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Memórias da

terra do fogo

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Autor: Ulisses Lisboa Gonçalves
Orientadora: Me. Karol Natasha Lourenço Castanheira
Diagramação e capa: Isabella Garcia Soares
Ilustração: Lucas Careli
Fotografia: Ulisses Lisboa Gonçalves, Bruno Valim Magalhães,
João Vitor Osborne Costa e Sophie Autumn
Impressão: Editora Ferjal
Comunicação Social – Jornalismo
Universidade do Estado de Minas Gerais
2015

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Ulisses Lisboa Gonçalves

Memórias da
terra do fogo

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AO UNIVERSO
pelas possibilidades, oportunidades,
experiências, encontros e pela
LUZ,
Dedico com gratidão essas
MEMÓRIAS
na Terra do Fogo.

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Agradeço pelo amor da família, pelo companheirismo
dos amigos, pela sabedoria da orientadora, pelo apoio
da Embaixada da República do Azerbaijão no Brasil.
Agradeço a vida por ter colocado todas essas pessoas
em meu caminho.

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SUMÁRIO
PREFÁCIO
“O que eu sei sobre o Azerbaijão?” 13
[PRIMEIRO CONTATO]
Próxima parada: Terra do fogo 20
[SEGUNDO CONTATO]
Vai, Brasil! 34
[TERCEIRO CONTATO]
Não me ligue no Azerbaijão 50
[QUARTO CONTATO]
Viagem de riscos? 62
[QUINTO CONTATO]
Ressaca de gratidão 76
[SEXTO CONTATO]
Pé na estrada, rumo ao interior 92
[SÉTIMO CONTATO]
No ápice de Gabala 102
[OITAVO CONTATO]
Sheki, a cidade que tem muita história para contar 114
[NONO CONTATO]
Mergulho profundo na antiguidade de Lahij 128
[DÉCIMO CONTATO]
Acorda, é dia de formatura 138
[DÉCIMO PRIMEIRO CONTATO]
Missão brigadeiro no Cáucaso 152
[DÉCIMO SEGUNDO E ÚLTIMO CONTATO]
Até mais, Azerbaijão 162

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PREFÁCIO
O QUE EU SEI SOBRE O AZERBAIJÃO?

U
ma redação, um passaporte para o Azerbaijão. Após participar do con-
curso de redação “O que eu sei sobre o Azerbaijão?” organizado pelo
Ministério do Esporte e Juventude da República do Azerbaijão, veio a
notícia. Eu fui um dos vencedores e ganhei uma viagem de duas semanas para
o país. Era difícil acreditar que duas mil palavras num arquivo de pdf poderiam
me levar para tão longe de casa. Compartilhei toda a felicidade com o mundo e
repeti a mesma frase durante algumas semanas. “O Azerbaijão é um país trans-
continental, fica entre a Ásia e a Europa. É uma ex-república soviética e eu vou
conhecê-lo”.
Primeira experiência internacional. Frio na barriga ao arrumar as malas,
ajeitar dentro delas algumas roupas, sapatos e muitas expectativas. Intercâmbio
cultural, delegações da Estônia, África do Sul, México, Vietnã, Argentina, Cana-
dá, Hungria e Bélgica. Etnias diferentes, ansiedade e sorrisos em comum.
Hotéis 5 estrelas, banquetes como os que passam na televisão. Jantar como
os da realeza às nove horas da noite em ponto, mas o céu permanecia claro. Às
dez horas escurece na Terra do Fogo.
É verão no país transcontinental. Ar seco, tomates impecáveis, bebidas na
temperatura ambiente e uma infinita variedade de legumes e verduras para sabo-
rear antes dos pratos principais.
Na capital Baku, o contraste arquitetônico enche os meus olhos. Ora eu
estou no futuro, ora eu estou no passado. Edifícios enormes com aspectos futu-
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ristas, avenidas largas como as de Dubai. Ruas estreitas com pedrinhas, pequenas
casas de madeira e pequenos prédios como os de centenas de anos atrás.
Viagens para cidades charmosas e cheias de história. Almoço no interior
do país, vilas próximas à fronteira com a Rússia. Comidas típicas sempre nos es-
peram. Sucos com pedaços de fruta, pão tradicional, queijo de cabra e carne de
carneiro. Calor caucasiano, água e refrigerante de pera exportados da Geórgia.
Passaporte com alguns carimbos, pergaminhos, bilhetes em russo e azer-
baijanês. Fotografias e pedaços da viagem. Pedaços de coisas, lugares, pessoas,
sorrisos e abraços. Coisas dessas que guardarei para sempre comigo.

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[Primeiro contato]
Próxima parada: Terra do Fogo

H
á alguns meses – antes mesmo de saber que eu iria viajar para tão lon-
ge – acompanhei os meus pais num supermercado em Santos, cidade
próxima a minha. Já era fim de tarde, o sol refletia nas janelas largas e
transparentes no canto superior esquerdo do saguão de entrada. Enquanto a mi-
nha mãe escolhia algumas frutas frescas, resolvi passear pelas enormes seções de
compras. Caminhando e observando as opções, preços e novidades, deparei-me
com cartazes de liquidação no corredor de malas e bolsas. Encontrei uma mala
azul-piscina dessas super modernas, toda revestida em acrílico e rodinhas que
acompanham de acordo com a direção que você conduz a mala. Ela era espaçosa
e perfeita para uma boa jornada. É sempre bom ter uma mala, é útil e num mo-
mento a gente sempre precisa. Foi essa a justificativa que eu dei à minha mãe, que
indagou-me – “Mas você vai viajar?”. Naquele momento, sinceramente, eu não
sabia quando eu iria viajar. Poderiam demorar anos para eu usá-la, mas aconte-
ceria um dia. Hoje chegou esse dia. Quarta-feira, dia dois de Julho de dois mil e
quatorze. Eu vou inaugurar a minha mala nova.
O preparo para uma viagem possui uma mistura estranha de sentimentos.
Ansiedade, malas cheias de expectativas, sonhos, liberdade. Hoje é um dia dife-
rente. O mês de Julho é coberto pela brisa fria que vem do oceano que banha a
minha cidade, Mongaguá. Pela manhã e durante toda a noite, a neblina impos-
sibilita uma visão ampla, sai fumaça da boca e as festas julinas aquecem as nossas
almas com o tradicional vinho quente. O litoral sempre foi assim e eu sempre
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gostei desse período do ano. É inverno por aqui, mas no Azerbaijão é verão.
Eu sinto frio. É diferente fazer a mala com trajes para dias quentes. As mi-
nhas roupas estão passadas e dobradas estrategicamente para não amassar duran-
te o trajeto. Bermudas, camisetas confortáveis, camisas e até chinelos. “A capital
tem praia. Baku é banhada pelo mar Cáspio. Quem sabe um banho de água sal-
gada?” Ainda assim, confesso que estou levando dois casacos por via das dúvidas.
Nunca se sabe.
É a primeira viagem internacional. Passaporte sem orelhas, limpo e preen-
chido com apenas meus dados pessoais. Um tanto similar quando construímos
o nosso primeiro currículo. Preenchemos nossas informações, mas não temos
experiência, não temos vivência. Ele fica magricelo, esbranquiçado, pálido. No
entanto, no fundo sempre há uma singela esperança de que possa dar certo. Afi-
nal, uma hora temos que dar o primeiro passo. Geralmente o primeiro passo de
muitas pessoas é o carimbo norte americano. No meu caso será diferente. A pri-
meira página do meu passaporte terá o borrão carimbado pela polícia imigratória
azerbaijanesa.
A confirmação de que eu iria viajar ao Azerbaijão aconteceu dois meses
atrás. A incerteza amedrontava minhas expectativas desde o início do ano quan-
do resolvi participar no concurso de redação. Usei as habilidades jornalísticas que
venho aprendendo ao longo dos últimos anos ao meu favor e deu certo.
Foi-nos informado que haveria uma noite intercultural e cada delegação
teve que preparar uma apresentação sobre a cultura, arte e gastronomia de seu
país ao final do programa. A minha mãe preparou um kit cheio de presentes para
eu levar. Docinhos de banana açucarada e pães de mel com brigadeiro que são
produzidos em minha cidade. Ano de copa do mundo no Brasil, sorte a minha.
Foi fácil encontrar intermináveis lembrancinhas nas cores da nossa bandeira.
Além disso, minha mãe fez alguns artesanatos de retalhos em verde-amarelo.
Já é fim de tarde, o traiçoeiro céu ainda não decide se é dia ou noite. A es-
tética solar enfatiza a transição dos períodos e logo será possível visualizar os cos-
mos na imensidão noturna da atmosfera. Está na hora de preparar um presente
um pouco mais especial. Antes mesmo de ter acesso ao cronograma da viagem, já
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tenho um encontro marcado em Baku. Emil, jovem rapaz azeri, além de contri-
buir com uma entrevista riquíssima para a minha redação, foi a primeira pessoa
com quem me comuniquei quando venci o concurso. Recordo-me que naquele
momento feliz, a fonte que em breve se tornaria meu amigo, sinalizou “Vamos
nos encontrar em Baku quando estiver aqui”.
Dirijo-me até a casa de dois artesãos tradicionais da minha cidade para in-
vestir numa lembrança graciosa. Dois senhores simpáticos me recebem, os artis-
tas locais que produzem chaveiros, enfeites, ímãs de geladeira e todo tipo de sou-
venir mongaguaense. Os artesãos não tem a mínima ideia de que estão vendendo
seus trabalhos para o outro lado do mundo. Em meio a tantas opções e cores,
encontro um porta-chaves com o desenho de coqueiros na praia. Além de ter a
gravura de “Mongaguá-Brasil”, o desenho remete bastante às minhas origens. O
litoral, a areia macia da praia, as ondas do mar, o quiosque dos meus pais, a água
salgada, a minha história. É esse mesmo que vou levar. “Muito obrigado, Ulisses.
Espero que ele goste” – despedem-se gratos os artesãos que estão exportando sua
arte pela primeira vez para o Azerbaijão.
Está tudo pronto. É a hora de partir rumo ao aeroporto internacional de
Guarulhos – aproximadamente duas horas de carro da minha cidade até ele.
Voos internacionais sugerem que os passageiros cheguem com no mínimo três
horas de antecedência. Como um bom novato em trajetos internacionais, chega-
rei com cinco horas de antecedência.
Não vou sozinho. A minha família me acompanha até o aeroporto. Aper-
tamo-nos no carro para acomodar as pessoas mais importantes da minha vida. É
um dia especial para eles também.
Chegamos. O ambiente do aeroporto internacional de Guarulhos me faz
bem. Já vim aqui algumas vezes para buscar familiares, mas nunca embarquei
de fato. Terminais enormes que necessitam de ônibus internos para locomoção
de um portão para o outro, chamadas em outros idiomas, lojas e restaurantes
internacionais, barulho de aviões decolando, novamente chamadas em outros
idiomas, comissárias atrasadas, taxistas com plaquinhas esperando passageiros e
pessoas de diversos lugares do mundo chegando e partindo. A energia desse local
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prende a minha atenção por vários momentos e eu tento imaginar quantas his-
tórias estão acontecendo aqui. Pessoas viajando em busca de uma vida melhor,
indo matar a saudade da família que mora longe, gente vindo visitar alguém es-
pecial, estudantes ingressando em intercâmbio acadêmico, gringos chegando ao
Brasil pela primeira vez, artistas embarcando e eu poderia ficar aqui durante dias
tentando imaginar as possibilidades que fazem as pessoas viajarem e passarem
por aqui.
O meu voo decola às três da manhã em ponto e já está na hora de me des-
pedir da família. Subimos até o terminal dois para encontrar os guichês das com-
panhias aéreas. Daqui para frente é só comigo. Despeço-me da família. “Tchau,
gente. Daqui duas semanas estou de volta. Mãe, não chora. Amo vocês!” e me
junto ao grupo de brasileiros que também viajarão comigo.
Desse momento em diante tudo passa muito rápido. A primeira integra-
ção com os meus novos amigos acontece no check in. Seguimos com as prosas
iniciais pela imigração. Ingressamos na zona internacional que me trata como
estrangeiro com o “pão de queijo-roubo” de quinze reais
A companhia aérea turca é extremamente pontual, por isso é o momento
de embarcarmos no enorme avião nas cores da bandeira da Turquia. Já são cerca
de duas e vinte da madrugada. Comissárias falando em turco e árabe dão forma
a experiência asiática que estou prestes a ingressar.
As imensas horas dentro do avião são divididas em refeições fartas, um co-
chilo rápido e assistir uns filmes disponíveis na pequena televisão à minha frente.
Aproveito para escrever no bloco de notas do meu celular as minhas primeiras
sensações dessa experiência.
Uma música tipicamente turca começa sutilmente e as pessoas acordam. As
luzes são acesas cuidadosamente e ficam num estágio agradável. Nem claro, nem
escuro. O suficiente para enxergar. Estamos sobrevoando a cidade de Istambul.
Abro a cortina da janela para matar a curiosidade. Consigo enxergar de longe
queimas de fogos em alguns pontos da cidade. É o período do ramadã, momento
de celebração da comunidade islâmica em todo o mundo. Como o sol já se pôs,
acredito que neste momento os fieis estão festejando com a tradicional ceia após
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um dia inteiro de jejum.
Hora de desembarcar e procurar a esteira de malas. Não dá tempo para
compras, vamos em direção da zona internacional para a sala de embarque. Des-
sa vez, finalmente, rumo ao destino final.
O trajeto daqui até Baku não é longo. Ainda assim, é oferecido o jantar. É
quase meia noite e meia. Está cada vez ficando mais perto e real. Estamos indo
para uma das nações mais antigas do mundo.
Após aproximadamente quatro horas de viagem, nos aproximamos do des-
tino final. Ao avião aterrissar, eu olho para o horizonte através da minúscula
janela e reflito. “Eu nunca imaginei que uma redação poderia me levar para tão
longe”. As rodas da aeronave encostam-se à extensa pista do aeroporto interna-
cional Heydar Aliyev.
Antigamente conhecido como aeroporto internacional de Bina, o aeropor-
to internacional Heydar Aliyev foi renomeado em dez de Março de dois mil e
quatro em homenagem ao ex-presidente do Azerbaijão com o seu nome.
Tantas horas dentro de um avião desatualizaram completamente o meu re-
lógio biológico e já é a segunda vez que o fuso horário muda neste trajeto. Che-
gamos ao território azerbaijanês e já são cerca de seis da manhã. O meu primeiro
pensamento ao desembarcar era apenas sobre descansar por algumas horas para
resgatar toda a energia que eu tinha há vinte quatro horas. Mudo de opinião em
alguns momentos.
O céu já apresenta as nuances de transição para um dia ensolarado. Nunca
mudei de estações do ano em tão pouco tempo. Há algumas horas estávamos no
inverno brasileiro. Neste momento já é verão no Cáucaso. Já podemos tirar nos-
sos casacos.
Hora de mostrar o passaporte do Mercosul na imigração, preencher um for-
mulário do visto e apresentar a carta-convite do Ministério do Esporte e Juventu-
de do país que é o motivo por estar aqui. Ruídos em idiomas desconhecidos para
a minha audição, é o primeiro contato com a língua azeri que, no quesito falar
rápido, os azerbaijaneses são como os brasileiros. A cada palavra que eu ouço em
azeri, a sensação de estar longe de casa se intensifica cada vez mais.
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O idioma azerbaijanesa é de origem altaica e hoje tem como referência a
língua oguz que se propagou pelo sudoeste da Ásia durante a migração otomana
na Idade Média que foi bastante influenciada pelas línguas persa e árabe.
Ao desembarcarmos no território até então desconhecido, observo o com-
portamento do meu grupo. Embora eu tenha conhecido os colegas da delegação
brasileira há apenas algumas horas, desde que saímos do avião, não nos separa-
mos por nenhum momento. Nativos do mesmo berço, raízes em comum, refe-
rências do mesmo lugar, expectativas compartilhadas, churrasco aos domingos,
passaportes azuis-marinhos, o mesmo sentimento de pertencimento e compa-
nheirismo.
Funcionários do Ministério do Esporte e Juventude nos aguardam na sala
do desembarque. Plaquinha “Brazil”. Somos nós. Rapaz alto de terno azul, cabe-
lo curto, sobrancelha forte e um celular que toca a cada cinco minutos. Rashad
é um dos conselheiros do ministério e nos recebe no primeiro momento. “Sejam
bem vindos a Baku”.
O relógio já deve marcar aproximadamente sete horas da manhã. Nesses
momentos o tempo varia entre passar muito rápido ou simplesmente demorar
uma eternidade para completar uma hora. Meu organismo está em fase de teste
sobre o fuso horário e os olhos teimam em tentar fechar. E nesse intervalo ini-
cia o papo com os novos amigos azerbaijaneses. Uma pergunta aqui, outra ali.
“E a copa do mundo?” “Neymar?” E nesse bate-bola somos conduzidos até um
ônibus executivo que nos aguardava. Despachar as malas, embarcar novamente.
“Estão todos aqui? Então vamos embora”.
Confesso que chego deveras cansado e o meu primeiro desejo era apenas
investir em algumas horas de descanso que poderia começar já dentro do ônibus.
Eu estava errado. Nos primeiros quilômetros percorridos, a cidade consegue mu-
dar a mente de todos. De repente todo o meu sono é convertido em vontade de
começar a explorar a capital do Azerbaijão.
A cidade nos encanta a cada metro que ingressamos nela. Prédios rústicos,
construções com o padrão de cores em bege e marrom claro. Confesso que a ar-
quitetura me confunde, mas uma confusão formidável. O contraste arquitetôni-
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co causa transe em minha mente. O charme europeu como no século
passado com pequenas ruas estreitas e casas clássicas. Do outro lado, a
inovação invade as avenidas largas da cidade com arranha céus como já
se estivéssemos no futuro. O ônibus passa rápido, entretanto é possível
construir as primeiras impressões com auxílio do percurso privilegiado
que o motorista está fazendo. Os veículos vizinhos que deslizam pelo
largo asfalto ao nosso lado alteram entre os mais modernos e também
muitos ladas coloridos como na avenida paulista há trinta anos.

Centro da
cidade de
Baku –
Foto: Ulis-
ses Lisboa
Baku possui um currículo extenso desde o período paleolítico,
onde as primeiras pinturas rupestres demonstravam o desenvolvimen-
to das tribos locais que viviam por essa região na época. A expansão da
maior cidade do país iniciou nos tempos mais primórdios da história
mundial, como é confirmado por vários achados arqueológicos. Além
disso, as construções medievais de Icheri Sheher – Cidade Velha – fo-
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ram edificadas sobre o fundamento das antigas estruturas destru-
ídas.

Largas avenidas atravessam a capital do país - Foto: Ulisses Lisboa


O show arquitetônico que Baku apresenta gratuitamente a
todos que passam por ela está prestes a dar uma pausa por pelo
menos algumas horas. Já estamos chegando ao hotel e o primeiro
combinado surge. “Vamos tomar um banho, tomar café da ma-
nhã e sair”. Embora todos estejam exaustos pela longa jornada,
todos concordam.

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Manifesta-
ções artís-
ticas dão
charme à
arquitetura
da cida-
de - Foto:
Ulisses
Lisboa

Chegamos ao lugar que nos acomodará nas próximas duas se-


manas. O ônibus executivo estaciona a frente do enorme hall de
entrada do hotel Marriott. Imediatamente percebo que nunca me
hospedei num hotel tão bonito como este – e as confirmações de
que valeu a pena ter participado do concurso que me trouxe aqui se
intensificam em minha mente. Eu fiz a escolha certa. E nessa ener-
gia encantadora das primeiras horas na Terra do Fogo, faço check
in e recebo as chaves do meu quarto. Hora de subir para os meus
aposentos e esperar para conhecer meu roommate.
Décimo primeiro andar, quarto cento e quatorze, cerca de
quinze passos do elevador até a porta da minha suíte. Desbloque-
ar a porta de trava magnética com o cartão que recebi instantes
atrás. Acender as luzes com o contato do mesmo cartão também.
Aliás, inúmeros tipos de iluminações disponíveis – lounge, leitura,
cinema, noturna, diurna e fim de tarde. Sinto-me perdido com as
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diversas opções. Há duas camas espaçosas de casal com lençóis brancos como os
filmes retratam o céu. Ah, e uma das camas já tem pertences de alguém que devo
conhecer em breve. Meu colega de quarto chegou e já saiu.
Meu olfato se identifica com o aroma de roupa nova do quarto, enquanto
minha visão é retardada pela vista panorâmica da capital do Azerbaijão. Abro a
cortina da imensa janela. Vejo inúmeras miniaturas de pessoas e carros lá embai-
xo. Vidas azerbaijanesas em movimento. Pessoas indo para o trabalho ganhar a
vida e manats; indo a busca do saber em escolas e universidades; visitar familiares
que não viam há meses; outros indo ao hospital na tentativa de conseguir a cura
ou indo a caminho de alternativas na igreja católica mais próxima para ajoelhar
na madeira maciça e pedir milagres aos seus deuses. Gosto de imaginar possibili-
dades. Se eu pudesse, eu ficaria o dia todo aqui tentando decifrar os porquês das
pessoas estarem neste exato momento em movimento nas ruas de Baku.
Como combinado, devo descer para tomar café com meus companheiros
brasileiros dentro de meia hora. Confesso que o encanto da cidade tem alimen-
tado meu organismo com as primeiras impressões. A ansiedade de explorar o país
inibiu completamente minha fome. Alma pré-alimentada de experiências que
ainda terei.
Banhei-me. O dia requisita roupas leves e confortáveis. Ajeito algumas mu-
das de roupas fora da mala, elas também merecem respirar. Nesse intervalo, a
porta do quarto abre. Não é a camareira.
“Olá” – iniciou o roommate – “Tudo bom? Eu sou Sebastián Emmanuel!”
Embora iniciemos um diálogo em inglês, percebo um sutil sotaque latino
na fala do rapaz branco, barba clara, alto, olhos azuis, sorridente. É o primeiro
contato que tenho com um possível amigo estrangeiro. Alguém de uma realidade
distinta da minha, talvez outras perspectivas, raízes diferentes, mas suponho que
o novo amigo tenha as mesmas expectativas que as minhas sobre a viagem que cá
estamos.
Compartilhamos algumas características em comum. Um pouco sobre as
primeiras impressões, longa viagem de avião e chegada ao Azerbaijão. Sebastián é
meu vizinho, veio da Argentina e também é jornalista. Uma pena o meu conhe-
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cimento em espanhol ser raso – prefiro não recorrer ao portunhol – sinto-me até
constrangido de me comunicar em inglês com um vizinho tão próximo. Conto
sobre a minha vida – introdução tradicional com tópicos como cidade que nasci
e vivi durante dezoito anos, falo sobre meus pais, irmãos, o que decidi estudar
pelo resto da vida e um pouco sobre a visão de mundo. Ufa, acho que está inte-
ressante para o primeiro papo.
“Até logo, Emmanuel” – despeço-me do colega de quarto – “Hoje temos
o dia todo de lazer. Mais tarde nos vemos por aí!”. Retiro-me do nosso quarto e
sigo em direção ao hall de alimentação do hotel.
O enorme buffet convida todos os hóspedes para apreciar as comidas fo-
togênicas. As opções são multiplicadas – diversos tipos de pães, queijos, patês,
frutas da estação, sucos frescos, sobremesas e até chefs preparando omeletes e
panquecas de acordo com os ingredientes que você quiser. Maneira legal de co-
meçar um dia.
Nesse mar de possibilidades alimentícias, devido ao fluxo de hospedes de
diferentes lugares do mundo, o hotel oferece culinária internacional com pratos
ocidentais. Mas comida ocidental eu como em casa. É hora de experimentar
a culinária azerbaijanesa. Tradicional pão assado no tacho, saladas com frutas,
verduras e legumes, azeitonas coloridas. Tempero diferente, sabor desconhecido,
paladar trabalhando seu senso crítico – que há vinte e dois anos ama um arroz
com feijão.
Bateria recarregada. Oitenta por cento do meu organismo está reconstru-
ído. Sinto-me preparado para as aventuras que nos aguardam pelo país afora.
As atividades, viagens e visitas iniciam amanhã bem cedo. Hoje estamos livres.
O cronograma que recebemos sinaliza que hoje temos o dia todo para lazer e
descanso, pois as delegações ainda estão chegando de oito países diferentes. Jo-
vens canadenses, africanos, mexicanos, argentinos, belgos, estonianos, húngaros
e vietnamitas. Meu círculo de amigos deve aumentar nos próximos dias.

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32
33
[Segundo contato]
Vai, Brasil!

T
elemóvel programado para tocar às oito da manhã, mas o despertador
biológico me chama antes. O fuso horário modificou completamente
meu organismo. Acordo por volta das sete e meia da manhã sem ajuda
de tecnologia alguma. Deve ser ansiedade.
Iniciar os preparos matutinos para a primeira excursão. Ajeitar a mochila de
lona azul que comprei há alguns meses numa liquidação. Separar apetrechos de
viagem. Carregador para os dispositivos móveis, câmera fotográfica instantânea,
alguns filmes, pergaminhos, documentos e algumas expectativas. Ainda preciso
trocar meus dólares pela moeda local, o manat – que hoje está valendo quase o
mesmo valor do euro.
O ônibus deve sair aproximadamente nove e meia, como indicado na car-
tilha que nos deram ontem junto com crachás. “Ulisses Lisboa Gonçalves – Bra-
sil”.
Deixo meu quarto com cuidado. O silêncio do corredor me intimida e im-
põe naturalmente essa regra. Espero que o elevador não demore. Alguns toques
impacientes no botão para chamá-lo. As portas abrem. Não vou descer sozinho.
Entro na espaçosa caixa de metal que nos guiará até o térreo.
Minha companheira do trajeto de alguns segundos sinaliza com o crachá
no pescoço que faz parte do programa que estou. Sophie Autumn, Estonia. Pele
branca, cabelo armado, pulseiras velhas, saia longa branca, alpargatas encardidas,
uma câmara semi-profissional entrelaçada em seus braços, um sorriso em minha
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direção, um sotaque engraçado. Antes mesmo que eu pudesse me apresentar for-
malmente, sou surpreendido. Ousada e estabanada, a estoniana puxa meu braço
direito onde está localizada a minha tatuagem.
“O que significa?” iniciou curiosa.
“É mãe com o símbolo da infinidade. Mãe para sempre”, explico um pouco
assustado.
“Oh, muito doce da sua parte. Eu sou Sophie, prazer!”
Deixamos juntos o elevador. Sophie é desajeitada, fala alto e dá gargalhadas
escandalosas. O jeito da nova amiga europeia chama a atenção das pessoas ao
nosso redor. Identifico-me com personalidades assim. Sua estranheza me con-
quista a primeira vista e dá vontade de estar perto dela.
O hall principal do hotel encontra-se um tanto lotado. Todas as delegações
estão presentes. Meus ouvidos estão confusos com tantos idiomas sendo falados
ao mesmo tempo. Uma frase em inglês aqui, algum idioma desconhecido ali,
murmúrios espanhóis acolá.
Hoje a programação é aqui em Baku, que oferece muitas atrações culturais
e artísticas devido ao seu currículo histórico desde a Idade da Pedra. A capital do
Azerbaijão é tão antiga que foi mencionada pela primeira vez no livro dos mortos
pelo faraó egípcio Minesan em três mil e quinhentos anos antes de Cristo. Além
disso, a idade de Baku pode ser compreendida através de esculturas de pedra e
escavações arqueológicas que tem origem de cerca de doze mil anos atrás. É real-
mente muita história para contar.
Verão transcontinental, temperatura seca, alimentação natural através da
exacerbada vitamina d que o sol forte oferece a todos. Ainda bem que o ônibus
tem ar condicionado, muitas pessoas gritando e fazendo amizade. O início dos
ciclos sempre são tão agradáveis, as descobertas, os primeiros compartilhamen-
tos.
O trajeto até a nossa primeira parada é rápido. Não dá tempo de alongar a
conversa com as outras delegações. Seguimos em direção ao Beco da Honra, um
cemitério e memorial onde estão os túmulos de nomes como o antigo presidente
do Azerbaijão – Heydar Aliyev, que governou o país de mil novecentos e noventa
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e três até dois mil e três, ano em que faleceu – e artistas, ministros e cientistas que
fizeram a diferença de alguma maneira na história do país.
O transporte que nos conduzira não resiste mais à aceleração. Inércia, po-
demos levantar de nossos assentos. Mas a dinâmica ao nosso redor não para. Ba-
rulho do motor de automóveis na avenida ao lado anexado a cantoria de alguns
pequenos pássaros. Desembarcamos num parque repleto de diferentes espécies
de árvores. Tons claros, médios e escuros de verde, além de algumas famílias de
flores. Minúsculas sementes que há algum tempo eram pequenas ferramentas or-
gânicas que evoluíram e hoje me defendem com suas centenas de folhas e galhos
contra o sol que morde e assopra. Ora me alimenta de vitamina, ora me queima
e envelhece a minha face. Natureza flexível.
Rashad, o conselheiro do ministério nos distribui rosas para depositarmos
no túmulo do ex-presidente. Flores sacrificadas há pouquíssimo tempo. Acredito
que tenham sido abatidas há poucas horas, mas continuam bonitas. Tão coradas
e cheirosas que até parecem sintéticas, no entanto reais. Verdadeiras e agora mor-
tas.
Organizemo-nos em fila indiana para a homenagem que é registrada por
muitas câmeras fotográficas, aparelhos de celular, gravadores, tecnologias para
documentação. Anoto algumas informações no bloco de nota do telemóvel e me
disperso para dar atenção à integração. Conheço Kenza, a jovem belga de san-
dália baixa, calça estampada confeccionada com tecido confortável e um par de
óculos de grau que inibe seus exóticos olhos. Conto que sou brasileiro.
“Sério? Eu fiz intercâmbio em Portugal e aprendi um pouco de português” me
informa empolgada. Trocamos diálogos simples em língua portuguesa.
Chega a nossa vez de homenagear Heydar Aliyev , fundador do estado mo-
derno do Azerbaijão. Curvamo-nos e deixamos a oferenda sob o túmulo de már-
more que é enfeitado com uma coroa de flores no canto esquerdo do espaço.
Jovens guias azerbaijanesas com a fluência impecável em língua inglesa con-
duzem o grupo para continuar a caminhada. Atravessamos o Beco dos Mártires,
onde estão instalados mais de duzentos túmulos de famílias e soldados azeris que
perderam suas vidas defendendo a independência e a integridade territorial do
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país.

Túmulos e rosas,
grandes nomes do
país são homenagea-
dos pelas delegações.
Foto: Bruno Valim
Magalhães

Seguimos em direção a Praça da Bandeira Nacional, onde a bandeira


azul, vermelho e verde está erguida num poste a sento e sessenta e dois
metros de altura. O lábaro mais alto do mundo – segundo o Guinness
World Records – foi inaugurado no primeiro dia do mês de setembro em
dois mil e dez com a iniciativa do atual presidente, Ilham Aliyev.
Embarcar e desembarcar novamente no transporte alternativo, a dis-
tância é inviável para irmos caminhando. O rapaz branco e alto que tem
o celular grudado em uma de suas orelhas lê a mente de pelo menos no-
venta e nove por cento das delegações ao trazer algumas caixas transbor-
dando garrafas de água gelada. Hidratar as gargantas quase secas como as
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morfologias climáticas áridas do nosso Brasil. “Obrigado, Rashad”.
Recorro a Sabína, uma das simpáticas guias que está em meu ônibus
para me ensinar algumas palavras em azerbaijanês. Para o “Olá”, posso fa-
lar “Salam” e “Cox Sagol” para agradecer – pronúncia para nós brasileiros:
tcho sarról.
A enorme bandeira do Azerbaijão fica no centro da praça às margens
do mar Cáspio. Somos guiados pela guia do governo que explica deta-
lhadamente a história da bandeira do país e a consolidação deste ponto
turístico. Além da bandeira, há um espaço interno, o Museu da Bandeira
Nacional para maior aprofundamento neste contexto do país – que mos-
tra as origens das bandeiras, as cores, bandeiras restauradas pertencentes
aos séculos XVII-XVIII, brasões, flâmulas e estandartes. Além disso, o
museu foi construído em forma de estrela de oito pontas.
A cada frase da empenhada guia do museu, uma memória das aulas
de história do ensino médio. Tudo se interliga. Aliás, estamos numa fan-

O sopro do Mar Cáspio intensifica a dan-


ça da maior bandeira hasteada do mundo.
Foto: Bruno Valim Magalhães

39
tástica aula de história prática no local de acontecimento. A gratidão
pelos ensinamentos dos meus mestres traz a vontade de ligar para
meus professores de geografia e história para compartilhar simulta-
neamente onde estou e o que estou fazendo neste momento. Pausa
para o cérebro filtrar informações, absorver conhecimento.
Seguimos em direção a mais um trajeto cheio de aprendizados,
o Museu do Tapete. A tapeçaria tem um papel fundamental na his-
tória do país, pois traduz a historicidade do povo azerbaijanês regis-
trada em linhas que recontam seus percursos. Os primeiros tapetes
surgiram na Idade do Bronze e foram se desenvolvendo sem perder
a originalidade e até hoje são bastante representativos no Azerbaijão
através da sua cultura artesanal.
O museu foi fundado em mil novecentos e sessenta e sete e
hoje conta com um enorme acervo das artes aplicadas azerbaijanesas
que foram construídas desde o século dezoito. O resultado do traba-
lho minucioso em tecer linhas coloridas dá vida a estampas exóticas
e representativas da cultura azerbaijanesa.
Hora do almoço. Retornar para o hotel mil estrelas, uma hora
e meia para nos alimentarmos e carregar o ânimo para uma das vi-
sitas mais interessantes da viagem no período vespertino, a Cidade
Velha.
Arroz amarelado com nozes e damascos, batatas coradas e as-
sadas, salada de grãos, molho roxo, aves grelhadas. Opções que aco-
modo num prato branco de porcelana um tanto pesado. Suco de
laranja sem gelo. Também tem um doce que simboliza o fogo, o
pakhlava. A sobremesa é preparada apenas com, farinha, açúcar e
para finalizar uma lasca generosa de nozes acima de pequenos lo-
sangos comestíveis. O doce típico é servido tradicionalmente na
véspera da chegada da primavera, o feriado Novruz que homenageia
o sol no país. Algumas gargalhadas com amigos para a digestão para
depois voltar a exploração da cidade.
40
Icheri Sheher, a Cidade Velha foi construída por nossos ante-
passados há milhares de anos sobre uma colina em forma de anfi-
teatro que reflete na parte inferior do mar Cáspio e é cercada por
montanhas do Cáucaso no canto superior de Baku – não se sabe a
exata idade dessa região, a única certeza é que faz muito tempo que
existe. Além disso, este espaço conta sua história desde o cenário
medieval com palácios e monumentos em seu interior e devido à
riqueza histórica, tornou-se patrimônio tombado pela UNESCO
no ano dois mil.

A arquitetura da capital do Azerbaijão absorve muitas referên-

A arquitetu-
ra classicista
compõe Cida-
de Velha Foto:
Ulisses Lisboa

cias da infraestrutura da Cidade Fortificada de Baku, que explora a


autenticidade de muralhas sem pinturas, cor natural de tijolos beges
e o chão de pedrinhas que nos faz tropeçar se não for cuidadoso.
41
Um padrão por toda região. É como caminhar pelo perío-
do medieval e respirar a energia gótica daquela época que
adorava construir edifícios caprichosamente rústicos.
Guias nos separam em grupos com duas opções de
idiomas. Inglês e espanhol. Não, nós não falamos espanhol.
Seguimos em direção a visita guiada em língua inglesa para
a próxima parada.
Chegamos à antiga residência medieval dos gover-
nantes do estado de Shirvan, o Palácio Shirvanshahs. Em
meados do século XV, o atual Azerbaijão era liderado pela
dinastia Shirvanshah, que remanejou a capital do país de
Shemakha para região atual de Baku e construiu o palácio.
Naquela época, o estado de Shirvanshah executou um
papel importante para o desenvolvimento da Terra do Fogo,
que concedia total autonomia aos governantes e vassalos
para decidirem os trâmites econômicos que eram deman-
dados.
“Shirvanshah foi a mais longa dinastia islâmica no
mundo” ressalta a guia que reconta a história do palácio.
Acredita-se que o edifício é um complexo memorial
construído arredor de um lugar sagrado de veneração e uma
tumba de Seyyid Yahya Bakuvi que era um santo sufi – li-
nha do islamismo que propaga o amor. Este monumento
arquitetônico há alguns metros da entrada da Cidade Anti-
ga contém diversas atrações em seu interior, como o edifício
principal do palácio, pavilhões, construções independentes,
um mausoléu, mesquita de Xá, um reservatório e uma casa
de banho.

A cada frase finalizada da moça morena de sobran-


celhas fortes que nos guia pelo cenário medieval, muitos
42
Um dos maiores
monumentos da
Cidade Velha, o
Palácio de Shir-
vanshahs. Foto:
Ulisses Lisboa
ruídos do botão de captura de câmeras fotográficas. Divi-
do as tarefas entre fotografar com duas câmeras diferentes,
anotar algumas informações em meu bloco de notas e dar
gargalhadas com Sophie que prende a atenção de todos bra-
sileiros com sua espontaneidade e sotaque engraçado. Ape-
lidamos a jovem estoniana com um lenço vinho na cabeça
de Amy.
“Amy significa amigo no Brasil?” questiona-me cari-
nhosamente a moça europeia.
Escolhemos o apelido aleatoriamente. Quando atribu-
ímos Amy há alguns minutos, a ideia era que simplesmente
combinava com a garota que nos conquistara com seu jeito
escandaloso.
O questionamento de Sophie é inesperado. O signifi-
cado de Amy até então era abstrato, inofensivo, brincalhão,
sem explicações e fundamentos. A pergunta tornou o apeli-
do mais sério, mais reflexivo. Arrependo-me de não ter tido
43
a ideia da tradução para amizade antes. De qualquer maneira, Amy, daqui para
frente significará amigo.
“Sim, Amy” eu respondo com um abraço forte.
É possível explorar a Cidade Velha inteira caminhando. O trajeto de um
ponto turístico para o outro é preenchido por restaurantes com pratos típicos
azerbaijaneses, lojas de antiguidades, tapetes em algumas grutas, soldados carac-
terizados com trajes da época. Além de barraquinhas que oferecem lembranças
exclusivas que te convencem a deixar todos os seus manats aqui.
Lojas rústicas como cavernas em seu interior, uma parada de dez minutos
em cada uma delas. Vendedores bigodudos dos dentes dourados perguntam se
preciso de ajuda. Conto-lhes que sou brasileiro. Ganho sorrisos e propostas de
descontos em louças de porcelana com símbolos do país.
Uma garimpada na loja de tapetes antigos e uma pequena compra de cha-
veiros na barraca de bugigangas próxima a um dos locais mais peculiares da Ci-
dade Fortificada.
Muitos rumores e mitos rodeiam a história da fortaleza de oito andares que
chama atenção de toda a cidade, a Torre da Donzela. Há diversos boatos possíveis
que são contados há anos sobre a origem da construção medieval. Uns dizem que
o intuito da torre era apenas de vigilância da região para prevenir invasões ines-
peradas.
Há a história – que eu mais me identifico – do rei que se apaixonou por sua
própria filha e a pediu em casamento. A filha, aapaixonada por outro homem,
aceitou com uma condição. Se seu pai construísse a maior torre possível, o ca-
samento aconteceria. O apaixonado rei realizou o pedido da dondoca para tê-la
para sempre como sua esposa.
Combinado feito, dever cumprido. Estava tudo certo. Neste intervalo, a
moça pediu ao rei para ser a primeira pessoa a subir na torre e visualizar a cidade
do alto. Frustrada com o êxito de seu pai, a jovem decidiu acabar com o dilema.
Atirou-se da torre. Tirou sua vida e caiu sobre as ondas do mar Cáspio. Desde
aquele momento, o edifício passou a se chamar Torre da Donzela – que poste-
riormente foi nome de apresentações de ballet clássico pela região.
44
É uma das lendas mais contadas – e a história que mais gosto. Subo a torre
tentando imaginar os últimos pensamentos da donzela que passou por estas in-
termináveis escadas antes de tirar sua vida. Hoje é a minha vez de chegar ao topo,
entretanto com objetivos diferentes da jovem suicida.
A experiência de subir as escadas estreitas da torre nos proporcionam duas
realidades. A primeira, se você tiver preparo físico, vai ficar tudo bem. Já a se-
gunda é cruel. Você não está preparado, não tem pausa e você percebe o quanto
sedentário é. A segunda opção faz sentido a cada degrau que eu subo. Não tem
espaço para desistir, há pessoas atrás tentando subir. Subo ofegante, se parar pos-
so ser atropelado.
Todo esforço deve ser recompensado. A maratona tonifica as panturrilhas,
seca a garganta, acelera o coração e te presenteia com a vista panorâmica da cida-
de se você concluir o trajeto.
Chego na parada final da prova de ginástica e encontro todos já recuperan-
do o fôlego com a visão ampla de Baku. A visualização dos detalhes das constru-
ções se intensificam ao topo da Torre da Donzela – hoje um pouco mais longe
das ondas salgadas do mar Cáspio que abraça a maior cidade do país. O oceano
me recompensa com a brisa fresca e a cidade apresenta sua beleza arquitetônica
aos sortudos que podem observá-la do alto.
O tempo ajeita a temperatura e fica mais confortável. O vento litorâneo
ataca, balança nossos trajes, descabela as meninas, resseca as mãos. Nisso, o sol
inicia a sua despedida após ter passado o dia inteiro iluminando a terra com seus
raios ultravioletas. Em alguns instantes a escuridão tomará conta do céu estrela-
do, mas a cidade não fica deficiente de iluminação temática.
As torres flamejantes – Flame Towers – é um dos cartões postais mais belos
da cidade. Três torres – um hotel, um edifício comercial e um edifício residencial
– que remetem as chamas que brotam do solo pelo país afora. Durante a noite,
cada janela do aranha-céu se transforma em plataformas de luzes de leds nas co-
res da bandeira do Azerbaijão, além de outras animações.
De volta ao hotel, procurar a tomada mais próxima. Ativar conexão à inter-
net no telefone celular. Mil e uma notificações nas redes sociais, e-mails e uma
45
mensagem de Emil, o amigo azerbaijanês que devo me encontrar em algum des-
ses dias que estou em seu país.
“O que você acha se eu te levar para a minha cidade, Sumqayit. É perto e
seria perfeito”, sugeriu o azeri.
Compartilho a ideia com os amigos brasileiros. Desconfiados assim como
eu, todos aconselharam que não é uma boa ideia. Afinal, a princípio o encontro
deveria acontecer no saguão principal do hotel, não numa cidade desconhecida
para mim. No fundo, é uma ideia interessante. Mas minha mente medrosa e re-
ceosa me diz que é melhor não ingressar nessa experiência desconhecida. Fecho
a mensagem de Emil e não respondo.
Anoitece na Terra do Fogo e a nossa programação continua. Retornamos ao
hotel para as próximas atividades. Dessa vez, só entre a delegação brasileira. Em
algumas horas receberemos uma visita. O embaixador do Azerbaijão no Brasil,
Elnur Sultanov, está em Baku com sua esposa, Nigar Sultanova. O diplomata
marcou um encontro conosco para conhecer os brasileiros ganhadores da viagem
ao seu país. Conheço a embaixatriz pelo contato via telefone e e-mail que tivemos
no último mês. Ela nos acompanhou desde a primeira ligação parabenizando os
vencedores do concurso até enviar as informações sobre a viagem. A fluência de
Nigar em língua portuguesa é admirável.
Encontramo-nos no saguão de entrada e migramos para um dos cafés do
hotel. Refrescos para amenizar a noite de verão caucasiana e alguns minutos de
apresentação pessoal direcionados a cada um para Elnur e Nigar nos conhecerem
melhor.
“Sou o Ulisses, tenho vinte e um anos, estudo jornalismo em Minas Gerais,
mas sou do litoral de São Paulo. Na minha redação, escrevi sobre a história, arte
e cultura do Azerbaijão”, apresento-me gaguejando.
“E quem será que ganha hoje? Brasil ou Colômbia?” brinca o embaixador.
Neste momento o Brasil sedia a copa do mundo pela segunda vez – primei-
ra experiência aconteceu em mil novecentos e cinquenta, quando a nossa seleção
perdeu o título para o Uruguai.
Deixei o país do futebol durante a tão esperada copa do mundo para conhe-
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cer o Cáucaso, mas é claro que vamos acompanhar a disputa de vizinhos entre
brasileiros e colombianos.
O jogo inicia às cinco horas no Brasil, mas a diferença do fuso horário entre
Brasília e Baku são de oito horas. Quando o relógio marcar cinco horas da tar-
de, aqui já será uma hora da madrugada. Vamos estender a noite para torcer por
nossa seleção.
“Aproveitem a experiência no Azerbaijão, meninos e meninas. Espero vê-los
novamente no Brasil!”, diz a simpática embaixatriz. Despedimo-nos e seguimos
com os preparativos para assistirmos ao jogo numa sala de vídeo que o hotel dis-
ponibilizou para o nosso grupo.
Torcer para o nosso time do outro lado do mundo também merece trajes
com as cores da nossa bandeira. Uma bermuda verde, uma camiseta da seleção
que ganhei numa promoção de cerveja e um grupo que fala alto pelos corredores
largos do hotel. Eu gosto dos nossos vizinhos colombianos. Eles nos desculpem,
mas hoje é nosso dia de vencer.
A sala de vídeo está equipada com um telão, bandeiras de diversos países,
uma mesa com beliscos, sobremesas, bebidas geladíssimas, além de um garçom
com o uniforme de jogador de futebol.
É diferente ver o que o meu país está vivendo um dia que eu já estou finali-
zando. O estádio lotado nesse dia ensolarado no Brasil e eu já ter vivido esse dia
quente por aqui. Confesso que não acompanho jogos de futebol e nunca consigo
entender o porquê de um jogador estar impedido. Talvez eu aprenda hoje.
Um grito aqui, bola na trave ali, um gol tupiniquim acolá e um pequeno
grupo de senhores azeris ao nosso lado observando nosso escândalo. E nessa
emoção de copa do mundo fora do nosso país, nós terminamos a noite aliviados
com o resultado de dois a um para o a nossa seleção.
VAI, BRASIL!

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[Terceiro contato]
Não me ligue no Azerbaijão

D
esligar o despertador, procurar aspirina. Também espero ter trazido um
remédio para garganta – que acordou quase indo a óbito após a gritaria
durante o jogo de ontem. A festa foi ótima. Se fizemos barulho, espero
que sejamos perdoados pela nossa vitória.
Compartilhar o quarto com um estrangeiro é um mantra para se tornar
uma pessoa cautelosa. Procuro ser o menos estabanado possível, falar baixo e
não fazer tanto barulho como estou acostumado. Aliás, evitar alguns costumes
e manias também são válidos – dormir com o fone de ouvido ligado, acordar de
madrugada para tomar água e bater a geladeira ou deixar a internet do celular
habilitada com várias notificações cantarolando. Por falar em internet, sou gra-
to à conexão que o hotel tem me proporcionado. Consigo compartilhar muitas
fotografias e vídeos para a família e amigos sem remorsos e problemas comuni-
cacionais. Minha família agradece. Eu poderia viver aqui escrevendo. Tive ideia
de algumas pautas. Observo algumas situações e já imagino grandes reportagens.
Mal de jornalista. Entrevistar, apurar, aprofundar, escrever, enviar e, bingo. Mas
hoje sou um singelo jovem convidado a conhecer as riquezas do país. Fica para
próxima.
Hora de calar a estômago teimoso que roncara logo cedo. Medicina al-
ternativa para acalmar o sistema que solicita combustível: queijo fresco, jamon
serrano, batatas gratinadas, tomates verdes assados, coalhada agridoce e salada de
trigo. Alguns copos de suco de laranja para aumentar a acidez do paladar. Satis-
feito.
Recebo algumas mensagens do amigo azeri que insiste que nosso encontro
seja em sua cidade – cerca de trinta quilômetros de onde estou. A insistência de
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que eu viaje a outro município para o bendito encontro me
deixa um pouco desconfiado. Por que não pode ser aqui no
hotel?
“Olá, Ulisses! Espero que esteja aproveitando a sua esta-
dia aqui. Por favor, me informe sobre os seus planos para hoje
à noite. Eu preciso saber o que preparar. Espero pela sua res-
posta”, disse Emil por mensagem no facebook.
Compartilho com os amigos brasileiros que recebi mais
mensagens do jovem azeri que insiste com a viagem à Sumgayit.
Todos mantém a mesma posição. “Não vá. Deve ser perigoso”.
Preciso criar coragem para dizer que prefiro que o nosso encon-
tro seja no hotel. Se ele realmente for legal, vai me entender.
Por outro lado, tenho receio de parecer ignorante ao recusar o
convite. Não sou assim, não gostaria de passar uma impressão
errada por mais que a ideia soa arriscada. Além disso, eu iria
sozinho para uma cidade desconhecida, provavelmente poucas
pessoas devem falar inglês, eu só sei falar “oi” e “obrigado” no
idioma local, não tenho crédito no telemóvel para ligação ou
conexão à internet via 3g e ainda tenho dificuldade de pronun-
ciar o nome das poucas pessoas que conheço daqui.
Os motivos que me fazem responder um “não” ao amigo
fazem sentido. Nessa indecisão, somos todos chamados para
entrarmos no ônibus e seguir em direção à excursão do dia.
Não há tempo para decidir se sim ou se não agora. Na dúvida,
não respondo nada para Emil – como fiz ontem. Quando eu
voltar, resolvo isso.
Vamos ao maior museu do país, o Museu Nacional da
História do Azerbaijão. Fundado em mil novecentos e vinte, a
nomenclatura da rua que o museu está localizado mudou com
o decorrer dos acontecimentos históricos da região. Durante a
época do império russo, a rua chamava Gorchakovskaya. Já a
52
partir do período soviético, a rua passou a ser conhecida como
Maligin. Hoje com a terceira e última mudança, a rua é no-
meada de Taghiyev – nome do influente e filantropo, Zeyna-
labdin Taghiyev, que era envolvido com o mercado econômico
na área de petróleo. Inclusive, o museu era a antiga mansão de
Taghiyev, que foi tomada pelo exército vermelho na invasão
russa e posteriormente criou-se o museu no luxuoso edifício.
Aproximadamente setenta quilômetros nos aguardam
para serem percorridos. É a distância que vamos atravessar de

Cercado pelo deserto,


Gobustan é uma das
maiores relíquias da
humanidade. Foto:
Ulisses Lisboa

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Baku para chegar até o Parque Nacional Históri-
co e Artístico de Gobustan, o primeiro destino de
hoje. A reserva possui mais de seis mil gravuras
rupestres sobre as rochas da região, esculturas e
relíquias que têm vão de cinco mil até quarenta
mil anos de idade. Em dois mil e sete o parque
tornou-se patrimônio da humanidade sob os aus-
pícios da UNESCO.
“Não se dispersem. Fiquem juntos e sejam
cuidadosos. Há muitas cobras por aqui” aconse-
lha uma das guias que nos acompanha.
Agora entendo o porquê de vários desenhos
de cobras em algumas rochas no chão com algu-
mas frases em azerbaijanês. Valeu pela dica, guia.
Todo mundo tem medo de algum bicho. Para a
minha sorte do dia, cobra é o meu caso. Espero
que seja o horário do soninho das serpentes. Pre-
firo não encontrá-las. Estou na posição de intruso
no habitat das peçonhentas. Pensamento positi-
vo, sigo cauteloso.
Gobustan possui vestígios e marcas de seres
que habitavam as cavernas desde a evolução da
humanidade, todos sinalizando que os humanos
que viviam aqui tentavam um refúgio durante o
período chuvoso da Idade do Gelo.
As pinturas rupestres remetem aos homens
primitivos, as batalhas, os rituais, os animais, fi-
guras do sol, estrelas e toda uma linguagem que
era utilizada para se comunicar naquela época.
Em mil novecentos e sessenta e seis, Gobustan
foi declarado como um patrimônio histórico e
54
cultural do Azerbaijão para preservação da área,
que hoje é referência mundial quando o assunto
é comprovações da evolução humana e imagens
primitivas.
Além do espaço externo onde estão localiza-
das as relíquias da humanidade, há um museu in-
terno onde é esboçada interativamente a origem
das gravuras, as significações, os períodos da his-
tória e todas informações que norteiam Gobus-
tan, não apenas no contexto do Azerbaijão, mas
no cenário internacional.
A área externa do Parque Nacional Históri-
co e Artístico está exposta às condições climáticas
da região, como o sol severo de verão do Cáuca-
so – do jeito que estamos acostumados no Brasil.
Além dos dias congelantes de inverno que enca-
pam Gobustan com a grossa neve. Todavia, é claro
que este lugar já aguentou climas mais extremos e
hoje está intacto para quem quiser comprovar.
O ar nos nocauteia com correntes quentes
similares ao clima usual do Oriente Médio. A fo-
tografia do dia é seca e árida. Limpar a lente da
câmera com um pedaço da manga da camiseta e
Cuidado, em meio a pinturas rupes- remover a poeira. Apanhar um lenço de papel para
tres, escondem-se cobras venenosas.
Foto: Ulisses Lisboa secar o rosto que responde ao calor com transpi-
ração constante. Faço isso quase como um ritual.
Ao nosso redor, temos um deserto cheio de
vulcões de lama – quando entram em erupção
podem atirar lavas de barro até quinze metros de
altura. Alguns geólogos acreditam que a lama é
medicinal e faz bem para pele, por isso muitos
55
turistas encostam seus carros alugados na estrada para sujar o rosto com o lama
cinza. Há aproximadamente dois mil anos, devido as constantes chamas que
brotavam do chão, o Azerbaijão ficou conhecido como o centro do Zoroatrismo
– religião dos adoradores do fogo – que foi propagado pelo profeta Zaratustra. A
religião zoroastrista no país está também relacionada ao fenômeno etimológico e
geológico dos vulcões de lama.
Voltamos ao ônibus. Graças à Alá, temos ar condicionado potente em seu
interior. Nunca quis tanto entrar num transporte alternativo na vida. Lá fora es-
tamos a mercê do exacerbado dia ensolarado. Não há árvores para refrescar o ar
e nos acolher com a confortável sombra.
Pegar a terceira garrafa d’água que agora está em temperatura ambiente.
Está ótimo. Acomodo-me em uma das primeiras poltronas do veículo ao lado
de Felipe, amigo de Brasília. Gritaria inicial antes de partirmos, Sabína e Danie-
la – as guias azerbaijanesas queridas – cantam algumas canções nacionais para o
pessoal do fundo do ônibus. Enquanto isso verifico as fotografias que tirei até o
momento e seguimos de volta a Baku pela estrada de mão dupla que é cercada
pela vegetação semi-árida, mas fotogênica para registros.
Ouço alguns ruídos com o final do meu nome. É sempre assim que identi-
fico quando estão me chamando de longe. Deve ser a gritaria. Continuo a prosa
com os que estão a minha volta. Antes que eu pudesse entrar num novo assunto,
percebo os amigos me encarando.
“ULISSES! ULISSES!” grita Kamran, um dos guias que nos acompanha no
regresso à capital.
De repente a gritaria se converte em silêncio. Se as pessoas ficam quietas
num ambiente de alegria como este, deve ser sério. Sem entendimento algum,
viro-me para a extremidade do ônibus porque a solicitação da minha pessoa é
real. Os primeiros pensamentos exploram centésimos do tempo e já imagino “o
que foi que fiz?”.
“ULISSES? ULISSES DO BRASIL! LIGAÇÃO PARA O ULISSES DO
BRASIL!” insiste o guia levantando o celular para o alto.
Ligação? Quem iria me ligar agora? É, deve ser sério. Seríssimo. Poderiam
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ligar no meu celular, não para o guia. Começo a ficar preocupado. A ligação é
para mim, mas atiro olhares de desespero para os amigos a minha volta. Enquan-
to Kamran caminha até mim, as piores cogitações surgem em minha mente de-
sesperada. Algo deve ter acontecido. Ninguém ligaria no telemóvel do guia para
saber como está a viagem. A chamada é inesperada e agressiva às minhas expecta-
tivas. Penso em minha família. As mãos tremem, a garganta seca como o chão do
deserto que pisei há algumas horas. Volto a pensar nas pessoas mais importantes
do universo para mim. Dessa vez em minha mãe. Se algo triste tenha acontecido,
como vou sair daqui e voltar para casa? Ainda estamos no início da viagem. Para
me ligarem aqui, algo bom não deve ser e todos continuam a me encarar curiosos
com a situação. Tomara que a ligação caia, seja trote ou um engano. Ingenuidade
a minha.
O guia se aproxima da minha poltrona. “É para você” e me entrega o celu-
lar. Pego o aparelho com rejeição, mas devo apanhá-lo. Pode ser a ligação mais
indesejada da vida. Detesto as possibilidades dantescas que atormentam minha
cabeça neste momento. A gente sempre pensa no pior. Enfrentemos o problema.
“Alô?” atendo falando em português convicto que a ligação vem do Brasil.
O ônibus está impecavelmente silencioso, mas a ligação é um pouco defi-
ciente e com alguns ruídos. O primeiro pensamento após um suspiro profundo
é “Espero que toda a minha família esteja viva”. Independente de qualquer coisa
é o que mais importa.
“Ulisses? É o Emil!” inicia em inglês a pessoa do outro lado da linha. “Você
será meu convidado hoje à noite ou não?”
O alívio de não ser um familiar cura a enxaqueca que iniciara há alguns se-
gundos. Ainda sem entender o motivo da ligação, está tudo bem.
“SIM! Eu aceito o convite” respondo impulsivo.
“Perfeito. Às oito horas passo em seu hotel” finaliza o rapaz azeri que acaba-
ra de me convencer a ingressar na experiência que eu estava a evitar.
A tensão da situação – que talvez pudesse acabar com a viagem – me aneste-
sia de tal maneira que aceito o convite de Emil sem pensar duas vezes. Eu nunca
quis evitar um telefonema em toda a minha vida como hoje. Nunca imaginei que
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receber uma ligação seria, a princípio, uma vivência traumática. Após o desespe-
ro, presumo que tudo deve ficar bem daqui para frente. Mas por via das dúvidas,
é melhor não me ligar no Azerbaijão.

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[Quarto contato]
Viagem de riscos?

I
mpulsos. Tem dias que tomamos decisões motivadas por sei lá o quê. Tem
dias que são diferentes dos outros. Tem dias que não temos qualquer conhe-
cimento do que pode acontecer. Tem dias que decidimos correr riscos.
São aproximadamente seis horas da tarde e em duas horas tenho um encon-
tro. Já está feito. Às vezes penso que a desconfiança em demasia é bobagem, mas
um pouco de ceticismo não faz tão mal.
Ao desembarcarmos no hotel, resolvo insistir nas dúvidas por mais que já
tenha me decidido. Dirijo-me em direção à Kamran para tirar mais informações
sobre tudo isso.
“O que você acha de eu viajar para Sumqayit com o rapaz que me ligou?”
pergunto. “Encontre com ele aqui no hotel. Não é uma boa ideia você viajar com
um estranho. Não vá!”, aconselha seriamente o guia.
Paro e reflito por alguns segundos. Um dos recepcionistas engravatados da
recepção do hotel me direciona um olhar de curiosidade sobre o que está haven-
do. Desisto dos pensamentos de desistência. Já está marcado. Se eu furar, estrago
tudo.
Um dos integrantes da delegação brasileira que acompanhara de longe a
situação no ônibus, pergunta-me sobre o que houve de fato. Norton é um jovem
alto, branco, barba fechada no rosto, uma mochila abundantemente nutrida de
broxes e brasões dos países que já visitou e um sotaque de quem viveu toda a vida
na cidade de São Paulo. O amigo viajante de carteirinha se interessa em ajudar
com a viagem à Sumgayit.
“Não se preocupe. Eu conheço muitos muçulmanos e eles adoram receber
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estrangeiros. Tenho certeza absoluta que será uma experiência incrível. Se você
quiser, eu te acompanho”, garantiu empolgado.
Contrato feito. Além de Norton, convido Felipe para me acompanhar tam-
bém. Todos seguem para seus respectivos quartos para descansar um dia de ca-
minhada sob o sol caucasiano. “Quando ele chegar, mando uma mensagem para
vocês avisando”, combino com os futuros companheiros da viagem independen-
te ao cronograma usual do ministério.
Meu colega argentino ainda não voltou para o quarto. Tenho sorte de di-
vidir este espaço com uma pessoa organizada, não há bagunça alguma na am-
pla suíte azerbaijanesa. Voltemos à realidade das próximas horas. Aproveito para
organizar os presentes que eu trouxe para Emil e me despejo na cama encapada
com intermináveis lençóis brancos. Um cochilo rápido para repor as energias
antes das aventuras que me aguardam na terceira maior cidade do Azerbaijão.
Caio no sono. Fecho os olhos, penso em minha decisão e tento imaginar como
será o encontro com o amigo azerbaijanês. Parte da minha mente quer repousar,
a outra metade insiste em se preocupar. Meus movimentos vão se acalmando aos
poucos e a respiração tranquiliza. Adormeço. Ingresso na imaginação dos sonhos
e esqueço de programar o despertador do telemóvel.
O telefone grita. Dou-me conta que tenho de levantar na terceira tentativa
do aparelho escandaloso. Não tinha despertador ativado, mas graças a alguém
querer me contatar, acordo.
“Senhor Ulisses?” inicia o recepcionista. “Você tem uma visita aqui no sa-
guão principal te esperando”.
Alcanço o celular rapidamente. Já são oito horas e quinze minutos. Socorro.
“Obrigado. Diga que desço em alguns instantes” respondo desesperado. Envio
mensagens urgentes aos amigos aos que provavelmente estão dormindo. Se eles
não acordarem, devo partir sozinho. Apanho a primeira roupa mais próxima, re-
corro à água do lavabo para lavar a face e tentar disfarçar o rosto amassado. Man-
do mais mensagens para os meninos, mas ainda não me respondem. Finalizo os
últimos preparos rapidamente e sigo em direção ao saguão principal.
Desembarco do elevador, avisto Norton sentado em um dos sofás redondos
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do hall de entrada. Obrigado pela pontualidade, desculpe o atraso. O celular api-
ta. “Ulisses, estou descendo em dois minutos”. É Felipe. Ufa, não vou sozinho.
Agora sim posso procurar Emil, que está próximo à porta giratória que dá acesso
ao hotel.
Devo estar cerca de vinte minutos atrasado e isso me envergonha um pou-
co. Infelizmente será a primeira impressão do trio de brasileiros. Culpa minha – e
do cansaço. Caminho em direção ao amigo azeri que me reconhece rapidamente.
“Olá. Tudo bem?” inicio sem graça. “Meu segundo amigo já está descendo”.
“Tudo bem. O nosso táxi está nos esperando lá fora” responde Emil.
Seguro a sacola com o presente de Emil com as mãos úmidas de suor frio.
Era para o encontro ser no enorme sofá confortável ao nosso lado. Sentaríamos
ali por algumas horas, eu falaria sobre a minha vida e o azerbaijanês contaria so-
bre curiosidades de seu país, eu entregaria os presentes, tiraríamos fotos e publi-
caríamos no facebook o registro do encontro. Mas não dessa vez.
Felipe regressa do elevador nos procurando. Sinalizo com as mãos. Esta-
mos aqui, amigo. Obrigado por vir. Apresento os amigos brasileiros para Emil e
seguimos em direção ao carro que nos aguarda há alguns minutos. Um giro de
noventa graus, olho para trás e a recepção do hotel vai ficando cada vez menor e
distante da minha vista.
O taxista nos espera na esquina com o pisca alerta ligado. Essa regra tam-
bém é utilizada aqui. Apertamo-nos no banco de trás e o motorista engata a pri-
meira marcha do câmbio automático do carro, vamos em frente.
Devido à comunicação apenas em inglês com o amigo azeri – que fala inglês
muito bem – percebo que sou muito mais simpático na minha língua materna.
Deve ser a timidez dos primeiros momentos. Gaguejo e a voz falha nas primeiras
respostas que dou a Emil que se interessa em saber o que estou achando do Azer-
baijão até o momento.
Ingressamos na estrada que nos levará até Sumqayit, uma das maiores cida-
des do país que foi fundada em mil novecentos e quarenta e nove. Como hoje é
sábado, acredito que muitas pessoas estão indo aproveitar o final de semana nas
cidades vizinhas, porque o tráfego está engarrafado. Aproveito para fotografar a
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pista cheia de ladas.
O telefone toca e Emil atende afobado o seu celular idêntico ao meu. Inicia-
-se o falatório que não entendemos absolutamente nada, só conseguimos pescar
algumas possíveis letras como s, r, t. É estranho não compreender o que as pessoas
falam e o diálogo em azeri nos indica o quão longe estamos de nossas referências,
da nossa língua portuguesa. O braço direito do amigo estrangeiro deixa uma de
suas orelhas e devolve o aparelho celular ao seu bolso, o telefone terminara.
“Era a minha mãe. Ela estava perguntando se já era o pôr-do-sol para poder
comer. Estamos no período do ramadã” explica Emil. “Mas ainda não está na
hora da ceia, temos de esperar mais uma hora até o sol ir embora para nos ali-
mentarmos”, finaliza.
O período do ramadã é o nono mês do calendário islâmico em que os se-
guidores passam o dia de jejum ritual e só podem se alimentar após o pôr-do-sol
de cada dia. Neste período especial, é celebrado a revelação do Corão, o livro
sagrado do islamismo ao profeta Maomé. Inclusive o calendário utilizado pelos
muçulmanos é lunar, portanto a data deste período varia de acordo com o ano.
Em alguns anos o ramadã dura vinte e nove dias, outras vezes dura trinta dias.
O Corão diz que os muçulmanos devem jejuar durante o ramadã a partir
da puberdade e, se por ventura quebrarem o ritual por algum motivo, devem
alimentar uma pessoa necessitada como perdão à celebração da data.
Neste momento percebo que a próxima refeição pode demorar um pouco.
Quando o sol se põe, os fiéis seguem até a mesquita para rezar e depois inicia a
ceia. Alá diz que o homem deve ir até a mesquita rezar e a mulher pode realizar
as rezas em casa mesmo.
Até o momento está tudo bem. Continuamos o trajeto tranquilamente,
Emil é simpático e vai indicando os pontos turísticos que estamos passando por
perto dela. A aprendizagem não acaba nunca – ou é mais intensa por aqui. Cru-
zamos a fronteira municipal, já estamos no território de Sumqayit, a cidade que
também é banhada pelo mar Cáspio. Nisso, passamos em frente ao monumento
“A pomba” ou Goyaerçin em azerbaijanês, uma escultura branca no formato de
pássaro. Um tanto artístico.
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Estacionamos. Hora de se retirar do táxi. Desembarcamos do automóvel
com poucas certezas, mas a beleza da cidade me desconcentra do medo e cautela
que eu estava sustentando em minha cabeça. Parece até que sou conhecido por
aqui, muitos senhores e senhoras olham curiosos em nossa direção. Ser estrangei-
ro em algum lugar chama a atenção. Azeris que regressam do mercado do outro
lado da avenida nos observam, comentam sobre a gente e seguem em direção as
suas respectivas atividades após minutos de especulação sobre quem somos.
Emil segue em direção à direita da avenida. Entramos num pequeno par-
que de diversões. Miro a câmera do celular para a pequena montanha-russa que
tem alguns carrinhos em movimento com mães que acompanham seus filhos, as
fotos saem tremidas. Desisto do registro eletrônico, continuo a aproveitar com a
documentação da memória e o sol já está quase se pondo.
Há uma imensa praça de alimentação externa, chão de pedrinhas, mesas e
cadeiras com decoração de charretes que remetem ao período medieval no país,
além de espaços para refeições dentro de casas de madeira disponibilizadas pelos
restaurantes. Impossível não se encantar com a energia deste lugar.
Somos guiados a entrar em uma das casinhas de madeira, onde há uma
mesa grande e cadeiras rústicas. Percebo que dois rapazes nos aguardam lá dentro
de pé. Não temos tempo para cogitar quem é a dupla.
“Eles são meus amigos e os convidei para conhecer vocês”, explica Emil.
Cumprimentos iniciais, acomodamo-nos em uma das poltronas da larga
mesa de madeira maciça, sobram algumas vagas. Estamos entre seis cavalheiros.
Temos uma presença especial. Um dos convidados, Ilham Zakiyev, além de ami-
go do Emil, é campeão mundial e europeu paraolímpico de judô e cheio de títu-
los mundiais. Não enxergar é uma das razões de motivar ainda mais este campeão
no tatame e na vida. O judoca retira do bolso seu aparelho celular e compartilha
conosco alguns vídeos de suas performances, inclusive um dos vídeos mostra o
azeri contra um brasileiro.
“Quem será que vai ganhar?” brinca Ilham. Nesse torneio o nosso repre-
sentante perde para o judoca azerbaijanês. Está tudo bem, estamos entre amigos.
Todos riem.
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O sol se põe e as mesquitas do bairro começam a chamar
os fiéis para o momento da oração. Os moços azerbaijaneses
levantam e avisam que voltam em alguns minutos. Muitas pes-
soas deixam o parque seguem em direção à mesquita, inclusive
funcionários dos restaurantes e lanchonetes, o momento é re-
almente sagrado.
Após aproximadamente vinte minutos de espera, nossas
únicas referências na cidade retornam ao restaurante Turan,
onde estamos acomodados.
Garçons trazem uma jarra de uma bebida típica, o Ayran.
Nossos copos são abastecidos exageradamente. Encaro o pri-
meiro gole e para um paladar brasileiro, tem um leve gosto
de leite salgado. O refresco é um iogurte com notas de sal,
era consumido por nômades turcos há milhares de anos e faz
parte das refeições até hoje, não apenas na Turquia, mas no
Azerbaijão e em países vizinhos. Como um viajante novato,
já havia trabalhado meu cérebro para experiências gastronô-
micas exóticas. Este refresco é muito consumido por turcos e
azeris. Segundo gole, a bebida vai melhorando e agradando aos
poucos o meu paladar. O importante é experimentar. Ocasiões
como hoje merecem total dedicação na experimentação de sa-
bores novos. Confesso que ontem li um artigo que falava sobre
rejeitar comida ou bebida em outro país e o resultado não é
muito bacana. Ainda bem que a curiosidade está ao meu favor
no jantar que está iniciando.
Um tacho aquece tomates, berinjelas, batatas, pimentões
verdes e lascas de carne bovina. Há fatias de pães para reche-
armos com os ingredientes que estão sendo assados. Estamos
familiarizados com todas as opções que estão sob a mesa, co-
meçamos a nos servir do saboroso jantar azeri.

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O jantar já
está à mesa.
Bom apetite!
Foto: Ulisses
Lisboa
A mesa vai ficando farta de opções. Pedaços generosos do
tradicional pão da região, suco orgânico em temperatura am-
biente com pedaços de cerejas cornalinas produzidas no país,
folhado assado recheado de carne com pequenos cubos de ce-
bola, verduras e legumes frescos.
Lá fora caixinhas de som do parque tocam músicas de
cantores nacionais, anoitece na cidade de aproximadamente
trezentos mil habitantes e o vento das montanhas refrescam o
encontro que, bobagem era a minha de pensar que seria arris-
cado. O maior risco é engordar alguns quilos com o banquete
que estamos devorando e ainda tem mais comida chegando.
Ao ver a hospitalidade impecável de Emil, culpo-me por
ter pensado que essa experiência poderia ser perigosa ou que
algo poderia dar errado. Talvez fosse a ingenuidade de confiar
num estranho na primeira viagem para um destino tão distante
de casa. De qualquer maneira, está tudo bem.
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Viro-me para visualizar a nossa volta. Crianças cor-
rem ansiosas para brincar no carrossel, adolescentes andam
em grupos, jovens entram no restaurante ao lado, uma se-
nhora tira foto de seus netos. Sorrisos em comum entre
essas pessoas, felicidade perceptível em suas faces.
Dedico-me na observação sobre o que está a acon-
tecer a minha volta. O barulho do parque ao lado, o som
das canções, o jantar, os pratos típicos, as louças clássicas, o
restaurante, o encontro com os novos amigos azerbaijane-
ses, a hospitalidade, a bondade, as coincidências da vida, a
cidade de Sumqayit, o Azerbaijão.
Se eu recapitular alguns meses atrás, recordo como
recrutei Emil para ser entrevistado por mim. Eu precisava
de uma fonte azerbaijanesa para o texto que eu enviaria ao
concurso, mas eu não conhecia absolutamente ninguém
no país. Lembro-me de pesquisar nomes exóticos na pá-
gina da Embaixada do Azerbaijão no facebook e mandar
mensagens para aproximadamente trinta pessoas. Apresen-
tava-me, explicava a situação e perguntava cuidadosamente
se poderiam responder algumas perguntas sobre a cultura
do país. Muitos visualizavam, pouquíssimos respondiam.
Emil foi o único que se prontificou a realmente me ajudar.
Naquele momento, enviei um roteiro de perguntas
à fonte que se mostrava prestativa em contribuir para a
reportagem. Em menos de vinte e quatro horas o entre-
vistado me devolvera um documento com respostas tão
completas que era triste cortar fragmentos e filtrar as infor-
mações. Por outro lado, uma boa entrevista nos motiva a
ingressar profundamente no assunto do texto que estamos
a escrever. Foi o que eu fiz. A recompensa por todo traba-
lho é estar no país que eu tanto pesquisei e frente a frente
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com a fonte que encontrei aleatoriamente na internet.
É interessante recordar como foi a trajetória para che-
gar até aqui, as curiosidades que eu tinha e as expectativas
que estão sendo superadas a cada dia. Durante alguns se-
gundos que olho para fora do restaurante, consigo imagi-
nar tudo isso. Mas voltemos para a noite de hoje.
A prosa mescla entre pautas brasileiras e azerbaijanas.
Pratos típicos que estamos a comer, futebol, gírias, viagem
e um pouco de política. Por mais que sempre estejamos
informados sobre os assuntos e discussões atuais, conside-
ro-me leigo para discutir política com propriedade. Toda-
via nessas oportunidades é considerável demonstrar pelo
menos algum posicionamento. Emil nos conta a trajetória
de governantes de seu país, como as significativas contri-
buições de Heydar Aliyev e Ilham Aliyev para o Azerbaijão.
Um enorme recipiente de metal no formato de taça
é disponibilizado, é a chaleira responsável pela produção
do chá azeri. A primeira leva é um licor concentrado que
posteriormente é diluído na hora com alguns mililitros de
água e o chá se mantém incorporado sem ficar aguado.
Um pequeno pote de cobre acomoda cubinhos de açúcar
para adicionarmos ao copo de chá quente que, mesmo no
verão, é o melhor sabor que eu poderia experimentar em
toda vida.
O chá azerbaijanês é uma das bebidas mais consu-
midas no país. É bastante comum encontrar pela rua uma
O tradicional chá azeri.
Foto: Ulisses Lisboa
roda de amigos compartilhando entre eles um litro de chá,
que é apreciado para matar a sede como água. Além do
charmoso cubo de açúcar, o chá também pode ser servido
com lascas de limão.
A bebida quente além de deliciosa é digestiva. Após
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um banquete completo, o chá é a opção mais viável para finalizarmos o encon-
tro tão agradável que tivemos. Peço a um dos simpáticos garçons que tem uma
estatura similar a da minha irmã mais nova para que tire uma foto nossa. Levan-
tamo-nos, sorrimos e xis.
Antes que pudéssemos sacar nossas carteiras, somos vetados.
“Imagina. Vocês são meus convidados. Deixa que eu pago”, impõe Emil que tira
algumas notas de manats para acertar a conta.
Despedimo-nos dos amigos azerbaijaneses. Um aperto de mão, um abraço,
um sorriso no rosto e um “Espero vê-los em breve e da próxima vez, no Brasil”.
E somos conduzidos até o carro do taxista que nos espera na esquina ao lado do
parque. Emil embarca no veículo conosco para nos deixar no hotel como combi-
nado por mensagem.
Deixamos Sumqayit. O motorista sintoniza o rádio e somos presentados
com músicas nacionais animadas, pergunto se conhecem a música que está to-
cando. Anoto o nome da artista azeri.
Seguimos rindo no banco de trás. Lembramo-nos do medo que eu estava
dessa experiência. Noite que, até algumas horas atrás era um grande risco. E era.
O maior risco era simplesmente fazer bons amigos no Azerbaijão.

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[Quinto contato]
Ressaca de Gratidão

O
ito horas e dez minutos da manhã, domingo. Acordo, mas continuo es-
parramado na cama encapada de lençóis com aroma de lavandas frescas.
Os primeiros pensamentos enfatizam as sequelas positivas da experiên-
cia que tive ontem. É uma ressaca boa. Escrevo um texto rápido de seis parágra-
fos no bloco de notas para postar com a foto que tiramos em Sumqayit, desperto,
banho-me. “Até mais, colega de quarto”, retiro-me da suíte.
“Soube que você foi ao encontro com o rapaz azerbaijanês. Como foi?” ini-
cia curiosa Francine, a ruiva com um sotaque forte porto-alegrense. A mesa do
café da manhã é composta por rostos interessados em saber o que houve na noite
de ontem, afinal todos ficaram preocupados com o passeio independente.
“Foi uma das experiências mais incríveis que já tive”, respondo feliz. Todos
se espantam satisfeitos por ter dado tudo certo.
Hoje é domingo, mas o cronograma continua normalmente. Aliás, a pro-
gramação deste quarto dia de viagem está transbordando excursões. Em alguns
minutos embarcaremos rumo ao lugar que explica o porquê deste país ser nome-
ado como a Terra do Fogo.
O verão caucasiano não dá trégua no período matutino. Abasteço a mochila
com duas garrafas d’água para combater a desidratação que pode ocorrer neste
clima quente. Alguns meninos da Hungria observam que solicito as garrafas de
água na praça de alimentação do hotel e, após eu me retirar, percebo que seguem
meu exemplo. Garanto meu espaço no ônibus e seguimos em direção à primeira
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parada, o Templo de Ateshgah.
Os primeiros destinos que visitaremos em alguns instantes
ficam localizados no subúrbio de Surakhany – trinta quilômetros
da cidade de Baku –, aproximadamente vinte minutos de viagem.
O Templo de Ateshgah foi nomeado pela UNESCO como
patrimônio mundial em mil novecentos e noventa e oito pelo seu
território possuir o fenômeno natural de brotar chamas do solo.
A façanha acontece através do gás natural subterrâneo que em
contato com oxigênio, forma-se fogueiras naturais. Desde então,
o Azerbaijão passou a ser conhecido como a Terra do Fogo

Uma das entra-


das do Templo
de Ateshgah.
Foto: Ulisses
Lisboa
Ateshgah foi construído em meados do século XVII e con-
tou com a presença de diversos povos e religiões ao longo de sua
história, como hindus, sikh, persas e os zoroastristas, os adorado-
res do fogo que estabeleceram um significado místico à presença
das chamas. Além disso, o nome “Ateshgah” significa “casa de
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fogo” em persa, civilização que também fez parte da história deste
lugar.
É formidável como o fogo realmente brota do chão. Muitas
pessoas acreditam que se você pular as chamas estará se livrando
dos pecados que cometera em toda vida. É o rumor que o guia
nos conta e todos começam a pular e atravessar as fogueiras natu-
rais. Aproveito para entrar na brincadeira também, pulo e espero
que seja verdade.
O complexo pentagonal tem um pátio cercado por pequenas
casinhas internas para os monges da época e um altar ao centro
onde há uma enorme chama de fogo – lugar que hoje as pessoas
pulam para se livrar dos pecados. A estrutura religiosa teve pere-
grinação de centros filosóficos de adoradores de fogo, que esta-
vam envolvidos no comércio na área do Mar Cáspio. O templo
foi transformado em um museu em mil novecentos e setenta e
cinco.
Atualmente as tradições dos adoradores do fogo – zoroas-
tristas – permanecem fortes e respeitadas por todo o país, como o
próprio feriado anual de Novruz que marca o inicio da primavera
persae acontece no equinócio em março. A partir disso, no Azer-
baijão comemoram o feriado como o primeiro dia do ano.
Fotos oficiais do grupo inteiro - alguns minutos até todo
mundo se ajeitar para o registro. Seguimos a pé para o próximo
destino. O cenário que mostra até hoje como era a vida medieval
na região do país nos espera, o Complexo e Museu arqueológico
e etnográfico de Gala (Qala).
Também conhecida como a aldeia Gala, o complexo está no
centro da península Absheron, localizada no leste do Azerbaijão.
A parte mais antiga da vila foi declarada uma reserva etnográfica
e histórica em mil novecentos e oitenta e oito. Na região, há du-
zentos e dezesseis monumentos históricos, arqueológicos e arqui-
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tetônicos. Além disso, Gala possui restos
de um castelo, três balneários, cinco mes-
quitas, mausoléus, abóbadas, cisternas e
mais de cento e setenta casas.
Ingressamos ansiosos na ampla re-
gião rural, construções no padrão de cor
bege e marrom claro. Podemos explorar
a área rica em coleções de monumentos
que ilustram incrivelmente a arquitetura
medieval.
Avisto no canto esquerdo da vila um
espaço com animais. Sigo em direção aos
bichos e passo por pequenas cabanas ocas
similares às indígenas. Encontro ovelhas,
cabras, pequenos cavalos e camelos. Apa-
nho um pouco de capim e alimento o ca-
melo que pôs a cabeça para fora da cerca.
Após o lanchinho da manhã que disponi-
bilizo aos bichos, subimos em umas das
torres ao lado de Gala – um pouco similar
à Torre da Donzela e somos presenteados
com a vista panorâmica da região. Tele-
móvel com pouca bateria, faço anotações
num pedaço de papel que estava em meu
bolso.
Como quase todo o território do
país, Gala também tem existência desde
a Idade da Pedra e povoada desde o ter-
ceiro milênio antes de Cristo. A idade da
região é comprovada através das escava-
ções arqueológicas realizadas na aldeia.
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Durante a pesquisa na vila, foram encon-
trados resíduos de cerâmica, gravuras ru-
pestres e ferramentas de trabalho utiliza-
das há milhares de ano. Tais descobertas
sustentam a teoria de que a maioria das
aldeias clássicas ao redor de Baku foram
construídas em épocas exacerbadamente
antigas.
O Complexo e Museu Arqueológi-
co e Etnográfico foi criado em Gala no
verão de dois mil e oito. O projeto ocor-
reu por iniciativa pessoal da Presidente da
Fundação Heydar Aliyev, primeira dama
do Azerbaijão, Mrs. Mehriban Aliyeva.
Voltamos ao ônibus, entramos na
entrada de mão dupla. Trajeto de quinze
minutos, paramos novamente. Dessa vez
para almoçar no restaurante que já nos
aguarda com o cardápio completo servi-
do sob a mesa. Azeitonas coloridas, pasta
de berinjela, legumes, verduras, pães as-
sados no tacho, fatias de queijo de cabra,
sucos de frutas da estação e garrafas da
Visão panorâmica do alto do soda georgiana de pera – tudo em tempe-
Complexo e Museu Arqueo-
lógico e Etnográfico de Gala
ratura ambiente, inclusive os refrescos.
(Qala). Foto: Ulisses Lisboa A digestão da refeição é deitar no
gramado que cerca o restaurante, falar da
vida com amigos que fiz até o momento
por aqui e cochilar por alguns minutos.
Lugar agradável para trazer pessoas espe-
ciais.
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Partimos em direção ao hotel na capital para
uma pausa de trinta minutos. Tempo estimado para
todos colocarem roupas adequadas para as visitações
religiosas no período matutino. Meninos com calça,
meninas com lenço e decote nem pensar. Esta visita
não é obrigatória para aqueles que se sentem descon-
fortáveis em visitar uma mesquita, uma igreja ortodo-
xa russa e uma sinagoga. Será a minha primeira vez
nas três.
Antes que pudéssemos entrar na bela mesquita
Taza Pir, ajeitamo-nos às regras do lugar. As meninas
aprumam os lenços na cabeça e todos tiram os sapa-
tos, sandálias, tênis e chinelos para entrarmos nas de-
pendências do local que os mulçumanos realizam seus
cultos religiosos.
A mesquita Taza Pir foi construída em mil nove-
centos e cinco pelo arquiteto azeri Ziver Ahmedbeyov
e em seu interior há uma área de mil e quatrocentos
metros quadrados decorados por pinturas tradicionais
orientais, além de acabamentos em ouro.
O entendimento da arquitetura islâmica pode
ser definido pelo poder de Alá, que é evocado por de-
senhos que repetem os temas e sugerem ao infinito.
Além disso, as construções de mesquitas se desenvol-
veram fortemente após a morte do profeta Maomé,
formadas a partir de modelos romanos, egípcios, per-
sas e bizantinos.
No ano de seiscentos e noventa e um, o surgi-
mento de edifícios islâmicos se intensificou com a
construção do Domo da Rocha em Jerusalém – um
dos sítios mais sagrados do mulçumano – que apre-
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senta traços abobadados, um domo circular e repetiti-
vos padrões decorativos.
Somos o único grupo de turistas na mesquita. E
que grupo. Aproximadamente oitenta estrangeiros. Et-
nias e religiões diferentes, mas todos interessados em
conhecer de perto a fé islâmica.
O centro do teto oco da mesquita é caprichosa-
mente desenhado à mão por pinturas imperceptíveis
nos detalhes de longe. Todavia através da visão aqui de
baixo posso visualizar o conjunto de pequenos desenhos
que encantam quem vem rezar por aqui.

Adornos enfeitam
o teto da mesquita.
Foto: Ulisses Lisboa

Há alguns rapazes pressionando seus rostos sob


o carpete estampado, que é tão macio que afundamos
nossos pés ao pisá-lo. Durante a reza, os muçulmanos
ajoelham e levam o rosto até o chão inúmeras vezes.
Ando com cuidado para não atrapalhar o momento sa-
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grado dos muçulmanos. Evito fazer barulho para não
despertar a soneca da tarde de alguns fiéis que se es-
parramam sob o confortável chão para descansar após
o almoço. O silêncio absoluto da mesquita traz tanta
paz que adormecer em qualquer canto daqui é uma
tarefa fácil.
Sigo sozinho explorando a enorme mesquita e
encontro uma estante coberta de livros – todos em
árabe. Encontro um escritório, paredes com pregos
que sustentam os masbahas – apetrecho parecido com
um rosário de uso tradicional entre os fiéis da religião
islâmica. Em outros locais como na Grécia, o objeto é
conhecido como kombolói, chamado também de ter-
ço grego, terço árabe ou terço islâmico.
É válido ressaltar que cerca de noventa e um por
centro da população azeri se declara como muçulma-
nos, tornando assim a religião predominante em todo
país. O restante da estatística é divida entre o catolicis-
mo, judaísmo, zoroastrismo, hinduísmo e ateísmo.
Permanecemos por aproximadamente uma hora
e meia perambulando pelo espaço sagrado islâmico,
algumas fotografias, vídeos e vontade de tirar um rá-
pido cochilo nesse carpete fofo como algodão. Guias
sinalizam para retornarmos ao veículo que deve nos
levar para a próxima parada religiosa, a igreja ortodoxa
russa.
Alguns minutos de tráfego pelo trânsito de Baku
para chegar até a Catedral da Santa Myrrhbearers.
Construída em mil novecentos e nove, a igreja foi um
dos primeiros lugares de culto religioso ortodoxo no
país. Durante a invasão nazista, a catedral foi fechada e
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tornou-se um depósito para guardar armas da guerra.
Já no ano de mil novecentos e noventa, o edifício foi
atingido por mísseis disparados pelas tropas soviéticas
e deixou o templo religioso seriamente danificado. No
ano seguinte as obras de restauração iniciaram e a rei-
nauguração aconteceu apenas em dois mil e três.
Atualmente a Catedral da Santa Myrrhbearers
possui as relíquias de St. Bartolomeu Apóstolo – ru-
mores dizem ter sido crucificado perto da Torre Don-
zela, que está hoje no centro da cidade de Baku.
O cristianismo no Azerbaijão é uma religião mi-
noritária – aproximadamente três por cento da popu-
lação. Por todo o país há igrejas ortodoxas e apostó-
licas, além de pequena comunidade de protestantes
também.
Um dos padres nos aguarda na entrada da cate-
dral. Batina preta, terço de ouro no pescoço, sapatos
pretos engraxados, barba rasa e devido ao cabelo lon-
go, um coque que deve ter sido feito com pressa. O
padre nos diz uma pequena frase em algum idioma
desconhecido. É em russo e os guias traduzem a frase
imediatamente para o grupo. “Sejam bem vindos, me-
Fiéis cantam na ninos e meninas”.
Catedral da Santa
Myrrhbearers. Foto:
Já está na hora da banda da igreja tocar e cantar
Ulisses Lisboa para os fiéis. Somos surpreendidos com as canções reli-
giosas russas que, mesmo sem entender absolutamente
nada, fazem bem aos nossos ouvidos. Uma pianista,
três mulheres e um rapaz são responsáveis pelas músi-
cas que são privilegiadas com a acústica da catedral e
arrepia quem aproveitou a tarde de hoje para vir aqui.
Os objetos, móveis e lustres banhados a ouro ilu-
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minam a decoração do edifício que brinca com a paleta de
cores em dourado, azul e branco. O teto reconta os traje-
tos de Jesus e seus ideais.
Confesso que me sinto um pouco desconfortável de
apanhar a câmera e dispositivos móveis da mochila em
templos religiosos. Há um grupo de senhoras na faixa etá-
ria de sessenta a setenta anos, todas com um lenço sob a
cabeça e um terço entrelaçado nas mãos. Ainda que este-
jam concentradas em suas orações, em alguns momentos
observam os movimentos dos intrusos com câmeras fo-
tográficas. Mesmo assim, foco em gravar cautelosamente
as canções que ecoam fortemente pela Catedral da Santa
Myrrhbearers.
Devido ao movimento, uma senhora grisalha se colo-
ca a postos da lojinha da igreja. Terços, chaveiros, imagens
de Deus, adesivos, camisetas e diversos tipos de souve-
nir religiosos. Encontro um incenso de carvão para trazer
bons fluidos ao lar por um manat – cerca de três reais. Re-
tiro algumas moedas do bolso para a aquisição e deposito
nas mãos trêmulas e enrugadas da simpática russa que me
atendera.
E, finalmente, dirigimo-nos para o local de culto
judaico, a Sinagoga. No Azerbaijão, o primeiro edifício
judaico foi construído em mil oitocentos e trinta e dois.
Embora a religião não seja predominante por aqui, os ju-
deus têm uma participação efetiva há muito tempo no
contexto histórico e religioso do país.
Hoje estamos ingressando na Sinagoga de Ashkenazi,
equipada com apetrechos em sua fachada contra terroris-
mo, o templo religioso fica próximo ao centro da cidade.
Antigamente o espaço era um depósito da defesa civil e,
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com o passar do tempo o prédio foi ficando danificado.
Alguns anos depois, o edifício foi restaurado e passou a ser
uma das sinagogas mais importantes do país.
Rapazes barbudos e extremamente educados nos re-
cebem. O rabino – mestre religioso da sinagoga – não
está presente no momento, mas diversos colaboradores
nos acompanham.

Recepção tradicional
judaica - Foto: Ulisses
Lisboa

O local é cuidadosamente decorado com palcos e


poltronas de madeira maciça e cortinas pesadas de veludo
roxo, tapetes azerbaijaneses, além de alguns brasões com
o símbolo judaico. Há cadeiras pelo salão similares às de
igrejas, assim como livros sagrados espalhados pelos as-
sentos.
O fim da tarde chega e após cerca de uma hora ex-
plorando o local, deixamos o espaço de reza e reuniões
religiosas dos judeus em silêncio. Retornamos ao ônibus
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que nos leva até o hotel em menos de quinze minutos.
“Agora todos vocês tem tempo de lazer. Aproveitem e até amanhã”, indica
a guia Gunel Hamzayeva. Morena, sobrancelhas fortes e sempre sorridente às
nossas demandas usuais similares às de crianças de sete anos de idade – “estamos
com sede”, “onde é o banheiro?”, “o almoço vai demorar?”
Somos recepcionados no hotel com chá azeri. Dessa vez, gelado. Duas op-
ções para os indecisos. Um é verde e o outro é vermelho escuro. Ambos deliciosos.
O copo é pequeno e contém aproximadamente seis goles profundos. Agradeço
ao garçom moreno que está com um terno impecavelmente passado e engoma-
do.
Sigo cansado para o meu quarto, mas feliz pela trajetória que percorri ao
longe do dia de hoje. Presumo que ainda estou digerindo as impressões das visi-
tações do roteiro deste domingo. As chamas que brotam do chão, os adoradores
do fogo, o sítio etnográfico, os animais, a diversidade religiosa e toda a bagagem
histórica deste país que não acaba nunca. O universo realmente é fascinante.

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[Sexto contato]
Pé na estrada, rumo ao interior

S
ete de julho de dois mil e quatorze. Ainda deve ser de madrugada no Bra-
sil, mas recebo muitas mensagens de amigos e familiares. “Que fotografias
incríveis. Mas você está na Europa ou na Ásia?”. Estou entre os dois conti-
nentes e devido à localização transcontinental do Azerbaijão, o país tem influên-
cias dos dois lados. O contraste arquitetônico entre o clássico e o moderno são
exemplos disso.
O intuito do concurso de redação em nos trazer para cá é promover o inter-
câmbio entre os países com o Azerbaijão e divulgar. Funciona mesmo. Agora que
as pessoas conseguem visualizar através das minhas fotografias como é este país,
muitos se interessam em saber mais. A beleza cultural azeri é a culpada disso. Não
tem como não se identificar e querer se envolver.
O sexto contato inicia dentro do ônibus que percorre a estrada numa velo-
cidade de aproximadamente setenta quilômetros por hora. A viagem levará três
horas e vinte minutos. Lá fora o ar seco atravessa os edifícios beges azerbaijaneses.
Aqui dentro o ar condicionado gela a pele e tranquiliza a respiração. Está tudo
bem para o trajeto de algumas horas.
Acordei atrasado, esqueci que hoje viajaríamos para Gabala (Qəbələ), cida-
de que ficaremos hospedados pelos próximos três dias. Amontoei tudo o que vi
pela frente e coloquei na mala. Tomei café com pressa e vim para o ônibus com
a cara amassada. Voltaremos para o mesmo hotel em Baku após os três dias no
interior do país, mas tivemos que retirar todos os nossos pertences.
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Duzentos e dezoito quilômetros separam Baku
da cidade que estamos indo. Com mais de dois mil
anos de idade, Gabala é a cidade mais antiga do país
e durante novecentos anos era a capital da antiga re-
gião da Albânia caucásia. Afirmações citadas nas obras
de historiadores antigos do primeiro século. Qabala,
Gabala ou se preferir Qəbələ em azeri, está localizada
numa área montanhosa e rica em plantações de nozes
e castanhas.
Durante o período feudal, a região da cidade foi
tomada pelo governo de Shirvanshah – que construí-
ram o palácio na Cidade Velha em Baku que visitei há
alguns dias – no ano de mil cento e vinte.
Se visualizarmos de acordo com referências geo-
gráficas, estamos seguindo em direção à fronteira com
a Rússia, país que além de compartilhar o idioma com
muitos azeris, também teve grande influência na his-
tória azerbaijanesa. Por todo país, é muito comum as
pessoas falarem russo, inclusive em cidades do interior
mais próximas à Rússia.
A estrada árida nos dá acesso às demais cidades
da região, rotatórias, cruzamentos e muitos quilôme-
tros para chegar até o nosso destino final. A beleza exó-
tica lá fora faz a gente retirar as câmeras fotográficas
da mochila e arriscar alguns registros atrás do vidro da
janela que não abre. A vegetação diversa banha todo o
nosso caminho, gramíneas corajosas enfrentam o sol
de trinta e dois graus além da poeira que os veículos
levantam ao passar por elas – certamente ansiosas por
um bom dia de chuva para hidratá-las.
Estou na terceira poltrona da coluna oposta ao
94
motorista. Observo que um dos guias entra animado
na cabine do senhor barbudo que está nos conduzindo
com um pen drive em mãos. O jovem pluga o dispo-
sitivo móvel no aparelho de som do ônibus e volta
sorrindo. Identifico de longe o início da música que
parece familiar aos meus ouvidos. “Desejo a todas ini-
migas vida longa” - Começa a tocar Valesca Popozuda.
Todos os brasileiros presentes gargalham.
“Música brasileira!” indica animado Kamran, o
guia azerbaijanês.
Muitas pessoas compartilham boatos de que a
cultura brasileira é muito querida por todo mundo.
Eu não sei no mundo inteiro, mas posso falar sobre o
assunto aqui no Azerbaijão. A situação deste momen-
to pode explicar o carinho que as pessoas têm pelo
Brasil.
A viagem é divida entre cochilos rápidos, alguns
goles na garrafa de água que trouxe, registros da estra-
da fotogênica e ouvir as cantigas azerbaijanesas canta-
das pelas guias. E chegamos.
Hotel Qafqaz Karvansaray. Eu mal entro nas de-
pendências do edifício e já pressinto o aroma da aco-
Ruas estreitas da cidade modação cem estrelas. Antes que pudéssemos entrar
de Gabala. Foto: Ulisses no prédio, somos surpreendidos. Garçons engomadís-
Lisboa
simos surgem com bandejas cheias de refrescos desco-
lados com canudos festivos. Além disso, somos bom-
bardeados com sorrisos de boas vindas.
Formamos uma enorme fila para o check in. Pas-
saporte em mãos e nenhum manat é necessário. Sou
informado que meu colega de quarto mudou. Dessa
vez é um brasileiro, o Norton.
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Eu estava certo em relação às pré-impressões do ho-
tel. Uma larga varanda é coberta com um teto de guarda-
-chuvas coloridos, além de chafarizes com luzes coloridas
que mudam a cor da água a cada minuto.
O quarto é compacto, mas luxuoso. Cortinas, mó-
veis, almofadas e roupas de cama trabalhadas em roxo e
dourado. O decorador daqui gosta de impactar os hós-
pedes. Deixo os pertences ao lado da cama e sigo para o
almoço no enorme restaurante do hotel.
Refratários de metal com tomates impecáveis, tange-
rinas do tamanho de melancia bebê, azeitonas amarelas,
fatias finas de carne de carneiro, frango assado com singe-
los cortes de batata, cebola roxa marinada em especiarias
locais e um copo suco de pêssego com três cubos médios
de água sólida.

Tomates produzidos no
interior do país. Foto:
Ulisses Lisboa
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Após a comilança os grupos são divididos
voluntariamente em pequenas facções: os cansa-
dos que seguem para descansar em suas suítes,
os animados que colocam roupas de banho para
aproveitar a piscina e os exploradores que se-
guem para conhecer as redondezas do hotel. En-
contro-me na última opção. Junto-me ao meu
grupo. Sanet, a simpática sul-africana com um
tom de voz encantador. Judith, a húngara alter-
nativa que participa de uma horta comunitária
em Budapeste. João, carioca, jovem economista
e muitas piadas em comum. E, Felipe, também
brasileiro, futuro diplomata e um sotaque da ca-
pital do nosso país.
Caminhamos pelo bairro. Os postes que
sustentam a rede elétrica são de metal preto e
acompanham pequenos vasos de flores, além da
pintura fresca na calçada. Pequenas lojas de fru-
tas, mercadinhos, barbeiros, posto de gasolina e
alguns bares. Total estilo de cidadezinha do inte-
rior.
Ao aparecermos, percebemos que somos
observados por toda redondeza. Ser estrangeiro
chama a atenção das pessoas que pararam suas
atividades por minutos para observarem quem
somos nós. Rapidamente identificam que somos
diferentes. Crianças apontam, senhoras dão uma
pausa na escolha das cebolas na banca da esqui-
na de verduras e alguns taxistas ousam apontar o
aparelho celular em nossa direção para tirar foto.
Leve sensação de estar fazendo algo de errado,
97
mas por mais que a situação seja inesperada, é pura
curiosidade. E diferente para mim.
Entramos involuntariamente num pequeno
mercado sem qualquer motivo. Simplesmente en-
tramos. Os funcionários estavam lá fora e já nos
conhecem pelo falatório que tá acontecendo entre
os locais. Pouquíssimos produtos que encontramos
no Brasil, quase nenhuma referência além da coca-
-cola. O passeio no mercado fica mais interessante
por isso. Doces, vodcas russas, pacotes de chás aze-
ris e biscoitos exóticos. Apanho uma garrafa de re-
frigerante de maçã verde e um salgadinho de carne
fresca. Depois volto para comprar mais coisas di-
ferentes. Descubro o sabor dos produtos de acordo
com o desenho das embalagens e dá certo. Presu-
mo que a nossa presença o deixa, de certa forma,
feliz. Pode ser que seja “Oh, os estrangeiros estão
no meu mercado”. Percebo com o sorriso estampa-
do em seu rosto durante todo o tempo que passo
minhas poucas compras. Pelo menos sei agradecer
em azeri. Ganho mais um sorriso grande.
Saímos e as pessoas continuam preparadas
para nos observar mais. Parece que tem mais agora.
Talvez tenham convidados mais amigos para nos
ver. Eu também sou de cidade pequena, sei como
é novidade. Agimos normalmente. Seguimos fa-
lando alto, gargalhadas, conversas com gestos e
contato físico entre nós, brasileiríssimos. E assim
acabamos chamando mais a atenção do povo azeri
por aqui.
Anoitece em Gabala, os ladas de diversas co-
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res acendem suas lanternas e muitas pessoas regres-
sam aos seus lares caminhando. Retornamos an-
siosos ao hotel para contar a experiência a todos.
“Se quiser se sentir famoso por alguns minutos, vá
ao centro do bairro!” É real.

Pequena barraca de frutas,


verduras e legumes no cen-
tro de Gabala. Foto: Ulisses
Lisboa

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[Sétimo contato]
No ápice de gabala

E
mbora seja verão, quando amanhece no interior do país, a brisa que vem
da montanha estabiliza a temperatura de modo que o ar condicionado
não seja mais necessário no período matutino. Acordo cambaleando por
volta das seis da manhã para desativar o climatizador do quarto.
O interior tem suas vantagens. A comida é mais caseira, como o café da ma-
nhã que nos é servido. Frutas, legumes e verduras colhidas hoje cedo. Cardápio
de acordo com a estação. Pratos leves e refrescantes para enfrentar os dias quen-
tes.
Temos mais tempo para a primeira refeição do dia. Hoje teremos duas ativi-
dades. Uma pela manhã, outra durante à tarde e descanso ao anoitecer – ou lazer
se preferir. Às dez horas em ponto deixamos o hotel rumo à primeira atividade
do dia.
Anteriormente conhecida como Gutgashen, a cidade de Gabala é privile-
giada com a sua maravilhosa natureza e história antiga. A fauna e flora das redon-
dezas são extremamente ricas e plurais. Florestas densas, altas montanhas, cervos
nobres, javalis, lebres, lobos, ursos, raposas e inúmeras aves.
Gabala se tornou no dia oito de setembro de mil novecentos e trinta em
uma das regiões administrativas do Azerbaijão. A cidade se destaca no país pelas
suas condições naturais e climáticas. Imensas montanhas, recursos minerais, ca-
choeiras ásperas, rios com rápidas quedas d’água e dezenas de outros monumen-
102
103
tos históricos.
Somos informados para vestirmos rou-
pas leves e abusar do filtro solar. A previsão do
tempo diz que o dia será bastante quente. Pa-
rece que caminharemos numa zona rural sem
muitas árvores para nos proteger do sol, mas
depois seremos recompensados com uma bri-
sa fria da montanha.
Checo a cartilha com o cronograma. A
primeira parada é no sítio arqueológico que
possui escavações que comprovam muito do
que nos foi apresentado nos últimos dias, a
maturidade histórica e cultural do país.
A região de Gabala é um lugar presente
desde os tempos mais primórdios na história
do país – desde século I antes de Cristo até o
século XVIII depois de Cristo. As escavações
no território da cidade são feitas pelo Instituto
de Arqueologia e Etnografia da Academia Na-
cional de Ciências do Azerbaijão, com apoio
da Associação Azerbaijão-Coréia do Sul, que
faz intercâmbio cultural entre pesquisadores
coreanos nos sítios arqueológicos de Gabala.
Atualmente a maioria dos achados arqueoló-
gicos da antiga cidade são preservadas no Mu-
seu de História em Gabala.
Inclusive, algumas escavações realizadas
no território do Azerbaijão indicam a existên-
cia de vinificação como uma das principais
atividades da população local desde os tempos
mais antigos. As descobertas mostram a anti-
104
ga história da viticultura azerbaijanesa, junta-
mente com os restos de uvas, jarras e instru-
mentos utilizados em jardinagem e utensílios
de cozinha encontrados.

Esqueletos humanos
preservados há muitos
anos. Foto: Ulisses
Lisboa

A cidade tem centro cultural com belos


mosaicos soviéticos, memorial de guerra, inú-
meras casas de pedras antigas e do monumen-
to Rashidbek em forma de um grande livro.
O cultivo de uvas e produção de vinho
na região foi reconhecido por grandes nomes
105
da história. Plínio, o Grande, cientista romano
– viveu do ano de vinte e três ao ano de setenta
e nove antes de Cristo – falou sobre a riqueza da
agricultura no território do Azerbaijão. “Nunca
comi uvas tão deliciosas. Essas pessoas sabem
como cultivar a terra melhor do que os egíp-
cios”, disse o romano.
Ao aterrissarmos no sítio, o mormaço do
verão nos abraça e nos dá boas vindas à zona
rural da cidade. Estavam certos sobre os trajes
e preparatórios para este passeio. Não deve ser
fácil ser arqueólogo por aqui.
Caminhamos por uma estrada de terra
cercada por grama rala e ansiosa por um bom
dia de chuva. Vento quente e pele úmida como
reação ao verão intenso. Lambuzar as mãos com
mais um pouco de filtro solar e borrar o rosto
com o creme aquoso.
Avistamos alguns arqueólogos coreanos
com máscaras, óculos de plásticos e apetrechos
para restauração de antiguidades. Seguimos
passando por alguns esqueletos preservados por
milhares de anos, além de objetos utilizados na
época. O par de óculos de sol é um bom amigo
para uma visão apurada das escavações.
Muitos resultados de escavações e achados
ao longo dos anos estão armazenados no Museu
Histórico e Etnográfico de Gabala. O espaço foi
inaugurado em mil novecentos e oitenta e atu-
almente possui aproximadamente treze mil ex-
posições preservadas. Materiais arqueológicos,
106
antigos manuscritos, arte popular de diversas
épocas e livros são parte do acervo que reflete a
história do país por muitos anos.
E em meio a tanta antiguidade, recebemos
algumas garrafas d’água e retornamos para o
ônibus. Ar condicionado novamente. Almoço
de duas horas com um espaço para descanso nos
confortáveis sofás do hall de entrada do hotel.
O sétimo contato na Terra do Fogo cami-
nha recheado de aprendizados históricos não
apenas acerca do Azerbaijão, mas sobre o mun-
do. A evolução da humanidade, os rastros dos
antepassados, a origem como um todo. Após a
visita ao sítio arqueológico, a maturidade desse
país é comprovada por todos nós. E com pro-
priedade.
Neste exato momento, deslizo o dedo
indicador para atualizar a caixa de entrada do
e-mail logado no telemóvel. Opa, tem mensa-
gem de um jornal azeri. Antes de abrir o novo
comunicado, minha mente recapitula o porquê
de eu receber o contato de um veículo de comu-
nicação azerbaijanês.
Antes mesmo de pisar no território azeri –
há exatamente duas semanas – eu decidi adicio-
nar um programa independente ao cronograma
da viagem. Naquele momento, eu sentia que a
O caminho que dá acesso ao experiência por aqui seria no mínimo diferente.
sítio arqueológico e nos pre-
senteia com a bela paisagem. Tive a ideia de procurar por alguma vivência re-
Foto: Ulisses Lisboa lacionada à minha formação acadêmica, o jor-
nalismo. Então resolvi entrar em contato com
107
diversos jornais em Baku.
Um e-mail simpático, uma apresen-
tação formal e a sinalização de que eu es-
taria na capital em alguns dias. No fim da
mensagem, o pedido. “Eu gostaria muito
de visitar a redação. Tenho certeza que será
uma experiência interessante para minha
formação pessoal e profissional. Ansioso
pela resposta, aguardo o contato de vocês.
Espero vê-los em breve. Ulisses”.
A resposta chegou agora. Nigar, jor-
nalista do AzerNews diz que é possível me
receber na redação. Parece que deu certo.
Feliz com o meu interesse em conhecer o
jornal, a jornalista sugere que o encontro
aconteça na sexta-feira no fim da tarde.
Por mim está perfeito, já que neste dia es-
tarei de volta à Baku. Respondo e marco a
visita ao AzerNews.
Com a confirmação de um passeio
a mais para o fim da semana, seguimos
para o próximo destino do dia. A cidade
de Gabala é cercada por cordilheiras do
Cáucaso e, por isso, vamos finalizar a tar-
de na beira das montanhas azerbaijanesas.
Estamos indo ao Tufandag, um dos maio-
res pontos turísticos da cidade.
Tufandag é um resort com três ho-
téis temáticos, parques, spa e um enorme
teleférico que liga todo o complexo. Du-
rante o inverno, as montanhas são cober-
108
tas de neve e diversos esportes da estação
são praticados, com o snowboard e de-
mais modalidades exercidas no gelo. Hoje
não tivemos a sorte de encontrar monta-
nhas de neve para esquiarmos, mas o tem-
po nos privilegia com o vento da serrano.
Monitores nos recebem e sinalizam a en-
trada do resort. Teremos acesso ao amplo
veículo ligado a correntes resistentes, o te-
leférico.
Entro em uma das cabines com um
grupo de brasileiros, integrantes da minha
delegação, meus novos amigos. Rapida-
mente somos arremessados sob sustenta-
ção do enorme varal de aço que conduz as
cabines azuis. Alguns companheiros dessa
viagem tem medo de altura.
“MEU DEUS! É muito alto” enfa-
tizou Felipe, que muda a feição quando
embarcamos nas alturas.
“Olha lá em cima, ainda subiremos
muito mais”- aponta para o alto Bruno,
Amplo espaço para chega-
estudante de Relações Internacionais em
das e partidas no teleférico um dos estados mais belos do Brasil, San-
de Tufandag. Foto: Ulisses
Lisboa
ta Catarina.
Seguimos entre desembarques e em-
barques em alguns postos para subirmos
cada vez mais pelas montanhas da cidade.
Para finalizar o trajeto quase no céu, um
refresco como troféu pela viagem nas nu-
vens.
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Do alto da montanha temos acesso a visão panorâmica de Gabala.
Foto: Ulisses Lisboa

Ao retornarmos para o hotel, deparamo-nos com uma notificação. Moni-
que, doutora em estudos do império otomano e a responsável pela delegação
brasileira vem em nossa direção.
“Precisamos de duas meninas e dois meninos para representar a nossa dele-
gação num vídeo que será gravado daqui algumas horas”, explicou Monique.
Percebo que todos em volta olham em minha direção como um possível
integrante na brincadeira. Segundo informações dos guias, os participantes deve-
rão dançar e cantar no vídeo.
Devido ao meu currículo de brincadeiras e gargalhadas nos últimos dias,
110
todos indicam que eu tenho os requisitos para essa chamada dos guias. Aceito
participar dessa empreitada com os amigos. Natália, fortalezense, Francine, gaú-
cha e Gabriel, mineiro serão meus companheiros do registro audiovisual sem
muitas informações até o momento. A sorte é que ainda teremos um tempo para
descansar antes da gravação.
Chego em meu quarto. Banho-me, adormeço rapidamente. Cochilo por
aproximadamente duas horas e a soneca é interrompida com alguém batendo na
porta da suíte.
Estou sozinho no quarto. Desperto sonolento, cambaleio pelo carpete e
sigo cansado, mas interessado em saber quem está a solicitar algo. Talvez seja o
serviço de quarto.
“Ulisses, está na hora de gravarmos o vídeo!” É Natália, que avisa apressada
sobre o compromisso que eu estava prestes a furar.
Saio do quarto atordoado com a informação imediata. É estranho acordar
com notícias que devem ser solucionadas rapidamente. A porta automática da
suíte fecha. Enfio bruscamente as mãos no bolso da bermuda cinza para checar
se estou com o cartão que desbloqueia a porta. Não estou. Não tem ninguém
dentro do quarto.
Descalço, camiseta amarrotada, bermuda velha e uma cara amassada de
quem acabou de acordar. Nessas condições sou colocado para fora do quarto por
mim mesmo. Nem meu telemóvel está comigo para tentar contatar meu colega
de quarto para abrir a porta para mim. Mas não dá tempo. Tenho de seguir para
gravação do vídeo. Dois minutos de rejeição sobre a situação, mas logo aceito o
descuido e sigo ao encontro de todos os participantes.
E o entardecer se prontificou a fazer com que tudo desse errado no crono-
grama. Ao final do dia, mesmo em meio a desencontros, descuidos e um vídeo
para participar, deu tudo certo.

111
112
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[oitavo contato]
Sheki, a cidade que tem muita
história para contar

O
café da manhã é regado por suco de uva e boas gargalhadas entre todos a
mesa. Dessa vez, a pauta da refeição matutina é a participação no vídeo
de ontem com direito a me trancar para fora do quarto antes da grava-
ção. Acontece.
Neste dia nove de Julho, vamos em direção a um município bastante espe-
cial na história do Azerbaijão, principalmente durante a antiguidade e o período
feudal, a cidade de Sheki – Sheky ou até mesmo Şəki.
Sheki está a trezentos e oitenta quilômetros de distância de Baku, mas de
onde estamos nesse momento, o trajeto deve levar apenas alguns minutos. Pela
estrada montanhosa e com diversidades de vegetações, seguimos em direção ao
local peculiar à história do país.
Assim como Gabala, a cidade de Sheki é também uma das cidades mais an-
tigas do Azerbaijão justamente pelas descobertas arqueológicas que comprovam
a idade de mais de dois mil e quinhentos anos da região.
Durante o período de antiguidade, Sheki foi uma cidade albanesa e, por
isso, templos albaneses estão intactos até hoje e disponíveis para visitas. Naquela
época, o reino de Sheki teve a divisão em onze províncias administrativas.
A cidade foi o local mais importante no quesito econômico e político antes
114
115
da invasão árabe. Além disso, foi invadida por persas, ro-
manos, mongóis e outros impérios influentes da época.
E, após toda colonização estrangeira, tornou-se indepen-
dente como o Canato de Sheki..
Depois de um processo histórico conturbado e de
diversas invasões, os únicos monumentos históricos e ar-
quitetônicos preservados e recuperados são dos séculos
dezesseis ao dezenove.
Atualmente a cidade se tornou o espaço que sedia
festivais locais e internacionais que atraem muitas pesso-
as de diversos interesses culturais, como os amantes dos
doces azerbaijaneses, o festival para motociclistas e a con-
fecção da seda nacional do país. E, além disso, boa parte
econômica da cidade é movida pela produção de tabaco,
frutas, legumes, milho e criação de gado.
O caminho até chegarmos à charmosa cidade de
Sheki é tranquilo. Quando pude perceber, já estava de-
sembarcando no destino final. Ruas estreitas de pedri-
nhas e sol ameno. É assim que somos recebidos na ma-
nhã de hoje.
“Pessoal, agora vamos conhecer o Palácio Sheki
Khan”, indica Daniela, uma das guias azerbaijanesas.
Saio atrasado do ônibus acompanhado de João,
meu colega brasileiro. Pela janela, vejo todos já se distan-
ciando do veículo e seguindo em direção ao palácio. Há
um mercadinho, entro rapidamente no pequeno espaço
interessado em comprar uma soda. A escolha fica difícil
com a infinidade de opções de bebidas. Rótulos em russo
e azeri, um arco-íris de cores e sabores. Uma garrafinha
de seiscentos mililitros com líquido verde claro me con-
vence. É uma fanta de maçã verde. Sem qualquer diálogo
116
– por falta de conhecimentos de idiomas em comum –
entrego duas notas de um manat para o vendedor e saio
ansioso para os primeiros goles.
Seguimos tropeçando nas ruas impecáveis cobertas
de pequenos paralelepípedos fixados no chão, arquitetu-
ra como nos filmes medievais e montanhas que intimi-
dam as pequenas casas de madeira.

As ruas estreitas da cidade


são cobertas por pedras que
dão todo charme à arquitetu-
ra local. Foto: Ulisses Lisboa

Durante a caminhada, há um senhor sentado ao


chão à esquerda da rua. Ao seu lado, algum objeto co-
berto por uma lona transparente suja. Acercamo-nos do
senhor de aproximadamente oitenta anos, branco, barba
rala, marcas de expressão da idade e certamente uma boa
bagagem de histórias para contar.
Somos encarados pelo homem que demonstra inte-
resse em falar conosco. Paramos para dar atenção. O diá-
117
logo começa em algum idioma muito desconhecido para nós. Deve ser russo ou
azerbaijanês, mas de qualquer forma não compreendemos absolutamente nada.
Ficamos ali por minutos ouvindo o senhor que levanta o plástico transpa-
rente e mostra um cachorro empalhado. De repente, o tom da voz muda. Não
entendemos uma palavra se quer, mas é perceptível o tom de lamentação e tris-
teza. A cada frase, alguns suspiros e cafuné na cabeça do animal.
Entro em consenso com João sobre contribuirmos com moedas ao pobre
senhor que sente saudade de seu cão. Penso que pelo fato dele estar sentado ao
chão nesse dia quente, pode estar precisando de ajuda financeira. Apanhamos
algumas moedas no bolso para doarmos.
Indicamos com a mão a doação de alguns trocados ao senhor, que rapida-
mente grita conosco. Nossas mãos assustam, algumas moedas caem no chão. O
cavalheiro continua a gritar conosco. Sem entender completamente nada do que
ele está a falar, perplexos, afastamo-nos.
“O que diabos fizemos de errado? Só queríamos ajudar o senhorzinho”, diz
João assustado.
Caminhamos ofegantes para encontrar os outros que há essa hora já devem
notar a nossa falta. Não avisamos os guias que antes do primeiro passeio do dia
iríamos dar esmola a uma pessoa que ficaria ofendida ao receber doações.
Contornamos algumas esquinas, encontramos os demais colegas no Palácio
Sheki Khan. Uma pequena praça com bancos de madeira rodeiam o palácio que
reflete sua beleza em toda a redondeza. Um dos guias vem em minha direção.
“Aconteceu alguma coisa?”, pergunta preocupado Uzeyir.
“Não, eu só parei para comprar uma soda. Depois encontramos um senhor
na rua, pensamos que ele precisava de dinheiro, demos algumas moedas e ele não
gostou nem um pouco”, conto um pouco confuso ainda com toda a história.
“Um senhor sentado no chão com um cachorro empalhado? Ele não é men-
digo. Só está de luto pela morte de seu cachorro e fica nas ruas contando a sua
história com o animal de estimação”, explica o guia espantado por termos dado
dinheiro ao senhorzinho.
Envergonhado com a situação, retiro-me e sigo em direção a fachada do Pa-
118
lácio. A ideia de entregar moedas ao senhor era, sem dúvida, com boas intenções.
Queria ajudar. Mas como não entendíamos o que ele falava, compreendemos
errado.
O palácio Sheki Khan é mais um título para coleção de patrimônios mun-
diais e nomeado pela UNESCO em todo país. O monumento foi construído em
mil setecentos e sessenta e um por Hasan Muhammed Khan e segundo a história
do palácio, durante a sua construção, nenhum prego foi utilizado.

O brilho da fachada do Palácio Sheki Khan reflete não apenas na cidade de Sheki, mas no país inteiro.
Foto: Ulisses Lisboa

A visão frontal do palácio é encantadora. A parede da frente é preenchida


por pastilhas em tons de azul marinho, azul claro, laranja e algumas lacunas cui-
119
dadosamente trabalhadas com retalhos de vidro fixados
que potencializam a beleza do espaço. Ao olhar para cima,
é possível observar as telhas pintadas artesanalmente em
diversas cores que cobrem o palácio.
Não é permitido qualquer registro eletrônico nas de-
pendências internas do palácio. A proibição é para preser-
var os objetos artesanais expostos. Com dois andares, o
edifício é decorado com um trabalho de vidro, conhecido
como “shebeke”. Vários pedaços de vidros coloridos são
entrelaçados e resultam num mosaico incrível.
No teto de algumas salas do palácio, estão fixados
desenhos pintados à mão que recontam os trajetos e as
grandes batalhas desde os tempos mais primórdios no
Azerbaijão. O alto das salas trazem a tona a historicidade
de um povo que se ergueu em meio a tantas disputas e
hoje compartilha com o mundo suas origens.
O interior do palácio é tão belo que confesso que dá
vontade de retirar o telemóvel do bolso e, clandestinamen-
te, tirar algumas fotos dos mosaicos fantásticos. Mas além
da ordem verbal dos guias, há câmeras nas extremidades
das salas que acompanham se ninguém irá desobedecer a
regra da casa.
As visitas são divididas em pequenos grupos e após
todas as delegações se encantarem com a beleza interna e
externa do palácio, seguimos a pé para o Caravançarai da
cidade.
Vamos caminhando pelas ruas estreitas, o sol banha
o nosso dia e, em contra partida, em alguns momentos as
montanhas nos presenteiam com o vento que refresca a
face. Enquanto seguimos para os próximos destinos, pas-
samos pela frente de pequenas casas que, devido ao nosso
120
grupo falar alto – em um idioma desconhecido para o
povo daqui – muitas crianças abrem a porta de casa para
ver o que está acontecendo.

As ruas estreitas da cidade


são cobertas por pedras que
dão todo charme à arquitetu-
ra local. Foto: Ulisses Lisboa

Caravançarai significa “palácio das caravanas”, um


espaço hoteleiro para comerciantes viajantes que surgiu
no Norte de África, Ásia Central e Médio Oriente. O es-
tabelecimento era um lugar seguro para abrir comercian-
tes que viajavam o mundo para comprar suas mercadorias
e precisavam de um espaço confiável para guardar suas
compras e, também descansar um pouco.
A arquitetura do Caravançarai era totalmente vol-
tada para receber tais comerciantes de todo lugar, como
armazéns e entrepostos comerciais. O formato arquite-
tônico é quadrado ou retangular com muros em toda a
volta. Há um único portão de acesso amplo para permitir
a passagem de animais que carregam muita mercadoria,
121
como camelos. O pátio ao centro é quase sempre a céu aberto e
era rodeado de divisões idênticas com espaços para acomodar os
comerciantes, animais e mercadorias.
A partir da grande rota da seda do passado, o Caravançarai
era também um centro de produção de seda. A presença do espa-
ço na cidade era de extrema importância para a economia local,
regional e internacional. Já que recebia comerciantes de todo o
mundo.
O caravançarai de Sheki hoje é um hotel e recebe todo tipo
de viajante, além de ter adotado alguns meios modernos como a
conexão wifi que, neste momento, quase todas as delegações se
conectam a rede portátil.
Pelas redondezas do centro de Sheki, encontramos alguns
templos albanos, como antiga igreja de Kish. Um dos templos re-
ligiosos mais antigos na região do Azerbaijão e, é bastante conhe-
cido pela sua arquitetura única por fazer parte do período da Albâ-
nia caucásica.
Em meados do século dez ao doze, de acordo com estudiosos
azeris, o templo em Kish está erguido exatamente no mesmo lugar
onde o Apóstolo Elisei tinha construído sua igreja. Por esse moti-
vo, o templo em Kish também é conhecido como chamado a Mãe
de templos no Cáucaso.
O edifício de Kish é construído de alvenaria e cuidadosamen-
te com acabamento de azulejos. Cúpula marquise e janelas estrei-
tas remetem ao passado do Cáucaso. A arquitetura interna possui
um pátio onde há um local de enterro do passado.
Ao sairmos do templo albano, passamos por uma viela que
fica instalada o mercado tradicional de confeitaria de Sheki. Entre
diversas opções de doces azerbaijaneses, as guias indicam o sabor
de cada sobremesa. Muitas opções coloridas e, segundo os locais:
“Aproveitem, nossos doces são deliciosos”.
122
Durante a nossa caminhada pelas redondezas, crianças azer-
baijanesas curiosas continuam a sair de seus lares para descobrir
quem está invadindo a pacata cidade de Shaki. De repente os pe-
quenos se deparam com tamanha diversidade. Brasileiros, argenti-
nos, belgos, estonianos, africanos, canadenses, mexicanos e vietna-
mitas.

De sandálias e
meias charmo-
sas, crianças
azerbaijanesas
acompanham
a caminhada
dos grupos de
estrangeiros.
Foto: Ulisses
Lisboa

No final da viela açucarada e recheada de doces azeris, há


barraquinhas com senhoras que expõe souvenirs da cidade. O pa-
raíso de artesanatos. Bolsas e mochilas bordadas à mão, colares,
brincos, braceletes, espelhos decorativos, lenços de seda, camisetas
bordadas, chaveiros, chapéus e tudo que você pode imaginar. As
delegações invadem o mercado perfeito para comprar lembranças
para família.
Mesmo sem conseguir falar inglês, as vendedoras simpáticas
123
usam os dedos das mãos para indicar o preço de seus produtos. Se custa cinco
manats, cincos dedos na mão são enfatizados. E quem disse que pedir desconto
é só no Brasil?
Sabína, uma das guias azerbaijanas, acompanha-me na hora das compras e
me ajuda a pedir descontos com o povo local.
“A bolsa custa dez manats”, traduz Sabína.
Antes que eu pudesse pedir a guia que perguntasse à vendedora se há possi-
bilidade de desconto, Sabína já negocia com a vendedora que tem um lenço roxo
preso em seus cabelos cacheados.
“Ela faz por sete manats para você”, diz Sabína que, além de ser uma boa
guia de viagem, também é uma ótima negociadora. Pode por na sacola, eu vou
levar.
E assim segue a hora das compras na cidade de Sheki, que oferece aos es-
trangeiros uma infinidade de artesanatos produzidos na região, algo que não se
acha em nenhum lugar no mundo.
Compro algumas bolsas bordadas com o nome da cidade – que me encan-
taram desde o momento que cheguei – braceletes de cobre e alguns lenços para
presentear a família e amigos. Antes que pudéssemos deixar todos os nossos ma-
nats nessa feira de compras, Rashad pede para voltarmos ao ônibus. Já está na
hora do almoço.
Entramos em um restaurante bastante rústico, decoração antiga, chão e pa-
rede de madeira, uma enorme cabeça de alce fixada e, de repente, chegamos a um
salão todo decorado em tons de dourado e lustres que brilham como as estrelas
cadentes.
Lule kebabs e tomates assados, sopa suculenta Pitis, aves temperadas, carne
de carneiro na brasa, queijos, legumes e verduras refogadas. Sucos de frutas locais
em temperatura ambiente. Devorar o enorme banquete azerbaijanês em um edi-
fício luxuoso, é assim que finalizamos o nosso dia na formidável cidade de Sheki.

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127
[Nono contato]
Mergulho profundo na
antiguidade de Lahij

P
equenas vans estacionam na frente do hotel que estamos hospedados em
Gabala. Dessa vez, a excursão não será locomovida pelo ônibus que es-
tamos acostumados. Devido a estrada estreita e em alguns momentos de
serra, é mais apropriado nos dividirmos em veículos menores.
Hoje vamos em direção a um local peculiar no país. Localizado na região
de Ismailli e com cerca de dois mil habitantes, a vila de Lahij é uma jóia rara na
história do Azerbaijão. E é para lá que vamos agora.
Acomodamo-nos em vans com doze lugares e seguimos para a vila. Rapi-
damente entramos numa estrada larga que liga as cidades do país, mão dupla e
muitos Lladas transitando pelo asfalto.
Devido a localização do nosso destino ser muito próxima às montanhas,
seguimos na estrada de terra, apenas um sentido e pouco espaço entre o caminho
e alguns abismos ao nosso lado.
Da janela do veículo médio é possível visualizar o fundo dos penhascos que
passamos por perto. Pouquíssimos metros nos separam entre as profundas riban-
ceiras e a estrada.
Chegamos ao sul do Cáucaso, onde está localizada a vila de Lahij. O cami-
nho foi guiado pela poeira que sobe ao passarmos e grandes rochas enfeitam a
passagem.
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As enormes montanhas do Cáucaso rodeiam a vila tradicional de Lahij. Foto: Ulisses Lisboa

Há muitos e muitos anos, havia uma cidade chamada La nessa região. Num
determinado dia, houve um grande terremoto e o município de La foi total-
mente destruído. Devido a enorme catástrofe, a cidade ficou totalmente vazia e
devastada. A partir desse triste episódio, La passou a ser chamada de La-hej. A
mudança ocorreu porque hej significa “nada” em azerbaijanês e, como não tinha
absolutamente nada por ali, foi assim que renomearam a cidade.
O tempo foi passando e aos poucos o município foi sendo reerguido e re-
abitado pela população azeri. Como a mudança de nome aconteceu devido não
ter mais nada na cidade e, posteriormente, tudo passou a se ajeitar e pessoas co-
meçaram a habitar o local, o nome mudou, efetivamente, para Lahij – em outras
grafias Lahij e Lahich.
A vila de Lahic está localizada a mil seiscentos e vinte e nove metros acima
do nível do mar e o idioma comum falado por aqui é o Lahiji – dialeto antigo do
idioma persa – além de azeri e russo. Nas escolas, os alunos têm aulas em lahiji e
130
azeri e como idiomas complementares, o russo e inglês.
A maior fonte de renda das famílias é a produção artesanal, especialmente
com cobre e a tecelagem de tapetes azerbaijaneses. Ao adentrarmos pelas ruas de
pedrinhas, diversos tapetes estão expostos sobre a parede das pequenas casas. O
caminho é banhado por lojas estreitas e com muito artesanato local.
Durante a época medieval, Lahij tornou-se referência no Azerbaijão com as
artes manuais produzidas pelos artesãos da vila. As modalidades artísticas varia-
vam entre joalheiros, carpinteiros, fabricantes de tapetes, gravadores, pintores,
sapateiros e outros. Atualmente muito material feito por aqui está exposto em
museus e acervos culturais não somente no país, mas em diversos lugares do
mundo.
A produção de artefatos em cobre é algo bastante forte na vila, que são or-
namentalmente esculpidos. O desenvolvimento da produção de cobre impulsio-
nou a formação de profissionais como funileiro, mecânico e demais cargos que
manuseiam o cobre.

Além de brasões e artefatos em cobre, os artesãos também lapidam a imagem do ex-presidente do Azerbaijão,
Heydar Aliyev. Foto: Ulisses Lisboa
131
A estrutura e os suprimentos de oficinas de cobre,
como a sua aparência externa tradicional e seus pro-
cessos de produção permanecem preservados até hoje,
exatamente como eram nos séculos anteriores. As co-
leções de louças e artefatos antigos podem ser vistos
em museus no Azerbaijão, Geórgia, Rússia e por toda a
Europa.
Vendedores de cabelo branco, bigodes, dentes
dourados e olhos curiosos para descobrir de onde vie-
mos. Vendedoras com lenços que cobrem os cabelos
grisalhos, vestidos longos, sapatilhas feitas na região e
meias para aconchegar os pés cansados.
A população da vila é divida entre três grupos,
Baadvan, Azavarro e Araghird. Cada grupo tem a sua
própria praça, mesquita, banho turco e cemitério. Uma
das características mais interessantes do meio urbano
de Lahij são as praças de cada grupo.
O cenário artístico atrai muitos escritores, acadê-
micos, artistas e cineastas do mundo que se interessam
pelo acervo cultural deste local. Por outro lado, pessoas
que nasceram na região são orgulho para o país. Um
grande jornalista azeri, Manaf Suleymanov é natural de
Lahij e publicou em mil novecentos e noventa e quatro
o livro “Lahij: Visão etnográfica e artística”.
Em meio à tamanha maturidade histórica e cultu-
ral de Lahij, seguimos caminhando pelas vielas estrei-
tas, casinhas de madeira e casas revestidas com pedras
– que são recolhidas do rio da vila pelos moradores e as
utilizam para construir suas casas. A construção é im-
pecável, as rochas são organizadas igualmente e dão um
resultado arquitetônico interessante.
132
Tímidos, os ci-
dadãos de Lahij
saem ao portão
para conhecer os
visitantes. Foto:
Ulisses Lisboa
O reconhecimento cultural da vila é reforçado através
de alguns conteúdos audiovisuais exibidos em concursos
internacionais e festivais de cinema por todo o mundo. O
filme chamado Emanet produzido em dois mil e seis e di-
rigido pelo cineasta Shamil Najafzade, é dedicado à cultura
de Lahij. Outro longa metragem interessante a ser lembrado
é o Lahij Pace, produzido em dois mil e oito e dirigido por
Fariz Ahmadov – recebeu um prêmio no Segundo Festival
Internacional Tourfilm Riga em dois mil e nove.
Entro em algumas lojas, os utensílios de cobre são re-
almente muito bem esculpidos e os tapetes cuidadosamente
costurados. Além do acervo mais produzido na vila, os locais
também vendem especiarias da região e o tradicional chá
azeri. A cada objeto que pego para visualizar mais perto, a
vendedora me indica o preço do produto digitando o núme-
ro na calculadora. Didático. Há algumas lojas que oferecem
133
trajes da época para aluguel. Vestimenta de
guerreiros toda de cobre, como colete, escu-
do, capacete e espada. “Um”, indica com o
dedo o vendedor da loja. Isso significa que
para vestir a roupa de cobre, é necessário in-
vestir um manat. Por que não?
Decido alugar as vestimentas de guer-
reiro. E que vestimentas. Ao colocar o colete
em mim, fico uns vinte quilos mais pesado. A
partir disso percebo que para batalhar naquela
época, tinha que começar aguentando o peso
da própria roupa – que não é pouco. Perma-
neço alguns minutos com a roupa temática
para tirar algumas fotografias e devolvo ao
simpático senhor que aluga diversos tipos de
roupas antigas.
“As montanhas protegem os moradores
de Lahij do sol forte do verão, além de refres-
car a região. Já no inverno, um período climá-
tico severo, a neve toma conta das ruas, casas
e cobre todos alpes”, explica um dos guias que
nos acompanha no passeio.
A arquitetura de Lahij é extremamente
medieval, com se realmente estivéssemos no
cenário de um filme antigo e as montanhas
que cercam a região intensificam a energia
preservada daqui.
Após uma boa caminhada na vila, segui-
mos para o almoço que acontece num restau-
rante na beira da estrada. O lugar é rústico,
alguns tipos de carne são assados ao ar livre e
134
próximo às mesas que estamos.
Um carneiro assado temperado com es-
peciarias da região tem um aroma de dar água
na boca. As finas fatias da carne que é dispo-
nibilizada à mesa é rapidamente devorada por
todos. Até quem não estava com tanta fome
resolveu mudar de ideia. As bebidas são sem-
pre servidas em temperatura ambiente, mes-
mo que seja uma soda.
As refeições azerbaijanesas são sempre
fartas e a dúvida é sempre qual prato comer
primeiro. Pessoas que não gostam de salada
são hipnotizados a experimentar berinjelas e
tomates por serem tão fotogênicos no reci-
piente de cobre.
Ao finalizarmos a refeição, entramos na
estrada para voltar a Baku. O trânsito do fim
de tarde é tranquilo, alguns cochilos no banco
da van e fotografias da vegetação seca lá fora.
Abrir a janela, sentir a energia da atmosfera
azerbaijanesa, agradecer o universo por tama-
nha beleza neste país especial e recarregar as
forças para os próximos últimos dias na Terra
do Fogo.
As pedras retiradas do rio
compõe a arquitetura tradi-
cional da vila. Foto: Ulisses
Lisboa.

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[Décimo contato]
Acorda, é dia de formatura

A
bro os olhos, visualizo o teto esbranquiçado do quarto, viro noventa
graus, elevo o braço para alcançar o telemóvel ao lado da cama. É sempre
a primeira coisa que faço para começar o dia. Checo as mensagens. Opa,
o que é isso?
Deparo-me com algumas mensagens como “Ulisses, estamos só esperando
você aqui no hall”. O despertador do dispositivo móvel estava programado no
horário errado. Já são oito e meia da manhã e todos já estão prontos. Socorro!
Hoje temos um evento na ADA University para recebermos algum tipo de
certificado por sermos os vencedores do concurso. Trouxe um paletó para a oca-
sião. Mas confesso que ainda não passei a calça e a camisa.
Norton continua sendo meu colega de quarto nessa segunda etapa da via-
gem e ainda está a dormir. Acordo o rapaz com pressa. “Norton, estamos atra-
sados!”, aviso. O moço me olha assustado e, atordoado, começa a procurar seu
terno na mala.
Apanho rapidamente o ferro de passar, retiro todas as sequelas de amasso na
roupa e fixo sob a cama. Tomo um banho de três minutos. Não há tempo para
mais que isso e continuo com o rosto mais amassado que as roupas em minha
mala.
“Ulisses, cadê vocês?”, pergunta Monique pelo aplicativo de mensagens ins-
tantâneas.
Já estamos descendo, pessoal. É desconfortável se atrasar e, no caso do atra-
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so matutino, é consequência do investimento de
mais alguns minutos de sono ou despertador mal
programado. Mas acontece nas melhores famí-
lias.
Ainda um pouco sonolento, chegamos ao
hall do hotel e encontramos os outros que es-
tavam apenas a nos esperar para embarcarmos.
Desculpamo-nos pelo imprevisto e entramos no
ônibus.
Fundada em dois mil e seis, a universida-
de ADA fica localizada em Baku e é especializa-
da em cursos de relações internacionais, além de
cursos de ciências humanas e tecnologias.
O ônibus está elegante. Gravatas, ternos,
sapatos sociais, vestidos, salto alto, maquiagem,
penteados. Parece que estamos indo para um
evento super formal. E estamos.
Rapidamente chegamos à universidade.
Prédios modernos compõe o amplo campus da
ADA. Sistema ultra seguro, catracas automáticas
e cartões magnéticos são necessários para ingres-
sar no edifício. Seguimos para o anfiteatro da
universidade, que é o espaço onde haverá o even-
to.
O cronograma diz que hoje acontecerá a
premiação dos vencedores do concurso em cada
país participante, além de algumas palestras com
professores daqui. Acomodamo-nos nas poltro-
nas vermelhas do anfiteatro e logo o espaço é to-
mado pelas delegações da África do Sul, Hungria,
Argentina, Bélgica, Canadá, Estonia, Vietnam,
140
México e, claro, do Brasil.

O anfiteatro da ADA University


recebe os vencedores do concurso
“O que eu sei sobre o Azerbai-
jão?” – Foto: Ulisses Lisboa

Recebemos dispositivos com fones de ou-


vido para tradução simultânea em língua ingle-
sa, já que as falas acontecerão em azerbaijanês.
Obrigado, tecnologia. E rapazes engravatados
vão chegando e compondo a mesa no palco do
anfiteatro. Penso que são pessoas importantes.
Todos sorriem para nós a todo momento.
O evento começa com um simpático fun-
cionário do Ministério da Juventude e Esporte
do Azerbaijão. O discurso inicia. A fala do rapaz
de sobrancelhas fortes ressalta alguns pontos que
acabamos esquecendo nos últimos dias que esti-
vemos viajando e vivendo experiências incríveis
por esse país: nós vencemos um concurso para
estar aqui.
As palavras do discurso enaltecem todos
presentes. O anfiteatro, o traje formal, as falas
do primeiro rapaz a falar e, prematuramente, já
141
algumas lembranças da viagem. De repente nos sentimos numa formatura. E,
honestamente, de certa forma é. Nesse clima agradável, outros funcionários do
Ministério também dão discursos motivadores e de dar orgulho à nós mesmos.
Os trabalhos da formatura no Azerbaijão começam. Rashad sobe ao pal-
co com alguns papéis e chama nome por nome no microfone. Subir no palco,
tirar uma foto com os rapazes da mesa, receber uma placa dourada encapada
em veludo vinho com o seu nome, receber aplausos, voltar emocionado para o
seu lugar junto de sua delegação. Tudo valeu a pena.
Todas as delegações recebem o prêmio do concurso “O que eu sei sobre
o Azerbaijão?” e tiram fotos com os embaixadores presentes. O embaixador do
Azerbaijão no Brasil veio nos prestigiar e ao encontrar conosco, pronuncia um
“Parabéns!” em português para o nosso grupo.
Local acadêmico, dia universitário. Somos conduzidos para o restaurante
da ADA, pegamos bandejas no estilo escolar como se passa nos filmes. Opções
coloridas, recheio meu prato de cores entre carboidratos e proteínas.
O assunto do almoço é a satisfação da entrega dos prêmios a todos nós. O
Ministério da Juventude e Esporte do Azerbaijão foi caprichoso em organizar
o evento de hoje. Conseguiu agradar todas as delegações.
Logo retornamos ao anfiteatro da universidade. Dessa vez, somos infor-
mados que vamos assistir uma palestra. Um rapaz baixo, jovem, sorriso estam-
pado no rosto e um terno cuidadosamente passado sobe ao palco e se apre-
senta. Majid Musayev inicia a palestra parabenizando todos os vencedores do
concurso.
Uma apresentação de slides surge no telão fixado no centro do palco. A
primeira página é preta e branca e uma foto de uma senhora triste. O assunto
da palestra é o genocídio de Khojaly que aconteceu durante o conflito entre
aArmêniaArmênia e Azerbaijão. O confronto resultou na ocupação de vinte
por cento de territórios do Azerbaijão pelas forças armênias e surgimento de
mais de um milhão de azeris refugiados e pessoas deslocadas internamente.
Quando eu estive pesquisando sobre o país para escrever a redação, en-
contrei algumas informações sobre o conflito armado na época e o massacre
142
em Khojaly que aconteceu em Fevereiro de mil novecentos e noventa e dois.
Khojaly era uma cidade pertencente ao território azeri localizada dentro
das fronteiras administrativas da região de Nagorno Karabakh do país e o nú-
mero de habitantes era de aproximadamente sete mil pessoas.
De acordo com relatos oficiais, soldados armênios com apoio de tropas
russas invadiram a cidade de Khojaly na noite do dia vinte e cinco de Fevereiro
e, sem que ninguém soubesse, devastou a cidade.
“Seiscentos e treze pessoas foram mortas. Mulheres, crianças e idosos. Mil
duzentos e setenta e cinco habitantes foram mantidos reféns e cento e cinquen-
ta pessoas permanecem desaparecidas até hoje”, conta Macid Musayev.
Os habitantes de Khojaly foram severamente mortos, como corpos mu-
tilados e torturados durante a invasão. Naquela noite sangrenta, muitas pes-
soas tentaram fugir, mas os soldados tiraram sem pena a vida de centenas de
inocentes. O genocídio é uma grande ferida para a nação azerbaijanesa que
infelizmente demora a cicatrizar.
A interessante – e triste – palestra segue com ricas informações e muito
aprofundamento sobre o genocídio que, para a Armênia é esquecido. O po-
sicionamento armênio sobre o massacre é de negação, alegam que não parti-
ciparam da noite que tirou muitas vidas azerbaijanesas. E, com direito e pro-
priedade, o Azerbaijão pede reconhecimento e justiça por esse acontecimento
deplorável. Impressionados com tamanha crueldade, deixamos a universidade
um tanto impactados com a apresentação.
Retiramo-nos do anfiteatro com as placas douradas em mãos e tiramos
fotos oficiais do grupo inteiro no jardim da universidade. Além do fotógrafo
do Ministério, há uma equipe de canal de televisão que pretende fazer uma
matéria conosco.
Os guias recrutam alguns voluntários de cada delegação para dar uma rá-
pida entrevista para a MAG TV. A repórter parece empolgada com a pauta de
hoje. Uma sandália preta exótica, um coque trançado, óculos preto e um jeito
engraçado.

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Feliz em cobrir
a premiação na
universidade, a
jovem repórter se
prepara para as
entrevistas. Foto:
Ulisses Lisboa
Como muitas pessoas sabem que estudo jorna-
lismo, eu sou chamado para dar entrevista. Fico na
fila para o depoimento e logo chega a minha vez. É a
primeira experiência com entrevista em inglês. Antes
de saber o roteiro de perguntas, já tento organizar as
ideias na cabeça enquanto sinto um intenso frio na
barriga.
A câmera sinaliza que está gravando, a repórter
144
fala em azeri e as perguntas são traduzidas para inglês
por um dos guias presentes. Questões como meus in-
teresses pelo Azerbaijão, o que estou achando do país e
se eu gostaria de voltar são as perguntas da entrevista.
Ao acabar a gravação, a equipe agradece a minha par-
ticipação, tiramos uma foto e eu me junto novamente
à delegação brasileira.
Já são aproximadamente quatro horas da tarde.
Hoje é o dia da visita no jornal Azernews. O encontro
acontecerá quando o ponteiro do relógio marcar cinco
horas em ponto. Recebi um e-mail de uma das jor-
nalistas, Nigar, explicando as coordenadas para chegar
até a redação.
Ao voltarmos para o hotel, subo com pressa para
me arrumar para o próximo compromisso. O elevador
sobe lotado, algumas pessoas cansadas e outras anima-
das para mais algum passeio.
“Alguém vai fazer alguma coisa agora? Não que-
ria ficar no quarto sem fazer nada”, pergunta animada
Natália.
“Eu vou visitar a redação do jornal AzerNews da-
qui a pouco. Quer ir comigo?”, convido a moça natu-
ral do nordeste do Brasil. E ficamos combinados de
nos encontrar em alguns minutos.
Chego no hall do hotel para encontrar com Na-
tália e há algumas delegações organizando suas apre-
sentações. Amanhã é a festa intercultural organizada
pelo Ministério da Juventude e Esporte do Azerbai-
jão e cada delegação deve preparar uma apresentação
com dança, música, culinária e aspectos culturais de
seu país. Nós, brasileiros, trouxemos balões, chaveiros
145
e lembrancinhas nas cores da bandeira, leite condensado, chocolate em pó e
chocolate granulado para prepararmos brigadeiro. Além disso, eu trouxe alguns
doces típicos como cocada e pé-de-moleque. Mas ainda não ensaiamos a nossa
apresentação e nem resolvemos onde iremos cozinhar os brigadeiros. Deixar para
a última hora é exatamente representar o nosso perfil brasileiro. Está tudo bem.
Natália chegou. Estamos alguns minutos atrasados. Tomamos um táxi roxo
num formato aos londrinos para a estação de metrô Icheri Sheher que, segundo
as coordenadas no e-mail enviado pela jornalista, é bem próxima à redação do
jornal.
O trânsito do fim de tarde em Baku é intenso, seguimos parando por al-
guns minutos nos semáforos da cidade. O tempo vai passando e já estamos vinte
minutos atrasados. A bateria do celular está se esgotando e por via das dúvidas,
escrevi o telefone de Nigar num pedaço de papel para imprevistos.
Depois de quase quinze minutos dentro do táxi, desembarcamos em frente
a estação de metrô onde a jornalista estava me esperando. A entrada do edifício
é composta apenas por diversas pessoas indo e vindo, nenhuma parada. Cadê
Nigar? Como é Nigar? Como só conversamos por e-mail, não tive acesso a ne-
nhuma foto da moça. Meu telemóvel não tem sinal no país e nem o da Natália
para ligarmos.
Um policial da estação caminha lentamente pela calçada a frente da movi-
mentada avenida. As únicas palavras que sei falar em azeri são “olá”, “obrigado”
e “desculpe”. Palavras super utéis, mas não na situação deste momento. Resolve-
mos então, abordar o policial bigodudo. Quem sabe ele fale inglês, não é mesmo?
“Salam, o senhor fala inglês?”, inicio o diálogo com cuidado.
“Eu falo um pouco”, responde o policial balançando positivamente a cabe-
ça.
Explico pausadamente a situação. Conto que estou esperando uma jorna-
lista do Azernews e, como não há outro meio de resolver a situação, peço gen-
tilmente para que o policial ligue para Nigar e a avise que estamos na estação
aguardando por ela. Contratempos de estrangeiros no Azerbaijão.
Muito solícito, o policial faz a ligação e diz que em alguns instantes jornalis-
146
ta deve aparecer na entrada da estação de metrô. Agradecemos com muito “Cox
Sagol” – obrigado em azeri – ao rapaz.
Em alguns minutos uma mulher branca, alta, magra, cabelos negros, calça
jeans, camisa branca e uma sandália bege vem em nossa direção. É Nigar.
“Desculpe. Eu vim aqui duas vezes e esperei por vocês. Como não te vi,
pensei que não viria”, explica a jornalista.
“Imagina. Eu é que me desculpo por me atrasar. Hoje visitamos uma uni-
versidade e acabei me atrasando”, conto rapidamente.
Atravessamos a avenida e entramos num prédio antigo bem a frente da es-
tação Icheri S heher. O elevador é pequeno, mas compacto. Logo chegamos no
corredor que dá acesso a sala onde fica instalada a redação do Azernews.
Uma sala ampla abriga alguns computadores, mesas com muitos papéis,
jornais, painéis com cronogramas de pautas e impressoras. Devido ao horário,
alguns funcionários já deixaram o prédio. Além de Nigar, mais duas jornalistas
estão presentes para nos receber.
O Azernews foi fundado em mil novecentos e noventa e sete e é o primeiro
jornal no país publicado em inglês – com plataforma online e o jornal impresso
que é publicado semanalmente.
“Sejam bem vindos!”, diz uma das jornalistas. “Brasileiros, né? Devem ter
viajado muitas horas para chegar até aqui”, brinca.
Entramos em uma sala de reunião, sentamos, recebemos xícaras de chá. Pri-
meira experiência num jornal internacional, inúmeras perguntas para fazer. Mas
não sei por onde começar. Antes que o jovem estudante aqui pudesse começar a
perguntar, Nigar começa a contar um pouco de seu trabalho, a linha editorial do
jornal e o que costuma escrever.
O relato da jornalista já responde algumas de minhas curiosidades. No en-
tanto, além de eu querer saber sobre o trabalho por aqui, as jornalistas pedem
para eu contar um pouco sobre mim e como resolvi vir ao Azerbaijão.
Conto sobre a faculdade, estágio, o concurso de redação, família, cidade
natal, um pouco do Brasil. Ah, o Brasil... Aqui todas querem conhecer. Quando
cito o nome de meu país, os olhos das jornalistas brilham. É a viagem dos so-
147
nhos.
Nigar abre uma das varandas da
cobertura e nos convida para uma con-
versa com vista para a Cidade Fortifica-
da de Baku. A visão é incrível e o fim
da tarde nos presenteia com o vento que
vem do norte da cidade e refresca nossa
pele.
O papo vai ficando cada vez mais
interessante. Um assunto vai puxando
o outro e na conversa vou aprendendo
muito sobre como o jornalismo é feito
no Azerbaijão. É bacana ver como fun-
ciona a comunicação social por aqui que
em muitos fatores é similar ao Brasil.
As jornalistas apanham algumas re-
vistas e materiais em inglês sobre o Azer-
baijão e me presenteiam dentro de uma
sacola de plástico preto para maior apro-
fundamento. A conversa está ótima, mas
já está na hora de partir.
A sacola de plástico traz algumas re-
vistas bonitas, cartões das jornalistas que
conheci na tarde de hoje e um aprendi-
zado que a internet ou livros jamais me
proporcionariam. O conhecimento que
adquiri hoje foi possível pelo fato de eu
estar exatamente aqui. Retorno ao ho-
tel. Pensamento leve, grato e com muita
vontade de escrever mais e mais sobre
esse lugar e todas essas experiências.
148
Pelo ângulo do boulevard, o
entardecer da cidade de Baku
– Foto: Ulisses Lisboa

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[Décimo PRIMEIRO contato]
Missão brigadeiro no Cáucaso

S
ábado, doze de Julho de dois mil e quinze, aproximadamente sete e meia
da manhã. Mesmo um pouco sonolento, eu levanto da cama. Disposto,
apanho roupas de banho e subo até um dos últimos andares do hotel para
começar o fim de semana com um mergulho na piscina.
Após relaxar nas águas mornas da enorme piscina, encontro com a delega-
ção brasileira no café da manhã para ajustarmos a nossa apresentação para a festa
intercultural de hoje.
Estamos tentando achar uma cozinha para prepararmos os brigadeiros que
serviremos na festa. Devido às regras internas do hotel, não podemos utilizar a
cozinha daqui. Espero que algum guia consiga pelo menos um fogão para fazer-
mos os doces.
Escolhemos a música que iremos dançar, além de designar cada um do
grupo para falar sobre as regiões do Brasil. Como temos um passeio agora pela
manhã, combinamos de nos encontrar após o almoço para encher os balões e
procurar a cozinha para fazer o brigadeiro.
Além da festa mais tarde, agora vamos para o lugar mais futurista e incrível
do Azerbaijão, o Centro Heydar Aliyev. Há algum tempo, quando eu procurei
pela a primeira vez por fotos do país na internet, o edifício foi o primeiro a apa-
recer para mim. E, confesso que o destino de hoje é um dos que lugares que estou
mais ansioso em para conhecer.
“Estão prontos para um dos últimos passeios?”, diz Gunel Hamzayeva, uma
152
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das guias que nos acompanhou durante
todos esses dias.
Ao deixarmos o ônibus, somos
intimidados com o edifício impecavel-
mente branquelo que, se eu não esti-
vesse em sua frente, não acreditaria ser
real. É exatamente como nas fotos, ex-
traordinariamente exótico.
Um jardim cuidadosamente poda-
do rodeia o Centro Heydar Aliyev que
possui uma conexão contínua entre a
praça do edifício e o interior do prédio.
Algumas esculturas azeris são expostas
pela grama esverdeada.

Curvas acentuadas
compõe um dos lados do
Centro Heydar Aliyev –
Foto: Sophie Autumn
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A praça que dá acesso ao Centro
estabelece diferentes aspectos em sua
composição. Bifurcações, inflexões, on-
dulações e dobras mudam a atmosfera
da praça em uma paisagem arquitetô-
nica que possibilita abraçar, acolher e
sinalizar aos visitantes que aqui fica lo-
calizado um dos monumentos mais in-
críveis do país.
Com um formato moderno, ousa-
do e sofisticado, o Centro Heydar Aliyev
foi inaugurado em dois mil e doze e foi
projetado pela arquiteta Zaha Hadid.
No interior do complexo, encontra-se
uma sala de conferências, uma sala de
galeria e um museu.
A arquitetura do Centro Heydar
Aliyev remete a uma forma fluída que
emerge de curvas acentuadas e formam
murais que desmistificam as formas ge-
ométricas usuais. Todas as funções do
Centro, junto com entradas, são re-
presentadas por dobras em uma única
superfície. Esta forma contínua une os
diversos espaços culturais e, ao mesmo
tempo, possibilita que cada elemento
arquitetônico da construção tenha a sua
própria identidade visual e singular.
Assim como a cobertura externa
do edifício, toda a pintura interna é
branca e sem rasura alguma. Entramos
155
no museu que explica o porquê do nome do centro, que
é em homenagem ao ex-Líder Nacional do Azerbaijão,
o Heydar Aliyev.
Caminhando pela exposição, temos acesso a toda
trajetória política de Aliyev, um completo memorial
preservado com muito respeito. Filmes e muitas fotos
são espalhados pelo salão esbranquiçado que propor-
ciona maior penetração da luz externa através das largas
janelas.
O espaço interno é belo na mesma proporção que
futurista, chega até a assustar. Alguns corredores lem-
bram filmes que passam no futuro. E, deveras encan-
tado com o centro, utilizo minha câmera fotográfica
instantânea para registrar o momento.
Pausa para uma foto oficial do grupo na frente do
edifício e deixamos o Centro Heydar Aliyev. Retorna-
mos para o hotel e os guias aconselham que utilizemos
o tempo da tarde para organizar as apresentações para
a festa à noite. Sim, precisamos ajeitar tudo, inclusive
achar um lugar para preparar o nosso prato típico.
Almoçamos com pressa e nos reunimos para pre-
parar a representação do Brasil na noite de hoje. Alguns
integrantes do grupo já estão designados para falar so-
bre as regiões de nosso país, dançaremos “Garota de
Ipanema” e iremos decorar a nossa mesa com a bandei-
ra, balões, doces e lembrancinhas nas cores verde e ama-
relo. É assim que investimos algumas horas da tarde
para resolver tudo.
“Infelizmente não será possível disponibilizar uma
cozinha para vocês”, diz o guia Rashad.
Todos entram em pânico. Estamos com as bexigas
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cheias de ar e amarradas, todas as lembrancinhas, as fa-
las na ponta da língua e vestidos nas cores da bandeira.
Só falta preparar o brigadeiro que leva no máximo uma
hora para ficar prono. E agora?
Fomos falar com funcionários para pedir mais
uma vez por alguns minutos numa cozinha, resposta
não. Procuramos outros guias para tentar de novo, res-
posta negativa. Pensamos em ir a algum restaurante por
perto, mas provavelmente a resposta será mais um não.
As delegações dos outros países descem para o
hall fantasiados com trajes tradicionais de suas respec-
tivas culturas e diversas sacolas com as comidas típicas.
Maquiagens temáticas e muitos objetos nas cores da
bandeira de seus países. Engajamento nota mil. Menos
para nós, brasileiros, que estamos apenas com latas de
leite condensado na mão, um saco de chocolate em pó
e alguns potes com chocolate granulado, além de for-
minhas de papel vazias. Não temos uma cozinha para
preparar o nosso prato típico. O que faremos com isso?
É assim embarcamos no ônibus rumo à festa in-
tercultural, derrotados pela “missão cozinha no Azer-
baijão” que deu errado. Pelo menos temos alguns doces
O branco invade o inte- que eu trouxe, como pé-de-moleque e bananinhas açu-
rior do edifício e descan-
sa a visão de quem chega caradas. Mas não é muito.
– Foto: Ulisses Lisboa Rapidamente chegamos ao local da festa, as de-
legações descem efusivas para montar suas mesas, nós
desembarcamos preocupados com o que está por vir. O
lugar é sofisticado, mesas intermináveis fartas de pratos
típicos, garçons prontos para nos servir e um grupo
tocando canções azerbaijanesas no palco ao fundo do
salão.
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Há funcionários do buffet saindo de uma porta com
algumas bandejas de comidas para colocar nas mesas, outros
trazem taças com refrescos. Há um lugar onde está sendo
preparada a comida. Ainda não desistimos.
“Vamos pedir para usar a cozinha do buffet!”, grita
Bruno.
Acompanho Bruno na missão de convencer, pela últi-
ma chance, a nos deixarem preparar um pouco de brigadei-
ro para as delegações. Entramos numa cozinha industrial,
algumas cozinheiras e dois chefs. Todos nos encaram.
“Por favor, vocês podem nos deixar cozinhar por al-
guns minutos um doce?”, começa Bruno.
“Vai ser muito rápido!”, prometo a equipe de cozinhei-
ras.
Um dos chefes faz sinal positivo com a cabeça. BIN-
GO! Gritamos de felicidade, vai dar certo. Bruno corre de
volta para a festa para recrutar mais colegas para ajudar na
produção do brigadeiro.
Enquanto os outros grupos de estrangeiros decoram
suas mesas, nós despejamos latas de leite condensado num
enorme caldeirão. Desajeitados e gritando pela cozinha, co-
meçamos a fazer o doce brasileiro. Quatro mãos mexendo
na panela com colheres de madeira. É para dar tempo. Fran-
cine, Bruno, João Osborne e João Cezaroti se esforçam para
dar certo.
Deixo os amigos na ampla cozinha e retorno a festa
para tentar começar a organizar a nossa mesa. Encontro Mo-
nique, a nossa professora querida decorando o nosso espaço.
Colocamos a nossa bandeira verde, amarelo, azul e branco
sobre a mesa, espalhamos chaveiros e doces. Como não te-
mos barbante para amarrar os balões, mas os acomodamos
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no tecido de uma cortina enrugada, ficou bom.
Passam alguns minutos, os meninos trazem os briga-
deiros enrolados e dentro das forminhas de papel verde e
amarelo, deu certo. Colocamos com pressa os nossos doci-
nhos de chocolate e a nossa exposição brasileira está pronta.
Cantoras azerbaijanesas como Nura Suri e Tunzale en-
tram no palco e animam a festa intercultural. As pessoas
visitam a nossa exposição e a cada elogio que recebemos do
brigadeiro, lembramos que há uma hora estávamos apenas
com as latas de leite condensado nas mãos sem nenhuma
perspectiva.
Devido às presenças artísticas e a animação de todos,
cada delegação é chamada ao palco para simplesmente dan-
çar a sua canção típica e alguns grupos utilizam o microfone
para falar um pouco sobre a sua cultura.
Na nossa vez, subimos no palco ao som de Tom Jobim
e conseguimos trazer todos para dançar conosco. A empol-
gação foi tanta que, no fim, a dança foi suficiente para mos-
trar os nossos movimentos artísticos. Todos adoraram.
Voltamos para o hotel todos abraçados, gargalhando
no ônibus, com a missão brigadeiro cumprida, dança apre-
sentada, os bolsos cheios de presentes das outras delegações,
encantados com a diversidade de cada país apresentado hoje.
Sinto-me grato por conhecer pessoas de lugares tão diferen-
tes e, ao mesmo tempo, com características claramente em
Bandeira do Brasil comum: todos apaixonados pela cultura de cada lugar do
convida as delega-
ções de outros países mundo.
para degustarem os
nossos doces típi-
cos – Foto: Ulisses
Lisboa

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[Décimo segundo e último contato]
Até mais, Azerbaijão

N
ão quero ir embora. Quase duas semanas se passaram, o tempo simples-
mente voa. Deve ser porque as experiências por aqui foram realmente
formidáveis. O décimo segundo e último contato no Azerbaijão come-
ça com o despertador do dispositivo móvel ecoando pelo quarto. Levanto e os
primeiros pensamentos são: poxa vida, é meu último dia na Terra do Fogo.
Ao meu lado, no criado-mudo há algumas lembranças de ontem. Chavei-
ros e doces de vários lugares. A festa intercultural foi divertida, os vídeos ficaram
ótimos e os todos adoraram o nosso brigadeiro.
Hoje o cronograma é livre e as sugestões dos guias são passeios pelo enorme
boulevard da cidade. Alguns grupos já combinam de passear por lugares especí-
ficos em Baku, como voltar na Cidade Velha para explorar com calma.
Ajeito algumas peças de roupa para acomodar na mala azul-piscina que vive
suas primeiras jornadas comigo e já está quase na hora de retornar para casa. Esse
quadrado de acrílico que encontrei no supermercado há alguns meses mal sabia
que viria para o Cáucaso.
Aproveito para iniciar o processo de empacotar roupas, presentes, sapatos
e demais objetos na mala. Dobro camisetas, organizado nas extremidades do
espaço. A cada peça que coloco dentro da bolsa, percebo que junto com perten-
ces que eu trouxe, também vão muitos aprendizados que adquiri ao longo dos
últimos dias. Lições que pesam, talvez resulte em excesso de bagagem. Mas é um
peso positivo, um conteúdo que sempre busquei trazer comigo.
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Percebo que ainda há algumas notas de ma-
nats na carteira. Por que não investir o resto do
dinheiro em mais algumas lembrancinhas? Com-
bino com Natália que também está em interessada
em comprar presentes para o restante da família.
E, sem muitas coordenadas e destinos específicos,
vamos em busca de lojas de souvenir na cidade.
Andando pelo centro de Baku, acabamos
caindo na Cidade Velha. Vamos garimpando pela
feirinha de antiguidades e pechinchando nas lojas
com os vendedores com dentes metálicos.

Artesanatos e antiguidades
azeris expostos na Cidade
Fortificada de Baku - Foto:
Sophie Autumn

Depois de perambular por opções e preços,


escolhemos um lugar para comprar nossos presen-
tes. A loja parece ser uma gruta e dois simpáti-
cos senhores nos atendem. Além de atenciosos, os
vendedores sabem falar “obrigado” em português.
Escolho um mini-tapete azeri, três pratos
pintados com desenhos da cidade, pequenas bolsi-
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nhas bordadas, uma caneca, camisetas, chaveiros e
alguns lenços. Natália compra lembranças simila-
res às minhas. E ainda ganhamos descontos.

Felino caminha em meio aos


artefatos de cobre no beco da
Cidade Velha - Foto: Ulisses
Lisboa

O dia vai passando, o sol vai se pondo. As


horas vão indo pelo ralo do relógio. O tempo é
algo formidável. Por momentos, tenho a impres-
são de que estou aqui há muitos meses, parece ter
passado uma eternidade. Sinto-me territorializado
nesse lugar. E, se eu visualizar mais próximo da
realidade, vejo que essas duas semanas foram ex-
tremamente bem vividas, mas passaram rápido. O
tempo passa despercebido, a gente teme por ele e
às vezes pedimos para ele voar. Hoje peço para que
ele enrole, esqueça de passar, tire folga, fique lon-
ge.
Caminho pelo calçadão. Ao meu lado, a
imensidão em águas salgadas advindas do Mar
Cáspio, o líquido que banha uma nação que tem
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tantas histórias para contar, tanta experiência histórica, tantas
batalhas para conquistar seu espaço e, hoje, estabilizada, a Ter-
ra do Fogo conquista seu espaço no mundo.
No currículo da viagem, consigo rechear páginas repletas
de vivências enriquecedoras. Os passeios, os lugares, os ensi-
namentos, os banquetes como os da realeza, os simples gestos
e o crescimento que obtive nessa experiência.

As nuances de
tons azuis e
brancos do céu
encantam a paisa-
gem da capital do
Azerbaijão, Baku
- Foto: Ulisses
Lisboa

Transbordando gratidão, retorno para o hotel para pre-


parar tudo para deixar o país, nosso vôo decola na madrugada,
mas seguiremos para o aeroporto com certa antecedência.
Caminho pelo hall, muitas malas já prontas para serem
despachadas. Olhares nostálgicos, fotografias com rostos lu-
brificados de lágrimas sinceras e frases como “vem me visitar
no meu país” são repetidas. Encaro todos, minha mente fecha
e escurece como nas telas de cinema antes de iniciar um filme.
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Daí passa um longa metragem em minha cabeça lembrando
todas as vivências que tenho de cada um. Sigo para o elevador,
é melhor me retirar. Prefiro me emocionar sozinho.
Chego a meu quarto, o aroma de lavanda continua in-
tenso como no primeiro dia que pisei aqui. A cama continua
impecavelmente arrumada e lá fora a vida azerbaijanesa segue
normal. Aqui dentro os últimos momentos seguem emocio-
nantes.
Dirijo-me aos afazeres finais antes de deixar o hotel.
Checar se não esqueci nada, olhar debaixo da cama, procurar
o carregador do telemóvel, deixar um recado educado para a
camareira que cuidou tão bem das minhas coisas.
Começo a fechar o zíper da mala. Antes que eu consiga
concluir a primeira curva das extremidades da bolsa, sou in-
terrompido e pauso. A campainha toca. Encaminho-me até a
porta de madeira. É Emma – ou Sophie para os menos chega-
dos.
Entreolhamo-nos por alguns segundos, a energia é estra-
nhamente boa e ruim. Abraço forte a amiga da região báltica.
Seus cabelos grossos se espalham pelo meu rosto. Emma entra
e se joga em minha cama.
“Não quero ir embora e nem me despedir de você”, co-
meça a estoniana.
É até clichê dizer que odiamos despedidas. Mas é triste
quando não queremos nos separar de alguém. Somos acostu-
mados a nos apegar demais a lugares, coisas e pessoas. Talvez
esse seja o nosso defeito.
Há exatamente duas semanas, na sala de embarque ainda
em São Paulo, ansioso com a experiência que eu estava prestes
a ingressar, eu imaginava que a viagem seria muito boa. No
entanto, naquele momento, eu não tinha ideia que eu encon-
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traria pessoas tão especiais, tão diferentes, tão amáveis. Essa menina destrambe-
lhada na minha frente é um caso desses.
Termino de fechar o zíper da mala. Adiei fazer isso desde o inicio do dia.
Deixei para depois porque sabia que fazer isso significaria que está na hora de
partir. Enquanto eu acomodava minhas roupas mais cedo, eu sabia que fechar a
mala seria o último aval.
Aprendemos a fazer tantas coisas, fomos à lua, descobrimos o átomo, temos
dúvidas se o leite é prejudicial à saúde, ainda não encontramos a cura para algu-
mas doenças, mas neste intervalo, sabemos fazer um turbilhão de coisas. É a ideia
de que às vezes mesmo errando, continuamos a fazer tantas coisas. Mas, temos
dificuldade de deixar ciclos. Resistimos às mudanças e acabamos nos acostuman-
do rápido.
Foi assim que aconteceu por aqui, acostumei-me rápido ao Azerbaijão. É
ingenuidade dizer que eu não sabia da data de expiração dessa experiência – que
está chegando. Mas deixei simplesmente os dias acontecerem. É assim que revis-
tas de viagem aconselham, segui regras.
Em certo momento da minha formação, ingênuo, eu acreditava que um dia
eu chegaria num ambiente em que as pessoas seriam iguais a mim. Eu imaginava
um local em que as opiniões fossem em comum e que nós compreendêssemos
uns aos outros. Esse pensamento foi mantido em minha mente há muitos anos,
eu era despreparado.
Hoje, finalizando o ciclo num lugar tão peculiar como o Azerbaijão, re-
torno a esses pensamentos que eu tivera quando adolescente e os trago para essa
despedida. Esse lugar que eu tanto acreditava um dia ser real, talvez não exista.
Sempre encontraremos adversidades nas jornadas. Mas, acima de tudo, aprende-
remos com elas. Uma dose internacional é interessantíssima para aprender com
as diferenças, as opiniões divergentes e no fim de tudo, o respeito.
Vietnamitas, tão disciplinados e surpreendentemente inteligentes. Belgos,
diplomáticos, simpáticos e cordiais. Estonianos amáveis e diferentes. Africanas,
uma lição diária de bom humor, sorriso no rosto e carisma. Mexicanos, piadas
engraçadas e amigáveis. Argentinos, quase nossos irmãos, um lugar em nosso
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coração. Húngaros, exóticos e pessoas do bem. Canadenses, tímidos mas sempre
dispostos a ajudar.
Tive um contato com pessoas de diversos lugares do mundo. Consegui sen-
tir um pouco de cada cultura e, certamente levarei comigo um singelo pedaço de
cada um, lembrança que jamais serão esquecidas.
Há algum tempo eu ingressava no concurso “O que eu sei sobre o Azerbai-
jão?”. Hoje, despedindo-me deste lugar tão especial, percebo quantas lições essa
nação me ensinou. Após exatamente doze contatos incrivelmente bem vividos,
isso é tudo.
Tudo que trago como memórias da Terra do Fogo.

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