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FENOMENOLOGIA

EM DEBATE

ANAIS DO EVENTO

em colaboração com
Fenomenologia
em Debate
17 e 18 de maio de 2018

Universidade Estadual de Londrina

Programa de Pós-graduação em
Filosofia

Em colaboração com o
Central-European Institute for Philosophy (SIF)
Charles University Prague - Faculty of Humanities

ANAIS DO EVENTO
COMMISSÃO OGRANIZADORA:

Prof. Dr. José Fernandes Weber (UEL)


jweber@uel.br.com

Prof. Dr. Hans Rainer Sepp (Charles University Prague)

Dr. Giovanni Jan Giubilato (Bolsista PNPD-CAPES)


giovannijangiubilato@hotmail.com

Mg. Anna Luiza Coli (Charles University Prague – BUW Wuppertal)


annaluizacoli@gmail.com

ISBN: 978-85-7846-488-2
Universidade Estadual de Londrina
Rodovia Celso Garcia Cid | Pr 445 Km 380 | Campus Universitário
Cx. Postal 10.011 | CEP 86.057-970 | Londrina – PR
Índice

Apresentação ............................................................................. 3

Programação ............................................................................. 6

Resumos ..................................................................................... 8

Conferências ............................................................................ 30
Apresentação

A fenomenologia vem se afirmando na atualidade como uma das


correntes filosóficas mais inovativas, diversificadas e frutíferas no panorama
internacional da filosofia contemporânea. Isso é devido, em grande parte, à
sua capacidade de abrir pontes hermenêuticas e estabelecer diálogos com as
demais áreas da filosofia e do saber humano em geral (como as ciências
cognitivas, as neurociências, a psicologia, a sociologia e até mesmo a
medicina).
O encontro “Fenomenologia em Debate”, realizado de 17 a 19 de maio
de 2018 no Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade estadual
de Londrina – UEL, integra as atividades do ‘Grupo de estudo e pesquisa em
fenomenologia’, vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia do
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UEL, cujas reuniões semanais
vem contribuindo para a introdução de um espaço de trabalho sistemático
acerca da fenomenologia e de seu método, e de fórum de aprofundamento e
debate das filosofias de Husserl, Heidegger, Fink e Patočka, entre outros. O
‘Núcleo de pesquisa em fenomenologia’ surgiu a partir dos projetos de
pesquisas que há alguns semestres é desenvolvido pelo professor José
Fernandes Weber e que conta com a participação de alunos da graduação e
do mestrado. Os projetos coordenados pelo professor Weber se dedicaram a
temáticas muito próximas ao núcleo principal de problemas da
fenomenologia, como a questão da técnica e suas implicações filosóficas no
pensamento de Martin Heidegger, Peter Sloterdijk e Gilbert Simondon. Com
a participação do bolsista de Pós-doutorado PNPD-CAPES, Giovanni Jan
Giubilato, as atividades do grupo se voltaram ao estudo das bases filosóficas
e metodológicas da fenomenologia de Edmund Husserl e de seus
interlocutores diretos.
Este encontro, portanto, dá prosseguimento tanto às atividades
vinculadas à bolsa de Pós-doutorado PNPD-CAPES de Giovanni Jan
Giubilato (Projeto de pesquisa 2018 “Fenomenologia e filosofia da liberdade.

3
Fundação conceitual e alcance atual”), quanto às atividades dos projetos de
pesquisa do Prof. Weber, das quais participa ocasionalmente ainda o
professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
UEL, Eder Soares Santos. A primeira atividade de extensão ligada ao Núcleo
de Pesquisa em Fenomenologia foi o ciclo de palestras organizado no ano
acadêmico 2017 e que teve como tema a “Atualidade da fenomenologia” e a
suas interseções com a crítica da cultura, a estética e em particular com o
pensamento do pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser.
O objetivo maior do evento que se empreende aqui é, por um lado, o
de apresentar principalmente aos alunos de graduação e mestrado em filosofia
da UEL, mas igualmente aos alunos e aos interessados em geral, a relevância
e a abrangência dos temas e questões que constituem o escopo da chamada
“filosofia fenomenológica”. Por outro lado, contudo, é também do interesse
da comissão organizadora e dos participantes dos referidos projetos e grupos
de estudos criar um espaço para compartilhar aquilo que tivemos a
oportunidade de estudar juntos por aproximadamente um ano, e confrontar as
diferentes perspectivas surgidas daí com a produção e o estudo da
fenomenologia realizado por outros professores tanto do departamento de
Filosofia quanto de outros departamentos da UEL. O centro comum que liga
todas as apresentações é a fenomenologia em suas mais variadas concepções
e perspectivas – a fenomenologia chamada ao debate.
Esse evento conta ainda com o apoio internacional do Central-
European Institute of Philsophy – SIF [Středoevropský Institut pro Filosofii],
sediado na Charles University em Praga, República Tcheca e do professor
Hans Rainer Sepp, grande especialista na obra de Husserl e interessado na
discussão que a fenomenologia pode incitar em suas várias interseções
temáticas e interdisciplinares, além de um dos maiores divulgadores de obras
de fenomenólogos ainda pouco conhecidos e explorados, como Eugen Fink e
Jan Patočka. O SIF foi criado com o objetivo de promover a pesquisa
interdisciplinar em filosofia, e valoriza a transdisciplinaridade e o debate

4
acadêmico em seus aspectos interculturais a partir de cooperações
internacionais, como a que agora estabelece com a UEL.
Aproveitamos para agradecer a todos que aceitaram participar do
evento e nos ajudaram, com isso, a dar um passo além nessa ainda breve
trajetória do Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia.

José Fernandes Weber


Giovanni Jan Giubilato
Anna Luiza Coli

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Programação

17/05/18 - Quinta-feira, 14.00–21.30


14:00-14:45 – Filosofia, existência e finitude: Eugen Fink para
além do transcendental e do factual
Prof. Dr. José Fernandes Weber

14:45-15:15 – As operações de nominalização e objetificação


representativa na apreensão de objetos categoriais em Husserl:
apectos epistemológicos e semânticos
Yuri José Victor Madalosso

15:15-16:15 – Distância e ausência no pensamento do ‘negativo’


em Eugen Fink
Anna Luiza Coli (Charles University Prague – BUW Wuppertal)

Pausa

16:45-17:15 – O despertar do infinito na finitude: uma análise do


jogo na obra “O Jogo como Símbolo do Mundo” de Eugen Fink
Camila Ferreira Oliveira

17:15-18:15 – Cerimônia oblíqua: Nostalgia


Prof. Dr. Cláudio Luiz Garcia

20:00-21:30 – Conferência de Abertura: Exercitium,


experimentação, performance. A transformação fenomenológica
do pensamento em Martin Heidegger
Dr. Giovanni Jan Giubilato

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18/05/18 - Sexta-feira, 14.00–21.30

14:00-15:00 – A questão do conhecimento científico em Husserl e


Foucault
Prof. Dr. Marcos Alexandre Gomes Nalli

15:00-16:00 – Husserl/Deleuze: distinções na imagem de


pensamento
Prof. Dr. Américo Grisotto

Pausa

16:30-17:30 – Transicionalidade e jogo (brincar) fenomenológico


Prof. Dr. Eder Soares Santos

17:30-18:00 – A Fenomenologia existencial de Martin Heidegger


Douglas Giovani Ezequiel

20:00-21:30 – Conferência de Encerramento: Notas sobre uma


fenomenologia da Universidade
Prof. Dr. Roberto Wu (UFSC)

7
RESUMOS

Organizados por ordem de apresentação

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17.05.2018

Filosofia, existência e finitude:


Eugen Fink para além do transcendental e do factual

José Fernandes Weber

Cada nova teoria filosófica expressa implicitamente, num nível mais


fundamental aos problemas que pretende resolver por meio da elaboração
conceitual, uma nova definição do que é filosofia. Quanto a isso, dois
exemplos: Husserl, em A ideia da fenomenologia, ao designar a
fenomenologia como um método e uma atitude intelectual, afirma que ela é
“a” atitude especificamente filosófica e “o” método especificamente
filosófico. Nietzsche, em A genealogia da moral, identifica o destino “da”
filosofia futura como coincidente com uma nova exigência imposta ao
pensamento, que consistirá na tarefa de avaliar o valor dos valores. Para
Husserl, doravante, filosofia será fenomenologia; para Nietzsche, genealogia.
Assim sendo, a definição do que é método e atitude, para o primeiro, ou
moral, para o segundo, não é uma operação conceitual restrita à solução de
problemas localizados sendo, antes, a própria concreção do esforço de dizer
o que é “a” filosofia. Paralelamente, na distinta maneira como ambos
concebem filosofia, opera uma distinta compreensão de existência. Se, para
Husserl, a atitude fenomenológica se expressa como uma nova atitude, o
“conceito operatório” (Fink) que educa fenomenologicamente a inteligência
é a epoché (Ideias, §32). Dela decorre a hipótese da aniquilação do mundo
(Ideias, §49): se o mundo fosse aniquilado, o ser da consciência seria
modificado, mas não alterado em sua existência. Portanto, existência é um
índice formal, cujo sentido recai sobre a dimensão transcendental da
consciência. Já em Nietzsche, o ponto de partida inegociável da genealogia,
uma espécie de signo de probidade intelectual, é o reconhecimento da
inseparabilidade entre o humano e a natureza. Em virtude de sua “natureza

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não fixada”, o que o leva a planos aparentemente não naturais, “o ser humano,
em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza,
carregando consigo seu inquietante duplo caráter” (A disputa de Homero).
Aqui, existência é o modo de ser da efetividade humana, inseparável do corpo
e das suas pulsões constitutivas, e embora não seja meramente fáctica, tem no
factual um domínio constitutivo incontornável. A partir destas antagônicas e
excludentes compreensões de filosofia e existência, buscar-se-á mostrar a
maneira como Eugen Fink, em sua obra Fenômenos fundamentais da
existência humana, recusa tanto uma fundamentação metafísica ou
transcendental da atividade filosófica e da existência humana quanto uma
compreensão da filosofia e do humano como atividade meramente fáctica de
um ente fáctico. Ao pensar a existência a partir da noção de fenômeno, Fink
põe fora de circulação a tradicional opção interpretativa que consiste em
pensar a atividade filosófica e o humano a partir da disjuntiva: ou
transcendental, ou factual. No §1 da referida obra, Fink afirma que “a essência
da existência humana não pode ser apreendida por uma abstração da
realidade. A realidade de nossa existência é o pressuposto de nossas
distinções entre essência e factum”. Tal como em Husserl e Nietzsche,
também em Fink a compreensão de um problema situado num lócus
específico já supõe uma compreensão do que é filosofia, a saber: “pensar
finito, uma possibilidade finita da existência finita”, portanto, conhecimento
da própria finitude. Dessa maneira, em Fink, finitude é o ponto de amarração
de filosofia e existência.
Palavras-chave: Fink. Filosofia. Existência. Finitude.

* * *

10
As operações de nominalização e objetificação representativa na
apreensão de objetos categoriais em Husserl: aspectos epistemológicos e
semânticos

Yuri José Victor Madalosso

O objetivo geral desta comunicação é explicitar, no contexto das


Investigações Lógicas, a constituição dos objetos categoriais através da
tematização das nominalizações e objetificações representativas.
Especificamente, busca-se clarificar os principais problemas semânticos e
epistemológicos pertinentes a estas operações. Além disso, o objetivo é
também mostrar os limites destas operações na construção de sínteses de
preenchimento e identificação categoriais complexas. Por fim, busca-se
problematizar os conceitos de conteúdo e fundação, de modo que os
resultados das reconstruções anteriores sejam avaliados conforme a estrutura
teórica das Investigações e o modo como Husserl enfrenta as dificuldades
desta obra. Como hipótese de interpretação destes problemas, defende-se que,
para justificar epistemologicamente sínteses de identificações categoriais
complexas, é necessário reconsiderar a fundação dos preenchimentos
categoriais com base na variabilidade das nominalizações e objetificações
representativas. Para sustentá-la, primeiramente será feita a reconstrução dos
conceitos das operações acima apresentadas na Quarta e Quinta Investigação.
Em seguida, será efetuada a reconstrução da teoria da intuição categorial e a
constituição dos objetos correlatos exposta na Sexta Investigação. Logo após,
serão expostos os problemas referentes às sínteses de preenchimentos e
identificações categoriais e os critérios respectivos a preenchimentos em
geral; aqui, o trabalho de clarificação se torna complexo ao tematizar as
operações dadas na matéria intencional, que são o objeto de estudo desta
comunicação. Em continuidade, será problematizado o conceito de
“conteúdo” empregado por Husserl, coligado tanto com as operações
intencionais tematizadas aqui quanto com as acepções epistemológicas e

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ontológicas dos conceitos de “fundação” e “dependência”. Confronta-se,
neste ponto, a avaliação do próprio Husserl com relação aos problemas
principais da epistemologia das Investigações. Enfim, as consequências a
serem avaliadas aqui serão: a) como os conceitos de evidência e verdade
devem ser trabalhados nestas relações complexas e b) as implicações, no
conceito de “existência ideal”, de preenchimentos em níveis categoriais
superiores.
Palavras-chave: Modificação significativa. Objetificação representativa.
Síntese. Intuição categorial. Conteúdo.

* * *

12
Distância e ausência como figuras do ‘negativo’
na filosofia meôntica de Eugen Fink

Anna Luiza Coli


(Charles University Prague – BUW Wuppertal)

Desde suas primeiras formulações, a filosofia meôntica de Eugen Fink


procura pensar o problema da impossibilidade de um discurso positivo a
respeito do que não se apresenta à nossa experiência como doação direta aos
sentidos. Além de recorrer à definição kantiana da ‘dialética transcendental’
para pensar o não-dado, Fink se dedica também à questão do negativo e de
todo o espectro metafísico necessariamente envolvido na determinação de
algo como me-on, ou seja, não como a negatividade ‘negativa’ ou a nadidade,
mas enquanto negação da identidade fixa e permanente que impede a criação
e a manifestação do outro ‘inerente’ ao ‘mesmo’. A filosofia meôntica (de
me-on, não-ente), portanto, arrisca-se no terreno árido de questões como o
absoluto e a origem para repensar os pressupostos da fenomenologia
husserliana e, dentre eles, o problema do mundo. A presente contribuição tem
por objetivo apresentar as figuras da ‘distância’ e da ‘ausência’ como fio
condutores de uma proposta interpretativa da figura do negativo nos dois
volumes de notas de estudo recentemente publicados nas obras completas de
Fink. Essas notas – que acompanham e testemunham os bastidores de parte
importante de seus escritos de 1927 a 1935, dentre os quais a famosa 6ª
Meditação Cartesiana – nos permitem retraçar as primeiras formulações de
Fink acerca da intrusão do ‘negativo’ em toda positividade que se estabeleceu
como objeto da fenomenologia. Nesse sentido, essas primeiras formulações
tomam uma distância metodológica clara em relação ao trabalho que Fink
vinha desenvolvendo junto a Husserl, como seu último assistente, e são elas
que nos permitem, por sua vez, compreender as reviravoltas que só
posteriormente à morte de Husserl e ao fim da Segunda Grande Guerra se
fizeram notáveis em sua filosofia cosmológica. Distância e ausência são duas

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figuras do negativo que nos permitem compreender a articulação que o jovem
Fink elaborou entre os problemas da fenomenologia e os fundamentos da
cosmologia que caracterizou seu pensamento tardio por introduzir de maneira
mais clara, nesses primeiros anos, o problema das totalidades contingentes
que, conquistadas numa tomada de “distância meôntica”, nos permitem
atribuir sentido filosófico ao que se nos apresenta à experiência tanto como
dado quanto como não-dado. Essa articulação, não por acaso, assumiu-se
como o problema do ‘mundo’ e arrastou consigo os conceitos centrais de
‘origem’ e ‘absoluto’ para formar a base da filosofia meôntica de Eugen Fink.
A hipótese interpretativa do trabalho, no entanto, consiste em mostrar que o
elemento central dessa articulação reside no problema do negativo, e que
somente à luz da negatividade específica de que se valeu Fink – não sem uma
grande ajuda da lógica hegeliana – podemos encontrar as bases de sua
filosofia cosmológica.
Palavras-chave: Distância. Ausência. Totalidade. Filosofia meôntica.
Mundo.

* * *

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O despertar do infinito na finitude: uma análise do jogo na obra
“Jogo como Símbolo do Mundo” de Eugen Fink

Camila Ferreira de Oliveira

Este trabalho objetiva realizar uma análise do jogo na obra Jogo Como
Símbolo do Mundo, de Eugen Fink. Nesse livro, Fink reivindica a
possibilidade de uma abordagem filosófica do jogo e se propõe a pensar esse
tema para além dos contornos estabelecidos pela metafísica tradicional por
meio da filosofia platônica, a qual concebe o jogo como uma mera reprodução
da realidade. É a partir desse contexto que Fink desenvolve a sua interpretação
do jogo como uma abertura extasiante do ser humano em relação ao mundo,
como símbolo do mundo. Apesar de sua significativa contribuição para o
pensamento filosófico do século XX e início do século XXI, a filosofia de
Fink ainda permanece sendo pouco estudada sob o ponto de vista de sua
singularidade. Tendo esses pressupostos como base e recorrendo à
reconstrução dos argumentos do autor como método, o texto aqui apresentado
segue em diálogo com a organização da obra em estudo, na qual Fink
desenvolve sua investigação sobre o jogo por meio de três noções
estruturantes: a totalidade, a medialidade e a noção de símbolo. Ao
estabelecer um contexto que opera através de suas próprias regras no qual o
ser humano explora a sua capacidade de constituir sentido, o jogo é ele mesmo
“sentido de totalidade”, pois indica o modo como os seres humanos se
comportam em relação ao mundo e também o modo como opera o próprio
jogo do mundo. O contexto estabelecido pelo jogo, ou seja, o mundo do jogo,
funda uma realidade intermediária entre o real e o não-real pois promove a
abertura do irreal na realidade, estabelece, portanto, uma “realidade medial”.
O jogo é símbolo do mundo pois a partir de sua própria dinâmica permite que
o ser humano experiencie a dinâmica do todo do mundo, ou seja, por meio da
experiência do jogo mundano o ser humano se reconhece como parte do jogo
do mundo. Neste sentido, Fink compreende o jogo como uma abertura

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extasiante para o mundo, como manifestação do infinito do mundo no ser
humano finito. O ser humano joga, portanto, quando por meio da liberdade e
da desmesura da irrealidade do mundo do jogo, experimenta, mesmo que por
um breve instante, o “poder do todo do mundo”.
Palavras-chave: Fink. Jogo. Mundo. Símbolo. Ser humano.

* * *

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Cerimônia oblíqua: Nostalgia

Cláudio Luiz Garcia

A proposta consiste, concretamente, em uma tela de tecido transparente e leve


esticada na sala escura, como um lençol no varal. Na tela será projetado um
trecho do filme NOSTALGIA, de Andrei Tarkovski. Atrás dela, um
ventilador ligado dará movimento ao tecido. Alguns artistas entrarão na sala
com velas acesas; acenderão as apagadas que já foram distribuídas entre os
participantes quando entraram na sala. Durante a projeção os “artistas” farão
alguma ação com água. O público poderá interagir ou não. Assim, a instalação
estará completa, em trinta minutos, quando o som e a imagem do filme, as
luzes das velas e os “atores” mexendo na água configurarem a proposta.
O objetivo consiste em oferecer elementos visuais e textuais para uma
conversa sobre fenomenologia, na Cerimônia Oblíqua. Diante de um
problema insolúvel, o enfrentamento acontecerá no caminho oblíquo, pois é
no atalho que o mistério aparece. Assim, a Cerimônia não visa à demonstração
nem à solução do problema ora em questão, mas à aproximação das dúvidas
que temos em relação ao papel da arte na universidade. O trecho do filme
consiste em cena em que a protagonista entra em uma capela na qual Piero
Della Francesca (1416 – 1402) pintou o afresco Madonna del Parto (1455).
No diálogo entre ela e o padre, percebe-se uma luta entre o ceticismo e a fé,
entre o desejo e a negação, entre a vida mundana e a religiosa, entre a
melancolia e a simplicidade, entre a arte e a religião. A seguir, resumimos
alguns diálogos.
"Veio rezar para ter um bebê também? Ou para não tê-lo?" / "Só estou
olhando." / "Se houver algum estranho só olhando, a súplica não
acontecerá." / "O que deve acontecer?" / "O que quiser, o que precisar
muito." / "Mas tem que ficar de joelhos."
Hesitante diante da ordem do padre, a personagem tenta se ajoelhar, mas não
consegue. Nesse momento, entra um corso com uma Santa que é depositada

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no chão, diante da qual uma mulher se ajoelha. O diálogo prossegue: "Não
posso. Elas fazem desse jeito. Elas estão acostumadas." / "Elas têm fé." /
"Devem ter."
A personagem aproxima-se do padre: "Posso perguntar uma coisa?" /
"Segundo você, por que só as mulheres rezam tanto?" / "Pergunta isso para
mim?"/ "Você vê muitas mulheres aqui, deveria saber o porquê." / "Sou
somente um sacristão." / "Mas por que as mulheres são mais devotas que os
homens?" / "Você deveria saber mais do que eu."/ "Porque sou mulher?
Mas isto eu nunca entendi."/ "Sou um homem simples, mas penso que a
mulher serve para ter filhos, criá-los com paciência e sacrifício."/ "E não
serve mais para nada?"/ "Eu não sei."/ Entendi, obrigada. Foi de grande
ajuda." / "Perguntou-me o que penso. Você quer ser feliz, mas existem
coisas mais importantes. Espere!"
O foco da câmera muda em direção às mulheres que estão rezando
diante da Madonna, à fantasia sobre o andor e ao afresco de Piero Della
Francesca. Finda a reza, a mulher de fé, que deseja um filho, abre o manto e,
nesse momento, saem de dentro da santa vários pássaros. O ambiente é
iluminado por uma claraboia e por velas.
Assim, a proposta visa a trazer alguns elementos do trecho do filme
para a sala de aula, ou seja, para a realidade onde a conversa sobre
fenomenologia acontecerá de um modo oblíquo. Amém.
Palavras-chave: Nostalgia. Fenomenologia.

* * *

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Exercitium, experimentação, performance.
A transformação fenomenológica do pensamento em Heidegger

Giovanni Jan Giubilato

A intenção das minhas reflexões é a de apresentar as grandes linhas temáticas


e as chaves interpretativas fundamentais de uma aproximação da filosofia de
Martin Heidegger que, a partir de uma elucidação da sua peculiar
reinterpretação e reapropriação de alguns conceitos (ou ferramentas teóricas)
próprios da fenomenologia de Husserl, pretende destacar a importância da
dimensão performativa, prática e experimental. Em geral, elas se inscrevem
no contexto mais amplo de uma confrontação com determinada crítica a
Heidegger – formulada paradigmaticamente por Habermas – que o considera
como o ponto mais extremo daquela linha de pensamento que assume um
ideal antidiscursivo, contrário à argumentação racional e à sua determinação
ética, e que, em última instância, revelar-se-ia como um intuicionismo
esotérico e extralinguístico. Contudo, apesar do incontestável carácter
anticonceitual, antiteoreticista, monológico, exclusivo e até autoritário do seu
filosofar, a inclusão inapelável de Heidegger no processo contemporâneo da
“estetização da teoria” peca por não deixar nenhum espaço a uma reflexão
positiva sobre esta novidade “estética” e sobre esta tão incômoda mudança de
perspectiva.
O propósito, portanto, consiste em ao menos indicar a direção e
sugerir uma possibilidade interpretativa da obra de Heidegger que considere,
séria e filosoficamente, a sua praxis filosófica experimental, constantemente
dirigida à renovação e à transformação das formas do discurso filosófico,
incluindo todos aqueles âmbitos extrafilosóficos, anticlássicos e ultratextuais
que se confrontam com as práticas artísticas, como por exemplo a
performance e a instalação. Levando em consideração os numerosos
elementos do corpus heideggeriano que demostram uma atenção muito
particular e seguramente consciente para a dimensão performativa do

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discurso filosófico, além da vontade de renová-lo e repensá-lo na época da
dominação planetária da técnica através de uma autêntica experimentação
com as formas e com o medium do dizer filosófico, a pesquisa sobre esta
mudança de registro expressivo e conceitual aborda 1. as origens
fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia tradicional e a sua
concepção enquanto θεωρία; 2. o conceito de Vollzugssinn, ou sentido da
execução; 3. o esquecimento da questão acerca do “como” da filosofia; 4. a
preparação de um “outro pensar” que não seja mais filosofia e que seja,
“muito mais simples que ela na sua própria coisa, mas muito mais difícil na
execução”; 5. os vários elementos constitutivos deste pensar que chegam a
coincidir com o seu exercício, com a sua prática e a sua encenação
performativa.
Palavras-chave: Estetização da teoria. Performance. Execução. Discurso
filosófico.

* * *

20
18.05.2018

A questão do conhecimento científico em Husserl e Foucault

Marcos Nalli

É fato notório que tanto Husserl quanto Foucault jamais se pretenderam


epistemólogos. Jamais a ciência foi seu objeto privilegiado de investigação.
Entretanto, também é fato publicamente reconhecido que tanto um quanto o
outro sempre tematizaram a questão da ciência de uma forma metódica e
constante, ainda que por motivos circunstanciais. É o que o próprio Foucault
atesta, por exemplo, ao justificar a preponderância temática da ciência, a
despeito de outros possíveis objetos da investigação arqueológica
(FOUCAULT, L’Archéologie du Savoir, p. 252). E parece-me que em
Husserl se dá algo similar, na medida em que sua leitura da ciência tem papel
capital para, dentre outras possibilidades, conferir à Filosofia um estatuto
científico – o que se pode conferir sem maiores problemas em sua A Ideia da
Fenomenologia (1907). Em suma: ainda que nem Husserl e nem Foucault
fossem epistemólogos ou filósofos da ciência – conceitos entre os quais não
fazemos aqui nenhuma distinção cabal –, ambos sempre se voltaram
tematicamente sobre a ciência.
O objetivo geral dessa comunicação é apresentar de que modo
Foucault – notadamente em Histoire de la Folie (1961/1972) – se vale da
filosofia de Husserl para produzir seu modo próprio de pensar a questão do
conhecimento científico, principalmente a partir da constituição da loucura
como objeto da psiquiatria, isto é, como doença mental.
Foucault nos mostra que a objetivação, a constituição de um objeto
epistemológico se dá de uma forma não-científica, isto é, por “atos
objetivantes” não-cognitivos, como no caso da loucura, de natureza ética. Ou,
dito de uma forma, que pode ser compartilhada terminologicamente tanto por
Foucault quanto por Husserl (embora talvez não o possa em termos

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conceituais), a objetivação da loucura é possível graças a uma percepção e
uma modalidade de consciência que, embora objetivantes, não são cognitivas,
mas sim éticas. E, como falamos antes, dado que o conhecimento vem por
assim dizer a posteriori, ele só pode ser interpretado como ato judicativo, mas
não como objetivante. Também se deve notar que, diferentemente da
dinâmica cognitiva que Husserl estabelece com sua teoria do preenchimento,
Foucault evita a crença numa continuidade de complemento e ampliação
gradativa do conhecimento acerca de um objeto dado. Pelo contrário, sua
teoria da objetivação da loucura, ou sua história do referente, se processa
como um mecanismo constante – mas descontínuo, porquanto imprevisível
em seus resultados e consequências – de dissolução e reorganização
semântica.
Palavras-chave: Ciência. Objeto epistemológico. Loucura. Foucault.
Husserl.

* * *

22
Husserl/Deleuze: distinções na imagem de pensamento

Américo Grisotto

A filosofia pode ser definida como a teoria das multiplicidades. E Deleuze,


em O Atual e o Virtual, esclarece esta abordagem dizendo que toda
multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. Tal enfoque
coloca em relevo tanto a inexistência de objetos puramente atuais, quanto a
noção de que todo atual se envolve de uma névoa de imagens virtuais. Com
efeito, para a filosofia deleuzeana, as fenomenologias, bem como todas as
filosofias, embora tenham se atualizado num dado momento do pensamento
filosófico, guardam virtualidades. Estas imagens virtuais armazenadas trazem
a potência de uma oposição, de uma resistência e enfretamento face ao objeto
atual do que significa pensar. Através das camadas virtuais podemos dizer,
no caso particular desta comunicação, que o atual fenomenológico tende a
tornar-se, por sua vez, virtual. Neste aspecto ainda, podemos afirmar que a
fenomenologia guarda dentro de si um segundo, um terceiro, um quarto,
múltiplos nascimentos, o que significa dizer que possibilidades outras da
filosofia podem nascer desta filosofia. De outro modo, todas as filosofias
guardam as potências de suas virtualidades e não poderiam, em hipótese
alguma, serem vitimadas pelos incitamentos degenerativos do pensamento.
No caso particular da filosofia deleuzeana, as virtualidades do enfoque
fenomenológico permitiram ao filósofo francês atualizações. E isto não
significa que este pensamento não fez senão contemporizar esta perspectiva.
Pelo contrário, há conceitos, situações/problema desenvolvidas por Deleuze,
a partir de Husserl, que não são trabalhadas como tais por este pensador. Ou
seja, não se trata de justificar a importância ou o papel de um conceito, ou
situação/problema em uma obra, mas em mostrar a sua pertinência
elaborando-os por eles mesmos graças a uma obra. E isto porque Deleuze,
por um lado, sempre rejeitou qualquer tipo de justificação dos problemas e
dos conceitos em uma obra. Para ele este tipo de ação inibe a força desta obra

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e, por outro, este filósofo francês não se confessa um adepto da totalização,
uma vez que esta tende a fechar o passado decretando a morte do novo no
pensamento. Em se tratando das considerações e utilizações deleuzeanas
quanto à fenomenologia e precisamente em relação a um de seus
representantes, Edmund Husserl, um dos conceitos de que o pensador francês
se utiliza, no tópico Da proposição, na obra Lógica do Sentido, é o de noema.
E no momento oportuno de desenvolvimento deste trabalho, trataremos de
desenvolver as necessárias deferências. Por outro lado, como já
mencionamos, embora haja este mostrar da pertinência de um conceito
elaborado por ele mesmo graças a uma obra e não simplesmente justificando
sua importância ou o papel em uma obra já posta, há elementos de rivalidade
entre a fenomenologia e o pensamento deleuzeano. Conquanto Deleuze
rebatize conceitos e problemas da fenomenologia, o que ele busca são,
propositalmente, desvios: aqueles diametralmente opostos àquilo que
rebatizou. Digamos que almeja se distanciar da hermenêutica em prol da
experimentação. Na sua visão, a fenomenologia tem certa dificuldade de
romper com as formas do senso comum. A propósito, o novo em filosofia é
sempre distinto para Deleuze. Sua filosofia, mesmo se apropriando do
pensamento fenomenológico, o faz obliquamente: retirando-lhe os
fundamentos. São imagens distintas do que significa pensar. Daí os elementos
a serem desenvolvidos aqui e que passam, como pano de fundo, por uma
problemática envolvendo tanto a constituição do sujeito transcendental
quanto a sua desconstrução, isto é, o sujeito e a consciência sendo gerados na
dimensão intrínseca de um plano de imanência e não mais segundo a categoria
dos universais, da essência, do fundamento, do eu unificado. As obras que
serão passadas em revista transitam, do lado husserliano, pelas Meditações
Cartesianas, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica; do lado deleuzeano, pelas proposições da obra Lógica do
Sentido, contando, em ambos os casos, com os comentários da tese de
doutorado Como sair da ilha da minha consciência: Gilles Deleuze e uma

24
crítica à subjetividade transcendental em Edmund Husserl, de Alex Fabiano
Correia Jardim.
Palavras-chave: Deleuze. Husserl. Virtualidade, Imagens de pensamento.

* * *

25
Transicionalidade e jogo (brincar) fenomenológico

Eder Soares Santos

A fase da transicionalidade está caracterizada, para Winnicott, pela presença


de objetos e fenômenos transicionais. Isto quer dizer que o objeto, percebido
objetivamente por nós, será subjetivo para o bebê, pois é criado por ele como
se fosse uma espécie de alucinação. Sendo assim, a mãe deve apresentar os
objetos ao bebê no momento adequado, a fim de que ele, em alucinando um
objeto (punho, dedos, pulso etc), crie a ilusão de que este pôde ser criado e
de que o que é criado é o mundo. O que se percebe aqui é que os objetos
estão lá na natureza porque eles foram criados por mim e por qualquer outro
dentro de um mundo subjetivo igualmente criado. Há uma espécie de jogo,
de brincadeira com os fenômenos que se realiza a partir da relação dual e
inicial mãe-bebê. Num primeiro momento, é possível se pensar que a
passagem do mundo dos objetos subjetivos para o mundo dos objetos
objetivos seja impossível, já que cada um se sustenta em "realidades"
diferentes. Tal impossibilidade é, realmente, apenas aparente. Essa
passagem, na verdade uma transição, é feita através de um espaço
intermediário, uma "ponte", um espaço potencial ou de uma terceira área do
que existe (third area of exisiting), pois “o bebê ainda não tem o sentido do
que é externo ou do que é interno, o lugar da relação é um ‘entre’”, em que
se pode jogar/brincar com os fenômenos se ser necessário requisitar sua
realidade ou validade.
A transicionalidade nos indica outro fenômeno que nos remete ao
essencial sentido de ser enquanto um poder-ser um si-mesmo (self), isto é,
remete à possibilidade de se ser um eu (me) integrado e unitário. Trata-se de
se poder dizer: “eu sou”.
Palavras-chaves: Winnicott, transicionalidade, fenomenalidade, jogo,
brincar.

26
A fenomenologia existencial de Martin Heidegger

Douglas Giovani Ezequiel

Em 1927, Martin Heidegger publicou Ser e Tempo, sua mais influente e mais
polêmica obra. Nela o filósofo traz à tona conceitos que até então não haviam
sido tratados pela Fenomenologia. Depois de as discussões metafísicas terem
perdido forças no século XX, Heidegger paradoxalmente coloca-se a tarefa
de “destruição da metafísica”, ao mesmo tempo em que se empenha em
recolocar a questão essencial à Filosofia desde os seus primórdios, que
segundo ele, a tradição filosófica não esteve em condições de colocá-la de
modo adequado: a pergunta pelo Ser. Para Heidegger, o grande erro da
tradição filosófica foi ter tentado determinar o que significa “Ser”, em sua
multiplicidade de aparições ao pensamento, sem definir antes a essência deste
ente que é capaz de colocar tal questão. O seu projeto fenomenológico
privilegiou o “Dasein”, um conceito criado a fim de distinguir o simples ente
humano, visto pela tradição como uma dualidade de corpo e alma, e o ente
apto a compreender seu próprio ser, caracterizando-se como uma
antropologia existencial. Com esta distinção, o filósofo se desvia dos
equívocos aos quais uma interpretação do Ser metafísica poderia conduzir. A
condição prévia para se elaborar satisfatoriamente a questão do ser é a análise
dos modos como este ente, o Dasein, “é” no mundo, ou seja, como ele existe
no cotidiano. No projeto heideggeriano, este método fenomenológico foi
chamado de “analítica existencial”, um dos pontos centrais de Ser e Tempo e,
portanto, indispensáveis para a sua compreensão. O objetivo da apresentação
consiste em apresentar as características da “analítica existencial” de Ser e
Tempo, a sua importância na investigação pelo sentido do Ser, bem como os
principais conceitos usados por Heidegger, como Dasein, hermenêutica,
existência, modos de ser, mundo, fenômeno. Complementarmente, buscar-se-
á explorar a concepção de fenomenologia implícita na obra, com a intenção

27
de avaliar a importância do pensamento de Heidegger na Filosofia do século
XX.
Palavras-Chave: Heidegger. Dasein. Analítica Existencial. Fenômeno.
Fenomenologia.

* * *

28
Notas sobre uma fenomenologia da Universidade

Prof. Dr. Roberto Wu


(UFSC)

O objetivo da palestra é apresentar as bases de uma estruturação


fenomenológica para discutir a universidade. Em primeiro lugar, serão
examinados: a) os traços principais do assim chamado modelo Humboldtiano
de universidade, b) a concepção proposta por Karl Jaspers sobre a ideia da
universidade, e c) as contribuições de Jürgen Habermas sobre o assunto.
Disso resulta uma discussão sobre o sentido de idealidade que subjazerá aos
argumentos subsequentes e uma comparação entre as concepções normativas
e fenomenológicas de universidade. Em segundo lugar, a comunicação
propõe uma concepção de visibilidade como uma chave interpretativa para
discutir a universidade. Esta visibilidade consiste no resultado do modo como
coordenadas de interpretação articulam sentido em diversos níveis de estratos
fenomenológicos. Em terceiro lugar, explora-se os diferentes modos em que
assuntos ganham visibilidade na universidade, tomando como exemplo a
análise de temas como a extensão universitária e as ocupações das
universidades públicas em 2016 no Brasil. Por fim, a comunicação conclui
relacionando o conceito de visibilidade com uma concepção fenomenológica
de autocompreensão.
Palavras-chave: visibilidade, ocupação, idealismo.

29
CONFERÊNCIAS

Organizadas por ordem de apresentação

30
FILOSOFIA, EXISTÊNCIA E FINITUDE: EUGEN FINK PARA
ALÉM DO TRANSCENDENTAL E DO FACTUAL

José Fernandes Weber

Cada nova teoria filosófica expressa implicitamente, num nível mais


fundamental aos problemas que pretende resolver por meio da elaboração
conceitual, uma nova definição do que é filosofia. Dito de outro modo: cada
teoria filosófica, mesmo quando a isso não se propõe, apresenta, a seu modo,
uma definição particular, dada em nome próprio, do que é filosofia, mas, ao
mesmo tempo, também fornece indicações sobre o que é requerido, sobre o
que deve ser evitado, para a instauração de um autêntico ato de filosofar. Dito
em linguagem fenomenológica: a atitude requerida ao filosofar. Daí ser
possível afirmar que para a fenomenologia, filosofia é uma questão de atitude!
Em A ideia da fenomenologia, à “atitude intelectual/espiritual
natural”, Husserl contrapõe a fenomenologia, assim definida: “[...] uma
ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e
acima de tudo, ‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual;
a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente
filosófico” (HUSSERL, 1990, p. 46). A mútua implicação e dependência entre
método e atitude fenomenológicos constitui um ethos próprio do
fenomenólogo enquanto pesquisador, um modo de ser no qual vige a recusa,
tanto da atitude intelectual/espiritual natural, o psicologismo da orientação
natural, mas também do cientificismo. É na noção de Epoché, vertida para o
vernáculo como redução, que se expressa a conexão entre método e atitude.
No § 32 de Ideias I, Husserl caracteriza a Epoché como uma operação
radical de restrição, uma “exclusão fenomenológica” (HUSSERL, 2006, p.
84), que consiste em interditar a aceitação das evidências contidas nas teses
da orientação natural, mas também nas proposições das ciências: “Não me
aproprio de uma única proposição sequer delas” (Idem, p. 81), diz ele.
Assim, a redução expressa uma dupla recusa: “Colocamos fora de ação a tese

31
geral inerente à essência da orientação natural” (Idem, ibidem); e “Tiro,
pois, de circuito todas as ciências que se referem a esse mundo natural”
(Idem, Ibidem)1. Disso surge uma inevitável questão, que o próprio Husserl
(Idem, p. 86) se põe: “O que pode, pois, restar, se o mundo inteiro é posto
fora de circuito, incluindo nós mesmos com todo nosso cogitare?”. Resta a
“[...] evidência de que a consciência tem em si mesma um ser próprio, o qual
não é atingido em sua essência própria absoluta pela exclusão
fenomenológica” (Idem, p. 84). Portanto, a Epoché cria as condições para a
aparição da evidência do modo imanente de ser da consciência.
A radicalização destas teses é formulada de modo emblemático no §
49 de Ideias I, por meio da formulação da “hipótese da aniquilação do mundo
[Weltvernichtung]”.

[...] o ser da consciência, todo fluxo de vivido em


geral, seria necessariamente modificado por uma
aniquilação do mundo de coisas, mas permaneceria
intocado em sua própria existência. […] nenhum ser
real, nenhum ser que se exiba e ateste por aparições à
consciência, é necessário para o ser da própria
consciência (no sentido mais amplo do fluxo do
vivido). […] Um verdadeiro abismo de sentido se
abre entre consciência e realidade. Aqui, um ser que
se perfila, que não se dá de modo absoluto, mas
meramente contingente e relativo; lá, um ser
necessário e absoluto, que não pode por princípio ser
dado mediante perfil e aparição. […] está claro,
portanto, que a consciência, considerada em sua
‘pureza’, tem de valer como uma conexão de ser
fechada por si, como uma conexão do ser absoluto, no
qual nada pode penetrar e do qual nada pode
escapulir; que não tem nenhum lado de fora espaço-
temporal e não pode estar em nenhum nexo espaço-
temporal, que não pode sofrer causalidade de coisa
nenhuma, nem exercer causalidade sobre coisa
nenhuma (HUSSERL, 2006, p. 115-116).

1 A este respeito, conferir o esclarecedor §15 da Meditações cartesianas, intitulado Reflexão


natural e transcendental (HUSSERL, 2010, pp. 81-84).

32
Importa perceber nesta passagem, que a hipótese da aniquilação do mundo
não é um passatempo de um cético, levado a cabo por uma lógica imaginativa,
nos moldes da primeira das Meditações de Descartes. Diz Husserl (Idem, p.
81), “[...] não nego este ‘mundo’, como se eu fosse um sofista, não duvido de
sua existência, como se fosse cético, mas efetuo a Epoché ‘fenomenológica’,
que me impede totalmente de fazer qualquer juízo sobre existência espaço-
temporal”. Trata-se, portanto, de reter “[...] somente o fenômeno de ‘por entre
parênteses’ ou ‘tirar de circuito’” (Idem, p. 80). Portanto, pôr fora de ação,
tanto os juízos quanto o assentimento aos juízos. Numa conferência nos
famosos Colóquios de Royaumont, em abril de 1957, intitulada Os conceitos
operatórios na fenomenologia de Husserl, Eugen Fink (1994, p. 63) assinala
que “Pelo método da ‘redução’, Husserl abre o campo da subjetividade
absoluta que, nos seus processos vitais de natureza intencional, ‘edifica’ toda
objetividade mundana”.
Portanto, a denominação, feita por Husserl (2010, p. 15) no parágrafo
de abertura das Conferências de Paris, segundo a qual a fenomenologia seria
“[...] um novo Cartesianismo, um Cartesianismo do século XX”, não é mera
frase de efeito para agradar a plateia parisiense. Será, ao juízo de Husserl, um
cartesianismo consequente com a enorme intuição de Descartes, agora,
porém, livre da pressuposição do ideal de ciência que acabou se esgueirando
pela porta dos fundos, operando como estrutura oculta para a edificação do
edifício cartesiano do saber. A questão: se à Husserl também não preside um
ideal de ciência e de conhecimento, não será aqui abordada.
Jan Patocka (1999, p. 398), num breve, mas esclarecedor texto sobre
Heidegger, sustenta que “Husserl busca, com a ajuda da redução
fenomenológica, mostrar que, num verdadeiro sentido filosófico, os
fenômenos são relativos à subjetividade transcendental, por meio da qual se
alcança a suspensão da crença no mundo, a suspensão da ‘tese geral da
orientação natural’. O ponto de vista de Heidegger me parece ser a única
resposta radical ao pensamento altamente especulativo da redução”. Por essa
razão, segundo Patocka, o sentido da ontologia fundamental de Heidegger

33
consiste em mostrar fenomenologicamente que “[...] a fenomenologia
transcendental, do modo como Husserl a compreendeu, é impossível” (idem,
Ibidem). E isso pelo simples fato de que “A ‘crença no mundo’ não é uma
crença; a tese geral, nenhuma tese geral que pudessem ser suspendidas
intelectualmente” (Idem, Ibidem), pois, tanto a crença quanto a orientação
natural se dão a partir do fenômeno da facticidade do Dasein, e não, como
queria Husserl, da estrutura intencional da consciência. Vê-se, portanto, que
a crítica de Heidegger à Husserl mostra-se como uma recusa da noção
husserliana de Epoché. Se a atitude fenomenológica requerida por Husserl,
instituía-se em consonância com a Epoché, a crítica heideggeriana da noção
de redução terá efeitos significativos sobre a compreensão do que seja a
atitude própria ao filosofar, donde surge uma nova compreensão de atitude e
da própria filosofia: apreender o sentido de ser do Dasein como ser-no-
mundo. Sem isso, diz Patcoka (1999, p. 399), “[...] nada somos, não
existimos”. Dar abertura à facticidade em que é manifesta a finitude como
modo de ser do Dasein, eis a nova atitude. Nos últimos anos, Heidegger
concebe tal atitude como coincidente com um pensar meditativo, um abrir-se
à aparição do mundo, um modo de estar à espreita, à espera. Pensar
meditativo, pensamento poético, intimidade, proximidade, simplicidade,
abertura-clareira-iluminação, silêncio, quadratura (céu, terra, mortais,
imortais) todas elas noções do “último Heidegger”, antes de serem imagens,
noções, metáforas, figuras conceituais ou noções de pensamento, são
disposições, “tonalidades afetivas fundamentais” (Stimmungen), atitudes, de
quem pensa originariamente, nas quais já não opera a distinção formal entre
o teórico e o prático, às quais também são impostas restrições, interdições,
que também exigem preparação, enfim, exercício, as únicas que
possibilitariam acesso a um pensar que não seria mais representacional.
Portanto, nestas distintas compreensões de atitude aparecem duas
compreensões distintas de fenomenologia e de filosofia. Ambas posições
expressam a compreensão da filosofia como uma atitude que exige zelo e
constância, expressa como exercício, sempre novamente reposto, iniciado a

34
cada momento, e que cria um modo de vida, o que autorizaria a concluir que
a fenomenologia retoma ao seu modo o antiquíssimo problema da filosofia
como exercício e cuidado de si, embora em outra chave interpretativa.

*********

Eugen Fink, autor referido no título, no semestre de verão de 1955, ministrou


um curso, apenas publicado postumamente em 1979, sobre Os Fenômenos
fundamentais da existência humana2. Nele, Fink – que foi assessor de Husserl
na década de 30, mas também manteve uma proximidade com Heidegger
bastante marcante para seu pensamento, e que teve os dois como avaliadores
da sua tese de doutorado, Presentificação e imagem – mostra-se um
fenomenólogo sui generis: nem mais husserliano, tampouco heideggeriano.
A própria concepção de uma antropologia filosófica, no molde proposto por
Fink, é incompatível, tanto com Husserl quanto com Heidegger.
Embora, num plano mais restrito, particularmente nos parágrafos 5 e
6 dos Fenômenos fundamentais, Fink estabeleça um diálogo apropriativo das
noções heideggerianas do “ser do ente ‘em cada caso meu’” (ST §9) e do
fenômeno da autenticidade/inautenticidade, ainda assim, é possível afirmar
que a própria proposição de uma antropologia filosófica por parte de Fink é
incompatível com o pensamento heideggeriano, pois, de acordo com San
Martín (2006, p. 117): “[...] o que Heidegger acentua com clareza é a
impossibilidade de uma antropologia filosófica enquanto ontologia regional,
porque o homem não é um ente como os outros entes, pois nele se dá a
compreensão do ser”.
Bem conhecidas são as críticas de Heidegger à tentativa de
compatibilização entre filosofia e antropologia. A antropologia, na medida
em que opera no plano mais baixo de uma compreensão metafísica de mundo,
esqueceria que a tarefa de pensar a essência do homem não repousa no homem

2 Doravante, Fenômenos fundamentais.

35
ele próprio, e sim, surge no reconhecimento da dependência do homem para
com a essência do ser3, como é possível ler na Carta sobre o humanismo.
Portanto, a verdade do homem deve ser “[...] pensada a partir da questão da
verdade do ser” (HEIDEGGER, 1973, p. 349). Aí também é possível ler:

[...] resta, enfim, perguntar se a essência do homem


como tal, originalmente [...] realmente se funda na
dimensão de sua animalitas. Estamos nós no caminho
certo para a essência do homem, quando distinguimos
o homem e enquanto o distinguimos, como ser vivo
entre outros, da planta, do animal e de Deus? Pode-se
proceder assim, pode-se situar, desta maneira, o
homem, em meio ao ente, como um ente entre outros.
Com isso se poderá afirmar, constantemente, coisas
acertadas sobre o homem. [...] Mas com isso a
essência do homem é minimizada e não é pensada em
sua origem. [...] A Metafísica pensa o homem a partir
da animalitas; ela não pensa em direção de sua
humanitas. (HEIDEGGER, 1973, p. 352).

Assim, a antropologia, no seu sentido convencional, mas também a


antropologia filosófica – essa tentativa tipicamente alemã do inicio do século
XX, que busca desesperadamente compor o conhecimento sobre o homem a
partir de um misto composto por filosofia e ciências particulares (na
linguagem da fenomenologia: ciências fácticas, ontologias regionais) –
padecem de um equívoco característico do pensamento ocidental: por operar
no âmbito de um suposto saber prévio sobre o que seja o homem, não
reconhecem o vínculo inevitável, para a apreensão do sentido do homem,
entre a essência do homem e a verdade do ser. Isso faz Heidegger (Idem, p.
353) arrematar:

Causa-nos a máxima dificuldade [...] pensar o ser


vivo, porque, por um lado, de certo modo, possui
conosco o parentesco mais próximo, estando,
contudo, por outro lado, ao mesmo tempo, separado
por um abismo da nossa essência ec-sistente. [...] em

3 A este respeito, conferir: SAN MARTIN, 2006, p. 117; RUGGENINI, 2006, p. 143-144.

36
comparação pode até parecer-nos que a essência do
divino nos é mais próxima, [...] próxima, quero dizer,
numa distância essencial, que, enquanto distância,
contudo, é mais familiar para nossa essência ec-
sistente que o abissal parentesco corporal com o
animal, quase inesgotável para o nosso pensamento.

Por sua vez, o sentido mais elementar da incompatibilidade da antropologia


filosófica de Fink com os ensinamentos de Husserl pode ser vista por aquilo
que o próprio Husserl declarava sobre a antropologia. Num cartão postal de
22 de fevereiro de 1937 destinado a Karl Löwith, Husserl exorta:

Oxalá o senhor não faça parte dos “precocemente


consumados”, chegados a uma posição pronta, de
modo que o senhor ainda tenha a liberdade interior
para “por entre parênteses” a sua antropologia e
compreender com base em minha nova exposição,
mais amadurecida, por que eu considero toda
antropologia como uma posição ingênua, em termos
filosóficos, e por que eu reconheço o método da
redução fenomenológica como o único filosófico,
como o único que alcança um conhecimento do Ser
ou uma auto-reflexão universal em real concreção.
Talvez o senhor entenda então que Scheler,
Heidegger – e todos os ex “discípulos” – não
entenderam o verdadeiro e profundo sentido da
fenomenologia – da transcendental como a única
possível – e quanta coisa depende disso (HUSSERL,
Apud LÖWITH, 1984, pp. 236-237).

Husserl, num tom paternal, aconselha a Löwith: opere a Epoché! Sem ela, não
há fenomenologia. Percebendo a heresia, em que os mais brilhantes discípulos
tornam-se “ex discípulos” (Scheler e Heidegger), no conselho de Husserl soa
um clamor: não permita que a fenomenologia, que é a filosofia em sentido
estrito, recaia numa posição ingênua, ou seja, torne-se antropologia. A
fenomenologia ou é transcendental ou nada, antropologia, o que,
filosoficamente considerado, dá na mesma. Segundo San Martín (2006, p.
117),

37
Para Husserl a antropologia ou é uma ontologia
regional ou uma ciência factual de um ente mundano.
Por essa razão, o saber da subjetividade
transcendental, que, enquanto transcendental não está
mais no mundo, não pode mais ser apresentada em
uma antropologia.

Nessa mesma direção, à margem de Ser e Tempo, Husserl escreveu:

Heidegger transpõe ou transverte para o


antropológico a clarificação constitutivo-
fenomenológica de todas as regiões do ente e do
universal, da região total do mundo; toda a
problemática é transferência, ao ego corresponde a
existência etc. Aqui tudo se torna profundamente
obscuro e, em termos filosóficos, perde seu valor
(HUSSERL, Apud ARLT, 2008, p. 58).

Da parte de Fink, tal incompatibilidade se expressa, na sua recusa em


renunciar à realidade da nossa existência para explicá-la. No primeiro
parágrafo de Fenômenos fundamentais, Fink afirma:

A essência da existência humana jamais é apreensível


caso se queira abstrair da realidade. A realidade da
nossa existência é o pressuposto de todas as nossas
distinções entre essência e factum. Não podemos
especular sobre nós mesmos suspensos no espaço
vazio; temos de ser nós mesmos enquanto
especuladores, e esse pressuposto é irrevogável. [...]
Se perguntamos, então, pelas estruturas essenciais do
homem, não nos guia, nem o olhar a uma ipseidade
que se sustenta em toda a mudança histórica,
tampouco a ‘intuição da essência’ que prescinde do
fáctico. Pelo contrário, devemos tentar conservar
todos os enunciados sobre os ‘fenômenos
fundamentais’ de nossa existência [Existenz] numa
interpretação da nossa existência atual (FINK, 1979,
p. 16).

Embora por razões distintas que aquelas que presidem a recusa, por parte de
Heidegger, de uma antropologia filosófica, é possível afirmar que também à

38
Husserl a formulação de uma antropologia filosófica parece uma tarefa
contraditória, pelo simples fato de que na sua elaboração, os vividos a serem
considerados não são os vividos intencionais da consciência, do eu puro,
transcendentalmente considerados. Isso que Fink chama de “estruturas
essenciais do homem” ocupam uma posição intermediária entre o domínio da
imaterialidade, seja o eu puro (Husserl) ou o ser (Heidegger), e a mera coisa,
recusando, tanto a hipóstase dos supostos atributos na esfera transcendental
do eu puro (Husserl), quanto a dependência ao ser como destinação e envio
do sentido, ao qual o humano deveria estar atento pelo pensamento meditativo
(Heidegger), mas também, recusando a férrea fixação às supostas
características das meras coisas, vigente na “atitude natural”.
Nos Fenômenos fundamentais opera, portanto, uma grande recusa:
recusa da posição husserliana que pensa o elemento diferencial do humano a
partir dos vividos intencionais da consciência; recusa da posição
heideggeriana caracterizada por pensar o sentido de ser do ente que nós somos
a partir do envio-destinação dos “clamores do ser”; recusa, também, de uma
típica atitude, para retomar o ponto de partida deste texto, ligada, tanto ao que
Husserl chamava de “orientação natural”, quanto ao conhecimento manifesto
nas ciências particulares. Em ambos os casos, apesar das diferenças
explícitas, é comum a atitude presunçosa de já saber objetivamente aquilo
sobre o que tratará a investigação, a busca, a lição. No caso particular das
ciências, elas creem que estão “[...] a caminho de entender o plano total das
suas conexões internas” (Idem, p. 08), a partir do que elas dariam, então, uma
resposta objetiva às perguntas. As ciências, tanto quanto a orientação natural,
operam com noções prévias inquestionadas. Elas, tanto quanto as instituições,
para funcionar, e Thomas Kuhn o mostrou magistralmente, promovem, nas
palavras de Fink, “[...] a redenção do suplício das perguntas” (Idem, p. 18).
Ou, em outra passagem: “Todas as instituições já sabem demasiado sobre o
homem – não há para elas mais nenhum enigma, nenhum labirinto no qual
poderiam extraviar-se irremediavelmente” (Idem, Ibidem).

39
Por fim, também opera em Fink, a recusa de uma antiquíssima e poderosa
tradição, que se confunde com o próprio Ocidente, uma herança antiga e
cristã, que consiste em

[...] determinar o “lugar do homem”, por um lado, em


ficar abaixo de Deus, e, por outro, em superar o
animal, concebê-lo como um ser intermediário no
qual se reúnem tensionalmente animalidade e
divindade, a surda vitalidade animal e a chispa
espiritual divina. (FINK, 1979, 266).

Por essa razão, o autor manifesta que sua proposta de antropologia filosófica
não se utiliza, nem de “[...] categorias zoológias, nem teológicas na
autocompreensão da existência humana”. (Idem, Ibidem). Pode-se, portanto
chamá-la, como ele próprio o faz, de uma “[...] uma radical antropologia
terrena” (idem, p. 19).
Ao pensar a existência a partir da noção de fenômeno – posição
expressa no título do seu curso: Fenômenos fundamentais da existência
humana –, Fink põe fora de circulação a tradicional opção interpretativa que
consiste em pensar a essência humana, mas também, a atividade filosófica a
partir da disjuntiva: ou transcendental, ou factual. Portanto, nem animal,
tampouco divino; nem vida pura da consciência também não auscultação do
ser no silêncio meditativo.
Como filosofia e existência se ligam neste pensamento? Diz-nos ele:
“Filosofia é menos um saber douto que um modo de existir. [...] Ela nada mais
é que a relação mais tensa da existência consigo mesma, e nisso consiste a
fonte do seu compreender e do seu interpretar” (Idem, p. 35). Se existência é
a abertura compreensiva, um estar aberto, “[...] ela vive no compreender”
(Idem, p. 23), esta abertura se dá intensivamente enquanto relação diferencial,
não apenas com o “[...] campo circundante” (Idem, p. 22) dos objetos e dos
outros humanos, mas também, e principalmente, com a assunção do evento
fundamental do pasmo constitutivo da própria atividade compreensiva: a
existência aparece como um problema. No âmbito do mais conhecido emerge

40
o estranhamento, por meio da compreensão de uma “[...] intimidade
originária” (Idem, p. 24), constitutiva da existência. Neste âmbito de simbiose
entre existência e filosofia, “[...] o mais importante é a comoção que nos
acontece como destino – a comoção por um assombro abissal. Este assombro
é a melhor parte do homem” (Idem, p10).
Com isso vemos, como dito no início, que “cada teoria filosófica,
mesmo quando a isso não se propõe, apresenta, a seu modo, uma definição
particular, dada em nome próprio, do que é filosofia”. A explicitação do
significado de existência, opera, ao mesmo tempo, uma explicitação
compreensiva do que é filosofia, a saber: “pensar finito, uma possibilidade
finita da existência finita” (Idem, p. ??). Portanto, compreensão da própria
finitude. Dessa maneira, em Fink, finitude é o ponto de amarração de filosofia
e existência. Um antropologia filosófica que pretenda compreender a
existência em seus fenômenos fundamentais deverá mostrar, acima de tudo,
boa consciência para com a finitude. Não a toa, um dos fenômenos
fundamentais da existência humana é a morte. Se é inevitável reconhecer que
“Nós que aqui estamos, vamos morrer!”, também constitui essencialmente
nossa existência a luta, o trabalho, o amor e o jogo. Como Drummond (pp.
35-38) dizia em seu poema Os últimos dias:

Que a terra há de comer. Mas não coma já. / Ainda se


mova / para o ofício e a posse. [...] E cada instante é
diferente, e cada / homem é diferente, e somos todos
iguais. / No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma
terra / o silêncio global, mas não seja logo. / [...] A
doença não me intimide, que ela não possa / chegar
até aquele ponto do homem onde tudo de explica. /
Uma parte de mim sofre, outra pede amor, / outra
viaja, outra discute, uma última trabalha, / sou todas
as comunicações, como posso ser triste?

41
Bibliografia
ARLT, Gerhard. Antropologia filosófica. Trad. Antonio Celiomar Pinto de
Lima. Petrópolis: RJ: Vozes, 2008.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia poética. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
FINK, Eugen. Grundphänomene des menschlichen Daseins. (Hrsg. Von Egon
Schütz und Franz-Anton Schwarz). Freiburg/München: Karl Alber Verlag,
1979.
____. Proximité et distance. Essays et conferences phénoménologicques.
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HEIDEGGER, Martin. “Sobre o humanismo. Carta a Jean Beaufret”. In:
Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. pp. 345-373.
HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Trad. Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 1990.
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Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: ideias e Letras, 2006.
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42
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43
AS OPERAÇÕES DE NOMINALIZAÇÃO E OBJETIFICAÇÃO
REPRESENTATIVA NA APREENSÃO DE OBJETOS
CATEGORIAIS EM HUSSERL: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS
E SEMÂNTICOS

Yuri José Victor Madalosso

Introdução
O objetivo desta comunicação é compreender as mútuas determinações entre
as modificações significativas e as intencionais na constituição de objetos
categoriais. Além disso, busca compreender os conceitos de “nominalização”
e “modificação significativa” esboçada na Quarta Investigação e
“objetificação representativa” expostos nos capítulos IV e VI da Quinta
Investigação, enquanto fundamentos teóricos para constituição de objetos
categoriais. Com efeito, irá também elucidar os problemas e implicações
destas modificações na dinâmica da apreensão de objetos categoriais, com
enfoque nas sínteses de identificação e na realização objetiva destes mesmos
objetos. Por fim, procura entender, em um nível mais profundo, porque tais
modificações se revelam determinantes na construção dos vários conceitos de
conteúdo presentes nas Investigações Lógicas.
Seguem-se, todavia, problemas importantes quando se tratam destes
tipos de modificações intencionais e semânticas. Husserl é consistente ao
correlacionar modificações semânticas puras com as modificações materiais
na teoria do juízo, em especial juízos categoriais? Neste contexto, como são
tratados os conceitos de “existência ideal” e “realização objetiva”? Em que
medida formas e sínteses categoriais são funcional e estruturalmente
dependentes, em especial, das relações de nominalização e objetificação
representativa? É possível verificar um papel determinante das modificações
semânticas nos critérios de unificabilidade e identificação para intuições
categoriais, em paralelo com as condições dadas pela matéria? Como hipótese
de interpretação destes problemas, defende-se que, para se justificar

44
epistemologicamente sínteses de identificações categoriais complexas, é
necessário reconsiderar a fundação dos preenchimentos categoriais partindo
da variabilidade das nominalizações e objetificações representativas.

1. Modificações na significação: ato expressivo, unidade ideal e


nominalização
No §11 da Quarta Investigação1, Husserl descreve como se operam
modificações nas expressões, sejam enquanto atos significativos, sejam como
unidades ideais de sentido. Todas estas modificações são reguladas por leis
ideais sobre as formas puras e unitárias de significação, sem levar em conta a
realização objetiva e possível adequação a uma intuição (HUSSERL, 2001b,
p. 49, Introdução à Quarta Investigação) Husserl constata que mudanças
sintáticas podem alterar a significação ideal e o ato em que esta é visada e
expressa. Um exemplo é como há uma mudança no que está sendo
intencionado e designado nestas frases: “Esta árvore é nodosa”; “A árvore
nodosa”; “’Esta árvore é nodosa’ é uma expressão precedida por um dêitico”,
entre outras.
Em especial, Husserl tem por tema principal as modificações
significativas referentes a significados de adjetivos, quando funcionam
predicativa e atributivamente. Além destas, a suppositio materialis - isto é,
quando uma expressão qualquer é usada e significada em formato nominal -,
é levada em conta como um exemplo de modificação tanto simbólica e
representacional quanto ideal/formal (cf. HUSSERL, 2001b, p. 65, §11).
Dois aspectos devem ser levados em conta nessas operações: em
primeiro lugar, caso se tratem de significados, estes não produzem
modificações relacionadas aos objetos visados nos atos expressivos ou que
realizam intuitivamente estas significações (cf. HUSSERL, 2001, p. 59-60,

1 Doravante, denominar-se-á cada Investigação Lógica com o seu cardinal em extenso e,


abreviadamente, Investigação.

45
§8); em segundo lugar, há a possibilidade infinita de modificações efetuadas
sobre modificações.
Sobre o primeiro ponto, é digno de menção o aspecto descritivo dos
atos significativos simples que não visam objetos simples como, por exemplo,
a expressão “homem” e atos complexos e fundados como, por exemplo, o ato
judicativo expressado por “Esta cadeira é marrom”, que visa um estado de
coisas muito mais simples que um todo como é o ser humano (cf. HUSSERL,
2001, idem, ibidem).
Ainda, sobre o segundo ponto, vemos que podemos modificar a
função nominal em vários níveis de predicação, mesmo se tratando de um
juízo, como neste caso: “André e Carlos são empresários do ramo
alimentício”; “’ André e Carlos são empresários do ramo alimentício’ é um
enunciado predicativo”; “’André e Carlos são empresários do ramo
alimentício’ é um enunciado predicativo’ designa uma suppositio materialis”;
e assim por diante.
Uma consideração importante a se fazer é se atentar a qual estrutura
enunciativa Husserl trabalha, a saber, baseada no paradigma de que
trabalhamos com nominação na base de nossa vida linguística,
desenvolvendo-se no formato clássico aristotélico de sujeito-cópula-
predicado (cf. BENOIST, 2001, p. 186 e COBB-STEVENS, 2003, p.159-
160), embora não seja limitada a esta, pois nas Investigações há a análise de
enunciados condicionais, conjuntivos, disjuntivos, entre outras expressões
categoriais. Nas expressões nominais, há casos, como os mostrados no §3 da
Quarta Investigação, em que intenções simples unirradiais podem vir a
fundamentar, sob a mesma unidade de visada nominal, uma complexidade
intencional multirradial, principalmente em predicações e atribuições.
Entretanto, vê-se que Husserl contextualiza a captação da referência
significativa simples que venha a ser acrescida de atribuições e predicados
que lhe convém (por exemplo, o nome próprio de um homem chamado
“José”, que sabe-se ser constituído de corpo, mente, certas características
peculiares etc.) em uma unidade de apreensão e expressividade complexa que

46
não se perfaz apenas em uma intenção unidirecional, mas supõe essa primeira
constituição unirradial de significado2(cf. HUSSERL, 2001b, p. 52-53, §3).
Há expressões que não são isoladamente significativas, mas partes que
dependem de um todo para obterem significado - são as expressões e
significações sincategoremáticas: a característica essencial deste grupo de
expressões é a não-independência fundacional – são momentos (noção
advinda da ontologia formal) constituintes de uma unidade (cf. HUSSERL,
2001b, p. 55, §5). Esta é uma diferença que reside na essência significativa,
no significado como tal, e não nos signos. Por isso, nem todo componente
expressivo é um sincategoremático: é o que diferencia, por exemplo, um
prefixo (“pós” em “pós-graduação”) ou radical (sincategoremático também
no nível “material”) de uma mera parte do símbolo que é perpassado pela
intenção de significação (“fo” em “força”), sem sentido.
Aqui está um primeiro problema: do mesmo modo que há representações
simples que fundam outras complexas, há significações que se estruturam do
mesmo modo. Isso não é tomado de modo a parecer uma mera transposição
da esfera fenomenológica3. O conceito de representação, enquanto
fundamento para qualquer relação cognitiva, é tematizado na Quinta
Investigação também sob a base destes resultados descritivos obtidos por
Husserl.
Estas operações não se relacionam com estados de coisas ou objetos
visados, mas com representações de significados, de variados níveis. Husserl
explicita, neste ponto, que a nominalização tanto é uma representação

2 Cobb-Stevens chama a atenção de que a forma sintática aristotélica também tem influência
na reconstrução da percepção em estruturas proposicionais, abstraindo-se seu caráter
comum (cf. COBB-STTEVENS, 2003, p. 159-160); a fenomenologia mais tardia de
Husserl (principalmente as lições sob o título Análises sobre a Síntese Passiva e Ativa (a
partir de 1921-23) Lógica Formal e Transcendental (1929) e Experiência e Juízo (1939)
irá trabalhar a gênese (enquanto constituição passiva de modos intencionais complexos)
destas formas nas unidades sintéticas passivas perceptivas cf. COBB-STEVENS, 2003,
p. 160). Todavia, na Sexta Investigação (como se verá na terceira e na quarta seção deste
comunicação), formas categoriais e conteúdos sensíveis mantém uma relação unilateral
de fundação que, em certos níveis (p. ex.: axiomas) e em intuições puramente universais,
prescindem de uma relação tão “transparente”, por assim dizer.
3 No sentido exclusivo da primeira edição (1900-1901), ou seja, psicologia descritiva (sobre
conteúdos reais (reale) de consciência).

47
psíquica de um significado (“Centauro’ é uma representação de um ser
mitológico”) quanto uma relação essencial semântica, fundada na pura
natureza ideal da mesma significação, em sua legalidade específica
(“Imaginário’ é um atributo de um número irracional complexo”) (cf.
HUSSERL, 2001b, p. 65, §11) . A suppositio materialis é pensada por este
viés, que é regulado por leis ideais puras referentes à essência significativa
enquanto tal, mas que também se referem às significações enquanto atos4.
Expressões que indicam negações ou valores de verdade também modificam
significações, como, por exemplo, na nominalização “’2+2=5’ é falsa”
(HUSSERL, 2001b, idem, ibidem).
O §11 trabalha com uma distinção entre “forma” e “conteúdo”
nuclear, “forma” e “matéria” sintáticas: modificações nominalizadas de
formas nuclareares (preservando conteúdos nucleares) podem produzir uma
matéria sintética nominal que podem entrar em todo tipo de relação sintática
que admite tal relação material nominal. Husserl usa exemplos de adjetivos
que preservam esse núcleo, mas fundamentam legalmente modificações
nominais (“Este papel é verde”; “’ser verde’ é uma diferença específica”; “ A
palavra ‘verde’ é um predicado” etc.) (cf. HUSSERL, 2001b, p. 66, ibidem).

2. Modificações materiais e atos objetivantes: a teoria do juízo e a relação


entre essência intencional e significativa
De antemão, compreende-se que o método e estilo de Husserl é evolutivo no
que se refere aos problemas, aprofundando seus argumentos e clarificações
mais posteriores em relação aos temas anteriormente debatidos. Entretanto,
há diferentes problemas a serem abordados em cada uma das seis
investigações, sendo que o próprio autor menciona a forma de “ziguezague”
de seu progresso teórico dentro da obra de 1900-1901, não constituindo uma
unidade coesa no estilo textual (HUSSERL, 2001a, p. 5, prefácio à segunda

4 Benoist (2001, p. 97-98) afirma não só o paralelo entre a operação intencional e a regulação
categorial na modificação de nominalização, mas uma constituição modalizada de
variações tanto intencionais quanto categoriais.

48
edição de 1913). A Quinta Investigação não poderia ser diferente: ela
representa um acréscimo conceitual na compreensão dos atos significativos e
seus correlatos, mas aborda problemas classificatórios e pressupostos teóricos
que sustentam argumentos e teorias fundamentais, como a teoria do juízo, a
definição de consciência e o fundamento das vivências intencionais.
Entretanto, Husserl trabalha com estruturas linguísticas paralelas e até
coligadas às estruturas psicológicas descritivas5 (cf. ROLLINGER, 2003, p.
141) e, mesmo afirmando, na segunda edição, que não considera válido o
conceito de “representação nominal” (cf. HUSSERL, 2001a, p. 8), a
diferenciação entre gêneros de qualidades e estruturas materiais intencionais
é obtida com base na diferença entre atos nominais e proposicionais, por um
lado, e “meras representações” e “juízos”, de outro; tais modificações na
essência significativa produzem resultados fenomenológicos materiais e
qualitativos consideráveis que são descritos de modo mais específico a partir
do §32, para uma crítica aprofundada ao princípio de que representações são
base da vida intencional, e na possível evidência desse princípio fundamental
(cf. HUSSERL, 2001b, p. 154, §35 e HUSSERL, 2001b, p. 160-161, §38).
Referente às modificações de significado e expressão, e suas mútuas
relações de fundação e dependência, a perspectiva é essencialmente
psicológica descritiva (referente a quais vivências intencionais fazem
“originar” as significações)6. As relações entre enunciados completos e
nomes, assim como suas partes, são clarificados à luz dos conceitos de
“conteúdo intencional”, “matéria” e “qualidade’, inclusive com a

5 Neste ponto, Rollinger problematiza a noção de “ato nominal posicional” como equívoca,
aludindo ao risco de se considerar a linguagem como um guia para a análise da própria
linguagem no tocante à lógica e à fenomenologia, imprudência herdada, segundo o
comentador, do ponto de partida de Stuart Mill em seu Sistema de Lógica (cf.
ROLLINGER, 1997, 141).
6 Na segunda edição da Quinta Investigação (1913), Husserl quer “elevar ao nível das Ideias”
as descrições e argumentos efetuados. Três mudanças e acréscimos são fundamentais
nesta “elevação” (mesmo que não se perca o estilo e a lógica interna da primeira edição
de 1901): a exclusão do §7, julgado desnecessário, a caracterização da fenomenologia
como “eidética” e não meramente psicológico-descritiva (esse processo de
ressignificação se dá desde o curso de 1903 Vorselung zur Logik und Erkenntnistheorie))
e, finalmente, as notas que definem e delimitam a mudança de posição quanto à natureza
e função do ego na vida consciente.

49
classificação das vivências psíquicas conforme variados modos e sentidos de
constituição de referências objetivas.
Assim como na Quarta Investigação há um interesse nas leis e
combinações variáveis de atos expressivos e significações puras, e não em
discussões sobre a natureza dos objetos significados, a Quinta Investigação
tais discussões como derivadas e secundárias diante da explicitação dos
modos e determinação do objeto vivido intencionalmente. Isso significa
considerar na psicologia descritiva também atos dirigidos a objetos
inexistentes, absurdos e contraditórios.
Partindo da definição de matéria e qualidade intencionais - momentos
abstratos da essência dos atos psíquicos -, Husserl analisa possíveis objeções
à sua terminologia e especificações dos caracteres de ato e, mais amplamente,
dentro do conceito de “conteúdo descritivo” de uma vivência intencional.
Definirá, pois, que nem todo componente do ato é essencial: conteúdos
sensíveis (“sentimentos sensíveis”) que são intencionalmente interpretados na
percepção (que não são intencionais, por sua vez), são variáveis e não entram
na estrutura do ato, mas constituem seu conteúdo descritivo. A essência
significativa, por sua vez, é todo conteúdo específico que entra em atos que
dão significação ou que possivelmente o preenchem, cuja abstração ideatória
apreende uma significação pura.
Alguns problemas referentes à essência intencional são confrontados
com possibilidades classificatórias que surgem a partir da descrição do
conteúdo intencional, a saber, se na própria matéria intencional enquanto
possível “representação-base” podem ser descritas qualificações cada vez
mais especificas.
A modificação qualitativa centra-se na relação entre juízos e
representações nominais sem posição de existência e a progressão que vai da
mera pronunciação (e correspondente “mera compreensão”), crença,
assentimento ao preenchimento da intenção judicativa.
Husserl mostra que toda forma de objetivação por meio de juízos e
nomes, mesmo que modificados, em primeira instância se dirigem a estados

50
de coisas, e não a outras representações, mesmo que se operem juízos sobre
juízos. Um exemplo na vida prática é o enunciado “Foi dito que hoje choveu
em Londrina. Isso alegrará os pequenos produtores!”. Aqui, não se visa o
enunciado “hoje choveu em Londrina”, mas à situação objetiva7 constatada.
Logo, não é na representação enquanto “objetivada” que se funda,
cognitivamente, o ajuizar e o mero representar (ainda, o visar unirradial, mas
sintético e unitário, e o visar plurriradial, sem essa unidade e síntese
complexas), mas em referência a um objeto determinado em uma matéria, no
“referir-se” com um sentido determinado e em um modo específico, visando
a situação objetiva mesma, apresentando-a ao sujeito. Tais modificações,
tanto na matéria quanto na qualidade, somente se operam com mudança na
essência significativa (cf. HUSSERL, 2001b, p. 156-157, §36).
A análise de Husserl irá se direcionar, já a partir dos §§34-35, para a
análise material intencional, deixando em aberto outras possíveis
configurações sintéticas de “teses”, assim como suas possíveis determinações
sintáticas.
Deste modo, juízos podem ser modificados para representações
complexas de estados de coisas (ou seja, em que essas categorias de objetos
são apresentadas como tais), como no caso do enunciado “‘P ou não-P’ é a
expressão informal do princípio de contradição”, em que “P ou não-P”
representa o estado de coisas correspondente, e não um outro juízo. Logo, não
é a referência objetiva que é alterada, mas o modo intencional e significativo
de visá-la e designá-la.
Na descrição efetuada a partir do §32 da Quinta Investigação – que
intenta, de modo geral, clarificar o conceito de “representação” e
“representação base” - contrapõem-se, em primeiro lugar, juízos que podem
cumprir um papel de ato nominal e nomes que possuem origem em um juízo;
em segundo lugar, uma correspondente expressão atributiva à qual

7 “Situação objetiva” é a exemplificação efetiva de um estado de coisas, e a apreensão deste


objeto categorial é baseada na captação de uma situação objetiva que o instancie. Tal
conceito é elucidado epistemologicamente na Sexta Investigação, seção II, capítulo VI,
§48.

51
corresponde uma expressão predicativa (“ele, o ministro de finanças”; “Ele é
o Ministro de Finanças”); em terceiro, um nome posicional que admite um
contraposto não-posicional; em quarto, por fim, nomes posicionais que
podem ter um correlato judicativo.
Todas estas representações e juízos podem ser distintas em essência
intencional e essência significativa. Husserl sempre leva em conta tanto a
intenção unirradial quanto plurirradial, além do posicionamento sintético
(característica de juízos) e posicionamento simples (nomes e expressões
nominais em geral). O que difere, no que diz respeito à essência intencional,
é o modo e a síntese em que é efetuada uma determinação objetiva: em um, o
estado de coisas é nomeado, enquanto que em outro é predicado algo. Há,
neste ponto das Investigações, um retorno descritivo às vivências nominais
referentes aos adjetivos, tanto em sua função predicativa (“Paulo é alto”)
quanto atributiva (“a altura de Paulo”). Nada dos estados de coisas são
alterados nestas modificações sintáticas.
No capítulo IV, é feita uma descrição mais detalhada das modificações
materiais e qualitativas, com as primeiras fundando objetivações complexas.
O objetivo é distinguir e determinar o gênero “ato objetivante”, em
contraposto aos atos não-objetivantes (sem referência objetiva determinada)
e suas diferenças específicas. Husserl efetua a reformulação do princípio
brentaniano, suposto como auto-evidente, que enuncia a primazia da
representação como base da vida psíquica. Husserl corrige: toda vivência, ou
é um ato objetivante ou tem como fundamentação atos objetivantes (Cf.
HUSSERL, 2001b, p. 167, §41.

3. Intuição categorial e modificações materiais intencionais


A seção anterior elucidou, dentro capítulo IV da Quinta Investigação,
estruturas sintéticas na matéria intencional, que se enformam categorial e
intencional a situação objetiva constituída na matéria. Nesta seção, será feita
uma reconstrução conceitual do conceito de “intuição categorial” e de sua
fundamentação e justificação epistemológicas, que complementa as

52
demandas deixadas pela Investigação anterior. Aqui, as modificações
efetuadas na matéria intencional ganham importância quando se estruturam
modos complexos de constituição de objetos “de ordem superior”, seja para
cada tipo de categoria considerada (o lado objetivo da intuição categorial),
seja para cada caráter de ato categorial (lado subjetivo), inclusive relações
legais e descritivas (formas de apreensão, conteúdos intuitivos etc.) entre
vários tipos de atos categoriais.
As sínteses de preenchimento e as modificações significativas e
materiais obtém esclarecimentos importantes na segunda seção da Sexta
Investigação. Husserl toma como tema inicial de sua análise as expressões e
seus componentes, retomando de maneira exclusivamente fenomenológica
uma distinção de natureza gramatical entre “forma” e “matéria” de uma
proposição, que corresponde ao caráter sensível e imediato dos termos
nominais (cf. HUSSERL, 2001b, p. 272, §40).
Esta distinção “gramatical”, mas que tem fundamentos semânticos
(veja-se a seção II deste comunicação) é tomada de maneira propriamente
fenomenológica com os conceitos de “matéria sensível” e “forma categorial”,
derivados da relação entre expressão de intuição e a intuição expressa, ou de
como juízos de caráter geral possuem realização intuitiva (mesmo que
lacunária e meramente ilustrativa) que se estabelece em todas as
representações como distinção absoluta entre forma e matéria do representar,
sendo relativa e funcional nas relações de preenchimento, enquanto “termos
lógicos”, por assim dizer (HUSSERL, 2001b, p. 276, §42).
Entretanto, como modificações de ato possuem importância na
adequação e preenchimento categoriais, principalmente na síntese de
identificação própria desta categoria de atos? Aqui os §§50-51 do capítulo
sexto da Sexta Investigação considera a constituição e apreensão de formas
categoriais conjuntivas e disjuntivas, que não visam estados de coisas, nem
se reduzem à formas nominais (cf. HUSSERL, 2001, p. 290, §50; cf.
HUSSERL, 20001, p. 91, §51, início). Todavia, os termos lógicos, que, em
uma proposição indeterminada (P é Q; o ser Q de P etc.) podem também

53
expressar juízos nominalizados (“A proposição ‘P é Q’ é falsa”) ou mesmo
formas complexas (P (p é q) é Q (p’ é q’)).
Como possibilidades de realização objetiva e de estruturação de
significações se relacionam epistemologicamente, já que se mostra
fundamental, em vários casos, a determinação semântica na construção de
objetificações representativas que são fundantes de relações categoriais de
níveis superiores?
Por fim, conteúdos intuitivos de qualquer espécie, tomados dentro da
essência epistêmica8de modo ideal, possuem critérios de possibilidade e
compatibilidade de realização objetiva que são válidos para todos os tipos de
síntese de preenchimento; todavia, como funcionariam os critérios para
síntese de preenchimentos de níveis cada vez mais superiores e matérias
intencionais cada vez mais complexas?
De acordo com o progresso das descrições fenomenológicas dos atos
que cumprem a função de preenchimento, constata-se a possibilidade de
plenitude intuitiva e adequação de intenções que não admitem preenchimento
sensível: conceitos, categorias, proposições, termos sincategoremáticos (não-
independentes de outros significados), etc. Já em frases simples como, por
exemplo, “Esta parede é branca”, a adequação e, em princípio, o próprio
preenchimento não se realizam de modo imediato para todos os elementos
para a intenção deste enunciado, como a cópula e a predicação “ser branco”.
O “ser” que se atribui na relação sujeito-predicado não está presente nas
representações, nem nos objetos em suas características ontológicas; “e”,
“ou” “se ...então”, entre outras formas, não estão “nos” objetos e relações
objetivas sensíveis.
Como foi citado acima, na segunda seção desta comunicação, o
problema também está em como Husserl entende as formas elementares da
linguagem e da lógica, que são os nomes e as significações puras vividas nos

8 A saber, todo o conteúdo e caracteres de ato que entram na apreensão e conhecimento


(enquanto preenchimento adequado): matéria intencional, qualidade intencional e
conteúdo representante-apreensivo intuitivo – sendo este presentante (perceptivo) ou
presentificante (imaginativo) (cf. HUSSERL, 1980, p. 75, §28).

54
atos nominais. Logo, mesmo não compreendendo a lógica de maneira
“genética” e “transcendental”, o conceito de matéria nominal e forma
categorial são o fio condutor linguístico para problematização das
progressões de preenchimento9. Em sentido estrito, toda síntese é efetuada
pela forma categorial, em um ato fundado e unitário sobre as matérias
nominais fundantes (cf. COBB-STEVENS, 2002, p. 90)10.
Ao longo dos §41-43, Husserl enfatiza novamente a rejeição da
hipótese descritiva que afirma a possibilidade de apreensão de formas
categoriais complexas de objetos na esfera dos objetos e estados de coisas
reais; neste sentido, a rejeição inclui a percepção interna ou externa como
constituintes ou portadoras intrínsecas destas formas: a primeira, como já se
pode concluir, apreende objetos sensíveis por conteúdos exclusivamente
sensíveis, dados e preenchidos de maneira imediata e direta, e a segunda
categoria de percepções não pode fornecer senão caracteres psíquicos
“internos” como correlatos de atos reflexivos sobre estas próprias vivências.
Logo, a intuição sensível diz respeito à apreensão de objetos sensíveis,
de modo direto, imediato e em única intenção. Estes atributos essenciais
permanecem exclusivos deste tipo de intuição, mesmo que seu preenchimento
e síntese de preenchimentos seja obtida unitariamente por “fusão” de
recobrimentos intuitivos diferentes e sucessivos no tempo, mas sem sínteses
de identificação ou diferenciação. Contrariamente, intuições categoriais
(incluindo percepções e imaginação) são fundadas, indiretas, e constituem
uma síntese de intenções, em esquemas de identificação ou diferenciação
formais das essências cognitivas (matéria, qualidade e conteúdo representante
pleno/conteúdo intuitivo) dos atos fundantes, fazendo com que a matéria de
uma intuição categorial seja sintética e constituída por outras matérias.
Isso é exigido pela própria natureza das relações de preenchimento,
em que intenções simbólicas e vazias, ou, ainda, intenções preenchidas de

9 Ver nota de rodapé 2 da página 3 desta comunicação, seção II.


10 Cabe, no entanto, questionar a tese de Cobb-Stevens de que Husserl é um herdeiro realista,
por assim dizer, da teoria aristotélica do juízo – por afirmar que juízos se dirigem a objetos
no mais amplo sentido, e não somente a representações “internas” no sentido moderno.

55
modo lacunário11, são progressivamente satisfeitas e plenificadas de maneira
unitária. Husserl complementa estes caracteres descritivos com a definição
dos conceitos de percepção e intuição segundo seu sentido ou amplo ou
estrito. No primeiro, trata-se de percepções sensíveis e categoriais; no último,
restringe-se às percepções sensíveis e correlatos objetivos individuais. Surge
uma nova determinação do que é “objeto” e “intuição”, também em sentido
amplo: todo ato que entra em sínteses de preenchimento cumprindo um papel
de apresentação, é uma intuição; o correlato apresentado nestes atos é o objeto
ou conteúdo intencional intuitivo que pode ser adequadamente dado ou não.
Esta designação de objeto já aparece em vários pontos das Investigações (cf.
HUSSERL, 2001b, p. 11, §6, Terceira Investigação).

4. Sínteses de identificação categoriais e critérios de unificabilidade:


limites das modificações intencionais e significativas
Em primeiro lugar, preenchimentos de proposições categoriais sintéticas ou
mistas podem ter fundamento sensível para algumas interpretações, segundo
a abstração categorial efetuada (um exemplo efetivo é não podermos
substituir ao bel-prazer a proposição “Y contém y” por Y=Jarra e y=Suco).
Em segundo lugar, a evidência de formas categoriais analíticas puras, que
contém situação objetiva12 fundante variável indefinidamente, como “Toda
propriedade de um todo W é uma propriedade de cada parte w”; o uso de
incógnitas e letras supõe a ideia da instanciação indireta deste tipo de
proposição ou lei.
Toda síntese completa de um estado de coisas se opera na matéria
intencional, e não na qualidade, nas sínteses contínuas de identificação e
diferenciação (complexas) de formas categoriais e material sensível. Aqui,
portanto, não se discute o papel do preenchimento categorial em um “mero
representar” e um juízo, isto é, posicionamentos com base em uma

11 Ver HUSSERL, 2001b, p. 247-258, §27.


12 Diferença entre situação objetiva (sachlage) e estados de coisas (sacherverhalt) no
contexto da teoria das intuições categoriais, ver HUSSERL, 2001b, p. 288, §48

56
determinada matéria. Este conceito já era trabalhado na Quinta Investigação,
enquanto conteúdo intencional de juízos, mas na presente Investigação há
uma ênfase na constituição centrada, por assim dizer, nas formações
complexas sintéticas do conteúdo intuitivo, sendo, portanto, um complemento
e um ajuste às descrições já efetuadas.
Na Investigação anterior, um estado de coisas é um correlato objetivo
enquanto visado de modo determinado, unitário e complexo. É a objetivação
unitária e complexa que constitui um estado de coisas, mesmo sendo
intencionada de maneira multirradial e secundária, fundada sobre uma
situação objetiva determinada. Em contrapartida, este conceito agora é tratado
enquanto categoria realizável em um modo determinado de preenchimento e
de possível adequação.
Husserl assevera que, em alguns pontos de suas descrições sobre os
graus e critérios de possibilidade de adequação, faz-se necessário o
complemento da teoria da intuição categorial, principalmente nos conceitos
de “unificabilidade” e “conflito” e, na tematização do conceito de evidência,
o conceito de “identificação”. É decorrente, de qualquer modo, que se trata
do estilo próprio das Investigações, mas faz constatar que Husserl estratifica
estas análises em diferentes perspectivas de fundação e dependência, em que
a apreensão categorial depende da síntese categorial (HUSSERL, 2001b, p.
262, §37).
No caso dos nomes universais e categorias, há problemas em como
descrever adequadamente as sínteses de coincidência, a saber, os seguintes já
expostos por Lampert: como se efetua determinação exata da referência
unitária frente a possíveis sínteses de preenchimento; como ocorrem estas
operações no contexto e pano de fundo em que tais unidades intencionais se
produzem; como as sínteses de escorços perceptivos e recobrimentos dos
conteúdos atingem diversos graus de plenitude e, por fim, quais são os limites
para estes progressos (cf. LAMPERT, 1995, p. 125-126).
A nominalização é um problema relevante em caso de níveis
complexos de objetivações categoriais, em que se fazem sínteses categoriais

57
complexas através da mudança de uma matéria de intuição categorial, que é
secundária e complexa, para uma primária quando está sintetizada em
intuição de grau superior (cf. LOHMAR, 2002, p. 140). Se há possibilidades
infinitas de modificações baseadas em nominalização, em um nível mais
básico das séries de preenchimento, então limites para sínteses de
preenchimentos possíveis em casos de intuições categoriais complexas são
estendíveis ad infinitum, exceção seja feita às formas categoriais que não
admitem enformação nominal.
Deve-se atentar que há uma diferença entre leis regendo
compatibilidades de significações ou essências significativas in specie e leis
que se referem a compatibilidades entre as matérias destes significados e as
matérias de essências epistêmicas. Estas últimas são leis que fundam não
somente uniões e conflitos com espécies puras, mas identificações e
diferenciações e, portanto, sínteses correspondentes. A relação, portanto, é
entre uma possibilidade de significações unitárias complexas e a
possibilidade de realização intuitiva das mesmas. Uma combinação como
“quadrado redondo” e “3 é número par” é possível semântica, mas não
intuitivamente; contudo, as significações complexas “O conceito ‘quadrado
redondo” é uma significação complexa” e “A proposição ‘3 é número par’ é
falsa” podem ser possíveis de intuição categoriais, já que os componentes
nominalizados tiveram modificações expressadas pelas partículas “é” e “é
falso”?
Neste caso, Benoist mostra que Husserl toma um ponto de vista
inspirado com Brentano e, mais proximamente com Meinong – ao contrário
da persistente influência de Bolzano ao longo da obra; isso significa que a
referência objetiva é determinada pelo visar, não importando se existe o
objeto ou não (cf. BENOIST, 2001, p. 98). Contudo, a realização objetiva
enquanto apresentação “em si” do objeto não é alterada; vislumbra-se - e isso
é mais notável na segunda edição, dado direcionamento idealista que Husserl
assume após 1907 - que há uma determinação sempre correlacional entre as
significações puras e os atos simbólicos (as modificações são determinadas

58
correlativamente) (cf. BENOIST, 2001, p. 91). Além disso, a relação entre
objeto e significação é sempre diferenciada, como já foi mostrado na segunda
seção.
Modificações, como a suppositio materialis, portanto, mesmo que
efetuadas com expressões contraditórias, ainda possuem “sentido
intencional” e constituem parte do discurso, mas não do conhecimento, ou
“sentido impletivo” (diferença estabelecida na Primeira Investigação – ver
HUSSERL, 2001, p. 199, §14). Husserl considera que é por evidência
apodítica que a uma significação contraditória não corresponda realização
objetiva possível, mesmo sendo uma significação pura existente idealmente.
Uma significação pode ser realizável por unificação, pois se deve considerar
a relação de incompatibilidade dentro de um todo determinado. Este
significado complexo, portanto, é possível de validade objetiva. Supõe-se que
o todo T dado na proposição exemplificada acima tenha como partes
“quadrado redondo” e “significação complexa”; pode-se, neste todo, unificar
por compatibilidade, pois há uma essência válida (possibilidade de intuição
completa e adequada) pertinente a ele, e essa união é expresso pelo “é”, neste
caso.
Aqui não estaria um problema apontado por Lampert, referente aos
limites de sínteses unificadoras? Há limites ideais para decepções e conflitos,
que são dados de modo ao todo em que ocorrem as essências consideradas;
dentro de mesmas significações, ademais, uniões e conflitos se excluem.
Excetuando-se às sínteses de percepções sensíveis, que se dão por
perspectivas variadas de recobrimento, o limite de uma síntese categorial se
daria pela própria forma de identificação e unidade, seja expressa na forma
categorial, seja na essência cognitiva e, portanto, na configuração multirradial
material (cf. LAMPERT, 1995, p. 146).
Lohmar mostra que este problema não é tão pertinente no caso de
intuições universais, que podem prescindir da “presentação” própria das
percepções. Entretanto, interpretando a constituição categorial a partir da
percepção sensível mesma, é possível reinterpretar o problema do

59
“representante categorial” de maneira a considerar o ato que explicita a
percepção sensível em suas partes contíguas ou coexistentes como um suporte
para a enformação categorial mais complexa (cf. LOHMAR, 2002, p. 139-
140).

5. Conteúdo em sentido amplo, modificações intencionais e significativas:


problemáticas referentes ao conceito de “fundação”
Sabe-se que Husserl, na introdução à segunda edição da Sexta Investigação,
não aceita como válido o conceito de representação categorial, após as
“descobertas” efetuadas no contexto teórico das Ideias I (cf. LOHMAR,
2002, p. 136-137). A revisão efetuada a partir de 1913 e que resulta tanto em
uma versão em rascunho quanto na edição de 1921 da Sexta Investigação
mostra que, no caso das leis e relações fenomenológicas que envolvem a
compatibilidade e unificabilidade intuitivas, houve uma preocupação em
ampliar a reflexão em perspectiva modal (possibilidades e atualidades
intuitivas) quanto delimitar a esfera puramente semântica (ao contrário de
intenções signitivas e intuitivas) de intenções puramente linguísticas (cf.
MELLE, 2002, p. 120).
Considerar tais casos implica no fato de que intuições categoriais e as
sínteses de identificação nela efetuadas expõem problemas e a necessidade de
complementação na própria teoria dos objetos categoriais (cf. LOHMAR,
2002, p.). Este problema não se reduz ao contorno semântico, mas abarca a
possibilidade de um papel epistemológico relevante para nominalizações.
Fraisopi, considera que o acento linguístico da intencionalidade e suas
diversas formações a possibilidade de variadas nominalizações e
modificações nos juízos (FRAISOPI, 2008, p. 19) caracterizam uma
relativização no realismo semântico de Husserl. Por outro lado, a
possibilidade de um sentido ideal não irá se sustentar na justificação de vários
graus dessas modificações, mas no início da tematização da posicionalidade
nos atos categoriais e o papel também determinante de atos imaginativos.

60
Fraisopi vê nestas modificações o início da “transcendentalização” da
fenomenologia, que será continuada de forma mais ampla nas lições sobre a
teoria do significado de 1908 (cf. FRAISOPI, 2008, p. 17), atentando-se
também à imensa variabilidade das nominalizações e da múltipla
configuração sintática que a intencionalidade simbólica pode oferecer. Isto se
evidencia, textualmente, nos cursos de 1902 e de 1908.
Intuições categoriais incluem atos perceptivos e imaginativos, e os
dois podem participar de adequações definitivas. Contudo, somente a
percepção tem caráter de presença na plenitude, ao contrário da analogia
“presentificante” dos atos figurativos. Estes casos são estudados na descrição
e defesa da existência de intuições universais. Nestes casos, além de uma
variação constitutiva que não depende em absoluto da fundação sensível
intuitiva, temos possíveis variações de acordo com juízos categoriais de
ordem superior. Um exemplo na prática matemática é a abstração categorial
que podemos fazer, a partir de um dado teorema, para mostrar uma relação de
inferência ou instanciação de um axioma matemático.
No §52 da Sexta Investigação, são contrapostos estes caracteres
epistêmicos do conteúdo representante, em que a apreensão e doação evidente
deste tipo de objeto não é baseada na “posição de ser” dada ao ato (uma
asserção ou suposição, por exemplo, de um universal), mas na sua
possibilidade de preenchimento adequado, que pode se fundar tanto em
conteúdos analogizantes (para atos imaginativos) ou presentantes (para atos
perceptivos) do ato fundante (cf. HUSSERL, 2001b, p. 293, §52).
Um problema que se enfrenta ao tratar dos conteúdos intuitivos
categoriais são as próprias noções de “fundação” e fundamento. Tais relações,
em primeiro lugar, ontológicas, são referentes a conteúdos ideais e suas
referências objetivas (espécies puras), instanciados por conteúdos intuitivos.
Em segundo lugar, pela estruturação dos atos psíquicos e as relações de
preenchimento. Thomas Nenon não identifica na obra de 1900-1901,
entretanto, como essa distinção entre modelos de fundação “ontológica” e
“epistemológica” se sustenta, o que significa que Husserl não dá critérios

61
claros e precisos para essa distinção (cf. NENON, 1997, p. 98; NENON,
1997, p. 110-111).
Husserl não hesita em usar essa mereologia de uma forma variada (por
exemplo, matéria e qualidade são momentos abstratos das vivências
intencionais; atos simples de juízo podem fundar nominalizações complexas;
a matéria funda relações de plenitude; todos os atos objetivantes são fundados
em representações representativas) (TAKÁCKS, 2008, p. 65). No entanto,
deve-se fazer uma distinção entre fundamento e fundação, sendo que o
“fundamento”, no sentido epistemológico tradicional, significa a assunção de
princípios ou evidências básicas que sustentam um sistema mais amplo de
crenças justificadas. Este sentido não é tematizado por Nenon, mas mais
profundamente por Takács. Epistemológica e descritivamente, portanto, as
representações representativas são a base para qualquer tipo de síntese mais
complexa, o que se revela problemático na constituição dos “representantes”
categoriais.
Na esfera gramatical lógica, Husserl afirma que as leis de combinação
entre significados pressupõem distinções mereológicas, que não são
idênticas, no entanto, aos objetos significado”. Como elucidado acima, essa
relação pode mudar no caso de nominalizações e também de atos
proposicionais que, sendo imediatamente vividos, podem ser modificados em
essência para atos nominais, com a mesma referência objetiva. Retomando o
sentido do exemplo de Husserl no §11 da Quarta Investigação, a proposição
“’E’ é uma conjunção” modifica o significado de um sincategoremático, e
isso idealmente, ou seja, efetuando-se também uma abstração ideatória da
essência significativa dos atos que perpassam tais expressões.

6. Considerações finais
Pode-se concentrar em dois grupos os resultados do uso dado por Husserl das
operações modificativas intencionais, a saber, epistemológicos e ontológicos.
Contudo, no segundo grupo, não se trata de uma alteração na objetividade
como tal das categorias lógicas, mas na estrutura legal das verdades e objetos

62
lógicos e nos limites deste tipo de objetidade. Em contrapartida, no primeiro
grupo, os problemas constitucionais apontados acima não só entram na
justificação do realismo lógico e semântico husserliano, nem na possibilidade
da fenomenologia como ciência voltada ao ideal, mas - de modo mais amplo,
mas contextualizado nas Investigações -, na relação entre linguagem e
conhecimento na fenomenologia de 1900-1901, e de como Husserl lidou com
esses problemas e resultados.
A importância desse amplo questionamento se dá em decorrência da
natureza da lógica das Investigações como um empreendimento semântico
(isto é, voltado para o conteúdo unitário ideal significativo dos juízos e
conceitos - cf. KUSCH, 1989, p. 55), de como Husserl entende a fundação da
própria vida psíquica intencional e, finalmente, de como se constituem
relações legais nestes processos mesmos e as necessidades e possibilidades
implicadas nessas leis (cf. MULLIGAN, 2004, p. 401), e quais os níveis
justificáveis de variabilidade de tais possibilidades e necessidades.
Deste modo, a evidência e verdade de tais tipos de relações categoriais
tem uma dependência estrita com tais modificações: o “ser” dado na
adequação de essências epistêmicas e na correção da intenção é a
possibilidade realizada de recobrimento pleno da matéria (HUSSERL, 1980,
p. 96-97, §39). Viu-se já anteriormente que a critérios de possibilidade de
realização e síntese categorial, em um primeiro momento, devem
corresponder limites semânticos (pura significação – leis de contrassenso e
absurdo) e epistemológicos (decepção e unidade como conflito) de unificação
e identificação, mas cuja possibilidade de variação para níveis cada vez mais
superiores pode localizar unicamente a possibilidade ideal no campo das
significações e não na referência objetiva; e isso em representações
apreensivas enquanto sedes de sínteses.
Correlato ao conceito de existência ideal é o conceito de possibilidade
ideal, que é pura validez – atributo que caracteriza a esfera semântica como
suporte de verdade, mesmo não realizado objetivamente. Esta possibilidade é
desenvolvida descritiva e analiticamente em um conceito amplo de

63
“conteúdo” com diferenciações que precisam dar conta da estruturação do
reino ideal enquanto atemporalidade, unidade e identidade, mas também na
realização das mesmas no que se refere aos caracteres de ato e dinâmica de
preenchimentos, inscritas na possibilidade anterior (enquanto conteúdo ideal)
mas que também condicionam possibilidades essenciais que servem de
fundamento no sentido mais amplo do termo, com a noção de representação-
apreensiva. Essa fundamentação, tanto em sentido ontológico formal e
epistemológico, é alterada, como se defende nesta comunicação, nas
modificações intencionais e significativas, pelas mesmas tanto serem
dependentes lógico-gramatical quanto epistemicamente.
Husserl objetivou trabalhar, já em 1913 o campo das possibilidades
nas essências epistêmicas com ampliação qualitativo-posicional da
constituição das mesmas e no uso do par conceitual atualização-
potencialização dentro do contexto também da fantasia (cf. MELLE, 2002, p.
121). O recorte conceitual feito nesta comunicação é centralizado na
correlação suportada pela matéria, ou seja, o contexto conceitual fornecido
em 1900-1901, e não nos conceitos desenvolvidos a partir do período
transcendental; mas isso é uma percepção do próprio Husserl quanto à
importância de se dar atenção às possibilidades. O que se defende nesta
comunicação é que essa base descritiva e semântica-lógica já existia, com
limitações e problemas próprios.
Enfim, à assunção de que a intencionalidade linguística é em si o
laboratório da intencionalidade mesma adquire um sentido mais clarificado;
mas, a despeito de Benoist e Fraisopi, se buscou mostrar que as modificações,
apesar de implicarem problemas no conceito de existência, não prescindem
dele e apresentam a peculiaridade de uma crítica interna às relações (em si
legais) da mereologia husserliana.

Referências
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64
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________________. Logical Investigations – Volume II. Translated by J. N.


Findlay; Preface by Michael Dummett and introduction by Dermot Moran.
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https://www.unige.ch/lettres/philo/files/2214/2644/3417/mulligan_Essence
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NENON, T. Two Models of Foundation in the Logical Investigations. In:
HOPKINS, B. C. (edith.). Husserl in Contemporary Context – Prospects and
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TAKÁCKS, Adam. Le fondement selon Husserl – la doctrine de la
phénoménalité et de l’évidence dans la phénoménologie husserliene. Lille,
2008.

66
DISTÂNCIA E AUSÊNCIA NO PENSAMENTO DO “NEGATIVO”
NO JOVEM EUGEN FINK

Anna Luiza Coli

Introdução
Eugen Fink, último assistente e colaborador de Husserl, ainda é um pensador
muito pouco conhecido no meio acadêmico. É bem verdade que ele teve a
grande sorte – o que, em seu caso, pode ter sido um inconveniente – de
disputar seu lugar ao sol com dois dos maiores filósofos alemães do século
XX, Husserl e Heidegger. Mas por outro lado, acredito que houve aí uma série
de outros elementos além de acasos ou “ironia” do destino. Fink não deixou
de ser uma figura polêmica mesmo quando ainda era assistente de Husserl, e
as razões disso passam certamente por uma afiliação teórica que o fez
interpretar e apresentar a fenomenologia husserliana – e aqui eu cito o
testemunho de Walter Biemel –: “à luz do pensamento especulativo do
idealismo alemão”.1 Mais notadamente, Fink foi bastante instigado pela
filosofia de Hegel, muito provavelmente influenciado pelo ‘renascimento do
hegelianismo’ que a Alemanha experimentava há poucos anos.2 Mesmo Edith
Stein, assistente de Husserl de 1916-1918, acusou Fink de deturpar a filosofia
husserliana e de transformá-la em algo “completamente diferente e distante
de seus propósitos”3. O rebuliço gerado pela acusação levou os editores da
Kant-Studien a exigirem de Husserl uma declaração em que reconhecia Fink
como legítimo representante do seu pensamento, sob pena de recusar o artigo
de 1933 no qual Fink apresentava A filosofia fenomenológica de Husserl face

1 Biemel, Walter. “Zum Abschluss des Fink-Symposions” in Eugen-Fink-Symposion 1985


(Schriftenreihe der Pädagogischen Hochschule Freiburg: Band II, 1987), p.111.
2 Cujo marco fundamental foi o discurso que Windelband pronunciou sobre a “Renovação
do hegelianismo” em Heidelberg, no ano de 1910.
3 Cf. De Waelhens, A. “L'idée phénoménologique d'intentionnalité” in: VAN BREDA &
TAMINIAUX (Ed.) Husserl et la pensée moderne/ Husserl und das Denken der Neuzeit.
Martinus-Nijhoff, Den Haag, 1959, pp. 115-129; 129-142.

67
à sua crítica contemporânea4. Se a declaração de Husserl colocou panos
quentes sobre a discrepância que se fazia cada vez mais evidente, por outro
lado ela contribuiu para a confusão que se criou em torno da autoria de
algumas ideias e até mesmo de algumas obras. A VI. Meditação Cartesiana,
escrita por Fink para integrar o projeto de revisão do conjunto das Meditações
husserlianas, foi durante muito tempo atribuída a Husserl.5
Bem, esta é uma história tão longa quanto intrigante, mas que deixo
para outro momento. Para os propósitos da presente contribuição, no entanto,
nos interessa enfatizar a reviravolta que o conceito de ‘negativo’, em sua
inspiração hegeliana, impôs à interpretação da fenomenologia que Fink
propõe desde as suas primeiras obras. Para abordar essa questão mais
sistematicamente, e de modo a indicar a centralidade que ela assume no
conjunto do pensamento de Fink, escolhi falar aqui do que costumo chamar
de ‘figuras do negativo’, ou seja, conceitos que Fink emprega para apresentar
esse traço negativo em suas diferentes perspectivas, incidindo sobre
diferentes aspectos do seu pensamento. Dentre essas ‘figuras’ ou os
‘momentos’ do negativo, escolhi as duas que talvez caracterizem melhor essa
instituição de uma nova forma de pensar a fenomenologia, a saber: a distância
e a ausência.

1. O sentido de negativo:
Mas em primeiro lugar é necessário levantar uma questão fundamental: a que
nos referimos quando falamos aqui de ‘negativo’? Grosso modo e
didaticamente podemos dizer que o ‘negativo’ é aquilo que nos permite
enxergar os limites de todo discurso ‘identitário’ ou, por assim dizer,
‘positivo’ da tradição filosófica, para então abrir uma nova perspectiva a
partir da qual os problemas essenciais da filosofia podem ser recolocados. O

4 “Die phänomenologische Philosophie Edmund Husserls in der gegenwärtigen Kritik”, in


Studien zur Phänomenologie 1930-1939. Martinus Nijhoff: Den Haag: 1966, pp. 79-156.
5 Sobre isso ver: Luft, Sebastian. Phänomenologie der Phänomenologie. Systematik und
Methodologie der Phänomenologie in der Auseinandersetzung zwischen Husserl und
Fink. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht, 2002, p. 143.

68
negativo é aquilo que nos permite partir do pressuposto de uma identidade
que só se reconhece como tal uma vez situada entre a “identidade e a não-
identidade”. A lógica do dizer outro ao dizer do mesmo está no fundamento
da estrutura dialética do pensamento que Fink incorporou ao núcleo
fundamental do método fenomenológico.
Já na Introdução à obra Presentificação e Imagem de 1929 –
doutorado escrito sob a orientação de Husserl e de Heidegger – Fink enfatiza
a importância da tarefa propedêutica da análise fenomenológica de
“elucidação de um equívoco filosófico” que determina a forma específica do
questionar fenomenológico. No entanto, essa tarefa não pode ser realizada 1)
nem estabelecendo um ponto de partida apodítico da reflexão filosófica, ou
seja, encontrando um fundamento seguro e rigoroso do conhecimento, e
tampouco 2) pela criação de novos termos, como se os conceitos que
perpassaram a tradição filosófica e se tornaram ‘viciados’ por desvios
metafísicos quaisquer pudessem ser simplesmente passados a limpo. Aí, mais
do que uma crítica ao cartesianismo de Husserl por um lado, e ao
‘heidegerianês’ de Heidegger, por outro, revela-se a necessidade de usar o
pensamento e os próprios conceitos filosóficos contra si mesmos, de instituir
o discurso filosófico como um “discurso de protesto” que tem diante de si o
desafio de dizer o que não pode ser dito. O negativo é essa tendência do
pensamento de romper o limiar do que é oposto e inconciliável e confundir as
fronteiras. O dizer do mesmo ao dizer do outro, o dizer aquilo que não pode
ser dito, os conceitos ‘de protesto’ ou ‘meônticos’ – vamos voltar a isso – são
algumas das manifestações possíveis dessa estrutura central que articula todo
o pensamento de Fink.

2. Distância e ausência:
Fink inicia as considerações metodológicas de Presentificação e Imagem com
uma alusão evidente a Ser e Tempo ao afirmar que todo perguntar filosófico
está já e necessariamente inserido na dimensão mais imediata da ‘pré-
compreensão’ do mundo e tem seu ponto de partida justamente aí, nesse ‘estar

69
no mundo’ do qual não pode absolutamente abdicar ou ‘despir-se’ para
encontrar a região do pensamento puro. A primeira relação que temos com o
mundo é anterior a toda teorização e se caracteriza pela habitualidade das
reações espontâneas e diretas às demandas mais imediatas do mundo prático.
Aprendemos a reagir às eventualidades do mundo prático a partir de padrões
de comportamentos que aprendemos vendo como as outras pessoas se
comportam, antes mesmo que sejamos capazes de refletir teoricamente sobre
essa dimensão imediata do existir no mundo. Isso significa que nossa relação
com o mundo é tal que não nos deparamos primeiramente com algo para só
em seguida lhe atribuir um sentido, mas que esse sentido é dado de modo
irrefletido e imediato justamente porque estamos já incluídos num complexo
de sentidos e valores, formados por redes de interações linguísticas e culturais
que constituem o ‘lugar’ deste nosso ‘estar no mundo’. O mundo, para aquele
que dele faz experiência, é sempre já dado, já constituído. Nesse contexto, a
passagem a uma ‘orientação transcendental’ não é feita por meio de uma
decisão de exilar o pensamento em uma dimensão purificada de tudo o que é
mundano para fundar uma ciência rigorosa mas – e aqui Heidegger
novamente se sobressai – o pensamento inaugura a dimensão da orientação
natural quando sente a necessidade de romper com a imediaticidade da
relação imediata e irrefletida com o mundo para se colocar questões mais
fundamentais. Segundo Fink, portanto, a passagem da orientação natural à
transcendental, marcada pela redução fenomenológica, não implica uma
mudança na estrutura ôntica que suspende a tese geral do mundo para voltar-
se ao seu aspecto noemático. A orientação transcendental tampouco exclui
toda referência à orientação natural como se se tratasse de uma ‘superação’
que a ‘invalidasse’ como objeto da análise fenomenológica mas, ao contrário,
elas estão necessariamente vinculadas uma à outra na medida que a orientação
natural é o resultado constitutivo que só se apresenta enquanto tal – ou seja,
enquanto resultado de uma constituição – se vista do ponto de vista de uma
orientação transcendental, i.e., a partir da perspectiva que rompe com a
imediaticidade prática para perguntar-se pela ‘origem’ do mundo. A redução

70
fenomenológica, portanto, representa essa ruptura com a dimensão do
irrefletido para perguntar-se pela origem daquilo que experimentamos como
já constituído. É nesse sentido que – como testemunham tanto Merleau-Ponty
quanto Lyortad – há uma definição possível de redução fenomenológica
como uma espécie de thaumázein, como uma admiração ou espanto diante do
mundo, como a disposição daquele que vê o mundo como problema e não
apenas como o lugar habitual do viver cotidiano e prático. O mundo, de
campo imediato do viver e do agir, se torna a mediação que permite ao
fenomenólogo colocar a pergunta fundamental pela origem e pelo sentido
tanto deste mundo quanto do existir-aí, do ‘estar no mundo’ que é condição
da pergunta. Esta mediação significa, em última instância, a tomada de
distância da própria situação mundana para que o fenomenólogo faça dela seu
objeto de análise.
A radicalidade desta ideia de distanciamento fica evidente na figura
do ‘espectador transcendental’ que Fink apresenta em sua VI. Meditação
Cartesiana. Também chamado “Eu fenomenologizante”, este ‘espectador’
representa o termo intermediário entre o Eu mundano e o Eu transcendental
ou, para dizer de outro modo, é o que permite a passagem de um a outro e,
nesse sentido, atua como o ‘índice’ da cisão que marca a atividade do sujeito
que filosofa de estar em meio ao mundo ao mesmo tempo em que faz dele seu
objeto de análise. A toda redução fenomenológica, portanto, corresponde
tanto 1) uma situação, que é o horizonte do mundo no qual se insere o sujeito
– e aí ele é o ‘eu mundano’ – quanto 2) uma abertura ao transcendental que é
feita pelo questionamento da origem e do sentido desta mesma situação – e
temos aí o ‘eu transcendental’. Em suma, a toda redução fenomenológica
corresponde tanto uma orientação natural quanto uma transcendental, mas
estas correspondências são descobertas por aquele ‘eu’ que está entre elas,
que as observa a partir de uma distância que é tanto da imediaticidade do
mundo quanto da dimensão puramente transcendental, e que, portanto,
observa a relação de constituição entre eu mundano e transcendental sem, no
entanto, participar dela. Essa distância que explicita a diferença entre o ser

71
constituinte (tema do espectador) e o ser agente (tematizador, eu mundano)
no interior do espectador transcendental não é uma diferença como outra
qualquer, mas representa uma cisão na própria vida transcendental, uma
‚identidade na diferença‘ que é a condição de possibilidade do voltar-a-si-
mesmo da subjetividade transcendental.
Vale a pena interromper o argumento neste ponto para fazer uma
breve observação terminológica: Por se tratar de um projeto comum no qual
as 5 primeiras Meditações de Husserl seriam revisadas e às quais seria
acrescentada uma 6ª, de sua autoria, Fink evidentemente se abstém de
empregar conceitos e termos próprios que foram criticados e rejeitados por
Husserl ao longo do trabalho. Muito habilmente, no entanto, Fink buscou
alternativas para substituir seus próprios conceitos, rechaçados por Husserl,
por termos correspondentes que ficavam como que ‘escondidos’ em meio à
terminologia husserliana. Só recentemente, com a publicação das notas de
trabalho privadas, podemos reconstruir o contexto mais amplo no qual os
termos próprios e os por assim dizer ‘escondidos’ se revelam como
correspondentes. O exemplo mais notório desse procedimento acontece com
o conceito de meôntico, expoente máximo do pensamento do ‘jovem Fink’,
mas que não aparece de modo explícito em nenhum dos textos publicados à
época em que foi assistente de Husserl. Toda a radicalidade do conceito de
me-on – daqui a pouco explico o que isso significa – é camuflado aí por
6
termos como ‘pré-ser’, ‘pré-existente’, ‘ainda não-ente’, etc. Mas isso
também acontece com o conceito de subjetividade transcendental aqui. Em
suas notas privadas, a subjetividade ou ainda o ‘eu’ transcendental, aparece
como subjetividade absoluta ou simplesmente como absoluto. Longe de ter o
sentido de uma ‘universalidade abstrata’, o absoluto representa a dimensão
constitutiva do sentido do mundo e da própria existência que se atualiza a
cada interação de mundo e consciência. O absoluto é a universalidade
concreta que atua como o sentido de totalidade que possibilita o sentido da

6 Cf. Bruzina, Ronald. “Translator's Introduction” to Sixth Cartesian Meditation,


Indianapolis: Indiana University Press, 1995.

72
existência humana no mundo que é o seu. Isso fica mais claro se voltamos à
argumentação que Fink desenvolve na 6ª Meditação Cartesiana: o que o
espectador transcendental observa da distância que o define é justamente a
interação entre a experiência intuitiva do mundo própria ao eu mundano e a
rede simbólica e linguística que lhe antecede e que, no entanto, possibilita
esse estar no mundo imediato e anterior a toda reflexão. Mesmo antes de se
colocar questões fundamentais, o eu mundano se constitui já em meio ao
mundo e a todo um complexo de práticas e costumes que lhe permitem antes
de tudo ter uma vida significativa anterior a qualquer reflexão filosófica. É a
partir deste contexto mundano pré-doado que o eu mundano pode então atuar
como constituidor de sentido da própria existência e influenciar e transformar
essa mesma rede de significados na qual ele primeiramente se constituiu.
Desta forma, o sentido da ideia que só muito rapidamente aparece no texto da
VI. Meditação (o que já foi suficiente para suscitar duras críticas de Husserl),
mas que se esclarece nas notas de estudo do mesmo período, qual seja, a ideia
de que, em certo sentido, o eu mundano coincide (ou incide junto, acontece
ao mesmo tempo) com a subjetividade transcendental ou com o absoluto, está
no fundamento da designação do humano como aquele que “ocupa-o-lugar”
do absoluto no mundo – e a palavra alemã é Platzhalter ou, literalmente, o
lugar-tenente, lieutenent, aquele que detém ou ocupa uma posição no lugar de
outro. E o eu mundano “representa” o absoluto em dois sentidos específicos:
ele é, por um lado, o ponto de incidência do absoluto no mundo, a
manifestação mundana do absoluto, a sua ‘Ontificação’; por outro lado, é pelo
filosofar humano que o absoluto, uma vez ‘mundanizado’ ou ‘ontificado’,
torna a si mesmo: reconhece-se como absoluto – processo que Fink nomeia
‘Absolução’.7 Para dizer de outro modo: o espectador transcendental é a
mediação através da qual a subjetividade transcendental e constituinte do
sentido da existência humana pode se reconhecer, mediante a reflexão

7 Fink, Phänomenologische Werkstatt 1 / 2. BRUZINA, R. (Hg). Eugen Fink


Gesamtausgabe. Hans Rainer Sepp und Cathrin Nielsen (Hgs.) Verlag Karl Alber:
Freiburg/ München. (2006 / 2008). Doravante citados como PW/1 e PW/2, seguidos do
número de página. Para esta passagem ver PW/2, p. 306.

73
filosófica que se pergunta pelo sentido do mundo e da existência, enquanto
manifestação do transcendental, como transcendental. Pela reflexão
filosófica, o absoluto constituinte se torna consciente do processo de
constituição, ou seja, o transcendental reconhece o mundano como o
resultado da constituição que é, ela mesma, transcendental – porque estamos
ainda sempre numa dimensão do ‘sentido’.
O espectador transcendental é o índice da cisão entre Eu mundano e
transcendental na medida que, uma vez ciente da relação de constituição que
se estabelece entre eles, reconhece o transcendental ontificado no Eu
mundano, e este como ‘representante’ ou ‘aquele que ocupa o lugar’ do Eu
transcendental no mundo. Esta identidade na diferença, que Fink formula
como a “oposição do permanecer igual a si mesmo”8, é a condição de
possibilidade do ‘voltar a si mesmo’ da subjetividade transcendental. Para
citar um trecho da VI. Meditação, Fink afirma aí que “Através da produção
do espectador transcendental alcançamos um novo e colossal campo
temático: a esfera da subjetividade transcendental, encoberta e latente na
orientação natural.”9 A redução fenomenológica, enquanto tomada de
consciência da cisão inerente ao Eu através da ‘produção’ do espectador
transcendental, é o passo que a vida transcendental dá para fora de si mesma,
é a distância que ela toma de si para reconhecer-se como aquilo que de fato
é.
Esse Fürsichwerden, esse “tornar-se um ‘para si’” – e esta expressão
é retomada textualmente por Fink – do transcendental que tem na distância
representada pelo espectador sua condição de possibilidade, é a primeira
figura do negativo que se instaura no interior da identidade consigo mesmo,
e que pudemos apresentar aqui só brevemente. Mas Fink concebe ainda uma
segunda tarefa mediante a qual o espectador transcendental vai além de sua
atuação como ‘mero espectador’ para se tornar ‘Eu fenomenologizante’ no

8 Fink (1988) VI. Cartesianische Meditation: Teil I. Die Idee einer transzendentalen
Methodenlehre. Husserliana Dokumente II/1. Kluwer Academic Publishers, 1988, pp. 25
e 26. Doravante citado como VI. CM.
9 VI. CM, p. 46

74
sentido de uma atuação fenomenológica, qual seja, a ‘produção de sentido’.
Essa evolução que acontece no interior da estrutura do espectador
transcendental, ou melhor, do termo intermediário entre o mundano e o
transcendental, é o fundamento da diferença que Fink estabeleceu entre uma
‘Fenomenologia Regressiva’ e uma ‘Fenomenologia Construtiva’.
A Fenomenologia Regressiva é a análise fenomenológica do processo
de constituição que se estabelece entre os Eus mundano e transcendental. O
fenomenologizar tem aí uma função de espectador distanciado que refaz o
caminho da constituição e se reconhece como constituído ao mesmo tempo
que constituinte. Objeto de análise da Fenomenologia Regressiva é, portanto,
tudo aquilo que é ‘já constituído’, e seu domínio é o da Endkonstituiertheit,
ou seja, da constituição realizada. É o processo, realizado – como vimos –
pela observação distanciada do espectador transcendental, pelo qual o mundo
e as coisas das quais temos experiência intuitiva e imediata são reconhecidos
como o resultado de um processo de constituição. Mas esta análise, por
profunda que ela possa se revelar ao se colocar a pergunta pelo vir-a-ser de
algo no interior do fluxo temporal da consciência, não é radical o suficiente
para se colocar a pergunta pela origem mesma da temporalidade e da
consciência. Se a Fenomenologia Regressiva se pergunta pela origem daquilo
que é constituído, a Fenomenologia Construtiva, ao contrário, pergunta-se por
aquilo que não foi constituído mas que é constituinte, ou seja, se o escopo da
Fenomenologia Regressiva é o do ôntico, do que existe, o da Fenomenologia
Construtiva recai sobre o que é anterior a esta mesma existência ôntica, ao
que é não-dado, ao que é me-ôntico.
Em duas notas escritas entre 1929 e 1930 – provavelmente após o
trabalho de redação da tese Presentificação e Imagem – o meon é definido
como aquilo que está “além do sentido de ser” e, desta forma, a negação
indicada pela partícula grega me se distingue da negação da partícula ouk, que
indicaria a negação da realidade da coisa. A partícula ‘me’ da construção
conceitual me-ôntico nega, portanto, a apreensibilidade de algo sem afirmar
absolutamente nada em relação à sua existência real ou efetiva – como seria

75
o caso da partícula ouk. O objeto da pergunta meôntica da Fenomenologia
Construtiva, portanto, é a ausência de toda doação possível: é o não-dado por
excelência: o nascimento e a morte são, por exemplo, problemas de
‘fronteiras’, apontam para ‘abismos’ do pensamento em relação aos quais a
consciência deve proceder não mais intuitivamente, mas agora
construtivamente, de modo a projetar-se para além do que é dado de modo
intuitivo. Isso nada mais é, segundo um exemplo do próprio Fink, que a
“projeção matemático-geográfica de uma espacialidade pura como
explicação prévia a priori da natureza na física”.10
Assim, se o espectador transcendental era um mero espectador
distanciado que observava a constituição ôntica sem participar dela na
Fenomenologia Regressiva, na Fenomenologia Construtiva ele é impelido à
tarefa de construir o sentido daquilo que está ausente enquanto doação, é
incumbido de colocar-se a pergunta fundamental pelo ‚início não-dado‘11 da
consciência no mundo, ou mesmo pelo que acontece à consciência quando o
eu mundano morre. Na formulação que Fink propõe em sua Sexta Meditação,
o Eu que fenomenologiza toma como objeto seu objeto de análise não mais o
mundo constituído de sua experiência imediata, mas a si mesmo. Isso pode
parecer paradoxal num primeiro momento, mas é, na verdade, a ‘deixa’ que
nos permite voltar à determinação do humano como ‘lugar-tenente’ do
absoluto no mundo: o índice da ontificação mundana do absoluto que, através
do filosofar humano, volta a si como consciência de si mesmo enquanto
Absoluto, ou seja, enquanto absolução. Nesse sentido, o proceder construtivo
da fenomenologia insere o espectador transcendental no domínio do
meôntico, instiga-o a uma experiência diferente – à qual ele se refere como
‘fenomenologizante’ – e que corresponde à constituição de sentido daquilo
que está ausente de todo campo de ‘experiência teórica’. Cito aqui uma
passagem esclarecedora da Sexta Meditação de Fink: “Da mesma forma como
a experiência teórica é, de modo geral, relativa ao ente, a experiência

10 VI. CM, p. 8.
11 VI. CM p. 68.

76
fenomenologizante é analogamente relativa à constituição de mundo ‘em si’
não existente, mas tampouco não inexistente. Se todo ente – de acordo com a
intuição transcendental da fenomenologia – nada mais é que um tornar-se
constitutivo, então o tornar-se do ente na constituição não é ele próprio já um
ente”.12
Para dizer de outro modo: O espectador transcendental objetifica os
processos constituintes ao retirá-los do seu estado de pré-existência, de sua
condição ‘meôntica’, ao tematizá-los, ao transformá-los em tema da
fenomenologia. E nesse sentido é que sua atividade se transforma da
observação à produção. Para o eu fenomenologizante, o sujeito da experiência
que transforma em sentido aquilo que estava ‘para além de todo sentido’, o
seu domínio de atuação – o meôntico – é refratário a toda apropriação
conceitual e referência ôntica, i.e., não se pode atribuir um sentido definitivo
ao que é anterior a todo sentido, não se pode ontificar permanentemente o que
é por excelência não-ôntico. E aqui ressurge a força do negativo enquanto
configuração essencial do discurso filosófico: se toda linguagem, como todo
conceito, é referido a um sentido e, portanto, à existência de algo que é
apreensível, à presença ôntica disso a que nos referimos, então o desafio do
discurso filosófico próprio à experiência fenomenologizante, que é
experiência do meôntico, do anterior ao sentido, é a de descobrir um modo de
presentificar o que é por definição ausente e, assim, de expressar a
impossibilidade de expressão, de dizer o que não pode ser dito. É aí – e
voltamos à inquietação de Fink diante de um ‘equívoco filosófico’
fundamental – que se revela o grande desafio do meôntico e, do mesmo modo,
do absoluto: manifestar-se no mundo, assumir, portanto, uma forma ôntica.
Se o absoluto se manifesta no mundo através da reflexão filosófica humana,
o meôntico só pode se mundanizar, ou seja, dar-se no mundo como
aparência, como uma auto-manifestação protestante, como um aparecer que
se dá apenas enquanto um ‘protesto’ pela impossibilidade mesma de aparecer.

12 VI. CM p. 82.

77
É uma aparência que remete, portanto à ausência daquilo que não pode
aparecer, é uma manifestação que aponta para aquilo que não pode ser
manifesto – é um símbolo enquanto presença de uma ausência. O discurso
filosófico só é capaz de escapar ao equívoco que ameaça toda dimensão
conceitual se lograr se manifestar como ausência, se cumprir sua função de
apontar para o que não pode se manifestar naquilo que de fato se manifesta.

3. Considerações finais:
É nesse contexto – totalmente estranho à fenomenologia husserliana – de uma
centralidade do elemento estruturante do negativo, portanto, que Fink dá nova
vida à caracterização da fenomenologia como um sistema aberto. Por um
lado, compreender a fenomenologia como um método sistematicamente
aberto implica reconhecer a impossibilidade de alcançar um ponto
determinado a partir do qual se filosofa, de alcançar um terreno resguardado
no qual o pensamento está assegurado e protegido em uma dimensão
transcendental. A abertura sistemática do método fenomenológico, ao
contrário, “impossibilita que um nível determinado ou um conceito
determinado de fenomenologia seja tornado absoluto.”13 A ideia fundamental
é de que o fazer filosofia consiste na execução, a cada vez (jeweilig), do seu
método próprio – a redução – e não na conquista de um lugar supremo e
seguro do filosofar. A redução parte sempre e de novo da sua situação
mundana que se dá a cada vez ao eu que fenomenologiza para que este possa
projetar aí uma espécie de ‘complexo’, de enquadramento dentro do qual a
subjetividade constituinte da consciência torna-se consciente de si mesma, de
sua coincidência com o eu mundano, e da interação entre eles que faz do
sentido transcendental de ‘mundo e consciência’ algo sempre em movimento,
que deve ser sempre atualizada a cada execução da redução fenomenológica
que então persiste nesse movimento circular entre o mundano e o
transcendental.

13 VI. CM p. 8.

78
Por outro lado, e esse é o ponto é determinante na medida que
estabelece a estrutura fundamental da ‘filosofia cosmológica’ que Fink
desenvolve nos anos posteriores à morte de Husserl e ao fim da 2ª Guerra
Mundial, Fink compreende sob a ideia de ‘abertura’ aquilo que chama
também de ‘sistemática’ da filosofia. Na esteira de Hegel, Fink considera
como sistema toda consideração de uma perspectiva projetiva sobre algo, ou
seja, a perspectiva de algo como se fosse uma totalidade, um sistema em
relação ao qual é possível atribuir às ‘partes’ um sentido que as considere em
relação a este todo. A antecipação de um sistema, ou seja, a situação projetiva
de um enquadramento que possa conferir significado a um determinado
objeto – por exemplo, o mundo, ou a constituição do mundo e da consciência
– é a saída ‘especulativa’ que Fink encontra para lidar com os objetos próprios
de sua ‘fenomenologia construtiva’ que, ao contrário dos objetos da
‘fenomenologia regressiva’, não são dados de antemão. Mas deixo esse
aspecto para uma discussão futura.

79
O DESPERTAR DO INFINITO NA FINITUDE: UMA ANÁLISE DO
JOGO NA OBRA “JOGO COMO SÍMBOLO DO MUNDO” DE
EUGEN FINK

Camila Ferreira de Oliveira

Introdução
O nosso intuito, aqui, é realizar uma análise do problema do jogo na obra
“Jogo Como Símbolo do Mundo”1, do filósofo alemão Eugen Fink2. Apesar
de sua significativa contribuição para o pensamento filosófico do século XX
e início do século XXI, a filosofia de Fink ainda permanece sendo pouco
estudada sob o ponto de vista de sua singularidade. O autor é comumente
abordado a partir da perspectiva de suas contribuições a filósofos como
Husserl e Heidegger, que, apesar de serem importantes interlocutores de Fink,
não significam todo o horizonte do seu fazer filosófico3.
Propomo-nos nesta análise a colocar a filosofia de Fink como
protagonista a partir do recorte temático do jogo. Tal tema, que já havia sido
trabalhado pelo autor em “Fenômenos Fundamentais da Existência Humana”
(2011)4, ganha contornos mais específicos em “Jogo como Símbolo do
Mundo”, texto que será a referência principal deste artigo. Para o
desenvolvimento da análise, usaremos a tradução inglesa desse texto,
realizada por Alexander Moore e Chistopher Turner, que, originalmente,
encontra-se em alemão.5

1 FINK, Eugen. Play as Symbol of the World. Tradução de: Alexander Moore e Chistopher
Turner. Bloomington (EUA): Indiana University Press, 2016. Todas as traduções desse
texto de Fink, salvo indicação contrária, são de minha própria autoria.
2 1905-1975 (Alemanha)
3 Uma breve exposição da vida de Fink é feita na introdução do livro Play as Symbol of The
World and Other Writings, escrita pelos tradutores Alexander Moore e Chistopher
Turner.
4 FINK, Eugen. Fenómenos Fundamentales de la Existencia Humana (extrato). Tradução
de Cristóbal Holzapfel. Em: Revista Observaciones Filosóficas, maio. 2011. Tradução
de: Grundphänomene des menschlichen Daseins.
5 O texto original é de 1960.

80
No primeiro capítulo de “Jogo como Símbolo do Mundo”, além de
justificar a possibilidade de se compreender o jogo a partir de uma perspectiva
filosófica, Fink expressa a intenção de sua pesquisa: “Entender a posição
humana no mundo sob a orientação de uma compreensão específica do
jogo.”6.
No segundo capítulo, o autor apresenta uma abordagem do jogo sob a
perspectiva da metafísica ocidental, principalmente a partir da influência da
teoria platônica, segundo a qual o “Jogo é explicado fundamentalmente como
reprodução e imitação, é determinado enquanto mimesis”.7 Esse conceito de
mimesis, para Fink, significa “o verdadeiro desencanto do jogo”, pois o
concebe apenas enquanto “mera reprodução da ‘realidade’”8.
Contrapondo-se à noção platônica, no terceiro capítulo, Fink
apresenta outro caminho interpretativo para o jogo a partir de sua dimensão
presente nos cultos ritualísticos. Segundo o autor, “[...] o jogo-do-culto
constitui o centro do mundo da vida primitiva, o ato fundamental da sua
autocompreensão e autointerpretação”.9
No quarto e último capítulo, Fink (2016) apresenta uma terceira
interpretação do jogo, que o compreende como uma relação que a existência
humana estabelece com o mundo, uma “relação-mundo”. Tal interpretação
construída por Fink concebe o “jogo humano de uma forma especialmente
distinta na qual a existência se relaciona com entendimento ao todo do qual
faz parte, e deixa que o todo ressoe através dela”.10 Tanto a crítica de Fink à
interpretação metafísica do jogo, por meio da filosofia platônica, quanto a
interpretação do jogo no mito, apresentada pelo autor através de um olhar à
vida primitiva e à sua dimensão cúltica-ritualística serão retomadas ao longo
deste artigo a fim de que se compreenda como Fink chega à interpretação do
jogo como símbolo do mundo. Esta interpretação é estruturada pelo autor a

6 FINK, 2016, p. 54.


7 Ibid., p. 107.
8 Ibid., p. 125.
9 Ibid., p. 160.
10 Ibid., p. 206

81
partir de três noções fundamentais, a saber: totalidade, medialidade e símbolo.
Tais noções serão aprofundadas ao longo de nosso texto cuja estrutura seguirá
em diálogo com o caminho argumentativo traçado por Fink em “Jogo como
Símbolo do Mundo”.

1. As interpretações do jogo na metafísica e no mito


1.1 A interpretação do jogo na metafísica
Fink interpreta que é na filosofia de Platão que se constrói sistematicamente
a base da metafísica ocidental, pois o pensamento platônico “opera por meio
da distinção entre a realidade arquetípica e a reprodução de imagens
primordiais, a fim de realizar separações ontológicas fundamentais”.11 O fato
é que, ao estabelecer as noções de mundo inteligível e mundo sensível, Platão
precisou explicar a relação entre ambos, e é exatamente esse ponto da teoria
platônica que interessa na interpretação do fenômeno do jogo para Fink; “a
noção de que cada coisa finita e transitória refere-se à ideia e é testemunha
dela, manifestando-se como uma reprodução imperfeita e imagens
primordiais”.12
Como algo finito e transitório pode se assemelhar a algo não-
transitório, à ideia? A resposta platônica aponta para as noções de “sombra”,
“reprodução” e “espelhamento”13. Segundo Fink (2016), Platão usa esses
fenômenos particulares, que pertencem ao domínio das coisas sensíveis,
como “modelos operativos de pensamento”, por meio dos quais busca
explicar essa complexa relação que se estabelece entre a realidade e a não-
realidade; entre o mundo inteligível e o mundo sensível.
Na perspectiva platônica, “o pintor e o poeta não produzem nada real;
eles criam apenas imagens [...] imagens-espelho da realidade ordinária das
coisas evidentes aos sentidos”.14 Portanto, o artista apenas reproduz aquilo
que já é uma reprodução de algo mais elevado; dito de outro modo, ele produz

11 Ibid., loc. cit.


12 FINK, 2016, p. 93.
13 Ibid., p. 94.
14 Ibid., p. 103.

82
imagens-espelho a partir do mundo sensível, que, por sua vez, é uma
reprodução imperfeita do mundo das ideias. Mas, questiona Fink, “é
realmente o caráter imitativo do jogo sua característica fundamental, a
substância de sua essência?”15
Segundo Fink, compreender o mundo-do-jogo e a “não-realidade” por
meio da qual ele opera como uma “reprodução residual” de uma realidade
mais válida, por assim dizer, é interpretar o fenômeno do jogo a partir de uma
perspectiva negativa. E se mudarmos essa maneira de interpretar a “não-
realidade”? E se pensarmos que, talvez, ela não seja menos, mas mais do que
a simples realidade das coisas? E se essa “aparência” que se instaura com o
fenômeno do jogo for algo além de mera semelhança?16 E se interpretarmos
isso como um símbolo? Mas, o que vem a ser um símbolo? Tomemos fôlego
para continuar esta jornada!

1.2 A interpretação do jogo no mito


Fink abre o terceiro capítulo de “Jogo como Símbolo do Mundo” (2016) com
o desejo de remover as “lentes do desencanto”, com as quais a metafísica
tradicional nos fez enxergar o jogo como mera reprodução da realidade e, para
além disso, estabelecer um “novo horizonte” a partir do qual poderia ser
possível interpretarmos o jogo sob a perspectiva do encantamento. Esse
“novo horizonte” diz respeito à dimensão cúltica da vida, predominantemente
presente no Período Arcaico, no qual, segundo Fink, “a ‘não-realidade’ do
mundo do jogo possuía um caráter ontológico elevado, acima das coisas
ordinárias do cotidiano”.17
Segundo Fink, “o culto é uma tentativa de restabelecer a primordial
luz do mundo para todos os indivíduos, coisas finitas”.18, é, portanto, um

15 Ibid., p. 108.
16 Ibid., p. 119, grifo do autor.
17 FINK, 2016, p. 206.
18 Ibid., p. 129.

83
desses momentos por meio dos quais “os seres finitos se tornam verdadeiros
símbolos e experienciam uma completude mundana primordial”.19
Sobre isso, Fink nos traz o exemplo do culto aos mortos, que, embora
se dê de formas variadas em diferentes culturas e períodos históricos, é
bastante simbólico na vida dos seres humanos em um âmbito geral, pois é um
momento no qual experienciamos o poder do todo do mundo, que, em seu
curso constante, dá-nos a vida e nos tira dela.
[...] quando nós enterramos os mortos, devolvemos
eles aos elementos, essa atividade também torna-se
um símbolo para nós: no caso do ser humano que
partiu, o qual nós devolvemos à terra, o retorno de
todas as coisas aparentes ao inominável e inefável
chão acolhedor pode se tornar claro e significante
para nós.20

Portanto, é por meio do culto que nós buscamos preservar e reter essa
profunda ligação com o mundo, que não se faz latente em nós em momentos
cotidianos. Nesse sentido, é por isso que Fink encontra, nos cultos arcaicos e
em suas narrativas mitológicas, um caráter ontológico mais elevado da não-
realidade instaurada pelo jogo, pois era por meio dela que os seres humanos
primitivos se relacionavam com o poder do mundo.
O ser humano arcaico ainda não tinha à sua disposição a infinidade de
conceitos e esquemas científicos rigorosos para interpretar o desconhecido;
ele fazia uso das narrativas mitológicas para explicar o inexplicável;
acreditava em demônios para justificar as forças superiores que agiam sobre
sua vida; “[...] eles contemplavam através das imagens aquilo que, genuína e
essencialmente, era a sua tarefa na terra, a sua fé e o seu propósito”.21
Essas imagens, segundo Fink, não eram reproduções de algo que já
existia no mundo do ser humano primitivo, elas tinham a função de expressar
um sentido. Para o ser humano mítico, “[...] a contemplação da imagem é um
ato criativo visionário de entendimento do sentido da vida. E esse ato

19 Ibid., loc. cit.


20 Ibid., p. 128-129.
21 FINK, 2016, p. 137.

84
produtivo de contemplação é encenado originalmente em uma comunicação
coletiva”.22 Neste momento, começamos a compreender porque é possível
construirmos, como mostra Fink, uma interpretação do jogo que se contrapõe
à platônica: o jogo na vida do ser humano arcaico, que se dá por meio da
encenação imagética dos mitos nos cultos, não é uma cópia da realidade, mas
a tentativa de se voltar a algo mais primordial da relação do humano com o
mundo.
No culto, “o ‘não-real’ se torna o lugar do hiper-real”.23 Segundo o
autor, é uma tarefa importante nos questionarmos a respeito da relação entre
o culto e o jogo,

[...] porque, no culto, talvez, a forma mais primordial


do jogo humano apareça, e porque o aspecto da ‘não-
realidade’ que pertence a cada tipo de jogo significa
aqui (no culto) uma intensificação e elevação para
além das coisas habitualmente reais.24

O ser humano primitivo associava a manifestação do poder divino aos


poderes demoníacos e era por meio do culto, por meio da narração dos mitos,
que tais poderes se tornavam visíveis. Os demônios representam, para o ser
humano primitivo, um poder superior, o qual interfere no curso da vida e
contra o qual ele não consegue lutar.

Os demônios estão sempre mascarados, eles nunca


aparecem para os humanos como realmente são na
sua verdadeira forma; eles têm um poder mágico;
estão em constante transformação, transição,
metamorfose. Enquanto isso, os seres humanos são
sempre a mesma coisa.25

22 Ibid., loc. cit.


23 Ibid., p. 162.
24 Ibid., p. 143.
25 FINK, 2016, p. 141-142.

85
Os seres humanos são sempre a mesma coisa. De fato, não conseguimos nos
transformar em outros, não temos poderes mágicos que nos possibilitam
mudar a nossa forma única forjada pela natureza. Somos sempre os mesmos.
Mas, o que nos quer dizer Téspis26, quando, no meio de um culto ao deus
Dionísio, destaca-se do coro, veste uma máscara e grita em alto e bom som:
“Eu sou Dionísio!”? Téspis, assim como tantos outros seres humanos ao
longo da história, parece querer nos mostrar que, apesar da nossa condição
humana, que nos impõe sermos sempre os mesmos, há um momento em que
podemos ser outros.
Sendo assim, há um momento em que podemos ser exatamente aquilo
que quisermos ser, e esse momento só é possível porque nós jogamos!
Segundo Fink, “[...] o jogo se torna a única possibilidade de o ser humano
contrariar o poder mágico dos demônios ou desviar a sua maldade do entorno.
A máscara do jogador torna-se uma força mágica”.27
A máscara, então, é uma característica essencial do jogo do culto, que,
em seu nível mais fundamental, é definido por Fink como o “encantamento
das máscaras”28. O jogo humano, que se desenvolve primordialmente na
esfera do culto, é experienciado a partir do momento em que o ser humano se
vê capaz de confrontar os demônios, pois encontra na máscara a possibilidade
de ter uma aparência ambígua e polissêmica. Fink não quer dizer, no entanto,
que a máscara seja capaz de transformar o ser humano em um demônio no
âmbito da realidade. O que há de peculiar e fantástico é que, ao se mascarar
para confrontar os demônios ou se colocar em relação aos deuses, o ser
humano abre o espaço da “não-realidade”; inaugura, por assim dizer, o espaço
do jogo.

26 Téspis foi um dramaturgo grego do século IV a.C. e é considerado o primeiro ator do


Ocidente por promover uma inovação na estrutura de uma Grande Dionisíaca, que eram
cultos oferecidos ao deus Dionísio. Em um desses cultos, que se davam por meio da
estrutura do coro, Téspis se colocou à parte desse coro como solista, inaugurando o papel
que, mais tarde, ficaria conhecido como ator. Para uma análise detalhada da história do
teatro no Ocidente e também no Oriente, ver História Mundial do Teatro, de Margot
Berthold.
27 FINK, 2016, p. 133.
28 Ibid., p. 151.

86
O vestir de uma máscara é uma forma elementar de
encantamento. O objetivo básico da máscara humana
não é enganar os outros humanos para que eles
acreditem em algo, para parecer ser algo para os
outros que de fato não se é. Aquele que veste uma
máscara quer parecer diverso para si mesmo; quer,
com a máscara, entrar no feitiço mágico do
demoníaco [...] a máscara não supõe enganar; supõe
encantar.29

Com as encenações, os espetáculos e as festas ofertadas aos deuses, o jogo do


culto se torna uma “epifania do poder divino e um paradigma do sofrimento
humano”30, pois evidencia a completa exposição do ser humano, enquanto
ente finito, à esfera divina. Dito de outro modo, o jogo do culto presentifica o
jogo dos deuses.
Contudo, o que Fink entende por “jogo dos deuses” é bastante distinto
do jogo do culto, ou seja, do jogo humano. Embora os deuses joguem com os
seres humanos como se estes fossem os seus brinquedos, esse jogo não possui
um caráter criativo como o jogo humano. “O jogo dos deuses não tem o
caráter de representação imaginária. Ele não precisa abrir um espaço para a
manifestação simbólica da onipotência, ou seja, um ‘mundo não-real do
jogo’”.31 Enquanto o jogo dos deuses expressa apenas os caprichos aos quais
os mortais são submetidos, o jogo do culto representa, para o ser humano
primitivo, uma profunda necessidade de se relacionar com o mundo em seu
aspecto mais primordial. Como já expusemos anteriormente, essa tentativa de
restabelecer uma ligação mais profunda com o mundo no jogo do culto é
ocultada pela presença dos deuses.
Por isso, Fink defende a ideia de que “a verdade do jogo dos deuses é
o jogo do mundo”.32 E “o mundo em si mesmo não é sagrado como Deus e

29 Ibid., loc. cit.


30 Ibid., p. 160.
31 FINK, 2016, p. 176.
32 Ibid., p. 169.

87
nem profano como os sacrilégios do ser humano”33. E, sendo o jogo uma
forma extasiada do ser humano de se colocar “para além de si e interpretar o
papel do mundo de uma maneira repleta de significado”34, ou seja, sendo o
jogo uma abertura para o mundo, faz sentido continuarmos nos questionando
sobre ele.

2. O jogo como símbolo do mundo


No final do segundo capítulo de “Jogo Como Símbolo do Mundo”, Fink nos
dá uma definição de símbolo: “Symbolon vem de symballein, ‘coincidente’, e
significa a coincidência da parte com aquilo que a completa.”35. Para o autor,
somos seres finitos e intramundanos; seres que dizem respeito a um tempo e
a um espaço específicos; seres que possuem uma duração limitada; seres que
aparecem e desaparecem no mundo. E o mundo não é apenas um lugar, mas
o espaço de todos os espaços, pois é no todo-do-mundo que esse “aparecer”
e “desaparecer” de todas as coisas finitas acontece.
Conforme coloca Fink, “O todo-do-mundo é o primeiro e o último
todo, que está à frente de todas as coisas individuais finitas e encontra-se
sobre e além de todas elas.”36 Portanto, somos seres fragmentados que dizem
respeito à totalidade do mundo e nos relacionamos profundamente com essa
totalidade da qual fazemos parte, mesmo enquanto seres finitos. Ele afirma:
“Ao se tornar profundamente-mundo, uma coisa se torna um símbolo; o
symballein do ser e do universo toma lugar. E isso é o mais primordial
encantamento: o inominável poder da totalidade aparece entre as coisas
frágeis”.37 É importante termos essa compreensão de Fink sobre o símbolo
em nosso horizonte, a fim de que se assimile como o autor articula a sua
interpretação sobre o jogo enquanto símbolo do mundo, que será exposta
neste momento.

33 Ibid., p. 187.
34 Ibid., p. 46.
35 FINK, 2016, p. 120.
36 Ibid., p. 120.
37 Ibid., p. 121.

88
Segundo Fink, “O jogo humano é fundamentalmente um processo
intramundano”38 e isso não nos parece uma afirmação complexa, pois
sabemos que o jogo humano acontece no mundo por ser uma atividade de um
ser intramundano. No entanto, há algo que distingue o jogo das outras
atividades cotidianas do ser humano, que é justamente o caráter de abertura
para a totalidade do mundo.
O autor compreende o ser humano enquanto um ente que possui
abertura para o mundo e que tal abertura se dá de modos e níveis distintos em
cada atividade humana. A abertura do ser humano para o mundo possui,
portanto, um caráter múltiplo e social, pois se dá de diversas formas e por
meio das relações que construímos com os outros.
Mas, por que devemos tomar o caráter de abertura para o mundo, que
se dá no jogo, como um aspecto que o distingue das outras atividades
humanas, se essa abertura também se dá em outras esferas da vida? O que
Fink mostra é que, no jogo, essa característica essencial do ser humano, ou
seja, “estar aberto ao mundo” acontece de uma forma completamente distinta
das outras atividades, pois permite que o mundo em sua totalidade e em sua
complexidade “brilhe” no ser humano, permite a manifestação do infinito na
finitude.

No jogo, o ser humano transcende a si mesmo, supera


as determinações pelas quais ele se cercou e por meio
das quais ele se compreendeu enquanto real, torna as
irrevogáveis decisões revogáveis por conta da sua
liberdade, liberta-se de si mesmo e mergulha, de cada
fixa situação, para as possibilidades que singram no
nível mais primordial de sua vida – ele sempre pode
começar de novo e se livrar da carga da história de
sua vida.39

Fink reconhece que essa liberdade experimentada pelo ser humano no


domínio do jogo é limitada, pois acontece no âmbito da não-realidade e,

38 Ibid., p. 201.
39 FINK, 2016, p. 206-207.

89
portanto, não nos “livra” daquilo que somos e não nos isenta das
responsabilidades que temos. No entanto, é na esfera da não-realidade que o
ser humano se coloca em relação ao mundo de uma forma particularmente
especial; é na esfera da não-realidade do mundo do jogo que o mundo em sua
totalidade se manifesta, aparece em um ser finito.
O que leva Fink a pensar no jogo humano para além dos aspectos da
sua mundaneidade e compreendê-lo enquanto símbolo do mundo? Responder
essa questão não é uma tarefa fácil, pois nessa pergunta está contido todo o
caminho traçado por Fink em sua obra: a tentativa de transpor os limites das
compreensões do jogo apenas enquanto uma atividade humana de
divertimento, como uma mera reprodução imperfeita da realidade e como
meio de invocar os demônios e se colocar em relação aos deuses.
O jogo humano não é mundano no mesmo sentido que o mundo, pois
nenhuma coisa intramundana pode equivaler à totalidade do mundo. Mas
como seria possível, então, compreendermos o jogo como uma metáfora
cósmica, se não há uma relação de equivalência entre “mundo” e “coisa”?

O todo do mundo, como o todo que está acima de


todas as finitudes, não pode se voltar a uma coisa
intramundana, nem aparecer nela como uma
miniatura. Mas o todo predominante pode “brilhar de
volta” no ser intramundano [...] O mundo brilha de
volta no humano como em um ser que é distinguido
por um entendimento de abertura para o mundo.40

Apesar de “mundo” e “coisa” serem incomensuráveis, sabemos que o mundo


envolve todas as coisas, não como “[...] uma estrutura externa em volta das
coisas, nem como um depósito no qual as coisas estão”41, o mundo não é
separado do intramundano, o mundo é a totalidade abrangente que envolve
todas as coisas que existem e que pertencem ao mundo. “A
intramundaneidade é um aspecto essencial do mundo.”42

40 FINK, 2016, p. 211.


41 Ibid., p. 196.
42 Ibid., loc. cit.

90
Por isso, é possível que o todo-do-mundo brilhe no ser humano e,
principalmente, no jogo, que constitui uma forma peculiar de uma profunda
abertura humana para a totalidade, para o mundo. Lembremos, pois, que, “ao
se tornar profundamente-mundo, uma coisa se torna um símbolo”43 e, assim,
o jogo pode ser compreendido como símbolo do mundo.
No jogo, o ser humano entrelaça a realidade com a não-realidade e
experiência uma liberdade que se constitui como uma abertura para o
inesperado, para as diversas possibilidades que irrompem no mundo do jogo.
Essa peculiar relação tecida entre as esferas do real e do não-real, que
caracteriza o jogo, não se faz presente em outros âmbitos da vida humana.
Nós costumamos “dividir o que é real da mera aparência, o que é concreto do
que é meramente imaginado, o que é certo e seguro do que é questionável e
meramente suposto”.44 E é totalmente compreensível e necessário que o
façamos para garantirmos a nossa sobrevivência no mundo.
No jogo, no entanto, tais distinções “caem por terra”, e isso permite
que o ser humano se coloque em relação a si, aos outros e ao mundo de uma
forma completamente distinta, em uma espécie de êxtase profundo. Esse
êxtase do ser humano em direção ao mundo – que acontece no jogo – e o
brilho do todo do mundo – o qual se volta ao símbolo intramundano – dizem
respeito ao mesmo movimento e, por isso, segundo Fink, “o jogo humano não
pode ser tratado em uma perspectiva antropológica fechada, não deve ser
meramente descrito de uma forma ‘comportamental’”.45
No decorrer de “Jogo como Símbolo do Mundo”, Fink reforça
diversas vezes a noção de mundo como o todo circundante que envolve todas
as coisas finitas e permite que elas existam em suas individualidades na
multiplicidade. O mundo ou “a fábrica da realidade persiste enquanto as
coisas que são temporariamente reais vêm e vão, emergem e desaparecem,
florescem e murcham”.46 É no mundo que cada coisa intramundana existe de

43 Ibid., p. 121.
44 FINK, 2016, p. 208.
45 Ibid., loc. cit.
46 Ibid., p. 211.

91
acordo com os contornos que a delimitam em sua individualidade: suas
características, seu espaço, sua duração e assim por diante. Nós, humanos,
fazemos do mundo a nossa morada, o chão no qual nascemos, crescemos,
trabalhamos, lutamos, amamos e morremos. No chão, “cada ser humano é um
projeto vital; cada um acrescenta um tom único à imemorável e eterna
melodia da existência”.47
Assim sendo, dizer que cada um de nós é um “projeto vital” significa
dizer que nós planejamos a nossa vida, estabelecemos objetivos e trilhamos o
nosso caminho em relação a eles. Nós estabelecemos diversos “fins”, em
direção aos quais caminhamos em nosso viver para alcançarmos um “fim
maior”: a felicidade! Mas, e o mundo? Teria ele também um objetivo? Teria
o mundo um fim em direção ao qual ele se move? Para Fink, o mundo é
infundado e “em si mesmo não possui objetivos e também não tem valor e
permanece fora de qualquer análise moral, está ‘além do bem e do mal’”.48

O mundo é [...] sem fundamento e sem finalidade,


sem sentido e sem objetivo, sem valor e sem plano –
mas contém em si as bases que fundamentam os seres
intramundanos. Abrange, em sua universalidade sem
rumo, todas as trajetórias nas quais se batalha pela
conquista de objetivos. Abarca até mesmo, sem juízo
de valor, os seres diversamente ordenados, conforme
os níveis de força ontológica.49

Mais uma vez, o autor esclarece a distinção que deve ser feita entre o mundo
e as coisas e, nesse sentido, ressalta que “essa falta de fundamento do mundo
não pode ser pensada nos moldes de uma coisa sem valor em um sentido
intramundano”.50 Lembremos: o todo-do-mundo não possui equivalência
com as coisas intramundanas, mas brilha em algumas delas em determinados
contextos. “A predominância mundana do onipotente acontece sem

47 FINK, 2016, p. 85.


48 Ibid., p. 212.
49 Ibid., loc. cit.
50 Ibid., loc. cit.

92
fundamento e sem objetivo, sem rumo e sem sentido, sem valor e sem plano.
Essas são as características do mundo que brilham de volta no jogo
humano.”51
Portanto, nós, que fazemos da nossa vida um projeto (alguns mais e
outros menos); que vivemos o nosso cotidiano distinguindo o real do
imaginário; que agimos dentro de um campo previamente determinado de
possibilidades; que nos habituamos a nos compreendermos a partir de uma
unidade, de uma sólida armadura a qual chamamos “eu”, somos capazes de
abrir um espaço em que os limites que demarcam tais fronteiras desaparecem
e dão lugar a um êxtase profundo, no qual o brilho do mundo se faz presente.

O jogo humano é como um símbolo do mundo. As


características de ser infundado, sem sentido e sem
rumo, que emergem no entendimento humano,
desembarcam na leveza onírica e despreocupada que
pertence à encenação do jogo. E é porque nós estamos
abertos para o mundo e porque, nessa abertura, a
existência humana caminha de mãos dadas com um
conhecimento acerca da falta de fundamento do todo
do mundo – é por conta disso que nós jogamos. O ser
humano é essencialmente jogador porque ele é
“mundano”.52

Considerações finais
Constatamos, ao longo deste trabalho, como Fink buscou esclarecer
filosoficamente o problema do jogo para além de uma abordagem
antropológica, notamos a importância da discussão acerca da relação humana
com o mundo no desenvolvimento desta pesquisa. Nessa caminhada, Fink se
referiu diversas vezes a uma ideia que, segundo ele, “pertence aos mitos
antigos e também ao início do pensamento filosófico, a saber: que o mundo
em si mesmo é um tipo de jogo”.53 Nas últimas páginas de “Jogo como
Símbolo do Mundo”, o autor retoma essa ideia questionando se seria possível

51 Ibid., loc. cit.


52 FINK, 2016, p. 213.
53 Ibid., loc. cit.

93
pensarmos um “jogo do mundo” com base na investigação feita ao longo do
livro: “Nós podemos pensar a predominância do onipotente por meio da
metáfora de um jogo jogado por um jogador?”54
Se nos lembrarmos da distinção entre “mundo” e “coisa
intramundana”, exposta diversas vezes por Fink, a qual apresentamos em
diferentes momentos neste trabalho, concluiremos, em concordância com o
autor, que o mundo não pode ser pensado como um jogador à luz da estrutura
do jogo humano.

Apenas de um modo distorcido e como uma


“comparação” fragmentada nós podemos falar de um
jogo do mundo. O jogo do mundo não é o jogo de
alguém que joga, porque somente no mundo há
pessoas, seres humanos e deuses. E o mundo do jogo
do jogo do mundo não é uma “aparência”, mas um vir
à aparência.55

Esse “vir à aparência” é o processo de surgimento de todos os seres, de todas


as coisas e de todos os eventos em uma esfera de presença comum. De outro
modo, é o processo de individuação, que permite que cada ser exista em sua
individualidade na presença de outros seres, portanto, na multiplicidade. Cada
ser tem o seu momento de vir à luz e de desaparecer na escuridão, e a
constância desse movimento é o curso do mundo. Por isso, propõe Fink: “O
jogo do mundo, se isso puder ser pensado, deve ser concebido como a relação
do mundo da noite com o mundo do dia.”56
Ao estabelecer um contexto que opera através de suas próprias regras
no qual o ser humano explora a sua capacidade de constituir sentido, o jogo é
ele mesmo “sentido de totalidade”, pois indica o modo como os seres
humanos se comportam em relação ao mundo e também o modo como opera
o próprio jogo do mundo. O contexto estabelecido pelo jogo, ou seja, o mundo
do jogo, funda uma realidade intermediária entre o real e o não-real pois

54 Ibid., p. 213-214.
55 Ibid., p. 215, grifo do autor.
56 FINK, 2016, p. 215.

94
promove a abertura do irreal na realidade, estabelece, portanto, uma
“realidade medial”. O jogo é símbolo do mundo pois a partir de sua própria
dinâmica permite que o ser humano experiencie a dinâmica do todo do
mundo, ou seja, por meio da experiência do jogo mundano o ser humano se
reconhece como parte do jogo do mundo. Neste sentido, Fink compreende o
jogo como uma abertura extasiante para o mundo, como manifestação do
infinito do mundo no ser humano finito. O ser humano joga, portanto, quando
por meio da liberdade e da desmesura da irrealidade do mundo do jogo,
experimenta, mesmo que por um breve instante, o “poder do todo do mundo”.
O autor chega ao “final” de sua abordagem filosófica com uma
questão em aberto, a saber: a possibilidade de pensarmos o curso do mundo
como um jogo sem jogador e em que medida pode-se dizer que o ser humano
vive em conformidade com o jogo do mundo. Segundo ele, “fazer o jogo do
mundo um tema do pensamento especulativo é uma tarefa que ainda precisa
ser concluída [...]”57, e isso só será completamente possível quando nos
livrarmos da “tradição metafísica que oculta o jogo e é hostil a esse tema”.58
Fink conclui “Jogo como Símbolo do Mundo” permitindo que as últimas
palavras sejam ditas – ou talvez cantadas – por Zaratustra, e nós também o
faremos, pois qualquer palavra escrita após este canto soará irrelevante.

Se alguma vez descobri céus tranqüilos sobre mim


voando com as minhas próprias asas no meu próprio
céu; se nadei, brincando, em profundos lagos de luz;
se a alada sabedoria da minha liberdade me veio
dizer: "Olha! Nem para cima, nem para baixo!
Lança−te à roda, para diante, para trás, leve como és!
Canta! Não fales mais!59

Referências
FINK, Eugen. Play as Symbol of the World. Tradução de: Alexander Moore
e Chistopher Turner. Bloomington (EUA): Indiana University Press, 2016.

57 Ibid., p. 214.
58 Ibid., loc. cit.
59 NIETZSCHE, Friedrich, 1954, p. 343 apud FINK, Eugen, 2016, p. 215.

95
FINK, Eugen. Fenómenos Fundamentales de la Existencia Humana (extrato).
Tradução de Cristóbal Holzapfel. Em: Revista Observaciones Filosóficas,
maio. 2011. Tradução de: Grundphänomene des menschlichen Daseins.

96
CERIMÔNIA OBLÍQUA: NOSTALGIA

Cláudio Luiz Garcia

A proposta consiste em uma projeção de sete minutos do filme Nostalgia de


Andrei Tarlovski, escolhido porque nos ofereceu elementos visuais e textuais
para uma conversa sobre fenomenologia, na Cerimônia Oblíqua. Diante de
um problema insolúvel, o enfretamento acontecerá no caminho oblíquo, é no
atalho que o mistério aparece. Assim, a Cerimônia não visa a demonstração,
nem solução, mas a aproximar as dúvidas que temos relativo ao papel da arte
na universidade. O trecho do filme, trata-se da cena em que a protagonista
entra numa capela onde Piero Della Francesca (1416 - 1402) pintou o afresco
Madonna del Parto (1455). No diálogo entre ela e o padre percebe-se uma luta
entre o ceticismo e a fé, entre o desejo e a negação, entre a vida mundana e a
religiosa, entre a melancolia e a simplicidade, entre a arte e a religião. A seguir
resumimos alguns diálogos.

"Veio rezar para ter um bebê também? Ou para não tê-lo?" / "Só estou
olhando". / "Se houver algum estranho só olhando, a súplica não acontecerá."
/ "O que deve acontecer?" / "O que quiser, o que precisar muito." / "Mas tem
que ficar de joelhos."
Hesitada diante da ordem do padre, a personagem tenta se ajoelhar,
mas não consegue. Nesse momento, entra um corso com uma Santa diante da
qual, ao ser depositada no chão, uma mulher se ajoelha.
O diálogo prossegue: "Não posso. Elas fazem desse jeito. Elas estão
acostumadas". / "Elas têm fé." / "Devem ter".
A personagem aproxima-se do padre: "Posso perguntar uma coisa?"
"Segundo você, por que só as mulheres rezam tanto?" / "Pergunta isso para
mim?"/ "Você vê muitas mulheres aqui, deveria saber o porquê." / "Sou
somente um sacristão." / "Mas por que as mulheres são mais devotas que os
homens?" / "Você deveria saber mais do que eu."/ "Porque sou mulher? Mas

97
isto eu nunca entendi."/ "Sou um homem simples, mas penso que a mulher
serve para ter filhos, criá-los com paciência e sacrifício."/ "E não serve mais
para nada?"/ "Eu não sei."/ Entendi, obrigada. Foi de grande ajuda." /
"Perguntou-me o que penso. Você quer ser feliz, mas existem coisas mais
importantes. Espere!"
O foco da câmera muda para as mulheres rezando diante da Madonna,
tanto da fantasia sobre o andor quanto do afresco de Piero Della Francesca.
Finda a reza, a mulher de fé que deseja um filho, abre o manto e sai de dentro
da santa vários pássaros. O ambiente é iluminado por uma claraboia e por
velas.
Assim, a proposta consta de trazer alguns elementos do trecho do
filme para a sala, para a realidade onde a conversa sobre fenomenologia irá
acontecer de um modo oblíquo. Amém.

Uma cena em si
Cansado de ver o que vejo, de conceitos mal compreendidos e de reuniões
onde escuto vozes alheias a mim, fui ao evento Fenomenologia em Debate
para buscar interlocutores.
Mexi no ambiente, afastei cadeiras, reloquei as pessoas, fiz com que
eles olhassem para trás porque até aquele instante, olhavam para a frente onde
a mesa dos palestrantes estava posta. Fiz com que assistissem, com velas
acesas nas mãos, uma projeção de quinze minutos do filme Nostalgia de
Andrei Tarkovski. Depois falei de improviso pensado. Quando comecei a
falar, não sabia quando e onde terminaria. Mas conforme eu olhava para o
público sentado como se estivesse numa missa de uma igreja barroca, fui
apenas descascando a cebola. Eu ia me despindo, fenomenologicamente, de
cada capa protetora para aquela plateia de atores como se ela fosse uma fonte
profícua do meu discurso. Pretendia ficar calado. Falar muito pouco. No
entanto, achei que devia me expor do mesmo modo que eu os expus naquela
cena religiosa e laica. Optei, assim, pela cumplicidade.
Sem medo de julgamentos, comecei por expor as minhas dúvidas e as

98
minhas impressões intelectuais de professor, artista e pesquisador. Entre mim
e o público havia um limite sutil.
Antes de começar o evento, tinha esticado um tecido transparente em
um dos quatro cantos da sala. Nesse canto, em uma das paredes, havia um
ventilador fixado no alto. Liguei um outro no chão fazendo com que dois
focos de "ventos" mexessem a tela transparente. No escuro, eu via o filme se
dividindo em duas paredes. O filme foi visto em três planos, a saber, o
primeiro era o da tela transparente e os outros dois cada qual nas paredes que
formavam o canto. Estava ali criado um ambiente de ficção. O livro de Jorge
Luis Borges, Ficções, apareceu imediatamente em minha cabeça. Lembrei do
conto O Jardim de Caminhos que se bifurcam.
"... sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A
releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez
que um home se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina
as outras;"(...) eu optei "por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos
tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do
romance. Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua
porta; Fang decide matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis:
Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-
se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts'ui Pen, todos os desfechos
ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os
caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa,
mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu
amigo. Se o senhor se resinar à minha pronúncia incurável, leremos algumas
páginas." (1976, p. 79-80)
No instante em que a projeção terminou, impedi que as luzes fossem
acesas e comecei a falar no escuro iluminado apenas pela luz bruxuleante.
Logo, me lembrei de uma missa que assisti, nos anos noventa, no mosteiro de
São Bento, no Rio de Janeiro. Lá eu estive com a consciência alterada por
experiências múltiplas e participei da missa até o momento em que as luzes
foram acesas. Desse modo, houve na missa uma quebra de envolvimento.

99
Essa ruptura, eu não quis repetir na noite do evento Fenomenologia em
Debate. Impedi que as luzes fossem acesas por não estar de consciência
alterada. No dia 17 de maio de 2018, no CCH-UEL, eu estava lúcido e
consciente do que falava. Apenas eu não imaginava que iria falar o que falei.
Depois, como sempre, ficou a sensação de que falei mais do que precisava,
no entanto, achei melhor falar e ser sincero do que usar de técnicas de
apresentações acadêmicas. Por dois motivos, ou mais: primeiro porque eu não
domino tais técnicas, depois porque admiro mais a sinceridade, pelo menos
em algum ambiente entre profissionais amigos, depois porque a técnica, no
sentido de que é um meio para se chegar um determinado fim, parece-me por
demais científica.
Fico sempre na dúvida, como se estivesse num labirinto de caminhos
que se bifurcam. Agora me lembrei de um outro trecho do conto acima citado:
Uma lâmpada aclarava a plataforma, mas os rostos dos meninos
ficavam na zona da sombra. Um me perguntou: O senhor vai à casa do Dr.
Stephen Albert? Sem aguardar resposta, outro disse: A casa fica longe daqui,
mas o senhor não perderá se tomar esse caminho à esquerda e se em cada
encruzilhada do caminho dobrar à esquerda e se em cada encruzilhada do
caminho dobrar à esquerda. Atirei-lhe uma moeda ( a última ), desci uns
degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era
de terra elementar, confundiam-se no alto os ramos, a lua baixa e circular
parecia acompanhar-me." (1973, p. 75 )
E segui, pelo meu lado esquerdo onde estavam os professores com os
quais eu havia mantido relações estreitas de pesquisa e leitura de textos de
Heidegger, Husserl e Fink. Do meu lado direito, os professores da Geografia
estavam em busca de metodologias novas para levar a fenomenologia para as
suas pesquisas. Apoiei-me pelo lado esquerdo da sala e segui com minha fala.
Ousei, porque estava seguro pelo lado esquerdo. "O conselho de
sempre dobrar à esquerda lembrou-me que tal era o procedimento comum
para descobrir o pátio central de certos labirintos." Percebi logo que havia
montado um labirinto dentro do qual eu estava, sem saber se chegaria ao pátio.

100
Outro motivo que dava segurança era que, além de Jorge Luis Borges,
o cineasta Andrei Tarkovski também me dava suporte. Naquele instante eu
era um ser portátil a transportar dois grandes artistas, no sentido mais amplo
da palavra. No seu diário, Tarkovski escreveu:
"Hoje, tive um pensamento lúcido: na verdade, a mim, agora, não
importa mais nada: agora, em toda parte, é a mesma coisa - tanto aqui como
em Moscou. Aqui, por causa de Nostalgia, lá, porque não usei a liberdade,
possibilidade de mudar o destino. E por ter sido assim, devo empreender um
passo decisivo: viver de uma nova maneira." (2012, p. 518)
Na verdade, eu não estava seguro até o instante em que a cena
começou. Assisti as apresentações anteriores e percebi que o ambiente não
era fenomenológico, mas sobre Fenomenologia. E que a minha proposta
poderia ser um engodo. Mas não foi. Não quero dizer que estou seguro da
bem-sucedida apresentação Cerimônia Oblíqua: Nostalgia, mas pronto e mais
seguro para uma outra.
Encerro com Tarkovski: "E agora eu escrevo isso, e penso que tudo o
que foi realizado o foi corretamente. Não se pode voltar atrás, mesmo que
seja mais fácil. E agora é muito difícil, e temos que suportar." ( 2012, p. 519)

Referências
BORGES, Jorge Luis, Ficções. Porto Alegre: Globo, 1976.
TARKOVSKI, Andrei, Diários: 1970-1986. São Paulo: É Realizações, 2012.
______ , Nostalgia, produção ítalo soviética, 1983.

101
EXERCITIUM, EXPERIMENTAÇÃO, PERFORMANCE.
A TRANSFORMAÇÃO FENOMENOLÓGICA DO PENSAMENTO
EM MARTIN HEIDEGGER

Giovanni Jan Giubilato

Introdução
Com as considerações que se seguem quero apresentar uma parte das
pesquisas atuais que venho desenvolvendo junto ao Departamento de
Filosofia da UEL durante o estágio pós-doutoral, e que fazem parte de um
projeto mais amplo, dedicado a uma interpretação da fenomenologia (pelo
menos da assim chamada “fenomenologia friburguense”) como “filosofia da
liberdade” [Freiheitsphilosophie]. Em geral, a seguinte apresentação da
“dimensão performativa da filosofia de Heidegger” a partir de uma elucidação
da sua peculiar reinterpretação e re-apropriação de alguns conceitos (ou
ferramentas teóricas) próprios da fenomenologia de Husserl, insere-se no
contexto mais amplo da confrontação com certa crítica a Heidegger que o
considera como o ponto mais evidente de um ideal antidiscursivo, contrário à
argumentação racional e à sua determinação ética, e defensor de um
intuicionismo esotérico e extralinguístico.1 Apesar do incontestável caráter
anticonceitual, antiteoreticista, monológico, exclusivo e até mesmo
autoritário do seu filosofar, a inclusão inapelável de Heidegger no processo
contemporâneo da “estetização da teoria” denunciado por Habermas, tem a
carência, a meu ver, de não deixar nenhum espaço para uma reflexão positiva
acerca desta nova “estética” e sobre esta tão incômoda mudança de
perspectiva. O propósito, então, é de ao menos indicar uma direção a respeito
da qual se pode pensar positivamente sobre a estreita relação entre estética e
teoria na obra de Heidegger, e sobretudo de sugerir uma possibilidade
interpretativa que considere, séria e filosoficamente, a sua práxis filosófica

1 Cf. os textos de Habermas “Wittgenstein como contemporâneo” e “Martin Heidegger –


Obra e visão do mundo”.

102
experimental, constantemente dirigida à renovação e à transformação das
formas do discurso filosófico – incluindo todos aqueles âmbitos
extrafilosóficos, anticlássicos e experimentais, que se confrontam com as
práticas artísticas como, por exemplo, a performance e a instalação.
Resumindo, a minha tentativa é a de abrir um espaço hermenêutico
para pensar as coordenadas gerais da “mudança de registro” filosófico que
acontece no pensamento de Heidegger. Ao mesmo tempo, tentarei
interromper as rotinas clássicas da hermenêutica heideggeriana, levando em
conta os numerosos elementos do seu corpus que demonstram claramente
uma atenção muito particular (e seguramente consciente) à dimensão
performativa do discurso filosófico, a vontade de renová-lo e de repensá-lo
na época da dominação planetária da técnica, através de uma autêntica
experimentação com as formas e com o medium do dizer filosófico.
1. Num primeiro momento, inicio expondo as origens
fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia tradicional e à
concepção da filosofia enquanto θεωρία; para fazer isso, será necessário
abordar o conceito de Vollzugssinn, ou “sentido da execução”.
2. Em seguida, vou apelar à figura hermenêutica de uma “virada antes
da virada” (Gadamer) no pensamento de Heidegger para mostrar como ele
denuncia, bem antes do famoso “esquecimento do ser”, o esquecimento da
questão acerca do “como” da filosofia, ou seja: acerca do seu “sentido de
realização e execução” originário. A ideia aqui é de que a problematização
fenomenológica do “sentido da execução” da filosofia e a consequente
denúncia heideggeriana do esquecimento da pergunta pelo “como” da
filosofia, mumificada e canonizada nas formas – mortas, segundo Heidegger
– da tradição ocidental, representa uma das linhas de continuidades mais
persistentes e fortes, que perpassa as diferentes fases e experimentações do
pensamento heideggeriano.
3. De fato, a crítica à filosofia tradicional e a filosofia enquanto
“theorein” – que aparece com toda força já nos primeiros anos 20 – é a
primeira fonte daquela tentativa de Heidegger de realizar, a partir dos anos

103
30, a preparação de um “outro pensar” que não seja mais filosofia e que,
embora seja “muito mais simples que ela na sua própria coisa”, revela-se
“muito mais difícil em [sua] execução”.
4. Posteriormente, vou aprofundar nos vários elementos constitutivos
que caracterizam a experimentação heideggeriana relativa a este “outro
pensar”, mostrando como o pensamento depois do fim da filosofia vem a
coincidir, enfim, com o seu exercício, com a sua prática executiva e com a
sua encenação performativa.

1. As origens fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia


tradicional e à concepção da filosofia enquanto θεωρία.
Notoriamente, a fenomenologia trata (como diz o próprio nome) dos
fenômenos, isto é: encarrega-se de desenvolver uma ciência dos fenômenos,
daquilo que aparece e que se mostra, direta e imediatamente, à nossa
consciência. Ela nomeia as aparências, ou os fenômenos, portanto, como “as
coisas mesmas” para indicar provocativamente que, se realmente queremos
ter um saber filosófico rigorosamente fundado e científico, temos que buscar
esta “cientificidade” não na “objetividade” mas na “subjetividade” e, então,
regressar humildemente à analise de como as coisas se mostram à nossa
consciência, de como elas nos aparecem – em suma, trata-se de desenvolver
um saber das aparências sem nos perguntar se “atrás delas” existe um
noúmeno, uma coisa em si, e de nos ocupar seriamente delas como sendo as
“coisas mesmas”, como os “mesmos objetos” do nosso conhecer e da nossa
relação com o mundo, pois as “coisas mesmas”, as coisas verdadeiras, são
unicamente as que aparecem e se mostram à nossa consciência. Este é um
ponto importante porque, para Husserl, o conceito de “fenômeno”, “daquilo
que se mostra” remete sempre, e inevitavelmente, a uma consciência através
da qual as coisas se mostram e que as percebe, que as apreende enquanto
aparências. A fenômeno–logia, a ciência dos fenômenos é, na verdade, uma
ciência da correlação originária, direta, imediata e intuitiva da consciência
com as coisas que se mostram a ela, aparecem para ela.

104
Mas a fenomenologia, diferentemente da psicologia, não estuda a
relação da consciência com os fenômenos de um ponto de vista empírico. A
fenomenologia estuda a essência da consciência e da correlação entre
consciência e fenômeno, estuda as estruturas universais e essenciais (que
Husserl chama “eidéticas”) da consciência em geral, da consciência na sua
forma “pura” e universal, independentemente de quais possam ser os
fenômenos que lhe aparecem. Por exemplo, a fenomenologia estuda a
essência (o εἶδος) da correlação perceptiva entre a consciência e um objeto da
percepção em geral, sem considerar se ele é uma maçã, uma casa ou uma
mesa. Ela estuda, por exemplo, a essência da rememoração, as estruturas
essenciais e universais de qualquer rememoração, da rememoração “em
geral”, independentemente de seu conteúdo concreto (isto é:
independentemente do fato concreto rememorado, se eu estou me lembrando
de uma cidade, de um jantar ou de um objeto). É por esta razão que a
fenomenologia se considera como “filosofia primeira”, porque estuda a
consciência pura ou transcendental enquanto “fonte essencial”, ou “primeira
causa” – uma espécie de primum movens – de todas as diferentes formas da
nossa experiência e do nosso conhecimento do mundo.
Entretanto, para fazer isso, a fenomenologia distingue nitidamente
entre “o que”, o conteúdo [das Was] e “o como”, a “modalidade” [das Wie]
de um fenômeno. A fenomenologia, enquanto ciência da consciência pura,
abstrai2 do conteúdo concreto dos fenômenos, do “que coisa”, para estudar e
analisar o “como” deles: como eles se mostram, “as modalidades” nas quais
aparecem. Isto significa estudar as formas essenciais (eidéticas) e as
estruturas fundamentais da correlação entre os fenômenos e a consciência que
os apreende. No mesmo sentido da abstração de todo o conteúdo semântico e
concreto, Heidegger nos diz em Ser e Tempo que a análise da existência
humana (a Daseinsanalyse) é uma “indicação formal”, ou seja, que ela se

2 Seria mais apropriado falar aqui do procedimento da “variação eidética”. Em função dos
evidentes limites de tempo e espaço, limitar-nos-emos à referência ao estudo de D.
Lohmar, Die phänomenologische Methode der Wesensschau und ihre Präzisierung als
eidetische Variation, in: Phänomenologische Forschungen (2005), pp. 65-91.

105
refere às estruturas ontológicas (formais) fundamentais da existência, sem
considerar seus diversos conteúdos possíveis.
Desta forma, se por um lado, na análise fenomenológica de uma
vivência, Husserl distingue entre o conteúdo [Gehalt] fenomenal que aparece
à consciência e as modalidades formais com as quais ela pode se referir
[Bezug] a este conteúdo e aprendê-lo – distinguindo, por exemplo, se a
referência ao conteúdo “casa” é realizada como uma percepção, ou uma
fantasia, ou uma lembrança, ou um ato predicativo (quando afirmo “a casa é
bela”), etc., Heidegger, por sua vez, já nos primeiros cursos em Freiburg
(1920-1932)3 transforma e elabora esta distinção husserliana, afirmando que
os elementos que compõem a análise do fenômeno são na realidade três:
1. Primeiramente, “o que” do fenômeno, o conteúdo da experiência [Gehalt];
2. Analisando “o como”, é necessário distinguir entre a referência [Bezug] a
este conteúdo, ou seja “como” a consciência se refere a ele, mas também a
própria realização [Vollzug] desta referência, ou seja “como” a referência é
executada, como é realizada a correlação entre consciência e objeto de
consciência.
O conceito de “sentido de realização” [Vollzugssinn] que deriva desta
tripartição é muito importante para Heidegger porque lhe permite questionar
a concepção de Husserl (e de uma longa tradição filosófica) da
intencionalidade. Segundo Husserl, de fato, a correlação entre conteúdo e
referência da consciência a ele é realizada na correspondência originária de
noesis (ato de consciência) e noema (conteúdo intencionado pelo ato da
consciência). Em contrapartida, Heidegger pensa que esta correlação não seja
eminentemente teórica nem intencional, que não ocorra no nível da
“consciência intencional”, mas que aconteça primeiramente (“de início e na
maior parte das vezes”) na prática, numa relação prática e manipulativa com
o mundo. O Vollzugssinn originário da nossa relação com o mundo, aquilo

3 Cf. os cursos sobre a “Fenomenologia da vida religiosa” (WS 18/19, 20/21, SS 21), os
“Problemas fundamentais da fenomenologia” (1919/20) e as “Interpretações
fenomenológicas de Aristóteles” (1921/22).

106
que Heidegger chama de “trato com o mundo”, realiza-se principalmente ao
nível do “cuidado” (Sorge), num comportamento “prático” que é sempre um
“ocupar-se de algo”. A partir do parágrafo 15 de Ser e Tempo podemos
encontrar uma formidável análise (formal) do trato com o mundo típico da
existência humana, no que se refere às suas estruturas fundamentais. E como
podemos ler já no curso de 1919/20 sobre os Problemas fundamentais da
fenomenologia, o sentido de realização de um fenômeno e, assim, a realização
da referência ao seu conteúdo “surge da espontaneidade do si mesmo”;
portanto, este “sentido fundamental da realização do si mesmo na sua vida dá
ao sentido da existência o seu significado primordial”.4 Recapitulando:
segundo Heidegger, para cada experiência [Erfahrung] é possível perguntar
1. pelo “que coisa” originário que é objeto da experiência
2. pelo “como” originário, no qual ele [o “que coisa”] é experienciado
3. pelo “como” originário, no qual a relação entre 1 e 2 é
executada/realizada.
A característica fundamental de tais distinções entre Gehalt, Bezug e
Vollzug é que elas dizem respeito a toda experiência concreta da vida humana
– porque são justamente, como já dissemos anteriormente, elementos
estruturais, formais e fundamentais da existência humana que não dependem
dos infinitos conteúdos concretos possíveis dela. Isso significa, porém, que,
para Heidegger, esta tripartição fenomenológica fundamental diz respeito
também à ciência, mas sobretudo à filosofia.5 A pergunta que
conseguintemente Heidegger faz é a seguinte: Qual é o sentido originário de
realização da filosofia? Qual é “o como” originário no qual se realiza a
referência da filosofia com os seus objetos e seus conteúdos? Qual é o sentido
da execução do filosofar?
A distinção fenomenológica entre os vários elementos de uma
vivência se refere à filosofia, segundo Heidegger, “de uma maneira muito

4 M. Heidegger, Grundprobleme der Phänomenologie (GA 58), Klostermann, Frankfurt


1993, p. 260, 261.
5 M. Heidegger, Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks (GA 59),
Klostermann, Frankfurt 1993, p. 37.

107
particular”. No semestre de verão de 1919 (sobre a Determinação da
filosofia), Heidegger nos deixa uma pista para entender a sua problematização
– ainda subterrânea – do sentido de realização da filosofia. Ela é aí definida
como “o correlato subjetivo” que “corresponde a uma constituição espiritual
particular” e a uma “referência à vida especial e particular”; o fenômeno (da
filosofia), no entanto, pode ser estudado e compreendido “somente a partir da
realização vital das motivações que ela reivindica”.6 No curso sobre os
Problemas fundamentais da fenomenologia ele afirma ademais que
“unicamente a realização autêntica e concreta, unicamente a atuação e a
realização das tendências que operam na filosofia” podem nos conduzir à
própria filosofia.7 Esta realização reside na “atuação verdadeira e pura” de
um “radicalismo absoluto” com respeito ao perguntar e à crítica, porque o
“sentido da atuação” da compreensão se evidencia originariamente apenas
através da “destruição crítica”.8
Os textos do jovem Heidegger mostram claramente o atribulado
nascimento de uma concepção da filosofia disposta de modo contrário aos
padrões tradicionais e contra o establishment acadêmico da universidade, uma
concepção da filosofia “não como correlato de uma reflexão pronta e
determinada” de fora, mas como “um obter da filosofia na própria existência,
através da sua execução”.9 O radicalismo das posições do jovem Heidegger é
testemunhado também por uma carta de 1923 escrita ao amigo Karl Jaspers,
quando estava prestes a se transferir a Marburg, onde assumiria uma cátedra.
Nela, Heidegger conta da felicidade com a qual vivenciava a nova experiência
e da importância de ter uma chance como professor e de poder finalmente
realizar a “transformação dando o (através do) exemplo, realizar a
transformação por meio da demonstração”, o que não é a mesma coisa, e nem

6 M. Heidegger, Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/7), Klostermann, Frankfurt


1987, p. 23.
7 M. Heidegger, Grundprobleme der Phänomenologie (GA 58), op. cit., p. 2.
8 Ibid., p. 5, 257.
9 M. Heidegger, Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks (GA 59), op. cit., p.
7.

108
mesmo tão cômodo quanto “escrever um livro atrás do outro”. 10 A formula
que Heidegger utiliza é “Wandel schaffen durch Vormachen”, “realizar a
transformação ao dar o exemplo”.
Aquilo que vemos aqui, então, é uma concepção da filosofia que, a
partir de uma apropriação de conceitos husserlianos, luta pela renovação das
velhas dinâmicas “podres” da filosofia, como se ela fosse um corpo morto no
museu da academia que perdeu sua vitalidade e o seu “sentido de atuação”
autêntico.

2. O esquecimento da questão do “como” originário da filosofia, do seu


sentido de realização, e a figura da “virada antes da virada”.
Todo o discurso ainda fenomenológico sobre o sentido de atuação da filosofia
é intensificado radicalmente por Heidegger – o que, de certa forma, é
característico do seu modo de proceder – através de uma suspeita geral contra
a tradição filosófica ocidental na sua totalidade, chegando mesmo a formular
a acusação de uma “cegueira constitutiva da filosofia” para a questão do seu
“sentido de realização”.11 Heidegger afirma que “o problema da
autocompreensão da filosofia sempre foi tomado de modo demasiado ligeiro.
Se se compreende este problema radicalmente, então se entende que a
filosofia nasce na experiência fática da vida [faktische Lebenserfahrung]. E é
na própria experiência fática da vida que a filosofia logo recai de volta”.12 Isto
significa que, paradoxalmente, “chegamos à autocompreensão da filosofia
[...] somente através da própria filosofia”.13
Parece-me que, nesse ponto – na verdade meio escondido entre os
textos das primeiras aulas de Heidegger –, ele se refira a uma de suas
“descobertas” mais pessoais e características: ele nos fala aqui daquilo que
poderíamos chamar um “a priori prático/operativo” da filosofia: a verdadeira

10 Cf. M. Heidegger; K. Jaspers, Briefwechsel 1920 – 1963, Klostermann, Frankfurt, 1990.


11 M. Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens (GA 60), Klostermann, Frankfurt
1995, p. 18.
12 Ibid., p. 8.
13 Id.

109
filosofia, ou o verdadeiro filosofar, exige a absoluta presença do filósofo, uma
vez que a filosofia, em sentido autêntico, só acontece e se realiza na própria
realização performativa. A filosofia (autêntica) exige sua própria execução
concreta. Assim, “fazer filosofia” significa, para Heidegger, o “filosofar”
entendido como “verbo intransitivo”: não pensar “sobre alguma coisa” mas
ser, encarnar, realizar este pensamento mesmo.14 Portanto, a tarefa do
professor de filosofia não era a de “ensinar” filosofia, ensinar algo sobre a
filosofia, ou sobre a história da filosofia, mas, ao contrário, a de apresentar e
mostrar, através de um exemplo, através de uma realização concreta, aquilo
que a filosofia é na sua prática. A demonstração concreta daquilo que a
filosofia é acontece, frequentemente, através de uma “encenação
performativa” do pensamento filosófico.
A esta concepção “prática” da filosofia, ou da filosofia como prática
radical, conecta-se, nos mesmos cursos dos anos 20, uma crítica à filosofia
enquanto θεωρία (enquanto “observação destacada”). O discurso sobre o
“esquecimento” da questão acerca do autêntico sentido de realização da
filosofia implica, contemporaneamente, uma subversão da filosofia
tradicional e das suas conformações conceituais estabelecidas. De fato,
mediante o regresso à “experiência da vida fática” realizado por Heidegger –
pensemos, por exemplo, à famosa lição de 1923 sobre a Hermenêutica da
facticidade – “não será possível evitar que a revelação das conexões
fenomenais […] coloque medidas fundamentais para a destruição […] da
filosofia ocidental”.15
Nesse ponto é possível utilizar uma figura interpretativa particular
para se aproximar do pensamento de Heidegger, batizada por Hans Georg
Gadamer de “virada antes da virada” [Kehre vor der Kehre], para sublinhar o
desenvolvimento unitário do pensamento heideggeriano.16 Há uns trechos

14 Ibid., p. 60.
15 Ibid., p. 135.
16 Cf. H. G. Gadamer, Der eine Weg Martin Heideggers: Gedenkworte zum 10. Todestag
Martin Heideggers, Martin-Heidegger-Gesellschaft, Messkirch 1986.

110
significativo a esse respeito, em particular a parte conclusiva do texto,
conhecida como Fenomenologia da vida religiosa:

O ponto de partida do caminho à filosofia é a experiência fática


da vida. Mas parece que a filosofia, por sua vez, conduz além e
para fora da experiência fática da vida. Efetivamente, este
caminho conduz, em certa medida, somente ao anterior da
filosofia, não ao seu interior. A filosofia mesma pode ser
alcançada apenas mediante uma “virada” [Umwendung] daquele
caminho, mas não mediante uma virada usual, com a qual o
reconhecer [Erkennen] seria simplesmente dirigido a outros
objetos; mas, mais radicalmente, através de uma virada
autêntica”.17

Esta “virada autêntica”, pressentida e prefigurada por Heidegger como o


caminho que pode conduzir “ao interior” da filosofia, da intimidade do
pensamento, é aquela virada da qual ele nos fala na Carta sobre o Humanismo
e que inaugura publicamente o pensamento heideggeriano do Ereignis, do
“acontecimento apropriativo” – que começou secretamente já nos primeiros
anos 30 e que representaria portanto, no seu núcleo, um retorno às intuições
originárias dos seus primeiros anos em Freiburg (1919-1924). Dito de outra
forma: a primeira “virada em direção à vida fática” seria o pressuposto, ou a
prefiguração, da segunda “virada” que acontece no pensamento de Heidegger,
no começo dos anos 30, em direção a um pensamento que abandona a
subjetividade e a metafísica.18 De fato, já nos primeiros anos 30, Heidegger
chega à identificação da “filosofia” com a “metafísica”. Os dois termos
chegam a coincidir e a ser considerados sinônimos; com respeito à tarefa

17 M. Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens (GA 60), op.cit. p. 10.


18 M. Heidegger, Carta sobre o Humanismo, trad. R. E. Frias, Centauro, São Paulo 2010, p.
30. Á correspondência entre uma “primeira” e uma “segunda” virada – que regressa antes
da primeira, que “vira” mais radicalmente dela e que, porém, não poderia dar-se sem ela
– corresponde, o complexo “jogo” de referências e superações que se instaura entre um
“primeiro” e um “outro” inicio. A figura do quiasmo que resulta da tentativa de pôr em
relação as duas “viradas” e os dois “inicios” será o objeto de um próximo estudo. Será
este o sentido do estratagema de escrever “Seer cruzado”?

111
crítica de realizar uma “virada autêntica” e radical, Heidegger fala claramente
da tarefa de preparar o “completamente outro”, algo completamente diferente
em relação à metafísica e à filosofia – uma e “mesma coisa”.19
Aqui se abre a grande temática do “fim da filosofia”, do qual
Heidegger fala, por exemplo, no curso de verão de 1932, afirmando que o
objetivo dos seus esforços consistia na “decomposição [Abbruch] da filosofia,
[…] a partir de um questionar originário do sentido (da verdade) do Ser”.20
Nas Reflexões II, o primeiro caderno a ser publicado sob a série que ficou
conhecida como Cadernos Negros e que remonta aos anos 1931-1938, ele
afirma que “afinal, devemos romper hoje com o filosofar” e, ainda, que é
necessário “sair da filosofia” com as forças de um pensamento diferente: “o
fim da »filosofia«. Devemos realizar sua consumação e, com isso, preparar o
inteiramente outro”.21 Ainda na famosa entrevista com a revista alemã Der
Spiegel do ano 1966 (publicada postumamente em 1976) lemos que: “a
filosofia tem chegado a seu fim”. O seu lugar é tomado agora por um “outro
pensamento”, que não é mais filosofia e que “é inicialmente
realizável/executável por poucos homens”. Este pensamento “futuro não é
mais Filosofia porque pensa mais originariamente do que a “Metafísica”,
nome que diz o mesmo”.22

3. O “outro pensar”.
Este “outro pensamento” é chamado pelo Heidegger de “pensamento do
Ereignis”, pensamento do “acontecimento apropriativo”. Para que esta
tentativa experimental de “preparar o completamente outro” possa se
transformar em um verdadeiro impulso concreto, Heidegger diz que,
primeiramente, “o espantoso do perguntar precisa ser experimentado em meio

19 Cf. M. Heidegger, Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-938) (GA 94),


Klostermann, Frankfurt, 2014.
20 Heidegger, Der Anfang der abendländischen Philosophie. Auslegung des Anaximander
und Parmenides (GA 35), Klostermann, Frankfurt 2012, p. 1
21 M. Heidegger, Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-938) (GA 94), op. cit., p. 115
22 Cf. M. Heidegger, Carta sobre o humanismo, op. cit., p. 85.

112
à sua realização, e se tornar efetivo”,23 e que “a execução precisa ser
originária”.24 Resulta evidente, já a partir destas primeiras palavras, a
importância da dimensão performativa deste outro pensar, que não consiste
mais em “tratar ‘de’ algo e apresentar algo objetivo”, mas em “ser
apropriado”, o que “equivale a uma transformação essencial do homem”.25 O
“outro pensar” seria essencialmente um exercitium, “um exercício
preparatório: deve buscar aquele ‘dizer pensante’ que advêm de um outro
início”. Esse “dizer nem descreve nem explica, nem anuncia nem instrui; não
se tem aqui o dizer diante do que tem para ser dito, mas o dizer é ele mesmo”26
aquilo que diz. “O dizer é ele mesmo aquilo que diz”: esta citação de
Heidegger é, de fato, uma definição da “performance”.27 Uma linguagem que
significa aquilo que ela faz, ou melhor: que faz aquilo que significa.
Não é casual, então, que as maiores e mais evidentes experimentações
heideggerianas relativas à tentativa de desenvolver um “outro pensar” foram
realizadas, primeiramente, com a linguagem, com as formas e os conceitos
do dizer filosófico. A razão disso é reafirmada uma vez mais por Heidegger
numa entrevista televisiva do ano 1975 (um ano antes de sua morte): o
pensamento do Ereignis “é, em si mesmo (no seu assunto), muito mais
simples que a filosofia, mas na execução/realização muito mais difícil, e exige
uma nova atenção cuidadosa pela linguagem”.28
A tentativa de desenvolver uma linguagem “virgem”, que não seja
contaminada pela tradição metafísica ocidental, mostra-se na particularíssima

23 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, trad. M. A.


Casanova, Via Vérita Rio de janeiro 22014, p. 13.
24 Ibid., p. 14
25 Ibid., p. 7
26 Ibid., p. 8.
27 Cf. as aulas lendárias em Harvard entre 1955-1960 do filósofo da linguagem americano
John Austin, tituladas “como fazer coisas com as palavras”. Ele chamou a atenção para o
fato de que os enunciados não servem somente para descrever ou afirmar “estados de
coisas”, mas que com eles e neles são realizados também atos.
28 M. Heidegger, Im Denken unterwegs, Video-Interwiew mit Walter Rüdel (1975), in: Id.,
Reden und andere Zeugnisse eines Lebensweges 1910-1976 (GA 16), Klostermann,
Frankfurt 2000, p. 709

113
terminologia desenvolvida pelo Heidegger em Ser e tempo (1927) e ainda
mais nas Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador (1926/38).

114
4. Outros registros da experimentação.
A compreensão tradicional da filosofia a concebe como uma “teoria” que
precisa ser “demonstrada” em tratados ou obras. Desde o ponto de vista de
Heidegger, toda demonstração, todo “theorein”, pressupõe que aquele que
compreende – o filósofo – permaneça inalteradamente o mesmo, indiferente,
distanciado e contraposto em relação ao objeto (ao Gegen-stand, ao contra-
posto) da teoria e da respectiva demonstração. Diversamente – como vimos –
no “outro pensar originário” que não é mais filosofia, acontece uma
transposição para “o outro início”,29 “inserção violenta em algo
resguardado”,30 uma “transformação” do homem mesmo, do pensador,
daquele que está pensando… É por esta razão que “tal pensamento jamais
pode ser transformado em uma doutrina”, em uma theoria. Ele é uma “forma
de vida”, coincide com o seu “exercício”.
Mas já que Heidegger rechaça a lógica da teoria, da argumentação lógica –
famosa é a formulação segundo a qual “o pensamento mora nas proposições
enunciativas”31 – será necessário buscar outras formas expressivas, outros
modos e modalidades do discurso filosófico, além das experimentações
linguísticas e conceituais, que possam “dar voz” e ser adequadas ao
pensamento do Ereignis. Segue então uma apresentação dos vários registros
da experimentação e da dimensão performativa no pensamento
heideggeriano, motivados pela revogação da lógica enunciativa, da lógica da
referência e da representação, em favor de uma práxis gestual que se realiza
sumamente no ato de encenação e de apresentação de si mesmo do pensar.
Efetivamente, o medium privilegiado desta execução e realização cênica do
pensamento é o “gesto” – aquilo que foi chamado também de “enacted and
embodied thinking”, um “pensamento atuado e incorporado”. Este é um
pensamento que vira carne, vira corpo, prática, vira performance para “dar o

29 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, op. cit., p. 12.


30 Ibid., p. 10.
31 M. Heidegger, Wegmarken (GA 9), Klostermann, Frankfurt 1976, p. 410

115
exemplo”. Vamos então a alguns dos exemplos mais concretos das formas do
pensar in actu.

4.1 Testemunhas.
Em primeiro lugar temos um elemento “indireto” ou estranho ao opus
heideggeriano, mas ainda assim muito importante para iniciar esta
aproximação àquele “experimentar de um modo fundamental” que nos
permitiria “a extensão para o interior do que ainda não foi pensado e precisa
ser ponderado”.32 As testemunhas dos alunos dos cursos universitários de
Heidegger falam de uma atuação/realização do “pensar” que ganha
repentinamente vida e que se transforma em um live-act imperdível, o que
exemplifica muito bem o contexto performativo no qual estamos entrando.
Sobre o fato de que Heidegger possuía um extraordinário talento filosófico,
todos aqueles que tiveram o privilégio de seguir seus cursos universitários
concordam: ouvi-lo enquanto ele pensava e divagava sobre a filosofia em
classe era como assistir a um espetáculo da natureza. O depoimento de Leo
Strauss é eloquente a este respeito. Inicialmente fascinado pela figura de Max
Weber, depois de ouvir o jovem Heidegger em Friburgo, confessou ao seu
amigo Franz Rosenzweig: “Weber, em comparação com Heidegger, parece-
me um órfão em termos de precisão, profundidade e competência”. E quanto
à capacidade de penetrar os textos da filosofia tradicional, o julgamento foi
ainda mais nítido:

Eu escutei a interpretação que Heidegger dava de algumas


passagens de Aristóteles e, algum tempo depois, ouvi Werner
Jäger em Berlim interpretar os mesmos textos: a caridade quer
que eu limite minha comparação com a observação de que não há
comparação.33

32 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, op. cit., p. 13.


33 Cf. a edição alemã de L. Strauss, Introdução ao existencialismo de Heidegger.

116
Também Karl Löwith fala sobre a amizade com Heidegger (e,
sucessivamente, sobre a ruptura das relações motivadas pela adesão deste
último ao Nacional-Socialismo):

Entre nós, Heidegger foi apelidado de ‘pequeno mago de


Messkirch’. [...] Ele era um pequeno grande homem misterioso,
um feiticeiro sábio, capaz de fazer desaparecer diante dos
espectadores aquilo que acabava de nos mostrar. Sua técnica
expositiva consistia em construir um edifício conceitual que logo
ele mesmo demolia, para colocar o ouvinte ansioso diante de um
enigma e deixá-lo suspenso no vácuo. [...] Em suas preleções, ele
falava sem gesticulação e sem efeitos retóricos, concentrando seu
olhar nas folhas de manuscritos à sua frente. O único expediente
retórico era uma sobriedade sagaz e uma frieza expositiva, e a
tensão calculada que dava à rigorosa construção de suas teses”.34

4.2 Trechos internos à obra.


A atitude explícita ou implicitamente performativa do “pensamento” é
testemunhada por vários trechos e partes dos textos que compõem o opus
heideggeriano. Por exemplo, no início da conferência Tempo e Ser de 1962,
proferida em janeiro de 1962, aos 72 anos de idade, e que é exemplar no
tocante a todo possível “para-além-de” [Darüber-hinaus] da lógica
enunciativa, os espectadores que enchiam o auditório são imediatamente
avisados pelo próprio Heidegger de que não se tratava de uma “palestra”
usual: “Não se trata de escutar simplesmente uma série de proposições
enunciativas, mas de seguir ativamente o caminho e de participar do
movimento daquilo que se vai indicando”.35 O dizer do filósofo requer a
participação do seu público, que é convidado então não a esperar
passivamente a “comunicação” mas, antes, a participar e seguir ativamente a

34 Cf. a edição alemã de L. Löwith, Minha vida na Alemanha antes e depois 1933. Um
testemunho.
35 M. Heidegger, Zeit und Sein, in: Id., Zur Sache des Denkens, Niemeyer, Tübingen 1969.

117
viva execução do pensar. Outro bom exemplo é a conferência transmitida em
rádio em 1933 e intitulada Paisagem criadora: porque permanecemos na
província, na qual Heidegger explica metafisicamente a recusa de uma
cátedra em Berlim e a decisão de ficar em Freiburg e de se retirar no seu
refúgio privado: uma cabana entre as montanhas. “Quando, na profunda noite
de inverno, uma tormenta furiosa de neve brada sacudindo-se ao redor da
cabana e a tudo escurece e oculta, então esta é a hora propícia à filosofia”.
Como numa peça de teatro, as razões da recusa são encenadas enquanto
“íntima filiação ou pertença” à paisagem da Floresta Negra e enquanto
“centenário arraigado ao solo, à terra que nada pode substituir”. 36

4.3 As palavras-guia.
A multiplicidade de palavras-guia do léxico heideggeriano tem um carácter
evidentemente dramático ou teatral. Elas testemunham, uma vez mais, a
intenção anti-argumentativa da prática filosófica de Heidegger, orientada na
direção da narração e da dramatização do discurso filosófico. Pensemos, por
exemplo, em termos como “ser-para-a-morte”, “antecipação-da-morte”,
“suspensão no nada, “salto”, “degradação” e “decisão”. A esta constelação
linguística se segue, nos anos tardios, um registro mais contemplativo, que
substitui o “heroísmo da decisão” típico dos anos 20 e 30. Encontramos então
a “abertura para o mistério”, a “espera”, o “abandono”, o “campo livre”, a
“serenidade” da “madrugada” e da “alba”, “o sagrado” e a “salvação”. Resulta
evidente, parece-me, a tendência em resolver os nexos argumentativos e
conceptuais em cenas com valor narrativo o coreográfico, até chegar ao ápice
da teatralização no tríptico dramático de “mundo - finitude - solidão”, no qual
as perguntas fundamentais da metafísica se dissolvem no “mesmo nada”, no
tédio, no aborrecimento profundo que “se move de um lado a outro nos
abismos da existência como uma névoa silenciosa”.

36 In M. Heidegger, Aus der Erfahrung des Denkens 1910-1976 (GA 15), Klostermann,
Frankfurt 1983, p. 9-14.

118
4.4 As Obras Completas.
Um elemento ulterior e muito importante da “encenação coreografia” do
pensamento de Heidegger é certamente a planificação e a disposição geral de
suas Obras Completas (Gesamtausgabe), cuja análise histórica mereceria
uma discussão à parte, detalhada e específica.37 Podemos dizer que elas
contêm uma grande riqueza de provocações e experimentos com as formas
filosóficas ao nível textual e extratextual: o standard monolítico da tradição,
representado pelas dissertações e tratados filosóficos, enriquece-se com
sequências tomadas da teologia e da poesia (Hölderlin, Rilke, Celan), com
collages de ditos e expressões do budismo, haicais, hieroglíficos, estranhas
formas gráficas como espirais e raios, relâmpagos, composições de letras e
palavras que formam figuras, experimentos gráficos, e montagens de
sequências tomadas de dialetos alemães – porque, no fim das contas, “no
dialeto fala cada vez a paisagem, ou seja, a terra”.38 Assistimos também a uma
retomada da forma do diálogo p. ex. no texto Diálogos do caminho do
campo,39 no qual discorrem um cientista, um erudito e um sábio, e que
apresenta o “diálogo crepuscular em um campo de prisioneiros de guerra
russo entre em jovem e um ancião”. Em seguida, apresentamos alguns
exemplos das experimentações gráficas de Heidegger, provenientes do
Vol.73 da Gesamtausgabe, junto com umas obras afins de Paul Klee – o
“pintor do Ereignis” segundo Heidegger.

37 A este respeito cf. B. Babich, Die Beiträge als Heideggers Wille zur Macht. Nietzsche –
Technik – Machenshaft, in: Id., Eines Gottes Glück, voller Macht und Liebe, Bauhaus-
Universitätsverlag, Weimar 2009, pp. 178-208.
38 M. Heidegger, Unterwegs zur Sprache (GA 12), Klostermann, Frankfurt 1985, p. 194
39 M. Heidegger, Feldweg-Gespräche (GA 77), Klostermann, Frankfurt 1995.

119
120
4.5 Experimentações com áudio, vídeo e arte.
A confirmação da vontade de Heidegger de romper com o horizonte
tradicional da filosofia e com seu medium clássico, o livro impresso, podemos
trazer à mente as várias experimentações de Heidegger com outros media para
veicular o discurso e a fala filosófica. Entre elas, destacam-se por importância
a gravação da conferência “Identidade e diferença” de 1958, a fala
experimental sobre o palco do teatro de Viena sobre “pensar e poetizar” e os
desdobramentos da técnica realizados com o medium da televisão: entre eles

121
a famosa entrevista pela emissora alemã ZDF intitulada “Só um deus pode
ainda nos salvar” e a interessante discussão – evidentemente encenada – com
um monge budista de 1958. Nela, o elemento mais interessante é que
Heidegger insiste muito em falar, em apresentar o seu pensamento como uma
“experiência” um “fazer uma experiência fundamental” – die entscheidende
Erfahrung meines Denkens. O que vemos aí é como se ele quisesse, uma vez
mais, reafirmar a distância entre “o pensamento essencial”, que é experiência
e práxis radical da filosofia, e a “filosofia” ela mesma, isolada no âmbito da
teoria.
Na última fase de sua carreira, Heidegger se dirige também à
escultura, mais regularmente a partir dos anos 60, quando colabora
diretamente com artistas e escultores. Umas das colaborações de maior
sucesso foram aquelas com os escultores Bernhard Heiliger e Eduardo
Chillida. Com este último, Heidegger participou em alguns eventos
organizados pela galeria de arte suíça Erker com performances caligráficas:
o texto “A arte e o espaço” foi primeiramente escrito sobre uma pedra pelo
próprio Heidegger e depois publicado com as imagens das obras feitas por
Chillida para acompanhar o texto, tudo isso junto a uma gravação da leitura
do texto de Heidegger.40

40 Cf. A. J. Mitchell, Heidegger among the sculptors, Stanford University Press, Stanford
2010.

122
4.6 Fotografias como instalações conceituais.
Um dos melhores e mais inovadores estudos sobre Heidegger destes últimos
anos é, para mim, um pequeno texto escrito por Cai Werntgen,41 professor na
Alemanha, cujo mérito é sem dúvida o de ter chamado a atenção para a
dimensão performativa e gestual do pensamento heideggeriano e de ter
formulado a proposta de considerar o material fotográfico como “tratados
cênicos” de filosofia, ou “instalações conceituais”. Desta forma, é possível

41 Cf. C. Werntgen, Heidegger after Duschamp. Skizze für eine Philosophie der Geste,
Matthes & Seitz, Berlin 2016.

123
falar de “performance” filosófica – ou do pensamento em ação – estudando
como as fotografias (algumas delas, pelo menos) apresentam verdadeiras
“encenações” estudadas de um pensamento que não é mais teoria, mas práxis
e gesto de si mesmo. Tais performances do pensador depois do fim da
filosofia foram capturadas durante os fotoshootings organizados pelo próprio
Heidegger em 1966 e 1968 com a fotógrafa Digne Meller Marcowicz. Antes
de concluir, vou apresentar em seguida algumas das análises hermenêuticas
mais interessantes acerca das “instalações fotográficas” de Heidegger.

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

Nesta primeira foto encontramos uma interessante composição de elementos


e citações, todas instaladas na imagem enquanto figuras chaves do
pensamento de Heidegger. Entre elas, em particular vemos uma encenação da
relação entre fogão e ser, da qual fala Heidegger nas suas lições dos anos 40
sobre Hölderlin, Der Ister: “a lareira”, que é “a pátria daquilo que é pátrio, é
42
o ser mesmo”. Além disso, “a lareira” constitui o palco trágico de dois
cortes fundamentais da história da filosofia, segundo Heidegger:

42 M. Heidegger, Hölderlins Hymne “Der Ister” (GA 53), Klostermann, Frankfurt 1993, p.
143.

124
1. O primeiro se refere certamente a Descartes, objetivo polêmico de
Heidegger, cujo Discurso do método foi notoriamente escrito no inverno de
1619, longe da confusão da guerra, na solidão meditativa de uma lareira e à
luz de velas. Com Descartes, a lareira vira um objeto de contemplação, um
objeto da teoria, separação entre res extensa e res cogitans.
2. O segundo é Heráclito (ao qual Heidegger dedica o seu último curso
universitário em Freiburg, no verão de 1944). Há uma famosa anedota que
conta como ele convidou alguns estrangeiros para entrar em sua casa e sentar-
se com ele perto do fogo, já que “aqui os deuses também estão”. Aqui, quer
dizer, na dimensão mais cotidiana, mais simples, perto da “lareira”, do fogão.
Assim, esta fotografia poderia figurar como uma revisão e uma crítica
da tradição cartesiana, oferecendo um “outro cenário”, como uma utopia de
um “outro início”, de uma alternativa ao pensamento.

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

O mesmo poder-se-ia dizer com a figura da “fonte”, que assume um


significado particular e central para a concepção heideggeriana da linguagem
– que é “a casa do ser”. “As palavras são fontes… sem o caminho sempre
renovado à fonte, os baldes e os recipientes ficam vazios” afirma Heidegger

125
nas lições de 1951/52 sobre a questão Que significa pensar? (Was heisst
43
Denken?); mas podemos pensar também à reflexão de Heidegger sobre a
poesia de Rainer Maria Rilke, que começa com a citação “quando vamos à
fonte atravessamos a palavra ‘fonte’...”.44

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

Nesta última fotografia apresenta-se a própria performance, realização prática


da dimensão ética do “esperar”, do Warten. O pensamento do Ereignis não é
mais reflexão, não é mais observação destacada dos objetos, mas é “esperar a
palavra do ser”. Em um dos já citados Diálogos do caminho do campo
(1944/45), o cientista absolutamente não consegue entender o que seria este
“pensamento que não é reflexão” mas que tampouco é teoria e que não segue
mais a lógica da representação. O sábio tenta explicar-lhe afirmando que “não
devemos fazer absolutamente nada, mas esperar”.

43 Cf. M. Heidegger, Was heisst Denken? (GA 8), Koostermann, Frankfurt2002.


44 M. Heidegger, Holzwege (GA 5), Kolostermann, Frankfurt 2002, p. 310 et. Seq.

126
Conclusão.
Mostrei até aqui as grandes linhas da experimentação heideggeriana e da
transformação da filosofia, após a sua suposta morte, num “outro”
pensamento que coincide com o seu exercício, com a sua prática
experimental e com a sua encenação performativa. A constelação que estes
três elementos formam (execrcitium, experimentação e performance) surge a
partir de um transfundo fenomenológico e de uma apropriação inovadora da
conceitualidade que Husserl tinha desenvolvido para analisar a vida
intencional da consciência.
Indicar o resultado de todos os esforços, de todas as tentativas para
pensar o ser, e dizer se a crítica corrosiva à tradição filosófica ocidental
desemboca numa brutal “introdução do nazismo na filosofia” (Faye), se
termina num “naufrágio no mar do ser” (Volpi) ou numa “fuga na errância”
(Trawny), se ela propõe uma “crítica hermenêutica da modernidade e da
sociedade tecnocrática” (Vattimo) ou uma fantasiosa “saga, uma narração da
mitologia do ser” (Iorio) e, finalmente, se ela pode oferecer ferramentas
conceituais ainda válidas para pensar o presente, é a tarefa que cabe a cada
um de nós, quando empreendemos uma confrontação e uma interpretação
deste pensamento tão controverso.

127
Londrina, em junho 2017.

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