizando um ativo específico, mesmo sem segurança jurídica, as
partes podem desenvolver ou não salvaguardas contratuais que eliminem o risco
de oportunismo. Quando essas salvaguardas não estiverem presentes, a parte que
investir no ativo específico correrá um risco mais elevado. Para isso, ela exigirá um
retorno também mais alto, que compense o risco adicional. Quando houver um
grande número de transações semelhantes, mas independentes, essa pode ser uma
situação interessante para quem investe, desde que o retorno supere a perda esperada
por conta do oportunismo. No entanto, mesmo quando a diversificação do risco

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 43

for imperfeita, a transação pode ser interessante se o retorno for suficientemente


alto, em parte porque ele permite a rápida recuperação do capital investido. Mas
isso implica que os serviços ou produtos serão ofertados com preços elevados, pe-
nalizando aqueles que deles dependem. Este é o caso típico do mercado varejista
de crédito, que atende às pessoas físicas e às micro e pequenas empresas, em que
os bons pagadores pagam pelos que agem de forma oportunista. Além de ser uma
situação injusta, ela gera uma perda de bem-estar social. Assim, a segurança jurídica
reduz as taxas de retorno exigidas pelos investidores, viabilizando, em muitos casos,
projetos que, de outra forma, não ocorreriam.
Duas alternativas de salvaguarda são consideradas no diagrama. Na primeira,
as partes se mantêm como entidades independentes, mas desenvolvem algum tipo
de arranjo institucional que crie entre elas uma dependência mútua que compense
o risco de que uma delas aja com oportunismo. Por exemplo, elas podem estabelecer
participações societárias cruzadas, ou exigir que a outra parte também invista em
um ativo específico à transação. Em uma relação de crédito, o devedor pode dar
ao credor um ativo em garantia. Em geral, ainda que essas soluções reduzam a
dependência da segurança jurídica, esse tipo de arranjo pode aumentar os custos
de transação e reduzir a produtividade, na medida em que exigem investimentos
dedicados a evitar o oportunismo.
Alternativamente, pode-se eliminar o risco de oportunismo internalizando a
transação, de forma que se tenha uma mesma empresa nas duas pontas da transação,
afastando-se o risco de investir em ativos específicos. Em geral, porém, a integração
vertical das firmas reduz a eficiência, pois sacrifica os ganhos que podem ser obtidos
com a especialização e a plena exploração das economias de escala e escopo. A
especialização, como observou Smith há 230 anos, é a base do aumento da produ-
tividade que promove o crescimento, pois “os homens são muito mais propensos a
descobrir métodos mais fáceis e diretos de atingir qualquer objetivo quando toda
a atenção de suas mentes é direcionada para aquele único objetivo, do que quando
ela é dissipada entre uma grande variedade de coisas” (SMITH, 1776).
Uma alternativa não especificada no diagrama, mas igualmente plausível, é
a possibilidade de se decidir a realizar-se a transação em outra jurisdição, em que
a segurança jurídica seja maior:

Nações em que há graves riscos aos investimentos irão gerar quantidades menores de investimento
especializado e durável (...) diferentemente de regimes de proteção ao investimento com maior cre-
dibilidade; nações com judiciários problemáticos sofrerão desvantagens da mesma natureza. Essa
tendência aparecerá claramente no que diz respeito à tecnologia. Regimes que dão poucas garantias
ao investimento e à contratação raramente serão capazes de fornecer garantias seguras aos direitos de

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propriedade intelectual. Indústrias de alta tecnologia ou que se beneficiam de investimentos duráveis e


especializados irão abandonar regimes marcados por enormes inseguranças no que se refere a contratos
e a investimentos – por lugares mais seguros (WILLIAMSON, 1995).

6 SEGURANÇA JURÍDICA E INVESTIMENTO


A seção 2 analisou a evolução do PIB potencial sob a ótica das contribuições do
trabalho, da produtividade e do capital físico e humano para a sua expansão. Aí
se chamou a atenção para a restrição imposta ao potencial de crescimento pela
nossa baixa de investimento, argumentando-se que para poder crescer de forma
sustentada a uma taxa mais elevada o Brasil teria de acelerar significativamente o
ritmo de acumulação de capital e/ou de crescimento da PTF. As seções seguintes
desenvolveram as relações entre segurança jurídica e economia, mostrando que a
primeira afeta um amplo conjunto de determinantes do desempenho da segunda.
Nesta seção se argumenta que um aumento da segurança jurídica pode dar uma
importante ajuda para alavancar o investimento no Brasil, especialmente em infra-
estrutura, e aumentar a produtividade do capital, ainda que não seja a única nem
quiçá a principal alternativa para se atingir esses objetivos.
Uma forma de perceber por que isso ocorre é traçar um paralelo entre os
riscos macroeconômico e jurídico. A importância de se ter uma política macroe-
conômica que dê certeza, previsibilidade e calculabilidade às relações econômicas é
bem estabelecida na literatura e na memória dos brasileiros. O período de altíssima
inflação pelo qual o país passou, de meados dos anos 1970 até 1994, ilustrou esse
ponto com clareza: todas as transações eram complicadas com uma inflação que
chegou a 2% ao dia, destruindo o conteúdo informacional dos preços e tornando
extremamente difícil prever a rentabilidade ex post de qualquer transação. Não por
outra razão, as atividades em que o retorno se dá algum tempo depois de feito o
dispêndio inicial – ao contrário, por exemplo, de uma compra à vista –, como a
concessão de crédito e a inversão em capital físico, se contraíram com a escalada
da instabilidade macroeconômica. Foi necessário consolidar políticas e instituições
voltadas para garantir a estabilidade macro – metas fiscais, Lei de Responsabilidade
Fiscal, autonomia operacional do Banco Central etc. – para que essas atividades
prosperassem outra vez.
Algo semelhante ocorre com relação à existência de instituições que tornem
as “regras do jogo” claras e estáveis, dando certeza e previsibilidade às transações
econômicas. Esse é o principal papel da segurança jurídica na economia. Não por
acaso, as mesmas atividades que sofrem com a instabilidade macro também são as
mais sensíveis ao risco jurídico, que, por caminhos diferentes, afeta a calculabilidade
das transações pelos agentes econômicos nelas envolvidos.

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Déficits de segurança acarretam um risco maior de expropriação, o que reduz


o valor dos ativos, o retorno esperado de novos investimentos e, conseqüentemente,
a propensão a se investir. A falta de segurança jurídica também desencoraja a pou-
pança e estimula a evasão de capital, reduzindo o volume de fundos disponíveis
para se financiar o investimento. Uma distinção útil entre as formas como a falta
de segurança jurídica afeta o risco de expropriação é entre as transações envolvendo
agentes privados e aquelas que compreendem o setor público.
No primeiro caso, o mercado de crédito é possivelmente o mais sensível à
falta de segurança jurídica, com o foco recaindo em especial sobre a qualidade das
garantias oferecidas pelo devedor ao credor. Tradicionalmente, a única garantia
de qualidade no Brasil era a alienação fiduciária de veículos, o que em grande
medida explica por que o spread de juros no financiamento de veículos é apenas
cerca da metade do incidente no crédito à aquisição de outros bens. Na última
década, porém, tem-se feito um notável progresso nessa área, iniciando com a
Lei no 9.154, de novembro de 1997, que instituiu a alienação fiduciária de bem
imóvel, à imagem do que existia há algumas décadas para os veículos, e depois
prosseguindo, já mais recentemente, com iniciativas como a criação do crédito
consignado e do patrimônio de afetação.
Essas medidas estabeleceram garantias para o crédito imobiliário e pessoal
muito superiores às até então existentes, e são responsáveis por grande parte da
queda do custo e da expansão dos volumes dessas operações. Note-se que, no caso
do setor imobiliário, isso se deu não apenas por meio da ampliação do crédito
bancário, mas também do mercado de capitais, com o setor respondendo por
parcela significativa dos novos lançamentos de papéis de renda fixa e variável em
2006-2007. Ainda que permaneçam focos importantes de insegurança jurídica,
em parte responsáveis pela dificuldade de expandir as operações de crédito de
prazo mais longo para segmentos mais carentes da população, o progresso tem
sido notável nos últimos anos.
Já no que se refere às transações entre agentes privados e o Estado, ou à capa-
cidade deste de mudar os payoffs das transações entre particulares, os avanços têm
sido mais modestos, tendo se registrado, inclusive, alguns retrocessos. Ainda que
nem sempre enfatizado no debate público, um dos principais papéis cumpridos
pela segurança jurídica é o de impedir a expropriação de direitos de propriedade
pelo setor público. De um lado, esse risco é de natureza semelhante ao observado
nas transações entre partes privadas: o Estado, como qualquer parte em uma re-
lação jurídica, tem incentivos para agir de forma oportunista, afigurando-se esse
risco tão maior quanto mais específico for o investimento exigido da outra parte

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em cumprimento às suas responsabilidades contratuais. Mas o que torna o Estado


tão especial é o monopólio de coerção legal a ele atribuído pela sociedade, o que
aumenta sua liberdade para unilateralmente mudar, invalidar ou não honrar os termos
da relação sem ser punido. Por isso nas sociedades democráticas são necessárias
limitações substantivas e processuais à capacidade de o governo mudar as regras “no
meio do jogo”, e contar-se com um Judiciário independente e forte que garanta sua
aplicação.9 Assim, um dos objetivos que inspiram o princípio da segurança jurídica
é garantir que as relações ou situações jurídicas não serão alteradas para acomodar
fatores circunstanciais ou a conveniência política do momento.
É importante, porém, circunscrever o escopo dessas limitações. A segurança
jurídica não visa tornar imutáveis as políticas públicas, e muito menos impedir
a natural evolução da norma, por meio da produção legislativa, de atos adminis-
trativos ou de alterações na jurisprudência. O direito, como se sabe, precisa ser
vivo e antenado nas transformações fáticas resultantes de inovações tecnológicas,
mudanças de costumes etc. Portanto, a previsibilidade que orienta o princípio da
segurança jurídica não pode ser absoluta. Não é isso que se deve buscar, mas uma
combinação ótima entre capacidade de adaptação, de um lado, e estabilidade,
certeza, previsibilidade e calculabilidade, de outro.
Dois exemplos – o financiamento de longo prazo e o investimento em infra-
estrutura – ajudam a ilustrar a importância da segurança jurídica como indutora
do crescimento por intermédio dos limites impostos à capacidade de o poder pú-
blico expropriar particulares mudando, invalidando ou não honrando as relações
jurídicas das quais participa.
Arida, Bacha e Lara Resende (2003) analisam o impacto sobre o mercado
de crédito da incerteza jurisdicional – definida como “o risco de atos do Príncipe
mudando o valor de contratos antes ou no momento de sua execução, e o risco de
uma interpretação desfavorável do contrato no caso de uma decisão judicial”, que se
traduz como “uma incerteza de caráter difuso que permeia as decisões do Executivo,
Legislativo e Judiciário, e se manifesta predominantemente como um viés contra
poupadores e credores”. Esse tipo de incerteza se revelou na recente experiência do
país pela perda de valor de contratos financeiros de longo prazo, em conseqüência
de confiscos, manipulação de índices de correção monetária, e reinterpretação de
cláusulas contratuais, prejudicando poupadores e credores, freqüentemente em

9. Dificuldades com a credibilidade de certos compromissos ou de certos agentes constituem uma importante classe de custos de transação.
Se o Estado não for capaz de garantir ex ante o cumprimento de suas obrigações em uma relação, os custos de transação que esta envolve
podem aumentar até o ponto de torná-la inviável. Nesse caso, um Judiciário forte e independente que obrigue a administração pública
a agir conforme firmado é um importante instrumento para reduzir o custo e viabilizar transações envolvendo o Estado.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 47

benefício do Tesouro Nacional. Podem-se citar também atos normativos da Receita


Federal que mudam a tributação de contratos financeiros em andamento.10
Esse tipo de insegurança jurídica, argumentam os autores, é parcialmente
responsável pelos elevados juros básicos praticados no Brasil, pelo baixo volume
de crédito e pela ausência de um mercado doméstico de financiamento de longo
prazo. Além disso, a insegurança reduz o volume total de poupança, desloca-a para
instrumentos financeiros líquidos e de curto prazo, estimula a fuga de capitais e
fomenta a desintermediação financeira, tornando prevalente o investimento finan-
ciado por lucros retidos e poupança própria, com inevitável perda de eficiência,
dado que isso reduz a importância do setor financeiro no processamento da infor-
mação e na seleção dos projetos em que aplicar a poupança. Pode-se acrescentar
que ela também encarece a intermediação financeira, elevando spreads bancários e
diminuindo o volume de poupança disponível para investir.
Outra atividade que sofre com o risco associado à jurisdição brasileira é o in-
vestimento privado em infra-estrutura. Nesse setor se combinam investimentos com
longo prazo de maturação, envolvendo, portanto, contratos igualmente longos e,
conseqüentemente, mais incompletos que em geral, dada a dificuldade ainda maior
de previsão de todas as possíveis contingências futuras. Ademais, a necessidade de
se fazer investimentos em ativos muito específicos (rodovias, redes de distribuição
de eletricidade, água, telefonia, coleta de esgotos etc.) torna o investidor privado
particularmente vulnerável ao oportunismo estatal.
Os estudos sumariados em Levy e Spiller (1994) mostram claramente que, nos
setores de infra-estrutura, um elevado grau de segurança jurídica é uma condição
necessária para a participação de investidores privados. Em países onde o Judiciário
é fraco, as leis instáveis e o arbítrio governamental algo comum, investimentos
nesses setores só tendem a ocorrer quando efetuados diretamente pelo Estado.
Mas essa é uma opção que, além de penalizar as contas públicas – e o resto da
economia, com uma carga tributária elevada –, usualmente resulta em uma menor
eficiência produtiva.
Desse modo, ao definir que restrições impor à liberdade de atuação do Poder
Público, os países têm de observar esse trade-off básico. De um lado, o estímulo ao
investimento crescerá conforme se restrinja o poder discricionário do Estado, visto
que muita liberdade de atuação aumenta o risco de um comportamento oportunista.
Desse ponto de vista, portanto, quanto menor o grau de liberdade dado às políticas
públicas, menor o risco de que estas sirvam para expropriar agentes privados que

10. Ver uma breve discussão dessa questão em Pinheiro (2005).

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se engajaram em relações jurídicas confiantes na boa-fé do Estado. Por outro lado,


como as circunstâncias em que a economia opera se alteram com o tempo, a po-
lítica econômica só pode ser eficiente se os governos tiverem alguma flexibilidade
na definição e na aplicação da norma. Em um ambiente em constante mutação,
um sistema legal que dê margem a ampla adaptação permitirá uma eficiência da
política econômica que não será viável em quadros legais muito rígidos.
Um dos objetivos da segurança jurídica é, portanto, coibir o oportunismo do
Poder Público, sem tolher de todo a sua flexibilidade na condução da sua política.
Para isso é fundamental que a mudança de regras não seja limitada apenas pela
complexidade política ou legal da alteração desejada, mas também pelo reconhe-
cimento da histerese resultante de modificações anteriores da norma, que tornam
sua reversão penosa economicamente.
Dixit (1996) observa, a esse respeito, que o regime de common law recorre
a uma doutrina, conhecida como “doutrina da dependência” (reliance doctrine),
que defende a continuidade de políticas existentes há muito tempo mesmo que
elas tenham se tornado ineficientes. Essa doutrina sustenta que quando as pessoas
se comprometeram – isto é, fizeram investimentos afundados – na expectativa de
continuidade de uma dada política, tal expectativa não deveria ser desapontada;
nem os investimentos feitos pelas pessoas tornados sem valor, exceto por uma razão
realmente importante. Quanto mais pessoas investirem em reação a uma política
e, de boa-fé, se organizarem na expectativa de que ela tenha continuidade, mais
difícil deveria ser alterar essa política.
Para alguns, a importância ética de um governo manter a palavra pode ser
suficiente para justificar a doutrina da dependência. Há também um argumento de
eficiência. A percepção de que o governo não mudará arbitrariamente as políticas no
futuro para expropriar ativos pode ser importante para garantir que investimentos
de longa maturação sejam feitos no presente. A doutrina da dependência se torna,
portanto, a forma pela qual os governos estabelecem uma reputação desse tipo e
dão credibilidade a suas promessas de não expropriação. Por essas razões, os pode-
res Legislativo e Judiciário deveriam ser muito refratários a contrariar expectativas
mantidas há muito tempo.
A instabilidade da norma e das políticas públicas também compromete a
competitividade das empresas, na medida em que diminui a previsibilidade e cal-
culabilidade das transações que se lhe apresentam, ao mesmo tempo em que eleva
o risco do investimento em ativos específicos, prejudicando a competitividade das
empresas. A tecnologia, em especial aquela controlada pela empresa, é importante
criadora de vantagens comparativas no comércio mundial. A falta de segurança

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 49

jurídica tende a desestimular o investimento em pesquisa e desenvolvimento


(P&D), reduzindo a competitividade das empresas.11 A falta de estabilidade e
previsibilidade da norma gera estratégias empresariais defensivas, que favorecem
a diversificação excessiva e a integração vertical. A incerteza jurisdicional também
prejudica a competitividade: indiretamente, pela elevação do custo de capital, a
escassez de financiamento, a falta de bons serviços de infra-estrutura etc.; e, dire-
tamente, por conta do aumento do risco e dos custos de transação resultante da
“incerteza de caráter difuso que permeia as decisões do Executivo, Legislativo e
Judiciário”, incluindo a instabilidade das regras tributárias (ver ARIDA; BACHA;
LARA RESENDE, 2003).

7 OBSERVAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos Brasil registrou uma substantiva melhora de seus indicadores
macroeconômicos, incluindo taxas mais baixas de inflação, queda nas taxas de juro,
alguma redução da razão dívida pública/PIB, superávits primários consistentemente
na ou acima da meta, e um grande aumento nos fluxos de comércio exterior. Os
indicadores de solvência externa também melhoraram, com um grande declínio na
dívida externa líquida, notadamente a do setor público. Junto com a redução da
dívida pública interna indexada ao dólar, o forte aumento da integração comercial
externa aumentou a resistência do país, e em particular do setor público, aos
choques externos, levando, por sua vez, a uma queda substancial nos spreads de risco
soberano. Tudo isso fez com que, em meados de 2007, se elevasse a classificação
de risco de crédito da dívida externa do Brasil para um degrau abaixo do grau de
investimento, que é entendido por muitos como o último requisito formal para a
consolidação da estabilização econômica no país.
Mais recentemente, esse processo de gradual melhoria dos indicadores eco-
nômicos também passou a incorporar a aceleração no crescimento do PIB, que
subiu de uma média de 1,9% em 1999-2003 para uma taxa projetada de 4,5%
em 2004-2008. Em que medida essa elevação traduz o retorno do PIB potencial
à trajetória de crescimento alto e sustentado da qual o país se desviou no início de
1980? Apenas em parte, sugerem os resultados aqui apresentados. Em outras pa-
lavras, parte dessa aceleração no crescimento do PIB é estrutural, mas não toda ela.
Mais especificamente, dois fatores fizeram com que nos últimos anos o cres-
cimento do PIB superasse o seu potencial de longo prazo. Um foi o ambiente externo
muito favorável – com uma significativa aceleração no crescimento econômico mundial,

11. Mansfield (1994) mostra, conceitual e empiricamente, que a segurança jurídica encoraja a absorção e a geração de novas tecnologias,
enquanto a sua ausência afasta investimentos diretos estrangeiros intensivos em tecnologia.

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abundância de liquidez internacional, um dólar fraco, e preços de commodities em


alta –, que desempenhou um papel importante na reviravolta de contas externas.
Esta, por sua vez, facilitou a significativa apreciação nominal da taxa de câmbio
(em relação ao dólar), entre os finais de 2002 e 2007, que desempenhou um papel
fundamental em reduzir a inflação e a razão da dívida pública/PIB. Em particular,
isso permitiu à economia operar mais próxima do pleno emprego, ao mesmo tempo
em que a melhoria nos termos de troca promoveu uma transferência de renda do
exterior para o país. O outro fator foi a recuperação cíclica iniciada em meados
de 2003 ter vindo após um longo período de crescimento abaixo do potencial,
dessa forma encontrando níveis relativamente baixos de utilização de capacidade
instalada, inclusive na infra-estrutura. Ambos os efeitos são consistentes com os
resultados obtidos por Edwards (2007), de que a dinâmica de crescimento de
curto prazo é fortemente influenciada pelo efeito de catch-up que surge quando
o crescimento se afasta da tendência de longo prazo (como em 1998-2003) e por
choques nos termos de troca, como nos últimos anos.
Ainda que se espere que a economia mundial continue exuberante por algum
tempo, a margem para uma valorização maior do real e para crescer com maior
utilização da capacidade é atualmente mais limitada. Assim, a manutenção do ritmo
de crescimento a taxas próximas às dos últimos anos exigirá que se eleve o ritmo
de expansão do PIB potencial. As duas principais restrições a isso são a nossa baixa
taxa de investimento, especialmente em infra-estrutura, e o ritmo relativamente
lento de aumento da PTF. O principal argumento desenvolvido neste capítulo é de
que um aumento da segurança jurídica pode dar uma contribuição fundamental
para acelerar o aumento do investimento e da produtividade, ainda que não seja
a única forma de atingir tal objetivo.
A segurança jurídica busca facilitar a coordenação das interações humanas,
inclusive econômicas, reduzindo a incerteza que as cerca. Ela se inspira na confiança
que deve ter o indivíduo de que os seus atos, quando alicerçados na norma vigente, pro-
duzirão os efeitos jurídicos nela previstos. A segurança jurídica se traduz, portanto,
como uma norma jurídica que seja estável, certa, previsível e calculável, tanto nas
relações jurídicas entre particulares quanto, principalmente, naquelas que envolvam
o Estado. Esse preceito geral deve aplicar-se não apenas ao ordenamento jurídico
positivo como também à sua interpretação e aplicação pelo Judiciário.
Na economia, a segurança jurídica leva a “regras do jogo” claras e estáveis. Isso
reduz custos de transação, ex ante, simplificando a contratação – pois permite que
os contratos sejam mais incompletos, sem que para isso precisem ser mais arris-
cados; e, ex post, desencorajando as partes de levarem seus conflitos ao Judiciário.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 51

Além disso, estimula os agentes privados a investir mais e em ativos de mais longo
prazo, ilíquidos e especializados, que são os mais produtivos; e, por fim, fomenta
a especialização, o investimento em P&D e a difusão de tecnologia. Dessa forma,
por meio do incremento do investimento e da produtividade, a segurança jurídica
promove o crescimento econômico.
Mesmo após conquistar a estabilidade de preços, vencendo o dragão da hi-
perinflação, o Brasil ainda tem um grau relativamente baixo de segurança jurídica,
como refletido na instabilidade das “regras do jogo”. Pelo menos três fatores se
combinam para produzir esse quadro:
l A má qualidade da produção legislativa, resultando em leis que, muitas vezes,
são ambíguas e conflitantes com outras normas. Em certa medida, esse problema
é conseqüência da fragmentação político-partidária, que faz com que apenas leis
muito gerais sejam aprovadas no Congresso Nacional, jogando o conflito político
para ser posteriormente resolvido pelo Judiciário, no que se convencionou chamar
de “judicialização da política”.
l Decisões judiciais freqüentemente motivadas pelas visões políticas dos
magistrados, muitas vezes sem demonstrar grande preocupação em seguir a ju-
risprudência estabelecida nos Tribunais Superiores, dando margem à chamada
“politização do Judiciário”.
l Freqüentes mudanças nas “regras do jogo”, com a administração pública
agindo para modificar ou invalidar seus atos pretéritos. Incluem-se nessa categoria
desde a quebra de contratos até as constantes alterações nas regras tributárias. São
exemplos os vários confiscos promovidos no âmbito dos planos de estabilização,
do confisco explícito no Plano Collor aos embutidos no expurgo dos índices de
correção monetária dos contratos.
Essa é uma situação ao mesmo tempo injusta e ineficiente. Injusta, pois a
constante mudança de regras provoca a perda de investimentos em ativos específicos
realizados por aqueles que, de boa-fé, confiaram na estabilidade e continuidade
da norma. Ineficiente, pois, ao se adaptarem a essa situação, os agentes econômicos
incorrem em custos de transação e riscos elevados, evitam investir em ativos
específicos, e são forçados a um menor grau de especialização do que seria reco-
mendável pela lógica estritamente econômica. A instabilidade, imprevisibilidade
e falta de credibilidade das “regras do jogo” e das políticas públicas também levam
os agentes econômicos a pouparem e investirem menos, por receio de abrir mão
do consumo presente em função de um retorno futuro muito incerto. Além disso,
os agentes tendem a transferir seus investimentos e sua poupança financeira para

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52 ARMANDO CASTELAR PINHEIRO

o exterior, em busca de jurisdições mais seguras. O resultado é uma expansão do


PIB potencial a taxas inferiores às que seriam razoáveis para um país com todo o
potencial do Brasil.

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capÍtulo 3

Catching up NO SÉCULO XXI: CONSTRUÇÃO


COMBINADA DE SISTEMAS DE INOVAÇÃO
E DE BEM-ESTAR SOCIAL*

Eduardo da Motta e Albuquerque**

1 INTRODUÇÃO
Este capítulo propõe a discussão de uma estratégia de desenvolvimento baseada na
construção combinada de um sistema de inovação (para impulsionar o progresso
tecnológico) e um sistema de bem-estar social (para mitigar a concentração de
renda e garantir a inclusão social), em um contexto democrático e participativo.
Essa estratégia deriva-se, entre outros elementos, da compreensão do caráter mul-
tidimensional do processo de desenvolvimento.
Essa estratégia é necessária para superar a barreira do subdesenvolvimento. A
obra de Celso Furtado pode ser lida como um diagnóstico da natureza estrutural
do subdesenvolvimento e como uma rica fonte de argumentos e propostas para a
superação da “armadilha do subdesenvolvimento”.
O ponto de partida da discussão deste capítulo é um diagnóstico sintético
e preocupante: desde meados da década de 1970 o Brasil encontra-se estagnado
em sua posição no cenário internacional. Essa estagnação pode ser constatada na
tabela 1, que apresenta a relação entre o Produto Interno Bruto (PIB) per capita
do Brasil e o PIB per capita dos Estados Unidos (o país líder no presente contexto
econômico e tecnológico).1 Os dados da tabela 1 indicam que desde 1973 essa
razão oscila em torno de 20%.

* Agradeço o apoio dos bolsistas de iniciação científica Caroline Gomes da Silva, Juliana Vieira, Luiza Melo Franco, Bernardo Aragão e
Guilherme Meilman durante a preparação deste capítulo. Os erros são de minha inteira responsabilidade.

** Professor associado do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).

1. Esse indicador está entre os dados das Penn World Table: trata-se de uma variável definida com Y (porcentagem do PIB per capita de
uma nação em relação ao dos Estados Unidos).

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56 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

TABELA 1
Relação entre o PIB per capita do Brasil e da Coréia do Sul com o PIB per capita
dos Estados Unidos – 1913-2005
(Em %)

PIB per capita como porcentagem do PIB per capita dos Estados Unidos
Ano
Brasil Coréia do Sul
1913 15,2 16,8
1950 17,5 8,1
1973 23,3 17,0
1990 21,2 37,5
1998 19,9 44,5
2005 20,1 52,6

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de Maddison (2001), e para 2005 dados da United Nations Development Programme
(UNDP, 2007).

Entre 1913 e 1973 o PIB per capita brasileiro aproximou-se do valor daquele
dos Estados Unidos (cresceu de 15,2% para 23,3% do PIB per capita dos Estados
Unidos). Porém, desde então essa distância não foi mais reduzida. Daí o diagnóstico
de estagnação relativa.
Também na tabela 1 estão apresentados os dados relativos à Coréia do Sul. Entre
1950 e 2005 o PIB per capita coreano passou de apenas 8,1% do PIB per capita dos
Estados Unidos para 52,6%. O contraste com o caso brasileiro é evidente. Essa
aproximação (ou diminuição do hiato) da Coréia do Sul com o país tecnologica-
mente líder em termos de PIB per capita sintetiza quantitativamente um processo
de catching up bem-sucedido. Como será apresentado na próxima seção, esse contraste
entre o Brasil e a Coréia do Sul é também encontrado quando dados relevantes para uma
avaliação quantitativa de sistemas de inovação são comparados. Ribeiro et al. (2006)
identificaram o “efeito rainha vermelha” para o caso brasileiro (e de outros sistemas
imaturos de inovação). O crescimento da produção científica e tecnológica (fortemente
correlacionada com a riqueza das nações) desde a década de 1980 tem sido suficiente
apenas para manter o Brasil na mesma distância do limiar do grupo dos países mais
avançados. Ou seja, tanto na produção científica e tecnológica como na renda per capita
o esforço realizado no país tem sido suficiente apenas para manter-se na mesma posição.
O Brasil corre para ficar no mesmo lugar: eis o “efeito rainha vermelha”.
Este diagnóstico de estagnação relativa no cenário internacional indica o fra-
casso das políticas econômicas das últimas décadas, que poderiam ser classificadas
como políticas de “inserção passiva” na ordem econômica internacional. Definir
um processo de catching up como um objetivo do país significa, entre outras coisas,
buscar políticas de “inserção ativa” na ordem internacional.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 57

Este capítulo discute as novas questões que se apresentam para um processo


de catching up no início do século XXI.
Os casos bem-sucedidos mais discutidos na literatura (Alemanha no século
XIX, Japão nos séculos XIX e XX, Coréia do Sul e Taiwan no século XX) apresentam
lições importantes. Essas lições devem ser discutidas e avaliadas à luz das mudanças
mais importantes no contexto internacional, em especial das características dos
paradigmas tecnológicos dominantes e emergentes. Além disso, as características
estruturais mais importantes da economia e da sociedade brasileiras – nas quais
persistem antigos problemas, como o analfabetismo, e surgem novos problemas,
como a exclusão digital – exigem uma reflexão cuidadosa para a definição de uma
estratégia adequada de desenvolvimento.

2 DIAGNÓSTICO SINTÉTICO DO SISTEMA DE INOVAÇÃO BRASILEIRO


O diagnóstico do estágio atual de construção do sistema de inovação brasileiro é
apresentado em dois passos. No primeiro (subseção 2.1) o diagnóstico da estag-
nação relativa em termos do PIB per capita é articulado com dados de ciência e
tecnologia, permitindo a identificação do Brasil no contexto atual. No segundo,
o papel da estrutura social brasileira como um fator explicativo dos bloqueios
presentes ao desenvolvimento do país é discutido a partir da elaboração de Celso
Furtado, em diálogo com a elaboração evolucionista contemporânea.

2.1 Cenário internacional: o “efeito rainha vermelha”


O Brasil faz parte de um conjunto de países que não possui um sistema de inovação
completo (ou maduro). Ao lado de países como a Índia, a África do Sul e o México,
precisa investir decididamente na construção desse sistema, determinante impor-
tante da riqueza das nações. Há evidências estatísticas que apóiam essa afirmação,
como a alta correlação entre renda per capita e indicadores de produção científica
e tecnológica, como está sistematizado no gráfico 1.
É visível nesse gráfico a forte correlação entre a riqueza dos países (PIB per
capita, valores para 2003), a produção tecnológica – média anual das patentes por
milhão de habitantes registradas junto ao United States Patent and Trademark
Office (USPTO) entre 1999 e 2003 – e a produção científica – média anual dos
artigos científicos por milhão de habitantes indexados pelo Institute for Scientific
Information (ISI) entre 1999 e 2003. O gráfico 1 é didático para demonstrar a
importância da base técnico-científica nas economias modernas.2

2. Para maiores detalhes e referências bibliográficas mais importantes, ver Ribeiro et al. (2006).

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58 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

O gráfico 2 é a projeção do gráfico 1 no eixo da produção científica (A*)


versus a produção tecnológica (P*). Ribeiro et al. (2006) aplicaram uma técnica de
clustering para agrupar os países. O resultado é a indicação de três grupos, conforme
a proposição de Bernardes e Albuquerque (2003) sobre a existência de pelo menos
três “regimes de interação”. No regime 1, a infra-estrutura científica é ainda muito
pequena e incapaz de alimentar uma produção tecnológica mínima. No regime 2,
a produção científica cresce e pode determinar alguma produção tecnológica, mas
não a ponto de viabilizar um efeito retroalimentador sobre a produção científica.
Finalmente, no regime 3, as conexões e interações estão plenamente estabelecidas
e o principal determinante do crescimento econômico é a capacitação científica
e tecnológica. O acesso ao regime 3 é o objetivo de um processo de catching
up. Esses três “regimes” sugeridos por Bernardes e Albuquerque (2003) podem
facilmente dialogar com elaboração recente de um relatório da United Nations
Industrial Development Organization (UNIDO), intitulado Capability building
for catching up. Nesse relatório é proposta uma abordagem sobre o desenvolvimento

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 59

de sistemas de inovação envolvendo três fases (UNIDO, 2005, p. 73-74). Segundo


essa abordagem, o caso do Brasil seria classificado na segunda fase de construção
do sistema de inovação.

Bernardes e Albuquerque (2003) defendem a necessidade dos países em catching


up de alcançarem uma certa “massa crítica” na produção científica, a fim de passar
para um estágio superior de interação entre a dimensão científica e a tecnológica.
Bernardes e Albuquerque (2003) apresentam os dados referentes à produção científica
(artigos por milhão de habitantes, A*) e à produção tecnológica (patentes por milhão
de habitantes, P*) de 120 países que produziram ao menos uma patente e um artigo
em 1998. A avaliação desses dados sugere a existência de um ponto a partir do qual a
“eficiência” na transformação de artigos em patentes sofre uma ruptura. A vizinhança
da produção de 150 artigos por milhão de habitantes parece constituir-se no limiar
de produção científica para os dados de 1998 (esse pequeno exercício estatístico

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60 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

fundamenta a proposição da necessidade de o Brasil triplicar sua infra-estrutura


científica e tecnológica para iniciar um processo de catching up).
O gráfico 2 atualiza esses dados para 2003. O Brasil mantém-se no regime 2.3
A partir da definição dos três regimes, e contando com dados para anos
diversos como 1974, 1982, 1990, 1998 e 2003, Ribeiro et al. (2006) calculam
os diversos limiares entre os grupos (há um limiar entre os regimes 1 e 2, e outro
entre entre os regimes 2 e 3). O resultado está no gráfico 3, no qual é representada
a movimentação dos limiares.
O gráfico 3 também apresenta as trajetórias de países selecionados, para efeito de
comparação. Cada país é representado por pontos, que são a interseção entre a produção
científica (A*) e tecnológica (P*) para os anos de 1974, 1982, 1990, 1998 e 2003 (a
China é exceção, pois o primeiro ponto representa os dados para 1982 e não 1974).

3. Herskovic (2007) dialoga com essa elaboração e acrescenta a dimensão financeira em sua análise, que utiliza as mesmas técnicas
de Ribeiro et al. (2006). O resultado encontrado mantém a divisão dos países em três grupos e há uma forte correlação entre os três
grupos nos dois casos. Uma implicação inicial dos resultados de Herskovic (2007) é a necessidade de contemplar a co-evolução entre
o sistema de inovação e o sistema financeiro como um pressuposto do processo de catching up.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 61

Em relação à movimentação dos limiares, o gráfico 3 indica que o limiar entre


os regimes 2 (do qual o Brasil faz parte atualmente) e o regime 3 (cuja participação
deve ser uma meta para o Brasil) avança mais rapidamente do que o limiar dos
dois regimes inferiores. Entre 1974 e 2003 o limiar entre os regimes 2 e 3 cresceu
6,6% ao ano (a.a.), em termos da produção científica per capita. Em função dessa
movimentação do limiar advém o “efeito rainha vermelha”: países podem ampliar
a sua produção científica de forma significativa (cerca de 85% em uma década)
apenas para permanecerem na mesma posição. Esse parece ser o caso do Brasil nos
últimos 20 anos (desde 1982 o Brasil está e permanece no regime 2).
A identificação do Brasil no regime 2 é uma forma de identificar a natureza
imatura do sistema de inovação brasileiro. Os dados disponíveis sobre ciência,
tecnologia, educação, infra-estrutura informacional e sistema financeiro confir-
mam essa posição intermediária do estágio de construção do sistema de inovação
brasileiro (ver VIOTTI; MACEDO, 2003; FAPESP, 2005). Em relatório de pes-
quisa anterior (ALBUQUERQUE, 2006) são disponibilizadas diversas estatísticas
relevantes capazes de sumarizar o estágio de construção do sistema de inovação
brasileiro. Entre outros dados, destacam-se os relativos ao envolvimento (limitado)
das empresas brasileiras com atividades inovativas e com pesquisa e desenvolvi-
mento (P&D) – a partir da Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica (Pintec) do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, a produção tecnológica – a
partir das estatísticas de patentes do Instituto de Propriedade Industrial (INPI),
e do USPTO – e a produção científica (a partir do ISI), além da distribuição geo-
gráfica dessas produções (indicando a sua concentração regional) e as “manchas
de interação” entre universidades/institutos de pesquisa e as empresas – a partir
dos dados do Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (conforme RAPINI, 2007). Esses
dados confirmam a existência de ilhas de excelência no país, nas quais a interação
entre a dimensão científica e a tecnológica opera plenamente (o que fundamenta a
posição do país no regime 2), assim como a enorme heterogeneidade e desigualdade
existentes no sistema de inovação brasileiro.4 A amplitude dessa heterogeneidade é
um desafio específico para o amadurecimento do sistema de inovação brasileiro e
uma diferença com as condições iniciais dos processos de catching up bem-sucedidos
que serão discutidos na seção 3.

4. A identificação de unstructured islands of business innovative performance é uma das características da fase 2 de construção dos
sistemas de inovação, de acordo com o relatório da UNIDO (2005, p. 71).

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62 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

2.2 Concentração de renda e inadequação da tecnologia


O diagnóstico sintetizado na posição intermediária do Brasil em termos de renda
per capita, produção científica e tecnológica e a identificação do “efeito rainha
vermelha” propõem duas questões.
Em primeiro lugar, qual o significado dessa posição intermediária em termos
da avaliação do estágio de construção do sistema de inovação brasileiro? Há inúmeros
estudos indicando a natureza desigual e heterogênea do sistema de inovação do
país. Existem histórias bem-sucedidas de firmas, universidades e casos de sucesso
no controle de doenças – conseqüência da ciência brasileira – e identificam-se
conexões parciais entre instituições científicas e tecnológicas, que são o resultado
de uma longa construção histórica (ver SUZIGAN; ALBUQUERQUE, 2008).
Esses desvios da forte lógica do subdesenvolvimento devem ser tomados como
referências de possíveis rotas para o processo de catching up. A pergunta derivada
desse diagnóstico é a seguinte: por que esses circuitos virtuosos não se expandem
pela economia brasileira, impondo a sua lógica?
Em segundo lugar, o que estaria travando o desenvolvimento do Brasil? O
que estaria contribuindo para a estagnação identificada na tabela 1 e para o “efeito
rainha vermelha”?
Uma contribuição importante para responder a essa questão pode estar na
obra de Celso Furtado, em especial na sua elaboração sobre a inadequação da
tecnologia e sobre a polarização modernização-marginalização como característica
estrutural do desenvolvimento brasileiro.
Em sua contribuição para o livro Pioneers in development, Furtado (1987, p. 17)
enfatiza as raízes históricas da questão: “ (...) sem uma percepção da natureza
da industrialização retardada (orientada para a substituição de importações),
não será possível entender a ‘inadequação da tecnologia’ que gera o desemprego
da mão-de-obra”. É também nesse depoimento que Celso Furtado explicita
mais claramente a articulação discutida nesta seção: “ (...) a inadequação da
tecnologia, a que se referiram os economistas latino-americanos de um ângulo
sociológico, traduziu-se na polaridade modernização-marginalização” (p. 33,
grifos no original).
Qual é o nexo causal que articula o padrão concentrador da distribuição de
renda e a inadequação da tecnologia?
Furtado descreve a formação de uma elite socioeconômica, em geral nas ati-
vidades exportadoras relacionadas aos produtos agrícolas demandados pelos países
centrais. Essa rica elite socioeconômica (nunca maior do que 10% da população)

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 63

adota padrões de consumo similares aos dos países onde as revoluções tecnológicas
acontecem. Essa minoria de alta renda importa bens dos países desenvolvidos para
consolidar seus padrões de consumo. No estágio seguinte de desenvolvimento, o
processo de substituição de importações internaliza a produção desses bens (proteção
para a produção interna de bens de consumo). Porém, essa proteção para a produção
interna de bens de consumo coexiste com subsídios para a importação de bens de
capital, subsídios que, ao menos temporariamente, bloqueiam o desenvolvimento
de uma indústria local produtora de bens de capital (embora temporário, esse blo-
queio tem efeitos persistentes sobre o desenvolvimento tecnológico endógeno). Essa
combinação entre proteção para a indústria de bens de consumo e subsídios para a
importação de bens de capital determina uma trajetória específica de crescimento
econômico. Nessa trajetória os ganhos de produtividade combinam-se com o cres-
cimento do desemprego (um excedente estrutural de mão-de-obra crescente).
Posteriormente pode surgir uma produção retardatária de parte dos bens
de capital para essas indústrias de bens de consumo, levando a economia a
alcançar a “fase superior do subdesenvolvimento” – para Furtado (1986, p. 145),
“a fase superior do subdesenvolvimento é alcançada quando se diversifica o
núcleo industrial, capacitando-se este para produzir parte dos equipamentos
requeridos para que se efetue o desenvolvimento”. Mas, como as revoluções
tecnológicas são parte da dinâmica capitalista nos países centrais – aqui, há
uma importante conexão com a elaboração das ondas longas do desenvolvi-
mento capitalista, como Freeman e Louçã (2001) resumiriam –, o progresso
tecnológico no centro continua introduzindo novos produtos, novos bens de
consumo. Por isso, esse processo se repete continuamente, com a abertura de
importações de novos bens de consumo, seguido de uma nova fase de subs-
tituição de importações e importações de bens de capital relacionados a essa
nova substituição de importações. Mudanças no mercado de trabalho interno
são conseqüências desses novos processos, preservando e transformando o
excedente estrutural de mão-de-obra.
O resultado final é o processo de modernização e marginalização; um
processo permanentemente renovado pela dinâmica iniciada por revoluções
tecnológicas no centro. De um lado há o processo de modernização (inicial-
mente chapéus e roupas de luxo, depois carros importados, em seguida telefones
importados, computadores pessoais importados, e assim por diante). De outro
lado tem-se a marginalização se renovando (os sem-casa, a exclusão digital etc.).
Modernização à medida que as indústrias locais são impulsionadas pela adoção
e pela constante atualização dos padrões de consumo difundidos pelos países
desenvolvidos; esse esforço contínuo, à medida que as revoluções tecnológicas

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64 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

ocorrem no centro, ao menos permitiu à economia brasileira preservar um gap


relativamente estável em face dos países desenvolvidos. Marginalização à medida
que o desemprego gerado pelo uso de técnicas capital-intensivas não é absorvido
pelas indústrias subdesenvolvidas de bens de capital locais (que quando se de-
senvolvem, fazem-no de forma atrasada e incompleta), esse desemprego afeta o
excedente estrutural de trabalho.
Esse processo de “modernização-marginalização” conduz a uma renovação
permanente do dualismo estrutural: primeiramente havia um dualismo entre
agricultura e indústria; em seguida, entre os setores tradicionais e modernos; e,
agora, há um dualismo entre os setores formal e informal dos setores modernos,
como indústria e serviços – Furtado (2003b, p. 97) escreve: “(...) a industria-
lização tem agravado o dualismo no mercado de trabalho”; “O balanço geral é
uma heterogeneidade social mais complexa e profunda” (2003a, p. 11) – hete-
rogeneidade que é incorporada em todos os setores de atividade, incluindo as
dimensões científica e tecnológica.
Essa combinação entre modernização e marginalização conduz a uma orga-
nização interna complexa: Gilberto Freyre enfatizou a coexistência e simultaneidade
de diferentes “tempos sociais” no início do século XX e sua “interpenetração
profunda” (1959, p. 40-41), o constante entrelaçamento de “três tempos”, “como
que fundidos num só” (p. 58-59). Souza (2000) apresenta uma interpretação do
trabalho de Freyre, enfatizando essa persistente renovação de dualidade, atualmente
simbolizada pelo contraste entre ricos condomínios e favelas.5
Celso Furtado (1986, p. 182) resume o conjunto desse processo: “(...) mais
precisamente: o principal fator causante da elevação de produtividade na economia
periférica industrializada parece ser a diversificação dos padrões de consumo das
minorias de altas rendas, sem que o processo tenha necessariamente repercussões
nas condições de vida da grande maioria da população”. Limitações de tamanho
do mercado interno afetam (negativamente) as possibilidades de progresso técnico,
quebrando o impulso de desenvolvimento antes do necessário para se estabelecer
um processo sustentável de catching up.

5. A desigualdade existente no caso brasileiro pode ser sintetizada em um mapa do desenvolvimento humano no Brasil, apresentado
em Araújo (2005, p. 34). Esse mapa, entretanto, não consegue captar toda a heterogeneidade existente no país em termos de desen-
volvimento humano, pois as regiões metropolitanas (RMs) do país apresentam forte desigualdade, com a polaridade modernização-
marginalização de forma mais crua e direta. Estudos demonstram o grande diferencial em termos de desenvolvimento humano existente
nas principais RMs do país. Mas, o grau de heterogeneidade existente no caso brasileiro é demonstrado pelos dados que contribuíram
para a sua construção (ver www.ipeadata.gov.br). No extremo inferior, há 23 municípios com índice de desenvolvimento humano (IDH)
correspondentes a países de baixo desenvolvimento humano (IDH < 0,50); há 232 municípios com IDH igual ou menor ao de Gana
(IDH ≥ 0,553). No extremo superior, há 566 municípios com IDH correspondentes a países com alto desenvolvimento humano (IDH >
0,800), dos quais 22 com IDH igual ou maior ao do Uruguai (IDH > 0,852).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 65

A partir deste diagnóstico sumário e da articulação entre inadequação da


tecnologia, polarização modernização-marginalização e o “efeito rainha vermelha”,
recoloca-se a questão central deste capítulo: como fugir do ciclo vicioso de cresci-
mento limitado, atualização tecnológica restrita e subdesenvolvimento estrutural
contínuo?6
Para responder a essa questão é necessário discutir as lições oferecidas pelos
processos de catching up bem-sucedidos e avaliar os novos desafios e oportuni-
dades existentes.

3 LIÇÕES DA HISTÓRIA
A primeira lição é apresentada por Braudel (1986, p. 517): “(...) a industrialização,
tal como a Revolução Industrial, implica tudo, sociedade, economia, estruturas
políticas, opinião pública e tudo o mais”. Em sua discussão sobre a revolução
industrial inglesa Braudel apresenta essas relações de forma exaustiva: o papel da
agricultura, a técnica “como condição necessária mas talvez não suficiente” (p. 526),
a demografia, a revolução agrícola (“um ciclo impulsiona outro”, p. 536), a revo-
lução financeira “que ocorreu misturada com a industrialização do país, que, se
não a provocou, pelo menos a acompanhou e até a tornou possível” (p. 559).
O painel histórico de Braudel ilustra o caráter multidimensional do pro-
cesso de desenvolvimento. Um importante lembrete para se evitar proposições
e avaliações monocausais.7
Embora, para Braudel, a revolução industrial inglesa não tinha modelos para
seguir, ela legou às “revoluções industriais de hoje (...)” uma imagem “(...) em que
modelos conhecidos iluminam o caminho que se pretendia seguir” (p. 546).
A segunda lição é sugerida por Gerschenkron (1962) que indica as diferenças
entre as industrializações retardatárias e o caso inglês. Gerschenkron investiga
como o atraso econômico pode influenciar a natureza da industrialização e aponta
especificidades dos processos de industrialização retardatária. As diferenças entre
o processo inglês e os posteriores podem ser sintetizadas em cinco tópicos:
a) velocidade do desenvolvimento; b) estruturas organizacionais e produtivas
da indústria; c) estruturas institucionais (que determinam tanto a velocidade do
desenvolvimento quanto as estruturas da indústria); d) clima intelectual; e e) uma

6. A limitação do processo de atualização tecnológica do parque industrial brasileiro foi recentemente diagnosticado pelo IBGE, que
encontrou uma diminuição da participação de setores de alta tecnologia na indústria de transformação brasileira (ver VALOR ECONÔMICO,
2007, p. A5; Folha de S. Paulo, 2007, p. B1, B3 e B).

7. Para uma crítica das abordagens monocausais sobre crescimento econômico, ver Adelman (2001).

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relação mais geral entre o grau de atraso, as potencialidades industriais dos países
e as estruturas institucionais necessárias.
A análise de Gerschenkron pode ser interpretada como a identificação da impor-
tância decisiva de inovações institucionais para dar conta das exigências impostas pelo
caráter retardatário da industrialização. No seu texto clássico Gerschenkron destaca
o papel dos grandes bancos no processo alemão e o papel do Estado no processo
russo do final do século XIX. Aliás, Gerschenkron chega a apresentar um gradiente
de graus de atraso relativo, que está relacionado ao tipo de estrutura institucional
exigida. A comparação do caso alemão e do caso russo traz a sugestão de que quanto
maior seja o atraso, maior a necessidade de participação do Estado.
A experiência de catching up dos séculos XIX e XX, quando se toma a elabo-
ração de Gerschenkron como referencial, apresenta uma notável diversidade de
trajetórias e de arranjos existentes. As razões para essa diversidade são múltiplas:
diferenças em termos dos paradigmas tecnológicos dominantes, diferentes países
hegemônicos, contextos internacionais distintos, pontos de partida nacionais variados
e conseqüentes diferenças em termos de graus de atraso relativo. As inovações
institucionais, portanto, devem responder a desafios diversos e específicos a cada
processo de desenvolvimento. Por isso, processos de catching up não podem ser
reduzidos à mera cópia de algum modelo anterior bem-sucedido.
Quais as inovações institucionais mais importantes nesses processos de catching
up bem-sucedidos?
Para o caso da Alemanha, a elaboração de Gerschenkron (1962), Landes
(1969) e Chandler (1990) indicam três importantes inovações institucionais. Em
primeiro lugar, os grandes bancos e seu papel na canalização de recursos para as em-
presas industriais, além de seu envolvimento na gestão profissional dessas empresas.
Em segundo lugar, o enorme investimento em educação, especialmente a secundária
e superior. Em terceiro lugar, o papel das instituições de ensino e pesquisa, que
contribuíram para atender as demandas apresentadas pelo setor industrial.
Para o caso do Japão, na elaboração de Okhawa e Kohama (1989), em um
livro que avalia a experiência do país do período Meiji até o final do processo de
catching up (em 1974), a principal lição advém do processo em seu conjunto,
em sua sucessão de fases e mudanças nas políticas. Como lições positivas, cinco
aspectos se destacam. Em primeiro lugar, a importância das políticas industriais
ativas, cujo segredo está na correta interação entre o setor público e o privado. Essa
interação pressupõe visões de longo prazo, capacidade de definir metas e objetivos
e de acompanhar a sua implementação. Plasticidade para aprender com erros ao
longo do processo é essencial. Em segundo lugar, a flexibilidade para articular e

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 67

rearticular políticas industriais à medida que as fases do processo de industriali-


zação se sucedem. Cada fase tem políticas industriais específicas, que devem ser
superadas junto com a superação da fase correspondente. As políticas industriais
têm, assim, um aspecto dinâmico: elas se transformam ao longo do tempo. Em
terceiro lugar, a importância da construção de um sistema financeiro capaz de
promover os investimentos de longo prazo e de criar um ambiente propício ao
investimento inovativo. Em quarto lugar, a importância da constituição de uma
expressiva capacidade de absorção tecnológica, apoiada num processo de cópia,
adaptação e aprimoramento de inovações geradas nos centros avançados. Destaca-se,
aqui, a importância dos esforços internos às empresas (gastos com P&D próprio)
em combinação com a importação de tecnologia. Importante, ainda, é o papel
da comunidade científica, em relacionamento com os órgãos de definição das
políticas industriais: o papel de “antena” dos processos científicos e tecnológicos
internacionais, contribuindo para monitorar definições de prioridades internas.
Em quinto lugar, a importância da construção de um “ambiente seletivo” eficiente,
resolvendo o trade-off entre proteção externa e pressão competitiva sobre as firmas
nacionais. Como características negativas, três se destacam: o peso do militarismo
nas fases iniciais do catching up; o peso do autoritarismo e a centralização excessiva
das decisões de política industrial e tecnológica em torno do Ministry of International
Trade and Industry (MITI) – no caso brasileiro a dimensão continental do país
e a extrema diversidade de demandas exigem um pluralismo maior quanto às
instituições centrais do sistema de inovação a ser amadurecido.
Os casos da Coréia do Sul e de Taiwan tiveram no processo japonês uma
referência importante. No caso da Coréia do Sul, a principal lição é a forma como
a interação entre os setores público e privado ocorreu, através do “mecanismo
reciprocidade” (AMSDEN, 1989). Por esse mecanismo, as prioridades definidas
pelo governo (em seus planos de desenvolvimento) orientavam investimentos a
partir de um sistema financeiro estatal, que exigia como contrapartida do setor
privado o cumprimento de metas bem definidas em termos de exportação, gastos
em P&D etc. No caso de Taiwan, a interação entre público e privado se deu de
forma um pouco distinta, em especial quanto ao papel das empresas pequenas e
médias no processo de desenvolvimento (WADE, 1990). Ao contrário da Coréia
do Sul, em Taiwan as empresas menores desempenharam um papel central, o que
definiu uma forma de relacionamento diferente com os institutos públicos de
pesquisa. Outra diferença é o importante papel das subsidiárias de multinacionais
no caso de Taiwan.
De uma forma mais geral, as experiências do Japão, Coréia do Sul e de Taiwan
podem ser avaliadas como formas singulares de combinação entre plano e mercado.

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Essa avaliação das inovações institucionais mais importantes deve ser com-
pletada por uma reinterpretação desde o ponto de vista da elaboração dos sistemas
de inovação. Mesmo contextualizando o papel da técnica, como nos ensina Braudel,
ela é uma condição necessária. Por isso, é indispensável avaliar os estudos da
economia da tecnologia.
A partir de uma concepção ativa do processo de difusão, todos os países que
realizaram processos bem-sucedidos de catching up (Alemanha, Estados Unidos, Japão,
entre outros) iniciaram seus processos através da cópia, imitação e transferência de
tecnologia dos centros mais avançados (LANDES, 1969; NELSON; WRIGHT,
1992; OKHAWA; KOHAMA, 1989). Esse processo de cópia e imitação não ocorreu
de forma independente do desenvolvimento de aprendizado interno: como Cimoli
e Dosi (1995, p. 258-259) resumem, a combinação entre aquisição e aprendizado e
a seqüência que vai da cópia à criatividade são faces de uma mesma moeda. Por isso
é possível definir capacidade de absorção como a variável-chave tecnológica desde
o ponto de vista do país “imitador”, para que novas tecnologias se difundam e o
processo de catching up seja bem-sucedido (MOWERY; OXLEY, 1995, p. 81).
O que se propõe aqui é uma articulação entre a construção de sistemas de
inovação e processos de catching up. O livro editado por Nelson (1993) contém
excelentes discussões sobre a construção das instituições dos sistemas de inovação
na Alemanha (KECK, 1993), no Japão (ODAGIRI; GOTO, 1993), na Coréia
do Sul (KIM, 1993) e Taiwan (HOU; GU, 1993).
No caso da Coréia do Sul, um comentário adicional relativo a mudanças qua-
litativas é importante. Durante o processo de catching up, os papéis desempenhados
por universidades, institutos de pesquisa e empresas foram mudando ao longo do
tempo. O professor Keun Lee (Seoul National University) apresentou alguns fatos
estilizados relativos ao que poderia ser rotulado de “flexibilidade institucional” ao
longo do processo de catching up. O esquema é apresentado supondo-se a existência de
três tipos de atores institucionais: universidades, institutos de pesquisa e empresas.
Empresas desenvolveriam capacidade de absorção a partir de suas atividades internas
de P&D – donde a capacidade de absorção das empresas coreanas começou de um
ponto muito baixo (inexistente) e foi evoluindo ao longo do tempo até alcançar
o ponto atual, no qual as empresas assumem parte substancial dos investimentos
em P&D do país. Universidades e institutos desenvolvem capacidade de pesquisa
e se tornam aptos a alimentar empresas com informações técnico-científicas de
forma variada, dependendo da fase de desenvolvimento de suas interações. Com
esses atores, Eun, Lee e Wu (2006) apresentam um esquema geral, no qual uma
tipologia de padrões de interação entre universidades e empresas é construída a

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 69

partir das variáveis capacidade de pesquisa de universidades e institutos por um


lado e capacidade de absorção de firmas por outro.
A aplicação desse esquema para o caso da Coréia do Sul sugere as seguintes
mudanças. No início do processo de catching up (décadas de 1960 e 1970), dada
a debilidade tanto da capacidade de pesquisa das universidades como da capaci-
dade de absorção das empresas, institutos públicos de pesquisa foram criados e
assumiram o papel de realizar pesquisas de amplo interesse público e transferir os
resultados para as empresas, então com capacidade muito limitada de P&D. Em
seguida, na década de 1980 as universidades já possuíam capacidade para realizar
pesquisa e diversas empresas desenvolveram importante capacitação em P&D, o
que levou os institutos de pesquisa a avançarem para atividades mais aplicadas e a
estabelecerem relações de cooperação com empresas. Finalmente, durante a década
de 1990 as universidades alcançaram capacidade de pesquisa que as habilitou a
desempenharem papéis como fontes de informação para as atividades inovativas
de firmas privadas, papéis bem mais próximos aos descritos na literatura sobre os
países mais avançados, permitindo aos institutos públicos de pesquisa assumir
novos focos, voltando-se para pesquisas mais básicas ao mesmo tempo em que
reorientam-se para o apoio a atividades de pequenas empresas.
O relatório da UNIDO (2005) atualiza essa elaboração, incluindo importantes
avanços alcançados nos últimos anos. Para esse relatório alguns temas ganharam des-
taque. Mazzoleni (2005) organiza a discussão sobre o papel das instituições de ensino
superior e de pesquisa, quantificando de forma mais precisa a dimensão do esforço
e a velocidade do crescimento das matrículas antes e durante esses processos. Nesse
mesmo sentido, Mowery (2005) focaliza o papel dos investimentos para a geração de
conhecimento, combinando avaliações de processos do século XIX (destaque para a
Alemanha e os Estados Unidos) e do século XX (Coréia do Sul e Taiwan).
Enfim, as inovações institucionais são um pré-requisito e sua dinâmica é essencial.
A capacidade para implementar tais inovações e a flexibilidade para mudá-las ao
longo do processo são decisivas. Capacidade de coordenação para a criação e a
mudança institucional são as variáveis- chave do processo e componentes decisivos
de políticas públicas ajustadas à dinâmica do capitalismo do século XXI.

4 NOVOS DESAFIOS E OPORTUNIDADES


Esta seção busca introduzir dois elementos decisivos para a diferenciação dos pro-
cessos de catching up do século XXI em relação aos anteriores. Esses elementos,
apresentados de forma introdutória, servem de guia inicial para a explicitação da

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necessária originalidade dos processos atuais. Essa discussão serve para indicar os
limites das lições dos processos anteriores, avaliadas na seção 3.

4.1 A emergência de novos paradigmas


Freeman e Louçã (2001) sistematizam a formulação schumpeteriana sobre as ondas
longas do desenvolvimento capitalista. Embora a elaboração em torno das ondas
longas seja bastante controversa, ela é útil para indicar o papel das revoluções
tecnológicas na dinâmica capitalista de longo prazo e para sugerir a persistência
dessas transformações tecnológicas radicais na vida econômica.
Períodos de transição tecnológica, com a emergência de novos paradigmas,
são também períodos onde se abrem “janelas de oportunidade”, tanto nos países
avançados (para novas firmas dos setores industriais emergentes) como nos países
atrasados (para firmas e para os próprios países).
A movimentação da fronteira tecnológica internacional é determinada pela
sucessão de paradigmas tecnológicos (DOSI, 1984; FREEMAN; PEREZ, 1988).
Inovações radicais estabelecem as bases de constituição de um novo paradigma
tecnológico (FREEMAN, 1994). A carga de incerteza presente no processo de
definição de um novo paradigma é enorme. Estabelecido um novo paradigma,
trajetórias tecnológicas serão estabelecidas, fundamentalmente a partir de inovações
incrementais. O estabelecimento de um novo paradigma, portanto, cria um enorme
conjunto de oportunidades tecnológicas.
É justamente quando do surgimento de novos paradigmas que se abrem
janelas de oportunidade (PEREZ; SOETE, 1988) aos países atrasados. Por que
surgem essas janelas de oportunidade? Segundo Dosi (1984, p. 93-94), as condições
de apropriabilidade das inovações variam ao longo das “fases” do paradigma. Na
emergência de um novo paradigma, caracterizada por uma alta taxa de natalidade
e mortalidade de “novas firmas schumpeterianas”, oligopólios temporários seriam
estabelecidos; enquanto nas trajetórias estabelecidas, a apropriabilidade privada é
mais forte e as estruturas oligopolísticas mais estáveis. Essa variação nas condições
de apropriação das inovações ao longo das fases dos paradigmas ilustra a variação
nas condições de difusão das inovações (mais fácil quando a apropriação é mais
fraca). Essas condições, válidas para os processos internos de um país, se repetem
na arena internacional, fundamentando o aparecimento das “oportunidades” para
as firmas dos países atrasados.
Em suma, a movimentação da fronteira tecnológica internacional apresenta
dois aspectos contraditórios: em primeiro lugar, ao ampliar o hiato tecnológico
entre as nações (um dos fatores determinantes do “efeito rainha vermelha”, avaliado

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 71

em seção anterior), introduz a possibilidade de catching up; em segundo lugar,


dadas as mudanças nas condições de apropriabilidade que determina, abre janelas
de oportunidade para os países retardatários.
A movimentação da fronteira internacional, decisiva para o surgimento de
oportunidades aos países retardatários, apresenta um problema adicional (e decisivo)
para eles: a amplitude e a qualidade do esforço interno a ser realizado também variam
de forma dinâmica, crescendo à medida que os paradigmas se sucedem. Os para-
digmas tecnológicos observados dinamicamente sugerem que o conteúdo científico
das tecnologias tem crescido ao longo da história. Por isso, o papel das instituições
de ensino e pesquisa e o conteúdo de conhecimento necessários para processos de
catching up têm crescido com o tempo. Para que as janelas de oportunidade sejam
aproveitadas é necessário um esforço interno aos países atrasados: o desenvolvimento
de capacidade de absorção é o elemento determinante. E essa capacidade de absorção
exige uma participação maior das instituições de ensino e pesquisa.

4.2 Turbulência na economia mundial


Arrighi (1994 e 2005) tem insistido na caracterização da conjuntura internacional
como um período de turbulência sistêmica, transição de um ciclo sistêmico de
acumulação para outro. Esse período, para Arrighi, indica a transição da hegemonia
de um país na economia mundial para outro país (ou região). Mais precisamente,
trata-se de um período em que a hegemonia anterior esgotou-se (no caso a hege-
monia dos Estados Unidos da América), implicando o fim de um controle mais
firme de um país sobre a economia-mundo. Porém, no período de turbulência
sistêmica ainda inexiste um claro substituto na posição hegemônica (ver, em es-
pecial, ARRIGHI; SILVER, 1999).
Curiosamente, Wallerstein (2006) discute o declínio da hegemonia dos Estados
Unidos, indicando o período entre 2001 e 2025 como de “declínio acelerado”
(accelerating decline, 2001-2025) no qual, além dos Estados Unidos, três atores
globais participariam de uma nova configuração mundial: Europa, Ásia Oriental
e América Latina.
Embora o declínio dos Estados Unidos já tenha sido previsto várias vezes,
erroneamente, a discussão de Arrighi parece útil para identificar um cenário especial
nos próximos anos.
O que interessa mais para os objetivos deste capítulo é indicar uma com-
binação sui generis entre uma transição de paradigmas técnico-econômicos, no
sentido de Freeman, com um cenário de turbulência sistêmica, no sentido de

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Arrighi: uma conjuntura mundial plena de desafios que podem ser transformados
em oportunidades.

5 OS TRÊS ELEMENTOS DE UMA ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO


A estratégia proposta neste capítulo envolve a tripla combinação entre: a) sistema
de inovação, para construir a capacitação científica e tecnológica que alimenta o
processo de desenvolvimento; b) sistema de bem-estar social, para desbloquear
a restrição ao desenvolvimento representada pela concentração de renda e pela
ausência da formação de capacitações educacionais, técnicas e científicas, sendo
estas necessárias a alimentar um rico e diversificado ambiente institucional que
suporte um sistema de inovação maduro; 8 e c) democracia, com o fim de alocar
recursos para essa dupla construção institucional e garantir tanto a inclusão social
quanto a diversidade e a pluralidade nos dois sistemas mencionados.9
O fundamento teórico dessa proposta encontra-se em um diálogo entre a
elaboração estruturalista e a elaboração evolucionista, em especial o diálogo entre o
conceito de inadequação da tecnologia (Furtado) e o conceito de sistemas de inovação
(Freeman, Nelson, Lundvall). Qual é a maior contribuição do conceito de “tecnologia
inadequada” de Celso Furtado para a abordagem evolucionária? Superar a tecnologia
subdesenvolvida é um fator-chave, mas não é suficiente. Subdesenvolvimento não é
uma mera conseqüência da falta de instituições, por isso sua superação não é apenas
uma questão de “construção de instituições”. O processo de desenvolvimento não é
apenas quantitativo (mais recursos, mais instituições etc.).
Há passos qualitativos decisivos que parecem ser precondição para todo o
processo de desenvolvimento. O principal passo deve ser a desobstrução de um
arranjo institucional profundamente enraizado, útil para classes sociais e setores
que permitem grandes lucros para uma pequena parcela da população.10
Esse arranjo institucional profundamente enraizado poderia ser traduzido
para a linguagem evolucionária como um caso muito especial do fenômeno de
“aprisionamento” (lock in). Nelson (2004, p. 12) aponta a resistência social para o
processo de catching up na periferia: “Realizar as reformas necessárias na estrutura

8. Sobre o sistema de bem-estar social brasileiro, trata-se de avaliar o legado da construção do Sistema Único de Saúde e o estágio
presente da Previdência Social brasileira: há estudos, como os de Oliveira e Teixeira (1989); Viana (1998); Andrade (1999); Lima e Viacava
(2003); Pochman et al. (2005); Wajnman e Machado (2003), além de inúmeras pesquisas apresentadas em publicações como Ciência
e Saúde Coletiva, para citar apenas alguns exemplos.

9. A proposta de articulação entre sistemas de inovação e sistemas de bem-estar social encontra-se desenvolvida de forma mais completa
em trabalho anterior (ALBUQUERQUE, 2007).

10. De acordo com o Banco Central, em 2003 os residentes no Brasil declararam oficialmente depósitos de US$ 72 bilhões em contas
no estrangeiro (Folha de S. Paulo, 22/02/2004, p. B4).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 73

econômica pode ser uma tarefa mais difícil do que a obtenção dos conhecimentos
científicos e de engenharia necessários para a operação de novas tecnologias”. Uma
razão “é o poder político de firmas e indústrias estabelecidas e as dificuldades que
podem existir em sua transformação. Para firmas estabelecidas, com posições con-
fortáveis e bem relacionadas, o processo de destruição criadora não é um processo
bem-vindo. Política e socialmente, a destruição criadora não é um processo fácil
de lidar” (p. 12). O desenvolvimento depende da quebra desse lock in.
Novamente, aqui está a questão: como quebrar essa forte lógica institucional
(negativa)? Como fugir desse ciclo vicioso de crescimento limitado, limitada atuali-
zação tecnológica e subdesenvolvimento estrutural contínuo?
A resposta pode estar na relação antagônica entre o processo de amadurecimento
do sistema de inovação brasileiro e a persistência da polarização modernização-
marginalização. A questão passa a ser a seguinte: qual padrão de desenvolvimento
tecnológico é necessário para escapar da polarização modernização-marginalização.
A formulação de Celso Furtado sobre a articulação entre inadequação da tec-
nologia e a polaridade modernização-marginalização contribui para esclarecer dois
pontos importantes sobre a construção de sistemas de inovação: a) a construção de
sistemas de inovação na periferia envolve mais do que o mero crescimento quantitativo
de instituições existentes; e b) o subdesenvolvimento é um fenômeno mais complexo
e abrangente do que as “armadilhas de crescimento baixo” identificadas por vários
autores da elaboração evolucionista. Por isso, a identificação da articulação entre os
problemas derivados do padrão de distribuição de renda existente no Brasil com a
questão tecnológica é uma grande contribuição de Celso Furtado.
De outra forma, a construção combinada de sistemas de inovação e sistemas
de bem-estar social pode ser introduzida por Furtado a partir da questão da “seleção
de técnicas em função de objetivos sociais explícitos” (1986, p. 187).
A polarização modernização-marginalização, criada pela cadeia causal descrita
na subseção 2.2, é necessariamente inscrita nas instituições existentes no sistema
nacional de inovação brasileiro. Logo, o caminho para o amadurecimento do sis-
tema de inovação brasileiro não é apenas a expansão quantitativa das instituições
existentes. Certamente, existem problemas relacionados à falta de uma massa crítica
em ciência e tecnologia. As instituições do sistema de inovação já existentes – que
têm sido funcionais para a economia brasileira até agora – não são necessariamente
a base institucional para um processo de catching up bem-sucedido. Novamente,
os fatores sociais profundamente enraizados refletidos na inadequação tecnológica
bloqueiam o espalhamento e a difusão de práticas bem-sucedidas para outros setores
e para outras regiões. Destaca-se a necessidade de dobrar (ou triplicar) os recursos

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destinados à ciência no Brasil para atingir um estágio necessário a uma relação


mais interativa (e generalizada) entre ciência e tecnologia. Esses investimentos em
infra-estrutura científica não podem ser isolados, pois dependem de investimentos
em educação básica e na expansão de universidades (investimentos essencialmente
de inclusão social). Assim, mudanças qualitativas e quantitativas no atual sistema
de inovação são necessárias.
Se o lado “marginalização” da polaridade bloqueia o processo de superação
do subdesenvolvimento e um processo generalizado de catching up, políticas para
a superação da marginalização (corolário de melhoras na distribuição de renda)
devem ganhar centralidade nas políticas públicas. A redução na marginalização
detonaria novas demandas, o crescimento do mercado interno e novos desafios (e
oportunidades) para indústrias locais (novas e estabelecidas).11
Furtado (2003a, p. 14) enfatiza que “o desenvolvimento no Brasil hoje é
essencialmente um problema social”. A lição da Ásia Oriental para a superação da
barreira do subdesenvolvimento é a combinação entre “homogeneidade social” e a
“criação de um sistema produtivo eficiente, dotado de relativa autonomia tecnológica”
(FURTADO, 1992).
A leitura de Celso Furtado abre espaço para uma agenda contemporânea, ao
contribuir para a formulação de uma questão: como a construção do sistema de bem-
estar social no Brasil pode romper com o quadro de marginalização? O problema no
Brasil não é simples porque, além de um legado histórico perverso (que está entra-
nhado na polarização modernização-marginalização), o padrão de desenvolvimento
capitalista atual nos próprios países centrais tem demonstrado menor capacidade
de criação de empregos de qualidade, na medida em que o setor de serviços tem
assumido o papel de principal criador de novos empregos (ESPING-ANDERSEN,
1999, p. 123). Nas discussões sobre o mercado de trabalho nos países desenvolvidos
há uma polaridade entre um padrão de crescimento com desigualdade – caso dos
Estados Unidos – e um padrão com exclusão – caso da Europa, que preserva níveis
elevados de desemprego (ESPING-ANDERSEN, 1999, especialmente caps. 6 e 7).
O Brasil pode estar combinando esses dois aspectos.
Uma leitura preliminar da rica literatura sobre sistemas de bem-estar social indica
algumas características básicas para uma discussão do caso brasileiro. Em primeiro
lugar, o universalismo é importante (ESPING-ANDERSEN, 1990, cap. 2), pois
incluir parcelas da população é decisivo e, no caso brasileiro, a quebra de dualismos
perversos existentes é um objetivo essencial. Em segundo lugar, o sistema de bem-
estar deve ser articulado de forma a não ser preservador de hierarquias existentes.
11. Para uma defesa do impacto positivo da redução da pobreza sobre o crescimento econômico, ver UNDP (2005, p. 347-351).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 75

Em terceiro lugar, o sistema de bem-estar social deve ser articulado com políticas
ativas de criação de empregos (pois a situação de pleno emprego é importante para
a própria viabilização intertemporal do sistema de bem-estar social), ponto ressal-
tado por Rosanvallon (1995), que avalia o “Estado providência passivo” sugerindo
uma mudança de ênfase para um “Estado providência ativo”, em que a lógica da
indenização seria substituída pela lógica da inserção (ver p. 126-129).12 Em quarto
lugar – flexibilidade para cima (deslocamento de trabalhadores e desempregados
para tarefas mais sofisticadas: isso depende de processos educacionais contínuos,
programas de treinamento e retreinamento atuantes) –, a construção combinada
dos sistemas de inovação e de bem-estar pode ser um mecanismo para lidar como
o processo de destruição criadora: Esping-Andersen (1999, p. 123) comenta como
o modelo sueco de Rehn-Meidner “buscou deliberadamente acelerar o declínio de
empregos em indústrias não-competitivas de forma a realocar o trabalho nos setores
mais dinâmicos”. Finalmente, há os pontos de ligação entre o sistema de bem-estar
social com a construção dos sistemas de inovação. Essas ligações são bidirecionais.
Por um lado, há a direção do sistema de bem-estar para o sistema de ino-
vação: a) melhores condições de nutrição e saúde resultam em melhorias na
capacidade de aprendizado e na produtividade do trabalho – canais que estão
exaustivamente discutidos em trabalhos como WHO (2001) e UNDP (2001);
b) melhores condições educacionais, pré-requisito para os processos de learning-
by-doing e para a construção da capacitação social; c) melhorias nas condições de
trabalho, oferecendo mais segurança no trabalho, menos acidentes com reper-
cussões sobre capacidade produtiva e inovativa nos ambientes de produção; d)
redução do desemprego, expansão da demanda interna, com a clássica implicação
sobre as possibilidades de divisão de trabalho mais sofisticadas; e) instituições de
bem-estar razoavelmente construídas podem mitigar alguns custos do processo de
desenvolvimento, reduzindo os custos sociais do processo de destruição criadora,
ao viabilizar retreinamento e requalificação de trabalhadores ocupando posições
destruídas pelo processo de avanço tecnológico de forma a garantir novas posições
no mercado de trabalho; f) podem ainda contribuir para que o dinamismo tecno-
lógico seja fortalecido, auxiliando a mobilidade dos trabalhadores no sentido das
tarefas apontadas pelo processo de reposicionamento do trabalho (peso crescente
do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual); e g) melhoras na
distribuição de renda e sucessos na redução da pobreza contribuem diretamente
para o crescimento econômico.

12. A elaboração de Rosanvallon sobre o sistema de bem-estar francês atual (“Estado providência passivo”) pode ser compatibilizada com a
avaliação de Esping-Andersen, que inclui o caso francês entre os sistemas de bem-estar “conservadores” (Esping-Andersen, 1990).

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76 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

Por outro lado, há a direção do sistema de inovação para o sistema de bem-estar:


a) de forma bem geral, crescimento da produção e da produtividade são fontes de
melhoras no bem-estar; b) o progresso tecnológico pode ser uma ferramenta para o
aperfeiçoamento de condições de trabalho (automação de postos cujo trabalho produz
doenças ocupacionais, melhorias técnicas em ambientes de trabalho – menos ruído,
menos poluição etc.); c) a comunidade científica pode atuar como um “mecanismo
de focalização” (focusing device), contribuindo para a definição de metas que são
específicas ao país (por exemplo, o desenvolvimento de biotecnologia combinado
com pesquisas médicas sobre doenças prevalentes no país); d) projetos “orientados
por missão”: definidos em termos de soluções técnicas economicamente viáveis para
problemas sociais definidos (como sugerido por FREEMAN, 1996, em relação aos
problemas ambientais) – a questão da habitação pode ser prioritária aqui.13

5.1 Duas pequenas notas sobre essas relações bidirecionais


Em primeiro lugar, há uma inter-relação entre a dinâmica de criação de empregos e a
heterogeneidade existente nas condições de trabalho no Brasil – existem pessoas de-
sempregadas, parte do excedente estrutural de mão-de-obra – e pessoas com empregos
qualificados em setores de alta tecnologia. Essa enorme diferenciação é um espaço
significativo para uma expressiva mobilidade social para cima. Há inúmeras situações
onde empregos de baixo salário, precários, podem ser pontos de partida para processos
de inclusão. Mas como Esping-Andersen (1996, p. 25-26) enfatiza, não se pode perder
a natureza dinâmica do processo: “ (...) empregos de baixa qualidade podem se cons-
tituir em um problema de bem-estar marginal se eles são apenas empregos iniciais de
fácil acesso, empregos para recém-saídos das escolas ou para imigrantes. Esses empre-
gos se tornam um problema relevante se eles se tornam armadilhas de ciclos de vida”.
Esping-Andersen observa que “educação e qualificação são as melhores apostas para
as pessoas se movimentarem para empregos melhores” e conclui que “uma estratégia
de empregos de salários baixos pode ser reconciliada com eqüidade caso existam ga-
rantias de mobilidade e aperfeiçoamento” (p. 26). Há um pré-requisito para a oferta
de “educação e qualificação”: um bom sistema educacional, conectado com a infra-
estrutura científica para a permanente atualização da assimilação e da adaptação de
técnicas. Por sua vez, garantias de “mobilidade e aperfeiçoamento” para casos como o
brasileiro só podem vir de um processo de catching up bem-sucedido.14

13. Na construção dos sistemas de bem-estar nórdicos a questão da habitação ocupou um papel relevante (ver ESPING-ANDERSEN,
1985, cap. 6). Esping-Andersen descreve trajetórias divergentes entre a Dinamarca, a Suécia e a Noruega nessa questão. Barr (1998)
apresenta a questão da habitação como uma área incluída na temática dos sistemas de bem-estar.

14. Outras lições do caso sueco podem ser avaliadas aqui. Esping-Andersen (1996, p. 18) indica que a “via escandinava” foi bem-
sucedida no gerenciamento dos “excedentes de trabalhadores ´desindustrializados`, em sua maior parte desqualificados, através de
retreinamento e criação de empregos”.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 77

Em segundo lugar, o papel do setor saúde na moldagem do sistema de inovação


durante os processos de catching up. De novo, a referência é a sugestão de Freeman
sobre projetos orientados por missão, tomando questões relacionadas à saúde como
referência. Essa ênfase na saúde provavelmente é um passo inevitável, dada a realidade
internacional das doenças negligenciadas (ver o diagnóstico do hiato 10/90, realizado
pelo Global Forum for Health Research de 2002) e o mosaico epidemiológico que
caracteriza o Brasil (esse mosaico epidemiológico é perceptível a partir do mapa
1, seção II). Essa ênfase teria um impacto positivo na construção simultânea dos
sistemas de inovação e de bem-estar, na medida em que os sistemas de inovação da
saúde estão na intersecção desses dois arranjos institucionais.
Essa ênfase em saúde pode contribuir para estruturar um padrão de espe-
cialização da capacitação científica do país, impulsionando o Brasil em direção a
uma vantagem comparativa em disciplinas relacionadas à saúde (LATTIMORE;
REVESZ, 1996, p. 14). Esse padrão de especialização contribuiria para conter e
limitar o lado “marginalização” da polaridade identificada por Celso Furtado.
Em suma: o padrão de desenvolvimento tecnológico para escapar da polaridade
modernização-marginalização é aquele alimentado pela interação multifacetada
entre o sistema de inovação e o sistema de bem-estar social. Para essa construção
combinada, as instituições democráticas devem ser capazes de colocar esse tema
na agenda do país. Além disso, prioridades nacionais e alocação de recursos são
temas que podem e devem ser submetidos à discussão democrática. Certamente,
mecanismos apropriados para essas discussões precisam ser pensados.
Dessa forma, a inovação institucional que pode vir a caracterizar um processo
de catching up bem-sucedido no Brasil é uma estratégia de desenvolvimento que
democraticamente combina a construção do sistema de inovação e a do sistema
de bem-estar social.

6 CONCLUSÃO
A estratégia de construção combinada de um sistema de inovação e de um
sistema de bem-estar social no Brasil orienta um conjunto de mudanças quan-
titativas e qualitativas.
Este capítulo enfatiza a importância de uma expansão significativa de nossa
base técnico-científica. Esse crescimento expressivo é um enorme desafio, mas é
também fonte de oportunidades únicas para o país: esse crescimento quantitativo
pode ser realizado de forma a aprimorar qualitativamente a base técnico-científica
do país. Aliás, o aspecto qualitativo é essencial para viabilizar o necessário cresci-
mento quantitativo.

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78 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

A significativa expansão quantitativa apresenta importantes demandas


(pressões) sobre diversos componentes do imaturo sistema de inovação brasileiro.
Em primeiro lugar, sobre o sistema educacional em geral e o universitário em
especial (que depende do sistema educacional, evidentemente). Triplicar a infra-
estrutura científica implica uma demanda multiplicada por três sobre graduados
e pós-graduados.15 Certamente, para dar conta dessa multiplicação da dimensão
do ensino universitário, elementos consistentes de inclusão social já devem estar
em prática (por isso, este capítulo atribui tanta importância à articulação entre
a construção de um sistema de inovação e a construção de um sistema de bem-
estar social). Ao mesmo tempo, a mobilização dos necessários recursos públicos
e privados para tal expansão exige mudanças no setor financeiro e no Estado, de
forma a gerar nova capacidade de financiamento.
As mudanças quantitativas concentram-se em três frentes mais importantes:
a) triplicar a infra-estrutura científica e tecnológica para iniciar o processo de
catching up; b) multiplicar as atividades de P&D no setor produtivo; e c) renovar
a base tecnológica do país através do apoio ao surgimento de novas firmas.16 As
mudanças qualitativas mais gerais envolvem a superação da inadequação da tec-
nologia (discutida na seção 5) e o aproveitamento de janelas de oportunidades
decorrentes do surgimento de novos paradigmas (a entrada do país em setores
como saúde/biotecnologia, nanotecnologia e energias limpas qualifica a renovação
da base tecnológica mencionada acima). 17
A expansão quantitativa também oferece novas oportunidades, para: minorar
as desigualdades regionais; construir uma necessária diversidade no sistema de
inovação; e moldar um padrão de especialização científica de interesse do desen-
volvimento do país.
A expansão quantitativa deve ser pensada em termos de desconcentração
regional. Na medida em que há uma vontade política nacional para assumir os
compromissos em termos de ciência e tecnologia necessários ao desenvolvimento,
a significativa expansão quantitativa da base técnico-científica oferece a oportu-
nidade ímpar de preservar o crescimento absoluto em regiões líderes ao mesmo
tempo em que a expansão em regiões atrasadas se realize de forma a combinar o
crescimento em termos absolutos com o crescimento em termos relativos (outra

15. Essa meta (triplicar a infra-estrutura científica) é coerente com um dado sobre a educação universitária no país: a proporção da população
adulta (25 a 64 anos) com nível superior (em 2004) era de 8% no Brasil, enquanto a média da Organização para a Cooperação e o Desen-
volvimento Econômico (OCDE) alcançava 25%. Na Coréia do Sul essa proporção chega a 30% (Folha de S. Paulo, 12/11/2006, p. B4).

16. Esses elementos, em especial o maior envolvimento do setor privado com atividades de P&D, são características decisivas da transição
da fase 2 para a fase 3 da construção dos sistemas de inovação segundo o relatório da UNIDO (2005, p. 71).

17. A combinação entre essas mudanças qualitativas e quantitativas está mais desenvolvida em Albuquerque (2006).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 79

especificidade do processo brasileiro é a realização de um duplo processo de


catching up). Essa expansão quantitativa regionalmente distribuída deve ser discutida
considerando-se aspectos relacionados a especializações regionais específicas, que
devem contribuir para a construção de uma diversidade persistente no interior do
sistema de inovação brasileiro.
Assim, a expansão quantitativa pode ser oportunidade para a construção de
diversidade no sistema de inovação brasileiro. Dada a dimensão continental do Brasil,
há uma enorme gama de atividades que podem e devem ser desenvolvidas no país:
oportunidades oferecidas pela biodiversidade da região amazônica, plena de potenciais
articulações com a emergente revolução tecnológica da biotecnologia; oportunidades
oferecidas pela base industrial já construída nas regiões Sudeste e Sul; e oportuni-
dades de exploração de potenciais de novas fontes de energia em diversas regiões. O
subsistema setorial de inovação da saúde oferece outro exemplo importante do papel
da diversidade, pois o país precisa dar conta de um “mosaico epidemiológico”, que
envolve uma combinação incluída pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na
descrição/qualificação geral de “novos problemas e doenças persistentes”.
A expansão quantitativa da infra-estrutura científica, mais especificamente,
é uma oportunidade para a construção de um perfil de especialização científica de
mais interesse para o país. Uma das características do processo de catching up parece
ser uma combinação entre crescente especialização científica e desconcentração da
especialização tecnológica. Decisões de investimento em áreas definidas como priori-
tárias – definições que devem ser estabelecidas com o envolvimento da comunidade
científica – incidirão fortemente sobre o padrão de especialização científica do país.
Possivelmente, um fortalecimento de disciplinas relacionadas à saúde é necessário,
dado o seu efeito sobre dois problemas importantes para o país: a possibilidade de
aproveitamento de janelas de oportunidades em um paradigma tecnológico emergente
(biotecnologia) e o efeito decisivo sobre a superação da inadequação da tecnologia
(cuja solução envolve uma articulação entre o sistema de inovação e o sistema de
bem-estar social, conforme discutido na seção 5).
A combinação entre mudanças quantitativas e qualitativas ao longo do proces-
so de catching up sugere a importância de um elemento que é decisivo ao longo do
tempo: a flexibilidade institucional. O processo é dinâmico em várias dimensões. Em
primeiro lugar, a fronteira tecnológica internacional se movimenta. Em segundo
lugar, supondo-se que venha a ser bem-sucedido, o processo de catching up im-
pulsiona para adiante a capacitação tecnológica interna do país retardatário. Esses
dois movimentos impõem uma permanente metamorfose nas necessidades a serem
supridas para permitir a persistência do crescimento da capacidade de absorção.

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80 EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE

Do ponto de vista do processo de catching up em si, à medida que estágios


mais complexos de domínio tecnológico são alcançados, novas tarefas se apresentam.
Essas tarefas não podem ser desempenhadas pelas mesmas instituições de antes.
Se forem adicionadas a esse dinamismo interno as movimentações possíveis na
fronteira internacional, em função do surgimento de novos paradigmas (podendo
abrir novas janelas de oportunidade, que por sua vez poderiam ser melhor apro-
veitadas em função do melhoramento da capacidade de absorção implementada
internamente), tem-se um quadro mais completo da dinâmica multidimensional
do processo de catching up.
Finalmente, é necessário reiterar o caráter democrático do processo de construção
combinada do sistema de inovação e do sistema de bem-estar social no Brasil:
essa pode ser outra diferença básica entre o processo brasileiro de superação do
subdesenvolvimento e os processos de catching up anteriores. Estratégia que deve
ser construída em um amplo debate democrático. Possivelmente os mecanismos
democráticos devem ser aperfeiçoados e a qualidade do debate deve ser melhorada
para dar conta de decisões sobre prioridades de investimento, ritmos de crescimento,
articulação entre o público e o privado e inclusão social. Desenvolvimento envolve
ruptura com inércias, mobilização, mudança estrutural, reformas e destruição cria-
dora. A democracia e o contexto participativo são essenciais para a criatividade e a
experimentação necessárias para uma estratégia de desenvolvimento que combine
a construção de um sistema de inovação e um sistema de bem-estar social.

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Capítulo 4

ACUMULAÇÃO DE CAPITAL e crescimento econômico


no brasil: uma análise do período 1950-2006

Miguel Bruno*

1 INTRODUÇÃO

Cada sociedade tem a conjuntura


e as crises de sua estrutura.
Fernand Braudel

I think I paid too little attention to


the problem of effective demand.
Robert Solow

Este trabalho propõe uma análise das principais tendências do crescimento eco-
nômico brasileiro considerando-se seus determinantes de longo prazo, no período
1950-2006. A dinâmica desta economia, entre 1950-1980, foi particularmente
notável, com elevadas taxas de crescimento do produto interno bruto (PIB) e
de acumulação de capital. Em conseqüência, a renda per capita e o nível geral de
emprego mantiveram-se sob trajetórias de forte expansão, e o país pôde conso-
lidar sua base industrial, deixando para trás sua condição de economia primário-
exportadora.
No período pós-liberalização, novas oportunidades surgiram para o país
reencontrar uma nova trajetória de desenvolvimento. Mas apesar da estabilidade
de preços e das condições favoráveis do cenário internacional, a performance
macroeconômica brasileira tem permanecido muito abaixo da média histórica
(7% a.a.) e do que se espera para uma economia ainda em desenvolvimento.

* Assessor de Projetos Especiais – Crescimento e Desenvolvimento da Diretoria de Estudos Macroeconômicos do Ipea, professor adjunto
do Departamento de Evolução Econômica da FCE/Uerj e professor licenciado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/IBGE.

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86 MIGUEL BRUNO

Recentemente, a melhora no curto prazo de alguns indicadores macroeconômicos


tem sido interpretada como se já representasse a entrada da economia brasileira
em um longo período de crescimento econômico sustentável. No entanto, uma
investigação dos determinantes de longo prazo do crescimento revela uma baixa
propensão a investir do lucro médio e a permanência de taxas ainda muito baixas
de crescimento do estoque de capital fixo produtivo.
Uma ênfase especial é dada à acumulação de capital fixo produtivo, por várias
razões teóricas e empíricas. Primeiramente, trata-se da força motriz por trás do
crescimento econômico e da geração de emprego e de renda (STOCKHAMMER,
2004; AGLIETTA, 1999, 2001; HARRIBEY, 2003). Países que apresentam
baixo crescimento do estoque de capital fixo produtivo tendem a apresentar taxas
igualmente baixas de crescimento do produto e da ocupação. Por outro lado, a
pertinência dos debates sobre “capital humano”, “capital social”, “nova economia”,
“economia do conhecimento e da informação” não implica que a acumulação de
capital fixo tenha se tornado uma variável irrelevante. Como observara Kaldor,
desde que o capital fixo produtivo e as qualificações do trabalho são freqüente-
mente complementares e o progresso técnico manifesta-se em novas máquinas
e equipamentos, a acumulação de capital se torna uma precondição para que as
outras variáveis relacionadas com o crescimento econômico possam efetivamente
atuar em suas implicações econômicas e sociais.1
Apesar de permitir às economias em desenvolvimento o acesso rápido a
mercados internacionalizados e de alta liquidez, a globalização aprofundou a vul-
nerabilidade externa e a fragilidade financeira dessas economias. Em muitas delas,
como a brasileira, um padrão de crescimento econômico à dominante financeira
(ou, segundo a literatura econômica internacional, finance-dominated accumulation
regime ou finance-led growth regime) parece ter-se consolidado (STOCKHAMMER,
2007; BOYER, 1999; Coriat, 2006; Epstein; Gints, 1995). Todavia,
trabalhos empíricos recentes como os de Colletis (2005), Salama (2000), Bruno
(2006, 2007) mostram que a financeirização na qual este tipo de regime está baseado
pode explicar parte significativa da queda da taxa de acumulação e, conseqüen-
temente, das trajetórias de baixo e instável crescimento econômico que marcam
as performances dessas economias no período pós-liberalização. Regimes do tipo
finance-led growth não são em geral capazes de garantir taxas altas e sustentáveis
de crescimento da renda per capita, porque isto implicaria que os proprietários de
capital aceitassem abrir mão da elevada rentabilidade e da liquidez proporcionada

1. A acumulação de capital fixo produtivo ainda aparece como o principal determinante do crescimento em análises comparativas (por
exemplo, em Boyer, 2000a; Stockhammer, 2004, 2007; Maddison, 2005).

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 87

por ativos de curto prazo conectados à dívida pública, em favor de imobilizações


ou ativos reais que, embora diretamente produtivos e relevantes do ponto de vista
social, tendem a apresentar maiores riscos e menor rentabilidade.
O crescimento do estoque de capital fixo produtivo, e não apenas seu conteúdo
tecnológico, é fundamental para os ganhos de produtividade do trabalho com
expansão da ocupação. Isto explica por que uma sociedade em que a intensidade
do capital (capital intensity ou capital deepening) se aprofunda tende a apresentar
padrões de vida mais elevados. Conseqüentemente, a promoção da acumulação
de capital produtivo, e não apenas o controle da inflação, deveria integrar-se às
estratégias de uma política econômica compatível com o desenvolvimento econô-
mico nacional. Economistas neoliberais argumentam que a acumulação de capital
é melhor promovida pelas forças de mercado, desde que estas possam contar com
instituições eficientes ou marcos regulatórios apropriados. Todavia, é no período
de liberalização comercial e financeira, que economias como a brasileira apresentam
as mais baixas taxas de acumulação de capital fixo produtivo de toda a sua his-
tória industrial (BRUNO, 2005, 2007). Apesar disso, esta variável fundamental
tem sido freqüentemente abstraída nos debates acerca do sucesso de um modelo
econômico e nas avaliações da política econômica que o pressupõem. Em geral,
são enfocadas e publicadas estatísticas sobre taxas de investimento, que são fluxos
e nada dizem sobre o estoque de capital efetivamente disponível já acumulado e
sobre sua taxa de crescimento.
Este trabalho está estruturado da seguinte maneira: a seção 2 explicita o
marco teórico e metodológico que fundamenta a abordagem empírica. A seção 3
propõe uma análise dos determinantes das taxas de lucro e de acumulação, em
seus vínculos estruturais com a distribuição primária da renda. A seção 4 recupera
os resultados e a periodização encontrados em outras análises empíricas sobre os
regimes de crescimento no Brasil, relacionando-os com os obtidos neste estudo.
A seção 5 faz uma síntese dos principais resultados.

2 MARCO TEÓRICO-METODOLÓGICO
As teorias do crescimento econômico são, em geral, unânimes em atribuir um
papel fundamental para a acumulação de capital enquanto variável explicativa das
tendências de expansão do produto e da renda. Mas divergem quando se trata de
reconhecer que a forma como o produto é distribuído entre os diferentes setores
ou classes sociais de produção condiciona decisivamente o ritmo de acumulação e de
crescimento econômico. Foram os economistas clássicos os primeiros a perceber que
o conflito distributivo e a acumulação de capital estavam no centro da problemática

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acerca das origens e das causas da riqueza das nações. Embora seduzido no plano
teórico pelos automatismos da lei dos mercados de Say, Ricardo fora capaz de
compreender que o processo de crescimento econômico poderia ser obstado se a
distribuição do produto terminasse por reduzir a taxa geral de lucro da indústria
e, em conseqüência, a taxa de acumulação.
Em termos analíticos, o processo de acumulação desdobra-se em três mo-
mentos cujas regularidades macroeconômicas subjacentes se caracterizam por graus
significativos de autonomia relativa: a produção, a distribuição e o consumo. O
problema da demanda efetiva, detectado por Malthus e posteriormente teorizado
por Keynes em suas implicações macroeconômicas fundamentais, decorre preci-
samente das tendências à dissociação, no tempo e no espaço, dessas três esferas
do sistema econômico. Nesta perspectiva analítica, os regimes de crescimento
ou de acumulação surgem como o resultado de um conjunto de regularidades
macroeconômicas que asseguram uma progressão geral e relativamente coerente
da acumulação de capital (BOYER; SAILLARD, 2002). Conseqüentemente, esta
noção tem por objetivo descrever as evoluções conjuntas, e por um longo período,
das condições de produção (produtividade do trabalho, grau de automação,
importância relativa dos diferentes setores da economia) com as condições que
respondem pelo uso social do produto (consumo das unidades familiares, gastos
do governo, comércio exterior).
Neste contexto, destacam-se os modelos que buscam uma síntese das con-
tribuições de Keynes, Kalecki e Kaldor e que são normalmente conhecidos como
pertencentes à abordagem neo-estruturalista. Um rótulo que na realidade pode
abrigar diversos tipos de análise e concepções teóricas que se afastam deliberada-
mente da visão neoclássica e de suas variantes contemporâneas. Tais modelos buscam
articular a dinâmica da demanda efetiva com a lógica do conflito distributivo
inerente à relação capital-trabalho ou à distribuição primária da renda em contas
nacionais. A análise dos determinantes das taxas de lucro e de acumulação de capital
é considerada nesta perspectiva e corresponde à primeira etapa de uma abordagem
neo-estruturalista do crescimento econômico brasileiro. Operacionalmente, busca-se
destacar os principais fatos estilizados relacionados à acumulação de capital e ao
crescimento econômico no longo prazo. Proposta por Kaldor (1961), esta noção
refere-se a uma constatação de ordem empírica, necessária ao confronto da teoria
utilizada com os dados das economias reais. Nas palavras desse autor, “o teórico
da economia deveria começar por um resumo dos fatos estilizados que se supõe
sejam explicados pela teoria”. Para Kaldor, a análise deveria tentar detectar os tipos
de regularidades subjacentes aos fenômenos observados empiricamente e então

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 89

descobrir quais hipóteses particulares e testáveis estariam aptas a explicar as associações


encontradas entre as variáveis.2
Uma das hipóteses mobilizadas nesta análise é a de que o baixo dinamismo da
economia brasileira no período pós-liberalização decorre de fatores específicos do
regime de acumulação que emergiu das transformações estruturais dos anos 1990.
Um modo alternativo de apreender a problemática resultante consiste numa abor-
dagem em termos de função de progresso técnico de Kaldor (FPT). Segundo Kaldor
(1961), o progresso técnico mensurado pela dinâmica dos ganhos de produtividade
depende do ritmo de acumulação de capital. A taxa de crescimento do produto
por trabalhador aumenta com a taxa de crescimento do capital por trabalhador,
mas a taxas decrescentes. Como observa Arrous (1999, p. 154), a FPT é, após a
crítica da ausência de uma função investimento, o segundo elemento crítico, par-
ticularmente conseqüente, que Kaldor empreende contra a teoria neoclássica do
crescimento. Esta última recorre às funções de produção com fatores substituíveis
e progresso técnico neutro para medir as contribuições dos fatores de produção
ao crescimento econômico.
Conforme Kaldor, a conseqüência direta dessa nova démarche seria a irrelevância
das noções de função de produção e a inconsistência das teorias que explicam
os preços dos fatores de produção (ou de suas parcelas na repartição) segundo o
princípio da produtividade marginal. Para representar graficamente a função de
progresso técnico, distingue-se entre a posição e a forma da curva correspondente.
A posição é obtida supondo-se que certos acréscimos de produtividade poderiam
existir mesmo se o capital por trabalhador, a intensidade do capital (K/N), per-
manecesse constante. Há certo número de inovações, por exemplo, de melhorias
organizacionais, que permitem elevar a produção sem investimento suplementar
em capital fixo. Com relação à forma da curva, o crescimento da produtividade
vai depender da taxa de crescimento do estoque de capital fixo produtivo, com a
curva sendo crescente a taxas decrescentes.
A FPT está representada no gráfico 1. Em termos globais, esta curva reflete,
nas palavras de seu criador, “o grau de dinamismo técnico da economia no sentido
amplo” (KALDOR, 1978, p. 10). Nos períodos onde se observam inovações técnicas
e organizacionais, a curva é deslocada para cima, mantendo-se constante a inten-
sidade do capital. E no caso de fraca absorção de progresso técnico, move-se para
baixo. Sua convexidade traduz, em cada ponto, em que medida um investimento

2. Segundo Kaldor (1978, p. 17-18), “esta abordagem é, por um lado, de um alcance mais modesto (pois não visa explicações que derivam
de um modelo global do sistema, mas é igualmente mais ambiciosa, já que busca diretamente descobrir soluções (ou remédios) para
problemas reais”. Para mais detalhes, ver Kaldor (1987), que traz uma coletânea dos seus principais artigos concernentes à problemática
do crescimento e da estabilidade macroeconômica.

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engendra ganhos de produtividade. Até o ponto P, de interseção da curva de


progresso técnico com a reta de 45º, a taxa de crescimento da produtividade é
maior do que a taxa de acumulação de capital. Neste caso, variações na taxa de lucro
impulsionarão a taxa de acumulação em direção a P, através de novos investimentos.
Além de P, a taxa de acumulação supera a taxa de crescimento da produtividade,
configurando um padrão de rendimento decrescente.3 No ponto P, a razão capital/
produto (K/Y) é constante, pois o produto e o estoque de capital fixo teriam ambos
a mesma taxa de crescimento.

Outra questão relevante para completar o marco teórico-metodológico esco-


lhido refere-se às mudanças estruturais, pois estas podem implicar o surgimento
de novos regimes de crescimento econômico ou então a crise do regime vigente.
Neste contexto, não se postula, a priori, a existência de uma dinâmica estabilizada,
visto que há a possibilidade de incoerência entre as dinâmicas inter-setoriais ou
das estruturas institucionais que suportam o processo de acumulação de capital.
Um princípio de transformação estrutural pode então ser mobilizado: trata-se do
endometabolismo que traduz a interdependência entre o funcionamento e o de-
senvolvimento das estruturas de produção e de demanda. Como observa Lordon
(1994), a mudança estrutural endógena significa que de seu próprio funcionamento
a estrutura retira as forças motrizes de seu desenvolvimento. Assim, o endometabo-
lismo é o processo pelo qual o funcionamento da estrutura altera a própria estrutura.
O simples fato de um sistema econômico evoluir no tempo e no espaço pode ser

3. Conforme Gaffard (1997, p. 186), isto decorreria de um tipo de lei de rendimentos decrescentes cuja justificação permaneceria
estritamente formal, isto é, a demonstração da existência de um equilíbrio, neste caso, no ponto P.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 91

motivo suficiente para a sua transformação e crise, sem necessidade nenhuma da


influência de fatores desestabilizadores exógenos, tais como choques de oferta ou
de demanda. Em conseqüência, um determinado regime de acumulação pode
atravessar tanto crises cíclicas quanto estruturais, freqüentemente interpretadas
como um resultado de seu próprio sucesso.

3 LUCRO E ACUMULAÇÃO DE CAPITAL: OS DETERMINANTES DE


LONGO PRAZO
A busca do lucro é a força-motriz nas economias capitalistas e por esta razão a
taxa de lucro surge como uma variável-chave nas análises sobre os padrões ou
regimes de acumulação de capital e de crescimento econômico. Nas abordagens
neo-estruturalistas propostas por Uemura (2000), Boyer (2000a, 2006b), Bowles e
Boyer (1990, 1995), a taxa de lucro é considerada um dos principais determinantes
de longo prazo da taxa de acumulação e do ritmo de crescimento econômico.

3.1 A taxa de lucro e seus componentes


Uma fórmula básica para o cálculo da taxa de lucro médio ou macroeconômico
(r) é derivada das contas nacionais da seguinte maneira:4

Π PY
Seja: r = . (1)
K PK

Π  Y   Y pot   PY 
r =   .  . . (2)
 Y   Y pot   K   PK 

Os símbolos correspondem às seguintes variáveis: P = lucro bruto macroeco-


nômico; Y = PIB; Ypot = PIB potencial; K = estoque de capital fixo produtivo (máquinas
e equipamentos mais construções não-residenciais); PK = preços dos bens de capital
ou deflator implícito da formação bruta de capital fixo (FBCF) e PY = preços do
produto final ou deflator implícito do PIB. Substituindo-se as respectivas razões-
componentes por letras gregas minúsculas:

r = π . u .β . p (3)

A taxa de lucro r surge como função da profit-share p, da taxa de utilização


da capacidade produtiva instalada u, da razão produto potencial/estoque de capital

4. A formulação usada é uma versão modificada da proposta por Uemura (2000).

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fixo produtivo b e da razão entre os preços do produto e os preços do capital p. Se


 w 
for considerado que π = 1 −  = 1 − w , onde w é o salário médio real e PRL
s

 PR L 

é a produtividade do trabalho, então ws é a wage-share ou parcela salarial no PIB.


Conseqüentemente, r = (1 – ws).u.b.p = p.u.b.p. Tomando-se os logaritmos nepe-
rianos em ambos os lados e derivando-se, obtém-se a equação em taxas de variação:
    
r =π + u +β + p (4)

A tabela 1 mostra a taxa de lucro macroeconômico (lucro bruto total), a preços


correntes, em nível e em taxas médias de variação por período. As mudanças em
seus componentes também podem ser observadas conforme a equação (4). A
periodização utilizada foi efetuada através dos testes de estabilidade estrutural do
CUSUM,5 de acordo com a metodologia e as especificações econométricas usadas
em Uemura (2000), para o caso da economia japonesa, e em Bruno (2005), para
o caso da economia brasileira e expressam a existência de diferentes padrões ou
regimes de crescimento e de acumulação de capital.6 Embora sem utilizar a mesma
metodologia de periodização proposta nesta análise, Marquetti (2005) também
oferece estimativas das taxas de lucro e de acumulação de capital vigentes no Brasil
no período 1953-2003.
TABELA 1
Determinantes da taxa de lucro macroeconômico – 1950-2006
(Em %)

    
Períodos Taxa de lucro macroeconômico (r) r π u β p

1950-1962 42,29 –5,92 –0,92 0,11 –2,58 –2,57


1966-1980 31,32 –0,72 0,71 0,38 –1,05 –0,87
1984-1993 14,26 –2,87 –0,88 0,25 –1,07 –1,19
1996-2006 19,23 2,06 0,99 0,28 0,64 0,17

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Ipeadata e Marquetti
(2003).
Nota: Variáveis em taxas médias percentuais por período. r é a taxa média de lucro; p é a profit-share; u é a taxa de utilização
da capacidade produtiva instalada; b é a razão produto potencial/estoque de capital fixo produtivo e p é a razão entre os
preços do produto e os preços dos bens de capital.

Os dados mostram que as taxas médias de lucro foram muito altas no primeiro
e segundo períodos, respectivamente, 42,29% e 31,32%. Juntos eles incluem o

5. Cumulative Sum (CUSUM) e Cumulative Sum of Square (CUSUMSQ).


6. O procedimento consiste em se verificar em quais períodos as relações estimadas para os determinantes do investimento, da poupança
agregada e do saldo externo revelaram-se estruturalmente estáveis. Obviamente, outras variáveis explicativas poderiam ser acrescentadas,
sobretudo, para que o fenômeno financeiro fique explícito em seus efeitos sobre a taxa de acumulação de capital fixo produtivo.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 93

Plano de Metas (1955-1961), o I PND (1972-1974) e o II PND (1975-1979).


As taxas médias de crescimento do PIB também foram elevadas: 7,44% ao ano
(a.a) e 8,49% a.a., respectivamente, refletindo, como será visto mais adiante, as
altas taxas de acumulação de capital fixo observadas nesses períodos. Observe-se
que no período 1966-1980, apesar de a taxa de lucro já estar em declínio médio
de 0,72% a.a., p permanece sob crescimento médio de 0,71% a.a.
Na passagem para o terceiro período, 1984-1993, a taxa média de lucro é
menos da metade da observada durante o regime de alto crescimento do segundo
período, permanecendo em queda média anual de 2,87%. A parcela dos lucros
no PIB (p) declina em 0,88 a.a. e a razão preços do produto/preços do capital tem
queda média anual de 1,19% (p), expressando a elevação dos preços relativos dos
bens de investimento com conseqüente deterioração da rentabilidade dos capitais.
Portanto, a esta época, o declínio forte e tendencial da taxa geral de lucro já
assinalava a entrada da economia brasileira em um longo período de dificuldades
macroeconômicas e estruturais.
Uma formulação alternativa consiste em se tomar a divisão do produto total
Y em lucro bruto, P; renda de juros ou carga financeira J; salários W e carga fiscal
T, isto é, Y = P + J + W + T. Em outros termos, trata-se de analisar o modo como
o valor adicionado total é distribuído entre os principais setores ou classes sociais
envolvidas no processo de produção: o setor diretamente produtivo, o setor finan-
ceiro, os trabalhadores assalariados e o setor público.
Dividindo-se ambos os membros da equação por Y, tem-se que
Π W J T
=1− − − e considerando-se que a massa salarial é dada por
Y Y Y Y
W
= w PRL e dividindo-se os dois membros pelo estoque de capital fixo produ-
Y
tivo K, chega-se à taxa média de lucro empresarial:

 w J T
r = PRK 1 − − −  onde PRK é a produtividade do capital. (5)
 PRL Y Y 

Embora algebricamente simples, a equação (5) combina variáveis cujas inter-


relações são de fato complexas, sobretudo, em suas implicações no plano macroe-
conômico.7 A relevância desta formulação é que ela torna explícita a dependência

7. Esta formulação é válida no plano micro e setorial, mas isto não significa que se devam interpretar todas as regularidades macro-
econômicas como simples agregação de comportamentos individuais ou a mera extensão das regularidades micro, como o fazem as
análises macroeconômicas derivadas da teoria econômica neoclássica.

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da taxa de lucro do setor produtivo com relação às parcelas do valor adicionado


apropriadas sob a forma de salários, ganho financeiro e receita líquida do governo,
além dos efeitos dos ganhos de produtividade do capital e do trabalho. Fica claro
então que a taxa de lucro é uma variável dependente da questão distributiva.
A tabela 2 apresenta os valores das variáveis da equação (5) considerando-se a
versão mais simples dessa relação, ou seja, sem a carga financeira e a carga fiscal,
que representam outras duas formas de apropriação do produto total numa economia
moderna. Pode ser constatado que no segundo período de alto crescimento econômico
1966-1980, os ganhos de produtividade do trabalho (PRL) foram muito elevados,
garantindo a estabilidade da taxa real de lucro num valor médio de 24,01%.

TABELA 2
Taxa real de lucro, produtividade e salário médio real – 1950-2006
(Em %)

   
Períodos Taxa real de lucro macroeconômico (r) r PRk w PRL Wage-share ws

1950-1962 28,59 –3,33 –2,46 5,32 4,28 1,04


1966-1980 24,01 0,09 –0,65 3,95 4,75 –0,80
1984-1993 15,17 –1,64 –0,81 1,31 0,38 0,93
1996-2006 18,32 1,93 0,93 –0,21 1,04 –1,25

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Ipeadata e Marquetti
(2003).
Nota: Variáveis a preços constantes de 2006.

Destaque-se que, no período 1996-2006, a parcela salarial no PIB (wage-share


w ) apresenta-se em queda média anual de 1,25%. Um ritmo de queda 56% maior
s

do que o observado no período 1966-1980, que inclui o “milagre econômico”


brasileiro e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), tradicionalmente
reconhecidos como períodos antidemocráticos e de vigência de modelos concen-
tradores de renda. Os fatores que explicam a recuperação da taxa de lucro a preços
correntes são provenientes das variações positivas de seus componentes p, u, b e p
descritos na tabela 1.8 Pela equação (5) para a taxa real de lucro macroeconômico,
a tabela 2 confirma que o fator principal dessa recuperação da rentabilidade do
capital fixo produtivo no período pós-Real e pós-liberalização foi o declínio da
parcela salarial, provocado pelos ganhos de produtividade do capital e do trabalho
com queda concomitante do salário médio real (–0,2% a.a.). Conseqüentemente,

8. Belluzzo e Almeida (2002) fazem uma análise bastante instrutiva das intervenções do Estado brasileiro com o objetivo de restaurar a
lucratividade do capital no início dos anos 1990. Os autores iniciam a abordagem nos anos 1980, época em que a crise fiscal do Estado
tornou-se explícita, e tanto a taxa média de lucro como a taxa de acumulação de capital apresentavam-se em queda tendencial.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 95

a queda tendencial da taxa de lucro foi superada, neste regime, através do aumento da
concentração funcional da renda.9
Estas evidências sugerem que o atual regime de acumulação e o tipo de inserção
internacional que o Brasil escolheu para participar do processo de globalização,
tem sido desfavorável aos salários e ao emprego, mas muito favorável aos lucros.
Se ao menos estas regularidades macroeconômicas estivessem impulsionando a
taxa de acumulação de capital e, conseqüentemente, o crescimento econômico,
seus efeitos adversos no plano social poderiam ser parcialmente compensados a
médio ou longo prazos.10 A economia brasileira seria então capaz de reduzir mais
rapidamente suas taxas de desemprego e recompor as perdas salariais impostas
pelos ajustes estruturais e macroeconômicos inerentes à opção por uma inserção
do tipo neoliberal no processo de internacionalização dos capitais.

3.2 A taxa de acumulação e seus determinantes


A taxa de acumulação de capital, dada pelo crescimento do estoque de capital
fixo, pode ser formulada de maneira a explicitar suas interdependências com a
taxa de lucro e com a proporção investida dos lucros empresariais. Esta, por sua
vez, depende não apenas do nível, mas também da composição da poupança das
empresas. Uma parte dos lucros é distribuída aos proprietários do capital e então
consumida ou acrescentada à poupança das famílias. Outra parte, os lucros retidos
ou não distribuídos, comporá a poupança das empresas, de acordo com as Contas
Nacionais. Todavia, num ambiente macroeconômico caracterizado pela existência
de uma multiplicidade de produtos e serviços financeiros alternativos à alocação
diretamente produtiva dos capitais, não é certo que a totalidade da poupança das
empresas se destine necessariamente à FBCF.
Bacha e Bonelli (2004) constataram que a queda da taxa de acumulação de
capital na economia brasileira não poderia ser satisfatoriamente explicada pela
queda da taxa de poupança, já que a magnitude desta última, no período de alto
crescimento econômico, não estaria muito afastada dos atuais níveis observados.
Um dos resultados desse interessante estudo de base neo-estruturalista enfatiza o
aumento dos preços relativos do investimento como causa da queda da taxa de
acumulação de capital, e então do baixo crescimento do produto. Todavia, esta
análise não considera as especificidades das relações entre acumulação rentista-
financeira e acumulação de capital fixo produtivo que marca a economia brasileira

9. Os resultados encontrados por Pochmann et al. (2004) são relevantes para essa análise, pois atestam também a excessiva concentração
do estoque de riqueza na economia brasileira e não apenas a conhecida concentração em termos de fluxo (renda).
10. A exemplo dos casos da economia chinesa, indiana e coreana. Para maiores detalhes concernentes às características dos atuais
regimes de crescimento pós-fordistas, que marcam o período atual de globalização, ver Petit (2003).

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96 MIGUEL BRUNO

desde os anos 1980. Considerando-se que a hipótese de neutralidade da moeda


carece tanto de fundamentos teóricos consensuais quanto de evidência empírica
convincente, seria um fato estilizado curioso se a economia brasileira pudesse
apresentar taxas elevadas de acumulação de capital fixo produtivo (e crescimento
econômico sustentado) com as taxas de juros reais que tem proporcionado aos
detentores de capital.11 Portanto, uma economia pode estar evoluindo através de
um regime de crescimento que, apesar de garantir alta rentabilidade aos capitais,
não é capaz de estimular novos investimentos que permitiriam manter elevada a
taxa de acumulação e, conseqüentemente, o crescimento econômico de maneira
sustentada no longo prazo.
Quando essas alternativas são generalizadas, inclusive com a possibilidade de
aquisição de ativos financeiros fora do espaço econômico nacional, as firmas do setor
produtivo tenderão a restringir a parte da poupança alocada em formação de capital
fixo, porque podem valorizar seus capitais diretamente na circulação monetária e
financeira sem a necessidade de grandes imobilizações. Esse processo é classificado
pela literatura econômica internacional como financeirização (financialisation) e a
carência de estudos sobre o tema no Brasil e a resistência em apreendê-lo como
um problema macroeconômico têm sido de fato muito grandes. Outra implicação
da generalização das alternativas financeiras à alocação diretamente produtiva
das poupanças das empresas e das famílias é que o baixo ritmo de crescimento
econômico não é satisfatoriamente explicado por insuficiência de poupança e sim
por sua composição. Parte substancial da poupança agregada pode estar sendo
simplesmente esterilizada em alocações financeiras muito pouco conectadas às
atividades diretamente produtivas e que permitiriam expandir o emprego e a
renda nacional.
Uma fórmula básica para se analisar os determinantes da taxa de acumulação
 I
de capital fixo pode ser obtida da seguinte maneira: seja g = K = , onde I e
K
K são, respectivamente, o investimento e o estoque de capital fixo produtivo. Se
dividirmos a taxa de acumulação g pela taxa de lucro r obteremos a proporção do
lucro médio ou macroeconômico que está sendo efetivamente investida, isto é,
g I I
alocada em ativos fixos: = K = . Podemos então escrever g como função
r Π Π
K
11. Destaque-se que as taxas de juros reais pagas pela economia brasileira no período pós-Plano Real e pós-liberalização comercial e
financeira permaneceram entre as mais altas taxas do mundo. De um ponto de vista teórico, poder-se-ia mesmo duvidar da qualidade
da estabilidade ou do equilíbrio macroeconômico alcançado nessas condições de elevado custo de uso do estoque de capital fixo
produtivo do país. Melhor seria se dizer que a economia brasileira alcançou sua estabilidade financeira e de preços, que é apenas uma
condição necessária, mas não suficiente para a estabilidade no sentido macrodinâmico, sobretudo no que concerne à sustentabilidade
do crescimento econômico no médio e longo prazos.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 97

da proporção da poupança empresarial que efetivamente financiou os gastos em


FBCF g e da taxa de lucro r, definida conforme a versão mais simples da equação (5).
I  I   rw 
Tem-se então que g =   . r =   . PRK 1 −  . Considerando a proporção
Π Π  PRL 
I  rw 
investida do lucro médio ou macroeconômico γ = e que o termo 1 − 
Π  PRL 
corresponde à profit-share p, a taxa de acumulação de capital fixo será dada por:

g = γ . PRK . π (6)

ou por:

g = γ. r (6’)
   
Em taxas de crescimento tem-se que g = γ + P R K + π .
A equação (6) mostra que a propensão média a investir do lucro macroe-
conômico, juntamente com a produtividade do capital e a distribuição do valor
adicionado em favor dos lucros determinam o ritmo de acumulação de capital fixo
produtivo. Mais uma vez a questão distributiva surge como central nos vínculos
entre lucro e acumulação.12 Em situações normais para uma economia capitalista
industrializada, as taxas de lucro e de acumulação devem compartilhar uma ten-
dência de evolução comum, já que a elevada rentabilidade do capital produtivo,
ou o aumento da profit-share, leva a um aumento da taxa de acumulação de capital
fixo. Econometricamente, diz-se que essas variáveis são co-integradas, expressando a
existência de uma relação de equilíbrio de longo prazo entre taxa de lucro e taxa de
acumulação. Todavia, pela equação na forma (6’) pode-se apreender que a influência
da taxa média de lucro sobre a taxa de acumulação de capital fixo é mediada pela
propensão a investir dos lucros. Isto significa que é possível a existência de regimes
de crescimento que, embora apresentem taxas elevadas de lucro macroeconômico,
as taxas de acumulação de capital podem ser proporcionalmente muito baixas.
As próximas etapas desta análise procuram mostrar que este é exatamente o caso
do atual regime de crescimento vigente na economia brasileira pós-Plano Real e
pós-liberalização.

12. Como observa Lipietz (1987, p. 99), “as formas de repartição do valor adicionado estabelecem uma nova contradição: muito
salário e não muita acumulação; ou muitos lucros e não muita demanda. Este é o problema fundamental da regulação da relação
capital-trabalho”.

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98 MIGUEL BRUNO

Dispondo-se de informações sobre cada uma das variáveis envolvidas na


equação (6), pode-se construir a tabela 3, com as mudanças nos componentes
da taxa de acumulação bruta total em capital fixo (incluindo-se as construções
residenciais). Se forem considerados os dados sobre a renda de juros ou carga
financeira (proporção do PIB absorvida em juros), além da carga fiscal, pode-se
substituir a taxa de lucro bruto total pela estimativa da taxa média de lucro em-
presarial.13 Basta considerar uma extensão da formulação (6), mas deduzindo-se
os fluxos de juros sobre o produto e a carga fiscal líquida, de modo análogo ao
procedido para a taxa de lucro.
TABELA 3
Taxa bruta de acumulação de capital fixo total e seus determinantes – 1950-2006
(Em %)

    
Períodos Taxa bruta de acumulação de capital fixo (g) g γ PRk π r

1950-1962 13,24 –4,71 -–1,19 –2,46 –0,92 –3,33


1966-1980 12,19 1,77 1,65 –0,65 0,71 0,09
1984-1993 5,99 –2,56 –0,86 –0,81 –0,88 –1,64
1996-2006 5,55 0,23 –1,70 0,93 0,99 1,93

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Ipeadata e Marquetti
(2003).
Nota: A taxa de acumulação de capital fixo total inclui as construções residenciais.

Observe-se que, no período 1996-2006, apesar de a taxa média de lucro


apresentar-se em ascensão (1,93% a.a.), este fato não é suficiente para elevar a taxa
bruta de acumulação de capital fixo total, que se encontra praticamente estagnada,
com um crescimento médio de apenas 0,23% a.a. A causa básica reside na baixa
propensão a investir dos lucros g, cuja queda média (1,70% a.a.) é a maior de todos
os períodos precedentes. Trata-se de um sinal inequívoco da existência de fatores
estruturais que desestimulam a alocação diretamente produtiva da poupança das
unidades produtivas. Por outro lado, no período precedente de alto crescimento
econômico, 1966-1980, g apresenta-se sob crescimento médio de 1,65% a.a.
Essas evidências mostram que a elevada rentabilidade do capital fixo produtivo
alcançada pela economia brasileira no período pós-Plano Real e pós-liberalização
não foi condição suficiente para que o país reencontrasse uma nova trajetória de
crescimento econômico forte e sustentado. Outras condições devem ser buscadas
nos arranjos institucionais que suportam o modelo econômico e na política eco-
nômica que o pressupõe, ou seja, nas estruturas de produção e de distribuição do
atual regime de acumulação e de crescimento econômico.

13. Os lucros brutos empresariais são obtidos deduzindo-se os juros do lucro total.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 99

3.3 A desconexão entre lucro e acumulação no período pós-liberalização


Segundo Stockhammer (2004), o novo padrão de crescimento empresarial baseado
na shareholder-dominated firm implica uma nova combinação crescimento-lucro na
qual as firmas buscarão lucros maiores às expensas do crescimento ou da expansão
de suas atividades. As firmas poderiam crescer mais rapidamente através de seu
acesso às finanças, mas elas preferem não fazê-lo porque isto implica uma redução
da lucratividade do capital. Este fenômeno afeta a gestão das firmas diretamente
produtivas e as induz a buscarem retornos financeiros mais elevados, reduzindo o
grau de imobilização do capital. Como visto mais anteriormente, isto é possível
em razão da difusão, em escala internacional, de uma multiplicidade de produtos
e serviços financeiros que competem em condições muito mais vantajosas com
os ativos diretamente produtivos, tanto em termos de risco, quanto em liquidez e
rentabilidade das inversões.
O gráfico 2 complementa essas informações plotando a proporção investida
do lucro macroeconômico g em nível, juntamente com a evolução da parcela dos
lucros no PIB. Constata-se que g, a proporção investida do lucro médio, está em
uma trajetória de declínio desde 1975. A partir de 2004, observa-se crescimento
dessa razão,14 mas seu nível ainda permanece 40% inferior ao nível médio observado
durante o regime de alto crescimento econômico de 1966-1980, quando essas
variáveis mantinham-se positivamente correlacionadas. De qualquer modo, outros
indicadores complementares são necessários para confirmar se a propensão média
a investir dos lucros na economia brasileira está efetivamente entrando numa nova
e estável trajetória de expansão ou se se trata apenas de um ciclo curto dependente
de fatores exógenos, como o ambiente internacional mais favorável.
Essas constatações empíricas são reforçadas pela análise do gráfico 3, em
que e se podem observar os comportamentos de longo prazo das taxas de lucro e
das taxas de acumulação de capital fixo bruto total (g) e de capital fixo produtivo
líquido de depreciação (gprod). Observe-se que entre 1951-1992, r e g compartilham
uma tendência de evolução comum sinalizando que as decisões de investimento
permaneciam fortemente influenciadas pela rentabilidade do capital fixo, pois as
taxas de lucro estão positivamente correlacionadas às taxas de acumulação. Todavia,
a partir de inícios dos anos 1990, o comportamento dessas variáveis é nitidamente
diferente, pois a taxa de lucro macroeconômico segue em uma trajetória de ex-
pansão, mas agora se desconecta da taxa de acumulação de capital fixo produtivo
líquido. Nos três últimos anos das séries em questão, 2004, 2005 e 2006, a taxa

14. Que responde pelas taxas mais elevadas de FBCF a partir de 2004.

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100 MIGUEL BRUNO

bruta de acumulação de capital fixo total (que inclui as construções residenciais)


parece ter-se reconectado à evolução da taxa de lucro. No entanto, o mesmo não se
pode dizer da taxa de acumulação de capital fixo produtivo (que considera apenas
os estoques em máquinas e equipamentos mais as construções não-residenciais)
que permanece praticamente estagnada no patamar de 2% a.a.15

As análises das condições estruturais do crescimento econômico de longo


prazo, no Brasil, e de sua sustentabilidade devem então encontrar as causas para
essa desconexão. Um ponto de partida teoricamente pertinente consiste em
considerá-las como um resultado inerente às características do atual regime de
acumulação. Essas características derivam dos arranjos institucionais que estão na
base do atual modelo econômico: uma forma de inserção internacional excessiva-
mente liberal para uma economia industrializada, mas ainda em desenvolvimento
e do tamanho da brasileira, sobretudo, no que concerne aos fluxos de capitais
especulativos; baixa autonomia da política econômica e sua subordinação às ex-
pectativas dos operadores da alta finança; fraca conexão dos salários aos ganhos
de produtividade, inviabilizando uma expansão sustentada da demanda efetiva e
reproduzindo as condições de elevada concentração funcional da renda.
Na próxima seção, são reunidos alguns dos resultados de trabalhos empí-
ricos recentes sobre as transformações dos regimes de crescimento na economia
brasileira.

15. Uma análise econométrica proposta em Bruno (2006) revela que essas variáveis permaneceram co-integradas no período 1950-1993.
Além disso, os testes de causalidade de Granger mostraram que variações na taxa de lucro precederam as variações nas taxas de
acumulação de capital, de acordo com o proposto pelas teorias macroeconômicas neo-estruturalistas.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 101

4 PADRÕES DE CRESCIMENTO ECONÔMICO NO BRASIL: DO PROFIT-LED


GROWTH AO FINANCE-LED GROWTH REGIME
A noção empírica de acumulação de capital busca traduzir o modo como o capital
monetário-financeiro se transforma em capital fixo, buscando revalorizar-se através
dos projetos de investimento. Mas em sua vinculação com o crescimento econômico,
a acumulação de capital é uma variável também condicionada pela evolução da
produtividade, por isso um regime de crescimento é um resultado das tendências
da produtividade e da demanda. Poder-se-ia considerar também o papel dos in-
vestimentos imateriais, por exemplo software, mas em razão da disponibilidade
de dados, o capital fixo será a variável básica nesta abordagem.

Por suas implicações para os ganhos de produtividade, a intensidade do capital


K
(capital intensity ou capital deepening), dada pela relação φ = , onde K é o estoque
N
de capital fixo produtivo e N é o nível geral de emprego, torna-se um conceito
fundamental numa análise estrutural e de longo prazo. Com o desenvolvimento
do processo de acumulação de capital, as mudanças sociotécnicas nas condições de
produção conduzem a variações relativas no nível geral de emprego. Tomando-se
  
os logaritmos naturais dessa última relação e derivando-se, chega-se a φ = K − N ,
que representa a velocidade ou o ritmo 
em

que a força de trabalho é substituída
por capital fixo. Se, por exemplo, K > N então houve substituição de trabalho
por capital. Esta relação é válida tanto ao nível da empresa individual quanto nos
níveis setorial e da economia nacional.
Em termos qualitativos, o processo de acumulação pode ser apreendido a
partir do modo como a economia acumula capital. Mais precisamente, trata-se de

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102 MIGUEL BRUNO

verificar em que condições sociotécnicas e institucionais de produção e de distri-


buição, um determinado padrão ou regime de acumulação emerge e se desenvolve.
Há duas formas básicas tradicionais para uma primeira taxonomia dos regimes:
a) regime de acumulação à dominante extensiva – quando o processo de acumulação
de capital implica, de forma preponderante, o aumento das unidades de produção
sem modificar substancialmente as características do processo de trabalho e de
organização da produção. Mobilizam-se as mesmas técnicas e formas organiza-
cionais e não se observam inovações de produto ou de processo que provoquem
impactos significativos nas condições de produção e de distribuição do excedente
econômico. Conforme Lorenzi et al. (1980), a acumulação extensiva deveria, em
teoria, significar ausência de ganhos de produtividade do trabalho e constância da
taxa de acumulação de capital associada à ausência de progresso técnico. Numa
análise empírica, é suficiente que os ganhos de produtividade sejam fracos ou
não significativos com relação à evolução do produto; b) regime de acumulação à
dominante intensiva – quando o processo de acumulação de capital baseia-se (e ao
mesmo tempo promove), de forma preponderante, transformações significativas
do processo de trabalho e de organização da produção. Ocorrem modificações
consideráveis no tamanho das plantas, incluindo a introdução de inovações técnicas
e organizacionais que permitem o surgimento de novos produtos e processos de
produção. Como uma conseqüência direta, a intensidade do capital é aprofundada
e os ganhos de produtividade são substancialmente incrementados.
Um indicador que se pode utilizar para captar empiricamente esses padrões
de acumulação é justamente o ritmo de substituição do trabalho pelo capital
 φ  . Conforme Billaudot (2001), nos países e nos períodos onde se observa uma
 
 
acumulação à dominante extensiva, constata-se também uma fraca progressão da
 
intensidade do capital  φ ≅ 1% a.a.  . Quando se trata de um processo de acumulação
 
à dominante intensiva, registra-se uma forte progressão da intensidade do capital
 φ ≥ 3% a.a. 
  . A análise não deve, no entanto, considerar essas relações como se
 
fossem provenientes de uma lei econômica geral que deveria necessariamente se
aplicar em todos os casos estudados. A detecção de um comportamento tendencial
ou de uma trajetória relativamente estável pode ser apreendida como um indício
da presença de um desses padrões. Essa tendência se traduz, em geral, por uma
regularidade da evolução da intensidade do capital e então este fato estilizado pode
ser utilizado, juntamente com outras estatísticas, para uma caracterização mais
precisa. Quanto mais intensivo for o processo de acumulação de capital, maior a

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 103

velocidade de substituição do trabalho por capital e então menor será a geração


de empregos a uma dada taxa líquida de acumulação.
A relação entre acumulação de capital e crescimento econômico decorre de
duas vinculações estruturais. Por um lado, a acumulação responde pelas estruturas
de produção ou de oferta e então pela dinâmica do crescimento. De outro, seu
desenvolvimento cria uma parte essencial da demanda final – os investimentos em
capital fixo e os gastos em consumo provenientes da massa salarial – permitindo
escoar a produção.
Quanto aos determinantes da produtividade do trabalho (PRL), eles também
são dependentes de fatores que não se reduzem a questões puramente técnicas.
Conforme Uemura (2000) é possível identificar vários desses fatores, incluindo a
taxa de utilização da capacidade produtiva instalada (u), o nível geral de emprego
 I 
(N) e a taxa de acumulação  g =  . Cada uma dessas variáveis tem seu próprio
 K 
horizonte temporal de atuação sobre a dinâmica da produtividade. No curto
prazo, atuam u e N. No longo prazo, a taxa de acumulação tem um efeito positivo
sobre o crescimento da produtividade porque resulta numa intensidade do capital mais
elevada. Expressando a existência de retornos crescentes de escala dinâmicos, trata-se
da chamada lei ou relação de Kaldor-Verdoorn (Kaldor, 1978). Formalmente,
tem-se que:

PRL = ϕ(u, N ). PRL 0 . e [ ρ .( I / K )t ] , com ϕu ≥ 0; ϕN ≤ 0; ρ1 /K ≥ 0

Em conseqüência, a taxa de crescimento do emprego pode ser formulada


  
como N = Y − PRL , implicando que a expansão da ocupação é comprometida
se os ganhos de produtividade forem superiores ao crescimento do produto (Y).
Observe-se que a economia brasileira no período de liberalização comercial e
financeira caracterizou-se por baixo dinamismo, ao mesmo tempo em que os
ganhos de produtividade foram expressivos entre 1991 e 1996, notadamente na
indústria de transformação.16 Como um dos resultados diretos, assistiu-se a um
decréscimo acentuado da parcela salarial no PIB (wage share) decorrente do baixo
ritmo de geração de postos de trabalho, do declínio e posteriormente estagnação
do salário médio real.
O efeito da utilização da capacidade produtiva sobre a evolução da produti-
vidade tende a ser muito forte em economias com um grande contingente de força

16. Essa recuperação dos ganhos de produtividade da indústria brasileira nos anos 1990 motivou o desenvolvimento de vários estudos
e debates sobre o tema.

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de trabalho disponível durante as recessões. Em segundo lugar, um decréscimo do


nível de emprego tende a aumentar a produtividade através do que Bowles e Boyer
(1990, 1995) chamam de “efeito exército de reserva”. A redução dos quadros tende
a aumentar a pressão sobre os trabalhadores remanescentes em termos de maior
disciplina e aceitação de níveis mais elevados de intensidade do trabalho.17
Uma taxonomia mais específica para os regimes de crescimento leva em consi-
deração as elasticidades do investimento produtivo às variações da taxa de lucro e da
parcela dos lucros no produto total. As especificações normalmente incluem a taxa
de utilização da capacidade produtiva entre as variáveis explicativas. Podem existir
diferentes regimes: do tipo profit-led growth, wage-led growth e export-led growth. A
literatura econômica internacional – Palley (2007), Stockhammer (2004, 2007),
Krippner (2005), Epstein e Jayadev (2005), Epstein (2001) e Boyer (2000a, 200b)
– tem mobilizado o conceito de financialization (financeirização) nas análises dos
novos regimes de crescimento pós-fordistas. Neste caso, são considerados também
os fatores de ordem financeira, responsáveis pela rentier income, e que competem
com as alocações diretamente produtivas dos capitais. Esses estudos mostram que
o processo de globalização das economias tem favorecido a emergência e difusão
de regimes classificados como finance-dominated accumulation regime. Tais regimes
podem ser favoráveis ao crescimento (caso em que são classificados como finance-led
growth regimes) apenas sob condições estruturais muito específicas: percentagem
elevada das famílias com acesso ao mercado de capitais e de títulos; concentração
moderada da renda e da riqueza; ambiente macroeconômico com taxas baixas de
juros e forte efeito acelerador do investimento.18 Sem essas condições, os aumentos
nos lucros não se convertem em taxas mais elevadas de acumulação de capital fixo
produtivo. Os regimes resultantes tenderiam a ser instáveis ou a caracterizar-se por
baixas taxas de crescimento do produto (CARNEIRO, 2002). Passemos então à
análise do caso brasileiro.
Análises empíricas detectam a presença de um regime de crescimento impul-
sionado pelos lucros no período 1966-1980, com padrão de acumulação predo-
minantemente intensivo (BRUNO, 2005, 2006, 2007). Variações na profit-share
implicavam aumentos das taxas de acumulação de capital e, em conseqüência, do
crescimento econômico. Por outro lado, a elasticidade do investimento às variações

17. O aumento da intensidade do trabalho é uma das formas de obtenção de ganhos de produtividade sem que necessariamente tenham
ocorrido quaisquer mudanças sociotécnicas no processo de produção. A força de trabalho é simplesmente premida a intensificar seu
ritmo de produção. Mas isto não significa que a introdução de inovações tecnológicas ou de processos não impliquem aumentos da
intensidade do trabalho.
18. O exemplo mais notável estudado por Krippner (2005) e por Boyer (2000b) é o padrão finance-led growth observado na economia
dos Estados Unidos desde os anos 1990.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 105

das exportações líquidas revelou-se estatisticamente não significante. O período


1984-1993 caracteriza-se pela vigência de um regime de crise ou de contração,
com os ganhos de produtividade praticamente nulos e queda das taxas de lucro e de
acumulação, conforme as tabelas 1, 2 e 3. Nessas condições, o padrão de acumu-
lação de capital passou a ser predominantemente extensivo.
Reforçando esses resultados, o gráfico 4 gera um diagrama de dispersão entre
os logaritmos da intensidade do capital e da produtividade do trabalho, o que ilustra
a função de progresso técnico de Kaldor para a economia brasileira no período
1966-2006. A FPT empírica é aproximada pela curva tendencial. Podem-se cons-
tatar três padrões de evolução que coincidem com os três regimes de crescimento
analisados. A partir de 1980, é clara a mudança estrutural que marca o fim do
regime de alto crescimento e a entrada no regime de crise. Observa-se declínio da
produtividade do trabalho com a curva inclinando-se para baixo. Embora a razão
K/N continue em progressão, sua taxa média de crescimento entre 1984-1993 é
de apenas 0,95% a.a. No regime de baixo crescimento do período 1996-2006, os
ganhos de produtividade voltam a crescer (1,04%), mas sob taxa média anual muito
inferior à observada no regime de crescimento profit-led do período 1966-1980
(4,75%). Este fato resulta da baixa progressão da intensidade do capital (0,16%
a.a.), que fica inclusive abaixo da observada no regime precedente, classificado
como regime de crise.

Um regime de crescimento liderado pelas finanças e funcionando sob


condições de elevada concentração de renda e do estoque de riqueza tenderá a
reproduzi-las porque sua macrodinâmica já pressupõe a redução da parcela salarial
no produto e a elevação dos níveis de desemprego estrutural. O gráfico 5 mostra

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106 MIGUEL BRUNO

como evoluíram as séries da produção industrial obtidas pela PIM-PF do IBGE,


sob este regime. Apesar da boa performance do setor de bens de consumo duráveis
e de capital, é nítido o baixo dinamismo do setor de bens de consumo não-duráveis,
que permanece praticamente estagnado desde 1991. Trata-se de um setor funda-
mental no processo de desenvolvimento social do país, por sua importância no
consumo das classes de baixa renda. Por isso a teoria econômica o denomina setor
produtor de bens-salário ou de consumo assalariado. Evidentemente, o peso desses
bens para as camadas de mais alta renda é proporcionalmente bem menor. Uma
das conclusões que se pode inferir destas constatações empíricas é que a estrutura
produtiva brasileira ainda privilegia o consumo dos mais ricos em detrimento dos
mais pobres. Há sem dúvida uma suave melhora no período 2005-2007, mas que é
grandemente superada pela produção de bens duráveis cuja demanda é assegurada
pelo poder aquisitivo mais elevado das classes média e alta.

A tabela 4, que apresenta uma síntese do que foi anteriormente discutido,


permite uma comparação dos três regimes de crescimento que marcaram a evolução
da economia brasileira desde 1966. São reunidas diversas variáveis que representam
as condições macrodinâmicas e estruturais do processo de acumulação de capital.
Nas duas últimas linhas são apresentados a razão estoque de ativos financeiros/estoque
total de capital fixo produtivo (AF/Kprod) e o multiplicador das taxas reais de juros, como
indicadores do grau de financeirização em cada um desses regimes. Observe-se que
durante o regime de alto crescimento, os ativos financeiros representavam apenas
7,36% do estoque total de capital fixo produtivo. Mas no regime de baixo cresci-
mento este valor é praticamente triplicado, atingindo a cifra de 21,26%.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 107

tabela 4
Uma comparação entre três regimes de crescimento da economia
brasileira – 1966-2006

Períodos e tipos de regime (1966-1980) (1984-1993) (1996-2006)


Profit-led Regime de crise Finance-dominated
Características growth regime ou de contração accumulation regime
Alto Tendência à estag- Baixo
Performance macroeconômica
crescimento nação e alta inflação crescimento

Taxas de crescimento do PIB per capita (% a.a.) 5,75 0,87 1,01
  
K 
Taxas de crescimento da intensidade do capital   (%) 5,57 0,95 0,16
N 
 

Ganhos de produtividade: (PRL ) (% a.a.) 4,75 0,38 1,04
Instabilidade
Elasticidade-capital fixo produtivo do emprego 0,3682 0,9878
estrutural
Taxa de acumulação de capital fixo produtivo em uso:

(u . K prod ) (líquida de depreciação) (%) 9,75 3,64 1,92
Taxa de ociosidade (1 – u) (%) 3,43 9,21 6,8
K prod
Razão (%) 83,27 80,55 76,01
K total
Razão estoque de ativos financeiros / estoque de capital
fixo produtivo: AF (%) 7,36 10,67 21,26
K prod
Multiplicador das taxas reais de juros 0,98204 1,08799 1,107762
Fonte: Cálculos próprios.
Nota: Valores médios por período. As variáveis em taxas de crescimento estão em percentagem. Para o cálculo dos multiplica-
dores das taxas reais de juros, no período 1966-1980, foram utilizadas as taxas mensais de juros CDB e LC. Para o segundo
e terceiro períodos, foram utilizadas as taxas de juros Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), do Banco Central do
Brasil (BCB).

5 Conclusão

Há sempre uma alternativa à propriedade


de ativos de capital real, notadamente
a propriedade de moeda e débitos.
J. M. Keynes

O regime de crescimento no período 1966-1980 caracterizou-se pelo padrão profit-led


growth, com taxas elevadas de lucro e de acumulação de capital fixo produtivo,
expansão sustentada do emprego e da renda. O processo de acumulação foi pre-
dominantemente intensivo, com ganhos elevados de produtividade do trabalho e
forte progressão da intensidade do capital. Entre 1984 e 1993, as taxas de lucro e de

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108 MIGUEL BRUNO

acumulação permaneceram em queda, sinalizando a entrada da economia brasileira


em um longo período de dificuldades macroeconômicas e estruturais. Tratava-se de
um regime de crise ou de contração, com os ganhos de produtividade do trabalho
praticamente nulos, tendência à estagnação do produto e à alta inflação.
O processo de liberalização comercial e financeira, com as transformações es-
truturais iniciadas nos anos 1990, reconfiguraram de modo relativamente rápido o am-
biente institucional e macroeconômico. Em conseqüência, no período 1996-2006,
um novo regime de crescimento surge dessas mudanças estruturais, mas apresenta
baixa taxa de acumulação de capital fixo produtivo, apesar de a taxa de lucro médio
estar sob tendência de crescimento desde 1994. A compreensão das especificidades
do atual padrão de acumulação exige novas análises que possam explicitar os vín-
culos entre a acumulação de base rentista e patrimonial e o crescimento do estoque
de capital fixo produtivo. As evidências empíricas obtidas corroboram a hipótese de
que esse regime de crescimento aproxima-se do tipo finance-dominated accumulation
regime ou finance-led growth regime, segundo a taxonomia proposta pela literatura
econômica internacional. Constatou-se que, sob as condições estruturais que o
caracterizam, o aumento da parcela dos lucros no produto não tem contribuído
significativamente para elevar a taxa de investimento, porque a parcela investida
do lucro macroeconômico está em declínio tendencial.
Este trabalho também procurou mostrar as relações entre lucro, acumulação
e distribuição funcional da renda, através de uma análise de seus determinantes.
Uma problemática fundamental em economia, pois reconhece que as formas de
repartição do valor adicionado entre os diversos setores econômicos determinam,
em grande medida, o ritmo de crescimento econômico. Como os regimes de
crescimento à dominante financeira mantêm elevada a rentier income ao mesmo
tempo em que oferecem um leque amplo de produtos ou instrumentos financeiros
alternativos às imobilizações no setor diretamente produtivo, parte substancial da
poupança das empresas e das famílias têm sido retida na circulação monetário-
financeira. Este fato chega a um paroxismo na economia brasileira, pois a renda de
juros no período 1993-2005 atingiu a média de 29% da renda disponível bruta,
segundo dados das Contas Nacionais do IBGE. Trata-se de fato de uma excepcional
carga financeira sobre o produto e que funciona como um freio ao crescimento
do estoque de capital fixo produtivo, impedindo o país de trilhar trajetórias de
longo prazo mais consentâneas com as demandas sociais em termos de geração de
emprego e de renda.

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CRESCIMENTO ECONÔMICO: ESTRATÉGIAS E INSTITUIÇÕES 109

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