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Entre o Céu ea terra Hé um cheiro inimigo que me bate no nariz todas as veres que me parece ter encontrado 0 cheiro da mulher que ando procurando na pista do rebanho, um cheiro inimigo que se mistura 0 cheiro dela, ¢ descubro os dentes incisivos caninos pré-molares ¢ ja estou espumando de raiva, pego pedras arranco ramos nodosos, se no consigo encontrar com o nariz.0 cheiro dela a9 menos tivesse a satisfagio de descobrir a quem pertence este cheiro inimigo que me deixa furioso. ltalo Calvino No final das contas, nada de muito seguro se pode dizer sobre o actmulo da poeira. Ora positivo, ora negativo. Se, em um momento, valoriza-se 0 tom religioso do pd, que da ao museu um carater de algo veneravel, em outras ocasides, nfo necessariamente em outros periodos cronoldgicos, ha outros sentidos. O pé fica proserito, ora por receitas de estética, ora por orientagdes médicas. Nisso tudo, o que fica claro é que o museu acabou se constituindo em ‘um espago que, a0 exibir objetos, ndo convocava somente os olhos, mas também os ouvidos, apele eo nariz, Isso significa tratar essas sensibilidades nos conflitos que também as constituem e que esto no jogo de definigdo do espago museolégico, em torno do que € aceitvel e recomendavel, daquilo que facilita ou atrapalha os contatos com o pasado. Ao ser ponto fundante da vida em sociedade, o pretérito convoca recursos variados, que vao dos olhos aos ouvidos, do nariz.a0 resto do corpo. ‘Nas maneiras de fazer ligages entre o presente e o passado exposto, a visdo parece ter certa preponderdncia, mas nao esta isolada, afinal nao é possivel trati-la como um fenémeno independente. E por isso que os visitantes (e os diretores) do Museu do Ceara deixaram suas impresses ndo somente sobre 0 que foi visto ou sobre o que desejavam ver, mas também sobre 0 “cheiro do pasado”. Longe de estabelecera mentalidade tipica de um determinado periodo, o que aqui se buscou foi uma abordagem sobre a historicidade da percepgao diante do espago museologico. Trata- se de um esforgo no sentido de pensar sobre os modos pelos quais © passado é apreendido CALVING, Soho v0-guar. Sto Paulo: Companhia das Letras, 1995.13, pelas circunstancias do presente, Apreenstio que, além de ser plural, mobiliza transitos interdigdes que assumem valor de principios de normalidade e necessidade. Quando se estuda a historicidade dos museus levando-se em considerago o carter circunstancial e mutante do objeto exposto, é preciso pensar a respeito das sensibilidades que constituem as maneiras de ser de cada objeto no tempo e no espago. Isso significa que se torna necessario tracar a biografia dos objetos. Ao assumir a condigio de “exposto”, o objeto entra em metamorfoses que dependem dos ‘modos pelos quais as memérias so historicamente constituidas. Afinal, o museu nao se define simplesmente como lugar de guardar e expor artefatos. Antes de tudo, o que acontece no espago museologico é a metamorfose de objetos, em simbiose com 0 poder da meméria e a meméria do poder, nas suas mais variadas manifeestagdes. Meméria que depende de forgas socialmente engendradas e, portanto, no deve ser interpretada como um simples resultado de operagdes racionais de uma légica universal e abstrata passado, portanto, nao é simplesmente aquilo que passou, e sim um saber que se faz nas disputas de posigdes conflitantes e interessadas em criar certas legitimidades no presente e a partir do presente. Cas rss Uipeas Beara de Meneses mls porsen terns epecificas: pra iar «expire Bigralis don objets ‘nocesirio examine ‘em stag, nas diversas modalidadeseefitos ds apropriages equ foram pate. Par al empreninent, lo caberia a ecomposio de um supsto ambiente de rigem: "Nd se tata deresmpor um ceri material ms de entender os atefatos ‘alnterapao social” (BEZERRA DE MENESES, U. Menta e Cultura Materia: documento pestous no espao pblice. Revista Evtdos Hiarrios, Rio de Janeiro: Fundaj2o Getlio Vargas, 1.1.21, 1998, p. 92.) Autoridade e funcdo de autor na valora¢ao de objetos histéricos. O caso das traves da forca de Tiradentes Rafael Zamorano Bezerra Consideracées iniciais Como observa Ulpiano Bezerra de Meneses, os objetos tém como caracteristica intrinseca apenas atributos fisico-quimicos, como cor, volume e peso, Todos os demais sentidos, inclusive © historico, so atribuidos. Para se tornar parte de um acervo museolégico o objeto precisa ser considerado um patriménio cultural, © que implica um proceso de selegao daquilo que & ou nfo patrimdnio, Parte da consciéncia ocidental sobre o patriménio é tributéria do direito romano, que o entende como conjunto de bens considerados nao segundo seu valor pecuniario, ‘mas segundo sua condigao portadora de algo a transmit. O termo patriménio, portanto, remete a heranga e no evoca a priori um tesouro ou obra prima (embora também possa fazer mas uma reivindicagiio por genealogia. A ppalavra patriménio tem usos distintos de ordem juridica, econémica, ambiental e cultural Porém, © patrim6nio associado aos bens moveis e iméveis de carater cultural ¢ localizado por diversos autores como sendo uma categoria moderna, vinculada formagio dos estados nacionais, ao desenvolvimento de uma cultura humanista € ao colecionismo. Autores como “Tiistrndor Pesgsadr do Museu Histioo Nacional. M * POULOT. D. Museu, 530, aero, In: BITTENCOURT, J. N, BENCHETRIT, os cus, Ri de Janeiro: Muse Histrico Nacional, 2003p, 25-62, str em Cigna Politica c doutorand em hstra plo PPGHIS / UFR TOSTES, VL. B.A stra reprsentada,O die onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS Frangoise Choay, Dominique Poulot, Krzysztof Pomian Francis Haskell, mostram que a valoragio desses patrimOnios relaciona-se ao universo letrado. Nas palavras de Jacques Thuillier, [J acserita até aqui desempenhou um papel determinante © podemos até dizer que foi ela que implementou o panorama [.. com relagio aos periodos antigos, a reparticlo das pinturas ¢ das csculturas conservadas acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas ¢ das obras citadas pelos historiadores antigos. [..] Salvo raras excegdes, a resisténcia das escolas das obras foi resultado da presenga dos livros ¢ das datas nas quais foram publicados. A realidade acabou se conformando & escrita? David Lowenthal e Dominique Poulot ressaltam que o patrimdnio nao guarda relago sirito sensu, com as categorias “verdadeiro” e “also”, reivindicada pelas ciéncias, mesmo que estas atestem, por vezes, sua autencidade. Para Poulot, a razdo patrimonial do ocidente vincula-se a retdrica das lutas identitarias, ¢ as evocagdes do passado néto coincidem [..] com as anélises do historiador, do emélogo ou do arquedlogo.* Nessa diregao, pode-se afirmar que selegao e valoragao de acervos “historicos” — objeto de interesse da presente pesquisa‘ ~ nao sio pautadas somente pelas exigéncias de uma escrita da historia cientifica. Isso porque a criagdo de patriménios sofre pressdes de diferentes demandas, como as lutas pelo controle ¢ dominio da meméria, os processos de turisficagio dos museus, a centralidade da discussio patrimonial nas politicas publicas culturais e relagdes politicas ¢ pessoais observaveis no interior do campo do patriménio e dos museus. Assim, a formagao de um acervo museolégico ¢ resultado da vitéria e da derrota de diferentes discursos, que ‘se materializam no somente nas exposigdes, mas também nos demais servigos téenicos que caracterizam as instituigdes de meméria e patriménio, Pode-se afirmar, entdo, que © discurso museolgico é delimitado por determinados procedimentos de exclustio ¢ incluso. Valores como o documental, o de antiguidade, a raridade, © cardter testemunhal, o pertencimento, ou sua capacidade alegérica, sao critérios usualmente izados para classificar um objeto como “histirico” hp Tid p37 > ROULOT, D. Lina histria do primo mo oesdome So Pau: Esty Liberdade, 208. p16 + Bate artigo & consequéncia dos prmsios resultados da pesquisa de dowtrado em cuso, cyjo objeto central évalorayo de acervos histricos em museus de histria. A pesquisa 6 orentada pea profesora Dx" Andtea Daher PPHGIS.UFB} José Neves Bittencourt,’ em seus estudos sobre as ages dos conservadores do Museu Historico Nacional (MHN), identificou trés parametros norteadores que serviam como chancela da autenticidade historica naquela instituigo: 1) 0 ordenamento temporal, representativo de um periodo histérico onde o valor de antiguidade* parece ser determinante; 2) origem do item, ou seja, quem o tinha possuido ou a que evento historico estava ligado, 3) a identidade do doador, Sobre este iltimo, [. ndo necessariamente todos os objetos indicam pessoas que pudessem ser imediatamente centendidas como “histéricas”, em boa parte dos casos devido a falta da chancela do tempo. Isto, no entanto, no os desqualificava, Entravam em jogo as caracteristcas intrinsecas do objeto (dentre os quais a antiguidade era apenas um dado, mas ndo o tinico e nem sequer 0 mais importante), ea posigdo social e/ou politica do doador” Em Meneses, [A] categoria de objeto histérico, assim por sua prépria natureza e fungdes, privilegia as classes dominantes ~ fato facilmente observavel nos muscus ¢ abundantemente denunciado na bibliografia. Curioso é que este viés tenha como vetores seja 0 excepeional,principalmente na versao das artes decorativas (a belissima cama de José Bonificio), sea o banal irrelevante (0 lapis de d, Pedro 11) que, por sua prépria insignificancia, serve de caugao a0 excepcional © a credibilidade dos valores que se devem exaltar. Nos dois casos, 0s vinculos pessoais sio condigao relevante singularizadora* Partimos do pressuposto que o discurso museolégico, principalmente aquele relacionado ao objeto historico, & delimitado por certs dispositivos de valoragdo histérica que atuam como procedimentos de exelusiio ¢ delimitagdo do discurso. Parte-se de Michel Foucault, para quem a produgo do discurso na sociedade ocidental é controlada, selecionada, organizada redistribuida por certo niimero de procedimentos de exclusio,” Foucault identificou trés grandes TIFTENCOURT, JN. Cada coisa em se £89, 151-174, 2002-2001 lugar ensio de interpreta de um muscu de histia, Anas do Muse Patt, Sho Pau, Cf, RIEGL, A, Le alte mayne cles momuments, Pais: Eitions da Se 1986 * BITTENCOURT, J N,Cada can em sou higar..Op. itp 160, * MENESES, UB, Do ter da histiria a abort da isi: a exposgdo mussolgica eo conhesimento histrice. Anais do Maze Paula Sao Paulo, nova sts v2, jandsz. 1994, p. 9-42 p. 20. Gif nosso FOUCAULT M.A ondem do disso, Sho Paul: Loyols, 1996. p18 onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS sistemas de exclusiio que atingem o discurso: a palavra proibida, a segregagio da loucura ea vontade de verdade, sendo este tltimo o mais importante, pois, [...] ha séculos, os primeiros nao cessaram de orientar-se em sua diregao; é que, cada vez mais, 6 toreciro procura retomé-los, por sua propria conta, para, ao mesmo tempo, modifcé-los fundamenté-los; é que, se os dois primeiros nao cessam de se tornar frigeis, mais incertos na ‘medida em que sio agora atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, no ccossa de se reforgar, de se tornar mais profunda e mais incontornavel."” Conforme sugere Foucault, as grandes mutagdes cientificas ocorridas no século XIX, bem comoa formagao das disciplinas, podem ser lidas como a aparigaio de novas formas de vontade de verdade."' As colegdes dos gabinetes de curiosidade dos séculos XVIII e XIX, bem como os museus de historia natural e de historia do oitocentos sao significativos exemplos dessa vontade de verdade no ambito das colegdes. Nos museus de historia, ela pode ser interpretada nna importancia da autenticidade dos objetos musealizados, que servem como vetores para evocar, visualizar e documentar o pasado." Foucault idemtificou, também, procedimentos intemnos de delimitagao do discurso, que sto o comentario, 0 autor, a disciplina e o ritual. Sobre o autor observa que [...] autor no entendido, /..] como o individuo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas 0 aulor como principio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significagdes, como foco de sua coeréncia."* Assim: [.-.um nome de autor ndo é simplesmente um elemento do discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituido por um pronome, et.): ele exerce relaivamente aos discursos um certo papel: assegura uma Fungo classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo nfimero de textos, delimité-ls, selecioné-los, opé-1os a outros textos |... Em suma, ‘© nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso.'* Ftv po. "Ibid p 1617 = GUIMARAES, M.L.S, Yen o passa, Anos do Muse Palisa. Sho Pal online}. 18,2, p 11-30, 2007 © FOUCAULT Ml endem do discus, Op it. p. 2627. “FOUCAULT M.O que Sum autor? Ditar eects. Rio de anv: Foranse Universita, 201, p, 264-298. Pinas cits Hes, ‘A formagao de um acervo museolégico envolve — na maior parte dos casos — pessoas com algum tipo de treinamento ou saber especializado. E 0 caso, por exemplo, do conhecimento dos antiquérios, numismatas, historiadores da arte, antropélogos, folcloristas, bibliéfilos, historiadores ete., na identificagao e coleta de artefatos, © que implica o estabelecimento de autoridade sobre a gestiio desses acervos, Assim, 0 saber especializado é detentor de autoridade, que ¢ utilizada para atestar legitimar a autenticidade histrica ou artistica, Como mostra Poulot, a implementago e gesto de acervo sto acompanhadas de saberes eruditos e especializados, que legitimam e subsidiam as ages de conservagiio. [..1€ um trabalho cujo status e cuja ambigao dependem concretamente, segundo os momentos histéricos, da posigo que antiquérios, arquedlogos, historiadores da arte, entre outros, ‘ocupam no seio da comunidade intelectual nacional — especialmente em relagdo a seus pares linguisticos, foleloristas ou arquivistas.* A partir do conceito de fungdo de autor pretende-se analisar como autor ¢ auforidade atuam na valoragdo de objetos histéricos, usando como estudo um objeto do acervo do Museu Histérico Nacional, A longevidade dessa instituigao, prestes a completar 90 anos, possibilita que diferentes discursos convivam, embora, is vezes, conflituosamente, Foram escolhidas para anilise as traves da forca que supostamente teriam sido utilizadas na execugao de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Cabe destacar duas particularidades deste objeto. A primeira, a ser destacada, ¢ o tratamento dado, inicialmente, como reliquia histérica. A segunda é sua relagdo com a construgo do mito Tiradentes e a imagindria religiosa do martir, elaborada por meio de imagens e textos que associam a imagem de Tiradentes 4 imagem de Cristo. Autoridade e autor A literatura politica mostra que autoridade ¢ poder no devem ser confundidos como sindnimos. A palavra “poder” tem origem latina de potestas, e significa poténcia, capacidade de fazer, ter permissio ou estar habilitado para fazer algo. “Autoridade” vem de auctoritas e significa ser gerador de qualquer coisa ou alguém, fonte ou origem, autor ou artifice, Autoridade SPOULOT,D.Uima htria do patrimon'o no acient, Op. sit onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS tem correspondéncia com o termo aufor, que significa 0 criador, aquele que & promotor ¢ inventor de oportunidades. A raiz de ambas as palavras ¢ augere, que significa aumentar, acrescer, ampliar, acelerar, fazer crescer, propor, sustentar, desenvolver, autorizar, consentir." Para Hanna Arendt, [J autoridade exclui a utilizago de meios extemos de coergdo: onde a forga ¢ utilizada, 4 autoridade por si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, & incompativel com a persuasio, a qual pressupdc igualdade ¢ opera mediante processo de argumentagio |...] Se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sé-lo, entdo, tanto em contraposicio a coergao pela forga como a perstasio através dos argumentos.” Arendt atenta que 0 conceito de autoridade, presente em boa parte da histéria ocidental, é de origem platdnica, Platdo, critico da democracia ateniense, queria buscar uma altemativa para a maneira usual de os gregos lidarem com os assuntos piblicos na polis, que era a persuasao, representada pelo sofista, ¢ a violéncia." Era necessirio algo que se prestasse a compelir os homens sem o uso da violéncia ou do convencimento, Plato argumentou com base nos modelos das relagdes existentes na vida cotidiana, como o pastor e suas ovelhas, um médico € o paciente, timoneiro ¢ seu barco e o senhor € seu escravo. Em todos esses casos 0 conhecimento especializado infunde confianga, de modo que nem a forga nem a persuasio so necessarias para obter a aceitagio dos homens. Nas palavras de Arendt, Plato buscaver uma relagdo em que 0 elemento coercitivo repousasse na relacdo mesma e fosse anterior & efetiva emissaio de ordens: 0 paciente torna-se sujeito @ autoriddadle do médico quando se sente doente € 0 escravo cai sob 0 dominio de seu senhor ao se tornar escravo.” Isso implica uma clara separagao entre “saber o que fazer” e“fazer”, € a autoridade tem aqui seu fundamento baseado na distingdo “natural” entre os homens, Apesar de Plato, o termo autoridade é de origem romana, pois nem ai lingua grega nem as virias experiéncias politicas da historia grega mostram qualquer conhecimento da autoridade SCHABBAGANO, N. Awtordade In: ___. Diconirio de lose. Sto Paulo: Martins Fontes, 2007p, 113-118. BOBBIO, N. Pode Auoridade ne Eneclopia Einoudy,v 14, Litho prensa Nacional, 1989. p. 487 ARENDT, H.O que autoridad,In:_. Entre o passado o ro. Sto Paul: Prspsctiva, 200. p. 127-187. p. 129. Ibid. p31 thi. p 131 € do tipo de governo que ela implica.” No contexto romano, a autoridade era vinculada ao saber, mas também ao carater sagrado da fundago de Roma. Participar da politica significava preservar a fundagdo da cidade. Para Cicero, a autoridade tinha suas raizes no passado e na experiéncia, nao havendo desigualdade natural entre os homens.”' Nao ¢ A toa que os ancidos ceram possuidores de autoridade e a formula historia magistra vite tem origem romana, Nesse sentido, Arendt atenta que os exemplos € os feitos dos antepassados possuiam um caréter coercitivo, na medida em que, o quer que acontecesse, se tomava um exemplo, um anctoritas maiorum. O passado era santificado através da tradigdo, legando de uma geragao a outra 0 testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundagao. s patriménios culturais so representativos da relago entre autoridade ¢ tradigio. Os museus hist6ricos, apesar de toda reformulagao critica dos iltimos anos, esto umbilicalmente vinculados ao culto das tradig&es nacionais, A ago de “homens de letras” na criagio e formagaio de colegdes museolégicas é bastante comum, como no caso dos dois principais museus de storia do Brasil, o Museu Paulista ¢ 0 Museu Histérico Nacional. Seus fundadores, Afonso Taunay e Gustavo Barroso, respectivamente, foram historiadores consagrados em seus meios € usaram suas “autoridades” para selecionar objetos, tanto para documentar o pasado como para celebrar a Nagao e seus herdis. No infindavel universo de artefatos produzidos pelos homens, eles escolheram aqueles que de alguma forma se relacionavam com os personagens, ‘momentos ¢ acontecimentos consagrados por determinada produgao textual da qual também eram autores. Cabe ressaltar que uma das fungdes do autor no discurso ¢ a delimitagio de canones, Obviamente, nem todo objeto museal relaciona-se dessa forma com os cénones consagrados nos texto, visto a existéncia de outros determinantes, como os atributos estéticos, que envolve a propria antiguidade, e as relagdes politicas e sociais dos agentes envolvidos nas instituigdes. Porém, naqueles objetos tidos como reliquias historicas, a relagao entre autor auioridade & mais presente, visto a necessidade da afirmagao da autencidade. Sibid po 2 * CL ABBAGANO, N. Atoridade Op stp. 13-115 22 Mid. p. 166 onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS © tema da Inconfidéncia mineira - Tiradentes como heréi civico-religioso A valorizagao historica da Inconfidéncia Mineira surgiu na segunda metade do século XIX, num momento marcado pela preocupacdo em produzir uma hist6ria nacional, e que tem seu melhor exemplo na criagdo do Instituto Histérico e Geogrifico Brasileiro (IHGB), em 1838, O tema da Inconfidéncia também se vincula a divulgago dos ideais republicanos e, apés a proclamagao da repiblica, a procura de herdis que legitimassem ideologicamente 0 novo regime, O status social dos envolvidos, as condenagées a forca, a cleméncia da Rainha €, por fim, a execugao de Tiradentes, com direito ao esquartejamento do corpo e a exibigao da cabega na praca principal de Ouro Preto, acabaram por contribuir na dramaticidade do episédio, favorecendo varias memérias sobre 0 evento. A Inconfidéncia é comumente tratada como um epis6dio nacionalista, como se jé houvesse no final do século XVII uma ideia de Brasil, tal como ele é representado nos dias de hoje. Os inconfidentes so vistos como se fossem os pioneiros na elaboragio de ideias propriamente nacionais. Na critica literéria da segunda metade do século XIX e primeira do XX, os poetas “mineiros” foram canonizados como os primeiros a produzir uma literatura nacional. No.campo politico, principalmente apés a Proclamagao da Repiblica, Tiradentes transformou-se em herdi nacional com forte simbolismo religioso De acordo com José Murilo de Carvalho, o primeiro trabalho historiogrifico dedicado a Inconfidéncia foi escrito por Robert Southey. Sua Historia do Brasil foi publicada em 1810 ¢ traduzida para o portugués em 1865. O capitulo sobre a inconfidéncia foi traduzido por Resende Costa e publicado na Revista do Instituto Historico e Geografico Brasileiro em 1846. Conforme observa Carvalho, o texto foi baseado na Senfenga da Algada e 0 historiador inglés descreve o episédio como a primeira manifestagdo de principios e praticas revolucionérias no Brasil. A segunda referéncia de cunho historiogrifico ¢ o livro de Charles Ribeyrolles, Brasil Pitoresco, publicado no Brasil em 1859. Nesse livro, Tiradentes aparece com cores de herdi civico, sendo descrito como o martir que morreu por uma ideia* A Historia da Conjuragdo Mineira, de 1873, de Joaquim Norberto de Souza Silva, € um marco na historiografia da Inconfidéncia. A publicagiio foi antecipada em resposta a0 FS CARVALHO, DNA formapo dar alas. O imagine a repbica no Brasil, Sto Paulo: Cia das Leta, 1990, p60. movimento de entronizagio de Tiradentes, Almejava-se a construgio de uma estétua em homenagem ao inconfidente, o que Norberto considerava descabido,* O trabalho de pesquisa foi feito tendo por base os Autos da Devassa, documento encontrado pelo proprio Norberto, € outros documentos até entao desconhecidos, Tratam-se das Memdrias do éxito que teve a conjuragdio de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidlos nesta cidade do Rio de Janeiro, desde 0 dia 17 até 26 de abril de 1792, de autor desconhecido, € 0 Os tiltimos momentos dos inconfidentes de 1789 pelo padre que os assistiu de confissdo, do Frei Raimundo Penaforte, O livro de Norberto gerou polémica entre os republicanos, principalmente pelo modo com que Tiradentes foi tratado, Nesse aspecto, Carvalho observa que Norberto foi acusado de estar a servigo da Monarquia, por amesquinhar a Inconfidéncia e por denegrir Tiradentes, ao tratar da transformagao na personalidade do conjurado ao longo do cativeiro, que teria substituido seu ardor patridtico pelo fervor religioso. Nas palavras de Norberto, Morrera o Tiradentes, no como um grande patriota, com os olhos cravados no povo, tendo nos labios os sagrados nomes da patria e da liberdade, e na alma o orgulho com que o homem politico encara a morte como um triunfo, convertendo a ignominia em apoteose, mas como um cristo, preparado ha muito pelos sacerdotes com a coragem do contrito, ¢ a conviegdo de ter ofendido os direitos da realeza, ¢ quando muito consolado com a esperanga da salvagio tema. As polémicas suscitadas pelo trabalho de Norberto produziram outros trabalhos que procuraram demonstrar a “verdadeira historia” do movimento e a “verdadeira face” de Tiradentes. Um dos mais importantes trabalhos desse género foi Inconfidéncia Mineira ~ 0 verdadeiro papel de Tiradentes na Inconfidencia Mineira, publicado em 1927 por Litcio José dos Santos, Ainda na década de 1980, encontramos trabalhos que se esforgam por desqualificar as andlises de Norberto em nome de uma “verdade historica”, como é 0 caso do livro de Marcio imese factual da Inconfidéncia Mineira (1988), De acordo com Jardim, [Noberto] Era partidério decidido da monarquia c amigo pessoal do Imperador, ocupando cargo nna Secretaria de Estado, Joaquim Norberto no estava em posigo prdpria para ser imparcial no relato da histéria. Foi um trabalho quase “encomendado” para diminuir a crescente aspiragio republicana na segunda metade do século XIX. A intengao principal e preconcebida do autorera Mihid po ® NORBERTO, IN. 8. Histivia da conpuraio mineira, Rio de Janeiro: Inpremsa Nacional, 1948p. 120, onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS ‘convencer os leitores de que: a) Joaquim José da Silva Xavier nao foi o chefe da inconfidéncia; 1b) 0 Alferes era idiota e sua presenga fisica “repelente” [...]°° De fato, 0 livro de Norberto deu origem a uma longa polémica sobre a lideranga do ‘movimento, se seria Joaquim José da Silva Xavier ou Tomés Ant6nio Gonzaga. Todavia, essa polémica nao nos interessa no momento e sim a construgdo religiosa da imagem de Tiradentes, Um exemplo interessante é a pega de Castro Alves Gonzaga ou a Revolugdo de Minas, publicada em 1875. Ao longo do texto encontramos analogias de Silvério dos Reis como Judas € Tiradentes como Cristo, ¢ este iltimo como revolucionitio. Alvarenga (A Gonzaga) ~ Tens razo, 0 momento é excelente, Ja doe-me ver a raga de Tiranos ferir com chicote a face de um povo imenso. (Ao Padre) Padre, realizaram-se tuas profecias. ‘Um dia dizia-nos, nos nossos pequenos serées literdrios, que a liberdade dos povos seria uma ‘verdade, porque Cristo nfo era uma mentira. Padre Carlos ~Nao era uma profecia...era.a letra da Biblia: foi o mestre quem o disse “eu vim cortar 0s ferros a todos 0s eativos ¢ eles serio quebrados”” Claudio ~ Padre, Cristo era um belo revolucionério. (interrompendo-se) Enganci-me... quero dizer, Padre, que se eu nfo fosse cristo bastarido para catequizar-me estas palavras sublimes” Ao descobrir a delagao de Silvério, este é questionado da seguinte forma: Judas, que é feito de teu mestre? Ti tens trinta dinheiros na mao? A iiltima cena é acompanhada do hino nacional em surdina, com a recitagio de um poema, Tiradentes é chamado de Cristo da Multidao. Bi-lo, o gigante da praca, 0 Cristo da multidio, E Tiradentes quem passa, Deixem passar 0 Titi, Suit... um raio o fulmina, Mas tomba na guilhotina, Nesse trono do senor, S JARDIN, Mf Historia factual da nconfidénca minira. indice & contro, Belo Horizont, v4, 2p. 152-137, 1989, Pagina sta, 134 Atgo extraido de JARDIM, M. Sines factual da ineanfdéncia muntra. Belo Horizons: Insiuto Cultural Codes. 1988. P CASTRO, A.A. Gonzaga ou arevolupdo de mas, Rio de Jano: A.A. de Cruz Cotiaho, 1878. pS. Ibid. p. 64 Foi como a aguia fulminada Pela garra pendurada, Como um troféu do Thabor.” 0 poeta Tomis AntOnio Gonzaga é comparado a Napoledo, Dante e Tasso, o primeiro um exemplo de lideranga e os outros duas importantes referéncias da literatura e da “historia universal” Profundo olhar no horizonte, Ao vento exposta a cerviz, E Tasso. olhando Leonora? Dante, fitando Beatriz? Lai no rochedo escalvado Quem 60 grande desterrado Maior que Napoleao?, Murmura: Brasil! .. Marial, E Gonzaga... Oh maldigao!” Com a proclamagao da repiblica, o culto civico a Tiradentes ganhou impulso. Um dos primeiros atos da Repiiblica foi declarar 21 de abril, data da execugao de Silva Xavier, como feriado nacional. Carvalho atenta que as comemoragées do feriado, no Rio de Janeiro, Jembravam as procissdes da Semana Santa, sendo a paixio representada pela Cadeia Velha = hoje local onde est o Palacio Tiradentes -, a morte na Praga Tiradentes e a ressurreig#o no Ttamaraty.” Para Carvalho, a caracterizagio de Tiradentes como herdi civico-religioso e nao como revolucionario radical se prestava a0 carter conciliador necessirio ao momento de consolidagdo do regime republicano, visto a importincia de agrupar as diferentes vertentes do republicanismo, sem negar o passado monarquista, Nas palavras de Carvalho, Ziradentes ndo Find pw > Ibid. p90. * CARVALHO, 1.M.A formato da alas. Opt». 65 onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS deveria ser visto como o herdi republicano radical, mas sim como her6i civico-religioso, como mértir integrador, portador da imagem do povo inteiro A imaginaria de carater religioso de Tiradentes foi favorecida pela falta de imagens contemporaneas do inconfidente. Assim, muitas imagens puderam ser criadas por pintores cartunistas da imprensa ao longo da segunda metade do século XIX e inicio do XX. Varias representagdes de Tiradentes apareceram em ilustragdes na imprensa e quadros como Tiradentes (18??) de Décio Villares, Martirio de Tiradentes (1893) de Aurélio de Figueiredo, Tiradentes Esquarrtejado (1893) de Pedro Américo, A Inconfidéncia (1901) de Ant6nio Parreiras, Leitura da sentenga dos Inconfidentes (1921) de Eduardo de Sa, Tirademes (1949) de Regina Viana ‘Veiga, O precursor (1922-1927) de Pedro Bruno, Resposta de Tiradentes & comutagéio da pena de morte (189?) de Leopoldo de Faria e Tiradentes (1946) de José Wasth Rodrigues. De todos esses, apenas o tltimo nao representa Tiradentes na figura de Cristo, e sim como alferes, patente militar entio ocupada por Tiradentes. O quadro foi encomendado ao artista pelo diretor do MEN, Gustavo Barroso, e nao deixa de ser menos idealizado, porém aqui o martir aparece como um oficial de carreira, Ainda de acordo com Carvalho, em 1894 Ubaldino do Amaral Fontoura, orador oficial das celebragdes do Clube Tiradentes, fez a seguinte afirmagao sobre as muitas e diferentes representagdes que os artistas fizeram de Tiradentes: Nenhum [artista] teve rraziio, todos tiveram raziio, porque é assim que as lendas se fazem. pore oro eae rears Pretec Moc do Thea, AMM Trodones, 1946. Alar 1395 Ole sche en cone ol: Dain Persia "Bid p70 spud. bi. p. 71 Figura 3 Figura 4 Leopoldo de Feria, Resposta de Tiradentes & Décio Villores, Tir comutagéo da pena de morte, 1892. Acero 1892. Acervo MHN, MAIN Felis Dates Poo A representagao mais comum de Tiradentes 0 coloca como protomartir da Independéncia. Thais Nivia de Lima Fonseca, em sua tese de doutoramento, mostra como a representagao mitologica e crista de Tiradentes continuou com forga ao longo do século XX, nas décadas de 1930 a 1960, especialmente na imprensa mineira. A passagem a seguir, publicada em jornal de 1957, é bem representativa dessa visio [1 Joaquim José da Silva Xavier habituara-se a ver a Pétria bergo de seus antepassados, subjugada. Mas no se conformava. Ele nascera quando jé 0 povo gomia sob a opresstio de impostos altos e acumulados. Perdera cedo os pais. Seus dois irmaos abragaram a carrera do sacerdécio, Viviam longe, intemos, ¢ as irmas estavam distantes, distribuidas pelas casas de parentes. Nem um vislumbre de afeigao sincera. Era de extrema solido sua existéncia, Porém compensou-se pelo amor sem limites & Patria, Analis ‘maior deles: aindependéncia. |... Tiradentes pagou com a vida, em praga piblica, o sonho bom que tivera para a Patria, Morreu como um justo, Rezava nos iiltimos momentos. Implorava por certo a Deus que a chama da liberdade, que naquela hora amortecia, nunca extinguisse nos coragSes de seu povo. Aquele que morreu pela liberdade, viu seus rogos atendidos. Nao demorou muito ¢ o préprio Regente das terras opressoras conerotizava 0 sonho de Tiradentes com um grito que reboou pela terra afora: Independéncia ou Morte.™ he os problemas, apaixonou-se pelo Fradenter 0 amigo da iberdade, Dri ce Minas. Helo Horizoate, 21 de abil de 1957, . 4 Suplemento Liter, Apu. FONSECA, LA nbs Mises 6 Teds vu pli inca Wil a 22, eM, p. 489-462, 202 onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS A representagiio civico-religiosa de Tiradentes ainda é bastante comum na atualidade e € reforgada por patriménios e museus vinculados ao acontecimento. Um exemplo bastante significativo é 0 Museu da Inconfidéncia, localizado na cidade de Sebollas, no distrito de Paraiba do Sul (MG), Inaugurado em 1972, no dia do feriado de Tiradentes, foi criado para expor o resultado da escavagio feita no antigo cemitério e capela da cidade. Foram achados ‘ossos que foram atribuidos ao brago e torax esquerdo de Tiradentes. Esta cidade foi umas das quais onde foram expostas partes do corpo do condenado, como mandava a Sentenga dat Algada. As traves da forca As traves da forca de Tiradentes entraram para as colegdes do MHN ja nos primeiros meses apos a fundagdo, transferidas do Museu Nacional por ordem do entao diretor Arthur Neiva. Eram sete as traves e, com a criagdo do Museu da Inconfidéncia, duas foram cedidas a essa instituigao. O achado foi noticiado no jornal A Reptiblica em 1893, momento de afirmagao do regime republicano e de construgaio dos elementos simbélicos de associagio da imagem de Tiradentes 4 imagem de Cristo, como, por exemplo, 0 quadro © Martirio de Tirademes (1893) de Aurélio de Figueiredo. Pelo noticiado, as traves jé foram tratadas como religquias histéricas desde seu descobrimento, sendo, portanto, seu destino “natural” o Museu Nacional Em artigo publicado, em 1941, nos Anais do Museu Histarico Nacional, Barroso indica alguns caminhos para pensarmos como se constrdi autenticidade do objeto. Tais dispositivos serio chamados aqui de dispositivos de valoracdo histérica e servem como elementos probatorios da autenticidade das traves. Barroso comega seu artigo enfatizando a “historicidade” de Ouro Preto e, a seguir, disserta sobre a forca de Tiradentes. Os elementos fisicos mais destacados na autenticidade do objeto so 0 tamanho extraordinario e o local onde fora encontrada.* Sobre o tamanho extraordinirio, Barroso cita o trabalho de Joaquim Norberto que menciona o tamanho da forea em duas ocasides, sendo suas fontes a Sentenga da Aigada ¢ 0 texto de Penaforte. Vejamos as afirmagdes de Norberto, Para que estas execugdes se fizessem mais comodamente, mandaram "BARROSO, GA ores de Tides, Anas do Muse stérico Nacional, Ro de Fano, v2, p. 45-38, 1941, que no campo de Sdo Domingos se levamasse uma forca mais alta do que de ordindrio.® A. segunda, mais adiante, [... Para conter 0 povo em sua curiosidade de ver o réu estendia-se em alas pela Rua da Cadeia ¢ pelo Largo da Carioca e pela rua que tem hoje esse nome c prolongava-se até o campo da barreira de Santo Ant6nio, chamado entio da Lampadosa ou S. Domingos [...Trés regimentos ais, o de Estremoz, ¢ 0 1 ¢ 2" de granadciros do Rio, formavam em triéngulo regular, dando as costas para o centro, no qual estava a clevadissima forea cuja escada numerava mais de vinte degraus, Por sua vez, em Os tiltimos momentos dos inconfidentes de 1789 pelo fradle que os assistin de confissdo, de Penaforte, aparece o seguinte. (Os demais regimentos estavam postados em figura triangular, deixando uma praga vazia, na qual estava a forca elevadissima, de sorte que a escada, por onde se subiria a ela, tinha mais de vinte degraus [...P* Outro elemento de legitimagiio da autenticidade das traves ¢ o local onde foram encontradas: © calabougo do antigo Aljube. A palavra, de origem arabe, € usada para designar pristio eclesidstica, Os eclesidsticos tinham foro privilegiado no periodo colonial e, caso condenados por algum crime, eram encarcerados no Aljube, entao administrado pela Igreja A prisdo foi construida em 1732 ao pé do morro da Conceig&o, abaixo do Palécio Episcopal (hoje ocupado pelo Servigo Geogrifico do Exército), proximo a jungao das ruas da Prainha (atual Rua do Acre) e Rua da Vala (atual Uruguaiana). Em 1808, em decorréncia da chegada da corte, 0 Alljube foi requisitado pelo Estado, sendo utilizado como prisio comum de 1808 até 1856.” 0 “circunspecto historiador” Vieira Fazenda foi a auioridade usada, por Barroso, para confirmar a autenticidade da pega. A procedéncia do antigo Aljube & defintiva para autenticar a forea de Tiradentes. A propésito, diz Vieira Fazenda, circunspecto historiador, em “Antiqualhas Memérias do Rio de Janeiro”, = NORBERTO, 11S, Histria do contrago minera. Op. itp. 13, > thi. p 190, spud id p. 188 » HOLLOWAY, T O ealbouo eo Aube do Rio de Janvto no siculo NIX. In: NUNES, C. et (Org) Histria dasprisbes no Bras io de lnc: Roos0, 2009. 1, pp 253-282 onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS na Revista do Instituto Histirico e Geogrifico Brasileiro, vol. 140, pag, 103: “Em fins do século findo, as execugdes capitais eram feitas no largo da Prainha, Capim principalmente Largo do Moura, ficando por alguns dias os estcios dos célebres barracdes de madeira pertencentes a0 negociante Diogo Manuel de Faria, Dai eram removidos ao Aljube, Li algures que hi poucos anos foram encontrados os restos da forea em um subterraneo dessa antiga prisio, Eles deverio figurar no Museu Nacional.” As Antiquathas e memorias do Rio de Janeiro so uma coletinea de pequenos artigos publicados por Vieira Fazenda na imprensa € depois reunidos no volume 140 da Revista do IHGB. Destes textos, varios foram dedicados ao tema da Inconfidéncia, especialmente a Tiradentes. Vale observar que muitos artigos tém como preocupagio principal buscar determinadas precisées histéricas como 0 local do patibulo ou a data exata da execugio. Em outro, Vieira questiona a validade de depoimentos de idosos, testemunhas oculares da execugao de Silva Xavier ainda vivas em finais do século XIX. O artigo comega com uma intrigante meméria. Em curiosa missiva, dirigida, ha dias, a esta folha por gentil ilustrado cavalheiro anénimo Jemos: “no primeiro quartel do século XIX, existia uma mulher na antiga rua dos Ciganos, ‘que contava fer visto, por muito tempo, os destrogos do patibulo do proto-martir da Repiblica. Destacavam-se os paus da forca na drea fronteiriga do edificio do Tribunal do Jiri, a0 fim da rua dos Ciganos, Essa mulher residia nas imediag®es proximas a rua do Nincio, e mencionava ainda que 0 rapazio vadio muito por ali andava a caga de um ninho, que os passaros fizeram no cextremo de um dos paus, que com 0 tempo apresentava larga concavidade, onde a passarada se ocultava.”™ Vieira Fazenda, entio, recorda-se da forca do Museu Nacional ‘Como perguntaremos, conciliar essa narragdo com 0 fato que nos foi referido, de existirem no Museu Nacional os restos da forea em que foi supliciado Silva Xavier?® Para complicar ainda mais a questo, menciona outras informagdes que negam a autenticidade das traves do Museu Nacional. STARROSO, GA Trea do Tiradents, Op. itp. 348, “* FAZENDA, V. Amiqualhas e moméras do Rio do Janse, Resta do Instinuo Histrico« Geogrific Brasil, Rio de Jani, tome £86,¥, M0, . 222-228, 1919. Pigin citads 214 * Bid 214 ‘A mesma confusto reina quanto ao destino das visceras do infeliz inconfidente: dizem uns haverem sido inumadas no préprio local da execuyao: outros que isso se realizou no cemitério dda Lampadosa: aqueles referem que o$ restos da vitima foram queimados conjuntamente com a forea |... E tudo vem por intermédio da tradig0 popular, transmitida por boca de individuos contempordncos!® A anilise de Vieira passa a argumentar sobre a validade dos “depoimentos dos velhos”, classificando-os da seguinte forma: Ha o velho estiipido e bogal, quase sempre africano, que pelas tristes condigdes de vida de escravo nada nos diz, Dele nada se consegue arrancar que possa servir. Ha os velhos cujas faculdades estio enfraquecidas —ndo tem a mens sana, confunde alhos com bugalhos: Conde dos Arcos com © Conde do Resende [...] Rataclffe com Tiradentes. [..] Hao velho pachéla, ¢ esta é a pior casta, 0 velho prosa, 0 velho mentiroso. que tudo viu, tudo fez © tudo assistiu: 0 velho engrossador, o qual com a esperanga de um niquel, vos contara coisas do arco da velha: assistiu & expulso dos jesuitas, viu a inaugurago da Candelaria no tempo do bispo Mascarenhas ¢ até matou muitos franceses no tempo de Duclere. [..1 Ha, porém, os ancios de espirito culto ou nfo, a quem o indagador pode, com confianga, dirigir-se: 0s primeiros por sua ilustrago, por haverem convivido com homens importantes do seu tempo, fomecem luzes seguras. Como exemplo, providencial, ai temos o veneravel Sr. Visconde de Barbacena, créni do Brasil e prestes a atingir 100 anos, tem meméria que nao vacila e responde sempre pronto as porguntas da algibeira * Vieira continua a classificagaio mencionando outros velhos de confianga, que, no por acaso, so elementos das camadas mais abastadas da sociedade ou pelo menos tenham convi pessoas “importantes”. A validade do testemunho esta vinculada a autoridade do “homem de letras” ou ao status social. No entanto, para Vieira, os depoimentos orais dos velhos deveriam ser confrontados com as fontes escritas, pois estas nmucar mentem ** ibid p20. (gros meus) bid 9216, © Bid p. 218, onnsoe£10NGi0 DE ALTORNA YALORACIO DEOBIETOS HSHONCOS 0 CASO DAS TRAYES CA FORCA DE MRADINTIS Gustavo Barroso operava de modo semelhante. Bittencourt cita um texto de 1930 intitulado O Brasil em face do Prata, uma compilagao de textos sobre questdes relativas as guerras brasileiras do século XIX. Um dos artigos ¢ sobre uma faca que teria pertencido ao presidente paraguaio Solano Lépez. A redagio dum dos jornais de Fortaleza [...] compareceu ha tempos o sr. Raimundo do Carmo Filho, cego e pai de dezesseis filhos. Chamando atengao para seu triste estado de pobreza, esse velho cearense trazia consigo uma preciosa reliquia histérica, da qual se queria desfazer para atender a necessidades pecuniairias. E exibiu aos olhos dos redatores uma faca de ago, de fabricago espanhola, com o cabo de prata lavrada, a kémina inerustada de ouro do mi iga |.) Assegurava que a faca pertencera ao ditador do Paraguai, Francisco Solano Lopes.” Barroso, apds dissertar sobre como a faca teria chegado as maos de Raimundo Filho, diz o seguinte: “Nela nenhum caracteristico autoriza afirmar que tenha pertencido ao ditador paraguaio. E os documentos relativos a morte do mesmo nao se referem a uma faca.”*” Barroso continua 0 artigo descrevendo outros objetos “auténticos” do MHN que pertenceram a Solano Lopez. Sobre um relégio de sol faz a seguinte observacao: “Tem as armas paraguaias ¢ as inscrigdes que o autenticam” e, mais adiante, “O relogio de sol foi trazido pelo velho marechal Mendes de Morais”. Tal como observa Bittencourt, o relégio poderia ser falsificado e 0 velho marechal poderia estar senil, Documentos positivos nao existem e o que autentica o relgio € outros objetos do género sao os depoimentos de “homens de letras” e “ilustres generais”.** Caso semelhante é do tacape atribuido ao indio Tibitigé, objeto do acervo MHN desde 1922 Nao ha nenhuma documentagao ou sequer anilise fisica que comprovem a idade de 400 anos do objeto, tampouco que mostrem o mesmo ter pertencido ao lendario indio. Porém, o fato de o tacape ter pertencido as colegdes de d, Pedro Il e posteriormente ao escritor e general Couto de Magalhaes, especialista em indigenas e autor de O sehagem, bastam para autenticar a pega.” ‘No caso das traves, a autenticidade é reconhecida a partir de textos de historiadores consagrados na historiografia, como Joaquim Norberto e Vieira Fazenda, corroborada por Apu BITTENCOURT, JN. Cada cosa cm su ga: ems de interprets de un muscu de isi. hip 171 tis mig © CE BEZERRA, RZ. Valor histvico, eposigo ¢ resauras3o de objtos do acervo do Museu Histvico Nacional. Anais do Museu Histrico Nacional. Rio de Beira ¥. 42, p. 159-175, 2010. documentos de época que alam sobre o tamanho extraordinario pelo fato de ter sido transferida do Museu Nacional. Documentagao positiva, usando aqui as palavras de Bittencourt, niio ha Ha apenas indicios e suposigdes, como o fato de nfo ter havido enforcamentos no Rio de Janeiro com a mesma pompa com que se deu o de Silva Xavier, 0 que leva a crer ndo ter havido muitas forcas como a que matou Tiradentes. Essas informagGes sii circunstanciais, nfio podendo determinar a autenticidade do artefato. No entanto, isso nao desqualifica o seu carater documental. Primeiramente por sua antiguidade e raridade — de fato é uma trave de forca e a Ultima execugaio da pena capital por forca no Brasil foi 1875, na provincia de Alagoas, A autoridade daqueles que escreveram sobre a forca e sobre o suplicio de Tiradentes, como o proprio Gustavo Barroso, Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, além da entronizagao de Tiradentes por meio de uma vasta produgio bibliografica e iconografica, reforga o cariter de reliquia das traves. Nesse aspecto a construgiio mitologica de Tiradentes nio se resume as primeiras décadas do século XX, e os museus sao agentes importantes nessa historia. O MHN possui outras “reliquias” de Tiradentes, como aut6grafos em documentos, varias pinturas associando-o a Cristo e até instrumentos de dentista que, supostamente, teriam pertencido a0 mértir, Em 1942, as traves eram expostas numa sala intitulada Tiradentes, junto com outras reliquias nacionais, Na exposigao montada na década de 1980, Expansdio, ordem e defesa, foram expostas junto aos objetos relatives aos processos de conquista e luta por territério, alegorizagaio semelhante da exposigdo atual onde a trave é mostrada em Portugueses no Mundo, ‘Todavia, sempre foi identificada como aquela em que padeceu Tiradentes Para finalizar as observagdes sobre essas traves, cabe ressaltar que a relagdo entre o culto do passado e 0 culto religioso é notavel, sendo o papel “templo” dos museus bastante abordado pela literatura especializada. No caso das traves da forca esse cardter ¢ tio evidente que, no periodo da Sala Tiradentes, as pessoas levavam partes da forca como patuas, até que a Preforia do MHN [..] teve que tirar a forca de Tirademes da exposigdo pelo assédio dos visitantes, vidos por pedacinhos para a confecedio de reliquias.® SHRASIL, MUSED HISTORICO NACIONAL, Divop,Ficha Hstroa, 024970, n.d catslogo, 3823, iguras 5e 6 Exposigdo Portugueses no mundo, 2010. Traves de forca expostas préximas a0 bustoTiradentes 1822 de Décio Vilores, Por outro éngulo, préxima ao relrato de d, Maria em éleo ¢ de urna: unerdrias que transporaram para © Brasil os restos mortais da dois inconfidentes dagredadas, Acervo MHN, Consideracées finais A criagao de reliquias historicas relaciona-se, assim, a autoridade dos especialistas ~ cujo saber autentica os objetos ~ e a funedo de autor na delimitagao dos discursos e na entronizagao de determinados acontecimentos e personagens, O mais curioso disso tudo & que as reliquias histéricas sio objetos auraticos, usando a terminolog existéncia ‘nica e em seu vinculo com uma tradigao que 0 identifica e o qualifica. Essa “exigéncia” esté presente nos objetos em questio, principalmente na tradigdo historiografica e literaria, Porém, continua Benjamim, “A autencidade de uma coisa é a quintesséncia de tudo © que foi transmitido pela tradigio, a partir de sua origem, desde a duragdo material até 0 testemunho histérico”.*' No caso analisado, a autenticidade das traves € bastante duvidosa, porém isso nfo impediu sua musealizagao, exposigio e tombamento, Isso porque o discurso ulo XIX e inicio do XX, ¢ 0 da benjaminiana. Para Walter Benjamin, a autenticidade dos objetos esté em sua dos museus de historia, tal como elaborado no final do sé STBENJAMIN, WA obra do ate na ora de sua reprodutbiidade tknica In cultura, Sto Pao: Brasiliens, 1985. 164196 ¢ Henlea Are Police, Emsatos 20 its citadas 167 € 168, evocagiio. Sobre o papel evocativo dos museus, Gustavo Barroso, em Introducdo 4 técnica de ‘museus, afirma: ‘Um museu nao deve ser unicamente um necrotério de reliquias histéricas [..|: mas um corganismo vivo que se imponha pelo valor educativo, ressuscitando o passado, nele acumulado, conservador tem que ser, antes de tudo, um evocador. Um museu conserva justamente para evocar.* A criagao de reliquias historicas insere-se, assim, na construgao ¢ afirmagao de tradigdes, O MHN, nas palavras de Barroso, deveria ser o local de culto das tradigdes. Tal como foi visto, 08 termos anforidacle e autor tém origem comum em envgere, “aumentar”, No contexto romano © que a autoridade aumentava era a tradiga0. Guardadas as devidas diferengas, os museus também “aumentam” a tradig&o ou tradigdes. Assim, autor e autoridade estao estritamente vinculados formagio dos acervos histéricos: a funcdo de autor como delimitadora, legitimadora e ordenadora do discurso e a caforidade (do especialista ou do “homem ilustre”) como elemento de legitimagao, Para finalizar, cabe ressaltar que, talvez, o principal desafio dos ‘museus nacionais de historia seja conciliar o cardter evocativo ¢ auritico de boa parte dos seus acervos, com a fuungao critica e documental que a disciplina histérica exige. "BARROSO, G Tried dtonica de museus, Pare ger e pate isi v. 1. Rio de Janeiro: Grifca Olimpica, 1951. p27

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