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COR

nos censos
EDITH PIZA
FÚLVIA ROSEMBERG brasileiros

EDITH PIZA
é pesquisadora convidada
do Instituto de Psicologia
da USP, realizando
pesquisa de pós-doutorado
com dotação do CNPq.

FÚLVIA ROSEMBERG
é pesquisadora da
Fundação Carlos Chagas e
professora titular do
Departamento de
Psicologia da PUC-SP.

122 REVISTA USP, São Paulo, n.40, p. 122-137, dezembro/fevereiro 1998-99


N
a literatura brasileira sobre cor, ideologia da democracia racial) de que o Este artigo foi formulado a partir
do relatório de pesquisa Adultos
desde os trabalhos de Oracy No- dinheiro embranquece e de que, no Brasil, o Analfabetos: Gênero e Raça, rea-
gueira (1985), que distinguiu a espectro de cores corresponde a uma cor pu- lizado no Núcleo de Estudos so-
bre Gênero, Raça e Idade do De-
regra de origem (descendência) ramente social, aparece com freqüência em partamento de Psicologia Social
da PUC-SP, entre 1993-94, com
da regra de marca (fenótipo), tem-se men- estudos comparativos (cf. Davis, 1992, cap. dotação da Fundação Carlos
cionado a permeabilidade da passagem da 5). Considerando sempre uma perspectiva Chagas/Fundação Ford.

linha de cor no sentido do branqueamento. unilateral – a da população negra (3) brasi-


A expressão “o dinheiro embranquece”, leira –, estudos estrangeiros, e mesmo bra-
mesmo relativizada por Nelson do Valle sileiros, deixam de notar que, no processo
Silva (1992) e reservada a indivíduos raci- brasileiro de construção de identidade, a po-
almente não muito distantes, tem sido o pulação de brancos (ou dos que assim se
paradigma para se pensar e discutir a flui- considerem) não coloca como dado impor-
dez da linha de cor no Brasil. Entretanto, é tante de identidade sua cor, raça ou etnia,
necessário refletir um pouco mais sobre os como ocorre, por exemplo, na sociedade
processos de auto e heteroidentificação da americana. A desconsideração desse dado
cor, no Brasil, para se perceber a comple- pelos estudos estrangeiros e brasileiros é
xidade desses processos. mais um grande complicador para a inter-
O padrão contemporâneo de classifica- pretação das relações raciais brasileiras, prin-
ção de raça no Brasil tem sido preferenci- cipalmente na compreensão do redobrado
almente fenotípico e este padrão parece ter esforço que militantes e estudiosos devem
mantido uma certa constância no plano das realizar para manter a questão racial como
relações interpessoais, como podem con- fator reconhecido de diferenças sociais.
firmar estudos estrangeiros e brasileiros so- A pergunta mais freqüentemente feita
bre a terminologia utilizada na auto-atri- por pesquisadores aos dados censitários
buição de cor, a qual se baseia em um sis- brasileiros é no sentido de apontar um pro-
tema combinado de cor da pele, traços cor- blema comum aos países de população mes-
porais (formato do nariz, lábios, tipo e cor tiça: como se dá a autoclassificação de cor
de cabelo) e origem regional. Também no do grupo mestiço (já que este é o critério
plano institucional (1) isso se traduziu por estipulado pelo IBGE para a coleta da cor).
poucas variações no vocabulário utilizado As pesquisas estão geralmente interessa-
para coletar a cor da população, as quais das na propriedade da resposta do entrevis-
estão vinculadas a aspectos históricos e tado aos critérios estabelecidos pelas insti-
sociais próprios de cada um dos seis censos tuições responsáveis pelas coletas, isto é,
anteriores ao de 1991 (2 ), que coletaram os estudos questionam o dado em sua di-
dados sobre o quesito cor. mensão macro. Entretanto, quando um
A “cor brasileira” e a “democracia racial respondente dos censos brasileiros declara
brasileira” têm sido objeto de estudos siste- sua cor, ele o faz em função de determina-
máticos de pesquisadores estrangeiros que ções tanto macro quanto microestruturais.
1 O Instituto Brasileiro de Geo-
apontam ora a variação na nomeação da cor As primeiras têm sido objeto de estudos grafia e Estatística - IBGE é o
órgão responsável pela reali-
(Pierson, 1967 e 1951; Wagley, 1952; Harris, que estabelecem as ligações estreitas entre zação, pelo processamento e
1964); ora as estratégias sociais e raciais de declaração da cor e tentativas individuais pela divulgação dos recen-
seamentos realizados a cada
encobrimento do racismo (através de pro- ou institucionais de branqueamento. Pou- dez anos e pelas Pesquisas Na-
cionais por Amostra de Domi-
cessos falhos ou inexistentes de coleta da cos estudos têm se ocupado da formulação
cílio (PNADs), realizadas anu-
cor pelos censos), ao mesmo tempo que re- e mudança dos conceitos raciais e das de- almente.
gistram uma aparente tolerância racial no corrências dessas mudanças para os dados 2 Os censos a que nos referimos
aqui são os de 1872, 1890,
processo de miscigenação, em face dos pa- censitários. Assim, os aspectos microes- 1940, 1950, 1960 e 1980.
drões birraciais europeu e americano truturais foram os que percebemos mais ne- 3 No contexto deste trabalho,
(Skidmore, 1991); ora reproduzem, sem con- cessitados de observação. Neste nível per- usaremos a palavra “negro”
para designar o segmento ra-
testar, as crenças nas relações fluidas, e ain- cebemos a lacuna existente na compreen- cial composto por pessoas que
da muito pouco conhecidas, entre linhas de são da aplicabilidade da terminologia raci- foram classificadas ou se clas-
sificaram nos censos como
cor e classe social. O mito (alimentado pela al dos censos e sua reinterpretação pelos sendo de cor preta e parda.

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sujeitos na incessante troca entre o olhar de critério de descendência. No estudo de
si e o olhar do outro que (in)formam o cam- Laura de Mello e Souza (1991) sobre a
po da identidade racial.Tentamos conside- criação de crianças abandonadas com
rar aqui o diálogo entre estas duas instân- estipêndios do Senado Provincial de
cias, visando compreender mais profunda- Mariana, Minas Gerais, a autora constata
mente os processos de auto e de que, embora fosse proibida por lei discri-
heteroatribuição de cor (4) na sociedade minação racial na prática da caridade
brasileira. camerária ou das Misericórdias, a Câmara
da cidade de Mariana exigia “atestado de
4 Entendemos por auto-identifica-
ção tanto as escolhas de cor brancura” para doações às instituições ou
feitas pelos indivíduos
pessoas por elas encarregadas da criação
respondentes do rol das cores
existentes no vocabulário raci-
A COR NOS CENSOS de expostos. Em caso de ser a criança de-
al brasileiro quanto no vocabu-
lário utilizado pelos censos. Por nunciada como mulata, deixava de rece-
heteroidentificação entende- O Censo de 1872, primeiro recensea- ber a doação e ficava obrigada a repor tudo
mos a atribuição de cor ou raça
realizada pelo conjunto da mento geral da população brasileira, per- que lhe tivesse sido pago pela Câmara. O
sociedade brasileira aos des-
cendentes de pretos, pardos,
tence ainda ao período histórico dos censos Alvará de 1775 tornava livres os expostos
índios e brancos em que um brasileiros que Marcílio (1974) chama de de cor preta ou mulata. Entretanto, o aca-
componente racial ou de cor
vem associado a posições so- proto-estatístico (5), caraterizado por da- tamento pela Câmara de denúncias sem
ciais simbólicas e/ou concre- dos abundantes (registros paroquiais), mas necessidade de comprovação (como nos
tas. Entendemos ainda que,
apesar do procedimento do de qualidade e valor desiguais, principal- tribunais inquisitoriais) sobre a origem das
censo ser o de assumir a cor
explicitada pelo declarante mente porque não explicitam os critérios crianças expostas sugere que essas crian-
como cor auto-atribuída, as utilizados nos processos de coleta. Nele, a ças, livres por direito, foram depois
cores escolhidas fora do grupo
de cor utilizado pelos censos cor da população brasileira é estabelecida reescravizadas (Mello e Souza, 1991, pp.
fazem parte do conjunto de
cores surgidas nos processos
para todos os quesitos, como subtópico da 33-7) em virtude de denúncias sobre sua
de interação social entre gru- condição social, então dividida entre livres origem racial. Durante o século XIX tam-
pos racialmente diferentes,
onde auto e heteroidentificação e escravos. Os termos escolhidos para clas- bém se pode encontrar casos de utilização
se mesclam. sificar a população foram: branco, preto, de critérios de origem para a atribuição de
5 A coleta de dados censitários pardo e caboclo. Pardos são compreendi- cor. Lima e Venâncio (1991), estudando a
no Brasil não é recente. Marcílio
(1974) propõe a existência de dos como resultantes da união de pretos e condição de expostos no Rio de Janeiro
três períodos distintos na
demografia brasileira. O pri-
brancos; caboclos são os indígenas e seus após a Lei do Ventre Livre, constatam que
meiro, que a autora chama de descendentes. Considerando que os termos depois de 1871 há um crescimento de de-
pré-estatístico, vai do início da
colonização até a metade do branco, preto e pardo são cores e caboclo claração de expostos como pardos, deca-
século XVIII e caracteriza-se possui raiz na origem racial, o Censo de
pelas poucas estimativas ge-
indo expressivamente o número de bran-
rais, normalmente aceitas pe- 1872 parece ter usado um critério misto de cos (Gráfico I, p. 69). É possível supor
los demógrafos, apesar de não
incluírem a população de ín- fenótipos e descendência para a caracteri- que, sendo a criança exposta nascida a
dios que vivia fora do contato zação racial da população. partir dessa data hipoteticamente livre (6),
com o branco. O segundo
momento – proto-estatístico – O Censo de 1890, segundo censo geral não fosse mais necessário burlar a regra
inicia-se na segunda metade do
século XVIII e termina com o da população, publicou dados sobre cor de descendência para receber estipêndios
primeiro recenseamento geral, somente para a população geral e por esta- que pagassem os custeios de sua criação.
em 1872. O terceiro período,
chamado de era estatística, tem do civil. Utilizou os termos branco, preto, No caso de adultos, Sérgio Buarque de
início em 1872 e reproduz-se
caboclo e mestiço. O critério misto é nova- Holanda (1993) comenta a ordem régia de
na série de censos realizados
posteriormente, mantendo-se a mente utilizado, só que, neste caso, mesti- 1726 que vedava “a qualquer mulato, até
data de 1940 para a inclusão
do Brasil entre os países que ço (referindo-se exclusivamente ao resul- a quarta geração, o exercício de cargos
realizam censos periódicos, por tante da união de pretos e brancos) e cabo- municipais em Minas Gerais, tornando tal
métodos modernos de coleta e
publicados sistematicamente clo estão vinculados à descendência. proibição extensiva aos brancos casados
por um órgão especializado –
o IBGE (Marcílio, 1974, pp. É importante notar que o critério de com mulher de cor”. O autor considera,
6-7; IBGE, 1990, p. 22). descendência vigorou no Brasil, em deter- entretanto, que essa ordem não foi cum-
6 A Lei do Ventre Livre previa o minados momentos históricos e circunstân- prida à risca em outras províncias, pois
aproveitamento da criança
como escravo até os oito anos cias. Alguns estudos realizados em docu- um parecer de D. João V, de 1731, sobre
de idade e houve também ca- mentos do século XVIII apresentam a con- uma denúncia de cor feita em Pernambuco
sos de reescravização (Moura,
1991). dição de mestiço (mulato) vinculada a um contra o bacharel nomeado Antonio

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Ferreira Castro, alegava que “o defeito de “Cor – Distribuiu-se a população, segundo
ser Pardo não obsta para este ministério e a cor, em quatro grupos – brancos, pretos,
se repara muito que vós [denunciante], por amarelos e pardos – incluindo-se neste úl-
este acidente, excluísse um Bacharel For- timo os índios e os que se declararam mu-
mado provido por mim para introduzirdes latos, caboclos, cafuzos, etc.
e conservardes um homem que não é for- A experiência censitária brasileira de-
mado, o qual nunca o podia ser por Lei, monstra as dificuldades que se opõem à
havendo um Bacharel Formado” coleta de informações relativas à cor. Re-
(Holanda, 1993, pp. 24-5). conhecendo embora tal circunstância, jul-
Durante o início do século XX, os cen- gou-se oportuno proceder a uma pesquisa,
sos de 1900 e 1920 não incluíram cor em uma vez que o recenseamento tem sido, no
sua coleta de dados. Estes censos perten- Brasil, o meio empregado para obter ele-
cem já à chamada era estatística, e o Censo mentos mais amplos sobre este assunto”
de 1920, ao não incluir esse quesito, justi- (IBGE, 1956, pp. xvii-xviii) (8).
fica-se nos seguintes termos:
A conceituação continua definindo os
“[…] as respostas [ocultam] em grande par- critérios de coleta, dos quais trataremos a
te a verdade, especialmente com relação aos seguir, porém o que desejamos registrar
mestiços, muito numerosos em quase todos aqui é o reconhecimento da dificuldade de
os Estados do Brasil, e de ordinário os mais se tratar este quesito.
refratários à cor original a que pertencem Os censos posteriores, de 1960 e 1980,
[…] sendo que os próprios indivíduos nem não fazem menção aos problemas do
sempre podem declarar sua ascendência, respondente com a declaração de sua cor,
atendendo a que em geral o cruzamento explicitando apenas a classificação estabe-
ocorreu na época da escravidão ou em es- lecida para a coleta.
tado de degradação social da progenitora O censo de 1970 não coletou cor, nem
do mestiço. Além do mais a tonalidade da explicitou os motivos. Este censo ignorou
cor da pele deixa a desejar como critério a cor como dado necessário à caracteriza-
discriminativo, por ser elemento incerto ção da população brasileira. Durante a dé-
[…]” (apud Lamounier, 1976, p. 18) (7). cada de 70, estudos criteriosos como o de
Costa (1974), sobre inclusão do quesito
Esta justificativa aponta novamente para em censos futuros, foram realizados por
a forma mista de classificação utilizada no pressão de pessoas interessadas nesses
Brasil, lembrando a dificuldade do entrevis- dados (movimento negro e pesquisadores)
tado em declarar sua origem, ou de se definir visando a preparação para a coleta do
(ou ser definido) fenotipicamente pela cor. Censo de 1980.
O próximo censo brasileiro a coletar cor Diante dos argumentos e justificativas
foi o de 1940. Este censo, primeiro da série dos censos para a inclusão ou não do que-
de censos modernos decenais, estabelece o sito cor, perguntamos: onde reside a difi-
critério de atribuir as cores branco, preto, culdade de incorporação da cor e seu trata-
pardo e amarelo à população brasileira (ver mento nos censos?
critérios a seguir). Sua coleta sobre cor, como Benedict Anderson (1991, pp. 164-70),
a de 1872, é extensa e abrange todos os ou- em estudo sobre a formação das nações asi-
tros quesitos de caracterização da popula- áticas após a independência das metrópoles
ção. A partir deste censo, os termos utiliza- européias, alerta para a importância de se
dos para designar a cor não variaram mais. compreender como, em momentos especí-
O Censo de 1950 (o segundo da idade ficos da história, a raça torna-se elemento
contemporânea dos censos brasileiros) se- destacado nos estudos demográficos, en-
gue as cores utilizadas no Censo de 1940 e, quanto em outros chega a passar desaperce-
na parte destinada aos conceitos, refere-se bida. Segundo Hirschman (apud Anderson, 7 Grifo nosso.
à cor nos seguintes termos: 1991, p. 165), que estudou as categorias 8 Grifo nosso.

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censitárias na Malásia, à medida que a colo- ma acuidade, este censo deu início ainda à
nização se fixa, as categorias dos censos inclusão de quesitos especiais sobre a popu-
tornam-se mais visíveis e exclusivamente lação feminina (fecundidade e mortalidade)
raciais; depois da independência elas são e dados extensos sobre cor da população. O
mantidas de forma mais concentrada, mas Censo de 1950 segue o de 1940 em diversi-
redesenhadas e reordenadas. dade de quesitos pesquisados.
Este fenômeno pode ser constatado nos No Brasil, o reconhecimento das ques-
9 Os objetivos das primeiras co-
letas sobre a população varia-
censos brasileiros, em alguns momentos: tões raciais é antigo (11). Atendo-se princi-
ram de acordo com o momento em 1872, quando a colônia ainda está mui- palmente ao aspecto da constituição de uma
político e os interesses portugue-
ses no Brasil. Assim, até 1750, to presente (apesar da independência), a nacionalidade brasileira, surgem, no século
os dados coletados visavam cor é aplicada a todos os quesitos pesqui- XIX, as propostas de uma “virilização da
“fornecer informações sobre as
ordens de grandeza dessa sados; em 1890, com a mudança do regime raça” (12), compreendida através dos meca-
população”. A partir de 1750
(período extrativista), os objeti- monárquico para república e o final da es- nismos de embranquecimento da população
vos da Coroa Portuguesa são cravidão, o censo se preocupa menos com brasileira possibilitados pela imigração eu-
nitidamente militares: Portugal
deseja saber quanto da popu- as raças e mais com as nacionalidades re- ropéia. Até o período de 20, os argumentos
lação livre e adulta da colônia
pode ser utilizada na defesa
presentadas na população, resultante da para a formação de uma nacionalidade são
do território. A coleta era reali- política de imigração para repor a nitidamente raciais. A partir de 1930, po-
zada pelas Companhias de
Ordenança, com a ajuda da mão-de-obra escrava. rém, com a repercussão dos estudos de Gil-
Igreja Católica, que já realiza- Posteriormente, no Censo de 1940, rea- berto Freyre, que aparentemente colocam
va a inscrição das famílias e
escravos nas listas de “desobri- lizado sob um regime político de inspira- as três raças num nível isomorfo de consti-
ga pascal”, nos registros de
casamento e de batismo. Após ção fascista, para o qual a raça desempenha tuição da cultura, a raça tende a ser menos
1750 (período do vice-reina- papel importante na formulação da nacio- considerada, em detrimento de uma cultura
do), o objetivo muda: agora é
eleitoral e interessa à Coroa nalidade, o quesito cor (e seu derivativo brasileira de caráter nacional (Schwarcz,
saber quanto da população li-
vre e adulta estava apta a votar
racial) vai ser retomado e exaustivamente 1993, p. 247). Em 1940, os esforços das
nas assembléias provinciais e explorado. E a inovação desse censo, com- equipes de governo são no sentido de esta-
a apresentar candidatos elegí-
veis nas assembléias e no Se- parando-se aos censos asiáticos do século belecer uma nacionalidade única, principal-
nado (IBGE, 1990, pp. 22-3). passado estudados por Anderson, não se mente através da educação dos filhos de imi-
Nesse período, a Igreja se
encarrega da coleta, através sustenta na “construção de classificações grantes que tendiam a preservar suas cultu-
das listas nominativas recolhi-
das em cada paróquia, “que étnico-raciais, mas […] em sua ras de origem (Schwartzman e colaborado-
constituía a unidade de infor- quantificação sistemática” (Anderson, res, 1984).
mação e a base para o número
de eleitores […]”. Esse proce- 1991, p. 168) (9). Após o Censo de 1950, o quesito cor foi
dimento apresentava muitas
falhas e excluía parcelas impor-
Em 1872 inaugura-se a fase de coletas coletado duas vezes, em 1960 e 1980, sendo
tantes da população. Por exem- dos recenseamentos gerais. Em 1890, o publicado de forma “esquelética”, para usar-
plo: “[…] os menores de 7 anos
não estavam sujeitos ao precei- recenseamento da população se repetiu, mos a expressão de Thomas Skidmore (1991).
to pascal e, portanto, não cons- com resultados questionáveis, uma vez que Esta pobreza de informações estatísti-
tavam das listas de desobriga
[…]”. Após a independência a coleta ocorreu em um momento político cas, tanto em sua coleta quanto em sua di-
(1822), os objetivos são cada
vez mais eleitorais e, novamen- muito conturbado da história brasileira, com vulgação, tem sido denunciada como es-
te, “[…] parcela significativa da o advento da República e rompimento en- tratégia para jogar a questão racial no limbo
população constituída de não
eleitores mulheres, crianças e tre Igreja e Estado (10). Em 1900 e 1920 das discussões sobre prioridades nacionais
escravos não é contabilizada”
(IBGE, 1990, p. 23).
realizaram-se ainda outros dois recensea- econômicas, políticas, sociais, culturais e
10 Ver a esse respeito os comentá-
mentos gerais da população. Neste último educacionais.
rios de Francisco Mendes da são incorporadas, pela primeira vez, infor- De alguns anos para cá, principalmente
Rocha (então responsável pela
Oficina de Estatística) sobre as mações referentes à produção agrícola e a partir do processo de abertura política e
condições sociais e políticas de industrial. Nas décadas de 1910 e 1930 da mobilização dos movimentos sociais,
realização da coleta (Repúbli-
ca dos Estados Unidos do (períodos das duas Guerras Mundiais) não vários grupos e centros de estudos têm
Brazil, 1898 – Introdução à Si-
nopse). houve coleta censitária. analisado as relações raciais a partir de
11 Alguns autores como Schwarcz
A idade de ouro dos censos nacionais dados macro: caracterização demográfica
(1993) a situam em 1871, inicia-se com a coleta de 1940, para a qual da população, perfil de mortalidade,
momento da declaração da Lei
do Ventre Livre, que impunha contribuiu o demógrafo italiano Giorgio fecundidade, participação no mercado de
uma nova perspectiva de rela- Mortara, inaugurando-se a série de censos trabalho, situação das mulheres e trajetó-
ções entre negros e brancos,
no Brasil. modernos decenais. Realizado com extre- rias educacionais.

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CRITÉRIOS CONTEMPORÂNEOS O censo de 1940 foi o primeiro a
explicitar seus critérios e procedimentos
DE COLETA para a coleta da cor da população:

“Côr – Os critérios adotados nos diversos


Costa (1974) oferece a resposta mais censos brasileiros, no que diz respeito à
abrangente sobre a problemática da inclu- qualificação da côr, não têm sido mantidos
são do quesito cor nos censos brasileiros. uniformemente, variando ainda em relação
Tereza Cristina N. A. Costa realiza um à linguagem corrente. No Censo de 1940, a
estudo que apresenta as teorias sociológi- classificação segundo a côr resultou das
cas sobre “relações interétnicas” e, a partir respostas ao quesito proposto, dadas de
da discussão sobre o significado de termos acôrdo com a seguinte forma de declaração
como raça, etnia e cor, que ela observa se- preceituada na instrução:
rem usados indistintamente, desenvolve um ‘Responda-se preta, branca, amarela, sem-
estudo sobre as dificuldades do levantamen- pre que for possível qualificar o recensea-
to do quesito cor nos censos. do segundo o característico previsto. No
A primeira dificuldade enfrentada, se- caso de não ser possível essa qualificação,
gundo a autora, é a inexistência de critérios lance-se um traço horizontal no lugar re-
universais para o levantamento desse que- servado para a resposta’.
sito. A ONU, manifestando-se sobre este Daí resultou a classificação da população
assunto, considerou que dados a respeito em três grandes grupos étnicos – pretos,
das características étnicas, raciais e de na- brancos e amarelos –, e a constituição de
cionalidade estavam sujeitos a condições e um grupo genérico sob a designação de
necessidades nacionais. Para a ONU (apud, pardos, para os que registraram declara-
Costa, 1974, p. 98) a dificuldade reside ções outras como ‘caboclo’, ‘mulato’, ‘mo-
basicamente no tipo de composição da reno’, etc., ou se limitaram ao lançamento
população onde a cor vai ser pesquisada e do traço. Somente nos casos de completa
nos significados atribuídos à cor. Ou seja, omissão da resposta foi atribuída a desig-
em países de população miscigenada, o nação ‘côr não declarada’. Apenas nos qua-
quesito cor pode resultar em respostas que dros 4 e 62 figuram separadamente os gru-
reflitam apenas os significados sociais pos ‘pardos’ e ‘pessoas de côr não declara-
que a cor apresenta nessa população; seja da’; em todos os demais foram os dois en-
para os aplicadores do quesito, seja para globados, atendendo ao pequeno número dos
os respondentes do censo. Corre-se o ris- que constituíam o segundo e ainda a que a
co, ainda segundo a ONU, de os res- omissão da resposta traduziria, em muitos
pondentes falsearem a cor, afiliando-se casos, uma reserva à declaração expressa de
ao grupo que tenha mais prestígio social, mestiçagem” (IBGE, 1950, p. xxi) (13).
12 Nos referimos a obras do pe-
ou de o coletor do censo identificar gru- ríodo como as de Mario Pinto
pos em ascensão ou em descenso a partir Optamos por incluir esta longa citação Serva (1923) que, ao formula-
rem a “nova” estrutura da socie-
de uma “cor social”. porque nela parecem expressar-se, de um dade brasileira, não se esque-
cem de alertar que “somos uma
Os problemas das coletas sobre a cor lado, as mudanças no critério racial de cor,
nação em formação, crysalida,
em países de população multirracial, caso de outro, as ambigüidades presentes não nebulosa, massa ethnica ain-
da informe, heterogênea e
do Brasil, têm como ponto marcante de tanto na definição de cores quanto no pro- plástica que assumirá os
conflito a existência, no contínuo de cores cedimento de coleta. caracteres que lhe imprimirem
os directores mentaes de sua
da população, do grupo dos pardos. Este se A mudança de critérios ocorre a partir evolução” e que deveríamos
adotar os critérios objetivos
constitui como o grupo em que a variação deste censo, quando o grupo dos descen- “[…] das raças educadas no
do pertencimento parece ser maior e mais dentes de indígenas (caboclos) passa a ser senso positivo das realidades
[…] numa campanha pelo le-
influenciada pelos significados sociais da incorporado ao grupo de pardos, possivel- vantamento moral e social das
sub-raças que habitam o paiz
cor. É esta população que mais fluidamente mente entendidos como mestiços de pretos […]” (pp. 79 e 122).
transita pelas linhas de cor, estabelecendo e brancos, nos censos de 1872 e 1890. Os
13 Mantivemos a grafia original
limites geralmente amplos (Wood, 1991). caboclos, classificados agora como pardos, do texto.

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parecem ter perdido sua referência racial e ficar os pardos. Portanto, nada mais natural
se incorporado ao grupo de mestiços, ge- que seja o Censo de 1950 o primeiro a
nericamente falando. explicitar não o “drama” do respondente
Quanto às ambigüidades, podemos for- mestiço (exemplo dado pelos comentários
mular duas perguntas: 1) por que foram dos Censos de 1920 e 1940), mas o do coletor
incorporados no grupo de pardos, além do censo que, ao se defrontar com a resposta
daqueles que são normalmente classifica- do declarante, ainda assim respeitou o crité-
dos nesse grupo, os que não declararam sua rio de autoclassificação e manteve o proce-
cor?; 2) quem respondeu ao quesito cor no dimento estabelecido.
Censo de 1940?
Observando-se o que o Censo de 1940
estabeleceu como critério para a coleta de
cor temos o seguinte: 1) os não declarantes
O CRITÉRIO, A INSTRUÇÃO
eram incluídos no grupo de pardos porque
“em muitos casos, [havia] uma reserva à
E A PRÁTICA
declaração expressa da mestiçagem”. Ou
seja, eram pardos, mas não desejavam Se nas instruções do censo a questão é
explicitar o componente preto de sua con- aparentemente simples – quem responde
dição racial, tanto quanto, ao que parece, ao quesito e quem atribui o nome da clas-
não explicitavam o componente branco; 2) sificação (que podem ser processos inde-
quando o declarante não se situava em ne- pendentes, como parece ter ocorrido no
nhuma das três cores propostas, o coletor censo de 1940), na prática concreta da pes-
lançava um traço no espaço destinado ao quisa, a dinâmica é mais complexa, como
quesito cor e, a partir desta referência, criou- informa Araújo (1987) e como pudemos
se uma categoria de pardos. Esta categoria observar quando por ocasião da sondagem
foi a soma das declarações não conven- sobre o perfil do aluno de cursos de alfabe-
cionadas no censo (branca, preta e amare- tização de adultos na cidade de São Paulo
la) e das possíveis “inferências” realizadas (Januário et alii, 1993). Assim, Tereza
pelo coletor do censo (nos casos interpre- Cristina Araújo afirma que “ […] há [em]
tados como “reserva à declaração expressa situações de pesquisa, como em outras si-
de mestiçagem”). Assim, no Censo de tuações sociais, toda uma etiqueta de rela-
1940, os pardos formaram um grupo de cionamento elaborada, no caso, a partir da
cor criado a posteriori, a partir desses dois ideologia das relações raciais na sociedade
critérios de resposta. Parte das respostas brasileira, que faz com que de fato sejam
sobre pardos foi dada pelos declarantes, várias as possibilidades de obtenção do
parte foi inferida pelos coletores e analis- registro da informação da cor envolvendo
tas do IBGE. tanto o informante quanto o entrevistador”
O censo de 1950 incorporou o grupo de (Araújo, 1987, p. 16).
pardos englobando ali a declaração das De nossa experiência pessoal com a
muitas cores e origens que formam o espec- coleta do quesito cor (Januário et alii, 1993)
tro racial desse grupo. A partir desse censo pudemos perceber momentos em que, nes-
fixam-se as nomeações da cor e o procedi- se entrejogo de relacionamentos, surgiu
mento de coleta através da autoclassificação, com nitidez a problemática do critério es-
as quais têm sido mantidas nas instruções e tabelecido (autoclassificação pelas cores
definições de conceito até hoje. Explicita estabelecidas nos censos a partir de 1950 –
que ali foram incorporados os que assim se branco, preto, pardo, amarelo).
declararam. A diferença entre este modelo Reportamos aqui duas dessas situações
de coleta e o utilizado em 1940 parece resi- que vivemos na pesquisa anteriormente
dir no fato de que o Censo de 1950 incorpora mencionada sobre o perfil racial de alunos
a declaração dos respondentes, enquanto o de cursos de alfabetização na cidade de
de 1940 instrui o coletor na forma de classi- São Paulo.

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Durante a realização do pré-teste, uma tração definida pela combinatória de uma
das pesquisadoras iniciou as entrevistas por multiplicidade de traços físicos (cor e tex-
uma das alunas da sala. Uma moça de cor tura da pele; formato do nariz, olho, boca,
preta, cuja pele não demonstrava, para o corpo; tipo e cor de cabelo), da posição
olhar da entrevistadora, um único sinal de social e da atribuição comparativa do con-
mestiçagem. Quando perguntada sobre sua texto populacional majoritário variando
cor, e depois de ouvir as quatro cores nas regionalmente (Pacheco, 1987).
quais podia se situar, não titubeou e res- Não temos conhecimento de estudos que
pondeu – branca! A pesquisadora certamen- avaliem a convergência ou divergência de
te não conteve o espanto, porque a decla- hetero e auto-atribuição de cor da popula-
rante repetiu a resposta enfaticamente. À ção (antropólogos analisaram principal-
pesquisadora não coube mais do que mar- mente a diversidade de designações lingüís-
car com um X o espaço ao lado da palavra ticas (14)). Em outra pesquisa recentemen-
branco, lembrar para sempre o espanto te realizada na cidade de São Paulo (São
causado pela resposta e manter a certeza de Paulo, 1993) (15), evidenciou-se esta in-
que a resposta veio da possível irritação tensa variedade de heteroclassificação de
que a pergunta causou à declarante (talvez cor no Brasil e que pode ter ocorrido nos
pela obviedade da resposta). recenseamentos gerais a partir de 1940,
São inúmeros os exemplos da distância quando agentes do censo enfrentaram situa-
entre a expectativa do censo e a compreen- ções delicadas ditadas pela etiqueta de re- 14 Para facilitar a compreensão
utilizamos os termos “classifi-
são da população. Casos houve em que o lacionamento, pela automação e cansaço cação de cor” e “designação
declarante associou a cor da pele de pardo dos entrevistadores (16). de cor”.

a amarelo e deliberou durante algum tem- Foram apresentadas aos coletores 34 15 Essa pesquisa foi realizada
entre educadores de meio
po sobre a possibilidade de ser amarelo, fotos de adolescentes e jovens adultos de aberto da Secretaria da Crian-
optando, depois, por pardo (ou por more- ça, da Família e do Bem-Estar
ambos os sexos (entre 14 e 21 anos) situados
Social do Estado de São Paulo
no). Uns poucos declararam-se amarelos, em diversos pontos do espectro fenotípico e motoristas que iriam traba-
lhar no censo de crianças/ado-
ressalvando porém que não estavam doen- brasileiro para que atribuíssem idade e cor lescentes em situação de rua,
tes (amarelo sendo associado a estado de (de acordo com as alternativas usadas pelo durante o período de treina-
mento.
saúde e não à raça). IBGE). Observou-se uma intensa variabili-
16 Leda Mohamed, aprofundan-
No que toca à autoclassificação por dade na aplicação de ambos os atributos e, do a primeira parte do relató-
rio de pesquisa sobre alunos
outros termos indicativos de cores fora dos no caso da classificação de cor, apenas dois analfabetos na cidade de São
quatro apresentados na questão fechada dos dos 34 jovens apresentados receberam una- Paulo, vem coletando entrevis-
tas com pesquisadores que tra-
censos, os declarantes recorriam ao rol de nimidade na atribuição, sendo que mais da balharam na aplicação do
cores que se situam entre os muitos termos metade das respostas se repartiram entre, questionário do Censo de
1991. Na entrevista no 1, o
localizados na literatura especializada. Para pelo menos, três categorias de cor. pesquisador relata que, embo-
ra o procedimento estipulado
os respondentes, o problema da classifica- Em dissertação de mestrado sobre atri- pelo IBGE durante o treinamen-
ção surgia quando os entrevistados tenta- buição de cor às crianças em creches muni- to tenha sido o de perguntar a
cor da população e registrar a
vam fazer o diálogo entre os termos de que cipais da cidade de São Paulo, Eliana de resposta da cor auto-atribuída,
o pesquisador atribuiu a cor
dispunham para se referirem às tonalidades Oliveira (1994) observa a tendência, entre quando: 1) o entrevistado lhe
possíveis de pardo e à aridez do termo par- as funcionárias brancas que se ocupam das pareceu ser branco; 2) a eti-
queta de relacionamento exi-
do, proposto na questão fechada sobre cor. crianças, de branquearem as crianças na giu (como procedimento mais
Retomando as palavras de Tereza identificação das fotos. As atendentes ne- educado) que ele não pergun-
tasse a cor; 3) a automação
Cristina N. Araújo, e nossa própria experi- gras, por sua vez, tenderam a enegrecer as da entrevista e o cansaço aca-
bavam por abreviar o procedi-
ência enquanto respondentes do Censo de crianças (Oliveira, 1994). mento de coleta – “[…] no
1991, na dinâmica do relacionamento en- O que a problemática do quesito cor décimo questionário do dia
você já não perguntava mais”;
tre entrevistador e respondente, pode ocor- parece pôr em evidência é um aspecto ain- 4) só perguntava a cor se o
entrevistado fosse negro (signi-
rer a atribuição de cor pelo coletor do IBGE, da não discutido pela literatura brasileira ficando de cor preta) – “Mas,
quando os dados fenotípicos lhe pareçam sobre cor e que decorre do desconhecimen- quando era negro, eu sempre
perguntava, porque na instru-
suficientemente “objetivos”. Mas qual a to que temos sobre proximidade ou distân- ção tinha muito esse cuidado
“objetividade” de atribuição de cor a al- cia entre os processos de auto ou hetero- de enfatizar: Olha, se o cara
for negro e falar que é branco,
guém no Brasil, quando a “cor” é uma abs- atribuição de cor ou pertencimento racial. você tinha que pôr”.

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A cor (ou pertencimento racial) que alguém cor à pergunta aberta sobre a designação de
se atribui é confirmada ou negada pelo olhar cor, sendo que a cor morena foi a mais
do outro. Não desejamos propor aqui uma freqüentemente empregada depois da bran-
revisão do processo usado pelo IBGE de ca (34,4% das respostas) (17).
auto-atribuição de cor. O que nos inquieta Sobre a alta relação entre a resposta
é a repercussão possível deste desconheci- “moreno” à pergunta aberta e a resposta
mento nos estudos sobre relações raciais, “pardo” à pergunta fechada (66%), Nelson
especialmente aqueles que se ocupam da do Valle Silva assinala, após a análise do
mobilidade social da população brasileira padrão do resíduo, que “a única discrepân-
em séries históricas. De um lado, a Psico- cia do ‘bom comportamento’ deste padrão
logia Social, principalmente os estudos é a tendência significativa de alguns pretos
sobre identidade étnica (Cross Jr., 1991; na classificação de cor terem se codifica-
Goffman, 1982; Milner, 1984), que insis- dos como ‘morenos’ na designação de cor”
tem sobre a importância do olhar do outro (Silva, 1992, p.41).
na construção do eu. De outro, o processo Para alguns, esse “moreno” pode estar
de coleta do IBGE que adota o princípio da designando uma procura de branqueamen-
autoclassificação. É possível supor que para to. Para outros, porém, essa denominação,
parte da população brasileira ambos os pro- tanto no processo de auto quanto de
cessos não sejam idênticos, ocorrendo uma heteroclassificação, pode estar designan-
dissonância entre o reconhecimento de si do um processo de “despreconceituação da
mesmo e o reconhecimento através do olhar nomeação da cor”. As palavras usadas para
do outro. Não se trata de uma questão situa- nomear a cor das pessoas não são meros
da puramente no plano heurístico, mas que veículos neutros enunciadores de mati-
deve ter repercussões na dinâmica das rela- zes, mas carregam índices de preconceito/
ções interpessoais e na interação com as discriminação, de seu distanciamento e de
instituições. sua superação. Não dispomos de um
mapeamento lingüístico como o que já foi
feito nos EUA sobre atributos associados
às palavras black e negro, nem tampouco
O QUESITO COR, OS CRITÉRIOS de uma austera política lingüística como a
que vem caracterizando a construção de um
RACIAIS E A IDENTIDADE RACIAL vocabulário politicamente correto naquele
país. Mas algumas pistas sugerem a prefe-
Como vimos, o IBGE emprega apenas rência de certas palavras para designação
quatro nomes para designar fenótipos de da rotulação de cor ou de pertencimento
cor – branco, preto, pardo e amarelo. Estu- racial entre certos segmentos sociais, nem
dos têm mostrado, porém, que a população sempre compartilhada com outros, contri-
brasileira se utiliza de um vocabulário muito buindo para a fluidez deste campo das re-
mais rico e matizado. Como Nelson do Valle lações sociais no Brasil.
Silva (1992, p.37) relata, Wagley (1952) Em certos grupos sociais, ainda se usa a
encontrou cinco termos numa comunidade expressão “pessoa de cor”, forma “educada”
amazônica; Pierson (1967, 1951) também e distinta de se designar indefinidamente
encontrou cinco termos em pequeno pretos e pardos (ou seu conjunto), embora
vilarejo do interior paulista (Cruz das Al- seja execrada por certos segmentos negros.
mas) e 20 termos diferentes para rotular A literatura sociológica dos anos 50 e 60,
matizes de cor das pessoas na Bahia. Harris principalmente a Escola de São Paulo, tam-
(1964) encontrou 40 termos raciais em uma bém empregou uma série de palavras ou
comunidade de pescadores do interior da expressão para designação de negros.
17 Esta também foi a opção mais Bahia. No estudo famoso do IBGE durante Os estudos mais recentes sobre a cor da
freqüente dos alunos paulis- a realização da PNAD 76, foram mencio- população brasileira têm suscitado algumas
tanos matriculados em cursos
de alfabetização de adultos. nadas mais de 190 nuances diferentes de reflexões importantes, que se situam entre

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a chamada problemática do branqueamen- víduos e grupos de uma mesma sociedade
to e os esforços do movimento negro em determinariam diferenças culturais, as quais
realizar um resgate da identidade racial da pudessem ser consideradas nos censos
parte da população brasileira expressa nos como fatores reais de diferenças entre os
censos pelas cores preto e pardo. membros da população brasileira. A autora
A cor pesquisada pelos censos, segun- não propõe um termo definitivo, mas o
do Costa (1974), é uma frágil aproximação movimento negro contemporâneo, que se
de uma classificação racial biológica da reativava na mesma época do estudo de
população, e como lembram essa autora e Costa (meados da década de 70), sugeria a
Giralda Seiferth, “o conceito biológico de expressão negro, posteriormente adotada
raças não tem instrumentalidade para as por alguns acadêmicos e pesquisadores.
ciências sociais” (Seiferth, 1989, p. 54) Mas, perguntamos, o que é negro?
porque os grupos humanos formam um No Brasil, o significado desse termo
continuum de traços biológicos. A diferen- passa diretamente pela visão de quem o
ça de cores não constituiria uma raça, ape- utiliza, isto é, para se compreender as ver-
nas traços físicos diferenciadores entre gru- sões existentes do termo negro, necessita-
pos humanos biologicamente iguais (Cos- mos saber quem o emprega.
ta, 1974, p. 100; Seiferth, 1989, p. 54). O movimento negro o tem empregado
Entretanto, ambas as autoras concordam em mais de um modo: para definir a popu-
que a “palavra raça evoca classificações de lação brasileira composta de descendentes
ordem física utilizadas para marcar dife- de africanos (pretos e pardos); para desig-
renças de ordem social [que] levam à clas- nar esta mesma população como aquela que
sificação e hierarquização de grupos e pes- possui traços culturais capazes de identifi-
soas socialmente definidos segundo crité- car, no bojo da sociedade brasileira, os que
rios subjetivos, que nada têm a ver com o descendem de um grupo cultural diferencia-
fenômeno raça propriamente dito” do e coeso, tanto quanto, por exemplo, o
(Seiferth, 1989, p. 54). dos amarelos; para reportar à condição de
Diante do fato de que a cor possui um minoria política dessa população e a situar
traço determinante de hierarquização soci- dentro de critérios inclusivos de pertinên-
al, Costa (1974) propõe que se estude a cia dos indivíduos pretos e pardos ao seu
classificação expressa no vocabulário uti- grupo de origem (Munanga, 1986 e 1990).
lizado pelos respondentes dos censos. “O Pesquisadores de relações raciais e al-
objetivo deste estudo seria chegar a uma guns demógrafos também o têm incluído
classificação que refletisse os vários crité- em seu vocabulário. Entretanto, no caso
rios utilizados e tornasse mais inteligível a destes últimos, nem sempre o termo carre-
ambigüidade que parece caracterizar a iden- ga o sentido racial-político-cultural dado
tificação étnica na sociedade brasileira” pelo movimento negro. A pesquisa do Seade
(Costa, 1974, p. 100) (18). (1992) sobre família e pobreza na cidade
A autora, contestando o conceito racial de São Paulo considerou o item cor para
e racista que subjaz aos critérios de cor, quase todos as variáveis pesquisadas: mo-
sugere uma reversão da classificação para radia, trabalho, educação, família,
um caráter cultural. Essa estratégia, que fecundidade, etc. Entretanto, ao optar pelo
também é uma meta do movimento negro, termo negro não realizou qualquer distin-
pode levar a desvios de avaliação de uma ção entre este e preto, que se referiria ape-
população e de seus grupos sociais, pois, nas à cor. Também não incluiu entre os
como lembra Seiferth, “[…] há nas socie- negros os pardos. Assim, negro tornou-se
dades multirraciais uma visão reducionista sinônimo de preto, nessa pesquisa, que
segundo a qual a raça determina a cultura manteve as quatro categorias do censo:
[…]” (1989, p. 54). Ao trazer a cor para branco, “negro”, pardo e amarelo. Ou seja,
dentro de um espectro cultural, Costa pare- ao deixar os limites do movimento negro e
ce sugerir que diferenças físicas entre indi- seus simpatizantes, o termo desveste-se de 18 Grifo nosso.

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seu conteúdo político-cultural. referencial cultural para reorientação políti-
Um outro aspecto é a utilização do ter- ca face a outros grupos étnicos. Diz a autora:
mo negro por parte da sociedade branca e
da militância negra brasileira. O estudo “A etnicidade é considerada […] como uma
realizado por Yvone Maggie para o catálo- forma de interação entre grupos culturais,
go das comemorações do Centenário da operando dentro de contextos sociais co-
Abolição, realizadas em 1988, mostra que, muns, na medida em que o negro dialoga
em contextos puramente culturais, como ou tenta dialogar com a sociedade, enquan-
os que ocorreram durante as festividades to portador de uma cultura própria. No
do centenário, o termo negro parece adqui- decorrer desse processo, há uma contínua
rir um certo isomorfismo com o termo bran- conscientização de um ‘nós’ em oposição
co. A cultura negra e a cultura branca apa- a um ‘outro’ e, portanto, o fortalecimento
rentemente se equivaleriam enquanto pro- de uma identidade étnico-racial, bem como
dutos culturais cuja diferença não implica- de uma cultura negra” (Pinto, 1993, p. 51).
ria subordinação e seus efeitos. Diz a autora:
Dessa perspectiva, a construção da
“No ano do Centenário a diferença foi co- etnicidade é trajeto necessário para a com-
locada na cultura, porque é da origem e não preensão das relações de força entre os
do presente que se fala. É a identidade de grupos e para a definição de estratégias de
nação que se busca. Mas o ano do Centená- enfrentamento da discriminação e suas
rio revelou também o terror de se pensar decorrências, tais como a campanha “Não
‘pretos’ e ‘brancos’, ‘claros’ e ‘escuros’ deixe sua cor passar em branco” visando
como mesmos diferentes no social. […] Preto alcançar maior adequação da resposta da
e branco, claro e escuro, e finalmente negro população ao quesito cor, durante a coleta
são termos e oposições usados socialmente no recenseamento realizado em 1991. Esta
para comunicarem diferenças significativas campanha, fomentada pelo movimento
na cultura” (Maggie, 1989, p. 24). negro e por pesquisadores interessados na
questão racial brasileira, ainda não pode
Desse ponto de vista, ainda segundo ser avaliada. A lentidão no processamento
Yvone Maggie, compreender o significado dos dados desse censo tem mantido a co-
social do vocabulário de cores, no qual ne- munidade negra brasileira e pesquisadores
gro corresponderia à cultura, preto e branco em compasso de espera sobre os resultados
às diferenças sociais, e claro e escuro à ten- efetivos da campanha.
tativa de escamoteamento da diferença so- Um último ponto a ser tocado é aquele
cial, implicaria repor a cor (e não a cultura que, embora considerado como percepções
ou a origem) como elemento importante para ideológicas da cor sustentadas nas políti-
pensar as diferenças sociais significativas cas de branqueamento da sociedade brasi-
na cultura brasileira (Maggie, 1989, p. 24). leira, representa a maioria das expressões
O estudo de Regina P. Pinto sobre a coletadas pelos censos: a do respondente
história do movimento negro em São Paulo que nem está vinculado ao movimento ne-
aponta em direção talvez mais abrangente, gro nem possui uma consciência social e
ao discutir a constituição da identidade ét- cultural autônoma.
nica. Para a autora (1993), o processo de Para a maioria dos declarantes, a cor
construção da identidade étnica (ser negro) auto-atribuída no momento da declaração
é relacional, porque seu produto é (ou tor- possivelmente limite-se a definir um traço
na-se) um elemento de identidade política. físico que não expressa pertencimento ra-
Assim, os grupos em processo de constru- cial ou étnico, no sentido de que o sujeito
ção da identidade étnica tendem a utilizar a respondente se veja inserido num grupo
cultura como um referencial do qual alguns diferenciado por outros sinais de identida-
aspectos são destacados e outros são esque- de além do que está sendo imediatamente
cidos, numa contínua reelaboração do solicitado. O que os inúmeros termos utili-

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zados pelos respondentes dos censos para processo, as marcas culturais construídas
se auto-identificarem podem explicitar não pelos movimentos sociais são elementos
são apenas os valores sociais que os importantes de sinalização diacrítica de
repondentes atribuem à cor ou à raça, mas identidade. Entretanto, as diferenças cul-
também as ambigüidades enfrentadas pe- turais, para se tornarem modos efetivos de
los sujeitos respondentes ao se inserirem diferenciação (a ponto de serem expressas
num sistema de cores no qual a cor, e ape- em termos de pertencimento étnico), ne-
nas a cor, é responsável pela sua inserção cessitam ser, primeiramente, absorvidas no
nos grupos sociais de cor. processo de identidade dos indivíduos de
Ilustramos aqui a questão da auto-atri- cada grupo. E, como nos alerta Cross Jr.
buição de cor através do estudo de Moema (1991), o processo de construção de uma
Poli T. Pacheco (1987), o qual apresenta identidade étnica é longo, demorado e rea-
magistralmente os conflitos e as ambigüi- lizado por etapas que incluem momentos
dades surgidas da auto e heteroclassificação de evolução para patamares mais acurados
de cor em famílias de baixa renda do Rio de de pertencimento racial e/ou cultural e de
Janeiro. Ao entrevistar membros de famí- involução para modos reativos aos traços
lias mestiças, a autora constata a grande diacríticos de identidade.
variedade de termos e de combinações en- Segundo Cross Jr. existem cinco está-
tre os termos lingüísticos que se referem à gios no desenvolvimento da identidade
cor e os que se referem a outros fenótipos racial de pessoas negras (19). Para cada um
que reforçam ou confirmam a cor que se desses estágios há posturas definidas que
deseja atribuir a si mesmo e a outra pessoa. vão desde a negação pura e simples de ser
Pacheco (1987) ressalta dois elementos discriminado racialmente (o que poderia
importantes para se compreender o siste- incluir uma aversão por tudo que lembre a
ma classificatório utilizado pela população condição racial/étnica) até um estágio de
preta e parda que ela entrevistou. Primeira- superação do dado racial de identidade
mente, “[…] é […] na relação que o tipo como principal referente da condição hu-
racial de uma pessoa é definido”, isto é, o mana. Esse processo tende a manter um
sujeito que atribui a cor a outro o faz em traço evolutivo – do estágio 1 para o está-
função de seus próprios atributos raciais e gio 5 –, entretanto não é linear nem contí-
define o outro em termos comparativos. nuo. Momentos de certeza e conforto psi-
Segundo: o sistema de atribuição de cor cológico em relação ao pertencimento ra-
pode estar também associado a outros atri- cial podem ser acompanhados de atitudes
butos como o local de origem do sujeito a reativas, de negação e incertezas sobre o
quem se atribui a cor. “Em resumo, uma desejo de pertencer ou não a uma cultura e/
vez que as classificações são relacionais, ou raça. Mesmo os que ultrapassam os pri-
lança-se mão de uma terminologia para dar meiros estágios de contato com a questão
conta das possibilidades de manipulação, étnica/racial não realizam um movimento
que se acentuam devido à predominância direto para a identidade plena. Os indiví-
no grupo do elemento mestiço” (Pacheco, duos podem permanecer “congelados” em
1987, pp. 89 e 90). A autora revela com alguns dos estágios desse processo, osci- 19 O primeiro estágio, onde se
grande acuidade o sistema de cor ambíguo lando entre o compromisso com sua iden- esboça a identidade a ser
mudada, é o pré-encontro. O
no qual seus entrevistados estão inseridos tidade esboçada e o desligamento dos atos encontro (estágio 2) isola o
ponto no qual a pessoa se vê
e nas formas que encontram para abordar a políticos, sociais, públicos e privados que compelida a mudar. A imersão-
questão racial fora do discurso informado a nova identidade lhes impõe. O movimen- emersão (estágio 3) é o mo-
mento crucial da mudança de
pelo movimento negro. to oscilatório é próprio de todas as etapas, identidade e dos movimentos
psicossociais de aceitação e
Um outro aspecto dessa mesma pers- porque a identidade racial (enquanto parte recusa da identidade em pre-
pectiva é o que se relaciona ao processo de da identidade mesma) não se forma como paro; e internalização e
internalização-compromisso
construção de identidade racial pelo qual algo acabado, mas como algo constantemen- (estágios 4 e 5) descrevem o
parecem começar a passar as gerações mais te em processo, constantemente mutante e hábito e a internalização da
nova identidade (Cross Jr.,
novas de pretos e pardos brasileiros. Nesse mutável (Cross Jr., 1991, pp. 191-223). 1991, pp. 190-1).

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Cross Jr. analisou o processo de cons- Germán W. Rama (1989) sugere, na
trução de uma identidade afro-americana análise de dados sobre educação em São
para os negros americanos. Embora varie o Paulo, com base em informações retiradas
contexto sociocultural, pode-se pensar que da PNAD 1982, que a passagem da linha de
esse movimento oscilatório é semelhante cor poderia ocorrer em outro sentido: um
para as populações negras fora de contex- escurecimento da população. Sendo uni-
tos de maioria racial/cultural negra. Parece dade de coleta censitária o domicílio e le-
ser esse movimento que capturamos nos vando-se em consideração que são os che-
estudos sobre cor no Brasil, onde o grupo fes de família que atribuem cor aos mem-
de pardos compõe uma parcela da popula- bros menores em cada domicílio, os dados
ção para quem a cor pode determinar luga- sobre cor coletados seriam definidos pelo
res sociais e culturais muito variados, de- pertencimento racial do chefe de família.
pendendo da escolha da cor que o indiví- Rama (1989, p. 25) sugere que o
duo se atribua e/ou que lhe seja atribuída pertencimento racial declarado nos censos
socialmente. Ainda que não se coloque o poderia variar de acordo com a idade dos
problema da identidade racial dos indiví- chefes de família (20), o que poderia signi-
duos pesquisados, ela possivelmente per- ficar que as diferenças de idade internas
manece subjacente às respostas da popula- aos grupos sociais determinariam formas
ção preta e parda brasileira ao quesito cor de auto-identificação que se alterariam no
dos censos e às interpretações que, posteri- tempo. Um único respondente declararia
ormente, foram feitas dessas respostas. a cor em nome de outros, que, futuramen-
te, poderão alterar seu pertencimento ra-
cial (na medida em que se tornam chefes
IDENTIDADES RACIAIS E LINHA de família com maior consciência do sig-
nificado social e/ou político de seu
DE COR pertencimento racial).
Essa hipótese também foi sugerida por
Esta reflexão sobre as identidades dos Wood (1991) no seu estudo sobre mudan-
indivíduos pesquisados pelos censos, como ças na auto-identificação racial baseado na
já afirmamos acima, não tem caráter apenas técnica das relações de sobrevivência. As-
exploratório, mas nos leva a refletir mais sim, esse autor conclui:
detalhadamente sobre a importância dos
fatores que entram no processo de classifi- “A técnica das relações de sobrevivência
cação da população por cor e na relação da mostra que o número projetado de pretos
cor com outras variáveis. estava bem abaixo do número real, levan-
Na ausência de estudos equivalentes ao tado pelo censo de 1980. A razão entre os
de Cross Jr. (1991) para o Brasil devemos valores reais e esperados sugere que cerca
nos contentar com conjecturas e sugestões de 38% de homens e mulheres que se de-
que, ao complicarem ainda mais os campos clararam pretos em 1950 mudaram sua iden-
dos estudos sobre relações raciais no Brasil tificação para pardos em 1980. Entre par-
com base em dados censitários, evidenci- dos e brancos, análises feitas sobre popula-
am a lacuna e a necessidade de pesquisas ções projetadas e reais indicam, ainda, que
sobre o tema. a prevista reclassificação de pardo para
20 Entre chefes de família com 40 O que os estudos de Cross Jr. (1991) tra- branco foi bem menos pronunciada, se é
a 59 anos de idade, 74% se
auto-identificaram como bran- zem de novo neste contexto de rotulação da que tinha havido, e que não se poderia
cos, 6,5% como negros, 15%
como pardos e 4,2% como cor da pessoa? Que o pertencimento racial descartar a reclassificação de branco para
amarelos. Entre os de 20 a 29 não constitui um dado imutável na vida das pardo” (Wood, 1991, p. 104) (21).
anos de idade 71% se identifi-
cam como brancos, 7,1% como pessoas. É possível esperar, ou pelo menos
negros, 18,6% como pardos e
3,1% como amarelos (Rama,
levantar como hipótese, que, na trajetória de Além de dar pistas sobre a passagem da
1989, p. 25). vida das pessoas, haja mudanças no proces- linha de cor se processar também no senti-
21 Grifo nosso. so de autoclassificação de cor. do do escurecimento, as sugestões de

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Germán W. Rama e os estudos de Charles da questão. Com base em tabulações espe-
H. Wood tornam-se ainda mais interessan- ciais do Censo de 1980, as pesquisadoras
tes porque permitem abrir a trilha para se evidenciaram uma “clara preferência pela
pensar a cor como uma variável dependen- declaração das crianças menores de um ano
te, estimulando a que pesquisadores se como de cor branca: com efeito, aproxima-
perguntem quais dimensões da vida social damente 152.000 crianças menores de um
poderiam estimular as pessoas a se auto- ano declaradas brancas seriam filhos de mãe
rotularem nas categorias propostas pelo de outra cor. O contrário acontece para as
IBGE. Ou seja, estamos sugerindo aqui a crianças de cor preta e parda: existem pelo
necessidade de não se analisar a cor exclu- menos aproximadamente 63.000 e 87.000
sivamente como variável independente mas crianças cuja mãe tem cor preta ou parda e
também como variável dependente. A ques- elas não a têm” (Berquó; Bercovich; Garcia,
tão se torna tanto mais intrigante quando se 1986, p. 36).
pensa em pelo menos duas condições de Cabe notar ainda que nada se sabe so-
vida que se traduzem em variáveis demo- bre um fato que deve estar permeando o
gráficas: o gênero e a idade. concreto das relações e as pesquisas: como
Estudos recentes sobre composição se dá a classificação de um negro por um
racial da população brasileira (Silva, 1992) branco. Ou seja, deve haver uma variação
e mais particularmente sobre casamento no tempo e essa variação necessitaria ser
inter-racial no Brasil (Berquó, 1991; Silva, considerada.
1992) analisam os dados como se o proces- Quais seriam as orientações subjetivas
so de autoclassificação de cor fosse idênti- para atribuição de cor à prole em país mar-
co entre homens e mulheres, assumindo cado por desigualdades raciais; se pais e
como informação objetiva – e não discu- mães se comportam da mesma forma; ou
tindo sua eventual decorrência de processo como brancos classificam negros são per-
subjetivo de classificação – o excedente de guntas que, por enquanto, ficam sem res-
mulheres que se autodeclararam como bran- posta (22).
cas na população (Berquó, s/d, p. 2; Silva,
1992, p. 21). Ora, o estudo já citado de Wood
(1991) informa que a reclassificação da cor O QUE FAZER?
de um censo para outro não é idêntica, nem
ocorre no mesmo sentido quando se com- O que fazer diante de tanta ambigüida-
param homens e mulheres (Wood, 1991, de, de tantos imponderáveis no processo
tabelas 4 e 5, pp. 100-1). de pertencimento/atribuição racial no Bra-
Também, nos estudos sobre a cor dos sil? Abandonar o mapeamento das infor-
filhos segundo a combinação de cor dos mações estatísticas, com certeza, não é
pais (como já afirmamos é a classificação solução. Como afirma Nelson do Valle
de cor atribuída aos filhos pelo chefe de Silva, “acreditamos que a tradicional for-
domicílio), Carlos Hasenbalg e Nelson do ma de mensurar a identidade racial nas
Valle Silva (1992) observam, sem discutir, estatísticas oficiais é fundamentalmente
que, contra a expectativa do geneticamente válida e que, portanto, os estudos que a
esperado, “as combinações com preto ten- utilizam […] devem cobrir com razoável
dem a gerar resultados mais claros e as com- fidedignidade a dimensão racial que pre-
22 No estudo anteriormente men-
binações com pardo tendem a gerar resul- tendem mensurar” (Silva, 1992, p. 41). cionado, Wood (1991) deixa
tado pardo” (Hasenbalg e Silva, 1992, p.74). Levantá-las, aqui, tem o sentido de infor- de discutir, analisar e contro-
lar o possível impacto, na
No Estudo da Dinâmica Demográfica da mar o leitor sobre limites de segurança reclassificação, de o informan-
te sobre a cor ser o chefe de
População Negra no Brasil, Elza Berquó e necessários na apreciação dos dados sobre domicílio. Assim, nos parece
colaboradoras (1986) oferecem argumen- cor no Brasil e estimular a produção de inadequado ter processado a
análise de reclassificação de
tos para esta nossa reflexão em torno de estudos e pesquisas sobre as dimensões cor em grupos de idade a partir
determinações psicossociais na atribuição antropológica e psicossocial no processo dos 10-14, 15-19 anos para
os quais a cor foi imputada pelo
de cor e da necessidade de aprofundamento brasileiro de auto e heteroatribuição de cor. pai ou pela mãe.

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