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o ponto de panida de ANwrt do Conhe-

cimtntoé surpreendentemente simples: a vida


é um processo de conhecimento; assim, se o
objetivo é compreendê-Ia, é necessário en-
tender como os seresvivos conhecem o mun-
do. Eiso que HumbertO Maturana e francis-
co Varela chamam de biologia da cognição.
A ÁRVORE DO
.Estaé a sua teSecentral: vivemos no mun-
do e por isso fazemos parte dele; vivemos
CONHECIMENTO
cornos outros seres vivos, e portanto com. As B ases B iológicas
~..=partilhamos com eles o proce~so.'0-ta1:-Cons. da Compreensão Humana
~ truÚllOSo mundo em que vivemos ao longo
de nossas vidas. Por sua vez, ele também nos
constrói no decorrer dessa viagem comum.
Assim, sevivemos enos componamos de um
modo que toma insatisfatória a nossa quali-
dadede vida, a responsabilidade cabea nós.
As idéias de /l-taturana'e Varela contêm
nuanças que lhes proporcionam uma leveza
e uma perspicácia que constiruem a essência
de sua originalidade. Para eles, o mundo não
I
l
é anterior à nossa experiência. Nossa trajetó-
ria de vida nos faz construir nosso conheci- I
mentodo mundo- mas esl£também constrói
seu próprio conhecimento a nosso respeito.
.i
Mesmo que de imediato não o percebamos, ,
somos sempre influenciados e modiBcados i
1

pelo que experienciamos.


Para mentes condicionadas como as nos-
sas não é nada fácilaceitar esse ponto de vis-
ta, porque ele nos obriga a sair do conforto e J
da passividade de receber informações vin-
das de um mundo lá pronto e acabado - tal 1iI,
como um produto recém-saído de uma linha ,
de montagem industrial e oferecido ao con- I
sumo. Pelo contrário, a idéia de que o mun-
do é construído por nós, num processo ín~
cessante e interativo, é umconvite à partid-
pação ativa nessa construção. Mais ainda, é
um convite à assunção das responsabilidades
que ela implica.
A ÁRVORE DO
CONHECIMENTO
As B ases B iológicas
da Compreensão Humana

Humberto R. Maturana
e Francisco J. Varela

Tradução
Humberto Mariotti e Lia Diskin

Biblioteca Particular

T

Prof. Sérgio AuguslO " Souza

Editora Palas Athena

,.
Titulo origin;!l: EI drbol dei çOllOçiml'e1lto
Copyright O 1 984 by B ehnçke, M;!tur;ln;!,Y;ueb Sumário

Coorden;!ç:lo editorial: Emilio MOlifarri;.:e


Revisão de proV;!s: llleia Bra'ldilo Safi MOlljarrige
Diagr.lmação: llr/aria do Canno de OIiVl!ira
Capa: },falln'cio Zabotto Prefácio: Hllmbel10 Mariatti . 07
Impressão: Crri/iça Palas Alhella
CApITuLO I
Conhecer o conhecer 21
Catalogação na Fonte do Depanamento Nacional <lo Uvro CApITulO II
MHSa
A organização do vivo 39
Matur:lna, Humberto li.
CApITULO 111
A ~rvore do connecím""IO: a" ba.>e.' biológica.' da ooll'pr<:t'n:;;lo
h"man:!. / HlImbertn R. Mal",ana C F"",,ci>co J. Varcla õ tradu,lo: História, reprodução e hereditariedade 65
Humberto Marioui e Lia Oí,kin õ ;iu'traçi,,: C;"olina Ví:l.I. f.dmrdo
Osari." Frõ'ndsco Olivares " M"r<:clo Maturana Momai'iez _ Slo P:lUlo , CAPlTuLO IV
P:,las Athen:>, 2 001. A vida dos meta celulares _ 85
288 p:ígs, : iL : 16x2}cm CAPITulO V
ISB N 85-7142 0-} 2 -<) (b"xh.)
A deriva natural dos seres vivos 105
CAPITULO VI
1. Teoria do connttí"'cl1lo. l. Titul.,. Domínios comportamentais. 135
CApITULO VII
CDD, 12 \ Sistema nervoso e conhecimento_ . 157
CAPíTULO VIII
4' edição, março, 1 004 Os fenômenos sociais. 199
CAPíTULO IX
Todos os direitos reservados e protegidos Domínios lingüísticos
peb Lei 961 0 de 1 9 de fevereiro de 1 998. e consciência humana. 227
É proibida a reprodução total ou parei;!l, por quaisquer meios,
CApITulO X
sem a autorização prévia, por escrito, da editora.
A árvore do conhecimento 2 61
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, pela
EDITORA PAlAS ATI-lENA Glossário , , , 2 75
ll.ua Serra de Paracaina, 1 40 - Cambuci - 01 51 1 -02 0 _ São Paulo, SP _ B rasil Fonte das ilustrações, 2 79
fone; (1 1 ) 32 09.62 88 - fax: (lI) 31 77.81 37
www.pabsathena_org edi[or.J@palasathena.org

2 004
Outro olhar, o ponto de panida desta obra é surpreendente-
outra visão mente simples: a vida é um processo de conheci-
mento; assim, se o objetivo é compreendê-la, é
necessário entender como os seres vivos conhe-
cem o mundo. Eis o que Humberto Maturana e
Francisco Varela chamam de biologia da cognição.
O modo como se dá o conhecimento é um
dos assuntos que há séculos instiga a curiosidade
humana. Desde o Renascimento, o conhecimen-
to em suas diversas formas tem sido visto como a
representação fiel de uma realicL1deindependen~
te do conhecedor. Ou seja, as produções artbti-
cas e os saberes não eram considerados constru-
ções da mente humana. Com alguns intervalos
de contestação (como aconteceu logo no início
do século 2 0, por exemplo), a idéia de que o

I
mundo é pré-dado em relação à experiência hu-
mana é hoje predominante - e L<;sotalvez mais
por mmivos filosóficos, políticos e econômicos
• do que propriamente por causa de descobertas
científicas de laboratório.
Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe
passivamente informações vindas já prontas de
fOíd. Num dos modelos teóricos mais conheci-
dos, o conhecimento é apresentado como o re+
sultado do processamento (computação) de tais
8 A ARVORE DO COl'HECIMENTO PREFÁCIO 9

informaçõcs. Em conseqüência, quando se inves- o representacionismo é um dos fundamentos


tiga o modo como ele ocorre (isto é, quando se da culturJ. patriarcal sob a qual vive hoje boa parte
faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegia- do mundo, inclusive as Américas. A esse respei-
da e a subjetividade é descartada como algo que to, lembremos um dado histórico comentado por
poderia comprometer a exatidão científica. Tal Hannah Mendtl em relação aos bôeres, europeus
modo de pensar se chama representacionislllo, e em sua maioria descendentes de holandeses que
constitui o marco epistemológico prevalente na iniciaram a colonização da África do Sul no sé-
atualidade em nossa cultura. Sua proposta cen- culo 17. O contato com os nativos sempre os cho-
trai é a de que o conhecimento é um fenômeno cava, diz ArendI. Para aqueles homens brancos,
baseado em representações mentais que fazemos o que tornava os negros diferentes não er.t pro--
do mundo. A mente seria, então, um espelho da priamente a cor da pele, mas o fato de que eles
natureza. O mundo conteria ~informações" e nossa se comportavam como se fizessem parte da natu-
tarefa seria extrai-Ias dele por meio da cogniç:lo. reza. Não haviam, como os europeus, criado um
Como aconteceu com llluit.."lS outras, essa po- âmbito humano separ.tdo do mundo naturdl.
sição teórica também produziu conseqüências Do ponto de vista dos bôeres, essa ligação tão
práticas e éticas. Veio, por exemplo, reforçar a íntima com o ambiente tr.msformava os nativos
crença de que o mundo é um objeto a ser explo- em seres estranhos. Era como se eles não perten~
rado pelo homem em busca de benefícios. Essa cessem à espécie humana. Por serem parte da
convicção constitui a base d;! mentalidade extra- natureza, erdm vistos como mais um "recurso" a
tivis[a - e com muita freqüência predatória - do- ser explorado. Por isso. era "justo" que fossem
minante entre nós. A idéia de extrair recursos de amplamente utilizados como produtores de
um mundo-coisa, descartando em massa os ., energia mecânit.--a no trabalho escravo, ou emào
subprodutos do processo, estendeu-se às pessoas, simplesmente massacrados. Eis um exemplo do
que assim passaram a ser utilizadas e, quando se tipo de alteridade gerado pelo modelo mental
revelam "inúteis", são também descart..1.das. Como fmgmentador. A fragmentação traduz a separa-
todos sabem, a exclusão social alcança hoje em ção sujeito-objeto, principal característica da con-
muitos países proporções espantosas, em espe- cepção representacionista. Hoje, mais 00 que
cial no continente africano e na América Latina. nunca, o representacionismo pretende que con-
Ao nos convencer de que cada um de nós é se- tinuemos convencidos de que somos separados
parado do mundo (c, em conseqüência, das ou~ do mundo e que de existe independentemente
tras pessoas), a visão representacionisla em mui- de nossa experiência.
tos casos terminou desenc;!deando graves distor- Foi exatamente parJ. moslmr que as coisas não
ções de comportamento, tanto em relação ao am- são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore
biente quanto no que diz respeito à alteridade. do Conbecimento. Eis a sua tese central: vivemos
10 A ARVORE DO COKHECIME:"TO PREFACIO 11

no mundo e por isso fazemos parte dele; vive- modo interativo, o que nos revela como as coisas
mos com os outros seres vivos, e portanto com- se determin:lm e se constróem umas às outras.
partilhamos com eles o processo vital. Construí- Por serem assim, a cad:l momento elas nos sur-
mos o mundo em que vivemos durante as nossas preendem, revelando-nos que aquilo que pensá-
vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao vamos ser repetição sempre foi diferença, e o
longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos e que julgâvdmos ser monotonia nunca deixou de
nos comportamos de um modo que [orna insatis- ser criatividade.
f:Hória a nossa qualidade de vida, a responsabili- Tomemos ainda outra metáfora: não são só os
dade cabe a nós. timoneiros que dirigem os navios. O meio am-
Ao contrário das tentativas anteriores de con- biente também pilota as embarcações, por meio
testar pura e simplesmente o representacionismo, das correntes marítimas, dos ventos, dos aciden-
as idéias de J\Iaturana e Varela têm nuanças que tes de percurso, das tempestades e assim por dian-
lhes proporcionam uma leveza e uma perspicá- te. Dessa forma os pilotos guiam, mas também
cia que constituem a essência de sua originalida- são guiados. Não há velejador experiente que
de. Para eles, o mundo não é anterior à nossa não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que cons-
experiência. Nossa trajetória de vida nos faz cons- truímos o mundo e, ao mesmo tempo, somos
truir nosso conhecimento do mundo - mas este constmídos por ele. Como em todo esse proces-
também constrói seu próprio conhecimento a so emram sempre as outras pessoas e os demais
nosso respeito. Mesmo que de imediato nao o seres vivos, tal construção é necessariamente
percebamos, somos sempre influenciados e mo- compartilluda.
dificados pelo que vemos e sentimos. Quando Para mentes condicionadas como as n05..<;asnão
damos um passeio pela praia, por exemplo, ao é nada fácil aceitar esse ponto de vista, porque
fim do trajeto estaremos diferentes do que está- ele nos obriga a sair do conforto e da passividade
vamos antes. Por sua vez, a praia também nos de receber informações vindas de um mundo já
percebe. Estará diferente depois da nossa passa- pronto e acabado - t:ll como um produto recém-
gem: terá registrado nossas pegadas na areia - sarda de uma linha de montagcm industrial e ofe-
ou terá de lidar [ambém com o lixo com o qual recido ao consumo. Pelo contrário, a idéia de
porventura a tenhamns poluído. que () mundo é construído por nós, num proces-
Do mesmo modo, as águas de um rio vão abrin- so incessante e intcrativo, é um convite à partici-
do o seu trajeto por entre os acidentes e as irre- pação ativa nessa construção. Mais ainda, é um
gularidades do terreno. Mas estes também aju- convite à assunção das responsabilidades que ela
dam a moldar o itinerário, pois nem a correnteza implica. Não se trata, porém, de uma escolha re-
nem a geografia das margens determinam isola- tórica, e sim do cumprimento de determina-
damente o curso fluvial: ele se estrutura de um ções que derivam da nossa própria condição de
12 A ÁRVORE DO CO~Hf.CIMENTO PREFÁCIO 13

viventes. Matur:ln~ e Varela mostram que a idéia com o ambiente, no qual, é claro, est;1O os
de que o mundo não é pré-dado, e que o cons- demais seres vivos. Em me'..ldos dos anos 60, Varela
truímos ao longo de nossa inreraç.lo com ele. não tornou-se aluno de Maturana. A seguir, já tam-
é apenas teórica: apója~se em evidências concre- bém professor, continuou a trabalhar com ele na
tas. Várias delas estão expostas - com a freqüen- Universidade do Chile. Juntos escreveram um
te utilização de exemplos e relatos de experimen- primeiro livro: De Máquinas y Seres Vivos: Una
tos - nas páginas deste livro.
Teona de la Orgemizacíón Biológica.3 Tempos
Em suma: se a vida é um processo de conhe- depois, a instauração do regime militar no país, a
cimento, os seres vivos constróem esse conheci-
partir de 1973, fez com que os dois autores fos-
mento não a partir de uma atitude passiva e sim
sem para o exterior, onde continuaram a traba-.
pela interação. Aprendem vivendo e vivem apren-
lhar separadamente.
dendo. Essa posiçào, como já vimos, é estranha a
Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a cola-
quase tudo o que nos chega por meio da educa-
borJ.çào. Por essa época, a organização dos Esta-
ção formal.
dos Americanos COEM buscava novas formas de
abordar a comunicação entre as pessoas e o modo
como ocorre o conhecimento. Por intermédio de
As teorias de Matur.ma e Varela constituem uma Um pouco de
Rolf Dehncke, também chileno e ligado a essa
concepção original e desafiadora, cujas conse- história
qüências éticas agora começam a ser percebidas instituiçào, Maturana e Varela come(,-'amm a ex-
com crescente nitidez. Nos últimos anos, por por CÁ" resultados de suas pesquisas em uma série
exemplo, tal compreensão vem se ampliando de de palestras, assistidas por pessoas de fonnação
modo significativo e cem influenciado muitas áreas heterogênea. A transcrição e edição dessas apre~
do pensamento e atividade humanos. A Arvore sentações resultou num livro, publicado em 1985
do Conhecimento tornou-se um clá.ssico, ou me- em edição não-comercial para a OEA. Essa obr.l
lhor, recebeu o justo reconhecimento de seu clas- constitui, com algumas modificações, o que é hoje
sicismo inato. Por i& <;o,é importante contar aqui A Án'Ore do COrl!Jecimento. Desde a sua primeira
as linhas gcmis de sua história. 2 edi~'ào destinada ao público - em 1987 -, ela ja-
Tudo começou na década de 1960, quando mais deixou de despertar atenção, gerando co-
Maturana, professor da Universidade do Chile, mentirias, resenhas, análises, pesquisas, outros
intuiu que a abordagem convencional da biolo- livros. Tudo isso compõe hoje uma ampla biblio-
gia - que basicamente estuda os seres vivos a gmfia, espalhada por áre'J.s tão diversas como a
partir de seus processos internos - podia ser biologia, a :ldministração de empresas, a filoso-
fertilizada por outro modo de ver. Tal aborda- fia, as ciências sociais, a educação, as neurociên-
gem os concebe em termos de suas inter..lções cias e a imunologia.
14 A ÁRVORE DO COSHECI."IE~TO PREfACIO 15

o centro da argumentaçào de Maturana e Varela Desdobramentos obras - uma contribuiç~o relevante à compreen-
é consticuício por duas vertentes. A primeira, como são d3quilo que talvez seja o maior problema
vimos, sustenta que o conhecimento oio se limi- epistemológico de nossa cultura: a extrema difi-
1:.1 ao processamento de informações oriundas de culdade que temm de lidar Com tudo aquilo que
um mundo anterior à experiência do observador, é subjetivo e qualitativo.
o qual se apropria dele para fragmentá-lo e Mas temos outr3 Iimimção. Para nól'i, oito é
explorá-lo. A segunda gr.mde linha afirma que fácil aceitar que o subjetivo e o qU31itativomio se
os seres vivos são autônomos, isto é, autoprodu- propõem a ser superiores ao objetivo e ao quan-
lores - capazes de produzir seus próprios com- titativo; e que não pretendem del'icartá-Ios e subs-
ponentes ao interagir com o meio: vivem no co- titui-los, mas sim manter com eles um;), relação
nhecimento e conhecem no viver. complementar. Não entendemos que todas essas
A autonomb. dm seres vivos é uma a\terna[jva instâncias são necessárias, e que é essenci;),l que
à posição representacionista. Por serem autôno- entre elas haja um relacionamento trans:l.cional,
mos, eles não podem se limitar a receber passi- uma circularidade produtiva. Tal situaçào tem
vamente informações e comandos vindos de fora. produzido, como foi dito, conseqüências éticas
Nãa ~funcionam" unicamente segundo instruções import;),ntes. Parece incrível, mas muitas pessoas
externas. Conclui-se, entào, que se os conside- (inclusive cientistas e filósofos) imaginam que o
rarmos isoladamente eles são autônomos. Mas se trabalho científico deve afastar de suas preocupa-
os virmos em seu relacionamento com o meio. ções a subjetividade e a dimensão qualitativa -
torna-se claro que dependem de recursos exter- como se a ciência não fosse um trabalho feito
nos para viver. Desse modo, autonomia e depen- por seres humanos. Maturana e Varela mostram,
dência deixam de ser opostos inconciliáveis: uma com abundância de exemplos e constatações, que
complementa a outra. Uma constrói a outra e por a subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a
ela é construída, numa dinâmica circular. qualidade (tanto quanto a quantidade), são na
f\.Ias o que fazer para que o ser humano se verdade indispensáveis ao conhecimento e, por-
veja t.'1mbémcomo parte do mundo natural? Para tanto, à ciência.
tanto, é preciso que ele observe a si mesmo en-
quanto observa o mundo. Esse passo é funda-
mental, pois permite compreender que entre o Hoje, Ol'idois autores seguem caminhos diferen~
observador e o observado (entre o ser humano e teso No entanto, a diversidade de suas linhas de
o mundo) não há hierarquia nem separação, mas trJ.balho atuais não elimina um tr.Iço básico do
sim cooperatividade na circularidade. Na verrla- ideário original: o que sustenta que os seres vi-
de, Maturana e Varela dão - não apenas com este vos e o mundo estão interligados, de modo que
livro, mal'i com o conjunto de suas respectiv31'i não podem ser compreendidos em l'ieparado.
PREFACIO 17
16 A ÁRVORE DO CO:-<HECIMENTO

Outro pomo de convergência é o que diz que, se a ciência (o universo da objetividade) da expe-
o conhecimento 03 0 é passivo - e sim construído riência humana (o domínio da subjetividade).
Há anos que a Associaçào Palas Athena, por
pelo ser vivo em suas interações com o mundo -,
a postura de só levar em conta o que é observa- meio de sua Editora, pretende lançar uma tradu-
do deb::a de ter sentido. A transacionalidade eo- ção d'A Án'Oredo Conhecimento. Esse desejo sem-
tre o observador e aquilo que ele observa, além pre traduziu a certeza não apenas da importância
de mostrar que um não é separado do outro, tor- da obra, m:IS também da afinidade entre as idéias
na indispensável a consideração da subjetividade dos cientistas chilenos e os princípios da Asso-
do primeiro, isto é, a compreensão de como ele cia~:io. Eis por que agora a concretização do proje-
to ê para todos nós um acontecimento da maior
cxperiencia o que observ,!.
[vtaturana permanece no Chile, de onde sai importância, que queremos compartilhar.
periodiC'dmente pam cursos, conferências e se-
Humberto l\Iariotti
minários em vários países do mundo, inclusive o
B rasil. Aprofunda seu pensamento sobre a biolo-
gia do conhecímcnto e a respeito de sua concep-
ção de alrericlade, que chama de biologia do amor.
A transacionalidade da biologia do conhecimen-
to com a biologia do amor compõe a base do
P.s. Este livro já estava traduzido e seu texto pre-
que ele denomina de J\fatriz B iológica da Exis-
tência Humana, parJdo quando recebemos a notícia do falecimen-
Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas to de Francisco Varela. É com pesar que registra-
linhas complementares de pesquisa. A primeira mos essa imensa perda. Que esta tradução se in~
consta de estudos experimentais sobre a integra- corpore às muitas homenagens que a sua memó-
ção ncuronal durante os processos cognitivos, A ria merece e certamente receberá. A elas soma-
mos tamhém a nossa gratidão, pelo privilégio de
outra consiste em investigações sobre a consciên-
cia humana Tais pesquisas proporcionam contri- ter convivido com seus ensinamentos e de poder
buições à sua escola de estudos cognitivos - a continuar aprendendo com eles.
ciência cognitiva enativa (teoria da atuação). Em
linhas gerais, essa teoria sustenta que é preciso
levar em conta não apenas a objetividade, mas
também a subjetividade do obselvador, que ha-
via sido preterida pelos modelos teóricos repre- É médico, psjcoter~pt'llta (' coordenador do Grupo de Estudos
sentacionistas de ciência cognitiva. Ou seja, pre- de Compte,~idade e Pt:llS<lmento Sisto"míco da As.<;oçiaçào Palas
tende lançar uma ponte sobre o fosso que separa Atlwna, em Sào Paulo. E.mail- hOIll<lrinl@uo1.cotil.br
- - .__._-~--~

REFERENClAS

1. ARENDT,Hannah. Origens do Totalitarismo. São Pau-


lo: Companhia das Letras, 11)98, págs. 2 2 2 , 2 2 3.
2 . MATURANA, Humberto R., VARELA,Francisco J.
Pre/ace. The Tree o/ Knowledge: The Biological
Roots o/ HlImall Undersranding. B ostao e Londres:
Sbambhala, 1998, págs. 11-13.
3. i\1ATURANA,Humbeno, VARELA,F rancisco. De Má-
quinas y Seres Vivos: Utl(j Teon'a de la Organización
Biológica. Santiago: Editorial Universitária, 1973.

I
r
10 ,
2 •

conhecer o conhecer
I-=r
organi~ação
unidade -,---,
estrutura
I LautoPoieseJ
ética
fenome1nOlOgia ---h
biológica

-A grande tentação Na fig. 1 admiramos o Cristo Coroado com Espi-


9
1
3 nhos, do mestre Hertogen-bosch, mais conheci-
do como Hosch.

I
domínios linguístieos
fenômenos históricos
. 1 Essa representação tão pouco tradicional da
linguagem con5e~ação _ vJriação
I
1 _I coroação com espinhos piot;:\a cena quase em
conscil1mcia reflexiva reproduçao plano único, com grandes cabeças e, mais do que
retratar um incidente da Paix3.o,aponta para um
sentido universal do demoníaco em contraste com
o reino dos céus. No centro, Cristo expressa uma
8 4 imensa paciência e aceitação. Entretanto, seus

rr- I torturadores não foram pintados aqui como em

rgI ==--n
perturbações
fenõ~eniCUI~r~is tantas outras composições da época e do próprio
fenomenos SOCiaiS raCOPla~ento
estrutural ont en:J" Uosch, com figuras extr.. Herreoas que o agridem
unidades ~e terceira
ordem
I unidadJs de segunda ordem diretamente, puxando seus cabelos, ferindo a sua
1 .
clausura operacional carne. Os verdugos do Cristo aparecem com qua-
tro tipos humanos que, na mente medieval, re-
presentavam uma visão total da humanidade. Cada
7 5 um desses tipos é como que uma grande tenta-
atos cognitivos
- 1 . I
r filogenia çJo para a amplitude e a paciência da expressão
corre Iaçoes Internas ~
1
6 deriva história de
de Cristo. São quatro estilos de alienação e perda
natural interações da equanimidade interior.
ampliação do comportamento _ sistema
domínio de interações Há muito o que contemplar e refletir sobre
L J nervoso conselação selJçào
da adaptação-estrutural
essas quatro temaçôes. Para nós, porém, no início
plasticidade
i. I

.'' ' "' 'l


contabilidjdl! lógi~
deterrmnação estrutural do longo itinerário que será este livro, o persona-
representaçáo I
solipsismo gem do canto inferior direito é particularmente
importante. Segura Jesus pelo manto. Firma-o
CONHECER o COI':HECER 23
22 A ÁRVORE DO COr-:HECIMENTO

contra o solo. Segura~o e restringe sua liberdade


fIXando sua perspectiva. Parece estar dizendo:
~Maseu sei, já o sei~. Eis a tentação da certeza.
Tendemos a viver num mundo de certezas, de
solidez perceptiva não contestada, em que nos-
sas convicções provam que as coisas são somen-
te como as vemos e não existe altern:uiva para

+
aquilo que nos parece certo. Essa é nossa situa-
ção cotidiana, nossa condição cultural, nosso
modo habitual de ser humanos.
Pois bem, todo este livro pode ser visto como
um convite à suspensào de nosso hábito de cair
na tentação da certeza. Isso é duplamente neces-
sário. Por um lado, porque se o leitor não sus-
pender suas certezas, não poderemos comunicar
aqui nada que fique incorpor.ldo à sua experiên-
cia como uma compreensão efetiva do fenôme-
no do conhecimento. Por outra parte, porque
aquilo que este livro precisamente irá mostrar, ao
estud:.l.rde perto o fenômeno do conhecimento e
nossas ações dele surgidas, é que toda experiên-
cia cognitiva inclui aquele que conhece de um
modo pessoal, enraizado em sua estrutura bioló-
gica, motivo pelo qual toda experiência de certe-
za é um fenômeno individual cego em relação ao
ato cognitivo do outro, numa solid.."'loque (como
veremos) só é transcendida no mundo que cria-
mos junto com ele.

Nada do que vamos dizer será compreendido de As surpresas do olho


maneira verdadeimmente eficaz, a menos que o
leitor se sinta pessoalmente envolvido, a menos
que tenha uma experiência direta que ultrapasse figo 2 . Expt'riência do
pomo cego.
a simples descrição.
24 A ÁRVORE DO CO};IIECIMENTO CONHECER O CONHECER 25

Portanto, em vez de falar sobre como a apa- zona da retina de onde .sai o nervo óptico, que
rente solidez de nosso mundo experiendal se portanto não tem sensibilidade 3. luz. É o chama-
torna rJ.pidamente suspeita quando o observ:J.- do ponto cego. Entretanto, o que muito raramen-
mos de perto, iremos demonstrar esse fato por te se destaca quando se chí essa explicação é: por
meio de duas situações simples. Ambas corres- que n:l0 andamos pelo mundo com um buraco
pondem ao âmbito de nossa experiência visual desses o tempo todo? Nossa experiência visual
cotidiana. corresponcle a um espaço contínuo e, a menos
Primeira situação: cubra seu olho esquerdo e que façamos essas engenhosas manipulações, não
olhe fixamente para a CnlZ desenhada na página percebemos que de fato há uma descontinuidade
2 3, mantendo-a a uma dist5.nda de cerca de qua- que deveria aparecer. Nesse experimento do pon-
renta centímetros. Você observará então que o to cego, o bscimnte é que não vemos que não
ponto negro da figura, de tamanho nada despre- vemos.
zível, desaparece de repente! Experimente girar Segunda situação: tome dois focos de luz e
um pouco a página ou abrir o outro olho. É tam- disponha-os como na Fig. 4 (isso pode ser feito
bém interessante copiar o mesmo desenho em simplesmente com um cilindro de cartolina, do
outra folha de papel e aumentar gradualmente o tamanho de uma pequena lâmpada potente,
ponto negro, até ver qual é o tamanho máximo e usando um papel celof:lOe vermelho como
necessário p:ua o seu desaparecimento. Em se- filtro). A seguir, interponha um objeto - sua
guida, gire a página, de modo que o ponto B mão, por exemplo - e olhe para as sombras
ocupe o lugar que antes ocupava A, e repita a projet;!das sobre a parede. Um;! delas pareced
obsen..-ação. O que aconteceu com a linha que azul-esverdeada! O leitor pode experimentar di-
cruza o ponto? ferentes papéis tr.lnsparentes de cores diversas


Com efeito, essa mesma situação pode ser ob- diante das lâmpadas, bem como diferentes inten-
servada sem nenhum desenho em papel: basta sidades de luz.
substituir a cruz e o ponto pelos polegares. O
dedo aparece como que sem sua última falange " '."
-. Aqui, a situação e tao surpreendente quanto
no caso do ponto cego. De onde vem a cor azul-
(experimente!). Por fabr nisso, foi assim que essa esverdeada, quando o que se espera é a branca,
observação se tornou popular: Marriot, um cien- Fig. J Os dois círculos desu 1
a vermelha ou mistur.l.sdas duas (rosado)? Estamos
tista da corte de um dos Luíses, mostrou ao rei, págin<l fOl":lm impressos COln ' acostumados a pensar que a cor é uma qualidade
<Imesma tinta, No enlanto, o dos objetos e da luz que deles se reflete. Assim,
mediante esse procedimento, como ficariam seus
de baixo parcçe rosado, por
súditos sem cabeça antes de decapit •.i-los. causa de st'1I entorno verde., se vejo verde deve ser porque uma luz verde
A explicação normalmente aceita para esse fe- MOr.l1 da histâria: a cor IlJO é' chega até meus olhos, ou seja, uma luz com um
uma propriedade tbs coisas,
nômeno c que, nessa posição específica, a ima- d:l é insepar:'ive1 de como es--
certo comprimento de onda. Agora, se usarmos
gem do ponto (ou do dedo, ou do süclito) cai na L"lJIlOS estruturada> p<lrJ vê-Ia. um aparelho para medir a composição da luz
26 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO CONHECER. O CONHECER 27

nessa situaçào, descobriremos que oao há ne- explicação de como vemos as cores não é sim-
nhum predomínio de comprimentos de onda cha- ples e nio tentaremos fornecê-Ia com detalhes
mados verdes ou azuis na :-ombra que vemos aqui. Contudo, o essencial é que para entender o
como azul-esverdeada, e sim apenas a distribui- fenômeno devemos deixar de pensar que a cor
ção própria da luz bmnc:l. No entanto, a expe- dos objetos que vemos é determinada pelas ca-
riência de azul-esverdeado é, para cada um de racterísticas da luz que nos chega a partir deles.
nós, ineg:ível. Em vez disso, precisamos nos concentr..lr em com-
Esse belo fenômeno das chamadas sombras preender como a experiência de uma cor corres-
coloridas foi descrito pela primeira vez por Ono ponde a uma configuração específica de estados
voo Guericke em 1672 , quando ele nalOU que de atividade no sistema nervoso, determinados
seu dedo se tornava azul na sombra entre uma por sua estrutura. Com efeito, embor..l não o fa-
vela e o sol nascente. Em geral, diante desse fe- \-<1mosneste momento, é possível demonstf3.r que,
nômeno Ce de outros semelhantes) as pessoas como tais estados de atividade neuronal (como a
dizem: USem, mas qual é reahnente a cor?". como visio do verde) podem ser desencadeados por
se os dados fornecidos pelos instrumentos de uma variedade de perturbações luminosas (como
medição de comprimento de onda fossem a últi- as que tornam possível ver as sombras colori-
ma resposta. Na verdade, esse experimento sim~ das), é possível correlacionar o nomear das cores
pies não nos revela uma situação isolada, que com estados de atividade neuranal, porém nio
possa (com se faz com freqüência) ser considera- com comprimentos de onda. Os estados de ativi-
da marginal ou ilusória. Nossa experiência de um dade neuranal deflagr.ldos por diferentes pertur-
mundo feito de objetos coloridos é literalmente bações estão determinados em cada pessoa por
independente da composição dos comprimentos sua estrutura individual, e não pelas car..lcterísti-
de onda da luz que vem de cada cena que obser- cas do agente perturbador.
vamos. Com efeito, se levo uma laranja de dentro O que foi dito é válido para todas as dimen-
de casa até o pátio, ela continua sendo da mesma sões da experiência visual (movimento, textur..l,
cor. No entanto, no interior da casa ela era ilumi- forma etc.), bem como para qualquer outra mo-
nada por, digamos,.uma luz tluorescente, que tem dalidade perceptiva. Poderíamós falar de situa-
uma gmode quantidade de comprimentos de onda ções similares, que nos revelam, de um só golpe,
chamados azuis (ou curtos), enquanto que no que aquilo que tomávamos como uma simples
sol predominam comprimentos de onda chama- capta<,--ãode algo (tal como espaço ou cor) tr.lZ a
dos vermelhos (ou longos). Não há m:.Ineir..ls de marca indelével de nossa própria estrutura. Por
estabelecer uma correspondência entre a tremen- enquanto, teremos de nos contentar somente com
da estabilidade das cores com as quais vemos os as observações e experiências acima, e confiar
objetos do mundo e a luz que deles provém. A em que o leitor de fato as tenha feito e que,
28
- A ÁRVORE DO CONHECIMENTO CONHECER o CONHECER
m

29

POl13nto, estejam frescas em sua memória as evi~


ciências ue como é escorregadio o que ele estava
habituado a considerar como muito sólido.
Na verdade tais experimentos - ou muitos ou~
Iros similares - contêm de mam;ir:.1 capsubr o
sabor da essência do que queremos dizer. Eles
nos mostram como nossa experiência está
indissoluvelmente atrelada à nossa estrutura.
Não vemos o "espaço" do mundo, vivemos nos-
so campo visual; não vemos as "cores" do mun~
do, vivemos nosso espaço cromático. Sem dúvi-
da nenhuma - e como de alguma forma cte!'iCO-
briremos ao longo destas páginas -, estamos num
mundo. No entanto, quando examinarmos mais
de perto como chegamos a conhecer esse mun-
do, descobriremos sempre que não podemos se-
parar nossa história das ações - biológicas e so-
ciais - a partir das quais ele aparece para nós. O
mais óbvio e o mais próximo são sempre difíceis
de perceber.

No zoológico do I3ronx, em Nova York, há O grande escândalo


um grande pavilhão especialmente dedicado De observadores, passamos a observados (por
aos primatas. Lá é possível ver os chimpanzés, nós mesmos). Mas o que vemos?
goriias, gihões e muitos macacos do novo e do O momento de reflexão diante de um espelho
velho mundo. Chama a atenção, porém, que no é sempre muito peculiar, porque nele podemos
fundo existe uma jaula separada, com fones gra- tomar consciência do que, sobre nós mesmos,
des. Quando nos aproximamos, vemos uma ins~ não é possível ver de nenhuma outm maneira:
crição que diz: "O primata mais perigoso do como quando revelamos o ponto cego, que nos
planeta", Ao olhar por entre as grades, vemos mostr:l a nossa própria estnltura, e como quando
com surpresa a nossa própria cara: o letreiro es- suprimimos a cegueira que ela ocasiona, preen-
clarece que o homem já matou mais espécies no chendo o vazio. A reflexão é um processo de
planeta que qualquer outra espécie conhecida. conhecer como conhecemos, um aro de voltar a
------- --- ._- ,---~

30 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO CONHECER O CO:-<HECER 31

nós mesmos, a única oportunidade que temos de


descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as Os aforismos-chave do livro
certezas e os conhecimentos dos outros são, res- "Todo fazer ê um conhecer ('
pectivamente, tão aflitivos e tão tênues quanto todo L'Onhecer é um fazer"
os nossos. "Tudo o que é dilO é dito por alguém"
Essa situação especial de conhecer como se
conhece é tradicionalmente esquiva para nossa
cultur.I ocidental. centrada na ação e não na re-
flexão, de modo que nossa vida pessoal é, geral-
mente, cega para si mesma. Parece que em algu- olhando para essas coisas por melo desses pro-
ma parte há um tabu que nos diz: "É proibido cessos. Não temos outrJ. alternativa, pois há uma
conhecer o conhecer", Na verdade, é um escân- inseparabilidade eorre o que fazemos e nossa
dalo que não saibamos como é constituído o experiência do mundo, com suas regularidades:
nosso mundo experiencial, que é de fato o mais seus lugares públicos, suas crianças e suas guer-
próximo da nossa existência. Há muitos escândalos r:.ISatômicas.
no mundo, mas essa ignor.:1ncia é um dos piores. O que podemos tentar - e que o leitor deve
Talvez uma das razões pelas quais tendemos a tomar como uma tarefa pessoal- é perceber tudo
evitar tocar as bases de nosso conhecer, é que o que implica essa coincidência contínua de nos-
isso nos dá uma sensação um pouco vertiginosa, so ser, nosso fazer e nosso conhecer, deixando
dada a circu1:.lridade resultante da utilização do de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nos-
instrumento de análise pard analisar o próprio sa experiência um selo de inquestionabilidade,
instrumento de análise: é como se pretendêsse- como se ela refletisse um mundo absoluto.
mos que um olho visse a si mesmo. Na figura 5, Por isso, na base de tudo o que iremos dizer
que é um desenho do artista holandês M.C. F~~her, estad esse constante dar-se conta de que n30 se
essa vertigem está representada com muita niti- pode tomar o fenômeno do conhecer como se
dez, por meio das mãos que se desenham mu- houvesse "fatos" ou objetos lá fora, que alguém
tuamente, de tal modo que nunca se sabe onde capta e introduz na cabeça. A experiência de
está o fundamento de todo o processo: qual é a qualquer coisa lá fora é validada ue uma maneira
mão "verdadeira"? particular pela estrutura humana, que torna pos-
De modo semelhante, embora tenhamos visto sível "a coisa" que surge na descrição.
que os processos envolvidos em nossas ativida- Essa Circularidade, esse encadeamento entre
des, em nossa constituição, em nossa atuação ação e experiência, essa inseparabilidade entre
como seres vivos, formam o nosso conhecer, ser de uma maneira particular e como o mundo no.<;
propomo-nos a investigar como conhecemos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer
32
A ÁRVORE DO CO:"JHF.CL\IENTO
.CoNHECER o CO»lHECER 33
faz surgir um mundo. Essa característica do
Esses dois aforismos deveriam ser como fa-
conhecer será inevitavelmente um problema nos-
róis, a lembrar-nos permanentemente de onde
S 0, nosso ponto de vista e o fio condutor de tudo
viemos e para onde vamos.
o que apre.sentaremos nas páginas seguintes. Tudo
Costuma-se imaginar que esse fazer surgir o
isso pode ser englobado no aforismo: todo fazer
conhecimento seja algo difícil, um erro ou resí-
é um conhecer e todo conhecer é um fazer.
duo explicativo que precisa ser efí.ldicado. Daí,
Quando falamos aqui em ação e experiência,
por exemplo, dizer-se que a sombra colorida é
n;lo nos referimos somente àquilo que acontece
uma "ilusão de ótica" e que "na realidade" não
em relaçào ao mundo que nos rodeia no plano existe cor. O que estamos dizendo é just:lmente
puramente "físico". Essa característica do fazer hu- o oposto: esse caráter do conhecer é a chave
mano se aplica a todas as dimensões do nosso mestrd. para entendê-lo, não um resíduo incômo-
viver. Aplica-se, em particular, ao que estamos do ou um obstáculo. Fazer surgir um mundo é a
fazendo aqui e agora, os leitores c nós. E o que dimensão palpitante do conhecimento e estar as-
estamos fazendo? Estamos na linguagem, moven- sociado às íd.ízes mais fundas de nosso ser cogni-
do-nos nela, numa forma peculiar de conversa- [ivo, por mais sólida que seja a nossa experiên-
ção - num diálogo imaginado. Toda reflexão, in- cia. E, pelo fato dessas í.lízes se estenderem até a
clusive a que se faz sobre os fundamentos do própria base biológica - como veremos -, esse
conhecer humano, ocorre necessariamente nalin- fazer surgir se manifesta em todas as nossas ações
guagem, que é nossa maneiíd. particular de ser e em tooo o nosso ser. Não há dúvida de que ele
humanos e estar no fazer humano. Por isso, a se manifesta em todas as açôes da vida social
linguagem é também nosso ponto de panida, humana nas quais costuma ser evidente, como
nosso instrumento cogni[ivo e nosso prohlema. no caso dos valores e das preferências. Não há
O fato de não esquecer que;] Circularidade entre descontinuidade entre o social, o humano e suas
ação e experiência se aplica também àquilo que raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um
estamos fazendo aqui e agora, é muito importan- todo integrado e está fundamentado da mesma
te e tem conseqüências-chave, como o leitor verá forma em (odos os seus âmbitos.
mais adiante. Esse ponto não deve ser jamais es-
quecido. Para tanto, resumiremos ludo o que foi
dito num segundo aforismo, que devemos ter em Nosso objetivo, portanto, está claro: queremos
mente ao longo deste livro: tudo o que é dito ê examinar o fenômeno do conhecer tomando a
dito por alguém. Toda reflexão faz surgir um universalidade do fazer no conhecer (esse fazer
mundo. Assim, a reflexão é um fazer humano surgir um mundo), como problema e ponto de
partida para que possamos revelar seu fundamen-
realizado por alguém em particular num deter~
minado lugar. to. E qual será nosso critério para dizer que obti~
vemos êxito em nosso exame?
A ARVORE no CO:-lHECL\IDITO CONHECER () CO~HECF.R 35

Uma explicação é sempre uma proposição que Explk':açiiodo conhecer


refonnula ou recria as observações de um fenô- I. Fenômeno a expliGlr: ação efeli,'a do ser
meno, num sistema de conceitos aceitáveis par..! vivo em seu meio ambiente;
11. Hipótese explicmiv:i: organiza<,>àoautá-
um gmpo de pessoas que companilh:un um cri-
nom<l do ser vivo. Deriva filogenêtica e
tério de validação. A magia, poryxemplo, é tão ontugenética, com conselVa~-Joda adap-
explicniva para os que a aceitam como a ciência tação (acoplamento estrutural);
1lI. Deduçiio de outroS fenômenos: coorde-
o é para os que a adotam. A diferença específica nação componamental nas interações re~
entre a explicaç:l0 mágica e a ciencífica está no correntes entre seres vivos e coordena-
modo como se gera um sistema explicativo cieo- Conhecer ção comportarnental recursiva sobre a
coordenação comportamentat
tífico, o que constitui de fato o seu critério de :çonhecer é uma ação efe:iva, ou IV. Observações adicionais, fenômeno,; so-
validação. Dessa maneira, podemos distinguir 'a, uma efelívidade operaCional no ciais, domínios tingüístico.s, linj.,>1Jagcrn
e
. lJÚniode existência do ser vivo. aut()(;onsciência.
essencialmente quatro condições que devem ser
satisfeitas na proposição de uma explicação cien-
tífica, as quais não necessariamence ocorrem de
modo seqüencial. mas sim de maneira imbricada: Esse ciclo de quatro componentes não é estra-
nho ao nosso modo cotidiano de pensar. Com
a. Descrição do fenômeno ou fenômenos a ex- freqüência, nós o usamos para dar explicações
plicar, de maneira aceitável para a comunida- de fenômenos tão variados como o enguiço do
de de observadores; automóvel ou as eleições presidenciais. O que os
b. proposiçào de um sistema conceitual capaz cientistas fazem é tentar ser plenamente consis-
de gerar o fenômeno a explicar de modo acei- tentes c explícitos em relação a cada uma das
tável para a comunidade de observadores (hi- etapas, e deixar um registro documentado, de tal
pótese explicativa);
forma que se crie uma tradição que vá além de
c. dedução, a p:lITirde b., de OlltroSfenômenos
uma pessoa ou geração.
nào explicitamente considerados em sua pro- Nossa situação é exatamente a mesma. Tanto
posição, bem como a descriçào de suas coo- o leitor como nós próprios estamos tr,ltlsforma-
di\~ões de observação na comunidade de ob- dos em observadores que fazem descrições. Como
servadores;
observadores, escolhemos precisamente o conhe-
d. observação desses outros fenômenos, dedu- cer como fenômeno a ser explicado. Além disso,
zidos a partir de b.
o que dissemos torna evidente qual será nossa
Somente quando esse crilério de validação é descrição iniciai do fenômeno do conhecer: já
satisfeito uma explicaçio é considerada ciencífi- que todo conhecer faz surgir um mundo, nosso
ca. E uma afirmaçào só é científica quando se ponto de partida será necessariamente a efetivi-
fundamenta em explicações cientificas. dade operacional do ser vivo em seu domínio de
,16 A ÁRVORE no CONHECIMENTO

existência. Em outras palavr.ls, nosso marco ini-


cial, para gerar uma explicação cientificamente
validável, é entender o conhecer como ação efe-
tiva, ação que permita a um ser vivo continuar
sua existência em um determinado meio ao fazer
surgir o seu mundo. Nem mais, nem menos.
E como saberemos quando tivermos chegado
a uma explicação satisfatória do fenômeno do
conhecer? B em, a esta aitu1J. o leitor poderá ima-
ginar a resposta: quando tivermos proposto um
sistema conceitual capaz de gerar o fenômeno
cognitivo como resultado da ação do ser vivo. E,
também, quanto tivermos mostrado que esse pro-
cesso pode resuhar em seres vivos como nós pró-
prios, capazes de produzir descrições e refletir
sobre elas, como conseqüência de sua realização
como seres vivos, ao funcionar efetivamente em
seus domínios de existência. A partir dessa pro-
posição explicativa, perceberemos de que modo
podem ser geradas todas as dimensôes do co-
nhecer que nos são familiares.
Eis o itinedrio que propomos ao leitor nestas
páginas. Ao longo dos capítulos que se seguido,
desenvolveremos tanto essa proposição explica-
tiva, quanto sua conexão com vários fenômenos
adicionais, tais como a comunicação e a lingua-
gem. No final dessa viagem, o leitor poderá reler
estas páginas e avaliar o proveito de ter aceitado
noSSOconvite para observar de outra maneira o
fenômeno do conhecer.
10 2

conhecer o conhecer 1
I experiência cotidiana
ética I

I
fenômeno do conhecer

I
explicação
científica
I observador

açã!
9 3
dominios linguisticos fenômenos históri<os

lingu~gem conserJaçãO - vlriação ;


I Irepro d.l '
consciência reflelliva uçao

8 4
ri fenô~enoi cult~r~iS
fenomenj
I
perturbações

,acoplamento t
estrutural on j"'01 :
I'
500,1 1 5
4
unidades de terceira unidade~ de segunda orde:i
ordem
clausura olperadonal I

7 5
atos cognitivos r filogenia
- I _
corre ,açoes Internas 6 deriva história d
I natural ;nteraç"
ampliação do I I -,
I
comportamento - sistema
conservação seleção

L
domínio de interações
ne7050 da adaptação-estrutur.J
plasticidade contabilidjde lógica I I -

''''"'"'''l
determinação estrutufll
representação f
solipsismo

A ÁRVORE DO COl"HEC[MENTO A ORG:\NI7u"-ÇAO DO SE1 l VIVO 41


40

.'"
Nosso ponto de punida foi tomar consciência de
que todo conhecer é um fazer daquele que co-
nhece, ou seja, que todo conhecer depende da
estrutur.l daquele que conhece. Esse ponto de
"
partida fornece a pista 00 que será nosso itinerá-
rio conceitual ao longo destas páginas: como OCOT-
re esse fazer surgir o conhecer por meio do fa-
zer? Quais são as raízes e os mecanismos desse -,
modo de operar?
Diante de rais perguntas, o primeiro passo de
nosso percurso é o seguinte; o fato de que o
conhecer seja o fazer daquele que conhece está
-, ., .,"
enrdizado na própria maneira de seu ser vivo,
em .sua organização. Sustentamos que as bases
" "
biológicas do conhecer não podem sef enten-
viagem por alguns marcos da transformação ma-
didas somente por meio do exame do sistema
terial que tornamm possível o aparecimento dos
nervoso. Parece-nos necessário compreender
seres vivos.
como esses processos se enraízam na totalidade
Na figura 6, pode-se admirar a galáxia chama-
do ser vivo.
da M104, da constelaç:.l0 de Virgem, popularmente
Em conseqüência, neste capítulo discutiremos
conhecida como galáxia-chapéu. Além de sua
alguns aspectos ligados à organização do ser vivo.
beleza, ela tem para nós um interes,se especial:
Notemos que essa discussão não é um adorno
nossa própria galáxia, a Via Láctea, nos pareceria
biológico, nem uma espécie de recheio academi-
ter uma forma muito semelhante, se pudéssemos
camente neces..<;áriopara os que não têm forma-
vê-la de longe. Como não podemos, devemos
ção em biologia. Neste livro, ela é uma peça fun-
nos contentar com um diagrama como o da figu-
damental para a compreensão do fenômeno do
conhecimento em toda a sua dimensão.
,.1 7, que inclui algumas dimensi)cs do espaço
estelar e das estrelas. Elas fazem com que nos
simamos humildes, quando as comparamos com
Breve história as nossas. As unidades da escala estão em quilo-
Para dar os primeiros passos no que se refere
da Terra parsecs, e cada um deles equivale a 3.2 60 anos-
à compreensão da organização do ser vivo,
luz. Dentro da Via Láctea, nosso sistema solar
veremoS primeiro como sua materialidade po-
ocupa uma posição bem mais periférica, está a
de servir-nos corno guia para o entendimento de
cerca de 8 quiloparsecs do centro.
qual é sua chave fundamental. Façamos uma

A ÁRVORE DO CONHECIMENTO 43
42

Nosso Sol é uma entre vários milhões de ou- Fig. 8. Esquenl:l d~ s("(jüênd2 em reações termoouc1eares, ao longo de um tem-
Je tr:lnsformaçôes de UllU
po de cerca de S bilhôes de anos. Quando uma
tras estrelas que compô em essas estruturas eSlreb d••",le :l su~ furmaçào.
multifacetadas que S;lO as galáxias. Como surgi- fração do hidrogênio condensado é consumida.
ram as estrelas? Uma proposta de reconstrução a seqüência principal termina num processo de
para essa história é a que se segue. tr.msformações mais dramáticas. Primeiro, a es-
O espaço interestelar contém enormes quanti- trela se transforma num gig:lnle vermelho, em
dades de hidrogênio. Turbulências nessas mas- seguida numa estrela pulsante e. finalmente, numa
sas gasosas produzem verdadeiros bolsões de supernova, quando emão explode num verda-
gases em alta densidade, que esr..'ioilustrados na deiro espirro cósmico, no qual se formam os ele-
primeira etapa d3 Fig. 8. Nesse estado, algo mui- mentos pesados. O que resta de matéria no cen~
to interessante começa a acontecer: produz-se um tro da estrela entra em co\:Ipso e se torna uma
equilíbrio entre a tendênci:.l à coesão pela gmvi- estrela menor, de densidade muito alta, chamada
(bde e a propensão à irradiação, fmIO de reações de ~anà branca",
termonuclcares no interior da estreb em form:.l- Nosso Sol está num ponto mais ou menos in-
ção. Essa irradiaçào, visível do exterior, permite- termediário de sua seqüência principal, e espera-
nos perceher as estrelas tal como as vemos no se que continue irradiando durante pelo menos
céu, mesmo a grandes distâncias. três bilhôes de anos antes de se consumir. Pois
Quando os dois processos se equilibram, a es- bem: em muitos casos. durante essa transforma-
treLi entrJ no que se chama ~seqüência princi- çào, uma estrela agmpa ao seu redor um halo de
pal" (Fig. 8), ou seja, em seu curso de vida como matéria que capta do espaço interesre1ar. Esse halo
estrela individual. Durante esse período, a maté- gira em torno dela, mas depende energeticamente
ria que se condensou é gr.ldualmente consumida do curso de transformações da estrela. A Terra e

--
44 A ÁIl.VORE DO CO:-<HECIMENTO A ORGA.'HZAÇÃO DO SER VIVO 45

outros planetas de nosso sistema planetário silo Fíg. 9. Comparação em esclla de modelos
mok'CUIart'sda :igua (na parte Sllpt:rior); um
desse tipo, e devem ter sido captados como re- aminoácido (lisina) no meio; e uma pWleina
manescentes da explosão de uma supernova, a ,(a enzima ribonude:tse) na parte inferior.
julgar por sua riqueza de átomos muito pesados.
Segundo os geofísicos, a Terr.l ,tem pelo menos
cinco bilhões de anos e uma história de inces-
sante transformação. Se a tivéssemos visitado há
quatro bilhões de anos e passeado por sua S tl~
perfície, teríamos encontrado uma aunosfera COI1..<;-
[jtuída por gases como merano, amônia, hidrogê-
nio e hélio. Com certeza, uma atmosfera muito
difereme da que conhecemos hoje. Distinta, eo-
tre outras coisas, por estar constantemente sub-
metida a um bombardeio energético de radiações
ultra violetas, raios gama, descargas elétricas, im-
pactos meteóricos e explosões vulcânicas. Todos
esses aportes de energia produziram (e continuam
produzindo), na Terra primitiva e em sua atmos-
fera, uma contínua diversificação das espécies
moleculares. No começo da história da estrela
havia, fundamentalmente, homogeneidade mo-
lecular. Depois da formação dos planetas, um
contínuo processo de transformação química pro-
duziu uma grande diversidade de espécies mole-
culares, tanto na atmosfera quanto na superfície
da crosta terrestre.
No entanto, dentro dessa complexa e contí-
nua história de transformações moleculares, para
nós é particubrmente interessante { ) momento
em que se acumulam e se diversificam as molé-
culas formadas por cadeias de carbono, ou mo-
léculas orgânicas. Dado que os átomos de Gl.f-
hono podem formar, sozinhos e com a participa-
ção de muitas outras espécies de átomo, uma
46 A ARVORE DO CO:..,.IlECL\IENTO
"A OItGA1'<IZAÇAo DO SER VIVO 47

quantidade ilimitada de cadeias distintas em (a-


A Fig. 10 mostra fotos tiradas em microscópio
manho, ramificação, dobradura e composiçào, a
eletrônico, nas quais aparece esse tipo de agru-
diversidade morfológica e química das moléculas
pamento molecular, formado lü mais de 3.4 bi-
orgânicas é, a princípio, infinita. É precisamente
lhões de anos. Poucos casos dessa espécie foram
a diversidade morfológica c química dessas mo-
encontrados, mas eles existem. Há outros exem-
léculas que torna possível a existência de seres
plos encontrJ.dos em depósitos fósseis mais re-
vivos, ao permitir a diverskbde de reações mole-
centes do ponto de vista geológico, com menos
culares envolvidas nos processos que os produ-
zem. Volraremos ao assunto. Por enquanto, po-
demos dizer que quem passeasse pela Terra pri-
I~
r;-
de dois bilhões de anos. Os pesquisadores classi-
ficaram esses agrupamentos moleculares como

I
os primeiros seres vivos fósseis, na verdade como
mitiva veria a contínua produção abiogênica (sem
fósseis de seres vivos que ainda hoje existem: as
a participaçào de seres vivos) de moléculas org~l~
bactérias e as algas.
oicas, tanto na atmosfera quanto em mares agita- •
dos, como verdadeiras Sopas de reações mole- ,--
culares. A Fig. 9 mostra UIll pouco dessa diversi-

~.
dade. Nela se vê uma molécula de água, que tem Distinções
apenas formas muito limitadas de associação, em
. ~ O ato de designar qualquer ente, objt'to, coisa ou
comparação com algumas moléculas orgânicas. unidade, est;í ligado à realização de um ato de dis-
tinção que separJ o designado e o distingue de um
fundo. Cada vez que fazemos referência a algo. im-
plícita ou explicilamente, eS!;lITIOS
espccifiamdo um
Quando, nos mares da Terra primitiva, as trans- o aparecimento critério de distinção que assinala aquilo de que fala-
o," mos e especifka suas propriedades como ente, uni-
formações moleculares chegaram a esse ponto, dos seres vivos dade ou objeto.
chegou-se também à situaçào na qual era possí- Essa é uma situação totalmente cotidiana e não
vel a formação de sistemas de reaçoes molecula- única, na qual estamos submer= de modo neces-
res de um tipo peculiar. Isto é: devido à diversifi- sário e pcmlanente_

cação e plasticidade possíveis na família das mo-


léculas orgânicas, tornou-se por sua vez possível
a formação de redes de reações moleculares, que
produzem os mesmos tipos de molécula que as
Unidades
integram e, t:lmbém, limitam o entorno espacial
Uma unidade (entidade, objeto) torna-se de-
no qual se realizam. Essas redes e interações mo- finida por um ato de distinção. Cada vez que
leculares, que produzem a si mesmas e especifi- fazemos referência :.luma unidade em nossas
cam seus próprios limites 5;1 0, como veremos descri"Ues. tomamos implícita a operaçào de
distinção que a define e lorna p=ívt:1 ,
adiante, seres vivos.
I'

d
, I
I,
48
A ÁRVORE DO CO""HECl.~I.ENTO 49

Pois bem: essa afirmativa - "isso é um ser viv{ )


fóssil" - é muito interessante e convém examiná-
la de perto. O que permite que um pesquisador
diga algo assim? Sigamos passo a passo. Em pri-
meiro lugar. foi necessário fazer uma observação
e dizer que aqui existe alguma cob-a, pequenos
glóbulos que podem ser vistos de perfil ao mi-
croscópio. Em segundo lugar, observa-se que es-
sas unidades assim apontadas se parecem, em
sua morfologia, com seres vivo.s atualmente exis-
tentes. Como h:í evidências convincentes de que
essa aparência é peculiar aos seres vivos _ e que
esses depôsitos (kLtamde uma era compatível com
a história de transformações da crosta e da at~
mosfera terrestre, ligadas a processo.s próprios ;lOS
seres vivos que conhecemos -, a conclusão é que
"""Fig. lO. AcimJ: fologr.JfiJs de propriedades. Porém, como saber quando a lista
são seres vivos fósseis. • fósseis do que S(' presume que
estí completa? Por exemplo, se construirmos
Em oU(ros termos, no fundo o pesquisador está tenham sido bactérias t'ncon-
• traebs Ctn dqxSsitos de mais uma máquina capaz de se reproduzir - mas que
propondo um critério que diz: os seres vivos que de três bilhões de anos. Abai- é feita de ferro e plástico, n:i.ode moléculas orgi-
existiam anteriormente têm de parecer (neste caso, xo: fotografias de bactérias
vivas atuais, ,-,Jjafom1aé com-
nicas -, podemos dizer que ela está viva?
em sua morfologi;I) com os atuais. Isso implica
parável à dos fós,',,,,isreprodu- Queremos propor uma resposta parJ. essa per-
que devemos dispor, mesmo de modo implícito, zidos à esquerda. gunta, de uma maneira radicalmente diferente
de algum critério para saber e classificar quando
dessa tradicional enumemção de propriedades e
um ente ou sistema atual é um ser vivo e quando
não o é.
que simplifica muito ° problema. Para entender
essa mudança de vis:i.o, temos de nos dar conta
Essa situação nos deixa diante de um proble~
de que o próprio fato de perguntarmos como se
ma difícil: como saber quando um ser é vivo?
reconhece um ser vivo j:í indica que temos uma
Quais são os nossos critérios? Ao longo da histó-
idéia, mesmo que implícita, de qual é a sua or-

I
ria da biologia, foram propostos muitos critérios
ganização. Ê essa a idéia que determinará se
e todos eles apresentam dificuldades. Por exem-
aceitaremos ou não a resposta que nos for pro-
plo, alguns propuseram que o critério fosse a com-
posta. Para evitar que tal idéia implícita seja uma
posição química. Ou a capacidade de movimen- I armadilha que nos ofusque, devemos estar
to. Ou, ainda, a reprodução. Ou, por fim, alguma
conscientes dela ao considerarmos a resposta
combin;lçào desses critérios, ou seja, uma lista de
seguinte.
A ÁRVORE DO CONHECIMENTO A ORG!\."JluÇÁa DO SER VIVO 51
50
Fig.ll. o experimento de
o que é a organização de algo? É alguma coi- ~. Millercomo met:ifora dos even.
sa ao mesmo tempo muito simples e potencial+ 105da atm05ferd primitiva.

mente complicada. Trata+se daquelas relações que


têm de existir, ou têm de ocorrer, para que esse
algo seja. Para que eu julgue esse objeto como
sendo uma cadeira, é necessário que reconheça
que certas relações acontecem entre as partes que
chamo de pés, espaldar, assento, de tal maneira
que é possível sentar nela. Que seja feita de ma-
deira, com pregos, ou de plástico e parafusos, é
inteiramente irrelevante para que eu a qualifique
ou classifique como cadeira. Essa situação - na
qual reconhecemos implícita ou explicitamente a
organização de um objeto ao indiei-lo ou distin-
gui-lo _, é universal, no sentido de que é algo
que fazemos constantemente como um ato cog-
nitivo básico. Este consiste em nada mais nada
menos que gerar classes de qualquer tipo. Assim,
a classe das cadeiras ficará definida pelas rela-
ções que devem ser satisfeitas para que eu classi-
fique algo como cadeir.t. A classe das boas ações
ficará definida pelos critérios que eu estabelecer
que devam ocorrer entre as ações realizadj,s e
suas conseqüências, para que as considere boas.
É simples apontar para uma determinada or-
ganização ao indicar os objetos que formam uma
classe. Mas pcxle ser complexo e difícil descrever
com exatidão e de modo explícito as relações
que constituem tal organização. Assim, na classe
das cadeiras parece fácil descrever a organização
"cadeira", mas o mesmo não acontece com a classe
das boas ações, ao menos que se compartilhe
uma quantidade imensa de bases culturais.
52 A ÁRVORE DO CONI-IECI~IE!'TO 53

Quando falamos dos seres vivos, já est3mos essa membr;loa não apenas limita a extensio da
supondo que há algo em comum entre ele:;, do rede de tr.:msformaçõe:.; que produz seus compo-
contrário 0:10 os colocaríamos na mesma classe nentes, como também participa dela. Se não hou-
que designamos com o termo "vivo". O que não vesse essa arquitetura espacial, o metabolismo
está dito. porém, é qual é a organização que m celular se desintegraria numa sopa molecular, que
define como classe, Nossa proposta é que os se- se espalharia por toda parte e não constituiria
res vivos se caracterizam por -literalmente - pro- uma unidade separada como a célula.
duzirem de modo contínuo a si próprios, o que O que temos então é uma situação muito cs-
indicamos quando chamamos a organização que peci3.I, no que se refere às rebções de transfor-
os define de organizaçâo autopoiética. Funda- mação química: por um lado, é possível perceber
mentalmente, essa organização é proporcionaeb
por cert;:lSrelaçôes que passamos agora a deta-
lhar e que perceberemos mais facilmente no pla-
A origem das moléculas orgânicas
no celular.
Em primeiro lugar, os componentes molecula- úando se discute a origem das molé. surpreenderia com o resultado se não
r ias orgilnicas, que são comparáveis às tivesse acesso 1 1totalid<lded::!seqüência
res de uma unidade autopoié[Íca celular devedo
gue' se encontram nos seres vivos (como histórica.
estar dinamicamente relacionados numa rede con- "$ bases nucleotídicas, os ;Iminoácidos ou Uma das evidências mais clássicas de
tínua de interações. Atualmente se conhecem Jis ,cadeias protéicas), tende-se com fre- que não há descOntinuidade nessa trans-
qüência a pensar que a possibilidade de fonnação por etapas foi prOJX>Cionada por
muitas transformações químicas concretas dessa um experimento realiZ<ldopor MilIer,em
~qiie elas se tenham produzido espanta-
rede e o bioquímica as chama, coletivamente, de -eamenle é demasiado pequena, e que é 1 953, como se vê na Fig. 1 1 . A idéia de
metabolismo celular. reeiS<)que haja alguma diretivid::!deno Míller foi simples, colocar dentro de um
~rocesso_ Segundo a reconstruS:àoque es- frasco de laboratório um;! ;!tmosfera que
Pois bem: o que é peculiar a essa dinâmica :~mos, não se trata disso. Cad::!uma d::!s imitasse a primitiva, tanto em composição
celular, em comparação com qualquer outro con- i:iapas descritas surge, inevitavelmente, quanto em radiaçõcs energéticas. Ele a pôs
junto de transformaçôes moleculares nos proces- ""fômo conseqüência da ;mterior.• "'lesmo em prátiGl, fazendo com que uma descar-
1 :i6jeem dia, se tomamos uma imitação da ga elétrica atravessasse uma mescla de
sos naturais? É muito inleressantc: esse metabo- tinosfera primitiV<le produzimos a agita- amoní:tco, metano, hidrogênio e vapor
lismo celular produz componentes e todos eles São energética adequada, produzem-se d'água. Os resultados das transformações
'moléculas org5.nicas de complexidade mokcubres podem ser obtidos por meio
integram a rede de transformaçôes que os pro-
.tomparávd à dos seres vivos atuais. Do rb redrculação d::!águ:te análise (1 .1 s ubs-
duzem. Alguns formam uma fronteira, um limi- 'p:esmo modo, se concentrarmos sllfieien- tâncias ali dissolvidas. Pam surpresa de
te para essa rede de transformaçôes. F.mtermos .. ~ementeuma m<lssagasosa de hidrogênio, toda a comunitbde científica, MiIlerobte-
. prodUZt'm-se em St'll interior rt'ações ve uma produção ahund:tnte de molécu-
morfológicos, podemos considerar a estrutura que las como as tipic:tmente enconlmd:ts nos
"lermonucleares, que dào origem a novos
possibilita essa divageOl no espaço como uma . 'elementos atômicos que <lntes não eSla- organismos celulares aluais, tais como 05
memhrana. No entanto, essa fronteira membra- :vam presentes, A história que estamos es- aminokidos alanina e ácido aspártico e
Ixx-andoé o relato de seqüências que ocor- outms molé<.:ulasorgânicas, como a uréia
nosa não é um produto do metabolismo celular rem de modo inevitável, e alguém só se e o ácido suc;cínico.
tal como o tecido é o produto de um tear, porque
54 55

exemplo) depende da integridade dos processos


Organização e estrutura
que o torn:1 m possível. Se interrompermos (em
Entende-se por organização as relações que devem ocor- algum pomo) :1 rede metabólica celular, depois
rer encre os componentes de aIJ'0, para que seja possível
reconhetê-[o como membro de uma classe t:'spe<:ífiC"J,En- de algum tempo observaremos que não existe
tende-se por estrutura de algo os componentes e relações mais nenhuma unidade a ohservar! A característi-
que constituem concretamente uma unidade parti<:ular e
ca mais peculiar de um sistema autopoiético é
configuram sua organizaçJ.o.
Assim, por exemplo, numa deSGlrga de banheiro a or- que ele se levanta por seus próprios cordões, e
ganimção do sistema de regulação do rnveJ de água consis- se constitui como diferente do meio por sua pró-
- te nas relações entre um :Ipurelho capaz de detectá-lo e
outro mecanismo capaz cortar o fluxo de entrada do líqui-
pria dinâmica, de tal maneira quc amhas as coi-
do, l"o banheiro de uma casa, essa espécie de al1efato se sas são inscparáveis.
configura por meio de um sistema misto de plástico e me- O que caracteriza o ser vivo é sua organização
tal, que consiste num,l bóia e numa válvula de passagem.
Mas es.-;a estrutura específiCl pcx:Ietia ser modific;u:b, suba- autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem
tituindo-se o plástico por madeira, sem alter:lf o fato de que porque têm estruturas distintas, mas são iguais
ela continuaria sendo uma descarga.
em organização.

uma rede de transformações dinâmicas, que pro- O reconhecimento de que aquilo que caracte-
duz seus próprios componentes c é a condiç:1 o riza os scres vivos é sua organização auropoiética,
de possibilidade de uma fronteira; de outra parte permite relacionar uma grande quantidade de
vemos uma fronteira, que é a condição de possi- dados empíricos a respeito do funcionamento
bilidade para a operação da rede de transforma- celular e sua bioquímica. A noção de autopoiese,
ções que a produziu como uma unidade: portanto, não está em contradiç:1 o com essc cor-
po de dados. Ao contrário, apóia-se neles e se
I ~. propôc. explicitamente, 3. interpretar esses dados
Dinâmica Fromeira
a partir de um ponto de vista específico, que des-
(metabolismo) (membr.lna)
t I
taca o fato de que os seres vivos são unidades
autônomas.
É importante notar que não se trata de proces- Utilizamos a palavm autonomia em seu senti-
sos seqüenciais, mas sim de dois a.spectos de um do corrente. Vale dizer, um sistema é autônomo
fenômeno unitário. Não é que primeiro haja a se é capaz de especificar sua própria leg3.lidade,
fronteira, a seguir :1 dinâmica, depois a fronteir:1 aquilo que lhe é próprio. Não estamos propondo
etc. Estamos t3.lando de um tipo de fenômeno no que os seres vivos são os únicos entes autôno-
qual a possibilidade de discinguir algo do toelo mos; certamente não o são. Porém, é evidente
(alguma coisa que posso ver ao microscópio, por que uma das propriedades mais imediatas do scr
A ÁRVORE DO CO~HECIMEI'TO A ORGA.'Jlí'_.l,.ÇAo DO SER Vrvo 57
56
investigadas como sistemas. Entretanto, o que lhes
vivo é sua autonomia. propomos que o modo,
é peculiar é que sua organização é tal que seu
o mecanismo que faz dos seres vivos sistemas
único produto são eles mesmos. Donde se con-
autônomos, é a autopoiese, que os caracteriza
clui que não há separação entre produtor e pro-
como tal.
duto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética
A indaga'r'3.o sobre a autonomia do ser vivo é
são inseparáveis, e isso constitui seu modo espe-
tão velha quanto a pergunta sobre a condição de
cífico de organização.
estar vivo. Só os biólogos contemporâneos se sen-
Como toda organização, a autopoiética pode
tem incomodados diante da questão: como é
ser obtida por meio de muitas espécies diversas
possível compreender a autonomia do ser vivo?
de componentes. No entanto, devemos tomar
De nosso ponto de vista, porém, essa pergunta
consciência de que no âmbito molecular de ori-
se transforma em um fio condutor, que nos per-
gem dos seres vivos terrestres, apenas algumas
mite perceber que para compreender a autono-
espécies moleculares devem ter tido as caracte-
mia do ser vivo devemos entender a organização
rísticas que permitiram a constituição de unida-
que o define como unidade. Perceber os seres
des autopoiéticas, dando início à história estrutu+
vivos como unidades autônomas permite mos-
ral à qual nós próprios pertencemos. Por exem-
trar como sua autonomia - em gerJ.! vista como
plo, foi necessário contar com moléculas capazes
algo misterioso e esquivo - se torna explícita ao
de formar membranas suficientemente estáveis e
indicar que aquilo que os define como unidades
plásticas para serem, por sua vez, barreiras efica-
é a sua organização autopoiêtica, e que é nela
zes e de propriedades mutances que permitis..<;em
que eles, ao mesmo tempo, realizam e especifi-
a difusão de moléculas e íons por longos perío-
cam a si próprios.
dos, em relação às velocidades moleculares. As
Nossa abordagem, então, corresponde a pro-
moléculas que formam as lâminas de mica, por
ceder de modo científico: se não podemos for-
exemplo, formam barreiras de propriedades de-
necer uma lista que caracterize o ser vivo, por
masiadamente rígidas para permitir que elas par-
que então não propor um sistema que, ao fun-
ticipem de unidades dinâmicas (células), em rá-
cionar, gere toda a sua fenomenologia? A evi-
pidas e concínuas trocas moleculares com o meio.
dência de que uma unidade autopoiética tem
Somente quando, na história da Terra, ocorre-
exatamente essas características pode ser en-
ram as condições para a formação de moléculas
contrada olhando-se para tudo o que sabemos
orgânicas como as proteínas - cuja flexibilidade
sobre metabolismo e estrutura celular em sua
e possibilidade de complexificação é praticamence
interdependência.
ilimitada -, foi que aconteceram as circunstâncias
É claro que o fato de que os seres vi\ros têm
que tornaram possível a formação de unid1.des
uma organização não é exclusivo deles, mas sim
auropoiéticas. Com efeito, podemos supor que
comum a todas as coisas que podem ser
58 A AKVORE no COl';HECL\lEKTO 59

As células e suas membranas


A membrana cdular desempenha um dos diversos espaços internos da célula. É
papel muÍlo mais rico e diversífiC'Jda do o que se pode ver nas figuras que ;lcompa-
que uma simples linha de demarcaçào es- nham este texto.
pacial de um conjunto de tr:msformaçàt:s Essa arquitetura illlerior e a dinàmíca
':químic;ls, porque participa da célula tal celular constituem, como j:í destacamos,
como os dt:maís componentes_ O interior faces de um mesmo fenômeno de
. ,da célula contém uma magnífica arquitetu- autoproduç-.lo. Assim. por exemplo, den-
,'ta campost;l de grandes blocos molecula- tro das células existem organelas espedaU-
res, atr;lvés dos quaL~tr:lnsitam múltiplas zadas como as mitocôndrias, em cujas pa.
em contínua rnudanÇ:l. redes se situam, em seqüências espaciais
espécies Ofb'õ1 nicas
iDo ponto de vista operacional a membra- precisas, enzimas que, na membrana
. na faz parte desse interior, o qut: é correto milocondrial, se comportam como verda-
tanto para as membranas que linút;lffi os ut:iras cadeias transportadoras de elétrons.
espaçOS celulares adjacentes ao meio exte- Esse processo constitui a base da reSpif'"k
~rior, quanto para as que limitam caJa um çãu celular.

quando ocorrer.lm, na história da Terra, [(ldas as


condições suficientes, a formação dos sistemas
autopoiéticos se deu de forma inevitável.
Esse momento é o ponto que pode ser indica-
do como a origem da vida. Isso nào quer dizer
que ele ocorreu num só instante e num único
lugar, nem que possamos atribuir-lhe uma data.
Tudo nos faz pensar que, dadas as condições para
a origem dos sistemas vivos, estes se originaram
muitas vezes, ou seja, muitas unidades autopoié-
ricas com muitas variantes estmtur:lÍs surgiram em
muitos locais da Terra, ao longo de talvez muitos
milhões de anos.
Fig. 1 2 . Falografi:1 tiwda ao O aparecimento de unidades autopoiéticas
microscópio eletrônico, mos- sobre a superfície da Terra delimita um marco na
tr:mdo um corte dt: uma célu-
la de sanguessuga, n:J qual
história do nosso sistem:J.s obr. Ê preciso que isso
aparecem membranas e COfTl- seja bem compreendido. A formação de uma uni-
ponf'ntes intracelulares (em dade determina sempre LIma série de fenômeno.s
aumento aproxím,ldo dt:
2 0.000 vezes).
associados às car3CteríslicJ.sque a definem, o que
60 A ÁRVORE DO COl'HECIMENTO 61

nos permite dizer que cada classe de unidades


especifica uma fenomenologia particular. Assim,
as unidades autopoiéticas especificam a fenome-
nologia biológica como uma fenomenologia que
lhes é própria, e que tem características diferen-
tes da fenomenologia física. Isso se dá nia por-
que as unidades autopoiélicas violem nenhum
aspecto da fenomenologia física - já que, por te-
rem componentes moleculares, devem satisfazer
às leis físicas -, mas porque os fenômenos que
geram, em seu funcionamento como unidades
autopoiéticas, dependem de sua organização e
de como esta se realiza, e não do caráter físico de
seus componentes. Estes apenas determinam seu
espaço de existência.
Assim, se uma célula interage com uma molé-
cula X, incorporando-a a seus processos, o que
acomece como conseqüência da interação não
está determinado pelas propriedades dessa mo~
lécula, e sim pela maneira como ela é "vista" ou
tomada pela célula, ao incorporá-la à sua dinâmi-
Fig. 13, Diagr:lill<l dos princi- ca autopoiética. As mudanças que possam ocor-
pais perfL~da célula de san.
guessug:J mostmda na Fig. 12 : rer nela, em conseqüência dessa interação, secio
mt:'mbrana nuclear, mitocôn- as determinadas por sua própria estrutura como
drias, retículo endopbsm:l!í- unidade celular. Portanto, na medida em que a
co, ribo=mos e a membra-
na celular. Notar u esboço hi- organização autopoiética determina a fenomeno-
putétieo tia projeç-:io tridimen- logia biológica - ao configurdr os seres vivos como
sional do que poderia estar
unidades autônomas -, será chamado de biológi-
sob a superficie do espêçime.
co todo fenômeno que implique a autopoiese de
pelo menos um ser vivo.
-

10 2

conhecer o conhecer 1
r-==I unidade
organização estrutura
I experiência cotidiana LautoPoieseJ
ética
I

I
fenômeno do conhecer fenome1nologia
biológica
eXPI!caçãO
dentifica
I observador

açâÁ
9
domínios linguisticos
.
linguagem
I
I
consciência reflexiva

8 4
rr-- perturbações

T.
rgI enl:J"
fenô~enotcult~r~is
racoPla~ento
fenomenos SOCIaiS
estrutural ont
I
unidades de terceira unidad~s de segunda ordem
ordem
clausura olperacional

7 5
atos cognitivos ' r filogenia I
(Orrelaçõels intl!rnas~ 6 deriva história de
I natural interações
ampliação do
I
comportamento - sistema
conse~açào selJção

L
domínio de interações nervoso
da adaptação-estrutural
plasticidade contabilidade IÓgj!a I .• I
I determmaçao estrutural

"'M""'l
representação I
solipsismo
66 A ÁRVORE DO CO.sH£ClME;-';TO 67

Neste capítulo, falaremos de reproduç;:1o e here-


ditariedade. Duas razões o (ornam necessário.
Uma delas é que nós, como seres vivos - c, como Fenômenos históricos
veremos, como seres sociais -, temos uma hist6- , -ela vez que, num sistema, um estado
ria: somos descendentes por reprodução nau "orge como modificação de um est~do
révio, lemos um renômeno histórico.
apenas de nossos antepassados humanos, mas
também de ancestrais muito diferentes, que re-
trocedem no tempo mais de três bilhôes de anos.
A outí.l razão é que, como organismos, somos
seres multicelulares e todas as nossas células são como um processo complexo de reordenação de
descendentes - por reprodução - da célula parti- elementos celulares, que resulta na deternüna-
cular que se formou quando um óvulo se uniu 1,.'10 de um p13no de divisão. O que acontece nes-

com um espermalozóide e nos deu origem. Por- se processo? Em geral, o fenômeno da reprodu-
tanto, a reprodução está inserida em nossa histó- ção consiste em que a p3rtir de uma unidade - e
ria como seres humanos e em relação com nos- por meio de um determinado processo - origina-
sos componentes celulares individuais - o que, se outra da mesma classe. Ou seja: origina-se
curiosamente, faz de nós e de nossas células se- outra unidade, que um observador pode reco-
res da mesma idade ancestral. Além disso, do nhecer como definida pela mesma organização
ponto de vista histórico o mesmo vale para todos que a original.
os seres vivos e todas as células contemporâ- É evidente, pois, que para que haja reprodu-
neas: compartilhamos a mesma idade ancestral. ção têm que ocorrer duas condiçocs básicas: a
Assim, para compreender os seres vivos em to- unidade original e o processo que a reproduz.
das as suas dimensões - e com isso entender a No caso dos seres vivos, a unidade original é
nós mesmos -, torna-se necessário entender os um viventc, uma unidade autopoiética. E o pro-
mecanismos que fazem do ser vivo um ser histó- cesso - que veremos adial)[e - tem de terminar
rico. Com essa finalidade, examinaremos primei- com a fomlaç5.o de pelo menos outra unidade
ro o fenômeno da reprodução. autopoiética. distinguível da que se considera
como a primeira.
O leitor atento (er:í percebido a esta altura que,
A biologia estudou o processo d3 reprodução a Reprodução: como ao ver assim o fenômeno da reprodw,:ão, est.amos
partir de muitos pontos de vista e, em particu13r, ela acontece? afirmando que ele não é constitutivo do ser vivo,
no plano celular. Mostrou, há muito tempo, que e que portanto - e como já deveria ser evidente-
uma céhila pode (!:.lrorigem a outra por meio de nio faz parte de sua organização. Est3ffiOStão
uma divisào, e então se fala em divisão (ou mitose) 3costumados a ver os seres vivos como uma lista
68 A ARVORE DO COSHECIMENTO
HEREDITARIEDADE 69

Organização e história reproduç:IO se tom:l complicada, e que conse-


A dinâmica de qualquer sistema no pre-
qüências esse fato traz pal.l. a históri3 dos seres
pelo homem, porque lemos acesso a lO-
'Se~te pcx:Ie ser expliclJa mostrando as dos os delalhes de sua prLXiuçãu. Contu- vivos. Entret3n[Q, acrescentar :lIgo a ullla dinâ-
relações enlIe sua.~ panes e 3S regularí- do, a situação não é simples qual\(Jo se mica estrutural é muito diferente de modificar as
d1des de suas interações, de modo a fa-
trJta de seres vivos, porCJue sua genes!:'
zer com que sua organi1.<lçào se tome características essenciais de uma unidade, o que
e história jamais nos são Jirel<lmente vi-
evideme. Porém, para que possamos siveis e só podem ser reconslluid:IS de implica mudar a sua organização.
compreender isso de modo cabal, o que modo fragment:írio.
queremos não é apen:!:>vê-lo tomo uma
unidade funcionando em 1m3 dinâmica
-- interna, mas também em sua Circunstân- Para compreender o que acontece na reprodu-
cia, no entorno ou contexto com o qual
seu funcionamento o canceta. Essa com-
ção celubr, vejamos várias situações que dão ori-
preensão requer que se adote sempre um gem a unidades de uma mesma classe e procure-
certo distanciamento de observação _ mos, ao distingui-las, perceber o que é próprio
uma perspectiva que, no caso dus siste-
mas históricos, implica uma referência à
da reprodução celular.
origem. ]SI;() pode ser mei!, por exemplo,
1105casos atuais das maquinas projct;luas
Réplica: Falamos de réplica (ou, às vezes, de
produç:1 o) cada vez que temos um mecanismo
que, em seu funcion3mento, pode gerar repeti-
d3mente unidades da mesma classe. Por exem-
de propriedades (e;) considerar a reprodução um;)
plo, uma fábrica é um grande mecanismo prcxJu-
debs), que isso pode parecer chocante 3. primei-
tivo que, por meio da aplicação repetida de um
ra vista. No entanto, o que estamos dizendo é
mesmo procedimento, produz em série réplicas
simples: a reprodução não pode ser parte da or-
de unicbdes da mesma classe: tecidos, automó-
ganização do ser VIVO, porque para que algo se
veis, pneumáticos (Fig. 1 5).
reproduza é necessário primeiramente que ele
O mesmo ocorre com os componentes celu-
estej;)constituído como uma unidade e tenha uma
lares. [s..<;o
pode ser visto com muita clareza na
organização que o defina. Essa é a lógica simples
produção de proteínas. Nela os ribossomos, os
que us;)mos no cotidiano. Dessa maneirJ., levan-
ácidos nucléicos mensageiros e de transferênci3,
do às últltna.s conscqüência.s es..<;alógica trivial,
e outras moléculas constituem em conjunto a
seremos obrigados a concluir que, se falarmos da
maquinaria produtiva - e as proteínas constituem
reprodução dos seres vivos, estamos implicando
o produto.
que eles devem poder existir sem se reproduzir.
O fundamental no fenômeno de réplica esti
Dasta pensar nas mubs, parJ. perceber isso. Pois
em que o mecanismo produtivo e o replicado
hem, o que estamos discutindo neste Gl.pítulo é
são sistemas operacionalmente diferentes: o mc-
como a dinâmica au[opoiética no processo da
Cinismo produtor gera elementos independentes
70 A ÁRVORE DO CONllECIMEl\:TO HER1'.bITARIElHl) E 71

figo 15. Um eIS<) de réplica. dele mesmo. É importante notar que, em conse-
qüência de como ocorre o fenômeno (ti réplica,
as unidades produzidas são historicamente inde-
pendentes umas das outras. O que acontece a
qualquer delas em sua história individual não
afeta as que lhes sucedem na série de produção.
O que acontecer ao meu Toyota, depois que cu
o comprar, em nada afetará a fábrica Tayota, que
concinuará produzindo imperturbavelmente os
seus carros. Em suma: as unidades produzidas
por réplicas não constituem entre elas um siste-
ma histórico.

Cópia: Falamos de cópia cada vez que temos


uma unidade modelo e um procedimento de pro--
jeção para gerar outra que lhe é idêntica. Por
exemplo, esta folha de papel, se passada por uma
máquina reprodutora produzirá uma cópia, como
se diz na linguagem cotidiana. A unidade mode-
lo é esta página, e o procedimento é o modo de
funcionar com projeção óptica da máquina
reprodutora.
Agora podemos distinguir, nessa situação, dois
casos essencialmente diferentes. Se o mesmo
modelo é utilizado para fazer, de modo sucessi-
vo, muitas cópias, tem-se uma série de cópias
historicamente independentes umas das outras.
Por outro lado, se o resultado de UIlla cópia é
usado como modelo para fazer a seguinte, pro-
duz-se uma série de unidades conectadas, por-
que o que acontece a cada UIlla delas durante
seu futuro individual, antes que sejam usadas
como modelo, determina as características da
cópia seguinte. Assim, se uma cópia desta p;igina
72
A ÁRVORE no CO~HECIMENTO . ISfÓRlA, REPRODUÇÃO E HEREDITARlED.'\DE
73
é por SU3 vez copiada pela mesma máquina, é
cem à mesma classe da original, isto é, têm a
evidente que o original e as outras duas cópias
mesma organização que ela. O mesmo n:1oacon-
diferem ligeirameme entre si. Se repetirmos esse
tece com a fraturAde outras unidades, como um
mesmo procedimento, é óbvio que depois de mui-
rádio ou uma cédula de dinheiro. Nesses casos, a
las cópias alguém pcxler.í notar a progres,';iva tr,lnS-
fratura da unidade original a destrói: dei..xadob
formação delas, numa linhagem ou sucessão his-
fragmentos e não duas unidades da mesma clas-
tórica de unidades copiadas. Um uso criativo desse
se que ela.
fenômeno histórico é aquilo que, em arte, se co-
Para que na fratur.l de uma dada unidade ocor-
nhece como anamorfose (Fig. 16), que constitui
ra o fenômeno da reprodução, sua eSfrutura tem
um excelente exemplo de deriva histórica.
de se organizar de uma maneira distribuíd..'1., não
compartimcntalizada. Dessa maneira, o plano de
Reprodução: Falamos de reprodu~'ào quan-
fratura pode separar fragmentos com estnlturas
do um;} unidade sofre uma fmtura que resulta
capazes de configurar de modo independente a
em duas unidades da mesma classe. Isso aconte-
organização original. O giz ou o cacho de uvas
ce, por exemplo, quando um pedaço de giz é
têm esse tipo de estrutura, e admitem numerosos
quebrado por pressào, dando origem a dois frag-
planos de fratum, porque os componentes que
mentos. Ou quando se parte em dois um cacho
de uvas. configumm suas respectivas organizações se re-
petem de forma distribuída e não compartimen~
As unidades que resultam dessas fraturas não
falizada em toda a sua extensão (cristais de câl-
são idênticas à original nem entre si, mas perten~
cio, no caso do giz, e uvas no cacho).

:
-
74 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO óRlA, REPRODUÇÀO E HEREDfTARlEDAIJE 75

Há muitos sistemas que preenchem esses re- Fig. 17. lJm GlSO de reprodu-
quisitos, e por isso o fenômeno da reprodução é ,,;lo por fratura.

muito freqüente na nature7.a. Exemplos: cristais.


madeiras, comunidades, estmclas (Fig. 1 7). De
outra parte, um rádio ou uma moeda não admi-
tem reprodução, porque as relaçôes que os defi-
nem não se repetem ao longo de suas extensões.
Há mui(QS sistemas dessa classe, como xícarJs,
pe::;soas, GlneL.1.s-timeiro, a dedaraçüo dos direi-
tos humanos ... A incapacidade de admitir repro-
dução é também um fenômeno muito freqüente
no Universo. O inleressante é que a reproduçJo
como fenômeno não se restringe a um determina-
do espaço nem a um grupo particular de sistemas.
O fundamental no processo reprodutivo (dife-
rentemente da réplica ou da cópia) é que tudo
ocorre na unidade como parte dela, e não há
separação entre os sistemas reprodutor e repro-
duzido. Tampouco se pode dizer que as unida-
des que resultam da reprodução preexi.stam, ou
estejam em formação, antes que aconteça a fratu-
ra reprodutiv;} ; elas simplesmente não exi.stem.
Além disso, embora as unidades resulcantes da
f,J.tura rcprodmiva tenham a mesma organização
que a unidade original e tenham, portanto, as-
pectos estruturais semelhantes a essa organizaçào,
têm também aspectos estruturais diferentes, tan-
to dela quanto entre si. Isso acontece não apenas
porque são menores, mas também porque suas
estruturas derivam dirctamence da estrutura da
unidade original no momento da reprodução, e
recebem, ao formar-se, componentes diferentes
dela, que não estão uniformemente distribuídos
76 A ÁRVORE DO CONHECL\IENTO IsrÓRIA, REPRODUÇÃO E HEREDlT:\RIEDADE 77

e que são função de sua história individual de DUrdnte a mitose, ou divisão celular, todos os
mudança estrutural. processos que ocorrem (b-i) consistem em uma
Por causa dessas características, o fenômeno descompartimentalização celular. Tal é facilmen-
da reprodução gera necessariamente unidades [e perceptível na figum, em que se vê a dissolu-
historicamente conectadas, que por sua vez so- ção da membrana nuclear (com uma réplica das
frem fraturas reprodutivas e formam, em conjun- duas grandes hélices duplas de DNA), e no des-
to, um sistema histórico. locamento de cromossomos c outros componen-
tes, o que possibilít:l. um plano de fratura. Tudo
isso acontece sem interrupção da autopoiese ce-
Em todo esse processo, o que acontece com as A reprodução celular lular e como resultado dela. A'õsim, como parte
células? Se tomarmos qualquer uma delas no que da dinâmica da célula, produzem-se modificações
se chama de csL.1.dode interfase. isto é, quando estruturais, como a formação de um fuso mitótico
nào está em processo de reprodução, e a fra(l1~ (d-h), que tornam possível uma divagem da cé-
rarmos, não obteremos duas células. Durante a lula assim disposta.
interfase. uma célula é um sistema compartimen- Visto dessa maneira, o processo de reprodu-
ralizado, ou sej:l, há componentes seus que estão ção celular é simples: uma fratura em um plano,
segregado.s do resto ou se apresentam em quan~ que gem duas unidades da mesma classe. Nas
[idades únicas, o que impossibilita um plano de células eucarióticas (com núcleo), mais recentes,
f
frarura reprodutiva. Isso acontece em particubr o estabelecimento desse plano e a mecânica da
com os ácidos desoxirribonucléicos (ONA), que fratura é um delicado e complexo mecanismo de
fazem parte dos cromossomos, c que na interfase coreografia molecular. No entanto, nas células
estão recolhidos ao núcleo e separados do resto mais antigas (ou procarióticas) - que não têm
da célula por uma membrana nuclear (Fig. 18 :1). a mesma compartimentalizaçào mostrada na

=O O~
h
" k
78 A ÁRVORE DO CONHECIME:-iTO
HEREDITARIEDADE
79

Independentemente de como ela se gera, toda


vez que ocorre uma série histórica acontece o
Hereditariedade
fenômeno hereditário. Isto é, encontramos o
Emende-se por hereditariedade a invari:incia U'ans-
gt'r.lcion:tl de qualquer aspeclo estrutural numa reaparecimento de configuraçôes estruturais pró-
Jinilllgern de unidades historicamente conect:J.das. prias de um membro de uma série na série se-
guinte. Isso se evidencia tanto na realização da
organização própria à classe como em outras ca.
racterísticas individuais. Se pensarmos, mais uma
vez, no caso da série histórica de sucessivas có-
Fig. 18 -, o processo é de fato mais simples. Em pias de papel feitas em máquina, teremos que,
todo caso, é cvideme que a reprodução celular por mais que as primeiras cópias sejam diferen-
ocorre como se disclItiu ;lcima, e n:lo é uma ré- tes das últimas, certas relações de preto e branco
plica ou cópia de unidades. das letras permanecer::l0 invariantes. Tal fato per-
Entretanto, :lO contrário dos exemplos de re- mite a lei[ura e possibilita dizer que uma é cópia
produção antes mencionados, na repnxluçJo ce- da outra. Precisamente no momento em que a
lular ocorre um fenômeno peculiar: é a própria cópia se torne tão difusa que não seja possívcllê-
dinâmica autopoiética que torna efetiva a fratura la, essa linhagem histórica terá terminado.
num plano adequado. Não é necessário nenhum Da mesma maneira, nos sistemas que se re-
agente ou força externa. Podemos imaginar que produzem a hereditariedade acontece em cada
nas primeiras unidades autopoiéticas isso não instância reprodutiva como um fenômeno cons-
ocorreu assim, c que na verdade sua primeira titutivo dela, ao produzir duas unidades da mes-
reprodução foi uma fragmemação resultante de ma classe. Exatamente porque a reprodução ocor-
choques com outros entes exteriores. Na rede re quando surge um plano de fratura numa uni-
histórica assim produzida, algumas variantes che-
dade de estrutura distribuída, haverá necessaria-
garam à fmtura como resultado de sua própria
mente uma certa permanência de configurações
dinâmica interna, e dispuseram de um mecanis-
estruturais de uma geração para outra.
mo de divisão que produziu uma linhagem ou
Assim, como o resultado da fratura reproduti-
sucessão histórica estável. Estamos longe de sa-
va é a separação de duas unidades com a mesma
ber como tudo isso aconteceu, e provavelmente
organização - mas com estruturas diferentes d;l
essas origens estejam perdidas para sempre. Tal
unidade original -, a fratura reprodutiva produz
circuns[:1ncia, porém, não invalida o fato de que
a variação estrutural. Ao mesmo tempo mantém
a divisão celular é um caso particular de repro-
dução que podemos, legitimamente, chamar de constante a organização. O fenômeno da repro-
auto-reprodução. dução implica, necessariamente, a geração tanto
de semelhanças quanto de diferenças estruturais
80 A ÁRVORE DO CONHECI.\lE: ";iO f6RI •.••
, REPRODUÇÃO E H EREOITARIED:\[)E 81

entre "pais", .'filhos" e "irmãos". Chamamos de entre indivíduos de um:! linh:lgem e, ao mesmo
hereditários aos aspectos eb. estnJtura inicial da tempo, há aspectos estmturais que variam conti-
nova unidade que avaliamos como idênrjcos aos nuamente e não permanecem constantes por mais
da unidade original. Aos :.Lspectos da estru(Ura de uma ou duas gerações. Assim, por exemplo, o
inicial na nova unid3de que julgamos diferentes modo de síntese das proteínas com a participa-
da unidade original, chamamos de V"driaçào re- çào do DNA permaneceu invariante em muitas
produtiva. Em conseqüência, cada nova unida- linhagens, mas o tipo de proteínas sintetizadas
de começa obrigatoriamente sua história indivi- mudou muito na história dessas linhagens.
duai com semelhanças e diferenças estruturais em O modo de distribuição da variância ou inv:l-
relação às suas ;lntecessoras. Tais diferenças S("- riância estrutural, ao longo de uma árvore de
rào consenladas ou perdidas de acordo com as linhagens históricas, determina as diferentes
circuostâncbs de slIas respectivas omogenias, maneiras segundo as quais a hereditariedade se
como veremos em detalhes adiante. Por enquan-
to, o que nos irucressa é ressaltar que o fenôme-
no da hereditariedade - e a produção de diferen-
ças estnlturais nos descendentes - é próprio do A idéia de informação genética
fenômeno da reprodução e, certamente, 0:10 é
menos válido na reprodução dos seres vivos. tos componentes celulares (os DNA$)de
grande estabilidade trJnsgeraciunal. .x,-
Na reproduçào celular, há muitas instâncias gundo, porque dizer que o DNA contém
nas quais é possível detectar com precisão as cir- (> neces$ário para especificar um ser vivo

cunstfmcüs estmturais que determinam tanto a relir:l esses componentes (pane d<lrede
autopoiélica) de sua inter-relação com
variação quanto a conservação da semelhança. toJo o resto da rede. É a totalidade da
Assim, há alguns componentes que admitem pou- rede de interJçõcs que constitui e espe-
as caracterislicas de uma determi-
cifi<.-""a
cas vari:H, ..ões em seu modo de participação na
nada célula, e não um de seus compo-
autopoiese, mas admitem muitas peculiaridades m~mes. É daro que modificações nesses
na m:meira como se realiza essa participação. Tais componentes - chamados genes - têm
conseqüências dramáticas pam a estru-
componentes participam de configuraçõcs estru- tura de uma célula. O erro está em con-
tur:lis fundamentais, que se mantêm de geração fundir participaç.ãoessenci:l! com respon-
a geração (do contrário, não haveria reprodução) sabilidade única. Com o mesmo argumen-
!o, seria possivel dizer que a constitui-
com apenas ligeiras variaçôes. ção política de um país determina a sua
Com freqüência, ouvimos que os genes
Os maLsconhecidos são os DNAs (ácidos nu- contêm a "informaçlo" que especifica um história. TrJta-se de um evidente absur-
cléicos) ou genes, cuja estmtura fundamental é ser vivo. Trata-se de um erro, por duas do, a constiluiç:l0 política é um compo-
razões fundamentais. Primeiro, (X)rque nente essencial quatquer que Stja a his-
replicada na reprodução com pouca varüção. Co- confunde o fenômeno da hereditarieda- tória, rrtlSnão contém a "informação" que
mo resultado, encontram-se gr.lndes invariflllcias de com o mecanismo de réplica de cer. especifica essa história.
82 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO

dü;tribui de geração em geração, que percebe-


mos como sistemas genéticos (hereditários) dife-
remes. O moderno estudo d3. genética se con-
centrou especialmente na genética dos ácidos nu-
cléicos. Contudo, há GUlfoS sistemas genéticos (he-
reditários) que apenas começamos a compreen-
der. E<;tespermaneceram ocultos sob o brilho da
genética desses ácidos. Um exemplo são os liga~
dos a oucros compartimentos celulares, como as
mitocôndrias e as membranas.
10 2
---_ unidade
A VIDA DOS METACELULARES j
conhecer o conhe<er 1 Organ1izaçãO estrutura

ética
I experiência
I
cotidiana L autoPoieseJ
fenômeno do conhecer fenome1nOrOgia
I biológica
explicação
científica
I observador

9 açãÁ
3
domínios linguísticos fenômenos históricos j
I
linguagem
consciência
I
reflexiva
conse'lill;ào
I -
I
Vr;ação ; 'I'
reprodução -...

fi
fenamenos
8
fenô~enot cult~r~iS
I
'P'""~"ÓO'
racoplamento t I '"
--l .' "I

I "
50(1<115 estrutural. 00 g ema
O,
I
unidades de terceira I
unidades de segunda arde
ordem , I
clausura operacional

7 5
I" filogenia
'I wmT",m.",o6 - ~:~g~~~
atos cognitivos '

W''','''Ó;' ;"'~'
ampliação do
deriva
natural
história de
interações
I

'I'

L
domínio de interações conselaçãO selJção_
da adaptação--estrutural
plasticidade contabilidjde lógJa
I"
determlna~ao I
estrutural

"""'""'l
representação I
solipsismo
ArcimholJo_

,
86 A ÁRVORE O{ ) CO~HECI.\IENTO 87

A ontogenia é a história de mudanças estrutu- É evidente que essa situação ser:.'isimétrica, se a


rais de um;] unidade, sem que esta perca a sua olharmos do ponto de vista de qualquer d:ls duas
organiz3ção. Essa contínua modificação estrutu- unidades. Is[o é: para a célula d:l esquerda, a da
rai ocorre na unidade a cada momento, ou como direita é apenas mais uma fonte de interações, e
uma alterJ.ção desencadeada por interações pro- como tal indistinguíveis daquelas que nós, como
venientes do meio onde ela se encontra ou como observadores, classificamos como provenientes
resultado de sua dinâmica interna. A unidade do meio "inerte. De modo inverso, para a célula
celular classifica e vê a cada instante suas contí- da direita a outra é uma fonte a mais de interações,
nuas interações com () meio segundo a sua estru- que perceberá segundo sua própria estrutura.
tura. Esta, por sua vez, está em constante mu- Isso significa que duas (ou mais) unidades
dança devido à sua dinâmica interna. O resulta- autopoiéticas podem estar acopladas em sua on-
do geral é que a transformação ontogenérica de togenia, quando suas interações adquirem um
uma unidade não cessa até que ela se desintegre. caráter recorrente ou muito estável. Toda ooto-
Para abreviar toda essa situação, quando nos genia ocorre em um meio que nós, como obser~
referirmos a unidades autopoiéticas usaremos o vadores, podemos descrever como tendo uma
diagrama: estrutura panicular, tal como mdiação, velocida-
de, densidade etc. Dado que também descreve-
mos a unidade autopoiética como tendo uma
estrumra particular, ficará claro que as interações
- se forem recorrentes entre unidade e meio _
constituirão peJ1urbaçôes recíprocas. Nessas in-
teraçôes, a estrutura do meio apenas desenca-
deia as modificaçôes estruturais das unidades
Mas o que acontece, quando não considera- autopoiéticas (nào as determina nem as informa).
mos a ontogenia de uma unidade e sim a de duas A recíproca é verdadeira em relação ao meio. O
Oll mais delas, vizinhas em seu meio de intera~ resultado será uma história de mudanças estnHu~
çôes? Podemos abreviar essa circunstância 00 rais mútuas e concordantes, até que a unidade
seguinle modo: e o meio se desintegrem: haverá acoplamento
estn/lural.
Entre todas as interações possíveis, podemos
encontrar algumas que são particularmente re-
correntes ou repetitivas. Por exemplo, se obser-
varmos a membrana de uma célula, veremos que
há um constante c ativo transporte de certos íons
88 A ÁRVORE 00 CONHECL\IE!';lO 89

(como o sódio ou o cálcio) através dela, de tal .::>


- .••..::0
maneira que, na presença desses íons, a célula
reage incorporando-os à sua rede metabólica. Esse
transpoI1e iônico ativo acontece de forma muito
regular, e um observador poded dizer que o aco-
plamento estrutural das células em seu meio per-
mite as interações recorrentes delas com os íons
nele comidos. O acoplamento estrutur.ll das cé-
lulas permite que essas interações ocorram so-
mente em certos íons, pois se outros íons (como
césio ou lírio, por exemplo) forem introduzidos
!B . 2 0. Cidu da vida dus
no meio, as mudanças estruturais que eles de- ysarul7l, com formaçào de
sencadearJo na célula não serão conciliáveis com módio por fU:ião cehd;lr_

a realização da autopoiese dessa célula.


Mas por que, em cada tipo celular, a autopoiese
se dá com a participação de uma cena classe de
interJções regulares e recorrentes, e não de ou~ em estreita junção com ou{ r.lScélulas, como meio
trds? Essa pergunta só tem resposta na filogenia de realização de sua alltopoiese. Tais sistemas são
ou história da estirpe celular correspondente e é: o resultado da deriva natural de linhagens nas
o tipo de acoplamento estrutural atual de cada quais se mameve essa junção.
célula é o estado presente da história de transfor- Um grupo de animais unicelulares, chamados
mações estruturais da filogenia a que ela perten~ mixomicetos, representa uma excelente fonte de
ce. 'Ou seja: ê um momento na deriva natural exemplos que mostram com clareza esse proces-
dessa linhagem, que resulta da contínua conser- so. Assim, nos PbYS(lnun, um esporo germina e
vação do acoplamento estrutural de cada célula dá origem a UITh"1 célula (ver Fig. 2 0). Se o am-
no meio em que ele se realiza. Assim, no presen- biente é úmido, a ontogenia dessa célula resulta
te da deriva celular natural do exemplo acima, as no crescimento de um flagelo e na capacidade
membranas funcionam transportando íons de de movimento. Se o ambiente é mais seco, a on-
sódio e cálcio e não outros. togenia resulta em células do tipo amebóide. O
O acoplamento estrutural com o meio como acoplamento estfiltural entre essas células leva a
condição de existência, abrange todas as dimen- uma junção tão íntima que elas acabam se fun-
sões das interdções celulares e, port.1nto, também dindo. Forma-se então um plasmódio, que por
as que têm a ver com outras células. As células sua vez leva à formação de um corpo frutífero
dos sistemas lllulticelulares normalmente existem macroscópico que produz esporos. (Note-se que
90 A ÁRVORE DO COSHECIME~TO VIDA DOS METACELULARES 9l
no desenho a parte de cima correspondc a um
logia das cêlulas que as integram. Essa unidade
grande aumento no microscópio; a de baí..xorc-
de segunda ordem, ou metacelular, ter:Í um aco-
fere-se a um aumento muito menor).
plamento estrutural e uma ontogenia adequados
Nesses eucariomes filogencticall1ente primiti-
1:1sua estrutura como unidade composta. Em par-
vos, o agrcgamento celular estreito culmina na
ticular, como se vê no exemplo recém-descrito,
construção de uma nova unidade. Forma-se en-
os sistemas metacelulares ter:.lo um domínio de
tão o corpo frutífero, como resultado da fusão
ontogenia macroscópico, e não microscópico co-
celular. Esse corpo frutífero constitui de faro uma
mo o de suas células.
unidade metacelular, cuj;} exiS(ência e historica-
Um exemplo mais complexo é o de outro
mente complementada pelas células que lhe dào
mixomiceto, o Dycosteliltm (Fig. 2 1). Nesse gru-
origem 03 realização do ciclo FitaI da unid:J.de
po, quando o meio tem certas características mui-
orgânica a que pertence (e que é definida por
to especiais, os indivíduos amebóides sào capa-
esse ciclo vital), Nesse ponto, é preciso prestar
Fi!,. 1 1 Ciclo d~ vida do zes de se agregar para formar um corpo frutífero
atenção: a formaçào de unidades metace1ubres (fungo de limo),
DYCOI.,efilllll como o do exemplo anterior, porém sem fusão
capazes de dar origem a linh:.lgens - como resul- com corpo frutífero formado
celular. No entanto, aqui também encontramos,
tado de sua reprodução no plano celular - pro- por agrupamento da~ célula.I
que surgem da reproouÇ".lode na unidade de segunda ordem, uma clarA diver-
duz uma fenomenologia diferente da fenomeno- uma célula-esporo fundador~. sificação dos tipos celulares. Assim, as células d;!
92 A ÁRVORE DO CO],;HECI.\IE:"JT() 93

ponta serio clpazes de gerar esporos, enquanto Em outras palavras, a vida de um indivíduo mul-
as da base 0:10 () 5:10,e se enchem de vacúolos e ticelular como unidade transcorre no operar de
paredes, o que proporciona um apoio mecânico seus componentes, mas não está determinada
:1 todo o sistema meracelubr. Aqui perce~mos pelas propriedades destes. Entretanto, cada um
que no dinamismo dessa íntima junção celular, desses indivíduos pluricelulares é o resultado da
como parte de um ciclo de vida, as rnud:mças divis30 e da segregação de uma linhagem de cé+
estruturais experimentadas em cada célub - em lu1:ls que se originam no momento da fecund;l-
sua história de ioter.lções com olltr.lS células - ç:io de uma única célula - ou zigoto -, que é
são necessariamente complementares entre si e produzida por alguns órgàos ou por partes do
limitadas por sua participaçào na constituição da organismo multicelular. Se não houver geração
unidade metacelular que integram. Em conse- de novos indivíduos, não haverá continuidade da
qüência, as modificações estrutumis ontogenéticas linhagem. E, p;lrd que haja novos indivíduos, é
de cada célula são necessariamente diferentes - preciso que sua formação comece a partir de uma
e dependem de como elas participam da consti- célula. É tão .simples assim: é a lógica de sua cons-
tuição da referkb unidade c do futuro de suas tituição que exige que cada organismo metacelu-
interações e relações de vizinhança. lar seja parte de U111 ciclo no qual há uma et;lpa
unicelular necessária.
Contudo, é na fase unicelular de um organis-
Insistamos: a íntima junção entre as células que Ciclos de vida mo multicellllar, durante a reproduçào, que acon-
descendem de uma única célula - e que resulta tecem as variaçôes geracionais. Portanto, não há
numa unidade metacelular - é uma condição in- diferença no modo de esl1.bclecimento das linha-
teiramente consistente com a continuação da gens dos seres vivos mlllticclulares e unicelulares.
autopoiese dessas células. J..Iascertamente não é Em outros termos, o ciclo de vida de um metace-
imprescindível, na medida em que na filogenia lular constitui uma unidade na qual a ontogenia
dos seres vivos muitos permaneceram como do organismo se dá em sua transformação de
unicelulares. Nas linhagens em que se estabe- unicelular a multice1ular até a reprodução. Mas a
lece um agregamento celular que resulta num reprodução e as variaçôes rcprodutiv;ls acon!e~
metacelular, as conseqüências para as respecti- cem passando pela etapa unicelular.
vas histórias de tr.lOsformaçôes estruturais são É preciso entender que todos os seres vivos
profundas. Vejamos mais de perto essa situação. multicelulares conhecidos sào varbçõcs elabo-
É evidente que a ontogenia de um metacelular radas sobre o mesmo tema - a org;lnização e a
serâ determinada pelo domínio de inter.lções que filogenia da célula. Cada indivíduo multicelular
ele especifica como unidade total, e n:.o pelas in- representa um momento elaborado da ontoge-
ter::lçõcs individuais de suas células componentes. nia de uma linhagem, cujas variaçôes continuam
94 A ÁRVORE 00 CONHECIMENTO VIDA DOS METACELt:1ARES
95
sendo celulares. r-;esse sentido, o aparedmemo
se enriquecem com os efeitos combinatórios das
da multice1ularidade não introduz, basicamente,
alrernari••.
':\s estruturdb de um grupo de seres vi~
nada de novo. Sua gr.1nde novidade consiste em
vos. Esse efeito de aumentar a variabilidade _
que torna possível muitas classes diferentes de
que por sua vez torna possível a deriva filogené-
indivíduos, ao possibilitar muitas linhagens di-
tica, como veremos no próximo capítulo -, expli-
versas como distintos modos de conservaçào do
ca por que a sexualidade é praticamente univer-
acoplamento estrutural ontogênico com o meio.
sal entre os seres vivos, por facilitar a mulriplica-
A riqueza e a variedade dos seres vivos sobre a çi'io das linhagens.
Terra se devem ao aparecimento dessa variante
ou desvio multicelular das linhagens celulares que
continuam até hoje, na qual nós mesmos estamos
Uma forma elegante de ver esse fenômeno vital
incluídos.
dos metacelulares e seus ciclos de vida, é compa-
Notemos, porém, que a reprodução sexuaeb.
de organismos multicelularcs não faz exceção à
rn rar o tempo que eles levam para cobrir um ciclo
vital completo de acordo com o seu tamanho. A
caracterização fundamental de reprodução que
figura 2 2 -a, por exemplo, mostra um diagrama
vimos no capítulo aOlerior. Com efeito, a repro ...
do mesmo ciclo que discutimos antes - o de um
dução sexuada requer que uma das células do
mixomice(o. Coloca num eixo o tempo que cada
organismo multicelular adquira uma dinâmica
etapa leva pard se completar e em outro o tama-
operacional independeme (como o espermato~
nho atingido. Assim, a formaçào de um corpo
zóide). A seguir, ela deve fundjr~se com outra
frutífero de 1 em demora mais ou menos um dia.
célula de outro organismo da mesma classe paíà.
O esporo, que mede cerca de 10 milionésimos
formar o zigoto, que constitui a fase unicelular
de metro, forma-se em aproximadamente um
desse ser vivo. Há alguns organismos multicelu- minuto.
lares que podem, além disso - ou exclusivamen-
Na figura 2 2 ~b observa~se a mesma história,
te - reproduzir-se por simples fraturà.. Quando
desta vez em relação à rã. O zigoto, que dá ori-
isso acontece, a unidade de variaçiio na linha-
gem a um adulto, forma-se em mais ou menos
gem não é celular: é constiruída por um organismo.
um minuto, enquanto que um adulto formado
As conseqüências da reprodução sexual resi-
leva quase um ano para crescer vários centíme~
dem na rica recombinaçào estmtuíJ.l que dela
tros. O mesmo é válido para a maior árvore do
resulta. Por um lado, isso permite o entrecruza-
mundo - a sequóia -, que alcança 100 metros de
mento de linhagens reprodutivas. Por outro, per-
altura com um tempo de formação de mil anos
mite um aumento muito grJ.nde nas variações
(Fig. 2 2 -c), ou para o maior animal do mundo _
estmturais possíveis em cada instância reproduti~ j.T. B onner. Size Imd
'./e, Princeton Univcrsity a b:liei:l azul -, que atinge até 40 metros em 10
va. Dessa maneira, a genériL"J.e a hereditariedade ress, 1965. anos (Fig. 2 2 -d).
96
A ARVORE DO CONHECl.\IEN"IO 97
a. c.

10 em
100 m

10m
I em

I~
Im

J mm O em

/
i
I em
l00~
I nUll

100M
!O,
!O,

I" I"

I min llu Imin 1 hr I day 1 mo I yr 10 y,.,. 100 yrslOOO yr~


I cLty

b. d.

10 em
10m
Icm m Im

Fig. 2 2 . Exemplus das re!açócs


entre o tamanho alcançado e
o tempu necess,irio para
aICJnçá-lo, nas diferentes da-
1 min llu I day imo Iyr I min I hr 1 day Imo lyr 10 Y'"
pas dos cidos de vida de qua-
tro organismos.
A ARVORE 00 COSIlECL\IE"'TO IDA nos METACEll'L"'.RF.S 99

Independentemente do tJ.lllanho c do aspecto ctapa reprodutiva seguinte, com a formação de


externo, em todos esses casos as etapas s;} os('m~ um novo zigoto. Dessa maneira, o ciclo geracional
pre as mesmas: a partir de Ullla célula inicial. o é uma unidade fundamental que se transforma
proccsso de divis;} oc difcrencia(ào celular gera no tempo, Uma forma de tornar isso evidente é
um indivíduo de scgunda ordem pelo acoplamen- pôr, num gráfico, a relaçào entre tempo de re-
lo entre as células resultamcs dessas divisões produção e tamanho (Fig. 2 3). Uma bactéria que
celulares, O indivíduo assim formado [em uma fig, !j, Tempo d", transforma. nio est:í acoplada a outras tem uma reproduçào
ontogenia de extensào variada, que conduz à 0;:10 "'In uni e md:.lcciulan.'s,
muito rápida e, portanto, seu ritmo de transfor-
maçoes é igualmente acelerado, Um efeito ne-
cessário da formaçào de indivíduos de segunda

,,
ordem por agregaçào celular é a necessidade de
tempo para o crescimento e a difcrenciação das

• "'lU",,"
h, células. Portanto, a freqüência de gerações sed
muito menor.

_.
,- •
,~;""",roo. • .wph.o"'
Essa visào torna claro para nós que há uma
.1, •• 0.., • nu",," "
grande semelhança entre os mctaceluiares, tal
,*"", ••
fn,. .1><._
,n•••
como h:í entre as células. Apesar de sua assom-
"
brosa diversidade aparente, todos eles conservam
a reproduçào por meio de um:1 etapa unicelular
como característicacentral de sua identidade como
sistemas biológicos. O fato de haver esse elemento
comum entre a organização de todos os organis-
mos não interfere na riqueza de SU:1diversidade,
j:í que est:l ocorre na vari:lçào est1 1 ..ltural.
Pcr ou-
tro lado, ela nos permite perceber que toda essa
variaç:l0 acontece em torno de um tipo funda-
mental, o que resulta em modos diferentes de

'- dimensionar universos de inleraçào por parte de

.
,'~ .r

'..'
diferentes unidades com a mesma organizaç;} o.
I ,
, I Isto é: toda vari:l.I.;:1ontogênica
o resulta em uma
,~. ---'.,1-
, li"", ,1'1-' ''"'''"Ih , r,,, '0 Y•• ", ,..., Y•• ", forma diferente de ser no mundo, porque é a
estrutura da unidade que determina como ela
interage com o meio e que mundo configura.
100 A ÁRVORE DO COl"HEClMENIO JDA DOS !•.
lET ..••
cEU!L\RES 101

MetaceJularidade e sistema nervoso autopoiéticos de segunda ordem são também sis-


Neste livro, ~u,;ten[;Jmus que não é possí- t(xlls são parte do organismo a cuja legali_ temas autopoiéticos de primeira ordem? O corpo
vel entender como funciona o sistema ner- dade devem ajustar-se. Perder de VÍ,';la as frutífero de um mixomiceto ê uma unidade
voso, e portanto a biologia do conhecer, raizes orgânicas do sistt'ma nervoso reprt'_
sem compreender onde funciona o 5L~(em:l senta uma das maiores fontes de confusão
autopoiética? E a baleia?
nervoso. A diferenciação celular própria do.~ no que se refere :lOseu mudo efetivo de Estas n:lo são perguntas fáceis. Não temos cla-
metacclulares, com e sem sistema nel'VO:;o, funcionar. E~te será o lema de um dos ca_ reza sobre como descrever as relações entre com~
tem uma lógica comum, da qual o tecido pítulos seguintes.
nervoso nào escapa. Na tY.l!da azul há bi- ponentes de um organismo, de modo a que SU:l
lhôcs de células muito diferentes, mas to- organização se revele como uma autopoiese
das ebs estão inseridas numa legalidade de
acoplamento recíproco, que torna possível
molecular como ocorre na célula, circunstância
a unidade de segunda ordem que é essa que conhecemos com muitos detalhes. No caso
baleia. De modo semelhante, o sistema dos metacelulares, temos hoje em dia um conhe-
nervoso contém milhões de células, mas
cimento muito menos preciso dos processos
moleculares que os constituiriam como unidades
autopoiétícas comparáveis às células.
Falamos de metacelulares para nos referirmos a A organização dos Par..! as finalidades deste livro, vamos deLxar
roda unidade em cuja estnttura é possível distin- meta celulares em aberto a questão de se os metacelulares sio
guir agregados celulares intimamente acoplados. ou nào sistemas autopoiéticos de primeira ordem.
A metacelulariclade apareceu em todos os reinos O que podemos dizer é que eles têm uma
(as grandes divisões dos seres vivo.<;);procarionres, clausura operacional em sua organizaç:1o: sua
eucariontes, animais, plantas e fungos. É lima identidade está especificada por uma rede de
possibilidade estrutural desde o início da história processos dinâmicos, cujos efeitos não saem des-
mais precoce dos seres vivos. rn sa rede. Porém, quanto à forma explícita de tal
Entretanto, o que é comum a rodos o.s meta- organizaçào, não diremos mais nada. Essa atitu-
celulares dos cinco reinos é que eles incluem de n:to constitui uma Iimitac,.'àode nossos propó-
células corno componentes de sua estrutura. Por sitos no momento; como já dissemos, qualquer
essa razào, diremos que os metacelulares s:to sis~ que seja a organização dos metacelulares, eles
temas awojJoiéticos de segunda ordem. Cabe en- são compostos por sistemas autopoiéticos de pri-
tão a pergunta; qual é a organização dos metace- meira ordem, e formam linhagens por meio da
lutares? Já que as células componentes podem reproduç;'io no plano celular. Trata-se de duas
est3r relacionadas de muitos modos diversos, é condições suficientes para assegurarmos que tudo
evidente que os met3cclulares admitem distintos o que acontece neles - na qualidade de unidades
tipos de organização, como organismos, colônias autônomas - ocorre com a conservação da
e sociedades. Contudo, seriam alguns metacelula- autopoiese das células componentes, bem como
m L. Margulis,Fiw Kingt/"/fl.',
res unid:.tdes autopoiéticas? Ou seja, os sistemas freeman, São Francisco, 1982 . com a manutenção de sua própria organização.
102 A ÁRVORE DO CONHECL\IE~lO

Simbiose e metaeelularidade
o que dissemos neste capitulo pode ser as org:meJas de uma célula (Lsta é, as mito-
resumido assinalando que se duas unida- côndrias, os clorophstos e seu núcleo, por
des autopoiéticas estabelecem relações re- exemplo) parecem ler sido anceSU':llmenle
correntes, como se vê no diagrama abaixo. procariomes de vida livre.
.\-las é a alternativa (b) do diagrama que
mais nos interessa neste capítulo: a reCor.
rência de acoplamentos nos quais as célu_
las participantes conservam seus limites
- individuais, ao mesmo tempo em que eSla.~
bt:lecem, por meio desse acoplamento, Uma
nova coerência especial, que distinguimos
essas recorrências podem derivar, em prin- como unidade metaceluJar e que vemos
cípio, em du:!.'>direções; como sua forma.

Uma direção (a) leva à imhricaçào das


frOllteirdS de ambas as unidades, e eSS<l si-
tuaçJ.o conduz ao que correntemente se
conhece como simbiose. A simbiose pare-
ce ter sido muito importante na trnnsiçào
dos sistemas autopoiéticos (sem comparti_
mentos inlernos ou procariontes) para cé-
lulas internamente compartimentalizadas ou
eucariontes (ver Fig. 14). Com efeito, todas

Em conseqüência. tudo o que diremos a seguir


se aplica tan(O aos sistemas autopoiéticos de pri-
meira ordem quanto aos de segunda ordem. Não
faremos distinção entre eles, a menos que isso
seja estritamente necessário. W
fi L. "-brgulis, !>}'mhiosis in
C,,1lEmllllion freeman, São
Franci~u. 1980.
10 2
conhecer o conhecer 1
I eXperiência cotidiana
ética
I
fenômeno do conhecer
I
explicação
científica
J observador

9 açàJ
3
domínios linguisticos
. I
linguagem
,
consciência reflexiva

8 4
rr-- fenômenot culturais
perturbações

a(OPla~~mto !. I'
fenômenos
unidades ~e ten:eira
ordem
sociais

11 ""'"""
,

unidade~ de srun~aordem
'j'
ont0genl3

I'
'

clausura operacional

7
atos cognitivos '

'""'I"'..!' '"'~' I1
6
ampliação do comportamento - sistema
domínio de jntera~ões
I
L plasticidade contabilidjde
nejOso
lógica

' ' "'"' 'l


representação I
solipsismo
1 06 A ÁRVORE DO COI\'HECL\IE~TO DERIV'\ NATURAL DOS SElU'..S VIVOS 107

Nos três capítulos anteriores, formamos uma idéia históricos de transformação estrutural não pode
de três aspectos fundamentais dos seres vivos. haver entendimento do fenômeno do conhecer.
Em primeiro lugar, entendemos como eles se Na realidade, a chave da compreensão da ori-
constituem como unidades, como sua unidade gem da evolução repousa sobre algo que já nota-
fica definida pela organizaçào autopoiética que mos nos cap[tulos anteriores: a associação ine-
lhe é peculiar. Em segundo lugar, explicamos de rente que há entre diferenças e semelhanças em
que maneira es.sa identidade :lutopoiétiGI pode cada etapa reprodutiva, a conservaçào da organi-
adquirir complexidade reprodutiva, e assim ge- zaçJo e a mudança estrutural. Porque há seme-
rar uma rede histórica de linhagem produzidas lhanças, existe a possibilidade de uma série his-
pela reprodução seqüenci3l de unidades. Por úl- tórica ou linhagem ininterrupta. Porque há dife-
timo, vimos de que maneira os organismos celu- renças estruturais, existe a possibilidade de varia-
lares - como nós próprios - nascem do acopla- ções históricas nessas linhagens. No entanto, para
mento entre células descendentes de uma única. sermos mais precisos, por que se produzem e se
Vimos ainda que todos os organismos, como estabelecem cenas linhagens e n:1 o outras? Por
unidades metacelulares intercaladas em ciclos que, quando olhamos em torno, nos parece que
geracionais que sempre passam pelo estado o peLxe é tão natur.llmente aquático e o cavalo é
unicelular, nJo sào mais do que variações funda- tão adequado à planície? Para responder a essas
mentais do mesmo tema. perguntas, precisamos primeiro examinar mais de
Tudo isso resulta em que hâ ontogcnias de perto e mais explicitamente como ocorrem as
seres vivos que são capazes de se reproduzir c intemçõcs entre os seres vivos e o ambiente que
fl1 0geniasde diferentes linhagens reprodutiV'..Isque os rodeia.
se entretecem em uma gigantesca rede histórica
que, por sua vez, representa uma assombrosa va-
riação. Podemos constatar isso no mundo orgâ- Determinismo e A história das mudanças estruturais de um dado
nico que nos rodeia, composto de plantas, ani- acoplamento ser vivo é sua ontogenia. Nessa história todo ser
mais, fungos e bactérias, bem como nas diferen- estrutural vivo começa com uma estrutura inicial, que
ças que observamos entre nós, como seres hu- condiciona o curso de suas interações e delimita
manos, e outros seres vivos. Essa grande rede de as modificaçôes estruturais que estas desenca-
transformações históricas dos seres vivos é a tra- deiam nele. Ao mesmo tempo, o ser vivo nasce
ma de sua existência como seres históricos. Nes- num determinado lugar, num meio que constitui
te capítulo, retomaremos vários dos { emas dos o entorno no qual ele se realiza e em que ele
anteriores, para compreender essa evoluçào interage, meio esse que também vemos como
orgânica de maneira global e geral, já que sem dotado de uma dinâmica estrutural própria, ope-
uma compreensào adequada dos mecanismos raciollalmen/e distinta daquela do ser vivo. Isso
1 08 A ÁRVORE ])0 CONHEClMEl\:TO 109

é crucial. Como observadores, dislinguimos a tratar com unidades estmtllralmente determina-


unidade que é o ser vivo de seu pano de fundo, das. Isto é: só podemos lidar com sistemas nos
e o caracterizamos com uma determinada orga- quais (odas as modificações estão determinadas
nização. Com isso, optamos por distinguir duas por sua estrutura - seja ela qual for -, e nos quais
estrutums, que sedo consideradas operacional- essas modificações estruturais ocorram como
mente independentes entre si - o ser vivo e o resulwdo de sua própria dinâmica, ou sejam de-
meio - e entre as quais ocorre um:.!congruência sencadeadas por suas interaçôes.
estrurural necessária (caso contr."irio, a unidade Com efeito, em nossa vida cotidiana atuamos
desaparece). Nessa congnlência estnltural, lima como se tudo o que encontramos fossem unida-
perturbação do meio não contém em si uma des estruturalmente determinadas. O automóvel,
especi~kação de seus efeitos sobre o ser vivo. o gravador, a máquina de costur..!ou o computa-
E.ste, por meio de sua estrutura, é que determina dor, são sistemas com os quais lidamos como se
quais as mudanças que ocorrerão em resposta. tivessem uma determinação estrutural. Se assim
Essa interação nào é instruüva, porque não de- n30 fosse, como explicar 4uc, quando surge um
termina quais serão seus efeitos. Por isso, usa- defeito tentamos modificar-lhes a estrutura e n30
mos a expressão desencadear um efeito, e com outm coisa? Se, quando pisamos no acelerador
ela queremos dizer que as mudanças que resul- do carro, descobrimos que ele não avança, ne-
tam da interação entre o ser vivo e o meio são nhum de nós imagina que algo está errado com
desencadeadas pelo agente perturbador e deter- o pé que pisa. Supomos que o problema est;:Í
minadas pela estmtura do sistema pel1/lrbado. O no acoplamento entre o acelerador e o sistema
mesmo vale para o meio ambiente: o ser vivo é de injeção de combustível, ou seja, na estmtura
uma fonte de perturbaçôes, c não de instruções. do veículo. A-;sim,os defeitos das máquinas cons-
Pode ser que o leitor, a esta altura, esteja pen- truídas pelo homem são mais reveladores de seu
sando que tudo isso parece muito complicado e efetivo funcionamento do que as descrições que
que, além do mais, é próprio apenas dos seres deles fazemos quando náo acontecem. Na au-
vivos. Exatamente como no caso da reprodução, sência de falhas de funcionamento, abreviamos
trata~se de um fenômeno absolutamente corren- nossa descrição dizendo que demos "instruções"
te, cotidiano. Assim, não percebê-lo em toda a sua ao computador par..! que ele nos dê o saldo de
obviedade é uma fonte de complicaçôes. Dessa nossa conta corrente.
maneira, vamos nos deter mais um pouco no exa- Essa atitude cotidiana (que apenas se torna mais
me daquilo que ocorre toda vez que distingui- sistemática e explícita na ciência, com a aplica-
mos uma unidade e o meio no qual ela interage. ção rigorosa do critério de validaç:lo das afirma-
Na verd3de, a chave p:'lfa a compreensão de ções científicas) não é adequada somente aos sis-
(udo isso é simples: como cientistas, só podemos temas artificiais, mas também aos seres vivos e
110 A ÁKVOIl.E DO CO!'lHECIMENTO IH

sociais. Se assim não fosse, j:.lmais iríamos ao seres humanos. Mas, como é bem sabido, as
médico quando nos sentíssemos mal, nem mu- mesmas balas sào meras pcrturbações para a es-
daríamos a adminislíJ.çào de uma empres:l que trutura dos vampiros, que precisam de estacas de
n:to estivesse funcionando a contento. Na<.b dis- Jg. 2 5. A cum,,!a, como !rx.la
madcira no coração para sofrer uma alteração
so contradiz a possibilidade de que optemos por 'dade, tem seus quatro du- destrutiva. Ou, ainda, é óbvio que um choque
não explicar muitos fenômenos de nossa expe- as: :1) de mudanças dt' grave contra um poste é uma interação destrutiva
ado; b) dt' mudanças de.5-'-
riência humana. Entretanto, se decidimos propor :> 'tivas; c) de pcnurbaç;<'>ts; para uma motocicleta, mas é uma simples pertur-
uma explk-açào científica, tcremos de considerar ,de inter:I\'Ões des(futivas. baçào para um tanque etc. (Fig. 2 5).
as unidades que estudamos como estnlturalmcn-
te determinadas.
Tudo isso se torna explícito pela distinção de
quatro domínios (ou âmbitos, ou classes) espe-
cificados pela e.<;trutunde uma unidade específica:

a) Dominio das mudanças de estado: isto é, as


mud..1.oças estrutur.lis que uma unidade pode
sofrer sem que mude a sua organização, ou
seja, mantendo a sua identidade de classe;
b) Domínio das mudanças destrutil'as: todas as
modificações estruturais que resultam na per-
da da organização da unidade e, portanto, em
seu desaparecimento como unidade de uma
certa classc; •
c) Domínio das perturbações: ou seja, todas as
interações que desencadeiam mudanças de
estado;
d) Domínio de interações destrutivas: todas as
perturbaçõcs que resultam numa modificação
destrutiva.

Assim, supomos, com alguma razão, que as


balas de chumbo disparadas a curta distância em
,
geral desencadeiam em quem as recebe mudan-
ças destrutivas especificadas pela estrutura dos
A ARVORE no COKJIECI~IE~I() ERIV.". NATCH.:\l DOS SERES Vr\"os 113

Num sistema din:'imico es(rutllraJmente deter-


m~ado, já que :l e~(rutura es(;i em contínua mu- Curva perigosa: a seleção natural
dança, seus domínios estruturais também sofre-
.dO variaçào, mas a cada momento sempre esta-
dt', t'55:1descri\"ão n,-IOt" inteir..lmente ade-
rão especificados por sua estrutura pre~ente. Essa quada, iá que em cad:t ontogenia sô ocor-
incessantl' modificação de sC'us domínios estru- re uma série de interações e só se deo;enc:l-
turais ser:.íum (r.:IÇO próprio da nntogenb de cada deia uma série de modi!1cações estruturais.
t\S.'<im,o conjunto das alterações que o
unill:Jde dimlmica. seja ela um { oca-fí(a~ou um observador vê como pOMíveis é apenas o
leopardo. que ele imagina, embora seiam possivei.>
Enquanto uma unidade não entrar numa paro histórias diferentes. :'-;eS5ast"ircunstfin-
das, a palavra "seleç:lo. sintetiza a COffi-
interaí)io dcstll..ltivacom () seu meio, nós, obser- preens:lo que o observador tem do que
vadores, necessariamente veremos que entre a acontece em cada ontogenia. embor:1 esS<.,
entendimento surja de sua observa\.ào com-
estnJlura do meio e a da unidade há uma comp;"l-
paf'".llh~.lde muitas outr.l5 ontogenias.
tibiJilbde ou comcnsurabiJidadc. Em!u;mto exis- A palavf'".l" seleçào' é traiçoeira neMe con- H:i outras expres.';õcs que JXX-Ierí~m ser
tir eSS:lcomensurabilidade, meio e unid:J.dc:l!ua- ,.
,texto, e é preci.~o ter ceneza de que não l1s~lbs para descrever esse fenômeno. Con-
, rrcgaremos, sem dar-nos conta de uma tudo, a r.lzào pela qual nos referimos ~ele
do como fontl'S de penurba(,."ôesmútuas e de- rie dO:'conolações que pCltencern a ou- em termos de uma sele~~lo de caminhos
sencadearão mutuamente mUlb.nças de estado. s domínios e n:lo ao fenômeno do qU:l1 de mudança estrutur.ll, é que a p:lI;lVr.lj;i ê
A esse processo continuado, demos o nome de 5 ocupamos. Com ddto, com freqüên- insepar:ível da história da biologia desde
'Ciapensamos no processo de seleção corno que Dal'V..-in a utiliwu. Em sua obra A Ori-
acoplamento estnltllrat. Por exemplo, na história um ato de escolher voluntlriamente entre gem das Espécies, esse autor assin:llav~pela
do acoplamento estrutural entre as linhagens de muitas alternativas. É fácil cair na tentação primeira vez a relação entre variação
, e pensar que algo simil;1tocorre :lqui, por geracional e ;Icoplamento estrururaL Mus-
automóveis e as cidades, h:í modificações dra-
as perturbaçl>es, o meio estaria "('scolhen- trou l~mbêm que era "como se" houvesse
nüticas em amhos os lados, mas em cada um • quais das múltiplas m()(lifka\'l>es pos- uma scJc\~ãoll;ltuml, cornpar.ível- por seu
elas ocorrem como exprcss:l0 de sua própria di- eis ocorrerão, efeito sepaf'".ldor- com a scleç:'iu artifidal
bso 2 exatamente o contrário do que que um fazendeiro fn das variedades de
nJmica estrulur:1 J,provocldas pelas interações se- 'de fato aconteçe, e seria contraditório com seu interesse, O próprio Dar'õvinfoi muito
letivas com o outro. ,'o fato de que est;l[nos lidando com siste- claro, ao destacar que nunca pretendeu uti-
!'mas cstruturalmente dderminados, Uma lizar essa p;ll;lvra em outro sentido a não
tirlteração n,lo pode especificar uma nlU- ser o de lima metáfora adequad.a. Entre-
dança estrutural, porque eS[;l é dt"termina- tanto, pouco depois, com a divulgação da
Tudo () que foi dito anfl'rionnente é v:ílido para Ontogenia e seleção da pelo estado prévio d:l unidade em ques- tt'oria da evoluçio, a idéia de "sele\"ão na-
qualquer sistema e portanto para os seres vivos. tão, c n30 pela estrutura do agente pertur- tural'" passou a ser interpret;lda l.omo uma
'hador, como discutimos na seção anterior. fonte de inter:tçõcs instrutivas do meio. A
Estes não S{ IO únicos, nelll em sua determin:lç.:to Aqui falamos de seleção, no sentido de que esta altura da história da biologia seria im-
nem em seu acoplamento estmtur:tI. O que lhes ."0onservador pode notar que, entre as possível mudar sua nom<:'nclatura, e por
muitas mudanças que vê { ;OffiOpossíveis, i.'i.'iO é melhor lltiIiZ;Í-lae entendê-Ia ade.
é próprio é que neles a dcterrnin:lo;..:'io
e o acopla-
,cada perturbação desencadeou ("escolheu") qU;lé!amente. A biologia talllb2 m tem sua
Jllento estrutur:ll se c!;10 na contínua conservação urna e n;lo outro desse conjunto, Na verda- ontogenia!
da autopoiese que os define, seja ela de primeira
114 A ÁRVORE DO CO!'iHECIMEN10
1 lS
aú"de segund.ã ordem, e tudo fica subordinado a
um contínuo "seletor" das mudanças estnlturais
eSsa consetvação. Assim, a autopoiese das célu-
que o organismo experimenta em sua ontogenia.
las que compõem um metaceJular também se
Num sentido estrito, acontece exatamente o
~ubordina à sua autopoiese como sistema auto-
mesmo com o meio. Em sua própria história, ele
poiético de segunda ordem. Portanto, roda mu-
ou os seres vivos que com ele interagem operam
dança estnJ[ural acontece num ser vivo neceSS:l-
como scJetores de suas mudanças estruturais. Por
riamenrc dem:1 rcada pela conscrvaç:l0 de sua
exemplo, o fato de que, entre todos os gases
autopoicse. As interações que desencadeiem nele
possíveis, foi o oxigênio que as células dissipa-
mudanças estruturais compatíveis com essa COI1-
ram durante os primeiros milhôes de anos após a
servaçào serão perturbadoras. Do contrário, se-
origem dos seres vivos, teria determinado modi-
do interações destrutivas. A contínua mudança
ficações estruturais na atmosfera terrestre. De
estrutura! dos seres vivos com conservaç:io de
modo que hoje esse gás existe em porcemagem
sua autopoiese acontece a cada instante, inces-
importame como resultado dessa história. Por sua
santemente e de muitas maneiras simultâneas. É
o palpit..1.fda vida. vez, a presença de oxigênio na atmosfera teria
selecionado variações estruturais em muitas linha-
Agora notemos uma coisa interessante: quan-
gens de seres vivos que, ao longo de sua filogenia,
do nós, como observadores, falamos do que acon-
levaram à estabiJiz<H;;ào
de formas que funcionam
tece com um organismo numa imeraç;1o espedfi~
como seres que respiram oxigênio. O acoplamen-
ca, estamos numa situaçào peculiar. Por um lado,
to estrutural é sempre mútuo; organismo e meio
ternos ace~<;oà estnltura do meio, por outro à
sofrem transformações.
estrutura do organismo. Assim, podemos consi-
Nessas circunstâncias - e diante desse fenô-
derar as muitas maneiras pelas quais ambas po-
meno de acoplamento estrutural entre os orga-
deri<lln ter mudado ao se encontrar, caso houves-
nismos e o meio como sistemas operacionalmen-
sem ocorrido outras drcunstfmcias de interação
te independemes -, a manutenção dos organis-
que podemos imaginar em conjunto com as que
mos como sistemas dinâmicos em seu meio apa-
de fato ocorrem. Dessa maneim, podemos imagi-
rece como centrada em uma compatibilidade or-
nar como seria o mundo se Cleópatra tivesse sido
ganismo/meio. É o que chamamos de adapta-
feia. Ou, numa linha mais séria, como seria esse
çâo. Por outro lado, se as interações do ser vivo
menino que nos pede esmola, se tivesse sido ali-
em seu meio se tornam destnJtivas, de modo que
mentado adequadamente quando bebê. Sob essa
ele se desintegra pela interrupção de sua auto-
perspectiva, as mudanças estruturais que de fato
poiese, diremos que o ser vivo perdeu a sua adap-
ocorrem numa unidade aparecem como "selecio-
tação. Portanto, a adaptação de uma unidade a
nadas" pelo meio, mediante o contínuo jogo das
um meio é uma conseqüência necessária do aco-
interações. Assim. o meio pode ser visto como
plamento estrutuí.ll dessa unidade nesse meio,
116 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO 117

o que não é de admirar. Em otHras palavras:


desde as suas origens até os nossos dias, em todo
a ontogenia de um indivíduo é uma deriva de
o seu esplendor.
modificações estrutllr3is Com invarifmcia da
Essa figurd se parece naturalmente com uma
organização e, portamo, com cOllservaçào da
árvore, e por isso é chamada de história filogené-
adaptaçiio.
tica das espécies. Uma filogenia é uma sucessão
Repitamos: a conservação da autopoiese e a
de formas orgânicas gerddas seqüencialmente por
manutenç:1o da adaptaçào sào condições neces-
relaçõcs reprodutivas. As mudanças experimen-
sárias para a existência dos seres vivos; a mudan-
tadas ao longo da filogenia constituem a altera-
ça estrutural ontogenética de um se( vivo num
ção filogenética ou evolutiva.
meio será sempre uma deriva estrutural congruen-
Na Fig. 2 7, por exemplo, temos uma recons-
te deste com o meio. Essa deriva parecerá ao
trução da deriva de um grupo particular de meta-
observador "selecionada" pelo meio, ao longo
celulares, invertebrados marinhos muito antigos,
da história de interaçàes do ser vivo enquanlo
conhecidos como trilohites. As variações em cada
ele viver.
etapa reprodutiva na fase unicelular do animal
geram, como se vê em cada momento da história
dos trilohites, uma grdnde diversidade de tipos
A esta altura, já temos à miJo todos os elementos Filogenia e evolução dentro desse grupo. Cada um:! dessas variações
necessários para entender em seu conjunto a gran-
tem um acoplamento com o meio que representa
de série de tran.sformaç6es dos seres vivos du-
lima variante de um tema central. Durante essa
mnte a sua história, e para responder às questões
longa seqüência, houve, na Terra, dramáticas va-
com que começamos este capítulo. O leitor aten-
ri:.Iç6es geológicas, como as que ocorreram no
to terá percebido que, para nos aprofundarmos
final do período conhecido como triássico, há
mais nesse fenômeno, o que fizemos foi obser-
cerca de 2 00 milh6es de anos. O registro fóssil
var, com um microscópio conceitual, o que acon-
nos revela que, durante esse tempo, a maioria
tece na história das interações individuais. Com-
das linhagens de trilobites desapareceu. Ou seja,
preendendo como is.<;oacontece em cada caso, e
durante esses momentos do devir estrutural dos
sabendo que haver.í modificações em cada etapa
trHobites e de seu meio, as variações estruturais
reprodutiva, poderemos projetar-nos em uma
produzidas nessas linhagens não fOrdm comple-
escala de tempo de vários milhões de anos. As-
mentares às variações estnlturais contemporâ-
sim, será possível ver os resultados de um núme-
neas do meio. Em conseqüência, os organismos
ro muito (mas muito!) grande de repetições do
que constituíam essas linhagens não conserva-
mesmo fenômeno de ontogenia individual, se-
ram sua adaptação, não se reproduziram, e assim
guida dc mudanças reprodutivas. Na Fig. 2 6, te-
foram interrompidas. As linhagens nas quais isso
mos uma visão global da história dos seres vivos,
aconteceu mantiveram-se por muitos milhões de
118 A ÁRVORE DO CO"lHFCIMENTO 119

Fig 2 6, As grnndt's linhas da


evolução oTgiinica, desde as
origens procariontl's até nos-
sos dias, com toda a varieda-
de de unicelulares, pl: mtas,
animais e fungos, que surgem
das r.lmificaçôes e enlrdaça-
mentos por sirnhiosl' de mui-
tas linhagt:ns originârias.

trilobites para cada um dos tipos de animais e


plantas hoje conhecidos. Não há um só caso d::l
história estrutural dos seres vivos que não revde
que cada linhagem é uma circunstfmcia específi-
ca de variações sobre um tema fundamental, que
acontece numa seqüência ininterrupta de etapas
aoos m:üs. Por fim, novas, repetidas e dcisticas reprodutivas, com m::mmenção da auropoiese e
mud:mç:J.s no meio dos trilobites acab3ram fa- da adaptação.
zendo com que eles 0;-10 conservas..sCll1 a sua adap- Notemos que esse caso, como rodos, revela
tação. Dessa maneira, todas as linhagens se ex- que há muitas variações de uma estrutura que
tinguiram. são capazes de produzir indivíduos viáveis num
O estudo dos restos fósseis e da paleontologia determinado meio. Todas elas são igualmen-
permite construir histórias semelhantes à dos te adaptadas - como já vimos - e capazes de
12 0 A ÁRVORE DO CO:-JHEC1MENTO
,
iDERlVA N:\TUItAL nos SEKK~ VIVOS 12 1

numa visào retrospectiva, que mostr:l que há li-


Recente
nh:lgens que desaparecem, revetando que as con-
Phikx:l:'rida l} 10Ccrida
Terciário figuraçoes estruturais que as car.lcterizam não lhes
permitiram conservar sua organização, bem como
Ammonitida a adap!aç;10 que assegurava a sua continuidade.
CretJ.cC'o
No processo da evolução orgãnica, uma vez cum-
prido o requisito ontogênico essencial da repro-
dução, Tudo é permitido. Seu nilo-cumprimento
Jurássico
está proibido, pois leva à extinçilo. Veremos adian-
te como isso condiciona de maneira importante a
Ct"falitida
história cognitiva dos seres vivos.
Tri;b"ico

Perrni:100 Vejamos essa deslumbrante án,"ore da evolução


org:lnk'::l a partir de uma analogia. Imaginemos
uma colina de cume agudo. Figuremos que:l. partir
Carh:nTtro desse pico jogamos encosta abaixo gotas d';igua,
Clynwnida sempre na mesma direção, embora pela mecâni-
Oevoni:lno
Fig. 2 7. Expans:l.o c exrirwão ca do lançamento haja variações no seu moela de
em linhagens de um grupo de
trilobitcs, animais que exi~tí.
cair. Imaginemos, por fim, que as gotas sucessi-
r;lm entre 500 e 300 milhôes vamente la.nçadas dehem uma trilha sobre o ter-
de anos passados. reno, que constitui a marca de sua descida.
Como é evidente, se repetirmos muitas vezes
o nosso experimento, teremos resultados ligeira-
mente diversos. Algumas gotas descerio dirct:l-
continuar a linhagem a que pertencem no meio mente para a direçilo escolhida; outrJ.s encontra-
em que ocorrem, seja este mutante ou nào, pelo rão obs(;:ÍCulos,que contornado de maneir..ls di-
menos dur,.tnrc alguns milhares de anos, Esse caso, versas, por causa de suas pequenas diferenças de
entretanto, também revela que as diferentes li- peso e impulso, e se desviarão para um lado ou
nhagens que originam as distintas variações es- para o outro; talvez haja leves mudanças nas cor-
tmturais - ao longo da históri;] de um g1l..lpo _ renles de vento, que levem outras gotas por ca-
diferem na oporcunidade que têm de manter minhos muito sinuosos, ou que as façam distan-
ininterrupta a sua contribuição à variedade do ciar-se bem mais da direção inicial. E assim inde-
grupo num meio em mutação. Isso se observa finidamente.
122 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO 123

figo 2 8. A deriva natural


dos seres vivos, vista pela
met;ifor-J das gotas d'água.

.Ai
),r(~I/_:'~
'-"J\ & .••• ,
"" A ÁRVORE DO CO:-;HECL\{ENTO 12 5

Tomemos agora essa série de experimemos e,


seguindo as trilhas de t:ada gOI~l,superponh3mos
todos os caminhos conseguidos. Com isso, pode-
remos de fato imaginar que as tivéssemos lança-
do todas juntas. O que obteremos será algo como
o ilu.S[mdo na Fig. 2 8.
Essa figura pode, adequadamente, ser chama-
da de representação lbs múltiplas derivas naru~
rais das gotas d'jgua sobre a colina, o resu[mdo
de seus diferentes modos individuais de imeraçào
com as irregularidades do terreno, os ventos e
tudo o mais. As analogias com os seres vivos S:lO
óbvias. O cume e a direçào inicial escolhida equi-
valem ao organismo ancestral comum, que dá
origem a descendentes com ligeiras variações '[g. 2 9. Deriva natural dos
res vivos (;orno distâncias de
estruturais. A rcpetiçflo múltipla equivale às mui- . mplexídadc em reia",'ão ã
tas Iinh~gens que surgem desses descendentes. A ua origem comum.
colina é, com certeza, todo o meio circundame
dos seres vivos, que muda segundo o devir, que
em parte é independeme do devir dos seres vi-
vos e em parte depende deles, e que aqui asso- sejam mantidas. Organismos e meio variam de
cbmos com a diminuiçào da altitude. Ao mesmo modo independente; os organismos variam em
tempo, a contínua descida das gotas d'água, com cada etapa reprodutiva e o meio segundo uma
incessante conservação da diminuição da ener- dinâmica diferente. Do encontro dessas duas va-
gia potencial, associa-se à conservação da adap- riaçües surgido a estabilização e a diversificação
taçào. Nessa analogia pulamos as etapas repro- fenotípicas, como resultado do mesmo processo
dutivas, porque o que nela representamos é o de consen.raçào da adaptaçào e da autopoiese, a
devir das linhagens, não o seu modo de formação. depender dos momentos desse encontro: estabi-
No entamo, ainda assim essa an310gia nos mostr.l lização, quando o meio muda lentamente; diver-
que a deriva natural ocorrerá seguindo 0..<; cursos sificaçào e extens:lo quando ele o faz de modo
possíveis a cada instante, muitas vezes sem grandes ahrupto. A constância e variaçào das linhagens
variações na aparência dos organismos (fenótipo) dependerão, portanto, do jogo entre as condi-
e freqüentemell[e com múltiplas ramificações, ções históricas em que elas ocorrem e as proprie-
a depender ebs re!:lçües organismo-meio que dades intrinsecas dos indivíduos que as constituem.
• I
126
A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
EIUVA NATURAL DOS SERES VIVOS
12 7
Por isso haverá, na deriva na[urJ.l dos seres vivos,
muitas extinções, muitas formas surpreendentes Mais ou menos adaptado
e muitas formas imagináveis como possíveis, mas
que Ount:a veremos aparecer. ssemos que enquanto um ser vi~o não se
J]ntegr.l está adaptado a seu melO, e que
Imaginemos agora outra visào das tr.J.jetórias "",relação a isso sua condição de adaptação
da deriva natural dos seres vivos. Olhemos de invariame, ou seja, ela se mamt:m. Disse-
100 também que nesse sentido todos Q'; se-
cima. Dessa maneira, a forma primordial agora S vivos sào iguais enquanto estão vivos.
está no centro, e as linhagens dela derivadas se '0 entamo, com freqüência ouvimos dizer
distribuem ao seu redor, como ramificações que . ~ -há seres mais ou menos adaptacos, ou
ue estão adaptados como resultado de sua
surgem do centro e se distanciam cada vez mais orla evolutiva.
dele, à medida que os organismos que as consti- Como muitas das descrições sobre a eVQ-
tuem se diferenciam da forma original. É o que ção biológica que herdamos dos textos es-
citares, essa também é inadequada, como
mostra a Fig. 2 9. 'conclui de tudo o que dissemos. Na me-
Olhando por esse üngulo, vemos que a maio- ar d'ls hipóteses. o observador pode intro-
"iuzlr um paddo de comparação ou referen-
ria das linhagens de seres vivos que atualmente
ia que lhe permita fazer comparações e falar
encontramos são sobretudo parecidas com as pri- ~(eficácia na realização de urna função. Por
meiras unidades autopoiéticas: bactérias, fungos, 'xemplo, podemos medir o quão eficazes
são, em relação ao consumo de oxigênio,
algas. Todas essas linhagens equivalem a trajetó- ffiferentes úpos de animais aquáticos e mos-
rias que se mantêm perto do ponto centr,l1. Em tTa:rque, diante do que nos parece o mesmo
seguida, algUmas trajetórias se separam para cons- esforço, alguns consomem menos do que
. utros. Seria o caso de descrever estes como
truir a variedade dos seres multice1ulares. Algu- kis eficazes e melhor ad3ptados? Cenamente
mas delas se separam ainela mais, parJ. constituir que nào, porque na medid1 em que t~los
estào vivos. todos satisfizeram o.s reqmsltos
vertebrados superiores: aves e mamíferos. Como
'necessfirios para uma ontogenia ininterrupta.
no caso das gotas d'água, se houver um mínimo ~Ascomparações sobre eficácia penencem ao
suficiente de casos e tempo, muitas das linha- 'domínio de descrições feitas pelo observa.
"dor e não têm relaç-.lo direta com o que aean"
gens possíveis, por estranho que pareça, ocorre-
tec~ com as hL~tôrias individuais de conser-
rào. Além disso, algumas das linhagens se inter- r:vaç-Jo da adaptação.
rompem porque chega um momento, como no '. Para resumir: não há sobrevivência do
•. m.1is apto. o que h;i é sobrevivência do apto.
ca.so dos trilonites, em que a diver.sidade repro- f].Trata-se de condiçiJcs necessârias, que p0-
dutiva que elas geram não é comensurável com a dem ser satisfeitas de muitas maneims, e não
variação ambiental. Termina entào a conserva- ,'/:'êla otimização de critérios alheios à própria
sobrevivência.
ção da adaptação, porque essas linhagens pro-
duzem seres incapazes de se reproduzir no meio
em que lhes cabe viver. rn ConceilO original de
30. Diferentes maneiras de nadar.
Ibúl Ikrríos.
128
A ÁRVORE DD CO:-;ffEClMENro
ERIVA N,\TUR.\l. DOS SFRF.5 VIVOS
No Sistema das linhagens biológicas, h:í mui-
tas trajetórias que podem ser de longa duraç:l0 e- Para entender o fenômeno evolutivo o biólo-
sem grandes variaçàes em torno de uma form:l go está numa situaç:l0 comparável, embora os
fundamental. Há também muitas que envolveram fenômenos que o interessam sejam regidos por
grandes mudanças geradoras de novas formas e, leis muito diferentes das que regulam os fenôme-
por último, muitas que se extinguiram sem pro- nos físicos, como já vimos quando falamos da
duzir ramificações que tivessem chegado ao pre- conservaçào da identidade e da adaptação. As-
sente. Em todos os casos, tod<lvia, trata-se de sim o biólogo pode, confortavelmente, explicar
derivas filogenéticas nas quais se conserva a or- grandes linhas evolutivas na história uos seres
ganiz.."1 ç.:'ío
e a adap[;lç:1 odos organismos que Com-
vivos, com base em seu acopbmento estrutural
põem as linhagens enquanto elas existem. Além
com um meio mutante (como no caso das mu-
disso, não são as variações do meio, vist:ls pelo
dunças ambientais a que nos referimos quando
observador, que determinam a trajetória.evolutiva
falamos dos trHobites). ""as ele tamhém joga as
das diferentes linhagens. É o curso que segue a
mãos para o alto, quando se trata de explicar as
conservaçào do acoplamento estrutural dos or-
transformações detalhadas de um grupo animal.
ganismos em seu próprio meio (nicho), que eles
Para tanto, precisari:l reconstruir não apenas to-
definem e cuias variações podem paSS,lrinadver-
das as variações ambientais, como tamhém o
tidas :l um observador. Quem pode observar as
tênues variações na força do vcnto, no leve atri- modo como esse grupo específico compensou
to, ou I1 <lScargas e!etrost,íticas que podem de- tais flutuações segundo a sua própria plasticida-
sencadear modificações nas trajetórias das gotas de estruturai. Em suma, vemo-nos forpdos a des-
do exemplo ilustrado na Fig. 2 8? O físico se de- crever cada caso como resultante de variações
sespera, atira as mãos para o alto e fala simples- alc<ltórias, já que a descriç[IO do transcurso de
mente de t1 utuações aleatórias. No entanto, apc- suas variações só é possível a posterion .. Da mes-
sar de Usar a linguagem do acaso, ele sabe que ma maneira que observarbmos um barco à deri-
em cada situaçào observada há processos subja- va, movido por variaçües do vento e da maré,
centes perfeitamente deterministas. Ou seja, sabe inacessíveis à nossa previsão.
que para poder descrever a situaç:1 o (!:ls gotas Podemos então dizer que uma das partes mais
d'água, precisa de uetalhes descritivos que lhe interessantes da evo]uçào é a maneira como a
s.:'íopratk'amentc inacessíveis. i\las também sabe coerência interna de um grupo de seres vivos
que esses detalhes podem ser ignor:ldos se ele se compensa uma determin:lda perturbação. Por
limitar a uma descrição probabilística que, ao exemplo, se há uma mudança importante na tem-
supor uma legalidade determinista, prevê a clas- peratur,l terrestre, só os organismos que s:jal~
se de fenômenos que podem OCorrer, mas ne- capazes de viver dentro das novas faixas [erml-
nhum caso específico. cas poderào manter inintermpt;l a sua filogenia.
No entanto, a compensaç[lo da temperatura p(xie
130
A ARVORE [H) Co:"nIECL\lENTo nos SERES VIVOS 131
dar-se de v:írios modos: por nl('io do espessa-
o tônus mu,';cubr durante a marcha_ Em outras
mento <1 ;tpele, de modifica<:;ôesdas t\xas meta-
palaw;l,';, já que todo sistema ;lutopoiético é Ullla
hólicas, grandes migr:lç'<lt:Sgl'ogrMicas ete. Em
uniebde de múltiplas interckpt'ndências, quando
cada G1 SO,o que vemo,~como adapt:lç:1 o :l frio
uma de suas dimensües é afetada o organismo
inclui tambêlll o resto do org:lnismo de forma
inteiro cxpt'fimenta mudanças correlativas, em
global, p que o espessamento da pele. por exem-
muitas dimensôes ao mesmo tempo. ~'1 asé claro
plo, implica necessariamente mud:\Il<,~:ls correbtas,
que tais mudan~~as.que nos parecem corresponder
n;1 o apenas na pele c nos músculos, como tam-
a a]tera~'ões ambientais, não 5:1 0causadas por
bém no modo como os animais de um grupo se
estas: elas ocorrem na deriva configurada no en-
reconhecem entre si, e a l1Kl1lCÍJ:\ como é regulado
contro operacionalmente independt'nte de orga-
nismo e Illcio. Como n~IOvemos todos os fatores
que participam desse encOOCro,a deriva nos pa-
Evolução: deriva natural rece ser um processo :l]eutório. i\llÍs adiantc ve-
remos que não é assim, ao nos aprofundarmos
maí,';nos modos como n todo coerente que é um
<.umefeito, ,Huailneme n,1 0há um qua-
dro unificado de corno aComece a evalu- organismo experimcntl mudanças estruturais.
çào do~ sere~ vivo~em lodo~ os seus :1 ,';- Em resumo: a cvoluç:lo é uma deriva nanl-
peetos. H:í rnúhiplas e~cola.sde pensamt'n-
ral, produto da invariância da autopoiese e da
to, que que~tionam seriamente a compre_
ensão da evo!u<,-'ào por ~eleçiio n;J(uralque adaptaç:1 o. Como no caso das gotas d'água, não
dominou a biologia nos últimos cinqüenta é necessária uma direcional idade externa para ge-
anos. Contudo, quai~quer que ~ejam as
Para a complt'la compreensão deste livro,
novas idt'ias proposta~para o ddalharnt'nto
rar a diversidade c ;} complementaridade entre
..: importante perccber que aquilo qut' dis-
dos mecanismos evolutivos, das nilo r0- organismo c meio. Tampouco é necessária tal
scmos ~obre a cVoluçào org:3.nka é sufi-
dem negar o fenôlllt'no da evolução_ Mas orieIlt:lçlO para explicar a direcional idade das
ciente P,ir.! entender as car.lcteri.~tica.sbá-
1 l0~livr:rrào da idéia popularizada (b evo-
sica:; do fenômeno { b t!'.lnsform:I('ãohistó_ varia\-'ôes de uma linlngem, nl.'m se trata da
lução como U!l1processo em que existe
rica dos seres vivos, Além uisso. nao é ne-
um mundo ambiental, ao qual os seres vi_ otimiz:lçào de alguma qualid:ldc específica dos
ces.~:lrioexaminar det:ilhaLlalllcl1 leos me-
vos se adaplam de modo progressivo, ,';eres vivos. A evo]uçl0 se parece mais com um
canismos ~uhjacCl1 tes.
otimizando o ~eu modo de explorá-lo. Pro-
Por exemplo, praticamente não IOC,I- escultor vagabundo, que passeia pelo mundo e
pomos que a evolu",':Ioacontece ('orno um
mo~em ludo o que hoje se conhec(:' sobre
romoa gt:"ncliGlL IasíX'pubçÓC'stornou ex-
fenômeno de deriva t"_,trutural,s ob conti- recolhe um barbante aqui, um pedaço de lata ali,
nua ~d("ç;1 ofilogcnetica. na qual não há
plkitos alguns aspt'cto~do que Da",,"incha- um fragll1 eoco de madeira acolá. (' o,'; junta da
Progr<'SM)nem otimiza>;àodo uso do am-
mou de "modi/lcJç'topor meioda d~'s<.-"'(:'fl(len_ maneira que sua estrut1 ..rrae cirnmst:tncia permi-
biente. O que há é ;lpena~ a con~ervaçào
cia". Do !l1 t'srno modo, tamlJ<;'mruJo rala-
mos da contribuição do e.'tudo dos fóssei~
da adaptação e ,li aut()poie~e, num pro- tem, sem mais motivos que o de poder reuni-
ct's,-;oem que organismo e ambiente per-
para u conhecimento dos detalhes das t"ms- lo,';.E assim. em seu v:\gabundear vJ.o sendo pro-
manecem num contínuo acoplamento t's-
formaçót's t"1 "Olutivas
de muitas t'~P('Çk~s_ tnl[ural.
duzidas formas intricadas, compostas de partes
harmonicunente intercont'cradas que n:lo são
132
A ÁRVORE DO CONHECIMENTO

produto de um projeto, mas da deriva natural.


Do mesmo modo, sem obedecer a outt:l lei que
não a da conservação da identidade e da capaci-
d3de de reprodução, surgimos todos nós. Essa
lei nos coneela a todos naquilo que nos é funda-
mental: a rosa de cinco pétalas, o camarão de rio
ou o executivo de Santiago.
10

conheter o conhl!'Cer 1
I experiência cotidiana
ética
I
fenômeno do conhecer
I
explicação
científica
I- observador
9 açã~
3
domíniOi linguisticos fenômenos históricos
" I I I""
consciência
,
linguagem

retlelliva
conservação - variação
Ireprodução I"
1
,J
j

8 4
r- fenõmenot culturais
perturbações

acopta~ento ,I "
fenômenos sociais ,
estTU ura
,
I
on ogema
j
unidades ~e terceira
unidade~ de segunda ordem
ordem
clausura olperadonal

7
atos cognitivos

<O'~I,\J,;"'~'
I 11 6
ampliação do
<omr",m,",O - ::'g' '.: _
L
domínio de interações

plasticidade contabilididelógi~

"'' '"' 'l


representação I
solipsismo
136 A ÁRVORE DO COl'HECI.\IENTO 137

QU~lOdo nos encontramos com um adivinho Entretanto, é preciso tornar clara a distinçilo
profissional, que nos promete com sua arte pre- entre determinismo e previsibilitIade. Falamos em
dizer o futuro, em geral experimentamos senti- previsilo cada vez que, depois de consider..lr o
mentos COJltr:lditórios,Por um lado nos atrai a estado atual de um sistema qualquer que estamos
idéia de que alguém, olhando para nossas mãos observando, afirmamos que haveri um estado
e baseando-se num determinismo para nós subseqüente, que resulrará de sua din:1 mica es-
inescrutável, possa antecipar nosso futuro. De truturai e que também poderemos observar. Uma
outra parte, a idéb de sermos determinados, ex- previs;1 0, portanto, revela aquilo que nós, como
plicáveis e previsíveis nos parece inaceit(jvel. observadores, esperamos que aconteÇ!o
Gostamos do nosso livre arbítrio e queremos es- Dessa maneir..l, a previsibiHdade nem sempre
tar além de qualquer determinismo. J\Ias ao mes- é possível. Há diferença entre afirmar o car:iter
mo tempo queremos que o médico possa curar estruturalmente determinado de um sistema e sus~
nossos males, tratando-nos como sistemas estru- tentar a sua total previsibilidaoe. Is.so acontece
turalmente determinados. O que isso nos revela? porque, como observaoores, podemos não estar
Que relaç:io existe entre o nosso ser orgânico e o em condições de conhecer o necessário sobre o
nosso comportamento? Nosso propósito, neste e funcionamento de um certo sistema que nos ca-
nos próximos capítulos, é responder a estas per- pacite a fazer previsOessobre elc. Assim, ninguém
guntas. Para tanto, começaremos reexaminando discute que as nuvens e os ventos obedecem a
certos princípios relativamente simples de movi-
mais de perto como é possível compreender um
mento e transformação. Entretanto, a dificuldade
domínio comport~llnental em todas as suas possí-
veis dimensões. de conhecer todas as variáveis retevanres faz tIa
meteorologia uma disciplina com poderes limita-
dos de previsào. Nesse caso, nossa limitação de-
corre de incapacidade de observaçào. Em outras
Como P vimos, só podemos produzir uma expli- Previsibilidade e circunst:1 ndas, nossa incapacidade é de outra ín-
cação científica na medida em que tratarmos o sistema nervoso dole. Há fenômenos como a turhulência, para os
fenômeno que nos interessa explicar como resul- quais nem sequer [emas elememos que nos per-
tado do funcionamento de um sistema estrutural- mitam imaginar um sistema delerminist~ldetalha-
mente dcrerminado. Na verdade, a an(jlise do do que lhes dêem origem. Aqui, nossa limitaç:1 o
mundo e dos seres vivos que até agora apresen- de previsão revela nosso déficit conceitual. Por
tamos foi toda feita em tcrmos deterministas, fim, hi sistemas que mudam de estado quando
mostrando como o Universo visto dessa forma se são observados, de mooo que a própria intenção
torna compreensível, e como o ser vivo surge do observador de prever seu curso estnJtural os
dele como algo espontfmeo e natural. retira de seu domínio de previsào.
I

13X
A ÁRVORE DO COSHECL\lF.NTO
COMI'ORTAMEl--TAIS
139
Em outr..ls palavras, o que nos parece necessã- /

rio e inevit:íveJ permite 4ue nos vejamos como instante, como resultado de seu acoplamento es-
observadores capazes de fazer previsôes efica- tnnuraL Escrevemos estas linhas porque estamos
zes. Os fenômenos que vemos como :lJeatôrios constituídos de uma certa maneira e seguimos
fazem de nós observadores incapazes de propor uma certa ontogenia específica. Ao ler isto, o lei-
para eles um sistema explicativo ciemífico. tor entende o que entende porque sua estrutura
Ter em mente essas condições é particularmen- presente - e portanto, de modo indireto, sua his-
te importante, quando estudamos o que aconte- tória - assim determinam. Num sentido estrito,
ce com a ontogenia dos organismos multicelula- nada é acidental. No entanto, nossa experiência
res dotados de sistema ncn'oso, aos quais em é de liberdade criativa e, do nosso ponto de vis-
gemI atribuímos um vasto e rico domínio com- ta, o fazer dos animais superiores parece impre-
portamemal. Isso ocorre porque, mesmo antes visível. Como é possível essa imensa riqueza na
de esclarecer o que pretendemos ao falar do sis- conJuta dos animais dotados de sistema nervo-
tema nervoso, podemos estar certos de que ele _ so? Para entender melhor essa pergunta, precisa-
como parte de um organismo - ted de funcionar mos examinar mais de perto o funcionamento do
nesse organismo, contribuindo a Gld:.1mamemo sistema nervoso, em toda a riqueza dos domí-
para a sua determinação estrutural. Essa contri- nios de acoplamento estrutural possibilitados por
buiç:1 o refere-se tanto ;1 sua própria estrutura sua presenp.
4 uanto ao fato de que os resultados de seu fun-
cionamento (a linguagem, por exemplo) serão
p:.lrtedo meio. E este, a cada instante, funcionad Todas as variedades de sapos - tão conhecidos e
como seletor na deriva estnltuml do organismo populares em nossos campos - se alimentam de
que nele conserva a sua identidade. Com ou sem pequenos anim<lis,como minhocas, mariposas e
sistem:.l nervoso, o ser vivo funciona sempre em moscas, e seu comportamento alimentar é sem-
seu presente estrutural. O pas:;;;ado,como refe- pre o mesmo: o animal se volta para a presa,
rência de interações jã ocorridas, e o futuro como lança sua língua longa e pegajosa, recolhe-a com
referência a interações a ocorrer, sào dimensões a presa a ela aderida e a engole rapidamente,
valiosas para que, como ohsen"adores, nos co- Para essa fun~:ão,a conduta do sapo é sabidamente
muniquemos mUluaffiente. ,'vIasnão fazem parte precisa, e o observador vê que a direção em que
do funcionamento do determinismo estru(ural do ele lança a sua língua apont.1sempre para a presa,
org~lnjsmo :1 cada momento. fi As..<;im
s endo, é possível fazer com o sapo um
Dotados ou não de sistema nervoso, todos experimento muito revelador. Toma-se um girino,
os organismos, inclusive nós mesmos, funcio- ou larva de sapo, corta-se a borda de seu olho _
nam como funcionam e estão onde est:'ío a cada respeitando o nen'o óptico - e faz-se com ele um
giro de 180 graus. Deixa-se que o animal assim
14()
A ÁRVORE DO COSHF.CI.\IENTO CO~lr()RTAMENTAlS 141

/ retina onde se forma a imagem da presa estivesse


em sua posição normal.
Esse experimento revela, de forma dramática,
que para o animal o acima e o 'abaixo e o adiante
e o atrás miO existem em relação ao mundo exte-
rior, do mesmo modo que existem para o ObSl'r-
vador. O que há é uma correlação interna entre
o lugar onde a retina recebe uma determinada
perturbação e as contr,lçàes musculares que mo-
vem a língua, a boca, o pescoço e, por fim, o
corpo inteiro do sapo.
Em um animal com o olho virado, ao colocar
a presa abaixo e à frente fazemos cair uma per-
rurbaçao visual acima e atrás na zona da retina
que habitualmente está localizada à frente e abai-
operado complete seu desenvolvimento lanrar e Fig. .32 , Erro de pontaria ou xo. Para o sistema nervoso do sapo, isso desen-
sua metamorfose, até que se transforme num expressàu de uma corrd;l\,"ào cadeia uma correlação sensório-molora entre a
adulto. Toma-se agora o sapo experimental e, com interna inaltc[;lda?
posição da retina e o movimento da língua, e
o cuidado de cobrir o olho virado, mos(ra-se a não uma computação sobre um mapa do mun-
ele uma minhoca. A lingua se projeta para diante do, como pareceria f'"J.zoávela um observador.
e acena perfeitameme o alvo. Repetimos o expe- Esse experimento - como muitos outros que
rimento, dessa vez cobrindo o olho normal. E foram feitos desde os anos 50 - pode ser visto
verificamos que o animal lança a língua com um como prova direta de que o funcionamento do
desvio de exatamente 180 gr::lUS.Ou seja, se a sistema nervoso é a expressão de sua conectivi-
presa está ab;1Íxodo animal ou à sua frente , como dade ou estrutura de conexões, e que o compor-
seus olhos apontam um pouco para o lado ele tamento .surge de acordo com o modo como se
gir::le projeta a língua para cima e para trás. Cada estahelecem nele suas relações internas de ati-
vez que repetimos a prova, ele comete o mesmo vidade. Voltaremos ao assunto de modo mais
tipo de erro; desvia-se em 180 graus e é inútil explícito. No momento, queremos chamar a aten-
insistir. O animal com o olho virado jamais muda ção do leitor para a dimensão de plasticidade
esse novo modo de lançar a língua com um des- estrutul".ll que a presenp do sistema nenroso in-
vio em relação à posição da presa, que é igual à troduz no organismo. Isto é: sobre como a histó~
rotação imposta pelo experiment::ldor (Fig. 32 ). ria das interações de cada organismo resulta num
O animal atir.i sua língua corno se a zona da caminho específico de mudanças estnHurais - que
142 A ÁIlVOIlE DO CO:-<HECIMENTO 1 43

constitui uma história particular de transforma- Todo ser vivo começa sua existência com uma
ções de uma estmtura inicial, na qual o sistema estrutura unicelular específica, que constitui seu
nervoso participa, ampliando o domínio de esta- ponto de partida. Por isso, a ontogenia de todo
dos possíveis. ser vivo consiste em sua contínua transformação
Se separarmos de sua mãe, por poucas horas, estrutural. Por um lado, trata-se de um processo
um cordeirinho recém-nascido, e em seguida o que ocorre sem interromper sua identidade nem
devolvermos, veremos que o pequeno animal se seu acoplamento estrutural com o meio, desde o
desenvolve de um modo aparentemente normal. seu início até a sua desintegração final. De outra
Ele cresce, caminha, segue a mãe e não revela
parte, segue um curso particular, selecionado em
nada de diferente, até que observamos suas inte-
sua história de interações pela seqüência de mu-
1J.çôes com outros filhotes de carneiro. Esses ani-
danças estruturais que estas desencadear.lm nele.
mais gostam de brincar correndo e dando mar-
Dessa maneira, o que foi dito para o cordeirinho
radas uns nos outros. Já o cordeirinho que sepa-
não é uma exceção. Como no exemplo do sapo,
ramos da mãe por algumas horas não procede
parece-nos mui(Q evidente, porque temos acesso
assim. Não aprende a brincar; permanece afasta-
a uma série de interações que podemos descre-
do e solitário. O que aconteceu? Não podemos
ver como "se1etor.lS" de um certo caminho de
dar uma resposta detalhada, mas sabemos - por
mudança estrutural que, no caso em pauta, reve-
tudo o que vimos até agora neste livro - que a
lou-se patológico quando comparado com o cur-
dinâmica dos estados do sistema nervoso depen~
de de sua estrutura. Portanto, também sabemos so normal.
que o fato desse animal se comportar de maneira O que foi dito também ocorre com os seres
diferente revela que .seu sistema nervoso é dife- humanos, como mostra o caso dramático das duas
rente do dos outros, como resultado da privaç:lo meninas indianas de uma aldeia bengali do norte
materna transitória. Com efeito, durante as pri- da Índia. Em 192 2 , elas foram resgatadas (ou ar-
meiras horas após o nascimento dos cordeirinhos, ranc::Jeias)de uma família de lohos que as haviam
as mães os lambem continuamente, passando a criado em completo isolamento de todo contato
língua por todo o .seu corpo. Ao separar um de- humano (Fig. 33). Uma das meninas tinha oito
les de sua mãe, impedimos essa interaç:1o e tudo anos e a outra cinco. A menor morreu pouco
o que ela implica em termos de estimulação tátil, depois de encontr.lda e a maior sohreviveu cerca
visual e, provavelmente, contatos químicos de de dez anos, juntamente com outros órfãos com
vários tipos. Essas inter.l~.ões se revelam no ex- os quais foi criada. Ao serem achadas, as meni-
perimento como decisivas para uma tran.sforma- nas não sabiam caminhar sobre os pés e se movi-
çào estrutural do sistema nervoso, que tem con- am rapidamente de quatro. Não falavam e tinham
seqüências aparentemente muito além do sim- c. MKLean. Tbe W"olf
rostos inexpressivos. Só queriam comer carne crua
'Cbildr£'tl, Penguin 1 3ooks,
ples lamber, como é o caso do brincar. Nova York, 1977. e tinham hábitos noturnos. Recusavam o contato
'44
COMroRT:\,\IE~TA[S
\ 145
Fig. 33. ;\) ,\Iodo JUpino d~
nJfTio'r d;l menin:l Llt'ng:ili, aI.
gum tempo depois dt' S<'r l'n.
cornr.u:b. CUrJ1pamr COm { }lI)-
bo da fotugrafia b. cl Cumen-
do romo :Iprt'nJeu. dl :-iUlll.
;l sentiralll <:orno l"ompit;:la.
ffit'nlt'hum'lil<l.

d
h

hUlluno C preferiam a companhia de cães ou lo-


bos. Ao serem resgatadas, estavam perfeitamente
sadias e não aprcsentav<lIn nenhum sintoma de
debilidade mental ou idiotia por desnutrição. Sua
separação da família lupina produziu nelas uma
profunda depressão, que as levou à beira da
morte, e uma realmente faleceu.
A menina que sobreviveu dez anos acabou
mudando seus hábitos alimentares e ciclos de vida
e aprendeu a andar sonre os dois pés, embora
sempre recorresse à corrida de quatro em sitU:l-
çnes urgentes. Nunca chegou propriameme a fa-
c lar, embora usasse algumas pabvrJs. A família do
146 A ARVORE DO CONHECIMENTO CO.\lrORTA.\IENl"AIS 147

missionário anglicano que a resgatou e cuidou


6
dela, bem como outras pessoas que a conhece- /
I.Im com alguma intimidade, jamais;} sentiram
como verdadeiramente humana.
Esse caso - que não é o único - mostra que
embora em sua constituição genética a anatomi3
e ;} fisiologia fossem humanas, as duas meninas
nunca chegaram a acoplar-se ao contexto huma-
no. Os comport;} mentos que o missionário e sua
famí1iaqueriam mudar nelas, por serem aberrantes
no :imbito hum::mo, er3m imeiramente naIur.lis
para as menim.s lupinas. Na verdade, Mo\vgli, o ÁGUIA
menino da selva imaginado por Kipling, jamais
poderid tcr existido em carne e osso, porque sa-
bia falar e comportou-se como um homem quan~
do conheceu o ambiente hum::mo. Nós, seres de
c:.lrne e osso, não somos alheios ao mundo em
que existimos e que está disponível em nosso
existir cotidiano.

Atualmente, ::l Vlsao mais difundida considera o Sobre o fio


sistema nervoso um instrumento por meio do qual da navalha com determinação estrutural. POltanto, a estmtu-
o organismo obtém informações do ambiente, que r.l do meio não pode especificar suas mudanças,
a seguir utiliza para construir uma representa- mas sim apenas desencadd-las. Na condição de
ção de mundo que lhe permite computar um observadores, temos acesso tanto ao sistema ner-
comportamento adequado à sua sobrevivência voso quanto à estrutura do meio em que ele estio
nele (Fig. 34). Esse ponto de vista exige que o Por isso, podemos descrever a conduta do orga-
meio especifique no sistema nervoso as caracte- nismo como se ela surgisse do funcionamento de
rísticas que lhe são próprias, c que este as utilize seu sistema nervoso via representações do meio,
na produção do comportamento - tal como usa- ou como exprcss:l0 de alguma intencionalidade
mos um mapa para traçar uma rota. na busca de uma meta. Mas essas descrições nào
No entanto, sabemos que o sistema nen'oso, refletem o funcionamento do sistema ncn'oso em
como parte que é de um organismo, funciona si: têm :::tpenasum caráter de utilidaue comunica-
1

148 A ÁRVORE
149
tiva par;] nós, observadores, e 0:10 um v:l1 or
explicativo científico.
Se rd1 etirmos um pouco sobre os exemplos
que demos acima, perceheremos o seguinte: lU
verdade, nossa primeira tendência, ao descrever
n que acontece em cada caso, CeIl[r: H.e de uma
forma nu de outra na ulilízaçào de alguma 1111::,(<1-
fora ::;obrea obtençlo de "informaçôes" do meio.
A seguir. essas informaçôes seriam reprcsenradas
"internamente". Contudo, nossa :lrgumentaçào
anterior deixou claro que o funcionamento desse
lipo de metáfora contr:.lri3 tudo o que sahemos
sobre os seres vivos. Encontramo-nos, pois. diante
de dificuldades e resistências, porque nos parece
que a únka alternativa i:I visão do sistema nervo-
so como funcionando com representaçôcs é a
negação (b realidade circundante. Com efeito, se
o sistema nervoso não funciona _ c nem pode
funcionar - com representaçôes do mundo que
nos cerca, como ent;lo surgiu a extraordinária possível. Temos de aprender a anelar sobre
eficácia operacional do homem c dos animais, e uma linha mediana, sohre o próprio fio da na-
valha (Fig. 35).
sua imensa capacidade ele aprendizagem e mani-
pubção do mundo? Se negarmos a objl:'tividade De fato, por um lado temos a armadilha de
de um mundo cognoscível, não cairemos no caos Supor que o sistema nervoso funciona com re-
da total arbitrariedade, pois assim tudo se torna presentações do mundo. É uma cilada. porque
possível? nos cega para a possibilidade de explicar como
l~como andar sobre o fio de uma navalha. De funciona o sistema nervoso, momento ;1 momen-
um !::teloId uma armadilha: a impossibilidade de to, como um sistema determinado e com clausura
compreender o fenômeno cognitivo se assumi- operacional, como veremos no Glpítulo seguinte.
mos um mundo de objetos que nos informam. já Por outro lado, temos a outra armadilh:\, que
que' não há um mecanismo que de fato permite nega o meio circundante e' supõe que I) sbtema
tal "informa<.'ào",De outra parte, nova afm~\dilha: nervoso funciona totalmente no vazio, o que leva
o caos (' a arhitrariedade da ausênci<l do mundo a concluir que tudo vale e tudo é pnssivd. É o
objetivo, donde SI:' conclui que tudo parece ser extremo da solid~1 0cognitiva absoluta, nu solipsi<;_
mo (da tradiç.l0 fi]osótlca d:íssica, que afirmava
150
A ÁRVORE DO CO:\HECIMFNT
.. O
CO.\IPOIUAMEl'.iAIS 151

que só existe a imerioridade de cada um). Trdta- unidade segundo suas interações com o meio, e
se de uma cilada, porque 0:10 permite explicar a descrever a história de suas inter-relações com
adequação ou a comensurabílidade entre o fun- ele. Nessa perspectiva - na qual o ohseIVador
cionamento do organismo e o de seu mundo. pode estabelecer relaçôes entre certas caracterís-
Esses dois extremos - ou armadilhas _ existi- ticas do meio e o comportamento da unidade - a
ram desde as primeiras tentativas. de compreen- dinâmi<.."linterna desta é irrelevante.
der o fenômeno do conhecimento em suas raízes Nenhum desses dois domínios possíveis de des-
mais clássicas. Atualmente, predomina o extre- crição é problemático em si. Ambos são necessá-
mo rcpresentacionista; noutras épocas, prevale- rios para o pleno entendimento de uma unidade.
ceu a visão oposta. É o obseIVador quem os correlaciona a partir de
Queremos propor agora um modo de cortar sua perspectiva externa. É ele quem reconhece
esse aparente nó górdio, e encontrar uma manei- que a estrurura do sistema determina suas intera-
ra natural de evitar esses dois abismos que cer. ções, ao especificar que configuraçôes do meio
cam o fio da navalha. Na realidade, o leitor aten- podem desencadear no sistema mudanças estru-
to já deverá ter-se adiantado ao que vamos dizer, turais. É ele quem reconhece que o meio não
pois é o que está contido nas páginas ameriores. especifica ou instrui as mudanças estruturais do
A solução encontrada foi a de manter uma clar.l sistema. O prohlema começa quando passamos,
contabilidade lógica. Ela equivale a não perder sem perceber, de um domínio para o outro, e
de vista aquilo que vem sendo exposto desde o começamos a exigir que as correspondências que
começo: tudo o que é dito é dito por alguém. podemos estabelecer entre eles - pois podemos
Como todas as soluções par.l aparentes contradi- ver os dois ao mesmo tempo - façam de fato
ções, tudo consiste em sair do plano da oposição parte do funcionamento da unidade: nesse caso,
e modificar a natureza da pergunta, passando para o organismo e o sistema nervoso. Se mantiver-
um contexto mais abrangente. mos límpida a nossa contabilidade lógica, essa
Na realidade, a situação é simples. Como ob- complicação se dissipará. Tomaremos consciên-
servadores, podemos ver lima unidade em domí- cia dessas duas perspectivas e as relacionaremos
nios diferentes, a depender das distinçôes que num domínio mais abrangente por nós estabele-
fizermos. Assim, por um lado podemos conside~ cido. Dessa maneira, não precisaremos recorrer
rar um sistema no domínio de funcionamento de às representaçõcs nem negar que o sistema ner-
seus componentes, no âmbito de seus estados voso funciona num meio que lhe é comensurável,
internos e modificações estrutur.lis. Partindo des- como resultado de sua história de acoplamento
se modo de operar, para a dinâmica interna do estrutural.
sistema o ambieme não existe, é irrelevante. Por Talvez rudo isso se torne mais claro por meio
oU[ro lado, tanlbé.n podemos considerar um:! de uma analogia. Imaginemos uma pessoa que
I

152
A ARVORE DO CONHECL\IENlO C{ } MI'ORJA,~IF)\:T:\IS 153
viveu tocb a sua viua num suhmarino e lJuc, nunca
lógica, n:1 odevemos confundir o funcionamento
tendo saído dele, recebeu um treinamento per-
do submarino em si, SU:ldinâmica dI:' estados,
feito de como oper:í-Jo. Agora estamos na prai:l e
com seus deslocamentos e mudanças de posição
vemos que o submarino .se aproxima e emerge
no meio. A din5mica dos estados do submarino _
graciosamente. Pelo rádio, dizemos ao piloto:
com seu piloto que não conhece o mundo exte-
"Parabéns, você evitou os recifes e veio à tona
rior - nunca acontece num funcionamento com
com muita elegáncia: as nunobras do submarino
representaçôes de mundo vistos pelo ohservador
foram perfeitas". Dentro da embarcação, porém,
externo. N;lo implica "praias", nem "recifes", ncm
nosso amigo se surpreende: "Que história é essa
"superfície", mas apenas corrclaçôes entre indi-
de recifes e de emergir? Tudo o que fiz foi mover
cadores, dentro de celtos limites. Entidades como
alavancas, girar bOTões e estahelecer certas rela-
praias, recifes ou superfícies são válid~lSunica-
ções entre os indicadores de umas e de outros,
mente para um observador externo, n:'ío para o
na seqüênci:l prescrita à qual estou acostumado.
submarino nem para o pilQ(o,que funciona como
Não fiz manobra alguma c não sei de que sub-
um componente dele.
marino você está falando. Deve ser brincadeira".
Nessa analogia, o que é válido para o subma-
Para o homem dentro do suhmarino só exis-
rino o é tamhém para todos os sistemas vivos:
tem as leituras dos indicadores, suas transições e
para () sapinho de olho virado, para :.l mcnina-
as maneiras de obTer certas relações específicas
lobo e para c:lda um de nós, seres humanos.
entre elas. Somente nós, que estamos de fora,
vemos como mudam as relações entre o subma-
rino e seu ambiente. Percebemos que sua con-
duta existe e que ela pode parecer mais ou me-
o que chanUTllos de comportamento, ao obser-
var as mudanças de estado de um organismo em
nos adequada, de acordo Com as conseqüências
seu meio, correspondc à descrição que fazemos
que proouzir. Se temos de manter a contabilidade
dos movimentos do organismo num amhiente que
assinalamos. A conduta n50 é alguma coisa que
o ser vivo faz em si, pois nele só ocorrem mu-
danças c.<;!ruturaisinternas, c não algo assinalado
Comportamento por nós. Na medida em que as mudanças de es-
Chama-se <':OlIlpOt"taJllcnto às mudanças de pos-
tado dI:'um organismo (com ou sem sistema ner-
tu • ..! ou posiçào de um ser vivo, que um observa. voso) dependem de sua estnltura - e esta de sua
dor descreve como movimentos ou açàes em re- históri:l de acoplamento estrutural -, essas mu-
lJ.çào ;l um determinado ambiente.
danças de estado do organismo em seu meio se-
rão necessariamente congruentes ou comensur:í-

!
veis com ele, qU:lisquer que sejam as condutas e
154 A ÁRVORE DO CONHECI.\If.NTO

os ambientes que descrevamos. Por L'iSo,o com-


portamento, ou configuração específica de movi~
mentos, parecerá ou não adequado a depender
do ambiente em que o descrevermos. O êxito ou
fracasso de uma conduta são sempre definidos
pelo âmbito de expectativas especificadas pelo
observador. Se o leitor adotar os mesmos movi~
mentos e posturas que agora adota ao ler este
livro no meio do deselto de Atacama, sua con-
duta será não apenas excêntrica, mas também
patológica.
Assim, o comportamento dos seres vivos não
é um3 invenção do sistema nervoso e não está
exclusivamente ligado a ele, já que o observador
verá comportamentos ao observar qualquer ser
vivo em seu meio. O que a presença do sistema
nervoso faz é expandir o donúnio de condutas
possíveis, ao dotar o organismo de uma estrutura
espantosamente versátil e plástica. Esse é o tema
do próximo capítulo.
10 2
r-==r unidade
conhecer o conhecer 1 organização estrutura
I experiência cotidiana LautOp.OieseJ
ética
I
fenômeno do conhecer fenome1nologia

I
biológica
eXPllca~ãO
___I
cientifjea
observador

9 açãb
3
domínios linguísticos fenômenos históricos
. I
linguagem (onSe~açãO- ••.1riaçãO
I
consciência reflexiva !eproduçãJ

8 4
perturbações

I.
fenômenos culturais
I acopla~ento
fenômenos sociais estrutural ontrgema
.d I
Uni ades de terceira
ordem
li
unidadels de segunda ordem

dausura olperacianal

5
r filogenia

6 deriva história de
natural interações
comportamento _ sistema
I neíioso conselaçãa selJção
da adaptação--estrutural

F
contabitidide lógica
dete1rminaçãO estrJtural
representação I
salipsismo Fig_ 36 . .'Jeuronios. Desenhu de
.~Santiago Ramón y Caia!'
15H A ÁRVORE DO COl\HECIME:-ITO 159

Neste capítulo, queremos ex:mtin~r de que ma-


neira o sistema nervoso expande os domínios
de interação de um organismo. Já vimo..'ique o
comportamento não é uma invenção do sistema
nervoso. Ele é próprio de qualquer unidade vista
num meio onde especifica um domínio de per-
turbações, e mantém sua organização como rc-
sult.1 do das mudanças de estado que tais pertur-
!
bações nela desencadeiam,
É importante ter isso em mente, porque em
geral vemos o comportamento como algo ca•..lC-
terístico de animais com sistema nervoso. Contu-
do, as associações habituais com a palavr.! com-
portamento vêm de ações como andar, comer,
procUíJr etc. Se examinarmos m~is de perto o ,
que tod~5 es.:"asatividades - em geral ligadas à ;
/
noção de conduta - têm em comum, veremos
que todas elas se referem a movimento. Entre-
\
"'\
tanto, o movimento, seja sobre a terra ou na água,
não é Utll~ característica universal dos seres vi-
vos. Entre as muitas formas resultantes da deriva /

natural, há muitas das quais ele está excluído.

Consideremos, por exemplo, a planta lustrada na História natural do


figura 37. Quando cresce fora d'água, a s~gitária movimento
tem a form3 que se vê na ilustração. No entanto,
quando o nível 03 água sobe e a submerge, a
planta muda de estrutura em alguns di:!s e assu-
me sua forma aqu:ítica, vista na parte de baixo da
ilustração, A situação é tot3.lmente reversível e
ocorre com transformações estruturais hastante
complexas, que implic~m uma forma diversa de Fig. 37. Saf.J1larla sagi/ufo{ÜI
,em suas formas aquática lo:
diferenciaçào das várias partes da planta. Esse é !:errestre.
1 60 A ÁRVORE DO COSHEClMEN10 j\1..A.NERVOSO E COI'.:HEClMENTO 161

um exemplo que poderfamos descrever como instâncias de compoltamento. O que nos interes-
comportamento. na medida em que h{ \modifica4 sa ressaltar é que em geral é mais fácil chamar a
ções estnJturús que são observáveis na forma da uma de comportamento e à outr-..1não, somente
planta, como compensação de certas pelturba- porque somos capazes de detectar movimento
ções recorrentes do meio. Todavia, essa situação na ameba mas nào na sagitária. Ou seja: há uma
é norm3lmente descrita como alterações no de- continuidade entre a motilidade da ameba e a
senvolvimento do vegetal e não como compolta- grande diversidade de condutas dos animais su-
menta. Por quê? periores, que sempre vemos como formas de
Comparemos o caso da sagitária com a con- movimento. Em contraste, as modificações de
dma alimentar de uma ameba prestes a ingerir diferenciaçào da sagitária parecem distanciar-se
um pequeno protozoário por meio da extensão do que nos é mais familiar como movimento, dada
de seus pscudópodos (Fig. 38). Tais pseudópodos a sua lentidão, e as vemos apenas como mucL'1l1-
são expansôes ou digiwções de protoplasma, ças de forma.
associáveis a mudanças na constituição físico- Na realidade, do ponto de vista do apareci~
químic\ local do córtex e da membrana celular. menta e transformação do sistema nervoso, a pos-
O resultado é que o protoplasma flui em celtas sibilidade de movimento é essencial, e é isso que
pontos e empurra o animal numa direção ou faz com que a história do movimento seja tão
noutra, configurando o seu movimento amebáide. fascinante. Exatamente como e por que motivo é
Em contraste com o que acontece com a sagitária, o que veremos pouco a pouco, ao longo deste
ninguém tem dúvidas em descrever essa situaçào capítulo. Antes, porém, examinemos de modo
como um comportamento. m:lis abrangente os casos gerais. Consideremos
Do nosso ponto de vista, é cbro que entre como ocorrem as possibilidades de movimento
ambos os casos h;\ urna continuidade. Ambas são Fig. 3H.Ingestão. em todo o âmbito natural.
rn Na Fig. 39, for:.\mpostos num gráfico o tama-
nho das distintas unidades naturais, em funçào
de sua capacidade de movimento, medido em
lermos de velocidades máximas, Dessa forma,
torna-se evidente que, nos extremos do grande e
do pequeno, as galáxias e as partículas elementa-
res são capazes de movimentos muito rápidos,
da ordem de milhares de quilômetros por segun-
do. No entanto, quando consideramos as molé-
culas gmndes, como as que constituem os seres
vivos, o movirnemo será cad;l vez mais lento, à
163
162 A ÁR\"ORE DO COSHECIMENTO '"lA NERVOSO E COl':HECIMEYHl

medida que aumenta o tamanho e as moléculas 1 0" E.<.trebs


se movem num meio viscoso. Assim, há molé- lO'.
e
pbnl'tJS
culas, como muitas das proteínas de nosso orga-
I~
nismo, que são tão gr..\Odes que seu deslocamen-
to espontfmeo é desprezível, quando comparado
à rnotilidade das moléculas menores. lO'
É nessas circunstâncias que ocorre, como vi- 10'
mos no capímlo lI, o aparecimento dos sistemas
autopoiéticos, tornado possível pela existência
dessa variedade de moléculas orgânicas de gran- 10-'

de tamanho. Uma vez formadas as células de ta-


manho muito maior, a curva mostra essa guinada lO'
brusca, na qual a história das transformações ce-
lO'
lulares permite o surgimento de estrutur.lS como
10-10
flagelos ou pseudópodos. K<;tespossibilitam mo- Partícula.,
(em por ocgl'rldol
vimentos consideráveis, porque põem em jogo d"merl'
tares
forças muito maiores que as da viscosidade. Além 1 0-"
disso, quando os organismos pluricelulares sur- 10' w' 1 0' 1 0' 1 0' lo" 1 0' 1 0" 1 0' 1 0'0
lO'
gem, alguns deles desenvolvem, por meio da di- Vdoc;d:1d" (centímetros por segundo)
ferenciação celular, capacidades de locomoção
muito mais espetaculares. Assim, um antílope
mento está, essencialmente, ausente como modo
pode correr a uma velocidade de várias dezen:ls
de ser. É presumível que isso esteja relacionado
de quilômetros por hora, apesar de ser de um
com o fato de que as plantas se mantêm pela
tamanho muitas vezes maior que a pequena mo-
fotossíntese, desde que para tanto disponham de
lécula que se desloca (em média) à mesma
um aporte local constante de nutrientes e água
velocidade. Portanto. os metazoários e os orga-
no solo, e de gases e luz na atmosfera. 1& <;0
per-
nismos unicelulares móveis criam um âmbito de
mite a conservação da adaptação sem desloca-
movimento que, para o seu tamanho, é único
mentos grandes e rápidos. Mas também é certo
na natureza.
que a condição séssil é perfeitamente possível
Não percamos de vista, contudo, que o apare-
sem fotossíntese, como podemos ver nos múlti-
cimento dessa classe de movimento não é uni-
plos exemplos de linhagens de animais como os
versal nem necessário para todas as formas de
picorocos. Estes moluscos, embora descendentes
seres vivos. A'i plantas são um caso fundamental
de ancestrais com motiliJade, adowrmn esse modo
resultante de uma deriva natural na qual o movi~
164 A ÁRVORE DO CONHECIMENto NERVOSO F. CONHECIMENTO 165

de vida ao encontrar condições locais de nutri- uma correlação recorrente ou invariante entre uma
ç:1oque lhes permitem a conservação da adapta~ área perturbada - ou sensorial - do organi.<;moe
ção - como ocorre nas plantas -, sem desloca- uma área capaz de produzir movimento - ou
mentos dU1.lnte a maior parte de sua ontogenia. motora -, que mantém invariante um conjunto
Para um observador, é evidente que no movi- de relações internas na ameba.
mento há múltiplas possibilidades, muitas das Outro exemplo pode tornar essa idéia mais
quais aparecem realizadas nos seres vivos como clara. A Fig. 40 mostra um protozoário que tem
resultados de sua deriva natural. Assim, os orga- uma estrutura muito especializada chamada
nismos móveis não só baseiam sua reprodução flagelo, que ao bater é capaz de deslocá-lo em
no movimento, como também sua alimentação e seu meio aquoso. Nesse caso específico, o flagelo
modos de inteídção com o meio. É em referência bate de tal forma que arrasta a célula por trás
a esses seres vivos, nos quais a deriva natural dele. Ao nadar assim às vezes o procozoário se
levou ao estabelecimento da motilidade, que o encontra com um obstáculo, com o qual colide.
sistema nervoso adquire importância. Veremos O que acontece nessa situação? Há um compor-
agorJ., com mais detalhes, esse aspecto. tamento interessante de ffiudanp de orientação:
o flagelo se dobra ao topar com o obstáculo. Essa
dobradura desencadeia modificações em sua base
Voltemos um pouco à ameba que está a ponto Coordenação inserida na célula, o que por sua vez deflagra
de engolir um protozoário. O que acontece nes- sensório-motora mudanças no citoplasma que o fazem girar um
sa seqüência pode ser resumido assim: a presen- unicelular pouco, de modo que ao reiniciar seus batimentos
ça do protozoário gera uma concentra~<10de subs- o flagelo leva a célula para uma direção diferen~
tâncias no meio que são capazes de interagir com te. Como resultado, vemos que o protozoário toca
a membrana da ameba, desencadeando mudan- o obstáculo e depois se torce e foge dele. Outra
ças de consistência protoplasmática que resultam vez, como no caso da ameba, o que ocorre é que
na formação de um pseudópodo. Este, por sua está sendo mantida uma certa correlação interna
vez, produz alterações na posição do animal, que entre uma estrutura (sensorial) capaz. de admitir
se desloca, modificando assim a quantidade de certas perturbações e uma estrutura (motora) ca~
moléculas do meio que interagem com sua mem- paz de gerar um deslocamento. O interessante
brana. Esse ciclo se repete, e a seqüência de des- desse exemplo é que as superfícies sensorial e
locamento da ameba, portanto, produz~se por motora são a mesma e, portanto, seu acopla~
meio da manutenção de uma correlação inter- menta é imediato.
na entre o grau de modificação de sua membra~ Vejamos ainda outro exemplo desse acopla-
na e as mudanças protoplasmáticas que percebe~ mento entre superfícies sensoriais e motoras. Há
mos como pseudópodos. Ou seja, estabelece-se bactérias (unicelulares) que têm, como alguns
_1 I I_

166 A ÁRVORE DO COSHECIi\lE:-.ITO 167

protozoários, flagelos de aparência semelhante.


No entanto, como se vê na Fig. 41, esses flagelos
funcionam de forma muito diferente. Em vez de rn
bater, como no caso anterior, simplesmeme gi-
ram fixos sobre sua base, de maneira a constituir
uma verdadeira hélice propulsora para a bacté~
ria. Além disso, os giros tornam possíveis ambas
as direções. Contudo, há uma delas em que a
coordenação das rotaçôes resulta num nítido des-
loc:lmento da bactéria, enquanto que na direção
oposta essa coordenaçào faz com que a bactéria ~
simplesmenre balance aos solavancos, sem sair ~\-J.j-J--
do lugar. É possível seguir os movimentos de uma
dessas bactérias sob o microscópio, e observar Fig. 41. Propulsãu n~gebr dói
bacléJi;1.
suas mudanças em condições diferentes e con~
troladas. Se a pomos, por exemplo, num meio
em que num canto tenhamos colocado um gr.1o
de açúcar, observa-se que ela logo deb:a de ficar
aos solavancos, muda a direção de giro dos
flagelos e se dirige para a zona de maior concen-
tração de açúcar, seguindo o seu gradiente de
concentração. Como isso ocorre? Acontece que como quimiotaxia, e é um caso de conduta de
na membrana da bactéria há moléculas especiali- nível unicelular, do qual se conhcrcm muitos de~
zadas, capazes de interagir especificamente com talhes moleculares.
os açúcares. Assim, quando há uma diferença de Ao contí.Í.rio dessas bactérias, a sagitária de
concentração em seu pequeno entorno, produ- que falamos - bem como outras plantas - não
zem-se alterações no interior, que determinam a têm uma superfície motora que as dote de movi-
mudança na direção de giro do flagelo. Portanto, mento. De fato, encontramos entre as bactérias
a cada momento se estabelece de novo uma rela- casos que são, por assim dizer, um meio-termo
ção estável entre a superfície sensorial da bacté- entre a capacidade de movimento e a renúncia a
ria e sua superfície motora. Isso lhe possibilita o ele. O C{/I//obacter, por exemplo, quando está
comportamento nitidamente discriminatório de num meio de alta umidade, fixa-se ao solo por
dirigir-se para as zonas c1e maior concentraçào meio de um pedestal, numa forma do tipo vege-
l::J H. Bcrg. Sei. Anwr. 133'
c1ecertas subst5.ncbs. Esse fenômeno é conhecido 36. 1975.
tal. Entretanto, quando acontece um período de
168 A ÁRVORE DO CO:-<HECI.\IE:-.JTO 169

dessecamento, a bacrérLi se reproduz, c as novas ig. 43. E.>quen);l di diversi-


: ide celular nos lecidos da
células crescem com um flagelo capaz dt" trans- .dr.i, com destaque P',lr.l os
portá-las a um ambiente mais úmido. eutônios.

Vimos, nos exemplos ameriores, que o movimento Correlação sensório_


dos unicelulares - ou conduta de dcsl(X'amento motora multicelular
- baseia-se numa correlação muito específica entre
as superfícies sensoriais e as superfícies respon-
sáveis pelo movimento, ou motoras. Vimos tam-
bém que essa correlação se faz por meio de pro-
cessos no interior da célula, ou seja, mediante
transform3ções metabólicas próprias da unidade
celular. O que acontece no caso dos organismos
rnet3celularcs?
Examinemos novamente essa situação, por
meio de um exemplo. A Fig. 42 rnoslra a fotogra-
fia de uma hidrJ., como as que podem ser encon-
tradas na lagoa do Parque Q'Higgins de Santia-
go. Esses metazoários peltenccm ao grupo dos
celenterados, uma linhagem de animais muito
antigos c primitivos, formados por uma dupla
camada de células em forma de vaso. Em sua
borda, alguns tentáculos permitem que o animal
se mova na água e <"-'aprureoutros animais, que
ingere e digere por meio da secrcçiio de sucos interior. Também encontramos nas hidrAs algu-
digestivos. Se observarmos a constituição celular mas células de caráter motor, dotadas de fibrilas
desse animal, veremos uma dupla camada. Uma contráteis, dispostas tanto longitudinalmente quan-
se volta para o interior e outm para o exterior. to rAdialmente na parede do animal (Fig. 43). Ao
Nessas duas superfícies encontramos uma t:erta se contrair em diferentes combinações, essas cé-
diversidade de células. Assim, há células com lan- lulas musculares produzem loda a diversidade de
cetas, que ao serem tocadas lançam seus projé- movimentos do animal.
teis ao exterior, enquanto outras têm vacúolos É evidente que para que ocorra uma ação coor-
capazes de secretar líquidos digestivos para o denada entre, digamos, as células musculares dos
170 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO 171

tentáculos e as células secretoras do interior, é entre si por meio da rede interneuronal para in-
preciso que haja algum tipo de acoplamento eo- tegrar, em seu conjunto, o sistema nervoso.
tre elas. Não basta que estejam simplesmente dis-
postas nessa dupla camaclt.
Para entender como se dá esse acoplamento, Os neurônios se distinguem por terem ramifica-
basta observar com mais detalhes o que há entre ções citopbsmáticas de formas específicas que se
as duas camadas celulares. Ali encontramos célu- estendem por enormes distâncias, da ordem de
las de um tipo muito peCllliar, com prolongamen- dezenas de milímetros no caso das maiores. Essa
tos que se estendem por distâncias consideráveis característica neuronal universal, presente em to-
dentro do animal. A peculiaridade dessas células dos os organismos dotados de sistema nervoso,
é que por meio de seus prolongamentos elas determina o modo específico pelo qual este par-
põem em contato elementos celubres topografi- [icipa das unidades de segunda ordem, que inte-
camente distante.s. Trata-se de células nentosas, gra ao pôr em contato elementos celulares situa-
ou neurônios, em sua fonna mais simples e pri- dos em muitas partes diferentes do corpo. Não
mitiva. A hidra tem uma das formas mais simpli- devemos desprezar a delicada série de tmnsfor-
fkadas de sistema nervoso que se conhece, cons- mações de crescimento necessárias para que uma
tituído por uma rede que inclui essa classe parti- célula que - medindo inicialmente uns poucos
cular de células, as..<;imcomo receptores e efetores. milionésimos de metro - chega a ter ramificações
Geralmente, o sistema nervoso desse animal apa- de forma específica que podem atingir dezenas
rece como um verdadeiro emaranhado de inter- de milímetros, numa expansão de várias ordens
conexões, que se estendem para todas as partes de magnitude (Fig. 44).
de seu corpo através do espaço entre as células. É por meio de sua presença física que os
Dessa maneira, ele possibilita a interação de ele- neurônios acoplam, de muitos modos distintos,
mentos sensoriais e motores distantes. grupos celulares que de outra maneira só pode-
Desse modo temos, em todos os detalhes, a riam acoplar-se pela circulação geral dos humo-
mesma situação existente no caso do comporta- res internos do organismo. A presença física de
mento unicelular. Uma superfície sensorial (nes- um neurônio permite o transporte de substâncias
te caso, células sensoriais), uma superfície motora entre duas regi()es por meio de um caminho muito
(aqui, células musculares e secretor..!s) e vias de específico, que não afeta as células circundames
interconexão entre ambas as superfícies (a rede e sua entrega local.
neuronal). O comportamento da hidra (aliment.."l- A particularid.tde das conexões e interações
ção, fuga, reprodução etc.) resulta das diferentes que as formas neuronais tornam possíveis consti-
maneiras como essas duas superfícies - a senso- tui a chave mestra do funcionamento do sistema
rial e a motora - se relacionam dinamicamente nervoso.
172 A ÁRVORE DO CONHECIMF.:-ITO 173

As influências recíprocas que ocorrem entre Estas são liberadas (ou recolhidas) nos terminais

. os neurônios são de muitos tipos. A mais conhe~ e desencadeiam mudanças de diferenciação e cres-
cida de todas é uma descarga elétrica, que se cimento nos neurônios, nos efetores e nos
1, propaga em alta velocidade pelo prolongamento sensores com os quais eles se conectam.
;1, neurooal chamado axânio, como se fosse um ras- Com que tipos de célula os neurônios se co-
tilho de pólvora. Ê por isso que freqüentemente nectam? Na realidade, eles se ligam a quase to-
se diz que o sistema nenroso funciona à base de dos os tipos celulares de um dado organismo,
trocas elétricas. Mas isso não é totalmente corre- porém o mais comum é que cheguem, com suas
I, to, já que os neurônios não interagem apenas expansões, a outros neurônios. Essas expansões
por meio desse tipo de trocas. Também o fazem nervosas - conhecidas como dendritos e termi-
- e de modo igualmeme constante _ por meio de nais axônicos - são por sua vez muito especiali-
substâncias transportadas no interior dos axônios. zadas. Entre essas zonas e os corpos celulares
174 A ÁRVORE DO CO:-JHEClMENTO E CO"lHEC1.\IENTO 175

se estabelecem os contatos chamados sinapscs.


5inapse
Estas constituem o ponto em que efetivamente
i
se produzem as influências mútuas no acopla- !iinapse é o ponto de contato estreito de toJos os neurônios que se conectam
!
"
mento entre um neurônio e outro. As sínapses, ".ire os neurônios ou entre os neurônios e com ele - ou o inverso (Fig. 46) -, por
I
úuas cdubs, como no GISOda sinapse meio da difusão de metabólitos. Estes saem,
portanto, silo as estruturas efetivas que permitem euromus<--""UI:lf.
Nesses pomos, as membra- penetram pelas superfícies sinápticas e
"
ao sistema nerv'oso :l realização de interações es- : de ambas ~lScélulas adnem intimamen- sobem pelos axônios ou dendrit{ )S até os
Além disso, nesses lex-:aisa s membr:mas respectivos corpos celulares. Desse duplo
pecíficas entre gmpos celulares distantes.
~ especializ.am na se'Cre~'ãude moléculas tráfego elétrico e metabólico depende, a
Embora no sistema nervoso a esmagadora ,..pedais, os neurotmnsmi.,,-~ores.Por isso, cada momento, o estado de atividade e o
maioria cios comatos sinápticos ocorra cntre Jm impulso nervoso que percorre um estado estruturJI de C"Jdaneurônio no sis-
eurônio e finalmente chega a uma termi- lema nervoso.
neurônios, estes fazem sinapses com muitos ou-
pação sináptica, produz a secreção do
tros tipos de células do organismo. Tal é o caso peururransmissor. Este ClUzao espaço eXlS-
das célubs que denominamos coletivamente de iente entre as membranas e descnGldela
üma alteraçào elétrica na célula seguinte.
superfície sensorial. Na hidra, por exemplo, essa
~Somentepor mdo de especializaç6e.scomo
superfície sensorial inclui todas as células capa- .~ssas é possivel entre os neurônios - assim
zes de responder a perturhações específicas, se- .como entre eles e outr<l.scélulas - uma in-
',fluência mútua e localizada, e não difusa e
ja do meio (como as células com lancetas), seja 'generalizada, como ocorreria se as intera-
do próprio organismo (como as células quimio- ções se dessem por meio de modificações
receptor.ls). Do mesmo modo, há neurônios que ~da concentr.lçào de algtlmas moléculas na
,'-corrente sanguínea.
se conectam com células da superfície motora, ..'i Sobre Glda neurônio, em sua árvore
especialmente as musculares, numa configuração ~.dendrítica,h;í muitos milhares de termina-
'çôes sinápticas de centenas de neurônios
muito precisa. Para resumir, o sistema neuronal
"diferentes. Cada uma dessas terfIÚnações
está inserido no organismo por meio de múlti- I~dará uma pt.'quena contribuição à totalida- Fig, 45. Reconstrução tridimensional de
plas conexões com muitos tipos de célub.. For~ l'de da mudança do neurônio ao qual se todos os contatos sinapticos recebidos pelo
'com~eta. Além disso, <.-"";Ida
neurônio é Glpn corpo celular de um neurônio motor da
ma-se assim lima rede tal que entre as superfícies intluenciar quimicamente a estrutura medula espinhal.
sensorial e motora há sempre uma teia de inter-

t conexôes neuronais, ° que constitui o conjunto


que chamamos de sistema nervoso.

Essa arquitetura fundamental do sistema nervoso A rede interneuronal


é universal e vale não apenas para a hidr<l In;1S
também para os vertebrados superiores, inclusive
o homem. A única diferença está não na organiza-
ção fundamental da rede geradora de correlações
'-~-.-' 1 76 A ÁltVORE DO COSHECIMENTO iA NERVOSO E CONHECIMENTO 177

sensório-motoras, mas na forma como essa rede variações em torno do mesmo tema. Nos vermes,
se implementa, por meio de neurônios e cone- por exemplo, o tecido nervoso - entendido como
xões que variam de uma espécie animal para urna rede de neurônios - foi separado como um
outra. Com efeito, o cadastro dos tipos neuronais compartimento em forma de cordão dentro do
que encontramos nos sistemas nervosos dos ani- animal, com nelVOS por onde passam conexões
mais revela uma enorme diversidade. A1~'Umas que vão ou vêm das superfícies sensoriais e
dessas variedades aparecem na Fig. 46. Além dis- motoras (Fig. 47). Cada variação no csodo motor
so, se pensarmos que no cérebro humano há do animal serJ. produto de uma certa configura-
cel1amente mais de 1010, e talvez mais de 1O1l de ção de atividade em certos grupos de neurônios
neurônios (dezenas de bilhões), e que cada um que se conectam aos músculos (neurônios moto-
deles recebe múltiplos contatos de outros res). 1'vlasessa atividade motora gera mudanças
neurônios - e por sua vez se conecta com muitas múltiplas, canto nas células sensoriais localizadas
células -, a combinatória de interações possíveis nos músculos, quanto na superfície de contato
é mais do que astronômica. com o meio e nos próprios neurônios motores.
Mas insistamos: a organização básica de um Fig, 46, Diver~idade neuronal Esse processo se realiza por meio de mudanças
sistema nervoso tão imensamente complexo como (d1 esquerda para a direila):-
célula hipob,r da relina, cor_
na própria rede de neurônios interpostos - ou
o do homem segue, no essencial, a mesma lógica po celular de um neurônio' interneurônios - que os interconecta. Dessa
que a da humilde hidra. Na série de transforma- motor d:J. medula espinhal, cé- maneira, há uma contínua correlação sensório-
lula milrJI do bulbo olfalário,
ções das linhagens que vão desde a hidra até os motora, determinada e mediada pela configura-
célula piramidal do córtex
mamíferos, depar.lmos com desenhos que sào cerebrJI dt' um mamífero. ção da atividade dessa rede interncuronal. Como
pode haver uma quantidade praticamente ilimi-
tada de estados possíveis dentro dessa rede, os
comportamentos possíveis dos org,mismos tam-
bém podem ser praticamente ilimitados.
Esse é () mecanismo-chave por meio do qual
o sistema nervoso expande o domínio de interJ.~

I
ç6es de um organismo: acopla as superficies
sensoriais e motoras, mediante uma rede de
neurônios cuja configuração pode ser muito
variada, Tal mecanismo é eminentemente sim-
ples. Mas, uma vez estabelecido, permitiu, na
filogenia dos meta zoá rios, uma variedade e lima
diversificação imensa de domínios comportamen-
tais. Com efeito, os sistemas nervosos de diversas
178 A ÁRVORE 00 tA NERVOSO E COl\HECII\IENTO 179

espécies se diferenciam, essencüJlmenre, apenas movimento dá origem a uma mudança da ativi-


nas configurações específicas de suas redes dade sensorial, ao diminuir a pres.sào sobre o
interneuronais. neurônio sensitivo. Com isso se estabelece uma
No homem, cerca de lOl! (cem bilhões) de in- certa relação recíproca entre as superfícies sen-
terneurônios inrerconec£am em torno de 1 0"(um soriais e as motor.ls. Descrito de fora, o que 3con-
milhão) de neurônios motores, que ativam uns teceu foi que a mão se afastou da influência de
poucos milhares de músculos, com aproximada- um estimulo doloroso. Descrito da perspectiva
mente 1 07 (dezenas de milhões) de células senso- do sistema nervoso, ocorreu a manutenção de
riais distribuídas como superfícies receptoms em uma certa correlação sensório-motora em seu in-
vários locais do corpo. Entre os neurônios moto- terior, por meio de uma rede neuronal. Contudo,
res e os sensoriais interpõe-se o cérebro, gigan- como nesse mesmo neurônio motor podem in-
tesco conglomerado de interneurônios que os fluir muitos outros neurônios - que têm origem,
interconecta (a uma razão de 10/100.000/1) numa por exemplo, no córtex cerebral -, o comporta-
dinâmica sempre em mudança. mento de deixar a mão sob um excesso de pres-
Por exemplo, a Fig. 48 esquematiza um neu- sào também é possível. Mas isso levaria ao es-
rônio sensorial da pele, capaz de responder (cle~ tabelecimento de um novo equilíbrio interno,
tricamente) a um aumento de pressão nesse pon-
to. O que causa essa atividade? B em, esse neurô-
nio se conecta com o interior da medula espi-
figo 47. Desenho do sL~tem3
nhal, onde fn contatos com muitos interneurô-
nervoso de UJlla minhoca
nios. Entre estes, alguns estabelecem contato di- (Tuhulanus annulala), l11OS.
reto com um neurônio motor, que por sua ativi- tr:lndo o agrupamento de nl"lJ.'
r6níos em um:l corda ventral,
dade é cap3Z de desencadear a contração de um
com uma porção cef: ílica
músculo, o que result3 num movimento. Esse avolumada.
180
A ÁRVORE DO CONHECIMENIQ
NERVOSO E CONHECIMENTO 181
implicando outros grupos neuronais diversos dos
núcleo geniculado lateral do tálamo (NGL) -, ve-
envolvidos no caso da retirada da mão.
rifica-se que essa estrutur:l não age simplesmente
Imaginemos agora, a partir de situaçõcs espe-
como uma estaç:1 o de passagem da retina ao
cíficas e isoladas como o exemplo anterior da
córtex. Para ela convergem muitos outros cen-
pressão dolorosa, um organismo em funciona-
tros, com múltiplos efeitos, que se superpõem à
mento normal. A cada momento, ';"'cremosque o
ação retiniana. É o que nos mostra o diagrama
Sistem:lnervoso estará funcionando segundo múl-
do box, no qual uma das estnlturas que afetam o
tiplos ciclos internos de interações neuronais
NGL é, precisamente, o próprio córtex visual. Ou
(como o dos neurônios motores e as fibras sen-
seja, amb-.ls as estruturas estão numa relaç:1 ode
soriais do músculo) numa mutação incessante.
efeito mútuo c não de simples seqüencialidacle.
Essa imensa atividade é superposta e modulada
B asta contemplar essa estruturd do sistema ner-
pelas modificaçôes na superfície scnsorial devi-
voso - embora não seja possível entrar nos mui-
das a perturbações que são independentes do
tos detalhes das relações de atividade que, em
organismo (como no caso da pressão sobre a
cada momento, ali se especificam - para nos coo-
pele). Como onservadores, estamos habituados a
VCJlCermoSde que o efeito de projetar uma ima-
dirigir nossa atenção para o que nos parece mais
gem sobre a retina não é como ligar de uma li-
accssível - as perturbações externas. Assim, ten-
nha telefônica para um receptor. É mais como
demos a pensar que elas são determinantes. No
uma voz (perturbação), que se soma às muitas
entanto, tais perturbações externas, Como acaba-
! mos de dizer, só podem modular o constante ir e
vozes de uma agitada sessão de transações na

I
bolsa de valores (relações de atividade interna
vir dos equilibrios internos. Essa idéia é impor-
entre todas as projeções convergentes), na qual
tante, e pode ser ilustrada com o que ocorre no
cada participante ouve o que lhe interessa.
I, sistema visual. Em geral, pensamos na percepção
visual como uma determinada operação sobre a
imagem retiniana, cuja representação será em
á'usura operacional Começamos dizendo que o comportamento é a
seguida transformada no interior do sistema ner-
o sistema nervoso descrição - feita por um observador - das mu-
voso. Essa é a abordagem representacionista do
danças de estado de um sistema em relação a um
fenômeno. Entretanto, ela desaparece logo que
meio, ao compensar as perturbaçôes que dele
nos damos Conta de que, para cada neurônio da
recebe. Dissemos também que o sistema nervoso
retina projetado sobre o nosso córtex visual, co-
não inventa o comportamento, mas sim o expan-
nectam-se a essa mesma zona mais de cem
de de forma dramática. Agora deve estar mais
neurônios que provêm de outras partes do córtex.
claro o que 'lucremos dizer com "expandir". Sig-
E mai~: antes de chegar ao córtex _ quando a
nifica que o sistema nervoso surge na história
projeção da retina entra no cérebro, no chamado
fL1 0genéticados seres vivos como um tecido de
I .I I

A ARVORE DO COl"HFClMF~T •• O
L" NERVOSO E COI':HECIME"ITO 183

células pt'culiares, que se insere no org~mismo neurônios, que contribuem com sua mudança de
de tal maneira que aeorb pontos nas superfícies atividade p:ua as alteraçôe.s de esrados globais de
sensoriais com pontos nas superfícies mororas. toda a rede. Essas modificações podem ou n:l0
Assim, ao mediar esse acopl:lmento com uma rede resultar numa mudança em algum ponto das su-
de neurônios, amplia-se o campo das possíveis perfícies motoras. Por exemplo. uma baixa da ecm-
correlações sensório-motoras do organismo e se centração de glicose no sangue pode, mediante
expande o domínio do comport:unentn. CCrL:\Scorreb<.-'ôes internas, levar à secreção de
Torna-se claro, pois, que a superfície sensorial mais insulina pelas células do pâncreas. Corno
n:io apenas inclui as célubs que vemos externa- resultado, :l correlação sanguínea da glicose se
mente como receptores capazes de ser perturba- mantém dentro de certos limites.
dos pelo ambiente, como [:lrnbém todas as célu- Assim, o sistema nervoso conrribui ou partici-
las capazes de exercer influência sobre o estado pa no funcionamento de um rnctazoário ao se
da rede neuronal. Por exemplo, em algumas ar- constituir - por meio de múltiplos circuitos en-
léri;\s há células quimio-rcceptoras capazes de ser tremeados - num mecanismo que conserva as
especificamente modificadas por muebnças de constâncias internas, que são essenciais para a
conccmraçào no meio sangüíneo de um verte- manutençào da organização do organismo em .sua
brado. Essas células por sua vez modificam certos totalidade.
j Sob esse :'ingulo, é evidente que o sistema ner-
! voso pode ser definido, no que se refere à sua
Conexões da via visual organização, como dotado de uma clausura ope-
Ne~~c quadro, u diagrama iluslra as múl!i- xôes que recd>e de muitos lug;]feS dife- racional. Isto é, est:i constituído de tal maneira
pias runexÕ!:'s presentes nu núcleu geni- rentes do cérebro. Um diagrama semelhame que quaisquer que sejam suas mudanças elas
miado d", um mamífero. & se núclt."o é ;1 (com outros nomes) poJeria ser desenh:!o
regi:io rnai~proeminente de cunexões en- geram outí.lS modificações dentro dele mesmo.
do par.! qualquer Olltro núcleo du sistema
tre a retina e o sistem;1nerv'ow n~mr:ll. Cada neryosu centraL Assim, seu modo de operar consiste em manter
um dos nomes indicados no diagrama ("or-
responde a um ::Igreg-.ldodislínguívd de
cóne.~ occipila]
~- certas relações entre seus componentes invariantes
diante das perturbaçdes que geralll, tanto na di-

.~
\I
neurunio$ em diferentes regiõcs do siste- /;.---- colírulo superior
ma nerv-OSQcentral. induindo u cónex ce- nâmica interna qU:ll1tonas interações do organis-
rebral. l--umo é evidente, a retina n:lo afeta
mo de que faz parte. Em outras palavras, o siste-
Q cérebro do mesmu modo que urna linha
telefônica encontra uma estação de relevo
rio NGL, pois para este convergem simul- D-. mic!c() relicubr
N"GL ""'---"'du l;íi;lmo
ma nervoso funciona como LImarede fechada de
mudanças de relaçõe." de atividade entre seus

I \
taneamente mültiplo..s t-aminhos de inler- retlna
componentes.
nmexões_ Em conseqüên,'ia, a relina pode
modular - m:iS não especifiC:lr _ o estado [)essa maneira. quando experimenr:1I110Suma
11Ipmalamu LO<.-1/.';caend"I/S
dos neurônios no núcleo geniculado, qtle press:1o excessiva num ponto do corpo, pode-
será cunstituído peb totalidade das cont'- NGL - núcleu genicul;ldo bleral mos dizcr, na condição de observadores: "Ah! A
1 84 A ÁRVORE DO COSHECI.\1E:-iTO MA NERvmO E CONHECIMENTO 185

contração deste músculo fará com que eu levan-


te o braço!", Contudo, sob o ponto de vista do
funcionamento do sistema nervoso propriamen-
te dito - como no caso do nosso amigo do .sub-
marino -, o que ocorre é apenas a manutenção
da constância de certas relações entre elementos
sensoriais e motores, que foram transitoriamente
perturbados pela pressão externa, A relação in-
terna que se mantém, nesse caso, é relativamente
simples: é o equilíbrio entre a atividade sensorial
e o tônus muscular. Não é fácil explicar de modo
sucinto o que determina o equilíbrio do tônus
muscular em relação ao restante da atividade do
sistema nervoso. Contudo, em princípio todo
Fig.49 comportamento é uma visão externa da dança de
relações internas do organismo. Encontrar, em
História natural do sistema nervoso
cada caso, os mecanismos exatos de tais coerên-
da lerrJ - há um sistema nervoso tipica- cias neurais, é a tarefa que se abre ao investigador.
mente concentrado em grupo.-; cclu1::lres.
Estes assumem a forma de gânglios distri- _
a que dissemos mostra que o funcionamento
buídos de modo segmentar ao longo de do sistema nervoso é plenamente consistente com
todo o animal. mas são imerconectadus por sua participação numa unidade autônoma, na qual
um,l leve concentração c<::f,llica. Em outros
animais a concentrJç-J.o cefálica pode ser
todo estado de ativicktde leva a outro estado de
enorme, como se vê claramente na laguNa atividade nela mesma, dado que seu modo de
e, mais ainda, no homem. operar é circular, ou em clausura operacional.
O resultado disso é que o funcionamen-
Nos celenler.ldos como a hidra, o sistema to do sL~temanervoso se diversifica tremen- _. Portanto, por sua própria arquitetura, o sistema
nervoso está distribuído de modo unifor- damente, tom o aumento da variedade dos nervoso não viola, e sim enriquece, esse caráter
me por todo o organismo. O mesmo não modos de interações neuronais que traz
autônomo do ser vivo. Começam a tornar-se cla-
acontece com outros animais, como por consigo o crescimento da porçJo cef5lica.
exemplo os mamíferos. Há duas tendên~ É o que se vê em todas as linhagens de ros os modos pelos quais cada processo de co-
eias fundamentais na transformação do sis- veltebrJ.c!rn;,tefalópodes e insetos (Fig. 44). nhecer esrá necessariamente baseado no organis-
lema nervoso, na história dos seres vivos: Em outras palavras, esse aumento de mas-
1) a de reunir os neurônios num compani-
mo como uma unidade no fechamento operacio-
sa encefálica amplia enormemente as pos-
menta (cordão nervoso); 2 ) a de concen- sihilidades de plasticidade estrutural do or- nal de seu sistema nervoso. Daí se segue que
trar um volume neurunal maior na extre- ganismo, o que é fundamental para ,I ca- todo conhecer é fazer, como correlações sensó-
midade cefálica (cefalização). Assim, nos pacidade de aprt:ndizagem, tema sobre o ig. 49, Tamanho relativo da
animais segmentados - como os vermes qual voltaremos a falar adiante. orçào cefálica do sistema
rio-efetoras nos domínios de acoplamento estru-
,
'ervoso em v:írios animais, tural em que existe o sistema nclYOso.
• I J

lS6
A ÁRVORE DO CONHEClMI'.:'ITO
tA NERVOSO E COl'HECIMENTO 187
Mencionamos várias vezes que o sistema nervo- Plasticidade
5 0 está em contínua mudança estrutural, ou seja,
modificar dr.lsticamente o modo de operdr de
tem plasticidade. Na verdade, essa é uma dimen- grandes redes neuronais.
são fundamental de sua participaçào na consti- Imaginemos um exemplo. Tomamos a pata de
tuição do organismo. Com efeito, a presença dessa um rato e, localizando um dos músculos que acio-
plasticidade se traduz pelo fato de que o sistema nam os dedos, isolamos o nervo que desce da
nervoso, ao pal1icipar - por meio dos órgãos sen- medula espinhal e o inerva. A seguir, cortamos o
soriais e eEetores - no;.; domínios de interação do nervo e deixamos que o animal se recupere. De-
organismo que selecionam sua mudança estrutu- pois de um certo tempo o reabrimos e examina-
ral, participa também da deriva estrutur.J.l deste, mos o músculo. Veremos então que ele está
com conservação de sua adaptação. atrofiado, reduzido. No entanto, não fizemos ne-
Entretanto, a mudança estrutural do sistema nhuma alteração em sua alimentação e irrigação
nervoso normalmente não ocorre sob a forma de sanguínea. Só cortamos o tráfego elétrico e quí-
alterações radicais de Suas grandes linhas de co- mico que normalmente existe entre o músculo e
nexào. Em gemI, estas são invariantes e são habi- o nervo ao qual ele se conecta. Se deixarmos que
tualmente as mesmas em todos os indivíduos de o nervo cresça novamente e volte a inervar o
uma espécie. Entre o zigoto fecundado e o adul- músculo, este se recupemr.í e a atrofia desapare-
(o - no processo de desenvolvimento e dlferen- cerá. Outros experimentos revelam que algo pa-
ciaçj,o celular -, à medida que se multiplicam os recido acontece entre muitos (senão todos) os
neurônios vão se ramificando e se conectando, elementos neuronais que compôem o sistema
segundo uma arquitetura que é própria da espé- nervoso. O nível de atividade e o tráfego quími-
cie. O modo exato Como isso ocorre, mediante co entre duas células - nesse caso, uma muscular
processos de exclusiva determinaçào local, é um e um neurônio - modulam a eficácia e o modo
dos maiores e mais interessantes enigmas da bio- de interação que ocorre entre elas dur,mte sua
logia moderna. contínua mutação. Ao cortar o nervo, mostramos
Onde acontecem as mudanças estruturais, de maneira dramática esse dinamismo.
senão nas grandes linhas de conexão? A respos- A plasticidade do sistema nervoso se explica
ta é que elas não ocorrem nas conexões que porque os neurônios não estão conectados como
ligam grupos de neurônios, mas sim nas ca- se fossem fios com suas respectivas tomadas. Os
racterísticas locais dessas conexões. Ou seja, as pontos de interação entre as células constituem
modificações se dão no plano das ramificaçôes delicados equilíbrios din3micos, modulados por
finais e nas sinapses. Nesses lugares, as altera- um sem-número de elementos que desencadei-
ções moleculares resultam em mudanças na am mudanças estruturais locais. Estas são o resul-
eficácia das interações sinápticas, que podem tado da atividade dessas mesmas células, e tam-
bém de outras, cujos produtos viajam pela corrente
ISX A C OSHECIMENiO
Ál{\"()RE
[lO A i\EItVOSO f. CONHECIMENTO 189

o cérebro e o computador insetos, por exemplo, parece que a p1 3sticidade


é bem mais limitada, em parte por seu número
o sistema oen'oso tamlx'rn n,10 é re.
~resentacionista, porque em cada interação
menor de neurônios e seu tamanho reduzido. Por
e seu estado estrutur;l! que especifica quais isso, o fenômeno de mudança estrutural se mani-
as perturbações que s.ào possíveis, e que
festa com vigor entre os vertebrados c, em espe-
rnu~nças das podem desencadear em sua
drnalllJca de estados. Seria um erro, por. cial, entre os mamíferos. Dessa forma, coda
tanto, definir o sisrema nervoso como t<:,n_ interação, todo acoplamento, interfere no funcio-
do entradas ou saídas, no sentido tradicio-
namento do sistema nervoso, por c~usa das mu-
nal. Isso signilicaria quC' (:lis entr;lJas <:'S ;j.
idas tomariam parte na d<:,fini(,lo do sist<:'_ danças estruturais que nele desencadeia, Toda
É. inter~ssante nolar que a clausura operà-
('lOoal do sistema nervoso nos diz que ~u
ma, como acontet:e com o computador <:' experiência é modificadora, em especial em rela-
outras n1:Íljuinas produzidas pda eng<:,nha_
funcion<lmemo n~o cai em nenhum dos
ria, Fazer i.sso ê intciramerm." razO;lve! quan_
ção a nós, embora às vezes as mudanças não
extremos: nem () represent;]cionistl
nem o
d.o pr~jetamo.s uma máquina n:l qu,il o prin- sejam completamente visíveis.
Sülipsisla.
Cipal e saber como queremos interagir com Percebemos isso em relação ao comportamen-
O sisrema nervoso 0,10 ti soJipsista por-
ela. Mas o sistema nervoso (ou organismo)
que, como pane do org:mismo, partidp<l
niio foi projetado pur ningul'm: é o resul_ to. i'\:1 otemos, atualmente, um quadra nítido de
das interaçocs deste com o seu meio, que
tado da deriva filogenétíca de unid<ld",s quais são as mudanças estrutumis do sistema ner-
nele desencadein continuamente mudan-
c<:'ntnU;ls em sua própria dinâmica de es-
ças estrutur,lis que modulam sua dinâmica voso dos vertehrddos implicadas nessa plastici-
tados, Assim, o adequado é reconhecê_lo
de estados. De f:!(o, é fundamentalmente dade. Tampouco há uma descrição clara de como
corno uma unidade definida por suas rela_
por isso que nós, como observadores. le-
mo;; a impressão de que a.~condutas ani.
ções internas, nas quais :lS interações só essa constante especifiC:.l(!JIO
do modo de interaçào
atuam modubndo sua rJin:imicl. estrutura!
mais S;lO, em geral, adequada.s às SU,IS (ir- neuranal resulta em alterações bem definidas, que
isto é, como uma unidarJe dotada d~
cUllsràncias. Eles não se cOlllporrnrn como podemos ohservar na conduta. Mais uma vez, essa
dausur.l oper;lCional. Dito de outro m()(!o-
se estiwssem seguindo sua própria deter-
minação, indefl!;:'ndenlenwntc do meio. 1",';0
o sistf'ma nervoso não "capla informações~ circunstância constitui uma das áreas mais im-
do meio, (Orno frequentemente se diz. Ao
cxnrre assim, embora pnra o funcionamento
contrário, de constrói um mundo, ao es-
portantes da pesquisa neurobioJógica atual.
do sistema nel'\'OSo niio exista o fora nem i\"o entanto, quaisquer que sejam os mecanis-
pecificar quais (onfi~uraçocs do meio sào
o dentro, mas sim a manuten ••~io d", corre-
perturbações e que mud;mç:;JS es(,I.S de.st'n- mos exatos que intervêm neSS:1constante trans-
lações próprias que estào em contínua
cadejam no organismo. A metáfora 1:;10em
mudan~'a. "É o que acontt:ce com os instru_ formação microscópica da rede neuranal duran-
voga do L'ércbro como um comput;"<dor náo
mentos indicadort:s do SUblll:lrino do nos-
S0 exemplo.
só é ambígüa como est5 fr;lOcamente t:qui- te as interações do organismo, tais mudanças
vocada.
nunca podem ser localizadas nem vistas como
algo próprio de cada experiência. Ou seja, nào
podem jamais ser de (aI natureza que possamos
sanguíne~ e banham os neurônios. Tudo isso é encontrar "a" recordação de seu nome em algum
parte da dinâmica de interações do organismo lugar da cabe\-'a de um cachorro. Isso é impossí-
em seu meio.
vel, em primeiro lugar, porque as mudanças es-
Não se conhece sistema nervoso que n:l0 apre- truturais desencadeadas no sistema nentoso sào
sente algum grau de p1 3sticidade. "'1 1 s entre os necessariamente distribuídas como resultado de
[90 A ÁRVORE DO COSHECIMENTO ••. NERVOSO E COI'I-lEClMENTO 191
; !
modificações de atividade relativa numa rede mportamentos Dissemos e repetimos - para que não fosse es-
neuraoa\. Em segundo lugar, porque a conduta de tos e comporta- quecido - que todo compoJt."1mentoé um fenô-
responder a um nome é uma descrição feita por ntos aprendidos meno relaciona I que nós, como observadores,
um observador de certas ações resultantes de de- percebemos entre organismo e meio. Contudo, o
terminadas configurações sensório-motoras. E es- âmbito de condutas possíveis de um organismo é
tas, por força de seu funcionamento interno, impli- determinado por sua estrutura, já que é ela que
cam, num sentido estrito, todo o Sk<;tema nervoso. especifica seus domínios de imera\-""ào.P or isso,
A riqueza plástica do sistema nervoso não se cada vez que, nos organismos de uma mesma
~
deve a que ele guarda representações ou "engra- espécie, se desenvolvem certas estnJturas inde-
I:, mas" das coisas do mundo, mas à sua contínua pendentes das peculiaridades de suas histórias
transformação, que permanece congruente com de inteídçào, diz-se que tais estrutuí..lS estão ge.
as transformações do meio, como resultado de necicamente determinadas, e que os comporta-
cada inter.lção que o afeta. Do ponto de vista do mentos que elas possibilitam (caso ocorram) são
ohservador, isso é percebido como uma aprendi- instintivos. Quando, pouco depois de nascer, o
zagem adequada. Acontece, porém, que os bebê pressiona o peito de sua mãe e suga ma- °
neurônios, o organismo de que eles fazem parte milo, ele o faz independentemente de ter nasci-
e o meio em que este interage, funcionam reci- do de parto natural ou cesariana, ou de se veio
procamente como seletores de suas mm1:l.nças ao mundo num luxuoso hospital de Santiago ou
estnJturais correspondentes e se acoplam estnJ- no interior.
turalmente entre si. O funcionamento do orga- Ao contrário, se as estruturas que tornam pos~
nismo, incluindo o sistema nervoso, seleciona as síveis determinadas condutas nos membros de
mudanças estnJtumis que permitem que ele con~ uma espécie se desenvolvem somente se há uma
tinue a funcionar. Do contrário se desintegrará. história particular de interações, diz-se que as es-
Para um observador, o organismo parece mo- truturas são onlogenéticas e que as condutas são
ver-se adequadamente num meio mutante, e por aprendidas, Nossa menina-lobo do capítulo an-
isso ele fala em aprendizagem. Em seu modo de terior não teve as interações sociais que tom crian-
entender, as mudanÇ:l.s estruturais que ocorrem ça tem, e seu comportamento de correr sohre os
no sistema nervoso parecem corresponder às cir- dois pés, por exemplo, não se desenvolveu. Até
cunstâncias das interações do organismo. Para o em coisas aparentemente tão elementares como
funcionamento do sistema nervoso, porém, só correr, dependemos de um contexto humano, que
existe uma deriva estrutural contínua, que segue nos rodeia como o ar que respimffios.
o curso que, a cada instante, conserva o acopla. No[emos bem que as condutas inatas e as
mento estrutural (adaptação) do organismo a seu aprendidas são, na qualidade de comportamen-
meio de interações. to, indistinguíveis em sua natureza e realizaçào.
192 A ÁRVORE DO CONHEC[ME~to .••NERVOSO E CONHECI1I1E"''TO 1 93

A distinção está na história das estruturas que as No capítulo anterior, falamos de domínios com-
tornam possíveis. Port:.lnto, a possibilidade de portamenrais. Neste, examinamos os fundamen-
classificá-Ias como uma ou outra dependerá de tos da organização do sistema nervoso. Com isso,
termos Oll não acesso à história estrutural perti- movemo-nos mais e mais para perto dos fenô-
nente. No funcionamento presente do sistema menos que, no cotidiano, designamos como atos
nervoso não há tal distinção. de conhecimento. AgorJ. estamos em condições
, , É importante perceber que atualmente tende- de refinar nosso entendimento sohre o que signi-
mos a considerar ;] aprendizagem e a memória fica dizer que um ato é cognitivo.
---- como fenômenos de mudança de comportamen- Se pensarmos por um momento sobre o crité-
to que acontecem quando se "capta" ou quando rio que utilizamos para dizer que alguém tem
se recebe algo vindo do meio. Isso implica su- conhecimento, veremos que o que buscamos é
por que o sistema nervoso funciona com reprc- uma ação efetiva no domínio no qual se espera
sentaçôes. Vimos que essa suposição obscurece uma resposta. Isto é, espelJmos um comporta-
e complica muito o entendimento dos processos mento efetivo em algum contexto que assinala-
cognitivos. Tudo o que dissemos aponta para a mos ao fazer a pergunta. Assim, duas observa-
compreensão da aprendizagem como expressão ções do mesmo sujeito, sob as mesmas condi-
do acoplamento estrutural, que manterJ. sempre ções - mas feitas com perguntas diferentes -,
uma compatibilidade entre o funcion;tmento do podem atribuir diferentes valores cognitivos ao
organismo e o meio em que ele ocorre. Quando, que é vi<;tocomo o compollamemo desse sujeito.
como observadores, examinamos uma seqüên- Uma história da vida real ilustr.l claramente
cia de perturbaçôes compensadas pelo sistema esse ponto. Certa ocasião, num exame, foi pro-
nervoso de uma ou muitas maneiras possíveis, posto a um jovem estudante universitário o se-
parece-nos que ele internaliza algo do meio. Mas guinte: "Calcule a altura cL. torre da Universidade
já sabemos que fazer uma descrição como essa usando este altímetro". O estudante tomou o ins-
seria perder nossa contabilidade lógica. Seria trumemo e um barbante comprido, subiu à torre,
tratar algo que é útil à nossa comunicaçào entre amarrou o altímetro ao cordel e o deixou cair
observadores como um elemento operacional cuidadosamente até a base do edifício. Em segui-
do sistema nervoso. Descrever a aprendizagem da, mediu o comprimento do barbante: trinta
como uma intcrnalizaçào do meio confunde as metros e quarenta centímetros. No entanto, o pro-
coisas, porque sugere que na dinâmica estrutulJ! fessor considerou errada a resposta. O estudante
do sistema nervoso ocorrem fenômenos que só fez um pedido ao diretor de sua escola e conse-
existem no domínio de descrições de alguns or- guiu uma nova oportunidade. De novo o profes-
ganismos que - como os nossos - são capazes sor lhe disse: "Calcule a a!tur-J.da torre da Uni-
de linguagem. versidade com este altímetro". O jovem aluno
194 A ÁRV()R". "DO C O:-JHECIMENTO -\ NERVOSO E CONHECIMENTO 195

tomou o aparelho e foi aos jardins vizinhos à


torre, munido de um goniômetro. Colocando-se Conhecimento
a uma distância precisa dela, usou a longitude do
alamos em conhtx:llnento toda vez que observarnrn; um com-
altímetro para triangulá-la. Seu cálculo foi de trinta rtlmemo efetivo (ou adequado) num contexto assinalado.
metros e quinze centímetros. O professor mais Ou seja. num dominio que definimos com uma pergunta
uma vez disse que ele estava errado. Novo pedi- 'explicita ou implícita) que formulamoo como observadores.

do do estudante, nova oportunidade para proce-


der ao exame e, outra vez, o mesmo problema ...
-_. -
" O estudante utilizou seis procedimentos diferen-
tes para calcular a alturJ. da torre com o altíme- em t(x!as as formas particulares da cognição hu-
tro, sem usá-lo como altímetro. É evidente que, mana, teremos, natuf3.1mente, de descrever todos
dentro de um certo contexto de observação, o os processos específicos e concretos que ocor-
aluno revelou muito mais conhecimento do que rem na geração de cada um dos comportamen-
lhe era pedido. Mas no contexto da pergunta do tos humanos, em seus diferentes domínios de
professor seu conhecimento era inadequado. acoplamento estrutural. ParJ. tanto, seria neces-

I
Notemos bem, entào, que a avaliação de se há sário examinar de perto o funcionamento do sis-
ou não conhecimento ocorre sempre num con- tema nervoso humano, o que não é a intenção
texto relacional, no qual as mudanças estruturais deste livro.
que as perturbações desencadeiam num organis- Resumindo, o sistema nervoso partICipa dos
mo aparecem para o observador como um efeito fenômenos cognitivos de duas maneirdS comple-
sobre o ambiente. É em relação ao efeito espera- mentares. Elas têm a ver com seu modo específi-
do por ele que o observador avalia as mudanças co de funcionar como uma rede neuranal com
estruturais que são desencadeadas no organismo. clausura operacional que faz parte de um orga-
Sob esse ponto de vista, toda interação de um nismo mcmcelubr.
organismo, toda conduta observada, pode ser ava- A primeira - e mais óbvia - ocorre peb am-
liada por um observador como um ato cognitivo. pliação do domínio de estados possíveis do orga-
Da mesma maneira. o fato de viver - de conservar nismo, que surge da imensa diversidade de con-
ininterruptamente o acoplamento estrutural como figurações sensório-motoras que o sistema ner-
ser vivo - corresponde a conhecer no âmbito do voso pode permitir. Essa é a chave de sua partici-
existir. De modo aforístico: viver é conhecer (vi- pação no funcionamento do organismo.
ver é ação efetiva no existir como ser vivo). A seguneb se dá pela abertura do organismo
Em princípio, isso é suficiente para explicar a para novas dimensões de acoplamento estrutu-
participa~:ão do sislema nervoso em todas as di- ral, ao possibilitar que ele associe uma gmnde
mensôes cognitivas. No entanto, se quisermos diversidade de estados internos com a grande di-
compreender a participação do sistema nervoso versidade de interações em que pode participar.
..,
,
1 96 A ÁRVORE DO CO:-lHECIMEN10

A presença ou ausência de um sistema nervo-


so determina a descontinuidade que hi entre os
organismos cuja cognição é relativamente Jimila-
da, e os que são capazes uma diversidade em /

princípio sem limites, como o ser humano. Para


assinalar sua importância central, ao símbolo que
representa uma unidade autoroiética (celular ou
rnetacelular):

devemos agora acrescentar a presenÇd de um siste~


ma nervoso, que também funciona com clausura
operacional, mas como parte integrante do orga-
nismo. De modo abreviado, podemos ilustrá-lo
assim:

Quando, num organismo, existe um sistema


nervoso tão rico e vasto como o do homem, seus
domínios de interação permitem a geração de
novos fenômenos, ao possibilitar novas dimen-
sôes de acopl:.tmento estrutural. Foi isso, em últi-
ma análise, que tornou possíveis a linguagem c a
autoconsciência humanas. Esse é o terreno que
percorreremos nos próximos ctpítulos.
\

10 2
---I". ,u_nidade
1 orgilnluçao estrutura

L autoPoieseJ
(onhe<er o conhecer
I experiénda cotidiana
ética .I
fenômeno do conhecer fenome1nologia
I biol6gica
I!lCplicação
(ientifiu
I .I
observador

9 '<''' 3
domínios linguístioos fenômenos históricos
I I I ~j
,
linguagem conservação - varia~ão"1
consciência reflexiva ~eproduçãl :1
J
1
8
p,rt"~"Õ" j
fenômenos
I'.
fenômenos sociais
culturais
acopla~ento
estrutural
I.!
antol!!!!mil.;
I . I ~
unidades de terteira unidades de segunda ordem
ordem
clausura olperadonal i
1
7 5
atos cognitivos l filogenia
'O'''I''..!' i",~'
amplla~ão do
II 6 deriva
natural
história de ~
interações.

ner
comportamento - sistema
domínio de interações
I so con5e~açãO selJção"-
f
L da adjPtação-estritural

,,,ru""'l 1.
plasticidade contabilidjde lógica
determinação estrutural
representação I
salipsismo de
2 00 A ÁRVORE DO COl\'HECIMENTO •FE",ÓME:-lOS SOCWS 2 01

Consideremos uma situação completamente pa- é uma fenomenologia peculiar, da qual nos
ralela à do capítulo IV, a propósito da origem dos ocuparemos neste capítulo e nos seguintes. Tra-
metacelubres. Ou seja, em vez de examinar ape- ta-se da fenomenologia do.<;a coplamentos de ter-
nas um organismo com seu sistema nervoso, ceira ordem.

A esta altuíd de nossa exposição, não parece es-


tranho que tais acoplamentos possam ocorrer,
porque basicamente neles operam os mesmos
mecanismos que já discutimos, em relação à cons-
tituiçào de unidades autopoiéticas de segunda
vejamos o que acontece quando esse organismo ordem. De faca, uma vez originados os organis-
entr.l em acopl:.tmento estrutural com outros or- mos com sistema nervoso - se eles participam
ganismos. em interações recorrentes -, tais acoplamentos
acontecem com diferentes complexidades c esta-
bilidades, mas são o resulcado natural da con-
gruência de suas respectivas derivas ontogênicas.
Como é possível entender e analisar esses
acoplamentos de terceira ordem?
B em, em primeiro lugar é necessário perceber
que tais acoplamentos são absolutamente neces-
Como no caso das interaçôes celubres nos sários, em alguma medida, para a continuicL1.de
metacdularcs, é evidente que, do ponto de vista de uma linhagem nos organismos com reprodu-
da dinâmica interna de um organismo, o Qmro ção scxuada, já que ao menos os gametas devem
representa uma fonte de perturbações que são se encontmr e fundir-se. Além disso, em muitos
indistinguíveis das que provêm do meio ~inerte". dos animais que, necessitam de intercurso sexual
No entanto, é possível que essas interaçôes para a procriação, os filhotes precisam de algum
entre organismos adquiram, ao longo de sua 011- cuidado por parte dos pais. Desse modo, é co-
togenia, um caráter recorrente c, portanto, mum a ocorrência de algum grau de acopla-
que se estabeleça um acoplamento estrutural que mento componamental na geração e criação dos
permira a manutenção da individualidade de filhotes.
ambos, no prolongado devir de suas interações. Esse fenômeno é pmcicamente universal. Por
Quando esses acop!amenws acontecem entre isso, ocorre que os distintos grupos de animais
organismos com sistema nervoso, o resultado o apresentam com uma grande variedade de
202 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO FENÔMENOS SOCI. .••IS 2 03

formas específicas. Como humanos, criados numa americanos, por exemplo, o macho se acasala com
cultura patri:lrcal, tendemos a pensar que o natu- um harém de fêmeas fpoliginia), caeb. uma das
°
ral é que a fêmea cuide dos filhotes e m;lcho se quais põe um 0\"0 dentro de um buraco. Uma vez
encarregue J:.l proteção e do sustento. É de su- este cheio, o macho se incumbe de cuidar deles.
por que es.<;;limagem est;i parcialmente baseada Essa inclinação doméstica do macho se en-
no fato de que somos mamíferos, com períodos contra, em forma mista, em outra ave sul-ameri-
mais ou menos longos de bct;lÇào, nos quais a cana, a jaçanà. Nesse caso, a fêmea define um
cri;lnça permanece necess;lriameme ligada ri mãe. território mais ou menos vasto, onde prepara vá-
---- Não há nenhuma espécie de mamífero em que a rios ninhos e ao qual permite a entí..lda do mes-
amamentaçào seja responsabilidade do macho. mo número de machos (poliandrkü. Depois da
Contudo, essa divisão tão nítida de papéis está fertilização, deposita um ovo em cada um dos
longe de ser universal. Entre os pássaros, h5. uma ninhos e constrói mais um para si mesma, no
grande variedade. Em muit:ls aves, tanto o ma- qual deposita outro ovo. Dessa maneira, tanto
cho quanto a fêmea podem produzir no papo fêmeas quanto machos têm ° prazer de criar os
uma espécie de produto leitoso que é regurgitado passarinhos (Fig. 51).
para os filhotes. Além disso, nos avestruzes sul- Entre os pingüins ocon'e outra variapl0 ainda
mais notável. Para eles, conseguir alimento paíJ
os filhotes é aparentemente mais difícil e requer
a participação de ambos os pais. Como são cui-
dados, porém, os pequenos pingüins? É interes-
sante: alguns dos adultos do grupo permanecem
por perto e cuidam do conjunto, formando uma
verdadeira creche.
No caso do pei.xe espinhoso, chega-se a um
extremo. O macho constrói um ninho, seduz a
fêmea para que ela ponha nele os ovos e a seguir
a expulsa (Fig. 52 ). Uma vez sozinho, vai agitan-
do a cauda e fazendo com que a água que banha
os ovos circule até que estes se rompam. Em se-
guida, passa a cuidar dos peixinhos até que eles
se tornem independentes. Ou seja, nesse caso é
o macho que se encarrega das crias, e sua rela-
ção com a fêmea dum apenas o tempo necessá-
Fig. SI. J:lçan;l. rio à corte e à desova.
204 A ÁRVORE no CONHECIMENTO . FENOMEl>:OS SOCWS 205

Há outros exemplos, nos quais o extremo está sistema nervoso, a variedade possível é imensa.
do lado da fêmea, que tem a maior pane da res- Em conseqüência, a história natural resu1t3.num3.
ponsabilidade pelos filhotes. Poderíamos comi~ lista também muito variada. É necessário ter isso
nuar cicando muitos outros casos de maneiras de em mente, para compreender a dlnâmicl social
satisfazer o acoplamento obrigatório para a pro- humana como um fenômeno biológico.
criação e a criação. É evidemc que não h,í papéis
fixos. Tampouco os há nas sociedades huma-
nas, em que existem numerosos casos tanto de Embora pratícameme universais, os acoplamentos
poliandria quanto de poliginia, e nos quais a di- comportamentais sexuais e de cria\-'ào de filhotes
ViS;lO das tarefas de criação dos filhos varia de não são os únicos possíveis. Há muitas outras
um extremo a outro. Com efeito, já que esses formas de acoplamento comportamental que os
acoplamentos ocorrem com a presença de um incluem e vão muito além deles, ao específiclr,
entre os indivíduos de um grupo, coordenações
comport.1.mentais que podem durar a vida inteira.
O caso mais clássico e notável de um acopla~
mento tão estreito que engloba toda a omogenia
dos organismos participantes é o dos insetos so-
ciais. Esses animais compreendem muitas espé-
cies entre as várias ordens de insetos. Em muitos
deles se originaram, de modo paralelo, mecanis-
mos muito semelhantes de acoplamento. A', for-
migas, os cupins, as vespas e as abelhas são exem-
plos bem conhecidos de insetos sociais.
Na Fig. 53, por exemplo, vêem-se vários indi-
víduos que se encontram entre as formigas
Ollrmidneas, um dos grupos bem estudados. Ve-
mos que há uma grande variedade de formas entre
os indivíduos participantes, e sua morfologia é
diversa de acordo com as atividades que normal-
mente realizam. Assim, a maior parte dos indiví-
duos da Fig. 54 são fêmeas estéreis, que desem-
penham tarefas como coletar alimentos, defesa,
figo 52 . Monwmos do com-
cuidado dos ovos e manutenção do formigueiro.
purtamento de corte do pei-
Xl' cspinhuoo. Os machos ficam recolhidos ao interior, onde se
206 A ARVORE no CO:-JHF.C!.\IF.:<:TO 2 07

encontra a fêmea que geralmente é a única fértil, o mecanismo de acoplamento entre a maio-
a rainha (Fig. 53, g). É notável ver que lü fêmeas ria dos insetos sociais se faz por meio do inter-
com mandíbulas enormes, capazes de exercer dmbio de suhst:l11cias. É, pUl1amo, um acopla-
grande pressão. São muito maiores que as fê- mento químico. Estabelece-se um fluxo contínuo
meas oper.í.rbs (Fig. 53, e e f). /I. maior parte das de secreções entre os membros de uma colônia:
formigas de lima colônia como essa 1 1 30 tem ne- eles trocam conteúdos gástrkns cada vez que se
nhuma participação na reprexluçào, que está restri- encontram, como se pode constatar observando
ta à minha e aos machos. ElUretanto, todos os qualquer fila de formigas na cozinha. Desse con-
indivíduos de um formigueiro estão estreitamente tínuo interdmbio químico - chamado trofolaxe
acoplados em sua dinâmica estrutural fisiológica. (Fig. 5.i) -, resulta a distribuição, por toda a po-
pulação, de uma certa quantidade de substân-
cias, entre elas os hormônios responsáveis pela
diferenciação e especifkação de papéis. Assim, a
rainha só é rainha na medida em que é alimenta-
da de um certo modo, e não por hereditariedade.
B asta retirá-la de seu lugar, para que, de imedia-
to, o desequilíbrio hormonal produzido por sua
ausência resulte na alimentação diferencial de
algumas larvas, que se desenvolverão como rai-
nhas. Vale dizer: toda a ontogenia de um dado
indivíduo, como membro da unidade social, está
atrelada à sua contínua história de interações
trofoláticas seletivas. Estas, de modo dinâmico,
encaminham, mantêm ou modificam sua manei-
,..I particular de desenvolvimento.
Os processos e mecanismos detalhados da de-
terminação das castas, dos m{ xlos de cooperação
entre diferentes espécies, de organização territo-
rial, e muitos outros aspectos da vida dos insetos
Fig. 53. Diferentes morfolo-
sociais, têm motivado muitos estudos. S ~IOUllla
gi;IS nas <.:;ls(as lWs formigas
mirmidneas (Pbcidole klngl fonte sempre renovada de circunstâncias, que
iIlJlllbilis). Indivíduo.' da cas- revelam as formas mais inesperadas de acopla-
ta opeciria; de (a) a ([l. Arai.
mento estrutural entre esses organismos. No en-
nha ap;'rece em (g) e o m~.
cho em (h). tanto, em todas elas é evidente um grau de ligidez
2 08 A ÁRVORE DO CO"lHECIMENTO FENÓMENOS SOCL-\lS 2 09
\

Fig_ 54. Mecanismo e inflexibilidade. Talvez isso não deva surpreen-


de acopbmemu eo-
der-nos tanto, pois os insetos (como muitos ou-
tre os insetos sociais;
trurulaxe. tros invenebrados) estão essencialmente organi-
zados com hase numa armadura externa de
quitina. No incerior dessa armadura se inserem
os músculos que a movem. Essa arquitetura im-
plica uma limitação do tamanho máximo que esses
animais podem alcançar, e portanto o tamanho
de seu sistema nervoso. Nessas circunstâncias, os
insetos não se distinguem individualmente por
sua variedade componamental e capacidade de
aprendizagem. Por outro lado, os vertebrados têm
um esqueleto interno - no qual se inserem os
músculos - c são capazes, em princípio, de cres-
cimento prolongado. Assim, não têm uma limita-
çào t:io estreita de tamanho. Isso possibilita orga-
nismos maiores (mais células), com sistemas ner-
vosos maiores, o que por sua vez permite uma
maior diversidade de est:ados e, portanto, de com-
portamentos.

Imaginemos um rebanho de ungulados, como os


antílopes, que vivem em terrenos montanhosos.
Quem alguma vez tentou aproximar-se deles no-
tou que tão logo se chega a uns cem metros de
distância tooo o rebanho foge. Em geral, correm
até chegar a uma elevação maior, de onde vol-
tam a observar o estranho. No entanto, para pas-
sar de um cume a outro precisam percorrer um
vale, o que lhes impede a visão do visitanle. Aqui
se torna evidente um acoplamento social: o reba-
nho se move numa formaçào que tem à frente o
macho dominante, seguido das fêmeas e dos
2 10 A ARVORE DO CONHECL\IE:'<TO • FEN"ÔMfSOS SOCIAIS 2 11
\
filhotes. Na retaguarda V:lO os outros machos, um
dos quais fiel par.! tds, no cume mais próximo,
e mantém o estranho sob suas vistas enquanto os
demais descem. A<;'''iim que cheg:lnl a uma nova
e1cvaç::l0,de volta a juntar-se ao rebanho (Fig. 55).
Essa forma peculiar de comportamento, na qual
distintos animais cumprem papéis diferentes, per-
mite que os membros desses rebanhos se rela-
cionem em atividades que não lhes seriam possí-
veis como indivíduos isolados. O exemplo que
acabamos de ver se refere à fuga astuciosa, mas é
fácil encontrar exemplos do inverso. É o caso
dos lobOs, que também vivem em grupos, coor-
denando seus comportamentos por meio de mui-
tas imeraçoes olfativas, faciais e corporais, como
mostrar os dentes, abaixar as orelhas, mover e
abaLxar a cauda, como vemos nos cães domésti-
cos. Tal grupo, como unidade social, é capaz de I
perseguir, aco.ssar e matar um gigantesco alce (Fig.
56), façanha que nào estaria à altura de nenhum
Fi~, 55, A fuga como fenôme-
lobo isolado. no social entre os rervos. . 56. A GH,":l como fenôme- Entre esses vertebrados, vemos modos de
p social enue os lobos. inter.lçào fundameOlalmente visuais e auditivos,
que lhes permitem gerJ.r um novo domínio de
fenômenos que os indivíduos isolados não pode-
riam produzir. Nes(Cúltimo caso, parecem-se com
os insetos sociais, mas diferem deles pela maior
Oexibilidade dada por seu sistema nervoso e seu
acoplamento visual-auditivo.
No caso dos primatas, há situações essencbl-
m mente comparáveis. Por exemplo, entre os ba-
buínos que habitam as savanas africanas - e que
De Vore e K.R. H:JII. em têm sido minuciosamente estudados em seu com-
,
rimate Behat'ior, 11011,
portamento de grupo natur..1 1(muito diferente da
.~Jnharut, Winslon, NO",1
ork, 1965. pâgs. 2 ().5.3 conduta em cativeiro!) -, ocorre lima contínua
2 12 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO . 2 13

e múltipla interaçào gestual, postura I (visual) e

-_
tátil entre Iodos os indivíduos do grupo. Nesse
caso, o acoplamento intragrupal tende a estabe-
,
"..------- .••..,
..::--
lecer uma hierarquia de dominaçào entre os ma- / I "' ,,' o" \ ,
I I o' ~ 0'/'
chos. Essa hierarquia Cc a coesão do grupo) é
I
\0'0'0' ••.'
....
_-" _st,.
.•..
\
,
nítida quando observamos os animai.<; migrarem
I \
de um lUg'.lf para outro, ou enfrentar um preda-
dor como um leão. Assim, quando o grupo mi~
I
I (~H~\
.....
--
1---....•
9 f', 1
\ I o" o"
--- --_ ....•
\ \ ~9<1'9 ~9~9J
gra, os machos dominantes, as fêmeas e os filho- \ •••• '" ••••~~99 0"/ I
/
tes vão no <:entro; outros machos, adultos e jo- '.•._----------_ ..•.
vens, e as fêmeas, colocam-se estrategicamente 4.
3.
à frente e atrás (Fig. 57). Durante longas horas
do dia, os babuínos costumam brincar e catar
pulgas uns nos outros, mantendo uma contínua
interação. Nesses grupo.s, além disso, é possível :,58. Esquema compar.Jti- possível dá a cada grupo de babuínos um perftl
obselVar o que se pode chamar de temperamentos di.~!ribuição ue inuiví-
próprio. Cada indivíduo está continuamente ajus-
babuínos c chimpanzés.
individuais, que fazem de alguns babuínos indi- tando sua posição na rede de interações forma-
víduos irritadiços, outros sedutores, outros expio- das pelo grupo, segundo sua dinâmica particular,
fig. 57. Um grupo de
mdores etc. Toda essa diversidade componamental habuínos se desloca. que resulta de sua história de acoplamento estru-
turai grupal. Entretanto, mesmo com todas as di-
ferenças, há um estilo de organizar,.""ào
grupal dos
babuínos que se generaliza de bando a bando e
que, desse modo, reflete a linhagem filogenética
compartilhada por todos eles.
Diferentes grupos de primatas mostram mo-
dos e estilos de interação muito variados. As
hamadríades do norte da África são habitualmen-
te muito agressivas, e suas hierarquias de domi-
nação são muito rígidas. Por sua vez, os chim-
p;.\nzés têm uma organização gmpal muito mais
fluida e variável e criam grupos familiares exten-
sos, que permitem muita mohilidade individual
(Fig. 58). Assim, cada grupo de primat;.\s tem suas
1. 2. peculiaridades.
2 14 A ÁRVORE DO COI"HECr.\IE~TO
,
S FENÔ.\lEl'>OS SOCl>\.IS 2 15

Entendemos como fenômenos sociais os ligados Fenômenos sociais e instintivo ou :1 prendido das condutas sociais, po-
às unidades de terceir:l ordem. Apesar da varie- comunicação deremos também distinguir eIllre formas filoge-
dade de estilos de acoplamento que temos nos néticas e oIllogenéticas de comunicaçào. Assim,
esforçado para apresentar, é evidente que ,lO fa- o peculiar da comunicação não é que ela resulte
lar de fenômenos sociais referimo-nos ao que de um mecanismo distinto dos demais comporta-
acontece num tipo particular de unidades. A for- mentos, mas sim que ocorra no domfnio do aco-
ma como se realizam as unidades dessa classe plamento social. Isso vale rambém para nós, como
varia muito, desde os in.setosaté os ungulados ou descritores de nossa própria conduta social, cuja
os primatas. O que é comum a todas das ê que, complexidade não significa que nosso sistema
quando se estabelecem acoplamentos de terceira nervoso funcione de modo difereme.
ordem, as unidades resultantes, embora sej:1 mtr..lJl-
sit6rias, geram uma fenomenologia interna espe-
cífica. Essa fenomenologia se baseia no fato cultural Um belo caso de comunicação ontogênica é coti-
de que os organismos participantes satisfa- dianamente acessLvel no canto de certos pássa-
zem suas ontogenias individuais principal- ros, entre outros o papagaio e seus parentes pró-
mente por meio de seus acoplamentos mútu- ximos. Em geral esses animais vivem na selva
os, na rede de interações recíprocas que for- densa, em meio à qual não estão em contato vi-
mam ao constituir as unidades de terceira or- sual. Ness:ls condiçoes, é o seu canto que permi-
dem. Os mecanismos medi:mte os quais essa rede te o estabelecimento de um cas31 , por meio da
e as unidades que :l constituem se cst.lbelecem produç:io de um cantar comum. Por exemplo, a
\':1 riamem cada GISO, mas mantêm sua coesão. Fig. 59 mostra o espectrograma de duas aves afri-
Toda vez que hi um fenômeno social lü um canas. (Espectrografia é urna forma de captar o
acopbmento estrutural entre indivíduos. Portan- som e pó-lo no papel em duas dimens()es, como
to, como observadores podemos descrever uma uma notaçào musical contfnua). Olhando um
conduta de coordenação recíproca entre eles.
Entendemos como comunicação o desencadea-
mento mútuo de comportamentos coordenados
que se dá entre os membros de uma unidade
25 metros 10 metros 40em

J~~,~~
social. Dessa maneira, entendemos como comu-
nicação uma classe particular de condutas que Freqüência
acontece com ou sem a presença do sistema
I
nervoso, no funcionamento dos organismos nos I
o 0.5 o o.; o ,).5
sistemas sociais. Como acontece com todo com-
tempo (segund05)
portamento, se pudermos distinguir o caf;Íter
., 216 A ÁRVORE DO COt\HEClMENTO 2 17

espectrograma, parece que cada ave canta a me-


Fenômenos sociais
lodia completa .. '-'!as isso n;'io acontece: é possí-
"Entendemos como fenômenos sociais 01 5
vel mostrar que ela é na realidade um dueto, em
:~ligadol5à participação dos organismos na
que cada membro do casal constrói uma frase que ".constituiçãode unidades de terceira ordem.
ê continuada pelo outro. Tal melodia é peculiar a
cada casal e se torna específica durante a história
de seu acasalamento. Nesse caso (diferentemen-
te do que acontece em muitos outros pássaros),
essa comunicaçào, essa coordenação comporta- Comunicação
mental do canto, é claramente ontogênica. Como ohservadores, chamamos de comu-
nicativos os comportamentos que ocorrem
Com esse exemplo, queremos ressaltar que a
num acoptamemo social, e de comunica-
melodia específica de cada casal será única em ção à coordenação comportamenral que ob-
rebç;'io à sua história de acasalamento. Se tomar- servamos como resultado dela.

mos outro casal de avcs, observaremos que ele


especificou urna melodia diferente. Além disso,
quando desenvolverem comportamentos de as ilhas britânicas, de modo que em pouco tem-
acasalaçào, os filhotes de cada casal o far::l0pro- po todos os chapins haviam aprendido o truque
duzindo melodias diferentes das geradas por de como conseguir um bom desjejum.
seus pais. A melodia particular de cada casal li- Os vertebrados têm uma tendência essencial e
mita-se à dur.tçào da vida dos indivíduos quc a única: a imitação. Não é fácil dizer exatamente
compartilham. o que é a imitaç;'ioem termos de fisiologia nervo-
Essa situaç;'ioé bem diferente de outra condu- sa, mas ela é óbvia no que se refere ao compor-
ta, também claramente onrogênica, que podemos tamento. Por meio dessa constituiçào, o que co-
ilustrar com um caso registr3do na Inglaterr.t. Há meçou como uma conduta focal de alguns chapin.s
n;'io muitos anos, em Londres c vizinhanças, fo- azuis se espalhou rapidamente. Portanto, a imita-
ram introduzidas novas garrafas de leite cobertas ção permite que um certo modo de interação vá
por uma nna lâmina de alumínio, em vez de pa- além da ontogenia de um indivíduo e se mante-
pelão. Essa nova cobertura era suficientemente nha mais ou menos invariante através de ger::t-
delgada para .serfurada pelo bico de um pássaro. <,:àessucessivas. Se os filhotes dos chapins azuis
Assim, poucos dias depois da mudança algumas da Gd-B retanha não fossem capazes de imitar, o
aves, como os chapins azuis, apremlemm a per- hábito de comer a nata das garrafas de leite teria
furar ;lS embalagens e a .se alimenL"lrcom o cre- de ser inventado de novo a cada geraçào.
me sobrenadante. O interess3nte é que esse com- Outro caso famoso de permanência tr,lnsgera-
portamento se expandiu do foco central a todas cional social de um comportamento aprendido
2 18 t\ AR\'ORI'. DO CO: --lHECI.\IE~TO 2 19

A metáfora do tubo para a comunicação Altruísmo e egoísmo


, o estudu uos acoplamt'lllos oll1ogt'nicos en- dualista, na qual o tA'lldkio de um indiví-
NOSS;lex.posi(ão nos l",vou a concluir que lllunicado t' f;lZ p,lrle daqllilo qut' se des- Irt' os nrganisJllo~, e a valorizai,"áo ,k sua duo implica o preiuíw de outro. Do mntrá.
do punto ,k vista hiohígicn n010e.~ist","in- I(><:apelo conduto, F.stalllCx< habituados a grande universahdade e vari••ébde, apontam. rio, seria uma inconsist.:mü,
formação transmiticb" n,l ,'omunicac01n. nos lIm fenômeno próprio do social. Pode- Com ereito, ao longo destt" livro vimos
falar ,.b "infof[Jw,,'ão" contida numa ima_
': st" diz•.r qll" quando o antílope tka par;t ljue '1 existência do ser vivo na ueriva natu-
Existe (OrnUniC1çãocada vez 'lue há coor- gem, num objeto ou, de modo mab evi-
tr.b e se arnsca mai~ do que o.s outros ê o ral - tanto omogent'liC;l qualllo filugenéticl
Jt:'n,lç;jo compOr1,lIn",ntalnum dominio de dente, na p,davr.l impressa, _ n,10;lCOlllccena competi(ão e sim na COl1-
; grupo que st' L~neficia diret;rm••nte, e noio
,lCop!amento estrutur::ll. St"gundo nossa análise, essa mt'táfura é nc('essclriamentc dt", Também pode ser dito servaçáo da ,ldapt,lÇ01u.É um encontro indi-
F~~sacondusi\o só ~ du:x:antt" se n010 fundarnentallllt"nte faba, porque supf",' a que quando um:1 formiga oper:íria não se vidual com o meio qUt. r••sulta na sohrevi.
qU<,o'stinll..111l1OS
a mctáfOr::lmais comum P,U;I exbt.:n("Ía de uma unidade nãu estrutural- reprodu~. e, ",m vez dL"so, ocupa-se de con- vênci,l do apto. ;-';ós. como observauore,;,
a COll\lllli<,;;l<;01o,
'lue se populalizou com n1enlt" dt'tt"rmin,H.b n;l qual as interaçiies - St'guir alimento par; todas as crias do for- podelllo" mudar de nível de referência em
os as,;im chamados meios de comunica",jo. sáo instrutivas - C0l110se a'luilo que acon- migueiro, tr:ltl"se dc novo do grupo como nossa ob~ervaçào e consider:lr tamoém ;I
Tf:lt:l-se da Illt't;ífor;l do tubo, segundo a tece a um sí:;lema, durante uma interaçJ.o, hendiciado e n:lo dd:l diretam<:'nlt", unidade grupal de quc panil"ipam os inoiví-
qual a comunicaçào é al"o 'lue ,se produz fosse determinado pelo aRente perturb~- Tudo acontece como se houvesse um duo,s. P:tra esla, em sua dinâmica como uni-
num ponto, é I",vado por um conduto (ou equilnltiO entre a manutençào <' a subsisten- dade, a conservaçào da "dapl,H,ãu é tam-
dor e nào pda din;muca t"strurural desse
da individual. e a manuten,,'ão e a suhsis- bétll necessariamente válida em seu domi.
tubo) e ~ entregue no outro extrt'mo. o sistema. Mas é ,'vidente, no próprio emi.
tência do grupo como unidade mais ampla, nio dt" esiSlênçia. I'ar.l o grupo como uni-
receptor. Portanto, há um algo qtle (' co- di,I[I.O,que a l'omlmicII;ão nào acontcÇ<;o' dade, os compont"ntt"s individuais sáo irrc-
que cngloba o indil'Íduo, De fato, na detiv,l
a,;.sim;Gld:l pessoa diz o que diz ou ouve n:ltur:11se conseRue um equilibrio entr•• o Ic"Jntcs e todos eles ,;ào, em princípio, subs-
o qut" ouvt" st"gunélo su;r prlipria detenni- indiviuual e o ('olerivo, na medida em 'lue tituíveis por outros 'lu<.-possam cumprir as
naçào estrutural. Da perspe'-1iv:1d•• um ob- os org,lIliSllloS-:lO acoplar-se estruturalmen- mesmas rdaçÜt:'s. Por outro lado, parJ. o~
serv;Idor, ~••mpre há ambigüidades numa te em unidades de ordem .~uperior(que têm componentes corno ~ert's vivos, a individua-
intel:H,Jo comunicativa. O fenômeno da co-- seu prliprio domínio d•. t'xÍ,otê"cial- incluem lidade é sua condiçào o•• t'xistênria. É im-
mUniC;I(àon,lo dt"pt'nlk ébquilo que se en- a l11anutençáo des.sas estnlluras na dinúmi- pon;mte náo confundir esses dois lliveis
trega, mas do que ;Icontece com o recep- ca de SlIa própria manul ••nç;lo. fenomênicos par::la pk-n.l { "omprt'ens30dos
Os ctólogo,; dl:ll11aramde -"ltnlíst:ls" as fenômenn, sociais. O componalllento do
tor. F. is.so é um assuntu muito di[ert"nte de
ações <.j"epodem ser descritas como tendu antllope, ao I1caratr.h, tt'm a ver <.-""Ulll
a con-
'lransmitir iruormaçào-.
I efeitos hcndko~ sobre o coletivo, escolhen- s"f\'a,'oio do grupo e expressa Glrat"terbti-
I do assim um termo que ""voca uma forma cas própri,ls desses animais em seu acopla-
I ue comportamento humano Glrregada de mento grupa!, na medida em que o grupo
conola.(ôeS éticas. Isso aconteceu r,llvez existe como unidJ.,k, Ao meSlllO 1empo,
regi~trou-se nos estudos clt: prim~ltasfeitos num ..
,
'
IXJl"'lueeks adquirir;rll, vind" do século 19,
a idéi:l de que :l naturt"~,a<,rJ."vermdh" nos
porém. cs~a conduta altruísta cm rda,,'01oOi
lll1idadt" grupal se re,lliz,l no antílope indi-
arquipé~lagodo )ap:l0, onde se conSt'[va uma re- dentes e n,l~ garras", como disse um nm- viduai, como resultado de seu acoplamento
temporâneo de Dar.vill .. "Iuiras vez••s 0\1- cstrulur:ll num meio que inclui o grupo. Ex-
serva de macacos que foram detallucbmente es- pressa, a~sím, a con~<:rvaçJode sua adapta-
vimos que a~proposta.s de [);Jrv,:intêm a wr
tucbdo.s (Fig. (0). Como parte elo estudo, os pes- Ulm a lei ,11selva, Cllb um nlith de seus pn'>- ,,"àocomo inr1í\'iduo, l'ort,Hllu, noio há <,on"
pri(~Sintercss(o's,de modo egoísta e às CUSt:IS trJdíç010no componamelllo do antílope. na
quisadores colocaram batatas e trigo na prai:J. medid,l em que ele ~t"realiza, em sua imli-
dos dt"m:lis, lluma implaeívd comp<.'ti,'ão.
Dessa maneira, os macacos, que normalmente F.s.sa\.isào do anim:l1çomo llfTlser egoís- vidu:lIidade, como membro do grupo: é "al-
ta é dtlplarnente fakL Em primeiro lug:lr, tnlistiGlmt"nt",-eRoísta e "egoistiGlmentt""al-
habitam a st'iva adjacente ao mar, iam para ;IS truisla, Ix)r'lut. su" realiz:lçJo individual in-
porqut:' a históri;r n;rtur:ll nos diz que noioé
praias onde se tornavam lluis visíveis. Com o assim, seja por onde for que" olhemos, As clui sua penen,,':l, em relação ao grupo que
passar do tempo eles se familiarizaram cada \ez insláncias de ("omponamento qut' p<xiemser inlegr.l.
de.scritas ('OTllO,\ltruí~tas sáo ljllase uni'cer" Todas t"SS,ISnmsiderai,'Õt's S,-IOt:lmbém
mais com o mar t' assim foram mudando cle ~ais, Em ~egundo lllgar, essa idéia é Elisa dhua~ P;Jr.1o domíniu humano, embor::lmo-
Ix)rque os meGlflismos 'lllC p<:xlell1ser pos- difi(;ldas segundo ,IS car;Kterísti,.as d';l lin-
COlllpol1 amcnto,L'ma elas obst'n':II,;ôesfeitas ao
o s. Kawanlur:I,). ~rim(ll," tulados p;rr;1 t'ntender a deriv,l animal n;1o guagem como mudo de acoplamento social
longo des~as modific:l(;àes foi que um:l fêmea 2 "1 .\ 1 9~9. requerem, em "bSOllIto, essa vi.sào indivi- do,'; seres humanos, como \'eremo,s adi,lIlte.
110 1\ A.RV()I{E DO COSHECL\lE:-nO FF.SÓMFl\OS SnCL\IS 221

Organismos e sociedades ,i
Os organismo:>e as sociedldes penencem ã priedades das célubs que o compõem. A ~:cional kompol1 amental) desse siSlema. Os mento em meio a ele. isso ocorre numa con-
m~sma classe d~ rnel:lssisternas formados estabilidade genélica e ontogenélica dos pro- lorganismos reqr.erl:'m um acoplamento es- tinua aprendizagem social, que é definida
reLi agreg:lçlo de unidades autônomas. que cessos celulares que constituem (} I;0l"í<anis_ ,.. trutural nào-Iing(jí.stir.:oentre seus compo- por seu próprio funcionamento social (lin-
podem ser celulares ou metaceluLires. O ob- mos de cada espécie - e l:unbém a existl,tl_ ,.pentes: os sistemas sociais exigem compo- ,I1 ;übtico),e que é possível gra';as aos pro-
servador pode distinguir os diferentes me, Ci:lde processos urg;tnicos que podem eli_ .. 'nentes <lcopladosestruturalmente em uomí- cessos gent'ücos e ontog~'nicos que penni-
tassistemas membros dessa classe pelos di- minar as célubs que saem ,b norma _ mos_ Ílio~lingüislicos. nos 'luais eles (os compo- tem sua plasticidade estrutur.tl.
versos gf;jUS de autonomia que percebe tram que é assim que as coisas a{ 'onte{ 'em, nentes) possam oper~r com a linguagem e Org;mbmos e sístemas sociais humanos
como possívcis em sellS componentes. As- Nos sistemas soci<lishumanos o quadro ~er obsen'adores, Em conseqüênt"Ía. para o sào. pois, casos 0poslos na série de metas-
sim, se ele os ordena em s<'rie, segundo o é diferenle. Como comunidades humanas funcion,lrnento de um organismo o ponto sistemas formados pela awega~'ã<Jde siste_
grau em que sel,l.';r.:omponemcsdc-pendem eles taml"lt'mtêm clausura operacional, que çentr~l é ek próprio - e disso resulta a res- ma~celulares de qualquer ordem. Entre eles
- na sua reaJiz.aç;'locomo unid;jdes autôno- ocorre no acoplamento eSlnlturaI de seus trição d,lS propriedades de seus componcn- estão - além de diversos tipos de sistema,';
mas - de sua p,micipaçào no mela$sislema componentes, No ent;tnto, os sisremas so- tesoJá para a operaçào de um sis!Cmasocial ~ociais formados por OUtrosanimais _ cer-
qlle integram. m organi~mos e (} I;sistemas ciais humanos tamhém existem como uni- humano, o ponto central é o domínio Iin- las Çomlllliuadl's humanas. Por incorporar
sociais humanos se colocado nos extremos d:ldes para seus componente.s no domínio guístico ger.ldo por seus componentes e a mecanismos coercitivos de est<lbilizaçãoa
opostos da sáie. Os organismos seriam da linguagem, A identidade dos sistemas so- amplial,;;lOdas propriedades destes. Essa con- todas :lS dimensões do comportamento de
metassistemas com componentes de auto- ciais humanos depende, pol1 anto, da con_ dição é necessária para a reali7.açãoda lin- St:'USmembros, tais comunidades { 'onstitu_
nomia mínima, ou seja. com componentes servar;ão da :ldaptação dos seres humanos guagem, que conSlilrliseu domínio de ('xis- em siSlem:ls s(xiais humanos desvil1 uados,
de muito [Xluca ou nenhuma dimens;to de nào apenas como organismos -num sf'ntido , "tênria. O organismo reslringe a criativid:lde que rerderam suas car:lu<:,risticasespecífi-
existência independenre. J:l as sociedades geral-o mas também como componentes dos individual das unidades que o imegram, pois GlSe despcrsonaliz;lram seus r.:omponentes.
humanas seriam metassisremas com campo- domínios lingüísticos que eles constituem, ie5tas existem para cle; o siSlema social hu- Assumir.tlll, assim, a forma de organismos,
nem~s de autonomia máxima, isto é, com Pois bem: por estar as~ot"Íadaa serls com- mano amplia a criativid:ldeindividual de seus (;omo foi o caso de Esparta. Organislllos e
componentes de muitas dimensões de exis-
>
portamentos lingüísticos, a história evolutiva componentes, poi~esta existe P:lr.l eles. sislema.ssoci:lÍs humano$ n,ío podem, pois,
tência indepcndenlt". A~sociedades forma- do homem é uma hiMória na qU<llS t:'sete- A cocrência e a harmoni:l nas relaçOeSe t:f.juipar..lr-sesem distorcer O" negar as ca-
das por outros metarelubres, como as de cionou a pbsticid<lde compor1 :lmental on- inter.tçÓ<:'sdos componentes de cada orga- racterísticas próprias de seus respectivos
insetos, ficariamsituadas em diferentes pon- togênica que lorna pos~ívd O.Sdomínios nismo t'.spccífícose develll, em seu desen- { 'omponentes
tos intemlt'di:írios. : \0 emanro, ,lS dikren- lingüísticos - e na qu:t1 <l cOIlSt:'n<lçi:io
da , ;~,volvimenloindividual, a fatores gt'nt'tims e Qualquer an;iJise da fenomenulogia ~o-
ps entre es,;.cs diversos metassistemas s;m adaptação do ser humano como organismo ontogênicos que dt'mucam a plaslicidadt' ('ial hllmana 'lue não leve em conta as con-
opel"<lcionais.Dadas algumas transformaçàes requer que de funcione ness••s dominio~c . eSlrunlral de s.eus componentes. A u)erên- sideraçoes acima será deficienre. porque
nas resp<;'L1 i\'as
dinámit'as internas c de re- conserve t'.SS;.plasticid,lde, Dessa maneira, tia e a hamlonia n,IS rd:,,!;õe.~e interaçàes neg;lr.i os fundalllt'lllos biológicos dessa fe-
Iaçào, eles podem desloGlr-sc em urna ou assim como a ex;"têneia de um org:lllismo dos integr.mtes de um sistema s<xiai devem- nomenologia.
em outra direção (Llsérie. Vejamos agora as r~><luera eSl;l.bilidade operacional de St:'us . se il.coert-ncia e à h"rmonia de seu cl"('sci-
difcrenr,;;lsentre os org,lI1 ismos e os siste- l'omponenles, a exiSlt-ncia de um sistema
mas sociais humanos. s(x"Í;l1humano exige a plasticidade opera-
Na qualid:Ide de sistemas metacdulares,
os or~anismüs tem cbusura orlt"racional,que
acontece no acoplamento estrutural das cé-
lulas que os compàem. Na ürgani7~H;àode
um org:tnismo, o central está em Miamanei- _~I~
ra de ser unidade num meio em 'lue deve
funcion,lr { 'Olllpropriedades estáveis que lhe AutonOllliJ
permitam conservar sua adaplação nde, Org;mismos Insetos sociais EsparU Sociedades máxima dos
quaisquer que sej,lma$ propriedl,leS de seus Iiurn:m,l' t"omponenres
componenres. t\ conseqüência evolutiva fun-
dament;tl dessa circunsl:Ínci:1é que a con-
s"rva(;ão d,l :j(.lapl;l\,,~1dos
0 organismos de
uma dderminalLt linhagem sc!ecion,l, de
modo recorrente. a estabilização das pro-
222 A ÁRVORE DO COSHEClMENTO 223

••• ...~ Fig 60. M'lGI~.O do J:!pão laVa


su~s batatas.
ilha. Os mais n-:'Ihoseram sempre os mais lentos
para adquirir a nova forma de comportamento.
Chamaremos de condutas culnu ...• J.is as confi-
Conduta cultural
gurações comportamentais que, adquiridas onto-
geneticamente na din5.mica comunicativa de um
Entendemos por meio .social,sào estáveis a(r.lvés de ger.lçôes. Esse
condut:l culrurnl
a estabilid~de nome não deve surpreender, porque se refere
tron.,ger.lcional de precisamente a todo o conjunto de interaçües
conFiguroçc)cs
comunicativ:1 Sde determina~.ão olltogenética que
compoctamentais
, onlogenetic~mcnle permitem uma certa invariância na história de um
• 'ndquifid~s na dinâmica gmpo, ultrapassando a história particular dos in-
comunicativa de um
meio social.
divíduos participantes. A imitação e a contínua
selcçüo comportamental intragrupal desempe-
nham aqui um papel essencial, na medida em
que tornam possível o estabelecimento do aco-
plamento dos jovens com os adultos, por meio
do qual é especificad:l uma certa ontogenia, que
se expressa no fenômeno cultural. Assim. a con-
inteligente, chamada Imo, um dia descobriu que duta cultuml n30 representa uma forma essen-
podia lavar as batatas na água, removendo delas cialmente distinta em relaçào ao mecanismo que
a areia que as tornava incômodas para comer. a possibilita. O cultural é um fenômeno que se
Em questJ.o de dias, os outros macacos, em espe- viabiliza como um caso particular de comporta-
cial os jovens, passaram a imitá-Ia e lavavam suas mento comunic:ltivo.
batatas. Em pouco meses, esse novo comporta-
mento se estendeu a todas as colônias adjacemes.
Imo revelou-se uma maL'aC]verd:J.deiramente
brilhante, porque alguns meses depob de ter in-
ventado a lavagem das batat;!,'; criou outra con-
duta, que consistia em tomar o trigo lllistUr.ldo
com a areia - e portanto difícil de comer -, mer-
gulhá-lo no mar, deixar que a areia c::.lísseno
fundo e recolhê-lo, j:í limpo, i superfície. Essa
segunda im'ençào de Imo, assim como a ::.Inte-
rior, expandiu-se gr.\dualmente pelas colônias da

10 2
~u.nidade
DOMíNIOS LINGüíSTICOS E
conhecer o conhecer 1 organlzaçao estrutura CONSCIÊNCIA HUMANA
I
ética experiência
I
cotidiana
L autoPoieseJ
fenõmeno do conhecer
fenome~ologia
I biológica
explicação
. =-- científica
[ observador

9 açà!
3
domlnios linguisticos
fenômenos históricos
. I
linguagem
I conse~ação - vJriação
consciência reflexiva
!eProdUÇãJ

8 4
fi fenô~enot tult~rais
penurbações

fenomenos SOCIaIS racoPla~ento


estrutural
1.
ontrgenla
unidades ~e terceira
ordem liunidadels de segunda ordem

clausura olperacional

7 5
atos cognitivos '
r filogenia
correlaçõjs
I
intern<Js~ 6 deriva história de
ampliação do natural interações
<omT",m,",o - ::'~':~~
L
dominio de interações
conselação selJção
da adaptação-estrutural
plasticidade contabilidjde lógJa I I

"""'""'l
determinação estrutut<J!
representação I
solipsismo
228
A ÁRVORE DO COKHEClMF.NIQ
OMINIOS Li:-lGüisncos E CONSCIÊNCIA HU~Lo\NA
229
o gato de um amigo nosso o acordava todas as
fTh1.ohãsao nascer do sol, caminhando sobre o mente na realização de suas respectivas autopoie-
piano. Se esse amigo se levantava, encontrava~o ses. Dissemos que os comportamentos que ocor-
junto à porta que dava para o jardim para que ele rem nesses domínios de acoplamentos sociais são
a abrisse, e então saía, muito contente. Se o nos- comunicativos e podem ser inatos ou adquiridos.
so amigo não se levantasse, o gato voltava a an- Para nós, como observadores, o estabelecimento
dar sobre o teclado, produzindo um ruído não ontogênico de um domínio de condutas comuni-
muito harmonioso. cativas pode ser descrito como o estabelecimen-
Seria perfeitamente natural descrever o com- to de um domínio de comportamentos coorde-
portamento desse gato como se ele "significasse" nados associáveis a termos semânticos. Isto é,
o descjo de que seu dono o deixasse sair para o como se o determinante da coordenação com-
jardim. Isso corresponderia a fazer lima descri- portamental assim produzida fosse o significado
ção semântica dos comportamentos de nosso do que o observador pode ver nas condutas, e
amigo e de seu gato. No entanto, sabemos tam- não no acoplamento estrutural dos participames.
bém que as interações deles só ocorreram como É essa qualidade dos comportamentos comuni-
um desencadealllcnto mútuo de mudanças de cativos ontogênicos - de poderem aparecer
estado, segundo suas respectivas determinações como semânticos para um observador - que trata
estruturais. Trata-se de uma nova ocasiào pam cada elemento comportamental como se fosse
manter a clareza da nossa contabilidade lógica e uma palavra que pennite relacionar essas condu-
poder caminhar sobre o fio da navalha, fazcndo tas à linguagem humana. É tal condição que res.
a diferença entre o modo de operar de um orga- saltamos, ao designar essa espécie de classe de
nismo e a descrição de seus compol1amentos. condutas como constituintes de um domínio
Sem dúvida, há muitas circunstâncias, como a lingüístico que se forma entre os organismos
do nosso amigo, em que podemos aplicar uma participantes.
descrição semântica a um fenômeno social. Isso se O leitor não precisa de exemplos de domínios
faz freqüentemente como um recurso literário ou lingüísticos. Vimos vários deles no capítulo ante-
metafórico, que torna a situação compar.:í.vela uma rior. Mas não os assinalamos dessa maneira, por-
interação lingüística humana, como nas fábulas. que o tema era o social em geral. Por exemplo, o
Tal circunstância requer um exame mais preciso. cantar em dueto é um exemplo elegante de in-
terdçào lingüística. Um bom exercício para o lei-
tor será voltar atr.:í.se rever o capítulo anterior, com
No último capí[ul0, vimos que dois ou mais orga- o olhar disposto a descobrir quais dos comporta-
Descrições
nismos, ao intcragir de modo recorrente, gerdm mentos comunicativos ali descritos podem ser tra-
semânticas
um acoplamento no qual se envolvem reciproca- tados como lingüísticos, e verificar como neles
surge a possibilidade de descrições semânticas.
2 Jl
230 A ÁRVORE DO CO~HECL\lF"T .. , O

Notemos que a escollu dessa designação - Domínío lingüístico


como o termo "ato cognitivo", que vimos anle~
roda vez que um observador descreve os condu las condUlas
riormente - não é arbitrária. Equivale a afirmar
~COlllportamentosde inler:Jçàode organis- ontogênicas comunicativas
que os compOl1 amentos lingüísticos humanos silo, " mos como se o significado que ele acre-
de fato, condutas que ocorrem num domínio de I dila que essas condutas t<?mpara os parti-
acoplamento estrutural onrogênico que nós, se- " cipanles determinassem o ,-~rso dc lais
\1 interações, cle faz uma descriç:'ioem ter-
res humanos, estabelecen1 0s e mantemos como t mo.>semânticos.
resultado de nossas ontogenias coletivas. Em ou- Chamamu~ de llnWiístiea uma con-
., Juta cumunicalÍV'Jontogênica, ou seja, um
tros termos, quando descrevemos as palavras
comportamento que ocorre num acopla-
como designadoras de objetos ou situações no memo eSlru!UrJl ontogênico entre orga- condutas
mundo, fazemos, como obsen'adores, lima des- nislllos, e que pode ser desCTiIOem ter- lingüísticas
IllOSsemântico.>pur um observadur.
cri~'ão de um acoplamento estrutural que não re- 1 Chamamos de domínio lingüistico
nete o funcionamento do sistema nervoso, pois ," de um org:mismo au âmbito de todos os
este não funciona com representações de mundo. : - seus comportamentos lingüísticos. Os
, domínios lingüísticos são em geral variá-
Em contraste, as condutas comunicativas ins- veis, c mudam ao longo r.\:JsOn!ogenias
tintivas - cuja estabilidade depende da estabili- dos organi~mos que O~produzem.
dade genética da espécie, e não da culcural- não
consticuem, de acordo com o que dissemos, um
domínio lingüístico. Isso acontece justamente
porque as condutas lingüís!lcas são a expressão entre os organismos, as recorrências de intera-
de um acoplamento estrutural omogênico. t\ cha~ ções que levam a uma coordenação comporta-
mada "linguagem" das abelhas, por exemplo, mio mental, podem ser inúmeros ("mesa", /{Ihle, Tafe{).
é uma linguagem, mas um caso misto de com- O que importa é como suas estruturas acolhem
portamento instintivo c lingüístico. Trata-se de essas intcraçôes e não os próprios modos de
uma coorden:lçào comportamental fundamental- interaçào. Se n:1 o fosse assim, os surdo-mudos
mente filogenética, que apresenta algumas varia- não teriam linguagem, por exemplo. Trata-se, efe-
çoes grupais, ou "dialetos", de determinação on- tivamente, de uma deriva cultural, na qual- como
togênica. na deriva filogenética dos seres vivos - não há
Por esse 5ngulo, o caráter aparentemente tào um desenho, e sim um arcabouço ael boc, que
arbitrário dos termos semânticos (existe alguma vai sendo constituído com o que se dispoe a cada
reial,;ào entre a palavr.l "mesa" e o ohjeto mesa?) momento.
é algo totalmente previsível e consistente com o Com es..'iasdeterminações in mentó", se obser-
mecanismo subjacente ao acoplamento es(rutu- varmos a história natural veremos que embora o
ral. Com efdto, os modos como se estabelecem, homem não seja o único possuidor de um dominio
2 32 A ARVORE DO CONIIE.CI.\IENTO O~lí",!os LíSG('isTICOS E CO",SCIENCIA HU.IA:-J,\ 2 33

elementos do domínio COlllumentre seres huma-


A linguagem nos, sejam objetos, estados de ãnimo, intençôes
Operamm na linguagem quando um ohserva- e assim por diante. Em si essa condição nào é
dor percebe que temos como objetos de nos- peculiar ao homem, embora sua variedade de
sas distinções lingüísticas elementos do nOMO
termos semfmticos seja muito maior do que a
domínio lingüístiço.
dos outros animais. O fundamental, no caso do
homem, é que o observador percebe que as des-
crições podem ser feitas traL'lndo outras des-
crições como se fossem objetos ou elemen-
lingüístico, este é muito mais abrangente no ser tos do dominio de interações. Ou seja, o pró-
humano e inclui bem mais dimensôes de sua vida prio domínio lingüístico passa a ser parte do meio
do que ocorre com qualquer outro animal. de possíveis interações. Somente quando se
Não faz parte da intenção deste livro discutir produz essa reflexão lingüistica exi<;;telingua-
em profundidade (Ociasas muitas dimensões da gem, o observador surge e os organismos parti-
linguagem humana, o que por si só geraria outro cipantes de um domínio lingüístico passam a fun-
volume. No emanto, para nossos propósitos po- cionar num domínio semântico. Do mesmo modo,
demos identificar a caf:.lcterística-ch;lVeda lingua- é só quando isso acontece que o domínio se-
gem, que modifica de maneira tào radical os do- mflOticopassa a ser parte do meio no qual os que
mínios comportamentais humanos. po . ;;sibiliran- nele operam conservam sua ad;lpt3ç:1 0.Isso acon-
do novos fenômenos, como a reflexão e a cons- tece a nós, humanos; existimos em nosso funcio-
ciência. E.ssa característica é que a linguagem namento na linguagem, e conservamos nossa
permite, a quem funciona nela, descrever a si adaptação no domínio de significados que isso
mesmo e ti SU:I circunstância. É a esse respeito faz surgir. Fazemos descrições das descrições que
que falaremos neste capítulo. fazemos ... (como o faz esta ff3se)... Somos obser-
Ao observar o comportamento de outros ani- vadores e existimos num domínio semântico cria-
mais (humanos ou niio) num domínio lingüísti- do pelo nosso m(xlo lingüístico de operar.
co, vimos que nós, como observadores, pode- Nos insetos, como já vimos, a coesão da UOl-
mos tratar suas intera\~ôes de maneim semântica, dade social é proporcionaua por uma interaçào
como se elas assinalassem ou denotassem algo química, a trofolaxe. Entre nós, humanos, a "tro-
do meio. Ou seja, num domínio lingüístico pode- folaxe" social é : l linguagem, que faz com que
mos sempre tr.ltar a situaçào como se estivésse- existamos num mundo sempre aberto de inte-
mos fazendo um:l descriç;1 0do meio comum aos rações lingüísticas recorrentes, Quando se tem
organismos em intcraçiio. No caso humano, para unu linguagem, não há limites para o que é pos-
o observador as pal:.lvras em ger:l! denotam sível descrever, imaginar, relacionar. A linguagem
2 34 A ÁRVORE DO CO~HEC1MENTO 235

peflneia, de mexia absoluto, toda a nossa ontoge-


nia como indivíduos, desde o modo de andar e a
postura até a política. Contudo, antes de exami-
nar em profundidade essas conseqüências da lin-
guagem, vejamos primeiro como foi possível o
seu aparecimento n:1deriva ruuural do."is eres vivos.

Durante muitos anos, existiu em nossa cultura História natural da


um dogma de que a linguagem era absoluta e linguagem humana
exclusivamente um privilégio humano, a anos- Fig. 62 . o Amesbn nãu ê un13
luz de distância da capacidade de outros animais. linguagem fonétic~ t: ~im
"ideográfica". Aqui. o gorib
Em tempos mais recentes, essa idéia começou a Kuko aprendt: () ge~lo corres-
abrandar-se de um modo notável. Em parte, isso pondente ,I "m;Íquina-.
se deve a estudos cada vez mais numerosos sobre
a vida animal, que revelam em algumas espécies - os Gardner - pensou que o problema podia
- como os macacos e os golfinhos - possibilidades estar não na capacidade lingüística do animal,
muito mais ricas que as que nos sentíamos incli- mas no faro de que suas habilidades não eram
nados a reconhecer neles. Mas, sem dúvida, o vocais e sim gestuais, o que é proverhial nos
que mais contribuiu para esse abrandamento foi macacos. Dessa maneira, decidiram repe£ir o ex-
o fato de que os primatas superiores são capazes perimcmo dos Kellog. Mas dessa vez utilizaram
de aprender a interagir lingüisticamente conosco como sistema de interaçôes lingüísticas o Amesian,
de uma maneira cada vez mais ampla. que é um idioma gcstual mais rico e mais amplo,
É de supor que desde épocas antigas o ho- internacionalmente utilizado pelos surdo-mudos
mem tenha tentado ensinar a fala a macacos como (Fig, 62 ). Washoe, o chimpanzé dos Gardner, re-
os chimpanzés, tão parecidos com ele. Entretan- velou que não só podia aprender o Amcslan como
(o, foi só na década de 1930 que a literatura cien- se tornou hábil com ele, de (aI modo que era
tírlea registrou um propósito sistem:lrico, por parte tentador dizer que o animal aprendera a "falar".
do casal Kellog, nos Estados Unidos. Eles criarJm O experimento começara em 1966, quando
um chimpanzé : lO lado de seu próprio filho, com Washoe tinha um ano. Ao completar 5, ele havia
a intenção de ensiná-lo a falar. Foi um fracasso aprendido um repcnório de cerca de duzentos
quase completo. O animal era incapaz de repro- gestos, incluindo alguns que equivaliam ~IS fun-
duzir as modulações vocais necessárias ã fala. No lI) R.A Gardner e B .T.
ções de verbos, adjetivos e substantivos da lin-
Gardl1cr, SUe,/cl! 16'5: 664.
entanto, vários anos depois, outro casal nos EUA 1969. guagem falada (Fig. 63).
-, .
/

2 36 A ARVORE DO CONHECl.\lE1 'õTO DOMIi': IOS LiM;üisTlcos E CO~SCl~: NClA HU.\I:\:-;":\ 2 37

criar novas gestualidades, que parecerdm adequa-


das no contexto das observaçôes. Assim, de acor-
do com Lucy, outra chimpanzé treinada com
\X'<lshoe,uma melancia era uma "fruta-beber" ou
um "doce-beber", e um rabanete forte era uma
"comida-chora r-forte". E, embora lhe houvessem
ensinado um gesto para "geladeil.l", W"ashoepre-
feria usar ;1 proposiçflO ~abrir-comer-beher". Sig-
nificaria isso que W"ashoee Lucy estariam refle-
tindo sobre suas ações, e reve1:lndo recorrências
por meio do Ames1:ln?
O fato de que um primata possa interagir usan-
do os gestos do Ames1:ln,n:1o implica necessaria-
mente que ele possa fazer uso de SU3reflexibili-
dade potencial para distinguir elemcntos no do-
mínio lingüístico como se fossem objetos, como
Pois bem. o simples fato de aprender a fazer Fig. 6j. Inler:,~'ãoIingüísricJ fazem os humanos. Por exemplo, num experi-
certos movimentos com a mão pal.l receber as inlcresrt'cífica.
mento recente, comparou-se a habilidade de três
respectivas recompensas não é por si mesmo uma chimpanzés, todos eles treinados em formas de
grande façanha, como sabe qualquer treinador interação lingüística essencialmente equivalentes
de circo. A pergunta é; \X'ashoe usava esses ges- m ao Ameslan. Um deles - Lana - diferia dos outros
tos de tal maneira que convencessem a quem o dois - Shcnnan e Austin - porque o treinamento
observava de que se tratava de uma linguagem, destes der.! especial ênfase ao uso prático dos
como é evideme quando se conversa em Ameslan signos e objetos na m;1nipulaçào do mundo por
com um surdo-mudo? Quinze anos depois - :lpÓS chimpanzés, dumnte suas interdçôes com os hu-
muitas horas de pesquisa. e muitos outros chim- manos e entre eles próprios. Lana. ao contrário,
panzés e gorilas treinados por diversos grupos -, a aprendcr..l uma forma de interações lingüísticas
resposta ainda é acaloradamencc controvertida. mais estereotipadas, por meio de um computa-
Porém, tudo parecia indicar quc Washoc - como dor, na 'lu31 a ênfase era mais sobre a associação
outros de seus congêneres - adquirira de fito de signos com objetos. O experimento consistia
uma linguagem. em ensinar os três :lnimais a distinguir duas clas-
Em certas ocasiôes, por exemplo - eOlhor..!até ru E.S. Savage-Rumbaugh, ses de objetos: comestíveis e n:lo--comestíveis(Fig.
hoje poucas -, esses animais foram capazes de D.M. Rumbaugh, S.T Smilh e
J. Lawson, S.:lem:e, 2 10, 92 2 . 64), que deveriam separar em duas bandejas. A
combinar seu limitado repertório de ges(Qs para 1981. seguir, eles receberam uma nova série de objetos
, /

2 38 A ÁRVORE DO CONHECIME~TO i O"Ür-.:IOS Lil"GüíSTICOS E CONScrÊNClA HU;\l-\. •.••••• 2 39

~~Q ~/ .- corretamente os diferentes objetos segundo esses


lexicogramas. Por fim, a prova Cf:! associar corre-

Ó=~
tamente () lexicografia 3. Uffi: l nova série de obJe-

g tos. Nesse novo experimento, bna fracassou dra-


maticamente, em compamo:,."':1o
com seus congêneres.
O experimento revelou que l.<1n3.operava num
domínio lingüístico, sem utilizar os elementos
~It deste para nele fazer distinções, como ocorre
<>-<) ~~
./ quando se transferem ou se generalizam catego-

a=~ 4=&
rias. Por sua vez, Sherman e Austin emm capazes
disso, como mostrara o experimento anterior.
Tornou-se claro que eles haviam sido treinados
num contexto inter.ltivo e exploratório de opera-

.-
cionalidade lingüística mais rica, por envolver

~~Q ~/ diretamente a convivência com outros animais e


não apenas um computador. Isso fez uma dife-

rn
rença fundamental em suas ontogenias em rela-

88 ção à de Lana.
Todos esses estudos sobre as capacidades lin-
güísticas dos primatas superiores - o gorila tam-
~It bém é capaz de aprender a interagir com os sig-

<> -1J ./
~~ nos do AmesJan - são muito importantes para a
compreensão da história lingüística do homem.

88 rn Com efeito, esses animais pertencem a linhagens


paralelas e muito próximas à nossa, e se parecem
(anta conosco que 98% de seu material genético
nuclear se superpõe ao humano. Essa pequena
diferença de componentes, contudo, é responsá-
e lhes pediram que os pusessem n~s bandejas Fig. & :1-wpaddade de ,l(enc- vel pelas grandes diferenças nos modos de vida
correspondentes. Nenhum desses animais teve r.l1i7.açào, segundo diferentes
que caracterizaram as linhagens dos hominídeos
hi~16rias de aprendizagt'lll !in-
problemas para realizar sua tarefa. O passo güístil'a. e dos grandes macacos, ou antropóides. Num
seguinte foi mostrar a eles imagens visíveis _ caso, elas levaram ao desenvolvimento habitual
ou lexicografias ~ 00 comestível e do não-co- da linguagem, c no outro não. Assim, quando
mestível, e depois pedir-lhes que classificassem suhmetidos a um acoplamento lingüístico rico -
2 40 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO . oMi:'Üós LiNGCíSTICOS E CO:-<SCl~:I'CIA HUi\L"'NA 241

como aconteceu com \Vashoe - esses animais sào


capazes de entrar nele. Mas a magnitude e o ca-
ráter dos domínios lingüís[icos em que partici-
pam se revelam limitados. Não sabemos se isso ,
se deve a limitações lingüísticas intrínsecas ou ao .5",
ámbico de suas preferências comportamentais. é
Com efeito, esse fato não nos deve surpreender, "
pois sahemos que a divergência histórica entre
o> ~o
hominídeos e antropóides deve ter envolvido di- o o
ferenças estruturais no sistema nervoso, associa-
z~
das a seus modos de vida tão distintos. , ~ ~ ~~

..
~ ~~~i~
Não conhecemos com precisão, e talvez n:lo
conheçamos nunca, os detalhes da história das
transformações estruturais dos hominídeos. Infe-
lizmente, a vida social e lingüística não deixa fós-
~
seis e não é possível reconstmi-la. O que pode-
mos dizer é que as mudanças nos primeiros
hominídeos, que tornaram possível o aparecimen-
to da linguagem, têm a ver com sua história de
animais sociais. de relações interpessoais afetivas
e estreitas, associadas à coleta e à partilha de ali-
mentos. Neles coexistiam as atividades aparente- 65. Nü~sa linhag<:lT1. A linhagem de hominídeos à qual peltence-
mente contraditórias de ser parte integrante de mos tem mais de quinze milhões de anos (Fig.
um grupo muito ligado c, ao mesmo tempo, sair 65). No entanto, não foi senão há cerca de três
e afastar-se por períodos mais ou menos longos, milhàes de anos que se consolidamm os tmços
coletando e caçando. Uma "trofolaxe" lingüística cstrutur..lis essencialmente idênticos aos atuais. En-
com capacidade de tecer (recursivamente) uma tre os mais importantes: o andar hípede e ereto,
trama de descrições, é um mecanismo que pcr~ o aumento da capacidade cmniana (Fig. 66), uma
mire a coordenação comportamental ontogênica, , conformação dentária específica - associada à
como um fenômeno que admite um caráter cul- I: alimentação onívora, mas baseada principalmen-
turdl, ao permitir que cada indivíduo "leve" o gru- te em sementes e nozes - e a substituiçào dos
po consigo, sem necessidade de interações físi- ciclos estrais de fertilidade das fêmeas por mens-
cas contínuas com ele. F~"{ aminemosisso um pou- truações. Estas fizeram com que a sexualidade
co mais de perto. feminina se tornasse contínua e não mais s37.onal,
A ÁRVORE no CA)NHEC"\lE~TO OMÍNlOS LiNGüíSTICOS E Co!'scrt:-;Cl.>' HUMANA 2 43

Podemos imaginar esses primeiros hominídeos


como seres que viviam em pequenos grupos ou
famílias extensas, em constante movimento pela
S;lvana (Fig. 67). Alimentavam-se ~;;obretlldo do
que coletavam: sementes dums - nozes, bolotas -,
mas também da caça ocasional. Como seu andar
er3 bípede, tinham as m:-Ioslivres par.:l carregar
tais alimentos por longos trechos até seu grupo
de base, c n:io er.:lmobrigados a levá-los no apa-

li
relho digestivo, como todo o resto do reino ani-
mal. Os achados fósseis indicam que seu com-
portamento de tr.:lOsportadoresera pane integr..ln-
te da conformação de uma vida social na qual
fêmea e macho - unidos por uma sexualidade

I
permanente e nào S:l.zonal como a dos outros
primatas - compartilhavam alimentos e coopera-
vam na criação dos filhotes. Isso ocorria no do-
mínio d3s estreitas coordenações comport3men-
tais aprendidas (lingüísticas) que acontecem na
incessante cooperação de uma família extensa.
ES.'iemodo de vida de constante cooperação c
coordcn3çào comporta mental aprendida teria
constituído o f1mbito lingüístico. Sua conserva-
ção teria levado a deriva estrutural dos hominídeos
pelo caminho do contínuo incremento da capa-
e possibilitou a cópula face :l face. É certo que cidade de fazer dístinçôes nesse mesmo àmbito
nem touas essas transformações - que distinguem de coordenações comportamentais cooperativas
os hominídeos de outros primatas - aconteceram entre indivíduos que convivem de modo íntimo.
de modo simultâneo, mas sim em momentos c Tal participaçào recorrente dos hominídeos nos
ritmos distintos, ao longo de vários milhões de domínios lingüísticos por eles produzidos em sua
anos. Em :llgum período, enquanto ocorriam es- socialização deve ter sido uma dimensão deter-
sas transiçõcs, o enriquecimento do domínio lin- minante na eventual ampliação desses domínios.
güístico associado a uma s<X'iabilidade recorren- Fig. 66, Compawçào da Até lJ.ue surgiu a ret1exão que deu origem à
çapaciuad~ craniana dos
te levou J. produção da linguagem. linguagem - o momento em que as condutas
hominiueos.
244 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO OMiNIOS LiNGC!STICOS E CONSCIÊM.:JA HUMANA 2 45

10.000 a.C.
lingüísticas passaram a ser objeto da coordena-
ção compottamental lingüística, da mesma ma-
neira que as ações no meio são objetos das coor-
denações comportament:lis. Por exemplo, na in-
timidade das interações individuais recorrentes,
que personalizam o outro com uma distinção lin-
güística particular que funciona como apelativo
individual, poderiam ter ocorrido as condições
para o aparecimento da reflexão lingüística.
Essa foi, até onde podemos imaginar, a histó-
População mundial: 10 milhàcs ria da deriva estrutural dos hominídeos que le-
l'oK"entIgemd" çlçador"'-l'Ole!orc5: 1000/0
vou ao aparecimento da linguagem. É com essa
herança e com essas mesmas características fun-
damentais que funcionamos hoje em dia, numa
deriva estnJtural por meio da qual se conservam
a socialização e a conduta lingüística acima
descritas.

-:-Janelas As características únicas da vida social humana e


:experimentais seu intenso acoplamento lingüístico geraram um
,para o mental fenômeno novo, ao mesmo tempo tão próximo e
tão distante de nossa própria experiência: a men-
te e a consciência. Será possível fazer algumas
População mundial, 3 hnhÕl'S
Porcentagem de caçador".-eolctures: 0,01% perguntas experimentais que nos revelem esse
fenômeno de modo mais detalhado? B em, uma
1. Esquimós - Ala.'><..<l Il. B osquímanos d" forma seria perguntar a um primata: "Como se
2 . Esquimós - Territórios Kalahari - África do Sul, sente sendo um macaco?" Infelizmente parece que
do Noroeste B otsuana
3, Esquimós - GroenUndia 9. B ihar - India Central a resposta não virá nunca, por causa das limita-
Fig, 67. No pt:ríodo neolítico, 4. Akuri - Suriname 10. I1hêus andamancscs _ ções que temos para construir com eles um do-
5. Pigmeus - Zair", Tlha de Andamâ
as populações hUnl;!na. er.lffi mínio de convivência que admita essas distinções
6. Ariangulos - Tanzânia 11. Rue'; - Tawndia
coletoras-caçadoras (mapa
B ani - Tanzânia 12 . Aborigenes australianos comportamencais ("sentir-se")como distinções lin-
acima). ES.~asorigt."ns estào Sanye - Tanzânia - Austrália
utll!t:!S nos eSlilos Ul' vida 7. Korokas - Angola Presença nào-veritkad.'l güísticas na linguagem. A riqueza (diversidade)
aruais (mapa inferior). llantos - Angola de cJçadorcs-<:olt:tores das interações recorrentes é que individualiza o
246 A ÁRVORE DO CONHECIME~TO
, DOMíNIOS LiNGüíSTICOS E CONSCIÊNCL\ HU/o.1iI.:'':A 2 47

reflexo com todo tipo de gestos. Os gorilas, po-


rém, quando confrontados pela primeirJ vez com
([] um espelho parecem surpresos, mas logo se acos-
tumam ao efeito e o ignoram. Para explorar mais
esse habituar-se à própria imagem, que surge de
modo tão diferente do que ocorre com outros
animais, foi realizado um experimento. Um gori-
b foi anestesiado e pimou-se, entre seus olhos,
um ponto colorido que só podia ser visto ao es-
pelho. Quando o animal saiu da anestesia e foi
posto diante do espelho - surpresa! -, sua rn:l0
se dirigiu ao ponto colorido em sua própria testa
para examiná-lo. Era de supor que ele a estende-
ria para tocar o ponto na imagem, onde a estava
vendo. Pensou-se que esses experimentos pode-
riam indicar que, pelo menos nos gorilas (e em
outros primatas superiores), 113uma certa pos..'iibi-
!idade de au((} -imagem e portanto de reflexão.
Está longe de ser claro quais seriam os mecanis-
mos recursivos que permitiriam tal retlexão - se
é que existem. E se existem, talvez sejam muito
outro na coordena~'ão lingüística, o que torna Fig. 68. O calcanhar de limitados e parciais. O mesmo não acontece com
rossível a línguagem e determina .seu car.iter e Aquiles para a h:lbílí<bde o homem, no qual a linguagem faz com que essa
lingüística or:Il humana capacidade de retlexào seja inseparável de sua
amplitude. Em todo caso, tka a pergunta. (colorido).
Talvez uma forma mais óbvia de contrastar a identidade.
experiência dos primatas com a human:l não seja Uma ampla janela, que permite perceber o
papel desempenhado pelo acoplamento lingüís-
por meio da linguagem, e sim aproveitando esse
objeto t:lOligado ;1 reflexão - o espelho. Em ge- tico na produ,,'ào do mental nos humanos, surgiu
rdi, os animais tratam comportamentalmente sua de algumas observações feitas com pacientes sub-
metidos à neurocirurgia. Os estudos mais notá-
imagem ao espelho como se fosse a presença de
veis são uma série feita em um número já bastan-
outro animal. Um cão late ou abana a Gluda para
te grande de pessoas que sofrem de epilepsia.
a sua imagem; os gatos procedem de modo equi-
Trata-se de uma síndrome que, em sua pior for-
valente. Entre os primatas, os macacos têm uma rn G. Gal1up, Amer. Sât!tll
67: 417, 1979. ma, produz epicentros de atividade elétrica que
conduta claramente parecida e respondem a seu
,
248 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO 'DOMiKIOS Li:-<GÜÍSTICOS F. CO~SCII':SC!A HUM,\:-JA 249

• se expandem por todo o córtex, sem nenhuma fixamos o olhar de um indivíduo e controlamos a
regulação (Fig. 69). localização em seu campo visual das imagens-
Como conseqüência, a pessoa sofre convul- estímulo, podemos escolher entre interagir pre-
sões e perda de consciência, além de uma série ferencialmente com o córtex direito ou o esquerdo.
de outros sintomas bastante incapacitantes. Em Nessa situação experimental, descobrimos que
casos extremos dessa doença, tentou-se, há al- é possível encontrar distintos comportamentos,
guns anos, evitar a invasão transcortical da ativi~ caso a interação com a pessoa ocorra pela direita
dade epiléptica cOl1ancto a conexão mais impor- ou pela esquerda. Por exemplo, um indivíduo se
tante entre os hemisférios cerebrais, o corpo senta di:lnte de uma teia, com a instrução de es-
c;lloso (Fig. 70). O resultado foi que a epilepsia colher, entre vários obje(Qs - que não pode ver -
do indivíduo melhorou até certo ponto, mas os aquele que corresponde à im;lgcm projetada (Fig.
hemisférios deb:aram de funcionar como lima uni- 72 ). Se no lado esquerdo (hemisfério direito) pro-
dade, como acontece nas pes..<;oasnormais. " figo 69. Ataqut" t:pilético de jetamos a imagem de uma colher, ele não terá
Já mencionamos que certas zonas do córtex fI uma inca, ~t:gllndo grJ.vurJ. lLt dificuldade par..! encontrar, pelo (.1.to,a colher que
época. está sob sua mão e mostrá-la. Mas se agor.!, em
precisam estar intactas pam que a fala seja possí-
vel. Na realidade, em quase todos os humanos vez da ímagem de uma colher, mostr..!mos a pala-
basta que haja integridade dessas regiões num só vr.! "colher", o indivíduo não reage. Quando ques-
lado preferencial, mais comumente o esquerdo. tionado, confessa que não viu nada. Interações
É por isso que se diz que há uma lateralização na faladas ou escritas que só envolvem o córtex di-
línguagem. O que acontece, então, em relação à rei(Q são, em geral, in inteligíveis para adultos
interação lingüística, com os indivíduos em que depois da secção do corpo caloso. Nesses casos,
os hemisférios foram desconectados? eles não podem interagir com o cól1ex esquerdo
Nas situações do dia-a-dia não se nota nenhu- na linguagem escrita, do mesmo m(xlo que um
ma diferença. Com efeito, esses pacientes opera- bebê ou um macaco. Contudo, pessoas assim são
dos podem retomar suas vidas habituais, e não perfeitamente capazes de participar, pelo campo
seria possível distínguir uma pessoa oper.ada se a visual esquerdo, de outros domínios lingüísticos,
encontrássemos num coquetel. Mas há maneiras como mostr..!rn os mesmos experimentos.
de produzir, em laboratório, uma interação pre- Imaginemos agor..! que em vez de mostrar a
ferencial com o hemisfério esquerdo e direito do essa pessoa uma colher, em seu hemisfério direi-
cérebro em separado. Esses experimentos se ba- to, lhe mostremos a imagem de uma bela mode-
seiam na anatomia do sisten13.visual, no qual rudo lo nua, diante da qual ele se ruboriza. Ato contí-
o que vemos com o lado esquerdo estimula neurô- nuo, perguntamos; "O que aconteceu?" A respos-
ta do indivíduo ê: "Mas dou(Qr, que máquina di-
nios que se em:ontI'".!m no córtex direito e vice-
m ItW, Sperry, 'l1;c lIame}'
vertida essa sua ..." Ou seja, a pessoa com quem
versa (ver diagrama na Fig. 71). Desse modo, se üxtures 62 : 2 93, 1%8.
250 A ÁRVORE DO CONHECrME~TO DO,\lí"ros LíNGÜiSTICOS E CONSCIENCl". Hl'l\l'.NA 2 51

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estamos conversando por meio de perguntas e Fig. 70. Desconex:'io inter-


da linguagem falada, em interaçôes que só en- hemisfériC',l no lr:lt<llllento (I:!
epiJ"'psia, n corpo c;l1oso
volvem seu hemisfério esquerdo, simplesmente s<,ccionado apareco;- colorido.
não é capaz de fazer descrições orais das intera-
Fig. 71 Gcometria (LI proje-
ções que ocorreram no seu hemisfério direito,
~';-IOJ" rt'lin;l no çÓl1 ex. Per-
do qual o esquerdo está desconectac\o, Nào há turbações kx:aJizadas no bdo
recursividade sobre aquilo a que n;'io Id acesso, esquerdo arel:mio exclusiva-

Esse indivíduo, acoplado à nos..<;alinguagem, não


mente o aínex do lado direito. '7
viu uma mulher nua. Pum ele, a única coisa que
aconteceu foi Ullla mud:.mç;ade tônus emocional, Podemos ir mais longe, Acontece que há uma
que por certo tem a ver com as ligações de ambos
pequena percentagem de seres humanos nos
os hemisférios com outras áreas do sistema nervo-
fi quais a destmiçào de qualquer dos hemisférios
so que estào intactas, Diante dessa alteração emo- t. rn ~I.S. Gazzaniga e ).E. não interfere na lingu::lgem. Ou seja, indivíduos
cional, o hemisfério lingüístico constrói uma his- LeDoux, The lntcgTllled Mil/d,

,"
nos qu:.tis existe apenas um:] leve lateralização.
tória e diz; "Que 01 3qujna divertida o senhor tem". Comel! Universily Press, NoY:1
York, 197H. Felizmente para nós, uma dessas raras pessoas
2 52 A ÁRVORE DO COl\"HECI.\IENTO D().\lí~IOS Lí: -;(;üísTI(: OS E CONSCI~: NCI.-\HUMANA 2 53

a pergunta: "O que você quer ser quando cres-


cer?" foi respondida assim: "Piloto de automóvel
de corrida". O que é fascinante, porque a mesma
Fig. 72 . SilllJçào experimen_
questão, apresentada ao lado direito, tiver.1como
l:l! par,l () estuuo eomport:l_ resposta; "Desenhista".
mental clt: pe,,'Oas com secç:'lO
Tais obsen.raçc)csindicam que nesse caso, quan-
do corpo caloso. CO!OC:l-M-' o
indivíduo de modo que n;"t(, do se interage com ambos os hemisférios, encon-
possa ver suas mãos nem o tram-se comportamentos que em geral identifica-
obielo a ser manipulado, A
8l:guir, sào mostradas imagcns
mos como próprios de uma mente consciente
à direita ou à esquerda d •..•~eu capaz de reflexào, o que é muito impoJ1 ante. A
Gl1llP(} viSIWJ, que 1", deve
•..•
diferença entre Paul e outros pacientes - que é,
identific: lr com : I~màos ou
com a fala. claramente, a duplicação de sua capacidade de
linguagem or.1 l, com a [xIJ1 icipaçàoindependen-
te de ambos os hemisférios na rellexao lingüísti-
foi um paciente submetido à comissurotomia e
ca falada - nos mostra que sem a recursividade
voluntário do mesmo tipo de experimentos que
lingüística nao há linguagem nem parece gerar-
descrevemos. t\ diferença essencial é que é pos-
se uma mente, ou algo identificá'lcl como tal, em
sível interagir agora pela esquerda ou pela direita
nosso domínio de distinções.
com a linguagem e, em ambos os G1SOS, pedir
respostas que exijam ret1 cx~o lingüística. Paul, O caso de Paul nos mostra algo mais. No cur-
um rapaz nova-iorquino de 1 5 anos, por exem- so de uma inter.1 çao lingüística oral, parecia que
plo, era capaz de escolher a colher quando esta o hemisfério esqucrdo cra o predominante nele.
era pedida por meio da palavra escrita, em am- Por exemplo, quando se projetava uma ordem
bos os hemisférios. escrita para o hemisfério direito, tal como "ria",
Em conseqüêncb, projetou-se para Paul uma Paul de fato tingia rir. Quando perguntavam ao
nova estratégia experimental. O pesquisador co- hemisfério esquerdo o porquê do riso, o rapaz
meçava com uma pergunt] orJI como: "Quem...?" respondia algo como: ;'É que vocês são engraça-
c os espaços em branco eram completados por dos ...". Quando surgiu a ordem "Coce-se", a res-
lima imagem projetada num dos campos visuais, posta sobre porque se coçava foi: 'Tenho cocei-
como por exemplo: "Ê você?", Essa pergunta, r.1 ".Ou seja, o hemisfério predominante não teve
apresentada em ambos os lados, recebeu a mes- ,, problemas para inventar alguma coerência des-
ma resposta: "Paul". Diame da quest~o: ';Quc dia critiva para explicar as ações que vira ocorrcr
será amanh~?", a resposta foi, adequadamente: mas que estavam for.1 de sua experiência direta,
"Domingo". Quando feita ao hemisfério esquerdo, °
devido à sua desconex~o com outro hemisfério.
2 54 A ÁRVORE DO CO:"HECIMENTO Dm.lil'IOS LiNGüíSTICOS E CONSCIEl'<C1;\ HU,\l"U"A 2 55

Todos esses experimentos nos dizem algo fum.b- o mental ea conserva como unid3de sob as comínuas pertur-
mental sobre a maneira como, na vida diária, or- consciência bações do meio e as de seu próprio funciona-
ganizamos e damos coerência a essa contínua mento. Depois, vimos que o sistema nervoso gera
concatenação de reflexões que chamamos de uma dinâmica comportamental ao produzir rela-
consciência, e que associamos à nossa identida- ções de atividade neuronal interna em sua clausuf'"J.
de. Por um lado, mostram-nos que o modo de operacionaL O sistema vivo, em todos os níveis,
0pcrJ.r recursivo dJ. linguagem é condição sine organiz3-se de maneirJ. a gerar regularidades in-
qlla non para a experiênda que associamos ao ternas. No domínio do acoplamento social e da
mental. De outra parte, essas experiências funda- comunicação (na "trofolaxe" lingüística), produz-
mentadas no lingüístico se organizam com base se o mesmo fenômeno. Só que a coerência e a
numa variedade de estados de nosso sistema ner- estabilização da sociedade como unidade se pro-
voso aos quais, como observadores, não temos duzirá, dessa vez, mediante os mecanismos tor-
necessariamente acesso direto. No entamo, nós nados possíveis pelo funcionamento lingüístico e
sempre os organizamos de maneira que elas se sua ampliação na linguagem. Essa nova dimen-
encai;xem na coerência de nossa deriva ontogê- são de coerência operacional é o que experimen-
nica. No domínio lingüístico de Paul, não é pos- tamos como consciência e como "nossa" mente.
sível que ele ria sem uma explicação coerente Sabemos que as palavras são ações, e não coi-
para essa ação. POrt.,lOtO,s ua vivência atribui a sas que passam daqui para ali. É no..<;sahistória de
esse estado alguma L'ausa como "é que vocês são interações recorrentes que nos permite um efeti-
engraçados", conservando com essa reflexão a vo acoplamento estrutural interpessoal. Permite-
coerênda descritiva de sua história. nos também descobrir que compartilhamos um
Aquilo que, no caso de Paul, pode revelar-se mundo que especificamos em conjunto, por meio
até certo ponto como consciências desconectadas de nossas açôes. Isso é tão evidente que é literal-
que funcionam por meio do mesmo organismo, mente invisível para nós. Só quando nosso aco-
mostrJ.-nos um mecanismo que opera constante- plamento estrutural fracassa em alguma dimensão
mente dentro de nós. Tudo isso nos mostra que, do nosso existir, refletimos e nos rulmos conta de
na rede de interações lingüísticas na qual nos mo- até que ponto a trdma de nossas coordenações
vemos, mantemos UUla contínua recursão des- comportamentais na manipulação de nosso nlllO-
critiva - que chamamos de "eu" -, que nos do - e a comunicação - são inseparáveis de nos-
permite conservar nossa coerência opera- sa experiência. Esses fracassos circunstanciais em
cional lingüística e nossa adaptação ao do- alguma dimensão de nosso acoplamento estrutu-
mínio da linguagem. rai são comuns em nossa vida cotidiana, desde
A esta altura de nossa apresentação, tal não comprar um pão até educar uma criança. Cons-
nos deve surpreender. Vimos que um ser vivo se tituem a motivação para novas maneiras de
256 A ÁRVORE no CONHEClI>IENTO Dmli~I()S LiNGüisTICn~ E CONSCIÊNCLA, HUMANA 2 57

acoplamento e novas descrições - e assim ad um calendário e ler a B iblia todas 3Stardes, isso só
ínfinilul1I. A vida humana cotidiana e o acopla- é possível se nos comportarmos como se existis-
mento estrutural mais atual estão tào cheios de sem outros, já que é a rede de interações lingüísti-
textura e estrutura que nos assombramos ao cas que faz de ná<;o que somos. Nós, que como
examiná-los. Por exemplo, o leitor ter:í prestado cientistas dizemos t(x!as essas coisas, nào somos
atenção :1 incrível trama subjacente à conversa- diferentes.
ção mais banal, em relaçào aos tons de voz, 3S A estruturA obriga. Por sermos humanos, so-
seqüências de uso da palavra, às superposiçôes mos inseparáveis da trama de acophmcntos estru-
de ação entre os interlocutores? Em nossa onto- turais tecid3 por nOSS3permanente "trofolaxe~lin-
gertia, temos nos acoplado assim por tanto tempo güística. A linguagem não foi inventada por um
que ela nos parece simples e direta. ,\J:.lverdade, indivíduo sozinho na apreensão de um mundo
a vida comum de rodos os di:.lsé uma filigrana de externo. Portanto, eb não p<x1eser usada como
especificidades na coordenação comportamental. fermmenta para a revelac;'àodesse mundo. Ao con-
Dessa maneira, o aparecimento da linguagem tr:irio, é dentro da própria linguagem que o ato de
no homem, e também no contexto social em que conhecer, m coordenaçào comport3mental que é
ela surge, gera o fenômeno inédito - :.lté onde a linguagem, faz surgir um mundo. Percebemo ...
sabemos - do mental e da autoconsciência como nos num mútuo acoplamento lingüístico, não por-
a experiência mais íntima do ser humano. Sem o que a linguagem nos permita dizer o que somos,
desenvolvimento histórico das estruturas adequa- 01.1.5 porque somos na linguagem, num contínuo
das, não é possível entrar no domínio humano - ser nos mundos lingüísticos e semânticos que
como aconteceu com a menina-lobo. Por outro geramos com os outros. Vemo-nos nes,';e acopla-
lado, como fenômeno na rede de acoplamento mento, nào como a origem de uma referência nem
social e lingüístico, o mental não é algo que está em relação a uma origem, mas como um modo
dentro de meu cdnio. Não é um fluido do meu de contínua transformac;~àono devir do mundo
cérebro: a consciência e o mental pertencem ao lingüístico que COnstruÚI10S com os outros seres
domínio de acoplamento social, e é nele que ocorre humanos.
a sua din:nnk"a. É também nesse domínio que o
mental e a consciência funcionam como scletores
do caminho que segue nossa deriva estrutural
Ofi(ogênica. Além dbso, dado que pertencemos a
um domínio de acoplamento humano, podemos
considerAr-nos como fontes de interJçôes lin-
güísticas seletoras de nosso devir. Contudo, como
Robinson Cmsoé entendeu muito bem ao manter
'1'

10 2 ... ,
r-==c

unidade A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
,
conhecer o conhecer 1 organização estrutura

ética ,
experiência cotidiana L autopoieseJ
fenômeno do conhecer fenome1nologia
I biológica
explicação
científica o conhecer eo Como as mãos do gravador de Escher (Fig. S),
1 __ observador
conhecedor este livro t:nnbém seguiu um itinerário circular.
açã!
9 3 Partimos das qualidades de nossa experiência,
comuns à nossa vida .socialconjunta. A partir daí,
domínios linguísticos fenômenos históricos fizemos um longo percurso pela autopoiese ce-
. I
,
linguagem conseJação - v~riação lular, a organização dos metacelulares e seus do-
consciência reflexiva ~eproduçã! mínios comporramentais, a clausura operacional
do sistema nervoso, os domínios lingüísticos e a
linguagem. Ao longo desse percurso fomos ar-
mando, gmdualmente e com peças simples, um
8 sistema explicativo capaz de mostrar como sur-
4
rr--
gem os fenômenos próprios dos seres vivos. Dessa
perturbações -----rl maneira, terminamos mostr.mdo como os fenô-
fenô~enot cult~r~is
fenomenos sociais
lacoPla~ento l,o~l~1I menos sociais - fundamentados num acoplamento
estrutural ontrgen:J"
unidades ~e terceira unidade's de segunda ordem
lingüístico - dào origem à linguagem. J'o.lostramos
ordem também como a linguagem, partindo de nossa
clausura O~eracional
experiência cotidiana do conhecer nela, nos per-
mite gerar a explicação de sua origem. O come-
ço é o final.
7 5

i"'~r II
Assim, cumprimos a exigência que nos pro-
atos cognitivos ' l filogenia pusemos ao começar, isto é, que a teoria do co-
6 deriva história de
nhecimento deveria mostrar como o fenômeno
,"""",J, natural interações

I
ampliação do comportamento - sistema do conhecer gera a pergunta que leva ao conhe-
domínio de interações conse~ação selJção

L
nervoso
da adaptaçãoestrutural cer. Essa situação é muito diferente das que en-
plasticidade contabilidjde lógiL I I contramos comumente, em que o fenômeno de
detenninação estrutural

"""'""'l
representação I perguntar e o questionado pertencem a domí-
solipsismo
nios diversos.
262 A ÁRVORE DO CO:-lHECIMENTO A ÁRVORE DO COl"HECI.\IENTO 2 63

e defender sua validade. Com efeito, se simples-


mente supomos que há um mundo que é objeti-
vo e fixo, não é possível entender como funcio-
na nosso sistema em sua din:muca estmtural, pois
ele exige que o meio especifique o seu funciona-
mento. Por outro lado, se oito afirmamos a obje-
tivklade do mundo, parece que estamos dizendo
que tudo é pura relatividade, que tudo é possível
na negação de toda e qualquer legalidade. Vemo-
nos, então, diante do problema de entender como
nossa experiência está acoplada a um mundo que
vivcnciamos como contendo regularidades que
resultam de nossa história biológica e social.
Mais uma vez temos de caminhar sobre o fio
da navalha, evitando os extremos represcmacional
(ou objetivista) e solipsista (ou idealista), Nessa
trilha mediana, encontramos a regularidade do
mundo que experienciamos a cada momento, mas
Pois bem, se o leitor seguiu com seriedade o sem nenhum ponto de referência independente
que foi dito nestas páginas, se verá obrigado a de nós mesmos, que nos garanta a cswbilidade
ver todas as suas ações e o mundo por elas gera- absoluta que gostaríamos de atribuir às nossas
do - saborear, preferir, rejeitar ou conversar - descriçôes. Na verdade, todo o mecanismo da
como um produto dos mecanismos que descre- geração de nós mesmos - como descritores e
vemos. Caso tenhamos conseguido seduzir o lei- observadores - nos gardnte e nos explica que
tor para que ele veja a si próprio como tendo a nosso mundo, bem como o mundo que produzi-
mesma natureza desses fenômenos, este livro mos em nosso ser com os outros, será prccisa~
cumpriu o seu plimeiro objetivo. mente essa mistura de regularidade e mutabili-
FaZer isso certamente nos dei.."aem uma situa- dade, essa combinaçào de solidez e areias move-
çào inteiramente circular, que produz alguma diças que é tão típica da experiência humana
vertigem - algo parecido ao que se vê na gravura quando a olhamos de perto.
das mãos de Escher. Essa vertigem vem do fato Entretanto, é evidente que n:lo podemos sair
de que aparentemente não temos um ponto de desse círculo e saltar para fora de nosso domínio
referência fIxo e absoluto, ao qual possamos cognitivo. Seria como, por um fiU! divino, mudar
ancorar nossas descrições e, desse modo, afirmar a natureza do cérebro, modificar a natureza da
264 A ÁRVOR.E DO COSHECL\IENTO A ÁRVORE DO CONHECIME1'o'TO 2 65

linguagem e a1tef'Jr a natureza do porvir, ou seja, biológica e sua cultura. A tmciição é ao mesmo
a natureza da n~ltureza. Estamos continuamente tempo uma maneira de ver e de agir, e também
imersos nesse circular de um:l intcraçào a outra, uma forma de ocultar. Toda trddiçào se baseia
(:ujos resultados dependem da história. Todo fa- naquilo que uma história estrutural acumulou
zer leva a um novo fazer: é o círculo cognitivo como óbvio, como regular, como estável, e a re-
que caracteriza o nosso ser, num processo cuja flexão que permite ver o óbvio só funciona com
realização está imersa no modo de ser autônomo aquilo que perturba essa regularidade.
do ser vivo. Tudo aquilo que, como seres humanos, temos
Por meio cles..'i3 contínua recursividade, todo em comum, é uma tr.ldiçào biológica que come-
mundo produzido oculta necessariamente suas çou com a origem da vida e se prolonga até hoje,
origens. Do ponto de vista biológico, 0;10 há como nas variadas histórias dos seres humanos deste
descobrir o que nos aconteceu para que obtivés- planeta. Por causa de nossa herança biológica
semos as regularidades do mundo com as quais comum temos os fundamentos de um mundo
escamos acostumados, desde os valores ou pre- comum, e não nos parece estranho que para to-
ferências até as tonalidades das cores e os odo- dos os seres humanos o céu seja azul e que o sol
res. O mecanismo biológico nos indica que uma nasça a cada dia. De nossas heranças lingüísticas
estabilização operdcional na dinâmica do orga- diferentes surgem [odas as diferenças de mundos
nismo não incorpora a maneira como ele se ori- culturais, que como homens podemos viver e que,
ginou. Nossas visões de mundo e de nós mes- dentro dos limi[es biológicos, podem ser tão di-
mos não guardam registros de suas origens. As versas quanto se queira.
pabvras na linguagem (na reflexão lingüística) Todo conhecer humano pertence a um desses
passam a ser objetos que ocul[am as coordena- mundos e é sempre vivido numa tradição cultu-
çôes comportamcnt:.lis que as constituem operd- ral. A explicação dos fenômenos cognitivos que
cionalmente no domínio lingüístico. Por isso, apresentamos neste livro se localiza na trddição
nossos "pontos cegos" cognitivos são continua- da ciência e se valida por meio de seus critérios.
mente renovados e não vemos que não vemos, No entanto é uma explicação singular, pois
n;'io percebemos que ignordmos. Só quando al- mostra. que ao pretender conhecer o conhecer, .
guma interação nos tira do óbvio - por exemplo, encontramo-nos nitidamente com nosso próprio
quando somos bruscamente transportados a um ser. O conhecer o conhecer não se dispõe como
meio cultural diferente -, e nos permitimos refle- uma árvore com um ponto de partida sólido, que
tir, é que nos damos conta da imensa quanticlade cresce gradualmente até esgotar tudo o que há
de relaçôes que consideramos como garantidas. para conhecer. Assemelha-se mais à situação do
A bagagem de regularidades próprias do aco- rapaz na Galen'(/ dos Quadros de Escher (Fig. 73).
plamento de um grupo Social é sua tradição O quadro que ele vê tr:.\l1sforma-se de modo
2 66 A ARVORE DO CO:-;HECr.~!ENTO A ARVORE 1)0 C.OC'iI-Il':CL\!EJ','TO 2 67

o conhecimento Segundo o texto bíblico, quando Adão e Eva co-


do conhecimento meram o fruto da árvore do conhecimento do
obriga bem e do mal, viram-se tr.lt1 sformadosem outros
seres e não mais voltaram à antiga inocência.
Anles, seu conhecinll?nto do mundo se expressa-
va em sua nudez, e eles se moviam com ela e
nela. na inocência do mero saher; depois, sabiam-
se desnudos: sabiam que sabiam.
Ao longo deste livro, percorremos a "árvore
do conhecimento", e a vimos como o estudo cien-
tífico dos processos a ele subj:lCentes. E, se se-
guimos seus argumentos e internalizarnos suas
conseqüências, [ambém nos demos conta de que
eles são inescap(lveis. O conhecimento do co-
nhecimento obriga. Obriga-nos a assumir uma
atitude de permanente vigília contra a tentação
da certeza, a reconhecer que nossas certezas não
s:1 o provas da verdade, como se o mundo que
cada um vê fosse () mundo e não UIl1 mundo
que constnJímos juntamente com os outros. Ele
nos obriga, porque ao s:.Iberque sabemos não
podemos negar que sabemos.
Por tudo isso que dissemos aqui, esse saber
que sabemos leva a uma ética que é inevitável e
que miO podemos desprezar. Nela, o ponto cen-
tral é que assumir a estrutura biológk':.te social
gradual e imperceptível ... na cidade em que está Fig_ 7.3. A /?tIÁ'll(/ de quodros. do ser humano equivale a colocar no centro a
:1 galeria! Não sabemos onde situar o ponto de d", M_ Esdu:r.
reflexão sobre aquilo de que ele é C;:IPaze que
p:lrtida: fora, dentro? Ê a cidade ou :1 mente do
o distingue. Equivale a buscar as circunstâncias
rapaz~ O reconhecimento dessa circularidade
que permitem tonur consciência (b situação em
cognitiva, porém, não con.stituium problema para
que se está - qualquer que seja ela - e olhá-la a •
a comprcens:lo do fenômeno do conhct:er, pois
partir de uma perspectiva mais abrangente, a partir
na verdade ela fun<.bmenta o ponto de p:lnida
de uma certa dist£mcia.S e sabemos que nosso mun-
que permite SU:1 explicação cíemífica.
do é sempre o que constnlÍmos com os OU[ros,
2 68 A ÁRVORE DO CONHECIMENTO A ÁRVORE no CO:'<HEClMEI\;TO 2 69

ca(b vez que nos encontrarmos em contradição


ou oposição com outro .ser humano conl o qual Ética
desejamos conviver, nossa atitude n:lo poderá
ser reafirmar o que vemos do nosso próprio pon-
Todo ato hum:mo ocorre na linb'l.mgem.Toda ação ~.,
na linguagem produz o mundo que se cria com os
to de vista. Ela consistirá em apreciar que nosso outros, no alo de coovivéocia que dá origem ao
humano. Por isso, toda ação hurruma tem sentido
ponto de vista é o resultado de um acoplamento ético. Essa ligação do humano ao humano é, em
estrutural no domínio expericncial, tão válido última instância, o fundamento de toda ética como
quanto o de nosso oponente, mesmo que o reflexão sobre a legitimidade da presença do outro.

dele nos pareça menos desejável. Caberú, pois,


a bUSL'ade uma perspectiva mais abrangente, de
um domínio cxperiencial em que o outro tam-
bém tenha lugar e no qual possamos construir que habitualmente chamamos de amor. Além do
um mundo juntamente com elc. mais, tudo isso nos permite perceber que o amor
O que a biologia nos mostra - se é que temos ou, se não quisermos usar uma palavra tão forte,
razão cm tudo o que dissemos neste livro - é que a aceitação do outro junto a nós na convivên-
a unickbde do ser humano, seu patrimônio ex- cia, é o fundamento biológico do fenômeno so-
clusivo, está num acoplamento estrutural social cial. Sem amor, sem aceitação do outro junto a
em que a linguagem tem um duplo papel. Por nós, não há socialização, e sem esta nâo há hu-
um lado, gerar as regularidades próprias do aco- manidade. Qualquer coisa que destrua ou limite
plamento estrutural social humano, que inclui, a aceitação do outro, desde a competição até a
entre outros, o fenômeno das idemidades pes- posse da verdade, passando pela ceneza ideoló-
soais de cada um. De outra parte, constituir a gica, destrói ou limita o acontecimento do fenô-
dinflmica recursiva do acoplamento estrutural meno social. Ponanto, destrói também o ser hu-
social, que produz a reflexividade que conduz mano, porque elimina o processo biológico que
ao ato de ver sob uma perspectiva mais ampla. o gera. Não nos enganemos. Não estamos mora-
TrJ.ta-se do ato de sair do que ,ué esse momento lizando nem fazendo aqui uma prédica do amor.
era invisível ou inamovível, o que permite ver Só estamos destacando o fato de que biologica-
que como seres humanos só temos o mundo que mente, sem amor, sem aceitação do outro, não
criamos com os outros. há fenômeno social. Se ainda se convive assim
A esse ato de ampliar nosso domínio cognili- vive-se hipocritamente, na indiferença ou na ne-
vo reflexivo - que sempre implica uma experiên- gação ativa.
cia nova -, podemos chegar pelo raciocínio ou, Descartar o amor como fundamento biológico
mais diretamente, porque alguma circunstância do sodal, bem como as implicaçõcs éticas dessa
nos leva a ver o outro como um igual, um ato dinâmica, seria desconhecer tudo o que nossa
2 70 A ÁRVORE DO CO:"<HEC1MENTO A ÁRVORE DO CONHEClMEl\'TO 2 71

história de seres vivos de mais de três bilhões c por meio dele.••, num processo que configura o
meio de anos nos diz c nos legou. Não prestar nosso porvir. Cegos diante dessa transcendência
atenção ao fato de que todo conhecer é um fa- de nossos atos, pretendemos que o mundo tenha
zer, não perceber a identidade entre ação e co- um devir independente de nós, que justifique nos-
nhedmento, não ver que todo ato humano, ao sa irresponsabilidade por eles. Confundimos a
constniÍr um mundo na linguagem, tem um cará- imagem que buscamos projetar, o papel que re-
ter ético porque ocorre no domínio socbl- tudo presentamos, com o ser que verdadeiramente
isso é igual a não permitir-se ve[ que as maçãs construímos no nosso viver cotidiano.
caem para baixo. Proceder assim, sabendo que Chegamos ao final. O leitor não deve buscar
sabemos, seria um auto-engano, lima negação aqui receitas para o seu fazer concreto. A inten-
intencional. Para nós, portanto, tudo o que disse- ção deste livro foi convidá-lo a uma reflexão que
mos neste livro não só tem o interesse de toda o leve a conhecer o seu conhecer. A responsabi-
exploí.lçâo científica, como o de proporcionar- lidade de transformar esse conhecimento na car-
nos a compreensão de que somos humanos na ne e no osso de suas ações está em suas mãos.
dinâmica social. LiberE3-0os de uma cegueira fun- Conta-se que havia uma ilha, que ficava em
damentai: a de não percebermos que só temo .••o Algum Lugar, em que os habitantes desejavam
mundo que criamos com os outros, e que só o intensamente ir para outra parte e fundar um
amor nos permite criar um mundo em comum lJ.l mundo mais sadio e digno. O problema era que
com eles. Se conseguimos sedu:zir o lei[Qr a fazer a arte e a ciência de nadar e navegar ainda não
essa reflexão, este livro cumpriu seu segundo tinham sido desenvolvidas - ou talvez tivessem
objeüvo. sido há muito esquecidas. Por isso, havia habi-
Afirmamos quc, no âmago das dificulda- tantes que simplesmente se negavam a pensar
des do homem atual, está seu desconhecinlcn- nas alternativas à vida na ilha, enquanto que ou-
to do conheccI'. tros tentavam encontrar soluções para os seus
Nilo é o conhecimento, mas sim o conheci- problemas, sem preocupar-se em recuperar o
mento do conhecimento, que cria o comprome- conhecimento de como cruzar as águas. De vez
timento. Não é saher que a bomba mata, e sim em quando, alguns ilhéus rcinventavam a arte de
saber o que queremos fazer com ela que de[er~ nadar e navegar. Também de vez em quando
mina se a faremos explodir ou não. Em geral, chegava a eles algum estudante, e então aconte-
ignoramos ou fingimos desconhecer isso, para cia um diálogo assim:
evitar a responsabilidade que nos cabe em todos "Quero aprender a nadar."
os nossos atos cotidianos, já que todos estes - "O que quer fazer para conseguir isso?"
sem exceção - contribuem para formar o mundo
m '-Shah, 71JeSu.frs, Anchur "Nada. Só quero levar comigo uma tonelada
B ooks, Nova Yurk, 1964. pâgs,
em que existimos e que validamos precisamente 2 -15. de repolho."
272 A ARHlIU: no CO~HECI.\lEr-;TO

10

conhecer o conhe<er 1
I experiência cotidiana
ética I
fenômeno do conhecer

eXPI!ca~ão I
9
científica
I
açao
., observador

domínios linguisticos
I
linguagem
I
consciência reflexiva

"Que repolho~" 8
"A comida de que vou precisar no outro lado,
ou seja Jj onde for," fenômenos culturais
"Mas há outras coisas para comer no outro
I
fenômenos sociais
lado." unidades ~e terceira
"Não sei o que quer dizer. 0iâo tenho certeza. ordem

Tenho de levar meu repolho."


"Mas assim mio vai poder nadar. Uma tonela-
; ~
da de repolho ê urna carga muito pt:'sada." ,
7 5 ,. ),1
"Então náo posso aprender. Para você, meu
atos cognitivos ' r- filogenia
.,ri\!
,-'.

II
repolho é uma carga. Para mim, é um alimento
essencial." m'''I",J, ; " t~' 6 deriva
natural
história de W
intera~ôes 1'!
"Suponhamos que - como numa alegoria - os ampliação do I
conservação I. "~
seleção
dominio de intera~ôes mmT""m.",o - ~::=J;'O:~
repolhos representem idéias adquirilbs, pressu-
postos ou certezas."
L plasticidade contabilidrde lógica
da adapta~ão-estrutural
I I ; •
determina~ão estruturalJj

' ' ' "' 'l


representação I
';Hum.. Vou levar meus repolhos para onde solipsismo
haja alglléln que entenda as minhas necessidades."
.
.•.-~
"

Glossário

Cadeia de nudeótidos. Ver ADN ou ARN.


AVi'. (;idd,' Principal componente dos cromossomos. Participa, d,
dt: ~, •." irrih( 'llIlCkko) modo crucial, da síntese de proteínas celulares, po
meio da especifiGl.(,.':lode sua seqliênci:l de aminoáci-
dos, que se faz por intermédio do ARN.
Amillo;icido~ Moléculas orgânicas componentes cL1S proteínas. C:lel
aminoácido é formado por um grupo amínico, U~
grupo ácido e um resíduo molecular peculiar a cae\;
tipo de aminoácido. Existem cerca de 2 0 aminoácido
nas proteínas dos seres vivos, como lisina, alanina-
leucina etc.
A. Illrupóides Conjunto dos primatas chamados superiores, que indu
os gorilas, os chimpanzés, os gibões e os or.lOgotangos
Ano-luz Unidade de distância astmnômica, que corrcsponde i
distância que percorreria um raio de luz em um ano
A velocidade clt luz é de aproximadamente 300.0Ü\
quilômetros por segundo.
AR)\; (il ••.
'ido Ácido nucléico que participa na sintese de proteína,
ribol\lu.: I~ico) no citoplasma celular.

Axüni" Extensão protoplasmática neuronal única, que habi


tualmente é capaz de conduzir um impulso nervoso

B act(:ria." Seres vivos unicelulares sem compartimentalizaçà(


interna (procariontes).

Ccl"d} I..~I(l Lobo da por~~ãocefálica do sistema nervoso dos ver


tebrados, que participa ativamente na regulaçào fin:
da atividade muscular.
2 76
A ÁRVORE DO CO:SHF.Cli\lENTO
GLOSSÁRIO
277
Receptividade sexual periódica, s37.onal ou mensal,
nos mamíferos em geral e nos primatas em particular. Hormônio secretado no pâncreas, que participa n::t
regulação da abson.:ii.o da glicose.
Grandeza que caracteriza a freqüência de vibraçôes . '-.,J'pJ'lllõull •• dl: "l.l'a
das diferentes cores do espectro da luz visível c, em Conjunto cios processos de transformação química dos
gemI, cbs diferentes radiações eletromagnéticas. componentes celulares que ocorrem permanentemente
no interior de uma célula.
Camada celular (neLlraoa!) mais externa dos hemisfé- (. ,,~'ll' __

rios cerebrais.
Processo de descompartimentalização celular que leva
à reprodução de uma célula.
-el Componentes nucleares formados por ácidos llucléi-
cos alt:amente comprimidos e proteínas. São facilmente
-.-".","--;num.-.;
Mi.••.
()!l1il'dll~ Grupo de organismos eucariontes, cujo ciclo de vida
visíveis durante a divisão celular, e seu número é fum implíc::t fases com indivíduos amebóidcs dispersos c
para cada espécie viva.
fases de agregação celular, com ou sem fusão.
Conjunto de axónios que interligam o córtex de am- • "'T~' ~:;II(J',I, Fei.. ••...
e de fibras nervosas que conectam a retina com o
bos os hemisférios cerebrais. cérebro.
Extensões protoplasmáticas neuronais de número e Nt"U!OIJi" Célula própria do sistema nervoso que se caracteriza
forma variadus, que não conduzem impulsos nervosos.
por ter axônio e dendritos.
Fase celular envolvida por uma camada resistente.
Substância sccretada nos terminais sinápticos que de-
Células com compartimento nuclear e outras estrutu- sencadei::t mudança.~ elétricas no neurônio receptor.
t'"dS, tais como mitocôndrias, c1oroplastos etc.
Moléculas orgânicas componentes dos ácidos nucléi~
Conjunto dos fenômenos associados às interações de coso Cada nucleótida é formada pela uniào de uma
uma classe de unidades.
molécula de açucar (ribose), ou desoxirribose, um áci-
Órgão celular em forma ele filamento móvel. do fosfórico e uma base nitrogen::tda (purinas ou
• ,1-"~,,l(>
,"<; .. .
pirimidinas).
Restos ou pegadas mineralizados deixadDs por um
ser vivo. OlllO).: l'ui: l História de transformações de uma unidade, como
resultado de uma história de interações, a partir de
Células que se fundem eluf'",mtea reprodução sexllac!a,
sua estrutum inicial.
como o espermatozóide ou o óvulo.

Unidade descritiva hereelitâria na genética dos âcidos Unidade multi celular resultante da fusào de vários in-
divíduos unicelulares,
nucléicos, que corresponcle a um segmento de ADN.
Prc'C;\ci('llf,-"~ Células sem compartimento nuclear.
Cada uma elas porções encefálicas simétricas do siste- ! I ,'n IJ'->teri, ,~,
ma nervoso dos vertebrados.
'{ ,+. -.:li. Pl"oh,.'Ul' J\IolêcuJas orgânicas form::tdas pela união em cadeia
Conjunto das espécies do homem atual e suas formas de numerosos aminoácidos. Essa cadeia se dobL.l es-
ancestrais, pacialmente de m::tneiras diversas, segundo sua com-
posiçào de aminoácidos.
2 78 A ÁRVORE DO CONHECL\IENTO

Célula ellcarionte de vida livre. !'n,t(I1 : I,ârio Fonte das ilustrações


Extensàu protoplasndlica uas células 3.mebóides. P~l.: 'lIdúpl.(lu .••

Unidade de distância astronômica, que corresponde a Quilul'ar"','c


aproximadamente 3.2 60 anos-luz.
Tr.lI1sformaçôes de partículas elementares que ocor- lh:;.II.c'\ics
rem sob altíssimas temper.lluras (da ordem de 10.000 IcrHu'nuck'arl-'"
graus).
Fig. 1 - Cristo coroado de espirlhos, de Hieronimus
Recorrente, que volta subre si mesmo. Rc(: ursillo
B osch, ~Iuseu do Prado, Madri.
Ponto de contato íntimo de dois neurônios, em geral Sinap:,;t'
Fig. 5 - ,lIdos qUi! desenham, de i\LC. Eschcr, 1948
entre o axônio de um neurônio e os dendritos ou o
(2 8,5x34 cm), litografia reproduzida de 71)('
corpo celular do outro.
Graphic lf'Ork ofiH.C. Escher, Meredith Press, Nova
Literalmente do grego: fluxo de alimentos. Trofubx'L' York, 1967.
Célula resultame da fus:} ode dois g3metas (células Zj.~nto Fig. 6 - Heprodução da fotografia de lllTI3.galáxia.
sexuais), que é o ponto de partida no desenvolvi- Cortesia de Hale Ohservataries.
mento de um rnetacelular com reprodução scxuad3.
Fig. B - Extraído de F. Hoyle, ASlronom)' tlnd
Cosmogony, Frcel113n, San Francisco, 1975,
pág. 2 76.
Fig. 9 - Adaptado de R. Dickerson e I. Geis, 7be
StnlCWre and AC/irm of Profeins, Harper &: Row,
Nova York, 1969,
figo 1 0 - Extraído de L. Margulis, Symhiosis in Cell
Fi'Ollltion, Freeman, San FrJ.ncisco, 1981, pág. 117.

Fig. 12 - lvlicrofotografi3 de um embri:l0 de sangues-


suga. Cortesia do Dr. Ju:m Fernández, Departa-
mento de I3iologia, Faculdade De Ciências B ási-
cas, Universidade do Chile.

Fig. 14 - Primdr..l divisão de um embrião de rato.


Microscopia de varredura. Cortesia dos Drs. Carlos
Doggenweiler e Luís lzquicrdo, Departamento De
B iologia, Faculdade de Ciências B ásicas. Univ'er~
sidade do Chile.
Maturana e Varela mostram que a idéia
de que o mundo não é pré-dado, e que o
construímos ao longo de nossa interação
com ele, não é apenas teórica: apóia-se em
evidências concretas. Várias delas estão
expostas - com a freqüente utilização de
exemplos e relatos de experimentos - nas
I páginas deste livro.
As teoJiasdos dois autores constiruem uma
I
I
concepção original e desafiadora, cujas con-
seqüências éticas agora começam a ser per.
eebidas com ~escente nitidez. AÁNoredo
I
Connaimellt{) tomou-se um clássico, ou me-
I lhor, recebeu o justo reconhecimento de seu
classicismoinato. Tudo isso compõe hoje uma
I ampla bibliografia, espalhada por áreas tão
diversas como a biologia, a adrrúnistração de
empresas, a filosofia, as ciências sociais, a
I educação, asneurociênclaS e a imunologia.

i
Humberto R. Maturana - Ph.D. em
Biologia (1-Iarvard, 1958). Nasceu no Chile.
Estudou Medicina (Universidade do dúle)
edepois Biologia na Inglaterra e EVA Como
biólogo, seu interesse se orienta para a com-
preensão do ser vivo e do funcionamento do
sistema nervoso, e também para a extensão
dessa compreensão ao âmbito social huma-
no. t professor da Universidade do Chile.

Francisco J. Varela - Ph.D. em Biologia


(Harvard, 1970). Nasceu no Chile. Depois
de ter trabalhado nos EUA, mudou-se para a
França, onde passou a ser diretor de pesqui-
sas no CNRS (Centro Nacional de Pesquisas
Impresso n;lS oficinas
OentiEicas)no Laboratório de Neurociências
da Gráfica Palas Athena.
Cognitivas do Hospital Universitário da
Salpêtriere, em Paris, além de professor da
Escola Politécnica, também em Paris.

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