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25/09/2016 "A Carne", Romance Naturalista De Julio Ribeiro (1888)

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"A Carne", Romance Naturalista De Julio Ribeiro (1888)

Lenita, ou Helena, perdera o pai, o coronel Lopes Matoso. Sem mais ter para
onde ir, fora morar na casa de um amigo da família, o coronel Barbosa, pouco
menos idoso que a mulher octogenária. O casal cercou Lenita de facilidades. A
moça estava a viver uma vida de reclusa, ao mesmo tempo em que a força
instintiva começava não apenas a manifestar­se, mas a se transformar numa
patologia. 

A manifestação dos sentidos buscava realização. Havia a presença de certa
inquietude, uma ansiedade brotava do sexo ansioso por se afirmar. Os poros
almejavam o contato íntimo. Sentia, por antecipação, as delícias da carne. 

Era chegada a alguns sintomas de histerismo, tendo certa vez, para acalmar
ímpetos, apoderando­se dela a sensação de que havia um homem no quarto.
Um gladiador que lhe estendia a mão e ela, ansiosa por um contato estreito,
tentava abraçar o fantasma da alucinação, como uma fera feminina deseja
entregar­se ao macho no ardor do cio. 

O erotismo neura manifestava­se no palpitar dos lábios úmidos, na coceirinha
rosácea do bico dos seios. Buscava, ao se erotizar, as palpitações do orgasmo,
nas sensações dos lábios pegajosos do combatente virtual. Chegava ao clímax
de desmaiar, tendo de ser socorrida por um médico. 

Passada uma crise, a outra não tardava. A carne ardia na virtualidade do
delírio e na realidade do desejo. Os grandes lábios palpitavam pelo contato com
o sexo oposto. As dimensões baquianas da atividade erótica nela se insinuaram
quando o pai estava vivo. O contato familiar com ele não a isentava de uma
relação incestuosa, ainda que apenas sustentada à distância. Incesto é uma
realidade da globalização do erotismo na mesma família humana, desde
tempos remotos. 

Havia, quando contava com a companhia paterna, certa cumplicidade entre pai
e filha. Afinal, o coronel era um homem de certa estatura social e longe estava
de escancarar a atração natural pela mulher bonita e sensual, Helena. O
princípio da civilização, o tabu do incesto enquanto origem do código moral de
ordenação das relações familiares e sociais. 

Não à­toa ele sofria, com freqüência, de constantes enxaquecas. Os
preconceitos estabelecidos pelos tabus da cultura impediam um contato mais
estreito entre pai e filha. Apenas insinuava­se a relação incestuosa. Talvez,
nem a admitissem existir na realidade da intimidade do lar. Lenita achava que
o mundo era da força e da beleza. Acreditava que a beleza era uma força em
si. Mas o pai havia falecido. 

Ela estava transtornada pela presença, não apenas do gladiador, um elemento
do delírio substituto da figura do pai. Desviava a atenção para as finezas de
comportamento de Manuel Barbosa, filho do dono da casa. A coleira na qual
almejava prendê­lo estava pulsando, ofegante, ansiosa por recebê­lo. 

O desejo, real, a afirmação do mesmo, imaginária. Contentava­se em cavalgar
sozinha, como uma égua no cio a esfregar a cupidez da amazona na sela nas
cavalgadas pelas veredas da fazenda. 

As manifestações de histerismo voltavam. O desejo não se realizava na entrega
a Manuel Barbosa. Lenita sentia a vulva nervosa, em busca do contato com o
corpo taurino do gladiador dos sonhos, identificado na figura de Barbosa. E o
gladiador não a prendia nos braços nem a possuía nos laços dos ofícios de
Eros. 
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Eros. 

A mulher dominada pelo sentimento de paixão ardente, que se tornava árdua
ao não se realizar. Guarda­se no quarto com tristeza. Buscava manter sob
controle a melancolia, metáfora das sobrecargas contidas (reprimidas) no
impulso frustrado de realização da libido. Lenita desejava completar­se na
realização do desejo do macho, botar fogo nessa coisa. Essa coisa parada e só
lhe restava ficar cara a cara com Manuel Barbosa. Este viaja. 

Ela se aproveitou a ocasião para se aproximar de outras personagens menos
letradas da senzala, das mucamas fora das obrigações de seus afazeres
domésticos. Animais domesticados pelo medo e pela repressão, os escravos
não tinham acesso à cultura formal. Nem mesmo à rudimentar. Exceto no livro
de Bernardo Guimarães, "A Escrava Isaura". 

Não existiam escolas nas favelas/senzalas. E as que existem nas de hoje, são
quase como se fizessem parte de uma realidade à parte: uma educação de faz­
de­conta. Não importava a realidade desastrada que sustentavam e sustentam.
A educação formal era exclusiva dos descendentes da casa senhorial. Nos
alojamentos dos escravos havia a cultura afro­brasileira derivada das práticas
religiosas e divindades de povos bantos. A bruxaria paleolítica dos rituais dos
escravos. 

A senzala não se permitia morrer o sentimento de anterioridade, a memória
ancestral. Primeva. Lenita entrou em contato com uma bruaca. "O Trópico de
Capricórnio" estava a ferver nela, febril, acolhido por uma segunda natureza
deletéria, motivada pelo anacronismo das academias da exclusão e do
analfabetismo. O conhecimento primitivo tinha a força da sugestão, semelhante
a qualquer pensamento, proveniente da mente inconsciente das mais diferentes
culturas. 

Lenita, no desespero, assuntou para a receita que indicava mamoninho bravo
(datura stramonium). Uma vez socada e macerada, a semente provoca a
loucura, e mata em poucas horas. Outra poção mágica da velha mucama:
"Osso de defunto cuja carne caiu de podre. Raspado e posto o pó em uma
alimentação qualquer". 

A coisa ingerida via beberagem ou tira­gosto produzia na vítima uma cor
amarela incurável. Precisava de muita reza de orixás para pegar o jeito, o
costume, o hábito, a tendência (por vezes demencial), das superstições que se
difundiam nas senzalas, sem escolas e com um mínimo de condições de higiene
física e mental, sem assistência educativa, profilática ou terapêutica. 

As senzalas de ontem assim como as do século XXI eram focos de
manifestações atávicas pré­históricas. O feiticeiro oficial de Helena, Joaquim
Cambinda, na sessão de catimbó que ela presenciava, tirou do oratório pagão
uma agulha de cozer sacos e bocas de sapos. Segurou forte o braço da
mucama assistente com a mão destra estendendo­o. Nele inseriu, num
impulso, a agulha, atravessando o braço da mulher em vários lugares sem que
essa mostrasse a mínima sensibilidade. Uma mandraca para impressionar
Lenita. 

Súbito a mucama entrou em transe. Quedou­se com os pés separados, abrindo
diversas vezes, via contrações, os grandes lábios, visando facilitar a
penetração no corpo das energias subterrâneas da terra de seus ancestrais.
Helena olhava e talvez tenha se identificado, por momentos, com os dentes
tortos e amarelados da outra. A empatia do transe a transtornava. As faces
reproduziam esgares originados por uma série de carrancas. 

O estribilho da canção do terreiro de Cambinda repercutiu na caixa de
ressonância de Lenita. O coração começou a latejar mais rápido, como se, uma
vez estimulado o pulsar cardíaco, e a progênie inundasse de sangue os miúdos
açudes dos pulmões. O rosto da moça enrubesceu. O terreiro todo, como se
atingido por um terremoto, tremeu telúrico, estimulando e dissuadindo a vulva
de Lenita a não resistir. Baco, ou outro deus pagão estava apossando­se de
suas forças. O estribilho da canção repercutiu nos sons afunilados dos
atabaques. 

As partes íntimas da escrava assistente, de pés e pernas abertas, eram
penetradas simbolicamente pelas energias telúricas provenientes da grama
miúda, do húmus da terra do chão do terreiro, assumindo supostamente a
forma humana da escrava que não era Isaura. 

— Êh, ê h, êh, pomba êh. Êh, êh, ah, Pomba Ah... E a gira baixou. Os pés
saltitavam no solo chulo do vocabulário vulgar. E Lenita nem soube nunca das
forças inacreditáveis, sutis, que dela se apossaram. 

Enquanto o tempo passava, ia à luta em busca do tempo perdido. Ao passar os
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Enquanto o tempo passava, ia à luta em busca do tempo perdido. Ao passar os
olhos nas cartas de Manuel Barbosa, filho da Casa Grande, Lenita, metáfora
feminina de uma beleza saturnal em todos os lugares do mundo, preferia que
ele fosse menos teórico. 

Helena que já foi de Tróia, estava atualizada em mulheres que representavam a
epopéia helênica de Homero, em todas as cidades do mundo: Rio de Janeiro,
São Paulo, Nova Iorque, Paris, Londres, Suíça, ou no Senegal. 

No terreiro de Cambinda o "Cavalo do Santo" baixou. Lenita acreditou na fala
que dizia de beberagens curativas, ervas que acudiam pessoas nas mais
diversas enfermidades. 

A mucama possessa destilou a aflição desesperada que lembrava o ambiente
de trevas das poesias de Byron. Helena dramatizava outras Helenas, habitantes
de São Vicente, Lapa, Flamengo, Botafogo, Meyer e Barra do Tijuco. Enquanto
essa sucessão de fenômenos ocorria, em Lenita, a personagem Barbosa
prossegue a fazer o dever de casa, despacha cartas e nelas disserta sobre
várias disciplinas. 

O conhecimento destilado pelos autores aprendizes e mestres da estética do
Naturalismo e do Realismo. Eles ignoravam os recursos de estilo da literatura
fantástica. Ainda estavam por nascer Alejo Carpentier e Gabriel García
Márquez, entre outros. Helena não conseguia fixar a atenção nas cartas com as
impressões das viagens de Barbosa. 

Não poderia amar ninguém, senão alguém que estivesse prostrado diante de
seus supostos encantos de princesa do casarão. Precisava fazer valer os
encantos da juventude, ou eles se transformariam apenas em produto para
tingir os cabelos. 

Ela havia penetrado os mistérios da senzala, relativamente. Ninguém os
dominaria jamais, ou eles não mais seriam enigmas. Ela, filha de santo às
escondidas, (não) era eterna e jamais (enquanto jovem) teria celulites, ou
palpitações cardiovasculares. Desejava uma garantia a mais para a conquista
do sinhozinho. Sua tpm afirmava o desencanto de saber que a força da
gravidade haveria de vencer a dureza dos seios, em direção ao seio da terra. 

Ela era a Terra, havia aprendido na senzala: Dona dos segredos da vaidade.
Desejava vê­lo aniquilado, absorvido pelas intenções de sua segunda e
verdadeira natureza: a da Eva ancestral que conquista seu Adão, mesmo que às
custas de toda a descendência. 

Gostaria de se sentir as refregas das motivações lingüísticas em volta da
orelha e do pescoço, no bico rosa dos seios durinhos. O autor deveria motivar
logo, as incursões de Barbosa pela nádegas e adjacências helênicas dessa
mulher tornada irrecusável pelas magias do pai­de­santo. Desejava os lábios
do amante nos seios, descendo rumo aos pêlos da púbis. A puberdade não
poderia ausentar­se dela antes da realização desses desejos. 

Lenita não estava nem aí para os dotes intelectuais de Barbosa. Desejava a
satisfação dos desejos da carne antes que a força da gravidade lhe chamasse,
atraindo para baixo os seios e as gorduras localizadas nas nádegas e nas
coxas. A força implacável da mãe Terra, da qual era filha consciente das
promessas de concupiscência prenunciadas no culto do candomblé. 

O ponto estimulado pela ponta dos dedos de Barbosa acabaria com os delírios.
A xana molhadinha à espera da penetração. Não necessitava de um gladiador
virtual, mas de uma força de dominação real da sexualidade. "Tio" Freud
explicou. 

A carne desejava sentir a barba de Barbosa roçando pelos ombros do desejo. O
cântico de Eros cantado pela mulher de Putifar. A que gostaria de conquistar
José, favorito do Faraó. Ela era o animal barroco misto de chama e sombra. 

A ela interessava o mundo real, sem problemas de verossimilhança com
mulheres como Lucrecia Bórgia, e outras do mesmo jaez. Teria de fazer brilhar,
logo, o lado negro da jimbra, do bagarote, da prata, do zinco, do ouro.
Aproximar­se do sol luminoso da paixão com o filho do dono da propriedade.
Ou Barbosa viria de Jundiaí para judiar as carnes ansiosas de Lenita, ou lhe
fugiria das mãos. 

Era seu desejo urgente encabrestá­lo. A carne não espera, o desejo insatisfeito
desespera. A dramatização de uma relação sob a lente prevalecente de um
autor do Naturalismo. A verossimilhança não é um problema aristotélico,
grego. É um conflito afetivo de satisfação da libido, moderno. O sensacionismo
da carne puxa mais do que a força de cem bois. Júlio Ribeiro não era um
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da carne puxa mais do que a força de cem bois. Júlio Ribeiro não era um
intelectual de coquetel de academias de letras. 

As personagens de "A Carne" desconfiam do xamã Joaquim Cambinda. Ninguém
seria imune a seus sortilégios e bruxarias. O bruxo fez com que Maria Bugra
morresse envenenada pela infusão fortíssima de sementes de datura
(atropina). Bastava Cambinda aportar numa jurisdição, para que muitas
pessoas começassem a afligir­se com dores físicas e morais. Outras findassem.
Encomendavam a alma ao Criador por obra e graça dos poderes supostamente
sobrenaturais do bruxo. 

Óbito: intoxicação por ingestão de sementes produzidas pelo cozimento
excessivo da datura. O mestre feiticeiro não poucas vezes fora visto a cortar
cabeças de cobras, raízes de sicute e de guiné, e as sementes que Maria Bugra
havia ingerido. Ameaçado de apanhar no tronco, Joaquim Cambinda confessou
ter matado Maria Bugra porque essa mulher não dava descanso ao dinheiro
dele e o estava enchendo de chifres com a crioulada nova da senzala, segundo
o dizer dele. 

   — E o Antônio Mulato, o Carlos, o Chico Carreteiro, a Maria Baiana? 

   — Eu mesmo matei a todos. 

   — Por quê? 

   — Maria Baiana pelo mesmo motivo que me fez matar Maria Bugra. Os
outros, para fazer mal ao sinhô. 

   — Não lhe dou moradia, roupa, comida? Por que me quer mal? 

   — O sinhô é branco e obrigação de preto é fazer mal a branco sempre que
pode. E Joaquim Cambinda confessou uma série enorme de outras vítimas. Era
o que hoje seria chamado de "serial killer". Joaquim confessou que queria ver o
sinhô trabalhar com as próprias mãos. O coronel, senhor da Casa Grande,
perguntou se a ele tentou matar, para logo ouvir a resposta do feiticeiro: 

   — Matar não: fazer penar só. 

   — Que é que me fez você? 

   — Esse seu reumatismo, sinhô, então que é? Entrevamento de sinhá velha,
donde vem? E o negro gargalhou feroz. 

Queimaram­no vivo, encharcado de querosene. Houve uma explosão, um
mugido longo e rouco. Em pouco tempo o vento levou os nervos carbonizados,
as gorduras sapecadas. 

Até 1887 o interior da província de são Paulo era uma jurisdição mais atrasada
que um burgo em torno de um castelo da Idade Média. Após esses
acontecimentos Lenita saiu para caçar com Barbosa e acertou uma chumbada
mortífera numa cotia. Ao ver o mamífero roedor, a cutia ferida prostrada, a
exalar o alento último, Lenita tremeu de um prazer sádico e intenso. As pernas
dobraram, caiu de joelhos olhando para Barbosa, os olhos cheios de gratidão.
Pegou o animal ainda trêmulo, agonizante, e ficou a sorrir compulsiva. 

Um sorriso nervoso, transtornado. Essa satisfação mórbida se repetiria quando
ela observou, em outra ocasião, uma cobra sucuri que engoliu um grande preá,
após escancarar a boca enorme para a passagem do animal. 

Lenita passou o resto do dia contente, satisfeita, orgulhosa. Em outra de suas
incursões pelo mato com Barbosa, mordida por uma cascavel, de volta a casa,
depois dele amarrar uma atadura acima do ferimento e sugar parte do veneno,
a cabeça de Lenita começou a doer, a vista turvou, as idéias confundiram­se. 

Mais tarde Barbosa interrogou a mucama sobre se Lenita havia urinado. À
resposta afirmativa ele mandou que ela trouxesse o vaso que estava acima de
meio de uma urina sanguinolenta. O coronel receitou a vegetalina, uma
cachaça forte, que, segundo ele, "tinha arrancado muita gente da sepultura". 

   — Cachaça forte, de vinte e quatro graus. O certo é que, após os sofrimentos
da convalescença, os cuidados médicos, Lenita sarou. O coronel ao visitá­la
perguntou se estava pronta para outra: 

   — Poderia estar morta agora, ele comentou. 

   — Mas estou viva. 

   — Não ganhou medo do mato? 
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   — Não ganhou medo do mato? 

   — Não. Ganhei experiência. 

   — Foi feliz, acertou com um bom médico. 

Lenita volveu para Barbosa uns olhares doces, repassados de algo mais que
gratidão. Barbosa a amava e sabia que era correspondido. Não tinha outro
jeito: fazia as malas e viajava para a Europa, ou tornava­se amante. O pé de
Lenita, que ele sugara lentamente, por muito tempo, o sabor da pele fina,
aveludada. Aceitaria esse amor que se impunha. Haveria de enlaçar e possuir
aquele corpo moreno. Não havia porque recalcitrar contra a carne. Forçoso
ceder. À carne não se resiste. 

Os antigos simbolizaram o desejo, vulgo amor, na figura de uma deusa
belíssima, implacavelmente vingativa, Vênus Afrodite, a que prende os seres e
ao mesmo tempo lhes concede vida instintiva ativa. Lenita permanecia
inquieta. Demorou no banho morno. Arrepiava­se ao perpassar da esponja, ao
sentir suas próprias mãos como se fossem outras. Ela queria, desejava, gemia
por Barbosa. Madrugada, não resistiu, entrou na ponta dos pés, como se
deslizando, beirou­se à cama dele. Curvou­se, aproximou a cabeça do peito
adormecido. Escutou­lhe a respiração, hauriu­lhe o odor do corpo, sentiu a
tepidez da pele do macho. Ele despertou, sentiu a carne quente pelo apetite
sexual. 

Um tropel de idéias confusas dominou a mente. Sentou­se à beira da cama.
Segurou­lhe a cabeça com a mãe esquerda, a boca na boca: os bigodes
ásperos nos lábios macios. A língua buscando o sétimo céu da garganta
profunda. Lenita quis sair, mas não conseguiu livrar­se do abraço. O medo
fisiológico do macho. As primícias do primeiro coito. Na exaltação sinhozinho
sugou avidamente os bicos arrebatados dos seios. As carícias ferozes. Os
corpos unificados. A estação espacial do pênis penetrando a nave­mãe vaginal.
Afinal saiu do quarto às pressas. 

Após receber uma carta do doutor Mendes Maia, que a havia paquerado numa
festa por duas horas, Lenita rejeitou a proposta de casamento do bacharel. Ela
e Barbosa continuaram a doar­se à lubricidade, aos devas imortais de Vênus, à
função fertilizante da carne. Fizeram sexo sobre as pedras, na mata. E em
todos os lugares que sugeriam uma aproximação à tarde, à noite, de
madrugada. Até que o pavio longo da vela se houvesse dirimido, antes que os
primeiros raios de sol entrassem pela fresta aberta da janela do quarto. 

Os dias passavam, e Lenita, vaidosa, tirava grande prazer do sujeição de
Barbosa. Sentia o orgulho lisonjeado da satisfação de tê­lo preso a seus
sentimentos, mais do que se contentava com o amor correspondido. Ninguém
na casa ignorava os cuidados, a intimidade que os ligava. Todos pareciam achar
natural que a convivência tivesse imposto essa amizade, ainda que um tanto
quanto senhora de si. 

Na senzala havia maledicências, tal como na Casa Grande. Havia um ditado
que dizia "a curiosidade matou o gato". E o amor de Lenita. Certo dia ela abriu
uma caixinha de casco de tartaruga, oblonga, incrustada de metal e
madrepérola. Encontrou o bilhete de uma mulher, a letra bonita, fina, redonda,
dizia: "Espero­o sábado sem falta. Se não vier zango­me". Lenita empalideceu.
Ela logo concluiu que ele era um devasso, um Dom Juan de fancaria. Ela não
passava de uma dentre as muitas conquistas. Quisera fazer a imaginação outra
vez voar, mas a carne a prendera à terra. Revoltada contra a metalfísica social,
culpava­se por haver descido abaixo do nível comum da mulher vadia em
sociedade. 

Helena estava a desejar entrar em contato com a realidade da existência da
vida como ela realmente é, não como a conduzida pelas aparências. E se dá
bem. Então ela era mulher para chorar, carpir­se como qualquer adolescente
violentada pelo filho da patroa? Não. Caíra vencida por si, por sua vontade, por
seus nervos. Não era nenhuma escrava Isaura. Era mulher livre. O homem era
um mero instrumento. Não fora Barbosa, poderia ter sido o administrador, o
velho coronel. Enquanto quisera estava saciada. 

Sentiu um afeto imenso por algo que se agitava dentro do útero, como se
prenunciasse que, afinal, a descendência de Barbosa seria sua companhia. Uma
vida se agitava dentro dela, na ante­sala da origem, da vitalidade. Que fazer?
Levar a bom termo a gestação, parir, criar, educar o filho? Vê­se mãe? Nada
demoveu Lenita de seguir viagem para são Paulo. Seis dias depois da partida
dela chegou Barbosa. De nada sabia. Sentiu a solidão da Casa Grande ao saber
que Lenita fora para a capital paulista. 

Tinha tido dezenas de amantes. Conhecia a inconstância absurda, das fêmeas
da espécie humana. Conhecia a mulher, o útero, a carne, os desejos. Os
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da espécie humana. Conhecia a mulher, o útero, a carne, os desejos. Os
pensamentos escravizados pela sensualidade comestível do corpo. E, no
entanto, estupidamente, como um fedelho, tinha­se estacionado numa paixão
por uma mulher. A natureza, a paisagem parecia­lhe sem vida. 

Tudo fazia lembrar Lenita. A obscuridade, o silêncio, excitava­lhe os
sentimentos. A fera da solidão mordia seu coração com dentes dementes, de
sabre. Na primeira quinzena de outubro, o moleque trouxe da vila, duas cartas.
Os envelopes sobrescritos por uma letra redonda, bonita, letra de mulher. As
cartas de Helena continham a ironia e a certeza de que havia encontrado um
pai para o filho deles que ia nascer. 

A história desse amor transformou­se em pesadelo. Barbosa, como se fosse o
Daedalus de Joyce, personagem do "Ulisses" que tinha a história como um
pesadelo do qual imaginava poder conseguir despertar. O pesadelo da história
pessoal mais forte do que ele. O ciúme, a realidade medonha da mulher que
ousou lhe abandonar. 

O amor­próprio ferido, a falta de auto­estima a qual ela conseguira despertar
(Don Juan não pode ser abandonado), desamparado em seu orgulho de macho,
talvez impotente para superar o trauma, conclui que deve pagar com a auto­
extinção a existência tornada sem valor. Helena para ele era mais que uma
vaca. Era uma cidadela de carne da qual não poderia prescindir. Renunciar a
ela era igual a renunciar à vida, à potência, à virilidade. 

Ela não poderia casar com ele, uma vez que descobrira, pelos bilhetes
encontrados em seu quarto, que ele era casado. Barbosa, longe de possuir a
força mítica do personagem homérico Ulisses, ou a do joyceano Stephen
Daedalus, Barbosa, após ter lido as cartas, deitou­se na banheira. Bebeu um
cálice de excelente vinho húngaro. Largou o escarificador, após cortar­se com
uma das lâminas afiadas como o fio da navalha. Do potinho pingou na cápsula,
alguns grãos escuros, irregulares, lustrosos. Era curare, veneno violento,
vermelho escuro, aspecto resinoso, facilmente solúvel em água. Pegou a
moringa, molhou a cápsula com duas colheres, e com o bico da seringa
dissolveu a terrível bagaceira. 

Oprimido pela situação inusitada da paixão, sentindo­se abandonado, não
estava preparado para livrar­se da memória dela. Talvez por sentimento de
culpa, desesperança, quem sabe por sentir­se o filho desmamado de Helena,
seu Édipo emergiu da rasa profundidade da consciência de um desejo desfeito. 

Uma vez a solução carregada com a cor de café forte, Barbosa encheu com ela
a seringa. Ele morria por amor àquela mulher. Porque ela o prendera aos
liames da carne. Sua vitalidade não vencera a dela, seu desejo não fora
suficientemente forte para superar a liberdade dela. A vida sem ela se tornara
impossível. Covarde. Por si não podia fazer mais nada. 

Sim, talvez quisesse viver, mas era tarde. Fosse outra a vítima, ele saberia
reanimá­la com seus conhecimentos de fisiologia. Estabeleceria a respiração
artificial até que fosse eliminado o veneno. Mas era ele que estava à morte.
Por suas próprias mãos. 

Sua musa não era a literatura, como em Hemingway, nem uma Helena épica,
tipo a de Tróia, mas a perda de Lenita gerou também um suicida. Um suicida
"light", que não precisou de uma espingarda para matar elefantes, apenas de
uma dose letal de um veneno violento que certas tribos amazônicas
costumavam usar nas pontas das flechas contra inimigos mortais. 

A vida não lhe voltaria. A placidez da aziaga sem dor. Motivada por uma
mulher. A morte disfarçada na carne voluptuosa de uma concubina. A paralisia
dos nervos motores, agora um suplício atroz. A descrição pavorosa da caipora
não se acha fáceis palavras adequadas para definir. E Barbosa caiu em sono
profundo. O sono do qual ninguém desperta.

Decio Goodnews

Enviado por Decio Goodnews em 09/04/2010 
Alterado em 09/07/2010

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