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Quinto Jornalismo

TERRA URBANA 1
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Quinto Jornalismo

TERRA URBANA

Antonio Carlos Senkovski


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Introdução

De Santa Izabel do Oeste à cidade de


Nossa Senhora da Luz dos Pinhais
A construção de um texto pelo modo intimista, de um interlocutor
falando com seu leitor, não parece a mais adequada para contar uma
história que não é de uma pessoa só. Quem escreve estas linhas com-
partilha de uma história coletiva, de uma tendência que se concretiza a
cada dia no povo que deixa pra trás os pequenos e enchem os grandes
centros urbanos de gente e de problemas.
Este autor, personagem real, conta agora sua história por estas linhas
de modo a não deixar o texto por demais enfadonho. Anos atrás não
sabia ao certo o que significava enfadonho, muito menos a ida para a
cidade. Ouvia a voz da sua formação, que tentava ser burguesa, e ouvia:
o trabalho dignifica o homem. Era a síntese de um pensamento cujo peso
não contabilizava na bagagem física, mas que era a base motivadora do
“desenlace” com sua terra.
Ao fazer a mala e partir rumo ao desconhecido, pode-se dizer que o
motor e o ronco do ônibus alimentam os ânimos de esperança. Já pensava
no sucesso que ainda não tinha, numa lógica bastante egocêntrica, e que
deveria não esquecer dos conselhos quase que catequéticos de ter humil-
dade de sobra, soberba jamais. Era o início da contradição. Esquecia-se
que o próprio pensamento em curso já era atitude de soberba, adquirida,
em parte, por estar 2 metros acima do nível do asfalto, no assento confor-
tável do ônibus indo para a capital do estado.
O sujeito não está sozinho, até porque mais 41 passageiros vêm ao
lado do aspirante a escritor. E só se percebe as sensações não individu-
alizadas quando se chega ao coração da cidade de Curitiba, com as ruas
rumo ao infinito, juntando céu e gelo pelas nuvens frias. Há gente além
do ônibus, muita gente.
Os ânimos apagados de uma capital adormecida não deixam, porém,
o desânimo se aproximar do recém-chegado, afinal, no fim daquela via-
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gem é depositado o sonho da nova vida. Assim foi, nos últimos anos,
para os(milhões) de pessoas.
Sem perceber, quem chega do interior do Paraná faz um passeio turís-
tico. Passa por lojas de carros, que nas vitrines não fazem fumaça; pela
tão bem cuidada Av. Silva Jardim, na qual não se vê muito mais que um
acidental pacote de bala jogado no chão.
Curiosamente, Silva Jardim morreu na fenda de um vulcão depois de
ter ajudado na construção da república brasileira. Não será o chão de
Jardim quem engole o lixo da rua?
Finalmente, chega-se à rodoferroviária, na qual sempre se encontra
um conhecido de algum rincão paranaense comendo o barato e saboroso
“doguinho” com “vina”, e descobrindo que o “pingado” trata-se, na ver-
dade, de um “café com leiTe”, e não de alguma bebida servida em go-
tas.
Só nessa empreitada de cruzar a cidade, já cresceu o tamanho das ca-
sas, que ganham a altura do céu, cresceu o medo, cresceu a alma e, sem
perceber, cresceu a cidade, porque a partir deste encontro há um habi-
tante a mais para disputar o espaço urbano. A disputa demora um pouco
para aparecer, pelo menos até que o sujeito vá atrás de moradia.
Por hora, Curitiba é uma maravilha de lugar, igual a que se vê na
televisão pelo sinal captado com antenas parabólicas, visto que o sinal
normal não chega por falta de lucratividade que teriam repetidoras de
sinal nesses lugares escondidos que abrigam os “aventureiros”. Capital
ecológica, capital social, capital sorriso... sorriso? Para muitos, essa é a
primeira parte questionada, afinal os curitibanos são, no que toca ao hu-
mor, no mínimo normais, em sua maioria. Mas então, por que é que se
fala em capital sorriso?
São problemas que, como se perceberá ao longo do texto, demoram
um pouco mais para fazer sentido a quem chega em uma cidade com
predominância de um discurso simbólico. Tem-se a intenção aqui de
justamente fazer com que haja entendimento dos problemas urbanos em
uma esfera maior, simbólica e concreta.
Depois de alguns anos da viagem mítica ao desconhecido, é possível
ao projeto de escritor, junto com o projeto de livro, escrever o texto na
perspectiva de um geógrafo chamado Milton Santos. Ele faz uma divisão,
quando explica a globalização, em três partes. No caso deste livro, houve
uma “adaptação”, e a palavra “globalização”, em um exercício audacio-
so, foi trocada por “mundo”, representado pela esfera de cidade.

# O mundo como nos fazem vê-lo

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# O mundo como ele é
# O mundo como ele pode ser

COMO VOCÊ VÊ O MUNDO E COMO VOCÊ ACHA QUE ELE PODE


SER? Responda aqui).

À época da “odisseia” ao espaço urbano, o mundo como nos fazem


vê-lo parecia mais cândido que o próprio conceito de candura. Como o
personagem principal do livro do filósofo Voltaire, “Cândido ou o oti-
mismo”, sabe?
O livro está disponível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/
candido.html, em outros sites e em quase todas as bibliotecas (falo quase
todas porque no tempo de estudante do ensino médio era difícil achar
Voltaire na prateleira, mas se você não for tão cândido e “voltaire” ao
balcão mais vezes, talvez já tenham devolvido o exemplar).
Era cândido antes mesmo de conhecer Voltaire como Voltaire, e
não como “voltar” falado de um jeito engraçado. Voltaire conta a
história de Cândido, um personagem acomodado com as peripécias
que a vida lhe apronta. Mesmo assim, para o sujeito, o mundo é mara-
vilhoso do jeito que é. E assim era o mundo para quem partia dos con-
fins de onde alguém perdeu as meias, pois as botas já eram história
a essas alturas (“piada” retirada do conhecimento popular da região
Sudoeste do Paraná).
Voltando, agora do jeito certo, para o autor destas cansativas linhas
– nunca é demais exercitar a humildade –, havia gente preocupada
com os problemas sociais (que se resumiam ao universo televisivo re-
tratado no Jornal Nacional), todos gostariam de ajudar na construção
de um novo mundo e o modo como escrevia textos, na sua auto-con-
cepção, eram textos que arrancariam as lágrimas do sujeito mais duro
na queda. Hoje se conforma, este, com as lágrimas de desgosto do
avaliador por ter que ler tão supérfluas palavras depois de passar
quatro anos ensinando ao aluno como se escreve corretamente.
Decepções com texto a parte, as coisas mudam rapidamente quan-
do se cai na selva urbana criada por seres humanos. Não há medo do
curupira, do lobisomem, negrinho do pastoreio... são coisas que ficar-
am lá no meio da selva, no meio do mato de verdade. O risco de topar
com uma onça (sabe-se lá de onde tiram essa de que onças comem cri-
anças no Sudoeste) não existe, aqui os problemas são mais concretos,
no meio do concreto, e da lua cheia resta não mais que saudades por
trás da sombra que aparece à noite por trás da poluição. LINK PARA

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QUINTOJORNALISMO.
Resta então contemplar as maravilhas urbanas, obras, prédios e
tudo o que for desconhecido. Pra início de conversa, pensa o autor
sentado na Rua XV, não é lá tão evidente aquela primeira característica
que ouvia pela antena parabólica, “cidade sorriso”. O povo a camin-
har pelo calçadão da Rua XV de Novembro, na feita desta observação,
não chegava a ser uma referência em sorriso. Tinha uma “estátua-
viva” “parada” (onde mais é preciso colocar aspas em parada quando
se trata de estátuas?) que pregava susto em quem passava que era
até engraçada. Fora isso o povo era sério, assim como era quem tra-
balhava o dia todo lá de onde vinha. A diferença era a pressa, o tanto
de gente, “coisa pavorosa”.
Mas, na continuação da análise de quem andava pela Rua XV
naquele dia apoteótico da chegada, uma hora percebeu que começou
a pesar a “sacolaiada”. A bagagem trazia a sina de um aventureiro,
que de corajoso não tinha muita coisa. Era mais pesada e fazia doer os
dedos pelo que não tinha peso. Duvida? Pode-se questionar aqui qual
é a importância de saber o que o sujeito trouxe dentro das malas, e um
retirante famoso tem a explicação para esse anseio do escritor:

Pau de Arara
Luíz Gonzaga
Composição: Luiz Gonzaga e Guio de Moraes

Quando eu vim do sertão,


seu môço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei (bis)
Trouxe um triângulo, no matolão
Trouxe um gonguê, no matolão
Trouxe um zabumba dentro do matolão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matolão

http://letras.terra.com.br/luiz-gonzaga/261217/

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Mesmo com as malas diferentes da de Gonzaga, o “retirante” do in-
terior do Paraná também trazia saudade no “matolão”. Saudade do que
não escutaria mais todos os dias pela rádio da cidade, uma cuia e 1 Kg de
erva mate, além da bomba, suficiente para passar as primeiras semanas
longe de casa.
A ida à Rua XV teve o poder de desvendar ao retirante da cidade
pequena que as praças e locais de “convivência” de Curitiba não são
como as que se tem na memória, a começar pelos pássaros. Não havia
corruíra[1], nem pardal... só tinha pombo, herança de um tempo que de
certa forma não passou na capital e faz ela manter um tom provinciano.
Conceitualmente falando, encontra-se uma cidade muito diferente
da que se vê na televisão. Há vários livros que explicam essa tendência
provocada por determinados governos, da década de 80 e 90, além de
debates que organizações não-governamentais fazem sobre o assunto.
Mas como saber disso se o conhecimento da cidade se resume à Silva
Jardim que não tem lixo, à rodoviária com seu doguinho com pingado,
à Rua XV com atrações a perder de vista e os programas de TV que via
pela televisão?
De fato, não são todos os “retirantes” que têm contato com um dos
livros que tratam da temática, ou que um dia vão pensar na Curitiba
amada como um lugar contraditório. E dependendo da trajetória, não
se vai muito mais longe do que até onde a vista alcança, seja do ponto
de vista físico ou intelectual. Este livro, que já não sabe mais se pode ser
chamado assim por não ter papel onde agarrar, é mais um elemento que
tenta exercitar um equilíbrio entre histórias de vida e informação sobre a
cidade de verdade. Em um mundo virtual, que não é de mentira, mas que
tem uma verdade mais que filtrada, nada melhor que trazer aos leitores
uma história de “verdade” sobre a cidade de mentira, na qual centenas
de pessoas chegam todos os dias para depositar os seus sonhos.

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Anedotas
do sítio

Preta se espreguiçava como se quisesse mostrar o quanto estava satis-


feita. Deitada de bruços, somente a cabeça se arriscava a levantar um pouco
acima do nível do corpo. A gengiva cor de rosa ficava à mostra enquanto
escancarava a mordedura em um bocejo. O resto do jantar ainda estava nos
dentes.
– “Pretinha, venha aqui! Olha, que linda... vamos, vamos, o moço quer
tirar uma foto”.
Preta continuava inerte, na posição de quem dizia, sem abrir a boca, que
quem quisesse passar teria que erguer a pata – ou melhor, o pé.
Para ela, as noites em um dos tubos por onde passam ônibus no Terminal
do Campo Comprido nunca foram solitárias. Quando não era com gente,
Dona Marlene falava com a companheira. As palmas entusiasmadas batidas
enquanto a chamava pelo nome mostravam que ela fazia questão de exibir
a companheira canina a todos.
Marlene Aparecida de Moura é exímia na arte de fazer amigos. Cobra-
dora de ônibus, é impossível vê-la em um momento que não esteja conver-
sando com alguém. Se o movimento está fraco e pouca gente passa pela
catraca para pegar o ônibus, Preta faz o papel de ouvinte. Às vezes responde
em linguagem não-verbal, às vezes faz cara de indiferença – mas sempre é
uma festa.
Desse jeito, as duas confidentes passam o tempo juntas. Preta sabe bem
mais de Marlene do que Marlene de Preta. Em linguagem de cães, a sen-
hora simpática é a garantia de alimento. Em linguagem de humanos, Preta
remete o passado, às lembranças da Colônia Família Rezende, município de
Londrina e ao mundo mais tranquilo de outrora.
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No entanto, não é todo mundo que olha Preta com a mesma ternura de
Marlene. Na cidade, cada coisa tem seu “lugar” , e um cão não “deveria”
estar ali.
Há quem olhe para o bicho desconfiado. Tem gente que faz a volta. Out-
ros miram o animal com cara de quem está prestes a comer um bife de fí-
gado mal passado. Por falta de opção, o negócio é encarar, fazer da situação
um banquete. Foi o que fez uma passageira, erguendo as patas – digo, as
pernas. Passou por cima da cadela e da conversa pra dizer:
– “Como ela engordou, né Maarrlene”?
– “Olhe, essa também veio do interior”.
– Vou pegar esse porque tô atrasada. Até amanhã. Se cuide, menina!
Depois dos breves diálogos, ficam as duas confidentes olhando o tempo
passar. É sempre assim, a cada pausa ficam distantes. Voltam ao mundo
das recordações. Preta não compartilha muito as histórias, embora sem-
pre pareça que vá largar os latidos e começar um diálogo corrente com sua
“dona”. Talvez seja tímida e não fale na frente de estranhos.
A chuva aperta. Preta sai em disparada rumo ao interior do terminal de
ônibus. Parece que finalmente havia acordado depois de ter passado hor-
as bocejando perto da passagem da catraca. A dona lamenta, e finalmente
começa sua história. Mesmo sendo anedota de gente, a mulher lembra a
toda hora dos causos com animais – todos de verdade. Talvez isso explique
em parte o apego e as confidências a Preta, que não quis dar entrevista.
Os anos 60
Marlene não gosta que saibam da idade. Avisa que nasceu na década de
60, em um lugar tranquilo, no interior do município de Londrina. Ela e mais
oito irmãs dividiam os pais, Vitor José Bueno e Rita Catarina Bueno.
Nesse período, o Brasil vivia um momento de euforia desenvolvimen-
tista. A cultura norte-americana do consumismo disseminava um otimismo
fora do comum mundo a fora. Ocorria a disputa de modelos econômicos
com a Rússia, na chamada Guerra-fria.
Nos anos 60, a população urbana brasileira crescia no mesmo ritmo dos
“cinco anos em cinco” de Juscelino Kubitschek. Brasília, a capital construída
no meio do país no final dos anos 50, sintetiza todo um pensamento de como
as cidades passam a ser pensadas a partir desse momento.
No Paraná, entre os anos 40 e 50, a população urbana cresceu 5,8% ao ano.
Nos anos 60, o índice anual subiu para 9,5%, enquanto o crescimento da pop-
ulação rural variou menos de 1%. Dados disponíveis em: http://www.ibge.
gov.br/seculoxx/arquivos_pdf/populacao/1960/populacao1960bn_04.pdf
Nessa época, Marlene não sabia de crescimento urbano, presidente da
república ou catracas de tubos do transporte coletivo. Mal conhecia a ci-
dade, tinha tudo o que precisava bem ao alcance das mãos.
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De manhã, acordava cedo e rumava ao meio da roça para construir seus
brinquedos. Uma espiga de milho, com uma ajeitadinha nos “cabelos” da
ponta, se transformava numa Barbie do sertão. Não tinha o mesmo aspecto
físico das bonecas compradas, mas mesmo sem ter curva alguma no corpo,
a boneca de milho tinha naturalmente um aspecto mais “saudável”.
Para fazer os homenzinhos, que seriam os namorados da espiga, se usava
abóboras de pescoço. Faziam-se roupas e colocavam-se botões para pare-
cerem olhos, sem esquecer-se de nomear cada nova obra de arte. Os bonecos
e bonecas de Marlene não eram reproduções fiéis do ser humano, mas se
pareciam com a ideia simples de gente que tinha no rincão onde cresceu.
Gente, pra menina crescida entre os animais, era definida como algo
parecido a não ter medo de pular na lama junto com os porcos, livre para
gritar, andar, correr... O rio era o clube de campo e as árvores o trampolim
da “piscina” com água corrente.
Bem antes de conhecer Preta, tinha conversas diárias com vaca, cabrito,
bode, galinha, gato... até com árvores discutia”. Mas seu afeto mais pito-
resco era por uma porquinha, cujo nome era Mica. Todos os dias, quando
ia pra lavoura, Mica ia junto, “ajudava” na plantação e às vezes até dormia
dentro de casa.
Como era de se esperar, Mica tinha um apreço especial pelos brinquedos
das meninas. Não se tem notícia, em outro lugar, que um animal de estima-
ção tenha comido os brinquedos de crianças, mas nesta história sim. Mar-
lene não era a menina mais feliz por isso, mesmo tudo estando ao alcance
das mãos.
– Bingo!
– Oi?
– Lembrei do Bingo.
– A senhora joga bingo?
– Não, era o nome de um cachorro que a gente tinha. Todo dia ia pra roça.
Ele tinha ciúme da Mica.
– O que aconteceu com a Mica?
– Ah, ela ficou grande demais e aí nós fize...
– E o Bingo?
– Não sei, ficou lá. Mas era um companheiro aquele cachorro!
Marlene se lembra somente de uma passagem difícil em se tratando de
animais. Foi um “duelo” entre um cavalo e o pai, que fora pego “desapre-
venido”.
Todos os dias, Vitor pegava algumas bonecas, digo, espigas de milho, e
tratava os animais. Havia muitos no sítio, e todos gostavam da brincadeira.
Um dos bichos era o cavalo em questão, sem passagem pela polícia e com
nenhum histórico de antecedentes criminais.
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Mas um dia o equino deu de implicar e assim que o tratador, pai de
Marlene, chegou perto, o bicho desatou uma mordida na cabeça dele. Não
se sabe o porquê de o bagual manso querer experimentar outro tipo de ali-
mento, mas por sorte não aconteceu nada além do susto. No duelo no qual
não houve luta, o homem saiu vitorioso, levou sorte de não ter sido vítima
de uma tragédia. Apesar do susto e das duas chacoalhadas que levou com
as pernas no ar, no final ficou tudo bem.
O coletivo que não é ônibus
Havia muita coisa coletiva na roça. Tudo era motivo para despertar a
curiosidade dos vizinhos, mas não só isso. Quando as plantas estavam ma-
duras – feijão, milho e arroz – todos da região se reuniam em uma lavoura
e não paravam até que tudo estivesse colhido. Não havia aparato potente
e eficiente na colheita, apenas o “debulhador” – máquina antiga movida a
óleo que separava a palha e a sujeira dos cereais.
Haja fio no facão e foice para cortar 3 mil sacas de milho e jogar dentro
do debulhador. Era mais ou menos a quantia que se colhia na propriedade
de seu Vitor e dona Rita. Caminhões saiam lotados de grãos. O dinheiro da
venda era trocado por mercadorias do armazém. Peixe salgado, farinha em
sacos, açúcar branco, sal e outras iguarias que não podiam ser produzidas
por ali. Assim foi-se.
Já para temperar a noite, a única iluminação era um lampião a gás, tam-
bém comprado no armazém. Sem geladeira, para conservar a carne, por ex-
emplo, o porco era cortado e frito na própria gordura. A dieta não era das
mais saudáveis, mas era o único jeito de guardar por algum tempo o ali-
mento. É possível pensar que com essa dieta Marlene pelo menos tinha sua
“vingança” pelas “bonecas” comidas por Mica. O sentimento coletivo era
sem dúvida compartilhado pelas oito irmãs.
A história do boi
A luz do lampião fazia sombra, as mãos pareciam enormes na parede.
Era sempre nas noites escuras que o medo ficava mais forte. Não se via mais
que 10 metros ao redor da luzinha amarela.
Os barulhos dos sapos pareciam tambores batendo no ritmo de uma
goteira, junto com os grilos formavam um cenário de pânico para as garotas
sentadas ao redor do fogão à lenha. Pela fresta da porta sentiam o vento, e
viam a quase apagada luz das estrelas que vinha de fora.
Apesar de haver pontos de luz no céu, ela não chegava no chão. A meni-
na Marlene tentava vencer a incapacidade de ver no escuro. Olhava pra
longe pela abertura na porta espremendo os olhos e os dentes pra enxergar
melhor.
“De repente aparecia uma coisa que brilhava forte, um fogo num negócio
parecido com uma tocha, fazia uma listra, ia bem rápido, parava e depois
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ia devagar. Falavam pra gente que era o boitatá. Deus me livre sair quando
aquela luz aparecia lá fora. Tinha vezes que era uma bola, ficava andando,
andando. A gente sempre via”.
À “selva” de pedra
Não se sabe se pela dieta um tanto pesada ou por outra coisa, seu Vitor
ficou doente do estômago. Teve úlcera. Mais ou menos na época do Milagre
Econômico, proposto pelo governo da Ditadura Militar (no poder desde o
Golpe de 1º de Abril de 1964), a família Bueno se mudou à capital do Paraná
para buscar tratamento ao patriarca. 23 de julho de 1975 foi a data da ch-
egada em Curitiba.
A infra-estrutura menos desenvolvida disponível aos moradores das ci-
dades menores é um dos fatores que desencadearam, e desencadeiam até
hoje, o movimento para as grandes cidades. O chamado êxodo rural era
política oficial do regime militar, no poder na época que Marlene se mudou
com a família. Em decorrência da priorização do latifúndio ao em vez de
pequenas propriedades, milhões de trabalhadores rurais deixaram o campo.
Embora a questão do modelo de agricultura envolva outros aspectos, que
serão tratados posteriormente, vários problemas urbanos têm sua origem
no crescimento desordenado das cidades, causados em parte por esse movi-
mento histórico no Brasil.
Quando chegaram, se sentiram como crianças fora da lama. O asfalto não
conseguia, a princípio, ser furado pelas raízes das meninas, acostumadas
a viver escarafunchando no barro. Era um mundo de novidades. As irmãs
e ela ficaram mais de um mês para conseguir atualizar os documentos, as
vacinas e as ideias.
Até hoje o desenvolvimento da capital é bastante desproporcional em
relação à maioria dos municípios do interior. Dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que apenas 29, dos 398 municí-
pios do Paraná (sem contar a capital), possuem índice de pobreza abaixo dos
31,71% medidos na área curitibana. No interior do estado, 369 cidades têm
incidência de pobreza maior do que a medida em Curitiba (confira a lista
completa no blog).
Na capital já não tinha mais rio para pescar e a luz era mais forte. O
boitatá não conseguia vencer o brilho da cidade. Apesar de não ter onde
pescar, Marlene logo arrumou emprego no qual se fazia latas de sardinha.
Via muita lata, mas nenhum peixe. Era empregada da Metalúrgica Mataraz-
zo, que tinha fábrica em Curitiba.
Aprendeu na pele o que representou o momento em que os produtos da
natureza foram transformados em mercadorias e passaram a ser produzidos
em fábricas, em série. Henry Ford fazia mais uma vítima quase um século
depois de ter convocado multidões para se fazerem presentes nas fábricas
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pela invenção do seu método de produção segmentado, no qual cada pessoa
faz uma única tarefa.
Não demorou muito para a primeira cena do filme “Tempos Modernos”,
de Charlie Chaplin, fazer sentido para nossa “retirante” do campo. Logo en-
controu muita gente que havia pouco tempo tinha enfrentado a mesma odis-
seia, com os mesmos tropeços da falta de documentos, vacinas atrasadas e
encantada com o novo. Era como um rebanho de gente entrando na cidade.
Ao lado da metalúrgica, em uma construção civil, foi onde encontrou
o marido, João Maria de Moura. Em 30 de novembro de 1977 se casaram
e já foram morar em uma casa própria. Em 1980 nasceu a primeira filha,
Claudinéia, e em 1983 nasceu Elisângela Giseli de Moura. Marlene deixou o
emprego da metalúrgica quando teve a primeira filha e só voltou a trabalhar
em 1987, na mesma empresa de ônibus que está até hoje.
– A senhora gosta de morar na cidade?
– Olha, dá saudade da infância e das brincadeiras, mas não tenho o que
reclamar daqui. Sempre tive casa e um carrinho pra passear, nunca passei
necessidade.
– O ônibus sempre atrasa nesse horário?
– É, daqui a pouco chega um monte um atrás do outro, sempre assim.
– Vou indo, Dona Marlene. Obrigado por tudo!
– Vai com Deus. Boa sorte nos estudos.
– Tchau.
.
.
.
– Preta!

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Darci
Frigo
O que fazia sua família?
Meus pais são pequenos agricultores, são camponeses, descendentes de
italianos e alemães, vivam naquelas comunidades tipicamente campone-
sas.
Foi no município de Capinzal que você nasceu?
É, hoje já é desmembrado, mas era o município de Capinzal-SC. Com 12
anos eu fui estudar no seminário, dos Freis Capuchinhos.
Como era o nome dos seus pais?
Honorino Frigo e Edit Frigo. Meu pai é vivo ainda. Minha mãe é falecida.
Ele tem 78 anos.
Você tem irmãos?
Nós somos em oito irmãos, quatro irmãs e quatro irmãs.
Seus irmãos continuam morando no campo?
Metade deles continuam, 3 irmãs e o irmão mais velho. Aí tem um irmão
e uma irmã que moram aqui e outro que mora lá na região, próximo ao sítio
lá. O meu irmão mais velho mora até hoje lá no sítio onde eu nasci.
Mas as coisas mudaram por lá.
Não é mesma coisa. A agricultura mudou muito, mas eles continuam
trabalhando na produção de milho. Mas hoje, a atividade principal deles é
a integração com suínos, já não tem mais força de trabalho, porque o que
aconteceu: minha irmã só teve duas filhas – uma faleceu, logo, pequena – e
a outra trabalha lá em Concórdia, trabalha na Sadia, está estudando agora e
eu acho que eles não vão permanecer lá. Então, tudo indica que vai acabar
o sítio.
Você é o irmão mais velho?
Eu sou o do meio da família. Tenho um irmão e duas irmãs mais velhos
que eu, eu sou o quarto e depois tem mais quatro.
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Como era a relação, porque com oito irmãos a gente imagina que dá um
“reboliço”, como diz o gaúcho...
A gente, vamos dizer assim... eu tenho boas recordações da minha infân-
cia – até os 12 anos – eu vivia bem, no interior, nossa família morava mais
retirada e tinha uma boa relação com a vizinhança, desde pequeno a gente
já ia na roça, mas eu sei que a história é que eu não me dava muito bem com
meu irmão mais velho. Quando meu pai e minha mãe saiam, nós não nos
acertávamos muito bem (risos). Então, quando ele ficava com o comando da
casa não tinha muito acordo entre nós.
Qual a história que mais faz você lembrar do seu irmão?
Eu lembro que eu ia na roça e contra toda a minha história atual eu brin-
cava de colocar fogo em resta de derrubada do mato, essas canas de milho,
meu irmão não gostava e aí dava uns qüiproquó, isso eu sempre lembro ele
reclamava muito. Mas não coisas mais assim...
Eu tive uma infância assim sem maiores sobressaltos, assim, muito tran-
quila. Perdi, me lembro de ter perdido dois vizinhos meus, dois meninos
que morreram por doenças assim que os pais demoraram muito para buscar
socorro médico, sempre era longe, tinha que alugar carro.
Vocês tinham vizinhos por perto?
Sim, tinha quatro vizinhos, meu padrinho e mais outros. Esse dois viz-
inhos, um morreu de crupe e outro de tétano, pisou em um prego embaixo
de chiqueiro de porco, acabou infeccionando, eles não levaram no médico
e acabou por falecer. Mas na infância eu não tive presença da violência, da
morte na minha vida, em toda minha infância. Essa era uma coisa muito
distante.
A gente vivia com meu avô e minha avó – curiosamente a minha mãe
era filha única, filha de alemães. Com meus avôs maternos convivi em toda
a infância – não conheci os avôs paternos, eles já tinha falecido. Minha avó
faleceu ainda quando o pai era criança, o avô faleceu mais tarde, mas quan-
do eu nasci já tinha morrido. Então, convivi o tempo todo com meus avós
maternos.
A coisa que mais marca, às vezes a brincadeiras, essa história de fazer
trocadilhos... isso é do meu avô. Meu avô, quando vinha da roça, ele ficava
fazendo pergunta, respondia pra ele uma coisa e aí ele dizia que era outra e
ficava tirando sarro até a gente ficar meio irritado assim com ele, então ele
dava risada.
Como era o nome dele?
João Stahl. Eu coloquei o sobrenome dele no meu filho, mas assim como
nome: é Gabriel Stahl Frigo, porque ele não não teve filhos, minha mãe foi a
única filha deles. Minha avó era Frida Schuheman Stahl.
Esse foi um pouco da minha infância, mas acabou que eu comecei a ideia, depois.
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Começou a ideia de sair de casa.
É, eu fui o único filho que saiu pra estudar. Mais tarde que a mais nova,
que tinha problema de saúde e tudo acabou indo pra cidade estudar. Meus
irmãos todos fizeram até a quarta série primária, depois alguns estudaram,
posteriormente... fizeram estudo de primeiro grau completo. Mas a princí-
pio não tinham estudado.
Como era o lugar onde você morava, para nós termos uma ideia?
Era tudo montanhoso, uma região absolutamente quebrada. A gente era
o último morador no local, era em uma... a gente chama canhada o lugar, um
paredão, aqueles morros. Ali era o fim do município e tinha a divisa entre
três municípios, que era Ipira e Presidente C astelo Branco. A gente morava
bem... vamos dizer assim, a estrada terminava ali. Naquele lugar, a escola
ficava a cinco quilômetros. Talvez a coisa mais marcante da minha infância
seja essa história de ir na escola, levantar cedo, frio.
Tinha que passar por algum lugar difícil?
Tinha que passar. Na verdade, estrada de chão tinha. Mas tinha um trecho
bastante longo, de mais de dois quilômetros, que não tinha moradores. Você
passava no meio, em uma áreas de floresta secundária, que é o mato der-
rubado. Só depois vinha o primeiro morador. Pra ir a escola então era 10 km
(ida e volta). Às vezes ia a cavalo, normalmente ia a pé. A infância eu passei
por aí. A gente só ia pra cidade quando tinha necessidade médica.
Quando eu era bem pequeno tive aquele problema de tosse comprida,
depois crupe, quase morri. E meus irmãos também, quando precisava de
médico sempre tinha que procurar... a gente ia na cidade basicamente pra
isso. Eu me lembro que eu fui uma vez, quando a gente estava na escola,
a gente foi no cinema lá da cidade, foi ver uma apresentação lá de alguma
coisa, encenação de teatro e aí foi quando eu pela primeira vez vi uma tele-
visão, uma coisa assim. Eu lembro ter sido mais ou menos em 1972, por aí,
73, não tenho bem certeza, mas foi no início dos anos 70 que fui ver pela
primeira vez uma televisão no bar de um cara que era um prático dentista.
Ele era dentista – até um irmão dele mora do lado da minha casa. Ele era
dentista prático e tinha também um bar, uma churrascaria assim servia al-
moço e daí lá tinha uma televisão, que foi quando eu vi pela primeira vez.
Você lembra o que estava passando na TV?
Não, não lembro. Nem sei se estava ligada. Não lembro, mas eu sei que
eu vi a televisão. Acho que estava passando alguma coisa, mas era meio da
tarde, não sei se era um horário.
Qual foi a impressão que você teve quando viu a televisão pela primei-
ra vez? Quantos anos tinha nessa época?
Tinha 9, 10 anos. Pra mim eu sei que foi uma curiosidade de saber o que
era o aparelho. Mas como não pude assistir nada, não foi uma coisa que me
21
tocou muito, só a primeira vez que vi televisão. Aí em 75 eu me mudei pra
cidade, a gente nem tinha luz em casa ainda, né, chegou só em 77, 78...
Então vocês iam pra cidade só quando precisava de médico mesmo?
É... o pai ia sempre atrás de coisas de negócios.
O que vocês plantavam?
Basicamente era grãos pra alimentar o gado e os suínos. Basicamente era
milho, chegaram a plantar soja um período, plantava trigo pra subsistência,
plantava feijão, arroz, tudo o que é de subsistência a gente plantava. O que
não tinha era...
O que vocês compravam no mercado?
Lembro de comprar roupa, mas de comida a gente comprava açúcar, ape-
sar de fazer açúcar mascavo, mas comprava açúcar, farinha de trigo e às
vezes outras coisas que precisava... querosene.
Pra iluminar?
Pra colocar nos lampiões.
E não ficava um ambiente um pouco pesado queimar querosene dentro
de casa?
Nunca me toquei disso, mas depois eu lembro assim que a casa ficava
escura, a gente tinha que lavar por causa da fumaça.
Como era a questão da água?
A água era por desnível, né. A gente morava no pé dos morros então
tinha uma nascente de água. Água nunca faltou lá em casa, tinha boas na-
scentes e tinha água encanada.
É, dependendo do lugar, sem luz, não tem como ter água encanada
porque não tem como empurrar...
É, nós tínhamos água em casa porque pegava muito longe, em cima do
morro. Do lado de uma árvore gigante. Do lado dessa árvore tinha a fonte
de água e tinha um pé de angico e era muito grande. Tanto assim que de-
pois que eles... o pai não derrubou esse angico, e meu vô, e aí eles deixaram
passar muitos anos e aí quando foram derrubar, aí já estava ardido, tinha
estragado.
Mas era uma árvore muito grande, eu acho que devia ser assim. Depois
descobri, estudando essas coisas da agroecologia, que tem as árvores que
são importantes no bioma porque elas mantém a genética mais forte, guar-
dando suas qualidades mais fortes, e talvez aquele fosse um angico maior
que existia naquela floresta.
Ainda tem mata virgem hoje lá na casa do meu pai. Tem um canto min-
guadinho, mas tem açoita-cavalo, várias, ainda, árvores... madeiras muito
boas, madeira de lei... cedro acho que não tem mais, mas ainda tem uma
série de... um trecho que tem muita pedra, não teria como fazer lavoura,
então ali tem mata nativa.
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Água tinha, encanada. Eu lembro que isso era uma das coisas que a gente
tinha que ir atrás, às vezes, entupia o cano, entrava sujeira, era um cano
longo enterrado uns 350 metros de distância, quase 400 metros, aí não con-
seguia descobrir onde que tinha trancado. Aí tinha que ir lá, cavar...
Como era o entretenimento na infância?
Basicamente a gente brincava com os filhos dos vizinhos, jogava bola
em alguns campos ruins, tinha muita pedra, mas a gente sempre arrumava
lugar pra fazer campo. Fazia aqueles carrinhos pra descer morro abaixo. Às
vezes a gente fazia bola com meia, porque não tinha bola. Pra ganhar bola
era uma lá no Natal e durava duas três horas a bola, já chutava nos espinhos
lá, bola de plástico. Aí fazia bola com meia velha.
Caçar passarinho, e na comunidade era jogar bola, brincadeira de crian-
çada, mas... jogo de futebol era mais o que a gente gostava.
Depois você disse que foi para o seminário...
Sim, foi quando eu tinha 12 pra 13 anos.
E foi assim porque você queria ir?
É... eu sempre falei que ia pro seminário e coisa e tal. Apesar que o que
você tem em uma comunidade rural camponesa típica assim, naquele perío-
do? Hoje tem outra, ainda continua a igreja tendo uma presença assim per-
manente nesses lugares. Os padres vão mensalmente no local. Quer dizer,
tem a ver com a religião, com a questão das crenças, coisas assim, na fé
das pessoas, mas também tem a ver com a presença de uma instituição que
marca sua presença ali o tempo todo.
Olhando agora pra trás, não tinha outro... era o que tinha ali de novi-
dades se quisesse fazer alguma coisa.
Então eu lembro que os freis vieram e o frei Adelino Frigo, um parente
um pouco mais distante da minha família, lá do município de Ouro, veio lá,
apresentou slides do seminário, veio mostrar como é que era, como é que
não era. Eu já tinha uns 7 anos, 8 anos. Depois comecei a falar que ia pro
seminário e quando chegou de 11 pra 12 anos meu pai perguntou: e daí, vai
mesmo? Eu falei que ia.
Foi uma decisão relativamente fácil pra você...
Fácil sim. Sim porque meus pais não impuseram assim, eles só perguntaram se
eu ia mesmo e aí eu fui embora. Uma coisa assim meio... eu nunca tinha saído de
casa. Então, pra mim a maior dificuldade foi essa coisa de mudar de mundo assim,
essa coisa. E aí vai pro seminário, era dentro da cidade e outra organização defini-
da, tudo disciplinado com horário pra levantar, tomar café, todas as tarefas. Passei
dois anos lá, depois cinco anos aqui em Irati-PR, depois fui pra Siqueira Campos,
no norte do PR, depois vim pra Ponta Grossa, Curitiba e depois saí, em 1985.
Quantos anos?
Fiquei 11 anos no seminário.
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Faltou muito para se ordenar?
Faltou toda a teologia. É porque na verdade eu fiz todos os estudos, né,
de fazer o primeiro grau, segundo grau, aí fiz os estudos introdutórios da
vida religiosa, aí filosofia e quando eu terminei filosofia eu saí.
Qual era a congregação?
É os Capuchinhos.
Qual foi o maior choque ao entrar no seminário?
Na verdade é cultural. Você sai de uma vida camponesa e de repente
entra numa instituição fechada. Eu me lembro que a coisa que mais me mar-
cou foi que a gente teve um encontro de introdução ao que eles chamavam
de Organização da Juventude Franciscana, e aí foi a primeira vez que eu
tive que falar em uma roda assim. Então isso eu me lembro, eu chorei na
primeira vez que eu tive que falar em público. Numa roda assim de jovens,
coisa assim, não tinha nem ideia do que era falar em público. No máximo eu
tinha falado numa sala de aula respondendo uma pergunta da professora.
Era um outro mundo. Umas das coisas que mais me marcou foi ter que
construir um outro perfil pra vida, começar a ter que conviver com pessoas
diferentes. Ali tinha gente... 30 meninos de vários lugares. Se bem que era
todo mundo, basicamente, filhos de agricultores, não tinha nenhum conhe-
cido, não tinha nada. Tinha a confiança de que era uma instituição religiosa.
O pai e a mãe não tinham dúvida de que os freis iam cuidar bem da gente. O
frei que cuidava lá era muito rígido, um italiano muito exigente.
Tinha um período também que fazia trabalho na lavoura também. En-
quanto fiquei no seminário basicamente tinha três coisas. Era estudo, tra-
balho e lazer.
Jogava bola no seminário também?
Sim, sim. Sempre joguei futebol.
Nunca aconteceu nenhum acidente?
Não, nunca tive.
Mas engraçado que eu fui pra Irati e lá teve atletismo também, então
eu gostava de corrida, de salto, fui campeão de salto triplo. Tinha salto em
altura, salto em distância, corrida de 100 m, 400, várias coisas, gostava de
atletismo, gostava de futebol. Eu era goleiro lá do time e jogava ali com o
pessoal ali de Irati, da região das comunidades vizinhas...
Tinha música também. Sempre tinha um pouco de violão, mas eu não de-
senvolvi nessa parte da música, e aí só em 81, 82 que a gente vai a começar...
no final de...
No segundo grau, tem uma professora que vai dar aula no seminário, e
que ela vai falar da ditadura militar, que tinha perseguição na ditadura - foi
em 79, 80, nesse período -, que tinha gente que tinha sido torturada. Aí ela
falou do Frei Tito, do Frei Beto. Não lembro se na época o Frei Tito já tinha
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se suicidado na França e tudo mais depois de ter sido torturado.
Aí ela contou essa história e a gente começou a ir na biblioteca procu-
rar literatura. Então encontramos literatura anti-comunista que era “Os sete
martírios do vermelho”, uns livros assim que eram contra os comunistas,
mas aí também achamos livros que traziam uma história que a gente não
conhecia, a gente ficava atento.
Mas somente na década de 80 você ficou sabendo da existência da dita-
dura?
É, 79, 80 e 81, nos anos do segundo grau. O meu vô sempre falava o nome
dos presidentes, ficava orgulhoso, acho que porque o Geisel era gaúcho.
Então a gente não tinha nem ideia. Aliás, uma coisa que me marca muito
na minha infância é que eu escutava notícias pelo rádio. Escutava a Rádio
Guaiba de Porto Alegre, eles tinham um noticiário curto de manhã, de meio
dia e depois, um pouco antes da Voz do Brasil (e às vezes escutava a Voz
do Brasil), e depois tinha um outro as 8 horas da noite. E eu sei o prefixo até
hoje do jornal, que começava assim, olha:
Aqui fala o correspondente Renner, editado pelo Departamento de Jornalismo da
Radio Guaíba, com notícias do Correio do Povo e da Folha da Manhã, da Associated
Press Brasil.
Aí começava: Porto Alegre, notícias de Brasília e pá e pá e pá...
Eu escutava as notícias quando tinha uns 8, 9, 10 anos. Ficava sabendo o
que estava acontecendo fora.
Mesmo assim não dava pra ficar sabendo da ditadura pelas notícias no
rádio.
É, foi só depois. Nunca ninguém nem se tocava desse assunto assim.
Como eles faziam “bem” esse trabalho, na ditadura, de censurar um
jornal a ponto de os ouvintes não ficarem sabendo, não é?
As pessoas não ficavam sabendo. Pra mim foi uma surpresa muito grande,
e aí, vamos dizer assim, me atiçou a curiosidade. Em 82 começamos a ir
atrás de literatura e foi aí que foi o marco, que vou conhecer os escritores
da Teologia da Libertação, eu conheci um livro de um padre italiano que se
chama Arthur Paolli e ele viveu na Itália e no Brasil. Ele estava aqui em Foz
do Iguaçu, não sei se ele faleceu, mas estava bem velhinho.
Na história dele, ele se converte, muda de vida, vem pra América Latina e
vai para as periferias e ele escreve um livro que se chama “Caminhando se
abre caminho”, que é um dos livros que vem antes dos primeiros livros da
libertação e ele vai falar das comunidades de base na periferia das grandes
cidades da América Latina – não sei se ele está falando de Lima ou de Bo-
gotá, sei que ele está falando do trabalho que tem nas periferias das cidades
e uma reflexão então de engajamento político. É aí que a gente vai encontrar
então uma explicação, uma proposta que pelo menos vai poder ao mesmo
25
tempo aliar a opção religiosa com uma inserção política, que é toda a pro-
posta da teologia da libertação.
Antes de entrarmos mais profundamente neste ponto, gostaria que você
tentasse lembrar que tipo de música você ouvia no rádio?
Como a gente vivia bem na fronteira com o Rio Grande do Sul, aquela
era uma região bem influenciada pelo interior do Rio Grande, basicamente
era música nativista gaúcha. Tinha vários programas. Tinha as rádios de
Erechim, de Aratiba, tinha noticioso e também música. Eu lembro do José
Mendes, Teixeirinha, Meire Terezinha. Eu não conheci, mas eu lembro que
lá no interior iam passar os filmes do Teixeirinha. Conheci as músicas dele
e da Meire Terezinha.
Em 82 você passa a ter contato com alguns autores da Teologia da Lib-
ertação. Como foi?
É, tivemos contato com literatura, e eu lembro que quando eu estudava
tinha o Estadão de São Paulo que tinha umas reportagens anti-comunistas
e a gente começa a perceber qual a linha dele. Eu conheço o Estadão de São
Paulo desde 1982 e sabia da linha editorial super conservadora, isso que o
jornal tem até hoje. A gente lê aquelas, eu e alguns colegas, tinha um grupo,
quatro ou cinco colegas, que a gente se reunia e discutia, lia esses materiais.
E começamos a ter contato com a política.
O seminário era um local protegido?
Sempre fechado. Dentro não tinha problema de discutir, claro que a gente
fazia uma série de coisas, como essas assim, mais por nossa conta, não vinha
pelo programa oficial. Pelo programa oficial só vinha os assuntos religiosos
e as matérias de currículo formal de estudo. Então a gente estudava, as ma-
térias de cunho curricular, fora isso não tinha outras coisas. Eu lembro que
eu participei da primeira eleição, em Siqueira Campos, em 1982, quando
José Richa era candidato a governador. Então a chapa era José Richa, Álvaro
Dias... eram esses candidatos. As pessoas com quem a gente tinha contato
local, todo mundo apoiava basicamente essa chapa, que era oficial. Nesse
sentido, a gente não tinha nem ideia ainda da existência do PT, de nada as-
sim da existência de outros partidos. Aí era nós que buscávamos marginal-
mente essa informação sobre inserções políticas, ou debate, coisas assim,
mas lá no espaço do seminário não havia debate, não havia ninguém que
colocasse. Os padres era muito conservadores. Vieram da Itália, a maioria
dos que dirigiam a congregação eram italianos, e muito nessa linha espiri-
tualista, o que importava era se preparar para ser um bom crente em Deus e
ser um bom padre, mas sobre as questões políticas do mundo pouca coisa.
Nesse anos você já tinha militância em algum movimento ou alguma
coisa assim?
Não, nada. Eu nunca havia tido nenhum debate político, nem em casa,
26
muito menos no seminário. Foi a busca por essas informações, curiosidades
e literatura e às vezes um toque aqui um toque ali, eu não tinha tido uma
formação conservadora no sentido da direita. O meu pai nunca fez uma
pregação mais concreta com relação à direita e, portanto, tinha mais um
viés de sensibilidade com questões sociais que assim veio meio, entre aspas,
naturalmente.
Mas o contato das políticas, pra fazer um recorte agora que vai ter uma
passagem, vai ser quando a gente vai começar a estudar filosofia em 84, 85...
Em 84 a gente começa a saber que tinha essa perseguição, por exemplo, da
igreja, com Leonardo Boff. Participei do primeiro abaixo assinado em favor
dele lá em Ponta Grossa, quando estudava filosofia.
Então, tive a primeira chance de fazer trabalho pastoral fora do seminário
e aí me engajei com o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Ponta
Grossa. Participei da fundação do centro, era um grupo de pastoral univer-
sitária que tinha lá na universidade, e é com esse grupo que eu vou desco-
brir a possibilidade de fazer uma militância para além dos muros da igreja.
Como funcionava esse Centro?
Na verdade eu comecei a trabalhar com esse grupo e aí o grupo estava
na fase de fundação. Era um grupo de pastoral universitária e a partir daí a
gente fundou o centro e passou a se envolver com algumas coisas lá de vio-
lações de direitos humanos. A gente acompanhou casos, acompanhou uma
denúncia que as mães fizeram de trabalho escravo dos filhos delas, da Vila
Rombini, ali em Ponta Grossa, que eles trabalhavam em uma fazenda da
Copedi Agro-florestal, em Serro Azul, e a empresa que fazia o projeto de re-
florestamento e plantio de Pinos era a Cap Florestal, que era do Luciano Piz-
zato, e que daí depois, em 86, quando eu voltei pra CPT, já faz uma denún-
cia contra ele e ele me processa. Esse processo vai me acompanhar por uns
sete ou oito anos. Vou responder esse processo criminal porque não houve
apuração. Era o caso de 12 meninos, que vieram roçar e aí não podiam mais
voltar porque tinha capataz armado e violência e outras coisas.
Chegou a conhecer os meninos?
Cheguei a conhecer os meninos e tudo, acompanhei eles, vez ou outra ia
pra Ponta Grossa, procurava saber... eles sumiram, depois cresceram.
Então esse foi um caso e também foi ali, naquele ano de 84, que eu conheci,
pela primeira vez, então por esse centro de direitos humanos, que tinha um
assentamento de atingidos pela Itaipu em Arapoti. Daí fui visitar. Fui junto
com esse pessoal que estava numa situação de miséria em um encontro do
movimento nacional de direitos humanos, em Joinvile – SC, e ali comecei a
conhecer um pouco que tinha essa variedade de movimentos, de lutas por
direitos humanos, contra a ditadura, enfim, essas coisas. E participei tam-
bém da campanha pela libertação do último preso político aqui no Paraná,
27
que era o Juvêncio Mazzarollo, jornalista lá de Foz do Iguaçu. Também foi
aí que conheci a equipe da CPT, tinha o Eduardo Shconek, que coordenava,
era de Reserva (está a te hoje na CPT, participou da fundação da CPT, é um
agricultor, e ele vive até hoje ali na entrada da cidade de Reserva, perto de
Ponta Grossa). Eu fui convidado e eu fui.
No início de 85, como a equipe tinha direito a 10 vagas no congresso do
MST, eu participei do congresso do MST aqui em Curitiba. Foi o primeiro
congresso nacional do MST. Em 84 acontece a fundação do movimento em
Cascavel e em 85, em janeiro, tem o congresso ali em um colégio da Vila
Torres, do lado da PUC, e a abertura e várias atividades foram no Teatro
Guaíra, e a gente ficava alojado lá no antigo Parque de Exposições Castelo
Branco, em Pinhais.
Como é que aconteceu esse congresso?
Eu lembro que integrantes do governo Richa da época participaram, aí o
pessoal vaiava eles aqui e me impressionou muito a posição dos represen-
tantes dos movimentos sociais do nordeste brasileiro, o pessoas que tinha
uma posição assim mais dura. Não entendiam que o Neldo, que o pessoal
estava apoiando a luta do movimento. Gritavam, não deixavam eles falar.
Eu lembro do debate do Estatuto da Terra, tira palavra de ordem “Reforma
Agrária na Lei ou na Marra”. Conheci assim... eu só tenho lembranças vagas
que circulava no meio das lideranças do movimento, não me lembro de ter
reconhecido João Pedro Stédile na época, eles estavam todos ali. Vi várias
pessoas, mas não tinha ideia de quem eram eles.
Ali naquele prédio rosa que tem aqui na esquina, aquele que se vê lá, olha,
rosinha, ali era a sede do Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo
(Cefuria). Quando eu vim pro congresso, me pediram pra eu ficar ali um dia
e pouco, porque era o primeiro dia, e precisava ficar alguém ali pra atender
o telefone porque era a sede do movimento, a secretaria do MST funcionava
ali em uma salinha. E daí eu me lembro que fiquei ali pra dar informação
para as pessoas sobre o congresso.
E é uma coisa que não tem explicação porque eu estava me Ponta Gros-
sa, no Centro de Direitos Humanos, aí eu fui ver essas situações... ah, fui
na assembleia da CPT, em Foz do Iguaçu. Mas efetivamente a minha mil-
itância política começa em 84, com esse centro de dh’s em Ponta Grossa.
Tinha um pessoal aqui de Curitiba, o Lafaieti Neves, pessoal do Cefuria,
o Everlindo Heiklain, um povo que trabalhava nos movimentos sociais,
o padre Miguel Angelo Romeiro, que é da Paróquia de São Pedro , e eles
vêm para fazer uma espécie de encontro lá em Ponta Grossa sobre as lutas
populares, lutas sociais, e aí fico sabendo que existia o primeiro acampa-
mento do MST, que era... que estava existindo o MST. Isso era antes do
congresso.
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Você conheceu esse acampamento?
Não, mas aí eu fui designado a fazer a minha primeira missão de media-
ção nesse conflito, que era o despejo do pessoal da área do Cavernoso, que
é da família do Antonio Tavares Pereira, trabalhador sem-terra que foi as-
sassinado aqui na BR.
Eu não sei quando foi isso exatamente, mas deve ter sido no segundo
semestre de 84. Eles pediram pra eu ir lá falar com o bispo para que ele
falasse com o general do exército para que o exército não fizesse o despejo
das famílias que tinham ocupado a área do cavernoso. Depois vendo agora
a história das lideranças do movimento sem-terra descobri que isso também
teve a participação do Claus Gehringer. Então, essa foi a primeira vez que
me envolvi.
Tudo isso, pra mim, eu ainda estava no seminário e não tinha ideia de
que eu ia militar nessa área de voltar à questão agrária, mas a questão
camponesa volta naturalmente na minha vida. É por essa área que eu vou
voltar ter inserção política. Até tinha envolvimento com outras questões
de direitos humanos lá em Ponta Grossa, ia visitar presídio, ia pra delega-
cia, mas isso pra mim era sempre um mundo mínimo e estreito pra minha
vida.
Era um mundo novo, mas era um mundo da minha classe. Aí eu começo
a conhecer, mas aí eu venho pra Curitiba – a gente montou o Centro de Dire-
itos Humanos de Curitiba, em 85, e aí eu pensei em sair definitivamente do
seminário. A gente quis fazer uma relação com os grupos entre os grupos
que tínhamos em Ponta Grossa e Curitiba e aí a gente achou, eu e alguns
colegas, a gente achou que não dava mais.
Teve mais colegas que saíram juntos?
A gente foi saindo, a gente ia conversando e vendo que, a gente dia-
logava sobre os limites institucionais da igreja pra fazer nossa militância.
Aí eu saí. Eu ia trabalhar na Pastoral de Favelas, foi onde eu arrumei um
trabalho. Mas aí eu fui na CPT e encontrei o Pastor Fulks, que é um dos
nossos Conselheiros Fiscais aqui da Terra de Direitos, e perguntei pra ele
se tinha algum trabalho lá e ele me falou que tinha, que se eu fosse lá em
janeiro provavelmente tinha alguma coisa e eu comecei a trabalhar em 86 na
Região Metropolitana de Curitiba. Aí começo meu trabalho na CPT até 2002.
Passei pelos testes da CPT do PR, fui secretário, depois fui coordenador com
outras pessoas, fui para o conselho nacional e nesse período eu fiz direito,
me tornei advogado.
Qual era o seu primeiro trabalho na CPT?
O primeiro foi aqui na Região Metropolitana, ajudava a organizar sindi-
catos, na Lapa tinha sindicato então a gente fazia reunião com os agricul-
tores.
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Como você conseguiu deixar de lado o nervosismo na hora de falar em
público?
Nossa, isso foi toda uma história, porque dentro do seminário a gente tin-
ha que fazer peça de teatro, lá em Irati a gente tinha que participar de peças,
declamar poesia, música e aí... nossa, por longos anos eu tinha dificuldade
de falar em público, e eu acho que só superei isso depois de uns 15 anos, mas
demorou um longo tempo para eu superar, sempre tinha dificuldade pra
falar em público, muita dificuldade. Tinha insegurança, mas passou.
Nesse período que você trabalhou na CPT, quais foram as principais
histórias desse período?
O que acontece é o seguinte, eu queria estudar, continuar meus estudos,
fazer um curso regular. Eu tinha feito filosofia, mas não era regular, e aí
logo no primeiro ano, fiz vestibular nas faculdades aqui de Curitiba e passei
na PUC e comecei a fazer direito no segundo ano. Mas no primeiro ano era
na Região Metropolitana. Adrianópolis ali com os atingidos da barragem e
aqui na região sul.
Mas aí o pessoal, eu estava fazendo um curso na CPT, e a equipe decidiu
que eu ia assumir a secretaria porque eu tinha passado no curso de direito
e era mais importante eu assumir a secretaria e então eu assumi a secretaria
da CPT. Eu me tornei secretário executivo, o Clovis Vaes, que era secretário,
se tornou assessor do Pedro Tonelli.
Então eu me tornei secretário executivo, no início dos anos 90 eu me tor-
nei coordenador aqui no Paraná, a CPT era ecumênica, então tinha partici-
pação da igreja católica e luterana... e acompanhava principalmente as ações
das questões de terra, o carro-chefe, denunciar violêncas, essas coisas.
Depois, de 93 a 97 eu fui do conselho diretor nacional, mas aí ficava por
aqui mesmo, não saia dos meus trabalhos normais. Eu me formei no final
de 1991. Eu fui uma das últimas turmas que tendo o estágio regular recebia
a OAB, eu não tive... foi depois da minha turma que começou o exame da
ordem.
Já nesse período eu comecei a me envolver com a articulação de advoga-
dos, do movimento social que precisava de assessoria jurídica, desde 87 a
gente discutia no Cefuria a necessidade de ter assessoria jurídica, de con-
hecer o Ajup, que era o apoio jurídico popular, que tinha articulação nacio-
nal, também tinha uma articulação local, foram feitas algumas reuniões com
advogados (o professor Gediel participou), outros também participaram.
Então, isso que vai estabelecer um pouco uma das linhas que vão marcar
basicamente o meu futuro, do ponto de vista de... não advogando, eu nunca
fui especificamente para a área técnica de advogar, mas sempre desenvolvi
o trabalho de assessoria jurídica de articulação para os movimentos.
Em 95, 96, a gente começa a articulação da Rede Nacional de Advogados
30
e Advogadas Populares, RENAP, junto com o MST, eu era da CPT, outras
organizações, a gente vai fazer essa articulação. Perdura até hoje, já teve
muito mais articulado, hoje é um grupo eletrônico, fez reunião agora em
julho, mas fazia 3 ou 4 anos que não tinha mais encontros. Também tendo
desafios ao longo dos anos e um movimento com essas questões de conflitos
e violência, com o governo do Jaime Lerner se desenvolveu a questão dos
conflitos, ameaçavam na época. Tive problemas sérios, ameaçavam.
Em que época aconteceu isso?
Eles ficam em 1997, o auge vai ser em maio de 2000, quando tem o assas-
sinato do Antonio Tavares aqui na BR 277 e no ano de 1999 foi o ano que re-
crudesceu as coisas, o despejo aqui da praça Nssa Senhora da Salete, depois
eu sofri ameaças na minha casa, tive proteção policial no início de 2000, no
período de março até maio, quando houve o assassinato do Antonio Tavares
e a repressão aqui à mobilização dos sem terra aqui na BR 277.
Isso estava me levando a entrar cada vez mais na relação com articulações
de direitos humanos e necessidades de aqui no Paraná organizar alguma in-
stituição que atuasse nessas discussões. Foi essa um pouco a ideia de seguir
o trabalho da assessoria jurídica, mas ter um espaço onde a gente pudesse
fortalecer a assessoria jurídica. Então a ideia de fundar a Terra de Direitos
vem de uma ideia de ter uma organização de direitos humanos e a CPT não
tinha condições de bancar isso. Foi a partir daí que a gente reuniu um grupo
de pessoas e com o tribunal dos fundos do latifúndio se configurou a ideia
de que dava para fundar uma organização.
Pensamos em organizar um escritório com uns amigos, não deu certo,
continuava com o trabalho na CPT e não tinha tempo para articular. E fomos
então pra essa ideia de fundar a Terra de Direitos, em junho de 2002.
Quando os despejos foram mais recorrentes?
Foi nesse período de 98, 99, 2000. Eu me lembro que no auge da nossa
organização de advogados, em 96, 97, nós chegamos a reunir mais de 40, 50
advogados populares no Estado. Não só na capital do Estado, mas tinha um
grupo forte que pegava Umuarama, Campo Mourão, Maringá, Apucarana,
Londrina, Cambé, Ponta Grossa, Curitiba, Cascavel, Foz, Guarapuava. A
Ideia era ter advogados mais próximos dos conflitos.
Quando aconteceu o conflito aqui na BR 277, eu me lembro que a gente
reuniu e tivemos a participação de mais de 20 advogados, colegas e tudo
que de alguma forma tinham sido estudantes, ou recém sido formados.
Como foi essa participação?
Todo mundo foi pra rua, lá pra BR, foram ajudar e acompanhar a questão
dos presos, as pessoas que estavam desaparecidas, violência, enfim. Depois
começaram a organizar as ações, acompanhar os inquéritos, teve uma par-
ticipação muito grande.
31
O soldado que matou o trabalhador nesse dia foi inocentado?
Foi inocentado porque eles utilizavam a manobra jurídica, anteciparam a
apuração inquérito policial militar e absolveram com cumprimento de dever
legal, como legítima defesa, artimanhas utilizadas para absolver o soldado.
Houve também uma tentativa de mudar a versão também, não? De diz-
er que Antonio Tavares tinha sofrido um acidente...
Tudo, eles tentaram imediatamente descaracterizar... isso era uma lógica
que esteve presente nos conflitos o tempo inteiro. Já que você lida com essa
coisa da comunicação, o governo Jaime Lerner trabalhava isso de forma
muito profissionalizada, muito firme do ponto de vista de dizer assim: bom,
nós temos que dizer primeiro o que aconteceu pra opinião pública porque
depois os outros têm que desmentir ou tem que mostrar o que era verdade, a
primeira verdade é a nossa. Então, sempre que acontecia um conflito, o Gov-
erno Estado construía uma versão que vinha sempre da polícia, dos que in-
clusive usavam de violência, violavam o direito das pessoas, enfim, e depois
você tinha que desconstruir. Então, a desconstrução se deu através de um
trabalho de muita informação, nós tivemos um policial que começou a pas-
sar informações nos despejos com vídeos, que depois originou aquele vídeo
chamado O arquiteto da violência , as imagens todas são desse policial. Esse
vídeo é bastante importante porque ele vai mostrar o que aconteceu nessa
época. Tanto em violência quanto em perseguição aos movimentos sociais.
Então, o que aconteceu aqui, na BR 277 em maio de 2000, foi uma mostra
do que acontecia cotidianamente nas ações de despejo. O governo fazia e
depois dizia: prendemos armas, eles eram criminosos... e até você tirar eles
da cadeia e mostrar ao poder público que era uma versão da realidade que
tinha sido diferenciada, que a polícia tinha violado os direitos dos trabalha-
dores, sempre passava horas, dias, meses ou anos como aconteceu agora
com a sentença da OEA que restabeleceu a verdade 10, 12 anos depois.
O que mais marcou nesse período foi o processo de criminalização em
larga escala. Isso aí o Jaime Lerner usa, no aparato de segurança pública,
contra o movimento social. Então isso é um pouco do caldo que vai levar
a um grupo de pessoas tomar essa decisão de fundar a Terra de Direitos.
A gente sabia que a rede de advogados populares, ela era um instrumento
importante, mas ela não tinha uma estrutura para poder responder as de-
mandas. Então foi aí que a gente foi pensar nessa questão de organizar uma
nova instituição e fazer a atuação na linha da assessoria jurídica, mas em
direitos humanos.
Você presenciou algum despejo?
Diretamente não, porque como eu estava sempre na capital, aqui, basi-
camente, a gente sempre acompanhava, recebia a notícia da polícia e ficava
mediando de fora, ou próximo, coisa assim. O despejo que eu presenciei,
32
que daí eu fui preso, foi aquele de 99 do acampamento da Praça Nossa Sen-
hora da Salete, em 29 de novembro de 1999.
Você estava lá.
Estava. O que aconteceu: eu recebi um telefonema, por volta das 5 horas
da madrugada, que a polícia tinha cercado o acampamento. Aí eu fui como
advogado, junto com a Patrícia Caldas, da Justiça Global, e a gente chegou
no local e a polícia não deixou a gente entrar. Então a gente vai tentar en-
trar, pra acompanhar o pessoal, e a polícia não deixa, e a í a gente já soube
que tinham prendido gente. E aí quando... nós forçamos, forçamos, até que
quando foi sair o primeiro ônibus, nós tentamos impedir a saída do ônibus,
nós tentamos impedir a saída do ônibus, e a partir daí a polícia nos prendeu
e nos levou pra delegacia. Lá a gente encontrou os sem-terra. Aí já estava
Deus e o mundo em cima da história. Todo mundo estava acompanhando,
querendo saber dos advogados. Mas esse foi um despejo concreto que eu
vivenciei, né, fui preso na época. Naquele momento me impediram como
advogado de fazer meu trabalho. Fui preso e fui solto imediatamente, por
uma decisão judicial do desembargador de plantão.
O que você sentiu por ter sido preso?
Foi difícil, porque naquele período tinha muita perseguição, o governo
Jaime Lerner sabia que de certa forma nós éramos as pessoas que faziam o
enfrentamento permanente, e foi a partir daí que a gente... sabia do receio
de enfrentar a polícia. Foi um momento bastante difícil, mas como eu não
cheguei a ficar... não fui encarcerado, no sentido de... eu fui preso, alge-
mado, levado pra delegacia, fui levado pra fazer exame de lesão corporal,
porque tinha rasgado todo o paletó, tinha uma série de lesões, ainda que
relativamente leves, mas tinha sido assim uma prisão com uma certa dose
de força. Talvez a coisa mais complicada da minha vida foi eles terem me
acusado de ter quebrado a perna de um policial. O policial se acidentou, eu
vi o acidente.
Ele tropeçou?
Ele tropeçou no meio-fio e virou o pé. Quebrou a perna. E aí o secretário
de Segurança deram essa versão. Aí foi a montagem que eles fizeram para
tentar me incriminar, eles me prenderam e quando eu cheguei lá a acusação
era de que eu tinha quebrado a perna do policial. Nossa, esse negócio aí foi...
Eu acho que essa foi a parte mais complicada, porque você fica exposto em
toda a imprensa, até você desmentir. Depois o policial nem quis depor, na
época, esse procedimento foi pro juizado especial pra ser arquivado. Mas
ficou, né.
O que é mais difícil nesse trabalho de defender os direitos humanos?
Vamos dizer assim, a nossa sociedade avança do ponto de vista da de-
mocratização, da garantia de direitos. E ao mesmo tempo você tem uma
33
sociedade muito conservadora. O mais difícil então é que a luta por dire-
itos, ela é estigmatizada, e as pessoas que se envolvem nessa luta também
são estigmatizadas. Então a criminalização e a estigmatização são processos
permanentes, que são utilizadas pelas forças conservadoras.
Então, nós estamos vivendo um momento eleitoral, e a gente vê que
qualquer possibilidade de uma mudança mais significativa sofre um ataque
muito violento das forças hoje que são articuladas com os meios de comu-
nicação social, que utilizam, vamos dizer assim, os instrumentos que têm
poder de alta propagação para não permitir mudanças no país. No centro do
nosso trabalho, que é você dar efetividade aos direitos humanos, que inclu-
sive estão garantidos tanto nas declarações, nos tratados internacionais de
direitos humanos, como na nossa Constituição, no nosso ordenamento ju-
rídico... nosso trabalho é dar efetividade a esses direitos que já estão “garan-
tidos” e aí você vê na prática que as classes dominantes têm efetivamente,
ela se opões com todos os meios para impedir que o Estado Democrático
possa ser estendido para o conjunto da população. Tem uma negativa clara
de permitir que as pessoas possam melhorar de vida.
A coisa mais difícil que eu vejo, por exemplo , na luta pela reforma agrária,
é o fato de que a propriedade da terra continua sendo uma fonte de poder
intocável, de poder econômico, de poder político, poder patriarcal. Ela tem
uma reserva simbólica também de ideologias e de forças políticas que ser
articulam a partir dela contra a possibilidade de os camponeses acessarem
a reforma agrária.
Você acha que a cultura patrimonialista proporciona que a defesa da
propriedade venha antes da defesa da vida?
Eu aprendi isso na prática. Eu acho que o direito à vida ele vem em se-
gundo plano em relação ao direito de propriedade. Tanto o Estado como o
poder econômico, eles têm, ainda, como núcleo central de proteção o direito
de propriedade. Então, direito à vida, direito ao trabalho, direito à saúde, à
educação... todos esses direitos sociais, mas especialmente os outros direitos
que poderiam, decorrentes inclusive da democratização, por exemplo, do
direito de propriedade, ficam secundarizados. Esse foi um aprendizado. Eu
acho que o direito de propriedade, ele se opõe aos direitos humanos como
um todo, enquanto direito absoluto de propriedade.
Mais importante na sociedade que os outros direitos humanos fosse...
você não consegue efetivá-los, você só consegue efetivar secundariamente,
parcialmente, residualmente, os demais direitos humanos. Nós temos aqui
um impasse, independente de a gente pensar no futuro, se vai ser uma so-
ciedade nos moldes de uma sociedade socialista, que supere o capitalismo,
mas alguma coisa a gente tem que lutar pra superar essa sociedade que é
embasada na propriedade absoluta.
34
A propriedade é, na verdade, mais do que uma coisa em si, ela é relação.
Ela que estabelece quem é dono possa dizer como os outros vão se compor-
tar. Ela é que determina que o proprietário possa estabelecer relações de
trabalho que tenham exploração, super exploração, trabalho escravo, seja lá
o que for. Ela dá status, ela dá todas as condições para que você, na socie-
dade, seja...
Como você acha que o espetáculo midiático faz a população ver o con-
ceito de propriedade?
Eu diria assim que os pobres têm, no seu imaginário, mesmo vivendo
da miséria e às vezes da penúria, a mesma ideologia patrimonialista que os
grandes proprietários têm. Isso apareceu claramente nas primeiras eleições
do Lula. As pessoas pobres diziam assim: não, mas se o Lula ganhar ele vai
tomar a casa das pessoas... Mas aí a gente perguntava, você tem casa? Não,
eu alugo. Mas então vai tomar o quê?
Então, quer dizer, a pessoa nem tinha o direito material pra ela defender,
mas ela assumia a ideologia do outro. Acho que nesse sentido a ideologia
do patrimonialismo, da propriedade, ela é incutida nas pessoas pela classe
dominante e é isso que leva as pessoas, às vezes, a rejeitarem as ações dos
movimentos sociais como o MST, com os movimentos de moradia, que im-
pede que as pessoas vejam claramente os seus direitos econômicos, se o dire-
ito de propriedade fosse democratizado, melhoria as pessoas... elas acham
que não. É a classe dominante que incute essa visão, uma visão invertida do
mundo, uma visão do mundo inversa.
Como é o mundo de verdade?
Um mundo real no qual os bens deveriam estar a serviço das pessoas, e
que as maiorias, que não têm possibilidades de acesso ao trabalho, à terra
ou tudo aquilo que a sociedade reproduz, poderiam ter acesso, de forma
que você poderia ter casa pra todo mundo, você podia ter terra pra todo
mundo que quer trabalhar em terra, ter trabalho pra todo mundo que quer
trabalhar... tem condições, a sociedade tem todas as condições, o mundo
tem as condições de resolver isso. Mas, vamos dizer assim, as classes domi-
nantes, que vivem da exploração da riqueza que extrai com a riqueza do
trabalho dos outros, elas não querem que essa mudança aconteça.
O que é liberdade no nosso contexto?
EU acho assim, que o conceito de liberdade como luta da humanidade é
um conceito universal, e todo ser humano almeja isso. Existiu uma apropri-
ação, num determiando momento, das classes dominantes, do mundo capi-
talista, que eles vão se apropriar desse conceito pra dizer que liberdade é
liberdade de propriedade, é liberdade de empresa, liberdade do capital. E o
capital, ele fala que deve haver total liberdade, mas no momento em que há
uma ameaça ele aceita a limitação dos direitos dos outros em nome de uma
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suposta liberdade econômica – uma liberdade de empresa, uma liberdade de
reprodução do próprio capital, então ela é uma... a liberdade no capitalismo,
como as classes dominantes capitalistas colocam para a sociedade, ela é uma
liberdade cujo limite está colocado na possibilidade ou não da reprodução
do capital. No momento em que há alguma ameaça, que essa mesma liber-
dade, por exemplo, que o povo luta pra mudar as coisas e garantir os seus
direitos, no momento em que isso coloca em risco a reprodução ampliada do
capital, a liberdade é suprimida imediatamente.
E nesse sentido é a liberdade universal que é suprimida, e não a liberdade
dos capitalistas, aquela é uma liberdade só pra eles, porque daí eles estão
por cima e eles mantém o seu espaço. Por que eles se aliavam com ditadores
aqui na América Latina, na África e coisa assim? Porque interessava pra eles
continuar ganhando dinheiro, pra eles não importava naquele momento que
houvesse liberdade para todos.
Nesse anos que você trabalha com o assunto, a questão fundiária mel-
horou ou piorou?
Quando eu comecei a luta pela terra, quando eu me envolvi nesse pro-
cesso, eu imaginava que esse processo de modernidade todo, no início desse
novo milênio colocaria por terra essa questão. Estava tudo resolvido através
de novas tecnologias, do desenvolvimento da agricultura e tudo, isso ia se
acabar. E aí, ao longo do tempo eu fui vendo que passava cinco anos, pas-
sava dez anos, os movimentos continuavam lutando por terra, a terra não
era distribuída e o que eu vi ao longo desses anos é que as coisas avançaram
no que os movimentos sociais lutaram, porque se dependesse do Estado,
dos interesses econômicos, do agronegócio, nunca teria havido nenhuma
ação com vista à reforma agrária no nosso país.
Então, eu vi os avanços, mas vi os avanços a partir das lutas. Acontece-
ram vários avanços, mas não atingimos um objetivo central que era democ-
ratizar a propriedade da terra, melhorar as condições de trabalho no campo.
Quer dizer, nós continuamos com trabalho escravo, nós continuamos com
super-exploração, nós continuamos com milhares ou milhões de campone-
ses que vivem na pobreza, que vivem na miséria, que poderiam viver numa
condição de vida melhor a partir da distribuição da terra, que é farta no
nosso país, mas que o patrimonialismo e as forças das classes dominantes...
Qual é a relação entre o agronegócio e o abandono do campo?
Eu acho que isso é consequência da implantação de um modelo de agri-
cultura baseada na revolução verde, que não é nem revolução e nem verde
porque ela não vai revolucionar as relações de trabalho no campo no sentido
positivo, mas no sentido de expulsar os trabalhadores do campo. Ela não
vai ser verde porque ela vai destruir as florestas e é esse modelo de agri-
cultura, eu diria assim, que está na origem desse agronegócio que a gente
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conhece como ele é hoje, que vai expulsar o camponês do campo. É uma ag-
ricultura sem agriculturas. Aqui, entre aspas, é uma certa solidarização da
agricultura, onde os grandes empresários vão começar a desenvolver uma
agricultura através da contratação de mão de obras, e a construção de uma
agricultura cada vez mais sem agricultores. Nesse momento, na ponta desse
pocesso, estão as empresas da Argentina que se instalaram agora no Centro-
Oeste, e que não têm mais agricultores, são empresas que contratam pessoas
para operar máquinas, fazer as atividades. Não existe nem sequer a figura
do proprietário da terra, todas essas questões, arrendatários, proprietários
de terra... não tem mais relação nenhuma com o cultivo da terra.
Então, o êxodo rural, o inchaço das periferias urbanas e a expulsão de
milhões e milhões de trabalhadores do campo se deu exatamente pela im-
plantação desse modelo que é baseado na concentração da terra e da renda
no campo.
No livro viúvas da terra, o jornalista Clester Cavalcanti traz uma estatís-
tica que chama a atenção. Um trabalhador foi morto a cada 4 dias no país.
É esse modelo que é responsável por esse número alarmante de mortes?
Eles se utilizam de todos os meios para impedir a democratização da pro-
priedade da terra. Se eles puderem dominar o congresso nacional através
do voto do poder econômico eles dominam, se eles não puderem conter as
lutas sociais pelos meios convencionais ou meios... dos mecanismos do Es-
tado, eles usam da violência. Então essa coisa de usar a pistolagem, usar a
violência contra os trabalhadores é porque a classe dominante do campo, a
burguesia agrária do agronegócio, esse é o meio mais eficaz de amedrontar
os trabalhadores, amedrontar as lideranças e impedir que os trabalhadores
continuem trabalhando pela terra.
E os prêmios? Como é que foi essa história do prêmio Robert Kennedy?
Você recebeu uma ligação da viúva dele, foi isso?
É. Então. No ano de 1999 pra 2000, eu sofri todo esse processo de
perseguição, de ameaças e isso. No início de 2001, nós fizemos o tribunal
aqui, quando eu recebi a ligação, acho que no mês de outubro de 2001, eu
recebi de... era uma empregada doméstica que trabalhava na casa da viúva
do Robert Kennedy, eu lembro que ela queria falar comigo, ela falou inglês
e aí ela traduziu dizendo que eles tinham escolhido, para o prêmio Robert
Kennedy, por causa do meu envolvimento da luta pela terra aqui no Brasil
e pelas perseguições que eu tinha sofrido e outras coisas.
Foi então que eu fiquei sabendo que algumas organizações aqui do Brasil,
as pessoas tinham me indicado naquele ano, eu tinha sido indicado antes,
mas esse era um processo sigiloso, de consulta e aí eu recebi a ligação e aí ela
me convidou, então, para ir lá, no dia 20 de novembro, que é o aniversário
do Robert Kennedy, que é quando eles entregam o prêmio. Eles têm uma
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comemoração anual que reúne toda a família e o congresso norte-america-
no. Aí eles me convidaram pra eu receber o prêmio.
Era o período um pouco depois do 11 de setembro, o congresso estava
fechado, então foi um período bem conturbado, quase que não teve a soleni-
dade. Mas enfim, acho que foi um momento importante, porque foi possível
então naquele período reforçar e legitimar toda uma luta que tinha aconte-
cido. Porque eu recebi o prêmio, mas o mais importante era que legitimava
todos os movimentos sociais, no Brasil e no Paraná.
Você disse que a questão da morte nunca foi muito presente na sua
vida. No período da sua atuação, teve algum acontecimento nesse sentido
que mais marcou você?
Não, o que mais marcou foi o assassinato do Teixeirinha, foi uma ex-
ecução assim que eu vivenciei muito próximo.
Era próximo dele?
Não era próximo, mas tinha conhecido ele como liderança do movimen-
to. Foi uma coisa tão bárbara assim, soube que eles prenderam o filho, que
tinha 13 anos, o Marcos, eles levaram ele pra procurar o pai no cativeiro.
Então, uma situação assim de extremos absolutos. E ele se entregou e eles
humilharam ele, depois executaram e montaram um farsa, dizendo que ele
tinha reagido e isso ficou sempre como um fato dado, nunca foi investigado,
nunca se apurou definitivamente. Ele foi executado com cinco tiros. Esse
fato dessa violência me marcou muito do ponto de vista pessoal.
Foi em ocupação? Como executaram ele?
Teve uma ocupação ali em Campo Bonito, que é perto de Cascavel, era
uma área que tinha titulação irregular, eram áreas que eram devolutas e o
pessoal ocupou a área e depois – eram várias áreas próximas, eles ocuparam
a área principal. Aí, lá naquele local teve três policiais que foram disfarça-
dos e sacaram armas contra o pessoal do movimento e houve um confronto,
eles foram assassinados, então houve uma reação da polícia.
Morreram mais pessoas?
Três policiais foram assassinados. E aí a polícia cerca todo o acampamen-
to, toda a região ali, e vai prender. Tem um pessoal que prende e tortura,
mas não prendem o Teixeirinha, que era a principal liderança, eles deixam
pra prender ele uns cinco dias depois. Então eles matam ele. Eles prepara-
ram o momento da execução. Foi um finalzinho de tarde, quando já estava
quase escuro, pra não ter nenhum tipo de registro. E esse fato me marcou
muito.
(Pausa)
Você teve outros reconhecimentos do seu trabalho?
Sou cidadão honorário de Curitiba, e daí a Terra de Direitos, a gente
recebeu o prêmio de organização que atua como defensores de direitos hu-
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manos, foi em 2005 ou 2006.
Sobre a Terra de Direitos, mudou muito a atuação dela nesses últimos
anos?
É, nós começamos atuando em situações de conflito, fazendo assesso-
ria jurídica especialmente do MST, mas tem outros campos e nesses novos
campos, como a proteção da biodiversidade, das sementes criolas, a par-
ticipação em eventos de agroecologia, em eventos dos movimentos de uma
agricultura diferenciada, um outro modelo de agricultura, vai marcar muito
uma nova atuação. Que a gente vai atuar também na questão quilombola,
que não está aqui nos primeiros momentos da Terra de Direitos, e a questão
da luta pela terra a gente vai prestar assessoria jurídica primeiramente aqui,
depois em Pernambuco, e hoje a gente está no Pará, não pelo MST, mas em
uma frente, lá na região de Santarém também que a gente está fazendo as-
sessoria jurídica para diferentes movimentos e organizações comunitárias
locais, sindicatos, questão quilombola, mas que também é... regularização
fundiária, conflitos de terra, ameaças.
A maioria dos casos de assassinatos estão no Pará, não é?
Estão no Pará, mas na região que a gente está é mais ameaças. Essa região
mais ocidental do Pará. É, no Oeste. E outra coisa. A gente vai continuar atu-
ando nessa área de direitos humanos, participando das ações do Programa
Nacional de Direitos Humanos, participação na Plataforma Dhesca Brasil,
na área de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais,
e também vai criar, mais recentemente – nos últimos 2 anos e meio – uma
área de justiciabilidade, que é a discussão da democratização do poder ju-
diciário, acesso à justiça, que talvez seja a área que mais tem novidades
nesse momento na atuação da Terra de Direitos.
O que você espera para os próximos anos?
Eu acho que nós vamos ter desafios diferentes porque os movimentos
sociais como eles se colocaram, na década de 80, 90... mesmo na primeira
década do ano 2000, eu acredito que nós não vamos ter essa mesma atuação.
Eu acho que se colocam hoje são movimentos de resistência, especialmente
de comunidades tradicionais, como os quilombolas, os indígenas, e conti-
nua a luta pela reforma agrária – eu acho que nós vamos continuar atuando
nesses campos, tanto em assessoria jurídica ainda, mas com temas sempre
novos. E eu acredito que a questão ambiental vai ganhar força da pauta da
Terra de Direitos nos próximos anos.
E a pauta nova do judiciário, eu diria assim que ela vai marcar nossa
atuação nos próximos 10 anos fortemente, porque vai ser um campo que a
gente vai investir, porque sempre houve um privilegiamento das ações do
Estado a partir do Poder Executivo e do Poder legislativo. Agora a gente vai
ter um equilíbrio que vai dar um reforço na atuação da Terra de Direitos.
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Muito em decorrência do monitoramento da ação do judiciário.
E reforma agrária? Você acha que se aproxima ou se distancia cada vez
mais no país?
Você se pode distanciar de uma reforma agrária, aquela reforma agrária
tradicional. Mas do ponto de vista das lutas de comunidades tradicionais,
os quilombolas, os indígenas e outros locais, populações que estão desco-
brindo suas identidades, essas populações vão se apropriar do território,
vão resistir no território de forma diferenciada, de tal modo que eu vejo no
futuro uma variedade de resistências e lutas por terras e território. Talvez
a luta por território vai ser mais forte daqui pra frente nesses grupos que
vão resistir ao avanço do agronegócio, ao avanço das monoculturas, seja de
agrocombustíveis, seja de árvores, seja dessa onda de mercantilização das
lutas ambientais através dos RED’s ou de outros mecanismos que estão sen-
do criados internacionalmente pra poder se apropriar das nossas florestas,
entre aspas, que inclusive as populações tradicionais continuem vivendo
nelas, ou restringindo... acho que esse campo vai estar mais colocado daqui
pra frente.
Agora eu acho que o que também possa se dizer que houve mudanças
nesse últimos anos que como a gente sempre foca a reforma agrária no cen-
tro das nossas lutas, a gente sempre deixa passar assim um. Foi o reconheci-
mento do censo agropecuário, desse último que foi feito, do papel do cam-
ponês na produção de alimentos, nunca tinha sido reconhecido. Ganhou
uma força porque não era uma questão que a gente podia imaginar.
Acho que a questão do campo não é uma questão linear. A gente tem as
forças econômicas do agronegócio, as transnacionais que vão marcar os con-
flitos – os conflitos vão ter outra ordem de grandeza e tudo mais. Vai ter o
enfrentamento das empresas e tudo mais, mas eu diria assim que a agricul-
tura familiar ela vai ganhar à medida que ela produza alimentos. Então você
não tem uma visão linear assim que a reforma agrária está crescendo ou o
camponês está desaparecendo. Esse é um debate do final do século XIX, já
havia esse debate que os camponeses iam acabar, no século XX esse debate
se arrastou o tempo inteiro e os camponeses vão se reproduzindo, então
não existe uma regra. Há uma exclusão? Há. Mas os camponeses continuam
encontrando “n” formas de se reproduzir e nosso trabalho vai ser fortalecer
a luta deles.
Pedindo desculpas pelo avançado do horário, eu queria que você falasse
como é sua vida hoje, porque falamos mais sobre sua trajetória profission-
al em um segundo momento. Você tem filhos?
Eu tenho dois filhos, sou casado...
É o Gabriel e o...
O Gabriel e o André, e a Tereza Cristina é minha esposa. Eu moro num
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bairro aqui de cidade de Curitiba, já há mais de 10 anos, no Orleans. Eu man-
tive sempre a possibilidade de ter alguns espaços para poder ter uma hora,
ter cultivo de verduras e coisas na horta, chás, essas coisas. Também tenho
uma parte que é de plantas, eu gosto, desde criança, de plantar árvores, en-
tão, por exemplo, todo ano eu planto pés de araucária, depois distribuo as
mudas, depois levo pra algum lugar, gosto muito de plantar. Tenho árvores
em casa, apesar de ter um lote pequeno eu tenho lá minhas árvores, uns li-
moeiros e tenho aleluia, uns pés de ipê, flores, enfim, o meu fim de semana
eu dedico um pouco a isso, tenho um outro lugar pra fazer horta também.
Tem a ver também com manter minha cultura camponesa, aquilo que eu
aprendi a fazer com a terra, mas também tem a ver com uma nova visão que
a gente tem sobre a produção de alimentos, o alimento está cada vez mais
contaminado por agrotóxicos, assim a gente tem a possibilidade de alguns
alimentos. Você só pode produzir alguns alimentos, não pode produzir to-
dos. A gente depende do mercado, isso é uma coisa dura, mas é real. Então
a gente produz o que pode nesse espaço da horta .
Eu posso conhecer o espaço para ter uma ideia de como é?
Claro, vamos lá. Vamos combinar.

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Hilma de
Lourdes
Santos
Onde a senhora nasceu?
Eu nasci em Santo Antonio do Paraíso, aqui no Paraná.
A senhora passou a infância lá?
Até os meus 10 anos sim, depois a gente veio pro município de Grandes
Rios, e lá a gente ficou oito anos, aí a minha família, eu, nos mudamos pro
município de Ortigueira. Em Ortigueira eu fiquei até 91, quando eu vim
embora pra cá, pra região metropolitana. Eu morei seis meses em Campo
Largo.
Em 91 a senhora veio pra cá então?
Isso, em 28 fevereiro de 91.
O que a senhora mais lembra da infância?
Olha, a minha infância ela foi assim bastante sofrida devido ao... nós éra-
mos muito pobres, né. Nós éramos em cinco irmãos até os meus sete anos,
depois veio mais 2 filhos, somos 7 no total, 6 mulheres e um homem.
Como assim?
É que a minha mãe teve cerca de cinco filhos. Eu tinha sete anos e ela
tinha a quinta, entendeu? E aí ela ficou com esses cinco até a minha irmã
caçula estar com oito anos. Foi então que aí veio essa outra temporona.
Como se chamam seus irmãos?
Veio o meu segundo irmão.

Hilma para para atender Amanda, de três anos. A mãe de Amanda morava com
Hilma até casar. Se mudou, mas recentemente o marido morreu e Amanda e a mãe
voltaram a morar com Hilma. A mãe de Amanda tinha saído no dia da entrevista,
tinha ido fazer exames médicos (conversa paralela com Amanda)

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Deixa eu pegar você no colo. Olha, acho que vou levar você lá com a
Mariana. Quer ir lá com a Mariana? Logo a mãe chega.
Ela está com sono, mas não está querendo dormir.
Aí veio meu irmão, que é dois anos mais novo que eu, o Sidnei.
A senhora é a mais velha?
Sou a mais velha, a primeira de 7 irmãos.
Sossega!
Não, é aqui, você senta aí e a Ma aqui.
Se eu trocar de lugar você vai deixar nós escrever? Vai, né? Vai ter que
deixar senão vou levar você lá com a Mariana. Você vai lá com a Mari? En-
tão senta aqui. Bem quietinha. Você não quer ir pra escola?
Ela tá doida pra ir pra escola, tem dois ônibus aqui que pega as crianças.
É, vai pra escola, no ano que vem. Fica bem quietinha aqui pra você
começar a aprender como que é.
Ela está com saudade da mãe.
Ela foi de manhã ainda pro médico?
Não, era 10 pras 11h ela pegou o ônibus aqui. Porque ela ia lá fazer uma
consulta , pegar o remédio e pagar a prestação do terreno deles.
Logo a mãe está aqui.
E, paramos na terceira, né. Aí temos a quarta, que é a Maria Lúcia, a outra
é Helena, Zineide, e a nossa caçula que é a Dirleia.
A senhora estava falando que a infância foi bastante sofrida.
Foi sofrida né, porque naquela época assim da ditadura militar meus pais
casaram em 60, eu tinha dois anos, em 64 teve a ditadura militar. Então era
aquela pobreza muito grande, o pessoal não tinha muito conhecimento, meu
pai se endividou no banco, foi bem difícil. Mas a gente acabou passando
miséria, até questão de fome mesmo a gente passar. Mas a gente conseguiu
dar a volta por cima de tudo isso, e o que fez a gente vir pros locais urbanos
foi a questão do êxodo rural.
Vocês morava m no campo?
No campo. Era no sítio.
O que vocês plantavam no sítio?
A gente plantava arroz, feijão, plantava o milho. Mas era assim, a gente
vivia desde pequena na propriedade, mas a gente não tinha aquilo que...
você não tinha assim um... como é que eu te digo, aquilo que fizesse que você
permanecesse mesmo, uma política que te ajudasse assim para o pequeno.
Então não era só nós, mas era todo mundo que vivia... muitas vezes você
trabalhava pra pessoa, mas a pessoa também não podia te pagar porque ela
não tinha. Passava fome os dois.
Como era o lugar que vocês moravam?
O lugar se chamava, se chama ainda, bairro do Curiango, no município
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de Santo Antonio do Paraíso, eu morei lá até os 10 anos. E era assim o sítio
do meu avô que a gente morava, né, uma área de 6 alqueires, mas em que
as pessoas não podiam, não tinham assim uma política que fizesse com que
as pessoas tivessem muito, plantassem muito. Mas a gente tinha, né, uma
vaca de leite, então a questão das primeiras alimentações nossa foi boa, não
foi ruim assim. A gente aprendeu comer muita verdura, muito legume, toda
vida meu pai plantou, toda vida meu pai mexeu com isso. Mas a gente pas-
sava muita necessidade de outras coisas, porque nem sempre tinha de tudo.
A vida era difícil por isso, e minha mãe, analfabeta, até hoje, botou na cabeça
que nunca aprendia a ler e nunca aprendeu mesmo.
O meu pai tirou a segunda série, e nós, a gente estudava... eu fiz a oitava
série, mas depois de adulta. Eu tenho, a maioria das irmãs minhas... a que
mora aqui já tem o segundo grau também, a Neide eu não me lembro se ela
tem segundo grau, se ela conseguiu terminar ou não, e tem outras duas que
optaram por ficar na quarta-série.
Não tem nenhum dos seus irmão que continuam trabalhando na roça
então?
Não, nenhum. Aliás, uma delas, a Lena. Ela é casada hoje, tem meu so-
brinho com 20 anos, tem a outra menina com 12, eles trabalham em um
bairro pequeninho, na Rodovia do Café, mas eles mexem com madeira. Meu
cunhado comprou um caminhão esse ano, né, e ele mexe com madeira. Pi-
nus essas coisas pra revender.
Mesmo com todas essas dificuldades que a senhora falou, a senhora
lembra de coisas boas da infância?
Lembro sim! A gente era muito pobre, mas a gente tinha muito carinho.
Eu lembro de ter alguma picuinha entre meu pai e minha mãe, mas era nor-
mal, tanto que comemoramos 50 anos de casados deles nesse ano, foi agora
dia 4 de julho, a gente aproveitou 25 de julho que pegava o final das férias
e a gente foi, comemoramos, não muita gente, só nós mesmo, porque não
dava pra reunir muita gente. Mas passou, a gente passou tudo isso e os dois
estão lá, firme e forte.
Meu pai hoje mora em um bairro pequeno também, o pai e a mãe, cada
um tem...
Eles moram aonde?
No bairro dos Francos, fica no município de Ortigueira. Eles continuam
lá, porque daí quando a gente acabou tendo, com o passar do tempo, a gente
recebeu, de herança dos pais dela uma pequena quantia, compramos um
pequeno sítio, mas foi cercado por grandes fazendas e nós acabamos ven-
dendo e meu pai comprou três terrenos e assim, ele faz horta... não tem
lavoura grande, mas ele mexe com horta. E os dois têm aposentadoria rural,
que é um salário mínimo, mas eles vivem melhor do que muita gente.
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Eles conseguiram construir, não terminaram por fora, mas conseguiram
construir uma casa de 90 metros quadrados depois que se aposentaram.Era
o sonho deles fazer uma casa pra todo mundo, né. Agora não tem ninguém
em casa e eles fizeram. Na oportunidade que eles tiveram eles fizeram.
O êxodo rural esteve muito presente na sua vida?
Sim, por exemplo. No ano de 83... em 80 nós viemos do município de
Ortigueira, daí a gente ficou em uma fazenda, e qual quer era a política ali
de sobrevivência do fazendeiro? Era plantar grãos, o que formava a inver-
nada.
Então a gente formou...
O que, filha?
Então nós formamos, dentro de três anos, a gente formou, de 80 a 83. Em
83 a gente foi pra uma fazenda, mas chegamos um tanto atrasados. Meu pai
tinha arrumado uma fazenda, o cara começou a enrolar. E com isso a data
base de quem planta, passou. Nós acabamos mudando dia 22, 23 de outu-
bro. Então, boa parte da fava já não dava pra plantar mais. Então foi nesse
ano que a gente realmente passou fome, a gente passou muita miséria.
Essa irmã minha, caçula, ela estava com 3 anos e pouco, e nós que com
toda nossa pobreza nunca tinha ficado sem leite em casa, ali a gente ficou. E
a gente assim, sabe, não tinha como comprar mesmo. A gente até tinha como
comprar. Você morava na fazenda, mas você ia morar ali pra plantar. Então
o leite que tinha ali o fazendeiro vendia pra outro. A gente não tinha acesso,
mas a gente passou muita miséria em 83, 84.
E a escola?
Mas com isso tudo eu fui pra escola quando eu tinha sete anos de idade.
Uma coisa que é muito presente na minha lembrança foi que eu fui pra aula,
com sete anos de idade. A questão da educação, do aprendizado, ela era
muito forte, né. Isso foi em 1969. No primeiro dia que eu fui pra aula, pra
você ter uma ideia, meu professor era o meu tio. Ele era professor da rede
estadual, muito bom por sinal, ele vive até hoje , está com quase 90 anos.
Como é o nome dele?
É Tacílio Camargo. Ele mora em Congoinhas, estado do Paraná. Então
essa imagem ficou muito na minha lembrança. Ele me passou, no meu cad-
erno, pra levar pra casa pra eu fazer, números de 1 a 10. E eu nunca tinha
ido numa aula. E isso ficou muito presente porque quem me ensinou, pegou
pela primeira vez, e a única vez que foi preciso pegar na minha mão pra
aprender a fazer a numeração ou escrever alguma coisa, foi a minha mãe.
Ela é analfabeta, ela só assina o nome dela, mas número e conta ela faz
muito bem e ela conhece. Então ela pegou na minha mão pra me ensinar a
fazer número de 1 a 10.
Dá pra dizer que ela foi a segunda professora, aquele meu tio meu na
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aula, e no primeiro dia que eu fui na aula ele me passou isso. E eu choran-
do bastante, em casa, porque não conseguia fazer, ela me ensinou. Ela me
ensinou, foi uma imagem que ficou muito presente.
A escola era longe da sua casa?
Não. Era escolinha rural, o nome da escola era Padre José de Anchieta,
dizem que ela está de pé ainda, mas bem acabada, são quantos anos e quase
não tem mais ninguém lá depois de tantos anos, com o êxodo rural não tem
quase ninguém morando lá, muito pouca gente que mora lá. Mas era um
lugar bom porque tinha aquelas colônias, tinha muita gente no sítio, então
eu me lembro como se fosse hoje, eram três períodos de aula. Um das 7h da
manhã às 11h, depois das 11h às 14h e das 14h às 17h da tarde.
Todo mundo estudava junto?
Era, era multi-seriada, mas as meninas sentavam de um lado, os meninos
de outro e nas brincadeiras também era isso, que eu me lembro muito bem.
O pátio da escola era grande, mas era dividido, ficava tudo separado.
Você quer que a Ma coloque?
Os meninos brincavam separados das meninas?
Sim, os meninos separados das meninas, essa era a educação que a gente
vivia, com a questão de que não podia se misturar. Mas depois é que a coisa
foi mudando. Lá, nessa escola, eu estudei até o começo de agosto de 72, que
a gente veio pra Grandes Rios que eu terminei a quarta série numa escola de
Grandes Rios. Daí não fui pra escola mais, fui pra escola depois de adulta.
Eu fiz a quinta série no bairro dos Franças, né, no período noturno, depois
vindo pra cá eu iniciei a sexta-série, num colégio aqui do Cachoeira e acabei
não terminando ainda o segundo grau.
Fiz algumas matérias já, mas não acabei terminando.
Mas da minha infância eu lembro muito bem disso. Com todo sofrimento,
da pobreza, eu tenho boas recordações da minha infância. Uma das grandes
coisas que pra mim foi ensinado é que foi muito através do meu pai, claro
meu pai não falava, mas peguei isso muito mais pela minha mãe, por eu
ser diferente dos meus irmãos, na questão da estatura, e ninguém sabia o
porquê. Sabe que antigamente todo mundo achava que era vontade de Deus
e que ninguém podia tratar nada. Hoje a gente sabe que não é assim, que eu
tive um problema de hormônio e por isso eu não cresci. Mas a minha mãe
não permitia que meus irmãos falassem alguma coisa me discriminando,
alguma coisa pejorativa, me chamando...
E ela sempre dizia – acho que eu nunca tive dificuldade para aprender
as coisas porque ela nunca assim, como diz numa linguagem popular, ela
nunca me poupou assim de falar assim: você não pode fazer tal coisa porque
você é pequena.
Eu lembro que duas coisas que eu não permitia que eu fizesse, de jeito
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nenhum, que ela tinha medo que eu caísse dentro, era torrar café e fazer
sabão. Fazia muito sabão e a minha mãe tinha muito medo que eu caísse.
Mas o resto das coisas ela me ensinou essas questões de casa. Ela nunca
me permitiu que alguém falasse que eu não ia aprender porque eu era muito
pequeninha. Eu cresci muito lentamente até os 12 anos só, mas ela não per-
mitia. Tanto que eu fiquei adulta e nunca vi a questão do meu crescimento,
da minha estatura, me dificultou pra isso.
Eu nunca coloquei na minha cabeça que eu era assim, eu não me sen-
ti diferente. Hoje eu sei que sou diferente, mas assim, eu cresci sabendo,
achando que eu não era diferente em nada, porque ela nunca permitiu que
alguém dissesses, e alguém de fora, ai se alguém falasse.
Você brigava com seus irmãos?
Às vezes, mas bem de vez em quando. Porque eu era a mais velha e tinha
aquela coisa do irmão mais velho ter que cuidar dos mais novos e como eram
colônias, um sítio grande com muitas famílias, que moravam – eu morava
no sítio do meu avô, mas como próximo tinha aquelas colônias grandes.
Então tinha muita criança, e isso a gente tinha muito bem, a liberdade que a
gente tinha. Hoje a gente tem dó, a criançada que a gente tem aqui, embora
a gente tenha esse espaço aqui, mas é muito ruim porque a gente nem pode
cuidar direito, fazer uma coisa melhor pra ela [Amanda] brincar, ela pode
se machucar ainda.
Mas a gente tinha, tinha o pomar, tinha o mato, tinha as árvores e a gente
corria, trepava, e a minha infância ela foi muito cercada disso. Árvore, água,
muita brincadeira. Eu nunca fui de pescar e nadar, porque eu nunca gostei
disso, tanto que se tiver que comer peixe e tiver que pescar eu fico sem com-
er, porque nunca gostei, mas meus irmãos adoram, a maioria deles, porque
a gente tinha aquelas águas limpas que passavam no meio do sítio, aquele
ribeirão que passava, então, e que tinha essa liberdade, todos nós tivemos.
Apesar da pobreza de faltar muita coisa de brinquedo, de a gente não ter,
mas a gente aprendia a brincar em casa, né. Tinha boneca de sabugo, boneca
de alimento essas coisas que a gente fazia, né. Então, a gente aprendeu. Na
infância minha a gente aprendeu, então foi uma coisa assim muito... foi sof-
rida por um lado, mas por outro lado parece que hoje a gente vendo nossa
criançada, com tudo que tem, não são feliz como a gente, porque eles apren-
dem muito o consumismo. Nós não tínhamos nada disso, né. Era um pouco
mais natural, muito simples e não sei, muito assim... hoje, talvez pelo custo
de vida, talvez, pela outra forma de as pessoas... até pensando na liberdade.
Hoje eles ficam mais sozinhos porque as mães têm a liberdade de trabalhar e
não tem com quem deixar os filhos. Então essa criançada, às vezes – às vezes
não – eles não têm.
Eu vejo aqui, eles não têm a vida que a gente teve. Muitos deles, boa
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parte, convive com pessoas estranhas ou ficam jogados na rua porque a mãe
está presa, tem isso aqui. Enquanto que a nossa infância, apesar de faltar
até comida, mas a gente tinha por outro lado esse tipo de carinho e respon-
sabilidade dos pais, porque chegava a época de ir pra escola, que era aos 7
anos igual hoje, que já tem a pré-escola, que não era... é... mas com 7 anos
todos nós fomos pra escola.
E Querendo ou não até a quarta série tinha que tirar, senão o pai ficava
louco.Tinha uma irmã minha que nunca gostou de estudar, que é a terceira,
que é a Berenice, ela levou 7 anos pra... entrou com 7 anos e saiu com 14
anos pra tirar a quarta série. Porque não gostava, e ela não gosta nem de
pegar no lápis. Mas as meninas dela, que ela tem duas filhas, ela já é avó, as
duas meninas, uma tirou o segundo grau e (as duas tiraram o segundo grau)
e uma começou, fez vestibular tudo, mas por problemas de saúde e o curso
que ela queria fazer – ela teve meningite quando era bebê e ficou com seque-
la – o curso não permitiu ela permanecer porque tinha muita química. Mas
agora ela está bem, trabalha também – apesar de ter dado susto na gente no
ano passado com um infarto. Foi assim, minha irmã não gostava, mas...
E o meu irmão terminou o segundo grau agora no Cebeja, depois adulto
também. Tem hoje também, tem um sobrinho meu que ele está fazendo ad-
ministração de empresas pelo PROUNI, conseguiu a bolsa integral, faz na
Universidade Positivo. Tem outra que está lá naquela universidade de Ponta
Grossa, ela está em Telêmaco Borba, ela faz Educação física, 22 anos, minha
sobrinha, e tem mais uma que está fazendo magistério, e provavelmente vá
fazer faculdade, tem esse que mora perto da minha mãe, que até agora não
fez segundo grau. Mas assim, a gente tem a orientação pra continuar estu-
dando.
Depois que vocês saíram de Santo Antonio do Paraíso, vocês foram pra
Grandes Rios. A casa era na cidade?
Não, era sítio também! Nesse período dos anos 80, que começou a se
agravar bem mais a questão do êxodo rural. Era muita pobreza.
Quer ir na Maria? Mas a Ma não pode ir lá levar você agora.
Você quer levar ela lá?
Acho que vou levar ela lá sim! Já volto
Mas você fica lá brincando com as meninas e com a Maria?

Dona Hilma sai de casa e deixa o repórter, recém conhecido, na casa dela. Até
pensa, quem entrevista a senhora, em tomar um copo d’água, mas segura a sede por
achar falta de respeito usar a torneira e procurar copos como se fosse velho morador
da casa. Passados 15 minutos, Hilma volta com Amanda, não havia ninguém na
casa onde estaria Maria.

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Quando a senhora se mudou pro município de Ortigueira?
Foi em 80. Nós mudamos pra uma fazenda no bairro chamado Lajeado
Seco, e ali nós ficamos três anos e fomos para o Bairro Industrial, que fica no
mesmo município. E de lá eu vim pra cá. Agora, minha militância política
eu comecei a... quer dizer, eu comecei, não sabia bem que era uma militância
política, mas ainda na ditadura militar, na adolescência, lá em Grandes Rios
mesmo, quando comecei eu tinha 14 anos, eu comecei a dar catequese e eu já
não concordava com a maneira dos livros que eram usados, né. Então eu não
pegava aquela decoreba. Era catecismo, educação cristã, então eu não con-
seguia trabalhar só com aquilo. Eu pegava os temas e eu preparava as aulas,
eu já comecei, e eu não sabia que isso já era uma questão política, revolu-
cionária, que você já não topava aquilo. E isso ainda na ditadura militar.
E daí mudando pra Ortigueira, já com 18 anos, eu comecei a trabalhar
mais na questão da pastoral da juventude, daí veio a teologia da libertação,
eu comecei a trabalhar nas comunidades eclesiais de base, onde a gente fa-
zia uma formação política sem saber que era uma formação política sem
usar esse nome, foi o que fez com que muitas pessoas se interessassem com
a política, com as comunidades eclesiais de base pra discutir as questões de
cidadania, uma série de coisas.
E a gente então não sabia direito o que era isso. A minha militância, en-
tão, começou aí. Na pastoral da juventude rural e nas comunidades eclesiais
de base por causa da teologia da libertação.
Como a senhora explicaria a teologia da libertação?
Como eu explicaria isso? Então, o que era a pastoral da juventude rural.
Era o nome dos grupos de jovens que se dava na área rural, que não se
falava apenas na questão de fé, na questão de rezar. Mas você fazia um tra-
balho sobre a questão de cidadania, a gente começou a discutir o que eram
os direitos na questão da constituição, a questão de 88, né, que foi bastante
discutida, e tanto nas comunidades eclesiais de base. Quer dizer, começou
a fazer esse trabalho, de as pessoas se interessarem pela questão política e a
descobri o que era um partido, o que era outro... até chegar nessa fase, então
a gente começou a discutir a questão de cidadania, do que é direito porque
você não era qualquer pessoa, você era um sujeito com direitos. Então você
começou a aprender através desses grupos, da pastoral da juventude rural
e depois vem lá várias...
No perímetro urbano era a pastoral o meio popular, né, nós não... na
questão rural, no sítio, a gente trabalhava com a questão da juventude rural.
Então a gente começou a discutir essa questão política, questão de cidadania
através desses grupos. E também o que eram os direitos, os direitos tra-
balhistas, muitas pessoas não sabiam se interessar pelas questões sindicais,
tudo, né.
50
A militância política minha se deu através desses grupos. E depois eu
trabalhei também quando veio a Pastoral da Criança. Eu trabalhei em um
primeiro momento, e ainda fiz formação, pra trabalhar como líder com as
mães, o que já atingia diretamente a questão da vida, a questão dos direitos,
da cidadania, porque tanta criança morria de desnutrição... a gente apren-
deu tudo através dessas pastorais e desses grupos, através da teologia da
libertação. Mas isso não demorou muito tempo porque o povo estava apren-
dendo demais, né. Aprendendo muita verdade então tinha que se tirar.
Isso foi em que época?
Década de 80. Em 88 que eu já fiz uma opção política partidária, mas até
lá não. A gente estava... Aí que eu vim embora e tudo.
O início da sua militância foi mais ligado à igreja então...
Foi mais ligado à igreja. O início dela, tudo, se deu mais através da igreja
mesmo.
Calminha!
E aí a atuação era mais nessas áreas de formação mesmo.
É, a gente tinha muita formação, o que a gente quase não vê hoje. Tinha
muita formação na igreja pra preparar o sujeito pra ir pro céu. Então pra ir
pro céu você não precisa de financiamento. Ninguém sabe se vai ter, mas
fica todo mundo calmo. No caso nosso não, então às vezes hoje eu fico bem...
até me preocupa porque eu vejo os jovens muito cômodos, não se interes-
sam pela política, não se interessa pela questão cidadã. O que vem vai. E
a gente não, no meu... apesar de a gente morar no sítio, a gente não tinha
acesso assim, não tinha computador, era mais rádio de pilha, a televisão era
pouca gente que tinha, telefone nem se fala e a gente achava tempo, né. Eu
andava 34 quilômetros pra fazer formação, em cima de trator, e a gente não
tinha dinheiro. A gente dormia no salão da igreja, em Ortigueira, e a gente
não tinha dinheiro pra comprar pão na padaria. O que nós fazíamos? A
gente levava, para as formações nossas, que a igreja cedia o espaço, a gente
levava para as formações, mandioca, o que viesse.
Quer dormir na cama? Então a Ma leva você lá. Vai dormir mesmo filha,
coitadinha, está com o olho fechando. A boneca? Eu levo, deixa eu levar
você lá. Pega a boneca e leva! Porque a Ma não aguenta com tudo, você já
está maior do que a Ma! Deite pra lá e deixe a Ma trabalhar, lá, tá? Tem os
bichinhos que estão cuidando de você, olha lá... Isso!
Agora ela dorme lá.
Então era bem mais complicada essa questão, né... ter que viajar em cima
de trator...
É, mas o pessoal se interessava, a gente tirava às vezes uma semana pra
fazer formação. A gente fazia as coisas baseadas na bíblia, mas na realidade
era uma questão política, tanto que os padres que se comprometeram a fazer
51
isso, eles não ficavam muito tempo naquele local, eles eram mudados. Tanto
que logo veio a RCC, Renovação Carismática Católica. Mas a minha forma-
ção foi assim, eu devo muito a isso.
E aí mudando pra cá, na questão de movimentos, eu conheci, tive a opor-
tunidade de conhecer no município de Ortigueira o Movimento Sem-Terra.
Ali eu pude fazer minhas primeiras experiências, posando em acampamen-
to tudo, e de trabalhar com eles mesmos na questão ali na pastoral rural,
de trabalhar com eles, eles tinham um acampamento lá que hoje é assenta-
mento, tudo, e depois que eu vim pra cá, aqui acirrou ainda mais a luta na
questão da moradia.
Pra que cidade da RMC a senhora veio?
Pra cá eu vim pra Campo Largo. Fiquei seis meses. Tinha duas famílias
que vieram de lá e na realidade eu vim para cuidar de uma criança de uma
delas, e daí eu acabei, por problema de saúde da mãe dessa menina, eu aca-
bei entrando na empresa que era de artefatos de couro que ela trabalhava.
E ela acabou indo cuidar da menina dela, que ela não tava boa de saúde...
só que o emprego não durou muito, porque logo, não sei como, mas eles
descobriram a minha militância política, a qual partido eu era filiada, tudo,
fazia 6 meses que eu era filiada ao Partido dos Trabalhadores.
A senhora foi demitida por estar filiada a um partido?
Fui, fui demitida mesmo. Daí eu acabei vindo trabalhar como empregada
doméstica em Curitiba. Aí eu fiquei 9 meses morando no Centro, só que ali
eu não podia fazer militância nenhuma, porque eu morava com o patrão.
Era uma vida muito ruim, né, e pra quem tinha uma vida de militância... eu
gostava do serviço que eu sempre trabalhei, tinha duas crianças que eu cui-
dava e cuidava do apartamento, era grande, mas, por outro lado, eu sentia
muito amarrada porque eu não exercia a minha militância, de forma algu-
ma. E daí nove meses, algumas famílias de lá, que vieram antes de mim que
moram aqui na Grande Cachoeira, me arrumaram um outro trabalho, que
eu também não conhecia nada – eu trabalhava sem carteira registrada nessa
casa – e eles arrumaram outro trabalho pra mim de empregada doméstica
mesmo, já era com carteira registrada que não precisasse posar. E eu vim
morar com uma delas.
Isso foi em setembro de 92, e quando foi – morei com ela 2 anos, aluga-
mos uma casa eu e uma outra moça, e em 95 surgiu essa área, que acabei
vindo pra cá, que foi aonde eu acabei, né, me envolvendo com a questão da
moradia, né, e da questão da reforma urbana que foi um movimento que eu
me filiei e que estou até hoje. Hoje sou quadro de direção.
A senhora mora desde o início no mesmo lugar?
No mesmo lugar. Essa casa que você está vendo aqui, nessa situação,
caindo já, ela vai fazer 15 anos que eu entrei dentro dela agora no dia 18 de
52
novembro. Porque a gente ocupou aqui no dia 17 de janeiro de 1995, mas a
gente ficou assim em barraquinha, tudo, e eu consegui, não terminar ela do
jeito que... ela está caída hoje, mas terminar ela do jeito que está, com forro,
com assoalho e tudo, assim, não foi tão rápido.
A gente ergueu ela e eu acabei entrando nela no dia 18, que tinha bar-
raquinha aqui, 18 de novembro de 95, depois que eu acabei forrando, colo-
cando assoalho, e que hoje precisa tirar, né. Hoje preciso fazer outra casa, na
realidade. Mas foi aqui que eu estou e daqui eu não pretendo sair também.
Você viu, a casa está caindo, mas eu já manilhei ela, é terreno de esquina,
tem manilhamento , ela tem toda a... murada da forma que está, que não
ficou muito barato isso não. E em um primeiro momento, antes de conseguir
água, nós conseguimos a rede de luz. Então foi a primeira coisa que nós
conseguimos.
Que hoje, quem ocupa uma área irregular, não consegue rede de luz
primeiro não. Nós conseguimos. Foi no Governo do Lerner, mas a gente
conseguiu.
Como foi a história da ocupação?
A área ocupada aqui, em janeiro de 95, no comecinho do Governo Lerner,
deu enchente em toda a Região Metropolitana. Foi no começo de janeiro.
Então o pessoal começou a subir. E essa area aqui era uma área... o propri-
etário daqui comprou essa área em 62, mas ele não é uma pessoa rica, deve
ser algum acerto que alguma empresa fez e ele nunca pôde construir nada,
porque ele não tinha condições financeiras. Então, fazia quase 35 anos que
ele comprou isso aqui e estava abandonado.
Ele pagava o ITR, que era o imposto, era uma coisa legalizada dentro da
área rural, e o ele entrou, né, entrou na justiça. Porque na realidade ele não
queria tirar o pessoal daqui, ele precisava de uma indenização por parte do
poder público, que foi o que aconteceu depois, porque ele não ia construir
nada, com nós aqui em cima ele ia receber alguma coisa, se tivesse sem nada
seria mais difícil.
Então a luta, aqui dentro, pra gente resistir, ela não foi fácil, porque
ele entrando na justiça, tinha toda a questão ambiental também. Uma das
questões ambientais que fez com que nós ficássemos aqui é a questão dos
motéis, que é aqui do outro lado. Porque quando se falava que nós iríamos
poluir o rio, os motéis já estavam fazendo isso havia tempos.
Aqui, já haviam desmembrado 3 mil metros dessa área, que era um con-
vênio da prefeitura para construir o piá ambiental que hoje é uma creche,
em um lugar totalmente inadequado. Então não tinha como eles criminal-
izarem a gente tanto.
Mas isso por causa da mobilização de vocês...
Por causa da mobilização. Porque a gente sofreu tentativa de despejo,
53
polícia que vinha aqui.
Foi difícil mobilizar o povo?
Olha... 95, janeiro. Em julho vem o plano real, você sabe que era uma mi-
séria muito grande, né? O povo não tinha o que comer, não tinha emprego,
não tinha casa. E o povo foi vindo, cada um foi fazendo do jeito que dava,
sem assim... tinha muita resistência, o povo precisava morar. E 80% das
famílias, que era umas 80 pessoas que vieram pra cá na época, ainda estão
aqui. Pra você ver que foi uma coisa de resistência. Foi mais ou menos um
mês, 28 dias depois que eles estavam aqui, que eu entrei, porque quando
eles ocuparam em janeiro eu estava de férias. Tinha ficado 14 dias na casa da
minha mãe. Eu cheguei, comecei a trabalhar no dia 16 de fevereiro.
Os companheiro da gente queriam que viesse pra cá. E eu não entendia
nada de moradia, e a minha mãe tinha vindo pra cá aqui comigo pra fazer
tratamento de saúde. Ela tinha ido pro meu serviço, ela escutou toda a con-
versa minha, no telefone, das pessoas que me ligou, na época eu até brin-
quei, eu to chegando de férias, o dinheiro que eu tinha, nas férias eu gastei,
e eles falaram “não, mas a gente faz uma casa pra você, nem que seja de
algumas placas”.
Aí quando eu vim pra minha casa, que era uma casa alugada ali na Ca-
choeira (casa boa, de alvenaria, a gente alugou uma casa que já tinha toda a
mobília dentro, encapetada, com asfalto na frente tudo, nós éramos em duas
e a gente pagava, só que todo mês o valor era diferenciado, mas a gente
pagava), e a minha mãe que falou pra mim, mais uma vez, minha mãe é
analfabeta e ela pegou e falou pra mim: gente, agora, se eu fosse vocês duas,
encarava... porque se der alguma coisa, é uma conquista de vocês, se não der
nada, vocês não estão perdendo nada, vocês não estão comprando nada e é
a chance de vocês terem um canto de vocês.
Então ela, mais uma vez, me orientou a fazer isso. E foi aqui mesmo que
eu acabei abraçando a causa da moradia, já conhecia alguma coisa de lei,
por conta da minha militância, a questão de direito e tudo. Mas assim, na
questão prática mesmo, eu fui aprender aqui. Então, quando foi outubro
de 95 que participei do primeiro encontro em Londrina do Movimento Na-
cional, já saí de lá como liderança do movimento, porque aqui eu tive, fui
obrigada a fazer a frente pra evitar que a polícia... porque é à noite que a
polícia batia muito.
Tinha muita gente que trabalhava de segurança e as mulheres ficavam
sozinhas. Porque na verdade eles queriam era outras coisas e não era na re-
alidade tirar, mas era ameaçar – era você dar dinheiro, ou ir atrás de droga
uma coisa e outra, que sempre dá isso.
Eles ameaçavam. E aí a gente começou a mobilizar a imprensa, contra a
prefeitura. As primeiras ruas que gente teve aqui a gente fez na enxada e
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quando precisou passar a máquina também foi a própria população, a pre-
feitura não fez nada.
Nós conseguimos a primeira torneira de água comunitária praticamente
dois meses depois que a gente ocupou a prefeitura, porque até então o pes-
soal só fazia reunião lá, mas nada se resolvia. E quando foi no dia 8 de
março de 1995, nós ocupamos, em mais de 50 pessoas, a prefeitura. Foi aí
que houve o comprometimento de botar aí uma torneira comunitária.
Mas aí uma torneira pra todo o pessoal era muito pouco. E quando foi
em junho mais uma mobilização grande, daí a gente conseguiu mais duas
torneiras – uma perto da creche e a outra aqui perto (essa área é grande tem
69 mil metros quadrados. E conseguimos a proposta, a promessa, a proposta
mesmo de colocar a rede de luz, desde que se fizesse as ruas. A prefeitura
negou fazer as ruas, nós fizemos, mas demoramos dois meses até juntar din-
heiro pra fazer as principais.
Mas aqui a prefeitura...
Agora sim. Mas a gente ficou 11 anos na justiça, depois dos 11 anos saiu
a citação judicial dando reintegração de posse ao proprietário, daí a luta foi
mais ferrenha ainda porque nós tivemos que lutar contra o despejo, que foi
quatro anos atrás, em 2006, um ano eleitoral também e aí juntou as forças,
todo o tipo de criminalização contra nós, porque aí eles tentavam... o pre-
feito tentou, junto com o presidente da câmara...
Aqui de Almirante Tamandaré?
Aqui de Almirante Tamandaré! Tentou confundir a cabeça do povo que
era a gente , eu como liderança, que tinha ido pedir a reintegração de posse.
Coisa que não tinha nada... como é que eu ia pedir a reintegração de posse
se não tinha nada no meu nome? E que era pra eleger fulano, beltrano ou
ciclano. E isso foi desde março, quando saiu citação pra nós, que a gente foi
avisado, até maio... até maio não, até junho, até começar o período eleitoral,
o período de campanha. Aí deu uma trégua no período da campanha, mas
passou a campanha a coisa acirrou de volta.
Só que aí se acirrou da seguinte forma: isso tem no processo, só não te
mostro o processo porque não está comigo, está emprestado pra um tra-
balho de universidade, que os professores emprestaram. Veio então mais
uma vez um oficial – a gente não sabe mesmo se veio, mas está no processo
que ele veio –, e ele chegando aqui – isso foi primeiro de novembro –, ele se
deparou com – ele não fala 3 mil pessoas, pode ser erro de digitação, mas ele
fala em 3 mil famílias – tantas casas de madeira, tantas de alvenaria... e ele
devolvia pra juíza e queria saber, também não citou a prefeitura, mas citou o
proprietário, e queria saber pra onde que ia levar esse povo. E que ele dava
a orientação para a juíza que chamasse os advogados do proprietário pra
ver o que faria. E aí não tendo jeito mesmo, ou a prefeitura desapropriava
55
ou nós iríamos pra rua.
Porque até então o Governo do Estado já estava respondendo processo
– e continua até hoje respondendo processo – foi feito muita reintegração
de posse no Governo Requião, mas o Estado responde muito processo por
não ter feito alguns despejos. Um desses despejos foi o nosso, que o último
pedido do proprietário foi a intervenção federal, foi aonde daí o próprio Es-
tado só tinha um jeito de fazer. O Estado não podia desapropriar, quem tem
que desapropriar é a prefeitura. Daí eles fizeram a intervenção na prefeitura
pra que a prefeitura desapropriasse. E desapropriou da forma que a gente
acha... já estava fazendo 12 anos, isso foi em 2006, isso já foi desapropriado
no dia 23 de março de 2007, e então com aquilo que a gente desde o primeiro
momento que o pessoal entrou aqui que eu comecei a minha atuação, e com
a minha orientação de juiz, promotor, o próprio ministério público, com
orientação que mais entendiam de advogados, a gente começava a trabalhar
da seguinte forma: Olha, lá é uma área rural, não é uma área urbanizada, ela
está no perímetro urbano, mas ela não está como área urbana, é área rural,
nunca foi pago o IPTU, foi pago sim até 95 o ITR, portanto, a prefeitura pode
desapropriar por qualquer valor, e se ele quiser, ele que vá pra justiça.
Quando foi março de 2007, depois dessa intervenção do Estado, da gente
ter ido na Cohapar várias vezes. Numa dessas reuniões na Cohapar, que
não era pra isso, mas depois da reunião que a gente foi fazer lá eu falei
claramente (soltei os verbos mesmo) que até quando o prefeito daqui achava
que ia enganar a população, que ia segurar isso, porque nós sabemos que
o Requião não seria eterno, e que uma hora ele ia sair e a bomba poderia
estourar. Aí dentro de uma semana ele veio aqui pela intervenção do Estado
e ele veio... eu fiz isso numa quinta-feira, no sábado ele veio aqui, sentiu a
população, pra ver como a população estava...
Ele veio conversar com o povo?
Veio conversar com o povo. O que ele tinha feito uns anos antes, quando
saiu a citação da prefeitura, a citação da juíza, que eles mesmos chamaram a
gente lá e colocaram pra gente o que estava acontecendo, que a primeira en-
tidade que foi comunicado da situação de insegurança pública que ia acon-
tecer foi a prefeitura.Secretaria de Habitação. Não foi nós. Quem avisou a
gente foram eles, então eles vieram aqui e foram de casa em casa botando a
população conta a gente. A gente sofreu isso aqui, muito... eu passei muito
medo na época. E outras lideranças também, mas a gente passava mais, mais
medo porque sempre fiquei na linha de frente.
A senhora foi ameaçada alguma vez?
Ah, assim, o povo não, mas a gente sentia, tinha medo que o povo se... o
povo não fez isso porque eles conhecem a gente há quantos anos e a gente
aqui. E a gente nunca foi lá fazer as coisas sozinha. Todas as maiores mo-
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bilizações que tiveram, reuniões, eu nunca fui fazer reunião sozinha. Isso a
gente tem tudo documentado. A gente tem uma história com muitos docu-
mentos. Desde foto tudo, então, eu tenho...
Olha, desde 95, quando eu entrei aqui, que eu joguei uma agenda minha
fora. Tenho tudo marcado, tudo guardado. Então é uma história que ficou
escrita e que a população não sabe. Então, por mais que naquele momento,
que era um ano eleitoral, eles vem aqui e falam isso, deu essa trégua. Mais aí
a gente falava também: bom, durante esse período eleitoral, vai ficar calado,
mas assim que começar vai recomeçar. E não deu outra, não deu segundo
turno pra presidente da república, e nem pra prefeitura de Curitiba, você
sabe disso, né? Então... não, não tinha prefeitura, era governo do Estado.
Só deu pro Governo do Estado e não deu pra presidente da república. En-
tão quer dizer: só esperou o segundo turno do Governo do Estado e no dia
primeiro de novembro, segundo o que está no processo, que veio esse oficial
de justiça aqui.
Então daí quando ele foi desapropriar que ele... sábado, ele veio, e sentiu
a população – realmente, a população sabia – e falou pra ele: não, a gente
sabe que se não for desapropriado, que a única pessoa, a única entidade que
pode fazer isso é a prefeitura e a única pessoa que tem o poder da caneta pra
fazer é o senhor, é o prefeito.
Ele veio, conversou com a população, passou aqui na minha casa, eu não
estava aqui, eles sabem muito bem os passos que a gente dá e aonde a gente
está. Então os momentos que a gente não está aqui. Então ele veio, passou
por aqui e conversou com a maioria da população.
Eles ficaram uma semana pra saber o que eles iam fazer, como eles iam
arrumar dinheiro pra desapropriar. Mas aqui em Tamandaré tem o Fundo
Municipal de Habitação, que também veio a funcionar a partir de 95, quan-
do a gente denunciou que tinha um fundo e que o prefeito dizia que não
tinha fundo. Na verdade hoje eu sei que acho que não tinha fundo mesmo
porque não tinha nada, só criaram por lei. Hoje tem.
Acabaram desapropriando do jeito que a gente tinha sugerido desde 95,
que eles vieram aqui, e aí veio toda uma equipe técnica, o que nós dizíamos
era isso, eles poderiam desapropriar pelo valor do último imposto ou um
outro valor que a prefeitura quisesse, e que o dono, se quisesse, que fosse
questionar na justiça. Eles vieram aqui e avaliaram, porque igual nós falá-
vamos: Vocês vão lá, se quiserem dar 50 mil, depositarem lá, ou R$1,00, ou
R$0,50 na juíza pra quebrar o efeito do despejo, pode fazer isso, isso é Lei, é
só querer fazer.
Daí eles fizeram o seguinte: veio a equipe técnica e avaliou uma área... o
dono estava pedindo R$ 625 mil pela área. Aí veio essa equipe técnica, fez
toda essa avaliação, tudo que tem aqui em cima é a população que constru-
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iu, rede de água nós que pagamos, rede de luz nós que pagamos, as ruas foi
nós que fizemos, então o proprietário não tinha feito nada.
O que tinha aqui que caracterizava uma área urbana é o que nós tín-
hamos feito. Aí eles avaliaram pelo valor de uma área bem ruim mesmo, que
era aqui muito quebrado, você tem que tirar a parte ambiental, as áreas de
encosta, um monte de coisas, e eles foram lá, não ofereceram pra ele, deposi-
taram em juízo R$ 120 mil.
E ele não reclamou não. Até antes das eleições, que a gente estava tendo
reunião pra montar o plano de habitação, pra montar o conselho, ele não
tinha reclamado nada. E acredito que não, pois já faz três anos. Acho que ele
pegou os R$120 mil e ficou quieto. Porque se não tivesse ninguém aqui, se
estivesse vazio, ele não ia pegar isso. Ainda mais agora se for pra construir...
porque são poucas áreas aqui que dá pra fazer mesmo... se for pra fazer so-
brado não vai dar pra fazer coisa com três quatro andar é meio complicado
aqui em Tamandaré.
Então foi dessa forma que aconteceu a desapropriação. E daí durante esse
período que a gente estava discutindo a questão da reintegração de posse do
despejo, a gente começou a discutir também a questão de dar mais espaço,
de pular um pouco mais na questão de política pública do saneamento. E
foi feito, mais uma vitória que a gente teve, que a gente tem que explorar
isso, bastante, que muita gente não sabe disso, então, negociando, em 2006,
quando nós estávamos negociando a questão da reintegração de posse, a
gente teve reunião com várias entidades do Estado. Uma delas dói a Secre-
taria do Meio Ambiente.
E lá estava Sanepar, prefeitura, a nossa comunidade e a Cohapar e a Sec-
retaria Do Meio Ambiente. E lá surgiu essa proposta de a hora que desse,
porque a gente não tinha um palmo de esgoto em Almirante Tamandaré.O
que a gente não queria aqui é ser despejado e ser mandado embora, porque
parte da área dá pra ser regularizada. E que se dissesse que é possível fazer,
por mais que a área é quebrada.
E daí a prefeitura fez o acordo com a Sanepar, a Arlete da Sanepar es-
tava na reunião e se comprometeu que ia levar isso adiante, assim que fosse
aprovado política de saneamento a nível nacional, isso ia demorar um pou-
co, mas que ela ia tentar fazer isso. E quando foi esse ano a coisa realmente
começou.
Então aqui começou a ser instalada a rede de esgoto. Você vê agora, to-
dos esses becos... porque dá até dó dos trabalhadores, que aqui na rua os
caminhões chegam e joga o material, e aí pro meio é eles que tem que car-
regar. Então eles estão colocando em todos os lugares. Como vai se dar essa
regularização aqui, eu ainda não sei, mas eles estão colocando rede de es-
goto em tudo quanto é beco. E até 2020 é pro município ter 80% ligado, e eu
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acredito que se eles não pararem, na agilidade que esses trabalhadores estão
fazendo, eu acho que eles podem até fazer antes.
Pra nós é mais uma conquista, o município também tem isso através da
nossa luta. Claro que com o comprometimento da prefeitura de fazer isso,
de apurar a Sanepar pra fazer, e fazer um contrato e tudo, mas foi através
da luta da gente.
Tem a creche ali embaixo, que eu te falei, que era área do Piá Ambiental,
que eu não sei se você sabe o que é o piá ambiental. Você conhece mais ou
menos o que é o Piá Ambiental?
Já, já ouvi falar sim.
O Piá ambiental é uma instituição que era um convênio assim das pre-
feituras com o governo do Estado onde ficavam os meninos, ali ficavam
80 meninos, ficavam o dia inteiro. Quem ia pra escola ia de manhã, ficava
o período da tarde, quem ia de manhã estudava no período da tarde. Aí
de um prefeito pra outro, ficou abandonado. Foi fechado isso, o prefeito
não deu continuidade, e daí nós começamos... um dia as mães vieram aqui
pra pedir se não tinha como a gente reivindicar pra fazer uma creche aqui
dentro. Foi aí que me veio na cabeça: tem, pois o piá ambiental está aban-
donado, a gente pode travar uma luta pra isso. E de fato nós travamos, até
hoje tem a creche ali. Ela não é só para as crianças daqui, porque ela é uma
creche municipal, mas nós chegamos a montar o projeto da creche como
uma creche comunitária porque se a prefeitura enterrasse nós íamos entrar
pra dentro de qualquer forma. Nós não queríamos um amontoado de cri-
ança, mas se fosse preciso a gente fazer isso pra segurar... porque até então...
daí nesse intervalo veio conversa e começaram a pintar ali mesmo pra fazer
um módulo policial. Daí nós começamos a brigar contra, que por ser dentro
de uma área de ocupação deixaram de dar prosseguimento a uma institu-
ição educacional, porque era, os meninos recebiam formação ali dentro, pra
transformar em um módulo policial? Numa área de 3 mil metros quadra-
dos? Que você poderia fazer uma creche maior, então hoje ali tem pré-escola
e tem a outra creche do lado que funciona e funciona bem. Que é pra ir cerca
de 90 crianças, porque a gente começou a entender também que não podia
ser um amontoado de crianças. Então essa foi conquista nossa, luta nossa, e
essa rede de esgoto que está aí. E agora o que nós queremos traçar mesmo é
ver como vai dar essa questão da regularização fundiária daqui da área.

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