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Toledo - 2016

- Índice -

A mesa e a Cruz ............................................................................................... 3


A primeira Missa ............................................................................................... 6
A Semana Santa .............................................................................................. 9
E o Mundo? .................................................................................................... 12
Marcos da Eternidade .................................................................................. 16
No limiar da Semana Santa .......................................................................... 19
O descobrimento da Cruz ............................................................................ 22
O Espantalho .................................................................................................. 25
O espírito da quaresma ................................................................................ 29
Páscoa ............................................................................................................ 32
Quinta-Feira Santa ......................................................................................... 35
Quinta-Feira Santa! ........................................................................................ 38
Ressurreição .................................................................................................... 41
Ressuscitou ...................................................................................................... 44
Se ele não tivesse vindo ................................................................................ 48
Tempo de Páscoa ......................................................................................... 51
A MESA E A CRUZ

À primeira vista parece que não precisa da especial


comemoração da Quinta-feira Santa quem todos os dias se acerca da
Mesa do Senhor com a familiaridade da doce monotonia. Precisa tanto
e talvez mais do que os menos assíduos. A vida religiosa é
principalmente trabalho de Deus em nós, mas também é, logo depois,
trabalho nosso, colaboração de obediência que consiste,
principalmente, em nos desnaturalizarmos deste velho mundo cuja
figura vai passando, para nos sobrenaturalizarmos no mundo novo, na
única verdadeira e eterna novidade que Jesus nos trouxe. Daí a
necessidade de uma contínua e monótona perseverança combinada
com a singularidade dos atos extraordinários; ou daí a necessidade de
certos choques, de excepcionais descargas para quem já vive aquela
perseverança.
A Semana Santa faz reavivar em nós aqueles dias benditos e
únicos em que Jesus, o filho do carpinteiro, deixou-nos bem talhadas, e
para sempre lavradas, as esquadrias da Mesa e as esquadrias da Cruz.
Volvamos nossa devota memória e nossa agradecida
lembrança para aquelas cenas únicas que a Santa Liturgia realça. Na
Quinta-feira, Jesus reúne seus discípulos em torno da mesa pascal e em
tom festivo anuncia sua Paixão: ―Muito desejei comer convosco esta
páscoa antes de padecer.‖ E então, pela primeira vez na história e no
mundo, celebrou-se a Santa Missa: Jesus é a vítima oferecida ao Pai,
mas, agora, oculta sob o mistério do Sacramento graças ao qual a festa
recobre o sacrifício cruento. Mais tarde, depois do Calvário e da Cruz,
cada Missa repetirá o mesmo sacrifício incruento, mas então tanto a
Vítima como o Sacerdote estarão encobertos sem estarem menos
presentes do que estiveram no dia da Mesa e no dia da Cruz. Ceia,
Calvário, Missa são o mesmo e único Sacrifício latrêutico, eucarístico,
propiciatório e impetratório.
Na Quinta-feira Santa a Igreja rememora mais vivamente a Ceia
e a ardente amizade divina com que Jesus se despede dos doze.
Observemos desde logo que esta primeira Missa do mundo tem algo de
reservado e de fechado, a par da solenidade dos aprestos, e da
maravilhosa improvisação do Lava-Pés. Não é para o Povo de Deus que
Jesus Cristo celebra esta primeira Missa. Já nesse tempo passava da
centena o número flutuante de seguidores de Cristo, mas não é para
todos, para o Povo de Deus que a Ceia é oferecida, embora desde
então se destinassem a todos os frutos da Ceia. Cristo instituiu o
Sacramento da Eucaristia, e deixou formado o núcleo do sacrifício
incruento das futuras missas, na presença dos doze, para que eles
depois repetissem até o fim do mundo: ―Isto é o meu corpo que será
entregue por vós; fazei isto para celebrar a minha memória‖. Insistamos
em dois pontos para bem assinalar a ordem, a hierarquização tão
fortemente marcada na Ceia do Senhor: primeiro, a absoluta e infinita
prevalência de Jesus, um só celebrante; segundo, a seleção dos doze
como primeiros coletores e como inventariantes do tesouro legado por
Jesus. A hora do povo virá depois, e caberá a cada um dos
descendentes dos apóstolos reunir em torno de seu báculo as ovelhas
de Cristo.
Houve depois do Concílio muitos abusos doutrinários tendentes a
mostrar a Missa de baixo para cima, e tendentes a derivar a Missa
diretamente da Ceia, com esquecimento do caráter sacrifical, e
conseguintemente com desapreço do Sangue preciosíssimo por nós
derramado. Pode-se, sem dúvida, dizer que, na linha da causalidade
formal, a Missa deriva diretamente da Ceia, e o Altar deriva da Mesa;
mas, na linha da causalidade eficiente, ambas, a Ceia e a Missa,
derivam do Sacrifício da Cruz que é para nós usina das energias
espirituais que precisamos para realizar a desnaturalização do novo
mundo que já aqui e agora começou para nós pelos trabalhos de
Jesus.
Sirva-nos esta Quinta-feira Santa para plantar em nossa alma
esta idéia fecundíssima: quando pisamos os degraus da Igreja e nos
acercamos do Altar, nós, efetivamente, realíssimamente, saímos do
velho mundo, e entramos nos átrios da Pátria verdadeira onde Jesus, no
seu tabernáculo, a cada um de nós saúda com palavras de abismal
ternura: ―Desejei tanto que viesses comer comigo esta páscoa ...‖
E sirva-nos esta Sexta-feira Santa para nos relembrar com novo
fulgor que é na Cruz, e só na Cruz, que convém gloriarmo-nos. Desde
muitos séculos, até os astrônomos, que são homens inclinados a
vadiações especiais e a certo desdém pelo planeta Terra, tiveram a
idéia de representar nosso planeta por uma esfera com uma cruz
cravada em seu pólo. O mundo moderno fez o possível para extirpar
esta esquisita excrescência que lembra tantas transcendências, e que
anuncia a espantosa novidade que é o Cristo Jesus, diante da qual
todas as novidades do velho mundo exausto têm cor de cinza e gosto
de palha.
E para ainda mais nos espantar, foi nos próprios meios
eclesiásticos, hoje transformados em coudelarias dos cavalos de Tróia,
que surgiu a contestação da Cruz. Traga-nos Deus, nesta Sexta-feira
Santa, um novo ânimo sobrenatural para adorarmos o santo lenho de
onde pendeu nossa Salvação.

O GLOBO Quinta-feira, 23/3/78


A PRIMEIRA MISSA

Todos que possuem rudimentos de iniciação da Sagrada


doutrina sabem que foi na Quinta-feira Santa, véspera de sua morte na
cruz, que o Cristo Nosso Senhor instituiu o sacramento da Eucaristia (Mt.
XXVI, 20-25); (Mc. XIV, 17-21); (Luc. XXII, 14-20); (Jo. XIII, 18-30) e (1 Cor. XI,
23-26).
Parece-me, todavia, que é pouco dizer que todas as passagens
acima referem-se apenas à instituição da Sagrada Eucaristia. Na
verdade o que Jesus fez na Ceia, que ardentemente desejou comer
com seus discípulos e amigos (Jo. XV, 14) foi não somente o comovido
anúncio da traição (Jo. XIII, 21) de um dos apóstolos; não somente a
despedida e o anúncio de sua volta ao Pai; não somente a prevenção
do ódio do ―mundo‖ que odiará os apóstolos porque primeiro a Ele
mesmo odiou; não somente o veemente apelo à permanência de
todos os galhos da videira ao tronco; não somente o ―novo
mandamento‖ de amarem-se uns aos outros ―como Ele os amou‖; não
somente a promessa do Espírito Santo; não somente para prometer que
dentro de pouco tempo não mais o veriam, mas logo após outro pouco
tempo o veriam; não somente para lavar os pés dos apóstolos e diante
deles elevar ao Pai a oração sacerdotal que é certamente o ponto
mais alto do ensinamento evangélico – mas principalmente Jesus
reuniu-se aos discípulos, para diante deles pela primeira vez celebrar o
verdadeiro sacrifício redentor, apresentado de um modo velado,
sacramental, quanto à vítima.
Sabemos que são três os modos do mesmo e único sacrifício
redentor. Na ordem do tempo o primeiro se realizou na ceia, onde o
sacerdote era o próprio Cristo e a vítima foi Ele mesmo, mas presente
sacramentalmente no pão e no vinho. Depois dessa primeira missa do
mundo, o Sacrifício culmina na Cruz onde Jesus é ao mesmo tempo o
oficiante e a vítima que derrama Seu sangue para nossa Salvação. O
terceiro modo do sacrifício é o da Santa Missa em que tanto o oficiante
como a vítima estão escondidos no sacramento: e esse modo se
repetirá, se difundirá, e assim permitirá a todos os fiéis, até o fim do
mundo, o espetáculo do Sacrifício Salvador, e o contato de todas as
dores humanas com a dor da divina Vítima.
Na ordem da precedência ontológica a Cruz é, retroativamente
na ceia, e prospectivamente nas missas, a usina do transbordamento
de graças salvíficas. Nosso Pai quis deixar-nos a Paixão do filho
escondida na tranqüilidade da Santa Missa. Servindo-me de um verso
de Wordsworth eu diria que ―Mass is passion recollected in tranquility‖.
Mas a todos nós convém reler e meditar os evangelhos da
Paixão, para observar que a Ceia tem uma tensão trágica, de tal
espécie e tamanha magnitude, que nos autoriza a ver nessa primeira
―apresentação‖ do Sacrifício uma intensidade terrível de dor moral de
Nosso Senhor. O apóstolo e evangelista João diz: ―Dito isto, turvou-se
Jesus em seu espírito, e demonstrando (essa aflição) disse: ―Em verdade,
em verdade vos digo que um de vós me atraiçoará‖. Todos se
perturbaram, Pedro gabou-se e mereceu o anúncio de que três vezes
negaria o Senhor.
Agora atentai, amigo leitor, nesta evidência que de tão
evidente se tornou obscura à nossa cansada e turvada inteligência das
coisas de Deus: há hoje todo um esforço de covardia e traição universal
para conjurar o insuportável espetáculo da Cruz. E então, para fugir à
visão daquele divino pára-raios da cólera divina, para tirar os olhos do
sangue, inventaram o recurso de fazer a missa derivar mais da ceia do
que da Cruz, e com esse estratagema malicioso e parvo, fizeram da
Santa Missa um espetáculo de feira, aonde a assembléia dos fiéis é
aquele ―respeitável público‖ dos palhaços de circo. Não há nada mais
infinitamente distante da Ceia, onde o Cristo Jesus começou a padecer
moralmente, para continuar no horto e terminar na Cruz, não há nada
mais afastado, quase digo mais oposto da Ceia, do que essa difundida
molecagem de missa jovem, onde, com o pretexto de cativar os jovens,
e o intuito inconsciente de pervertê-los, a Santa Missa se transforma
numa boate.
Nem é de boa doutrina por na Ceia do Senhor uma tônica de
amizade alegre. O mundo frívolo e cheio de pruridos não suporta a
tensão de gravidade do cristianismo que nunca fez questão de ganhar
adeptos e salvar almas com convescotes e patuscadas. A Ceia do
Senhor – por pouco que meditemos – é o mais terrivelmente trágico da
história. Do lava-pés até a oração sacerdotal domina de tal modo a
figura de Um (modo que toda a iconografia não consegue transmitir)
que é o caso de perguntarmos se o abuso das concelebrações (que de
permitidas passaram a obrigatórias) não é um índice de depressão
espiritual de nosso tempo. Pior ainda é a solicitude tola com que tantos
padres inculcam aos fiéis a idéia que a missa é, antes de tudo, um
encontro comunitário divertido, e que a atitude correta do fiel é a de
ter viva, cálida e até olfativa consciência de que está numa
comunidade.
Esses frutos da epidemia de estupidez não reparam em duas
coisas que caracterizam a ceia: uma é o fato de só estar presente o
colégio apostólico ao qual Jesus dirá: ―fazei isto...‖ O povo de Deus que
nesse tempo já contava centenas de cristãos não foi convidado. Torna-
se evidente o modo de crescer da Igreja: de cima para baixo. E o
princípio da singularidade, que se aplica a tantos mistérios cristãos,
ganha aqui um relevo especial, de onde tiramos a verdadeira atitude
do fiel na Santa Missa: a consciência de estar na presença de um Deus
imolado deve prevalecer e ofuscar todas as lembranças humanas. As
intenções que trazemos, e que é bom trazer, devem ser esquecidas,
nossas aflições devem ser esquecidas, para que todas as nossas
faculdades se concentrem na presença de Cristo Nosso Senhor. A
quinta-feira santa nos ensina isto com especial vigor.
O GLOBO, quinta-feira, 7/4/77
A SEMANA SANTA
Editorial da Permanência

A comemoração litúrgica da Paixão de Nosso Senhor Jesus


Cristo, que na dor consumou nosso resgate, é uma lição repetida, é
uma sabatina dos dois lados essenciais de nossa vida: o lado Cruz em
que Nosso Senhor assumiu todas as nossas dores, convidando-nos a
assim nos associarmos à sua obra, e descarregou com seu sangue a
tensão de inimizade entre o homem e Deus; o lado Ressurreição com
que ultrapassa tudo quanto poderíamos desejar. Para descrever o
contraste da obra redentora São Paulo nos diz que ―onde abundou o
pecado superabundou a graça‖, de onde poderíamos tirar várias
conclusões de júbilo transbordante: onde abundaram tristeza e lágrima,
superabundou a alegria. Ainda vemos essa alegria da Glória no lumem
fidei, na lamparina da Fé que nos mostra tudo em sinais enigmas; mas
um dia, se não opusermos a nossa vontade à vontade de Deus,
veremos tudo o que estava escondido, e tudo resplandecerá no lumem
Gloriæ.
O ―mundo inimigo‖ que é o mundo, mas é um mundo, um Reino
com seu Príncipe, e com seus clérigos nos trânsfugas que querem fundar
a ―nova Igreja‖, que é uma anti-Igreja, a pretexto de exibir um
humanismo interessado pela sorte temporal do homem, despreza a
Páscoa do Senhor nos seus dois temos essências, na agonia da Cruz, e
na Ressurreição.
A aliança que Deus nos propôs, por cujos termos toda nossa vida
tem de se inserir entre a aceitação da Cruz e a certeza da Ressurreição,
faz desta vida uma passagem, uma páscoa de valor infinito pelos seus
termos extremos, sob a condição de renunciarmos aos pequenos céus
frágeis e fugazes de nossa própria invenção. E é nesta renúncia
do hoje horizontal, para uma entrega completa ao ―hodie‖ vertical de
vida eterna em Deus, é nesta exigência que tropeça o enorme
movimento de apostasia de nossos tempos. Todos nós, ai de nós,
apegamo-nos aqui e ali a um simulacro de paraíso neste mundo, mas
não fazemos disto um sistema muito menos uma vanglória. Gememos,
choramos, pedimos perdão 70 vezes 70.
Quando, porém, uma massa volumosa se congrega para
secularizar-se, para se apegar ao mundo com grito de triunfo e com
risadas de escárnio para a Casa do Pai, então não é só um
recrudescimento de pecado o que vemos, não é mesmo uma heresia,
―a heresia do século XX‖ como diz Madiran, não é só uma
protestantização da Igreja isto que temos diante de uma consciência
boquiaberta.
Com a característica de somar todas as heresias, esse
movimento dito ―progressista‖ é na verdade uma massificada e
volumosa apostasia cujos fautores e cujos carneiros só não se afastam
mais decisivamente, num último assomo de lealdade, porque hoje essa
apostasia disfarçada rende muito mais do que os trinta dinheiros com
que Judas comprou a corda.
Roguemos nós pelos irmãos na fé. Observemos bem que no
Evangelho de São João, Nosso Senhor não desaconselha nem esconde
esse amor de predileção. Depois do anúncio da traição que Jesus
pronunciou com espírito aflito, Jesus se volta para despedir-se de seus
discípulos, amigos e filhos: ―Filhinhos meus, ainda um pouco de tempo
estarei convosco; depois buscar-me-eis, e como disse aos judeus
também vos digo agora: aonde eu vou não podeis vir, mas agora vos
digo: trago-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros
como eu vos amei; que vós vos ameis mutuamente. E NISTO
conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes caridade uns
pelos outros‖.
Os teólogos mais tarde ensinarão que há uma hierarquia na
caridade. Neste momento de densidade infinita Jesus não hesita em
dizer que seu novo mandamento consiste num amor de coesão dentro
da Igreja, e já explica que esse maior amor dos fiéis, uns pelos outros,
longe de ser detrimento para os outros, será sinal. ―In hoc cognoscent
omnes qui discipuli mei estis, si dilectionem habueritis ad invicem‖.
Pensando o valor deste sinal, para os outros, Tertuliano dizia: ―vede
como eles se amam‖.
Mas no enxame de apóstatas que cerca a Igreja, os mais
efusivos se apresentam como os mais bondosos e mais compreensivos
do que Nosso Senhor, porque não se restringem nesse novo
mandamento, e ostensivamente escolhem no mundo alheio à Igreja
seus paradigmas e seus modelos de filantropia: Gandhi, Luther King, e os
revolucionários Guevara e Camilo Torres. Na verdade, e como tão bem
disse Marcel de Corte, esse amor abstrato pela humanidade em geral,
pela classe operária, ou pelo Terceiro Mundo não passa de uma cruel
falsificação do amor.
A semana da Paixão de Nosso Senhor, além de outras lições nos
aviva a vigilância e a consciência de estarmos cercados de inimigos.
Todas as formas da maldade do mundo têm um papel na Divina
Tragédia, e não é de todos que Jesus diz: ―Perdoai-os Pai, porque eles
não sabem o que fazem‖. Não é, portanto, para nos amolecer, e para
nos tornar mais filantrópicos do que cristãos, que a Igreja realça a
Semana Santa. É antes para lembrar o novo mandamento que nos
tempera e nos orienta o amor.

PERMANÊNCIA, Ano VI, n° 54-55, Abril-Maio de 1973.


E O MUNDO?

E o mundo? Que rumo tomará esse monstro de complexidade e


de diversidade, que rosna em todos os tons a vanglória de suas
conquistas, para logo, em todos os timbres gemer as misérias das
mesmíssimas glórias; e o mundo? o mundo?
Lembro-me da visita que fiz a Nelson Rodrigues, recém-operado
e ainda mergulhado nos abismos da semiconsciência. Quando, afinal,
vencidas as reservas e proibições médicas consegui entrar no pequeno
quarto onde Nelson me apareceu numa majestosa cátedra de dor
toda cercada pelos fios e aparelhos luminosos da ciência. Nelson
estava majestosamente alheio a tudo. De repente, por uma fresta
acaso acesa na consciência, viu-me e precipitou-se para mim com um
rugido que a custo estivera represado naquela grande alma tão
apaixonadamente interessada: - Corção! E o mundo? E o mundo?
Tracei no ar um gesto largo e rotativo para tranqüilizá-lo: o
mundo continuava seu ofício de girar.
Carinhosamente expulso pelo médico e pelas enfermeiras, vi o
Nelson voltar às trevas protetoras da inconsciência enquanto, pelos
corredores do edifício, voltava eu ao mundo.
Hoje, depois de uma semana a depressão gripal e de vertigens
de natural cansaço de tanto girar com os que giram, retomei
consciência da cátedra que me oferecem nesta bela página do
GLOBO, de onde devo atender às interrogações vindas de todo o
mundo e estampadas, neste ou naquele estilo, em todas as páginas dos
jornais.
Parece-me que todas as inquietações convergem nesta: "Aonde
vamos?"
Na semana passada, a contemplação dos mistérios da Paixão e
da Cruz nos levaram a ponderar que deve estar no supremo ponto do
combate e do ensinamento de Jesus o supremo critério para nosso
pobre testemunho. Numa escalada em que Jesus e os doze,, depois do
drama da Ceia, sobem ao jardim das oliveiras há uma inimaginável
ascensão espiritual. Quando dissemos que começa a Paixão no
momento em que, feitos todos os preparativos, Nosso Senhor diz aos
doze: "Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa", estávamos
longe de imaginar os degraus de uma imensa e divina dor a serem
galgados em poucas horas. E agora, em vez da mesa preparada e até
dir-se-ia festiva, vemos o Senhor prostrado na terra, tomado de angústia,
a suplicar "Pai afasta se possível de mim este cálice - mas que Tua
Vontade Seja Feita e Não a Minha" (Mc. XIV, 37 de memória). E aí está a
primeira lição: obediência ao Pai até a morte, e morte de cruz.
Todas as hesitações, todas as dúvidas, todos os cansaços, todos
os medos se resolvem diante desta suprema obediência ao Pai.
O leitor dirá que repito frases convencionais, e perguntará como
é que nós podemos saber qual é a vontade de Deus. Respondo
dizendo que efetivamente repito o que com a Igreja aprendi, e dou
graças a Deus de não ter sido vã a atenção que prestei à Sagrada
Doutrina. Agora desdobro em duas a resposta ao leitor ávido de uma
solução para o seu caso. Em primeiro lugar temos a ciência geral da
vontade de Deus expressa nos mandamentos e desenvolvidos nas obras
dos doutores da Igreja. Tudo isto se estuda e se aprende desde que
inicialmente se escolha a graça que nos leva a amar a vontade de
Deus. Para ouvir a vontade de Deus nos casos particulares é preciso ter
a alma preparada pela mortificação, pela humildade e pelo silêncio
interior. Isto também se aprende e se exercita se os admiráveis exemplos
dos santos nos são oferecidos pela Igreja para que esses exemplos nos
aproximem mais dos exemplos de Jesus.
E agora, neste ponto, marcado com uma cruz, ponderemos o
rico paradoxo do mistério da redenção. Desde os preparativos da Ceia
observamos que Jesus prepara e conduz sua Paixão mais como quem
faz uma obra do que como quem se submete aos acontecimentos.
Voltemos ao jardim das oliveiras onde deixamos Jesus prostrado, e
depois a dizer com tristeza infinita: - "Não pudeste rezar uma hora
comigo!"
Quando porém os passos da multidão armada de varapaus e
seguida de soldados romanos, a atitude de Jesus tem tão visível força e
majestade que derruba por terra os primeiros homens da corte. E
quando pergunta: "quem procurais?" e sobretudo quando responde
tranqüilamente: - "Sou eu...", torna-se para nós bem clara - na Fé - o
desenvolvimento da cena sacerdotal: Jesus não é preso, Jesus se
entrega, se oferece ao Pai.
Mas é diante do sinédrio reunido para julgar Jesus que a obra de
nossa salvação, trabalhada por Nosso Senhor, ganha uma
concentração inimaginável. Enquanto juízes e testemunhas formulavam
acusações diversas e até incoerentes, Jesus calava-se como se nada
daquilo lhe dissesse respeito, ou como se sua vida não estivesse nas
mãos daqueles homens. Em outras circunstâncias, análogas diante de
Heródes (Luc. XXIII, 9) e de Pilatos (Mc. XV, 5) Jesus calou-se. Quando
porém no Sinédrio o Sumo Sacerdote, admirado de seu silêncio, dirigiu-
lhe a pergunta que o mataria - "És tu o Cristo?" - Jesus respondeu com a
única resposta que o Pai esperava dele, sabendo que nesta resposta
concentrava o sacrifício em razão do qual o Verbo Divino se encarnara
para a salvação eterna dos homens que, acima de todas as coisas do
mundo, tivessem sede daquele Sangue. Eis a resposta de Jesus-
Sacerdote que oferece ao Pai Jesus-Vítima: "Eu o sou". "E haveis de ver o
Filho do Homem sentado à direita do Pai vir sobre as nuvens".
A continuação é conhecida: O Sumo Sacerdote rasga as vestes.
Jesus vai de Heródes para Pilatos. O povo prefere Barrabás. E Jesus é
crucificado exatamente por ser o Filho de Deus Encarnado para morrer
na cruz por nossa salvação.
Da casa tranqüila de Betania (Luc. X, 42) ao tumultuoso
ambiente do Sinédrio, e daí ao Calvário, traça-se a límpida linha do
supremo critério com que queremos na terra, no turbilhão dos múltiplos
cuidados temporais, nos mantermos fiéis ao único necessário e à razão
central do sacrifício de Jesus. Blasfemaremos sim, quando reunidos em
sínodos ou concílios dissermos que ali estamos em nome de Jesus Cristo
para fins e cuidados "prevalentemente temporais". Ou pecaremos por
omissão se, diante de tais declarações, não dissermos: "anathema sit".
O GLOBO Quinta-feira, 22/4/76
MARCOS DA ETERNIDADE

No torvelinho das horas e dos dias convém considerarmos, vez


por outra, os marcos imóveis, os sinais da eternidade. Vale a pena parar
a carreira dos sucessos, e com voz de poesia perguntar às árvores
espantadas, às pedras retraídas, às casas que ficam atrás dos portões
de ferrugem e das janelas estremunhadas, se porventura entendem a
avidez que nos impele, que nos compele a perseguir um bem que logo
perde o sabor quando alcançado; se entendem essa fome que se
muda em fastio ou náusea à medida que morre o momento que passa,
continuando insaciável para os sonhos de fumaça impossível.
A árvore permanece, posto que aos ventos ofereça uma
mobilidade dançante e cantante; a pedra permanece; o velho portão,
malgrado a ferrugem permanece. São essências tranqüilas e bem
ritmadas. A seu modo humilde imitam e refletem o Imutável. Sendo o
que são, com simplicidade robusta, trazem marca daquele que é o que
é. Nós, ao contrário da árvore e da pedra, vivemos a fugir do que
somos. Nós que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, fugimos
de Deus e portanto de nós mesmos quando buscamos o absoluto no
torvelinho das coisas. E assim, pelo sopro do espírito e pelo ímpeto de
liberdade que nos faz mais próximos de Deus, tornamo-nos mais
distantes e assim vivemos a correr, a fugir do que temos, a buscar o que
nunca teremos, e a assistir à decomposição do que tivemos. Marta,
Marta, de muitas coisas te ocupas, mas uma só é necessária...
Vale, pois, a pena, parar o frenesi e considerar os marcos de
eternidade que a Igreja nos oferece nos tempos da Paixão. Amanhã ou
depois os cuidados voltarão; hoje, detenhamo-nos diante da pedra de
Pedro, da casa de Deus, a árvore do Crucificado. Amanhã ou depois
voltaremos às nossas agitações, à perplexidade da política nacional e
internacional, às notícias da cidade e do mundo, a tudo isso que será
vaidade das vaidades e perseguição dos ventos, se não soubermos
trazer para esses problemas dispersos o critério fundamental que os
transfigura em caminhos de Deus.
Hoje estamos no limiar da Semana Santa, preparando nosso
olhos para o quadro da vitória do Cristo, que a Igreja nos oferece com
sinais moldados nas coisas peregrinas, e que nos deixa entrever, no
outro lado do espelho, o país maravilhoso da divina esperança. A obra
de Cristo, espécie de usinagem operada sobre a dor e a morte, e por
conseguinte sobre o que constitui o máximo espanto do mundo, abre-se
agora num estuário de glória. Assistiremos, durante a semana, à
representação do drama onde se vê passar um Deus apaixonado. O
Homem das Dores, irreconhecível para os que o flagelaram e o
esconderam atrás da derisão, e todavia o mesmo coração vulnerado
do Cântico dos Cânticos.
O cabo da travessia desse mar vermelho, o círio pascal será
para nossa vida um diapasão de luz. São Bento ensina que a vida do
monge deveria ser uma Quaresma contínua. A nossa também. E essa
Quaresma deveria ser paixão e a paixão deveria ser morte; e a morte
deveria ser Páscoa. A travessia, a transmutação que Deus espera de
nós é uma conversão que vá deixando o que menos somos em favor do
que verdadeiramente somos por dom de natureza e pelos dons da
graça. De claridade em claridade, se formos dóceis, iremos
caminhando por atalhos de dores, para o país do amor perfeito que
tem bandeira de fogo em mastro de cera.
Parece-vos ingênuo – ó leitores tristes - o quadro da Sião Gloriosa
que a Igreja desdobra? Parece-vos estampa infantil a santa liturgia? Ou
quem sabe se tudo isto não vos lembra apenas costumes obsoletos,
cerimônia que os etnólogos explicam, ritos que os séculos científicos
superaram? Por vós e por mim, receio que a simplicidade do quadro
seja chocante, e não consiga atravessar a sebe de nossas
complicações. Nós somos complicados; Deus é simples. Nós somos
adultos e vividos; Deus é mais moço do que nós. Nós somos espertos,
sinuosos, ardilosos; Deus escolheu para si as figuras do cordeiro e da
pomba. Diz-nos a fé que ali, na outra margem do mar vermelho, onde
brilha o círio da vitória, os enganos e tribulações terão desenlace de
prodígio; que receberemos, em medidas de alqueire calcados,
recalcados e transbordantes, o que não tivemos a audácia de pedir;
que serão consertadas as contradições e nossos tristes amores; que a
lágrima vira jóia; que a chaga vira for. Diz-nos a fé que naquele país de
maravilhas do outro lado do espelho, teremos a paz.
Parece-vos ingênua – ó homens tristes – a linguagem da fé?
Parece-vos insípida a comida da esperança? E quem pergunta poderá
se gabar de melhor saber e de melhor servir? Não é a descrença que
mais me espanta. A descrença, se me permitem os apologetas, tem
certa lógica na sua retratação, no seu encolhimento, no seu propósito
de não levar longe demais as investigações que podem terminar em
incêndio. A descrença sob esse ponto de vista, é mais razoável, mais
compreensível do que a crença imperfeita que se detém, que se
encolhe, que se retrai, quando nela, na Fé, tudo pede expansão e
conseqüência.
Talvez fosse melhor mudar de tom. A segurança da fé e a
certeza da esperança seriam mais edificantes do que o título da
perplexidade. Talvez fosse melhor, na festa da igreja, procurar pífaros e
cítaras para contar o júbilo da alma Cristã no dia da Páscoa do Senhor,
em vez de permitir ao velho coração um gemido de cansaço... Deus há
de fazer que essa tristeza se converta em alegria e que a alguém
aproveite o que a nós nos pesa. E privilégio seu; é ofício de seu Filho
transformar a dor em salvação e a morte em vida.
NO LIMIAR DA SEMANA SANTA

Ainda uma vez estamos nós, caro leitor, enquanto por aqui
andamos, no limiar da Semana das semanas, a Semana Santa, onde a
alma antes de se rejubilar com os hinos da Ressurreição, contempla e
sofre a Paixão do seu Senhor.
Toda nossa vida cristã, na medida em que é cristã, deveria
transcorrer diante do mesmo sistema de referências com eixos em cruz,
mas Deus reconhece nossa fraqueza e confiou à sua Igreja uma soma
de recursos pedagógicos para reavivar em nós o nosso nome, o nosso
compromisso, o nosso fraco amor. O ano litúrgico é um recurso didático,
uma espécie de sabatina, mas difere numa coisa dos métodos
humanos de recordação e representação. Quando celebramos um
aniversário, uma data de nascimento, de feito cívico ou de festa
familiar, é só afetiva a nossa rememoração. Os personagens mortos, os
dias idos e vividos não reaparecem na festa senão sob as espécies de
sinal e de lembrança. Outra coisa, porém, é a recordação de um
mistério divino, como esta que constitui agora a Liturgia da Semana
Santa: se o Cristo não torna a descer e a se encarnar e não torna a
padecer, não é menos verdadeira uma espécie de descida espiritual
desta grande semana. Em outras palavras, não somos só nós, Igreja
Militante, que celebramos a Semana Santa, é toda a Igreja, são todos
os Santos, e acima de tudo o próprio Deus que realiza na Liturgia uma
repetição efetiva, real, da Encarnação e da Paixão.
E diante dos textos inesgotáveis, por mínima que seja a atenção,
tornamos a notar o duplo aspecto divino-humano, em máxima
densidade nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Tudo o que aconteceu
naquele tempo, que ficou registrado nos Evangelhos, tem a marca de
um contraste tremendo que Deus ao mesmo tempo exalta e aplaina.
Em nenhum outro ponto do Evangelho é tão evidente a transcendência
da obra de Cristo, e a sua divindade; mas também em nenhum outro
ponto é tão evidente o caminho percorrido pela Misericórdia até as
profundezas de nossa miséria. Na leitura de todo o Evangelho antes
destes textos de concentração máxima, aqui e ali, se nota o peso da
carne, diria até o leve peso da carne na vida de Jesus. Aqui ele tem
fome, acolá diz-se cansado. Aqui freme de cólera diante dos vendilhões
do templo ou diante da hipocrisia dos fariseus, e acolá chora diante do
amigo morto. Mas nas vésperas da Paixão, já diante da Ceia, a
atmosfera de paixões se adensa. No Evangelho de Marcos, a Ceia da
Quinta-feira Santa começa logo, quase diria ao levantar-se o pano,
com uma conversa dramática: ―E quando estavam à mesa e comiam,
disse Jesus: - Em verdade vos digo que um de vós, que come comigo,
me há de entregar‖. E então os discípulos ficaram perturbados e
começaram a dizer: ―Sou eu?‖ e começaram a se gabar: ―Ainda que
todos se escandalizem a Teu respeito, eu não me escandalizarei‖. E
assim se vê que a festa tranqüila, a refeição de amizade, se carrega de
tragédia. E nós sentimos ao mesmo tempo a infinita distância, e a infinita
proximidade do Verbo Encarnado em todos os passos da Semana
Santa. E se em cada episódio ganha realce a tristeza de nossa miséria,
acentua-se também, pelo interesse de Jesus por nós, a nota de nossa
dignidade. E assim, quando estivermos inclinados a desanimar de nossa
humanidade temos o Cristo Crucificado a nos ensinar do alto da Cruz,
―ex-cathedra‖, o fundamento de nossa religião, de nossa metafísica, de
nossa moral, de nossa política.
Às vezes nos escandalizamos quando vemos dentro da Igreja
agitações, perturbações, divisões, parecidas com aquela que existiu e
que ganhou singular destaque na Quinta-feira Santa em torno da Ceia.
E até pensamos que seja virtude calar, quando alguns dão público
espetáculo de seus desatinos, como se pudesse haver alguma
vantagem em tornar visível aos olhos do mundo somente este aspecto
triste, com o risco de alguns pensarem que os demais aspectos da Igreja
são do mesmo quilate. A Liturgia da Semana Santa mostra, por assim
dizer, a enorme franqueza com que a Igreja publica, cantando, os
estremecimentos, os desentendimentos, as traições. Não se
escandalizem, pois, os que descobrem, como se descobrissem a
pólvora, que o drama continua, e que é diante do mesmo Cristo
Crucificado que nós continuamos a clamar pelos séculos e séculos,
movidos por nossa insegurança, por nosso sentimento de culpa, por
nosso fraco amor: ―Sou eu?‖, ―Sou eu? Eu não me escandalizarei ...‖ É
claro que nós gostaríamos de ter maior entendimento, sobretudo com
os mais próximos; é claro que nós lamentamos, que nós choramos, que
nós sonhamos com uma paz e uma unidade aqui mesmo neste vale de
lágrimas; é claro, claríssimo, que nem por ser permanente o drama da
Paixão, devemos descuidar-nos de lutar por uma concórdia maior
dentro da Igreja. Mas a grande lição da Semana Santa é a da
confiança total posta no mérito do Cristo e na obra de redenção, da
qual se tira um conforto sobrenatural, que não se parece com as
fórmulas usuais de conforto que o mundo pode dar. Nossa religião é de
Cruz: gloriemo-nos na Cruz de Nosso Senhor.
O GLOBO Sábado, 18/3/78
O DESCOBRIMENTO DA SANTA CRUZ

―Depois, o Celebrante sobe os degraus do altar pelo lado da


Epístola, e descobre o braço direito... e em tom mais alto canta pela
segunda vez o Ecce lignum Crucis...‖. E pode-se dizer que esta
cerimônia do descobrimento da Santa Cruz resume bem a notícia
central da liturgia da Semana Santa.
Sim, mais uma vez, sincronizada com os ciclos da Terra e da Lua
em torno do sol, a Igreja descobre, demonstra, realça a figura que,
apesar de dois mil anos de disseminação, continua a constituir
escândalo para o mundo, continua a ser um insuportável espantalho
para as almas que se deixam nortear pelos critérios da carne.
De alguém que se impacienta e se revolta, costuma-se dizer que
não está aceitando a sua cruz; podemos hoje dizer que toda a
perturbação que aflige a Igreja em nossos dias consiste na mesma
essencial recusa da cruz. E, por isso, é com patética solicitude que a
Igreja repete, hoje, em resposta a todas as insolências que ouve de seus
filhos em nome de uma suposta visão nova e científica do mundo
moderno, a mesma demonstração fundamental: Ecce lignum Crucis...,
e logo nos transmite a magoada palavra do Pai: «Povo meu, que vos fiz
eu? Em que vos contristei? Respondei-me! Foi porque vos tirei da terra
do Egito que pregastes na cruz o vosso Salvador?».
Cruz, sinal entre todos carregado de símbolos, árvore única entre
as árvores, poste de suplício, demarcador de encruzilhadas, cátedra
elevada e virada pelo avesso em sua carpintaria, porta do paraíso, sinal
de vitória e de salvação, sinal de contradição e de acréscimo,
excrescência, dimensão que excede as demais dimensões – em todas
as refrações e cintilações, a cruz de Nosso Senhor nos mostra sempre, e
principalmente, a absoluta novidade, o absoluto acréscimo que o Cristo
Jesus nos anuncia. E é justamente esta notícia excessiva que o mundo
recusa.
Vivemos numa época singularmente trágica para uma
consciência cristã: nunca antes se viu tamanha onda de recusa da
cruz. Os teólogos vêem claramente a insolência do naturalismo que
está na medula deste novo modernismo. Chamam também a isto
temporalização ou horizontalização do cristianismo. Dizendo reagir
contra erros de desatenção pela ordem temporal e pelas exigências da
Encarnação, os inovadores passam a desatender às exigências mais
altas, que constituem a essência do cristianismo – e, pregam um novo
cristianismo ―humano, humano demais‖. E aqui nos vale um dos
símbolos da cruz: ela tem braços horizontais, braços abertos e
estendidos pelo mundo à altura do homem; mas essa trave do
apostolado, da comunicação, do serviço fraterno, da disseminação da
boa nova, só se sustém porque o divino carpinteiro a quis pregada no
tronco vertical, que se prende na terra e se eleva ao céu.
Os antigos astrônomos designavam cada planeta por um sinal: o
da Terra é um círculo encimado por uma cruz. Consciente ou
inconscientemente, os autores do sinal viam no círculo o mundo
fechado sobre si mesmo, em sua natureza; e na cruz viam o marco que
lembrava a aterrissagem do Salvador. Pode-se dizer que só pegou bem
o tom do cristianismo quem, de algum modo, sentiu o contraste entre os
dois símbolos, o círculo e a cruz. E foi por aí que Chesterton, o grande
convertido do século, decifrou o claro enigma que é o Cristo Nosso
Senhor.
A idéia aparece primeiro em Orthodoxy, no segundo capítulo,
em que o autor critica o racionalismo, cujo ponto-limite é a loucura: ―o
louco é o homem que perdeu tudo, exceto a razão‖. Perdeu a
capacidade de admirar e de sentir o mistério das coisas, reflexo do
mistério de Deus. Eis o que diz Chesterton: «Assim como tomamos o
círculo para o símbolo da razão e da loucura, muito bem podemos
tomar a cruz para o símbolo do mistério e da saúde. O budismo é
centrípeta, mas o cristianismo é centrífugo: jorra e se expande. O círculo
é perfeito e infinito por natureza, mas ele está para sempre amarrado a
suas dimensões, não podendo crescer ou diminuir, já que na sua
definição o raio é constante. Mas a cruz, embora tenha no centro uma
colisão e uma contradição, pode sempre estender os braços sem
modificar sua forma. Pelo fato de abrigar um paradoxo em seu centro,
a cruz pode crescer sem mudar. O círculo volta-se sobre si mesmo como
prisioneiro. A cruz abre seus braços aos quatro ventos e serve de marco
indicador aos viajantes livres.»
Mais tarde Chesterton voltará à idéia para desenvolvê-la em
forma de romance alegórico: ―A esfera e a cruz‖. Logo às primeiras
páginas dessa admirável fantasia, um dos personagens que viajava de
avião em companhia de um piloto progressista é atirado ao espaço e
cai numa cúpula redonda e lisa, de onde se despencaria se não fosse a
excrescência que a mão encontra o escuro. Ele caíra na cúpula da
Catedral de São Paulo, em Londres, e se agarrara na cruz.
Agarremo-nos nós também a este sinal principal de nossa vida
nova em Cristo Nosso Senhor. E cantemos com a Igreja: ―Eis o lenho da
cruz, do qual pendeu a salvação do mundo.‖
O GLOBO, 3/4/69
O ESPANTALHO

Todas as grandes almas semeadas por Deus nestes vinte séculos


de cristianismo e que a Igreja nos oferece como exemplos do Exemplo
perfeito deixaram-nos, por atos e palavras, a mesma doutrina de
santificação pregada por Jesus. A doutrina do Sangue. A doutrina da
Cruz.
Quase todos os dias corremos ao encontro marcado com Jesus.
A Santa Missa como sabemos é o mesmo e único sacrifício em que
Cristo Sacerdote oferece ao Pai o Cristo Vítima para a salvação
daqueles que, pela graça, querem Deus acima de tudo. Mas neste
mesmo e único sacrifício, agora multiplicado sob as espécies, se
esconde a paixão cruenta de Nosso Senhor. A pupila da Fé pode fartar-
se da Presença Real do mesmo e único Cristo Jesus, mas à pupila da
carne é poupada a violência da paixão. E por isto, lembrando a
definição de poesia deixada por Wordsworth, ousaremos dizer que:
«Mass is Passion recollected in tranquillity».
Nossa memória e nossa imaginação facilmente nos mostram o
abismo que separa estas duas aparências sensíveis: de um lado uma
missa bem rezada em manhã clara e quieta para os fiéis que no
recolhimento de alma contemplam o mistério; do outro o sombrio
Calvário onde agoniza, no arremate da obra de nossa salvação, o
Homem das Dores, Deus admiravelmente encarnado, Deus
espantosamente crucificado. Mas aqui e ali o mesmo gesto, a mesma
obra, a mesma presença de Deus.
Na liturgia da Semana Santa a Igreja não traz nenhum dado
novo ao compasso dos passos de Jesus, mas pode-se dizer que traz um
apaixonado empenho de desvendar um pouco a Paixão que o dia a
dia da vida religiosa manteve escondida na tranqüilidade.
Tranqüilidade excessiva, por nós mesmos adensada, para fugirmos, pela
rotina ou pelo cumprimento dos deveres mais fáceis, aos desmedidos
chamados de Deus e à lembrança dos compromissos que trazemos
marcados na anca da alma pelo sinal da Cruz.
Além disso é nos dias da Paixão que a Igreja realça as lições
mais fortes e necessárias do ensinamento de Jesus especialmente
concentrados no Evangelho de São João. Vivamos nestes santos dias,
mais intensamente do que nunca, as palavras de Jesus que, com maior
energia, se opõem à tenaz impiedade com que o mundo repele Jesus.
«Se o mundo vos odeia sabei que me odiou antes a mim do que
a vós. Se fosseis do mundo, o mundo haveria de amar o que lhe
pertence. Mas claro que não sois do mundo, e eu vos apartei do
mundo, por isso é que o mundo vos odeia» (Jo XV, 18, 19).
Estas palavras fortes que os fracos modernistas lerão – se ainda
as lêem! – com arrepio e pavor, são a principal advertência deixada
por Jesus. O que o ―mundo‖ procurará insistentemente, por instigação
de Satã e pela moleza dos homens carnais, é rejeitar a dimensão divina
da obra de Jesus. Em resumo, recusa Deus e firma-se na idéia de um
humanismo tolerante, flexível, ―humano, muito humano‖ para rejeitar o
cristianismo. Toda essa tragédia começada no Paraíso perdido, e
prolongada na História que é um volumoso catálogo de perdas,
poderia ser posta nos termos em que Chesterton a pôs no seu genial
―The ball and the Cross‖.
Toda a história depois de Cristo transcorre, efetivamente, entre
duas correntes que se entrechocam numa guerra sem tréguas: a
corrente que transporta, difunde, espalha, e pelo mundo inteiro semeia
o sinal da Cruz; e a outra corrente que desde os primeiros dias revela o
obstinado objetivo de matar Jesus, e depois, o de arrancá-lo dos
corações fiéis, e depois, ao longo dos séculos, e principalmente nos
tempos modernos, se manifesta pela aversão à cruz. Nos momentos de
inimaginável crueldade da perseguição desencadeada pelos
socialistas na Espanha, os crucifixos arrancados dos altares e das
paredes foram usados como instrumentos de tortura, de violação e de
morte: vários sacerdotes foram assassinados por empalação com
crucifixos, e freiras que tinham feito voto de virgindade foram violadas
com este impensável requinte.
Não se escandalize, leitor, se eu lhe disser que essa profanação
brutal, bestial, carnal, me parece menos diabólica do que a
burocrática e glacial perseguição de um Combes que na França
manda arrancar as cruzes das paredes dos colégios e das
enfermarias. Mais tarde, creio que em 31 ou 33, o desastrado Azana
decreta na Espanha o fim do cristianismo e manda arrancar as cruzes
dos colégios e das enfermarias.
Agrava-se a perversidade dos inimigos da cruz quando, nos
últimos tempos, nos próprios meios católicos surge uma corrente
humanista que começa por lançar à execração e ao ridículo a história
e até o simples nome das cruzadas. Ora, toda a história do cristianismo é
uma longa cruzada, ou não é cristã. Foi esse um dos pretextos alegados
pelos intelectuais católicos franceses para tomarem posição contra
Franco na guerra civil Espanhola. Na verdade, os defensores de um
Humanismo Integral e anunciadores de uma nova cristandade, como
todos os não-violentos e pacifistas de hoje, na verdade difundem a mais
repugnante das doutrinas: aquela pela qual não há valor humano ou
religioso que valha o sangue, a luta e a guerra.
Chegamos ao mais sombrio ponto da história moderna no
momento em que, intra muros Ecclesiae, os deformadores, alegando
―motivos pastorais‖ e ―acomodações com a mentalidade
contemporânea‖, começaram a apagar as cruzes traçadas na trama
da Sagrada Liturgia, e principalmente na estrutura da Santa Missa. A
nova cerimônia «acomodada à mentalidade contemporânea»,
«mentalidade cada vez menos cristã e cada vez mais burra», como
disse magistralmente Djacir Menezes na Conferência Nacional do
Comércio, foi feita com o evidente propósito de aproximar o
cristianismo da corrente revolucionária dos arrancadores de cruz. Senão
vejamos: na Missa de Pio V, Pio X, Pio XI e Pio XII, o celebrante traçava
28 vezes o sinal da cruz; o novo missal assinala 2 vezes. No rito do
Batismo eram 19 as cruzes a agora são 2.
Agora, atravessando o ―Vaticano II‖ para chegarmos a Pio XII, e
logo a Pio XI e São Pio X – que alegraram nossa juventude, e finalmente
a São Pio V e ao Concílio de Trento, encontramos as fontes da água
pura que nos deram os inesquecíveis catecismos onde aprendemos os
primeiros passos da vida em Cristo.
- És cristão? - Sim, sou cristão pela graça de Deus. - Qual é o sinal
do cristão? - O sinal do cristão é o sinal da santa Cruz.
Não virá de Deus, nesta semana santa, a inspiração de uma
cruzada para a restauração das cruzes arrancadas, das cruzes
apagadas, das cruzes esquecidas?
– O crux ave spes única!
O GLOBO Sábado, 17/4/76
O ESPÍRITO DE QUARESMA

A Igreja nos desdobra o maravilhoso panorama das várias lições


que vitalmente interessam, ou deviam interessar aos seus filhos, e assim
reaviva nas várias estações do ano litúrgico certas noções que
deveriam ser companheiras de todos os passos de nossa vida. Assim é a
Quaresma. Segundo ensina nosso pai São Bento, a vida inteira do
monge deveria ser uma quaresma ininterrupta. Como isto é impossível
para os fracos, e como a Regra Monástica, à semelhança da Igreja, é
moderada para que os fortes possam dar mais, e para que os débeis
não desanimem, representamos nesta quadra do ano o mistério da
preparação da Paixão redentora do Cristo, e concitamos nossos irmãos
e amigos a aproveitarem esta sabatina que reaviva o espírito de
quaresma.
Qual é a lição essencial da quaresma, no que nos diz respeito? A
Igreja responde com a liturgia das cinzas, e nós podemos desenvolver a
idéia: o que nos cumpre aprender nestes dias, mais do que nos outros, é
a doce e santa lição de nossa total dependência nas mãos de Deus.
Ou como diria Santa Catarina de Sena, na sua linguagem de sangue e
fogo: devemos aprender a lição de nosso nada.
Todo o mundo moderno é desatento, brutalmente desatento ao
espírito da quaresma. Um humanismo insolente, grosseiro, agora
reforçado com as estridências que se ouvem pela porta dos fundos da
Igreja, tenta inculcar no homem uma confiança em si que o deixe
esquecido de sua condição peregrinal e de sua destinação última.
Vivemos dentro de uma espessa idolatria: todos querem exaltar os
valores humanos em detrimento ou com esquecimento de sua total
dependência de Deus. O nome de Deus é silenciado, é empurrado
para a obscuridade, para que a glória do homem refulja.
Entende-se bem que o homem realize neste mundo, do melhor
modo possível, sua instalação, ou melhor, sua afirmação de domínio
sobre o mundo inferior. É bela a conquista da Ciência que exalta a
razão e a específica superioridade do homem sobre todo o Universo
visível. É confortador o progresso técnico que nos assegura um decente
conforto neste trem expresso onde às vezes esquecemos a brevidade
do tempo. É bela a civilização que realmente enaltece os valores
humanos em contraste com o mundo inferior; mas tudo isto só se
mantém em ordem razoável se ao mesmo tempo nos lembrarmos de
exaltar a glória de Deus e nossa completa e total dependência. O
inferior deve submeter-se ao superior: é razoável que o homem submeta
os átomos, mas é loucura submeter os átomos e esquecer que devemos
nós mesmos nos submeter a Deus.
A própria psicologia moderna, impregnada de empirismo, tem
horror a certas categorias espirituais que fogem aos seus quadros. Assim
é que combate com todo o seu vigor todos os sentimentos de
insegurança. Ora, isto é uma monstruosidade a mais que se pratica
neste vale de lágrimas. É claro que devemos ser corajosos, que
devemos ser audazes, que não devemos ser pusilânimes, mas daí não
se deduz que devamos nos sentir seguramente instalados na vida. Este
sentimento é perfeitamente estúpido e grosseiramente anti-espiritual. A
alma cristã, com todas aquelas qualidades de bravura e de audácia,
sabe que sua vida pende de um fio que está nas mãos de Deus; e desta
ciência não tira amargura nenhuma, ao contrário, tira a humildade, a
ação de graças, e o infinito amor pelo Ser absoluto a que a todos nos
sustenta. E em termos mais próximos da paixão de Cristo, o sentimento
de fragilidade e contingência se traduz em vínculo de caridade que nos
prende à videira santa, à Cruz em que pomos toda a exaltação e toda
a glória.
O grande judeu Egon Friedel, em sua História da Cultura, teve a
finura de sentir o valor sobre-humano do sentimento de fragilidade e de
insegurança do medieval. O meio social ajudava, a ciência médica
estava numa fase infantil e até caricata que levava o grande São
Bernardo, que obedecia pontualmente às extravagantes prescrições de
um esculápio, dizer com mansa tristeza: "Eu, que no Mosteiro tenho o
encargo de dirigir e dar ordens a santos, tenho de obedecer a um
asno". Toda essa pobreza de meios tinha impedido o surto do
humanismo senhor de si mesmo, e o arguto judeu se admirava da
espiritualidade que iluminava todo aquele povo medieval. Eles sabiam
que a vida era uma grande aventura, e que a dependência de Deus se
fazia sentir em todos os atos de coragem e de abandono, ou de
resignação e tristeza.
Progredimos muito em veículos, em máquinas, em produção,
mas no momento parece que regredimos em relação ao espírito de
quaresma. Sirva-nos isto de incitamento e de lição, e procuremos nós
viver mais a fundo essa presença de Deus que produz a humildade
agradecida e amorosa.
PÁSCOA

O sermão de São Gregório Nazianzeno começa numa espécie


de jubilosa exclamação: «Páscoa, Páscoa, Páscoa, três vezes Páscoa,
direi em honra da Santíssima Trindade. Esta é para nós a festa das festas,
a solenidade das solenidades. Como o fulgor do sol apaga as estrelas,
assim esta festividade excede a todas as outras, não só as humanas
mas as do próprio Cristo e que por causa dele se celebra». Lembremos
a instituição da Páscoa no Antigo Testamento, quando Deus
encarregou Moisés de ensinar os israelitas que sofriam servidão no Egito:
«No décimo-quarto dia desse mês, os filhos de Israel tomarão em cada
família um cordeiro de um ano, sem mancha, o imolarão, e com o seu
sangue marcarão os umbrais de suas portas, e nessa mesma noite
comerão a carne do cordeiro com pão sem fermento e ervas
amargas... E comerão com os cintos atados, as sandálias de viagem nos
pés, e com o bastão na mão; porque é a Páscoa, isto é, a Passagem do
Senhor». E agora nesta Páscoa do Novo Testamento, em que o próprio
filho de Deus é imolado, procuremos compreender bem em toda a
profundidade, o mistério desta solenidade três vezes bendita.
Páscoa, para nós quer dizer Passagem e faz-nos lembrar que
somos peregrinos, que estamos em caminho da pátria como os israelitas
estavam a caminho de Canaã, onde abundava o leite e o mel. Por isso,
a nossa maior festa ainda é celebrada em marcha, às pressas, com o
cinto apertado e a sandália de viajante nos pés. Ainda não chegamos,
e por isso, à carne do cordeiro que comemos se misturam ervas
amargas. Estamos no meio do Mar Vermelho. Em direção à Pátria, mas
ainda no mundo. Estamos no deserto, vivendo da palavra de Deus.
Páscoa, para nós, quer dizer também Discriminação. É a festa da
nitidez. Ou temos os umbrais de nossa alma marcados com o sangue do
Cordeiro, ou pereceremos na Passagem do Anjo exterminador. Esta
característica pascal parece contrária à anterior pois lá se falava de
transição e aqui se fala de nitidez e essas duas idéias têm ressonâncias
opostas. Convém portanto precisar melhor: A transição se refere à nossa
condição exterior de peregrinos; a discriminação se refere à marca
interior do Sangue de Cristo em nós. Estamos em trânsito, passando por
estações intermediárias, vivendo dia a dia as gradações do mundo,
mas nossa alma, por cima do mundo, está ancorada; e em contraste
com o cinzento dos dias está nitidamente marcada com o rubro
Sangue do Cordeiro.
A cruz que é para os gentios sinal de escândalo e de loucura, é
para nós sinal de nitidez e de absoluta discriminação. Onde ela se
planta desaparecem os meios-termos, os compromissos, as
concordatas, e toda essa indecisão que fazia muitos israelitas no
deserto suspirarem com saudades da servidão do Egito, porque lá, ao
menos, tinham garantida a gamela de carne com cebolas. Para nós, a
Cruz deve ser o sinal de um franco contraste. Ou somos marcados, ou
não somos. Ou estamos com Cristo ou contra ele. Ou avançamos ou
regredimos. Não há meio-termo à luz do círio pascal.
Apliquemos em nós, cada dia, cada hora, esse espírito
discriminador da Páscoa, e saibamos imprimir em cada um de nossos
atos o sinal da cruz. A tentativa mais insensata que fazemos é a de
procurar um meio-termo entre Deus e o Mundo. Dizemo-nos católicos
com uma terrível tranqüilidade e com uma impressionante
inconseqüência. Dizemo-nos católicos e continuamos a viver as mesma
infidelidades e a saborear as mesmas carnes e cebolas do faraó.
Dizemo-nos cristãos, mas a marca do Sangue mais parece uma rosada
aguadilha, mais parece um sinal de maquilagem do que uma infusão
de incondicional amor.
Sejamos pascais, sejamos nítidos; ou não seremos Cristãos.
Páscoa, para nós, também quer dizer salvação. Se estamos em
marcha, e se nitidamente optamos, já estamos salvos, salvos em
Esperança. O mesmo Sangue que discrimina já tem a virtude salvífica, já
opera o que significa e já nos dá direito de falarmos a Deus com a
liberdade de filhos.
Terminemos com a leitura de São Gregório Nazianzeno:
«Hoje é o dia em que fugimos do poder egípcio, das mãos do
odioso faraó e de seus cruéis ministros; dia em que nos libertamos da
argila e das olarias. A festa do Êxodo já ninguém há que proíba celebrá-
la com o Senhor nosso Deus, e não mais com o velho fermento da
malícia e da corrupção, mas com os ázimos da sinceridade e da
verdade, nada trazendo conosco do ímpio fermento egípcio. Ontem
angustiava-me com o Cristo na Cruz, hoje sou também glorificado.
Ontem com Ele morria, hoje com Ele sou vivificado. Ontem sepultava-
me com Ele, hoje com Ele ressuscito».
O GLOBO Sábado, 25/3/78
QUINTA-FEIRA SANTA

A vida cristã vista com os critérios do mundo parece um


disparate; e quanto mais perto seguirmos as pegadas de nosso Salvador
mais bem fundada parece a exclamação do Apóstolo: — ―Escândalo
para os judeus, loucura para os gentios.‖
Eis que nesta semana e especialmente os dias da ceia e da Cruz
parece concentrar-se um trágico divino que ultrapasse todos os trágicos
humanos. Na 5ª Feira Santa, efetivamente, Jesus desvenda o mistério
central de sua obra redentora. Ela será realizada por um Sacrifício —
sacrifício único mas de três modos espantosamente diversos
representados — em que Cristo Sacerdote, Verbo Incarnado, oferece
ao Pai seu próprio corpo e seu próprio sangue, isto é, oferece ao Pai o
Cristo–Vítima para a salvação dos homens.
Os três modos de presentação do mesmo e único sacrifício são:
a Ceia, em que o Cristo, ainda em sua santa humanidade, ele mesmo
com as próprias mãos, consagra o pão e o vinho que, por um
portentoso milagre, maior do que o de toda a Criação, se
transubstanciam e sob as espécies dos sinais sensíveis, nos trazem a
presença real de Cristo vítima por nós, desde a ceia oferecido em
Sacrifício sob os véus do sacramento.
Detenhamo-nos a meditar um pouco — e que Deus nos ilumine
— em certos aspectos da Ceia que merecem especial atenção. Em
artigo anterior chamamos a atenção para o caráter de obra-feita, de
obra longamente preparada, desta cerimônia que emenda
solenemente o Antigo no Novo Testamento. É em Lucas XXII, 7 a 13, que
assistimos aos últimos arremates deste cerimonial comandado pelo
próprio Jesus. Não sei quantas vezes o termo ide e preparai, preparar,
preparativos, mostram bem que o espantoso desenlace no opróbrio da
Cruz em todos os seus pormenores foi comandado pelo artífice de nossa
salvação. E é em Lucas XXII, 14 e 15, que chegamos à cena que
dificilmente um coração católico pode evocar sem profunda
compunção e sem um ardente desejo de voar ao encontro daquele
ardente desejo que Jesus agora anuncia: — «Desejei ardentemente
comer convosco esta Páscoa». Começa nesse ardente desejo a Paixão
de nosso Salvador. Na Cruz, como tantos autores espirituais o assinalam,
Jesus repete, no extremo desconforto de uma dor inimaginável, a
mesma sede de almas, concentrado naquele grito que a Sagrada
Liturgia expressa na palavra; — Sitio.
Uma nota se impõe à nossa atenção à medida que a cena da
Divina tragédia se desenrola naquele cenário cuidadosamente
escolhido para a solenidade. Naquele tempo Jesus já era bem
conhecido e já contava centenas de seguidores mais ou menos
assíduos. No Domingo anterior fora aclamado pelo povo de Jerusalém:
―Hosana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Rei de
Israel!‖(Jo XII, 13 a 21). As expressões «muitos estenderam seus mantos»
sugerem uma apreciável multidão. Ora, naquele instante máximo Jesus
fez questão de estar só com os doze como que para mais condensar, e
até ouso dizer, para melhor segredar o mistério sagrado da vida
profana. Deste arcano e desta segregação resultaria uma maior firmeza
nuclear no centro da Igreja. E se essas reflexões são realmente
irrefutáveis, concluímos aflitos que as infelizes reformas litúrgicas,
especialmente no que concernem à Santa Missa, exibem um espírito
que dificilmente se coaduna com o que nos enche a alma diante da
ceia.
Fugindo à idéia de Sacrifício, pouco aceitável na ONU, e
procurando maior apoio na Ceia, os autores do novo missal, no infeliz
Ponto 7 do Institutio Generalis apresentam a missa como essencialmente
constituída «pela assembléia dos fiéis».
Por onde se vê que o extravio provocado pelo horror à Cruz,
espantalho dos humanistas, em vão buscará apoio na Ceia.
Exageradamente errado o famoso ponto 7 de Monsenhor Bugnini, não
sendo apenas um erro material isolado, mesmo depois das serziduras e
remendos, continua a bem revelar o novo espírito que alegrou Taizé e
que na capa de Documentations Catholiques provocou a tenebrosa
hilaridade comentada pela revista Itinéraires (n˚ 178 – Dez. 73).
Neste ponto apareceu-me o fantasma de um leitor a me
reclamar o que lhe soa como uma impiedade imperdoável: aproveitar
a Quinta-feira Santa para referências e comentários polêmicos.
Ora, caríssimos leitores, se o que até aqui disse provocou
espanto, o que agora acrescentarei ainda mais estranho parecerá: a
Quinta-feira Santa é, de todos os dias do ano, o dia mais indicado e
mais propício para um artigo polêmico não somente em defesa da
Santa Missa mas na denúncia dos traidores. Atrás insisti na idéia de uma
esmerada preparação feita pelo próprio Senhor Jesus para a
consumação de toda a dramaturgia de nossa salvação. Ora, entre as
cenas preparadas pelo divino dramaturgo nós trememos diante desta
obra-prima: «...Tendo assim falado, Jesus se perturbou no seu espírito e
declarou em voz clara: — Em verdade em verdade vos digo um de vós
me trairá. Ouvindo essas palavras, os discípulos se entreolharam sem
saber de quem falava Jesus. Então, aquele discípulo que Jesus amava
achava-se encostado em seu ombro; Simão-Pedro fez-lhe então um
sinal e lhe disse: — Pergunte-lhe de quem fala. E João dirigindo-se a
Jesus: — Senhor, quem é? Jesus respondeu: — É aquele a quem darei o
pedaço de pão que vou molhar no vinho. Tomando pois o pedaço de
pão molhado deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. Tendo Judas
recebido o pão, Satã entrou em sua alma. E Jesus lhe disse: — O que
tens a fazer faze-o logo. (...) Em seguida Judas saiu. Anoitecera».
Este quadro em que Jesus formula uma denúncia que deve ter
sido prevista na sua esmerada preparação e em que entra em cena o
próprio Satã vem confirmar os seguidores de Cristo nesta ousada idéia
de que não há dia mais oportuno para defesa polêmica das coisas
santas e denúncia dos traidores.

O GLOBO, quinta-feira, 15/4/76


QUINTA-FEIRA SANTA!

―Nós, porém, nos gloriamos na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,


nossa salvação, nossa vida e nossa ressurreição...‖ (Gal. VI, 14). Estas
palavras do Apóstolo Paulo, que estão no Intróito da Missa de hoje,
dão-nos o diapasão, o lá fundamental para afinação de todos os
muitos movimentos de nossa alma. É sabido que a teologia paulina é
tecida de confrontações, de noções conjugadas em tensão dialética,
de proposições que viram pelo avesso os critérios do mundo. Temos
assim as dialéticas fraqueza-força, carne-espírito, homem exterior-
homem interior, velho-novo, dor-alegria; mas nenhuma das grandes
fórmulas paulinas afronta, ofende tão violentamente o sentir do mundo
e da carne como este de hoje, que gira em torno daquilo em que nos
gloriamos. Diga-me em que te glorias, e eu te direi quem és. O homem
que vive segundo ―as coisas velhas‖, sem se aperceber que em Cristo
tudo é novo, e o mundo se transfigurou na ―nova criação‖, gloría-se no
prestígio, nos êxitos temporais, no progresso, no desenvolvimento
econômico, nas coisas que, na sua ordem, merecem atenção e zelo,
mas não merecem os títulos de glória que lhes damos, e muito menos o
zelo prioritário que lhes conferem hoje tantos homens da Igreja. Nós
outros, porém, nos gloriamos na cruz de Nosso Senhor.
Pela glória colocada em si mesmo o homem se perdeu; pela
glória devolvida a quem de direito salva-se o que estava perdido; e
para essa devolução, para essa revulsão, diria até para essa revolução,
nenhum instrumento é mais eficaz do que a cruz de Nosso Senhor. Por
isso, nós nos gloriamos nela, ao arrepio de todos os valores que o mundo
tenta nos impor.
O cristianismo é essencialmente uma transfiguração, uma
travessia, uma páscoa que se efetua e se consuma dentro de nossos
corações; quem não percebeu isto, ou quem abandonou essa divina
subversão que os loucos chamam de loucura, e os alienados chamam
de alienação, não pegou a ponta da meada, ou perdeu-a no
emaranhado de novidades superficiais que o mundo trouxe para
encobrir a Novidade essencial e única. Isaías profetizou: "Não penseis
mais nas coisas velhas, nem cuideis das passadas! Eis que vou realizar
algo de novo. Já está brotando: Não o notais? Sim, eu traçarei pelo
deserto um caminho e através do ermo lançarei o sulco de um rio" (XLIII,
18). O Cristo cumpriu na cruz as promessas anunciadas, e o Apóstolo as
anuncia como realidades presentes no mundo: "Quando alguém está
em Cristo é uma nova criatura, e pode-se dizer: o que era velho
desapareceu, vede, tudo é novo!" (2 Cor. V, 14).
Mas na Quinta-Feira Santa o grito paulino ganha na Igreja uma
significação mais completa: a glorificação na cruz não tem somente a
significação peregrinal de aceitação da fraqueza, do sofrimento, da
agonia, como aberturas do céu; tem sentido mais brilhante e mais
transfigurado. Nesta cruz de hoje, no seu lenho, no seu símbolo, nas suas
esquadrias, vemos a mesa da Ceia do Senhor onde, antes do sofrimento
na cruz, está anunciada e representada a imolação. Não há quadro
mais belo na história do mundo. Não há mais viva penetração de
eternidade no mundo. O céu violou a terra, e plantou num instante,
entre os seu elementos, e entre os passos incertos do homem, esse
acampamento de festa divina. "Um rei celebrou as bodas de seu filho..."
E a festa do céu se realiza na terra.
Hoje é relativamente fácil gloriarmo-nos na cruz, porque nela
vemos a mesa da Eucaristia inaugural, da primeira missa do mundo.
Amanhã, diante do espantalho pregado num poste, fora dos
muros da cidade, será mais difícil acompanhar a estranha alegria do
Apóstolo. E depois, depois de amanhã, e depois de depois de amanhã,
quando entrarmos na rotina dos dias iguais, e quando a Ceia Sagrada
se nos apresenta como Missa, que um de nós, com mãos ungidas
repete pela milionésima vez, tentando este ou aquele romper a
monotonia de vinte séculos com alguma novidade mais ou menos
pueril, então sim, então podemos dizer que não é fácil acompanhar a
estranha alegria do Apóstolo. "Nos autem gloriari opportet in Cruce
Domini nostri Jesu Christi..."
Mas ainda aqui é o caso de dizer: não temos outro itinerário,
outro roteiro, outro indicador de caminhos fora dessa cruz plantada
num monte e exposta à derrisão. Os homens de nosso tempo sentem
cócegas nos ouvidos e querem procurar programas de uma novidade
que eclipse a novidade de Deus. Em vão, em vão procurarão. É o caso
de lhes perguntar como Pedro perguntou entre fiel e aflito: "Aonde
iremos? Quem nos dirá palavras de eternidade?

O GLOBO 11/4/68
RESSURREIÇÃO

Pondera bem, ó alma de minha alma, o incerto traçado de


nossa vida, linha torta, irregular, e sobretudo quebrada. Pondera e
considera bem, ó alma de minha alma, a miséria extrema de nossa
condição: com os olhos do espírito abertos para a visão do infinito, com
a boca da alma aberta para o bem supremo, que fazemos nós de tão
preciosos dons? Vivemos apenas o minuto que passa, o presente que
nos estraçalha, nos pulveriza e nos permite que um ou dois grãos desse
pó tenha frêmitos de amor e deslumbramentos de inteligência. Logo
passa o fugaz relâmpago, e o átomo de vida dá lugar à outro átomo
que já o empurrava com impaciência.
E todo esse aparatoso caminhar só nos leva à mesma terra de
onde viemos; ao mesmo pó, e ainda querem alguns que nos
consolemos com a idéia da grama que verdejará e da rosa que se
ruborizará com a decomposição do corpo que vida afora nos
carregou. Não sei se alguém haverá que se conforte com tal espécie
de ressurreição. Eu não.
Diz o poeta máximo:

«Destarte a vida em outra fui trocando;


Eu não, mas o destino fero e irado,
Que eu, inda assim por outra a não trocara.»

Também eu por outra não trocara a minha pobre vida. E tu


também. E todos. Nossa vida é o que somos; nossa pessoa é nossa vida
passada no crivo das horas e dos dias. Queremos ser o que somos ainda
quando vorazmente corremos atrás do que somos. Triste sorte, mísera
condição: queremos uma integridade, e vivemos instantes, instantâneos
fotografados nas pupilas que nos espionam com uma fatigada
curiosidade. Mísera sorte, estranha condição. Experimente, leitor, folhear
um álbum de retratos: ali estão instantâneos, pontos de vida. Observa
este sorriso e aquele gesto de mão ou de corpo inteiro. Tudo isto, no
cinema seria um quadro. E o cinema é mais compassivo do que a vida
porque repete o quadro com as pequenas variações estáticas que, na
hora da projeção, nos devolvem a continuidade móvel que devorou o
gesto. Ephemères, dizia Mauriac de todos os personagens que não
tivessem a eternidade de sua infância em Malagar; ephemère, terá
pensado Toulouse Lautrec quando pintou a figura de um noceur que se
despregava de outros ephemères, e ficou com a mais fugaz atitude
eternizada na tela.
Van Gogh, escrevendo a seu irmão, queixava-se de tudo, e
blasfemava liricamente, inocentemente, dizendo com sua autoridade
de genial artista, que este nosso mundo ―est un monde mal venu‖. Mal
acabado, mal feito. E o pobre pintor da pura luz emancipada das
substâncias da terra não sabia que, nessa carta desesperada, escrevia
a seu modo um ato de esperança. «Et pourtant, M. Vollard, la nature est
si belle!‖, dizia Cezanne. E são justamente esses que acham tão bela a
natureza, são justamente os capazes de ficar uma hora a admirar a
imobilidade de uma pétala de rosa, ou a mobilidade de um inseto
cravejado de pedras preciosas, são precisamente as almas mais
abertas para o conhecimento e para o amor, são justamente os mais
apurados que sentem o que lhes parece ser a má feitura do mundo, e
que acham intolerável a simples idéia da vida ser esse disparato ou essa
longa frase sem sentido que a morte interrompe sem por isso lhe trazer
mais nexo. Ao contrário, descontadas as enfáticas e grandiosas
exceções, a morte vem sempre ou quase sempre acompanhada de
um cortejo de mau gosto e de macabro ridículo.
«O meu Reino não é deste mundo», disse Nosso Senhor
categoricamente, e disse-o justamente a um personagem que
representava o Reino deste mundo, e preveniu-nos no último dia em
que esteve conosco em sua primeira vinda, de que por isso seríamos
odiados pelo ―mundo‖. Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, que por
derrisão entrou no Credo, foi crucificado, morto e sepultado. E
ressuscitou no terceiro dia como anunciara, Aleluia! Aleluia!
E se tudo isto foi um sonho que tantos e tantos sonharam e pelo
qual deram a vida, e se agora acordados num planeta estéril e
hediondamente povoado de máquinas ridículas vemos que foi apenas
um sonho dentro de um sonho, então... então, se o Cristo não
ressuscitou, nós somos as mais desgraçadas criaturas, não apenas pela
morte que nos espreita e espera, mas pelo morte que passa a ser a
própria linha com que se cose a vida. «Madame, vous sentez la mort»,
disse Henrique II, da França, à Catarina de Médicis, nas vésperas do
massacre de São Bartolomeu.
Se o Cristo não ressuscitou para abrir o caminho de nossa
ressurreição, nós somos todos mal venu, e todos nós temos cheiro de
morte.
Ao contrário, ressuscitando Cristo, como nos dizem a Fé e a
Esperança, então não é somente o morto do último lance de vida que
se erguerá, é toda a vida, são todos os malogros, todos os sofrimentos
desta longa vida que ganharão sentido e forma harmoniosa, porque foi
principalmente por esse crivo que imitamos o Cristóvão que se carrega
a si mesmo e nos carrega todos para a terra dos ressuscitados, aleluia.
E quando galgarmos à margem oposta, antes de vermos
descortinada toda a paisagem do Novo Mundo, podemos lançar um
último olhar para trás: e então será a tênue luz de um Círio Pascal que
nos desvendará os desconcertos do mundo, e que nos dirá o sentido
que teve e que ainda tem na eternidade cada áspero momento que
agora nos parece absurdo e incompreensível. Veremos a dor de nossa
vida como um rastro de luz.
E à medida que clarear a primeira aurora do mundo novo
entenderemos melhor a esperança dos santos: onde abundou o
pecado superabunda a graça; e onde bruxuleou a Fé resplandece
agora a luz da Glória.
O GLOBO, Sábado, 1/4/72
RESSUSCITOU!

Não há em todo o ano litúrgico, que é o vôo circular em que a


Igreja contempla amorosamente os mistérios de Cristo, momento mais
jubiloso e mais belo em que, antes de acender o Círio Pascal, o Diácono
canta o―Exultet Jam Angélica Turba Caelorum...‖ que é, sem dúvida
alguma, o maior primor que os homens, com inspiração divina e
engenho próprio jamais lograram compor em toda a história do
cristianismo e do mundo. Quem já adulto, e já doloridamente vivido,
teve a felicidade de ouvi-lo pela primeira vez no esplendor do
Movimento Litúrgico, pôde apreciar, nessa adamantina condensação,
todo o apuro, todo o requinte de infinito bom-gosto que a Igreja, ex
abundantia operis, trouxe à civilização, e até hoje guarda a lembrança
do estremecimento da alegria que nessa noite sentiu como
antecipação de todas as promessas de Deus:
O vere beata nox, quae sola meruit scire tempus et horam in qua
Christus ab inferis ressurrexit! – Ó bem-aventurada noite, única que
mereceu conhecer o dia e a hora em que Cristo ressuscitou dos mortos.
Inebriada de alegria a Igreja delira, e chega à amorosa
inconveniência, à desmedida loucura de cantar:
O certe necessarium Adae peccatum... O felix culpa... – Ó
necessário pecado de Adão...Ó culpa feliz.
E depois, agora mais senhora de si, gravemente repete a grande
história do Verbo de Deus desde a madrugada da Criação, desde a
promessa feita a Abraão, e através das palavras dos profetas até
aquela outra madrugada do primeiro dia da semana em que Maria
Madalena e a outra Maria vieram visitar o sepulcro.
Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e Salomé, haviam
comprado aromas para embalsamá-Lo, e pelo caminho diziam: ―Quem
nos levantará a pedra do sepulcro?‖
Chegadas, viram a pedra rolada, e então as duas mulheres
voltaram correndo para anunciar aos apóstolos o que viram e ouviram
do anjo que estava ao lado do sepulcro: Ele ressuscitou!
E daí em diante começaram as páginas mais transluminosas, e
mais banhadas de alegria das Sagradas Escrituras. Cada quadro tem
uma luz suave e mais penetrante do que todo o alvorecer da Criação.
Agora num relâmpago, vemos Maria Madalena voltar-se para o
vulto que julgava ser o do jardineiro, e com ela ouvimos:
- Maria! E logo a resposta de adoração: - Raboni!
Mais adiante é no Cenáculo, onde estavam fechados e tristes os
apóstolos, que Jesus ressuscitado aparece e lhes diz: ―A paz seja
convosco.‖ E agora é na estrada de Emaús que dois discípulos
caminham conversando a respeito de tudo o que havia acontecido, e
à certa altura percebem que alguém caminha com eles, e lhes
pergunta: ―De que falais enquanto caminhais?‖ Os viandantes ficaram
tristes, e o que se chamava Cleofas respondeu ao desconhecido: ―Serás
tu, forasteiro em Jerusalém, o único a ignorar o que se passou nestes
dias?‖ ―O que aconteceu?‖, perguntou o desconhecido. E os
peregrinos contaram a história de Jesus de Nazaré, profeta poderoso
em obras e palavras diante de Deus, que os príncipes dos sacerdotes e
magistrados entregaram para ser condenado à morte, e morte de cruz;
e disseram que estavam tristes porque esperavam que ele libertasse
Israel, e agora já três dias passaram... É verdade que algumas mulheres,
que se achavam conosco, dizem que seu corpo desapareceu do
sepulcro e que um anjo anunciou que Ele estava vivo! Mas eles ainda
duvidavam...
Disse-lhes então o desconhecido: ―Ó homens sem inteligência,
como tarda vosso coração em crer o que os Profetas anunciaram!‖ E
começando por Moisés, percorrendo todos os Profetas, o desconhecido
ia explicando as palavras de Deus à medida que se aproximava de
Emaús. O desconhecido deu a entender que tomava outro caminho,
mas a pedido dos peregrinos entrou com eles num albergue. ―Fica
conosco!‖ pediam os peregrinos, e Jesus, com eles à mesa, tomou o
pão, benzeu-o, partiu-o, e deu-lhes, e então seus olhos se abriram, mas
Jesus desaparecera.
Esta pequena história que resiste a todos os maltratos da
humana grosseria, tem inspirado e animado o engenho de todas as
artes humanas, e poderá ainda, até o fim do mundo, ser cantada,
contada, pintada e lavrada sem que a infinita profundidade de sua
beleza venha a se exaurir. Por mim, neste momento, sinto com especial
comoção a beleza da ação de graças dos dois peregrinos quando
retomam a caminhar: — ―Lembras-te como nosso coração se abrasava
quando Ele, no caminho, nos explicava as Escrituras?‖.
Peçamos nós a esses santos peregrinos que nos obtenham de
Deus a mesma graça de sentir arder o coração quando ouvirmos a voz
de Cristo na voz da Igreja a nos explicar os formidáveis mistérios da
Pátria.
Diz-nos São Paulo na Vigília Pascal: ―Se morrermos com Cristo,
com Ele ressuscitaremos e viveremos". Mas nosso tardo coração sente-se
amedrontado diante de tão excessiva promessa de Deus.
Na verdade, na verdade, todos os dons de Deus e todas as suas
promessas são excessivas, e tamanho clarão de mistério às vezes mais
nos ofusca e nos cega do que nos ilumina. ―Creio... na ressurreição da
carne...‖ balbucio eu envolvendo este artigo no mesmo global ato de
fé que tem sua razão de ser na Palavra de Deus. Balbucio e tremo
quando considero esta pobre carne já tão desgastada, ―comme um
vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin‖ – como um
velho carneiro que perdeu sua lã nos espinhos do caminho. Como
poderá resplender e reflorescer este pobre corpo já tão próximo do
desmoronamento total?
Afina teu ouvido, ó tardo coração, e pondera que nesta Vigília
Pascal, por sua Igreja, Cristo nos rememora todas as grandezas de Deus
desde a criação até esse momento único em que a chama do Círio
representa a grande transição, a maravilhosa travessia, a Páscoa que
nos transporta de um desastrado mundo para o mundo dos
ressuscitados. E pondera bem, alma de minh’alma, que um só ato
vivificado pela graça de Cristo é maior do que todas as galáxias; e que
as vezes que do pecado saíste por um ato de contrição e pelo perdão
sacramental somam maior total de maravilhas do que todo o Universo
criado. Na verdade, na verdade tu te deténs demais na excessiva
promessa anunciada pelo Exultet porque ainda te agarras demais à
idéia de que teu corpo com sua variedade de órgãos e funções, é a
maior maravilha de teu ser. No que te enganas demais, alma de minha
alma, porque a maior maravilha de meu ser é a graça da adoção, é o
favor sobrenatural que Deus nos concede: o de podermos chamá-lo de
Pai Nosso...
E nessa ordem de coisas, que importa infinitamente mais do que
todas as estrelas do céu, todas as flores da terra e todos os peixes do
mar, nessa ordem nova ou nessa nova criação – tudo é graça.
O GLOBO 29/3/75
SE ELE NÃO TIVESSE VINDO

―Se Eu não tivesse vindo e não lhes tivesse dirigido a palavra,


eles não teriam pecado; mas agora não há desculpas
para o pecado deles‖ (Jo. XV, 2).

Estas palavras terríveis ditas por Jesus na noite da Ceia, devem


ser lidas e meditadas com especial atenção nos atuais tempos
litúrgicos, para bem apreendermos o nexo entre a Natividade e a
Paixão, e sobretudo para aprendermos um vislumbre das dimensões
trágicas da vinda de Jesus para a nossa Salvação. Costumamos pensar
que Jesus recém-nascido trouxe ao mundo, para nos salvar, uma
atmosfera com perfumes dos céus e cânticos dos anjos; costumamos
associar a idéia de Natal à de um socorro da divina misericórdia,
pousado no regaço da Virgem Santíssima e todo feito de delicadezas e
fragrâncias; ora, é Ele mesmo, no momento supremo em que nos
ensinará na última estação o segredo de Sua vinda. E diz-nos estas
palavras das quais inferimos que, se não se pode dizer sem absurdo e
blasfêmias que Ele nos trouxe o pecado, pode-se entretanto dizer que,
a este mundo já marcado pelo pecado mal definido, cinzento,
misturado ao bem de um modo desordenado, Jesus trouxe a Ordem
que discrimina mal e bem, e trouxe aos homens, com preço e condição
da Salvação, um sentimento mais agudo, uma responsabilidade
abismal. Essa iluminação moral, que nos mostra que todo mal é uma
ofensa a Deus, já estava anunciada nos clamores proféticos, mas o
mundo inteiro, na confusão da cinzenta mistura muito vagamente
sentia a Vontade de Deus contrariada. De uma maneira cósmica, nas
catástrofes, nos incêndios e nas inundações, tinham uma vaga intuição
de que os elementos irritados traduziam a irritação de uma alta
instância. Mas esse vago panteísmo mais eclipsava do que elucidava o
transcendental contraste do bem e do mal, e principalmente a noção
de pecado pessoal cometido contra um Deus pessoal.
―Se Eu não tivesse vindo...‖ diz-nos Jesus na hora da Paixão não
se teria realizado o plano eterno de Deus: o de oferecer aos homens um
alvo, um blanco, contra o qual, nitidamente, com inacreditável
ferocidade se concentrasse a maldade difusa para que o cinzento
desse lugar ao claro-escuro, e o bem fosse chamado bem, e o mal, mal.
―Se o mundo vos odeia, sabei que a Mim Me odiou primeiro‖. E
também: ―Aquele que me odeia, odeia também meu Pai‖.
Então, retornando pela terceira vez a terrível declaração de
Jesus, diríamos que o Natal, Sua vinda, foi também a vinda do ódio mais
consciente, mais nítido e mais cruel. Mas para que a humanidade
pudesse abrir os olhos para essa consciência do mal como ofensa a
Deus, como ódio a Deus, o Pai inventou esse recurso extremo de se
tornar acessível às mãos dos homens: ―Se és Deus, adivinha quem Te
bateu!‖ Coroara de espinhos: ―Salve o Rei dos Judeus!‖.
E assim, por Sua vinda e por Sua Paixão, Jesus trouxe a Ordem
que da ao mal o nome de mal, e ao bem o nome de bem.
―Agora já não poderão esquivar-se: Se Eu não tivesse vindo, e
não lhes tivesse falado, eles não teriam pecado; mas agora o pecado
que cometem, chama-se pecado, sem subterfúgios, sem
pseudônimos‖.
Por isso, quis o Pai, desde o princípio, que a Religião de nosso
perdão fosse a Religião que por isso mesmo dá ao pecado o nome de
pecado. Mas também, se na divina invenção todos os homens que se
levantam contra Deus, contra Sua Vontade, contra Sua Lei são
participantes da flagelação de Jesus, este com a sua bofetada, aquele
com sua martelada nos pregos da cruz, aquele outro com o escarro na
Santa Face, sim, sim, se a humanidade inteira, agora sem desculpas,
tem participação de verdugo na Paixão, também está incluída na
invenção de Deus os santos recursos que oferecem a todos os homens a
participação de vítima, a participação de sacrifício oferecido ao Pai.
Na verdade, na verdade, não sei como pode um coração
humano, sem estalar de dor, suportar a lembrança da profundidade de
seu pecado, e a lembrança da altura de sua esperança. Nem entendo
como é possível pensar na Ceia do Senhor como um ameno e festivo
encontro de onde os padres e bispos tiram modelo para brincadeirinhas
mais ou menos sexuadas entre jovens! Nem entendo a frivolidade com
que se mexeu e remexeu no Santo Sacrifício da Missa para agradar aos
heréticos, aos frívolos e aos anormais.
Uma das características de nosso tempo é justamente aquele
cinzento informe, desordenado, anárquico, onde bem não é bem e mal
não é mal, ou tanto faz como tanto fez. Este estado de toda uma
civilização é o estuário de erros trazidos e acumulados por séculos de
Revolução contra Deus, contra a Igreja, para a reconquista do ameno
charco inconseqüente, que era o mundo depois do Pecado, e antes da
Vinda de Cristo.
―Se não fosse minha vinda...‖ O Demônio para bem persegui-la,
conhece melhor a Sagrada Doutrina às avessas do que os bispos
modernistas ou simplesmente modernos que querem fazer da Igreja
uma barraca atraente, agradável, divertida. Essa Igreja persegue Jesus
pela degradação, pela inflação, pela vulgarização a fim de que, com
seu apagamento, se apaguem da memória dos homens aquelas
palavras: ―Se Eu não tivesse vindo...‖ e então voltava ao mundo a
mistura de mal e bem, e o tranqüilo esquecimento de Deus.
E nessa direção que trabalham todos os ditos progressistas que
se esforçam por fazer da Igreja um circo, um cassino, um lupanar
qualquer coisa onde possam agradar aos homens, até o desprezo de
Deus.

Revista Permanência nº 66, abril de 1974


TEMPOS DE PÁSCOA

Não sei se já observaram uma curiosa peculiaridade dos


evangelhos desta semana da Páscoa. No Domingo da Ressurreição
temos a seqüência de Marias narrando a piedosa iniciativa das duas
Marias e o espanto delas quando viram removida a pedra do sepulcro
e um jovem luminosamente vestido de branco a explicar que
ressuscitara aquele a quem buscavam. E o moço mostrava o sepulcro
vazio às duas Marias espantadas. Na segunda-feira temos a narração, a
meu ver a mais bela história do mundo, do encontro dos dois peregrinos
de Emaús. Iam falando sobre os acontecimentos do dia quando viram
que estavam acompanhados. Um terceiro homem entra na
peregrinação e na conversa. «Por que estais tristes?», perguntava o
desconhecido. Respondendo um deles, chamado Cleófas, disse-lhe
que somente um forasteiro faria tal pergunta que demonstrava a
ignorância dos acontecimentos do dia. O desconhecido insiste. «Que
acontecimentos?». E então o peregrino triste conta com melancolia e
acabrunhamento a paixão de Jesus. Começa então o desconhecido
um estranho discurso, iniciando pela história de Moisés e dos profetas.
Nesse meio tempo chegaram à aldeia e entraram num albergue. «Fica
conosco», diziam os peregrinos.
Ele entrou, sentou-se à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-
o, e deu-lhes aquele sinal sagrado que instituíra antes do sacrifício
cruento e que agora se espalhava pelos caminhos do mundo e pelos
dias da vida. Abriram-se então os olhos dos peregrinos, e Ele
desapareceu. Quer dizer que, abertos os olhos da fé, fechavam-se os
da evidência sensível. E diziam, um para o outro: «Reparaste como
nosso coração queimava de amor quando Ele nos explicava as
escrituras?». Na terça-feira temos Lucas. Os apóstolos estão fechados no
cenáculo, com medo, com tristeza, quando Ele surge no meio deles e
diz: «A paz seja convosco». E novamente a pergunta: «Por que estais
tristes?». E novamente a familiaridade do ágape e a explicação,
começando por Moisés e pelos profetas. Na quarta-feira é João que
nos conta o episódio que mais tarde encherá a literatura e a
iconografia com o título: A pesca milagrosa. Ele aparece no meio dos
discípulos que o não reconhecem. E quando o milagre descobre o
segredo da divindade vemos Pedro, o inimitável Pedro, o mais simpático
de todos os Papas, o menos solene, freqüentemente o mais gaffeur,
vemos Pedro tirar a camisa e atirar-se ao mar, nadando para chegar
depressa perto do grande Amigo que julgara perdido. E é nessas
circunstâncias, nesse quadro, que Jesus cobra a Pedro os três
arrependimentos que apagam as três negações. E é aqui, nesta cena,
que se torna mais visível, mais marcado, o curioso aspecto desses
evangelhos da ressurreição. Há qualquer coisa de divertido, de
humorístico, que nos autoriza a dizer que os evangelhos da ressurreição
mostram um pouco, levemente, aquilo que Chesterton, nas última linhas
de sua ―Ortodoxy‖ diz que Deus escondeu aos homens: o seu riso. Sim, o
riso de um pai do céu debruçado sobre a estultice dos homens.
Em outra passagem das Sagradas Escrituras há referência a um
riso de Deus. Mas esse riso terrível do Antigo testamento mais parece um
trovão do que uma ternura de Pai que está nos céus. Nas Matinas de
Natal, o Salmista pergunta: «Por que meditam os povos coisas vãs? Por
que tremem as nações?». E mais adiante acrescenta esta palavra
terrível para os soberbos, para os esquecidos de Deus: «Qui habitat in
coelis, irridebit eos: et Dominus subsanabit eos. Tunc loquetur ad eos in
ira sua: et in furore suo conturbabit eos». Sim, quem habita nos céus se
rirá deles, dos homens soberbos, suficientes, orgulhosamente esquecidos
do que devem ao autor de seu ser e de seus dias. Na festa mais terna e
risonha da Igreja ouvimos esse trovão da cólera de Deus; no desenlace
dos acontecimentos mais dramáticos, ouvimos um timbre de infinita
doçura a nos dizer, com sorriso de Pai, que é vã nossa tristeza, e que
devemos afinar a alma para pegar o tom da divina alegria. E a
composição que resulta de tantos paradoxos, de tantos contrastes
entre as coisas da terra e as coisas do céu, é aquela esquisita, aquela
inimitável espécie de humorismo que ressalta e em graus diferentes
aparece em todos os evangelhos da ressurreição. Deus agora zomba
de nós, como se vê no Domingo in Albis, onde o evangelho conta a
história da incredulidade de Santo Tomé e o remédio que Jesus lhe dá:
«Põe tua mão nas minhas chagas, e não sejas incrédulo, mas fiel». A
sublime confirmação de todas as profecias e de todas as profecias e de
toda a pregação de Jesus reveste-se assim de um aspecto cômico, que
salienta o que há de infantil nas almas dos homens. Deus zomba de nós,
seus fiéis, seus inúteis servidores, seus pequeninos seguidores, mas agora,
ao contrário daquilo que o salmista cantou, o que transparece no riso
divino é a luz da esperança teologal, é a infinita ternura, um pouco
divertida, se posso fizer assim, de um pai infinitamente amoroso e
misericordioso.
O GLOBO, Quinta-feira, 30/3/78

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