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O Principe e os Discursos de Maquiavel | Notas biognéficas Nicolau Maquiavel (1469-1527), filho de advogado, entrou para oservico piblico de Florenca com 29 anos, no momento da restau racio republicana que sucedeu ao governo de Savonatola, exercendo © cargo de principal secretérid do “Governo dos Dez Magistrados da Liberdade e da Paz”, Como vil, viajou bastante ¢ péde observar © funcionamento de outros sistemas politicos, concluindo que tanto a lgreja quanto os Estados estavam muito corn rompidos. Foi secreté- tio do governo por mais de dez anos, a que, com 0 retorno dos Médicis, foi denunciado como conspirador, sendo encarcerado, ‘orturado ¢ posteriogmente banido da cidade de Florenga. Mudow Se Para sua casa no campo, com a mulher ¢0s cinco filhos. Ld, lia os fa imoralidade de Maquiavel} poderia ser defensive. Mas existe também a ética da polis grega, cujo maior exposi- tor foi Aristételes. Jé que os homens sio seres feos pela nnatureza para viver em comunidades, suas metas comuns sio os valote ilkimos dos quais todo o resto deriva ou com (0 quais seus propésitos individuais tém de se identifica A politica é a are de viver em uma polis, nfo é uma ati- Vidade ptivada, A ética assim concebida, como cédigo de conduta oi ideal para o individuo, nfo pode ser conhe- cida por este a ni de sua polis, da qual € incapaz di {que seja em pensamento. Este € 0 tipo de moralidade er que entenda a finalidade e o cariter divorciar, mesmo pré-ctisté que Maquiavel aceica Gerlin, 1982, p25), | A construgio do Estado ‘A constituigio do Estado moderno pode ser considerada o prin- cipal assunto da obra de Maquiavel. Atenta para 0 processo de centralizagéo do poder, sua anilise foi apropriada por defensores do absolutismo, um Estado cujo poder the ¢ intrinseco, ¢ nao antes derivado de outra instincia da sociedade. Sem ditvida/ uma imagem de sociedade forte com Estado fraco, em que os cidados sao prés- peros ¢ livres, nio expressa o ideal de Maquiavel, uma vez que tal sociedade se defende mal de seus inimigos, e em pouco tempo ser oprimida por Estados forts! A ligagio com sua terra sendo fortissima, pode-se dizer que Maquiavel era um patriota, no sentido de que detestava, mais que tudo, a idéia de viver sob o jugo de um estran- geito. Se a defesa da cidade estivesse a requerer a existéfcia de um Tirano nativo, que o fosse; ou seja,20 defender a liberdade, sua men- te estava voltada primordialmente para a liberdade da comunidade politica, antes que para a liberdade de cada um dos cidadios. Mas Maquiavel deve ser lido como idedlogo da formagio do Estado repu- blicano ¢ nao do Estado absolut: A distingio entre doisipos de Estado, principado e reptiblica, se faz. logo no inicio de O Principe, Maquiavel caracteriza 0 principado pelo fato de ser governado de acordo com uma tinica vontade politica, resdindo o poder em uma pessoa fisica. Para administrara sociedade, o principe pale contar tanto com a ajuda de seus ministros, quanto com a dos “barées”, que teriam sua fonte independente de poder. Na reptiblica, por contraste, a vontade po- Iitica coletiva se faz representar, requerendo-se o respeito a determi nados procedimentos para que se chegue a efetivacio de um con- senso, t6pico a ser desenvolvido nos Discursos. Esta distingZo inova a maneira entao usual de se escrever sobre a politica, isto é, fazer uma digressio acerca de seus fins, imbuida de preceitos morais,filoséficos e religiosos. Esta era a tradigao clissica ectista, que Maquiavel e outros intelectuais de seu tempo rejeitam, tratando diretamente da questo da conquista e manutengio do poder O Principe, Maquiavel dirige sua atengio para 0 primeito tipo de Estado, discorrendo, inicialmente (cap. 3 5), sobre a relagio entre 0 novo principe e ds:costumes da sociedade que pretende governar, A énfase conferida & inovacio, frente a um contexto institucional no qual nem o povo nem a aristocracia estio operando A content, concerne a constituigéo de uma ordem que permita o desenvolvimento da vida republican Quando a sociedade politica estd ordenada, o costume funciona como um prinelpio norteador para enfientar os desafios da fortuna, ©0 governante no precisa ser extraordinariamente virtuoso. Mas, quando © costume esti corrompido, é preciso situar a virtude exclusivamente no campo da aglo eficaz; a inovagio politica vem, ois, acompanhada de enormes dificuldades; dentte elas, a que decorre do fato de quea inovacéo contratia interesses estabelecidos Sem aglutinar, imediatamente, os interesses descontentes, que Poderiam Ihe dar base de sustent Acraziio que Maquiavel oferece para essa dificuldade de organizar a oposicio a0 antigo regime éa de que os interessados em modificar a ordem vigente nem por isso confiam que o novo principe possa realmente estabelecer um contexto politico mais adequado ou satisfatério, Dessa imprevisibilidade da nova ordem decorre difi- culdade, para o principe, de obrer a lealdade de “seu povo”: mesmo opondo-se aos que controlam 0 poder, o povo nfo se sente seguro para apoiar uma proposta que ainda nfo seefetivou. Assim, o principe encontra descontentamento entre todos os que se beneficavam com. avelha ordem, e apoio moderado entre os que querem a nova ordem, no podem ainda se beneficiar dela. Em tal circunstancia, 0 nsito para a nova ordem dificilmente sera pactuado, devendo ser considerada a necessidade do uso da forga Cab um povo acostumado com a liberdade, explicitada no quinto a notar a dificuldade em se impor uma nova ordem a capitulo, Se o povo ests habituado a escolher seus governantes, €se essa é uma experigncia que ji se faz por mais de uma gera habito transmuda-se em marca indelével de sua natureza, decorrendo dai a resisténcia a uma orclem que desconsidera esta liberdade As condigées que viabilizam a manutengio de um novo dominio sero tratadas nos capitulos seguintes (6 a 8), das quais cabe destacar duas. A primeira refere-se a postura a set adotada pelo principe. Maquiavel suscenta que, para viabilizar seu poder, este nfo pode ser, realmente, um bom principe, seja pela dificuldade de governar asociedade, seja pela necessidade de jogar, permanentemente, com outros prerendentes & posigdo por ele ocupada. Assim, se aparecer como bom é algo salutar, a preservagio desta imagem nao deve se oper a0 desempenho apropriado ao cargo. E aqui ele retorna 20 clogio do uso da forca, distinguindo a violéncia que restaura da que destréi, um modo de compreender 0 adgio por ele mencionado (cap. 18): 0 fim justifica os meios, Esta forca deve ser empregads rapidamente ¢ de uma s6 vez, para garantir a autopreservagao do principe. O uso gradual da violéncia configuraria uma “crueldade malévola’, que s6 dano cRusa a todos os envolvidlos.Alternativa- mente, 0s beneficios devem ser distribuidos aos poucos, para que sejam mais bem apreciados.|No oitavo capitulo, entretanto, ficard claro quea forga pode trazer 0 poder, jamais a gloria, E éesta a qualidade que Maquiavel mais preza, O principado civico, isto é aquele segundo o qual o poder est baseado no apoio popular, é tema do nono capitulo. ‘Maquiavel destaca as duas aliancas possiveis: com: istocracia e com o povo. Se o interesse da primeira ¢ 0 de manter 0 povo sob seu dominio, a alianga com ela implica risco considerivel para 0 principe, porque ‘os aristocratas o tratam como um igual e podem, a qualquer mo- mento, retirar seu apoio. A asticia é, portanto, imprescindivel & minimizagao, pelo principe, do poder aristocratico. Como 0 povo deseja, mais que tudo, ni ser dominado, é mais fécil obter seu apoio ou, pelo menos, manté-lo numa posigio de indiferenca, 0 que nao constitui problema desde ques rivalidade aristocrética esteja neutralizada, Nos capfculos seguintes encontra-se sua critica & escoléstica, € sua anillise dos principados religiosos; somente nos capitulos quinze ¢ dezessete est o que usualinente se chama de ‘maquiavelismo”, pois, ao eratar do poder e da sociedade tais como se apresentam realmente, “vicios”sio considerados “vireudes”, desde que permitam 40 principe a manutengio de seu dominio, Como apropriadamente chama a atengio Escorel (1979, p. 7), perspectiva maquiavélica ‘Go se coaduna.com o “angelismo politico”: entre set amado e ser temido, welhor este tlcimo, recomenila Maquiavel, porque o amor Se mantém por obrigagdes que podem ser rompidas, mas o medo estd sempre acento & possibilidade de punigio; mais importante do {Que garancira liberdade dos cidadéos ou promover a justiga, sustenta ¢leem consondncia com 0 pensamento humanista do final do século XV, € garantir a paz e proteger a cidade dos invasores escrangeitos) Estabilidade e seguranca sfo as palavras de ordem, ea maior virtude do povo passa a ser a sua “benigna passividade”, a qual pode ser > 2 obtida com o uso de medidas que visem “confundir a mente do po- yo", preservando-se uma boa reputagio, ¢ insulando as vozes invul- gates que emergem da massa governada, bem como honrando mérito dos que mostram exceléncia nas diversas artes. A engenharia institucional aparece como um outro meio de garantira estabilidade politica, e o exemplo francés presta-se para revelar a contribuigéo do parlamento na mediacio entre rei e povo, negociando conflitos e dividindo responsabilidades. ‘Arelagio entre virtude e fortuna se explicta no vigésimo capitulo, no qual a fortuna é metaforizada como a mulher, sempre mutivel, que melhor se submete 20 audaz que a0 temeroso, Afirmando que a manutengio do poder pode se dar por fortuna ou virtude, coma cesta ~ aqui definida como a capacidade de dar forma a uma ma ria — como mais importante, particularmente para o inovador. E ainda nesse capitulo que Maquiavel condena a neutralidade politica, pois tomar partido é © melhor meio de se precaver, no sucesso € também no fracasso, pois por ele se pode contar com o apoio dos partidérios da mesma posigio. Nos tltimos capfculos, Maquiavel retorna ao tema principal, isto 6, 0 da conquista e manutengao do Estado, concluindo no capitulo 25 com a exortagio aos Médicis para liberar a Iedlia dos “barbaros”. E dupla a originalidade no tratamento conferido por Maquiavel A politica, relativamente aquele que a ela dispensam seus contem- poraneos: em primeiro luga, ele defende o uso da forga bruta, recu- sando uma perspectiva que limita 0 exercicio do poder & persuasio. Para compreender esse elogio da violéncia, & necessétio ressaltar a maneira como Maquiavel vé o ser humano: avido, interesseiro, invejoso, ciumento, insaciavel em seus desejos, ingrato, inconstante, dissimulado, mentiroso ¢ covarde; 0 individuo que enaltece €0 que foge a esta mediocridades'a segunda originalidade esté na distingao, levada até as tiltimas consequéncias, efetivada entre virtude politica eas virtudes préprias & vida privada = A perspectiva repnblicana Considere-se agora sua reflexio acerca da Reptblica, exposta nos Discurso, escritos entre 1517 e 1519, tema candente em seu tempo, como fica claro no tipo de reflexio que vinha sendo desen- yolvido por Guicciardini, contemporineo e amigo seu. (Guicciardini conceituava aliberdade como a ascendéncia da lei eda decisio puiblica sobre os “apetites" particulares dos homens. A garantia dessa liberdade estaria na constituicéo de um corpo de cidadios capaz de exercer, impessoalmente, a autoridade piblica. Para ser impessoal, Guicciardini considerava imprescindivel que 0 corpo deliberative fosse de grande porte, preferindo governo popu- lar (Criticando a repiiblica insticufda por Savonarola apés o longo dominio de Lourengo O Magnifico, Guicciardini sustentava que 0 problema estava em que, nela, o conselho popular ainda era muito restrito: um corpo politico adequado deveria abrigar até mesmo aqueles cidadaos que nao almejassem ou pudessem vir a desem- penhar fungGes puiblicas, pois neste caso seu julzo néo setia aferado por ambigdes polfticas. Uma vez formuladas ase, sua adogio dependeria de ratificagéo pelo “Conselho Grande”. A raxo dada por Guieciardini era bastante simples: se as leis afetam a todos, devem ser acgitas por todos, , se houvesse alguma iniciativa dos governantes no sentido de alterar 0 controle popular da politica, por meio do mecanismo de ratificagio, tal intuito podgria ser impedido pelo proprio povo: e para que a ratificagio fosse efetiva, as propostas de leis deviam ser publicadas com antecedéncia, Um segundo aspecto importante no pensamento politico desse humanistarefere-se legitimagio conferida a ambigio politica, desde que vinculada & conquista da gléria e da honra: admitido que a honra se associa ao desempenho pessoal, mas que a gléria é conferida Pelo piblico, insinua-se aqui uma virtude eminentemente politica, Tal civismo deve ser uma preocupagio de toda a cidade e de seu go — as virtudes morais aos vernante, devendo este ser “exemplo de toda olhos de seus siditos” (Pocock, 1975, p. 171). Do mesmo modo, a corrupgao deixa de ser vista como vicio privado, expressando o sin toma de um contexto no qual os cidadaos se véem impedidos de tomar parte na condugio dos negécios piiblicos. Uma condigéo importante para ter-se uma vida civica livre e feliz é portanto, a ctiagio de instituigées eficazes pelas quais 0 poder soberano resida no conjunto inteiro dos cidadsos. Finalmente, © métito espectfico da reptiblica, salientado no deascender apenas por Guicciardini, seria 0 de que ncla “a esperan as honras puiblicas, de fazer uma carreira por seus esforgos préptios, inner, 1996, p. 101). Essa competigio cons- E igual em todos’ ( tante estimula em cada cidado a vontade de desenvolver seus talen- tos, € 0 resultado & uma repiiblica forte € eficiente, devendo estar claro que nessa perspectiva a prioridade reside mais no aprimora- mento do espitito puiblico do que no da méquina governamental Muito desse pensamento foi rejeitado no final do século, com a volta de principados despéticos. Em particular, a Republica de Savonarola teria entrado em decadéncia precisamente pelo fato de © conselho popular ter crescido demais, sem que mecanismos existissem para garanti a participagio da elite politica (os ottimati). F nesse tempo que Maquiavel desenvolve sua reflexio, jé marcada por um ceticismo que, no entanto, nfo implica a abdicagio do ideal republicano. Yomando por referencia a constituigao romania, Maquiavel es creve os Discurso, texto dividido em trés livros, No primeiro, estuda diversas modalidades de fundagio do Estado; no segundo, seu desenvolvimento: finalmente, seus modos de transformagio, anali- sando ainda, nas palavras de Escorel, “a natureza das conjuragées aque ameagam o detentor do poder” (1979, p. 72) Neles, definira a repuiblica como aquela na qual 0 principe (cénsul), os aristocratas (senadores) ¢ 0 povo (tribunos) governam 26 Yr ‘em conjunto, participandg na conducio dos negécios coletivos em um equilibrio capaz de resistir ao tempo. f verdade que o papel principal € atributdo ao cénsul, porque sua fungio é a de proteger a repiiblica de eventos extraordinétios. Como a marcha de um gover- no assim constituido é lenta, e reunir as vontades numa sb proposta, ‘um movimento complicado, € necessiria a presteza politica de um chefe de governo; mas nio existe aqui o elogio da paz ficticia do aucoritarismo. ‘Ao conttirio, o ponto para o qual Maquiavel chama nossa atengio, logo no segundo capitulo dos Discursos, é instabilidade propria a qualquer dos trés tipos puros de governo, retomando a anilise de Polibio. Na repiiblica, sustenta Maquiavel, a representagio simul tinea das trés bases sociais de cada um dos tipos confere ao poder do Estado o méximo de estabilidade almejével. Isto se dé porque Gia uma repitblica hé maior capacidade de “adaptacio as varingbes dos fempos, a novas situagbes” (Escorel, 1979, p. 74) (Mas tal estabilidade nao implica consenso, sim conflito aberto ‘entre “as duas fontes de oposicao” a qualquer governo, povo e elite (aristoctacia), Em vez de cpnsiderar 0 conflito funesto, Maquiavel sustenta que sio 0s conflitos que promove a busca pela boa le- gislacio, que, por s que, se 0 povo se engana, “os discursos em prasa publica existem justamente para retficar suas idéias” e, citando Cicero, afirma que, a vez, propicia a educagio pata a virtude, Nota mesmo quando mergulhado na ignorincia, 0 povo pode com- preender a verdade, tema a ser retomado no capitulo 49 do Livro 3;.€ nfo houver, contudo, virtude civica, isto 6, se 0s cidadios nao Se dispuserem a abrir mao do cuidado com seus interesses indivi ¢uais de modo a contribuir para realizar os fins coletivos, a repuiblica tomna-se insustentavel ‘Um requisico tio forte como este corresponde a uma concepeio de liberdade politica que permita a participagio de todos na gestio __ @2vida coletiva, da qual, em iiima instancia, depende a liberdade civil, esta que, como sintetiza Escorel, garante a vida, a propriedade ea honra (1979, p. 81). E Maquiavel nao tem dificuldade de re- conhecer que apenas um pequeno ntimero de pessoas aspira a ser politicamente livre. Daf a importincia do arranjo institucional de tum governo, tema tratado no quinto capitulo do Livro 1 dos Discurso, no qual Maquiavel retorna & questo, trabalhada em O Principe, relativa a aliangas voltadas para a preservagio da liberdade. Para salvaguardar a liberdade, indica como principal vantagem da alianga com a aristocracia o fato de que os cargos publicos por ela ocupados satisfazem parte de sua ambigio, Mas Maquiavel opta por uma distribuigio de poder que confira a maior parcela a0 povo, retomando ‘oargumento aristotélico; assim, sustenta que 0 povo, em geral, nao é ingrato ¢ raramente comet erros na escolha dos magistrados, sendo mais prudente, mais estdvel e de melhor jufzo do que a aristocracia. Entre © povo ea multidio uma distingio é proposta no capitulo 57 ¢ seguintes do Livro 1 dos Discursos. Dispersos, os membros do povo desejam, mais que tudo, viver em paz e seguranga. Unidos, podem comportar-se como multidéo raivosa, que desafia 0 poder estabclecido; os maleficios que por acaso causem & repiiblica nao sio, entretanto, maiores do que aqueles que podem causar os principes. Maquiavel detalha esse tépico, sustentando que, “sob o império de uma boa constituigao, [um povo] serd tio estével, prudence e grato quanto um principe”, ou mais ainda do que este, Se o povo estd convencido de que tem dircito a ser representado nos negécios pliblicos, a0 tratar da ocupagio das posigbes de mando, ele reco- nheceré que nfo conta com as qualidades necessérias, escolhendo seu representante entre os membros da elite. Por isso é relevante 0 debate piblico, pelo qual os postulantes ao poder revelam suas qua lidades especificas, permitindo ao povo escolher no apenas com base em consideragées gerais, mas também a partir da compreer da complexidade das situagées especificas. Oconflito aberto, para cle, éa condigao de protegio da liberdade, pois que “as boas lis nascem da desordem que todos condenam”. A desordem comparece, portanto, como preco da liberdade. Assim, (/os diversos tipos de reptiblica, 0 mais complicado é aquele em que G ‘nunca houve o exercicio da liberdade, pois o povo af ¢ como um animal domesticado que, mesmo ganhando a liberdade, nao sabe o {que fazer com ela (Livro 1, cap. 16) Conflitos ocorrem mesmo nas repuiblicas bem constituidas, como assinalado no segundo capitulo do Primeiro Livro, pois, uma vez obtida a boa ordem, a populagio deixa de preocupar-se com sua manutengio, entregando-se “A ambicio, & libertinagem © & viow lencia’, Além dissofse em um primeiro momento, como foi o caso > ‘de Roma, s6 0s “bons” se apresentavam como candidacos aos cargos piblicos, porque era desonroso nio ser eleito, uma vez. institucio- nalizado 0 procedimento, ricos e poderosos candidatavam-se e fa- ziam campanha de forma tio aguertida que os melhores candidatos desanimavam de com eles competif (Livro 1, cap. 18)De qualquer forma, a institucionalidade republicana continua a ser a mais pro- plcia& duragio de uma boa otdem, ainda que de dificil implantagio em uma sociedade extremamente desigual (Livro I, cap. 55). O uso da forca, a violencia, néo constituem necessariamente ‘um mal para Maquiavel; ja nos capitulos 17 e 18 de O Principe, chama a atengio para a necessidade do uso da forca e mesmo da ctueldade comaantidotos a degradacio humana: ao comentar, nos Discursos, a dificuldade de se estabelecer uma repiblica em uma Sociedade cuja elite esteja inteiramente alienada de seu povo, Maquiavel nfo tivubeia em recomendar sua climinagio fisica(O) ‘modo como Maquiavel analisa 0 poder é qualificado por Cassirer (1946) como o de alguém que observa um jogo, uma partida de 4adrex; identifica os movimentos capazes de propiciar a vitéria, Pteocupa-se com a inteligéncia de cada lance, e nfo se comove com © fato de os jogadores serem pessoas de carne € 0880. waguiaven Maquiavel nao fiz restrigdes aos empreendimentos econdmicos individuais, mas, a seu ver, a “iqueza sem valor” invariavelmente constitui uma causa da corrupg ctvica, conforme argumenta no capfeulo 55/Aconrupgio ¢ definida claramente como a ineapacidade de alguém dedicar sua 3s energias ao bem comum , paralelamente, colocat os préprios interesses acima dos da comunidade; nio & tratada, portanto, como uma questo de moralidade individual mas como 0 efeito de uma polis mal-orden: na qual o cidadio no tem sua independéncia garantida e esta impedido de partici par dos negécios publicos! Ou ainda, como assinala Escorel (1979, p. 82), quando se torna deficiente 0 “senso i solidariend. K principal causa desta ordenagio defeituosa, nos diz Maquiavel, € a constituigao de uma oligarquia, seja através da extensio dos mandatos dos magistrados, seja pela autoridade irrestrita que estes venham a hes conferir. As enormes disparidades de riqueza const tuem ainda empecilho a virude republicana, porque geram inveja sturbagio politica, comprometendo o sentimento dle orgulho civico ¢ de patriotismo. Além disso, 0 cidadéo rico é tentado a comprar 0 apoio politico, fazendo com que seja mais van: tajosa a lealdade de cardver privado do que a prestagéo do servigo publico, Alternativamente, uma sociedade que oferega oportunidades 20s talentosos, sob uma constituigio livre, encoraja o desenvol- vimento daexceléncia humana, que, por sia ver, afirma-se na ince I iberdade, A ateng: to de conservar conferida & fungio do legis lador em O Principe é aqui, diminuta, r ativamente a0 proceso social ¢ educacional préprio a essa dinimica politica Um outro aspecto que deve ser ressaltado € a critica que Maquiavel faz a uma sociedade na qual a cahinia é prética normal Para todos odircito de acusar sem medo, desde que apresentando provas, vité-la, Maquiavel considera importante que seja garantido pois assim a caltinia pode ser punida’ Sua confianga no povo € tall que ant 0 nos Diseursos quinto em O Principe (cap. 12, 13 € 14), Gaeontsamos 2 rejcigio ao exércico mercenério ea justificativa da ‘déia de “cidacios em arm Finalmente, cabe reiterar que, desta perspectiva, os “tumultos” sptios a0 exercicio da liberdade nao sio tomados como prejudiciais réprios 20 I ja civica. Como diz Maquiavel, enquanto a plebe reve condigdes, ide eclamar do Senado e este de vitupers-la, nenhum partido pode optimir 0 outro ot ignorat-lhe os intetesses. Os meios pelos quais ‘9 povo expressava seu descontentamento eram, basicamente, fechat as ptiblicas suas lojas, recusar a servir no exército, demonstrar fou sair da cidade! Esses conflisos, na repuiblica romana, serviram para descartar interesses meramente segmentirios e para garanti que os tinicos projetos.a se converterem em lei fossem aqueles dest pados a beneficiar a comunidade como um todo. © conflito de classes era visto nfo como o solvente, mas como 0 cimento de uma repiiblica. | Principais obras de Magquiavel 0 Principe. Sio Paulo: Abril Cultural, 1979, Colegio Os Pensa- dores, v. IX. Comentérios sobre a primeina década de Tito Livio ~ Discorsi Brasilia: Editora UnB, 1979 (O contrato social de Hobbes | Notas bingraficas Thomas Hobbes nasceu em 1588, tendo feito seus estudos ém Oxford, sob forte influéncia do pensamento escoléstico, entao do- minante. Viajou pela primeira vez para o continente com 22 anos, tomando conhecimento da Astronomia nova, de Kepler, recen- temente publicada, e das descobertas de Galileu, a quem visicou fem Florenga, Desde sua forniiatura, em 1608, associou-se & familia Cwvendish, inicialmente como tutor, no final da vida como héspede, © que lhe dava a tranqiiilidade necesséria para desenvolver seu tra “Patho intelectual O primeiro livro que publicou, Elementos de lei natural e politica (1640), contendo um argumento contrério a divisio do poder, sscontentou o Parlamento ¢ resultou em seu exilio da Inglaterra, mais de onze anos. Do cidadio (1642), publicado em latim 22 ive) es6 tardiamente divtlgado em lingua inglesa (com o titulo © Philosophical Rudiments concerning Government and Socies)), foi /Sctito enquanto se encontrava refugiado em Paris{O texto contem- Plat questionamento da autoridade patriarcal enquanto fundada ch SP desigualdade natural de género, assinalando o cardter conven- *Onal da sujcigao feminina eo principio contratual da familia, ain- da que seu propésito central seja 0 de examinar a finalidade ea ex- tensio apropriadas ao poder civil! Essa temética sera reelaborada em O Leviata (1651), seu liveo mais famoso, obrendo, apés sua divulgacio, permissio de Cromwell para retornar Inglaterra, embora ainda menosprezado pelo Parlamento, por qualificar como absoluto © poder do Estado, e pelos partidatios do poder real, por rejeitar a nogio de direito divino. Em De corpore, publicado em 1655, trata mais cuidadosamente dda questio da linguagem, tema ao qual sempre conferiu relevancia, Publicado postumamente (1682), Bebemoth relata a histéria da guerra civil inglesa. Aos 76 anos escreveu o Diiilago entre wm filésofo eum estudante das Common Laws da Inglaterra, publicado em 1681 A seguir, compés sua aurobiografia, em verso (1672) € em prosa (1676) finalmente, aos 86 anos de idade, cinco antes de morter (1679), traduziu a Illada © a Odiséia | Hobbes em seu tempo |A postulagio do direito natural Hobbes escreve em um context intelectual no qual a determi nnagéo do que ¢ justo se faz por refercncia A “lei da natureza”, vomada ‘como uma lei objetiva e imutavel: € seu correto entendimento que permite conferr legitimidade ao poder ou, alternativamente, criticar ce mesmo subverter a ordem politica em vigor. Recuperando-se 0 pensamento de Grotius (1583-1625), seu contemporineo ¢ inter locutor, deve ficar mais fécil entender a torgio por Hobbes efetivada nesse tipo de postulagio. ‘Considerado 0 fundador da doutrina do dircito natural ou ju naturalismo, Grotius retoma e desenvolve a tese de que é possi aprender racionalmente a lei natural, fundamento da boa order politica, Esse resgate do pensamento escolistico se faz. contra o cet cismo que nega nao apenas a existencia de uma lei natural como também a propria nogio dt justiga, Ao sustentar que as leis civis, ‘ou positivas, decretadas pelo legislador, esto pautadas por uma norma de validade universal ~a lei natural -, Grotius reitera a exis- tancia de uma referéncia externa as subjetividades, que permite discriminar 0 justo do injusto; se afasta, no entanto, da tradigio ‘escoléstica, ao precisar 0 que entende ser essa lei da natureza Em ver de remeté-la lei divina, como principio que lhe confere jrrestrita validade, sustenta que ela decorre exclusivamente de nossas jdéias de bem e de justiga; portanto, rege a formulacso da ei humana ou positiva ances mesmo de qualquer revelagio da vontade de Deu abstrata ¢ l6gica, como a macemética, a lei natural nfo requer qual- quer mediagio eclesial para ser por codos compreendida, pois as idéias de bem e de justica expressam a racionalidade e sociabilidade intrfnsecas & natureza humana. Grotius separa, assim, as esferas religiosa ¢ secular, levando. Cassirer (1966) a identificar nessa operacio uma revolugao na ordem da moral do mesmo vulto daquela efetivada por Galileu, a0 conferir ‘A fisica autonomia em relagdo 3 teologia. No Simbito dessa “revolugio” merece destaque a propositao de Grotius a respeito da liberdade: Argumenta que somos capazes de tomar consciéncia das implicagbes de nossa sociabilidade, que constitui o niicleo da lei natural, ¢ dela derivar o que deve ser respeitado para que nosso convivio se faga em boa harmonia, isto é, seja pautado pela justica. Somos livres para “4gir de forma corzeta ou indevida, pois a lei natural rege agentes ots, isto , sexes dotados de vontade, eapazes de fazer bem ¢ 0 al. [Pa postulagso, que confere & razdo humana uma competéncia | €entio inauclta,afetao principio de legitimasto do poder: ese Principio nao mais se articula em torno da idéia de um bem comum, £0mo no pensamento escolastico, “para referir-se aos acordos Possiveis entre variadas perspectivas individuais” (Oliveira, 2000, _ . 162); fais acordos sio possiveis porque o entendimento da lei 35 natural, que todos podem vir a ter, revela a procedéncia da pre- servagio da vida. Se tal desejo é 0 mesmo, em todos, e se cada ur compreende que nio vive sem os demais, fica demarcada uma referéncia para norteara especificagio dos direitos individuais, que, de resto, pouco se diferenciam dos é enunciados pela neo-escoléstica Sao eles os diteitos 8 liberdade, & propriedade, a demandar 0 que é devido ¢ a punir 0 agressor; a eles corresponde um conjunto de obrigagées, como a de reparar os danos, respeitar a propriedade ¢ manter a palavra dada. Bara que tais direitos sejam assegurados, é necessério que exista 0 Estado, cujo fundamento serd o contrato; mas © contrato conce- bido por Grotius nao se faz, como em Hobbes, entre individuos independentes; por reconhecer sua sociabilidade natural. O contrato feito por individuos, sem diivida, porque cada um deles tem die tos, por natureza, mas individuos caracterizados por sua sociabilidade ssa sociabilidade, sustenta Grotius, évisivel no fato de que os homens se associam nao apenas em busca de suas vantagens parti- ‘culares; mesmo quando nao necessitam de nada, sua natureza os Jeva a buscar 0 “comércio” com os outros homens. No entantoy @ sociabilidade postulada por Grotius nao deve ser interpretada nos termos aristotélicos, pois nao esté associada & idéia de que somente ‘em sociedade politica o ser humano se desenvolve plenamente cendo, alternativamente (como no argumento estdico), alicersads nas nog6es de fraqueza e de semelhanga entre todos. 1A nogéo de soberania [A perspectiva hobbesiana acerca do poder do Estado é ainds ributétia de Grotius no que tange ao conceito de soberania, Grotis adotao principio, enunciado tanto por Maquiavel quanto por Bodin de que o detentor do poder supremo nao esta sujeito a qualae restrigio jurtdica, No seu Seis Hvros da Republica, de 1567, Bodin busca instaurar um novo tipo de legitimagao da auroridade) que possa substituir ou acomodar a postulagio de uma origem divina do poder real para dar conta das dissensGes religiosas. Seu intuito é ode fandamentar, de modo racional ou, pelo menos, imanente, legtimidade do poder do Estado/Para tanto, irk desenvolver 0 conceito de soberania como “poténcia absoluta e perpétua” de uma reptblica. Isto significa que 0 soberano pode dispor dos bens, das pessoas edo Estado, e transferie este poder para quem quiser (Polin, 1980, p. 99). ‘A soberania nao significa, contudo, que o poder possa ser exercido de modo tirinico ou arbitrério, pois ela cem de submeter-se & lei divina c natural, e mesmo a uma série de Icis humanas, as leis po- sitivas. A lei natural, expressio da lei divina, indica que 0 que € piiblico é prioritario. Com esse objetivo em vista, o poder soberaiio éive para legslar como considerar apropriado, sendo que a essa relativa autonomia corresponde enorme responsabilidade pelas conseqiiéncias advindas de cal legislagio. Bodin esté sustentando, portanto, que esse poder, indivistvel ou imparcilhavel, expressa uma Yyontade que, mesmo nao sendo entendida, deve ser obedecida, para = Gite sociedade politica se mantenha enquanto tal. O que distingue Hisoberania absoluta é poder fazer as leis independentemente do = Sonsentimento popular, sem ser, entretanto, arbitréria ou ilimitada. Grotius nao segue & risca este argumento, resguardando nfo | 4Penas um prinefpin constitucional quanto um espago, ainda que ee para a liberdade individual. J Hobbes daré muito mais Valor A ordem do que a liberdade, pois era a iminéncia de dissolugio Sua sociedade que o atormentava 1A perspectiva hedonista “Hobbes é também fortemente influenciado pelo hedonismo _Plcurista, cujo postulado central é hres de qu; de que, se nos examinarmos ialquer convengo ou racioci alqu \gio ou raciocinio, veremos que somos, 38 natural ¢ primordialmente, egofstas, desejando o que nos dé prazer rejeitando a dot e colocando 0 bem do outro em segundo plano, “"Nio vejo como possa conceber algo bom se evito os prazeres do gosto, do amor, da audigio e da visio", argumenta Epicuro (300 a.C), “pois, sem cles, o que encontro éo vazio”. O reconhecimento, porém, de que, em geral, a obtencio do prazer implica suportar alguma dor Jeva a uma reflexéo sobre a utilidade desse ou daquele modo de proceder. Assim, a busca do prazer nio é puramente instintiva, paurada exclusivamente pela sensibilidade, sustenta Epicuros pois, se tudo que existe compe um tinico sistema ~ a natureza ~, a vida é boa quando em harmonia com aordem que o institu. Argumenta en Epicuro que o prazet ea dor a ela inerentes podem ser minimizados por uma determinada quietude, correspondente & rentincia aos desejos mundanos ¢ & prudéncia na busca do prazer. Vale notar que a religido é criticada por ele porque, ao acentuar o medo da morte, produz infelicidade; os deuses,reiterava, sio hedonistase, portanto, nio se ocupam de nés. ‘A justica serd tida apenas como uma virtude particular, voltada para a seguranga, garantida na medida em que os outros consintam lem interferir © minimo em nossas préprias trajetérias. E a esse consentimento se chega por uma convengio na qual todos se obrigam a respeitar determinadas regras/A justiga deve, pois, ser vista como instrumente de agregagao, um pouco forgada, é verdade, necesséria 4 realizago dos desejos humanos/Se a vida publica tem seu mérito na medida em que estimula o homem a tornar-se mais forte, mais justo © mais virtuoso, ela deve ser vivida sem paixio: o principio que deve reget a amizade, prazer tipicamente social, é 0 de wm comportamento que evite o ressentimento do outro; riqueza e honr so desejos fiteis, pois tornam 0 homem inquieto, a prudéncia levando o homem sibio a evitar a vida piblica, na qual o ndmero dos invejosos s6 faz crescer. re O contraste desse idearfo epicurista com o pensamento catélico ‘émuito acentuado; mas nio é apenas por estar persuadido da repre- sentagfo hedonista da natureza humana que Hobbes tompe com a excolistica. © desenvolvimento cientfico de seu tempo também tein enorme impacto na inflexio que opera na tradicio da filosofia politica | Uma ciéneia da politica 1.0 procedimento cientifico Comparando a desordem da vida social com a conedrdia reinante ‘no campo das disciplinas matematicas, Hobbes sustenta que os piores males de que sofre humanidade seriam eliminados se fossem conhecidas com igual certeza as regras que comandam as agées humanas] Tal conhecimento nao poderia ser obtido como, a seu vyer, pretendia a escoléstica, caracterizando o ser humano por suas propriedades estaveis, classificadas ¢ ordenadas pela légica medie- val. Alternativamente, propde que o verdadeiro conhecimento da rnatureza, do corpo, do préprio pensamento, sé setia possivel por meio de uma apreensio dindmica, ral como postulada pelo conceito de inércia claborado por Galileu, que identifica no movimento lei fundamental dos corpos . Hobbes deseja explicar 0 movimento dos homens da mesma forma como Galieu explicou o dos corpos celeste, Familirizando- secom a geometria euclidiana em sua segunda ida ao continente, | Hobbes ficou fascinado pela redugio deste campo disciplinar | Penas quatro axiomas fundamentaise pelo método deduivo da matemitica, por propiciar um conhecimento certo. Imaginou Construir um sistema igualmente rigoroso, internamente fechado, Que explicasse o mundo da politica: persuadido da procedéncia do Principio de causalidade mecanica, o que Ihe importava era apurar 85 causas e efeitos do movimento. j | \ 40 A maneira como desenvolve esse seu projeto fica mais inteligivel se entendida em sua relagio com o nominalismo, uma das correntes epistemoldgicas entéo em voga (Cliveira, 1999). A seu ver, nfo procede estabelecer uma correspondéncia entre as coisas ¢ s mnomes, como na escolistica, que trabalhava com a idéia de esséncia, independentemente de sua aparéncia. Da perspectiva hobbesiana, ‘esstncia, distinta da existéncia, nada mais & do que a unio de somes pelo verbo set, As coisas no vém do nome, observa Hobbes ‘05 nomes so simbolos convenientes que usamos para identificar cou referimo-nos & concepgio que temos das coisas: palavras no revelam o objeto que percebemos, ¢sim a concepgio que dele temos. como nossas percepgBes s40 similares, poclemos usar 65 nomes para comunicar nossas observagGes acerca das coisas que vemos, Ao rnominalismo associa-se, portanto, o voluntarismo, isto é, aadmissio de que as coisas sio aquilo que decidimos dizer que sfo. Mas ess nomeagio deve estar pautada pela experiéncia, ¢ é nos Elementos {que Hobbes apresenta o primeiro esbogo do que se poderia chamar de seu método cientifico (Skinner, 1997, p. 388 ¢ 5). Para conhecermos cientificamente uma coisa, © primeiro passo ‘a ser dado é elaborar as informagbes que nos sio transmitidas por ‘nossos sentidos, preferencialmente pot prova experimental. A percepgio interna das propriedades do objeto que afetam nossos sentidos ¢ ainda uma sensagio: a desta agio no cérebro; o pensar omega, portanto, pela sentir: o movimento que os objetos prods vem na matéria 4 sua volta é comunicado ao cérebro pela mediagio dos nervos. O cérebro representa os objetos em suas qualidades aparentes estas que s80 perceptiveis pelos sentidos, A medida que essa representagio, retida na meméria, se autonomiza frente 20 objeto representado, ela se transforma em imaginasos e a mente procede & associacko destas imagens. Hobbes esté, desse modo, contrapondo-se ao que entende sera maneira escolistica de explicar nosso pensamento, como expressio da “capragio de uma Ides" wr esséncia projetada pelo objero; assumindo a perspectiva nominal le afirma entio que a imagin: é também acionada por estes sjgnos voluntétios’, as palavras, que propiciam nosso entendimento. {0 segundo passo requetido para 0 conhecimento cientifico defini com clareza.o significado dos termos que estio sendo emp: gadoi/ rerrarando, sem ambigiidade, a experiéncia ou sensacio, ¢ a “arte tnindo, corretamente, os nomes utilizados. A linguagem, das palavras’, que: igue a espécic humana das demais, ésuscetivel de abuso: pela palavra, enganamos, dissimulamos ¢ também ofen- demos. E preciso, na construgio do conhecimento, usar uma lin- guagem clara, precisa, que ndo deixe margem para confusio, pois, ‘como bem assinala Soares, a verdade é um problema de linguagem (1995, p. 112). (Rverdade se chega, portanto, obedecendo-se is regras do silogis-\ ‘mo, que permitem calcular as conseqiténcias légicas ¢ materiais (ou concretas) das proposis s, constituindo um argumento sélido ou passivel de contestagad. De resto, é por esse racioesnio quie © homem cexerce sua criatividade, podendo inventaro mundo em que vai vivers saber algo & reconhecer qué nés mesmos construimos ese saber. Essa maneira de conceber a ciéncia envolve uma determinada concepgao de racionalidade: Hobbes sustenta que nossa razio nos habilita a espelhar a natureza, expressando logicamente 0 que percebemos, pelo encadeamento de simbolos feito em obediéncia a regtas precisas, Esse conhecimento é produto da teflexéo humana, tha qual a razo comparece nao como “divina ilurninagdo do espfritc”, mas como competéncia de calculat. Por ela, podemos decidir se 0 que esta sendo dito é correto ow incorreto, tal qual na matemstica Em Do cidadlio Hobbes esclarece que no devemos tomar a razio ‘Como uma faculdade humana infelivel. Nao hé diivida de que os teoremas da geometria rio dependem de verificagao empit ca para Serem verdadeiros, mas, quando nossas assertivas decorrem da observagéo, estamos sujeitos a0 erro, a0 engano, diferentemente de quando nos limitamos a dedurir propriedades de figuras ideais (como total de angulos de um retingulo), resume Ribeiro (1991) porque as figuras geométricas io figuras de nossa mente, Serato, tem si mesma, est{ sempre certa, o homem pode, no entanto, equivo- car-se no uso que dela faz Seu caréter limitado néo the retira 0 dinamismo que the é espectfico, pois a competéncia para raciocinar nfo é, propriamente, jnata e imutavel: desenvolve-se através de uma “industriosidade” imorada ‘Afetada pela educagio € 0s costumes, a razio pode ser seo homem, em seu estado natural, é dotado da competéncia racio- nal, ésta experiéncia que Ihe permite usi-la com maior ou menor ficdcia para a realizagio de seus desejos. Com tal enfoque, Hobbes postula que se o Estado é uma criagio, pode-se deduzir da narureza humana como ele deve ser organizado cde modo a ser legitimo, isto , eficaz em garantir a paz. Essa postu= lagfo leva, em nitido contrate com a concepgio de Maquiavel tuna desqualificagdo da histéria como fonte eferiva de saber, pois seu conhecimento “nao conelui coisa alguma em caréter universal (Skinner, 1997, p- 349). E ndo apenas a histria, mas a propria e+ dicho perde status, diz Soares, que chama a arengio para esse aque seré mais tarde redescoberto sob o nome de tradigio da ruprury aracterizando a modernidade madura (Soares,1995, p. 141). A ciencia, digna deste nome, “deve ser tatada de maneiraa que aver dade do que & concluido possa ser conhecida por uma inferéncis necessdtia” (ibid., p. 351). Se tal tipo de conhecimento pode signi- fear um corte com a tradigio ou com preceitos accitos por todos, indo deve o cientista, por isto, se inibir ¢ deixar de dizer o que vé¢ sabe. | A Ciéncia politica ou uma teoria de justica Nio haveria qualquer originalidade na concepcao de Hobbes em relacfo aos novos cinones cientficos em voga,exceto por afizrmat | Somos iguais, a insrospeccio deve levar todos que dela se server aos __esmos resultados: apsicologia €uma s6 Elica da poigue revel qua justica & um assunto passvel de ser cientificamente analisido, srgumenta Skinner. (1997, p. 399 €413). © desafio para cle colo- cado 0 de aplicar uma légica pura, perfeitamente racional, referida sextritamente aos simbolos, para o entendimento das relagdes huma- spas. Esse esforgo no sentido de conferit autonomia a ordem politica pisd-vira ordem religiosa e floséfica, referéncias até entio obri- avsrias do poder, almejavaliberar a politica da rutelaeclesal de qnodo que sua dindmica pud: ser compreendida tal como confi- gurada na experiéncia conereca, (Essa perspectiva inovadora é também tributéria de uma das caracteristicas do pensamento renascentista, transmitida a Hobbes por Bacon. Para este, trata-se de estabelecer uma nova relagéo entre hnatureza e arte, em que a arte nao deve imitar a natureza, mas re- al criar maquinas, isto ¢, substivuir a natureza pelo engenho humano. ctid-la: sea fisica mostra que a natureza é mecanismo, ento é poss esses termos torna-se mais compreensivel a intengao hobbesiana de produzir a ordem politica correta, 0 Leviaté, para substituir a sociedade em guerra civil. A cién presta-se a essa autonomizacio da politica, permitindo a éonstrugio de um discutso que obedece a um método rigoroso: o da iitrospecsio, E-pelo conhecimento que temos de nds mesmos, isto é da paticula elementar, do individuo, que se pode, chegar a uma base | Segura para a construsio cientifca da ordem politica,}pois, como : Se como a do enfrentamento de paixses, que movemoindividuona = “regio da realizagio de seu desejo. © desafio colocado para uma 3 iéncia da politica pode, portanto, ser atendido se baseado na moral {ntrinseca & natureza humana, que teconhega as tensdes do desejo, tSpico a ser tratado mais adiante neste capitulo, A recusa a identificar no set humano uma sociabilidade natural, aclesio as teses epicuistas, fascinio pela geomettia eaconviegfo + a4 nominalista contribuem, cada qual a seu modo, para que Hobbes, constitua a figura central do individuo como portador de direitos inaliendveis, fandamento da legitimidade do poder do Estado. Disto trata o Leviata, que estabelece as regras para o contrato social \A construgio do Estado A concepgao hobbesiana do individuo e seu dircito inalienavel a vida ‘A maneira pela qual Hobbes constr6i sua representagio de individuo o leva a se contrapot fortemente ao conceito dominante ‘em seu tempo, mesmo que entfo ji estivessem presentes cortent dle pensamento queimpulsionaram o individualismo, como o Renas- ja uma calamidade, cimento ea Reforma. Se admite que a solida ‘em nenhum momento a sociabilidade é tratada como algo “incrin- seco 3 natureza humana’; alternativamente, Hobbes enfatiza 0 ‘cariter artificial da vida em sociedad! Portanto, cabe usar 0 conhe- cimento cientifico para sua adequada construgio. Coerente com sua énfase da apreensio dinimica da realidsde, Hobbes comeca tal construgio especificando o que move oindividuo, esse set desejante que viaja permanentemente, de um objeto para ‘outro, almejando sempre mais e mais. A introspecgao e a observasio dos outros mostram, segundo Hobbes, que se as motivages hums: nas sao as mais diversus, destacando-e entre elas a busea do pod da gloria e da riqueza, a de proteger a propria vida prevalece sobre Assim, predominam no individu 0 medo da morte “Se 0 medo induz 0 homem # as dem violenta e a esperanga de viver bem afastar-se da guerra natural, a esperanga posta no trabalh buscar o Estado que Ihe garanta vida e conforto” (Ribeiro, 2004 P 220). Qualquer homem que no sejatolo ou esteja louco tee? ‘outro, mas também espera poder estabelecer com todos uma Pt? c longa. 0 leva-o duradoura, que the permita uma vida boa Esse desejo precisa ser raconhecido por quem intenciona moldat ‘asociedade, pois as paixdes sfo para a moral o mesmo que as forcas, para o movimento, © poder nada mais é do que “a condigio para que o desejo se afirme como tal, ito & possa crer-se vidvel,e, p tanto, projetar-se como esperanga” (Soares, 1995, p. 195). Seo poder € a instrumentalizagio do desejo, uma ordem politica ju deve ser compativel com este iiltimo.| Ei seu estado nacural, cada individuo ¢ livre para exercer sew poder de acordo com sua vontade, de agir como achar apropriado para realizar seu desejo. Por sua natureza, os individuos desfrutam de um dircico geral e absoluto sobre todas as coi {que Hobbes parte da premissa de uma igualdade bésica entre todos ‘ada individuo encontra no outro 0 obsticul fruto des bstaculo ao usufruto desse © direito nacural, | Nio se tata aqui apenas da presungio de uma igualdade for ‘mal: 0 que-Hobbes ressalta, percebendo o quio desiguais sio as | pessoas em seus diferentes atributos, é 0 fato de que desigualdades diferentes acabam por se compensar. Assim, /todos os homens tém_ condigées de usar os reciytsos de que dispéem para garantir seu iteito natural 8 vida, no seittido de que se um ¢ mais robusto, © tro & mais Agil; se um, mais inteligente, o outr ° ig 0, mais esperto. No Gecconcene A agio coletiva, todos tém condigées de se unir 12 elimi : ar um inimigo comum; finalmente, todos podem se “Peneficiar da prudéncia, que “nada mais é do que a experiencia Jue tm tempo igual igualmente oferece a todos os homens, aquelas Bisas a que igualmente se dedicam”, Como o desejo é insaciavel, e todos tém como buscar sua realiza- No capitulo 17 do Leviatd, Hobbes dé as razées desse conflito, endo destacar, em primeiro lugar, a de que os homens competem, 45 permanentemente, por “honra edignidade”, resultando disto inveja e édio; em segundo lugar, dado que o bem comum ¢ 0 bem priv so distintos, é 0 iltimo que tende a prevalecer, cada wm pre dendo saber melhor do que os demais governar para o bem de todos; finalmente, considerando que o uso da retética tanto pode enganar quanto persuadir 0 outro, todas essas razbes demonstram que’a sociabilidade humana nfo é natural, e sim fruto de um artificio, Existe, é certo, em sua concepgio do individuo, uma paixio direramente social, a da gloria; mas esta nio exclui a rivalidad. inveja. Assim, 0 homem, a0 buscar algo para si, o faz em detrimento € nao pela cooperagio com outros: “compete pela dominagio, desconfia pela inseguranca, almeja a gléria por presungio” (Levi cap. 13). Como assinala Soares, “para que a méquina de guetta seja ativada, basta que {os homens] sejam iguais, conscientes desta igual dade, racionais e inspirados pelo desejo de autoconservar-se” (1995, p- 216), pois a agressio alheia é plausfvel simplesmente por nao utilicérias nao sup haver qualquer garantia de que conveniéncia tem o interesse cooperativo; sequer € necessirio invocar a escassex de recursos: basta essa incerteza. Usando seu ra jocinio, os homens se dardo conta, entretanto, de que se, em defesa da prépria vida, atuarem insensatamente, nfo ‘obterio o resultado almejado:[o direito a tudo, afinal, é direito a nada, porque ¢ igualmente de todos. No anseio de se proteger do outro, cada qual pode antecipar um ataque, estando, portanto, todos em guerra (mesmo que virtual) com todos, por nao existir um poder coetcitivo que imponha respeito. Em tal situagio, a tinica “lei” £3 forca ¢ a asticia, que podem levar a0 aniquilamento da esp. ‘Mas se compreenderem a lei fundamental de sua natureza, deverio abrir mao desse direito irtestrito para constituir um poder sobera Este, 0 Leviaté, ¢ 0 tinico capaz de Ihes proteger do pior mab 2 morte violenta, e hes dar a esperanga de viverem bem, em pat € com fartura Tal intuito pode ser bm-sucedido, pois, como ressalta Ribeiro, Hobbes interpreta ‘sata’, pressa de nossas vontades ou pelo préprio ‘costume do mal’ endurecendo-nos 0 coragio” (2004, p. 203). Assim, o”desejo jnsacidvel ‘pode ser reprimido pela vontade razodvel, ou se més acdes como resultado da “‘sutileza de aquela que move o homem para o bem que a razio recomenda’ (ibid) (Hobbes esté aqui procedendo a uma torgio no campo do jusna- turalismo. Sendo 0 exercicio da liberdade um direito, eestabelecendo a Ici limicagdes a0 movimento, dircito ¢ lei significam coisas tio diferentes quanto limite e franquia e, portanto, sustenta Hobbes, info procede derivar os direitos da lei,/como, jé assinalado, se fazia’ rngo apenas pela escoléstica como também por Grotius. Alternati- vvamente, lei deve ser entendida como um procedimento que Viabiliza o dircito A autoprotesa6: Tal procedimento requer a compreensio de que % resultado __combinado das ages individuais pode surpreender e contrariar as ~ Iteng6es que as orientam” (Soares, 1995, p. 23), Pelo raciocinio, tural fundamental, que, em resposta a ‘os homens entendem alei n tal desafio,Ihes sugere fazer {im pacto entre si, com vistas a garantir _ seicdireito a vidal Tal lei no deve ser interpretada como um man- amento, ¢ sim como um preceito que indica as normas gerais de “ Moralidade que impedem os homens de atuarem contra si préprios. bte-sc, portanto, que, se o direito nao cria qualquer obrigacio, rigacdes decorrem do pacto, no sentido de que 0s homens, aten- Endo a essa indicagéo natural, concordam em ser fis & lei civil le por cle estabelecem. Esta, a lei propriamente dita, obriga ntroduz-se, aqui, a temética da liberdade, entendida como ee se hd o reconhecimento de que a natureza fisica obe- hi |e questio a liberdade humana, na acepgio de livre-arbietio tas leis — movimento dos corpos, gravitacio universal - Bbbes recusa conferir ao ser humano tanta competéncia: 0 que Hes é vontade, expressio de um desejo que pode ser regulado. a7 Como 0 homem é capaz de simbolizar, ele tem a capacidade de, pela linguagem, representar e compreender a realidade. Assim, antes de agir, isto é, de obedecer & sua vontade, o homem pode pensar: compreender, refletir e entio decidir. E este o momento — de liber dade — que desfruta para determinar o fim de seu movimento ¢ buscar os meios de alcangé-lo. Seu desejo pode realizar-se no convivio com os outros, descle que todos se predisponham a estabelecer regras comuns € a clas obedecer, constituindo uma sociedade pacifica. Sendo todos dotados de razio, esta sugere caminhos que levam aesse tipo de convivencia, caminhos indicados pelas “leis da natureza” que todos podem compteender. Tais leis expressam a ordem natural, que pode ser conhecida, ¢ nada mais sio do que conclusdes exttaldas da razio sobre o que se deve ou nio fazer para se viver em harmonia. Sio elas contrétias a muitas paixdes, e€ sob este duplo impulso ~ do d jo e da compreensio da realidade ~ que os homens constroem 0 Estado. | O contrato social (O sistema politico proposto por Hobbes guarda afinidades com aqueles desenhados por Agostinho e Calvino, Para ambos, as pai ‘humanas deveriam ser submetidas ao controle do Estado, pela forsa, se necessirio, Neste sentido, qualquer ordem social e politica estabelecida justfica-se pela propria existéncia, sendo justas por regularem as atividades de homens decaidos pelo pecado. Mas Elobbes recupera 0 conceito de pacto, estranho aqueles sistemas autoritérios, bem como recusa a idéia de que exista o mal em si Sua negagio de uma paixio pecaminosa deve ser ressaltada: nada que éhumano é bom ou mal, diz Hobbes, pois a fonte da mors! nao é natural; como jé assinalado, sua fonte éa linguagem: a mordl Efruto do acordo entre todos de delegar a0 soberano o poder de de finir 0 que é justo ¢ injusto. Mas, para se chegar a taFacordo, Hobbes precisa explicar como, partir do estado natural de guerra, pode-se chegar a um contrato social duradouro, ¢. ’o apenas a uma associag precétia: constitur uma sociedade que solde todos esses individuos em um todo. A passagem da natureza para a civilidade ¢ complicada: por que ur individuo abriria mao de seu diteito a tudo para se submeter 20 soberano se nao estiver convencido de que os outros também 0 fardo? Essa temitica ser retomada, na contemporaneidade, pela teoria dos jogos centrada no “dilema do prisioneiro”. Sua solugio é demonstrar que um pacto social é capaz de evitar o conflito gene- ralizado e estabelecer as condicées para a paz.'O reconhecimento do dircito natural & preservagio da vida constitui a base de seu raciocinio. Assim, €um direito natural, referido a uma reivindicagio subjetiva absolutamente justificada, e no a uma lei natural, que | sustenta sua teoria de justica (Skinner, 1997, p. 413-414) A-construgio da sociedade politica pode ser efetivada, desde que os homens lidem corretamente com suas paixdes. Como jé " notado, algumas delaso inclinam & paz; particularmente, o temor __ da morte violenta, o desejo de ter uma vida agradavel, ea esperanca de realizé-o pelo proprio trabalho. O conforto, o lazer, aexisténcia bem cultivada pela cigncia e pelas artes sio bens almejados que 0 Homem pretende aleangar por seu esforco. A situacao de contflito __ Benctalizado pode ser superada porque o homem tem a capacidade - t perceber que sua conservasio pode ser garantida se todos se Beocuparem cow a seguranga coltiva: is pessoas podem chegar a) Kompreender que, se nfo mantiverem suas palavras, nos acordog "Ros, ndo mais setio convidadas a cooperar e, sem cooperaga © ifcilmente um individuo sobr-vivé, conforme ressalta Haakonserk E homem descobre que o bem de cada um pode coincidir com "m comumi|(Polin, 1980, p. 94)/ esta a natureza do raciocinio eleva A construcio da sociedade civil, ou Estado, Como assinala (..) substicuem volunsariamente © medo miiruo (.) pelo medo (..) de um terceito poder neutro, 0 governo, e desta forma substituem um perigo imensurivel, infinivo e inevitével ~ 0 perigo infligido por um inimigo ~ por um perigo mensurivel, limitado e evirivel ~ 0 perigo que ameaga apenas as transgressées das leis dos tribunais (Sera, 1980, p. 82- 83). A sociabilidade humana de que fala no capitulo 15 ¢ seguintes do Leviatd é sociabilidade constru(da a partir do pacto, e a paz, assim obtida, € menos paz do que seguranga, protecio contra 0 } outro; portanto, Hobbes toma o Estado nio como instancia de realizagio humana, tal como proposto pelo pensamento cisco rego, mas de protegio da vida Esta aqui formulada uma concepgio radicalmente nova da sociedade politica, que parte do desejo individual de preservacio de sua existéncia. O Estado se constitui, portanto, por um pacto, firmado pelos individuos (¢ nao por principio organico, como etao caso da concepgio medieval do pacto entre comunidade ¢ rei), com vistas a constituir a “Pessoa Unica’ em que se congregou a multidao, Pessoa to singular como eram cada um dos contratantes, no so de sua liberdade, com a diferenga de que esse “super-homem” é soberano, e seu poder nao pode ser dividido ou limitado. Tudo se processa como se cada um tivesse dito aos demais: autorizo essa Pessoa e Ihe confiro o direito de me governar, com a condicio de que tados fagam a mesma. Trara-se, pais, da rransferéneia por parte de cada individuo do seu direito total e absoluto sobre qualquer coisa & “Pessoa Unic: der sobre todos os cidados. Aqui esté'a maior novidade que Hobbes a qual, a partir deste momento, adquiire po aporta para a defesa do poder absoluto do Estado: a idéia de que este € um poder consentido; eferivamente, representa a comwunidade-? Esta nogio de representagio, como assinala Sarti (2006, p. 150) possibilita a que todos reconhegam nos atos do soberano sua propt® autoria, pois sé por meio de uma autoridade capar de agir PO todos 2 paz pode ser obtidd entre pessoas scparadas por seus in- " [Racionalidade e retérica ‘Skinner chama nossa atengio para uma inflexio, no pensamento ‘hobbesiano, mostrando que um dos principais objetivos de seus doisprimeiros livros é 0 de “questionar e derrubar os esteios centrais “da ars rhetorica” (Skinner, 1997, p. 399 es). Tal intuito, que cons- feui um corte com sua formacio humanista, ¢fruto de seu fasc{nio pelacitncia, propiciado pelo contato com os experimentos no campo a fsica e os desenvolvimentos na matemitica (ibid.) ‘Com mais de 40 anos, Hobbes vivencia uma crise intelectual, pata a resolucio de seu problema central: a construsio da boa ordent publica, a realizagSo da justiga. Nao é pela persuasio, e sim pela “demonstragio que tal ordem deverd vir a ser por todos aceita como | tinelhor. Trata-se de mobilizar a ratio e nfo as emogbes humanas, lingio para a qual se presta 4 oratio, as téenicas da retérica | Eilizem as mesmas concepgdes que trazemos em nés”, a0 passo que “petsuasio almeja conquistar a opinifo a partir da Paixao”. No GE conceme estricamente ao ethos cientifico, jé 0 lema da Royal Sener, nullius in verba, indicava o desprezo pela persuasio. por traste com o elogio da demonstraclo da verdade, Hobbes é parti mente critico da idéia de que um argumento deve ou no set Hf dependendo de como é apresentado; a forga da argumentagio user a acompanhé-la: 0 que impor- Ptova, nfo quem a apresenta Us @ observacio critica da sociedade, empreendida ao longo et MPO a partir dessa dtica, mostrou que seu intuito era irrealista: ria dos homens nao se dispée a0 esforgo imprescindivel 4 compreensio da “reta razio”, justificando-se, portanto, 0 uso da retérica para a construgio do Leviatd. A ciéncia politica nfo pode, & diferenga das cigncias naturais, prescindir da oratio, pois, mobili zando as paixes, é por elas que os homens sio levados a concordar, com maior ou menor entendimento, em realizar 0 contrato do qual resulta a ordem justa. Hobbes recupera, portanto, a tetérica como instrumento que utiliza a linguagem, “a mais nobre e proveitosa dentte todas as invengées", para persuadir os que nao alcangam a compreensio dos “teoremas”, Entretanto, conhecedor dos meios pelos quais a linguagem pode seduzir e perverter os homens, no LLeviatd nao havers lugar para o debate politico. De cidadania tal como classicamente formulada (Skinner, 1997, p. 10, a Hobbes no seduz.o ideal do vir civilise da teoria da 107). O renascimento inglés tragara uma distingio entre 0 mero stidito e 0 cidadio, ao qual ¢ atribuido o papel de participante na constituigio e administragio das leis, com vistas a manter a res pi blica ou bem comum. Hobbes recusa tal distinglo, sustentando a incapacidade da multidio para governar, sendo, ao contritio, passtvel de set enganada pela demagogia. O uso da retdrica tem efeito perver- so sobre a comunidade, especialmente em regimes democriticos. A argumentagio de Hobbes, conclui Skinner, culmina numa visio de cidadania e de suas obrigagdes que € diametralmente oposta & imagem do vir civlis os cidadios, isto é, os stiditos, devem se ocupar apenas da esfera privada de suas existencias, pico a ser considerado no final desta sess. No entanto, para o seu leitor, nao deixa de usar a imagem do Leviatd, monstro das profundezas descrito no Antigo Testamento como aquele que “foi criado para nfo temer”, 0 “tei dos soberbos". Como assinala Skinner (1997){a autoridade piblica emerge dos temores mais fundos, que impulsionam os homens a estabelecer 0 Estado ¢ obedecer as suas leis. Assim, feito 0 pacto, renunciam todos & sua liberdade em prol de sua preservacio ¢ da expe de viverem uma vida mais Feliz, Sem este tipo de pacto, argumenta Hobbes, a qualquer momento alguém pode dizer que, por ser mais sibio, tem 0 diteito de condiuzir a coletividade, introduzindo o dissenso que pode levar novamente a sociedade ao estado de guerra; Epreciso que haja uma s6 vontade, que encarne 0 povo e ordene a sociedade de modo a garantir a paz, devidamente amparada pela concentragio do poder coercitivo | 0 oficio do soberano Asoberania, em Hobbes, nao pode ser limitada, pois, se 0 fosse, seria por um poder maior, que simplesmente nao existe, uma vez que o poder soberano &, precisamente, o resultado da totalidade das forsas possuidas por todos os cidadéos romados em conjunto Deve estar claro, portanto, que'a soberania €ilimitada por defini Também nao pode ser dividida. Hobbes é tadicalmente contra a divisio de poderes, porque ow esta divisio ¢ meramente formal ou, sendo ofetiva, pode propiciar a dissensio e finalmente a dissolugso da sociedade politica: somente o poder unitério garante a eficécia almejada. Soberania nada tem a ver com a forma de governo. Na primeira vez em que trata da questio, Hobbes reconhece as qualidades de Juma democracia, mas sustenta que esta s6 fiantionaria enquanto fodos estivessem reunidos no momento, por assim dizer, do pact ‘Ao se dispersarem, pessoas privadas assumem a condugfo dos ne- | Bicios coletivos,uté porque a maior parte dos cidadaus se canisa da Politica e, na pritica, ter-se-d uma aristocracia ou uma monarquia (Polin, 1980, p. 98). Podendo representar-se por um tinico homem | 08 por um conselho, ou mesmo pela assembléia, Hobbes considera _ te o melhor & colocar o poder nas méos de um homem apenas € eseus conselhciros, porque as assembleias sio pouco informadase Propfcias ao engano. Como a existéncia do soberano resulta do pacto, nao pactua ele smo e, portanto, nfo tem compromisso com ninguém no entan- ¥ to, €0 pacto que Ihe dé a forca para garantir 0 acordo feito; assim, essa liberdade absoluta do soberano nao deve set compreendida como a liberdade de fazer qualquer coisa, isto é a soberania nao ¢ arbitrdtia, pois esta irremediavelmente conectada a0 destino do povo, ‘Compete ao soberano fazer tudo que for necessério para que os siiditos vivam em paz. Como nao hi quem possa qualificar um ato soberano como injusto, porque nao hi distingao entre sociedade civil e Estado, o soberano, “alma do corpo politico”, fica situado acima das leis que ele mesmo estabelece. Tem ele 0 poder de promulgar e abolir a lei positiva, que € a nica regra do justo e do injusto. primero dever ou oficio do soberano € assegurar sua propria protegio; 0 segundo é proporcionarao povo seguranga, 0 que obtém quando promove a prosperidade, assegura a justica, gar igualdade perantea lei, stipula uma tributagio adequada, organiza a caridade em favor dos invdlidos e obriga os vilidos a trabalhar Fome e miséria, nota Ribeiro (2004, p. 100) denunciam incapa- cidade governamental, e, se sto nfo constitui razéo para os stiditos se rebelarem, cada miserdvel pode exercer seu direito natural de tranggtedira lei para manter-se vivor!“Quando um homem esté priva do de comida ou de outta coisa necessiria & sua vida, ¢ n3o pode manter se por nenhuma outra via, a nfo ser por algum ato contrétio alei (..) ent esté totalmente desculpado” (Leviatd, cap. 27). ‘A.agiv do soberano deve ser efieaz, administrando a e com competéncia, Em tempo mercantilista, ela deve garantit vantagens na troca, sendo © outto em principio tratado como adversétio, tendo em vista a escassez. de metais preciosos, s{mbolo da riqueza. Sendo ilimitado o desejo humano, a economia deve set expansionista, como assinala Ribeiro: (..) a setem miseriveis os homens, destizatio para a condigdo natural, e da fome resultaré ~ de novo ~a guerra de todos. Nao sendo mais protegidos, retomario o direito de cuidarem de si mélmos. Nao se trata de revolta... [e sim de] novo retorno ao estado natural, devido & agio ou inagio do soberano, (isi, 21 4, p18) {© soberano representa a vontade de viver dos sditos. Ele nfo é pair mas autor do Estado. Néo sio lagos morais ou afetivos, mas gontratuais, que o ligam a seus stiditos: toda a sociedade é de origem artificial (Ribeiro, 2004, p. 154; Soares, 1995, p.180 es.) ea con- cordancia, racional. | A inocente liberdade Cabe enfatizar que os stiditos néo séo servos, uma ver que se submetem 2 razio piblica, no A razio privada; sio movidos pela tesperanga, nao obedecem apenas por medo; preservam a “inocente” = liberdade, ou sea a liberdade que ndo ameaca a pa, (Como assinala Ribeiro, o siléncio da lei, espago da liberdade individual, é inevitdvel (.) quer porque as atividades humanas sio sempre mais complexas que as leis, quer porque estas devem ser poucas ¢¢ claras para serem obedecidas (..) quer ~ fialmente ~ porque a liberdade que esti em seu siléncio é o que resta da liberdade naturalde movimento e, se nada sobrar dela © homem ~ trancafiado, marionete ~ ser com 0 cativo prometido & morte. ibeiro, 2004, p. 98). Portanto, os stiditos podem contratar entre si, escolher seus “Bficios, suas residéncias, formar associagSes, mas essa organizagio th socied: lade nfo tem qualquer teor politico, pois nio existe o _ onccito de povo como entidade detentora de dieito, ou sujeito de Aiteito, nem antes nem depois da formagio da sociedade politica Ho hé também o conceito de “comunidade”, segundo qual um Mesmo conted it "mo contetido — uma linguagem ou um propésito comum — é © Partlhado por todos; existe a sociedade, isto é, individuos que se relacionam por meio de deveres ¢ direitos reciprocos, livremens: estabelecidos, de modo que nao hd nada que possalimisar a vontade do soberano. Mas os siiditos nfo podem, por meio de nenhum pacto, renun- ciara se defender contra aquele que legalmente ver executé-los ou faver-lhes mal, porque o direito de preservagio da vida no ¢ alie- navel, Tal direito do siidito, entretanto, nfo limita a soberania, porque caso 0 confronto se dé, o stidito deixa de sé-lo para retornat a0 estado de natureza | Estado e Igreja Hobbes tinha sérias restrigdes 20 catolicismo romano, como fica lato na tiltima parte do Leviatd, pela supersticio popular por ele engendrada, pelo modo de se comportar dos clérigos, bem como pelo anseio romano de suplantar 0 poder terreno. Desconfiava também dos puritanos que, em nome de sua consciéncia individual, se davam o dircito de desrespeitar as leis. Assim, se uma das {que o afligiam era provocada pela guerra religiosa (a outra eraa dis- puta entre o poder monArquico eo parlamento), Hobbes mantinha- se distincia das duas grandes correntes em confflito, procurando fundar a ordem politica em um conhecimento cuja veracidade nfo dependesse da interpretacio eclesial Se nao interessa aqui a questo da fé religiosa de Hobbes, ¢ sim ‘0 modo como submetew a Igreja ao soberano, cabe notar apenas a maneira como descartou tal assunto. Como jé assinalado, Hol © esté persuadido de que nosso mundo é dinamico: a natureza, criada % por Deus, pode ser conkiecida, porque seu movimento é regido por % leis; mas como Deus escapa ao movimento, escapa também ao conhecimento humane. 2 A relagdo entre a Igreja e 0 Estado comega a ser trabalhada @ © partir do capitulo 31, no final da segunda parte do Leviatd, e ocup2 toda a terceira parte, que trata do Commonwealth cristio. Hobbes grgumenta que 0 poder d8 soberano nao pode ser suplantado pelo poder da Igreja, até porque a missfo desta nfo é a de governar, e sim a de evangelizar, construindo a comuntidade religiosa na Terra, reino deum outro mundo. O soberano é chefe de Estado quevisaa echefe da Igreja, pois a Igreja e 0 Estado compéem-se dos mesmos homens, que se cham unidos em uma pessoa piblica. Como assina- Ja Branco (2004), a indivisibilidade da soberania requet a seculariza 0 do poder, isto & a impossibilidade de se distinguit 0 poder temporal do espirisual: os poderes estdo unificados na interpretagso dada pelo soberano do que € certo ¢ errado, bem ¢ mal; mas 0 soberano s6 pretende governar os atos exteriores dos homens, visto que “somente Deus” conhece 0s coracées. Como 0 soberano exige stidito, ndo crente, a paz emerge do conformismo exterior. No entanto, Hobbes confere enorme impor- tincia 4 educagio piiblica (isso fica claro no final do Leviard), pois € por intermédio dela que as doutrinas corretas podem ser disse minadas{ Como assinala Ribeiro,/Fiobbes nao acha que seja possivel ‘educar o homem de modo'a transformar, alcerar realmente sua nacu- eza, como serd o caso de Rousseau — por isso mesmo, “o soberano deve proteger, sem parar, a seus stiditos” (Ribeiro, 2004, p. 29) -, mas o fato de a natureza humana nao ser alterdvel nao elimina a possibilidade de aprendizagem, de saber, de redugio da ignorancia, | Principais obras de Thomas Hobbes Leviata. Sao Paulo: Abril Cultural, 1983 Do cidado. Sao Paulo: Martins Fontes, 1998. Carituco 3 1 Locke € 0 governo representativo | Novas biogrdficas John Locke nasceu em 1632, na Inglaterra, filho de funciondtio ‘piblico, ctiado em ambiente puritano. Sua infincia foi vivida em um perfodo de conflitos violentos entre o rei, Carlos1, eo Parlamen- “to, que redundou na execugzo do primeiro € na instauracéo da “‘Repiblica de Cromwell” ordem autor ‘onze anos. A restauragéo da monarquia fez-se de forma atribulada, dria que durou cerca de tEquea “Revolusio Gloriosa” propiciou a ocupacio do trono inglés _ por Guilherme de Orange, de quem Locke foi Asses 9 especial Formado em Oxford, depois delecionar em universidades, Locke nou-se conselheiro, médico esecretério de lorde Ashley, politico ; uem serviu até sua morte em 1683, j4 ambos exilados na Ho- a finds Sua vida profissional se dividiu entre a pesquisa teérica € a © Aiividade publica. Nesta, cabe destacar 0 seu envolvimento com sSuntos pertinentes 4 colonizagio inglesa, como secretério dos Lordes ul oe da Carolina (1668-1671), do ‘Conselho de nee O inicio da redagao do Ensaio sobre o entendimento humanodaca de 1671; na Holanda, finalizou os Dois tratados sobre 0 governa civil, escrevendo em Utrecht a Carta sobre a tolenincia e Alguns _pensamentos referentes d educagéo. Sé comegow a publicar seus textos com mais de 50 anos, apés seu retorno & Inglaterra em 1689. O sucesso de seus livros foi enorme, merecendo virias reedigées. Gradualmente abandonou a vida politica, retirando-se para Essex, onde redigiu textos de cunho religioso, Rezuabilidade do cristianismo (1695) e Defésa do cristianismo racional. Morteu com 72 anos. | Locke em seu tempo Adepto do jusnacuralismo, Locke partilhava, entre outros, com Grotius, a idéia de que a sociabilidade natural, ao contrétio do que presumiam os escolésticos, néo levava necessariamente & constitui¢io do Estadoia sociedade civil nao deveria, portanto, ser comada como prolongamento da sociedade natural, ¢ sim como criagio, produto lidade © & paz, Estabelece, portanto, um corte entre a sociedade civil, a cif ida conjungio de vontades individuais visando & estabi tas, €a sociabilidade natural dos homens, corte este possibilitado pela intervengio deliberada da razio. O aspecto mais relevante do jusnaturalismo para a fundamen tagio desse novo principio de legitimagio do Estado, fundado no contrato, é0 que implica o alargamento do espago conferido a r humana, O peso até envio dado a lei nacural como referéncia externa is subjetividades para a definicio do certo ou do justo derivava da presungio de que eta posstvel obser dos textos sagrados e da prépria natureza a orientago pertinente & definigéo do que seria o bem comum; com o desenvolvimento da nogéo de direito natural, a justiga deixard, porém, de estar referida ao cariter “objetivo” deste bem para expressar os acordos possiveis entre variadas perspectivas individuais, ace 1 O conceito de razio que possibilita essa diversidade de pontos ___ de vista estd trabalhado em sua teoria do conhecimento, expressa no Ensaio sobreoentendimmento bumano. Locke parte da pressuposiga de que, para'haver uma idéia correta das coisas, é preciso “levar 0} espitito & sua natureza inflexivel es suas relagdes inalteraveis”, an ges que tentar adequat a realidade aos nossos preconceitas| Contra riando o inatismo vigente em seu tempo, argumenta, como Hobbes, | que @conhecimento advém da experiéncia, sendo a mente humana tabula rasa seu ver, nao ha lugar pataasidéias inatas, cuja existéncia independeria da experiencia, de acordo com a tese entio corrente. Essa experitncia esté diretamente ligada & percepsio, que algumas ‘vezes possibilita a apreensio imediara daquilo que se quer conhecer, |__ mas outras tantas precisa ser estabelecida por demonstragio, Locke argumenta que’ todo conhecimento consiste no reco- » nhecimento de uma conveniéncia ou de uma inconveniéncia entre idgias, determinada pela razio, De carter procedimental, isto & ‘efetida 20 modo pelo qual pensamos, a razio implica a suspensio da opinigéo de modo a permit a reflexdo, Por meio desta conse- __ Buitmos determinar as coisas que éonhecemos com certeza bem como as que devemos aceitar como boas, porque préticas, apesar de terem | 4penas a probabilidade, nio a certeza, a seu favor, Quando 0 que estd sendo pensado se relaciona a idéias criadas pelo proprio espitico, o conhecimento pode ser verdadeiro. Este é0 _ 80 da mateméticg ¢ da moral, cabendo notar que, nessa lima, Tocke trabalha fundamentalmente com a l6gica pata estabelecer a rrdade ou falsidade dos valores postulados. As idéias que repre- entam a realidade, entretanto, e que compéem as ciéncias experi- Mentais, so apenas provaveis, pois se constituem a partir de uma Tultiplicidade de pontos de yista. Sendo duplo o fundamento deste conhecimento probabi BS & tico ~ conformidade com a experiéncia ou Sstemunho de experiénciaalheia ele que se deve dar atencio Intes de acatar uma proposigio. Com esta argumentagio, Locke justifica o valor do senso comum, esta forma de saber cuja validade decorre do reconhecimento da enorme dificuldade de efetivamente demonstrar-se a veracidade de uma proposicio. E é nessa perspectiva radicalmente antidogmitica, que reconhece a precatiedade de todo saber, que Locke se apdia para fundamentar sua postuta francamente favordvel 4 colerancia, com vistas a amenizar 0s conflitos religiosos que marcavam seu tempo. (A seu ver, a tolerancia favoreceria o convivio das varias re- ligides em um mesmo espago social, recomendando respeito por opiniées e crengas divergentes. Tal postura nao deve, entretanto, ser identificada com uma indiferenga a religido; Locke €cristio, e acredita que o cristianismo tem uma fungio a cumprir na preservacio da ordem coletiva, re- produzindo aqui o saber entiio em voga, que sustentava que o medo do inferno e a esperanga da vida eterna no paraiso eram paixdes necessérias & obediéncia is leis e aos costumes. Assim, 0 ateismo era rejeitado no apenas por razbes intrinsecas 20 campo teol6gico, mas também por abrir as portas da transgressio a todos que se consi derassem espertos o suficiente para evitar a punigao terrena! O temor de Deus, sustenta Locke, ¢ um motivo necessério para garantir que as pessoas cumpram com sua palavra, algo crucial em sua reflexio politica, uma vez que a confianga éa base da ordem social. Admitido isto, Locke nio vé qualquer problema no fato de cada pessoa venerat a Deus a seu modo, desde que fundada tal veneracio em crenga genusna ‘Assim posto, pode cle recomendar a convivéncia das diversas vyertentes do cristianismo, desde que nfo visassem a sua conturbagio. Esta Glrima cldusula deriva do fato de que,/éomo qualquer outra atividade publica, a religiio tem de estar de acordo com o bem comum, Assim, aquelas religides que sustentam que nao é necessirio ‘manter as promessas feitas para heréticos ndo devem ser toleradas como, a seu ver, eta 0 caso dos catélicos que guardavam lealdade politica 20 Papa. De qualquer modo, o dever do Estado & 0 de protegera sociedade, e nfo o de obrigar os stiditos a praticar o que 0 Estado considera ser a religiso correta ‘Acssa reptesentagao de um contexto social marcado pela tolerin- ‘cia corresponde uma nogio de pessoa como moralmente auténoma {quanto a suas ctengas ¢ priticas e respansivel pelo conhecimento - go qual adere, independentemente de qualquer autoridadé)Jé no Ensaio percebem-se os tragos bsicos dessa concep¢io moderna de individuo, queGonfere ao ser humano a competéncia de se construir “asi mesmo, como agente que tem acesso a uma razfo instrumental UIndividuo e sociabilidade natural Aconcepgio do ser humano como individuo independente dos demais jé estava bastante enzaizada no imaginétio politico quando Locke escreve sua obra, Cabe notar, entretanto, ¢ por contraste com Hobbes, que a sociabilidade natural segue como uma das premissas centrais de seu argumento. Locke afirma que, “por necessidade, conveniéncia pritica cinclinagio” (apud Polin, 1980, p. 136-137), ‘0 homem ¢ levado a procuraf 0 convivio com outros homens; tal sociabilidade ¢, contudo, “obra aleatéria ¢ hipotética de uma erdade humana, afrontada a uma obrigagao racional'(...) Deus fez.ohomem para que ele seja um individuo socidvel, mas deixou & “sua liberdade a tarefa de realizar ou nfo sua individualidade, de oncretizar ou nfo sua sociabilidade” (ibid.). Assim, diferenga dev Que sustentava Grotius, pode-se dizer que, para Locke, a sociedade Tesulta do encontro mais ou menos temporario de seres humanos: y [ transformados em pessoa pelo exercicio de suas liberdades, os homens Podem reforcar ou nfo os lagos de sua sociabilidade natural _ Oconceito de pessoa, como ressalta Cerqueira (2000), era termo utidico em voga, referido a agées e métitos de um agente capaz de ira tornat-se pessoa na medida em que submere sua vontade asleis nacurais que a razio Ihe indica. Uma pessoa, portanto, é um individuo responsdvel por si, que responde por seus atos) Esse conceito ajuda a compreender o estado natural tal como postulado por Locke: deixado a sua prépria natureza, cada homem vive em uma situagio de perfeita liberdade, no sentido de que pode dispor de si préprio ¢ de seus bens, nao estando sujeito & vontade de nenhum outro, Individualizado por sua liberdade natural, cada tum se afirma como igual aos demais, dotados todos das mesmas vvantagens e das mesmas faculdades, em particular, da mesma racao. Dada por Deus, que criou tudo 0 que existe, ela permite ver que todos sio livres eiguais porque igualmente sujeitos superioridade divina. Aliberdade nao é tratada apenas de forma genética, especificando Locke que o homem livre é0 que pode dispor do que lhe pertence, mas no de sua vida, ou da vida alheia, uma vez que essa liberdade no ¢ permissividade, mas liberdade constrangida pelos limites da lei natural, que proibe a destruigéo da vidal Locke esté, portanto, contestando Hobbes, 20 afirmar que 0 contetido da lei natural nio consiste na autopreservagio, mas na preservagio da humanidade. 7 Existe uma controvérsia quanto a pertinéncia dese ver nos textos batho e propriedade privada de Locke a premissa dessa sociabilidade natural. Uma das principais razdes desta controvérsia deriva do mado como se compreende & legitimagao por ele conferida & propriedade privada, que radicaliza a ruptura hobbesiana com a tradigio, produzindo uma inflexto nesse conceito Na Idade Média, & propriedade era conferido um significado social, que acionava a nogio de preco justo ea condenagiio da usta ‘Ao longo do século XVII, o desenvolvimento do comércio, jé sob forma capitalista, ea expansio econémica abalaram os fundamentos do controle social sobre a propriedade. As formas de propriedade existentes eram questionadas também pelo Niveladores, partido formado entre os soldados rasos do exército de Cromwell que, em nome da lei, defendiam a igualdade de direitos politicos para os pequenos proprietétios, contra os privilégios dos grandes. (Na perspectiva de Locke, é0 trabalho que legitima a apropriagio privada da terra, dada por Deus a todos, em comuim O homem no é proprictério de si mesmo, mas cada homem ¢ proprietério de sua propria pessoa, na medida em que atribua a si mesmo suas agdes; cle é portanto, proprietétio de seu trabalho, desde que responda por si| Assim, @ apropriacéo individual da cerra € compreendida por Locke como uma relagio jurfdica que se legitima a partir do proprio trabalho,/Definido por contraposisio ao lazer, o trabalho é 0 prin- cipal dever do homem para com Deus, visto que é por ele que se pode preservar a vida, a humanidade. Além disso, 6 trabalho é uma atividade moral em si mesma, que caracteriza ohhomem eo distingue: por essa aco racional, o individuo acrescenta algo & natureza._ Deacordo com a clissica interpretagio de MacPherson (1962), ssa defesa da propriedade' privada representa um corte radical, fetivado por Locke, na tradicio do jusnaturalismo, Locke desenvolve scu argumento partindo do estado natural. Nele(o diteito de apro- riar-se dos bens subordina-se aos ditames da lei natural, o que implica no perder de vista seu uso em comum por todo3, Assim, 0 Drimeiro limice dado por essa le é 0 de que, 20 apropriar-se do que “4 natureza deu em comum para todos de modo a garantir sua pre- = servacio, cada individuo deve deixar o bastante para os outros; 0 segundo limite é dado pela repulsa a0 desperdicio, 0 que implica ue os frutos obtidos pelo trabalho no excedam a capacidade de Seu consumo; finalmente,'essa apropriagio s6 ¢ legitima quando _ Fesulrante do proprio trabalho. Entretanto, a invengio da ioeda itd tornar o segundo limite aibitrério, uma vez que a produgio para a troca torna possivel a 66 acumulagio/ Como 0 valor dado 20 ouro ¢ & prata ¢ consensual, resultante do acordo entre os préprios homens, essa aparence trans- gessio torna-se prética legitima, Assim, a dinmica da apropriagio por meio do trabalho, afetada pela invencio do dinheito, acaba por invalidar os limites impostos pela lei natural ao direito individual aque MacPherson chega éentéo ade de agir livrementa\A conclu: que’ direito A propriedade, até entio justificado por uma lei natu- ral orientada para preservar a sociabilidade humana, passa, com Locke, a justificar-se como condigio da realizagio moral do individuo. Laslett (1960) qualifica 0 conceito de propriedade de Locke, conferindo-the maior abrangéncia do que aquela a ele atribuida por MacPherson, preservando o principio de sociabilidade natural Sustenta jue, para Locke, haveria uma “Virtude politica natural” que, contemplando a benevoléncia e a racionalidade, explicaria a paz ea sociabilidade no estado de natureza, bem como a formagio de governos que regulamentam a propriedade, E esta a virtude que torna possivel 0 consenso, o entendimento entre os cidadaos, bem como a idéia de rrust, antes que propriamente de contrato. Assim, Laslett pode afirmar que a comuni lade politica, formada a partir de um pacto de confianga muitua, tem por fungao preservar o bem comum, atribuindo a cada parte do corpo politico seu lugar ¢ sua fungi (Segundo rratado, at. 219). 86 a dissolucio dessa sociedade redundaria na producia de wma multidio confisa, sem ordem ou conexio (Oliveira, 2000, p. 168). Se esta linha de interpretagao reconhece a sociabilidade natural, © modo como compreende a concepgio lockeana da condicio humana leva a que se desconsidere, no Estado livremente consti- tuido, qualquer fungio propriamente socieréria. O Estado tem pot finalidade garantira seguranga, tendo em vista a dinamica resultante da forma como os individuos atendem ou nio, livree racionalmente, a seus interesses ou vocagéo, sem qualquer orientagio para a _~ preservagio da sociabilidad® propriamente dita. Laslett aproximaria, portanto, Locke de Hobbes, ¢ nao dos tedricos do jusnavuralismo. Critico de MacPherson, Tully (1993) insiste em que a reflexio desenvolvida por Locke nfo estava voltada para a legitimagao desta apropriagio ilimitada, e sim para o desenvolvimento de um conceito de lei natural que permitisse resguardar 0 sentido de propriedade como direito de usar antes que de se apropriar individualmente Pois para Locke hé, desde o inicio, um principio de justiga distr- butiva que define o que ¢ devido a cada um: todo homem tem um dircito ativo de usar as coisas necessérias & sua preservacid e 0 ho- mem apropria-se dos fruros de um mundo que continua a ser pro- priedade de Deus, dado igualmente a toda a humanidade. Assim, para Tally/ a questio enfrentada por Locke é a de legitimar a apro- priagao necessdria ao arendimento desse direito basico de autopre- servagio, encontrando no trabalho o valor adequado a essa distri- buigéo para cada um de uma natureza dada em comum a todos. Longe de defender dircitos individuais expansionistas, ele advogaria or sua limitagio, cabendo,a intervengao da lei civil no momento em que a regulamentagao natural da propriedadg pelo uso ¢ pelo consumo dos produtos se torna impossivel, No Segundo tratado, Locke justifica a intervengio do Estado, Particularmente no que concerne ao trabalho ¢ a propriedade, paurado sempre na nogio de um bem pablico, e sustenta que essa intervengao se faz t20 mais necessiria quanta o crescimento demo. Bréfico, a introdusio da moeda, o desenvolvimento da agricultura © 0 do comércio levam a crescentes disputas sobre 0 direito de Propriedade. Mas nao € apenas isto que compete a0 Estado: io suas atribuigées, ainda, administrar o sistema colonial e o trifico de escravos, regular 0 comércio, garantir o bem-estar da populacio € proteger o sistema mercantilista, cuidando de sua expanséo] E 0 principio de responsabilidade individual, jé referido na formulacéo da idéia de “pessoa”, que ird paurar, para Locke, a 67 intervengio governamental nas relagGes sociais, O que tal princtpig smentos: uma ver rornado habitual e rotineiro, © comportamento indica ¢ que cada cidado deve ser capaz de garantir-se a si mesmo "que inicialmente parecia penoso torna-se prazeroso ou, pelo menos, € a seus dependentes, cabendo ao Estado implementar politicas _atishat6rio. sociais para ajudar aqueles incapazes de se manterem a sait dessa situacio de dependéncia e precariedade (Oliveira, 2000, p. 160), Em particular, cabe destacar a énfase confetida por Locke § | A construgao do Estado Considere-se agora o tema central do Segundo tratado de governo, educagio, visto que imprescindivel ao entendimento da lei natural isto é 05 principios que conferem legitimidade ao exercicio do poder ‘ais precisamente ao uso correto da razio. A essa conclusio Locke politico. A postulaco de Locke ¢ radicalmente nova, no sentido de chega depois de examinar as bases do consentimento e perceber aque ird sustentar que cada individuo tem e deve exercer esse poder; que as pessoas podem ser impedidas de compreender a procedéncia | trata-se de um atributo natural dos individuos, no sentido de que de um dererminado argumento em virtude de um conjunto de | aprépria natureza colocou em suas maos o direito de punir quem quatro fatores. © primeiro deles remere as precitias condigses de “cransgredir suas leis, E € um poder dado igualmente a todos, visto que, por natureza, nenhum individuo est submetido & vontade Vida que cornam muito dificil o exame das crengas;o segundo refere- se & repressio da propria idéia de que a0 conhecimento se chega © allcia: no h& qualquer razio para que os individuos sejam destieut- pela reflexdo, e nao pela fé. A preguiga responde pelo terceiro fator, | dos de scus direitos naturais com vistas a uma sociabilidade pactfica. sendo 0 quarto o fato de que nao raro as pessoas tomam por verds- © Importa assinalar que é com vistas a seclimentar sua proposta deiras as proposigées que tém maior afinidade com suas ctengas, inovadora que Locke inicia seu texto criticando a legitimidade do mesmo sendo as menos plaustveis! "Poder fundado “no dominia privado e na jursdivéo parema de Locke conclui entio que o assentimento é governado por facores lao”. Com essa referéncia biblica, Locke est4 rejeitando o nido racionais, como as paix6es e os costumes, derivando dat sua ‘argumento ainda em voga, usualmente acionado para legitimar a énfase na importincia da educagio apropriada, Trata-se de desen- ‘monarquia hereditéria: contesta essa argumentacio, afirmando que volver uma “inclinagio artificial” voltada para a suspensio, examee orca ou a tradigio nio justficam a sujeigio, Sé 0 consentimento assentimento de acordo com as bases cortetas. Os homens devern, Pode legitimar o exercicio do poder do Estado, porque todos os portanto, ser educados pata desenvalver nm amor pela conheci- individuos cém o diveita de viver coma acharem adequado, isto 4 mento; ¢ educa-se uma mente que é “como papel em branco, ou io todos, por natureza, igualmente livres. A essa conclusio Locke cera, a set moldada como se quiser” (apud. Tully, 1993, p. 67). | -__ chega pelo inquérito racional das doutrinas existentes, concluindo, Locke nao descuida também da motivagio para aprender. como Hobbes, que é 0 dircito que confere legitimidade a qualquer ‘Admiido que o ser humano se movea pattir de um sentimento de sociedade politic desconforto (uneasines), relacionado a0 medo da punigio.e ao desejo 0 Logo na introdugao do texto, Locke propée, ainda seguindo 0 de obter recompensas, essa educagio deverd centrar-se na aquis método escolistico, que opera as distingSes por género e espécie, de bons habitos. A suposigio aqui é a de que, pela repetisio, & sua definigio do poder politico. Assim, distingue esse poder tclativamente a outras modalidades de poder, encontrando em seu possivel superar as dificuldades inerentes a determinados compo! 69 carter legal (poder do magistrado sobre o stidito) a particularidade que o distingue do poder paterno, do poder do senhor ou do nobre sobre 0 escravo, ¢ ainda, do poder do marido sobre a esposa. A seguir, especifica o poder politico como direito de legislar e imple mentat leis com vistas a preservar a propriedade € a comunidade, sempre em prol do bem piiblico O conceito de bem piiblico que utiliza difere, entretanto, de sua acep¢io mais tradicional. No pensamento escoléstico, 0 bem piiblico é o bem de uma sociedade concebida como um todo or- ginico, anterior e superior aos individuos que o compdem. Jé para Locke, sea preservagdo da sociedade continua a sera melhor definigéo esse bem, ele deverd ser compreendido também como a preservacio de cada um de seus membros, desde que compativel com a preset- vvagao do todo, Esse bem est protegido na medida em que a comu- nidade obedega a regras comuns, sendo estas as leis positivas, inst- tuidas em conformidade com a lei natural. Pata explicar esse consentimento, Locke precisa demonstrar que as vantagens do pacto social sio adequadas & psicologia individual, isto é, aos mecanismos que regcm 0 comportamento humano. Adep- to do hedonismo entao em voga, sustenta que todas as pessoas bus- cam a felicidade, aquilo que lhes proporciona prazer; mas observa que felicidade s6 se realiza se as paixées forem instrumentadas pe la rario, Ea razdo mostra que uma sociedade politica bem desenhada éo melhor que se pode ter para garantira todos a busca da felicidade. Nao é que a vida em uma sociedade natural seja uma vida de conflito permanente ou de licenciosidade, Nela tem vigéncia a lei natural, universalmente percebida pela razio, regendo todos os ho- mens ¢ tudo o que existe, uma lei cuja apreensio se faz pela obser” vagio, Dela é possivel derivar, pela reflex, todos os demais ditamess como o de que nenhum homem deve prejudicar 0 outro, ou 0 d€ «que todos igualmente tém o direito de se defender e se prevenis de {uma ofensa. Cabe frisar que’a igualdade postulada por Locke nao "de ordem biolégica e sim Brotojuridica,/pois se erara de uma igual- = dade frente lei nacural, pela qual todos estio,igualmente, subor- dingdos 2 Deus. Essa concepgio difere do conceito hobbesiano de lei natural, yoltada para a autopreservagio, pois em Locke a preservagio da humanidade ganha prioridade sobre a de cada individud.\Assim, por distingao com Hobbes, 6 estado de guerra € uma possibilidade antes que uma inevitabilidade, pois no estado natural os homens tém competéncia até mesmo para firmarem contratos entre si. O que Ihes falta um drbitro isento para dirimir as disputas, penalizar ¢ressarcir, de acordo com uma legislagio que se coadune com as caracteristicas da comunidade, Como na sociedade natural o poder Executivo permanece, exclusivamente, nas miios dos individuos, ele é precitio, pois os julgamentos parcais, as forsas inedequadas _paraa punigio ea multiplicidade de critérios para ulgar, enunciados por uma variedade de homens em casos singulares, ameagam permanentemente sua preservagio. Para evitar essa precariedade, prépria 20 estado natural, os homens fazem um pacto entre si pelo qual reconhecem a procedéncia de delegar 0 poder que tém de legislar ¢ impor a lei a seus legitimos “representantes. Nao se tra , pois, de um pacto,de submissio, uma | Yer-que se confia (srus)) no governo, conflanga esta que pode ser : aoe se os governantes no atiiarem de acordo com as regras = consensualmente aceitas, Dessa sociedade politica fazem parte todos individuos que se associam, exceto os mendigos e vagabundos, _“condenados por sua existéncia corrompida e insensata, desprovida Por isso da prépria condicio humana’, e as mulheres que, depen- lentes de seuis pais, tutores ou maridos, so por eles representadas. 10s trabalhadores pobres esto inclufdos no corpo da sociedade civil, mo proprietitios de si mesmos e de sua capacidade de trabalho, __ Tas, pelo fato de nfo serem proprietétios propriamente ditos, nao _ tm o direito de decidir sobre impostos. Deverd estar claro, também, que a escolha de representantes decorre do reconhecimento da impossibilidade da participagio permanente de rodos os cidadaos nas deliberagdes. O conceito de representagio introduzido é 0 de uma representagao estrita, na qual os representantes tém mandato limitado no tempo ¢ em suas atribuigges, Por sua vez, as decisées coletivas devem obedecer 20 principio majoritério, considerado um bom principio para escolha de politicas por ser operacional e viabilizat a expressio da vontade de cada um dos membros da coletividade, ‘A comunidade ¢ soberana, embora o Legislativo seja 0 poder supremo. Este no pode infringir danos & propriedade ou & vida dos stiditos. © fim do Estado ¢ fazer ¢ implementar leis, algo inexistente no estado de natureza, sendo que tais leis tém carater universal, isto é, devem incidir igualmente sobre todos os membros da comunidade. A separacio entre os poderes visa impedir que, tendo competéncia para implementar as leis que faz, 0 Legislativo acabe por usurpar sua atribuiggo, pois a tendéncia a preferir seu préprio beneficio nao esté ausente no comportamento do repre- sentanté) que pode ser levado a elaborat leis visando a seu inceresse ese eximir daquelas que visam ao interesse geral Assim, 0 Executivo fica com a atribuigao de aplicar ¢ supervisionar as leis vigentes endidas por toda a legislacao positiva, pois a liberdade natural de "fazer 0 que entende ser benéfico para si é substicuida pela liberdade _ civil, que pode garantir sua existéncia como um sujeito inteligente te realmente senhor de si. Nao deixa de transparecer, aqui, algo do zon politikon axistotélico. 1A vontade geral como principio de soberania © pacto social cria um povo, pessoa piblica ou moral que nio deve ser confundido com a agregagio de individuos, uma multido "sem qualquer interesse comum, De novo contrastando com Hobbes «Locke, o povo nfo ¢, para Rousseau, apenas uma entidade juridico- politica ou entidade natural. O povo é 0 conjunto de cidadaos que “institui o Estado, e base de sua soberania. Sé sua vontade pode orientar o poder do Estado para a realizagio do bem de todos (Do contrato social, Livro 2). B isto porque, se a entre os inceresses particulates, & a conformidade que existe entre Estes mesmos interesses que permite seu estabelecimento. Se no Fhouvesse pontos em que rodos os interesses se identificassem, no |_sctia possivel constituir uma sociedade. E é esse inceresse comum ue a vontade geral revela quando uma assembléia consegue chegar Em suas palavras: Enguanto um conjunto de homens se reconhega como constituindo um inico corpo, eles tém apenas uma vonta- de, que se relaciona com a sua preservacio comum ¢ com ‘0 bem-cstar de todos. Quando isso acontece, as fontes do Estado sd0 vigorosas e simples, os seus prineipios claros « diretos. Ele nio esti envolvido com intereses confusos ‘ou confituosos. O bem comum esté em todo o lugar em evidéncia e, para pereebé-lo, € necessério apenas bom senso (..) Um Estado assim governado precisa apenas de algumas lis, e, quando se considera necessério promulgar novas, a necessidade sera ébvia para todos. Aquele que na verdade vocaliza as propostas nfo fiz mais do que co- locar em palavras o que todos jé sentiram, ¢ nem a intriga nem a clogiiéneia sio necessirias para garantira passagem de umma lei que cada um jé se sente determinado a apoias, ‘fo ripido quanto ele tem a garantia de que seus pares © scguirio em seguida. (econo sci, Lie 4c. 1) E por isso mesmo que, de acordo com Rousseau, nio deve haver intermediagao entre os individuos ¢ o corpo coletivo, pois esses 6e- itios intermediérios funcionariam como pequenas sociedades (fac- {g6es) dentro da sociedade, tornando assim dificil articular os inte esses particulares agregados, Corpo coletivo ou Legislativo, o poder soberano nio pode ser delegado a uma instincia representativa, porque ela formaria um interesse préprio separado da vontade geval ‘cesta se chega apenas se cada cidado manifescar somente os seus prdprios pensamentos (Do contrato social, livro 2, cap. 3), Se Rousseau jamais oferece uma definigio precisa da vontade eral, ao longo do primeiro livro mostra seu contraste com a vontade parti livro apresenta a diferenca entre a vontade geral e a vontade de °° Jat, Estabelecida a primazia daquela sobre esta, no segundo dos (que ¢ uma vontade “divisivel”, isto é, que expressa a soma das vontades individuais ou, aiRda, aquela manifestada pelo monarca, {que pretende ser capaz de, sozinho, especificar 0 bem priblico). En- " treavontade geral ea particular poderia existir um conflito, passivel, contudo, de ser solucionado pelo aprendizado, por parte do indivi- “duo, de seu papel de cidadio; um conflito, portanto, superficial. J& nesse segundo modo de precisar o que sejaa vontade geral, Rousseau esti preocupado com um tipo de atividade politica — que se expressa na vontade de todos ~ dissimuladora do bem piiblico, capaz de legitimar, pelo uso da lei, o interesse de um individuo ou grupo, Para eviti-la, deverd haver coincidéncia entre as pessoas, possivel quando todos falam com todos a propésito de tudo que vise ao bem comum (Ribeiro, s Qualquer infracio a essa exigéncia é nociva a0 corpo social. Na perspectiva liberal, as pessoas nfo falam com as pessoas, apenas exprimem seus interesses em relacao as coisas. Jé _ dessa perspectiva republicana, estando todos face a face, cada qual | precisa se explicar aos demais, convencer os demais: a dimensio pilblica se instaura porque toda parcialidade esta excluida; coloca- se assim a questi de especificar a mancira de se chegar a isto O tinico procedimento definido (no Livro 3) por Rousseau para “qué povo reunido chegue a vontade geral é 0 de que sejam exami- rnados os votos, de modo a neutralizarem-se os “sins” € os “nos”, endo, portanto, 0 voto majoritério o que melhor a expressa, E ain- teracio entre os cidadéos reunidos em assembléia que especifica 0 significado do procedimento, que 6 na aparéncia ¢ idéntico a0 proposto por L8cke para a determinagio do bem comum, pois a Yontade geral, que esté sempre certa, ainda que o povo possa cometer | «105, ndo deve ser confundida com a vontade de todos. Dessa til- ima ¢ necessétio subtrair os excessos e as faltas para que se chegue 40 correto fundamento da lei, A vontade geral no é, pois, a soma 4las vontades particulares, mas como que sua média aritmética, na Dessa forma, ¢ posstvel chegar-se & lei por unanimidade; para tanto, é necessétio que os cidadios estejam suficientemente infor mados e que nao tenham qualquer comunicagio entre si em espacos que nao sejam visiveis a todos. Em outras palavras, na Reptiblica Democritica, no sio permitidas as faccées. Para efetivar-se, uma cldusula como essa requer considerivel homogencidade cultural ¢ reduzida rea territorial, pois somente nestas circunstancias é possivel A democracia deliberativa funcionar de forma eficaz Rousseau est preocupado com dois problemas politicos Primeiro, descobrir uma sociedade vivel, isto é com propésitos comuns em quantidade suficiente para realmente constituir uma vontade geral. O segundo problema politico enfrentado por Rousseau é 0 desenho de um conjunto de instituigées estatais para tal sociedade capazes de propiciar a compatiblizagio das vontades de cada um com a vontade geral Em princfpio, a solugio para esse ultimo problema tem dois componentes: primeiro, os individuos devem ser capazes de descobrir seus propésitos comuns, Esta é, para Rousseau, a carefi legislativa, requerendo de cada cidadéo que encare a vontade getal como parte da sua prépria vontade, Em segundo lugar, os individuos devem garantir que cada qual faga a sua parte na consttucio da vontade geral, mesmo quando esta entra cm conflito com outros componentes da vontade particular. Tarefa educacional bem como fungdo da magistratura que pode, ocasionalmente, precisar forgar 0 camprimente da vontade geral contra individuas recalciteantes: “O cidadao dé o seu consentimento para todasas les, incluindo aquelas que sio aprovadas apesar da sua oposicio, ¢ mesmo aquelas que © punem quando ele ousa romper com alguma delas” (Do contrato social, liveo 4). 10 governo Sea vontade geral esté sempre certa, nem sempre ela éesclareci ‘Como reiterado em Do contrato social (Livro 2, cap. 10), objetivo © cetrata de uma igualdade absoluca, mas de uma igualdade que nio somprometa o tecido social Com esse parametro, Rousseau, ao reconhecer a dificuldade de um povo em assembléia conseguir formular as leis de sua repiiblica, © ineroduza figura do Legislador, cujafuncio éa de inspirara vontade ‘sempre A utilidade publica’, no se segue que as deliberagies jopulares cheguem sempre a um resultado benéfica para todos, ou larleisa um povo, isto , para institut-lo, slo necessirias condicoes “excepcionais: o pafs no deve estar contaminado pela antiguidade ‘de seus costumes, mantendo aceso o gosto pela liberdade; ¢ 0 egislador deve ter uma inteligncia superior, de modo a ser capaz lo povo (é melhor que seja estrangeito) e, certamente, que nfo Faga “parte do governo, de modo a que nao possa se aproveitar das leis Beau prope para seu préprio interesie{ Em um Estado legitimamente constituido, é no Legislative que _

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