Вы находитесь на странице: 1из 163
Copyright © 1992 by Wander Melo Miranda Vedigho 1992 2 edigao 2009 Dados Internacionais de Catalogagio na Publicago (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Miranda, Wander Melo. Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago./ Wander Melo Miranda, ~ 2, ed, - So Paulo: Editora da Uni- versidade de Sao Paulo, 2009, Bibliografia, ISBN 978-85-314-1146-5 1, Graciliano Ramos ~ Critica e interpretagdo 2. Silviano Santiago ~ Critica e interpretagio I. Titulo. CDU-869.0(81)-3.09 AQUISICAO POR COMPRA ADQUIRIDO DE : 22 jun. 2011 PRECO i REGIST Era vie SAQOREGISTRO 09 10. N Edusp — Editora da Universidade de Sto Paulo Av, Prof, Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6 andar ~ Ed. da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitiria 5508-010 — Sio Paulo - SP Brasil Divistio Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 — Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br — e-mail: edusp @usp.br Printed in Brazil 2009 Foi feito o depésito legal Para Latse SUMARIO. Nota 3 2° edigao Preficio Pacto de Leitura Parte I AUTO(BIO)GRAFAR 1, A ILUSAO AUTOBIOGRAFICA. Individualismo e Autobiografia Formas do Eu Desfazendo a Ilusiio 2. GRACILIANO RAMOS: FICGAO AUTOBIOGRAFICA... O Eu Desconstrufdo O Eu Estilhagado O Eu-Caeté 3. SILVIANO SANTIAGO: AUTOBIOGRAFIA FICCIONAL... O Eu Devorado A Miragem do Eu A Historia do Eu O Eu Desdobrado i 17 25 26 38 43 47 55) 52) 60 70 7a 79 10 CORPOS ESCRITOS 4. ADEMANDA DOS TEXTOS: MEMORIAS DO CARCERE E EM LIBERDADE Operacdo Tradutora A Impropriedade do Nome Proprio Parte II EU, OUTRO TEXTO . O TEXTO REFLEXIVO Exercicio Artesanal As Tabuas Estreitas O Abismo da Escrita 2. O TEXTO DA MEMORIA O Tecido Desfiado Refazendo 0 Tecido 3. O TEXTO DO LEITOR Ler, Rememorar Ler, Desconstruir S . TEXTO E HISTORIA A Tatuagem da Palavra Outros Carceres Linguagem em Liberdade Bibliografia 8s 95 101 103 108 112 119 120 129 133 137 141 145 148 151 15S 159 NOTA A 2 EDICAO Os estudos atuais sobre autobiografia e memorialismo alcangaram no Brasil um nivel raro de maturidade, ampliando a discussao teérica sobre 0 assunto e a compreensao critica dos autores estudados. Temos no pais uma bibliografia de largo alcance, que traduz, de diversas formas, 0 desejo de compreender as relagGes entre sujeito e sociedade sob a 6ptica do que nos habituamos a rotular, ndo sem ironia, de escrita do eu. A 1* edigio deste livro, 1d se vio mais de quinze anos, contribuiu ainda que minimamente para chamar a atengfio para o problema. Tendo sido bem recebida & época do lancamento, a obra no deixou de causar certo desconforto — pela novidade teérica ou pela ousadia da aproximagiio entre Graciliano Ramos e Silviano Santiago. Hoje isso nao parece mais importar e caberd ao leitor decidir se o pacto de leitura aqui proposto ainda continua valendo. WM.M. PREFACIO CO discurso memorialista tem tradigdo firmada na literatura brasilei- ra, sob a forma de didrios, autobiografias, auto-retratos. Tal esforgo de representacao merece que a critica se dedique, com igual esmero, a exa- minar tais textos, reelaborando criticamente 0 substancioso percurso dessa producdo. E 0 que realiza o critico Wander Melo Miranda, neste seu livro inti- tulado Corpos Escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. O seu consciencioso ensaio tem por objeto o estudo integrado de dois textos: Memdrias do Cércere, de Graciliano Ramos e Em Liberdade, de Silviano Santiago, baseando-se sobretudo na reflexdo em torno dos dificeis limites entre o discurso memorialista e o discurso ficcional. Per- correndo este ambiguo territ6rio, 0 ensaio problematiza como a memé6ria encena a fic¢do, como a ficgdo encena a meméria e como ambas encenam a hist6ria. De cada autor, pode-se afirmar que traz um enfoque novo, centrado nas marcas literérias tanto da ficcdo autobiogréfica de Graciliano Ramos, quanto da autobiografia ficcional de Silviano Santiago. A selecao dos auto- Tes, se mostra uma diferenga de geragdo, de personalidade e de compor- tamento literdrio, permite examinar estas questées ali mesmo na intrinca- da rede destes parentescos e das tantas diferengas. Sob este aspecto, a se- lecdo privilegia um cotejo dindmico, que se complementa mutuamente. E permite avaliar as possibilidades de tal procedimento comparativista. Ao flagrar momentos criticos da nossa cultura, 0 recorte, basicamen- te literdrio, propicia questionar perfodos dificeis de regimes autoritdrios 4 CORPOS ESCRITOS que se impuseram no Brasil sob a ditadura Vargas, a partir dos anos 30, ¢ sob a ditadura militar, a partir dos anos 60. O ensaio encontra neste centro de irradiagdo politica o nticleo mo- tivador de uma reflexdo sobre as relagGes entre 0 intelectual e o poder, que conduz a uma avaliago da narrativa brasileira sob o impacto da re- pressdo e da violéncia. Permite, assim, desmitificar posturas fundadas em modelos de dominagao que endossam a indole autoritdria. E, ao suscitar 0 cotejo de tais sistemas politicos e artfsticos, leva a reflexdes sobre as rup- turas que a arte acaba af inaugurando, na prdtica de uma forga de re- sisténcia revigoradora. Dentro do espirito cocrentemente indagador que conduz esta re- flexdo, 0 autor apresenta, de modo didatico, os pontos fundamentais que norteiam as principais teorias referentes a t6picos importantes examina- dos neste percurso: 0 discurso autobiogréfico, as formas de sua tradugdo e as formas de sua recepcdo. Cabe-lhe, pois, um ndo menos importante papel: 0 de mapear as di- regées das diferentes posturas tedricas e metodolégicas, num esclareci- mento despreconceituoso, mas firme do ponto de vista critico, alerta as possfveis vantagens e desvantagens de tais procedimentos. Também por essa raz4o, considero esta leitura indispens4vel para que se possa desen- volver, com félego critico, a discussio em torno do modo como tais questées se inserem no contexto da nossa cultura literdria. Saliento que este texto consiste no testemunho licido de uma ge- rag4o que viveu a infancia e parte da juventude nos anos 60. E que, nos anos 80, tenta recuperar tal memGria, pelo exercicio da andlise e da inter- pretagdo. Ao recorrer 4 meméria e a ficgdo de outros, este estudo também inventa um modo todo seu de ler e de escrever a sua hist6ria propria. Os caminhos dessa leitura criativa acham-se marcados, ainda, pelo acento critico cuidadoso e sensivel aos movimentos e desvaos que compéem o literério, reconhecendo nos textos que lé a “firme resisténcia A seriacdo do individuo e a coletivizagdo alienante que a experiéncia car- cerdria intensifica ¢ aguca”. Dessa forma, mais uma vez, livram-se dos “cArceres do eu”, pela lei- tura revigoradora, tanto os autores examinados quanto, sob nova perspec- tiva, 0 proprio critico que os elegeu como objeto de estudo, ele também produtor de texto critico e testemunha de uma experiéncia hist6rica parti- cular. O “encontro solidério com o outro” torna-se agora possivel também ao critico Wander, ao assumir através deste livro o papel de agente, j4 de terceira geracdo, das tao ambicionadas “transformagées culturais e politi- cas”, de que todos tratam, nesta seqiiéncia de textos escritos ¢ lidos, e re- PREFACIO ‘ escritos, e relidos: por Graciliano, Silviano, Wander. E por nés, mediante esta oportuna publicacao. Nédia Battella Gotlib PACTO DE LEITURA No filme Memérias do Cércere, de Nelson Pereira dos Santos, uma cena chama a atengdo. Nela, Graciliano Ramos, vendo-se na iminéncia de ter suas anotagées sobre a prisdo descobertas e apreendidas, esconde atras de si as folhas escritas, que passam de suas m4os para as de um outro pre- so € destas para outras, até que cheguem a um lugar seguro, vedado ao olhar policialesco. A cémera acompanha, veloz ¢ ansiosa como o olho do espectador, a trajetéria dos papéis passando de mao em mao ¢ ao enqua- drar esse movimento emociona e faz pensar. Texto e imagem resvalam, se tocam, se confundem, revelando a in- tendo significante do filme e do livro: uma urdidura trangada por varias mios e vozes, testemunho ético de um e de todos frente a uma realidade “absurda”, “repulsiva”, “inconcebivel”. As memérias tém esse cardter lu- minoso de resgate criador de uma experiéncia compartilhada em meio as trevas, de conjungdo solidria da mao que desenha a letra mitida no papel amassado com outras m4os, inaptas ao trato da palavra escrita que res- guarda e transforma o vivido. Trabalho de meméria fincada no presente, o texto de Graciliano re- percute em outro texto - Em Liberdade, de Silviano Santiago. A leitura conjunta de ambos, que aqui se propée, procura infiltrar-se em camadas de escrita sobrepostas, percorrer 0 itinerario de aproximagées ¢ colisées de significagdo que se elucidam mutuamente, a partir da discussao das re- lages entre o discurso ficcional e 0 discurso autobiografico, fulcro de in- teresse € ponto de contato mais evidente da obra dos dois escritores. 18 CORPOS ESCRITOS O recuo estratégico de Em Liberdade ao passado funciona como um recurso eficaz ¢ inventivo do qual o autor lanca mao para ampliar a reper- cussao do seu testemunho da histéria recente do Brasil, indo além do re- gistro imediato dos fatos concretos, mediante sua contextualizagéo num decurso temporal mais abrangente ¢ num espaco de configuraco literaria mais amplo e complexo. Em ambos os textos, a lucidez na apreensdo dos mecanismos de repressdo politico-social € acompanhada de igual lucidez no trato da linguagem que (d)enuncia tais mecanismos: 0 texto dobra-se sobre si mesmo e, na auto-reflexdo encetada, desfaz a ilusdo autobiogrdfi- ca e a ilusdo referencial. As vicissitudes individuais, representadas sob forma autobiogrdfica, num caso, e sob forma ficcional, no outro, ndo se restringem aos limites de um eu, nem se reduzem a esfera do documento, mas adquirem uma ressondncia que delega aos dois textos uma validade literéria raras vezes atingida por seus congéneres. Arte, vida ¢ histéria, conjugadas, revelam entdo a outra cena encoberta pela ret6rica oficial ¢ pelos mecanismos de dominagdo que mantém o escritor preso aos cérce- res do eu, dificultando-lhe 0 encontro solidério com 0 outro e negando-lhe 0 desempenho efetivo do papel de agente de transformagées culturais e politicas. Nao € dificil perceber que a tarefa analitica pretendida tem como “pano-de-fundo” um contexto literario especifico, determinado por um ti- po de produgao que, sobretudo a partir de 1979, com O que é Isso, Com- panheiro?, de Fernando Gabeira, tornou-se comum entre nés. Trata-se do relato memorialista das experiéncias de jovens politicos ou ex-cxilados, que se langaram contra o regime instalado no pais apés 1964, e que traz a marca de um testemunho individual autobiografico que, em tiltima instan- cia, pode ser visto como testemunho de uma geraco. Nesse sentido, o li- vro de Gabeira pode ser considerado “extraordinério”, “fora do ordind- rio”, na medida em que, segundo Davi Arrigucci Jr., “conta a histéria ofi- cial a contrapelo, mostrando o que nao foi contado”, com 0 intuito de “re- compor um rosto contra o horror 4 mem6ria e assim penetrar no sentido do que se escoou”!. E essa a fungdo predominante desempenhada, talvez de modo nao tao bem-sucedido, pela maioria dos depoimentos politicos préximos ao de Gabeira, nos quais leitor acaba por atualizar “uma meméria que também € sua”, através da vivéncia daquilo “que ndo nos permitiamos vi- venciar”?, Entretanto, na medida em que a informagao veiculada pelos re- latos importa mais do que o cuidado com as formas de veiculagdo, esses textos parecem cumprir apenas a demanda urgente do piblico pela hist6- ria politica imediata, 4 qual se restringem e na qual parecem esgotar-se no 1. Arrigucci Jr., “Recompor um Rosto”, p. 69. Veja-se, também, Malard, “Anélise Contrastiva de O que sso, Companheiro?, de Fernando Gabeira e Reflexos do Baile, de Ant6nio Callado”, pp. 75-120. 2. Holanda, “Um eu Encoberto”, p. 10. PACTO DE LEITURA 9 calor da hora. Geralmente tais textos revelam-se mera repeti¢ao de mode- los e procedimentos literdrios desatualizados ou estereotipados, sem maiores preocupagées com a reflexao acerca do trabalho empreendido. Assim sendo, a forga questionadora da tarefa de repensar a histéria brasi- leira através do relato da experiéncia pessoal vivida deixa-se enfraquecer? a favor de uma atitude imediatista no tocante 4 produgdo textual e consu- mista no que se refere 4 sua recepgdo, processo alimentado incessante e interessadamente pelo aparato capitalista, oportunista e voraz, do merca- do editorial. E nesse contexto que Em Liberdade se inscreve, com 0 intuito de operar nele um corte em profundidade, colocando a nu, em forma de questdo, as contradigdes que o percorrem. O texto “dificil” vai diferen- ciar-se das demais narrativas politicas do perfodo em causa‘ por chamar atencdo para o fato de que “o aparato burgués de produgao ¢ publicacdo pode assimilar e até mesmo difundir quantidades surpreendentes de temas revolucionérios, sem colocar seriamente em questo sua pr6pria existénci e a existéncia da classe que o possui”’. Despertado para o problema, o lei- tor pode transformar-se de mero consumidor ou espectador em produtor e colaborador na fung4o de resgatar um passado que também lhe pertence ¢ para a qual o texto efetivamente contribui, ao delegar um papel relevan- te e mais conseqiiente a reflexdo sobre as relagdes entre experiéncia pes- soal ¢ seu registro, autobiogréfico ou “fingido”, pela escrita, e ao colocar no palco dos debates uma exemplar experiéncia politica, intelectual ¢ artistica do passado: a de Graciliano Ramos. O abandono da perspectiva monolégica do eu e da histéria, levado a cabo pelas mem6rias de Graciliano ¢ pelo resgate delas efetuado por Sil- viano, estabelece o entrelace significativo de dois percursos literdrios rele- vantes e de dois periods histéricos decisivos. As Memérias do Carcere sio lidas por Em Liberdade num jogo intertextual que descarta, dadas as ca- racteristicas de ambas as obras, a ingenuidade e o imediatismo que com- prometem a plena realizagao artistica ¢ a efetiva ressonancia politica da grande maioria de textos similares no Ambito da literatura brasileira. Essas consideragées tornam mais evidente a razdo deste trabalho, podendo ser delineados com mais preciso seus objetivos principais: 0 es- tudo do funcionamento da meméria enquanto linguagem, leitura, tra- 3. E justamente 0 contrério do que ocorre com a monumental obra memorialista que Pedro Nava, a Partir de 1972, com Baii de Ossos, coloca em circulagéo. E necessério pelo menos mencionar o fato, jé ‘que a obra de Nava néo vai ser aqui abordada, tanto por dificuldades de tempo e espago, quanto por fugir aos objetivos precisos deste trabalho. Mesmo assim, 0 contato com 0 texto de Nava perpassa es- tas paginas, tendo sido um estimulo para sua consecugéo. Sobre Nava, ver: Candido, “Pedro Nava, uma Obra em Prosa Franca”, p. 18. 4. Uma relagéo (parcial) dessas narrativas € apresentada na bibliografia, no final deste volume. 5. CL. “L’Autore come Produttore”, em Benjamin, Avanguardia e Rivoluzione, pp. 207-208. 20 CORPOS ESCRITOS dugao; a reflexdo sobre os pontos de convergéncia e de divergéncia entre 0 discurso ficcional, 0 discurso autobiogrdfico ¢ o discurso hist6rico; o rela- cionamento entre sujeito e discurso, sujeito e organizagdo sociopolitica, considerando-se as relagées do intelectual com o poder. Tal proposta aparece desenvolvida ao longo de determinadas etapas, sendo que a primeira delas consiste na discussdo das diversas concei- tuagGes acerca da autobiografia, a razdo da sua ocorréncia na literatura ocidental e seu relacionamento com modalidades narrativas vizinhas, ba- seada, sobretudo, nas pesquisas de Philippe Lejeune a respeito do assunto. A partir dai, seré feita uma leitura da relagéo de reversibilidade entre 0 ficcional € 0 autobiogrdfico propria aos romances de Graciliano em pri- meira pessoa - Caetés, Sdo Bemardo ¢ Angistia -, nao com o intuito de comprovar neles a projecdo de fatos empiricos da vida do autor, mas de mostrar a complexidade inerente a tal processo, ao mesmo tempo em que se procurar4 rever os pontos de vista critico-analiticos que privilegiam, de modo simplista, os reflexos da personalidade de Graciliano na sua obra. A seguir, tarefa semelhante ser4 empreendida no tocante ao conjunto da obra poético-narrativa de Silviano Santiago, com o objetivo de ressaltar em que medida sua prdtica escritural se especifica pelo confronto entre verdade ¢ ilusdo, vida e obra, tendo como fungdo deliberada 0 questiona- mento da “nitidez” autobiogrdfica, da transparéncia referencial ¢ da nogdo de individualidade autoral. O passo seguinte compreende uma compa- ragdo preliminar entre Memérias do Carcere e Em Liberdade, a fim de destacar o papel desempenhado, respectivamente, por ambas as narrativas no conjunto da obra de seus autores e de aborda-las, a partir de uma perspectiva especifica da “tradugdo”, como repeticao diferenciada de um projeto literério similar. Vencida essa etapa, uma outra se abre, orientada principalmente pa- ra a andlise da composicao textual dos dois livros, tendo em mira a fungao do narrador ¢ a posigdo do leitor diante da matéria narrada e da organi- zagao da narrativa. Em “O Texto Reflexivo”, primeiro momento desse percurso, sera dada atengao ao capitulo inicial de Memérias do Carcere e ao “prélogo” de Em Liberdade, considerando-os como “poéticas” enun- ciadoras do projeto narrativo a ser desenvolvido por ambos os textos e ob- servando-se de que mancira neles se cumprem os objetivos entao propos- tos. Isso posto, procurar-se-4 estudar o desdobramento da voz narrativa mediante a abordagem das relagées entre o eu “atual” da enunciagdo ¢ © eu retrospectivo do enunciado, buscando apreender o funcionamento da mem6ria nos textos, para tentar perceber em que medida esse funciona- mento contribui para a recuperacao da meméria e da imaginagdo do pr6- prio leitor. Sera dado relevo, a seguir, ao papel do Icitor nos textos ¢ dian- te deles, visando a mostrar como estes lhe propiciam uma experiéncia efe- tiva de conhecimento ¢ o resgate da hist6ria que ndo péde ser escrita. PACTO DE LEITURA a Finalmente, em “Texto e Histéria”, ponto de chegada do trajeto percorrido, serao agrupadas as questGes anteriormente levantadas, me- diante a abordagem do modo particular como sao configurados os perio- dos hist6ricos a que os textos remetem e a posigdo de seus autores nao s6 como produtores de discurso, mas como testemunhas, através da expe- riéncia pessoal transfigurada autobiografica ¢/ou ficcionalmente, de uma época determinada. Parte I AUTO(BIO)GRAFAR A ILUSAO AUTOBIOGRAFICA (On est toujours plusieurs quand on écrit, méme tout seul, méme sa propre vie, Puiuirre Leseune Para o equacionamento do problema da autobiografia, tendo-se em vista os textos de Graciliano Ramos ¢ Silviano Santiago que serao objeto de andlise, cabe evidenciar a postura a ser adotada: a da autobiografia nao como um simples enunciado, mas como um ato de discurso ou, mais do que isso, um ato de discurso Jiterariamente intencionado. Tal postura sup6e a delimitagdo do campo de interesse 4 abordagem do funcionamen- to especifico dos mecanismos internos de organizago textual, sem des- prezar sua articulagéo com um determinado regime de leitura no ambito do sistema liter4rio e social, a fim de estabelecer os tragos configuradores de uma modalidade narrativa que, apesar de suas caracteristicas particula- res, mantém afinidades com outras modalidades vizinhas. Antes que sejam apresentadas ¢ discutidas essas relagdes “formais” de semelhanga e diferenga, procurar-se-4 examinar, de maneira sucinta, a nogdo de individuo, j4 que desde o sentido dicionarizado do termo “auto- biografia” - “vida de um individuo escrita por ele mesmo”! — tal nogdo 1. 0 vocébulo “autobiografia” aparece na Inglaterra (século XVIII) de onde é importado pela Franca 10 século XIX, sendo adotado por Larousse, em 1886, com o sentido que mantém até hoje. %6 CORPOS ESCRITOS erige-se como principio fundamental para a compreensao da sua génese € do seu progressivo desenvolvimento. Além do mais, € a partir da referida nogdo, enquanto ponto de cruzamento de dreas de conhecimento como a psicandlise, a sociologia, a antropologia e a histéria, que se podem com- preender melhor as miltiplas questdes colocadas por um texto cuja espe- cificidade reside na complexa e muitas vezes tortuosa relagdo entre repre- sentagao literdria e experiéncia vivida. Mais ainda: é na mancira pela qual cada texto autobiogr4fico busca colocar-se diante da nogdo de individuo a ele inerente que reside a sua maior ou menor criatividade, 0 endosso ou 0 desmascaramento da ilusdo autobiogr4fica. Por paradoxal que seja, textos dessa natureza tornam-se mais criativos quando se contrapéem a aludida nogdo, desconstruindo-a através de um processo incessante de renovagaéo e transformacao levado a efeito por um eu inquiridor, nao imobilizante. Individualismo e Autobiografia Maurizio Catani, baseando-se em pesquisas antropoldgicas, mostra que a autobiografia aparece como uma necessidade de configuracgado ideol6gica do mundo ocidental, nao encontrada em outras partes com a mesma freqiiéncia ¢ significado. Tal fato ocorre, principalmente, a partir da formagdo plena do individualismo moderno, datada da época das Luzes e de 1789, com a Declaragdo dos Direitos dos Homens e Cidadios. Ha uma fntima e evidente correlagdo entre o afirmar-se da literatura autobio- grafica, como é comumente entendida, e a ascensdo da burguesia enquan- to classe dominante, cujo individualismo e cuja concepgdo de pessoa en- contram na autobiografia um dos meios mais adequados de manifestacéo”. O ponto maximo de desenvolvimento ou de saturacdo dessa conjuntura poderia ser encontrado nas diversas ocorréncias atuais do “vivido” na lite- ratura e mesmo no jornal, na televisdo e no cinema. Sao ocorréncias con- sideradas por Juliette Raabe ndo como um renascimento ou novo impeto de individualismo, mas como manifestagéo de uma angistia ligada ao en- fraquecimento ou a perda de identidade, em virtude da incerteza hodierna propria a relacao eu-Outro. Dos fatores responsdveis por essa incerteza, s4o apontados: o fim da hegemonia ocidental e do colonialismo anteriores, que propunham uma imagem inconteste do Outro, logo do eu; a descren- ¢a no cientificismo positivista do século XIX, que prometia reduzir o uni- verso a mercé do controle do homem; a deterioragao da integridade do eu provocada pela fragmentacdo inerente a estrutura dos meios audiovisuais; ¢ 0 freudismo, mediante o realce que d4 ao embate das forgas do cons- ciente e do inconsciente, do desejo com sua realizagao*. 2. CE. Catani, “La question de l'autre: débat”, pp. 28-29. A autobiografia ¢ vista também como fendme- 10 tipicamente ocidental por May, L’Auiobiographie, p. 18 et seq. 3. Ct Raabe, “Le marché du vécu”, pp. 241, 247. ‘AUTO(BIO)GRAFAR 7 Posigéo semelhante assume Christopher Lasch quando estuda a vigéncia nos EUA, nas décadas de 1960-1970, de uma forma literéria de cunho acentuadamente autobiografico e na qual lembrangas e experién- cias pessoais aparecem associadas, de mancira peculiar, & crénica politica a critica cultural‘. Essa “nova forma”, enquanto reveladora do narcisis- mo que permeia toda a sociedade americana e que caracteriza sua pro- dugao cultural, ligar-se-ia, segundo o autor, a consciéncia de que a crise do individuo em razao das dimensées alcancadas representaria uma tentativa de esclarecer as inter-relagGes entre vida privada e vida politica, colocando uma questdo cuja andlise deveria poder explicar, entre outras coisas, por que a “vida interior” nao conseguia oferecer nenhuma protegao efetiva contra as ameagas circundantes. O fato de o individualismo burgués, fundamento da razo iluminista, desembocar posteriormente no beco sem safda do narcisismo, como acon- tece com a grande maioria das realizagées culturais de uma sociedade ca- pitalista avancada como a norte-americana, nao invalida a importancia li- terdria da escrita do eu e, muito menos, a complexidade das indagagdes que afloram ao longo do seu desenvolvimento. Como observa Silviano Santiago, “a narrativa autobiografica é o elemento que catalisa uma série de questdes tedricas gerais que s6 podem ser colocadas corretamente por seu intermédio”’, Para a compreensdo mais aprofundada do problema convém, entretanto, recuar no tempo e deslocar a questdo do individua- lismo da época moderna para os seus prim6rdios na antigitidade, seguindo as formulagées de Michel Foucault’, na pesquisa “arqueolégica” por ele empreendida acerca da nogao de individuo e da “estética da existéncia” n: cultura greco-romana dos primeiros séculos do Império. Foucault parte da Vita Antonii, de Atandsio, um dos mais antigos textos da literatura crista, com 0 intuito de mostrar em que medida a ano- taco pessoal das agdes © dos pensamentos atua como elemento indis- pensavel da vida ascética, ou seja, de que maneira a “escrita do eu” (écri- ture de soi) funciona, em relagéo complementar com a anacorese, como uma forga autocoercitiva, pois 0 “anacoreta”, ao escrever sobre os movi- mentos da alma, passa a conhecer-se e, ao se conhecer, passa a ter vergo- nha de si e a armar-se contra o pecado. O texto de Atandsio, apesar dos valores “cristéos” que apresenta, permite reter varios tragos que possibili- tam analisar, retrospectivamente, o papel da escrita na “cultura filos6fica 4. CL. Lasch, La Cultura del Narcisismo. 5. Santiago, “Prosa Literéria Atual no Brasil”, p. 51. 6. Foucault, L'éeriture de soi, pp. 3-23. Ver, também, o estudo de Louis Dumont sobre a relagio entre sociedade “holista” e sociedade “individualista”, no qual é demonstrado como se di naquela o surgi- ‘mento da nogéo de individuo propria a esta. Cf. Dumont, O Individualismo: Uma Perspectiva Antro- olégica da Ideologia Moderna (sobretudo 0 capitulo “Génese, I. Do Individuo-Fora-do-Mundo ao In- dividuo-no-Mundo”. 8 CORPOS ESCRITOS do ew” anterior ao cristianismo. E 0 caso de Séneca, para quem a escrita, enquanto “exercicio do eu”, constitui uma etapa essencial no processo “ascético” de elaboragio dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em principios racionais de ado. Essa escrita apresenta-se, de acordo com os documentos relativos 4 época, sob duas formas principais: Os hypomnemata e a correspondéncia. Os hypomnemata sao carnés individuais onde se consignam citagées, fragmentos de obras, exemplos, agGes testemunhadas ou narradas, re- flexdes, argumentos, cuja utilizagdo como livro de vida ou guia de conduta parece ter sido corrente no meio culto de entdo, Enquanto meméria pas- siva ou meméria-arquivo, esses carnés desempenham a fungdo imediata de exercicio e aprimoramento do ew, no interior de uma cultura fortemen- te marcada pela tradigao e pelo valor reconhecido do jé-dito. Enquanto maneira de recolher as leituras feitas e de se recolher nelas, representam um exercicio racional que se opée a estultice que a leitura infinita arrisca favorecer; e, em conseqiiéncia, contribuem para o apaziguamento da agi- tagdo e da inquietacdo do espirito através da posse de um passado res- guardado, no qual a situacdo presente do individuo ¢ impressa pela medi- tagdo. Trata-se, em virtude do caréter fragmentério ¢ da presenga de ele- mentos heterogéneos no carné de notas, de tornar individual uma verdade que é de muitos, mediante um processo de unificagdo que passa pelo cor- po e nele se concretiza, conforme indicam as metéforas da ingestdo de alimentos ¢ da fabricacao do mel, utilizadas por Séneca para especificd-lo. Assim, por intermédio das leituras escolhidas e da escrita assimilativa, 0 individuo pode formar uma imagem de si tao adequada e acabada quanto possivel, reveladora de uma identidade na qual se Ié toda uma genealogia. No caso da correspondéncia, 0 que Foucault vai ressaltar € 0 fato de que a missiva, por definicao destinada a outrem, dé lugar cla também ao exercicio pessoal do missivista, pois a carta, pelo gesto mesmo da escrita, age sobre aquele que a envia, como age, pela leitura e pela releitura, sobre aquele que a recebe. Escrever é mostrar-se, fazer-se ver ¢ fazer aparecer a propria face diante do outro: a carta é, ao mesmo tempo, um olhar que se langa ao destinatdrio e uma maneira de se dar ao seu olhar. A reciproci- dade estabelecida pela correspondéncia implica uma “introspecgdo”, en- tendida como uma abertura que o emissor oferece ao outro para que ele 0 enxergue na intimidade. Enquanto maneira de o missivista apresentar-se a seu corresponden- te no desenrolar da vida cotidiana, a carta visaria a atestar ndo a im- portancia de uma atividade, mas a qualidade de um modo de ser. Para Sé- neca, fazer a revista da sua jornada é fazer um exame de consciéncia, rea- lizar um exercicio mental ligado 4 memorizagdo e no qual aquele que es- creve, ao constituir-se como “inspetor de si mesmo”, torna-se apto a aferir as faltas comuns ¢ a reativar as regras de comportamento que € preciso AUTOYBIOYGRAFAR 29 sempre ter em mente. Parece que é na relagdo epistolar que exame de consciéncia se formula como uma narrativa escrita do eu, intencionada a fazer coincidir o olhar do outro e o olhar que se langa sobre si mesmo, no momento em que as agGes cotidianas sio medidas pelas regras de uma técnica de vida. A Correspondéncia diferencia-se, pois, tanto dos Hypom- nemata quanto das anotacdes mondsticas das experiéncias pessoais. No primeiro caso, trata-se de constituir-se a si mesmo como sujeito de agao racional através da apropriagdo, da unificagdo e da subjetivagdo de um jé-dito fragmentério ¢ escolhido; no segundo, trata-se de desalojar do in- terior da alma os movimentos mais recénditos, de modo a poder livrar-se deles. Apesar das diferencas, 0 que esta em germe nas anotacdes mondsti- cas, na correspondéncia e nos hypomnemata abordados por Foucault é a escrita do eu performadora da nogao de individuo que se ver4 sedimen- tada, bem posteriormente, na autobiografia tal como praticada e entendi- da nos tempos modernos ¢ na qual assume evidente relevo a discussio das relagées entre vida e obra, entre o eu enquanto sujeito e enquanto objeto de representagao. Interessa averiguar, desde j4, se o que limita ou define um texto au- tobiogrdfico depende da vida concreta do autor ou da pr6pria estrutura textual. Para Derrida, no estudo que faz do Ecce Homo, de Nietzsche, é impossivel saber com precisio 0 que é um texto empirico ou um dado empirico de um texto, pois a linha que pode demarcar os limites entre a vida de um autor ¢ a sua obra é bastante incerta. Dessa perspectiva, a au- tobiografia ndo se confunde com a dita vida de um autor, com o corpus empirico que forma a vida de um homem empiricamente real’. O biogr4- fico, enquanto autobiografico, atravessa ambos os conjuntos - 0 corpus da obra e 0 corpo do sujeito — constituindo um texto cujo possivel estatu- to € 0 de nao dar relevo nem a um, nem ao outro. Na verdade, 0 objeto profundo da autobiografia é o nome proprio, 0 trabalho sobre ele ¢ sobre a assinatura, fundamento do que Philippe Le- jeune chama de “pacto autobiografico”’, isto é, afirmagado da identidade autor-narrador-personagem, remetendo em Altima instdncia ao nome do autor na capa do livro. A pessoa que enuncia o discurso deve, no caso, permitir sua identificagdo no interior mesmo desse discurso, ¢ € no nome préprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa. A questdo da autobiografia nao se coloca, para Lejeune, como uma relagdo estabelecida entre eventos extratextuais ¢ sua trans- crigéo “verfdica” pelo texto, nem pela andlise interna do funcionamento deste, mas sim a partir de uma anilise, no nivel global da publicagao, do 7. Cl Derrida, L'Oreille de l'autre. Textes et débats avec Jacques Derrida, p. S8 et seq. 8. CL. Lejeune, Le pacte autobiographique, pp. 21-22, 44-45. 40 CORPos ESCRITOS contrato implicito ou explicito do autor com o leitor, 0 qual determina o modo de leitura do texto ¢ engendra os efeitos que, atribufdos a ele, pare- cem defini-lo como uma autobiografia. Esta é considerada um modo de leitura, um efeito contratual historicamente varidvel, tendo-se em vista a posi¢do do leitor ¢ nao o interior do texto ou os cdnones de um género. E nesse sentido que deve ser entendida sua defini¢do, a saber: “Narrativa re- trospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua propria existéncia, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a historia de sua personalidade””. Todos os textos ficcionais que se aproximam dessa definigéo ou permitem ao leitor suspeitar da identidade entre autor e protagonista, embora 0 primeiro negue ou nao afirme tal identidade, nao séo conside- rados como autobiografia stricto sensu, porque, para Lejeune, esta nao comporta graus — é tudo ou nada. Entretanto, mesmo em sentido restri- to, a autobiografia tende a assimilar técnicas e procedimentos estilisticos proprios da ficcao. Isso evidencia o paradoxo da autobiografia literdria, a qual pretende ser simultaneamente um discurso verfdico e uma forma de arte, situando-se no centro da tensdo entre a transparéncia referencial ¢ a pesquisa estética ¢ estabelecendo uma gradagao entre textos que vio da insipidez do curriculum vitae a complexa elaboragao formal da pura poe- sia. Starobinski assinala que, no vasto quadro da autobiografia, podem- se exercer e manifestar estilos particulares os mais variados, néo havendo estilo ou forma obrigatéria, pois 0 que prevalece € a chancela do indivi- duo. A marca individual do estilo, num tipo de narrativa em que o narra- dor € 0 proprio objeto da narragao, reveste-se de grande importancia, j4 que, a auto-referéncia explicita da narragdo a si mesma, 0 estilo acrescen- ta o valor auto-referencial implicito a um modo singular de clocucdo. O estilo € visto, entdo, como ligado ao presente do ato de escrever e seu va- lor referencial remete ao momento da escrita, ao eu atual'®, A autobiografia, mesmo se limitada a uma pura narragao, é sempre uma auto-interpretagdo, sendo o estilo o indice nao s6 da relagéo entre aquele que escreve e seu proprio passado, mas também o do projeto de uma maneira de dar-se a conhecer ao outro, 0 que nao impede o risco permanente do deslizamento da autobiografia para 0 campo ficcional, 0 seu revestir-se da mais livre invengdo. Apesar do aval de sinceridade, 0 contetido da narracdo autobiogr4fica pode perder-se na ficgdo, sem que nenhuma marca decisiva revele, de modo absoluto, essa passagem, por- quanto a qualidade original do estilo, ao privilegiar 0 ato de escrever, pa- rece favorecer mais o carter arbitrario da narragao que a fidelidade estri- ta a reminiscéncia ou o cardter documental do narrado. 9. Idem, p.14. 10. Cr. “Le style de Pautobiographie”, em Starobinski , La relation eritique, Voei vivant I. ‘AUTOYBIO)GRAFAR 31 Como se vé, apesar da sua importancia, o estilo nao serve como ins- trumento preciso para determinar a especificidade da autobiografia, como percebe Lejeune em seus estudos ¢ mesmo Starobinski, que acaba por ca- racterizar a autobiografia como uma entidade mista a que denomina dis- curso-historia. Starobinski fundamenta-se nas categorias de Benveniste, para quem “enunciagao hist6rica” prende-se a narrativa de acontecimen- tos passados ¢ “discurso” a uma enunciagao que supde um locutor ¢ um auditor, um eu € seu correlato tu, o primeiro intencionado a influenciar 0 segundo. Parece ndo haver motivo suficiente para uma autobiografia, se no houver uma intervengdo, na existéncia anterior do individuo, de uma mu- danga ou transformagao radical que a impulsione ou justifique"’. Se a mu- danga nao afetou diretamente a vida do narrador, a matéria apta a tor- nar-se objeto de uma narragdo limitar-se-ia 4 série de eventos exteriores, mais condizentes a efetivagéo do que Benveniste chama de “histéria”, que prescinde de um narrador em primeira pessoa. Ao contrdrio, a transfor- macao interna do individuo provocada por eventos externos proporciona material para uma narrativa que tem 0 eu como sujeito e como objeto, sendo que a importancia da experiéncia pessoal, aliada 4 oportunidade de oferecer o relato dela a outrem, estabelece a legitimidade do eu e autori- za-o a tomar como tema sua existéncia pretérita. A reevocagao do passado constitui-se a partir de uma dupla cisdo, que concerne, simultaneamente, ao tempo ¢ a identidade: € porque o eu reevocado € diverso do eu atual que este pode afirmar-se em todas as suas prerrogativas. Assim, ser4 contado nao apenas o que lhe aconteceu noutro tempo, mas como um outro que ele era tornou-se, de certa forma, ele mesmo. Através desse “reconhecimento recapitulativo”, segundo Staro- binski, a unidade do sujeito permanece apesar das mudangas sofridas no tempo, sendo a manutengao da primeira pessoa na narrativa o vetor dessa duradoura responsabilidade pelos atos cometidos no passado. A primeira pessoa €, pois, o suporte comum da reflexao presente e da pluralidade de atos reevocados, sendo as mudangas de identidade melhor expressas pela contaminacdo do “discurso” por tracos da “hist6ria”, pelo tratamento da primeira pessoa como se fosse quase uma terceira'’. Desse processo, a nogao de individuo sai, apesar de tudo, reforgada, como aconteceré em maior ou menor grau com quase todas as modalidades da escrita do eu vi- zinhas & autobiografia. 11. F, Kemp demonstra como um abalo vindo do exterior conduz. a obra de Goethe em direcéo a auto- biografia. Cf. Kemp, “Se voir dans Vhistoire: les écrits autobiographiques de Goethe”, pp. 143-156. Processo semelhante ocorre com Graciliano Ramos, que apés a experiéncia carceréria endereca sua ‘obra posterior diretamente para o campo da autobiografia 12. Cf. Starobinski, La relation critique, pp. 92-93. 3 CORPOS ESCRITOS Formas do Eu Para o exame da posigdo efetivamente ocupada pela autobiografia no espaco dos géneros literarios, convém recorrer ao estudo que Elizabeth Bruss realiza acerca do que denomina de “ato autobiografico”. A autora toma por base o conceito de “atos clocutérios” desenvolvido por Searle Austin, estabelecendo uma analogia entre eles e a nogdo de “género” para mostrar que, como os atos elocutérios propriamente lingiifsticos, os atos elocutérios literarios sdo reflexos de situagdes de linguagem reconheciveis que se tornam institucionalizados por diferentes comunidades. A medida que um género faz-se familiar a um piiblico de leitores, 0 autor tem me- nos necessidade de colocar sinais no interior do seu texto para certificar-se de que ele serd lido como convém. Quando um género passa a ser um tipo de atividade claramente diferenciada, os sinais textuais que servem para indicar sua forga elocut6ria tornam-se cada vez menos numerosos e mais raros, podendo ocorrer que apenas a folha de rosto de um livro e o seu modo de publicagdo sejam satisfatérios como designadores da especifici- dade da sua elocugao. Nesse sentido, a autobiografia s6 existe enquanto parte das insti- tuigdes sociais ¢ literdrias que a criam e sustentam, podendo ser afetada por mudangas que atingem uma sociedade inteira ou, particularmente, apenas o sistema literdrio. A autobiografia apropriou-se, ao longo do seu desenvolvimento, de diversos procedimentos formais de outros tipos de discurso. Quando o romance realista, por exemplo, passou a usar 0 narra- dor-personagem em primeira pessoa, tal recurso ndo foi mais suficiente para distinguir autobiografia e ficcdo. Mesmo no caso da nogéo de nome proprio, que passa a servir para distingui-las, deve-se levar em conta que uma sociedade identifica seus membros atribuindo-lhes também diversos titulos e papéis funcionais, sendo que muitas vezes 0 autobidgrafo se utili- za dessas etiquetas de identificacao nele coladas. E necessdrio, portanto, que se estabelegam regras para que 0 ato au- tobiografico se efetive e, embora possam ser transgredidas, 0 autor, quan- do as propée, deve responsabilizar-se por elas e satisfazer-lhes as con- digdes. Dentre essas regras, Elizabeth Bruss destaca as seguintes: a. autor, narrador e personagem devem ser idénticos; b. a informagao e os eventos relativos a autobiografia sao tidos por serem, terem sido ou deverem ser verdadeiros, sendo passiveis de verificagao publica; c. espera-se que 0 au- tobiégrafo tenha certeza a respeito das suas informagées, podendo serem ou nao reformuladas"*. Estabelecidas essas regras, a tarefa de retratar-se € 13. Bruss, “L’Autobiographie considerée comme acte littéraire”, pp. 14-26. 14, Idem, p. 23. Essas regras sio, de certo modo, semelhantes as de Lejeune, com a ressaWva de que, para ste, 0 problema da verificagio dos eventos narrados no se coloca, efetuado o pacto autobiogrifico, como determinante, jé que 0 que interessa na autobiografia é 0 que o aut Pode contar. igrafo conta € $6 ele Se AUTO(BIO)GRAFAR B avaliar-se do autobiégrafo ¢, evidentemente, 0 aspecto essencial da questdo, embora o modo como 0 autor organiza o seu texto € os processos narrativos que emprega sejam, com freqiiéncia, motivo de interesse para 0 leitor. Vé-se que, definido o ato autobiografico, a estrutura interna do texto assume fungao importante, por colocar em relevo elementos imprescindi- veis para o andamento da leitura, tais como 0 decurso temporal represen- tado no texto ou o tom que o autobidgrafo pretende dar a propria imagem (clegiaco, condescendente, irdnico etc.). Sao elementos periféricos, é ver- dade, tendo-se em vista 0 centro imutavel da autobiografia - identidade autor-narrador-personagem —, mas que nao podem ser deixados de lado no tocante a determinagao das peculiaridades de cada texto autobiografico em particular. Além do mais, é a partir desses elementos que podem ser delineadas, de modo produtivo, as relages de semelhanga e diferenga que a autobiografia mantém com outros tipos de texto, sobretudo, com o ro- mance, o didrio, 0 auto-retrato e as memérias. A distingdo fundamental entre romance ¢ autobiografia depende do pacto de leitura efetuado entre autor ¢ Ieitor, em especial, nos casos em que possam persistir dividas a respeito da identidade ou ndo entre sujeito ¢ objeto da narragdo'’. A questdo nao ¢ tao simples como parece, pois em muitos casos a fronteira entre “fato” autobiografico e “ficgdo” subjetiva- mente verdadeira € bastante ténue, podendo o grau de “fingimento” de determinados textos ser tao varidvel que torna dificil a diferenciagao entre uma autobiografia auténtica e uma composigéo j4 romanceada. Muitos romances em primeira pessoa podem “fingir” 0 relato veridico de uma experiéncia pessoal, sem que 0 leitor seja capaz de desfazer a ambigitida- de entre a hist6ria concreta de um eu real, que remeteria ao autor, ¢ a sua recriagéo metaférica em termos de invengao ficcional. E 0 que deixa em aberto um escritor arguto como Dostoiévski, no s6 em Recordagoes da Casa dos Mortos, onde 0 contetido autobiografico do narrado se mescla a mais livre invengdo romanesca'’, mas também nas Memérias do Subsolo, composigao ficcional em que pela boca do narra- dor-protagonista € questionada, em contrapartida, a propria exatidao ou sinceridade da autobiografia: Mas agora, que no lembro apenas, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero jus- tamente verificar: é possivel ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, € néo temer a verdade integral? Observarei a propésito: Heine afirma que uma autobiografia exa- 15. Georges May apresenta varias gradagdes possiveis entre romance e autobiografia, embora em muitos casos elas derivem de critérios bastante subjetivos, de escassa utilidade operacional, Cf. May, L'Au- tobiographie, pp. 188-191. 16. Cf. a respeito, Miranda, “Meméria-Ficgdo em Dostoiévski: Uma Leitura das Recordagdes da Casa dos Montos”, pp. 45. 4 CORPOS ESCRITOS ta € quase impossivel, e que uma pessoa falando de si mesma certamente hé de mentir. Na sua opiniéo, Rousseau, por exemplo, com toda a certéza, mentiu a respeito de si mesmo, na sua confissdo, ¢ fé-lo até intencionalmente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem fo [..] Mas Heine estava emitindo juizo sobre um homem que faz sua confissio em pi- blico. E eu escrevo unicamente para mim, ¢ declaro de uma vez por todas que, embora es- creva como se me dirigisse a leitores, fago-o apenas como um meio de expressio, pois assim me € mais facil escrever. Trata-se de forma, unicamente de vazia forma, e eu nunca hei de ter leitores [..] Bem, por exemplo, alguém poderia implicar com essas palavras e me per- guntar: se de fato néo conta com leitores, para que faz tais contratos consigo mesmo, ¢ ain- da por escrito, no sentido de que nao instauraré uma ordem ou um sistema, que ha de ano- tar tudo o que Ihe vier 4 meméria etc., etc.? Para que esta dando explicagdes? Para que se desculpa?!” Sem desprezar o que a postura dostoievskiana procura ressaltar de forma tao pertinente e licida, no caso dos textos cujo cardter autobiogr4- fico é mais evidente, embora nao se realizem como uma autobiografia stricto sensu, a questo adquire outras ¢ diversas nuances. E 0 que ocorre com 0 diario intimo, que se diferencia da autobiografia nao em termos de maior ou menor grau de ficcionalidade, mas, sobretudo, no tocante a perspectiva de retrospecgdo, pelo seu menor porte no diario, em virtude da minima separagdo nele existente entre o vivido ¢ o seu registro pela es- crita. Se o diarista data com precisdo os diversos momentos da sua vida, podendo voltar-se constantemente sobre si enquanto escreve, € porque 0 pacto que ele firma, segundo Blanchot, é 0 de respeitar 0 calendario ¢ submeter-se a ele: 0 escrito enraiza-se no cotidiano e na perspectiva por ele delimitada'*. H4 uma possibilidade maior de exatidao, de preciso e fi- delidade & experiéncia real no diério, justamente pela menor separagdo temporal entre o evento e€ 0 seu registro, o que é mais dificil de ser atingi- do pela autobiografia, em razdo do cardter seletivo da memoria, que mo- difica, filtra ¢ hicrarquiza a lembranga. O ponto vantajoso da autobiogra- fia reside, contudo, no fato de o retrocesso permitir que 0 caos € 0 contin- gente da experiéncia, responsdveis pela fragmentacao do didrio, possam ser domados pela reflexdo que reordena o passado ¢ busca dar-lhe um sentido. Por ser uma escrita essencialmente privada, cuja especificidade ¢ 0 seu segredo, o diario exclui de entemao um pacto entre autor € leitor: Escritas para si, na clandestinidade, as paginas dos didrios excluem o olhar alheio [.-] © que € um texto “escrito s6 para si” sendo um texto sem destinatdrio? Essa realizagéo narcisica daria ao didrio um estatuto A parte na instituigdo literaria: discurso fechado sobre si mesmo, soliléquio sem ouvinte”. 17. “Memérias do Subsolo”, em Dostoiévski, O Etemo Marido e Varias Novelas, p. 174, 18. Cf. “Le journal intime et le récit”, em Blanchot, Le livre d venir, p. 271. 19. Rousset, “Le journal intime, texte sans destinataire?” p. 437. AUTO{BIO}GRAFAR 5 Apesar disso, 0 didrio comporta graus de fechamento e de abertura em relacdo ao destinatério, conforme a conceituagao de Rousset. Na “au- todestinacao”, redator e leitor so idénticos, escrever ¢ reler-se séo0 ope- ragdes complementares: a releitura oferece ocasido para novas reflexdes do diarista sobre si mesmo; emissor e receptor confundem-se na obser- vagio de semelhangas e diferengas que a distancia temporal estabelece numa comunicagdo mantida em circuito fechado. Na “pseudodestinagdo”, © narratdrio € 0 destinatdrio inscrito no texto, remetendo ao proprio nar- rador ou a um receptor externo que permanece restrito a sua virtualidade, seja por sua situagao, seja por uma decisdo do diarista. Em ambos os ca- sos, as mensagens nao ultrapassam os limites do texto e o destinatdrio permanece nele fechado. A abertura, pelo contrario, supe, em grau redu- zido, um destinatdrio privado e, em grau maximo, consistiria na publi- cagdo péstuma autorizada ¢, mais ainda, na publicagdo em vida do autor™. Béatrice Didier, por sua vez, relaciona o didrio ao auto-retrato. Este seria, em sentido restrito, um retrato sistematico, moral e fisico, suscetivel de ser aproximado dos auto-retratos de pintores. Em sentido amplo, apro- ximar-se-ia da autobiografia ¢ do diério: no primeiro caso, por ser empre- endido para 0 conhecimento de si; no segundo, por visar a reter os mo- mentos fugazes de uma vida, como se o diarista fosse levado a “fixar seus tracos sobre a tela imaginaria que é a folha de papel”, O auto-retrato, por supor, de acordo com B. Didier, uma forma literria mais organizada, diferencia-se do diario, uma vez que este é 0 registro do efémero e do descontinuo por uma escrita refratéria a qualquer organizagao. Organi- zar-se supde, de certo modo, “fazer uma pose”, que pode conduzir 0 au- to-retratista 4 insinceridade, geralmente inconcebivel no didrio. Por outro lado, como toda experiéncia especular, o auto-retrato esta profundamente ligado a experiéncia da morte, como se fosse uma fotografia final antes da hora, um substitutivo ou um andncio. O cardter lapidar do auto-retrato obrigaria o retratista a empreender um resumo daquilo que seria a essén- cia da sua vida - operagdo confessional efetuada num momento em que 0 individuo sente-se j4 muito préximo do final. E evidente que esse processo nao se realiza de maneira serena ¢ harmonica, porque, na tentativa de olhar-se de dentro, o auto-retratista percebe que o eu lhe escapa, formando-se e deformando-se sem cessar na superficie ca6tica do texto. Em vista disso, pode-se perceber que a afir- macio inicial de B. Didier de que auto-retrato supde uma forma literd- ria organizada nao se sustenta ¢, além do mais, a declaragao de que ele pode estar em toda parte e ao mesmo tempo em nenhuma é muito gene- ralizante e pouco contribui para o esclarecimento da questdo. 20. Idem, p. 442, na qual sio apresentados 0 quadro classificatdrio e as exemplificagées. 21. Didier, “Autoportrait et journal intime”, p. 167. Cf. da mesma autora: Le journal intime 36 CORPOS ESCRITOS Melhor caminho trilha Michel Beaujour, para quem 0 auto-retrato é uma espécié de texto que pertence a linha dos Essais, de Montaigne, do Ecce Homo, de Nietzsche ¢ do Roland Barthes par Roland Barthes. Tal como propée 0 autor”, o auto-retrato constitui-se segundo um sistema de recorréncias, retomadas e superposigées de elementos homélogos e subs- tituiveis, resultando ser sua principal aparéncia o descontinuo, a justapo- sigdo anacréi e a montagem. Ao contrério da autobiografia classica, cuja unidade j4 esta implicita na escolha de um determinado curriculum vi- tae, a0 auto-retrato podem-se ajuntar sempre elementos homélogos ao paradigma, j4 que prescinde de uma unidade. Assim sendo, 0 auto-retra- tista ndo conta o “que fez”, mas tenta ‘dizer “quem é”, embora sua busca nao 0 conduza a certeza do eu, mas ao seu deslocamento através da expe- rimentagao da linguagem. A experiéncia inaugural de todo auto-retratista é a do vazio e da auséncia de si, que se transforma em excesso logo que é deflagrado o pro- cesso da escrita. O texto entao produzido nao corresponde, ainda segundo a conceituagdo de Beaujour, a idéia do auto-retrato pictural, pois 0 auto- retratista ndo “se desenha” como o pintor “representa” 0 corpo € 0 rosto percebidos no espelho, mas opera um deslocamento que o leva a nao sa- ber nunca aonde vai chegar, nem o que fez. Assim, 0 auto-retrato ndo tem nada a esconder ou confessar, diferentemente do diario e da autobiogra- fia, pois ele € puro discurso livre, “escrevinhacao culposa”, “perversa”, na medida em que é uma escrita desprovida de utilidade publica: as ret6ricas € poéticas antigas afirmavam sempre a fungdo utilitaria e transitiva da es- crita sendo a confissao considerada ttil apenas enquanto exemplar. O au- to-retrato € traigdo e transgressio dessa ret6rica e transformacao radical de seus procedimentos. Finalmente, a distingéo entre memorialismo e autobiografia pode ser buscada no fato de que o tema tratado pelos textos memorialistas ndo € o da vida individual, o da hist6ria de uma personalidade, caracterfsticas essenciais da autobiografia. Nas memorias, a narrativa da vida do autor é contaminada pela dos acontecimentos testemunhados que passam a ser privilegiados. Mesmo se se consideram as memérias como a narrativa do que foi visto ou escutado, feito ou dito, e a autobiografia como 0 relato do que o individuo foi, a distingdo entre ambas néo se mantém muito nitida. O mais comum € a interpenetracdo dessas duas esferas e, quase sempre, a tentativa de dissocid-las é devida a critérios meramente subjetivos ou, quando muito, serve de recurso metodolégico, como faz Silviano ao estu- dar a diferenga entre os textos tardios dos modernistas e 0 depoimento p6s-64 dos ex-exilados: “pode-se dizer que o texto modernista é memoria- 22. Beaujour, “Autobiographie et autoportrait”, pp. 442-458. Na literatura brasileira, um exemplo ex- Pressivo das possibilidades “ficcionais” do auto-retrato pode ser visto em Agua Viva, de Clarice Lis- ector, conforme mostrado em: Miranda, “Agua Viva: Auto-Retrato (Im)possivel”, pp. 219-234. ‘AUTO(BIO)GRAFAR 7 lista (apreensao do cla, da familia), enquanto o dos jovens politicos é legi- timamente mais autobiogrdfico (centrado no individuo)”*. Apesar de essas distingdes ndo serem bastante convincentes, a auto- biografia propriamente dita seria uma auto-representagao (0 individuo as- sume papel preponderante no texto) e as memérias uma cosmo-represen- tacdo. Entretanto, dada a impossibilidade da narrativa restringir-se exclu- sivamente a focalizagdo do eu que narra, este, ao desencadear a retros- peccdo, olha nao apenas para si ¢ para outros eus que com ele interagi- ram, € com os quais estabeleceu relagGes recfprocas, mas também para um determinado contexto hist6rico-geografico, que pode ser objeto de maior ou menor atengao. Nao custa insistir, para melhor compreensio do problema, no fato de que a autobiografia nao é algo que tenha existido desde sempre e de modo invaridvel. Lejeune toma de empréstimo a Jauss (que 0 retoma de Husserl) 0 conceito de “horizontes de expectativas” — espago ou sistema de referéncia em que todo texto literdrio ¢ produzido ¢ reccbido - para demonstrar as inter-relagGes da autobiografia com instituigdes como 0 sis- tema escolar, a critica de jornais e revistas, a indistria editorial e os estu- dos universitérios™. A literatura critica sobre a autobiografia submete-se, pois, as condigées de toda “operacdo histérica” (a expresso é de De Cer- teau) que, por nao se realizar num espaco intemporal, mas num presente determinado, é varidvel e relativa. As autobiografias devem ser encaradas no quadro dos conjuntos hist6ricos onde realmente funcionaram ou funcionam, o que permite per- ceber como o pacto autobiogrdfico pode aparecer em certos casos em po- sigdo dominante, ao passo que em outros pode corresponder a uma espe- cificagéo secundaria em.relagdo a uma expectativa diferente, como no ca- so de formas mistas ou intermedidrias do “pacto fantasmatico”® ou indi- reto. A partir sobretudo de Gide, 0 pacto fantasmdtico é cada vez mais expandido, criando novos habitos de leitura. O leitor é convidado a ler romances nao apenas como ficgées que remetem a uma verdade de natu- reza humana, mas também como fantasmas reveladores de um individuo, o autor. Ha, pois, uma visdo e uma escrita duplas, inscritas num espago onde as duas categorias — autobiografia e romance — nao sao redutiveis a nenhuma das duas isoladamente, num jogo em que ficgao e ndo-ficgao se interpenetram, nao se restringindo, no conjunto de uma mesma obra, a territérios nitidamente demarcados. 23, Santiago, “Prosa Literdria Atual no Brasil”, p. 51. 24. Cl. Lejeune. Le pacte autobiographique, pp. 312-313. 25. Idem, pp. 334-337. 26. Idem, pp. 41-43. Veja-se também, na mesma obra, 0 estudo “Gide et lespace autobiographique”, is paginas 165-196. 38 CORPOS ESCRITOS Em vista disso, parece que se est4 de volta a estaca zero no tocante a tarefa de detectar a especificidade da autobiografia ou a sua razao de ser. Contudo, © pacto fantasmatico, ao realgar o desdobramento do autor em figuras e “personagens” diversos, permite entrever, j4 em processo, a nogao de autor como um ser de papel, ¢ a da autobiografia no como a re- presentacdo veridica ¢ fiel de uma individualidade, mas como uma forma de encenacdo iluséria de um eu exclusivo. Desfazendo a Iluséo Em “L’Autobiographie de ceux qui n’écrivent pas””, Lejeune revela uma mudanga importante na situacdo classica da autobiografia, ocorrida a partir dos anos 60, através do surgimento de um novo género que consiste na narrativa da vida de camponeses, operarios, artesaos, prisioneiros, cole- tada pelo gravador e publicada em forma de livro. Essas memérias “gra- vadas” nao sé vao contra o fato de que escrever e publicar a narrativa da propria vida é um privilégio das classes dominantes, em detrimento da voz até entdo silenciada do dominado, como permitem que sejam revistos os procedimentos técnico-formais da escrita autobiogrdfica, sobretudo no que diz respcito 4 nogao de autor. A estratégia do siléncio do intelectual para deixar falar 0 saber do Outro — assumida de modo admirével, no caso brasileiro, por Ecléa Bosi, em Meméria e Sociedade — Lembrangas de Velhos — supée tanto a cons- ciéncia de que todo saber dominante é repressivo e esté mancomunado com 0 poder, quanto o conseqiiente abandono de uma razao totalizadora ¢ universal, a favor das minorias, cuja voz emergente nas tiltimas décadas fragmenta, de modo salutar e produtivo, o campo social e o do saber. Tendo em vista esse contexto, Lejeune procura rever a escrita auto- biogrdfica tradicional, a partir da dicotomia entre “modelo” e “escrita” inerente a pratica das autobiografias compostas em colaborago, nas quais o estatuto da autoria aparece irremediavelmente fragmentado, em virtude da atuacao do “redator” (négre). O exemplo escolhido é 0 da polémica en- tre o editor Frangois Maspero e Annie Mignard, redatora de Mémoire d’Héléne, de Héléne Elek, desencadeada desde 0 momento em que o edi- tor se nega a cumprir a exigéncia da redatora de partilhar a autoria do li- vro publicado com Héléne e de desfrutar as mesmas vantagens da “auto- ra”. Mais do que uma disputa pessoal, a discussdo do problema serve para esclarecer pontos relevantes acerca da producdo e do funcionamento do texto autobiogrdfico, principalmente no que se refere ao fato de que a di- visio do trabalho entre o que conta (“modelo”) € 0 que redige (“‘reda- 27. CL. Lejeune, Je est un autre: l'autobiographie, de la litérature aux médias, pp. 229-315. AUTO{BIO)GRAFAR 39 tor”), nas autobiografias em colaboragio, propicia o questionamento da crenga de uma unidade que a nocao de autor ¢ a de pessoa subentendem no género autobiografico. No espaco literdrio brasileiro, situagéo semelhante aparece configu- rada de modo bastante inusitado, sob o Angulo ficcional e do humor paré- dico, nas Memérias da Emilia, de Monteiro Lobato. Decidida a escrever a hist6ria da sua vida, a boneca Emilia depara, logo de inicio, em conversa com Dona Benta, com uma das questées centrais da autobiografia - 0 grau de veracidade do narrado: ~ Verdade pura! Nada mais dificil do que a verdade, Emilia. - Bem sei ~ disse a boneca. Bem sei que tudo na vida ndo passa de mentiras, ¢ sei também que é nas memérias que os homens mentem mais. Quem escreve memérias arruma as coisas de jeito que 0 leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor. Mas para isso ele ndo pode dizer a verdade, porque sendo 0 Ieitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que est falando a verda- de pura. Para levar avante seu projeto, a boneca resolve delegar ao Visconde de Sabugosa a fungdo de redator, no intuito de facilitar a operacdo de fa- zer passar uma mentira “das que ninguém desconfia”™, tornando-a mais convincente e bem “arranjada”. A tarefa revela-se, contudo, mais compli- cada do que 0 esperado - Como comegar? Qual o tom que deve prevale- cer no discurso? Que acontecimentos merecem ou nao ser registrados? — até que, cansada ¢ entediada, Emilia autoriza 0 Visconde a dar andamen- to, por conta propria, ao relato: “Tenho coisas muito importantes a con- versar com 0 Quindim. Fique escrevendo. VA escrevendo. Faga de conta que estou ditando. Conte as coisas que aconteceram no sitio e ainda nao estdo nos livros”. ™ O Visconde passa a narrar, da sua perspectiva e em terceira pessoa, a historia do “Anjinho de Asa Quebrada”, embora o papel de destaque na narrativa caiba a Emilia, o que muito agrada A boneca, apesar da ad- verténcia do Visconde sobre a “injustica” da situagdo: ~ Sabe escrever memérias, Emilia? - repetiu o Visconde ironicamente. Entdo isso de escrever memérias com a mao € a cabeca dos outros € saber escrever memérias? ~ Perfeitamente, Visconde! Isso é 0 que é importante. Fazer coisas com a mao dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeca dos outros: isso & que é saber fazer as coisas [...] Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é tudo. O mundo é dos espertos#! 28. Lobato, Memérias da Emitia, p. 4 29. Idem, p.. 30. Idem, p. 14. 31. Idem, p. 97. 0 ‘CORPOS ESCRITOS Mesmo descontente, 0 Visconde continua a obedecer as ordens de Emilia e da prosseguimento a escrita, sentindo-se orgulhoso do seu saber escrever e dos efeitos obtidos: “Riu-se, pensando 14 consigo: ‘Sou um da- nadinho para escrever! Mas por muito que escreva, jamais conquistarei fama de escritor. Emflia nao deixa. Aquela diaba assina tudo quanto eu produzo...’”>?, Revoltado com o papel de mero “redator”, 0 Visconde re- solve vingar-se e escrever, nas Memérias, o verdadeiro retrato da autorita- tia Emilia — “ ‘Vou pregar-lhe uma pega’, pensou 14 consigo. ‘Vou escre- ver uma coisa e quando ela voltar e me mandar ler, eu pulo 0 pedago ou leio outra. E isso...’”®, Emilia descobre a tapeagio e, de infcio contrariada com o Visconde (que de certa forma age imbufdo da esperteza da bone- ca), acaba por concordar com o que ele escreveu, embora 0 dispense da sua fungdo e assuma, ela prOpria, a escrita, passando a inventar “enredos” que melhor coloquem em evidéncia suas “qualidades”, como a hollywoo- diana historia com Shirley Temple, para espanto de Dona Benta: - Emilia! - exclamou Dona Benta. Vocé quer nos tapear. Em memérias a gente s6 conta a verdade, 0 que houve, o que se passou. Vocé nunca esteve em Hollywood, nem co- nhece a Shirley. Como entdo se pée a inventar tudo isso? ~ Minhas “Memérias” - explicou Emilia - sio conto 0 que houve € o que devia haver. ~ Entdo é romance, é fantasia... ~ Sao memérias fantésticas. Quer ler um pedacinho?# iferentes de todas as outras. Eu A boneca desiste de escrever 0 episédio de Shirley e recorre nova- mente ao Visconde, que aceita reassumir sua fungdo anterior ante as ameagas de Emilia, mesmo constrangido a narrar 0 que nao sabe. Tendo, porém, “trafdo” outra vez a boneca, é expulso definitivamente por cla, que termina as Memérias com uma reflexao bastante elogiosa a respeito de si mesma. O que as “memérias fantdsticas” de Emilia permitem perceber, avant a lettre, € 0 cerne da questao autobiografica tal qual formulada teo- ricamente por Lejeune, ou seja, a de que o estatuto do autor de um texto autobiogrdfico nao é determinado nem pelo “modelo”, nem pelo “reda- tor”, mesmo quando ambos perfazem uma tnica figura, j4 que o referido estatuto é, antes de mais nada, uma forma retérica existente para a repre- sentacao ou dramatizacao do sujeito, para d4-lo como uma unidade: Na verdade, nao somos nunca causa da nossa vida, mas podemos ter a ilusdo de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condigéo de esquecermos que somos tdo pouco causa da escrita quanto da nossa vida. A forma autobiogréfica d4 a cada um a oportunidade de se crer um sujeito pleno e responsével. Mas basta descobrir-se dois no interior do mes- 32. Idem, p. 107. 33. Idem, p. 113. 34. Idem, p. 129, AUTO{BIO)GRAFAR a mo “eu” para que a duvida se manifeste ¢ que as perspectivas se invertam. Nés somos tal- vez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem autor. A forma au- tobiogréfica indubitavelmente ndo é 0 instrumento de expresséo de um sujeito que the pre- existe, nem mesmo um “papel”, mas antes o que determina a propria existéncia de “sujei- tos”35, Assim, dos hypomnemata a autobiografia propriamente dita, pas- sando pela correspondéncia ou pelo diario, 0 que se tem sao “formas va- zias”, preexistentes a escrita e 4 meméria pessoais e cuja utilizagéo pode ser considerada, grosso modo, como um mero exercicio de pastiche* que procura assumir tanto a demanda do pablico ou do mercado consumidor, quanto a resposta do “modelo” a essa demanda. Nesse contexto, a obra de Graciliano Ramos, como se verd, atua como uma alternativa enriquecedora, embora complexa, uma vez que faz uso da “forma autobiogrdfica” sem deixar levar-se cegamente pelas ilusdes que ela comporta. Nas Memérias do Carcere, ao falar de si, entre- tecendo intencionalmente sua voz com outras vozes até entio silenciadas, Graciliano nao s6 reverte a expectativa de uma escrita centrada na idéia de um sujeito pleno ¢ auténomo, predeterminado por uma forma jé dada, mas também instaura alargamento do campo de indagagao concernente a relacdo entre vida e obra, sujeito e discurso, realidade e representagio literaria. Silviano Santiago, ao apropriar-se da obra de Graciliano empregan- do, para a realizagdo textual de Em Liberdade, o recurso do pastiche — agora no sentido de repetigéo diferenciada e recriadora de uma obra ¢ uma “forma” anteriores e nao no sentido de cépia servil de ambas - con- corre para reforcar ainda mais as indagagées colocadas pelo texto primei- ro. A abordagem de ambos os livros requer, contudo, a discussao prelimi- nar sobre as diferentes fungdes que o elemento autobiografico desempe- nha no conjunto da obra dos dois escritores. 35. Lejeune, Je est un autre, p. 242. 36. Ressalte-se que o termo é, nesse caso, empregado no sentido francamente pejorativo que lhe dé Le- jeune as péginas 237 ¢ 238 do referido Je est un autre GRACILIANO RAMOS FICCAO AUTOBIOGRAFICA... [..] ndo sou Paulo Honério, ndo sou Luiz da Silva, ndo sou Fabiano. Apenas fiz 0 que pude por exibi-los, sem deformé-los, narrando, talvez, com excessivos pormenores, a desgraca irremedidvel que os acoita. E ‘possivel que eu tenha semelhanca com eles e que haja, utilizando os recursos duma arte capenga adguirida em Palmeira dos Indios, conseguido animé-los. Admi- tamos que artistas mais hdbeis nao pudessem apresen- : tar direito essas personagens, que, estacionando em degraus varios da sociedade, tm de comum o soffi- mento. Neste caso aqui me reduzo a condigao de apa- retho registrador [...] GracILIANo RaMos* Em “Alguns Tipos sem Importancia”, apés relatar 0 processo de criagdo de seus personagens, Graciliano Ramos conclui: ‘Todos os meus tipos foram constituidos por obscrvagées apanhadas aqui ¢ ali, du- rante muitos anos. E 0 que penso, mas talvez me engane. E possivel que eles nao sejam sendo pedacos de mim mesmo ¢ que o vagabundo, o coronel assassino, o funciondrio e a cadela nao existam!, * Discurso de 24 de outubro de 1942 (inédito): Manuscritos autégrafos, Discursos, pasta I, Arquivo Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Séo Paulo. 1, Ramos, Linhas Tortas, p. 199. “ CORPOS ESCRITOS Posteriormente, indagado por Homero Senna sobre 0 cardter auto- biogr4fico de sua obra de ficg4o, Graciliano declara: Nunca pude sair de mim mesmo. S6 posso escrever 0 que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, € porque no sou um s6. Em determinadas ocasides, procederia como esta ou aquela das minhas personagens. Se fosse analfabeto, por exemplo, seria tal qual Fabiano... A reversibilidade das relagdes entre o autobiogrdfico e o ficcional, em Graciliano Ramos, revela-se pela possibilidade declarada da presenga implicita de elementos autobiogrficos nos seus textos que se especificam pela efetivagao explicita do pacto romanesco. Esta constatagdo nada mais seria do que a pardfrase ou 0 endosso irrestrito da palavra autoral, se nado conduzisse ao levantamento das questées que ela suscita. Entre estas, des- taca-se, inicialmente, 0 problema da homologia entre o modelo ¢€ sua re- presentagdo literdria, entre o sujeito empirico Graciliano Ramos e os va- rios personagens em que se vé desdobrado em seus textos. A confessa multiplicidade de papéis assumidos pelo autor na cena ficcional seria cor- relata a diversidade do sujeito empirico que nao se cré uno ¢ inteiro. Po- der-se-ia supor uma homologia perfeita que, apesar dos disfarces utiliza- dos na representagdo, autorizaria o estabelecimento de correspondéncias mais ou menos diretas, facilmente comprovveis através de procedimentos de verificagao. Se se atenta nas expresses “procederia” ¢ “se fosse” no segundo trecho citado, torna-se evidente que seus personagens ndo s4o meros re- flexos “fingidos” que representam com maior ou menor nitidez, depen- dendo do grau de “fingimento”, a variada personalidade do autor. Eles sao, na verdade, projegdes imagindrias dessa mesma personalidade e, co- mo tais, nao sujeitos necessariamente a verificagao empirica para melhor compreensao do seu funcionamento no texto. O alcance do problema ndo se mede ou se resolve pela tentativa de descobrir ¢/ou comprovar quais os “fatos” textuais que corresponderiam, nas obras ficcionais, aos fatos empiricos da vida de Graciliano. Importa, antes, saber como este vai descortinando, ou melhor, construindo paulati- namente sua face no espelho do texto. O aspecto experimental dos seus romances, j4 focalizado magistralmente sob outro Angulo por Otto Maria Carpeaux’, deve-se 4 dindmica desse processo e a impossibilidade de o au- tor fixar em cada um deles um retrato definitivo de sie do mundo. Cada etapa vencida dessa trajet6ria abre novos ¢ imprevistos cami- nhos na busca de (auto)conhecimento: “Julgo impossivel em trabalho de 2. “Revisio do Modernismo”, em Senna, Repiiblica das Letras: 20 Enirevistas com Esentores, p. 238. A entrevista foi publicada pela primeira vez em: Revista do Globo, Rio de Janeiro, 18 dez. 1948. 3. CL. “Visio de Graciliano Ramos”, em Carpeaux, Origens e Fins, pp. 339-351. AUTO{BIO)GRAFAR “6 ficcfio o escritor prever todas as minudéncias. Um clemento inesperado pode entrar na acdo, incorporar-se, levar 0 autor a lugares que ele nao de- sejaria percorrer™. Se essa busca conduz Graciliano do romance a auto- biografia ou da “fic¢do 4 confissio”’, mesmo assim, a face tao intensa e radicalmente procurada nao se delineia e se mostra em definitivo, mas, a0 contrario, exacerba-se ainda mais a impossibilidade dessa definig4o, como em Mem6rias do Carcere. Em virtude da nao coincidéncia do sujeito consigo mesmo e da im- possibilidade inerente a linguagem de efetuar sem fraturas ¢ disjungdes a passagem do eu empirico ao eu textual, é indtil tentar colocar em foco imagens em constante deslocamento, por natureza méveis. Se a represen- taco literaria especifica-se pelo primado da elaboragdo lingiifstica - nao confundivel com ornamento estilfstico, principalmente no caso de Graci- liano — tal elaborag4o opera um deslocamento que faz da literatura uma outra coisa, diversa do referente primeiro, do dado empirico, entao trans- figurado. Tanto a fidelidade na configuragéo do mundo extratextual, em se tratando das obras romanescas, quanto a sinceridade na reconstituigao da experiéncia vivida, no tocante as obras de cunho acentuadamente autobio- grafico, estdo sujeitas, antes de mais nada, a linguagem. O texto postula-se ¢ se efetiva como diferenga e nao como repeti¢do. No fragmento “Verao”, de Infancia, torna-se evidente como, para o autor, no interessa o mero registro ou transposigdo fotogrfica da reali- dade externa (no caso, a paisagem fisica), mas a sua (re)construcdo através dos mecanismos conjugados da imaginacdo e da meméria: Desse antigo verdo que me alterou a vida restam ligeiros tragos apenas. E nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. © hdbito me leva a criar um ambiente, imagi- nar fatos a que atribuo realidade [...] Certas coisas existem por derivacdo ¢ associagao; re- petem-se, impdem-se e, em letra de forma, tomam consisténcia, ganham raizes®, O elemento catalisador € a /etra, que direciona e organiza os tragos que compéem um novo quadro, distante da transparéncia referencial e di- verso daquele pré-determinado por certa tradicdo literdria. Nesta, a foca- lizagdo do “verao nordestino”, por exemplo, nao poderia prescindir de de- terminados pardmetros descritivos, como os “ramos pretos” e as “cacim- bas vazias”’, sob pena de 0 texto resultar incompleto. Se 0 verao de Graci- liano é “incompleto”’, é porque seu texto funciona, na feliz expressdo de 4, Ramos, op. cit, p. 116. 5. Cf. Candido, “Ficgdo e Confissio”. 6. Ramos, Infancia, p. 25. 17. Idem, ibidem. 8. Idem, ibidem. 6 ‘CORPOS ESCRITOS Flora Siissekind, a respeito de Sdo Bemardo, como “faca amolada, como corte no modelo romanesco dominante [...] um corte critico na prépria estética naturalista””. Em outro fragmento de Infancia, “Manha”, a importancia predomi- nante do trabalho com a linguagem revela-se de mancira iluminadora. Ne- le, Graciliano detém-se na solitaria tarefa do av6 paterno de confeccionar urupemas e, identificando-se com ele, revela que trancar urupemas e tra- gar letras no papel sao atividades andlogas. Em ambas prevalece o fazer, a lida artesanal, paciente e obsessiva, seja com as fibras, seja com as pala- vras; ambas sao tidas pelos executores como atividades “desinteressadas”, alheias a fungao utilitaria que porventura possam ter; ¢, finalmente, ambas nao visam a reiteragdo de modelos anteriores, mas s4o 0 meio particular de expresso de uma necessidade imperiosa, que € também e sobretudo necessidade de depuragao dos recursos utilizados — “[...] procurou os seus caminhos € executou urupemas fortes, seguras. Provavelmente nao gosta- vam delas: prefeririam vé-las tradicionais e corriqueiras, enfeitadas e fra- geis”®, Com as fibras da regio 0 avé constr6i suas urupemas; com a fala regional o neto-escritor constréi sua linguagem. Nao se trata, evidente- mente, de transcrigdo lingiiistica, mas de transcriagdo. O uso de um mini- mo de recursos para alcangar uma maxima expressividade parte da recla- boragdo do coloquial sertanejo, que conserva expressées portuguesas do século XVI, arcaizadas em Portugal, mas de uso comum no sertéo nordes- tino". A oposigdo a ret6rica e a grandilogiiéncia literdrias efetiva-se, por- tanto, na op¢do pela oralidade ¢ pelo popular, que nao se confunde com populismo. Nem reproducdo lingiiistica, nem reprodugao da realidade regional. Para Graciliano, a “observacdo dos fatos que devem contribuir para a formagao da obra de arte”? e o estudo das coisas nacionais “de baixo para cima”? ndo supdem que se reduza a literatura ao pinturesco e ao docu- mental, como acontece com grande parte dos autores do decénio de 30. Em virtude disso, é cabfvel estender a toda a obra de Graciliano 0 que Antonio Candido afirma a respeito de Sao Bemardo: a inesxisténcia da descrigdo, no sentido romantico ¢ naturalista do termo, e a incorporagdo da paisagem ao ritmo psicolégico da narrativa'*. 9. Siissekind, Ta! Brasil, Qual Romance? Uma Ideologia Estética e sua Histéria: O Naturalismo, p. 170. 10. Ramos, Infancia, p.21. 11. Ramos, Linhas Tortas, p. 279. 12. Idem, p. 256. 13, Idem, p. 260. 14. CL. Candido, “Fiegéo e Confisso”, p. 25. Torna-se ocioso e desnecessério retomar aqui anteriores discusses sobre 0 “regionalismo” de Graciliano, tese hoje insustentével. Cabe, entretanto, chamar tengo para o fato de que hé mais de vinte anos Casais Monteiro estabeleceu, de modo indiscutivel, AUTO{BIO)GRAFAR "7 E justamente Sdo Bernardo que servira aqui de ponto de partida, j4 que nele a reflexdo sobre os mecanismos da produgao textual resulta no questionamento simultaneo da ilusdo referencial ¢ da ilusdo autobiografi- ca, ambas denunciadas a partir da propria referéncia do texto a si mesmo, © que ressalta a convencionalidade de toda escrita. Além disso, a inscrit do desejo de Paulo Honério nos meandros do seu discurso, inutilmente rejeitada, compromete seu pretendido programa realista, através do inces- sante movimento de construgdo/desconstrugdo do narrado e do vivido. 0 Eu Desconstruido A legibilidade € 0 pressuposto maior do projeto textual de Paulo Honério. Nao afeito ao trato literdrio com a linguagem, ele se vé na con- tingéncia de langar mao da divisdo do trabalho, que ¢, principalmente, di- visdo de saber, no tocante a seu intento. Assim, Padre Silvestre ficaria com “a parte moral ¢ as citagées latinas”; Joao Nogueira com “a pontuacdo, a ortografia e¢ a sintaxe”; Arquimedes com “a composicao tipogrdfica”; Go- dim com a “composigao literdria; e ele, Paulo Hon6rio, “introduziria na historia rudimentos de agricultura e pecudria” e poria seu “nome na ca- pa’, Desse modo, ficariam asseguradas e garantidas a veracidade do nar- rado, a autoridade do seu dizer e a legibilidade da informagdo a ser transmitida, mediante a efetivagdo de um pacto referencial de leitura. O inicio do livro projetado, que se dé no capitulo 3 — “Comego de- clarando [...}”"° — coincide com a confisso de Paulo Hon6rio da incerteza do seu nascimento, da sua origem: Para falar com franqueza, 0 niimero de anos assim positivo ¢ a data de Sio Pedro so convencionais: adoto-os porque estdo no livro de assentamentos de batizados da fre- guesia. Possuo a certiddo, que menciona padrinhos, mas ndo menciona pai nem mae!7, A exigéncia de sinceridade e objetividade"* constringe Paulo Hond- rio a mencionar uma certiddo que nao certifica ¢ que instaura a divida ¢ manifesta uma falta. Ambas, davida ¢ falta, sdo ilusoriamente compensa- regionalismo” de Graciliano. Cf. Monteiro, “Graciliano sem Nordeste”, e “A Confissio de Graciliano”. Pode-se ver, também, como 0 espago fisico funciona em intima conexio com os outros componentes da narrativa na anélise detalhada que Osman Lins {az do capitulo 1 de Sao Bemardo, ‘em Lins, “Homenagem a Graciliano Ramos”. 15. Ramos, $0 Bemardo, p. 61. 16. Idem, p. 67. 17. Idem, p. 61. 18. Proposta ambfgua desde o inicio, se se leva em conta que Paulo Honério pretende coneretizé-la por intermédio de um disfarce: “H4 fatos que eu néo revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narré-los porque a obra sera publicada com pseuddnimo”. (Ramos, op. cit, p. 64). 8 CORPOS ESCRITOS das pela aparéncia — 0 peso, 0 rosto, a estatura, as sobrancelhas etc. ~ que lhe rende “muita consideragéo”, que lhe propicia a “corporificacao” de uma identidade, evidentemente insatisfat6ria, j4 que o problema per- manecerd como 0 elemento propulsor mais relevante do seu texto. De modo semelhante, a auséncia da paternidade no “livro de assen- tamentos” contrasta com a afirmagdo obsedante da presenga de paterni- dade do livro em processo de realizado, presenca que os capitulos 1 ¢ 2 ndo cansam de acentuar: a veracidade do narrado é contaminada, desde © principio, por uma certiddo postiga, ficticia. A confessa impericia do personagem-narrador em manipular os elementos constitutivos da narrati- va revela, entretanto, a extrema pericia do autor. Este deflagra um jogo complexo que coloca em causa os limites entre real e ficgao, sujeito e dis- curso. A iluséo de Paulo Honério em oferecer uma visdo coerente e sis- temdtica de si e de um universo estruturado desfaz-se diante da sua in- sercdo na narrativa como uma instAncia de desejo. O desejo é, segundo Leo Bersani, uma ameaga a forma da narrativa realista, pois, se subverte a ordem social, também estilhaca a ordem ro- manesca. Em termos formais, 0 “desejo € uma espécie de expansdo estru- tural; € uma enfermidade da disjungdo que se desenvolve numa parte da estrutura, que recusa ser definida em relagdo as outras partes e reivindica, de certo modo, uma escandalosa afinidade com elementos estranhos a es- trutura’™, Sdo Bernardo constréi-se pela oscilagdo entre dois pélos disjuntivos, correspondentes respectivamente aos capitulos 1-18 ¢ 19-36. Na primeira parte, “‘aparecem os contetidos ideolégicos que virdo a ser questionados a partir do capitulo 19”, 0 qual pde em movimento o processo de desrecal- camento do que fora anteriormente recalcado. O elemento detonador da narrativa € a lembranga de Madalena, sugerida pelo pio das corujas — “a- ves amaldigoadas”” —, indice de amor e morte. A satisfagdo do desejo de posse econémica narrada em mintcias nos capitulos 1-18 ndo consegue encobrir 0 fracasso do desejo de posse do enigma-Madalena (capitulos 19-36). Antes, Paulo Honério, preocupado com a sua consolidagao sécio- econémica, é bastante apto a discernir seus atos, os atos alheios ¢ 0 que julga a exata medida da realidade que o circunda. Apés seu encontro com Madalena, o controle e 0 dominio de do mundo tao ciosamente culti- vados malogram: “os fatos mais insignificantes [avultam] em demasia”®. Se no primeiro momento sua linguagem consegue manter-se nos limites 19, Ramos, op. cit, p. 67. 20. Bersani, “O Realismo ¢ 0 Medo do Desejo”, p. 70. 21. Zilberman, Sido Bemardo e os Processos da Comunicagéo, p. 23. 22. Ramos, Séo Bemardo,, p. 214. 23. Idem, p. 212. ‘AUTO(BIO)GRAFAR ” da “exatiddo e clareza”™, no segundo, cla passa a ser contaminada pelas “ciladas” e pelo “veneno” do vocabuldrio de Madalena*. O esforco “realista” de Paulo Honério choca-se contra a diferenca que Madalena instaura no seu mundo, entdo confundido irreversivelmente entre o ser € o parecer. O citime e a diivida reforgam o medo que Paulo Hon6rio tem do desejo: medo de desagregagao psfquica, em razao do des- centramento do sujeito dividido numa multiplicidade de papéis sem li- gagdes. A unidade e a coeréncia de Paulo Honério, mantidas anterior- mente e que deveriam ser retratadas na narrativa, sio subvertidas pela descontinuidade e pelo ilogicismo de imagens incompativeis e rebeldes a todo ajustamento. E ao entregar-se ao ato de escrever que Paulo Honério descortina o seu malogro, sendo capaz de perceber a precariedade (in)definidora do sujeito. O seu desejo de discurso é desejo do Outro, como contraparte im- prescindivel para a safda do enclausuramento e da solidao e como fator necessrio para que O sujeito possa verdadeiramente constituir-se. Nao um sujeito definitivo ¢ uno para sempre, mas sim 0 que reconhece na falta a possibilidade de constituigéo da identidade. Daf, 0 (re)encontro com Madalena, 0 reconhecimento e a aceitacdo do seu discurso. Esse processo, contudo, é levado a efeito apenas durante o desenro- lar do livro, que paciente e implacavelmente vai sendo construfdo. A ho- mologia mundo-linguagem defendida anteriormente cede lugar 4 consta- tagdo da faldcia da representagdo, evidenciando o carter fantasmatico da escrita de Paulo HonGrio: a recuperagao de Madalena d4-se somente no mundo das palavras, no mundo de papel que € 0 livro; e sobrevém o re- morso e a culpa: “Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propésitos. Os sentimentos ¢ os propésitos esbarraram com a minha bru- talidade ¢ 0 meu egofsmo”*. O conhecimento significativo, e doravante vi- tal, proporcionado pela escrita, torna insignificante a manutengao do sis- tema de valores antes endossado por Paulo Honério, Nenhuma tentativa de soerguimento da arruinada Sao Bernardo é feita. Paulo Honério desin- teressa-se até mesmo pela adaptagdo a nova ordem politico-social, estabe- lecida pela Revolugdo de 30, sutilmente focalizada por ele no seu texto. Esta, por ser apenas uma mudanga no interior dos setores dominantes, permitiria a manutengdo do poder de Paulo Honério, bastando para tanto uma reacomodagao de seus interesses anteriores, tornados irrelevantes em virtude do revés sofrido pela sua visdo-de-mundo apés a aceitagdo (tardia) de tudo que Madalena significa. 24, Idem, p. 121. 25. Idem, p. 213. 26. Idem, p. 247. 50 CORPOS ESCRITOS Os fortes tracos que deveriam compor a figura irretocdvel do antigo latifundidrio, senhor de si, de terras e de homens, desfazem-se, pois, ante o “peso” da escrita — “esta pena é um objeto pesado. Nao estou acostu- mado a pensar [...]”” -, pressente o narrador logo no inicio da compo- sigdo do livro. O capitulo final é uma demonstracao patente da derrota de Paulo Honério ¢ paradoxalmente de sua “vit6ria”, visto que a revisdo da experiéncia vivida, feita discurso, permite-lhe a percepcdo do “verdadeiro” retrato da sua situacdo, mesmo A sua revelia. Sdo Bernardo funda-se, as- sim, por um dialogismo decorrente nao s6 da contraposigao das vozes dis- tintas do autor e do narrador*, mas também da ressonancia na voz do narrador de vozes que ele buscaria inutilmente calar. 0 Eu Estilhagado Recapitular, relembrar, refazer em suma o itinerdrio vivencial per- corrido aproxima, a primeira vista, Sdo Bernardo e Angustia. Em Sdo Ber- nardo, a rememoragao de cruciais eventos pretéritos pretende realizar-se de acordo com um projeto de antem4o delineado, embora no decurso da escrita, em virtude de inevitaveis transformacées, 0 projeto no se cumpra como almejado pelo narrador; em Angtistia nado se registra, da parte do narrador, nem mesmo um esboco de projeto. Retomando reflexées teéri- cas anteriores, pode-se dizer que o texto de Paulo Honério se constitui por tragos mais acentuados de indole autobiogrdfica, ao passo que o texto de Lufs da Silva se especifica por certos procedimentos tipicos do auto-re- trato tal como o entende M. Beaujour, lembrando-se que em ambos 0s ca- Sos trata-se de personagens, construgées ficcionais, ¢ nao de individuos de existéncia comprovada ou de meros reflexos do autor. A escrita de Lufs da Silva, ao contrério da de Paulo Honério, carac- teriza-se pelo transbordamento e pelo excesso: acimulo e superposigao de imagens ¢ figuras desconexas, justaposigéo especular de micronarrativas, reiteragado obsedante de elementos andlogos. A cronologia e a linearidade so desfeitas em favor da subversdo formal, que desarticula e fragmenta irremediavelmente 0 livro em processo de realizacdo, 0 que o torna mais distante da “simplicidade ¢ clareza’”®, postuladas por Graciliano para 0 texto literdrio. Daf, a rejeigéo do autor ¢ de grande parte da critica a Angistia e A marginalidade do livro, no conjunto da obra de Graciliano e no decénio de 30, como bem mostrou Licia Helena Carvalho™. 27. Idem, p. 64. 28. Sobre a questéo, cf. Paulino, Reflexdes sobre os Limites de Poder do Narrador em Sio Bernardo. 29. Ramos, Linhas Tortas, p. 275. 30. CL Carvalho, A Ponta do Novelo: Uma Interpretagéo de Angistia, de Graciliano Ramos, pp. 20-23. AUTO{BIO)GRAFAR 51 Em Angistia, nao se tem a mera reprodugado narrativa de eventos desencadeados pela retrospeccdo que poderia resumir-se aos antecedentes e ao desfecho do crime perpetrado. Este surge como o elemento deflagra- dor do processo escritural, porque para ele convergem as contradigGes in- dissoliveis de um eu estilhagado, cuja configuragdo tenta-se encontrar. A auséncia do eu € entéo preenchida de modo vicdrio pelo excesso de lin- guagem, como uma tentativa de individuacdo que se percebe frustrada desde 0 inicio: “Tenho a sensagao de que viajo para muito longe ¢ nao voltarei nunca”!, Vida e escrita, realidade e imaginagdo confundem-se numa continuidade indiferenciada — “Dificilmente poderia distinguir a realidade da ficcdo”*? —, que se reflete na impossibilidade de demarcagao clara e precisa das fronteiras temporais. A evocacao do crime cometido contra Julido Tavares nao se reduz ao perfodo imediatamente anterior a sua realizacdo, mas amplia- se pelo enfoque de um segmento pretérito bem mais remoto, o da infancia do personagem-narrador. A dificuldade deste em distinguir com nitidez am- bos os decursos temporais focalizados - a rememoragdo de um evento mais préximo desdobrando-se na de um mais distante e vice-versa — é re- forgada pela vigéncia de um terceiro plano temporal que se caracteriza por prospeccées ¢ retrospeccdes imagindrias, “fantasiosas”. Tudo aparece, entdo, “empastado”, “confuso”®, o que acentua ainda mais o deslocamen- to de Luis da Silva, incapaz até mesmo de perceber exatamente sua locali- zaGao espacial, pois a certa altura cle se indaga: “Estarei a porta ou jd te- rei chegado a repartigéo? Em que ponto do trajeto me acho? Nao tenho consciéncia dos movimentos, sinto-me leve”*, para depois concluir: “Est4 claro que todo o desarranjo é interior”. Por outro lado, a distribuigdo dos espagos na narrativa é importante enquanto desveladora dos mecanismos da produgdo textual, fazendo res- saltar a especificidade da posigdo do narrador. A contigiiidade das casas de Marina e Luts da Silva permite que ele se coloque num posto de obser- yacdo privilegiado: Marina pode ser vista ou, quando nio vista, seus mo- vimentos podem ser imaginariamente visualizados. A clareza da visio do personagem-narrador — vidvel em virtude do espaco por ele ocupado ~ € dificultada, no momento da escrita, seja pela nebulosidade literal e me- taf6rica provocada pela “chuvinha renitente” ¢ pela “neblina pegajosa”*> vistas da jancla, seja pela incapacidade do seu olhar fixar-se no que tem 31. Ramos, Angistia, p. 21. 32. Idem, p. 40. 33. Idem, p. 27. 34, Idem, p. 32. 35. Idem, p. 35. 36. Idem, p.27. 2 CORPOS ESCRITOS diante de si - “Nunca presto atengdo as coisas, ndo sei para que diabo quero olhos”?”. A visao do narrador acaba por dobrar-se sobre si mesmo, desenca- deando um movimento oscilatério de distanciamento/aproximagao da realidade circundante, similar a atracéo/repulséo que cle sente por Mari- na, ao desejo de fazé-la reviver e simultaneamente maté-la através da re- memoragao efetuada na escrita. Apés narrar 0 doloroso episédio da aprendizagem de natagdo com o pai na infancia, o narrador declara: “Se eu pudesse fazer 0 mesmo com Marina, afogé-la devagar, trazendo-a para a superficie quando ela estivesse perdendo o félego, prolongar o suplicio o dia inteiro...”* Do mesmo modo, apés 0 assassinato de Juliao Tavares, cle diz: Eu escorregava nesses siléncios, boiava nesses siléncios como numa Agua pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo, voltava a superficie, tentava segurar-me a um ga- Iho. Estava um galho por cima de mim e era-me impossivel alcangé-lo. Esse movimento concomitante de recalcamento/desrecalcamento faz sobressair, 4 tona do texto, o que deveria permanecer recalcado: a con- flituosa relagdo familiar na infancia, repetida especularmente na relagao de Luis da Silva com Marina e Julido Tavares”. A evocagao dos aconteci- mentos traumiticos da infancia, da destruicao da antiga opuléncia e pode- rio familiares da relagdo amorosa frustrada reforga a degradago da vida presente e, ao invés de funcionar como meio de liberagdo e apaziguamen- to, acentua a desagregacdo psiquica de Luis da Silva. E essa desagregagdo a maior responsdvel pela desordem e fragmentacao do livro que a revela. Qual o sentido, pois, da escrita desse Narciso emaranhado nos refle- xos de sua imagem ¢ que vai sendo conduzido pela linguagem a regides indesejaveis e por isso mesmo mais reveladoras de seu desejo? A radicali- dade dessa experiéncia néo admite meio-termo e, se possibilita a reso- lugdo dos conflitos desencadeados, pode agrava-los ainda mais. Encenar os conflitos nao com a linguagem do todo, mas com a do fragmento e da pluralidade é uma forma de recusa do sistema (literério e social), uma “opgdo” pela mobilidade da busca experimental, pela auséncia de acaba- mento, assumindo um risco que nao garante a unidade - da escrita e de si. 37. Idem, p. 91. 38. Idem, p.27. 39. Idem, p. 230. 40. © malogro da relagio amorosa com Marina faz emergir a agressividade e a violéncia latentes em Luis da Silva e seu desejo de: a. destruigSo de Julio Tavares néo apenas enquanto rival, mas en- quanto representante do poder € da ordem: b. destruigo do pai, em virtude da relagio edipica nao Superada e ¢. autodestruigéo como forma autopunitiva. O desenvolvimento detalhado da questo encontra-se no livro de Lticia Helena Carvalho, jé citado. AUTO(BIO)GRAFAR 3B Luis da Silva é obrigado a falar a partir do discurso que recusa, em- bora pertenga como todos a esse discurso, cujas verdades séo entao colo- cadas a prova. Sua fala plural e descontinua nao fala em razo do seu po- der de significar ou de representar, preenchendo vazios ou conjugando disjungdes, como aparenta, mas se processa pelo devir incessante do enigma que a sustenta: o enigma de si. Luis da Silva busca interpretar-se, e como toda interpretacdo é in- termindvel, ele est4 condenado a diferir, a dispersar-se em afirmagGes que nao se mantém sob a exigéncia de uma clarificagdo explicativa duradoura. A sua escrita nao tem valor determinante de representagdo, ndo esté no lugar de nada, nem de ninguém, acentuando apenas 0 jogo abissal da dife- renga, a ruptura de um texto sempre divergente, um (auto)retrato sempre inconcluso. Esse jogo de dispersao e diferenga, em Angustia, é estancado, toda- via, quando determinado enfoque critico pretende explicar os epis6dios da infancia do personagem-narrador e os reflexos desta no seu comporta- mento adulto, mediante 0 cotejo com Infancia, livro de memérias. Desse modo, o autobiografico passa a elemento privilegiado de sustentagdo do ficcional, chegando a suplanté-lo, ao mesmo tempo em que sao desrespei- tadas as peculiaridades de cada um dos textos considerados. E 0 que ocor- re com a leitura efetuada por Helmut Feldmann. Apesar de o critico alem4o reconhecer — seguindo Antonio Candido e Licia Miguel Pereira — que as memérias talvez representem um “passo além dos romances no desenvolvimento artistico de Graciliano Ramos”, usa Infancia apenas como “chave para uma melhor compreensdo dos romances’, Tal atitude supde nao sé a crenga de que o texto autobiogrAfico é 0 depositdrio fiel da experiéncia vivencial do escritor, mas também a de que os romances de Graciliano séo meros disfarces autobiograficos cujo desvelamento consti- tuiria a principal tarefa do analista. No afa de estabelecer correspondéncias entre os romances e a vida de Graciliano, Feldmann, além de nao contribuir para a elucidagao cabivel dos textos analisados, delega a Graciliano, como notou Franklin de Olivei- ra, tragos que ele “jamais possuiu, como, por exemplo, tendéncias para a vida mistica”®. Em equivoco similar incorre Rolando Morel Pinto, que, partindo da arbitrdria distingdo entre forma e contetido, procura demonstrar a seme- Ihanga entre Graciliano e seus personagens-narradores através da seme- Ihanca de suas opinides ¢ dos recursos estilisticos que empregam. Isso posto, Morel Pinto realiza 0 cotejo dos personagens romanescos com 41. Feldmann, Graciliano Ramos: Reflexos da sua Personalidade na sua Obra, p. 70. 42. Idem, p. 71. 43, Oliveira, “Graciliano Ramos”, p. 313. aM CORPOS ESCRITOS Graciliano, declarando que apés a “publicagao de Infancia e Memérias do Carcere, revelaram-se quase todas as chaves dos seus romances, incluindo os modelos de muitos dos personagens de Angiistia e Vidas Secas’. O texto memorialista como “chave” do universo romanesco de Gra- jano parece predominar na critica, a exemplo da leitura de Lamberto Puccinelli que realiza o percurso da obra ficcional 4 autobiogrdfica e vi- ce-versa, 0 que poderia ser enriquecedor. O paralelismo efetuado pelo cri- tico entre a vivéncia dos personagens ¢ a vida do romancista leva-o a aproximar Jodo Valério, Paulo Hondrio e Lufs da Silva de modo tal que sao abolidas as diferengas entre eles, devido a intengdo de fazé-los coinci- dir com o “modelo” Graciliano. Como é inevitdvel nesse tipo de leitura, Infancia € 0 molde ao qual se devem encaixar Angistia, de modo direto, e Caetés, de modo indireto, sendo que Angustia, por conter tragos auto- biogrdficos mais evidentes, é considerado “livro de mem6rias quase quan- to Infancia’”’. Se se parte do nexo causal entre a vida e a obra, as Mem6é- rias do Cércere, como indica 0 titulo do capitulo a elas dedicado, nao pas- sam de simples “material de prova’”” e como tal sao lidas. Vera Maria Matos, ao contrério, na sua andlise de Infancia, restaura a autonomia do texto enquanto texto literério e procura lé-lo, utilizando recursos teéricos da psicanlise, sem se preocupar, propositalmente, com a distingdo ficcional/autobiografico (ou memorialista), 0 que lhe permi- te detectar a especificidade de Infancia como “texto de representagao cujo significado se constréi a partir de suas peculiaridades como fazer lite- rério”*. Ao se basear na nogdo freudiana de “posterioridade”, pela qual € sabido que experiéncias e tragos mnésicos sao ulteriormente remodelados em fungdo de experiéncias novas, a autora ressalta o caréter deformador e transcriador do discurso da meméria ¢ conclui que Graciliano “nao nos conduz a infancia real do menino nem 4 histéria do individuo, mas a lin- guagem do inconsciente, que tem seu tempo e l6gica proprios”®. Apesar de sua leitura apresentar um rendimento bastante eficaz, Vera Matos nio se detém na diferenga existente entre um texto que é da- do pelo autor como autobiogrdfico e outros que sao dados como ficcio- nais. Ao serem desfeitas preliminarmente essas fronteiras, Infancia nao se distingue, enquanto fazer literdrio, das obras romanescas de Graciliano. A 4, Pinto, Graciliano Ramos, Autor e Ator, p. 150. 45. Aderaldo Castello considera Inféincia como guia que nos conduz, com seguranga e sugestio riquis- simas, & melhor compreensio e ao estudo dos romances. CI. “Aspectos da Formagéo e da Obra de Graciliano Ramos”, em Castello, Homens e Intengées, p. 3. 46. Puccinelli, Gracitiano Ramos: Relagées entre Ficcéo e Realidade, p. 61. 47. Idem, p. 97. 48. Oliveira, O Bezerro Encourado ou as Terrtveis Armas: Uma Anélise de Infancia de Graciliano Ramos, Pel. 49. Idem, p. 94. AUTO{BIO)GRAFAR os relevancia dada ao processo de produgao do texto sem levar em conta seu processo de recepcao impede que a complexidade do problema seja abor- dada em toda a sua extensdo, tendo-se em vista que o fato de Graciliano firmar pactos de leitura diversos € um componente importante para a compreensdo da sua obra. Tanto uma andlise apenas imanentista do texto de Graciliano, como a efetuada brilhantemente por Vera Matos, quanto as andlises centradas no método biogr4fico, como as que foram referidas, ndo conseguem dar conta, isoladamente, da fungdo predominante que o ficcional e o autobio- grafico desempenham na obra do autor: a fungdo irdnica. Para que esta seja convenientemente entendida, é necessdrio recorrer a Caetés, obra de estréia de Graciliano, nado s6 porque nela a ironia constitui o recurso de construgdo mais significativo, e apresentado de modo mais evidente, mas também porque as obras posteriores apresentarao, de maneira e em nivel diverso, problema semelhante ao colocado no primeiro romance. O Eu-Caeté Para Antonio Candido, em Caetés, a ironia aparece “j4 travada de certo humor Acido que, em relag4o aos outros, bordeja 0 sarcasmo e, em relagdo a si mesmo, a impiedade”, ao mesmo tempo que constitui trago importante da “tentativa de romance dentro do romance”™. Embora 0 cri- tico nao desenvolva esta Ultima afirmativa, ela requer maior atengao, pois parece ser a estrutura “em abismo” do livro a maior responsdvel pelo efei- to irdnico por cle atingido. A pretensao de Joao Valério de realizar um “romance histérico”*! sobre 0 episédio da devoragao do bispo Sardinha frustra-se em virtude da sua incapacidade de tornar verossimil, em termos de ficgdo, um aconteci- mento histérico distante da sua prOpria hist6ria pessoal e a ela alheio. 0 afastamento paulatino do livro projetado é concomitante ao acentuado in- teresse do narrador pela realidade que o circunda e por si mesmo, cujo registro parece cumprir os dois elementos basicos da sua “poética”: a ob- jetividade e a veracidade. Ambas, contudo, acham-se comprometidas pela reflexdo sobre o livro malogrado, que, ao ser introduzida na narrativa que a contém, desfaz a pureza objetiva pretendida e denuncia o cardter ilus6- rio do representado. Joao Valério declara ter abandonado definitivamente 0 livro proje- tado por julgar que “um negociante no se deve meter em coisas de arte”, mas a realizagao de Caetés nega essa afirmativa. Ao negé-la, con- 50. Candido, “Ficgéo e Confissio”, pp. 15-16. ‘51. Ramos, Caetés, p. 38. $2. Idem, p. 234. 56 ‘CORPOS ESCRITOS firma a ambigiiidade da pratica escritural de seu narrador ¢ a postura ird- nica de seu autor que propde como ficcional um texto construfdo sobre a impossibilidade de o narrador fazer ficcéo. Agindo assim, Graciliano, além de renunciar a um realismo de fachada, instala seu texto no universo irénico por exceléncia, aquele em que, segundo Adorno, “o autor se des- prende da pretensdo de estar criando realidade, embora em nem uma s6 de suas palavras deixe de assentar essa pretensdo”, Caetés, banquete canibal de papel, alimenta-se nao s6 do relato au- tobiogréfico de Joao Valério, mas também dos destrogos do “naufragio”* do seu projeto romanesco. Ao colocar em relevo o processo de interdevo- ragdo de textos que o constitui, o livro acena para o problema da paterni- dade da escrita: apesar de abandonado pelo pai, o filho-projeto se cum- priré, embora de modo diferenciado. A devoragdo canibal do bispo Sardinha, no texto projetado, trans- forma-se em devorago sexual de Lufsa, no texto efetivado: 0 que deveria ser Hist6ria torna-se hist6ria pessoal, no relato de Joao Valério, e estaem estéria, na narrativa de Graciliano. Em virtude disso, 0 drama edipiano que fundamenta a histéria privada de Jodo Valério nao pode ser conside- rado uma simples transposi¢ao ou versdo disfargada do mesmo problema do autor. Caetés € tido, por Lamberto Puccinelli, como “romance obliquo do Complexo de Edipo”®’. O critico observa que os fatos do romance desen- volvem-se num ambiente familiar que nao é o do circulo familiar natural do protagonista, embora vd representar para ele fungdo equivalente. Adrido se coloca para Jodo Valério como protetor e como autoridade, ou seja, como pai, amparando-o quando 6rfdo e empregando-o na sua firma; Luisa, mulher de Adriao, considera Jodo Valério como um filho, o que n4o impede que ele se apaixone por ela e termine por conquisté-la. Ao saber desse caso amoroso, Adriao suicida-se e desfaz-se o relacionamento dos amantes. O modelo edfpico é portanto confirmado, apesar das substituigdes e variagdes. No mito, Edipo comete o parricidio e 0 incesto por desconhe- cimento dos seus lagos familiares com Laio e Jocasta; no romance, por sa- ber que Lufsa no é a mae e Adrido nao € o pai, embora ocupem respecti- vamente o lugar de ambos, Jodo Valério obedece a motivagées incons- cientes e age conscientemente, respaldado por um recurso significative - o do selvagem caeté. Ao fazé-lo, Jodo Valério se atribui uma personalida- de desvinculada da sua situacdo real, livre do cédigo moral que se vé obri- $3. CL “La Posicién del Narrador en la Novela Contempordnea”, em Adorno, Notas de Literatura, p. 49. $4. Ramos, Caetés, pp. 62, 118. $5. Puccinelli, op. cit, p. 25. AUTO{BIO)GRAFAR 7 gado a sustentar. Desse modo, a sua exigéncia de satisfagdo e a incon- seqiiéncia da satisfacdo dos seus impulsos podem ser configuradas®. A identificagao de Jodo Valério com os caetés, propiciadora dessa configuragdo, ndo deve ser vista apenas ao nivel dos fatos narrados e do comportamento dos personagens. Interessa saber, sobretudo, como essa identificag4o se relaciona com o funcionamento do texto em que se acha inserida e com seu modo especifico de produgao. No final do livro, ao crer-se semelhante a um caeté, Jodo Valério declara: E isto, um caeté, Esses desejos excessivos que desaparecem bruscamente... Esta in- consténcia que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esqui- va, um romance que no posso acabar......] Passo horas escutando as histérias de Nicolau Varejio, chego a convencer-me de que sio verdades, gosto de ouvi-las. Agradam-me os desregramentos da imaginagao. Um caeté*”. Os tragos indefinidores, reticentes e instaveis do narrador-caeté en- formam 0 texto realizado e contradizem 0 projeto narrativo inicial. A transgressio do interdito - os “desregramentos da imaginagdo”, via oposta 4 do modelo perseguido, baseado na regra da objetividade - € 0 resultado do processo de assimilagao e degluticao canibalescas, que per- mite que o recalcado — 0 ser caeté — venha a tona no préprio instante da sua negagao. Devorar 0 bispo Sardinha - signo polissémico da colonizagao ¢ da catequese - é rebelar-se contra os mecanismos sociais, politicos e religio- sos da repressiva Palmeira dos {ndios, representago de um espaco hist6- rico-geografico mais amplo. Devorar Luisa ¢ contrapor-se ao Pai (signifi- cativamente, Joao Valério inicia seu projeto sobre os caetés € 0 livro que 0 contém apés ficar 6rfao), a Lei reguladora e ordenadora da Cultura e da sociedade, pela via da relagdo incestuosa deslocada. Agindo assim, o per- sonagem-narrador depara-se, de maneira inevitavel, com a castragao, ins- tauradora da ordem humana: o soneto, o artigo ¢ o romance incompletos remetem a incompletude do sujeito e do texto que procura, de modo vao, defini-lo. A ironia de Caetés reside nesse movimento oscilat6rio do fazer/des- fazer textual e intratextual, do fazer-se/desfazer-se do personagem-narra- dor. Em suma, consiste em contrapor a desconstrugao do relato sobre os “distantes” caetés 4 construgio do relato-caeté. 56. Idem, pp. 30-32. 57. Ramos, Caetés, p. 238. 58. Esse processo torna-se bem evidente nas “Hist6rias de Alexandre”: as interferéncias “desconfiado- ras” do negro Firmino em relagéo & hiperbélica ¢ excessivamente fantasiosa narragéo de Alexandre funcionam como pontuagéo irGnica do que é owvido/narrado. 58 CORPOS ESCRITOS As obras posteriores de Graciliano j4 abordadas participam desse procedimento fundado na ironia. Em Sdo Bernardo, o momento do encon- tro de Paulo Honério consigo mesmo é 0 momento paradoxal da derroca- da de si e do mundo antes endossado, do desencontro do texto projetado com 0 Outro texto que se afirma embora negado. Em Angtistia, Luis da Silva, ao langar-se a escrita em busca de si, depara com um eu que se des- dobra incessantemente na superficie nao do texto desejado, mas daquele que se postula enquanto desejo e como tal sempre inconcluso e indomé- vel. O enfoque do que se fragmentou no tempo nao é feito através de um processo hegemGnico de restauragéo. A lembranga nao é 0 caminho que conduz as certezas trangiiilizadoras ¢ a verdade inconteste, passiveis ilusoriamente de recuperagéo, mas 0 espago mdbile da recorréncia e da recriagéo em confronto permanente com as novas formas ¢ situagdes en- gendradas pela imaginagao. O texto de Graciliano caracteriza-se, pois, pelo jogo irdnico entre memi6ria e imaginacdo, entre o texto desejado e o desejo do texto, entre o personagem e 0 modo como € revisto por si mesmo enquanto produtor de discurso. Mais ainda, esse jogo se estabelece entre o narrador e o autor, entre ambos ¢ 0 leitor: narrador e autor configurando/desfigurando 0 ho- rizonte de expectativa do leitor. Reduzir o texto ora a um, ora a outro dos termos desse embate ininterrupto é destruir sua ambigiiidade e 0 duplo da sua identidade ou da sua identidade enquanto duplo (sentido) - desdo- brar-se entre vida espelhada autobiograficamente e autografia que se de- senrola a revelia de um autor. SILVIANO SANTIAGO AUTOBIOGRAFIA FICCIONAL... Fora de mim e para o outro. Para isso sempre foi preciso “fazer fic¢do” das minhas palavras. Ou ndo. SILVIANO SANTIAGO Em Silviano Santiago, escrita ¢ leitura sdo atos simultaneos € coinci- dentes. A mengao reiterada do texto a outros textos através dos recursos apropriativos da citagéo concorre para o esfacelamento da exclusividade de um centro gerador de discurso, ou melhor, da nogao de individualidade autoral. Contudo, tal individualidade parece afirmar-se na medida em que a leitura do texto alheio é acrescida da autoleitura, nos textos que funcio- nam como pré ou posfacios as obras do autor € nos quais ele proprio tece comientérios e reflexes sobre elas. Essa contradigao revela-se aparente quando se percebe que tais intervengées criticas ndo tém o cardter de tu- tela ou orientagdo normativa, cerceadoras da circulacdo independente do texto. Pelo contrdrio, funcionam como suplemento irénico que aguca a atengao do leitor para a ambigitidade ¢ a complexidade da pratica escritu- ral, cujo fundamento reside no confronto incessante entre verdade e ilusdo, vida e obra, sujeito e discurso. Caso exemplar dessa situagao é O Banquete, que termina significati- vamente com o conto-titulo, no qual sao feitas reflexdes sobre o que se acabou ou se esté acabando de ler. A leitura € sempre releitura: 0 banque- te-conto reenvia 0 leitor ao banquete-livro, instigando-o a refazer 0 trajeto percorrido de modo novo e mesmo insuspeitado. 0 CORPOS ESCRITOS A referéncia predominante a Gide no conto esclarecedora. Como Lejeune mostrou, ao desempenhar simultaneamente o papel de escritor ¢ de critico, Gide esgotaria as possibilidades de projecao ¢ andlise da pritica e da teoria, desvelando as leis do sistema e utilizando-as para fins pr6- prios. Estaria assim configurada a perplexidade do leitor diante da pers- pectiva de que toda leitura j4 foi feita, cabendo-Ihe apenas recomegé-la. Embora inserida num circuito bem definido, pouco suscetivel de abrir-se a novas significagdes ou a outros modos de leitura que ndo os originalmente previstos, a obra ainda pode funcionar como fonte de novas perquirigées, pois, apesar de tudo, esse circuito é muito amplo ¢ o trabalho da escrita € tGo complexo que torna impossivel “desfazé-lo”, decodific4-lo na sua tota- lidade’. A ambigilidade da postura de Gide é retomada por Silviano. A refle- xividade imanente ao texto de ambos manifesta uma abertura deliberada que dificulta ao leitor a tomada de uma posicdo fixa e est4vel, em relacdo ao texto e as imagens do autor nele projetadas. No conto “O Banquete”, frustra-se uma possivel expectativa de desvendamento do embaralhado metaférico do livro e das alusGes autobiogrdficas nele contidas. Se Gide, como € declarado no conto, “nao tem coragem de dizer 0 que quer di- zer”?, necessitando de dramatizar idéias ¢ escondé-las detras dos persona- gens, e vice-versa, € porque 0 texto € proposto como um jogo de mascaras superpostas, que esconde, revela e esconde de novo, podendo levar o lei- tor menos avisado a comer “gato por lebre”s. Se Silviano esconde-se por detrés de Gide e dos personagens e situagées criadas, reforgando a estru- tura “em abismo” do seu texto e o processo de devoracdo antropofagica que o caracteriza, é por saber, via Valéry, que “um ledo é feito de carnei- tos digeridos”*, ou “€ feito de sua imagem digerida”’. Essas equagées su- gerem os dois tragos predominantes da constituigao de O Banquete — os jogos intertextual e autobiogrdfico - responsdveis pela especificidade originalidade do texto no contexto literdrio da sua época e lugar. 0 Eu Devorado Publicado em 1970, O Banquete filia-se até certo ponto a uma das modalidades predominantes de configurac4o literaria do decénio. Segundo © préprio Silviano, referindo-se aos textos do perfodo, muitos deles cons- troem-se através de um discurso metaf6rico e de légica onirica, com o in- 1. CL Lejeune, Le pacte autobiographique, p. 186 et seq. 2. Santiago, O Banguete, p. 111. 3. Idem, p. 112. 4. Idem, p. 113. $. Idem, ibidem. AUTO{BIO)GRAFAR a tuito de, pela critica e pelo disfarce, abordar situacées passiveis de censu- ra, “quando o falar aberta e despudoradamente passa a ser um perigo ¢ a saida s6 pode ser vislumbrada metaforicamente no texto do ‘sufoco’ ”*. De modo semelhante, Davi Arrigucci Jr. reconhece na literatura brasileira dos anos 70 uma tendéncia a alegoria generalizada, que nao se deve apenas a repressdo vigente no periodo. E devida antes, em razdo da amplitude da hist6ria do capital, 4 impossibilidade de uma visao da totali- dade que, pretendida e nao efetivada, acaba levando o texto a trans- cendéncia. Conseqiientemente, tudo alude a tudo — ou a nada - © a par- ticularidade concreta nao é atingida’. Por outro lado, como quer Flora Siissekind, quando a proliferacaio de imagens ¢ de palavras do texto fundamentado na alegoria “esté a servi- go de uma chave mestra referencial e ndo de uma pluralidade de significa- dos, trata-se unicamente da ‘vontade de verdade’ dos natyralistas com ou- tra roupagem”®, Se o texto se colocar no ambito do “isso significa aquilo”, a dubiedade é rejeitada, privilegiando-se a univocidade e a referéncia a um real pouco problematizado. Em O Banquete, nao ha transcendéncia aleg6rica nem mera repro- dugdo camuflada do referente extratextual. O livro constitui-se pela ence- nagao conjunta do drama social ¢ familiar através da reiteragao da meté- fora da boca e seus desdobramentos no Ambito dessas duas esferas. A transgressdo do interdito da fala, operada mediante inversdes, desloca- mentos e condensagGes de linguagem, nao se limita a elucidar os meca- nismos de repressao vigentes em determinado perfodo, nem se restringe ao campo das singularidades do eu. A imediatez hist6rica € superada pela meméria da experiéncia indi. vidual no interior da familia, embora nao seja abandonada a particulari- dade concreta para a qual 0 texto aponta; a imediatez biogrdfica € abolida em virtude da posigao de distanciamento em que 0 autor se coloca, ao evi- tar assumir explicitamente o eu autobiografico. Tudo isso impede, pois, que 0 texto resvale seja para o alegérico-documental, seja para o confes- sional, Essa mobilidade e essa duplicidade textuais revelam-se desde o “Menu”, antiindice que, duplicando ironicamente os titulos dos contos, funciona como elemento (des)agregador do horizonte referencial dos mesmos, além de atuar “como mascara, criticando 0 contexto literdrio e cultural, através de ingredientes da arte pop e da revitalizagdo do instru- 6. Cl. “Represso e Censura no Campo das Artes na Década de 70”, em Santiago, Vale Quanto Pesa: Ensaios sobre Quesiées Politico-Culturais, p. 53. 7. CL. “Jornal, Realismo, Alegoria: © Romance Brasileiro Recente”, em Arrigueci Jr, Achados e Perdi- dos, p. 95 et seq. 8, Siissekind, Literatura e Vida Literéria: Polémicas, Didrios e Retratos, p. 6 a CORPOS ESCRITOS mental kitsch pela parédia”. Em virtude disso, torna-se patente a impos- sibilidade de desnudamento do sujeito ¢ da realidade que o circunda, am- bos constitufdos pela superposicdo de miltiplas camadas de linguagens e jé mediados por elas, antes de toda e qualquer representagdo. Passa a haver representagdo de representagdo “em abismo”, em constante re- missdo intertextual. Em “TraigGes”, a leitura da circularidade em espiral do museu Gug- genheim e da mobilidade das obras de Calder nele expostas delineia o percurso da escrita ¢ a caracteriza. A visita ao museu no presente é revisi- ta ao passado, através da retrospec¢ao do trajeto literario percorrido pelo personagem. O texto rememorado contrap6e-se ao texto da rememo- ragdo. Enquanto o primeiro reduz-se a catarse “irrefletida”, 4 mera trans- crigdo autobiogrdfica, camuflada pelo artificialismo do estilo copiado sem assimilago, o segundo, o da rememoragio, constré6i-se pela auto-reflexdo critica e pela traigéo, proposital, ao pacto autobiogrdfico e a referenciali- dade. O processo de (des)montagem textual efetuado — que remete a expo- sigo de Calder vista quando j4 sendo desmontada - mantém pontos de contato “intertextual” com o procedimento de Lloyd Wright, arquiteto responsdvel pelo Guggenheim e citado, sem identificagao direta, no final do conto. Arquiteto e narrador deixam a mostra o material empregado na obra que se caracteriza pela inexisténcia de um estilo predeterminado ¢ pela recusa 4 impessoalidade. Essa recusa, contudo, no leva o construtor a centrar-se na sua subjetividade ou a privilegiar-se narcisicamente como alguém que nao consegue ultrapassar seu proprio umbigo. A duplicagao especular de “textos” — indiciada desde o inicio pelas “dentaduras duplas” do titulo opcional do conto — radicaliza-se no tocan- te a postura do narrador, cuja voz também se duplica e se move. Sob a terceira pessoa narrativa, desliza um eu que muitas vezes se confunde com cla. No nivel frdsico, a supressdo do sujeito pronominal provoca a am- bigiiidade em formas idénticas de pessoas verbais diferentes. Sendo o sufi- xo pessoa-modo-temporal 0 mesmo em relagdo a primeira e terceira pes- soas, se essa ambigilidade € por vezes desfeita através de possessivos ou de formas pronominais 4tonas, imediatamente ela é retomada, sem contar que a ambigiiidade em relacdo 4 terceira pessoa desdobravel num ele ou vocé fica mantida. Veja-se, como exemplo, o seguinte trecho: Era preciso que apalpasse, para que pudesse inserir os fatos dentro da sua propria realidade. Nao € por isso que ndo conseguia escrever boa prosa? [...] Tinha saido em busca de um estilo fantasista ¢ artificial que apenas camuflava deficiéncias. Reduzia-o ao estado amorfo dos que imitam Liicio Cardoso ¢ Clarice Lispector sem a busca ¢ a experiéncia que conduziram estes ao estilo conquistado. 9. Souza, “Representagio Zoolégica ~ Circo de Papel”, pp. 45. AUTO{BIO)GRAFAR a Entrara pela porta da prosa passando primeiro pelo jardim da poesia. Trouxera dali afiada tesoura de podar (ndo dizem que o poeta é 0 policia da lingua) que o fazia conside- rar qualquer estilo mais prosaico como vulgar, esquecido que, quando se faz prosa, deve-se escrever prosa™®, A indagagao a respeito de quem fala — se é 0 autor, o narrador ou 0 personagem — c a respeito do lugar de onde se origina o falar mascarado, isso 0 texto ndo se preocupa em responder ¢ busca, propositalmente re- forgar. Em todo caso, 0 eu empirico assim ficcionalizado, literalizado co- mo narrador e/ou personagem, vé-se, na retrospec¢do deflagrada e no presente narrativo, como outro(s), “segunda realidade”", objeto de critica ¢ reflexdo distanciado, que se confunde com os objetos expostos no mu- seu. Ao colocar-se a si mesmo ¢ a seu produtor como referente e objeto literério de reflexao, o texto libera-se de possiveis significagdes preestabe- lecidas e esperadas pelo leitor. Desse modo, passa a funcionar como as esculturas de Calder, que, ao serem desprendidas do chao, podem movi- mentar-se ou serem movimentadas por outrem. Livres da dependéncia de um centro fixo ¢ de um produtor tinico, 0 texto e os mobiles apelam para a participagdo inovadora do receptor, ao qual também é dada, em virtude do desnudamento do processo construtivo, a possibilidade de produgdo. A abolicdo dos limites entre obra e pablico e o desmascaramento da “ilusdo referencial” opdem-se, em conseqiiéncia, ao ponto de vista burgués da “falta de sentido na arte moderna”? — leitura senil que se satisfaz ¢ se re- conhece apenas na repetigdo diluidora (a “Calder Inc.”) ¢ alienante. Restritas 4 “redoma de vidro”'? do museu ou a pagina de papel do livro, a liberacéo © comunicacao efetivadas denunciam ironicamente sua impossibilidade de transposigéo do espaco do museu e da arte ao espago da cidade e da vida. Esse reduzido campo de manobra mostra-se traigoei- ro, j4 que pode levar a crer na transposigdo impossivel e a descurar do fa- to de a repressdo externa agir como forga interditora no pr6prio interior do objeto artistico. E 0 que torna relativo o processo liberador desenca- deado pela arte, conforme revelam, pela repetigdo diferenciada, outros contos do livro. A impossibilidade de falar abertamente, em razdo das circunstancias determinadas pelo horizonte histérico do livro, € a matéria de “Perigo no Uso de Recursos Nao-Cientificos na Labiologia”. A “granulacao exagera- da” do discurso — verdadeira “geléia geral” que remete ao “Viva a Bos- 10. Santiago, O Banquete, pp. 61-62. AL. Idem, p. 61. 12. Idem, p. 70 13, Idem, p. 62 14, Idem, p. 91. 6 CORPOS ESCRITOS Sa ssa ssa” tropicalista do titulo alternativo - procura, pela infidelidade fotogrdfica ao real extratextual, melhor retratd-lo. Pela via da parédia do discurso académico, pscudamente cientifico, que se compraz na decompo- sigéo microsc6pica e esquematica do objeto e a ela se restringe, 0 texto realiza a desconstrugdo de formulas lingiifsticas vazias, reduto ideolégico de verdades cristalizadas. O mascaramento da linguagem usado para desmascaré-la nao esta a servigo de significagdes predeterminadas, nem se perde em alusdes gene- ralizadoras. A arriscada operagao de desrecalque do calar social, cuja ori- gem ¢ historicamente identificada pela proposicao alencariana da “virgem dos labios de mel”, metdfora da doagdo ao colonizador, e cujo desdobra- mento subseqiiente é sugerido pela proibigdo contida no aforismo “em bo- ca fechada nao entra mosquito”, é um efeito de linguagem que compreen- de ainda a critica ao perigo da auto-referencialidade que, quando gratuita e “epidérmica”, faz 0 texto desembocar no campo da “arte pela arte”"’. A referéncia direta 4 censura, ao ser deslocada para 0 conto seguinte — “A Vitiva Infiel” ou “A Censura nado me Agarra em 69” — revela a /é- bia estratégica do texto anterior ¢ do livro, por extensdo. Infiel ao que é prenunciado nas palavras finais daquele — “entremos no capitulo seguin- te, onde falaremos das conquistas obtidas através do uso sistemdtico da méaquina fotografica’® —, 0 novo conto faz-se pela bricolage parodistica de restos do discurso sentimentaldide estereotipado que funciona como pre- enchimento, “em decalcom: "17, do vazio de uma hist6ria amorosa ba- nal, em proceso de deteriorizacao. O desgaste da relac4o amorosa € também, de modo diverso, objeto de enfoque de “O Jantar”, cujo “Love or leave me na cozinha”, ao deixar entrever o imperativo e autoritario “Brasil: ame-o ou deixe-o”, contextua- liza a situagdo abordada. O autoritarismo social, historicamente determi- nado, atinge o nivel privado das relagdes pessoais: 0 conto é um didlogo de surdos fundado na interdigao da réplica e na sua inocuidade quando esbo- gada. O personagem feminino, ao negar-se como alimento sexual do jan- tar, vé, apesar disso, confirmada a sua condenagdo ao siléncio, 0 seu “pa- pel de espectadora”"* ¢ a sua submissdo a “iltima palavra” masculina, representante da ordem repressora. O “prato do dia” é, pois, a “docilidade”. No conto homénimo, o per- sonagem, em estado constante de hibernacdo, desprovido de passado e de meméria, constrangido a “repetir agées”” impostas, declara seu desejo 15. Idem, p. 96. 16, Idem, ibidem, [grifo do autor}, 17. Idem, p. 102. 18. Idem, p. 39. 19. Idem, p. 45 20. Idem, p. 107. AUTO(BIO)GRAFAR 6 reprimido de influir nos rumos da propria hist6ria, através da libertagdo do jugo autoral, invertendo a situagdo pirandelliana do “personagem A procura de autor”. A sua redugdo a mera figura de papel, personagem de personagem, atua ndo s6 como desdobramento metaférico dos outros per- sonagens do livro, como instala a critica do autor enquanto instancia repe- tidora, na cena textual, dos mecanismos totalitarios da cena politico-social. Em “Assassinato em Ouro Preto”, a docilidade do comerciante-es- cultor frente ao poder econdmico torna-o0, ao mesmo tempo, cimplice e vitima deste. A repeti¢do ingénua e alienante de uma tinica forma, através da produgao em série, reproduz em escala propria os mecanismos de do- minagéo. O amordagamento (Mr. “Muzzle”) imposto ao criador transpGe-se a obra criada: a rebeldia dos cordeiros é domada mediante a decodificagéo passiva do c6digo imposto pelo dominador e do recalca- mento da hist6ria da dominagdo — repetida e reencenada em Ouro Preto com novos figurantes. O gesto de trespassar os cordeiros com a espada, imobilizando-os na posigéo requerida — imagem deslocada da auto-imo- lagdo do artista espoliado da sua identidade onde ela poderia afirmar-se — declara a laténcia ¢ atualidade da violéncia enunciada na epigrafe do con- toe suas miltiplas ramificagées. Os elementos desse e dos outros textos vao delineando, fragmenta- riamente e sob o Angulo de diversas linguagens, um “Retrato do Brasil” que desmascara a convivéncia harménica de tragos do retrato oficial. Em “Praia do Flamengo”, a encenagdo social aparece interligada 4 encenagdo familiar, ambas emolduradas pelo calar estratégico do texto. A dissemi- nagdo no conto de referéncias propositais a determinados espagos, como os gindsios do Catete, o restaurante Calabougo, o Palacio das Laranjeiras € 0 Ministério da Educagdo, permite entrever um fato extratextual que a eles remete: a morte do estudante Edson Luts, assassinado na invasdo po- licial do restaurante Calabougo, no Rio, em mar¢o em 1968. Essa perspec- tiva de leitura, passfvel de ser também descortinada pelo titulo interrogati- vo-apelativo “Quando Vocé Vai Ler Marx?”, nao é, contudo, privilegiada. Ao deslocar o crime perpetrado para o palhaco encontrado morto na praia e conecté-lo a situagdo familiar representada, 0 texto espraia-se em novas e mais amplas diregées de sentido. A (des)montagem do circo familiar revela os bastidores do circo so- cial e vice-versa. No jogo de enganos assim desencadeado, a palavra fingi- da e as meias-verdades se confundem. O marido enganado pela mulher ¢ pelo siléncio do filho engana-os ao compactuar com a farsa doméstica, si- lenciando 0 que sabe e reforgando o siléncio do filho ao obrig4-lo a calar sobre 0 cadaver do palhaco (“marido trafdo”). A presenga do crime real na pagina policial dos jornais deflagra, na pagina do texto, o processo de desvendamento do crime metaf6rico, invertendo os papéis antes desem- penhados por seus figurantes e que se resumem, na nova situagdo, a mari- do-enganador, mulher-enganada e filho-delator. 6 CORPOS ESCRITOS A versio dos fatos, efetuada através de inversdes e revers6es acarre- tadas pelo policiamento do texto, vai além da registrada na pagina jor- nalistica, superando a fung4o informativa desta pelo questionamento am- plo da interdigdo. A forca repressiva que obriga o texto ao escamoteio da linguagem e do fato politico para poder express4-lo é atingida radicalmen- te, 4 medida que a complexidade da organizagdo textual transmite-se ao nivel da leitura, requerendo do leitor um esforgo participativo e desalie- nante, que 0 coloca em estado de alerta diante das trapagas (des)veladas pelo texto ¢ nele armadas. Por isso, mesmo as alusées autobiogréficas perceptiveis no livro funcionam como armadilhas de sentido, proposital- mente elaboradas, que descartam a ingenuidade da leitura comprobat6ria, denunciando a sua insuficiéncia e ineficdcia. A indistingdo de contorno dos limites entre 0 autobiogrdfico e 0 fic- cional e a reversibilidade de ambos os termos sao abordadas em “Futebol Americano”, através do confronto autor/personagem ¢ da significativa troca de suas fungées no espago textual. Essa mobilidade € indicada pela troca de posigao dos personagens ao volante do carro e a ambigilidade da situacdo traduzida pela descricdo inicial da paisagem fisica visualizada — “Os arbustos contra a terra séo ambiguos na tonalidade — nunca se sabe 0 limite, pois hd interpenetragéo mesma na cor”! —, ambigitidade que re- torna no final: “um prazer perder a nogdo dos contornos na paisagem e ver que de novo tudo se revestia de uma tonalidade tinica e embagada de verde”, Falar de si e falar do outro — “Strangers in the night no Carro” - séo atividades homlogas de eus desdobraveis que se interpenetram, como in- dica a auséncia de sinais grdficos identificadores das falas em didlogo. Da- vid, personagem virtual do texto pretendido e personagem real do texto efetivado, autor-personagem das experiéncias pessoais relatadas e das ex- periéncias ficticias propostas pelo autor verdadeiro tornado personagem, atua como clemento agenciador das reversées ocorridas através das ficgdes engendradas. Como tal, David — etimologicamente o “amado, querido (de Deus)” - objeto do desejo sexual do autor-personagem, de- sejo sugerido por subentendidos de linguagem e pelo comportamento sa- domasoquista do jogador em campo. As pancadas recebidas no jogo po- dem fazer reviver, como “transferéncia de penas”®, pancadas recebidas do pai no passado, descortinadas de relance como os fragmentos de “paisa- gens antigas”™ que se disseminam no presente textual e que com ele arti- culados tragam 0 penoso percurso do desejo ¢ da meméria, da viagem li- 21. Idem, p. 49. 22. Idem, p. $7. 23. Idem, p. 54 24, Idem, p. 51. ‘AUTO(BIO)GRAFAR 6 dica da e na escrita. O desejo do texto confunde-se com 0 texto do desejo,. num proceso especular (enquanto reflexo e reflexdo) que impede a apre- ensdo de uma imagem fielmente calcada na “nitidez” autobiogrdfica. A banalizagao da linguagem e dos acontecimentos rememorados no poema autobiogrdfico inserido em “Labor Dei” alude, pela via parédica, ao equivoco da transparéncia referencial e do estereétipo da sinceridade do eu. Reduzido 4 “gama monocérdica”* de atos rotineiros, mecdnicos e desprovidos de interesse, 0 poema frustra a expectativa do leitor avido de revelagées da intimidade secreta do eu “sincero”, desnudando a gratuida- de desse circuito de Ieitura. A curiosidade do leitor, em vista da decepgdo sofrida, € deslocada para 0 poema “concreto” construido pelo mendigo - ironicamente imagem virtual do produtor/receptor de textos —, a partir do rearranjo de silabas e vocdbulos do letreiro da roda-gigante. A elabo- racdo formal, mével e aleatéria, passivel de ser especificada pela equacao “abordei o labor de bordar”, dificulta, deliberadamente, a leitura univoca de vezo decifratério que remete, sem mediagGes, a referencialidade. A aproximacao fénica do significante em “Vejam do alto o mundo ¢é de bai- xo/Vejam do alto 0 mundo cabisbaixo”” resulta num acréscimo ao signifi- cado textual, intensificando sua polivaléncia ir6nica. As pistas oferecidas para a identificagdo do sujeito autoral funcio- nam, em “Labor Dei”, como os fios de cabelo do mecnico traido e os ca- dargos de sapato com os quais mata a amante, tema da novela radiofénica apresentada — “interessante original que ndo tem autor”. Longe de deslindar o enigma proposto, as pistas acabam por enlagar 0 leitor “policial” no jogo de ilusdes intra e intertextuais em que a identifi- cacdo do autor como a do criminoso da novela permanece em suspenso e em suspense. A impossibilidade de identificagdo do autor, dado o seu desdobra- mento em eus reversiveis no espaco ilusrio da representagao, é acrescida da auséncia de identidade do sujeito representado. Em “O Piano”, a pala- vra retrospectiva - “The sounds of silence na cama” — reatualiza, no 4m- bito da relagéo amorosa vivenciada pelo personagem no presente, o fan- tasma da castragao. A lembranga da falta, mediante 0 contraponto de ter/ndo ter 0 falo*, articula-se com o siléncio: possuir ou nao fala propria e apropriada para elaborar a falta-a-ser, j4 que 0 personagem nao se as- sume como ser-de-falta. Em virtude disso, os eventos rememorados histo- 25. Idem, p. 87. 26, Idem, p. 88. 27. Idem, p. 85, [grifo do autor] 28. Dilema sugerido no texto pelo cigarro que, aceso no inicio, ilumina a face dos amantes (Cr. Santia- £0, op. cit, p. 31.) e que apés 0 relato do corte do cabelo esta reduzido a “pura cinza” (Idem, p. 33) A propésito da castracéo, ver “Teorias sexuales infantiles”, “Andlisis de La Fobia de un Niio de Cin- co Afios” € “Fetichismo”, em Freud, Obras Completas, t. I, Ill. 68 CORPOS ESCRITOS riam, A sua revelia, 0 malogro do seu processo de “historicizagdo”, sua derrota diante da castracdo, reiterada pelo “tirar 0 corpo fora” do ato se- xual com a amante no presente. Ao sucumbir ao narcisismo, 0 personagem priva-se da alteridade constitutiva do sujeito e instauradora do interc4mbio social efetivo. Encer- rado em si mesmo, a sua confisséo inscreve-se no circulo da atividade masturbatoria ¢ atua como “lembranga encobridora”®, cujo significado e abrangéncia a urdidura textual revela. A mae, cuja imagem aparece deslo- cada na figura da irma “protetora”, é auséncia-presenca marcante no rela- to desencadeado pela retrospeccdo e constitui o objeto privilegiado do de- sejo do personagem, confirmando seu projeto incestuoso e sua conseqiien- te regressdo ao nivel pré-edfpico, etapa nado superada e matéria de “Mos- quitos”, conto de abertura ¢ simula metaforica de O Banquete. A regressiio compreende, em “Mosquitos”, o fantasma da incorpo- racdo, sugerido pelo ato de devorar insetos e pdssaros efetuado pelo per- sonagem do menino. Segundo Nicolas Abraham e Maria Torok, a incor- poragdo, mediante a absor¢do sob forma de alimento imagin4rio ou real do que falta ou se perdeu, marca a recusa de saber o verdadeiro sentido da perda ¢ implica a destruicgdo do ato de colocar em palavras 0 vazio oral originario ou, em outros termos, a destruigdo do ato de introjetar. O pro- cesso de introjecao tem lugar gragas a experiéncias do vazio da boca, que é experimentado como substituigéo progressiva e parcial de satisfagdes da boca cheia do objeto materno por aquelas da boca vazia do mesmo objeto, mas preenchida por palavras enderecadas ao sujeito. A passagem da boca cheia de seio para a boca plena de palavras nao se opera sem a assisténcia suficiente de uma mie, ela propria possuidora de linguagem e garantia necessdria a significacdo das palavras. Somente quando essa garantia é adquirida, as palavras podem ocupar a presenga materna e dar lugar a no- vas introjegdes, que atuam como remédio para as faltas do vazio oral ori- gindrio, convertido, ento, em relacdo de linguagem com a comunidade fa- lante. Nao verificada a introjegao, o artificio de preencher a boca com um alimento ilusério ter4 por efeito suplementar, também ilus6rio, suprimir a idéia de uma lacuna a ser preenchida com a ajuda de palavras®. No conto, 0 menino, cuja “fala” se reduz apenas a gestos e sons inarticulados, nao se inscreve no ambito da linguagem e da Cultura, sendo barrado seu acesso a ordem do simbélico, constituidora do sujeito huma- no. Sua fusdo indissolivel com a mae, determinante da impossibilidade dessa constituigdo, configura-se, no texto, através da fungdo nele desem- penhada pela imagem dos mosquitos e periquitos. Eles atuam, simulta- neamente, como objeto de identificagdo especular do menino, identifi- 29. Sobre o termo cf. “Los Recuerdos Encubridores”, em Freud, op. cit. t. 1. 30. Cf. Abraham e Torok, “Introjecter-incorporer: deuil ou mélancolie”, pp. 112-113 AUTO{BIO)GRAFAR 69 cacdo sugerida pela imitagdo por ele feita do rufdo dos pdssaros engaiola- dos, ¢ como objeto exclusivo do seu desejo, indiciado pelo ato de espetar 0s mosquitos € periquitos" com alfinetes ¢ pregos - modo fantasmatico de reforcar o desejo de continuar atado 4 mae. ‘Ao permanecer no nivel da identificagdo narcisica, marcada pela ambivaléncia da relacgdo canibalesca, 0 menino nao se desprende do cir- cuito da relagéo meramente especular reafirmada, por deslocamento, através da sua experiéncia sexual com a empregada e com a professora. A circularidade da situagdo representada conjuga-se ao caréter circular da representagdo, j4 que o conto inicia com o episédio da empregada e ter- mina com 0 apelo, atendido, da mae a professora, para que esta retome seu lugar junto ao filho. Nota-se que a devoragdo tratada ao nivel do en-cadeamento dos conflitos familiares no conto inicial é retomada, em termos metalingiiisti- cos, no conto de encerramento do livro. Se se leva em conta esse aspecto relativo 4 organizagdo estrutural de “Mosquitos” repetindo-se no tocante a O Banquete como um todo, percebe-se melhor a fungao exercida pela circularidade. Produto e imagem literdria de um perfodo histérico caracte- rizado pela obstrugio e pelo estreitamento das vias de atuagdo e expressdo de anseios individuais e sociais transformadores, langados num beco sem saida, O Banquete utiliza-se da articulacdo entre repressdo politica e re- pressio (ou perversdo) da sexualidade para oferecer uma visio mais abrangente do processo social brasileiro. A faléncia do “pacto edipico”, retratada em contos como “O Piano” e “Mosquitos”, tem como contrapartida 0 rompimento com o “pacto so- cial”, ambos intimamente interligados. Hélio Pellegrino ressalta que o primeiro pacto garante e sustenta 0 segundo, mas este, por retroagdo, con- firma ou infirma o primeiro. A mé integragao da Lei da Cultura em virtu- de de conflitos familiares no resolvidos satisfatoriamente pode gerar conduta anti-social. Uma sociopatia grave, como € 0 caso brasileiro, pode implicar a ruptura, ao nivel do inconsciente, com o pacto edipico, o que constitui uma verdadeira volta do recalcado, a emergéncia dos impulsos delingitenciais pré-edipicos, predatérios, homicidas, parricidas ¢ incestuo- sos, 31, Interessante observar que, na linguagem popular brasileira, “periquito” ou “periquita” so termos que remetem ao aparelho genital feminino. Cf. Ferreira, Novo Diciondrio da Lingua Portuguesa, p. 1071. 32. Cf. Pellegrino, “Pacto Edipico e Pacto Social (Da Gramética do Desejo a Sem-Vergonhice Brasili- ca)”, p. ML. 70 CORPOS ESCRITOS A Miragem do Eu A diversidade dos Angulos de abordagem do problema acima tratado restringe-se, no texto em surdina de O Olhar, aos limites do universo da familia, procedimento que, levando-se em conta as consideragdes anterio- res, nao invalida a repercussao “social” da matéria apresentada. Publicado ap6s O Banquete, em 1974, o livro teve uma primeira verso, datada de 1961-1962 e intitulada “A Infancia de Charles Baudelaire, tal como foi su- gerida a mim por Jean-Paul Sartre, ¢ que escrevi com 0 estilo de Clarice Lispector para dar de presente a Lucio Cardoso”. As “conotagées morali- zantes” dessa versdo, no dizer do autor, sao substitufdas, na versdo defini tiva, pelo intuito de “descrever uma determinada forma de erotismo, de desejo”, assim como 0 aproveitamento ¢/ou apropriacao de leituras, con. fessado no titulo primitivo, é acrescido da reelaboragao de “casos” da mi- tologia mineira®. A presentificagéo, na cena textual, da “cena origindria” e do “ro- mance familiar”, através da perspectiva ora da mie, ora do filho, sem que a enunciagdo lhes seja diretamente delegada como primeira pessoa narrativa, impede que o texto se caracterize pela rememoracao autobio- grafica. A irénica viagem ao “passado” que teima em manter-se como 0 “presente” de uma etapa insuperada — espago-tempo alheio a interferén- cia do Pai, ausente mesmo como instancia de narragdo — é empreendida numa linguagem que se especifica pela elaboragao filigranada, exacerbada e deliberadamente descritiva. Em razdo disso, interessa mais acompanhar © percurso do desejo nos intersticios dessa linguagem do que ater-se pre- dominantemente a evidéncia do tridngulo pai-mae-filho, constituidor do drama edipico. A esse respeito Silviano declara: O Othar & um texto que nao pode ser apreciado nas suas linhas gerais. E um texto para ser curtido pelos detalhes. S6 0 detalhe me preocupou o tempo todo. Como diz Gui- mardes Rosa: “No real da vida as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim”. Na linha geral o livro € muito acabado, fechado, mas é no detalhe que se percebe como “viver € perigoso”. Digo isso porque a linha geral do texto j4 foi escrita e reescrita milhdes de vezes desde 0 Edipo, de Séfocles*. A universalidade do problema edipico é portanto ultrapassada pela particularidade da sua focalizag4o, que passa a ser a determinante por ex- celéncia do texto. Fiel as conquistas técnico-narrativas do nouveau roman 33. Sobre as declaragées do autor, cf. “De Como a Infancia de Charles Baudelaire etc. se Transformou no Romance © Othar, Doze Anos depois”. 34. CE. Laplanche e Pontalis, Vocabulério da Psicandlise. 35. CL. “De Como a Infanci 36. Sobre 0 nowveau-roman ver Perrone-Moisés, O Novo Romance Francés, pp. 15-32. AUTO{BIOVGRAFAR n francés, 0 livro busca oferecer uma viséo do mundo sem avangar qualquer conjectura sobre ele, razdo pela qual o narrador isenta-se de atribuir peso moral as agGes e ao comportamento dos personagens. O universo por de- mais esquematizado e sobrecarregado de significagdes aprioristicas do romance tradicional é substituido por um universo que nunca se d4 a co- nhecer de forma definitiva e onde coisas e acontecimentos nao sao passi- veis de uma expressdo exata. Ou nas palavras de Clarice Lispector usadas como epigrafe do livro, trata-se de um mundo que apenas existe “enquan- to a qualidade nao pousa em coisas, enquanto o que é sim nao se desequi- libra em amanha - ¢ hd um sentimento para a frente e outro que decai, 0 triunfo ténue e a derrota, talvez apenas a respiracdo”. O texto de O Othar aparenta-se Aquilo que Jean Ricardou chama de produgdo. Para 0 teérico francés, a ideologia dominante no setor da litera- tura pressupde, como subjacente ao texto e como condi¢do da sua possibi- lidade, algo a dizer, um sentido institufdo, anterior ao ato de escrever. A escrita € entéo concebida como uma manifestagdo de tal sentido, o qual, geralmente, diz respeito ou a aspectos do “eu”, ou a aspectos do mundo. No primeiro caso, a manifestagdo é entendida como expressao e, no se- gundo, como representagao, sendo ambas manifestagdes reprodutoras. Produzir, entretanto, é transformar a linguagem entendida ndo como meio de expressdo e/ou representagdo, mas como matéria significante de cuja organizagao especifica dimanam sentidos imprevistos que produzem o sentido textual*”, A linguagem de O Olhar atua como 0 interruptor de luz que, na lembranga do menino, é 0 “hotdo magico capaz de destruir ¢ criar coisas a volta”, instaurando significagdes e imagens que se desdobram obsessi- vamente. Elas configuram um mundo de contornos imprecisos, regido pe- lo Mesmo e pela preseriga do significant e da linguagem materna, em de- trimento do significado e da Lei. O desejo excessivo de ver e/ou saber acaba, paradoxalmente, por distanciar tanto o filho quanto a mae da reali- dade circundante e de si mesmos, inscrevendo-os no circulo do devancio e das relagdes especulares, sendo a mae o espelho em que o olhar do filho se perde e vice-versa. O olhar da mae para 0 teto do quarto - “olhar pra nada pro nada”® - funciona como metéfora do vazio do “sujeito” e do corpo, de olhares que se cruzam sem se darem pela presenga do Outro, além de delinear no branco do teto/do texto, preenchidos vicariamente, a impossibilidade de satisfagao do desejo. Sexualidade e linguagem articulam-se, ¢ para dar conta dessa articu- lagdo nao cabe aqui insistir no valor erdtico das metdforas e simbolos fali- 37. Ct. Jean Ricardou, “Penser la littérature autrement”. 38. Cf. Santiago, O Oihar, p. 24. 39, Idem, p. 53.

Вам также может понравиться