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Gustavo Ferreira Santos


João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo

DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:


Direito(s) em debate.

Recife, 2016

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CRÉDITOS

Editora: APPODI

Organização: Gustavo Ferreira Santos


João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araujo

Conselho editorial: Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho (UEA)


Gustavo Carneiro Leão (UNICAP)
Ivone Fernandes Lixa (FURB)
Maria Lúcia Barbosa (UFPE)
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG / FMP)

Design da capa: Ana Catarina Silva Lemos Paz

Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz

As opiniões e posicionamentos contidos nesse livro não, necessiariamente, correpondem às


opinões e posicionamentos tomados pelos organizadores.

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APRESENTAÇÃO

O Congresso Publius é evento anual realizado por professores da Universidade Católica de Pernam-
buco, com o objetivo de discutir temas pertinentes ao direito público, especificamente no que se refere aos
vínculos que se estabelecem entre Constituição e Democracia. Na edição 2015 do Publius o tema escolhido
como eixo norteador do evento é “Tutela Multinível dos Direitos”, apontando para a necessária percepção de
que os direitos apresentam níveis distintos de proteção e promoção, tanto no plano interno como em planos
normativos distintos, como acontece com o direito subnacional, o direito supranacional e o direito interna-
cional.

O evento teve duração de três dias de debates com a participação de professores e pesquisadores con-
vidados de várias universidades do Brasil, América Latina e Europa e envolvendo estudantes de graduação e
pós-graduação stricto sensu de diversas universidades da região.

O livro que agora apresentamos é fruto das reflexões que aconteceram nos grupos de trabalho do
evento (Direitos Sociais e Judicialização das Políticas Públicas; Justiça Constitucional e Jurisdição Constitu-
cional; (Des)Criminalização de Direitos; Tutela dos Direitos à Liberdade; Hermenêutica, Universalidade e
Multiculturalismo dos Direitos; Direitos de Nacionalidade e Estrangeiros; Os Novos Direitos; Diálogo entre
Cortes e Proteção Multinível; Constituições Subnacionais e Tutela de Direitos: Controle de Convencionali-
dade). Para os diversos GTs o evento contou com cento e vinte trabalhos inscritos, resultando em sua confi-
guração final, sessenta e cinco trabalhos enviados para publicação após os debates. Estes trabalhos integram
o presente livro eletrônico, juntamente com os trabalhos de autores convidados, mantendo a métrica e a
obediência aos temas propostos pelo evento.

A todos, desejamos uma boa leitura. E que estes escritos possam servir como leituras seminais para a
compreensão dos desafios que uma tutela multinivel de direitos fundamentais exige.

Recife, julho de 2016.

Gustavo Ferreira Santos


João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araujo

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SUMÁRIO

1.  APRESENTAÇÃO

2.  A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE


CONSUMO:
DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES
PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Adriano Barreto Espíndola Santos


Aldo César Filgueiras Gaudêncio 16

3.  JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO:


IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Alexandre Henrique Tavares Saldanha


Victor Rafael Alves de Mattos 24

4.  DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET:


NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO

Alexandre Henrique Tavares Saldanha 32

5.  INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE


CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC):
UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO

Alcerlane Silva Lins


Roberta Cruz da Silva 41

6.  A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO


NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Alcerlane Silva Lins
Prof. Dr. Luiz Gustavo Simões Valença de Melo (Orientador) 51

5
7.  COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF

Ana Caroline Alves Leitão


Virginia Colares 60

8.  A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS:


A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Ana Catarina Silva Lemos Paz


Luiz Manoel da Silva Júnior
Arthur Albuquerque de Andrade 70

9.  DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL:


UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE
ESTELITA

Ana Paula da Silva Azevêdo


Letícia Malaquias Mendes Barbosa
Vitória Caetano Dreyer Dinu 85

10.  QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA?


O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON

Ana Tereza Duarte Lima de Barros


Mariana Cockles Teixeira 95

11.  A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO
DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
Arthur Albuquerque de Andrade
Ana Catarina Silva Lemos Paz
Luiz Manoel da Silva Júnior 101

12.  ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA:


UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL

Bruna de Oliveira Maciel


Jaqueline Maria de Vasconcelos 107

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13.  O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO
ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Bruna de Oliveira Maciel
Jaqueline Maria de Vasconcelos 116

14.  LIBERDADE RELIGIOSA:


UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O
CASO LAUTSI CONTRA ITALIA

Camila Leite Vasconcelos 125

15.  A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À


COMUNICAÇÃO:
A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM
MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA

Camila Freire Monteiro de Araújo


Izídia Carolina Rodrigues Monteiro
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira 134

16.  REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA:


A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU
PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO
POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO

Carla Cristiane Ramos de Macêdo


Roberta Cruz da Silva 145

17.  TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE:


OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Carlos Henrique Felix Dantas 


Raissa Lustosa Coelho Ramos 159

18.  PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO


APOIADA:
DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA

Carlos Henrique Felix Dantas 


Raissa Lustosa Coelho Ramos 166

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19.  LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros


Hallane Raissa dos Santos Cunha
Túlio Vinícius Andrade Souza 175

20.  DIÁLOGO INTERJUDICIAL:


REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Caroline Alves Montenegro


Renata Santa Cruz Coelho 185

21.  A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS


PÚBLICAS
David Cavalcante 192

22.  LEI MARIA DA PENHA:


UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS DOMÉSTICOS

Débora de Lima Ferreira


Marília Montenegro Pessoa de Mello 201

23.  O DIREITO PENAL SIMBÓLICO:


DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA

Érica Babini Lapa do Amaral Machado


Andrielly S. Gutierres Silva
Willams França Silva 211

24.  ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A


REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA
DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO
Érica Babini L. do Amaral Machado
Maurilo Miranda Sobral Neto
Vitória Caetano Dreyer Dinu 221

8
25.  DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS:
UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Erika Patrícia Ferreira dos Santos


Isabel Cristina Souza Queiroz
Marco Aurélio da Silva Freire 234

26.  REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88


Eriverton Felipe de Souza 242

27.  NEGOCIADO X LEGISLADO:


O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO

Fábio Túlio Barroso 253

28.  NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA


Fábio Túlio Barroso 260

29.  O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


POTENCIALIDADES E RISCOS

Fernanda Fonseca Rosenblatt


João André da Silva Neto
Maria Júlia Poletine Advincula
Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos 266

30.  A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF:


UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?

Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes


Laís Emanuella da Silva Lima
Maria Eduarda Moreira de Medeiros 277

31.  O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O


PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
João Paulo Allain Teixeira 283

9
32.  AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
Paloma Mendes Saldanha 291

33.  A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO DISCURSO


PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA
Fernando Borba de Castro
Lenice Kelner
Leonardo Idenio Soares 298

34.  A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE


ESCRAVO
AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO

Flora Oliveira da Costa  310

35.  A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO


UM OLHAR LUHMANNIANO

Flora Oliveira da Costa 317

36.  A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE DROGAS:


UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA

Gabriela Parisi de Amorim


Gisele Vicente Meneses do Vale
Paloma dos Santos Silva 327

37.  A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS


HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE DIFERENTES CORTES
Gabriel Soares Ribeiro Lopes
Maria Carolina Oriá Veloso 334

38.  É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA


MERCADORIA?
Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira 
Larissa Brasileiro Malheiro 
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso 342

10
39.  LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO
DE PROTEÇÃO
Gessyca Galdino de Souza
Gustavo Ferreira Santos 346

40.  ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE A


DIREITOS FUNDAMENTAIS:
ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 –
LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS

Glauco Salomão Leite


Dyego José Holanda Pessoa
Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino 356

41.  O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA:


ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Glauco Salomão Leite


Mirella Luiza Monteiro Coimbra
Pablo Diego Veras Medeiros 365

42.  ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO:


O CASO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA USO PRÓPRIO.

Glauco Salomão Leite


José Raimundo Silva Neto
Raphael Crespo Forne 375

43.  ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO BRASIL:


UMA ANÁLISE DA ADPF 347

Glebson Weslley Bezerra da Silva


Mariane Izabel Silva dos Santos
Roberta Rayza Silva de Mendonça 383

44.  POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA


TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO
Idalina Cecília Fonseca da Cunha 391

11
45.  MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS:
TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO

Indira Capela Rodrigues


Raquel Fabiana Lopes Sparemberger 397

46.  SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA:


O PUNITIVISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPOSIÇÃO DA PENA PELO SISTEMA DE JUSTIÇA
CRIMINAL

Iricherlly Dayane da Costa Barbosa


João André da Silva Neto
Marília Montenegro Pessoa de Mello 409

47.  NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO INSTRUMENTOS PARA


EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Jaqueline Maria de Vasconcelos
Patrícia Freire de Paiva Carvalho 417

48.  JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO:


UMA ANÁLISE PROCEDIMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUPRIMENTO FUNDAMENTAL NO
CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO A PARTIR DE JACQUES DERRIDA

Joyce Batista do Nascimento


João Paulo Allain Teixeira 423

49.  DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA:


A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE

Julia Santa Cruz Gutman


Renata Santa Cruz Coelho 438

50.  CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:


BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS

Luciano José Pinheiro Barros 


Raquel Alves Almeida Silva
Ana Beatriz Oliveira de Souza 447

51.  CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA


Luciano José Pinheiro Barros
Mateus Siqueira Pacheco 455

12
52.  DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS
Maria Alana Calado Capitó
Pedro Victor Montenegro de Albuquerque 464

53.  CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS:


A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Maria Raquel Firmino Ramos 470

54.  AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006:


A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL.

Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora)


Juliana Gleymir Casanova da Silva  479

55.  A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88:


A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Marco Aurélio da Silva Freire


João Paulo Rodrigues do Nascimento 487

56.  (IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA CONTRATAÇÃO


INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO
Marta Rodrigues de Oliveira
Roberta Cruz da Silva (orientadora) 496

57.  A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA ORDEM


CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA:
O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO

Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo 507

58.  LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS:


O CASO DE “RAS GERALDINHO”

Mateus Rafael de Sousa Nunes 514

59.  DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA.


Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira
Camila Freire Monteiro de Araújo 521

13
60.  A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE:
UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA

Paloma Mendes Saldanha 528

61.  DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS


Rafael Lima Rangel Vasconcelos 543

62.  A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA


LIBERDADE
Silvana Vieira da Silva 553

63.  A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL:


ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Synara Veras de Araújo 562

64.  BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO


Renata Santa Cruz Coelho
Caroline Alves Montenegro 568

65.  “O ONTEM É HOJE”:


SOBRE A TUTELA DOS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTE NA OBRA CINEMATOGRÁFICA TATUAGEM

Synara Veras de Araújo 578

66.  ESTUDO IDEOLÓGICO SOBRE O MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO DO NOVO CPC


Steel Vasconcellos 588

67.  O DISCURSO DO ÓDIO FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES MINORITÁRIAS COMO HIPOTÉSE DE


COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Tieta Tenório de Andrade Bitu 598

68.  CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH)


Valdênia Brito Monteiro
Bárbara Raquel da Silva Fonseca 610

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69.  A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE
DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
Luize Ivila Santos da Rocha
Larissa Gabrielle Silva de Andrade 619

70.  CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS DROGAS


Victor de Goes Cavalcanti Pena
Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes 625

71.  A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE


CONVENCIONALIDADE
Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão
Thiago Oliveira Moreira 630

72.  PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA:


UM DEBATE POSSÍVEL?

Wictor Hugo Alves da Silva 640

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM


RELAÇÃO DE CONSUMO:
DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E
REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Adriano Barreto Espíndola Santos


Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito
Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em
Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em
Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado.

Aldo César Filgueiras Gaudêncio


Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Pós-graduado em direito
empresarial pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado em direito dos
contratos. Advogado.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A proteção do consumidor e sua reparação por eventuais danos como
garantias constitucionais; 1.1. Da reparação por danos na sistemática da responsabilidade civil do có-
digo de defesa do consumidor; 2. Do dano moral ao social: um quadro de grave comprometimento da
vida humana na relação de consumo; 3. O aparelhamento nocivo e sistemático do “dano eficiente”;
4. O diálogo entre sistemas como forma de aplacar diferenças e fomentar ganhos sociais; Conclusão;
Referências.

INTRODUÇÃO

Diante da permanente necessidade de cuidado ao consumidor, figura, por sua própria condição, frágil
na relação de consumo, desenvolver-se-á este estudo com o intuito de, dentre tantas problemáticas sobrevin-
das, aplacar os enormes prejuízos de ordem moral, em específico, sofrido pelos consumidores nestas últimas
décadas.

Numa luta até então desigual, atendendo-se à dignidade da pessoa humana, com a expressão de boa
parte dos anseios sociais em nossa Constituição Federal de 1988 e, depois, em sede de código de defesa do
consumidor – lei n.º 8078/90 -, conseguiu-se estampar o direito à reparação de danos - evidente que se fir-
mou aí grande avanço para uma sociedade consumerista, carente de segurança jurídica.

Mas, com as recorrentes constatações de lesões aos consumidores, vê-se que a estrutura jurídica
brasileira ainda apresenta lacunas que oferecem espaços às práticas destrutivas operadas pelos lesantes,
voltadas tão somente à racionalidade econômica.

De modo que, com as experiências exitosas alienígenas, obtém-se, então, base para adequar o modelo
da função punitiva da responsabilidade civil ao sistema brasileiro, servindo tal instrumento para se alcançar
a função social do mencionado instituto, como, também, travar, ou mesmo, de fato, eliminar o dano social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E SUA REPARAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS COMO


GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.

A Constituição Federal de 1988 garante proteção aos consumidores imputando ao Estado uma
obrigação de promoção de sua defesa. Aliado a isso, terão os consumidores a garantia da possiblidade de
serem reparados por eventuais danos que venham a suportar nas no mercado de consumo.

Especificamente, o legislador constitucional inseriu no texto do artigo 5º, inciso X a reparabilidade


por danos morais e materiais, quando garantiu a inviolabilidade dos direitos da personalidade. De sorte que,
o que extraímos é que o instituto da responsabilidade civil se vê presente no texto constitucional, agora como
uma garantia da ordem jurídica estabelecida a partir de 1988 (MORAES, 2013).

Ainda, como direito fundamental, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como a norma impe-
rativa o disposto no artigo 5º, inciso XXXII, que institui que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do
consumidor”. Lei esta que deveria ser elaborada dentro de 120 dias a partir da promulgação da Constituição,
conforme artigo 48 dos atos das disposições constitucionais transitórias, na mesma Constituição (MIRAGEM,
2002 - Conferir também (CAVALIERI FILHO, 2008); (DUQUE, 2009); (GRAU, 1993)).

A inserção do artigo 5°, XXXII, entre os direitos fundamentais coloca os consumidores entre os ti-
tulares de direitos constitucionais fundamentais, porque estes não mais se resumem aos direitos de defesa
contra interferência estatal na esfera jurídica particular (CANOTILHO, 1993). Atualmente, os direitos fun-
damentais conferem também aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento
e direitos as prestações sociais.

Entendemos que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais e, assim, proteger um
cidadão perante o outro.

Além disto, o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988, tornou a defesa do consumidor um
princípio da ordem econômica constitucional. Estes dois dispositivos – artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170,
inciso V – legitimam todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. A
defesa dos consumidores pauta-se, em primeiro, nas razões econômicas derivadas das formas, segundo as
quais se desenvolvem, em grande parte, ao atual tráfico mercantil e, em segundo, por critérios que emanam
da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos imersos – na chamada sociedade
de consumo em massa1.

O dispositivo constitucional ordena ao Estado Brasileiro o dever de promoção à defesa do consumidor


na forma de lei e não mera faculdade, pois se trata de um imperativo constitucional que ordena ao Estado em
todas as esferas de poder (união, estado e municípios) e na sua tripartição de poderes (executivo, legislativo
e judiciário)2. Foi o constituinte originário que instituiu um direito subjetivo público geral para todos os bra-
sileiros como uma garantia fundamental. Outro imperativo ocorreu nos atos das disposições constitucionais
transitórias, em seu artigo 48, que, por sua vez, deu prazo e nomeou a lei de defesa do consumidor como
Código de Defesa do Consumidor (CAVALIERI FILHO, 2008)3.

Finalmente, a Lei n.º 8078/90, Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, foi promulgada em 1990,
e acarreta importantes mudanças que, no decorrer dos anos 90 e na primeira década do século XXI, tanto nos
1  NUNES, 2012, p. 52: “No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consu-
midor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se
à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são, também, simultaneamente
extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição
Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo
constitucional”.
2  BENJAMIN, 2008, p. 68, que afirma: “Se a Constituição Federal de 1988 manda o Estado-juiz, o Estado-executivo, e o Esta-
do-legislativo proteger imperativamente o consumidor em suas relações intrinsicamente desequilibradas com os fornecedores de
produtos e serviços, a CF/88 não definiu quem é o consumidor – logo temos que recorrer ao CDC, como base legal especial infra-
constitucional para saber quando aplicar o CDC”.
3  Ver também ALMEIDA, 2003; NISHHIYAMA e DENSA, 2011, pp. 432 a 433, que afirmam: “o princípio da proteção do con-
sumidor é norma constitucional”; DUQUE, 2009.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mecanismos de proteção, com o surgimento de novas associações civis voltadas à proteção dos consumidores,
como órgãos administrativos também com o mesmo escopo.

Além disso, impôs importantes e gradativas mudanças às relações de consumo, perceptível na me-
lhora na qualidade de fabricação dos produtos e na relação das empresas, de um modo geral, frente os con-
sumidores4.

1.1. DA REPARAÇÃO POR DANOS NA SISTEMÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO CÓDIGO DE


DEFESA DO CONSUMIDOR.

A lei n.º 8.078/90 adotou uma sistemática própria para garantir a reparação dos danos oriundos das
relações de consumo. Assim, como se percebe claramente da citada lei, a responsabilização dos fornecedores
está dividia em duas partes, em primeiro, a responsabilização decorrente dos acidentes de consumo ocorri-
dos por defeitos nos produtos e serviços, tratada entre os artigos 12 a 14, e, em segundo, a responsabilização
decorrente dos vícios nos produtos e serviços, previstos nos artigos 18 a 20.

A responsabilidade por fato do produto ou do serviço identifica-se pela ocorrência de defeito. O de-
feito que emerge do produto ou serviço disposto ao consumidor é a consequência de um dano provocado por
uma falha no funcionamento regular destes5.

Desse modo, o dano moral emerge imediatamente dos acidentes de consumo, haja vista que não há
que se falar em acidente de consumo se não ocorrer o dano. Assim, a sistemática aplicada pelo Código de De-
fesa do Consumidor atribui a quem idealizou e concebeu o produto ou o serviço o dever de repara eventuais
danos suportados pelos consumidores.

Quando a responsabilidade se trata de vício do produto ou do serviço, regulada pelos artigos 18 e 19,
vício de qualidade e quantidade do produto, respectivamente, e artigo 20, vício de qualidade do serviço, a
ocorrência de dano seria em razão pela demora na reparação do vício. Em outras palavras, havendo vício no
produto ou serviço, há um prazo de 30 dias previsto na lei para resolução da falha, e, em caso de alargamento
deste período por retardo do fornecedor em repará-lo, caso haja dano, então pode ser imputado ao fornece-
dor o dever de pagar indenização, que, repetimos, tem relação a danos gerados pela demora em sanar o vicio
(NUNES, 2012).

A sistemática prevista na Lei n.º 8078/90, apesar de pautada na divisão a partir do entre defeito e
vício, este menos gravoso, intrínseco ao bem ou serviço, com formas de reparação previstas em lei – havendo
a possibilidade de a reparação ocorrer por danos morais e matérias -, e aquele, mais gravoso, e que se dá pela
ocorrência de dano provocado pela exteriorização vício no bem ou serviço.

O consumidor possui um instrumento forte de reparação dos danos que vier a suportar no mercado,
no entanto é comum determinadas práticas abusivas ou perigosas, por vezes lesivas, serem recorrentes, o
que quer nos mostrar que as indenizações pagas talvez não sejam suficientes para alterar as mesmas práticas
empresarias prejudiciais aos consumidores.

2. DO DANO MORAL AO SOCIAL: UM QUADRO DE GRAVE COMPROMETIMENTO DA VIDA


HUMANA NA RELAÇÃO DE CONSUMO.

Numa perspectiva moderna, nota-se que as relações de consumo tendem a oferecer sempre novas
alternativas com o fito principal de promover os ganhos econômicos. E isso corresponde a fato natural, ine-
xorável aos avanços da sociedade, que precisa atender às suas necessidades, amparada, principalmente, pela
celeridade e pelo desenvolvimento comum.

4  Sobre relação de consumo Cfr. PASQUALOTTO, 2011; OLIVEIRA, 2002.


5  Cfr. CAVALIERI FILHO, 2008, p. 265: “(...) fato do produto é um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que
causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Não há mal propriamente neste processo. A grande questão que se impõe é saber até que ponto as
citadas relações podem estar revestidas da licitude. Se se ultrapassar esta barreira, dos negócios justos, segu-
ramente sobrevirão enormes prejuízos aos consumidores, que se veem fracos perante o insuportável peso do
poder socioeconômico exercido pelos fornecedores lesantes.

Ou seja, quanto mais lacunas se deixam escapar, mais fortes se tornam os lesantes e, por conseguinte,
o controle de seus atos se vislumbra como demasiado frustrante, sobretudo para os consumidores, que, já
prejudicados, não têm meios para buscar amparo legal.

Fecha-se o seguinte cenário: o consumidor, naturalmente, tem de resolver as questões do dia a dia,
quais sejam levar o filho a escola, pagar as contas, ir ao médico, dentre outros afazeres prioritários, assim,
vê-se, não tem tempo para buscar amparo no poder judiciário, ainda mais sabendo que tal iniciativa pode não
acabar como desejada, resultando tudo num grave transtorno moral.

O dano moral, antes analisado sob a feição de um só ente, hoje, com tais problemáticas de ordem
consumerista, passa a compreender uma extensão muito maior, às vezes até de difícil avaliação e controle,
o denominado dano social. Segundo o idealizador da teoria do dano social, Antonio Junqueira de Azevedo, o
dano social é aquele mal impelido em face de muitos indivíduos, de uma parcela considerável da sociedade
que se vê achacada em seus elementos mais ínsitos, como a moral, o bem-estar subjetivo, a paz e a seguran-
ça, por exemplo6.

Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (MORAES, 2006, p. 246), o dano moral corresponde
à lesão perpetrada em face da dignidade humana7. Pois bem, nada mais elucidativo que trazer à baila tais
palavras, as quais confirmam o grave mal do dano social. Como o próprio nome já assim o denota, diz res-
peito a uma lesão pratica à dignidade de uma infinidade de pessoas, portanto, mais severa, que merece ser
combatido de modo eficaz.

O dano social subtrai a tranquilidade de toda população8. Deixa-se a impressão que ao lesante é per-
mitido continuar tais atos, ao passo que o lesado se sente atônito e desorientado quanto aos seus direitos.
Acaba, então, a aceitar a situação porque não sabe ao certo como, se ou a quem, ao menos, deve recorrer.

Para descrever melhor, o estado da população se sintetiza em resignação. Aceitar passiva as adversi-
dades é exatamente o que espera o lesante, tendo como base, tão somente, a sua racionalidade económica,
direcionada a compatibilizar, a seu modo, gastos e lucros, sujeitando os consumidores aos mais indignos
tratamentos.

O dano de esfera social vai implantando, velada e sutilmente, uma sensação progressiva de sujeição
aos quadros atuais. Pensa-se: tudo está como deve ser, e pronto. Não se projeta qualquer tipo de solução,
restando, especialmente ao mais hipossuficiente, a submissão, o que pode concorrer para o superendivida-
mento.

Para melhor confrontar ideias, cumpre apresentar a seguinte situação hipotética: acostumado a rea-
lizar seus pagamentos por via bancária, através de débito automático, porque, ocupado, João não tem tempo
para realizar tais atividades diretamente em agências, fica surpreso com a cobrança de uma taxa de serviço,
quando, à época, ao perguntar ao gerente do banco, fora informado que nada seria acrescido a sua conta

6  AZEVEDO, 2004, p. 376: “Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento
de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos
sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as con-
dições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do
índice de qualidade de vida da população”.
7  MORAES, 2006, p. 246: “Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da
pessoa humana”.
8  AZEVEDO, 2004, p. 375: “A segurança, nem é preciso salientar, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais
segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior. Logo, qualquer ato doloso ou gravemente culposo, em que o sujeito ‘A’ lesa o
sujeito ‘B’, especialmente em sua vida ou integridade física e psíquica, além dos danos patrimoniais ou morais causados à vítima, é
causa também de um dano à sociedade como um todo e, assim, o agente deve responder por isso. [...] A ‘pena’ – agora, entre aspas,
porque no fundo, é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

habitual. Após realizar os cálculos de quanto teria desembolsado em três anos, reparou que os gastos mês a
mês não impactavam tanto em seu orçamento – por isso não havia notado a situação velada -, mas que, ao
final, isso correspondia à importância significativa, que poderia ser utilizado para cobrir outras obrigações.
Sentindo-se fragilizado ante o poderio do banco, mesmo questionando seu gerente, não obteve resposta posi-
tiva, restando-lhe o amparo do poder judiciário, que, não se sabe quando, poderá ter tais valores recuperados.

Fatos como este supracitado repetem-se diuturnamente, sem controle prévio e apropriado, deixando
o consumidor convencido que os esforços empregados para tal fim podem resultar em algo assaz desgastante.
Tendo sua esfera existencial já fortemente atingida pelo ato em si, ainda pode se ver mais envolvido em razão
das tentativas, digamos, estéreis.

3. O APARELHAMENTO NOCIVO E SISTEMÁTICO DO “DANO EFICIENTE”.

Notórios, nos meios midiáticos, os abusos cometidos por empresas de grande poder socioeconômico,
como é o caso de companhias aéreas, operadoras de telefones, dentre outras. Mais alarmante que isso é sa-
ber que os casos se repetem, que as mesmas empresas mantêm suas atividades desvirtuadas porque não há
controle eficaz9.

O fato é que, por não haver freios legais, acostumam-se a desempenhar suas atividades sem qualquer
apego à vida humana. É dizer que as suas decisões serão sempre orientadas pelos resultados econômicos. Se
os ganhos compensam, descarta-se a condições psicofísicas dos indivíduos envolvidos, podendo os lesantes,
então, submeterem-se às possíveis ações judiciais – quando algum lesado tiver disposição para tal -, e se for
condenado, deverá pagar o quantum arbitrado em juízo, de caráter compensatório.

Vislumbrando as quantias de indenização que porventura surjam, os lesantes têm segurança em sa-
ber o patamar que irá interferir em seu orçamento. Porque as indenizações compensatórias são antecipada-
mente cognoscíveis, estes entes, alheios aos resultados que podem ser devastadores, raciocinam que o lucro
compensa.

É nesse sentido que se opera o “dano eficiente”, na concepção de César Fiúza (FIÚZA apud PIMEN-
TA e LANA, 2010, p. 128)10. O agente lesante encontra campo lacunoso – em legislação – para aplicar o seu
intento, sem se ater ao princípio jurídico mais importante, a dignidade da pessoa humana, insculpida no art.
1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, norma que rege todo o ordenamento
brasileiro.

Por controlar todo o processo danoso, os custos das operações etc., o lesante chega a tranquila con-
clusão que os custos com a readequação do produto, em se tratando, por exemplo, do recall, seria muito
mais dispendioso que manter a situação como está, sujeitando-se, se for a hipótese, às possíveis indenizações
compensatórias, e se condenado for.

Pela insignificância, e ante o poderio econômico do lesante, na maioria das vezes estas mesmas
empresas pressionam a realização de acordos, e logo no início, sem conferir o potencial lesivo do mérito da
questão, já são encerrados inúmeros casos. Restam, portanto, alguns poucos que, ao final, não conseguirão
efetivamente exprimir os caráteres dissuasivo, exemplar e punitivo, em face da conduta.

9  FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2014, p. 411: “[...] As estatísticas demonstram que o Poder Judiciário e, especialmente os
juizados especiais, converteram-se em repositórios de demandas de responsabilidade civil. Assombra a reiteração de demandas
contra os mesmos réus, pelas mesmas práticas reveladoras de um profundo descaso com os seus clientes e a sociedade. Há uma
subversão axiológica, haja vista que a lógica puramente patrimonialista e individualista – de uma racionalidade estritamente eco-
nômica -, paira sobre situações jurídicas existenciais e metaindividuais. A eventual reparação de danos será um preço previamente
conhecido e contabilizado pelo lesante”.
10  FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128: “Fala-se, por fim, em dano eficiente e dano ineficiente. Ocorre dano eficiente,
quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora verificar
que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após
alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall, para
concertar o defeito de todos os carros vendidos que forem apresentados, estaremos diante do dano eficiente”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Para melhor aclarar o tema, vale lembrar o emblemático caso Pinto Case em que a Ford produziu car-
ros em formato de pinto, como o próprio nome sugere, onde o arranjo e qualidade das peças não condiziam
com a segurança desejada. Assim, em virtude de acidente no qual houve a morte do condutor, além de graves
lesões nos passageiros, chegou-se ao poder judiciário dos EUA a questão, momento em que ficou constatada
a má colocação do tanque de combustível, assim como a fragilidade do material empregado, o que ocasionou
o evento trágico.

Comprovou-se, ademais, inclusive certificado pelo dono da empresa em audiência, que era do conhe-
cimento da Ford o aludido problema, contudo, em razão da alteração do design do produto para a reformula-
ção, seria melhor se submeter às possíveis indenizações, se fosse o caso, pagando as quantias compensatórias.

Consternado com a desconsideração à vida, o Tribunal da Califórnia determinou a condenação em


indenizações de caráteres compensatório e punitivo, esta muito mais acentuada, com o intuito de provo-
car verdadeira repressão ao comportamento praticado e aviso aos demais pretensos lesantes (LOURENÇO,
2008, p. 4 e 5).

Logo, a lei não pode dispor de espaços que facilitem as citadas manobras. De tal modo que se impõe
o auxílio da análise econômica do Direito para dirimir estas falhas, direcionando o estudo, a feitura, e a apli-
cação da norma para eliminar do lesante a visão restrita da racionalidade econômica. Com isso, as atividades
serão enformadas a atingirem a eficiência, sem, contudo, dar margem aos danos11.

4. O DIÁLOGO ENTRE SISTEMAS COMO FORMA DE APLACAR DIFERENÇAS E FOMENTAR


GANHOS SOCIAIS.

No sistema anglo-saxônico, o common law desenvolveu-se ferramenta a ensejar a responsabilização


do agente através de uma pena civil, os designados punitive damages. Tal instrumento, além de vir acompa-
nhado à compensação do lesado, tem por fulcro a penalização à conduta lesiva e servir de exemplo para que
os demais desistam de tal iniciativa.

Mesmo diante de toda resistência do sistema civil law em acolher tal instrumento, atendendo-se às
reservas e adequações pertinentes, frise-se: não há mais razão para o distanciamento entre sistemas, vez que
o fim será sempre a proteção humana, através do reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana.
Além disso, a função punitiva da responsabilidade civil proporciona o versátil enlace social do instituto, que
pode, ao mesmo tempo, servir de controle preventivo e pena civil.

Reflexo dessa imprescindível tutela social desponta cada dia mais, sobretudo no poder judiciário bra-
sileiro, soluções voltadas a desestimular tais condutas lesivas, ainda que as condenações hodiernas, nem de
perto, possam ser comparadas àquelas aplicadas, mormente, nos EUA12.

Por sua relevância, expõe-se o inteiro teor de trecho de recente decisão de primeiro grau de jurisdi-
ção, no Estado do Ceará, por meio da qual o magistrado salienta o papel punitivo da indenização pela respon-
sabilidade civil, instrumento regulador da conduta social: “Também, deve a indenização servir de advertência
ao ofensor, evitando-se, dessa forma, a reincidência, exteriorizando seu caráter punitivo e preventivo, através
da fixação de um valor razoável” 13.

11  PIMENTA, 2006, p. 169: “O que pressupõe a análise econômica do Direito é que a conduta legal ou ilegal de uma pessoa é
decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. Parte-se da premissa que os agentes – su-
jeitos de direito – irão conduzir-se diante da legislação de forma a fazer a escolha que incorra em uma melhor relação quantitativa
entre os custos e riscos envolvidos e os possíveis benefícios (escolha baseada no critério eficiência)”.
12  MINAS GERAIS, 2011: “No que se refere ao quantum indenizatório referente ao dano moral, a despeito de não ser expres-
samente adotada por nosso ordenamento jurídico a doutrina norte-americana do punitive damages, é lugar comum na doutrina e
na jurisprudência que a indenização deve levar em conta o dano, a capacidade econômica da vítima e do agente, bem como o viés
pedagógico da indenização, capaz de desestimular a reiteração da conduta social indesejada”.
13  (SENTENÇA, 2015, p. 332).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONCLUSÃO

Há de se acolher o que de bom se construiu em tradição alienígena, como bem assevera Nelson
Rosenvald (ROSENVALD, 2014, p. 165), porque os ganhos sociais serão sempre maiores que a precipitada
inobservância14.

Guardadas as proporções regionais e culturais, que devem ser respeitadas, a função punitiva atende-
rá, inclusive, à função social da responsabilidade civil, maior contributo a ensejar que se evitem, preventiva-
mente, a incidência do dano, estando, pois, mais condizente com os ditames da cláusula geral da dignidade
da pessoa humana.

Com a função punitiva, o sujeito sentir-se-á mais seguro, de que haverá a resposta apropriada do po-
der judiciário, além disso, os demais entes de poderio econômico e social saberão o revés legal aposto às suas
más condutas. Concomitante a isso, também, observe-se: o pretenso lesante não terá como calcular possíveis
vantagens econômicas que existiriam se se sujeitasse, eventualmente, às condenações judiciais, como no
caso de indenizações compensatórias, ao invés de conferir ao produto ou ao serviço os ajustes necessários
à segurança do consumidor, porque as indenizações de caráter punitivo não podem ser avaliadas de modo
antecipado.

Assim, ficam evidenciadas a eficiência e a segurança jurídica determinadas pela função punitiva da
responsabilidade civil, tendo em conta que o dano eficiente não mais poderá se formar, desmontando, com
isso, o arranjo perigoso inclinado a causar o dano social, grande mal da atualidade.

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1069 p. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.

14  ROSENVALD, 2014, p. 165: “As fronteiras foram rompidas. Não há como preservar a intransponível dicotomia entre a civil
law (romanística, codificada e identificada por um ordenamento legislativo) e a common law (não romanística, não codificada e
identificada em um ordenamento judiciário), tal como se fossem universos apartados. A nacionalidade do direito privado se revela
um obstáculo às relações econômicas, cada vez mais intensas, entre cidadãos e empresas de países e sistemas jurídicos diversos.
Ademais, a pureza metodológica ficou no passado. As nações da common law recorrem à legislação, assim como os Estados filiados
ao civil law concedem paulatina importância à construção do direito pelos tribunais e pelos costumes”.

22
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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SENTENÇA de 1º Grau de Jurisdição. 27ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza, Estado do Ceará. Processo
nº: 0543433-35.2012.8.06.0001. Classe: Procedimento Ordinário. Requerente: Anadir Espindola Barreto e
outro. Requerido: Coelce – Companhia Energética do Ceara. Juiz de Direito Dr. Jose Cavalcante Junior. De-
cisão datada de 14/09/2015 e publicada em 16/09/15, no Diário da Justiça, em página de n.º 332.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO:


IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA


Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade
Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro
da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE.

VICTOR RAFAEL ALVES DE MATTOS


Acadêmico em Direito pela AESO Barros Melo.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Hermenêutica filosófica; 2. Müller e a jurisprudência hermenêutica; 3.


Pré-Compreensão; 4. Circularidade hermenêutica; 5. Segurança jurídica e metódica. Conclusão.
Referências.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar as estruturas motoras da hermenêutica tratada por Müller
e a Jurisprudência Hermenêutica para contrastar com o princípio da segurança jurídica. A pergunta norte-
adora dessa pesquisa é se este recente movimento hermenêutico, baseado nas ideias de Heidegger e Gada-
mer, oferece segurança jurídica. Esta pergunta, portanto, não pode ser compreendida como se estivéssemos
abordando uma proposta política, pois a hermenêutica filosófica não prescreve elementos axiológicos, mas,
descritivos.

Müller se insere no contexto pós-guerra e toma para si o desafio de indagar e romper1 com o positivis-
mo jurídico, especialmente o kelseniano. Isso faz de Müller, necessariamente, um pós-positivista.

A fonte primordial de Müller para desenvolver suas ideias foram bastante profundas, visto que a her-
menêutica filosófica em seu tempo estava em processo de transformação paradigmática bastante elementar.
Heidegger findou com a hermenêutica ontológica e Gadamer seguiu essa característica. Em uma metáfora
simples, diz-se que a hermenêutica sofreu uma mudança instrumental. O sujeito outrora utilizava de uma
luneta, necessitava enxergar toda a mínima essência daquele objeto para auferir uma verdade sobre este.
Devido às frequentes falhas deste método, a “nova” hermenêutica utiliza espelhos em volta do objeto, pois
não há mais dissociação pura entre sujeito e objeto no processo de compreensão.

1. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA.

O termo “hermenêutica” origina-se do deus grego ‘Hermes’. A este cabia a função de mensageiro
dos deuses, interpretando suas mensagens àqueles que não poderiam compreendê-la. Como rotineiramente
pontua Lênio Streck, nunca se soube o que os deuses realmente disseram, mas o que Hermes interpretou.
Esta alegoria permite-nos concluir a atual função da hermenêutica contemporânea. Sob a ótica desta a on-
tologia é descartada para dar lugar ao analítico, a ““essência” é apenas, ela própria, uma palavra que ganha
sentido num contexto linguístico” (FERRAZ JR., 2015).

1  Este rompimento não significa total abdicação das ideias contidas na obra Teoria Pura do Direito.

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Direito(s) em debate.

A hermenêutica “se restringia a tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algu-


mas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da
interpretação” (GRONDIN, 1999). Isto implica em dizer que em todo momento da história em que fora ra-
cionalizado metodologias interpretativas pode-se falar em hermenêutica no seu sentido amplo.

O caráter usado na antiguidade até o século passado tinha a função basilar de descobrir, pois acredita-
va-se que havia um significado real e verdadeiro para os componentes da vida, fenômenos e textos. Juridica-
mente estas ideias extremaram no positivismo clássico, onde a lei seria aplicada à determinado caso através
do método dedutivo, sendo a interpretação normativa restrita ao uso de técnicas interpretativas pré-estabe-
lecidas a todo e qualquer processo decisório.

Hodiernamente o fator fulcral está centralizado na ‘compreensão’. Schleiermacher pode ser indicado
como um daqueles que universalizaram a sistemática elaborada por Lutero, buscando o entendimento do
texto com a vinculação do significante para com o respectivo autor. Este encarava como arbritrária o acrésci-
mo de conteúdos próprios ao texto pelo intérprete (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH).

Há também a colaboração de Dilthey, com seu enfoque psicológico, porém, apenas a partir de Heide-
gger pode-se falar em compreensão hermenêutica nos moldes desenvolvidos por Gadamer.

O desenvolvimento de Gadamer, destacado repetidas vezes por Müller são as condições de possi-
bilidade da compreensão. Para que esta ocorra faz-se necessário haver a pré-compreensão. Isto porque o
intérprete, no seu processo interpretativo, atrela-se a um fator orientador, cuja essencialidade é histórica e
contextual. Assim, cada interpretação será uma aplicação do estado de consciência do intérprete. Eis porque
a compreensão gadamariana não é um processo descritivo e reprodutivo, mas produtivo e criativo. A circula-
ridade hermenêutica se pauta no ‘embate’ transcorrido entre o texto na sua tradição amparado de signos e a
contribuição da consciência trazida pelo intérprete. “Portanto, o intérprete tem de saber que a interpretação
de um texto é sempre uma aplicação ao presente” (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH apud GADAMER).

2. MÜLLER E A JURISPRUDÊNCIA HERMENÊUTICA.

Classificar os movimentos contemporâneos hermenêuticos é, além de um árduo trabalho, impossível


sistematizar com exatidão em diferentes grupos. Isto se dá pelo fato de não haver escolas, mas movimentos
convergentes em determinados aspectos e influências. O autor utilizado como base teórica desta pesquisa
enquadra-se na chamada “jurisprudência hermenêutica”. O termo é utilizado por Gustavo Just, em sua obra
“interpretando as teorias da interpretação”. O motivo da sua escolha é justificado. “Jurisprudência” relacio-
na-se com as teorias consagradas “jurisprudência dos conceitos” e “jurisprudências dos valores”. O termo
seguinte denota o pensamento influente desta corrente, a filosofia hermenêutica.

A jurisprudência hermenêutica surge a partir de um contexto antiformalista trazida pelo pós-positi-


vismo. Nesta esfera são levantadas as bandeiras da práxis decisória e sua axiologia em sentido epistemoló-
gico, demonstrando dessa forma um rompimento com as ideias centrais do positivismo. Aquele funda-se na
ideia de que a norma e a realidade não podem ser estabelecidas em mundos paralelos. A norma não pode
ser fundamentada e racionalizada pura e simplesmente através da subsunção, pois a realidade intervém no
processo interpretativo.

A partir desse novo paradigma é que a jurisprudência hermenêutica se estabelece pelas suas raízes da
hermenêutica filosófica de Gadamer. Noções como “pré-compreensão”, “círculo hermenêutico”, são utiliza-
das pelos teóricos desse movimento. Apesar disso, esta corrente não promulga uma interpretação filosófica,
mas pela práxis e com o uso da dogmática.

Não se pode confundir o uso de determinados elementos da filosofia com uma abordagem filosófica.
Este movimento visa a metodologia prática da interpretação, sendo assim, o tratamento geral do direito, como
encara Dworkin pela sua filosofia analítica, é destoante com a JH.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Veremos mais adiante que um comportamento comum dos teóricos da JH é a separação herme-
nêutica em determinadas áreas do direito. Müller, em sua teoria estruturante, evidencia sua canalização na
hermenêutica constitucional (Müller, 2007). Para este, a universalização da metodologia interpretativa é um
erro, visto que a natureza de um determinado diploma possui características e celeumas próprios.

3. PRÉ-COMPREENSÃO.

A verificabilidade objetiva da decisão judicial se perfaz através de um caminho cuja base fulcral é
a racionalidade. A visão da JH sobre a determinabilidade dos elementos compositores dessa racionalidade
está aportada em um copo estrutural denso mais significativo e concreto do que aspectos mais específicos e
divergentes da metódica de cada um dos autores dessa “escola”2.

A estrutura elementar da JH é, em primeiro lugar, o “esclarecimento das condições e do potencial


de rendimento da objetividade jurídica” (MÜLLER, 2011). O esclarecimento ocorre quando são expostos os
fatores que participam da interpretação e concretização normativa, que são mais de um. Porém, primeira-
mente, iremos tratar da pré-compreensão.

A filosofia de Heidegger se pautava, dentre diversos aspectos hermenêuticos e fenomenológicos, a


pré-estrutura da compreensão. Segundo Jean Grodin, Heidegger buscou estudar aquilo que estava por de-
trás da elocução, logo, a pré-compreensão é uma estrutura fundamental do seu pensamento. Pode-se en-
tender esta “que o “Dasein” se configura por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes
de qualquer elocução ou enunciado” (GRODIN, 2003). Basicamente, a pré-compreensão está presente em
todo agente ao se debruçar sobre um objeto ao estuda-lo. Na ciência não é diferente, especialmente nas ditas
humanas e jurídicas.

Tomando a pré-compreensão como elemento indissociável de uma relação entre o sujeito e objeto sob
a qual ideias pretéritas e específicas de um agente dentro daquilo que se é, aonde é e quando é, a JH adota
como imprescindível não apenas a aceitação desta impossibilidade dissociativa, mas a exposição em cada
tentativa de compreensão (concretização) normativa, o que Esser vai chamar de “tomada de consciência das
condições fundamentais do seu trabalho” (1970).

O caráter axiológico da pré-compreensão não pode ser visto como uma contradição às ideias metódi-
cas e racional da interpretação. Parte-se do princípio de que todo intérprete não pode dissociar seu ser dos
conhecimentos e valores inerentes à sua formação e visão de mundo. Como alude Gustavo Just:

A consciência metodológica deixa patentes os fundamentos verdadeiramente


decisivos da interpretação e os torna acessíves à crítica, enquanto a ilusão da
suficiência do mero silogismo dos métodos compromete, na realidade, toda
possível autonomia jurídica da decisão relativamente às tentativas políticas e
ideológicas de usurpação instrumental da norma

A consciência dos elementos axiológicos não entrega o direito à política, pois, como enfatiza Esser, o
que causa perigo ao direito é o obscurecimento desse elemento. A partir do momento em que há a tomada de
consciência, pode-se exigir maior fundamentação racional do intérprete, levando consequentemente a um
maior controle racional da decisão judicial. Não há como falar em método racional sem objetivar a redução
da subjetividade do intérprete, e a tomada de consciência é um dos primeiros passos para a compreensão do
processo decisório em seu aspecto psicológico e factual. Como bem colocado pelo professor Andreas Krell “o
objetivo do método é reduzir a subjetividade do intérprete, possibilitar o seu autocontrole e “direcionar o seu
agir para caminhos previsíveis” (2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004, p. 139 ss.; STRAUCH, 2001, p.
200 s.).

2  Como já descrito neste artigo, a JH não é considerada como uma escola de pensamento pela ausência de aspectos formadores.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A dificuldade maior, como aponta Müller:

começam quando os preconceitos produtivos, que ensejam materialmente a


compreensão, devem ser separados dos que impedem a compreensão corre-
ta, a concretização conforme a norma. Essa separação não pode se dar ante-
riormente; ocorre na própria compreensão. Assim a reflexão e racionalização
dos preconceitos tanto produtivos quanto destrutivos – vistos do ângulo da
norma – se torna igualmente uma tarefa da teoria estruturante da norma.

Sob esse argumento que Müller enfatiza o aspecto elucidativo e introducionista dos elementos da
pré-compreensão na fundamentação do intérprete.

4. CIRCULARIDADE HERMENÊUTICA.

Como tratado anteriormente, a pré-compreensão compõe a estrutura da racionalidade do intérprete.


A consciência da sua existência é um passo necessário na formulação do pensamento da JH, entretanto, esta
por si só não elimina por completo a indeterminação do direito.

A doutrina formalista, sobretudo em seu raciocínio de codificação e positivismo3 não obteve êxito ao
aplicar medidas de exacerbação de um direito legislado, acreditando na ideia de que poderia complementar
e determinar o direito previamente ao juiz. Kelsen, por sua vez, avançou nesta problemática quando aludiu:

A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cog-


noscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência
dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação
simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz
de colmatar as pretensas lacunas do Direito (2009).

De fato, a jurisprudência dos conceitos demonstrou exatamente como não há possibilidade de prever
com exatidão uma decisão jurídica. Faltou a Kelsen desenvolver o processo decisório hermenêutico.

Assim, a proposta da JH se dá em analisar a indeterminação do direito legislado que caminha ao di-


reito aplicado. Busca-se a partir de agora superar o mero preenchimento e enrijecimento do direito legislado,
pois, o entendimento da JH se pauta no fato de que, todo esse processo de aplicação4 deve ser pensado sob
a circularidade hermenêutica. Isso resulta em um estudo não mais linear e hierárquico, mas simultâneo e
dialético.

A medida que se examina os pressupostos e enfoque analítico da JH fica mais notório sua influência
filosófica. Gadamer esboçou a respeito da circularidade hermenêutica que ocorre nos diversos campos cien-
tíficos, argumentando acerca da compreensão dialética, formulada pela pergunta e resposta constante no
processo interpretativo.

O caráter noético da hermenêutica anterior a Heidegger está pautada em um processo linear da


interpretação e pela busca ontológica através do método racional. Basicamente o positivismo científico5. O
processo dialógico gadameriano opera sob uma perspectiva de questionamento entre o intérprete e o objeto
para fins de compreensão. Compreender, para Gadamer, significa aplicar um sentido aos nossos questiona-
mentos. Isso não significa que nossos questionamentos remeterão à uma compreensão objetiva e pura de um

3  Aqui faz-se importante as recomendações de Norberto Bobbio em não confundir positivismo com positivação. Aquele é uma
“doutrina jurídica segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006). Esta significa o direito descrito e
posto, particular, temporal e mutável.
4  Nesse caso, a aplicação normativa é chamada por F. Müller de “concretização”.
5  Não confundir o positivismo científico com o jurídico. Apesar de alguns aspectos semelhantes, estes dois movimentos possuíam
diferenças significativas não apenas no seu objeto, mas em suas ideias também.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sentido, pois o ser (intérprete) é o sujeito mediador entre o objeto e a compreensão. E como já mencionado
no capítulo anterior, o ser é constituído de uma pré-estrutura compreensiva substancial.

Esses elementos sustentam uma posição contrária ao historicismo objetivo sob a ótica aplicacionista.
Em épocas diferentes é comum a compreensão diversa das pretéritas sobre um mesmo texto, visto que o
processo dialógico e questionador remeterá aos problemas presentes, ocasionando uma dependência rígida
entre o significado6 e o tempo em que o sujeito o atribui. Para os juristas é importante uma argumentação
neste sentido, ainda que o leitor discorde dessa posição. O argumento historicista causa diversas desconexões
sociais entre o texto legal e a composição real dos fatos presentes. Se compreender é questionar-se sobre um
problema presente, a partir de um intérprete vivente neste presente, a sua compreensão não será capaz de
destoar do entendimento presente.

O teor simultâneo trazido por Gadamer revela-se como corolário de uma compreensão formulada
essencialmente no questionamento. Um enunciado elocutivo trará pressupostos materiais (conteúdo) insu-
ficientes para uma compreensão participativa. Haverá simultaneidade quando o agente pensar simultanea-
mente nos pressupostos.

A partir deste panorama torna-se mais clarificado as ideias da JH. Sob a ótica do Direito não é neces-
sário nem recomendado seguir puramente o raciocínio de Gadamer, haja vista que esta fora feita dentro do
âmbito filosófico. Porém, sem a estrutura filosófica hermenêutica não é possível compreender a JH.

Esta, por sua vez, utilizou da circularidade e seus pressupostos para superar o entendimento kel-
seniano de que norma e realidade residem em esferas intocáveis. Ou seja, a JH não se preocupou apenas
em conscientizar os pressupostos do raciocínio jurídico, mas em demonstrar que os dois lados jurídicos se
entrelaçam na sua esfera interpretativa. A norma e o fato são, assim, indissociáveis, sendo necessário para
uma compreensão racional a influência mútua da realidade e o texto normativo. A simultaneidade ocorre
pela análise mútua entre o norma e fato em contraponto a linearidade apresentada por Kelsen. Para ilustrar
melhor, Kaufmann trouxe um exemplo dessa simultaneidade e pré-compreensão no direito penal:

O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segun-
do o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento
da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de
saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta
questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de
roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porven-
tura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é
uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma
‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos pro-
blemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’
do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado,
posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia,
não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso
concreto (2002). 

Como Gustavo Just bem coloca, esse raciocínio desmonta a ideia de que a norma possa ser determi-
nada abstratamente, sendo toda interpretação é aplicação. Seu sentido será buscado a partir da solução do
caso concreto.

5. SEGURANÇA JURÍDICA E METÓDICA.

A segurança é um fator almejado pelo ser humano sob um espectro global, dentre os quais inclui-se
a modalidade judicial. A estrutura do Estado é articulada sob o enfoque de defender e preservar a segurança
dos que o constituem. Avançando para o Estado democrático de direito este princípio, especialmente na sea-

6  É importante que o leitor tenha sempre em mente a sinonímia entre sentido (compreensão) e aplicação na visão gadermaria-
na. Uma aplicação do sentido é o item finalizador do processo interpretativo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ra judicial, recebe espaço ainda maior e efetivo. Um Estado sem insegurança jurídica flerta com o Estado de
natureza, haja vista ser o poder judiciário a ultima ratio das soluções de litígios públicos e privados.

Encontrar segurança dentro de um Estado para que seu povo possa prosseguir os atos da vida civil
e profissional é o caminho da civilidade. Por isto, acerta J. J. Calmon de Passos quando profere: “civilizar-se
é colocar imune ao arbítrio e isto só é possível quando deixamos de nos submeter ao governo dos homens e
passamos a obedecer a um conjunto de regras” (1999). Nota-se o fator objetivo almejado pelo autor, isto é, a
vinculação do dever ao direito previamente determinado.

Para fins desta pesquisa, trabalharemos essencialmente com a divisão estabelecida por Tércio Ferraz
Jr, dividida em duas formas, sendo a função-certeza “a determinação permanente de efeitos que o ordena-
mento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a
consequência de suas próprias ações”, e função-igualdade seria “um atributo da segurança que diz respeito
não ao seu conteúdo, mas ao destinatário das normas” (1981).

Sob o contexto hermenêutico da JH, quando se fala especialmente da circularidade hermenêutica e


sua dependência recíproca do caso prático, resulta inevitável cogitar a insegurança que esta conduta tenderá
a gerar ainda mais com o fomento dessas ideias. Nesse aspecto não há homogeneidade entre os pensamentos
de cada autor. Afinal, como almejar um sistema judicial previsível?

Um dos requisitos trazidos por Canotilho é o da exigência da clareza das leis, “pois de uma lei obs-
cura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de
alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto” (1993). Esta é uma visão primária de um consti-
tucionalista. Müller adota a metódica como via racional e passível de maior verificação objetiva da decisão.

Como já exposto em capítulos anteriores, a JH não acredita ser possível a total previsão normativa (da
mesma forma que pensou Gadamer e Heidegger). Isso seria contrastante com a estrutura do seu pensamen-
to. Todavia, como alertou João Maurício Adeodato e o próprio Müller, na contemporaneidade não é mais ca-
bível a pergunta maniqueísta, respaldada em uma mera afirmação ou negação da previsibilidade. Atualmente
discute-se o grau de racionalidade, assim como o grau de previsibilidade normativa.

O tracejo da aplicação7 normativa é desenvolvido pela metódica, motivada a “direcionar o seu agir
para caminhos previsíveis” (Krell, 2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004; STRAUCH, 2001). Dessa forma,
o intérprete deve revelar o máximo possível seu processo interpretativo, demonstrando as etapas metodoló-
gicas que seguiu. Esse processo interpretativo, para ser válido, deverá demonstrar a vinculação da produção
substancial decisória com a norma.

A função da metódica é, em essência, de demarcar um caminho verificável do processo de aplicação


para reduzir qualquer abuso decisório, ocasionando no ferimento ao princípio da segurança jurídica. Um
texto normativo não pode ser interpretado de inúmeras formas, tão somente contraditórias, por uma mesma
corte, sob pena de violar a confiança do cidadão8. Na visão de Andreas Kreel (2014), o problema desta inter-
pretação difusa pela corte brasileira está na

pré-compreensão individual, que naturalmente varia, sofre pouca orientação


e consolidação por parte da doutrina jurídica nacional sobre os métodos in-
terpretativos, em que diferentes escolas se digladiam, sem causar, contudo,
maiores efeitos em relação ao trabalho prático da aplicação do Direito.

Esses argumentos demonstram que a interpretação não pode ser inteiramente racionalizada, visto
que sempre haverá fatores irracionalizáveis. Porém, como já mencionado, importa saber o grau de racionali-
dade possível a ser aplicável na metódica.

7  Ou concretização, a depender da nomenclatura utilizada pelo autor.


8  Nomenclatura utilizada por Canotilho em seu curso de Direito Constitucional.

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Direito(s) em debate.

Müller identifica também que a metódica não é capaz de alcançar uma racionalidade universal e ab-
soluta, mas, assim como os cânones da interpretação, sua limitação não deve significar uma postura radical
de exclusão, mas, de adotá-lo conhecendo os limites do seu alcance e sua relatividade, pois, segundo o autor,
“as figuras de método são indispensáveis como momento da aplicação do direito, que estabilizam, racionali-
zam e facilitam a verificabilidade” (Müller, 2011).

Dessa forma, todos os meios adotados pelo direito, tanto na linguagem quanto nos elementos mate-
riais, este acúmulo, quando utilizado para marcar as etapas em que o intérprete percorre seu raciocínio, é
indispensável, pois o grau de racionalidade e verificabilidade tenderá a ser maior.

CONCLUSÃO

Conclui-se dessa pesquisa que a segurança jurídica pode ser saciada menos em termos herméticos que
em graus nivelares. O estudo das estruturas fora imprescindível para o estabelecimento do que se pretende
aprofundar. Apesar da concretização hermenêutica lidar com a práxis jurídica, evitando confundir termos
jurídicos com conceitos filosóficos, a proposta de Müller está encalcada em uma seara filosófica por demais
complexa. Como nosso propósito fora questionar, existiu a necessidade de conhecer e expor as características
estruturais da JH.

Dessa forma, pode-se defender que sim, existe segurança jurídica neste contexto hermenêutica. En-
tretanto, esta garantia não ocorrerá de maneira automatizada, mas com demasiado esforço do intérprete e
aqueles que cooperam na formação da decisão.

REFERÊNCIAS

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Saraiva, 2012.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006.

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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8. ed. São Paulo:
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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, RJ : Vozes, 1997.

GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINO, 1999.

JUST, Gustavo. Interpretando as teorias da interpretação. São Paulo: Saraiva, 2014.

KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (ORG.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito


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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009

KRELL, Andreas. Entre desdém teórico e aprovação na prática: Os métodos clássicos de interpretação jurí-
dica. São Paulo: Revista Direito GV 10 (1), 2014.

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MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2011.

_________. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007.

PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: Julgando os que julgam. Rio de Janeiro: Meridio-
nal, 1999

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET:


NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO

ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA


Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade
Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro
da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Liberdade de expressão na Internet; 2 Direitos Autorais e limites à cria-


ção de bens culturais; 3 Cibercultura e participação: novos modelos de Direitos Autorais para novas
dimensões das liberdades de comunicação; Considerações Finais; Referências.

INTRODUÇÃO

As contemporâneas tecnologias da informação provocaram, e continuam provocando, diversos im-


pactos nos comportamentos sociais, na produção econômica, no sistema legal e em praticamente quaisquer
setores do convívio humano. No que diz respeito ao Direito, são diversas também as consequências do de-
senvolvimento tecnológico na forma como alguns direitos são interpretados, aplicados, e ainda na própria
criação de “novos” direitos para novos tempos. A cibercultura, expressão que faz referência a este momento
de relacionamento hiperdimensionado entre homem e tecnologias digitais, se caracteriza por novos hábitos,
novos comportamentos, novas exigências sociais etc. Daí produzir tantos impactos no desenvolvimento do
sistema jurídico.

Nestes tempos de internet, compartilhamentos digitais e microprocessadores realmente “micros”, a


produção e o acesso à informação adquire uma nova proporção, pois os mecanismos e ambientes propícios a
lançar e adquirir informações, para comunicar e ser comunicado, são facilmente dispostos, encontrando-se
disponíveis em, por exemplo, qualquer aparelho moderno de telefones celulares que possam acessar a rede
mundial de computadores e as redes sociais. Ou seja, com a devida inclusão digital, todos poderão acessar
informações antes restritas a alguns meios, ou poderão produzir informações, o que estaria anteriormente
reservado a determinadas categorias profissionais e classes sociais.

Com essa ampla possibilidade de comunicações, a internet permite que cada um lance suas opiniões,
expresse suas opções artísticas, obtenha informações de seu interesse e crie algo. Justamente nessa última
possibilidade, a de criar algo que esteja afim, é que podem residir problemas com limitações impostas pelo
próprio sistema. Na verdade, a liberdade de expressão proporcionada pelas práticas cibernéticas recebe di-
versos tipos de supressão, seja pelos direitos civis (danos morais e à imagem, por exemplo), pelos direitos
penais (a exemplo dos crimes contra a honra), pelos fundamentais previstos na constituição (como a privaci-
dade) e outros. O problema que envolve o exercício da criatividade em ambiente virtual reside nas questões
de propriedade intelectual e adequação dos modelos legais de direitos autorais para tempos de cultura de
compartilhamento, de convergência, de participação etc.

Este trabalho propõe uma discussão sobre a supressão provocada pelos direitos autorais sobre a liber-
dade de expressão proporcionada pelos mecanismos da internet. A hipótese trabalhada é a de que o modelo
tradicional de direitos autorais não é adequado para novos comportamentos típicos da cibercultura, princi-
palmente aqueles que estão associados a liberdades fundamentais garantidas tanto em plano constitucional,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

quanto em instrumentos de proteção a direitos humanos. O objetivo não é defender uma extinção de direitos
autorais, mas sim uma adaptação destes a novos modelos, a novas culturas. O que é possível, pois já há ins-
trumentos juridicamente permitidos que trabalham com novas tutelas da propriedade intelectual.

1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET.

Foge das pretensões de um trabalho desta dimensão conceituar objetivamente expressão tão comple-
xa como liberdade, mas é necessário frisar ao menos o caráter ambíguo da dimensão jurídica de liberdade,
pois reflete um esquema de liberdades x não-liberdades. Esta palavra vem sendo usada para significar a va-
loração dada a ações, políticas, culturas ou instituições, considerando-as de importância fundamental, ainda
que seja um ato de obediência ao direito positivo, ou a satisfação de interesses econômicos. (BOBBIO, 1986,
p. 708).

Por mais complexo que seja a expressão liberdade (do ponto de vista jurídico) reflete sempre um
relacionamento entre condutas e tratamentos legais, uma interação entre pessoas e entre pessoas e institui-
ções. Reflete um esquema entre comportamentos permitidos (as liberdades) e os proibidos por lei (as não-li-
berdades) e é justamente este esquema que vai caracterizar a sociedade “livre” e a relação que existe entre
liberdade e estado democrático.

Muitos crêem ser a democracia “uma sociedade livre”. Todavia, as sociedades


organizadas de estruturam mediante uma complexa rede de relações parti-
culares de liberdade e não-liberdade (nada existe parecido com a liberdade
em geral. Os cidadãos de uma democracia podem ter a liberdade política de
participar do processo político mediante eleições livres. Os eleitores, os par-
tidos e os grupos de pressão têm, portanto, o poder de limitar a liberdade dos
candidatos que elegeram. A democracia exige que as “liberdades civis” sejam
protegidas por direitos legalmente definidos e por deveres a eles correspon-
dentes, que acabam implicando limitações da liberdade. (BOBBIO, 1986, p.
710).

Se por um lado as liberdades estão previstas tanto no rol de direitos fundamentais previstos em cons-
tituições federais e nas declarações internacionais de direitos humanos, elas vão encontrar limites em outros
direitos ou outros valores também previstos no direito. É nessa “equação” que encontram-se as dimensões da
liberdade, ou em outros termos, é nesse balanço que serão encontrados as reais possibilidades de comporta-
mentos livres.

Contemporaneamente, é possível analisar as questões que envolvem liberdades tanto em perspectiva


otimista quanto pessimista. É possível falar em declínio das liberdades diante de ameaças a elas vindas tanto
de representantes do poder público quanto de grupos de interesses, por causa de questões como crescimento
da violência, desenvolvimento industrial, valoração das tecnologias e outros fatores. Em perspectiva oposta,
a de evolução, as liberdades vêm sendo cada vez mais afirmadas e repetidas tanto em documentos jurídico
de eficácia nacional quanto nos de alcance internacional, e estes últimos não se resumem às declarações
universais. (RIVERO, 2006, p. 5).

Sem entrar na discussão de perspectivas otimistas ou pessimistas, vale ressaltar que dentre os inú-
meros problemas que envolvem as liberdades, dentre elas há as que sofrem consideráveis impactos da con-
temporânea cibercultura e que requer enfrentamentos específicos para melhor tutela, qual seja, a liberdade
de comunicação e expressão. Dentro do esquema anteriormente mencionado da relação entre liberdades e
não-liberdades, é necessário analisar quais são os comportamentos de comunicação e expressão atualmente
permitidos e quais não o são. Incluindo na análise a questão de identificar se as não-permissões são compa-
tíveis com as exigências sociais de tempos de sociedade de informação.

Apesar de ser historicamente mais conhecida e de fazer parte, inclusive, do senso comum sobre o
assunto das liberdades individuais, a liberdade de expressão não é a única liberdade associada à livre mani-

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Direito(s) em debate.

festação do pensamento. O desenvolvimento histórico dos comportamentos sociais e das revoluções tecnoló-
gicas fez serem identificadas outras liberdades, daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de
informação, além da liberdade de criação. Falar em liberdade de expressão representa o direito que todos têm
de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente
da liberdade de comunicação, pois esta concede o direito de comunicar e ser comunicado, além de divulgar
e receber informações. A liberdade de informação então é uma decorrência da liberdade de comunicação,
porém com ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado. (FARIAS,
2007, p. 172).

Quanto à liberdade de informação, a própria declaração universal dos direitos humanos, em seu ar-
tigo 19, já prevê a liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está
em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que
está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam
as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral. (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez infor-
mados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder
público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade, além
de produzir cultura. E isto pode não interessar a quem detiver poder.

Assim como qualquer modalidade das liberdades, a de informação está sob diversos perigos, seja por
exercício do poder público ou pelas próprias inter-relações entre particulares. Especificamente as de expres-
são e informação envolvem interesses econômicos, seja por causa do valor da informação, ou por causa dos
direitos que estão em conexão com as formas de expressão, como a privacidade e os direitos autorais. A ques-
tão então residiria em atingir um grau de equilíbrio entre essas liberdades e os demais interesses envolvidos,
ou supravalorizar uma coisa em detrimento de outra (valorizando a produção cultural ainda que diminuindo
questões de direitos autorais, por exemplo). Esta hipótese representaria uma quebra de igualdade, mas “se
deixamos de lado o dogma da igualdade jurídica das vontades privadas e nos voltamos às realidades, a fre-
qüência das situações de dependência que permitem a quem se encontra em posição de superioridade impor
sua vontade ao inferior fica evidente”. (RIVERO, 2006, p. 205).

Se é da própria natureza das liberdades jurídicas conter contradições, criar dogmas, e se submeter
a interesses e forças do poder público e de setores privados, no atual contexto da sociedade da informação,
com sua intrínseca cibercultura, as liberdades de expressão encontram-se ainda mais repleta de problemas.
Isto porque se o ambiente digital cria diversos mecanismos para se expressar e para exercer as liberdades
de informação, diversas também são as barreiras legais e econômicas que, de forma explícita ou implícita,
tolhem o exercício destas liberdades fundamentais.

A expressão cibercultura representa algo além de formas de conexão entre comportamento humano
e novas tecnologias, pois envolve aspirações pela construção de novos laços sociais, não fundados em cir-
cunstâncias territoriais, ou em instituições e poderes, mas baseados em novos interesses coletivos de com-
partilhamento, cooperação e processos abertos de informação e colaboração. (LÉVY, 1999, p. 132). Não são
as novas tecnologias com suas respectivas máquinas que criam a cibercultura, mas sim os usos humanos
dessas e consequentes comportamentos que assim o fazem. O que o desenvolvimento tecnológico permite é
o surgimento de novas exigências sociais, novas formas de interação entre particulares e entre particulares
com poderes públicos.

Com a rede mundial de computadores interligando pessoas e pessoas, e pessoas a informações, cria-
-se um mecanismo hábil a permitir o surgimento de uma nova concepção de inteligência coletiva e uma nova
relação com a produção de conhecimentos. Atitudes como colaborar, compartilhar, cooperar ganham força
com os mecanismos digitais disponíveis, em detrimento de lógicas privadas e individualistas como a sensa-
ção de ter, possuir, disponibilizar etc. Do ponto de vista ideal, se reconhece que o que melhor o ciberespaço
proporciona é a possibilidade de reunir conhecimentos, criações, idéias de pessoas em diferentes locais e
culturas, porém, esse acesso coletivo ao conhecimento representa mais uma fonte de novos problemas do
que especificamente de soluções. (LÉVY, 1999, p. 133).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Se por meio da internet qualquer pessoa, usando de blogs, websites e perfis em redes sociais, pode
transmitir informações e conhecimentos, pode se expressar com liberdade e pode interagir com a comunida-
de virtual de forma não proporcionada em outros tempos, esta produção de manifestações nunca esteve tão
vigiada e tão valorada.

Os instrumentos proporcionados pela internet permitem que alguém explore uma declinação artísti-
ca específica sem que precise de intermediários. Alguém pode criar um blog, ou usar de seu perfil em rede
social, para divulgar sua linha de confecções, seus utensílios, as obras de arte que realizou. Pessoas podem
usar também das plataformas virtuais para expressar idéias e opiniões, ainda que não seja considerado al-
guém que represente uma empresa de comunicação. Daí, uma das questões a serem enfrentadas seria a
que envolve limites a essas liberdades potencializadas pela cibercultura, ou, até mesmo se não há uma falsa
sensação de que essas liberdades estejam tão amplas assim.

Da mesma forma que a rede é vista como uma plataforma para expressar, para satisfazer exigências
de informação e para exercer liberdades, ela também cria um novo meio a ser explorado comercialmente por
novas formas de fazer negócios e novos desafios ao desenvolvimento de economias. Na sociedade da informa-
ção, a exploração econômica se baseia também em comercializar bens imateriais e aqueles que representam
os interesses econômicos privados vêem na rede um excelente ambiente para fazer negócios, e sendo assim,
as liberdades trazidas pela cibercultura podem sofrer grandes supressões por políticas de censura e por nor-
mas legais de controle da propriedade intelectual, por exemplo. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).

Situações problemáticas surgidas com a cibercultura exemplificam como a internet pode incomodar
o exercício tradicional de poder e a forma de pensar o direito. Casos como os grandes processos que envolvem
de um lado sites que disponibilizam gratuitamente conteúdo artístico-cultural e de outro, representantes
de grandes corporações (napster, soulseek e o mais recente piratebay), bem como os casos que envolvem
punições políticas àqueles responsáveis pela divulgação não autorizada de informações de utilidade pública
(Wikileaks e Julian Assange, ou Edward Snowden e o “escândalo da espionagem”) servem para mostrar que
o tratamento dado às liberdades proporcionadas pela internet pode não estar tão compatível com os ideais da
cibercultura.

Ao mesmo tempo que a rede mundial de computadores oferece liberdades e satisfaz promessas de
inclusão democrática, ela pode servir também para criar uma falsa sensação de liberdade, uma vez que é
possível haver manipulações quanto ao que é disponibilizado na rede, controlando dados, informações ou
qualquer conteúdo a ser acessado. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).

Um dos conflitos que caracteriza esta ambigüidade da internet reside no exemplo que envolve li-
berdade de expressão artística e regras tradicionais de direitos da propriedade intelectual. Os instrumentos
que surgem com o desenvolvimento das tecnologias da informação permitem que cada indivíduo explore
sua criatividade criando conteúdos até então reprimidos por incapacidades técnicas (ausência de recursos,
espaços, repressão de mercado etc.), porém tais criações se submeterão às normas jurídicas de tutela da
propriedade intelectual, que podem não terem se adequado à cibercultura e terminar tolhendo a liberdade
fundamental de participar de forma criativa da produção cultural. São pontos a serem examinados.

2. DIREITOS AUTORAIS E LIMITES À CRIAÇÃO DE BENS CULTURAIS.

A proteção legal dada às criações do espírito criativo humano requereu um tratamento específico,
mediante disciplina apropriada à tutela jurídica da propriedade imaterial, pois ser proprietário de uma gar-
rafa não é a mesma coisa de ser o responsável pelo desenho dela ou pela marca do produto que está sendo
consumido por meio dela. Assim, os direitos autorais surgem como essa disciplina cujo objeto é as criações e
as manifestações do intelecto.

Ramo do Direito bastante complexo, rico de contradições e repleto de problemas contemporâneos a


serem enfrentados, principalmente por causa dos comportamentos associados à mencionada cibercultura,
os direitos autorais já começam a apresentar sua complexidade a partir da própria designação. Há quem

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

prefira usar a expressão propriedade intelectual como micro-sistema ao qual os direitos autorais estão liga-
dos, e aqueles que vêem diferenças entre as expressões, preferindo não necessariamente vinculá-las. Seja
por uma idéia ou por outra (usando ou não usando a expressão “propriedade”), é interessante frisar que a
proteção oferecida pelos direitos autorais alcança não somente o aspecto patrimonial do produto cultural,
respondendo questões sobre quem dispõe da obra, pra qual uso, se pode copiar e compartilhar etc., como
também alcança aspectos da relação entre criador e obra mais ligados aos direitos da personalidade, como ser
apresentado ou identificado como autor.

No entanto, apesar do objeto dos direitos autorais alcançar direitos da personalidade do autor, sua
origem e desenvolvimento prático possuem natureza bastante patrimonialística. A partir do século XVII o
intelectual, bem como o artista, trabalha de forma autônoma, independente de patrões da nobreza ou do cle-
ro, fazendo com que sua luta pela sobrevivência represente uma concorrência intelectual, uma competição
entre criações e criadores. (FRAGOSO, 2012, p. 130). O problema não está na inserção das lógicas capital e
patrimonial na proteção ao conteúdo autoral, mas sim reside no de identificar a quem isto realmente benefi-
cia, se ao autor propriamente dito ou se ao intermediário, aquele cria o elo entre criador e público. Há regis-
tros históricos demonstrando que desde o início da comercialização dos livros, existiam prejuízos ao escritor
porque os negócios envolvendo livros traziam vantagens aos editores, recebendo incentivos reais diferentes e
mais vantajosos do que a remuneração dada aos escritores. (FRAGOSO, 2012, p. 135).

Como o desenvolvimento histórico dos direitos autorais não é objeto de estudo deste trabalho, a
questão a ser enfrentada é a de analisar se os direitos autorais estão atingindo seus objetivos de proteger os
criadores e incentivar a criatividade, ou se eles representam uma espécie de barreira legal para o surgimento
de novas obras e novos exercícios do direito à criatividade.

Em qualquer análise introdutória sobre os objetivos dos direitos autorais, a proteção à criatividade
está sempre inserida dentre eles. A tutela da criação é o que justifica a própria existência do Direito de au-
tor, uma vez que, não sendo identificada qualquer carga de contribuição criativa na obra, ela não merecerá
a tutela deste direito, ficando o autor sem garantias jurídicas da compensação por esta contribuição dada à
sociedade. (ASCENSÃO, 1997, p. 3).

A contradição é identificada justamente sobre esta “compensação”, pois originalmente ela surge por
meio de garantias de exclusividade de usos, por meio de instrumentos que impedem a abundância do pro-
duto e que oferecem acesso a estes produtos artístico-culturais mediante pagamento hábil. Em tese a socie-
dade aceita a contribuição dada pelo criador garantindo-lhe uma compensação pecuniária, que para ocorrer
deverá provocar justificados impactos negativos na fluidez do acesso à cultura. (ASCENSÃO, 1997, p. 4). Ou
seja, faz parte da concepção original de direitos autorais a sua capacidade de tolher liberdades fundamentais
(acesso à informação, acesso à cultura, liberdade de expressão etc.), em nome da satisfação financeira do
responsável pela obra, ainda que este responsável não seja o próprio criador.

É possível argumentar que existe um direito fundamental de criar, de participar da criação de um


patrimônio cultural, de livremente manifestar seu espírito criativo. Esta liberdade de criação “compreende
o direito do indivíduo de gerar expressões intelectuais, sejam elas de caráter cultural (obras literárias ou
artísticas), sejam elas de conteúdo científico ou técnico, sem qualquer restrição imotivada, isto é, sem
necessidade de obter autorização ou licença e sem ficar sujeita a censura”. (SANTOS, 2011, p. 132). O objetivo
desta liberdade de criação seria o de permitir que cada pessoa exerça sua criatividade sem barreiras, sem
impedimentos indevidos. O que representa de logo uma contradição com características típicas dos direitos
autorais, uma vez que em diversas hipóteses uma pessoa pode precisar de autorizações, de intermediários e
de pagamentos para poder se basear em algo já criado e assim exercer sua criatividade.

Com base nessa última observação indaga-se sobre a necessidade de intermediários e intermediações
em tempos de cultura de compartilhamento na sociedade de informação. A dúvida surgida é a de saber se as
concepções tradicionais dos direitos autorais estão em compatibilidade com novas exigências sociais provoca-
das pela cibercultura ou se elas tolhem a criatividade, que estaria na essência da produção de conteúdo em
ambiente virtual. O que passa a ser examinado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3. CIBERCULTURA E PARTICIPAÇÃO: NOVOS MODELOS DE DIREITOS AUTORAIS PARA NOVAS


DIMENSÕES DAS LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO.

Até então foi examinada a questão da liberdade de expressão, da liberdade de expressão na internet
e de como os direitos autorais podem representar barreiras ao exercício dessas liberdades. O fato do sistema
tradicional de proteção legal a conteúdo autoral criar limites às liberdades de expressão surge de seu cunho
patrimonial, do fato deste sistema poder ser usado para satisfazer interesses patrimoniais. O copyright, ex-
pressão que representa o sistema norte-americano de tutela legal das criações autorais, deu cabimento a
distorções em sua própria aplicação, já que tem como proposta uma clausura de possibilidades de uso de con-
teúdo cultural. Este modelo de direitos autorais surge como forma representativa de pretensões hegemônicas
de uma classe dominante, resultando não exatamente de uma conquista de criadores, mas da uniformização
dos esforços de livreiros e editores para conter a reprodução descontrolada de obras de arte, e assim preservar
seus interesses econômicos. (FRAGOSO, 2012, p. 156). Então, apesar do conteúdo pessoal, está na essência
do direito de autor, sua natureza econômica.

A conotação econômica dada aos direitos autorais, com seu esquema de autorizações, usos exclusivos
e direitos reservados, interessa a uma determinada classe que, de início detinha os meios necessários para
expressar as manifestações criativas. Os direitos reservados de uso de bens culturais se concentrados indevi-
damente permitem a criação de uma espécie de oligopólio cultural, pois seriam as empresas de transmissão
e distribuição desse conteúdo que ditariam as regras do mercado de culturas, cabendo ao sistema legal não
permitir que qualquer pessoa crie algo próximo, ou derivado do que já está sob “proteção”. Este raciocínio se
enfraquece quando os donos dos veículos de intermédio (editoras, gravadoras dentre outros) enfrentam os
novos meios de divulgação e expressão, como a internet, e novos comportamentos sociais típicos da cibercul-
tura, como o dilúvio de informações e o compartilhamento de dados digitais.

Apesar de sua origem remeter a esquemas de espionagem militar, a internet surge para a sociedade
civil como um instrumento que promete uma quase irrestrita liberdade de acesso à informação e um poten-
cial até então inatingível de participação democrática, seja em discussões políticas, seja em produção artísti-
co-cultural. Numa determinada perspectiva o ciberespaço promete realizar ideais da modernidade, pois nele
a igualdade se manifesta pela possibilidade de cada pessoa, independente de suas características, expressar
informações, a liberdade surge por meio das possibilidades de acesso, navegação e comunicação, e a fraterni-
dade vem como conseqüência das conexões promovidas em ambiente virtual. (LÉVY, 1999, p. 254). É possí-
vel que estas promessas fiquem apenas em planos abstratos e não se materializem, até porque para isso seria
necessário que cada cidadão do mundo possuísse meios para acessar a rede, o que não ocorre por causa de
inúmeros problemas envolvendo a inclusão digital. Porém, os impactos da cibercultura nas liberdades de ex-
pressão e criação, bem como na forma de pensar os direitos autorais são bastante manifestos e significativos.

Se antes os donos dos meios necessários para se expressar possuíam mecanismos para criar uma
espécie de oligopólio da comunicação, hoje com a internet é consideravelmente mais fácil driblar as grandes
corporações e poder se expressar. Com um simples vídeo posto em um blog individual, um criador pode exibir
sua produção, seja ela um curta, um clipe ou uma animação. Uma banda pode oferecer gratuitamente em
seu website suas composições até então não registradas por uma grande empresa para poderem assim divul-
gar sua arte. Simples exemplos que demonstram que a internet potencializa as possibilidades de se expressar.

Não é apenas nos meios de comunicação que a cibercultura provoca impactos, mas também na
própria forma de comercializar, de disponibilizar e apresentar uma modalidade de expressão artística. Tradi-
cionalmente se entende que uma obra protegida por direitos autorais é aquela “que constitui exteriorização
de uma determinada expressão intelectual, inserida no mundo fático em forma ideada e materializada pelo
autor”. (BITTAR, 2004, p. 23). E que esta obra tutelável pelo direito requer esforço intelectual de seu autor
que produz um bem a ser inserido materialmente na realidade fática. (BITTAR, 2004, p. 23). Porém, como
antes já analisado, esta interpretação tradicional do objeto dos direitos autorais se torna no mínimo proble-
mática na contemporaneidade imersa na cibercultura.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Um dos motivos dessa incompatibilidade seria a própria inexistência de suporte fático para afirmar
que a obra deve estar materializada em algo. Isto porque o ambiente digital não requer materialização da
arte para considerá-la como legítima manifestação do espírito criativo. Outro motivo seria o de que o modelo
tradicional de tutela da produção artístico-cultural exigia um intermediário (o que fornecia o intermédio), e
com a internet esta intermediação não é mais necessária, devolvendo ao artista (o criador propriamente dito)
o controle sobre sua obra, caso assim o opte. Diversas características da cibercultura, (participação, coletivi-
dade, conectividade, virtualidade e outras) provocam um declínio do modelo de negócio baseado no esquema
autor e intermediário. (LÉVY, 1999, p. 139).

A internet e a cibercultura demonstram então não apenas um potencial para dinamizar o exercício
de liberdades fundamentais, como também potencial para mexer na produção econômica, na forma como
negócios são feitos, talvez principalmente naqueles negócios cujo objeto seja informação ou arte. A criati-
vidade volta a ser incentivada pelas práticas da cibercultura, tornando-se um grande negócio seja com fins
lucrativos, seja apenas para participar da produção de cultura. A cultura do digital “promete um mundo de
criatividade incrivelmente diversa que pode ser fácil e amplamente compartilhada. E à medida que tal cria-
tividade se aplicar à democracia, será possível que uma vasta parcela de cidadãos utilizem-na para expressar,
criticar e contribuir com a cultura que os rodeia”. (LESSIG, 2005, p. 184). A colaboração propriamente dita,
a participação e cooperação representam hoje objetivos do cidadão, não necessariamente interessado em
obter ganhos patrimoniais com sua contribuição à cultura que o rodeia.

Exemplos como os do Free Software, do Linux, das tecnologias da informação com códigos abertos,
demonstram como há pessoas interessadas em formas de criação coletiva e colaborativa, ainda que isto não
traga benefícios financeiros. A interatividade promovida pelas tecnologias da informação e exigências sociais
da cibercultura reformulam a relação entre a obra e aquele que tem acesso a ela, permitindo que este seja
também criador em colaboração e exemplos como o do Wikipédia e do Creative Commons demonstram como
há uma demanda social para tal. (SANTOS, 2011, p. 147).

Porém, todas essas promessas de liberdade, criatividade e colaboração vindas da cibercultura en-
frentam uma imensa barreira legal, qual seja, a manutenção das regras tradicionais de proteção aos direitos
autorais. Para que toda essa abertura democrática ao acesso à informação e liberdade de criação ocorra, é ne-
cessário repensar o tratamento jurídico dado ao conteúdo autoral produzido, pois novos modelos de negócio
surgem e assim exigem sua legalidade. Diante dos impactos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico nos
institutos jurídicos duas hipóteses surgem, uma a de que as normas jurídicas não sofrerão mudanças, outra
a de que o sistema jurídico adotará medidas adaptativas, criando novas respostas jurídicas a mudanças de
comportamentos sociais, a exemplo da possível subversão ao modelo tradicional de propriedade intelectual.
(LEMOS, 2005, p. 66).

Essa subversão não é uma eliminação de proteção legal à criação autoral, é apenas uma nova forma
de tutelar, já que a cibercultura trouxe tantas transformações nas formas de se expressar. O que está em
discussão aqui não é a necessidade de uma proteção legal, pois isso é de comum entendimento, mas sim o
modelo de proteção oferecido pelos mecanismos legais tradicionais que podem, ao invés de incentivar a ex-
pressão criativa, reprimir iniciativas de produção de cultura.

Caso sejam mantidas regras de direitos autorais criadas antes da internet e da cibercultura, a mani-
festação criativa pode ser inibida para satisfazer interesses econômicos de grandes corporações que podem
estar interessadas em preservar o modelo de intermediação paga entre cultura e público interessado. Isto
porque as novas formas de expressão e criação padecerão de ilegalidade, ou clandestinidade (como ocorre
com o download gratuito feito pela rede que pode de imediato ser taxado de “pirata” numa visão bem inicial
dos fatos).

Na hipótese da legislação recair num excesso de regulação, prevendo punições excessivas para pe-
quenas violações de direitos autorais, e se os empreendimentos inovadores passarem a ser constantemente
fiscalizados ao ponto de requerem gastos volumosos com pagamentos e autorizações, haverá bem menos
inovações e criatividade do que se houvesse uma alternativa à ilegalidade. (LESSIG, 2005, p. 192). Ou seja,
em tempos de economia criativa, incentivos ao empreendedorismo e valoração da informação, a tutela jurí-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

dica tradicional da propriedade intelectual serviria como uma barreira, impedindo parcela considerável da
sociedade civil de cooperar e criar culturas, ficando essas atividades (ou permanecendo) reservadas a quem
tiver meios financeiros capazes de arcar com as despesas necessárias. Não seria adequado que essa parcela
da sociedade civil, querendo participar de seu próprio patrimônio cultural, fique à margem da legalidade,
ou não receba oportunidade de assim cooperar. A resposta para retirar essa ilegalidade passa por escolhas
entre obedecer estritamente a legislação da forma como ela está, ou modificar a norma jurídica, e quando
os malefícios da manutenção de tradições se sobrepõem a seus próprios benefícios, é caso de considerar a
possibilidade de mudanças. (LESSIG, 2005, p. 201).

Alternativas para mudar a lógica da tutela jurídica da produção autoral já existem. Uma delas são as
licenças Creative Commons. As licenças oferecidas por esta organização procuram atender os diversos inte-
resses e opções da classe de artistas, criadores e produtores em geral, permitindo que o autor interessado
receba a oportunidade de escolher dentre opções de licenças disponíveis. (LEMOS, 2005, p. 85). Com isto,
o Creative Commons criam uma alternativa ao modelo tradicional, satisfazendo exigências da cibercultura de
liberdade de escolhas e democratização das atividades criativas, representando por outro lado uma mudança
que parte não dos representantes do poder estatal, mas sim da sociedade civil. (LEMOS, 2005, p.83).

Havendo alternativas, ainda que criadas extraoficialmente por instituições e vontades privadas, cabe
preservar as liberdades de expressão e criação, ainda que em detrimento das regras tradicionais de prote-
ção aos direitos autorais. Isto porque a manutenção destes pode interessar a grupos de pressão específicos
(possivelmente não interessados em novos modelos de negócio que venham a prejudicar suas pretensões
econômicas), e ainda porque tais liberdades compõem uma espécie de ideário comum aos praticantes da
cibercultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do trabalho foi o de analisar se as liberdades de expressão sofrem alguma alteração com a
cibercultura e o desenvolvimento de tecnologias da informação que permitem acesso constante à internet,
que por sua vez promete liberdades. Teve como objetivo também o de analisar a forma como os direitos auto-
rais podem se relacionar com o exercício das liberdades para ou tolhe-lo ou garanti-lo, a depender da forma
como é vista e interpretada a tutela jurídica da propriedade intelectual.

No que diz respeito à liberdade de expressão, essa designação já não é mais suficiente para resumir
todo um complexo de liberdades relacionadas com formas de manifestação. Liberdades de comunicação,
de acesso à informação e cultura, e liberdade de criação também são objeto de tutela jurídica diferenciada,
como o são as garantias constitucionais e os direitos previstos em instrumentos de direitos humanos. Apesar
da complexidade, interessou ao trabalho criar uma linha de raciocínio pela qual a liberdade de exercer cria-
tividade faz parte deste rol de liberdades garantidas de forma fundamental. Esta liberdade de criatividade é
potencializada pelas práticas da cibercultura, pois a internet e respectivas tecnologias proporcionam e poten-
cializam formas de participação, criação e quaisquer manifestações do espírito em seus ambientes virtuais.

Assim, é da natureza da internet criar um ambiente livre de barreiras, ou melhor, um ambiente cuja
regulamentação exista, mas de forma compatível com contemporâneas exigências sociais. A vontade de exer-
cer liberdades existe, instrumentos capazes de fazê-las ocorrerem também e um sentimento de regulação
ainda que mínima também. O problema reside quando esta regulação ultrapassa limites da ideologia por trás
da cibercultura, ao ponto de provocar supressões às liberdades legalmente garantidas. Uma destas formas de
suprimir liberdades, especificamente a de expressar criatividade, está na aplicabilidade dos direitos autorais.
Direitos que surgem como garantias aos criadores, mas que podem servir para satisfazer interesses econômi-
cos de empresas que intermedeiam a relação entre criação e público interessado. Porém, com a internet este
caminho pode ser disponibilizado pelo próprio autor da obra, recaindo sobre ele, o próprio criador do bem
cultural o controle dos usos de sua produção.

O problema está na possível ilegalidade da subversão à tradição da tutela legal da propriedade inte-
lectual, mas que pode ser driblada mediante alternativas, sejam elas estatais, como possíveis reformas da le-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

gislação autoral, ou não-estatais, como iniciativas da sociedade civil (free software, Linux, Creative Commons
dentre outras), que demonstram como alterações podem ocorrer com o objetivo de preservar liberdades e
satisfazer aspirações contemporâneas intrínsecas à sociedade da informação. Enfim, há meios de garantir
as liberdades de expressão em tempos de internet, sem que isto represente descontrole absoluto do espaço
virtual, sem que isto represente ausência de direitos autorais, mas sim com alternativas legais e boa vontade
política.

REFERÊNCIAS

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BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: editora universidade de Brasília, 1986.

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realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo:
LTr, 2007. Páginas 156 a 180.

FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológi-
cos. São Paulo: QuartierLatin, 2012.

KRETSCHMANN, Angela. O papel da dignidade humana em meio aos desafios do acesso aberto e
do acesso universal perante o direito autoral. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito
de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 76 a 103.

LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e
controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

RIVERO, Jean. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SANTOS, Manoel Pereira dos. Direito de autor e liberdade de expressão. In: SANTOS, Manoel Pereira
dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 129 a
158.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME


DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC):
UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO

Alcerlane Silva Lins

Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES. Advogada. Pesquisadora do INICIA/ASCES.

Roberta Cruz da Silva


Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de
Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do Regime Diferenciado de Contratação e a sua possível (in)


constitucionalidade; 2. O Regime Diferenciado de Contração e o tratamento conferido ao princípio
da publicidade; 3. Aspectos relevantes do sigilo do orçamento estimado no RDC; 4. Justificativas para
adoção do sigilo e a sua efetividade nas licitações da Infraero; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

A licitação é o meio utilizado pela Administração Pública para se alcançar a proposta mais vantajosa e
consequentemente, a formação do contrato administrativo. Assim, pode-se afirmar que a licitação é medida
que se impõe a Administração em decorrência do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988 e,
antecede os contratos administrativos.

Entretanto, as normas infraconstitucionais que regem o procedimento licitatório parecem não suprir
as demandas atuais. Essa deficiência ficou evidenciada quando o Brasil foi escolhido para sediar os eventos
esportivos que ocorreriam entre 2013 a 2016 e não conseguiu viabilizar as obras vinculadas a tais eventos
com as normas até então vigentes, provocando a discussão sobre a urgente necessidade de mudanças no
sistema licitatório.

Assim, a necessidade de um regime licitatório mais célere, levou a instituição do Regime Diferencia-
do de Contração (RDC), que é disciplinado pela Lei nº 12.462/11 e, tem como finalidade primordial agilizar
a execução das obras para os jogos da Copa das Confederações 2013, da Copa do Mundo FIFA 2014, das
Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016.

Esse novo regime tinha objeto transitório e limitado aos eventos esportivos sediados no país, sendo
criado para atender situações excepcionais, no entanto, passou a abranger outras situações sem quaisquer
vinculações com as hipóteses originárias. Com isso, percebe-se que há uma grande tendência de expansão
do objeto do RDC, comprovando a relevância e atualidade do tema.

As inovações advindas com essa nova modalidade licitatória provocaram diversas críticas, tanto pela
forma como esse regime foi inserido no ordenamento jurídico, como pelas inovações decorrentes de seus
institutos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Dentre as inovações que provocaram grandes controvérsias jurídicas pode-se destacar o orçamento
sigiloso, que é objeto de estudo desse trabalho, previsto no artigo 6º da referida lei, que dispõe sobre a pos-
sibilidade da Administração Pública não divulgar o valor estimado do objeto licitado, enquanto se processa a
licitação, tornando-se público apenas ao final do certame. Por isso, acredita-se que este sigilo afronta o prin-
cípio constitucional da publicidade.

Nesse contexto, insere-se a presente pesquisa que tem como objetivos analisar a compatibilidade do
sigilo do orçamento estimado com a Constituição Federal de 1988 e verificar a efetividade desse instituto
no âmbito da Infraero. Para isso, a pesquisa não se restringiu ao estudo unicamente da lei, mas analisou o
posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, além do estudo dos editais
de licitações no âmbito da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), bem como análise
das ADI’s nº 4.645/11 e nº 4.655/11 que, atualmente aguardam julgamento do STF. Para tanto o método
utilizado foi o hipotético dedutivo, adotando como hipótese que o sigilo do orçamento estimado afronta o
princípio da publicidade. Tal sigilo é analisado com ênfase no aspecto jurídico e o aspecto econômico, para
possível comprovação da constitucionalidade e efetividade desse instituto, bem como a sua repercussão social
e econômica.

Nessa perspectiva, espera-se chegar a um resultado que comprove a viabilidade e os benefícios para
Administração Pública, auferidos pela ausência de publicação do orçamento estimado durante a licitação.
Com isso, fica evidente a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o tema.

1. ORIGEM DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO E A SUA POSSÍVEL (IN)


CONSTITUCIONALIDADE.

A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 37, inciso XXI, estabeleceu que as contratações públicas
devam ser precedidas de procedimento licitatório, ressalvados os casos previstos em lei. A partir dessa impo-
sição, a licitação passou a ser uma exigência constitucional, de observância obrigatória pela Administração
Pública e por outras pessoas indicadas pela lei (OLIVEIRA, 2015, p.25).

Para regulamentar esse dispositivo constitucional foi editada a Lei nº 8.666/93, denominada de Lei
Geral de Licitações e Contratos, que estabelece em seu artigo 3º que este procedimento destina-se a garantir
a observância dos princípios constitucionais e específicos para seleção da proposta mais vantajosa para Admi-
nistração Pública, (BRASIL, LEI Nº 8.666, 1993).

Atualmente, outras leis têm regulamentado esse procedimento uma vez que a Lei de Licitações e
Contratos não tem conseguido alcançar e nem solucionar situações específicas, como aconteceu com as
obras e serviços vinculados aos eventos esportivos sediados no Brasil entre os anos de 2013 a 2016, que foi a
mola propulsora para a criação de uma Lei que atendesse as demandas atuais na seara estatal com celerida-
de e efetividade (HEINEN, 2015, p. 9).

Nesse contexto, surge a Lei nº 12.462/11 que, de início, teve seu objeto limitado aos eventos espor-
tivos sediados no Brasil, como a Copa das Confederações que ocorreu em 2013, Copa do Mundo em 2014,
bem como os jogos Olímpicos e Paralímpicos que ocorrerão em 2016 (OLIVEIRA, 2015, p. 185).

Trata-se da Lei do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que segundo Oliveira, (OLIVEIRA,
2015, p.185) segue orientada por parâmetros de eficiência, agilidade e economicidade, com a finalidade de
viabilizar os eventos esportivos mencionados. As primeiras tentativas para se inserir o RDC no ordenamento
jurídico, foram por intermédio das Medidas Provisórias nº 488 e nº 489 de 2010, que perderam a eficácia,
em razão da não votação no prazo constitucional. Ainda assim, afirmam Motta e Paolucci, (2012, p. 29) que
as ideias principais de tais Medidas Provisórias sobreviveram e reapareceram por meio da Lei nº 12.462/11,
fruto da conversão da Medida Provisória nº 527/11. (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA Nº 527, 2011).

Foi durante a tramitação de tal Medida Provisória, que o deputado federal José Guimarães (PT/CE)
apresentou em plenário uma emenda com conteúdo diverso do discutido na Medida Provisória. A princípio,
o tema abordado referia-se unicamente, a alteração da estrutura do Poder Executivo Federal, para criação

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

da Secretaria de Aviação Civil, bem como conferia autorização para contratação temporária de controlado-
res de tráfego aéreo, enquanto que a proposta de emenda apresentada pelo deputado tratava da inclusão
dos dispositivos que instituíam o RDC. Dessa forma, a Medida foi discutida, aprovada pelas casas do Poder
Legislativo, sancionada pela Presidenta da República e consequentemente, convertida na Lei nº 12.462/11
(ALTOUNIAN, 2014, p.39).

Como mencionado, a inserção da Lei nº 12.462/11 no ordenamento jurídico pátrio veio acompanha-
do de muitas inovações que provocou intensos questionamentos sobre a inconstitucionalidade da Lei e de al-
guns institutos que ela disciplina. Tudo isso, levou ao ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstituciona-
lidade (ADI). A primeira foi a ADI nº 4.645 proposta por partidos políticos que argumentaram a extrapolação
do poder de emendar, bem como a violação ao princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p.18). A segunda
foi a ADI nº 4.655 ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), à época, Roberto Monteiro Gurgel
Santos que, também apontou inconstitucionalidades formais e materiais da Lei nº 12.462/11, referente a não
observância ao devido processo legislativo, bem como a inconstitucionalidade de alguns dispositivos (HEI-
NEN, 2015, p.12).

Entre as inovações apontadas com vícios de inconstitucionalidade, tem-se o orçamento sigiloso que
foi objeto de questionamento da ADI nº 4645/11 ajuizada por partidos políticos, sob o argumento de que nes-
se instituto há uma inversão de regras constitucionais, em que se atribui ao orçamento estimado um caráter
sigiloso, enquanto que, no ordenamento jurídico o sigilo é a exceção e não a regra, violando o princípio da
publicidade, inclusive o da moralidade. Nesse aspecto é importante analisar como o RDC trata o princípio da
publicidade (HEINEN, 2015, p. 38).

2. O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRAÇÃO E O TRATAMENTO CONFERIDO AO PRINCÍPIO


DA PUBLICIDADE.

A partir deste item, será analisado o tratamento que o RDC confere ao princípio da publicidade uma
vez que tal princípio atribuiu eficácia aos atos administrativos. Assim, percebe-se que o RDC expressamente
invocou esse princípio, conforme redação do artigo 3º da Lei nº 12.462/11:

Art. 3º As licitações e contratações realizadas em conformidade com o RDC


deverão observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralida-
de, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa,
da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação
ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo.

Desse modo, observa-se que o legislador, ao instituir o RDC, determinou que os procedimentos que
integram esse Regime estão condicionados a observância do princípio da publicidade. Esse princípio também
é reforçado, pelo o caput do artigo 15, da Lei do RDC, que impõe aos órgãos da Administração o dever de dar
ampla publicidade aos procedimentos licitatórios, ressalvado os casos determinados em lei. Também o § 1º do
artigo 15, da citada lei, assegura que a publicidade pode ocorrer de forma direta aos fornecedores cadastrados
ou não cadastrados, sem prejuízo das formas estabelecidas no artigo 15, §1º, incisos I e II, que determina
que a publicação deverá ocorrer por meio do Diário Oficial e internet, de forma cumulativa (BRASIL, LEI
Nº 12.462, 2011).

Como se percebe, a dimensão dada a esse princípio pelo RDC não permite que a publicidade se limi-
te apenas à divulgação em mídia impressa, como faz a Lei nº 8.666/93, mas que se estenda também à mídia
eletrônica, a qual tem custo menos elevado. No entanto, verifica-se que esse meio de publicação também tem
algumas limitações que pode restringir o acesso à informação, como por exemplo, quando os interessados es-
tiverem localizados em áreas sem acesso à internet, ou mesmo quando não tiverem habilidades em manusear
tal veículo de informação (ZYMLER, 2013; p.300).

Todavia, Zymler (2013, p. 300) reconhece que a publicação dos atos licitatórios por meio da internet
proporciona ampla vantagem, pois tal mecanismo consiste na possibilidade da publicação se dar de forma

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

contínua, o que não ocorre com a mídia impressa, em que a publicidade tem efeito instantâneo, ou seja, per-
dura até a retirada de circulação da informação. Outra vantagem desse veículo apresentada pelo autor, diz
respeito ao alcance desse meio de comunicação, pois quando se usa os meios de mídias eletrônicas, há um
alargamento da publicidade, uma vez que tal divulgação alcança todos os interessados pelo certame, além
de abranger todos os atos da licitação, independentemente, do valor do objeto e da localização do licitador
(ZYMLER, 2013; p. 300).

Com isso, é possível verificar que, a publicação em jornal de grande circulação tornou-se uma fa-
culdade no RDC, sendo exigido apenas a publicação no Diário Oficial e internet. Segundo entendimento da
doutrina, quando a licitação for de grande vulto ou com objeto complexo deve-se proceder a publicação em
jornais de grande circulação, haja vista o acesso à informação corresponder a um direito que não pode ser
mitigado indevidamente (BARIAN JUNIOR, 014, p.121).

Em que pese toda essa discussão, vale salientar que para se concretizar o direito fundamental de
acesso à informação devem-se utilizar todos os meios disponíveis e, existindo pluralidade de formas de divul-
gações capazes de efetivar o princípio da publicidade, deve-se privilegiar a que melhor concretize o princípio
da publicidade (BARIAN JÚNIOR, 2014, p.121). No entanto, é preciso não confundir a publicidade com a
publicação, pois segundo Amaral (2010, p.7), a publicação por si só não assegura a publicidade, pois quando
aquela é realizada de forma deficiente, este é violado. Assim, resta evidente que existem atos que mesmo
sendo publicado, não efetivam o princípio da publicidade.

Assim, diante da importância atribuída ao princípio da publicidade percebe-se que o RDC, em nome
do interesse público, adotou o sigilo do orçamento estimado como regra fundamental para se chegar a pro-
posta mais vantajosa, conforme se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.462/11. Tal inovação tem provocado
intensas controvérsias que remetem ao seguinte questionamento: sendo a publicidade princípio tão relevan-
te, pode ser mitigado pelo sigilo do orçamento estimado do RDC, em nome da proposta mais vantajosa? Essa
temática será analisada com maiores detalhes no tópico a seguir.

3. ASPECTOS RELEVANTES DO SIGILO DO ORÇAMENTO ESTIMADO NO RDC.

O sigilo do orçamento estimado previsto no artigo 6º da Lei nº 12.462/11 é, atualmente, um dos pon-
tos mais discutidos do RDC, por estabelecer que esse orçamento apenas seja publicado ao final da licitação,
sendo interpretado por muitos como uma afronta ao princípio da publicidade. Por isso, para melhor compre-
ensão do tema faz-se necessário entender inicialmente o que é orçamento estimado.

A definição de orçamento estimado, proposta por Altounian e Cavalcante (2014, p. 97), consiste na
forma de avaliação do custo da obra ou serviço que se deseja contratar, tomando-se por base os índices que
apontem o custo médio do empreendimento de forma rápida. No entanto, vale salientar que esse tipo de or-
çamento é menos detalhado, em razão da ausência de projeto básico, pois esse orçamento é elaborado ainda
na fase preliminar da licitação (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 97).

Diante da visível influência que esse orçamento exerce sobre a licitação, o legislador instituiu o sigilo
do orçamento como condição para se chegar à proposta mais vantajosa, incorporando uma prática comum e
já vivenciada nas relações de negócios entre particulares. Com isso, acredita-se que omitindo o valor máxi-
mo que a Administração pública se propõe a pagar, pode-se chegar à melhor proposta. Isso não significa que
a Administração não elaborará o orçamento estimado, mas que será publicado apenas ao final da licitação.
(CHARLES; MARRY, 2014, p. 62). Nesses termos, destaca-se que tal sigilo não alcançará os órgãos de con-
trole externo e interno, uma vez que estes terão livres acesso a todas às informações do certame.

Dessa forma, é possível perceber que esse sigilo não é absoluto, nem uma imposição da Lei, mas é
uma opção para o gestor público, que após analisar a esfera de conveniência e oportunidade decidirá se o si-
gilo se adequa ao critério de julgamento escolhido ou as especificidade do objeto licitado (CHARLES; MARRY,
2014, p. 68-70).

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Direito(s) em debate.

Nesse contexto, verifica-se que a própria Lei do RDC relativiza o sigilo do orçamento estimado quan-
do determina que os critérios de julgamento maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artísticos são in-
compatíveis com a natureza do sigilo do orçamento e, portanto, quando a Administração adotar tais critérios
o sigilo não poderá ser adotado por expressa vedação legal e lógica, (CHARLES; MARRY, 2014, p. 71).

O tribunal de Contas da União também entendeu no Acórdão nº 3.011/2012 que esse sigilo não é
absoluto e, portanto, não tem natureza obrigatória. Esse Acórdão tratou de vários assuntos referentes às
licitações com RDC, envolvendo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) que teve
como Relator o Ministro Valmir Campelo que na ocasião entendeu que o sigilo do orçamento estimado não
tem natureza obrigatória, conforme voto que retrata com clareza, a questão:

Concluo, então, que, como o sigilo no orçamento-base não é obrigatório, e


pelo dever de motivação de todo ato, se possa recomendar à Infraero que
pondere a vantagem, em termos de celeridade, de realizar procedimentos
com preço fechado em obras mais complexas, com prazo muito exíguo para
conclusão e em que parcela relevante dos serviços a serem executados não
possua referência explícita no Sinapi/Sicro, em face da possibilidade de fra-
casso das licitações decorrente dessa imponderabilidade de aferição de pre-
ços materialmente relevantes do empreendimento [...].

Com esse posicionamento o Tribunal de Contas da União confirmou a facultatividade do orçamento


sigiloso, autorizando os gestores a analisarem e decidirem se adotam este instituto nas licitações. O TCU
ainda recomendou que nas licitações com objeto de alta complexidade, com prazo mínimo para conclusão
e, quando houver ausência de parâmetros oficiais de preços, o gestor deve analisar a viabilidade desse sigilo,
pois se percebeu que esses fatores influenciam no êxito do sigilo do orçamento do RDC, haja vista, no caso
analisado, as propostas apresentadas nessas situações mostrarem-se incompatíveis com o custo estimado
pela Administração, devido à ausência de preços de referências.

4. JUSTIFICATIVAS PARA ADOÇÃO DO SIGILO E A SUA EFETIVIDADE NAS LICITAÇÕES DA


INFRAERO.

Entre as intensas discussões e controvérsias que envolvem o sigilo do orçamento, tem-se questiona-
do quais motivos influenciaram o legislador a instituir o sigilo do orçamento estimado no RDC, visto que no
ordenamento jurídico predomina a publicidade dos atos. A resposta a essa indagação pode ser encontrada
no parecer do Relator do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, decorrente da Medida Provisória nº
527/2011, que apresentou como justificativa para adoção do sigilo, a necessidade de impedir a formação de
cartéis entre os licitantes, como se extrai do trecho do Parecer do Senado:

Outra medida destinada a combater os cartéis é o sigilo do orçamento prévio


durante a licitação. Em mercados cartelizados, é comum que os agentes eco-
nômicos combinem previamente como se comportarão nos certames. Eles
dividem o mercado de obras públicas entre si, tornando a licitação um jogo
de cartas marcadas, no qual os participantes do conluio já sabem de antemão
qual deles irá vencer a disputa. Sabedor de que os outros licitantes irão ofer-
tar preços superiores ao de sua proposta, o futuro vencedor pode elaborar a
sua de modo a que a margem de desconto em relação ao orçamento prévio
da Administração seja mínima [...]. Como se vê, o sigilo do orçamento, longe
de ser uma medida reprovável, como sugerido por setores da mídia, traduz-
-se em inegável avanço na legislação, constituindo prática recomendada pela
OCDE e adotada pela legislação de diversos países, como a França e os Esta-
dos Unidos.

Como se percebe, o sigilo tem como finalidade inibir a prática de carteis, além de ser uma recomen-
dação da Organização e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que estabeleceram diretrizes, visando comba-

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Direito(s) em debate.

ter a formação de conluio nas licitações. Para isso, recomendou como garantia da lisura desse sigilo, manter
guardada uma via do orçamento estimado em envelope lacrado, sob a responsabilidade de uma autoridade
pública sem vínculo com o órgão responsável pelo certame (REZENDE, 2015, p. 41). Dessa forma, acredi-
ta-se que não haverá vazamento de informações, inclusive, impedirá a alteração do valor estimado após o
início da licitação.

Nesse aspecto, Heinen (2015, p. 37) entende que, a adoção do sigilo do orçamento nas licitações
aumenta a possibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes serem mais condizentes com suas realidades,
representando a verdadeira situação econômica da empresa, além de exigirem dos participantes maiores
cuidado na hora de elaborarem suas propostas.

Em sentido contrário encontram-se aqueles que declaram que o sigilo do orçamento não será ca-
paz de inibir a formação de conluio e cartéis, devido aos seguintes obstáculos: a) A administração elabora o
orçamento estimado com base nos preços de mercados, que são acessíveis a todos, inclusive, das empresas
participantes dos certames; b) A disponibilidade das informações aos órgãos de controle interno ou externo
produz um risco de vazamento de informações por integrantes dos órgãos (CAMMAROSANO; DALPOZZO;
VALIM, 2014, p. 53); c) O sigilo pode aumentar a possibilidade da licitação converte-se em deserta, diante
da ausência de informações relevantes que auxilie a elaboração da proposta pelo licitante, desestimulando a
competição na licitação (ALTONIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 120).

No entanto, os resultados apresentados decorrentes da experiência da Infraero demonstram que,


apesar de se verificarem algumas falhas na adoção desse sigilo, todos eles foram passíveis de correção pelos
órgãos de controles e os resultados positivos superaram as expectativas, conforme demonstra o resultado da
auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, especificamente pela Secretaria de Fiscalização de
Obras Aeroportuárias e de Edificação (SecobEdif) nas obras de reforma, ampliação e restauração de pistas
de pouso no aeroporto de Confins, em Minas Gerais, conforme destaca o Acórdão nº 305/2013 que teve como
relator o Ministro Valmir Campelo:

[...] A equipe de auditoria informou um sobre preço no orçamento base da


licitação, mas prontamente corrigido pela Infraero anteriormente ao início
do certame. Tal providência repercutiu em uma redução do valor base da
licitação em mais de R$ 19 milhões [...]. Pode-se, diante disso, tanto festejar
o sucesso do RDC eletrônico, como também - e por que não o do sigilo do
orçamento, revelado somente após a publicação da classificação.

Extrai-se ainda da redação desse Acórdão que, a auditoria realizada pelo TCU ocorreu na fase inter-
na da licitação, possibilitando o saneamento das irregularidades e promovendo resultados economicamente
elevados. Isso também comprava a disponibilidade de informações aos órgãos de controle, efetivando o que
determina o artigo 6º da Lei do RDC, o qual prevê que as informações relativas às licitações serão disponibi-
lizadas aos órgãos de controle de forma ampla.

A licitação citada por esse Acordão tinha como valor estimado pela Infraero, R$ 257.149.317,80
(duzentos e cinquenta e sete milhões, cento e quarenta e nove mil, trezentos e dezessete reais e oitenta
centavos), no entanto, foi homologada por R$ 199.044.986,52, (cento e noventa e nove milhões, quarenta e
quatro mil, novecentos e oitenta e seis reais e cinquenta e dois centavos), indicando que em termos de eco-
nomicidade o sigilo do orçamento tem apresentado resultados efetivo. (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE
LICITAÇÕES, 2015).

Nesse contexto destaca-se o aspecto econômico do RDC, analisado nessa pesquisa por meio de visita
realizada ao site da Empresa Infraero no dia 18 de maio de 2015, a qual constatou que foram homologados
74 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC, dos quais 69 adotaram o sigilo do orçamento estima-
do. As licitações que adotaram o sigilo do orçamento envolveram um montante de aproximadamente R$
3.175.776.144,35, (três bilhões, cento e setenta e cinco milhões, setecentos e setenta e seis mil, cento e
quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos). Entretanto, o valor total homologado pela Infraero, corres-
ponde a aproximadamente, R$ 2.924.175.738,21 (dois bilhões, novecentos e vinte quatro milhões, cento e

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Direito(s) em debate.

setenta e cinco mil, setecentos e trinta e oito reais e vinte um centavo), representando em termos percentu-
ais a diferença de 7,92% (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).

De forma sistemática, tentou-se transformar as informações levantadas no site da Infraero em dados


estatísticos representados por gráficos que foram divididos em dois grupos: as licitações realizadas na moda-
lidade RDC presencial e RDC na modalidade eletrônica.

Ressalta-se que, apenas foram contabilizados os valores das licitações homologadas que adotaram o
sigilo do orçamento, considerando os anos compreendidos entre 2011 a 2014 no âmbito da Infraero. Para
melhor sintetizar os resultados analisados nas licitações que adotaram o sigilo do orçamento estimado na
modalidade presencial segue o gráfico 1:

As licitações realizadas sob a égide do RDC na modalidade eletrônica também foram objetos de es-
tudos, expostos no gráfico 2.

Assim, foi considerado para análise dessa modalidade o período de 2012 a 2014. Percebe-se também
que, a partir do ano de 2014 a Infraero priorizou a modalidade eletrônica, diminuindo gradativamente o uso
das licitações na modalidade presencial, uma vez que no ano de 2014 não houve licitações nessa modalidade
(BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).

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Direito(s) em debate.

Todo esse panorama retrata no âmbito da Infraero a relevância e efetividade do sigilo do orçamento,
a partir dos resultados economicamente viáveis apresentados na pesquisa. Por fim, diante dos dados pesqui-
sados e analisados é possível perceber que em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento estimado
apresentou resultados satisfatórios e relevante efetividade econômica no âmbito da Infraero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Regime Diferenciado de Contratação foi criado, inicialmente, para ser aplicado às obras e servi-
ços relativos aos eventos esportivos, sediados no país entre os anos de 2013 a 2016. Nesse aspecto, o objeto
originário do RDC era transitório e limitado, entretanto, devido aos resultados apresentados, o seu objeto foi
ampliado, alcançando demandas sem nenhum vínculo com o objeto inicial.

Desse modo, as inovações inseridas no ordenamento jurídico com o advento desse regime provoca-
ram intensas discussões e controvérsias, que alcançaram o Supremo Tribunal Federal por meio das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade, nº 4645/11 e nº 4655/11, no entanto, até o presente momento não foram
julgadas.

Entre os diversos dispositivos impugnados pela ADI nº 4645/11 encontra-se o artigo 6º da Lei do
RDC, que disciplina o sigilo do orçamento estimado, estabelecendo que o orçamento da licitação será elabo-
rado, todavia, não será publicado antes do encerramento do certame. A controvérsia referente a esse instituto
reside no fato de que no regime licitatório tradicional, disciplinado pela Lei 8.666/93, a publicação do orça-
mento estimado deve ocorrer juntamente com o edital.

Assim, esse instituto desagradou a muitos, que visualizam no sigilo do orçamento estimado uma
grave violação ao princípio da publicidade. Esse princípio determina que os atos administrativos devam ser
publicizados com transparência, de modo a facilitar o controle tanto pelos órgãos de fiscalização como pela
sociedade, favorecendo o Estado Democrático de Direito.

Um dos principais argumentos para adoção do sigilo do orçamento é a de que esse instituto pode ini-
bir as práticas de formações de cartéis, visto que a ausência dessa informação inviabiliza tal conduta, além de
obrigar os participantes a elaborarem propostas mais reais e exequíveis, com a plena efetivação do princípio
da eficiência.

Durante a pesquisa também se percebeu que o sigilo do orçamento não é absoluto, tendo em vista que
algumas situações não se adaptaram ao instituto, como as licitações que adotam os critérios de julgamento:
maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, que devido às peculiaridades desses critérios torna-se
inviável a adoção do sigilo. A outra forma de relativização desse sigilo é a liberdade concedida à Administração
Pública para decidir se adota ou não o sigilo do orçamento estimado.

A análise sobre a jurisprudência do Tribunal de Contas da União e os editais de licitações apontou


que o sigilo do orçamento estimado do RDC no âmbito da Infraero foi efetivo, pois os valores homologados
foram sempre menores que os valores estimados, traduzindo a viabilidade econômica do orçamento sigiloso.

Assim, contudo, parecem ser inconsistentes as alegações de inconstitucionalidade do sigilo do orça-


mento estimado do RDC, previsto no artigo 6º da Lei 12.462/11, pois ao que tudo indica, o sigilo do orçamen-
to estimado faz parte de uma importante adequação do sistema licitatório ao atual contexto social, visando
atingir o interesse público com o alcance da proposta mais vantajosa para Administração Pública e de forma
plenamente, compatível com a Constituição Federal de 1988, refutando a hipótese levantada no início da
pesquisa. Em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento mostrou-se plenamente efetivo no âmbito
da Infraero.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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Livros

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BARIANI JUNIOR, Percival José. Da publicidade dos instrumentos das licitações pelo RDC, dos modos e
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Artigos

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE


DECLARAÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Alcerlane Silva Lins

Prof. Dr. Luiz Gustavo Simões Valença de Melo (Orientador)

SUMÁRIO: Introdução; 1.A importância dos princípios para o processo civil; 2. O princípio do con-
traditório; 3. Os embargos de declaração e o efeito infringente; 4. O princípio do contraditório nos
embargos de declaração na perspectiva do novo CPC; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A função primordial do direito é manter a paz social, solucionando conflitos por meio de decisões judi-
ciais. Para isso, tais decisões precisam ser claras e objetivas para serem compreendidas e consequentemente,
executadas. Ocorre que, em determinadas situações as decisões judicias podem apresentar algum vício que
impossibilite a execução da decisão pelo jurisdicionado. Por isso, o legislador instituiu no rol dos recursos os
embargos de declaração, que consiste no instrumento hábil para impugnar decisões com vícios de omissão,
contradição, obscuridade ou erro material, conforme prevê o artigo 1022 do novo CPC.

Assim, em determinadas situações, ao se tentar corrigir esses vícios, a decisão embargada pode ser
modificada, alterando-se totalmente a decisão inicial. Diante dessa possibilidade discutia-se na doutrina se
haveria a necessidade de aplicação do princípio do contraditório, tendo em vista a Constituição Federal, no
artigo 5º, inciso LV, prevê a obrigatoriedade de observância do contraditório tanto nos processo judiciais como
administrativo, enquanto que o CPC de 1973 não fazia referência a tal necessidade. Essa discussão histórica
se evoluiu em decorrência dessa omissão legislativa, que embora boa parte da doutrina e da jurisprudência
dos Tribunais Superiores ventilasse a necessidade de contrarrazão diante dos efeitos infringentes dos embar-
gos de declaração, outra parte da doutrina acreditava que não haveria a necessidade do contraditório, pois o
conteúdo da decisão já havia sido abordado durante a fase de conhecimento.

O novo Código de Processo Civil acabou com essa discussão, estabelecendo no artigo 1023, §4º que,
quando o acolhimento dos embargados modificar a decisão embargada, o juiz concederá a oportunidade para
o embargado apresentar contrarrazão no prazo de 5 (cinco) dias, efetivando expressamente o princípio do
contraditório.

Com isso, fica evidente a importância atribuída aos princípios constitucionais, notadamente quando
se refere ao princípio do contraditório que atualmente, encontra-se presente em vários dispositivos do novo
Código de Processo Civil, o qual absorveu a nova leitura dada a esse princípio pela doutrina e jurisprudência.
Tal princípio é atualmente compreendido como um legitimador das decisões judiciais, visto que no atual Es-
tado Democrático de Direito as decisões não só precisam ser analisadas dentro do campo da legalidade, mas
também dentro do campo da legitimidade e, o princípio do contraditório atribui essa legitimidade as decisões
judiciais.

Percebe-se então que ao longo dos anos esse princípio tem ampliado o espaço de participação do cida-
dão nas decisões judiciais, uma vez que ele traz em seu conteúdo a oportunidade de participação, inclusive,
atribui às partes o poder de influenciar no resultado final do processo, pois é predominante na doutrina o

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Direito(s) em debate.

entendimento de que não existe processo sem o contraditório, permitindo que o cidadão não apenas apre-
sente ao judiciário o objeto para decisão, mas participe influenciando ativamente no resultado do processo.

Desse modo, fica evidente a relevância e atualidade do tema, visto que o novo CPC por meio dos em-
bargos de declaração concretiza o modelo de processo previsto pela Constituição Federal de 1988, atribuindo
à parte embargada o direito de exercer o contraditório em sua plenitude, para produção de decisões legítimas,
pois como já mencionado, uma das finalidades do princípio do contraditório é atribuir legitimidade às deci-
sões judiciais, para materialização do Estado Democrático de Direito. Com isso, a efetividade do princípio do
contraditório nos embargos de declaração do novo CPC merece ser analisada minuciosamente.

Assim sendo, a pesquisa se iniciará com a análise sobre a importância dos princípios para o processo
civil, especificamente o princípio do contraditório. Em seguida analisará a efetividade desse princípio nos
embargos de declaração sob a perspectiva do novo CPC, com respaldo da doutrina e jurisprudência referente
à nova processualística desse recurso.

1. A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS PARA O PROCESSO CIVIL.

Antes de adentrar na discussão sobre o princípio do contraditório, fundamental se mostra apresentar


a importância dos princípios para o processo civil, especificamente para o sistema recursal, uma vez que os
princípios vêm ganhando força no atual Estado Democrático de Direito em razão de terem como principal
finalidade a positivação de valores sociais, com aplicação de um direito principiológico, fundamentado na
Constituição Federal (AGRA, 2012, p.104).

Nesse aspecto, é possível perceber que os princípios atuam como norteadores e inspiradores do le-
gislador, bem como do aplicador do direito, tendo em vista exercerem a função primordial de abreviar o dis-
tanciamento entre a norma e a Justiça, agindo como nexo entre o Texto Constitucional e a realidade social.
Isso não significa que, eles são imposições de aspectos sociais, morais ou econômicos, mas elementos incor-
porados ao conhecimento jurídico que se transformam em componentes do direito, (AGRA, 2012, p.104).

Desse modo, pode-se afirmar que os princípios desenvolvem um papel importante na concretização
dos direitos, indicando as diretrizes a serem seguidas com o intuito de se alcançar um determinado fim. A
este propósito são imprescindíveis as lições de Barroso (2009, p.13) que, de forma clara e precisa afirma que
os “princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão políti-
ca relevante e, indicam uma determinada direção a seguir”.

Ainda assim, Theodoro (2015, p. 41) alerta para o cuidado de não se aplicar princípios sem relação
normativa, pois para invocação de um princípio não basta apenas à presença de argumentos lógicos, morais
ou pragmáticos, mas também a análise minuciosa do caso concreto.

Por isso, diante das alterações e inovações inseridas no novo CPC, notadamente no sistema recursal,
fica nítida a intenção do legislador em homenagear os princípios de modo a assegurar uma prestação jurisdi-
cional eficiente. Para tanto, o princípio do contraditório foi invocado a partir de uma leitura predominante-
mente constitucional, que impõe não apenas a participação do jurisdicionado, mas também a capacidade de
influenciar na decisão judicial, com a finalidade de garantir um processo justo.

Diante da nova dimensão conferida ao princípio do contraditório é interessante analisar a nova faceta
assumida por esse princípio que será abordado no tópico a seguir.

2. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO.

A Constituição Federal de 1988 é o marco regulatório para o Estado Democrático de Direito, que atribuiu ao
princípio do contraditório o status de direito fundamental das partes no processo, inserido no rol de direitos fundamen-
tais, previsto no artigo 5º, inciso LV, que garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

em geral o direito ao contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, concretizando o Estado
Democrático de Direito que assegura a todos um processo pautado na isonomia das partes (FIORATTO; DIAS, p.113).

Nessa perspectiva, pode-se verificar que o princípio do contraditório que decorre do princípio do devido pro-
cesso legal traz em sua essência o direito da parte ser informada de todos os atos do processo e se manifestar ao ponto
de influenciar no resultado final. Isso tem fundamento na democracia participativa, que garante um processo justo, con-
forme afirma Didier (2013, p. 56):

O princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na estrutu-


ração do processo. Democracia é participação, e a participação no processo
opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contra-
ditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um
poder.

Verifica-se que atualmente, esse princípio é elemento primordial e essencial para o resultado do pro-
cesso, integrando o próprio conceito de processo, pois não existe processo onde não haja o contraditório, uma
vez que o processo pode ser conceituado como um conjunto de procedimentos alicerçados em contraditório
(DIDIER, 2013, p.56).

É possível perceber que esse princípio sofreu ao longo dos anos consideráveis alterações, que de for-
ma sistemática a doutrina separou em três fases: i) Fase formal, fundada na necessidade de informar; ii) Fase
material, caracterizada pela oportunidade das partes se manifestarem no processo, iii) Fase constitucional,
que efetivou o direito de influenciar a decisão final do processo, (RIBEIRO, 2014, p.20).

Por isso, atualmente o processo deve ser interpretado dentro dos parâmetros democráticos, com a
participação ativa das partes em todas as fases, inclusive na fase recursal, com a efetivação do princípio do
contraditório, que tem como característica predominante o poder de influenciar no resultado do processo.
Tal qualidade deriva das democracias construídas após a segunda guerra mundial e a observância dessa ca-
racterística eleva o cidadão, reconhecendo-o como sujeito de direito (BODART, 2012, p.2).

Ocorre que, nem sempre o processo foi compreendido com essa amplitude constitucional, visto que
inicialmente, o contraditório era entendido apenas como a oportunidade de as partes tomarem ciência dos
atos praticados no processo, alcançando uma mera formalidade, denominada pela doutrina como bilate-
ralidade da audiência, que consistia no direito de igualdade das partes de receberem informações sobre o
andamento do processo. Entretanto, tal finalidade restou ultrapassada, sendo acrescentada também, a possi-
bilidade das partes influenciarem na formação do resultado final, com o objetivo de impedir o surgimento de
decisões surpresas, também conhecidas como decisões de terceira via (THEODORO, 2015, p.69).

Com isso, atualmente, pode-se verificar que o princípio do contraditório apresenta dois aspectos
importantes: a) o aspecto formal representado pela garantia de participação; b) o aspecto substancial como
a possibilidade das partes influenciarem na decisão (DIDIER, 2013, p.57). O aspecto formal consiste na
garantia de participação que pode ser interpretada como o direto de simplesmente, dizer e ser ouvido, favo-
recendo a bilateralidade da audiência, com a possibilidade de o juiz utilizar seu livre convencimento e decidir
da forma que melhor entenda, configurando um contraditório estático, que representa a face limitada e tra-
dicional do princípio do contraditório. Segundo a doutrina atual, a simples oportunidade concedida às partes
para manifestação não efetiva o contraditório, sendo necessária a participação com poder de influência. Em
relação ao aspecto substancial, observa-se um contraditório dinâmico, que compreende a oportunidade de
se manifestar, além do poder de influenciar no resultado do processo, impedindo o surgimento da decisão
surpresa. Tal manifestação proporciona um sistema processual constitucional que torna a decisão legítima e
com maior aceitação das partes. (DIDIER, 2013, p. 57)

Desse modo, o princípio do contraditório legitima o provimento jurisdicional, pois no Estado Demo-
crático de Direito não é suficiente apenas analisar a legalidade das decisões jurisdicionais, mas também é
necessário que as decisões sejam legítimas. Com isso, fica evidente que toda atividade exercida pelo Estado
só será legítima quando as decisões estiverem fundamentadas em argumentos discutidos pelas partes, atri-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

buindo às decisões, legitimidade por meio do exercício do contraditório, evitando o aparecimento de decisões
de terceira via, (CÂMARA, 2011, p. 64).

Como se vê, a violação ao direito de participação e a possibilidade de influenciar no resultado do pro-


cesso, afronta o princípio do contraditório, bem como afetará outros princípios, tornando a decisão inválida.
Sintetizando esse entendimento encontram-se as lições de Walber Agra (2012, p. 228).

O contraditório tem como requisito a participação das partes na formação


das lides processuais, assegurando sua eficiência apenas se for possibilitada
aos componentes da relação, atuação na inteireza dos procedimentos. Se o
cidadão não tem oportunidade de defesa está se estiolando o princípio da
isonomia porque houve oportunidade para acusação, impedindo que todos
sejam iguais perante a lei e, igualmente, obstaculiza-se que a verdade real
possa ser concretizada.

Vale ressaltar, que sendo concedida a parte o direito de exercer o contraditório e vindo a parte a negli-
genciar, sem comparecer para exercer tal direito não haverá afronta a esse princípio, pois o contraditório se
efetiva com a oportunidade de manifestar e influenciar e não com exercício desse direito. (RIBEIRO, 2014,
p. 19).

Como se percebe, o novo Código de Processo Civil - CPC, por intermédio do princípio do contraditó-
rio nos embargos de declaração, reflete o modelo de processo idealizado pela Constituição Federal de 1988,
(BODART, 2012, p.2). E a importância da concretização plena desse princípio é fator imprescindível para
configuração do Estado Democrático de Direito, por isso, o novo CPC, atribuiu relevante valor para tal prin-
cípio, reafirmando em seu artigo 10 a necessidade de observância ao princípio do contraditório, a partir de
uma nova concepção, estabelecendo que não será possível decidir, em grau algum de jurisdição, com base
em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se
trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

A importância atribuída ao princípio do contraditório pelo novo CPC atingiu o sistema recursal, preci-
samente no artigo l023, §2º, determinando que: “O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se,
no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação
da decisão embargada. (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015).

É nítida a relevância desse princípio para o processo, no entanto, cumpre ressaltar que no Estado De-
mocrático de Direito, faz-se necessário efetivar também, outros princípios que compõem o devido processo
legal e não apenas o princípio do contraditório, para produção de uma decisão justa com maior efetividade,
decorrente de um processo totalmente democrático.

Dessa forma, percebe-se que, o contraditório favorece o Estado Democrático de Direito, garantindo a
participação das partes em todas as fases do processo, principalmente quando ocorre o efeito infringente nos
embargos de declaração que será tratada no próximo tópico.

3. OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E O EFEITO INFRINGENTE.

É sabido que o Estado tem como uma de suas funções o dever de dizer o direito, denominada de
função jurisdicional. O exercício dessa função ocorre por intermédio de decisões judiciais que, devem ser
prolatadas de forma clara, completa e coerente para que os jurisdicionados compreendam e a executem
(WAMBIER, 2005, p. 18).

Assim, quando as decisões judiciais forem imprecisas e incompreensíveis em decorrência dos vícios
de omissão, obscuridade, contradição ou até erro material, que impossibilitem a execução da decisão será
possível impugná-la com o recurso de embargos declaratório, que tem a finalidade de conceder ao juízo que
prolatou a decisão a oportunidade de esclarecê-la, corrigindo o erro improcedendo, que abrange os erros de-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

correntes da atividade que, se manifestam quando as normas de procedimento são desrespeitadas, (DIDIER,
2013 p.82).

Nesse sentido Araken (2014, p.630) apresenta com clareza a finalidade dos embargos de declaração:

O remédio presta-se a integrar ou a aclarar o pronunciamento judicial, tal-


vez decorrente do julgamento de outro recurso, escoimando-o dos efeitos
considerados relevantes à sua compreensão e alcance, a saber: a omissão, a
contradição e a obscuridade.

É certo que, em regra, os embargos de declaração não têm caráter modificador, mas apenas natureza
de integrar e esclarecer uma decisão, podendo, assim, ser classificado como um recurso de fundamentação
vinculada, visto que a lei restringe as matérias que podem ser impugnadas por meio de tal recurso, como a
omissão, obscuridade, contradição e erro material, conforme se infere do artigo 1022 do novo CPC.

Nesse aspecto, Didier (2013, p.200), conceitua o vício de omissão como a decisão que não se mani-
festa sobre o pedido ou sobre pontos importantes abordados pelas partes, inclusive sobre questões de ordem
pública. Em relação ao vício da obscuridade, o mesmo autor define como sendo uma decisão ininteligível. Já
o vício da contradição surge quando a decisão é composta de conjecturas contraditórias.

Ocorre que, como já salientado, a finalidade típica dos embargos de declaração não é a reforma da
decisão judicial, mas a correção de erro improcedendo. Entretanto, há determinadas situações em que o
acolhimento desse recurso pode alterar a decisão embargada, provocando o efeito modificativo, também
denominado pela doutrina como efeito infringente. No entanto, no Código de 1973, não havia previsão legal
expressa, sobre a necessidade de se intimar a parte embargada para participar efetivamente da produção do
resultado final da decisão, por meio do contraditório, quando a decisão embargada fosse alterada, embora os
tribunais se posicionassem no sentido de ser obrigatória a efetivação desse princípio diante do efeito infrin-
gente dos embargos (BRASIL, LEI Nº 5869, 1973).

Essa omissão legislativa remetia a seguinte indagação: ocorrendo a modificação da decisão embarga-
da haveria realmente a necessidade do contraditório? Esse questionamento dividiu opiniões.

A doutrina minoritária encampada por Daniel Assumpção (2011, p.726) e outros, entendia que era
preciso classificar os efeitos decorrentes da alteração da decisão embargada em dois tipos: a) efeitos modifica-
tivos; b) efeitos infringentes. Para essa corrente diante do efeito modificativo dos embargos não era necessá-
rio aplicar o contraditório, visto que não havia alegação de matéria nova no processo, mas a análise de matéria
já discutida no processo, com o pedido de saneamento de omissão ou contradição, por isso, não haveria a
necessidade da concessão dos 5 (cinco) dias para o exercício do contraditório. Em relação aos efeitos infrin-
gentes derivado dos embargos de declaração, os defeitos eram teratológicos, portanto, não integravam nem
esclareciam, mas promoviam a reforma ou anulação da decisão embargada, nesse caso o contraditório seria
necessário, pois a decisão embargada era alterada ao sanar um vício, (NEVES, 2011, pp.726-728).

A doutrina majoritária, que tinha como representante Fredie Didier (2013, p. 226) por sua vez, não
fazia a distinção entre os efeitos modificativo e infringente, entretanto, considerava que qualquer alteração
na decisão embargada produzia o efeito modificativo que correspondia ao efeito infringente e, portanto de-
via-se invocar o princípio do contraditório, visto que a ofensa a tal princípio acarreta a invalidade da decisão.

A jurisprudência também entendia que era necessário oportunizar o contraditório quando houvesse o acolhi-
mento dos embargos de declaração com a alteração da decisão embargada. Isso é o que se percebe no julgado do Su-
premo Tribunal Federal (BRASIL, STF, AI: 813184 RJ, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno
DJe-229 DIVULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014):

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EXISTÊNCIA DE OMISSÃO. EFEITOS


INFRINGENTES EM EMBARGOS. NECESSÁRIO CONTRADITÓRIO. I A
atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração torna impres-
cindível a observância do contraditório, oportunizando-se à parte contrária

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Direito(s) em debate.

impugnar o pedido do embargante. II Embargos de declaração acolhidos para


anular o acórdão proferido nos primeiros embargos de declaração e deter-
minar a abertura de vista ao ora embargante para apresentar contrarrazões
ao recurso anteriormente interposto. STF - AI: 813184 RJ, Relator: Min.
RICARDO LEWANDOWSKI (Presidente), Data de Julgamento: 16/10/2014,
Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-229 DI-
VULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014). (Grifo nosso)

A justificativa para tal controvérsia residia no fato de que, a finalidade dos embargos de declara-
ção, consistia em esclarecer as decisões e não redecidi-las, como também não havia no Código de Processo
Civil de 1973 nenhum dispositivo determinando a necessidade da parte embargada apresentar contrarrazão
(DINAMARCO, 2013, p.186). Nesse contexto, é importante destacar que para muitos a efetivação do prin-
cípio do contraditório nos embargos de declaração impede que no futuro a parte embargante ajuíze ação
rescisória (SOUZA, 2014, p. 474), visto que foi concedido a parte, o direito de influenciar no resultado do
processo.

Para resolver essa celeuma o novo Código de Processo Civil determinou expressamente, a efetivação
do princípio do contraditório quando ocorrer a alteração da decisão embargada com a produção do efeito
infringente.

4. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NA PERSPECTIVA


DO NOVO CPC.

O princípio do contraditório é refletido em vários dispositivos do novo Código de Processo Civil (CPC),
especificamente no artigo 1023, §2º, que determina que “o juiz intimará o embargado para, querendo, ma-
nifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique
a modificação da decisão embargada”. Esse dispositivo apresenta-se como uma forma de garantia do direito
fundamental das partes de participarem do resultado do processo (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015).

Com isso, verifica-se a relevância do princípio do contraditório nos embargos de declaração do novo
CPC, que foi aplicado pelo legislador dentro dos parâmetros constitucionais que abrange tanto a participa-
ção, como o poder das partes de influenciarem no resultado da decisão. Esse mesmo raciocínio é expresso
no enunciado nº 3, aprovado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrado – ENFAM,
que também indica a necessidade da parte se manifestar e de exercer influência na solução da causa.

Assim, como se vê, a alteração concentrada no regramento dos embargos de declaração indica que o
legislador ordinário, além de efetivar o contraditório, acabou com uma discussão que se estendia ao longo dos
anos, admitindo expressamente o efeito infringente dos embargos de declaração.

Nesse contexto é importante ressaltar que o efeito infringente, pois em regra, os embargos de decla-
ração não têm caráter modificador, mas apenas natureza de integrar ou esclarecer omissão, contradição ou
obscuridade e corrigir erro material, como prever o artigo 1022, incisos I, II, III do novo CPC:

Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial


para:
I - Esclarecer obscuridade ou eliminar contradição;
II - Suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o
juiz de ofício ou a requerimento;
III - Corrigir erro material.

Como se percebe, os embargos de declaração têm, em princípio, a função de integrar ou esclarecer a


decisão, todavia, pode acontecer que ao suprir a omissão, esclarecer uma dúvida ou eliminar uma contradi-
ção que contamine a decisão judicial, ocorra uma modificação na decisão embargada. Quando isso ocorrer

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

deve-se atentar para o que dispõe o artigo 1023, §4º, do novo CPC dispõe que: “O juiz intimará o embargado
para, querendo manifestar-se, no prazo de cinco dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhi-
mento implique a modificação da decisão embargada”.

Assim, extrai-se da redação desse dispositivo que o novo CPC disciplina expressamente os efeitos
infringentes nos embargos de declaração, regulando a necessidade do contraditório. Com isso, comprova-se
que esse novo código se pauta por um processo moderno que busca a efetividade das decisões, oferecendo
um provimento justo e eliminando as contradições, omissões e obscuridade dos provimentos jurisdicionais.

Nesse aspecto, Mazzei (2015, p.2278) atenta para o dever de se aplicar o contraditório a todo e qual-
quer capítulo da decisão e não apenas aos temas principais da decisão embargada, como entendia boa parte
da doutrina. Atualmente, entende-se que o contraditório deve ser observado em toda fase de processo.

Por isso, as alterações efetuadas pelo novo CPC no sistema recursal no que tange aos embargos de
declaração alcançaram também outros dispositivos, como as que se concentram no artigo 1024, §4º estabe-
lecendo que, quando o acolhimento dos embargos de declaração implicar a modificação da decisão embar-
gada e o embargado já tiver interposto outro recurso contra a mesma decisão, os embargos serão julgados
primeiros e ocorrendo o efeito infringente a parte embargada terá direito de: a) complementar as razões do
recurso, inclusive alterar seu conteúdo. Isso se constitui como direito lógico, pois se a decisão foi alterada,
as razões do recurso mostram-se sem sentido e por isso, a parte terá direito a adaptar as razões do recurso a
atual decisão prolatada decorrente do efeito infringente. Ressalta-se que o dispositivo legal alerta para a ne-
cessidade da alteração das razões serem feitas dentro dos limites da modificação. b) Não havendo alteração
da decisão embargada quem recorreu não precisará ratificar o recurso para que ele seja julgado (BRASIL,
LEI Nº 13.105, 2015).

Esse novo regramento, que apresenta a desnecessidade de ratificação do recurso implicará o cancela-
mento da Súmula 418 do Superior Tribunal de Justiça que determinava ser “inadmissível o recurso especial
interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. Nesse
sentido o enunciado 23 do Fórum Permanente de Processualista – FPPC estabelece que:

“(art. 218, § 4º; art. 1.024, § 5º) fica superado o enunciado 418 da súmula
do STJ após a entrada em vigor do CPC (“ É inadmissível o recurso especial
interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem
posterior ratificação”). (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Ge-
ral dos Recursos, Apelação e Agravo).

Desse modo, a alteração inserida no âmbito dos recursos, principalmente, nos embargos de declara-
ção foi relevante e necessária, pois se buscou efetivar o princípio do contraditório nas decisões embargadas
com possibilidade de modificação da decisão. Com isso, concede-se a parte a oportunidade de exercer seu
direito ao contraditório, além do direito de complementar ou alterar as razões do recurso e a desnecessidade
de ratificá-lo, quando for interposto concomitantemente aos embargos de declaração. Tudo isso representa
um grande avanço para o Estado democrático de Direito, como bem diz Teresa Wambier (2005, p.15) “Hoje,
parece poder-se sustentar sem sombra de dúvida que os embargos de declaração têm raízes constitucionais”,
por isso, o novo CPC invocou expressamente o princípio do contraditório, consolidando o modelo constitu-
cional de processo.

CONCLUSÃO

É bem verdade que atualmente os princípios vêm conquistando espaço no ordenamento jurídico e
exercendo relevante influência dentro do processo civil, em razão de desempenharem um papel importante
na efetivação dos direitos fundamentais.

Assim, dentre os princípios que compõem o modelo constitucional do processo, destaca-se o princípio
do contraditório que diante de sua relevância para o processo civil, o legislador ordinário determinou sua

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

aplicação em diversos dispositivos do novo Código de Processo Civil, notadamente no artigo 1023, § 2º que,
trata do recurso de embargos de declaração.

Esse recurso é classificado pela doutrina como recurso de fundamentação vinculada, pois é cabível
apenas quando ocorrer omissão, contradição, obscuridade e erro material, com a finalidade específica de es-
clarecer uma decisão judicial. No entanto, é possível que diante de determinada situação a correção desses
vícios altere a decisão embargada, produzindo o efeito infringente, também denominado pela doutrina de
efeito modificativo.

O efeito infringente nos embargos de declaração é aceito pela doutrina e jurisprudência como efeito
excepcional, uma vez que tal recurso tem como finalidade precípua a correção de um erro improcedendo e,
não a reforma da decisão.

Durante muito tempo existiu uma discussão sobre a necessidade de se efetivar o contraditório se a
decisão embargada fosse modificada. O Código de Processo Civil de 1973 não fazia referência sobre a neces-
sidade de se intimar a parte embargada para apresentar contrarrazão, quando surgisse o efeito infringente,
embora boa parte da doutrina e da jurisprudência se posicionasse no sentido de aplicar o princípio do contra-
ditório quando o acolhimento desse recurso modificasse a decisão embargada.

Essa omissão legislativa provocou intensas discussões e o novo CPC vem acabar com tal celeuma e
reafirmar o que boa parte da doutrina e dos tribunais já afirmavam sobre a necessidade de se conceder opor-
tunidade para parte embargada, querendo, apresentar contrarrazões.

Cumpre destacar que o princípio do contraditório traz em seu conteúdo não apenas o direito das par-
tes se manifestarem, mas de exercerem influência na formação do resultado final do processo, como garantia
de um processo justo, pois se sabe que atualmente esse princípio é compreendido como um legitimador das
decisões judiciais, visto que no atual Estado Democrático de Direito as decisões devem ser analisadas tanto
no campo da legalidade como no da legitimidade e o princípio do contraditório previsto nos embargos de de-
claração do novo CPC promove essa legitimidade.

Desse modo, fica evidente que essa alteração inserida no novo CPC buscou aperfeiçoar as decisões
judiciais, garantindo uma prestação jurisdicional objetiva e precisa sem afrontar o direito das partes ao con-
traditório, pois a violação a tal princípio macula o Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

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59
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF

Ana Caroline Alves Leitão


Bacharelanda e bolsista de iniciação cientifica(PIBIC) em Direito na Universidade Católica
de Pernambuco(UNICAP).

Virginia Colares
Mestre e Doutora em Linguística pela UFPE. Presidente da ALIDI. Membro do ILLA.
Professora da Graduação e do Programa de Pós graduação em Direito da UNICAP e
orientadora da bacharelanda no PIBIC.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Fundamentação teórica. 1.1. Análise crítica e tridimensionalismo do dis-


curso. 1.2. Ideologia: conceitos e modos de operação. 2. Análise crítica do discurso jurídico e atuação
da ideologia na ADPF 186. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

Este trabalho integra o plano de trabalho “Os modos de operação da ideologia no discurso de fun-
damentação nas decisões do STF sobre os direitos dos negros” a ser desenvolvido no PIBIC 2015/2016 da
Universidade Católica de Pernambuco, sob responsabilidade das autoras.

Com o objetivo de identificar, nas peças processuais, as estratégias linguístico-discursivas dos modos
de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que
concerne aos direitos dos negros, a metodologia utilizada será a da Análise Crítica do Discurso Jurídico, res-
saltando efeitos ideológicos e políticos do discurso, a partir dos modos de operação da ideologia postos por J.
B. Thompson. A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem por escopo a abordagem das relações entre lingua-
gem, direito e sociedade.

Para tal analisa-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186/DF, aprovando as cotas
raciais, o qual evidencia as mudanças nas relações entre direito e sociedade, que tradicionalmente foi de
imperativa ratificação do poder das classes dominantes frente às minorias e atualmente vem adotando uma
postura em prol da justiça social na contramão de seu uso tradicional. O foco da análise é a identificação dos
modos de operação da ideologia nesse discurso de fundamentação da ADPF 186/DF.

Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica necessariamente a sua utiliza-
ção como algo que oculta a verdade e leva a uma falsa consciência em contraste com algo que é considerado
verdadeiro e real, já que comumente a ideologia é retratada como uma via alienante para a manutenção de
poderes; o que se pretende é evidenciar que a ideologia opera por intermédio da linguagem que viabiliza a
ação social, sendo parcialmente constitutiva daquilo que na nossas sociedades é denominado “a realidade”.

A ACD revela uma tridimensionalidade do discurso, conforme a proposta de Normam Fairclough,


assim, o texto é analisado em suas três dimensões: textual, como pratica discursiva e como pratica social,
para compreender integralmente o que sustenta as cotas raciais como direito social e garantia de igualdade
material, considerando, que apenas com a análise detalhada e meticulosa da estrutura textual do discurso,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

da forma como ele é produzido, distribuído e consumido e das relações sociais construídas entre negros e
outras raças, a partir de um contexto histórico de dominação e inferiorização do povo negro em relação aos
demais, é que se torna possível enxergar a discriminação positiva entre essas pessoas negras e não negras
como cabível, no momento em que se constitui o argumento para a ocupação das vagas universitárias e por-
que a construção deste argumento dada a partir apenas da nota numericamente constituída através da fria
avaliação de conhecimento se traduz em injustiça.

As fronteiras entre direito e política tem-se demonstrado bastantes flexíveis em diversas decisões do
STF, tais como: aborto anencefálico, casamento civil igualitário, as cotas, entre outras, nas quais o STF tem,
frente aos demais poderes e a sociedade, concedido e até mesmo criando novos direitos sociais; como as cotas
raciais tratadas no voto que este trabalho analisa, que objetivam alcançar a igualdade -material- presente na
carta magna e suprir uma dívida histórica que o Brasil tem com tal minoria, após um passado vergonhoso de
escravidão e uma realidade permanente de exclusão destes, através de uma verdadeira justiça distributiva.

Tentando alcançar assim, o objetivo primário de toda a estrutura do poder judiciário que consiste
em promover a justiça e a pacificação social, intermediando por meio de peças fundamentadas tais conflitos
presentes na sociedade brasileira. A fundamentação jurídica presente nas decisões condensa as práticas so-
ciais de todo um contexto histórico-social em seus textos. Portanto, todo discurso é uma construção social
e somente pode ser analisado ao se considerar a realidade em que esta imerso. Uma realidade de luta de
classes em que o judiciário tem se colocado ao lado dos interesses das minorias que compõe o povo. Assim,
decifrando-se o discurso jurídico, pretende-se também obter toda uma compreensão da realidade vivida
podendo, com isto, compor novas perspectivas de, não apenas novos direitos sociais, mas de toda uma nova
estrutura jurídica.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.

1.1 ANÁLISE CRÍTICA E TRIDIMENSIONALISMO DO DISCURSO.

A análise crítica do discurso, idealizada por Norman Fairclough da década de 70, é uma espécie de
investigação dos emaranhados compositivos do discurso que considera a linguagem como uma forma de prá-
tica social; tem como centro da análise o contexto no qual o discurso é feito assim como a ideologia presente,
ou seja, foca nas relações entre linguagem e sociedade.

A ACD de Fairclough postula que o discurso tem três áreas fundamentais a serem decifradas para
compor a análise crítica a qual se propõe, ou seja, faz-se um estudo tridimensional do discurso; São essas:
análise de textos, que podem ser falados ou escritos; análise da prática discursiva, que observa os processos
de produção, distribuição e consumo dos textos e a análise da prática social do discurso que seria todo o
contexto sócio cultural da sociedade da qual o discurso provém, já que não existe prática discursiva inerte ao
ambiente na qual é constituída. Ter destacado esses três aspectos não implica dizer que Fairclough propunha
uma análise isolada de cada uma delas, pelo contrário, em sua obra destaca que tal distinção é ilusória, por
que ao analisar um texto sempre se examinam concomitantemente questões de forma e de significado.

Na primeira dimensão, no discurso como texto, destacam-se aspectos formais da construção textual,
considerando que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar certos sig-
nificantes a certos significados. Assim, a análise textual pode ser organizada em quatro tópicos: vocabulário,
gramática, coesão e estrutura textual. Vocabulário trata das palavras postas individualmente; gramática das
palavras estruturadas em orações e frases; a coesão evidencia a ligação entre orações e frases; e a estrutura
textual trata das propriedades organizacionais de larga escala dos textos.

A dimensão da prática discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo e a na-


tureza desses processos caminha entre diferentes tipos de discurso em conformidade com fatores sociais,
como o processo de produção, que são idealizados de múltiplas formas particulares em contextos específicos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O consumo também pode ser diferenciado a partir de aspectos sociais diversos, que se relaciona com
a capacidade interpretativa do publico alvo e os modos de interpretação disponíveis. No que se refere a dis-
tribuição, pode ser simples ou complexa, cada texto possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias
para a reprodução e transformação do texto. Fairclough elenca ainda o que seriam:

/.../ dimensões ‘sociocognitivas’ de produção e interpretação textual, que se


centralizam na inter-relação entre os recursos dos membros, que os partici-
pantes do discurso têm interiorizado e trazem consigo para o processamento
textual e o próprio texto. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 109).

Três dos principais itens sociocognitivos que integram a pratica discursiva são: a força dos enuncia-
dos(tipos de atos de fala); a coerência do texto que é uma propriedade das interpretações na qual um texto
coerente seria aquele que mantém uma relação de perfeita harmonia entre as partes integrantes do texto
e o sentido objetivado; e a intertextualidade trata da propriedade que determinado texto tem de ser cheio
de fragmentos de outros textos, característica bastante frequente no fragmento da peça que este trabalho
analisa.

Na ultima dimensão o discurso é tido como uma prática social, em que o autor:

/.../discutirei o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa


o discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concep-
ção da evolução das relações de poder como luta hegemônica. (FAIRCLOU-
GH, 2001, pág. 116).

Nesta dimensão o autor entende que ideologias são construções da realidade em que são construídas
varias formas das práticas discursivas que contribuem para a produção ou transformação das relações de
dominação. Já hegemonia diz respeito ao poder e domínio exercido em determinada sociedade, e no que diz
respeito à análise discursiva, avalia-se não só o exercício deste poder, mas toda a estrutura de luta hegemô-
nica que se trava entre os detentores e submissos.

1.2 IDEOLOGIA: CONCEITOS E MODOS DE OPERAÇÃO.

O termo ideologia carrega em si o peso de seu uso ao longo do tempo, assim, a compreensão histórica
do termo é essencial para entender sua aplicação usual no senso comum e contrapropostas a esse uso e tam-
bém tentar traçar uma definição mais condizente com sua real dimensão na linguagem, portanto, será posto
os principais conceitos e usos históricos da ideologia e o conceito adotado neste trabalho.

Destutt de Tracy introduziu o conceito de ideologia como uma definição para o que seria uma ciência
das ideias, sendo inicialmente posto como um sistema de análise das ideias e sensações, acreditando que
as coisas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas apenas as ideias formadas pelas sensações que se
tem delas. Ao passo em que a expressão começou a ser utilizada em meio político, seu conceito sofreu uma
reviravolta e foi usado por Napoleão contra os filósofos, não para se referir a uma ciência positiva e eminente,
mas a um corpo de ideias apartadas da realidade, assim, ideologia corresponderia a ideias utópicas e ilusó-
rias. Nas obras de Marx é possível flagrar vários significados distintos atribuídos ao mesmo termo- ideologia-,
primeiramente tem-se um conceito dito polêmico na obra a ideologia alemã, na qual denota, ao criticar as
ideias dos jovens hegelianos, que ideologia seria uma concepção teórica que acredita utopicamente nas ideias
como auto-suficientes e que não consegue compreender as características históricas e sociais da realidade
física, conceito que muito se assemelha ao uso que Napoleão fez do termo, ao postular que ideologia seria a
ideia afastada da política pratica, e por isso deveria ser desprezada. Já na concepção epifenomênica, Marx
concebe ideologia como um conjunto de ideias que expressam os interesses da classe dominante e que re-
presenta as relações de classe de forma ilusória. Há ainda uma concepção que J. B. Thompson nomeou de
concepção latente, na qual:

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

/.../Ideologia é um sistema de representações que servem para sustentar


relações existentes de dominação de classe através da orientação das pes-
soas para o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que
escondem relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social.
Eu descreveria isso como a “concepção latente” de ideologia. (THOMPSON,
1998, pág. 58).

Após os três usos de Karl Marx: polêmica, epifenomênica e latente, o conceito de ideologia emergiu
com certa importância no meio das disciplinas sociais e chamou para si a atenção de vários outros filósofos
e sociólogos abordaram a temática da ideologia em duas concepções, a crítica, onde se insere a concepção
marxista e também a de Thompson, que baseado na concepção latente de Marx, nega que a ideologia teria
que necessariamente ser algo ilusório, que oculte a realidade, mas mantém como característica o objetivo
de manter as relações de dominação, postulando que: “ideologia são as maneiras como o sentido serve para
estabelecer e sustentar relações de dominação” ( J. B. THOMPSON, 1998, pág.76). Em relação a Marx,
Thompson também diverge quando diz que as relações de dominação estão aquém das relações de classe, in-
cluindo gênero, raça e outras. Já a concepção neutra, concebe ideologia como sendo uma espécie de visão de
mundo, a qual não serve necessariamente a manutenção de um discurso dominante, já que as minorias, por
exemplo, teriam sua visão de mundo, sua ideologia própria, tal qual o discurso feminista frente ao discurso
machista patriarcal dominante. Lênin, quando argumenta em favor de uma “ideologia socialista”, contribui
bastante para a neutralização do termo.

No presente artigo, a concepção de ideologia traçada se aproxima bastante da concepção neutra do


termo ideologia quando postula que ideologia deve ser tratada como ingrediente essencial ao discurso, sem
juízo de valor acerca do conteúdo ideológico, como faz a concepção crítica ao atribuir a ideologia um conjunto
de ideias que seria torpe e serviria para a manutenção das relações de poder, aqui ideologia se é posta apenas
como um aglomerado de ideias que podem ser relacionadas a determinados grupos e sociedades, ou seja,
não apenas o discurso dominante seria a manifestação dos ideais da classe detentora do poder, como também
todo e qualquer discurso está fadado a refletir as opiniões e posicionamentos de quem o prolata, assim sendo,
todo ele é ideológico.

Quando uma pessoa apresenta-se ao publico no inicio de um discurso, têm-se duas escolhas ao abor-
dar a plateia, que seriam: senhores; ou senhores e senhoras. Em qualquer uma das escolhas se faz presente
a ideologia de um grupo, seja ele dominante ou dominado, em que se demonstra ou a preocupação com o
frequente apagamento do gênero feminino da língua portuguesa ou a ratificação deste apagamento. Sendo
assim, a ideologia esta sempre presente, pois, por mais que o individuo se proponha a ser neutro, o ser hu-
mano que discursa esta imbuído de suas próprias crenças e concepções, transparecendo-as sempre na sua
produção intelectual.

A premissa de que todo discurso é ideológico é de suma importância para o desenvolvimento deste
trabalho, considerando que a análise crítica empenhada na ADPF 186, que trata das cotas, pode sugerir que
as cotas estão sendo aqui criticadas, quando na verdade, por trata todo discurso como impregnado por ideolo-
gia, nos propomos apenas a identificar tais estratégias linguísticas no trecho em questão e não fazer qualquer
juízo de valor negativo acerca deste direito social conquistado pelos negros.

Compreendido o sentido de ideologia, para a análise crítica do discurso jurídico serão considerados os
seus modos de operação, propostos por J. B. Thompson( ....) que são estratégias típicas de construção simbó-
lica, as quais serão compiladas e transcritas a seguir:

1. Legitimação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas como legitimas.


• Racionalização: uma cadeia de raciocínios procura justificar um conjunto de relações ou institui-
ções sociais.
• Universalização: acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apre-
sentados como servindo ao interesse de todos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

• Narrativização: histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição
eterna e aceitável.

2. Dissimulação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas sendo ocultadas, negadas,


obscurecidas ou representadas de maneira que desvia a atenção.
• Deslocamento: um termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para
se referir a outro, deslocando conotações positivas ou negativas.
• Eufemização: ações, instituições ou relações sociais são descritas com uma valoração positiva.
• Tropo: uso das formas simbólicas da linguagem.
• Sinédoque: junção semântica da parte ao todo.
• Metonímia: um termo toma o lugar de um atributo para se referir a própria coisa.
• Metáfora: aplicação de um termo a um objeto ao qual ele não pode ser aplicado. Dissi-
mula relações de dominação através de sua representação ou de grupos a e indivíduos
nela implicados.

3. Unificação: construção simbólica de uma unidade coletiva


• Padronização: referencial padrão é proposto como fundamento partilhado.
• Simbolização da unidade: construção de símbolos de unidade e identificação coletiva

4. Fragmentação: segmentação de indivíduos e grupos que possam desafiar os grupos dominantes.


• Diferenciação: ênfase as distinções entre pessoas e grupos que os desunem e impede de constituir
uma força expressiva de contestação do poder atuante.
• Expurgo do outro: construção de um inimigo contra qual os indivíduos são chamados a resistir.

5. Reificação: retratação de uma situação transitória como permanente e atual.


• Naturalização: criação social e histórica tratada como natural.
• Eternalização: fenômenos sócio históricos apresentados como permanentes.

• Nominalização e passivização: sentenças são transformadas em nomes/verbos são colocados na


voz passiva.

A proposta de Thompson de categorizar os modos de operação da ideologia está, nos seus conceitos,
mergulhados na própria definição de ideologia do autor, que em sua concepção crítica, a considera apenas
para a manutenção das relações de poder. Como a definição que este trabalho aborda é outra, considerando
ideologia como intrínseca a qualquer discurso iremos utilizar tais modos de operação para decifrar a ideologia
permeada na peça, mesmo que não seja um discurso utilizado para manter uma relação de poder pré-exis-
tente, já que a peça analisada concede um direito a uma minoria historicamente oprimida, portanto, não é
um discurso que se proponha a manter uma relação de poder já consolidada, mesmo assim esta repleto de
ideologia, como qualquer outro discurso. Ideologia essa que temos como escopo tentar decifrar.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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2. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO E ATUAÇÃO DA IDEOLOGIA NA ADPF 1861.

Este trabalho propõe a análise do trecho “igualdade formal versus material” retirado da ADPF 186,
recorrendo aos modos de operação da ideologia bem como a tridimensionalidade do discurso para evidenciar
as estratégias discursivas que sustentam a decisão de Lewandowski.

Para começar a análise do texto, faremos observações com ênfase na dimensão prática do discurso,
segunda dimensão proposta por Fairclough, que trata da produção, distribuição, consumo; aspectos que
podem ser examinados como exteriores ao corpo físico da decisão. Quanto à produção de uma decisão do
STF acerca do controle de constitucionalidade, temos um procedimento formal descrito na constituição
brasileira. O rito da produção de uma decisão inicia-se apenas quando o judiciário é provocado, e neste caso,
tem que ser provocado acerca da suposta colisão com a constituição federal, já que o STF é o órgão guardião
desta. Quando o DEM impetrou a ADPF 186, alegando inconstitucionalidade das cotas, justificando que es-
tas iriam contra o principio da isonomia, presente no artigo 5° CF, o judiciário teve que se manifestar sobre, e
daí advém a explicação de Lewandowski sobre a igualdade da qual trata o referido artigo. Assim, descrito um
rito estritamente formal de produção, prolatado pela mais alta corte do país, temos um discurso tido como
de autoridade, respeitável, visto como sólido e confiável. Quanto à distribuição e consumo, decisões não são
textos acessíveis à maioria da população, sendo um conteúdo tido como erudito o qual, dada a formatação do
texto, apelidada como “juridiquez”, revela uma identidade unitária entre os produtores e consumidores, sen-
do necessária o mínimo de conhecimento jurídico para a compreensão da sentença prolatada, a capacidade
interpretativa restringe os consumidores e a maioria da população fica a mercê de meios que “mastiguem a
informação” pra si, passando a impressão de que quem produz tal conteúdo é dotado de grande saber.

97. IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL

98. De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais

99. perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão

100. legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição

101. liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa

102. de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre

103. aqueles que se encontram sob seu abrigo.

Fragmento 01

Neste fragmento é notável a presença da ‘intertextualidade’, descrita como estratégia que traz ao
texto recorte de outros textos, geralmente discursos famosos, como forma de solidificar a argumentação que
se pretende construir. Além dos recortes, têm-se também datas e fatos históricos, que corroboram para a
construção da percepção de confiabilidade na ideia que se pretende defender.

104. É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução

105. política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito –

106. não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras

1  “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é a disciplina oferecida por Virginia Colares no Curso de Mestrado do Programa de Pós-
-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório
de pesquisa, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais
Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

107. grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.

108. À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o

109. princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima

110. concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a

111. igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros

112. que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por

113. razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até

114. mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a

115. desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos

116. sociais.

Fragmento 02

Na linha 111 do recorte acima é perceptível o uso da ‘universalização’, estratégia típica que apresenta
o interesse de uma classe ou categoria como se fossem um interesse coletivo, comum a todos, quando na
verdade a igualdade material á qual o texto remete só beneficia, neste caso, os detentores dos direitos a cotas,
ou seja, os negros. A partir da linha 112 também temos uma ‘fragmentação’, modo de operação que separa
grupos que poderiam apresentar um real desafio ao poder dominante, caso atuasse juntos, são fragmentados
em detrimento de suas características únicas. Tem-se ainda nas linhas 114, 115 e 116 uma ‘eternalização’,
ou seja, fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes.

117. Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja

118. levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho

119. universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos,

120. mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que

121. atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a

122. estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a

123. superação de desigualdades decorrentes de situações históricas

124. particulares.

Fragmento 03

Na linha 118 temos uma ‘eufemização’, estratégia que legitima instituições e suas ações. Neste caso,
o quando se diz que o estado pode lançar mãos de um determinado tipo de política para se alcançar um bem
maior-igualdade material-, tem-se uma valoração positiva desta instituição e de sua ação. Na 121 novamente
temos uma ‘segmentação’, ao tratar de grupos sociais determinados, legitimando a atribuição de tratamento
especifico a estes grupos em detrimento de características particulares. Já nas linhas 123 e 124, é flagrante
a ‘narrativização’ na qual histórias do passado justificam o presente e novamente a ‘eternalização’.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

125. Nesse sentido, assenta Daniela Ikawa:

126. “O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade,

127. acarreta injustiças (...) ao desconsiderar diferenças em identidade.

128. (...)

129. Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como

130. critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto

131. essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade

132. inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio

133. de igualdade formal.

134. (...)

135. O princípio da universalidade formal deve ser oposto, primeiro,

136. a uma preocupação com os resultados, algo que as políticas

137. universalistas materiais abarcam. Segundo deve ser oposto a uma

138. preocupação com os resultados obtidos hoje, enquanto não há recursos

139. suficientes ou vontade política para a implementação de mudanças

140. estruturais que requerem a consideração do contexto, e enquanto há

141. indivíduos que não mais podem ser alcançados por políticas

142. universalistas de base, mas que sofreram os efeitos, no que toca à

143. educação, da insuficiência dessas políticas. São necessárias, por

144. conseguinte, também políticas afirmativas.

145. (...)

146. As políticas universalistas materiais e as políticas afirmativas

147. têm (...) o mesmo fundamento: o princípio constitucional da igualdade

148. material. São, contudo, distintas no seguinte sentido. Embora ambas

149. levem em consideração os resultados, as políticas universalistas

150. materiais, diferentemente das ações afirmativas, não tomam em conta

151. a posição relativa dos grupos sociais entre si”.

Fragmento 04

Todo este fragmento se trata de um recorte de outro texto, ou seja, novamente presente a ‘intertex-
tualidade’ usada para sustentar a posição do autor. Nas linha 127 segmenta-se novamente a minoria negra
para justificar o direito social a cotas e postular a injustiça presente num modo de acesso a educação superior
que ignore as diferenças sociais entre os concorrentes. Já na linha 131, ao se falar em identidade e contexto,
tem-se uma ‘unificação’ em que se constrói uma identidade simbólica coletiva, no caso- negros.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

152. A adoção de tais políticas, que levam à superação de uma

153. perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o

154. próprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as

155. palavras de Boaventura de Sousa Santos,

156. “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos

157. inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade

158. nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça

159. as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou

160. reproduza as desigualdades ”.

Fragmento 05

Na linha 154, ao relacionar tais políticas ao próprio cerne da democracia temos um discurso que pos-
tula a evolução das relações de poder como luta hegemônica, estratégia postulada na terceira dimensão- aná-
lise do discurso como prática social- e que diz repeito a luta de classes historicamente oprimidas pela atuação
no poder. Ou seja, quando se coloca um direito de uma minoria ao alcance da possibilidade de um curso que
pode ser sua chance de alternar de classe social como alvo do regime político e econômico vigente no país,
que em tese sempre favorece a classe dominante, temos uma flagrante luta contra as relações de dominação
vigentes no regime atual. Já a partir da linha 155, temos novamente a ‘intertextualidade’, utilizando-se de
um famoso discurso no ambiente jurídico.

161. Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a

162. ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção

163. mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas

164. como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma

165. possibilidade, esclarecendo o quanto segue:

166. “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que

167. assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o

168. melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os

169. primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente

170. inúteis ou negativos” .

Fragmento 06

Todo este trecho se compõe através da ‘intertextualidade’. Nas linhas 164 e 165, na contraposição dos
conceitos de “igualdade” e “possibilidade” temos uma ‘metáfora”, uma vez que aplica-se um termo a uma
significação ao qual ele não poderia ser aplicado, considerando que igualdade e possibilidade são significantes
totalmente distintos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho analisa o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF/186-DF, no que concerne
a “igualdade formal versus material”. A tese do DEM de que as cotas seriam inconstitucionais por ferir o
princípio da isonomia, presente no caput do artigo 5º da carta magna, é contestada pelo relator no que se
refere às cotas como direitos sociais dos negros. A metodologia adotada é a análise crítica do discurso jurídi-
co(ACDJ), em especial os modos de operação da ideologia, propostos inicialmente por J. B. Thompson. Como
resultados identifica-se o uso reinterado da estratégia de intertextualidade.

Ao longo da análise proposta, percebe-se o uso de diversas estratégias e modos gerais de operação da
ideologia, mas, diferentemente das analises clássicas em que tais estratégias são utilizadas para fundamentar
discursos atuantes em prol da classe detentora do poder, desta vez são empregadas para conceder um direito
social a uma minoria, ou seja, em uma flagrante luta hegemônica em prol de uma configuração social mais
justa.

REFERÊNCIAS

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasilia: UnB, 2001.

PIMENTEL, Alexandre Freire; BARROSO, Fábio Túlio; DE GOUVEIA, Lúcio Grassi. Processo, hermenêutica e efe-
tividade dos processos. Recife: APPODI, 2015.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9.
ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS:


A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Ana Catarina Silva Lemos Paz


Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com

Luiz Manoel da Silva Júnior


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós graduando no PPGD
Unicap. Advogado. luizmsj@live.com

Arthur Albuquerque de Andrade


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela
Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. União homoafetiva no Sistema Interamericano de Direitos Humanos;


1.1. Direito Internacional dos Direitos Humanos: breve histórico; 1.2. O Sistema Interamericano de
Direitos Humanos; 1.3. O Sistema interamericano e os direitos LGBTI; 2. O tratamento jurídico da
união homoafetiva; 3. A controvérsia acerca do regime jurídico das uniões homoafetivas no brasil;
3.1. O reconhecimento jurídico da união homoafetiva pelo STF; 3.2. Estatuto da Família: Supremacia
judicial e proibição ao retrocesso; Conclusão; referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a discussão acerca da definição de entidade familiar,
mais precisamente devido à sua repercussão no reconhecimento da união estável e do casamento homoafe-
tivos.

É sabido que, sob a perspectiva do constitucionalismo democrático, um dos mais relevantes papéis
atribuídos aos Tribunais consiste na proteção dos direitos das minorias. Essa proteção vem sendo intensificada
no âmbito nacional, sobretudo perante o Supremo Tribunal Federal (STF), e também em âmbito supranacional,
considerando a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa dos direitos humanos
diante dos países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade direto, através da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o STF
reconheceu a extensão do conceito jurídico de união estável para os casais do mesmo sexo, o que, conse-
quentemente, viabilizou-se o casamento igualitário.

Entretanto, uma parcela política conservadora, baseada em argumentos eminentemente religiosos,


pretende a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 6.583/2013 (Estatuto da Família) que
apenas reconheça como entidade familiar a união entre homem e mulher, excluindo, portanto, o reconheci-
mento do casamento e da união estável homoafetiva.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nesse diapasão, são analisadas as possíveis repercussões da aprovação do referido projeto no que tan-
ge ao fato de contrariar decisão já prolatada pelo STF, trazendo à tona questões como a supremacia judicial
na interpretação da constituição e a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso para a atividade
parlamentar, quando direitos de minorias estão sob ameaça.

1. UNIÃO HOMOAFETIVA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS.

1.1 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: BREVE HISTÓRICO.

A tarefa de definir Direitos Humanos não é fácil. Alguns doutrinadores entendem que direitos huma-
nos e direitos fundamentais seriam sinônimos, uma vez que ambos são inerentes aos seres humanos, intima-
mente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, e ainda, ambos possuem o condão de limitar a ação do
Estado. São exemplos dos que seguem essa concepção: Paulo Gustavo Gonet Branco (2002), Alexandre de
Morais (2013), e João Baptista Herkenhoff (1994).

Há, entretanto, aqueles que entendam que embora sejam comumente utilizadas como sinônimas, as
duas expressões guardam entre si importantes diferenças a serem apontadas. José Joaquim Gomes Canotilho
(1998, p.59) aponta distinções no que tange às origens e aos significados, pois que Direitos Humanos (ou
Direitos do Homem, como coloca o autor) são aqueles inerentes a todos os povos e em qualquer espaço de
tempo. Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem que possuem resguardo jurídico-institu-
cional, e são percebidos num determinado espaço de tempo. Assim, os direitos humanos seriam aqueles os
quais originam-se diretamente da natureza humana, enquanto que os direitos fundamentais dependem de
uma ordem jurídica vigente.

No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.35 e 36) leciona:

“[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser


humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional po-
sitivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos
guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se
àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, inde-
pendentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e
que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de
tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional.”

Como se pode perceber, portanto, embora guardem alguma semelhança, Direitos humanos e Direitos
fundamentais não se confundem, pois este é referente ao direito positivado, ao direito garantido constitu-
cionalmente pelos estados em seus diplomas legais, enquanto que aquele refere-se ao direito inerente ao
homem por ser homem, e guarda cunho universal, intertemporal e inviolável (CANOTILHO, 1998, p.59),
não dependendo de positivação em nenhuma ordem jurídica.

Nas palavras de Perez Luño (1999, p. 48)

Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e institu-


ciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la digni-
dad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas posi-
tivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional.

Desta forma, a expressão direitos humanos é comumente utilizada para referir-se ao homem sujeito
de direitos na ordem internacional, conotação que ganhou força no pós-guerra.

Assim, o Direito Internacional de Direitos Humanos, um movimento bastante recente na história,


nasceu mediante resposta da população mundial às atrocidades cometidas durante o nazismo. As preocupa-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ções primordiais do movimento eram: (i) universalizar e internacionalizar o tema, a fim de que fosse possível
uma normatização internacional dos direitos; (ii) marcar a concepção contemporânea de direitos humanos
como aquela que advém da dignidade humana como fundamento de proteção. Inicia-se assim a “era dos
direitos”. (BOBBIO, 1992; p. 49)

Dessa forma, a proteção aos direitos humanos deixou de ser apenas de carácter regional e passou a
ser objeto de proteção da comunidade internacional, sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU (DUDH), de 1948, seu maior expoente (PIOVESAN, 2010, p. 121-122).

Os sistemas internacional e nacional se complementam, pois, os dois consagram o valor da primazia


da pessoa humana, proporcionando por tanto, um maior arcabouço de proteção e uma maior efetividade na
tutela e promoção dos direitos fundamentais. Assim, a sistemática internacional funciona como uma garan-
tia adicional, pois institui mecanismos de responsabilização e controle dos Estados, evitando a omissão na
implementação de tais direitos.

Em sequência à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, diversos outros diplomas nor-
mativos internacionais foram editados, como os tratados e as convenções de direitos humanos. Todos esses
diplomas contavam, também, com a natureza de fiscalização e promoção dada pela declaração. São bons
exemplos: o Pacto Internacional dos direitos civis e políticos; o Pacto Internacional dos direitos econômicos,
sociais e culturais; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Ra-
cial; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (PIO-
VESAN, 2010, p. 161-237).

Além dos tratados e convenções, também surgiram outros sistemas de proteção dos direitos humanos,
onde podemos citar o sistema africano, o europeu e o interamericano, como complementares do sistema
global.1

1.2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é um dos sistemas regionais que complementam o


sistema global de proteção a esses direitos. Ele é composto por dois regimes, aquele que é regido pela Con-
venção Americana de direitos humanos, e aquele que é regido pela Carta da Organização dos Estados Ame-
ricanos. O presente trabalho, no entanto, limita-se a explicar a atuação do sistema no que tange ao regime
baseado na convenção.

A Convenção Americana de Direitos Humanos - também denominada Pacto de São José da Costa
Rica - é um dos principais instrumentos normativos do SIDH e foi assinada em São José da Costa Rica em
1969, entrando em vigor apenas em 1978.2 O Brasil é seu signatário desde 19923. É o mais extenso instru-
mento internacional de proteção aos direitos humanos, contando com 82 artigos (VASAK, 1982; p. 558 e
559). Dentre eles, podemos achar bastante semelhança com aqueles elencados pelo Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, como por exemplo: direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento humano,
à liberdade pessoal, à privacidade.

Os direitos sociais, culturais e econômicos não estão enunciados de forma específica na convenção,
esta apenas limita-se a determinar que os Estados busquem meios de alcançar, progressivamente, a plena re-
alização desses direitos. Esses meios podem ser medidas legislativas ou outras apropriadas para a persecução

1  A temática da orientação sexual e da identidade de gênero era ainda incipiente, possuindo abordagem bastante pontual. Uma
maior discussão sobre o tema, entretanto, foi possível após a apresentação da Resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e
Identidade de Gênero” na ONU, em 2003. Mesmo retirada posteriormente por pressão de países islâmicos, dos EUA e do Vaticano
(PAZELLO, 2004, p. 29-30), foi novamente reintegrada em 2011, demonstrando seu importante valor no que consta sobre a dis-
cussão do tema em âmbito mundial.
2  Disponível em: <http://www.cidh.org/comissao.html>. Acesso em: 25 de janeiro de 2016. Importante assinalar que apenas os
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos possuem o direito de aderir à Convenção. Até janeiro de 2014, a OEA
contava com 24 Estados- partes. (PIOVESAN, 2015; p. 340)
3  Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível com a tradução em português em: <http://www2.mre.gov.br/
dai/m_678_1992.html>. Acesso em: 25 de janeiro de 2016.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do objetivo final. Posteriormente a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Pro-
tocolo de San Salvador, que concerne, justamente, aos direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN,
2015; p. 341).

Dessa forma, é possível perceber que, embora a convenção elenque direitos e garantias que não de-
vem ser violados pelos Estados-membros, ela também cuida de mecanismos que visam a garantir a efetiva
realização desses direitos. Sendo assim, ao mesmo tempo que os Estados-membros respeitam os direitos e
garantias prescritos na convenção, eles também devem assegurá-los e, assim sendo, a convenção estabelece
dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação dos direitos nela elencados: a comissão inte-
ramericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos.

A competência da Comissão Interamericana se estende por todos os Estados-partes da Convenção


Americana, e também pelos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. Ora, a comissão
exerce diversas atribuições - das quais podemos citar o papel de conciliadora, crítica, assessora, legitimado-
ra, promotora, etc4 - as mais relevante para esse estudo são as modalidades de controle: exame de petições
encaminhadas - por indivíduos ou grupo de indivíduos, ou ainda, organizações, sejam elas governamentais
ou não5 - referentes à violação de algum direito protegido em qualquer dos instrumentos normativos de com-
petência da comissão; elaboração de informes, sobre a situação dos Direitos Humanos em qualquer dos Es-
tados que sejam parte do Sistema Interamericano; e investigações “in loco” nos países (PINTO, 1993; p. 83)

A comissão é composta por sete membros os quais podem ser de qualquer Estado-membro da OEA.
São eleitos por assembleia geral, podendo ser reeleitos apenas uma vez e devem ser dotados de reconhecido
saber jurídico no que tange aos Direitos Humanos e também alta autoridade moral.

A Corte interamericana de Direitos Humanos é o outro aparato trazido pelo SIDH com função de
monitorar e viabilizar o cumprimento dos direitos expostos na convenção. Órgão jurisdicional do sistema
regional, é composto por juízes dos Estados-membros da OEA em número de sete. Possui competência
tanto consultiva como contenciosa. Ou seja, quanto à sua competência contenciosa, a Corte IDH pode
responsabilizar o Estado-parte pela violação dos direitos os quais ratifica a convenção, isso porque os signatários
comprometeram-se a não só respeitar, como também garantir esses direitos, usando de todos os seus recursos
para punir os infratores de acordo com suas normas internas. Quanto à sua competência consultiva, a corte
emitirá pareceres, à pedido dos Estados-parte, manifestando-se sobre a compatibilidade entre qualquer das
normas elencadas na convenção a as leis dos respectivos Estados (GUERRA, 2010; p. 05-07).

Dessa forma, no âmbito procedimental, a comissão recebe uma petição fazendo o juízo de admissi-
bilidade6 e, em seguida, solicita informações do Governo denunciado. Uma vez recebidas as informações ou
transcorrido o prazo para tal, é verificada existência ou subsistência dos motivos arrolados na petição. Em
seguida, a comissão decide pelo arquivamento ou pelo prosseguimento do exame do assunto, o qual, após

4  Para mais informações vide Héctor Fix-Zamudio, Proteccíon jurídica de los derechos humanos, p. 152.
5  A convenção americana, diferente das outras convenções e tratados de direitos humanos, não estabelece à vítima, exclusi-
vamente, o direito de peticionar junto à comissão. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou qualquer organização poderá
fazê-lo. (BUERGUENTHAL, 1981; p. 148)
6  O juízo de Admissibilidade é feito segundo o artigo 46 da CIDH, assim prescrita:
1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será ne-
cessário:
a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional
geralmente reconhecidos;
b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha
sido notificado da decisão definitiva;
c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e
d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pes-
soas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:
a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se
alegue tenham sido violados;
b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido
ele impedido de esgotá-los; e
c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

realizado, será depreendido esforço no sentido de buscar uma solução amigável entre as partes, ou seja, entre
o peticionante e o Estado. Caso essa negociação não seja bem-sucedida, a comissão elaborará um relatório,
apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e o enviará ao Estado-parte para que no período
de três meses possam ser tomadas as devidas providências. Dentro desse príodo de tempo, o caso pode ser ou
solucionado plas próprias partes, ou então poderá ser remetido à Corte IDH.

1.3 O SISTEMA INTERAMERICANO E OS DIREITOS LGBTI.

A OEA, vem, repetidamente, através dos anos, editando resoluções em sua assembleia geral, que
visam assegurar os direitos humanos da população LGBTI, assim como reprimir qualquer tipo de discrimina-
ção e violência que possam incorrer devido à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. A primei-
ra, a Resolução nº 2435/2008 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero –, foi aprovada
pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. O documento foi fruto de iniciativa do Estado brasi-
leiro e apoiou-se nas disposições normativas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração
Americana dos Direitos do Homem e na Carta da OEA. Em sequência, foi aprovada a Resolução nº2504 em
2009, com as mesmas fundamentações normativas da anterior, mas levando também em consideração a nota
da Declaração da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero7, e inova ao sugerir que os Estados
membros considerem a adoção de medidas que enfrentem o tratamento discriminatório motivado por orien-
tação sexual e identidade de gênero, e que a Comissão IDH faça um estudo temático sobre discriminação
e violência contra a população LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010, p. 02). Na
mesma linha seguiram a Resolução nº 2653/2011, aprovada em 07 de junho de 2011, estabelecendo o plano
de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011b, p. 01-
02); a Resolução nº 2721/2012, de 04 de junho de 2012, a qual propõe a criação junto à Comissão IDH da
Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI) (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012b, p. 02); e, por fim, a Resolução nº 2807/2013, de 06 de junho de
2013, a qual incentiva os Estados-membros a fazer o levantamento para políticas públicas de proteção pesso-
al LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013b, p. 02-04).

O primeiro caso levado à comissão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi o caso Marta
Alvarez vs. Colombia. Esse caso trata sobre a negação ao tratamento igualitário por parte do denunciado con-
tra a denunciante, uma vez que esta teve por proibidas suas visitas conjugais no sistema prisional por causa
da sua orientação sexual. Houve, portanto, a inobservância dos arts.5º (integridade física, psíquica e moral),
8º (respeito à dignidade enquanto pessoa privada de liberdade), 11 (direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta), em razão da recusa
das autoridades prisionais em autorizar o exercício do seu direito à visita íntima por causa de sua orientação
sexual. O caso ainda aguarda decisão definitiva (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS, 1999).

Outro caso emblemático sobre direito LGBT levado à comissão, foi o caso Atala Riffo y niñas vs. Chile.
De acordo com a comissão, houve o descumprimento dos arts.11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1
e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e
25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Isso porque
se alega a responsabilidade internacional do Estado pelo tratamento discriminatório, interferindo, arbitraria-
mente, na vida privada e familiar das denunciantes, observadas no processo judicial que resultou na retirada
da custódia das filhas da senhora Atala. O Estado foi condenado a adotar de medidas de reparação. (ORGA-
NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012a).

Por fim, é de suma importância citar o caso José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001), o qual, embora rejeitado no juízo de admissibilidade por não preen-
cher o requisito do esgotamento dos recursos internos, além de não verificar tratamento discriminatório no
julgamento do reconhecimento da sociedade de fato, vez que trata-se do único caso que chegou até a corte
tratando especificamente do reconhecimento de uniões homoafetivas, o então objeto desse estudo. No caso

7  Declaração nº A/63/635 – Direitos humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”, de 22 de dezembro de 2008. (OR-
GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

em questão o peticionante tentara ter reconhecida sua sociedade com o seu falecido companheiro homoafe-
tivo. Apesar dos esforços empenhados, não restou comprovada a união de fato, quando, então, o peticionante
resolveu pleitear nas instancias internas o reconhecimento de união homoafetiva. Cuida que tanto o Código
Civil paraguaio quanto a Constituição, expressamente proíbem a união e casamento entre pessoas do mesmo
sexo, prevendo apenas a existência desses institutos quando se tratando de homem e mulher. Ao apresentar
à comissão o caso, José Alberto Pérez alegou a inobservância dos artigos 24 (igualdade perante a lei e igual
proteção desta) e 25 (direito ao acesso à justiça eficaz e em prazo razoável) do Pacto de São José da Costa
Rica. Entretanto, conforme falado anteriormente, a CIDH julgou pela inadmissibilidade do caso por questões
técnicas, mas não de mérito.

Como será demonstrado adiante, se a petição tivesse sido admitida, era possível fazer um paralelo
entre as decisões em sede de controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro
e uma possível sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, assim como o
ordenamento jurídico brasileiro, a CADH não prevê proibição expressa à união homoafetiva, no que, pelo ou-
tro lado, expressamente proíbe qualquer forma de discriminação perante a lei. Poderia ser um caso bastante
importante no que tange tanto aos Direitos LGBTI, quanto ao estudo do diálogo entre corte, no que tange à
tutela Multinível dos Direitos Humanos.

2. O TRATAMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA.

A Constituição Federal e o Código Civil brasileiros tratam de entidade familiar como aquela formada
por um homem e uma mulher, excluindo, a princípio, qualquer outro tipo de relação afetiva que não se en-
quadre neste contexto. Assim prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre
o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento. (grifo nosso)

Da mesma forma, prescreve o Código Civil de 2002:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o ho-
mem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada
se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da
união estável.

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos também faz menção à família e coloca-a como
um dos principais pilares da sociedade. Assim prescreve:

Artigo 17. Proteção da família.


1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser pro-
tegida pela sociedade e pelo Estado.
2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento
e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exi-
gidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da
não-discriminação estabelecido nesta Convenção.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Esses artigos não devem, entretanto, ser interpretados de forma isolada. É preciso contextualizá-los
dentro dos diplomas normativos nos quais estão inseridos. Nesse diapasão, deve-se observar a importância
de dois princípios fundamentais no estudo dos direitos humanos: o princípio da igualdade e o princípio da
não-discriminação. Ambos estão codificados tanto na Constituição brasileira (arts. 3º, IV e 5º)8, como na
Convenção Americana (arts. 1.1 e 24)9.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº. 18, expressou que o
princípio da igualdade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois os dois
advém do próprio gênero humano. Sendo assim, seria incompatível a supremacia ou inferioridade de um
determinado grupo perante outro, se de qualquer forma esse tratamento enseje hostilidade ou discriminação
no gozo dos direitos de ambos. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados.
Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, § 87).

Outros diplomas normativos também reconhecem a importância do princípio da igualdade e da não


discriminação como basilares ao respeito e proteção dos direitos humanos. Para citar alguns exemplos: Carta
da Organização dos Estados Americanos, 1997 (art. 3.1); Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica), 1969 (arts. 1 e 24); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, 1948 (art. 2); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988 (art. 3); Carta das Nações
Unidas, 1945 (art. 1.3); Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948 (arts. 2 e 7); Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966 (arts. 2.2 e 3); Pacto Internacional de Direitos Civis e Polí-
ticos, 1966 (arts. 2 e 26); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial, 1968 (art. 2); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
1979 (arts. 2, 3, 5 a 16); Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação
Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981 (arts. 2 e 4); Convenção No. 111 da Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT) relativa à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, 1958 (arts. 1 a 3);
Proclamação de Teerã, 1968 (parágrafos 1, 2, 5, 8 e 11); Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993
(I.15; I.19; I.27; I.30; II.B.1, arts. 19 a 24; II.B.2, arts. 25 a 27); Declaração sobre os Direitos das Pessoas
Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, 1992 (arts. 2, 3, 4.1 e 5); Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000 (arts. 20 e 21); Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, 1950 (arts. 1 e 14); Carta Social Europeia, 1961 (art.
19.4, 19.5 e 19.7); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981 (Carta de Banjul) (arts. 2 e 3);
Carta Árabe sobre Direitos Humanos, 1994 (art. 2); e Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos do Islã,
1990 (art. 1). (Nota de rodapé nº 33 da Opinião Consultiva OC-18/03)

Dessa sorte, mesmo não havendo proteção expressa à união homoafetiva em nenhum dos dois sis-
temas jurídicos - nem na convenção americana e nem no ordenamento jurídico brasileiro - eles acabam por
proteger, de outra forma esse direito da população LGBTI. Garantir e promover a igualdade significa tratar
igual os grupos iguais e desigual os grupos desiguais. Convém lembrar, contudo, que a diferença de tratamen-
to deve ser pautada em motivos objetivos e razoáveis. Advém Robert Alexy (1997) que o tratamento igual deve
ser depreendido a todos sempre que o tratamento desigual não for pautado em nenhuma razão suficiente.

Nesse contexto, não há fundamentação nem fática nem jurídica que corrobore para a diferença de
tratamento entre casais hétero e homoafeitvos no que tange à união estável. Muito pelo contrário. É certo
dizer que o entendimento acerca da temática é que mesmo não havendo menção expressa a entidade fa-
miliar formada por casais homoafetivos, o que se encontra disposto não é taxativo, mas sim exemplificativo,
englobando, portanto, outros tipos de família, não só aquela formada por um homem e uma mulher.

8  Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
9  Art. 1.1 - Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garan-
tir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento
ou qualquer outra condição social [...]
Art. 24 - Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Essa mudança se dá no momento em que o direito acompanha a nova realidade da sociedade mun-
dial. Novos padrões e novas práticas éticas e morais vêm surgindo, e com elas, uma nova forma de ver a nor-
ma jurídica, uma forma que atribui aos direitos um carácter mais “prático e efetivo, não teor ético e ilusório”.
(Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03
de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, §120)

3. A CONTROVÉRSIA ACERCA DO REGIME JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL.

Há muito que as uniões homoafetivas são cada vez mais comuns no cenário não só brasileiro, como
mundial. A falta de regulamentação jurídica dessa situação corresponde à violação de direitos fundamentais
importantes, vez que esse direito é ao mesmo tempo individual, social e difuso.

O ordenamento jurídico brasileiro não possui proteção legal expressa à união homoafetiva. Outros
países já reconhecem a união civil entre casais homossexuais, como é o caso da Dinamarca (1989), Noruega
(1993), Suécia (1994), Holanda (1995) e Reino Unido (2001).

Diversos projetos de Lei versando sobre a regulamentação da situação da união homoafetiva, desde o
primeiro em 1995, não chegam ao plenário da câmara. Esse descaso acerca da matéria demonstra a inércia
de parte do legislativo em se envolver, tanto por questões políticas, como também religiosas.

3.1 O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA PELO STF.

A primeira decisão judicial brasileira reconhecendo a união entre casais do mesmo sexo ocorreu na
década de 90, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.10

O Supremo Tribunal Federal, em cinco de maio de 2011, analisa a temática das uniões homoafetivas,
através da conjugação das questões vertidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 427711, de
propositura da Procuradoria Geral da República, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de janeiro12.

As duas ações foram relatadas pelo então Ministro Ayres Britto, e objetivavam, mediante interpreta-
ção conforme a constituição, a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável, a fim
de adquirirem status de entidade familiar, assegurada, no artigo. 226, §3º.

A falta de reduto positivo no que concerne à união entre pessoas do mesmo sexo, não significa que
não haja tal proteção por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes,
o fato de que tanto a Constituição quanto o Código Civil apenas fazem menção à entidade familiar formada
por casais heterossexuais, não significa a negativa da proteção à união homoafetiva.

Ainda segundo os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia, o supracitado art. 226,
§3º da Constituição deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 3º, IV e 5º. Portanto, na inexis-
tência de proibição expressa e consagrando a constituição so princípios da igualdade e da não discriminação,
deveriam ser reconhecidas as uniões homoafetivas como equiparadas às uniões civis. Assevera o Ministro
Luiz Fux que o conceito ontológico de família engloba as uniões marcadas por afetividade, estabilidade, con-
tinuidade, publicidade e identificação recíprocas de seus integrantes como formadores de uma família.

Assim, seguindo o exposto pelo Ministro Relator, o pleno do STF, por unanimidade, decidiu por dar
provimento às pretensões expostas nas duas ações supracitadas.

10  TJRS, AI 599075496, 8ª. Câm. Civ., j. 17.06.1999, rel.Des. Breno Moreira Mussi.
11  Era inicialmente ADPF 178, na qual se intentava o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar, esten-
dendo-se a elas, portanto, o mesmo tratamento jurídico da união civil.
12  Nesta ação intentava-se aplicar o regime de união estável aos casais homoafetivos funcionários públicos civis do estado com
base no argumento de que a negativa de tal feito contrariava preceitos constitucionais fundamentais.

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Direito(s) em debate.

As mesmas teses poderiam ter sido alegadas no caso do José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay, basea-
das nos artigos 11 (proteção da honra e da dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção por parte
desta) da CADH, uma vez que esta também não proíbe expressamente a união civil entre pessoas do mesmo
sexo. É certo dizer que representaria um avanço hermenêutico de grande importância histórica, levando em
consideração o contexto sociopolítico atual.

3.2 ESTATUTO DA FAMÍLIA: SUPREMACIA JUDICIAL E PROIBIÇÃO AO RETROCESSO.

O judicial review teve início no emblemático caso Marbury vs. Madison, e desde então, tem sido
adotado por diversos ordenamentos jurídicos13, inclusive pela nossa atual Contituição. Desde então, o dualis-
mo existente entre constitucionalismo e democracia tem tomado forma e representa um dos assuntos mais
discutidos até hoje na área acadêmica.

Sem pretensões de encerrar o assunto, teceremos alguns comentários sobre essa controvérsia.

A jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos, e portanto se fundamenta em moldes de uma
sistemática definida por James Madison. Esse sistema assenta a constante e permanente necessidade de re-
concialiação entre dois princípios opostos: o de autogoverno - ou governo da maioria -, e o de abstaenção da
maioria quando as ações por ela adotadas possam ser ofensivas a direitos das minorias. (BORK, 1991; P.139).
É baseado nesse contexto que Bickel (1986), o principal teórico a enfrentar o dilema Madisoniano, descreve
o que ele chama de dificuldade contramajoritária. em sua obra ele tenta explicar como o controle de consti-
tucionalidade, uma insittuição não democrática, pode ser justificado num governo baseado em legitimidade
democrática dos representantes. Em verdade, a crítica de Bickel é demasiadamente paradoxal, e foi bastante
criticada, por basear-se em deixar a cargo dos juízes da Suprema Corte decidirem pautados em ideais de
sabedoria e imperativos morais.

Outro importante doutrinador que tentou justificar a legitimidade da jurisdição constitucional foi
Ronald Dworkin. Para ele, o direito é naturalmente interpretativo e apenas pode ser conhecido através do
processo de interpretação das normas. O direito, como um todo, só pode ser entendido, portanto, dentro de
casos concretos, onde o juíz irá interpretar a lei segundo a situação que ali se encontra. (DWORKIN, 2009;
p.14-15).

Já a democracia é um ideal a ser seguido, não bastando apenas democracia de carácter procedimental
- leia-se eleições majoritárias - para que num Estado possa haver o autogoverno. Antes, é preciso que o povo
sinta-se parte de determinada comunidade para se autogovernar e isso só ocorre quando o tratamento entre
os membros de uma mesma comunidade é igualitário. (DWORKIN, 2002, p. 305-369).

Nesse contexto que encontramos o papel e a legitimidade da juridicção constitucional. à ela cabe
o papel de evitar que maiorias eventuais sobreponham seus desejos e vontade sobre todos, prejudicando o
direito das minorias.

É certo que, apesar das controvérsias existentes acerca do controle de constitucionalidade e sua
legitimidade, a Constituição Federal brasileira adota essa prática jurídica e prevê, portanto, a função do
judiciário como intérprete da constituição. Ou seja, (CITTADINO, 2009; p.62) o Ordenamento Constitucional
Brasileiro, apesar de não ter transformado o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional
propriamente dita, veio por restringir sua compêntica à matéria de cunho constitucional - assim, cabe ao STF
a guarda da Constituição. Essa função de guardião, nada mais é do que a expressão do carácter político que
assume o Supremo nesse novo desenho constitucional, uma vez que função de interpretar e, portanto, decla-
rar o alcance e o sentido de normas jurídicas é ação - se não política - de grande repercursão politico-social.

13  O controle de constitucionalidade, apesar do grande perído que passou inerte nos Estados Unidos, passou a ser uma prática
comum nas cortes de todo o mundo, tendo início com a sua adoção pelas novas repúblicas da antiga união soviética, posteriormen-
te na europa ocidental no pós- Segunda Guerra e então pelos países da América Latina e península ibérica após os seus períodos
de governos ditatoriais. (VICTOR, 2008; p. 87 e ss)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nesse contexto, com o passar dos anos o STF tem assumido diversos posicionamentos políticos acer-
ca de assuntos14 das mais diversas ordens, tomando por base, em alguns momentos específicos um posicio-
namento ativista. Isso se deve a diversos fatores, como por exemplo, o fortalecimento do judiciário diante da
atual desconfiança nacional no que se refere ao legislativo - principalmente pelos recorrentes escândalos de
corrupção; mas também ao posicionamento inerte do órgão legislativo, vez que se exime de discutir algumas
questões “polêmicas”, deixando sua resolução à cabo do judiciário uma vez que este não passa pelo processo
eleitoral.

Essa prática demonstra a relação existente entre o legislativo e o judiciário brasileiro. Pois de um lado
encontramos uma instituição que, por diversas vezes ampliou sua esfera de atuação, buscando legitimar-se
democraticamente; enquanto de de outro lado, há o poder político organizado, sofrendo uma grave crise de
legitimidade democrática, experimentando um descrédito recorrente e suas próprias limitações políticas em
uma sociedade fragmentada pelos interesses conflitivos (SILVA et al , 2010, p. 14).

Interessante notar que, o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, ao longo de 21


anos (de 1988 até 2009) foi o de deferência com relação as decisões tomadas pelo legislativo. Ou seja, a cor-
15

te não têm demonstrado um o exercício de um poder contramajoritário, pelo menos não de forma relevante.
Sempre que possível, são aproveitadas partes das leis que sofreram o controle de constitucionalidade, ou, em
caso de omissões legislativas, o Tribunal procurou conceder prazo para que o congresso suprimisse a irnércia.

Ocorreu diferente, porém, no caso das uniões homoafetivas. Diante do já mencionado silêncio legis-
lativo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, através de interpretação conforme a constituição, o status
de entidade familiar às uniões formadas por casais do mesmo sexo.

Em resposta à atuação do guarda da constituição, foi proposto na câmara dos deputados o Projeto de
Lei nº 6583 de 2013, também conhecido com Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal anderson
Ferreira do PR/PE16. Essa reação parte da bancada religiosa tradicionalista do congresso nacional, e tem por
fim a restrição do significado de “entidade familiar” para aquela formada apenas pela união entre homem e
mulher, e também das unidades monoparentais - dái o nome ser “Estatuto da Família”, no singular, defen-
dendo a existência de apenas uma forma de família.

Os argumentos apresentados para legitimação do projeto de lei, pautam-se principalmente em dois: o


primeiro, referente à utilidade procriativa do casamento - sendo portanto imperativo para a espécie humana
que as uniões heterossexuais permaneçam intactas e reconhecidas como pivô da sociedade -, e a segunda à
tradição cristã do Estado brasileiro - muito embora o Brasil seja um estado laico 17. O projeto encontra-se em
trâmite na câmara dos deputados e ainda não foi votado pelo plenário.

Quais seriam, entretanto, as consequências jurídicas da aprovação do “Estatuto da Família”?

Ora, o diálogo institucional não é institucionalizado no Brasil, o que não significa que não ocorra. O
Supremo Tribunal Federal, embora seu eminente caráter político - principalmente em questões controversas

14  O supremo Tribunal Federal já analisou caso referente ao uso de armas de fogo ((ADI 3112/DF), à pesquisa com células-
-tronco embrionárias (ADI 3510/DF), à liberdade de expressão e os discursos com conteúdo racista (HC 82424/RS), à liberdade
de informação jornalística (ADPF 130/DF), a processos seletivos diferenciados para pessoas de origens sociais e raciais diferentes
(ADI 3330/DF), e à interrupção da gravidez de feto anencéfalo (ADPF 54/DF).
15  Para informações e dados completos da pesquisa, vide POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação?: Política,
direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
16  Para leitura do tero completo do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005.
17  Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garan-
tida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de en-
sino fundamental.

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Direito(s) em debate.

como aborto de feto anencéfalo, entre outros - em diversos casos também houve recalcitrância do judiciário
em afirmar-se o último intérprete da Carta Magna.

No entanto, o direito de constituir família é direito fundamental e está resguardado pela nossa conti-
tuição. Assim como demostramos acima, os direitos à igualdade e não discriminação são direitos humanos de
suma importância e o fundamento principal de diversos diplomas jurídicos, entre eles a nossa constituição e
a CADH.

Assevera o Ministro Gilmar Mendes:

Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o


Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a
história da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há
como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o
Estado democrático de direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo
menos em sociedades construídas sobre valores democráticos [...]

Assim, o direito objeto de estudo, aqui, constitui direito de uma minoria frente ao possível desejo de
uma maioria representada no congresso. Nesse caso, qual deverá prevalecer? Entramos novamente na dis-
cussão acerca da jurisdição constitucional e do constitucionalismo, essa problemática interfere diretamente
na questão do poder contramajoritário do Tribunal.

Entretanto, defendemos que deva haver uma supremacia judicial na questão, pautados nos seguintes
argumentos: (i) A proteção dos direitos das minorias é ethos da jurisdição constitucional; (ii) pelo fenômeno
que ficou conhecido como “leis in your face” (VICTOR, 2013; p.169); (iii) pelo princípio da poribição ao
retrocesso.

Apesar de já discutida acima, faz-se mister frisar que o mais importante papel do Supremo Tribunal
Federal é o de guardião da constituição. é no contexto de seu exercício que existe o Estado de Direito, pois
este depende da efetivação de direitos e garantias fundamentais.

Nesse diapasão, a fim de garantir o cumprimento desses direitos, o papel da corte não possui o con-
dão de interferir nas atividades do legislador democrático. Não há, portanto, que se falar que o judiciário, ao
exercer a jurisdição constitucional age em detrimento dos demais poderes, mas garante o ral funcionamento
da democracia, pois é a tensão entre esta e o controle de constitucionalidade “ que alimenta e engrandece
o Estado Democrático de Direito tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade
aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, 2001)

A própria Carta Magna, ao definir procedimentos específicos para a atuação do legislador, prevê que
os atos praticados pelos orgão de representação possam ser criticados e controlados. (MENDES, 2001) As-
sim, o judicial review seria uma espécie de “fiscalização democrática” no que tange a guardar os direitos das
minorias frente as maiorias tiranas.

Quanto à questão do “leis in your face”, é um fenômeno que representa a reação do legislativo, com
edição de lei que contraria entendimento já estabelecido pelo judiciário. Nesses casos, é comum que este
útlimo reaja. Um bom exemplo foi no caso da edição da Súmula 394, o qual estendia o foro por prerrogativa
de função para o julgamento de processos criminais relativamente aos atos praticados no exercício da antiga
função pública. Proposta uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2860), o Supremo entendeu por
declarar inconstitucional a prerrogativa no caso referido acima, sem, no entento, alteração do texto.

A Lei nº 10.628 foi aprovada pelo congresso nacional no final de 2002, revertendo o entendimento do
Supremo Tribunal Federal e extendendo, novamente, o foro por prerrogativa de função para os ex-detentores
de cargos públicos. Essa lei foi impugnada, posteriormente, através da ADI 2797, na qual o STF declarou, por
maioria de votos, a incostitucionalidade da lei, por tentar superar uma interpretação constitucional da Corte.

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Direito(s) em debate.

Diante disso, é possível que, caso aprovado, o Estatuto da Família venha a sofrar impugnação através
de ação direta de inconstitucionalidade, e pode o Supremo Tribunal Federal decidir por manter o seu en-
tendimento e declarar inconstitucional a lei por ir de encontro com interpretação constitucional já firmada.

Um outro motivo pelo qual deve haver a supremacia judicial no caso do casamento igualitário, refe-
re-se ao princípio da proibição ao retrocesso. A proibição ao retrocesso se perfaz no contexto da segurança
jurídica, corolário do Estado de direito e protegido em diversos diplomas constitucionais, inclusive na nossa
Carta Magna de 1988.

O direito Fundamental (e humano) à segurança, possui várias faces. Ele possui a condição de direito
fundamental da pessoa humana (em seu âmbito pessoal e social) e, simultaneamente, é princípio fundamen-
tal da ordem jurídica estatal e internacional - já que se encontra firmada tanto nos diplomas nacionais como
também em vários diplomas supranacionais (SARLET, 2008; p. 5-6).

Em verdade, a idéia de segurança jurídica e proteção da confiança (do cidadão e da sociedade) está
intimamente ligada à ideia de dignidade da pessoa humana. Ora, O princípio da dignidade da pessoa huma-
na, como já explicitado nesse estudo , é o berço e o fundamento dos direitos humanos, e estes de concretizar
através da eficácia e eficiência dos direitos fundamentais em cada Estado e da proteção da ordem internacio-
nal. Assim sendo, só é possível vizualizar a realização dos direitos fundamentais em um estado que forneça o
mínimo de segurança (aqui em sentido amplo, pois não envolve apenas a jurídica, mas também a econômica,
a pessoal e a social, entre tantas outras) aos seus cidadão. É preciso que o cidadão confie no ordenamento
jurídico e no Direito do seu Estado, que não se sinta refém e não seja apenas manipulado pelo Estado para
fazer o que esse bem entender.

Assim, o direito à segurança encontra-se ligado (e nesse sentido também a proibição ao retrocesso)
ao Estado não apenas em seu sentido formal - na proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da
coisa julgada -, ou seja, um Estado Liberal de Direito, mas também em sentido material, sendo, de fato, um
Estado Democrático de direito. A ação do Estado, portanto, - no que diz respeito aos direitos sociais - deve
ser de carácter positivo - no que se refere à prestação de serviços essenciais a garantir o direito à segurança
-, mas também de carácter negativo - no que tange a não violar os direitos humanos e fundamentais de seus
cidadãos. (SARLET, 2008; p.7-8).

Com efeito, a proteção dada à confiança e, consequentemente, à segurança jurídica - pelo


menos no que tange à à sua relação com a dignidade da pessoa humana - não refere-se apenas aos atos de
cunho retroativo, mas também aqueles atos de cunho retrocessivo, ou seja, que não alcançaram as figuras
dos direitos adquiridos, do ato jurpidico perfeito e da coisa julgada, mas que de alguma forma houveram por
prejudicar os direitos humanos e fundamentais de uma parcela de seus cidadãos.

Neste diapasão, também a proibição do retrocesso encontra-se devidademente prevista em nosso or-
denamento jurídico. Exemplos são os já mencionados ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada,
mas não deixam de ser importantes - e na realidade de extrema relevância para esse estudo - as restrições
legislativas dos direitos fundamentias, e até mesmo as limitações feitas ao poder constituinte reformador (li-
mitações materiais e também formais18).

E, da mesma forma como na segurança jurídica, como bem colocar Ingo Sarlet (2008, p. 9), a proibi-
ção ao retrocesso não se restringe, tão somente, a atos passados, mas também a atos futuros:

Com efeito, na esteira do que tem sido reconhecido na seara do direito cons-
titucional alienígena e, de modo particular, em face do que tem sido experi-
mentado no âmbito da prática normativa (muito embora não exclusivamente
nesta esfera), cada vez mais se constata a existência de medidas inequivoca-
mente retrocessivas que não chegam a ter caráter propriamente retroativo,
pelo fato de não alcançarem posições jurídicas já consolidadas no patrimônio
de seu titular, ou que, de modo geral, não atingem situações anteriores. As-

18  Vide SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais,5a ed., especialmente p. 371 e ss., para maiores informações sobre
os limites materiais à reforma constitucional.

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sim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também
pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos.

A união homoafetiva e o direito de constituir família, é direito humanos e fundamental, o qual perpas-
sa tanto os direitos individuais, como os sociais. Sendo assim, uma possível violação desses direitos já asseru-
garados pelo STF, representaria uma afronta tanto à segurança jurídica, quanto principal e especificamente
ao princípio da proibição ao retrocesso.

Isso porque, mesmo representando ato futuro do poder legislativo - uma vez que ainda não foi apro-
vado o projeto de Lei do Estatuto da Família - este representa uma retrocessão ao estado anterior, já que os
indívios da comunidade LGBTI estariam privados de exercer a união estável e todos os direitos que advém da
sua realização. Isso seria uma falha na eficácia protetiva dos direitos fundamentais.19

Portanto, no que tange ao casamento igualitário, defendemos a idéia de supremacia judicial primeiro
porque a aprovação e efetivação do Estatuto da Família representaria um retrocesso, o que claramente não
é aceito pelo nosso ordenamento jurídico. Em segundo lugar, porque cabe à jurisdição constitucional a pro-
teção ào direito das minorias, e dessa forma, não estaria o Supremo Tribunal Federal usurpando a função do
legislador, mas sim exercendo a sua própria função em prol de um grupo marginalizado. Em terceiro lugar,
porque é esperada uma reção do pretório excelsior frente à possível “violação” do legislativo no que se refere
à entendimento já pacificado no judiciário. O Projeto de Lei (PL) nº 6583 de 2013, também conhecido como
Estatuto da Família, foi proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira do PR/PE. A propositura desse PL
é consequência direta do reconhecimento da união homoafetiva e sua posterior conversão em casamento,
por parte da banca evangélica tradicionalista que compõe o congresso nacional.

CONCLUSÃO

A equiparação da união entre casais do mesmo sexo à união civil para fins de entidade familiar foi um
avanço e um ganho no ordenamento jurídico brasileiro. Em duas ações emblemáticas o Supremo Tribunal
Federal agiu no sentido de defender a constituição e efetivar os direitos fundamentais, exercendo seu papel
de guardião da constituição através da jurisdição constitucional.

Embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja, expressamente, a possibilidade de formação


de núcleo familiar por pessoas homoafetivas, ao interpretar a Carta Magna como um todo, é possível perceber
que há espaço para a realização de tal feito, uma vez que a Constituição expressamente proíbe qualquer tipo
de discriminação e preza pela concretização do princípio da igualdade.

Da mesma forma, a CADH não dispõe proibição referente ao casamento igualitário, mas assim como
a nossa carta magna, proíbe a discriminação e pressa pela igualdade. Baseado nisso, é provável que diante
de um caso de violação de direitos humanos, como seria a provação do Estatuto da Família pelo congresso
brasileiro, a corte pudesse agir no sentido de punir o Estado, aproveitando para atualizar seu entendimento
sobre questões desse gênero, como aconteceu com o emblemático caso Atala Rifo e ninãs vs. Chile.

A aprovação do Estatuto da família representaria uma ação retrógrada movida por setores conserva-
dores e tradicionalistas do congresso nacional. Seria uma afronta não só à própria constituição brasileira, mas
também a diversos diplomas internacionais e supranacionais sobre direitos humanos, diplomas normativos
dos quais o brasil é signatário, ensejando penalização.

Por todas essas razões, esperamos uma reação do Supremo Tribunal Federal caso o projeto de lei do
Estatuto da Família seja aprovado pelo congresso. Esperamos pela declaração de inconstitucionalidade da
referida lei, e pela prevalência da interpretação feita pelo pretório excelsior, assegurando o direito de todas as
pessoas em constituírem família.

19  idem. p. 361 e ss.

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Direito(s) em debate.

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84
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL:


UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE
ESTELITA

ANA PAULA DA SILVA AZEVÊDO


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com
bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo REC - Recife Estudos Constitucionais

LETÍCIA MALAQUIAS MENDES BARBOSA


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE, vinculada à linha de pesquisa Cidadania e Práticas Sociais.
Pesquisadora do Grupo Novo Constitucionalismo Latino-americano

VITÓRIA CAETANO DREYER DINU


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com
bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia

SUMÁRIO: Introdução; 1. O movimento ocupe estelita (#ocupeestelita) e o porquê do estudo da


ocupação da rua neto campelo; 2. Direito ao protesto como o “primeiro direito”; 3. Análise da decisão
interlocutória do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

A pesquisa busca promover a discussão sobre a tutela judicial do direito ao protesto a partir do pro-
cesso de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, de maio de 2015, envolvendo a ocupação da Rua Neto Campelo, na
capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), após aprovação
e sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015, relativa ao plano urbanístico apresentado pelo Consórcio Novo
Recife para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga.

Para tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa do estudo de caso, exatamente porque são as singu-
laridades do caso que puderam indicar se o Poder Judiciário atuou (ou não) como poder contramajoritário
em amparo à efetivação de direitos fundamentais das minorias. A abordagem volta-se a discutir o direito ao
protesto e as interações entre o espaço público e o privado no processo analisado quando houve a ocupação
da Rua Neto Campelo, endereço do Prefeito, e posterior desocupação determinada pelo Poder Judiciário nos
autos do processo supracitado, ajuizado pela Procuradoria do Município de Recife.

A reflexão construída envolve os confrontos práticos entre os direitos fundamentais relativizados atra-
vés da realização dos protestos, de um lado, e as formas de representação dos protestos com vistas a alcançar
impacto na sociedade, por outro, que também não deixam de constituir direitos fundamentais tutelados. Esse
cuidado no trato da matéria faz-se necessário para garantir que a suposta defesa da sociedade não se volte
contra ela própria, oprimindo-a e constituindo instrumento ilegítimo de manutenção de forças políticas no
poder.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Desta feita, o propósito desse artigo não é realizar um juízo de valor peremptório da decisão que
ordenou a desocupação da rua onde o Prefeito reside. Como se estava diante de um conflito de direitos fun-
damentais, múltiplas poderiam ser as interpretações para a resolução do caso. A pergunta de partida, pois,
pode ser sintetizada da seguinte forma: em que medida o magistrado contemplou a discussão sobre direitos
fundamentais no caso da ocupação e desocupação da Rua Neto Campelo? Assim, independentemente do re-
sultado final da decisão, o objetivo a que se busca é analisar se os caminhos percorridos pelo juiz contemplam
a discussão dos protestos como arena de construção democrática, conforme indicado pela Constituição, ou
não.

Com este intuito, adotou-se como marco teórico a perspectiva de Roberto Gargarella sobre o direito
ao protesto como um direito fundamental de liberdade coletiva. Neste contexto, o trabalho propõe-se, inicial-
mente, a compreender as manifestações populares de rua como um direito constitucionalmente protegido,
mormente em tempos de crise da democracia representativa, envolvendo ainda a proteção dos direitos de
reunião e de liberdade de expressão coletiva, tidos com essenciais para que haja a proteção da crítica feita
ao poder.

Após, com o fito de construir as reflexões sobre o tema, como já indicado, são apresentados os ensi-
namentos de Gargarella, especialmente a doutrina do foro público, que aduz serem as ruas, as praças e as
avenidas os locais historicamente vocacionados para a expressão coletiva de opinião.

Por fim, analisa-se a decisão do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, que ordenou a retirada


dos manifestantes da Rua Neto Campelo. Embora inicialmente houvesse expectativas de identificar elemen-
tos no processo relacionados ao sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos – considerando a ocupa-
ção como manifestação do direito ao protesto –, assim como as interações entre o espaço público e o privado,
verificou-se que a decisão foi proferida reduzindo a causa a um problema administrativo referente à falta de
autorização/licença para ocupação de espaço público.

A partir do caso escolhido, tendo como pano de fundo o conturbado cenário recifense envolvendo
a pauta sobre o direito à cidade, é fundamental compreender a diretriz adotada quando há o conflito entre
interesses diversos e o direito ao protesto, velando para que a discussão e o dissenso, imprescindíveis à demo-
cracia, não sejam tolhidos pelo Judiciário sob a justificativa de proteção de direitos supostamente prevalentes.

1. O MOVIMENTO OCUPE ESTELITA (#OCUPEESTELITA) E O PORQUÊ DO ESTUDO DA OCUPAÇÃO


DA RUA NETO CAMPELO.

O Movimento Ocupe Estelita ou #OcupeEstelita, como divulgado na página do facebook e em outras


mídias sociais, corresponde a um movimento iniciado em 2012 que se apresenta como sendo composto por
diversas identidades as quais se uniram em torno de um propósito, qual seja, o ideal de um crescimento ur-
bano democrático inclusivo para a cidade do Recife, em confronto ao empreendimento imobiliário intitulado
Novo Recife, com impacto nas áreas do Cais de Santa Rita, Cabanga e José Estelita, envolvendo, entre outros
itens, a proposta de construção de um complexo habitacional luxuoso.

A busca pelo propósito do Movimento Ocupe Estelita é feita, precipuamente, a partir de ocupações
urbanas organizadas e não violentas – realizadas em espaços públicos, em sua maioria, e concentradas no
entorno do Cais José Estelita –, como símbolo na busca pela efetivação dos direitos urbanos. A forma de apre-
sentação do movimento, entre a ocupação e o manifesto, exteriorizada e propagada pelas mídias sociais, é um
dos diferenciais do movimento, permitindo a sua análise contextualizada ao direito ao protesto e ao direito de
resistência, destacando a sua relevância no cenário nacional, entre outras razões, por sinalizar a decadência
do regime democrático representativo e o anseio por participação na política de forma direta e ativa, onde
todos podem ser ouvidos e respeitados em suas subjetividades.

No dia 04.05.2015, foi aprovado pela Câmara Municipal de Recife o Projeto de Lei 008/2015, em uma
situação peculiar de violação do acesso do povo ao debate político. Na ocasião, a Câmara Municipal convocou
às pressas uma audiência para aprovação do Projeto, desconsiderando a recomendação do Ministério Público

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Estadual de que o PL precisaria ser primeiramente discutido pelo Conselho da Cidade antes de ser inserido
na pauta da Câmara dos Vereadores. Apesar das críticas dos poucos vereadores oposicionistas, e apesar do
restrito acesso à casa legislativa ofertado ao povo para a sessão indicada, o Projeto foi aprovado e encaminha-
do ao Prefeito Geraldo Júlio para sanção, cujo ato também ocorreu no mesmo dia.

Na noite do dia 07.05.2015, uma quinta-feira, manifestantes apoiadores do Movimento Ocupe Este-
lita decidiram, de forma espontânea, ocupar a rua onde reside o Prefeito da Cidade do Recife, Geraldo Júlio,
como forma de protesto contra a sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015. A mensagem que os manifestan-
tes tentaram passar com esse ato foi bastante simbólica: se o Prefeito estava supostamente imiscuindo os
interesses públicos com os privados na condução do plano urbanístico dos Cais de Santa Rita, José Estelita
e Cabanga, os manifestantes, de forma análoga, iriam adentrar na seara privada do Prefeito, acampando na
frente do prédio onde reside, a fim de pressionar pela prevalência dos interesses públicos.

Durante a ocupação, os manifestantes foram acusados de jogar ovos no prédio, fazer bastante ba-
rulho, bater latas no local, fazer ameaças, impedir o livre trânsito dos moradores e daqueles que passavam
naquela rua. Mesmo que se possam levantar ressalvas éticas e morais contra a atitude dos manifestantes,
que não atrapalharam apenas a vida do Prefeito, mas a vivência de moradores de toda uma rua, estava-se
diante de um caso de exercício do direito de protesto em via pública. Diante da repercussão, a Procuradoria
do Município do Recife ingressou com Ação de Obrigação de Fazer contra os integrantes do Movimento Ocu-
pe Estelita e do Grupo Direitos Urbanos, sob o fundamento de que a ocupação da Rua Neto Campelo, como
bem público destinado à circulação e ao lazer das pessoas em geral, deveria ter sido precedida de licença ou
autorização por parte da Administração Pública.

Se de um lado o Executivo Municipal não é capaz de atender as demandas sociais e volta-se à satisfa-
ção de interesses alheios à sociedade para viabilizar o atendimento de interesses de grandes grupos econômi-
cos – normalmente grandes financiadores de campanhas –, de outro, o Legislativo Municipal, composto pela
base governista, é instrumento de afirmação e continuidade dos projetos tocados pelo Executivo. O Poder
Judiciário, neste contexto, como terceiro e independente poder, deveria se afirmar como poder contramajo-
ritário, tutelando as garantias e direitos fundamentais, mas há grande distinção entre o discurso e a prática,
escancarando a falácia do discurso democrático apresentado à população.

Daí surge o interesse para a utilização da metodologia do estudo de caso. Por mais que este método
seja, em tese, passível da crítica da dificuldade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exata-
mente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses que precisam ser en-
frentados pelo Poder Judiciário ao julgar o conflito de direitos fundamentais existentes em qualquer protesto.
Afinal, está-se diante de um exemplo de judicialização do direito ao protesto, com uma farta discussão sobre
os limites de utilização do meio público como forma de exercício democrático. Se porventura há críticas
quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que:

[...] a validação do conhecimento gerado pela pesquisa, a aprovação de sua


confiabilidade e relevância pela comunidade acadêmica, exige que o pesqui-
sador se mostre familiarizado com o estado atual do conhecimento sobre a
temática focalizada, de modo que ele possa, de alguma forma, inserir sua
pesquisa no processo de produção coletiva do conhecimento (ALVES-MAZ-
ZOTTI, 2006, p. 638).

Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da proble-
mática envolvendo o respeito ao protesto como um direito constitucionalmente tutelado. Isso porque, a partir
de um caso extremado, em que manifestantes ocupam a calçada em frente ao prédio do Prefeito, é possível
extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos (VENTURA, 2007, p. 386), fortalecendo-se
a hipótese de que ainda falta amadurecimento do Judiciário para compreender os protestos como instrumen-
tos legítimos de participação democrática popular e, por conseguinte, como verdadeiro direito que, em um
caso concreto, pode vir a colidir com outros, fazendo-se necessária a ponderação.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

2. DIREITO AO PROTESTO COMO O “PRIMEIRO DIREITO”.

O direito ao protesto tem se mostrado, nos últimos anos, muito importante para a compreensão do
Direito como instrumento para a solução de conflitos, ganhando destaque tanto na seara do Direito Consti-
tucional quanto do Direito Penal. Roberto Gargarella, desenvolveu vasta obra acerca do derecho a la protesta
social, demonstrando o quanto se faz necessário refletir acerca desse direito que pode ser considerado como
o “primeiro direito”.

Quando Gargarella (2012) fala da relação do direito com o protesto, está se referindo às respostas do
poder público diante dos protestos sociais e, muito especialmente, das respostas conferidas pelo Poder Judici-
ário. Inclusive, Gargarella dedica muito dos seus textos a abordagem do papel que o Judiciário, especialmente
o Judiciário argentino, vem desenvolvendo na temática do direito ao protesto.

Por sua vez, quando tal autor menciona “protestos”, está se referindo às reclamações/reivindicações
feitas por determinados grupos de pessoas, que veem suas necessidades básicas constantemente insatisfei-
tas. Essas reivindicações, por conseguinte, referem-se a problemas envolvendo a carência de trabalho, de
moradia digna, de assistência sanitária, de proteção social, dentre tantas outras violações a direitos básicos
do cidadão (GARGARELLA, 2012).

De acordo com Gargarella (2012), ao pensar sobre os protestos sociais, experimenta-se uma tensão
entre as aspirações democráticas, de um lado, e as preocupações com os direitos de cada indivíduo, do outro.
Uma Constituição, por seu turno, convida a pensar numa maneira de como pensar essas duas preocupações
de forma conjunta. Contudo, quando o protesto social chega ao âmbito do Judiciário, o autor aponta o se-
guinte:

Quando os juízes se encontram diante de um conflito que envolve o protesto


social, devem se expressar sobre o modo como eles mesmos concebem a
democracia. Entretanto, algumas vezes por preguiça, outras por torpeza, ou
por uma falta de atenção devida, eles passam por esses problemas sem tomar
consciência da importância do que está em jogo1. (GARGARELLA, 2012, p.
23).

Com isso, o autor chama atenção para a necessidade de o Poder Judiciário aprofundar as reflexões
acerca dos conceitos de democracia, direitos, justiça, interpretação constitucional, enfim, acerca dos assun-
tos que envolvem muitos tópicos centrais da Filosofia Política e da Teoria Constitucional, para que se possa
debruçar sobre a questão dos protestos sociais de modo mais acurado, e não genericamente, como vem ocor-
rendo (GARGARELLA, 2012).

Citando o artigo 22º da Constituição da Argentina, segundo o qual “o povo não delibera nem governa
senão por meio dos seus representantes” 2, Gargarella atenta para o fato de que, nos casos concretos envol-
vendo os protestos sociais, os juízes argentinos, de um modo ou de outro, acabam efetuando uma interpreta-
ção acerca do significado daquela norma constitucional, demonstrando diferentes graus de aprofundamento.
Sobretudo, o que ficou em evidência foi o fato de que os juízes, em sua maioria, seguiram a tendência de
uma interpretação mais restritiva, limitada e elitista acerca da democracia, movendo-se em direção do que
Gargarella (2012) denomina de princípio da desconfiança.

Essa desconfiança estaria exatamente na discussão pública e no que os cidadãos poderiam realizar
através dela e iria de encontro ao que Gargarella (2012) chamou de princípio alternativo da confiança,
segundo o qual a confiança estaria depositada “no cidadão, em nossas capacidades coletivas, na discussão
pública” 3 (GARGARELLA, 2012, p. 23).

1  Tradução livre.
2  Tradução livre.
3  Tradução livre.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Sem dúvidas, interpretar a democracia de modo restritivo, acreditando que aquela se encerraria com
o sufrágio, é uma visão muito pobre acerca da democracia e do que ela pode proporcionar aos cidadãos de
qualquer país. Se comportando dessa maneira, o poder público e os juízes acabam não auxiliando a popu-
lação nas suas aspirações coletivas e terminam por espalhar o medo oriundo das possíveis consequências
penais da participação em uma greve ou manifestação, por exemplo.

Para Gargarella, a ideia de democracia deveria estar associada à ideia de um processo de discussão
coletiva, no qual todos os envolvidos pudessem intervir e expressar suas opiniões em face do que se está por
decidir, principalmente, aqueles cidadãos que seriam mais afetados por tais decisões. A participação da popu-
lação em expressões diretas de democracia, como manifestações e greves, por exemplo, pode ser um meio de
os cidadãos cobrarem dos seus representantes eleitos ações condizentes com os motivos que levaram aqueles
a escolher estes como seus porta-vozes.

No que diz respeito às reivindicações por necessidades básicas insatisfeitas, há, ainda, outro fator que
as tornaria mais graves, qual seja: o fato de que, não apenas na Argentina, mas em diversos outros países,
como salienta Gargarella, o espaço concedido nos meios de comunicação para reclamações não depende da
urgência destas, por exemplo, mas sim, e, sobretudo, da capacidade econômica de quem pretende ser ouvido
(GARGARELLA, 2012).

Por outro lado, se o Poder Judiciário se põe contra as minorias, perseguindo-as ou penalizando suas
reivindicações, isso pode ter um resultado extremamente negativo, tendo em vista que alguns grupos mino-
ritários já não gozam de popularidade, o que deveria levar o Judiciário a tomar atitudes que os protegessem.
Entretanto, parece que os juízes, ao promoverem suas decisões, revelam-se de acordo com as opiniões de
uma maioria hostil.

Com relação à interpretação que é conferida ao texto de uma Constituição, pode-se afirmar, desde
já, que se trata de uma tarefa delicada, tendo em vista que o próprio ponto de partida, onde se encontra o
intérprete, já revela dificuldades, pois os textos constitucionais normalmente são repletos de conceitos vagos
e genéricos, como por exemplo, justiça, igualdade e liberdade, fazendo tortuoso o trabalho do hermeneuta.

O que Gargarella aponta é para o fato de um juiz poder livremente se amparar em qualquer doutrina
existente para justificar algum entendimento proferido através das suas decisões e, com má fé ou não, acabar
cometendo alguns abusos.

Certamente, a tarefa de interpretar as normas constitucionais e aplicá-las aos casos concretos não é
fácil, e ações judiciais envolvendo a colisão de certos direitos demandam um esforço reflexivo maior por par-
te do juiz, o qual, ao invés de afirmar, simplesmente, que o direito de um termina onde começa o direito do
outro, deveria questionar-se acerca de onde está, mais especificamente, esse limite ou quais os fundamentos
nos quais se lastreia para dizer que determinado direito termina aqui, ao passo que outro direito começa ali.

Gargarella ainda traz, com relação à forma como as manifestações acontecem, a distinção entre “ex-
pressão pura” (que inclui escritos políticos e panfletos, por exemplo) e “expressão com agregados” (o plus
speech), a qual faz referência a marchas, por exemplo, utilizada em alguns países, como nos Estados Unidos.
Essa distinção vem sendo utilizada para proteger as chamadas “expressões puras”, deixando sem proteção
as manifestações com agregados. Por sua vez, Gargarella (2007) propõe o desfazimento dessa dicotomia,
citando a posição de Harry Kalven, segundo o qual toda manifestação/expressão inclui, necessariamente, o
chamado plus speech (GARGARELLA, 2007).

Por mais que seja trabalhoso, o que Gargarella sugere é que, apesar das críticas, deve ser preservado o
conteúdo das manifestações, o que ele chama de el componente expressivo (o componente expressivo) (GAR-
GARELLA, 2007). Assim, o ato de queimar uma bandeira ou de arremessar um ovo em algum político, tem
obrigado os doutrinadores a pensar com mais cuidado sobre esse tipo de atitude por parte dos manifestantes,
levando em consideração a potencialidade das mensagens que tais atos carregam. Para Gargarella (2007),
não prestar a devida atenção a esse ponto significa desconsiderar uma questão crucial.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Com relação à chamada doutrina do foro público, a doutrina e a jurisprudência internacional tem se
posicionado em sua defesa. Segundo o foro público as ruas, praças e avenidas são lugares tradicionalmente
utilizados para protestos e que merecem, por esse motivo, uma proteção especial (GARGARELLA, 2012, p.
28).

Assim, pode-se perceber o quanto é atual e extremamente necessário o debate envolvendo o direito
ao protesto, pois as manifestações se tornaram comuns nos últimos tempos. Insatisfações variadas motivam
as pessoas a saírem de suas casas e trabalhos para reclamarem nas ruas tudo o que lhes causa incômodo. É
por isso que o papel do Poder Judiciário se torna tão essencial4, tendo em vista que, no âmbito legislativo, o
direito ao protesto não encontra respaldos. Da mesma forma, a doutrina ainda é tímida quando o assunto é
protesto social.

O Poder Judiciário trata-se de um Poder com ampla liberdade para decidir os rumos do Direito Cons-
titucional de um país, porém, é justamente aquele que temos menos possibilidades institucionais de contro-
lar. Além disso, a própria composição do Judiciário é seletiva demais (homens brancos e de classe média).
Como, então, esperar decisões não segregadoras e elitistas por parte dos magistrados?

Por mais que a decisão de um juiz esteja claramente fundamentada em normas e princípios, acres-
cidos da doutrina mais especializada no assunto, inocência não atentar para as convicções pessoais dos
magistrados que, embora não apareçam de modo explícito na fundamentação de uma decisão, certamente
determinam esta.

Se, de um lado, é a polícia quem censura uma manifestação, utilizando-se de meios exageradamente
violentos, por outro, o Judiciário parece não saber lidar com o tema do direito ao protesto, oferecendo tam-
bém decisões que aproximam as manifestações à prática delituosa ou, simplesmente, proferindo reflexões
genéricas e rasas acerca desse importante direito.

3. ANÁLISE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DO PROCESSO DE Nº 0024756-03.2015.8.17.0001.

Consoante já exposto, a Procuradoria do Município do Recife ajuizou o Processo de nº 0024756-


03.2015.8.17.0001, com o objetivo de “garantir a desocupação da Rua Neto Campelo, seu entorno e passeios
públicos, no Bairro da Torre, Recife-PE”, vez que o Município do Recife estaria “impedido de exercer o seu
poder de polícia e reestabelecer a paz social que se faz mister” 5 após manifestantes terem ocupado a rua
para forçar a revogação do projeto urbanístico relativo aos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga pelo
Prefeito da cidade.

Em breve síntese, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que houvesse
a imediata desocupação da rua e seus entornos, cuja circulação estava sendo impedida pelos manifestantes,
chegando, inclusive, a arbitrar multa diária de dois mil reais por pessoa por descumprimento da decisão. Em
virtude do pronunciamento judicial, os ocupantes saíram pacificamente da localidade.

A questão que se impõe, todavia, é a pobreza da decisão no que tange aos debates sobre direitos fun-
damentais. Em verdade, por mais que o magistrado tenha feito referência ao art. 5º, inc. XVI, da CF/88, o
qual institui o direito de reunião para fins pacíficos (albergando, pois, o direito ao protesto), trata-se de uma
citação meramente pró forma, tanto que se ignorou por completo o fato de que, para um protesto, não há
necessidade de autorização administrativa.

4  Segundo Gargarella, o Judiciário, ao enfrentar casos relativos a protestos, deveria atuar com base em dois princípios: o princípio
da imparcialidade ou distância deliberativa, e o princípio das violações sistemáticas (2007, p. 42/45). O primeiro princípio estabelece
que, quando os manifestantes não são membros plenamente integrados na sociedade deliberativa, o Judiciário deve ser mais
sensível às demandas desse grupo, de forma a conferir maior proteção às formas de comunicação eleitas para expor as demandas.
O segundo princípio, por sua vez, indica que as autoridades públicas devem dar atenção especial aos protestos decorrentes de
sistemáticas violações a direitos básicos, sopesando este fator ao analisar as circunstâncias de realização do protesto. Assim, quando
a injustiça é particularmente grave e persistente, os juízes deveriam estar mais abertos a tolerar ações que, em outras situações,
poderiam ser reprovadas.
5  Os trechos entre aspas foram extraídos da decisão interlocutória em comento.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A decisão, de forma simplória, reduziu toda a questão a uma querela meramente administrativa,
como se a ocupação da Rua Neto Campelo fosse uma simples utilização irregular de bem público, e não um
protesto, com proteção constitucional diferenciada, portanto. Nos termos do douto juiz, “a Rua Neto Cam-
pelo e demais ruas e calçadas em seu entorno, por serem espaços utilizados para a circulação e lazer das
pessoas em geral, são consideradas juridicamente como bens públicos, e como tal, qualquer ocupação delas,
(sic) está sujeita a licença ou autorização por parte da Administração Pública”.

Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o modelo do Estado Democrático
de Direito, seguindo a tendência dos Estados Ocidentais, mas também como reação aos abusos e arbitrarie-
dades cometidos durante a ditadura militar. Nada mais natural, portanto, que tenha se dado bastante ênfase
aos direitos e garantias fundamentais, dentre eles os direitos de expressão e participação política, a fim de
possibilitar a construção de uma sociedade pluralista, em que múltiplas opiniões tenham vez e voz. Só assim
é possível constituir uma verdadeira democracia, pois, sem que haja um debate livre de ideias e amplas in-
formações, não há como os cidadãos, exercendo a sua autodeterminação, posicionarem-se livremente.

Diante disso, por mais que a CF/88 não tenha falado expressamente em um “direito ao protesto”, há
um desenho institucional que garante essa dimensão coletiva da liberdade de expressão (SANTOS; GOMES,
2014, p. 590-591). Afinal, se o exercício democrático demanda opiniões públicas diversas, é necessário per-
mitir que as pessoas, mesmo que não tenham acesso aos meios usuais de comunicação, possam expor ideias
contrárias ao status quo, o que pode se dar via manifestações de rua. Só assim a opinião pública será, efeti-
vamente, constituída pelo cruzamento de inúmeras fontes, para que os cidadãos possam tomar as decisões
fundamentais da comunidade de forma embasada, em um verdadeiro espaço público de discussão.

Com o objetivo de proteger essa participação do cidadão na sociedade civil, pode-se afirmar que a
CF/88 consubstanciou o direito ao protesto, primeiramente, na defesa do pluralismo como fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. V), bem como no âmbito do exercício das liberdades (SANTOS;
GOMES, 2014, p. 593). Têm-se, assim, a liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI) e a liberdade de expressão
(art. 5º, inc. IX, e art. 220) conferindo o substrato para a defesa do exercício coletivo da manifestação do
pensamento.

Muito embora o art. 5º, inc. XVI, da CF/88, diga explicitamente que, para o direito de reunião, não se
faz necessária autorização administrativa, toda a decisão é construída sobre o fato de que, não tendo havido
solicitação prévia para o uso do espaço, a ocupação seria ilegal, o que contraria em absoluto as disposições
constitucionais.

A impressão que fica é a de que o magistrado ignorou o fato notório de que a ocupação tratava-se
de um protesto, e, assim atuando, deixou de exercer o caráter contramajoritário que deveria ser a marca
do Poder Judiciário. Tão raso foi, que sequer fez considerações sobre o fato de que não houve comunicação
prévia da reunião às autoridades públicas, este sim requisito constitucional para o exercício do direito de
reunião. Neste ponto, cumpre destacar, todavia, que ainda sim há críticas quanto à peremptoriedade deste
mandamento, o qual tolheria o caráter espontâneo e imprescindível de muitos protestos. Como nos relembra
Gargarella, seria necessário um esforço para identificar o “componente expressivo” dessas ações (2007, p.
34), que pode estar exatamente em sua espontaneidade.

Talvez, a ideia de comunicação prévia possa ser interpretada no sentido apenas de evitar que se
frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, e não como uma forma de tornar ilegal
todo e qualquer protesto que não tenha sido comunicado às autoridades, sob pena de tolher de forma des-
proporcional e impedir o exercício da liberdade de expressão coletiva. De toda forma, trata-se de assunto o
qual ainda precisa de elaboração doutrinária (conforme aduz SANTOS; GOMES, 2014), a qual não é o foco
do presente trabalho.

Após toda a explanação sobre a importância do direito constitucional ao protesto, é preciso deixar
claro que, por evidência, não se trata de um direito absoluto, havendo condições para o seu exercício. Com o
pós-positivismo e a declaração da força normativa dos princípios constitucionais, eis que a subsunção cedeu
espaço para outro método de aplicação de normas, a ponderação, segundo a qual, num conflito de princípios,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

se deve efetuar um balanceamento, a fim de identificar qual o princípio que irá prevalecer no caso concreto,
bem como as suas consequências normativas. Desta feita, a depender da circunstância, o direito ao protesto
pode, em tese, ser legitimamente restringido.

Se o conflito de regras se resolve no plano da validade, o mesmo não ocorre com o conflito de prin-
cípios. Pelo fato de eles serem mandamentos ou comandos de otimização, eles jamais podem ser realizados
completamente6. Portanto, em uma colisão de princípios, como ambos os comandos normativos apresentam
a mesma hierarquia e o mesmo valor, o objetivo da ponderação seria restringir o mínimo possível um princí-
pio, para que o outro seja protegido (CAMBI, 2011, p. 92/93), o que se dá por meio do postulado da propor-
cionalidade e seus deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2001).

Mesmo que haja críticas a essa forma de interpretação das disposições constitucionais, no caso em
análise, o magistrado não considerou o direito ao protesto como um direito fundamental, empobrecendo por
demais a discussão jurídica e ignorando o conflito de direitos entre a livre circulação e a manifestação popu-
lar. Independentemente de o momento ser ou não de retirada dos manifestantes do passeio público, a ausên-
cia de cotejo sobre o caráter democrático dos protestos reforça a hipótese de que ainda há muito para que o
direito ao protesto seja plenamente efetivado e respeitado. Tem-se, assim, uma situação em que a prática do
sistema não raro opera em total desrespeito às diretrizes constitucionais, com a repressão desproporcional
aos manifestantes, por mais que as manifestações de rua sejam constitucionalmente protegidas. Está-se,
pois, numa situação de desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante, nos termos
utilizados por Marcelo Neves (1996). Em outras palavras, significa que o texto constitucional é uma referên-
cia distante dos agentes estatais e dos cidadãos, de forma que a prática desenvolve-se à margem do modelo
estabelecido na Constituição. A constitucionalização simbólica funcionaria, assim, “como álibi em favor dos
agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 1996, p. 327).

Jamais um direito constitucional e internacional exercido regularmente poderia configurar um ilícito


(ZAFFARONI, 2010, p. 6). Não obstante, sob o manto da defesa da segurança pública de toda a comunidade,
estão se olvidando direitos constitucionalmente protegidos, dentre eles o direito ao protesto. E pior: muitas
vezes, a realização dos protestos se dá exatamente porque, de forma prévia, houve, por parte do Executivo,
um triplo mecanismo de violação dos direitos fundamentais (prestacionais, políticos e de defesa), tudo sob
a justificativa da tutela de interesses de outras pessoas (direito de propriedade, de liberdade de locomoção,
etc.):

As pessoas protestam pela falta de políticas públicas prestacionais (privação


de direitos sociais). Não conseguem influenciar os processos políticos oficiais
e por isso protestam publicamente. A seguir, o Estado reprime esses cidadãos
que exercem seus direitos fundamentais de cunho político, pois o ato de pro-
testar corresponde a um direito político muito importante nas democracias.
Nesse contexto, o Estado organiza a repressão por meio de atos de violência,
de detenções ilegais atingindo os direitos de liberdade (direitos de defesa)
com prisões, lesões corporais e até morte. A ordem é: nenhuma tolerância
com quem o Estado considera “intolerante” (SABADELL; SIMON, 2014, p.
532, grifos dos autores).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocu-
pe Estelita (#OcupeEstelita), apresenta-se como peculiar na medida em que permite a reflexão sobre os es-
paços de atuação política destinados aos cidadãos na democracia representativa contemporânea. Ao ter sido

6  Não obstante as dificuldades de conceituação dos princípios, traz-se a definição elaborada por Humberto Ávila: “[...] pode-se
definir os princípios como normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão
qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por isso
dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a
determinação da conduta devida” (2001, p. 21).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

vedado o acesso à Câmara Municipal de Recife, manifestantes do movimento dirigiram-se à rua onde se situa
a residência do Chefe do Executivo Municipal, forçando a reflexão sobre os limites entre o público e o pri-
vado, entre o direito de protestar e resistir dos cidadãos manifestantes e a liberdade daqueles cidadãos even-
tualmente prejudicados pelo processo de ocupação urbana, ainda que pacífica. O processo de nº 0024756-
03.2015.8.17.0001 criava expectativas acerca deste debate, envolvendo direitos e garantias fundamentais.

Todavia, após a leitura da decisão em análise, que tem por fundamentação uma citação doutrinária
descontextualizada sobre poder de polícia, autorização e licença, fica a frustração pela ausência de debate
sobre direitos fundamentais, logo quando se está diante de um caso de exercício democrático via pressão
popular na rua da residência do Prefeito.

Em tese, protestos “desarrazoados” são reprimidos tendo por base o exercício legítimo da força pelo
Estado. Todavia, cabe o questionamento sobre até que ponto esse uso da violência institucional é cabível,
para que o Estado não sirva, em verdade, à perpetuação de situações de dominação, mormente ao ignorar o
caráter fundamental do direito de reunião.

Quando os casos chegam ao Judiciário, este fica diante de duas concepções de democracia: uma
mais restritiva, em que se tolhe o direito ao protesto, e outra mais inclusiva e ampla. Ora, por se estar em
uma democracia representativa, o Judiciário deveria ser mais atento às manifestações de crítica ao poder
constituído, até porque o poder emana do povo. Não obstante, não é incomum que os magistrados punam
os supostos excessos cometidos em protestos com base no argumento de que “todo direito tem limites”, sem
qualquer fundamentação mais aprofundada sobre que limites seriam esses. Não se cumpre, pois, o dever do
ônus argumentativo do intérprete, mais acentuado em se tratado de cláusulas abertas como a referida.

No estudo de caso analisado: a casa do povo (Legislativo) deixa de ser de acesso público e de parti-
cipação da sociedade; o Judiciário deixa de analisar a importância e o contexto das manifestações e o argu-
mento dos excluídos; e a ordem é para desocupar as ruas. É tempo de refletir sobre os espaços destinados à
participação dos cidadãos e o direito fundamental de oposição ao sistema, pilares de um regime político dito
democrático.

REFERÊNCIAS

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Direito(s) em debate.

QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA?


O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON

ANA TEREZA DUARTE LIMA DE BARROS


Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharela em
Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail:
anaterezadlb@gmail.com

MARIANA COCKLES TEIXEIRA


Mestranda e Bacharela em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
Bolsista de Mestrado da Facepe. E-mail: marianacockles@gmail.com

SUMÁRIO: introdução; 1. Revisão judicial como elemento da democracia (ou não): as visões de Ro-
nald Dworkin e Jeremy Waldron; 2. O judiciário seria realmente neutro e imparcial? A visão de Robert
Dahl; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Judiciário ou legislativo? Quem tem direito à última palavra em questões políticas relevantes e con-
troversas é assunto sobre o qual, desde a obra histórica de Dahl, escrita em 1957, vários teóricos políticos,
juristas e constitucionalistas têm se posicionado.

Primeiramente é explorada a visão de Ronald Dworkin - que se opõe claramente à de Dahl e Waldron
– que defende ser o Judiciário a instituição competente para decidir questões políticas que envolvam morali-
dade. Igualmente, defende que a Corte estaria mais apta a proteger a minoria contra a “tirania da maioria”,
uma vez que a premissa majoritária não implica democracia. O procedimento democrático também não de-
finiria qual autoridade é a legitimada para proteger direitos, importando mais o conteúdo da decisão do que
“quem decide”.

Igualmente, é abordada a visão de Jeremy Waldron - o maior crítico de Dworkin – quem considera
que, no que diz respeito às questões morais, sempre haverá discordância, não havendo uma resposta corre-
ta. A única forma, portanto, de se garantir uma decisão democrática seria através do procedimento, não do
conteúdo. Seria o Judiciário não-responsivo perante os eleitores e, portanto, ilegítimo para decidir questões
políticas, que só poderão ser plenamente debatidas, com igualdade, no âmbito legislativo.

Também é analisado o entendimento de Robert Dahl, quem, contrariamente a Dworkin, considera


uma falácia o argumento de que o Judiciário é realmente neutro e serve para proteger o direito das minorias.
Dahl demonstra que a Suprema Corte sempre se alia à aliança nacional dominante e que, em muitos poucos
casos, decidiu contra a maioria, pondo, por água abaixo, o argumento de Dworkin.

Por fim, faz-se uma breve conclusão, contrapondo a visão dos autores trabalhados.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. REVISÃO JUDICIAL COMO ELEMENTO DA DEMOCRACIA (OU NÃO): AS VISÕES DE RONALD


DWORKIN E JEREMY WALDRON.

Para os defensores da revisão judicial, como Ronald Dworkin, dito instrumento aprofundaria a de-
mocracia, ao proteger os direitos das minorias contra a “tirania da maioria”. Dworkin defende que a leitura
moral realizada pela Suprema Corte é extremamente necessária. Como exemplo, cita o caso Brown, em que
a atuação da Corte foi necessária para que se pudesse extinguir a segregação oficial nas escolas. O autor,
igualmente, defende que uma alternativa intermediária é impossível, e que resta aos juristas e constitucio-
nalistas aceitar a leitura moral realizada pelos juízes (DWORKIN, 2006, p. 18-21).

Citando Conrado Hübner Mendes:

Para Dworkin, a política do mundo civilizado deve estar subordinada ao im-


pério do direito, do princípio, da integridade. Deve respeitar não apenas o
direito posto, legislado, mas também suas premissas morais. E os juízes se-
riam um veículo institucional adequado para carregar e impor a dimensão de
princípio às decisões políticas. Não nega que o legislador também deva ser
guardião de princípios, e que tenha responsabilidade de não produzir deci-
sões institucionais. Mas o ambiente legislativo não seria o ideal para questões
de escolha sensível.
Dworkin não admite uma cultura jurídica leniente, segundo a qual o Direito
é uma questão de força e autoridade, e os argumentos baratos intercambiá-
veis. É possível buscar o melhor argumento, a resposta certa, ainda que não
demonstráveis (MENDES, 2008, p. 77).

A tese principal de Dworkin ataca a premissa majoritária, ou seja, a premissa de que as decisões
políticas a que se chega devam ser as favorecidas pela maioria dos cidadãos. Tal premissa não implicaria de-
mocracia. Conforme sua concepção comunitária - segundo a qual as decisões políticas deveriam ser tomadas
pelo “povo” enquanto tal, e não por “indivíduos encarados um a um” - “uma sociedade em que a maioria
despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima” (DWORKIN, 2006,
p. 24-26/ 31/ 38-39).

Se a democracia fosse entendida no sentido subminimalista, como o fazem Schumpeter (1961) e


Przeworski (1999), a proteção ao direito das minorias pouco importaria, pois, democracia existiria em todo
lugar onde houvessem eleições limpas, sendo este o único requisito democrático.

Porém, Dworkin, contrariamente a Schumpeter e Przeworski, defende que democracia é conteúdo,


não procedimento. O que importa é o conteúdo da decisão a que se chega, não importando “quem” seja a
autoridade que a profira. Para Dworkin, quando juízes anulam uma decisão tomada pelo legislativo, em lugar
de estarem indo de encontro à democracia, estão aprofundando-a, uma vez que a democracia não se reduz à
regra da maioria, mas é resultado da combinação entre procedimento e substância (MENDES, 2008, p. 34/
59/ 76-77).

A Corte, então, seria considerada o “fórum do princípio”, de modo que não haveria necessidade de
representação nos moldes tradicionais, ao contrário do que defendem os que se opõem à revisão judicial,
como Waldron. Para evitar que a maioria se torne juíza da própria causa, não deveria ser ela quem decide
quais decisões majoritárias devem ser aceitas (DOWRKIN, 2010, p. 222-223).

As decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que de-
vam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria. O constitucio-
nalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados
para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa
ou má, mas foi adotada pelos Estados Unidos, e não parece justo ou coerente
permitir que a maioria julgue em causa própria. Dessa forma, os princípios

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de justiça parecem posicionar-se contra o argumento derivado da democra-


cia, e não a seu favor (DWORKIN, 2010, p. 222-223).

Uma das principais críticas feitas à revisão judicial, e que será feita por Waldron, é justamente essa
aparente falta de legitimidade dos juízes. No entanto, para seus defensores, como é o caso de Dworkin, a
proteção aos direitos individuais, ou seja, ao conteúdo, compensa. Além do mais, teriam os juízes melhor
formação técnica e não estariam subordinados às pressões políticas (LEIBIR; DUTRA, [s.d], p. 8-9). Nas pa-
lavras de Dworkin (2005, p. 17): “os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões
que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”.

Conclui Dworkin que os tribunais devem ser ativistas, de modo que estejam preparados a formular e
dar respostas a questões de moralidade política.

Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos


juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade, tan-
to quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os
juízes venham a fazer as escolhas erradas (DWORKIN, 2005, p. 231-232).

Dahl, como veremos, irá derrubar esse argumento de Dworkin, ao provar que o Judiciário sempre se
alia à aliança nacional dominante, logo, não seria neutro.

Contrariamente a Dworkin, Jeremy Waldron se opõe à chamada revisão judicial “forte”, que é a exis-
tente nos Estados Unidos da América (e no Brasil), em que os tribunais têm autoridade para declarar que
determinada norma não será aplicada, transformando-a em letra morta. Waldron parte do pressuposto de
que existe um compromisso por parte da maioria dos membros da sociedade e da maioria de seus funcio-
nários em respeitar os direitos individuais e das minorias (WALDRON, 2006, p. 1354/ 1360). Pergunto-me
em quantos países ocidentais a maioria da população os respeita e os leva em consideração para tomar suas
decisões. Acredito que em poucos.

Assim, Waldron, diferentemente de Dworkin, acredita que os membros de uma sociedade sempre
irão discordar a respeito de se determinada decisão viola ou não direitos, não existindo uma única decisão
correta. Como resposta a esse problema de desentendimento moral, Waldron defende a legitimidade do pro-
cedimento, contrapondo-se à visão de Dworkin, que preza pelo conteúdo (WALDRON, 2006, p. 1369- 1370).

Nas palavras de Waldron:

Todavia, dada a inevitabilidade do desacordo sobre tudo isso, uma teoria da


justiça e dos direitos deve ser complementada por uma teoria da autoridade.
Uma vez que pessoas discordam sobre o que a justiça requer e quais direitos
temos, precisamos perguntar: quem deve ter poder para tomar decisões (...)?
Saber o que conta como uma boa decisão é uma questão que não desaparece
no momento em que respondemos à questão “Quem decide”? Pelo contrário,
a função de uma teoria da justiça e dos direitos é aconselhar seja lá quem for
identificado (pela teoria da autoridade) como a pessoa para tomar a decisão
(WALDRON, 1993, p. 32).

Waldron salienta o insulto que é considerar que os cidadãos não deveriam dirimir seus conflitos por
meio do procedimento majoritário, outorgando a um seleto grupo de juízes a autoridade de fazê-lo. Na verda-
de, o procedimento adotado pelos tribunais para se chegar a uma decisão é o mesmo: a votação majoritária.

Quando cidadãos ou seus representantes discordam sobre quais direitos te-


mos ou sobre o que estes direitos impõem, parece quase um insulto dizer
que isto não é algo que se lhes permite resolver por meio de procedimento
majoritário, mas que deve ser atribuído para determinação final a um pe-
queno número de juízes. É particularmente insultante quando descobrem

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

que juízes discordam entre exatamente pelas mesmas linhas que cidadãos e
representantes, e que juízes tomam suas decisões, também, por votação ma-
joritária. Cidadãos podem sentir que, se desacordos nesses assuntos devem
ser resolvidos pela contagem de cabeças, então são as suas cabeças ou as de
seus representantes que deveriam ser contadas (WALDRON, 2001, p. 15).

Assim, já que ambos decidem de forma majoritária, antes todos os cidadãos decidindo por maioria do
que um seleto grupo de juízes fazendo o mesmo. Dessa forma, para o Waldron, a Suprema Corte não seria
uma instituição contramajoritária. Tampouco teria o argumento dos juízes ou a qualidade de suas decisões,
peso no seu voto (MENDES, 2008, p. 102).

Em lugar de falar impessoalmente sobre “a dificuldade contramajoritária”,


devemos distinguir entre a Corte decidindo por maioria, e muitos e muitos
homens e mulheres comuns decidindo por maioria. Se fizermos isso, nós
vemos ainda que a questão “Quem deve participar?” sempre tem priorida-
de sobre a questão “Como eles decidem quando discordam?” (WALDRON,
1993, p. 50).

A defesa do procedimento como melhor maneira de se obter uma decisão democrática levaria a duas
perguntas fundamentais: “por que eles? Por que não eu?” e “no procedimento decisório, por que não foi dado
maior peso aos pontos de vista dos legisladores que concordam comigo sobre o assunto?”. Primeiramente,
seriam os legisladores quem decide, pois foram eleitos diretamente pelo povo, logo, são responsivos perante
este. Nas eleições, os cidadãos decidem, em condição de igualdade, quem deverá assumir o posto privilegia-
do de representá-los na tomada de decisões. Em segundo lugar, o princípio majoritário garantiria justiça e
tratamento igualitário a todos. Assim, todas as opiniões têm peso igual (WALDRON, 2006, p. 1387-1388).

Ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar
que mesmo as decisões que contrariam os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita,
serão consideradas democráticas. Assim, uma decisão que fosse contrária ao matrimônio igualitário continu-
aria sendo democrática, uma vez que passou pelo debate legislativo. Já para Dworkin, uma decisão legislativa
que não reconhecesse esse direito estaria ferindo o direito de uma minoria e precisaria passar pelo crivo do
Judiciário.

Waldron, igualmente, deveria levar em consideração que, embora a deliberação legislativa suposta-
mente deixe todos em situação de igualdade, nem todos possuem a mesma capacidade de influência, restan-
do claro que o legislativo também sofre pressões políticas e econômicas. Este foi um dos argumentos trazidos
por Dworkin em seu livro “A virtude soberana”, em que reconhece que há uma diferença de influência, no
processo político, que determinados grupos possuem em relação a outros. Dessa forma, embora o voto dos
eleitores tenha o mesmo impacto, nem todos conseguem exercer a mesma influência no processo político
(DWORKIN, 2005, p. 270-271). Assim, considerando que o parlamento pode traduzir uma desigualdade
considerável de representação, defende Dworkin que a revisão judicial.

Proporciona um fórum político no qual os cidadãos possam discutir, se de-


sejarem, e, por conseguinte, o faz de maneira mais diretamente ligada à sua
vida moral do que o voto. Além disso, nesse fórum aumenta muito o incentivo
das minorias, que praticamente não têm nenhum incentivo na política co-
mum (DWORKIN, 2005, p. 288).

Quanto ao argumento de que a revisão judicial seria eficiente para proteger direitos das minorias
contra a tirania da maioria, Waldron argumenta que tirânico é sempre algo relativo. Sempre que um lado
discordar de algo, achará que o lado a favor estará sendo tirânico. Como exemplo, o autor cita a lei que regula
o financiamento de campanha. Os que se opõem à referida lei sempre a acharão tirânica (WALDRON, 2006,
p. 1395-1396).

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Direito(s) em debate.

2. O JUDICIÁRIO SERIA REALMENTE NEUTRO E IMPARCIAL? A VISÃO DE ROBERT DAHL.

Dahl inovou ao ter sido o primeiro a reconhecer a Suprema Corte norte-americana como sendo,
também, uma instituição política. Afinal, é comum que a Suprema Corte tenha de decidir casos em que há
severos desacordos dentro da sociedade, como nos casos em que estão em questão a regulação da economia
pelo Estado ou a segregação racial. Nesses casos, a decisão da Corte é política, e a sociedade precisa aceitar
esse fato (DAHL, 1957, p. 279-280).

Dahl demonstra que o entendimento da Suprema Corte está sempre alinhado com o da aliança
nacional dominante. Afinal, os ministros são indicados pelo presidente, que não indicaria um juiz que fosse
hostil a suas políticas públicas. Dessa forma, estaria a Corte menos propensa a obter sucesso se a iniciativa
bloqueada for a de uma maioria. Inclusive, uma maioria legislativa forte sempre conseguiria superar o veto
da Corte. Conclui alegando que a Corte não é eficiente protegendo direitos fundamentais e que tem poucos
poderes para afetar o curso da política nacional (DAHL, 1957, p. 284-286/ 288/ 292-293).

Como as investigações de Dahl se deram em 1957, questiono se ele teria tido as mesmas conclusões
se dita pesquisa tivesse sido levada a cabo nos dias atuais. Decisões como a aprovação do casamento iguali-
tário e a reforma da saúde afetaram fortemente o curso da política nacional norte-americana e protegeram
direitos de minorias, mas são decisões que também estavam totalmente alinhadas com as políticas do exe-
cutivo, o que talvez comprove a tese de que o judiciário se alia à aliança nacional dominante. É possível que
a Suprema Corte apenas tenha protegido direitos fundamentais de minorias, nesses casos, porque a aliança
nacional dominante tem viés progressista.

A teoria de Dahl também põe, por água abaixo, o argumento dos defensores da revisão judicial - como
Dworkin - de que seria melhor que o Judiciário decidisse as questões importantes, pois seria uma instituição
neutra, diferentemente do legislativo, que sofre pressões políticas e econômicas. Ao demonstrar que o enten-
dimento da Suprema Corte tende a se alinhar com o da aliança nacional dominante, o status de “neutralida-
de” da instituição é posto, claramente, em cheque.

CONCLUSÃO

É difícil se posicionar quanto a quem deve dar a última palavra, se o judiciário ou o legislativo. Tanto
os argumentos de Dworkin a favor da revisão judicial, como os argumentos de Dahl e Waldron, contrários a
dito instituto, são bastante convincentes.

Talvez os que defendam a revisão judicial, como Dworkin, em boa medida, estejam insatisfeitos com
a democracia representativa. Para que se possa defender vigorosamente os legisladores, é preciso acreditar
que eles realmente estão sendo representativos. É evidente que, em uma grande quantidade de casos, foi o
Judiciário quem protegeu o direito das minorias, como recentemente, quando a Suprema Corte norte-ame-
ricana reconheceu o matrimônio igualitário.

É verdade, igualmente, que, no citado caso do matrimônio igualitário, dita decisão estava totalmente
alinhada com as políticas do presidente, o que favorece a tese de Dahl de que o Judiciário tende a se alinhar
à aliança nacional dominante. Talvez a revisão judicial passe a ser mais bem vista, aceita e preferida, em
tempos em que o executivo e o judiciário têm viés mais progressista, situação em que irão tender a, de fato,
proteger os direitos das minorias não reconhecidos pelo legislativo.

No que diz respeito à legitimidade democrática, difícil contestar o argumento de Waldron de que os
legisladores são os legitimados, uma vez que foram eleitos diretamente pelos cidadãos e, portanto, são res-
ponsivos perante estes. Por outro lado, ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa
forma, termina por considerar que, mesmo as decisões que contrariem os direitos das minorias, se delibera-
das por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas.

99
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Por fim, não pretendo posicionar-me em favor ou contrariamente a nenhuma das posições. Os argu-
mentos dos três autores estudados demostram como, a depender do aspecto a ser observado, uma das posi-
ções parece mais acertada que a outra, o que torna difícil a construção de um posicionamento final.

BIBLIOGRAFIA

DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: The Supreme Court as a national policy-maker. The Jour-
nal of Public Law, n. 6, 1957, p. 279-295.

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de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 305-344.

100
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA


SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

ARTHUR ALBUQUERQUE DE ANDRADE


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela
Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com

ANA CATARINA SILVA LEMOS PAZ


Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com

LUIZ MANOEL DA SILVA JÚNIOR


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. luizmsj@live.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. O Transconstitucionalismo; 2. O Novo Constitucionalismo latina-ameri-


cano; 3. A interseção entre o Transconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo; 4. A possibilidade
do Transconstitucionalismo na América Latina servir à autonomia da cultura nativa, um dos objetivos
do Novo Constitucionalismo; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

De acordo com Luhmann, a formação do Estado moderno ocorreu mediante a diferenciação funcio-
nal da sociedade. Manifesta-se, inicialmente, no sistema político e a posteriori, no econômico e no jurídico.
A partir da distinção sistêmica, são construídos os paradigmas modernos: a soberania (“staatgeralst”), a eco-
nomia de mercado e o monismo jurídico (GALINDO, 2006).

A sociedade contemporânea supera os paradigmas mencionados. A Guerra Fria é considerada o mar-


co. Segundo o filósofo alemão Kurz, uma das consequências do fato histórico é a globalização e o agravamento
da crise das sólidas instituições elaboradas na modernidade. Aponta o surgimento de uma “postura social
niilista”, decorrente da incerteza desses paradigmas ocasionada pela citada crise. Estes são considerados
insuficientes para coordenar as democracias contemporâneas e os juristas passam a ter de reformulá-los
(GALINDO, 2006).

Isto porque a sociedade fragmenta-se e apresenta alta complexidade, em um descompasso com os


postulados do Estado, mormente o dos campos político e jurídico, os quais se encontram limitados geografi-
camente, em oposição aos demais (econômico, informativo, etc.).

Na lição de Wolkmer (1994), os mais prejudicados pela falência das instâncias política e jurídica são
os grupos vulneráveis. Estes passam a exigir o reconhecimento de um soberano jurídico para cada cultura,
no intuito de reverter o contexto de exclusão no qual se encontram devido à explanada falência.

101
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Funda-se, destarte, o pluralismo jurídico, um dos paradigmas contemporâneos do direito. Para ser
concretizado, explica Raquel Fajardo (2015), deve haver uma ruptura com o constitucionalismo monista
liberal do século XIX e com o constitucionalismo integracionista do século XX. Estabelecido o pluralismo
jurídico, diversos questionamentos vêm à tona.

1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO.

Segundo Marcelo Neves (2010), na sociedade hodierna, a partir da globalização, os problemas de di-
reitos humanos e regulamentação do poder, por exemplo, interessam a diversos ordenamentos jurídicos: na-
cionais, locais, transnacionais, supranacionais e internacionais. O pluralismo jurídico, ao reconhecer novas
ordens normativas, acentua a rede de tutela multinível de direitos (fundamentais) exposta. Nesse contexto,
César Garavito (2015) questiona: qual(is) o(s) método(s) para compatibilizar os inúmeros ordenamentos,
posto a diversidade e, por vezes, a incompatibilidade entre eles? O presente artigo destaca a teoria de Neves,
o transconstitucionalismo.

O método desenvolvido por Neves, o transconstitucionalismo, intenta construir pontes transversais


entre os ordenamentos jurídicos dissonantes. Estes, para alcançar um consenso, devem, a princípio, se con-
ter e perceber a própria incapacidade em ter uma visão holística da celeuma. Trata-se do denominado “ponto
cego”, presente em todas as jurisdições, o qual se torna visível a partir de outros. Em paralelo, deve-se com-
preender a inexistência de uma última ratio entre os ordenamentos, mais um motivo para ser estabelecido
um diálogo entre eles.

No que tange à América Latina, sobressaem-se as relações transversais estabelecidas entre as ordens
locais indígenas e os Estados. Isto porque, na última década, há surgido, no continente, um movimento
constitucional denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, pelo qual se intenciona garantir a
autonomia das tribos indígenas perante os tribunais estatais: propósito semelhante ao do transconstituciona-
lismo referente à problemática. O vínculo aludido, então, esclarece a possibilidade de estudar o método e o
movimento conjuntamente.

No supracitado estudo, entretanto, notam-se pontos divergentes. É interessante, tanto para o trans-
constitucionalismo, como para o novo constitucionalismo, o alcance de uma compatibilização dos menciona-
dos pontos, a fim de que possam se fortificar reciprocamente.

2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO.

Na América Latina, a inclusão almejada pelas tribos indígenas visadas pelo Novo Constitucionalismo
pressupõe o reconhecimento de um ordenamento jurídico próprio para cada cultura presente dentro dos
Estados. Diante dessa nova configuração, os Estados nacionais são substituídos pelos plurinacionais.

Na realidade fática da região, esse projeto não aconteceu igualmente. Ao ponderar o reconhecimento
da diversidade étnica nas Constituições vigentes da América Latina, Rodrigo Uprimny (2011) as categoriza
em três diferentes tipos. O primeiro reúne as adeptas de um “pluralismo liberal”, as quais não reconhecem
nenhum direito especial às comunidades discriminadas. Entre outros Estados, incluem-se nesse grupo o
Chile, o Uruguai e a Costa Rica. O segundo promove o multiculturalismo, máxime através da jurisprudência
dos Tribunais constitucionais. A Colômbia é um exemplo nítido. Quanto aos dois primeiros grupos, é frequen-
te o debate concernente à autenticidade dos processos constitucionais. Indaga-se se os citados ordenamentos
jurídicos foram construídos como resposta às demandas e aos desafios sócio-políticos das regiões nas quais se
encontram; ou se são uma tentativa de copiar ideais eficazes na conjuntura europeia, contudo ineficazes na
complexa realidade latino-americana (GARAVITO, 2015).

O terceiro tipo de Constituição, por fim, remete ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano e, por
conseguinte, ao Equador e à Bolívia. Estas não se restringem a promulgar direitos característicos de um Es-
tado multicultural, porém ainda unitário, precipuamente no tocante às diversas nações nele presentes. Inau-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

guram, pois, um Estado plurinacional e intercultural. Em termos práticos, essas Constituições reconhecem
a autodeterminação dos povos indígenas, ao atribuir-lhes circunscrições próprias de representação política e
judiciária. Ademais, institucionalizam as línguas e os elementos da cultura nativa (UPRIMNY, 2011).

Isto posto, vale salientar a existência de outras classificações com critérios deveras semelhantes, tal
qual a elaborada por Raquel Fajardo (2011). Analogamente, a jurista divide as Constituições em três ciclos.
A ideia é situar os Estados de acordo com o grau de avanço nas questões relacionadas ao pluralismo. Nessa
linha, o primeiro ciclo apresenta as Cartas com menor propensão às demandas das comunidades ora trata-
das. O terceiro, por sua vez, dispõe os Estados com o maior reconhecimento às problemáticas advindas da
diversidade cultural.

3. A INTERSEÇÃO ENTRE O TRANSCONSTITUCIONALISMO E O NOVO CONSTITUCIONALISMO.

Diante do exposto, notam-se objetivos comuns entre o transconstitucionalismo e o novo constitucio-


nalismo. Ambos pretendem, em perspectivas diversas, garantir a autonomia de determinadas ordens jurídi-
cas comumente olvidadas no monismo jurídico estabelecido pelo modelo eurocêntrico moderno. O primeiro
como método e o segundo como fenômeno popular de reivindicação de um conjunto direitos. Sendo assim,
sustenta-se a hipótese de aplicar o mencionado método ao fenômeno aludido, a fim de promover uma inten-
sificação recíproca.

No próximo tópico, serão narrados litígios cuja resolução valeu-se do transconstitucionalismo e nos
quais um dos litigantes tratava-se de grupo(s) nativo(s). O intuito é sobrelevar a simbiose apontada, para
suscitar discussões sobre essa hipótese aos interessados tanto na efetivação do método transconstitucional
como no fenômeno do novo constitucionalismo no continente. Antes da narrativa, no entanto, salienta-se a
necessidade de aplicar o método de modo distinto. O motivo é a desigualdade de expor normas válidas entre
os indígenas e as demais ordens. Como atenta Neves (2010), há um risco destas se imporem àquelas. Ou
seja, o transconstitucionalismo, nesses casos, deve funcionar como um instrumento de empoderamento do
coletivo indígena, para que se consiga preservá-lo, assim como se faz com os demais.

Nas palavras de Marcelo Neves (2010):

Um outro lado do transconstitucionalismo aponta para a relação problemáti-


ca entre as ordens jurídicas estatais e as ordens extraestatais de coletividades
nativas, cujos pressupostos antropológico-culturais não se compatibilizam
com o modelo de constitucionalismo do Estado. Evidentemente, nesse caso,
trata-se de ordens “arcaicas” que não dispõem de princípios ou regras se-
cundárias de organização e, por conseguinte, não se enquadram no modelo
reflexivo do constitucionalismo. A rigor, elas não admitem problemas jurí-
dico-constitucionais de direitos humanos e de limitação jurídica do poder.
Ordens normativas dessa espécie exigem, quando entram em colisão com
as instituições da ordem jurídica constitucional de um Estado, um “trans-
constitucionalismo unilateral” de tolerância e, em certa medida, de apren-
dizado. Essa forma de transconstitucionalismo impõe-se, porque – embora
as referidas ordens jurídicas, em muitas de suas normas e práticas, se afas-
tem sensivelmente do modelo de direitos humanos e de limitação jurídica
do poder nos termos do sistema jurídico da sociedade mundial – a simples
outorga unilateral de “direitoshumanos” aos seus membros é contrária ao
transconstitucionalismo. Medidas nessa direção tendem a ter consequências
destrutivas sobre mentes e corpos, sendo contrárias ao próprio conceito de
direitos humanos.

103
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

4. A POSSIBILIDADE DO TRANSCONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA SERVIR À


AUTONOMIA DA CULTURA NATIVA, UM DOS OBJETIVOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO.

O transconstitucionalismo na América Latina é narrado em casos emblemáticos envolvendo as tribos


Suruahá, Yawanawá, Yanomami, Yakye Axa e Sawhoyamaxa. Sobre as três primeiros tribos, colaciona-se a
exposição do transconstitucionalista (NEVES, 2010):

Um dos casos mais delicados apresentou-se recentemente na relação entre


a ordem jurídica estatal brasileira e a ordem normativa dos índios Suruahá,
habitantes do Município de Tapauá, localizado no Estado do Amazonas, que
permaneceram isolados voluntariamente até os fins da década de 1970 (SE-
GATO, 2011, p. 363, 357-381). Conforme o direito consuetudinário dos Su-
ruahá, é obrigatório o homicídio dos recém-nascidos quando tenham alguma
deficiência física ou de saúde em geral. Em outra comunidade, a dos indí-
genas Yawanawá, localizada no Estado do Acre, na fronteira entre Brasil e
Peru, há uma ordem normativa consuetudinária que determina que se tire a
vida de um dos gêmeos recém-nascidos. Nesse contexto, também se tornou
público o fato de que práticas desse tipo eram comuns entre os Yanomami e
outras etnias indígenas. Essa situação levou a polêmicas, pois se tratava de
um conflito praticamente insolúvel entre direito de autonomia cultural e di-
reito à vida. O problema já tomara destaque na ocasião em que uma indígena
Yawanawá, em oficina de direitos humanos da Fundação Nacional do Índio,
em 2002, descreveu a obrigatoriedade, em sua comunidade, da prática de
homicídio de um dos gêmeos, apresentando-se como vítima dessa prática
jurídica costumeira (SEGATO, 2011, p. 357 et seq.). êxito, o contexto em que
foi elaborado e a discussão que engendrou apontam para um caso singular de
“diálogo” e colisão transconstitucional entre ordem jurídica estatal e ordens
normativas locais das comunidades indígenas.

Neves (2010), então, prossegue em uma análise crítica à problemática:

Os elaboradores e defensores do Projeto de Lei partiram primariamente da


absolutização do direito fundamental individual à vida, nos termos da moral
cristã ocidental. Secundariamente, também contribuiu para a proposição do
Projeto o direito fundamental da mãe à maternidade. Essa postura unilateral
pela imposição dos direitos individuais em detrimento da autonomia cultural
das comunidades não pareceu adequada para os que se manifestaram em
torno do problema em uma perspectiva antropológica mais abrangente. A
simples criminalização das práticas indígenas, em nome da defesa do direito
à vida, pode ser vista, outrossim, como um verdadeiro genocídio cultural, a
destruição da própria comunidade, destruindo suas crenças mais profundas.
[...]. As ponderações da antropóloga Rita Laura Segato contribuíram positiva-
mente para o esclarecimento dessa colisão de ordens jurídicas, enfatizando
a necessidade de um diálogo entre ordens normativas, em termos que se
enquadram em um modelo construtivo de transconstitucionalismo. No con-
texto do debate, Segato (2011, p. 358) reconheceu que tinha diante de si “a
tarefa ingrata de argumentar contra essa lei, mas, ao mesmo tempo, de fazer
uma forte aposta na transformação do costume”. No âmbito de sua argumen-
tação, ela invocou pesquisa empírica sobre os Suruahá, na qual se verificou
que, em um grupo de 143 membros da comunidade indígena, entre 2003 e
2005, houve dezesseis nascimentos, vinte e três suicídios, dois homicídios de
recém-nascidos (denominados pelos antropólogos “infanticídio”, sem o senti-
do técnico-jurídico do tipo penal) e uma morte por doença. Ou seja, enquan-
to 7,6% das mortes ocorreram por “infanticídio”, houve 57,6% de mortes por
suicídio entre os Suruahá. Essa situação aponta uma compreensão da vida
bem distinta da concepção cristã ocidental. Entre essa comunidade indíge-
na, a vida só tem sentido se não for marcada por excessivo sofrimento para

104
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

o indivíduo e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena. Assim se


justificaria o homicídio de recém-nascido em determinados casos (SEGATO,
2011, p. 364 et seq.). O significado atribuído à vida e à morte pelos Suruahá
não seria menos digno do que o sentido que lhes atribui o cristianismo.

No que diz respeito às duas últimas tribos, Neves (2010) é claro:

“Parece-me de uma relevância especial a decisão da Corte Interamericana


de Direito Humanos, nos julgamentos dos casos Yakye Axa vs. Paraguai e
Sawhoyamaxa vs. Paraguai30 (CORTEIDH, 2005b), no qual se decidiu sobre
o direito de propriedade sobre territórios das comunidades indígenas Yakye
Axa e Sawhoyamaxa, localizadas no Paraguai. Nesses interessantes casos, a
CorteIDH decidiu não conforme o conceito técnico-jurídico de propriedade
privada definido nos termos do direito constitucional estatal, mas sim levan-
do em conta primariamente a noção cultural de “propriedade ancestral” das
comunidades indígenas sobre os respectivos territórios, sedimentada histori-
camente em suas tradições.
Assim, deixando em segundo plano um direito fundamental assegurado cons-
titucionalmente no plano estatal, a CorteIDH argumentou favoravelmente
aos direitos de comunidade local extraestatal sobre o seu território, para as-
segurar direitos humanos garantidos no nível internacional. Esse entrela-
çamento multiangular em torno dos direitos humanos e fundamentais não
seria possível, se não houvesse uma disposição, nas diversas ordens, especial-
mente na estatal, para ceder às exigências das perspectivas de outras ordens
normativas em relação ao significado e abrangência de direitos colidentes.
[...]. Parece-me que os argumentos apresentados no item anterior não per-
dem o seu significado em virtude dessa referência ao direito internacional.
Nesses casos, cabe não apenas uma releitura complexamente adequada tan-
to das normas estatais de direitos fundamentais quanto das normas interna-
cionais de direitos humanos. Um universalismo superficial dos direitos hu-
manos, baseado linearmente em uma certa concepção ocidental ontológica
de tais direitos, é incompatível com um “diálogo” transconstitucional com
ordens nativas que não correspondem a esse modelo. Ao contrário, a negação
de um diálogo construtivo com as ordens indígenas em torno dessas questões
delicadas é contrária aos próprios direitos humanos, pois implicaria uma “ul-
tracriminalização” de toda a comunidade de autores e coautores dos respec-
tivos atos, afetando-lhes indiscriminadamente corpo e mente mediante uma
ingerência destrutiva. No âmbito de um transconstitucionalismo positivo im-
põe-se, nesses casos, uma disposição das ordens estatais e internacionais de
surpreender-se em um aprendizado recíproco com a experiência do outro, o
nativo em sua autocompreensão.

Nesse ponto, discute a questão do relativismo e do universalismo dos direitos humanos. Como per-
cebe-se, é um debate comum tanto ao transconstitucionalismo, como ao novo constitucionalismo, uma vez
que este propõe um Estado plurinacional, ou seja, com diversas jurisdições. Isto posto, é imperioso atentar
para a importância de se encontrar pontos de interseção entre as culturas constitucionais, a qual não implica
necessariamente em uma uniformidade teórica.

O dilema entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos possui uma relevância particular
para a América Latina. No ensinamento de Julieta Ripoll (2015), a região padece de uma grande instabilida-
de sobre “quem é e quem não é um ‘ser humano’” desde a colonização europeia, quando aos índios não era
atribuída a “humanidade” e tampouco direitos. Diante desse quadro, João Paulo Allain Teixeira (2000) enten-
de o relativismo como um modo de garantir aos povos historicamente dominados a emancipação da cultura
e, portanto, da própria coletividade. Isto porque o universalismo, conforme explanado, tende a valorizar as
sociedades dominantes em detrimento das demais – em oposição ao relativismo.

105
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A mesma lógica, em diferentes proporções, da preservação das tribos indígenas pode ser aplicada em
outros casos. Entre os quais os negros, vítimas de racismo; da memória dos torturados, nas ditaduras recen-
tes, olvidadas pelo Estado; dos moradores de favelas das capitais brasileiras frente às ações abusivas da Polícia
Militar. São contextos, por vezes, excluídos de direitos e, portanto, ausentes de humanos.

CONCLUSÃO

O transconstitucionalismo é originariamente concebido sob a pretensão de promover um diálogo,


cujos interlocutores estariam posicionados igualmente. Nesse sentido, Neves afirma haver poucos Estados
capazes de aplica-lo. Contudo, em um desdobramento do conceito, amplia a ideia de diálogo para a de aber-
tura a novas razões normativas, sem o estabelecimento de uma final ou superior. Esse aprendizado converge
com o novo constitucionalismo no que concerne à reformulação do Judiciário nos pretendidos Estados pluri-
nacionais. O presente artigo demonstra a intersecção entre o método e o fenômeno. Por óbvio, trata-se tanto
de uma teoria, como de uma prática assaz complexa e, portanto, impossível de ser verticalizada dentro dos
limites inerentes a esse artigo. Este ambiciona ser o ponto de partido para futuras discussões sobre a hipótese
avençada e assim o faz.

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WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no direito. São Pau-
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106
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA:


UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL

BRUNA DE OLIVEIRA MACIEL


Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com
concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos
Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal. brunaolimaciel@
gmail.com

JAQUELINE MARIA DE VASCONCELOS


Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional,
pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa
Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com

SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A regulamentação do direito comunitário e brasileiro no combate


à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil; 3. Costurando sonhos: Possíveis reflexos
da adesão da Bolívia ao Mercosul; Considerações finais; Bibliografia

CONTEXTUALIZAÇÃO

A busca pelo crescimento econômico por meio da formação de blocos regionais é uma estratégia que
foi, e continua sendo, adotada por diversos países. A contextura do atual cenário econômico global se carac-
teriza pela existência de uma ampla mobilidade no fluxo de capitais e dos demais fatores de produção.

A instalação de um capitalismo global é inegável, sendo possível visualizar uma dupla e contraditória
dinâmica entre concentração e fragmentação. Onde se tem, por um lado, uma voraz competitividade que,
por meio de fusões e aquisições empresariais, visa a concentração de capital em busca de reconhecimento
e liderança; de outro lado, a fragmentação da produção em escala mundial, por meio dos processos de sub-
contratação, terceirização e informalização do trabalho, para suprir a demanda desse mercado globalizado
(DUPAS, 1999).

Para legitimar o pretendido crescimento econômico frente ao desenvolvimento humano, o Tratado


de Assunção assinado em 26 de março de 1991, pelas Repúblicas da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai,
buscou deixar consignado em seu preâmbulo uma preocupação (retórica e falaciosa) acerca da justiça social.

Na verdade, a questão social toma relevância nos espaços regionais, especificamente no Mercosul,
na medida em que a abertura de mercados mostra ampla repercussão na estrutura dos empregos. Os tra-
balhadores passam a ser o único fator de produção imóvel, enquanto capital e meios de produção circulam
livremente. Desta maneira, surge o chamado “dumping social”, em virtude da disparidade do nível de desen-
volvimento da legislação sócio laboral de cada um dos países signatários do Mercosul.

Nesse sentido, a iminente adesão da Bolívia ao Mercosul acarreta uma fundada preocupação acerca
de seus reflexos no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil no Brasil. Tendo em
vista que os problemas flutuantes sobre as imigrações bolivianas com intuito laboral, são flagrantes e existen-
tes desde a intensificação do fluxo migratório de bolivianos na década de 80 (ILLES, et. al., 2008).

107
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O acordo entre Brasil e Seul, que teve como objetivo “aliviar o desemprego que atingia a Coreia do
Sul – em função da grande leva de pessoas que fugiram do regime comunista da Coreia do Norte, inflando a
oferta de mão-de-obra no sul –” (ROSSI, 2005, p. 22), marca as raízes da celeuma.

A primeira leva de coreanos desembarcou no porto de Santos no dia 12 de fevereiro de 1963, do navio
Tjitjalenk, sendo destinados ao comércio de roupas intermediado pelos judeus, proprietários de grandes lojas
do ramo. Os coreanos foram ousados, investiram na confecção de peças e na produção familiar, recebendo
maior abertura no momento em que os judeus passaram a trabalhar em outros segmentos. O mercado pas-
sou a exigir uma produção em larga escala concomitante ao período em que os bolivianos fugiam da situação
crítica de seu país, sendo rapidamente absorvidos pela demanda coreana (ROSSI, 2005).

Fausto Brito (1995) defende em seus estudos a existência da chamada ilusão imigratória contida no
imigrante internacional. Onde de um lado se está diante de uma racionalidade imersa na decisão de emigrar
e por outro lado, há a consideração (ou miragem) das condições da região escolhida.

Atualmente a imagem acerca da existência de trabalho digno no Brasil auxiliado à expectativa de as-
censão social, continua presente na percepção do povo boliviano, em especial, os provenientes da região de
La Paz e Cochabamba (SILVA, 2006).

O fato é que as senzalas do século XXI revelam um cenário tão crítico quanto o de outrora, caracteri-
zado, acima de tudo, pela ausência de efetividade das proteções constitucionais sócio laborais para esse nicho
específico de trabalhadores, considerados como suspeitos para segurança nacional diante da interpretação do
anacrónico Estatuto do Estrangeiro.

Com isso, a presente pesquisa se destina a extrair as perspectivas pragmáticas de proteção em aspec-
tos mínimos de desenvolvimento humano para os imigrantes bolivianos com a iminente expansão do bloco
econômico.

1. A REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO E BRASILEIRO NO COMBATE À


ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA TÊXTIL.

Desde a formação do Mercosul, a ideia de livre circulação de pessoas encontrava acepções vagas e di-
vergentes entre os integrantes do bloco. A livre circulação em um Mercado Comum, de acordo com o modelo
europeu, deverá implicar na formação de um mercado de trabalho único, o qual, por força da incorporação
normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, deverá se pautar pela igualdade de direitos entre os
trabalhadores do bloco, o que se reflete numa vedação de discriminação do trabalhador em função de sua
nacionalidade.

No intuito de amenizar o impacto social da circulação de pessoas entre países com diferentes padrões
socioeconômicos e jurídicos, em dezembro de 1991, o Encontro dos Ministros do Trabalho do Mercosul su-
geriu a criação do Subgrupo nº 11 como órgão consultivo na estrutura do Mercosul, aprovada na reunião do
Conselho do Mercado Comum em 17/11/1991.

O principal objetivo do Subgrupo é que todos os trabalhadores, independentemente da origem, pos-


sam se beneficiar da proteção dada pela legislação trabalhista do país onde esteja trabalhando, bem como da
integração dos sistemas previdenciários. Diante da dificuldade de uniformização da legislação, de forma a
aplicar o mesmo texto legal para todos os integrantes, em um bloco econômico que não reconhece instancias
supranacionais, a meta do órgão é a harmonização das normas de cunho sócio laboral.

No trabalho de harmonização legislativa das condições de trabalho no Mercosul destacam-se as ati-


vidades da Comissão Temática nº 1 do antigo Subgrupo nº 11, que tem por objeto a análise comparativa dos
sistemas de relações de trabalho entre os países integrantes. Para a verificação das simetrias e assimetrias a
comissão vem se socorrendo de um método comparativo genérico, da legislação como um todo.

108
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

José Alves de Paula, coordenador do estudo em 1992 apontava a vantagem do método, uma vez que,
para a quantificação dos custos trabalhistas e encargos sociais, é possível a manutenção de vantagens maiores
oferecidas por alguns países, uma vez compensadas por outras menores. Assim, o trabalho de harmonização
prescinde da convergência de cada instituto individualmente (NASCIMENTO, 2004).

Para que a livre circulação de trabalhadores possa se tornar uma realidade no Mercosul, não é sufi-
ciente a liberdade de acesso ao emprego. A circulação do trabalhador depende, sobretudo, das condições de
permanência no país onde se trabalha.

Atualmente, a discussão da eficácia jurídica dos direitos trabalhistas no espectro internacional passa
pela conveniência de sua vinculação ao comércio internacional. A influência do comércio nos custos laborais
se revela na medida em que países que abrem mão do maior número de direitos trabalhistas conseguem des-
locar para si determinados setores produtivos, caracterizando o chamado “dumping social”.

No intuito de estabelecer patamares mínimos de direitos trabalhistas, foi aprovada, em 10 de dezem-


bro de 1998, a Declaração Sócio Laboral do Mercosul, trazendo parâmetros a serem adotados como diretrizes
na atividade legislativa e na elaboração de políticas públicas de cada país integrante. Para garantir a efetivi-
dade do direito de livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário merece também destaque o Acordo
Previdenciário Multilateral, aprovado por meio do Decreto n° 19/97 do Conselho Mercado Comum.

Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Ministra do TST, defende que a Declaração Sócio Laboral do Mer-
cosul não se confunde com uma decisão do Conselho Mercado Comum, regida pelo direito comunitário (PE-
DUZZI, 2005). Tratando-se de um instrumento internacional assinado pelos presidentes dos países membros
deve ser regida pelas normas gerais de Direito Internacional Público, respeitada a característica de tratar-se
de norma de consagração de direitos humanos sociais.

A noção de bloco de constitucionalidade está presente no Brasil nas discussões sobre controle de
constitucionalidade e foi tratada com grande clareza pelo Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 595-ES,
na qual discorre sobre a existência de uma tendência ampliativa de, no conceito de Constituição, da seguinte
forma:

Considerados não apenas os conceitos de índole positiva, expressamente pro-


clamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Cons-
tituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em
face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os
princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que
informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado (TAVARES, 2005, p, 99).

A aplicabilidade da teoria do bloco de constitucionalidade se fortaleceu com o advento da Emenda


Constitucional nº 45 de 08 de dezembro 2004, a qual confere aos tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos o tratamento de norma formalmente constitucional, quando incorporados ao ordenamento
interno segundo o processo legislativo das emendas constitucionais.

A discussão sobre a hierarquia normativa da Declaração Sócio Laboral do Mercosul é relevante na


medida em que a legislação nacional que trata do trabalhador migrante apresenta inúmeros óbices à meta da
livre circulação. No Brasil, a questão do trabalhador estrangeiro, em linhas gerais, pela Lei nº 6.815 de 19 de
agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, regulamentada pelo Decreto 86.715 de 10 de dezembro de 1981.

Cumpre destacar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 352 e seguintes, segundo um
princípio de nacionalização do trabalho vigente na época de sua promulgação, instituiu uma proporção de
dois terços de empregados brasileiros nas empresas nacionais.

Além disso, o Constituinte de 1998, em prol da segurança e do interesse nacionais estabeleceu a ve-
dação de alguns cargos e atividades para estrangeiros. No art. 12, § 3º estão enumerados determinados cargos
privativos de brasileiros natos, quais sejam o de Presidente da República, e, por conseguinte, a ocupar a linha
sucessória de substituições, o de Vice Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Presidente do Senado Federal e de Ministro do STF; assim como os cargos de Carreira Diplomática, de Oficial
das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa.

A Constituição Federal restringe ainda aos estrangeiros a propriedade de empresa jornalística e de


rádio difusão sonora e de sons e imagens. De acordo com a redação dada ao art. 222 pela Emenda Constitu-
cional nº 36 de 28 de maio de 2002, a propriedade está restrita a brasileiros natos ou naturalizados há mais de
dez anos e a pessoas jurídicas constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham sede no país. Neste último
caso, não podendo a participação do capital estrangeiro exceder trinta por cento do capital total e volante das
empresas, conforme regulamentação do §1º do art. 222 dada pela Lei 10.610 de 20/12/02.

Apontadas as limitações constitucionais ao exercício de determinadas atividades laborais pelo estran-


geiro, observa-se que a questão do trabalhador migrante não mereceu tratamento específico pelo legislador
infraconstitucional. O Estatuto do Estrangeiro mostra-se anacrônico no trato da questão, pois não se compa-
tibiliza com a realidade das disposições comunitárias.

As hipóteses de concessão de vistos correspondem a uma classificação de ingressos que ignora o di-
reito à livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário: trânsito, turismo, temporário e permanente.

O visto temporário, tratado pelo art.13 do Estatuto do Estrangeiro, abrange apenas determinadas ca-
tegorias profissionais especializadas, destinando-se ao estrangeiro em viagem cultural ou missão de estudos;
em viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; na condição de estudante; na condição de
cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo
brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agencia noticiosa estrangeira;
e na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação
ou ordem religiosa.

Por outro lado, o visto permanente restringe ainda mais a possibilidade de residência, posto que só
será conferido a quem seja tido como mão-de-obra especializada, capaz de contribuir com a política nacional
de desenvolvimento do país, incrementando a produtividade e assimilação de tecnologia, dentre outros requi-
sitos a serem estipulados por meio de resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração. Em todos os casos, o
estrangeiro trabalhador está proibido de exercer diversas atividades elencadas no art. 106 do Estatuto.

O que se observa no Brasil é que seja para o visto permanente ou temporário, a entrada do trabalha-
dor migrante está sempre condicionada à solicitação da empresa interessada em contratar, conforme dispos-
to na Resolução Administrativa nº 07 de 06 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Imigração.

A mais recente Resolução Normativa do Conselho é a de nº 64 de 13 de setembro de 2005 e trata


dos requisitos para quem pretenda vir ao Brasil sob visto temporário. A resolução especifica exigências de
comprovação da qualificação e/ou experiência profissional compatível com a atividade que irá ser exercida a
pedido da empresa requerente.

Por meio de diplomas, certificados ou declarações, o estrangeiro deverá comprovar experiência de


três anos, para atividades artísticas e culturais que independam de formação escolar; dois anos de experiên-
cia e escolaridade mínima de nove anos para o exercício de profissão de nível médio; experiência de um ano
a partir da conclusão da graduação para profissões de nível superior; ou a conclusão de curso de mestrado
na área que irá desempenhar.

Torna-se evidente que só mão-de-obra bastante qualificada será capaz de preencher tais requisitos. A
livre circulação é ficcional para o trabalhador de baixa qualificação. No próprio âmbito comunitário, os meca-
nismos de circulação do trabalhador se concentram na área de serviços. No ano de 2000 o Conselho Mercado
Comum aprovou o Decreto nº 48, que permite dispensa de visto a determinadas categorias profissionais,
como artistas, professores, cientistas, profissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver
suas atividades por até noventa dias corridos, prorrogáveis por igual período, no limite de cento e oitenta dias
anuais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Quanto ao reconhecimento de títulos, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 800 de 2003,
incorporou a sua ordem jurídica o “Acordo de admissão de títulos e graus universitários para o exercício de
atividades acadêmicas no Estados Partes do Mercosul” por meio do qual se estabelece uma carga horária mí-
nima para reconhecimento de títulos de graduação e pós-graduação, bem como um Sistema de Informação
e Comunicação do Mercosul, que proporcionará informação sobre as agências credenciadoras dos Países, os
critérios de avaliação e os cursos credenciados.

Por fim, a mais recente conquista em prol da livre circulação, com reflexos no trabalhador, que en-
controu acolhida na ordem jurídica interna foi o “Acordo sobre Regularização Migratória Interna de Cidadãos
do Mercosul”, por meio do Decreto Legislativo nº 928 de 2005, por meio do qual se busca a facilitação dos
trâmites migratórios para os cidadãos dos Estados Partes do MERCOSUL, no sentido de permitir sua regula-
rização migratória sem a necessidade de regressar a seu país de origem.

O Estado brasileiro reconhece o problema do trabalho análogo ao de escravo e a exploração de bolivia-


nos em oficinas de costura e tem buscado implementar iniciativas de inclusão desses imigrantes à sociedade
brasileira. Exemplo disso foi a sanção do projeto de lei 1.664/2007, responsável pela anistia e legalização de
milhares de migrantes no país.

Nessa linha ainda se segue o projeto de lei n.º 288/2013 do senador Aloysio Nunes Ferreira, já reme-
tida à Câmara dos Deputados, buscando, dentre outros, a efetiva substituição do Estatuto do Estrangeiro,
como é possível extrair da explicação da ementa da iminente lei:

Explicação da Ementa: Dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e


regula a entrada e estada de estrangeiros no Brasil, revogando, em parte, o
Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80). Regula os tipos de visto necessá-
rios para ingresso de estrangeiros no país. Estabelece os casos e os procedi-
mentos de repatriação, deportação e expulsão. Dispõe sobre a naturalização,
suas condições e espécies e os casos de perda de nacionalidade. Trata da
situação do emigrante brasileiro no exterior. Tipifica o crime de tráfico inter-
nacional de pessoas para fins de migração e infrações administrativas relati-
vas a entrada irregular no país. Altera a Lei nº 8.213/91 (Previdência Social),
para facilitar a contribuição à Previdência do trabalhador brasileiro referente
ao período em que tenha trabalhado em país estrangeiro (BRASIL, 2013).

2. COSTURANDO SONHOS: POSSÍVEIS REFLEXOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL.

Segundo Rossi (2005), a maior parte dos funcionários utilizados na indústria têxtil brasileira é com-
posta pelos imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. São ele paraguaios, chilenos, bolivia-
nos, peruanos que saem dos seus países de origem buscando a sobrevivência do sonho de uma vida melhor.
Atualmente é possível constatar que entre os hispano-americanos, os imigrantes bolivianos no Brasil são a
maioria, localizados, em especial, no estado de São Paulo.

De acordo com os dados trazidos por Silva (2008), no Censo de 2000 houve o registro de 20.388 imi-
grantes bolivianos que residiam no Brasil e no Censo de 2010, já se tinha 38.826 o que constitui um aumento
de 90,43% somente naquele período.

Do ponto de vista espacial, os bolivianos (as) estão concentrados em bairros


da Zona Central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cam-
buci, Mooca, entre outros. Entretanto, há também uma significativa presen-
ça deles em bairros da Zona Leste, como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera,
Cangaíba, Engenheiro Goulart, Ermelino Matarazzo, Guaianases, São Ma-
teus, e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa
Verde, Cachoeirinha, entre outros. Entretanto, nos últimos anos, a presença
de bolivianos extrapolou os limites do município de São Paulo, podendo ser
encontrada em cidades como Guarulhos, Osasco, Santo André, Diadema, e

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

em outras cidades do interior paulista, como Jundiaí, Campinas, Americana,


entre outras (SILVA, 2006, p. 160).

Nesse ponto, toma-se cuidado para que com o exposto não se chegue a uma falsa premissa. Pois é co-
mum e falacioso deduzir que o processo migratório ocorre de forma espontânea, ao livre arbítrio das pessoas
que vão em busca de melhores condições. Ocorre que esse processo é, na verdade, induzido. Observe que a
Bolívia é um dos países mais pobres da América Latina. Em sua própria pátria os bolivianos são expostos e
submetidos a atividades laborais precárias, sem perspectiva de crescimento e sem condições dignas vida, são
coagidos pelo próprio meio no qual estão inseridos a migrar, para que sejam componentes efetivos do sistema
capitalista (MARINUCCI, 2005).

Nota-se que a mão-de-obra boliviana é estratégica para alimentar esse sistema. Os donos das oficinas
de costura se utilizam dos sonhos que envolvem a ascensão social e se projetam para os imigrantes como se
fossem os responsáveis pelo resgate de uma vida sem perspectivas.

Dessa forma, diferentemente dos escravos ligados à produção rural da fronteira agrícola da Amazônia,
que sofrem intensiva e constante coação física, a submissão à condição degradante e de superexploração dos
bolivianos na indústria têxtil se dá por meios indiretos de coação moral e psicológica. “Em nome da fidelidade
e da possibilidade de trabalhar, o imigrante clandestino exerce um contrato de trabalho verbal no qual ele é
remunerado por peça, totalizando um salário-hora muito abaixo da mão de obra local e exercendo uma jor-
nada extensa de trabalho, que pode atingir 16 ou 18 horas por dia” (CACCIAMALI, AZEVEDO, 2005, p.137).

Não obstante, ainda é propagado um sentimento de insegurança já existente. Ou seja, os bolivianos


que estão de forma irregular no Brasil passam a ser constantemente amedrontados no sentido de que a qual-
quer momento podem ser abordados pela polícia federal e consequentemente deportados. Com isso, sabe-se
o porquê de a mão-de-obra local ser preterida frente à boliviana. O empregado do meio urbano brasileiro,
que é envolvido por um ambiente mais protecionista conquanto à legislação trabalhista, visualiza de forma
mais racional a exploração submetida. Sabe-se que se porventura for submetido ao trabalho degradante, em
nenhum momento os direitos trabalhistas serão negados (SILVA, 1995).

Teoricamente, tanto a Bolívia quanto o Brasil trazem um arcabouço normativo de repressão ao tra-
balho escravo contemporâneo. Na dicção dos artigos 8° e 5° da Constituição boliviana de 1967, tem-se de
forma expressa a proibição do trabalho forçado. No Brasil, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa
humana constituem o próprio fundamento da República Federativa, sem olvidar dos diversos dispositivos do
código penal brasileiro e dos compromissos internacionais firmados, como: a Convenção das Nações Unidas
sobre Escravatura (1926), promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966; a convenção nº 29 da Organização In-
ternacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 41.721/1957 e a Convenção
nº 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Abolição do Trabalho Forçado, promulgada pelo
Decreto nº 58.822/1966 (MATTIOLI, 2015).

Com isso, nota-se que o abismo entre a teoria e a prática consiste justamente na ineficácia dos dispo-
sitivos jurídicos existentes e/ou na prevalência do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1981) que trata os imi-
grantes como inimigos da segurança nacional, favorecendo a clandestinidade e os altos custos burocráticos
de mudança territorial e é justamente nesse aspecto que se visualiza os possíveis reflexos da adesão da Bolívia
como membro pleno do Mercosul.

Segundo o jornal El País (2015), todos os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e
Venezuela) já assinaram na cúpula de Brasília um novo protocolo de adesão à união aduaneira. Na verdade,
esse acordo já havia sido firmado em 2012, mas o aval do Paraguai não foi possível devido à sua suspensão do
bloco decorrente da destituição do presidente Fernando Lugo, sendo o fato avaliado pelo Mercosul como uma
afronta aos princípios democráticos que norteiam o bloco. Hoje para o ingresso do sexto membro ao bloco,
necessita-se apenas da ratificação dos Congressos do Paraguai e do Brasil.

Sabe-se que o Mercosul é constituído através de acordos sejam eles regionais ou bilaterais sobre a
eliminação de direitos aduaneiros e restrições alfandegárias à circulação de mercadorias; a livre circulação

112
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de bens, serviços, fatores produtivos. Dentre outros fatores, o Mercosul é dependente de mercado comum de
trabalho e por isso, busca viabilizar a liberdade de acesso dos trabalhadores entre os Estados-Membros, com
um tratamento paritário e previdenciário.

O direito de livre circulação de trabalhadores encontra fundamento no prin-


cípio da não discriminação, que comporta a igualdade de tratamento entre
todos os trabalhadores que desempenham sua atividade no âmbito de um
Mercado Comum, superando-se todo discriminação quanto aos trabalhado-
res estrangeiros face aos trabalhadores nacionais. A discriminação cria difi-
culdade para a livre circulação e pode criar «reservas de mercado» para os
trabalhadores nacionais (no Brasil, recordem-se que vigora, atualmente, a
Lei 6.815/80 Estatuto do Estrangeiro, que define a situação jurídica do es-
trangeiro do Brasil e cria o Conselho Nacional de Imigração; o Decreto lei
691/69, que dispõe sobre técnicos estrangeiros; a Lei 7.064/82, que trata do
deslocamento de trabalhadores contratados por empresas de engenharia que
prestam serviços em outros países) (MATTIOLI, 2015, p. 4).

Nesse passo, observa-se que o processo de integração do Mercosul não incrementa apenas as relações
comerciais entre os Estados em uma economia mais globalizada, os reflexos são mais amplos do que esses.
A adesão de novos membros ao bloco anuncia também um nível mais elevado do ponto de vista humanitário
dentro do mercado comum, no qual compreende a livre circulação de pessoas.

A livre circulação de pessoas implica na abolição das discriminações existentes calcadas na nacio-
nalidade, estatuindo igualdade de direitos com os países-membros do MERCOSUL, de forma a favorecer o
combate ao trabalho degradante em prol do desenvolvimento humano pleno (AZEVEDO, 2005).

Se não é assim, observa-se o feito pela Reunião dos Ministros do Trabalho do MERCOSUL no dia 26
de junho de 2015, assinando uma nova versão da Declaração sócio-laboral do MERCOSUL, no qual reforçou
o compromisso com os direitos sociais e trabalhistas, como se observa nos trechos abaixo:

Trabalhadores migrantes e fronteiriços


Art. 4º Todos os trabalhadores migrantes, independentemente de sua nacio-
nalidade, têm direito à ajuda, informação, proteção e igualdade de direitos
e condições de trabalho reconhecidos aos nacionais do país em que estive-
rem exercendo suas atividades. Os Estados Partes comprometem-se a adotar
medidas tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns
relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a
cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as
condições de trabalho e de vida destes trabalhadores.
Eliminação do trabalho forçado
Art. 5º Toda pessoa tem direito ao trabalho livre e a exercer qualquer ofício ou
profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes. Os Estados Partes
comprometem-se a eliminar toda forma de trabalho ou serviço exigido a um
indivíduo sob a ameaça de uma pena qualquer e para o qual dito indivíduo
não se ofereça voluntariamente.
Ademais, comprometem-se a adotar medidas para garantir a abolição de toda
utilização de mão-de-obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado
ou obrigatório. De modo especial, suprime-se toda forma de trabalho forçado
ou obrigatório que possa utilizar-se:
a) como meio de coerção ou de educação política ou como castigo por não
ter ou expressar determinadas opiniões políticas, ou por manifestar oposição
ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como méto-
do de mobilização e utilização da mão-de-obra com fins de fomento econômi-
co; c) como medida de disciplina no trabalho; d) como castigo por haver par-
ticipado em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional
ou religiosa (MERCOSUL, 2015, p. 2)

113
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa trabalhou em um primeiro momento questões acerca do fluxo migratório de trabalha-
dores e buscou identificar as origens do trabalho análogo ao escravo no Brasil. O segundo capítulo explorou
o arcabouço legislativo local e comunitário, identificando que o aparato normativo brasileiro é ineficiente no
combate à exploração de mão-de-obra imigrante. Tendo em vista que o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815,
em vigor desde 1980, e posteriormente alterado pela Lei 6.964/81, é apresentado como um mecanismo de
restrição e repressão. Mostrando-se desatualizado e desalinhado com o atual contexto sócio-político-econô-
mico nacional e mundial.

O referido estatuto trabalha os imigrantes como criminosos, clandestinos, em perene ilegalidade fa-
cilitando a fragilidade trabalhista concernente ao quadro de empregabilidade dos bolivianos. O projeto de lei
n.º 288 de 2013 que visa à substituição do Estatuto do Estrangeiro, constituirá no cenário latino-americano
um grande avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo.

Contudo a presente pesquisa se deteve à relação Brasil-Bolívia, uma vez que o projeto de lei abarcará
todos aqueles considerados imigrantes, sejam eles bolivianos, peruanos, chilenos.

Trabalhar a Bolívia também não foi uma escolha aleatória. Em regiões específicas do estado de São
Paulo, como Bom Retiro, Brás, Pari Cambuci, a predominância dos imigrantes bolivianos é sensível aos olhos
e os dados comparativos entre os censos de 2000 e 2010 somente ratificaram a hegemonia desse contingente.

A importância deste trabalho se pauta justamente na atualidade do tema desenvolvido. O processo


de adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul está neste último semestre de 2015 em seus trâmites
finais, aguardando tão-somente o aval do Congresso brasileiro e paraguaio.

A expansão do bloco com a integração da Bolívia trará as pretendidas benesses de cunho econômico,
mas principalmente, de forma reflexa, no desenvolvimento humano, ao passo que questões laborais Brasil-
-Bolívia serão abarcadas pelas diretrizes da livre circulação de pessoas prevalente no MERCOSUL, ratificada
no segundo semestre de 2015 com a assinatura da nova versão da Declaração sócio-laboral do bloco.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1988

Bruna de Oliveira Maciel


Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com
concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos
Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal.brunaolimaciel@
gmail.com

Jaqueline Maria de Vasconcelos


Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional,
pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa
Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com

SUMÁRIO: 1. Contextualização: A evolução do conceito de família e sua proteção legal; 2. A caracte-


rização da alienação parental e seu tratamento na ordem jurídica brasileira; 3. Princípios Constitucio-
nais que fundamentam a igualdade parental; 4. As falsas memorias e suas repercussões na dignidade
da pessoa humana. Considerações Finais; Referências.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA PROTEÇÃO LEGAL.

O presente estudo parte de concepções preliminares imprescindíveis ao objetivo do trabalho, compor-


tando o devido entendimento do papel do Estado imerso em uma lógica neoconstitucional diante do princípio
da proteção integral da criança e do adolescente.

O marco histórico do constitucionalismo – Magna Carta de 1215 – completou os seus oitocentos anos
de luta com o intuito político-jurídico de limitação do poder estatal. Os ideais existentes para conter o poderio
do Leviatã foram perpassados, servindo como reflexo para outras vitórias como a Constituição Norte-Ame-
ricana de 1787, a Constituição Francesa de 1791, que traziam em seu âmago os direitos negativos (ou de
primeira dimensão), além da configuração de um Estado Liberal.

O pleito pela aquisição de mais e de novos direitos prosseguiu, fazendo emergir a segunda, terceira e
até mesmo a quarta dimensão de direito, pondo termo àquele modelo liberal. Mas foi o Pós-Segunda Guerra
Mundial que quebrou os paradigmas fazendo com que a sociedade buscasse muito mais do que um Estado
Social ou Estado Democrático de Direito, imerso em uma constituição simbólica, tendo em vista a pouca
aplicabilidade de suas normas.

O marco pós-moderno impulsionou uma onda neoconstitucional que pugna pela ampliação da juris-
dição constitucional, pela hermenêutica do ordenamento jurídico equivalente aos seus princípios e, sobretu-
do, pela eficácia de suas diretrizes. Com isso, tem-se o poder-dever do Estado na proteção integral da criança
e do adolescente cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ocorre que, pragmaticamente um trabalho
que deveria ser executado de forma holística, é negligenciado pelo Estado no tocante ao resguardo
dos menores no âmbito familiar, dando margem à Síndrome da Alienação Parental.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Trabalhar com o tema Alienação parental requer mais do a interdisciplinaridade de matérias, carece
de um retrospecto às raízes do problema. Dessa forma, verifica-se que o próprio modelo patriarcal de família,
segundo destaca Côrrea (2009), é herança da concepção romano-cristã e tendo a sua essência constituída
pelo matrimônio, de modo que só eram tidos como filhos os que nascessem na constância de um casamento
legítimo. Vale lembrar que a adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado Romano fez com que
somente pessoas que profetizassem o catolicismo pudessem se casar e ter a família protegida pela lei (NO-
RONHA & PARRON, 2012, p. 04).

Com a adoção das Ordenações Filipinas no Brasil, às mulheres somente era concedido o papel exclu-
sivo de mãe e aos homens o protagonismo matrimonial, o pátrio poder (SCANDELARI, 2013). Nessa linha,
o Código Civil de 1916 consagra na sociedade a mentalidade patriarcal da época romano-cristã embutindo a
ideia da superioridade do homem sobre a mulher e os filhos, fixando em seus artigos a relativa incapacida-
de da esposa e comparando-a com os pródigos, índios e menores entre 18 e 21 anos (VERSIANI; ABREU;
SOUZA; TEIXEIRA, 2008).

Por longo período, a educação fornecida à mulher tinha como objetivo a formação de boas mães para
criarem grandes homens. Mas, com a Revolução Industrial esses preconceitos ainda amarrados passam a
ser desatados, com a gradativa participação feminina no trabalho das fábricas, processo que teve seu auge na
Primeira Guerra Mundial. Somente então se fortaleceu a luta por educação, mercado de trabalho e direitos
de participação política, através do movimento feminista.

No Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121 de 27/08/1962, caracterizou uma das maiores
conquistas desse movimento. Dentre tantas modificações trazidas, a mais notória foi a revogação do princípio
da capacidade relativa, concedendo o pátrio poder a mulher nos casos em que o seu marido fosse, por algum
motivo, impedido.

Em 1977, A Lei do Divórcio (lei n. 6515/77) trouxe maior facilidade ao rompimento matrimonial e
refletiu um maior nível de aceitação social desta realidade. Concomitante a isso, a luta feminista já havia
surtido alguns efeitos e o progressivo crescimento do aumento da independência financeira das mulheres,
certamente reduziu sua tolerância à ideia de submissão marital, o que fez com que o número de divórcios
aumentasse substancialmente.

No entanto, somente com promulgação da Constituição Federal de 1988 a concepção de família para
o Direito de fato passa a ter uma nova roupagem. Não apenas porque a Constituição reconheceu o divór-
cio como instrumento para a dissolução do casamento civil (§6º do art. 226 da CF), mas porque, com ela,
adentrou no sistema jurídico brasileiro o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerado por muitos
doutrinadores o ponto de partida para a transformação do paradigma do tratamento legal da família.

Bolivar da Silva Telles (2011) afirma que a dignidade na proteção da família deve ser compreendida
como igual dignidade para todas as entidades familiares e interpreta que seria indigno proporcionar trata-
mentos diferenciados aos diversos tipos de constituição familiar. Associado a este princípio, tem-se ainda o
Princípio da Igualdade que garante aos homens, às mulheres e aos filhos adotivos e provenientes ou não do
casamento, o mesmo tratamento. Por isso mesmo, as famílias constituídas através da união estável, foram
equiparadas em direitos e deveres ao casamento (NORONHA & PARRON, 2012).

Esse arcabouço constitucional reflete que a concepção de organização familiar, tradicionalmente co-
nhecida, já não comporta as relações familiares atuais. Hodiernamente a mãe trabalha, estuda, projeta sua
carreira e, com a evolução da ciência, opta por ter ou não mais filhos devido aos mecanismos contraceptivos.
A figura do pai é recriada, pois passam a ser mais presentes e capazes de cuidar dos filhos, dividindo inclusive
as atividades domésticas (PAULO, 2011).

A mudança do tratamento legal da família vai além. Com um teor democrático e cooperativo de fa-
mília na Constituição de 1988, os filhos, que antes eram tidos como objeto da relação matrimonial, agora se
tornam o foco principal da proteção do Estado, caracterizando-se como sujeitos de direito. Dentro dessa lógi-
ca, o poder familiar passa a ser entendido como um instituto de obrigações, encargos e deveres de ambos os

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

pais (SCANDELARI, 2013). Outra decorrência é que os filhos devem ser detentores de uma atenção especial
do Estado e seu aparato judiciário, seja quanto aos deveres compartilhados pelos pais na constância de sua
união, seja diante dos potenciais conflitos decorrentes da separação dos pais, situação que se constitui como
objeto do presente trabalho.

2. A CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL E SEU TRATAMENTO NA ORDEM JURÍDICA


BRASILEIRA.

A problemática que motiva o presente trabalho é que essa concepção de família contemporânea pa-
rece que ainda não transpôs as barreiras da sociedade conjugal, sobretudo no que diz respeito às consequên-
cias da separação do casal no tocante ao compartilhamento do poder familiar sobre as crianças.

Pretende-se tratar especificamente, da resposta da ordem jurídica brasileira às condutas dos pais
titulares da guarda da criança após a separação, que ocasionam no menor a Síndrome da Alienação Parental
(SAP). A nomenclatura foi cunhada pelo o psiquiatra Richard A. Gardner1 em 1985, que verificou um com-
portamento atípico comum às crianças e adolescentes envolvidos no fim da sociedade conjugal, que possui
como característica marcante o sentimento repugnante que os filhos passaram a demonstrar pelo genitor que
não detinha a sua guarda. Gardner identificou três estágios do fenômeno:

No estágio considerado como leve, tem-se a desmoralização do genitor de forma discreta e uma su-
posta onda de esquecimento toma conta do genitor alienador. Por exemplo, “esquece” de informar sobre os
compromissos escolares e fala à criança que o outro genitor poderia ter ido às festividades, mas não quis ou
deu pouca importância e esqueceu. Nesse estágio é também comum criar outras atividades e até mesmo
lamentar a solidão que sente durante o período de visitação para que isso cause um sentimento de remoço
e faça com que a criança sempre tenha que tomar a difícil escolha entre a mãe ou o pai (LOGANO, 2011).

No estágio moderado, o genitor alienado é malvado e o outro é bonzinho. Segundo Jorge Trindade
(2010), são utilizadas táticas de exclusão do outro genitor e além da intensificação dos atos do estágio inicial,
a criança passa a apresentar um comportamento inadequado e as visitas deixam de acontecer por motivações
fúteis. No último estágio, os filhos já compactuam com a paranoia do alienador. Ficam em pânico, gritam e
choram com a ideia de ter que visitar o outro genitor (ROSA, 2008).

François Podevyn ainda apresenta atitudes comumente verificadas durante o processo alienatório,
tais como: “a) Recusar de passar as chamadas telefônicas aos filhos [...]; j) Envolver pessoas próximas (sua
mãe, seu novo conjugue, etc.) na lavagem cerebral de seus filhos[...]; q) Culpar o outro genitor pelo mau
comportamento dos filhos” (PODEVYN, 2001).

A Lei 12.318, que dispõe sobre alienação parental no Brasil, ainda elenca de forma meramente exem-
plificativa algumas condutas típicas da alienação parental. Tais como a desqualificação de um dos genitores
no exercício da maternidade ou paternidade; mudar de domicílio para um local distante sem uma justifica-
tiva plausível ou até mesmo não informar o novo endereço; dificultar o exercício do direito de convivência
familiar, assim como omitir informações pessoais relevantes sobre os filhos no tocante aos estudos, saúde
dificultando assim, o exercício da autoridade parental.2

De acordo com o art. 2° da referida lei, o ato não é promovido exclusivamente pela mãe ou pelo pai,
mas sim por qualquer pessoa que possa interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente com
o intuito de romper os laços afetivos com um dos genitores.

1  Richard Alan Gardner nasceu em 28 de abril de 1931. Muitas de suas obras são autoridade na área da pedopsiquiatria, dentre
elas “Parental Alienation Syndrome”, citadas como referência pela American Psychiatric Association. Professor na Universidade de
Columbia de 1963 a 2003, ele foi o primeiro nos Estados Unidos a elaborar jogos que permitem a expressão da criança durante a
avaliação. Impressionado pelos comportamentos estranhos das crianças no contexto do divórcio, ele identificou certos mecanismos
e publicou sua primeira obra sobre a SAP em 1985.
2  BRASIL. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nesse sentido, observemos o trecho de um acórdão que decidiu de forma unanime em negar provi-
mento ao apelo dos avós maternos que pretendia obter a guarda da neta, após o falecimento da mãe, e com
isso provocava a alienação parental.

A guarda de VICTÓRIA foi deferida ao pai [...] Numa mistura de mágoa e


rancor, os apelantes assumem a posição de vítimas, procuram responsabilizar
o apelado pelas mortes do neto e da filha, sem se dar conta de que, com isso,
permitem que esses sentimentos negativos embotem o amor que sentem pela
neta, transferindo para ela o peso de ser o único consolo dos avós velhinhos,
a única coisa que restou da mãe. [...] Ao invés de se mobilizarem em desfazer
da figura do pai – ensejando a síndrome de alienação parental noticiada na
petição e laudo de fls. 438/443, o que de melhor a família materna fazer por
esta menina é um esforço para superar as diferenças e se empenhar para que
ela se sinta amada a afetivamente amparada por todos aqueles a quem ama,
inclusive o pai. Esse esforço é fundamental para evitar as graves seqüelas da
Síndrome de Alienação Parental, que podem se manifestar como depressão
crônica, incapacidade de adaptação em ambiente psico-social normal, trans-
tornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de
culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organiza-
ção, dupla personalidade a às vezes suicídio.3

Seja ou não intencional, é a criança ou o adolescente quem mais sofre com o fim da sociedade con-
jugal, tendo que por vezes optar com qual dos genitores irá ficar e isso pode lhe parecer como uma forma de
mensurar, ou melhor, quantificar o amor que sente pela mãe ou pelo pai. Decerto, como diz a Promotora de
Justiça Raquel Pacheco: “ o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito e
do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento
deles fracassou”.

Com a alienação parental princípios como o melhor interesse da criança e do adolescente, da preva-
lência e convivência familiar, da afetividade e da paternidade são infringidos. O art. 3° da lei 12. 318 ratifica a
necessidade de o Estado “empreender diligências suficientes para amparo dos direitos e garantias fundamen-
tais de sobrevivência e desenvolvimento humano” das crianças e adolescente que sofre de tamanho abuso
moral.

Com o presente trabalho, pretende-se demonstrar que há no processo da Alienação Parental uma
verdadeira afronta a uma norma fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os princípios cons-
titucionais atingidos durante o processo da alienação parental, este trabalho se concentra nos pilares da
Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O primeiro princípio será direcionado à igualdade parental
que, como visto, por um longo lapso temporal, foi lesado pelo poder patriarcal. O segundo princípio será com-
preendido sob a ótica da prole e do genitor alienado que são lesados em sua dignidade durante os diversos
níveis da síndrome em questão, que pode escalar da privação dos laços de afetividade familiar a repercussões
mais severas, como ocorre em casos extremos, onde quem detém a guarda induz na criança falsas memórias,
inclusive de abuso sexual.

3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE FUNDAMENTAM A IGUALDADE PARENTAL.

A Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 226, §§ 3º e 5º reconhece a igualdade


entre homens e mulheres no que tange à sociedade conjugal, constituída tanto pelo casamento quanto pela
união estável. Sob a égide desse princípio, tem-se a despatriarcalização das relações familiares, já que a figura
paterna não mais exerce a dominação e o poder absoluto de outrora. Observa-se que organização familiar é
democrática e colaborativa, desaparecendo o conceito e a essência do pátrio poder, permitindo que inclusive
os filhos exponham suas opiniões (TARTUCE, 2006).

3  BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL
SANTOS.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O princípio da igualdade aplicado no âmbito familiar se refere ao tratamento entre homem e mulher
quanto à chefia da sociedade conjugal. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A organização e a própria di-
reção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tanto que compete a
ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e atri-
buídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher” (DIAS, p 63, 2007).

A expressão poder familiar é o a que mais se adequa a contemporânea concepção de família, que
devido ao advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA – Lei 8.069/1990) passou a ser guiada pelo princípio da igualdade, conferindo assim um
caráter protetivo e um tratamento isonômico para ambos os cônjuges.

Para Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz o poder familiar é tido como múnus de direitos
e deveres e que a convivência com um dos pais não concede a titularidade do poder familiar (FONTELES,
2014). O Código Civil de 2002 em seu art. 1.631 concomitante ao art. 1.579 ratifica a permanência do poder
familiar em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável sem que haja modificação dos
direitos e deveres relacionados aos filhos.

Para atender ao princípio da igualdade, no âmbito do direito de família, atualmente, a legislação e a


jurisprudência brasileira utilizam-se do instituto da guarda compartilhada para minimizar as consequências
geradas na disputa pelos menores, além de haver um diploma legal específico para caracterizar o fenômeno
Alienação Parental e suas consequências no âmbito do direito de família (Lei 12.318/2010). Por isso, antes
de avançar, necessária se faz a distinção entre guarda alternada e guarda compartilhada.

A própria dicção da expressão guarda alternada induz um teor antagônico e de alternância, ou seja,
ora se está com o pai, ora se está com a mãe. Segundo Grisard Filho, a guarda alternada não é saudável para
a prole, pois haverá uma confusão relacionada a qual orientação seguir e até mesmo qual moradia chamar
de sua. Nessa mesma tendência segue à jurisprudência:

A guarda alternada, permanecendo o filho uma semana com cada um dos


pais não é aconselhável pois ´as repetidas quebras na continuidade das rela-
ções e ambiência afetiva, o elevado número de separações e reaproximações
provocam no menor instabilidade emocional e psíquica, prejudicando seu
normal desenvolvimento, por vezes retrocessos irrecuperáveis, a não reco-
mendar o modelo alternado, uma caricata divisão pela metade em que os pais
são obrigados por lei a dividir pela metade o tempo passado com os filhos´ (RJ
268/28).´ (TJSC - Agravo de instrumento n. 00.000236-4, da Capital, Rel.
Des. Alcides Aguiar, j. 26.06.2000).

A guarda compartilha, por sua vez, visa uma participação em nível de igualdade dos genitores nas
decisões relacionadas aos filhos. Há uma equidade de contribuições dos pais na formação dos filhos, seja
educacional, moral, espiritual. Sendo assim, não há privilégios para nenhum dos pais, mas sim a busca pelo
melhor interesse do menor (BONFIM, 2005).

Observa-se que, em teoria, a guarda compartilhada é a melhor maneira de prevenir a Alienação Pa-
rental (NÚÑEZ, 2013). Esse instituto jurídico regulamentado pela Lei Federal n° 11.698/2008 evita que os
filhos venham a se afastar de um de seus pais e permite que tanto a mulher quanto o homem possam ser
titulares do princípio da igualdade e desta forma exercer, independente das contendas existentes, o papel de
pai e mãe.

4. AS FALSAS MEMÓRIAS E SUAS REPERCUSSÕES NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana que está previsto no art. 1°, III da Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988, no qual garante ao ser humano a preservação da integridade física e
psíquica. Além disso, a Constituição Federal assegura à criança, dentre outros, o direito à dignidade e dentro

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do ambiente familiar é que a criança ou o adolescente pode constrói sua personalidade para a concretização
de uma vida digna.

Assim, a alienação parenta se torna inaceitável não só por afrontar princípios constitucionais e direi-
tos da criança e do adolescente, mas expor pessoas ainda tão vulneráveis e pleno desenvolvimento a graves
consequências psicológicas (GUILHERMANO, 2012).

Como visto, a alienação parental pode ou não ser intencional e sua finalidade é denegrir o outro ge-
nitor como também afastá-lo da convivência com o filho (GARDNER, 2002). Todavia, Jorge Trindade (2010)
alerta que, embora a síndrome da alienação parental comece como um distúrbio de cunho afetivo, depen-
dendo da intensidade com que é provocada, pode acarretar, inclusive, o surgimento das falsas memórias na
criança. A implantação de falsas memórias ocorre através de sugestões fabricadas ou forjadas, de forma total
ou parcial, de fatos inverídicos. A criança passa a crer em um fato que nunca aconteceu, como por exemplo
o abuso sexual, e reage como se de fato tivesse acontecido (VELLY, 2010).

As crianças envolvidas no processo de falsas memórias podem sofrer de patologias afetivas, sexuais
ou psicológicas, assim como as que de fato sofreram abuso sexual. As consequências da alienação parental
não possuem um rol taxativo, mas os efeitos são direcionados a produzir uma tendência ao isolamento, a de-
pressão, incapacidade de comunicação. Por vezes, pessoas que foram vítimas da alienação parental passam
a desenvolver um sentimento de culpa, quando adultas, por se considerar cúmplice mesmo que de forma
inconsciente da injustiça praticada contra o genitor alienado, podendo acarretar transtornos psíquicos resul-
tando no suicídio (MAZZONI, MARTA, 2011).

Crime sexual ou síndrome da alienação parental? Posto está o desafio para os Tribunais. Afinal, quan-
do o problema chega às mãos do Estado, encontram-se, de uma lado, crianças com um enorme repúdio a
um dos genitores ou ente familiar e até mesmo alegando sofrer algum tipo de abuso. Por outro lado, está a
defesa do outro genitor arguindo a existência de falsas memórias decorrentes da alienação parental. O fato
desencadeia uma das mais delicadas “situações do mundo jurídico, com o dever de tomar imediatamente
uma atitude e com o receio da denúncia não ser verdadeira” (LOGANO, 2011).

No último estágio da alienação parental, muitas vezes caracterizado pela implantação de falsas me-
mórias, o juiz toma medidas de proteção à criança e realiza o afastamento da prole com o genitor injustiçado.
Estudiosos observam que, neste momento, no qual a criança ou o adolescente mais necessita do aparato do
Estado para resguardar seus interesses, depara-se com profissionais do Direito, psicólogos, peritos sem um
preparo técnico e emocional para lidar com a situação e identificar os verdadeiros casos de alienação parental
e de abuso sexual (MAZZONI, MARTA 2011).

A jurisprudência já coleciona precedentes onde houve para o reconhecimento de falsas memórias


decorrentes da síndrome da alienação parental. Nesse sentido segue um excerto jurisprudencial que negou
provimento a pedido de guarda da mãe que implantou falsas memórias na filha, “segundo a menor de 07
anos, eu pai, além de bater maltrata-la, teria cometido abuso sexual e ao afirmar isso disse apontado com
dedo indicador para o meio de suas pernas ‘ele me machucou aqui’”4 e fez com que o filho relatasse maus
tratos. Após diversas perícias o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que:

Pelo que se verifica, genitora vai continuar empregando todos os mecanis-


mos par afastar os filhos do pai, pois conforme se vê na petição de fls. 264,
a genitora não permitiu o convívio das crianças com o pai nas datas festivas
nem nas férias, com dispõe o acordo em vigência, desrespeitando os limites
do poder familiar: ‘A existência de limites configura poder familiar não ape-
nas com um poder (assim como era o pátrio poder), mas também com um
dever dos pais. [...] Por tudo isso, entendo que alteração da guarda é media
que impõe como forma de salvaguarda as crianças da prática manipuladora
da mãe (BRASIL, p. 18-20).

4  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 94.723 –RJ ( 2008/0060262-5. Relator. Ministro
Aldir Passarinho Junior.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Caetano Lagrasta, desembargador e presidente da Coordenadoria de Projetos Especiais e Acompa-


nhamento Legislativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera a implantação de falsas memórias como
“diabólica” e defende a prisão do alienador que chega a tal estágio, sob alegação de tortura. Em suas palavras:
“Nestes casos fica evidente que o alienador tortura e a tortura é crime previsto constitucionalmente, logo, a prisão
do alienador-torturador deve ser aplicada” (OLIVEIRA, 2012).

Não se pode perder de vista que é um dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente,
assegurando assim o direito à convivência familiar (art. 19 ECA), à liberdade e dignidade como pessoas em
pleno processo de desenvolvimento garantido pela Constituição Federal e pelo ECA (art. 15), assim como o
direito a participação na vida familiar, da inviolabilidade da integridade física e psíquica e moral para que seja
possível a preservação da imagem, da identidade, dos valores, crenças e ideais.

Deve-se iniciar a reinvindicação do Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana pela base
da família. Se a família falha em atender o comando constitucional de cuidados a integridade emocional da
criança, o Estado deve intervir para assegurar não só a proteção da criança e do adolescente, mas também da
dignidade da pessoa humana (filhos e genitores alienados) tão lesada durante a alienação parental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, a Síndrome da Alienação Parental não é um fenômeno novo, inédito ao Século XXI. A
emancipação da mulher e a evolução do mundo moderno modificou não só conceito, mas a própria orga-
nização e estrutura familiar. Passou-se por uma verdadeira metamorfose, e a busca pela igualdade entre o
casal constituiu o elemento propulsor dessa transição. Como visto, a igualdade concedida foi aparente e ol-
vidou-se da igualdade parental, já que a prática judiciária não consegue distinguir situações de manipulação
das emoções da criança como forma de atingir o ex-parceiro, mantendo-se de forma irrefletida uma cultura
maniqueísta que jamais põe em cheque a figura da boa mãe, herdada da era patriarcal.

Apesar de possuirmos uma Lei definindo o conceito e exemplificando características comuns à Alie-
nação Parental, estipulando que qualquer indivíduo, mãe, pai, avós, podem ser os responsáveis pela prática
alienante, e listando uma série de medidas que podem ser tomadas a título de atenuação dos efeitos da sín-
drome, observa-se na jurisprudência que os profissionais militantes da área do Direito de Família (operadores
do direito, psicólogos, peritos), por vezes, desconhecem a profundidade e as graves consequências do tema
em questão. Essa incompetência técnica pode aumentar a injustiça levando um inocente à prisão Não o bas-
tante, a luta histórica pela igualdade parental retrocede e Dignidade da Pessoa Humana é afetada.

Daí concluímos que, para dar a concretude devida ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
seriam necessárias políticas públicas direcionadas a divulgar para população a existência e os danos causados
aos envolvidos na síndrome da alienação parental. Como também seria imprescindível capacitar os profissio-
nais que trabalham na área, pois o estudo prático da alienação parental denuncia a carência de profissionais
preparados e comprometidos com o estudo da Síndrome em questão, capazes de se despir de rótulos precon-
cebidos sobre a família tradicional.

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122
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

LIBERDADE RELIGIOSA:
UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O
CASO LAUTSI CONTRA ITALIA

CAMILA LEITE VASCONCELOS


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015). Especialista em
Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes. Professora
Universitária

SUMÁRIO: Introdução; 1. Modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa; 2.
Lautsi contra Italia: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do esta-
do; Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por finalidade analisar as relações entre o Estado e o direito constitucional
de liberdade religiosa a partir dos artigos dos professores Winfried Brugger e José Ignacio Solar Cayón.

Winfried Brugger identifica e descreve seis tipos de relações entre Estado e Igreja, quais sejam: hos-
tilidade agressiva, separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e coope-
ração, unidade formal, unidade material entre Igreja e Estado.

O referido autor aborda de maneira mais intensa os modelos da separação rígida na teoria e na práti-
ca, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação e unidade formal, pois entende que a hostilidade
agressiva e a unidade material entre Igreja e Estado estão em contradição com o Direito Constitucional e o
Direito Internacional, bem como promovem discriminação e coação. Após explanar todas essas relações, o
professor Brugger fundamenta a exclusão do primeiro e do sexto modelos no direito moderno.

No final do artigo o autor também destaca as decisões proferidas pelas Cortes Constitucionais nos
hard cases, apontando semelhanças e diferenças entre os modelos 2 e 5.

O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os
fundamentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença
de crucifixos em salas de aula italiana e tenta demonstrar as discrepâncias existentes provocadas pela Corte.

1. MODELOS DE ESTADO E IGREJA E SUA RELAÇÃO COM A LIBERDADE RELIGIOSA.

Na introdução do artigo de Brugger consta que a disputa entre o catolicismo e o protestantismo termi-
nou se estendendo para uma questão política, e a busca pelo domínio político e religioso tornou impraticável
a formação de relações pacíficas. Em razão disso, o mundo vivenciou grandes guerras e catástrofes civis.

Nesse período Igreja e Estado se confundiam enquanto instituições legítimas de poder em que ambas
tinham pretensões em normatizar e regular o corpo e a mente dos sujeitos, detendo assim o monopólio da
violência simbólica no campo social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No Brasil, a Constituição de 1824 adotou o catolicismo a religião oficial do país, conferindo a Igreja
Católica os mesmos poderes e prerrogativas da época do império, o que evidencia que nesse período histórico
a separação entre Igreja e Estado praticamente não existia e consequentemente não havia liberdade religiosa
enquanto direito subjetivo. Somente era tolerada manifestações de outras religiões em espaços privados ou
domésticos, não sendo possível aos indivíduos exercerem publicamente qualquer outra religião que não fosse
a católica. (EMMERICK, 2010)

Com o passar dos anos pareceu inevitável a necessidade de fazer a política se preocupar tão somente
com aspectos mundanos voltados para o bem estar, enquanto que a religião se dedicaria apenas a obtenção
da salvação eterna sem utilizar o Estado como meio de impor a religião preferida do poder político. Esse mo-
vimento de divisão estrutural dos assuntos pertinentes ao Estado e à Igreja ficou bastante evidente na maioria
dos Estados da Europa e nos Estados Unidos.

Outrossim, a busca pela salvação eterna deveria partir da consciência de cada individuo, declarando-
-se religioso ou não pautado no principio da liberdade. Para tanto, as constituições modernas separaram as
áreas de domínio do Estado e da Igreja por meio de uma norma estrutural e inserem a liberdade religiosa no
capítulo dos direitos fundamentais.

O referido autor cita exemplos clássicos como o da primeira emenda da Constituição dos Estados
Unidos, a qual definiu que “O Congresso não deve elaborar lei relacionada ao estabelecimento da religião,
ou à proibição do seu exercício…”. Verifica-se nesse texto legal tanto uma distinção estrutural no tocante a
definição do campo de atuação do Estado e da Igreja como também a questão da liberdade religiosa. A Consti-
tuição de Weimar também é citada como exemplo ao contemplar o direito de liberdade de confissão religiosa
e ao explicitar que não existe uma igreja do Estado.

De acordo com as palavras de Brugger, a proteção da liberdade religiosa passou a compreender a


liberdade de pensamento, de consciência e religiosa, o direito a mudar de religião e de ideologia, a liberdade
do exercício dessas atividades de forma individual ou coletiva, em que se abrangem o culto ou a missa, o en-
sinamento e o respeito pelos costumes religiosos.

Desse modo, o Estado de Direito ocidental passou a ser distinguido por meio da liberdade religiosa
como instrumento de combate contra a coerção do Estado no tocante a essas relações contenciosas e tam-
bém por meio de uma divisão estrutural do campo de domínio pertencente ao Estado de um lado e a Igreja
do outro.

O primeiro modelo da relação entre Estado e Igreja citado no artigo de Brugger é o da Hostilidade
Agressiva entre Estado e Igreja. Essa relação se caracteriza pela adoção de atitudes hostis contra reli-
giões e igrejas por parte de alguns países. Em outras palavras seria dizer que o regime político de um país
pode ser instituído eliminando as religiões e as igrejas, propagando um ateísmo e introduzindo na mente dos
sujeitos uma “ideologia cietífico-materialista”.

Nesse contexto, a hostilidade imposta contra a Igreja a impede de participar dos assuntos políticos e
estatais, fazendo reinar um Estado tipicamente totalitário, tendo em vista que na medida que o Estado proíbe
o indivíduo escolher uma religião, ele termina infringindo o princípio da liberdade religiosa.

O segundo modelo introduzido pelo autor seria o da Separação Rígida na Teoria e na Prática.
De acordo esse modelo, deveria haver uma total separação espacial nas relações entre Estado e Igreja, de
modo que por meio de uma parede se evitaria o envolvimento de Igrejas na esfera pública e organizacional.

Como exemplo, Brugger cita o caso norte-americano Everson v. Board of Education, em que os alu-
nos de orientação religiosa cristã não podiam utilizar o transporte de ônibus custeado pelo Estado para se
deslocarem até a escola por violar a cláusula da primeira emenda da Constituição norte-americana.

Assim, vejamos o que diz o mencionado professor em torno da separação rígida:

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Só por meio de um respeito rígido [do dever de separação], o Estado pode


preservar sua neutralidade e, unilateralmente, impedir o partidarismo com
as disputas, que se originam inevitavelmente quando grupos religiosos con-
correm entre si para obter fundos do Estado para a educação e aulas religio-
sas ou outras atividades federativas, sejam essas diretas ou indiretas. (BRU-
GGER, 2010, p.18)

Portanto, esse modelo se caracteriza por uma separação rígida em que as mensagens de conteúdo se
referem ao bem estar, com resultados para uma área privada e pública de uma liberdade religiosa forte e no
âmbito estatal se verifica uma liberdade religiosa negativa maximizada contra paternalismo.

O terceiro modelo diz respeito a Separação Rígida na Teoria, Acomodação na Prática. Ou seja,
seria uma visão mais moderada quando comparada ao segundo modelo. Nesse sentido, a separação entre
Estado e Igreja por meio de uma parede não seria tão espessa e densa.

Segundo esse modelo, o Estado tinha que se manter neutro perante as Igrejas, mas ao mesmo tem-
po essa neutralidade não poderia se transformar em uma hostilidade, de modo a não prejudicar a liberdade
religiosa.

O teste “Lemon”, desenvolvido pela Corte Americana em 1971 prevê que a “lei precisa ter uma fi-
nalidade legislativa secular, o efeito primário não pode promover e nem prejudicar a religião e a lei não pode
conduzir a um excessivo almagamento entre governo e religião”. Ao final, reza que “haverá inconstituciona-
lidade se só um dos critérios também não for satisfeito”.

O quarto modelo foi intitulado por Brugger como Divisão e Cooperação. Nesse modelo não existe
a parede separando espacialmente a Igreja e o Estado, pois o que há é uma cooperação entre eles em deter-
minadas áreas.

Essa relação se caracteriza pelo fato do Estado e da Igreja serem titulares de direitos fundamentais
de um lado e do outro a organização do Estado tem o dever de direitos fundamentais. A igreja não pode se
formar de cima para baixo, ou seja, não pode se formar a partir do Estado. Ela tem que se instituir de baixo
para cima através dos fieis e dos militantes.

Não há uma separação total entre o Estado e a religião, em que se faz presente a coordenação mútua
nos trabalhos em conjunto.

O exemplo trazido pelo autor para visualizar esse modelo em termos práticos é a possibilidade de se
ter aulas de religião nas escolas públicas e de se conferir status de entidade de Direito Público a determinadas
sociedades religiosas.

O quinto modelo é a Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo. Esse
modelo se concretiza quando há a criação de uma igreja estatal ou quando se adota uma igreja nacional. Nas
palavras de Brugger, vislumbra-se esse modelo quando “a entidade política constitui formalmente uma igreja
estatal ou, de outra forma reconhecível, se identifica, como Igreja nacional, com uma determinada Igreja”.

São características da Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo:

(1) Ambas as entidades configuram basicamente suas próprias organizações.


(2) Elas buscam diferentes objetivos (bem estar versus salvação). (3) Elas
chegam às suas próprias decisões. (4) A Igreja não é um poder do Estado no
sentido estrito, não pode, portanto, exercitar qualquer coação dura do ponto
de vista externo. (5) A liberdade de crença e de religião de todos os fiéis e
infiéis é fundamentalmente respeitada”. (BRUGGER, 2010, p.21)

De acordo com o autor, países escolhem esse tipo de modelo com o intuito de se manter uma tradição
religiosa na comunidade, com cautelas para que isso não se transforme em imposição e consequentemente

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ferir a liberdade de confissão religiosa. No caso de Israel, a adoção desse modelo de Unidade Formal com
divisão de conteúdo seria para proteger os judeus espalhados pelo mundo inteiro e seu território.

Esse modelo confere um tratamento diferenciado aos fies da igreja nacional/estatal, diferindo diante
da situação dos direitos fundamentais constitucionais de cada Estado. O autor cita os principais níveis de
diferenciação, quais sejam: diferença apenas simbólica (onde não há tratamento diferenciado entre fiéis e
infiéis), diferenças consideradas “suaves” como, por exemplo, os incentivos financeiros conferidos a Igreja
Estatal e as diferenças “duras” como proibir infiéis de assumirem cargos públicos.

O sexto e último modelo identificado por Brugger é Unidade Material e Formal entre Igreja e
Estado. Nesse modelo não mais se visualiza aquela divisão estrutural entre Estado e Igreja, ao contrário, “o
imperativo jurídico é, portanto, em muitos casos, o imperativo religioso e, tendencialmente, a violação jurídi-
ca também é um pecado”. Portanto, não há separação entre o Estado e a Igreja.

Faz-se presente a desvalorização da liberdade religiosa negativa, em que o Estado passa a ficar vincu-
lado a Igreja, aproximando-se de uma teocracia. Há uma obrigatoriedade da população adotar e permanecer
na religião oficial, não podendo contradizer os mandamentos religiosos. Outras religiões não são tratadas
igualmente, ocorrendo coação e discriminação dos fiéis que não adotam a religião oficial.

Brugger cita como exemplo a decisão da Suprema Corte do Paquistão. Em suma, Corte entendeu que:

O Direito Islâmico ou Sharia é o Direito de maior hierarquia no País, e qual-


quer forma de elaboração de lei, inclusive a Constituição, a ele se submete.
O Direito Islâmico é o Direito conhecido e estabelecido, que não pode ser
aplicado sem modificação ou ajuste, a fim de responder a todos os problemas,
com os quais um Estado Moderno se confronta, inclusive com os assuntos de
governabilidade constitucional e direitos individuais fundamentais. As pres-
crições dos direitos humanos internacionais estão sujeitas aos ditames do Di-
reito Islâmico e, por isso, são irrelevantes com relação a questões pertinentes
à liberdade religiosa num Estado muçulmano. (BRUGGER, 2010, p. 23)

No tópico II do seu artigo, Brugger ressalta a necessidade de se excluir o primeiro e o último modelo
no Direito Moderno, uma vez que o primeiro modelo não se distancia tanto assim do sexto, pois não pode ser
negado ao indivíduo o direito e a liberdade de escolher uma determinada religião. Impor uma religião é tão
hostil quanto impedi-lo de eleger uma. Quando o Estado prega um ateísmo excessivo ou impõe uma religião
estatal, ele termina se transformando em um Estado Totalitário.

No item III, o autor faz uma análise do sistema do quinto modelo de unidade formal. Para ele, esse
sistema se adequa bem a organizações estatais que necessitam da religião como instrumento para se promo-
ver uma liberalização e pluralização pacífica das religiões.

O fundamento para esse tipo de sistema ainda se manter presente é justamente a garantia da liber-
dade religiosa como direito humano de todos os fieis e infiéis. Tal sistema de unidade formal pode ser visto
na Grécia e no Reino Unido.

No tópico IV, Brugger procura promover a estrutura da ponderação nos modelos 02, 03 e 04 de se-
paração e de divisão. Para esse professor, esses modelos seriam a melhor forma de organização da relação
Estado x Igreja. Vejamos:

À separação estrutural de Estado e Igreja, ou melhor, de religiões corres-


pondem os padrões de independência, neutralidade, tratamento igual e não-
-identificação. No caso dos direitos fundamentais, o modelo de separação
conduz à liberdade religiosa, como direito de liberdade, com a exclusão da
coação à religião, e à igualdade religiosa, com o mandamento da não-discri-
minação. (BRUGGER, 2010, p.25)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A aplicação das características de um determinado tipo de modelo de relação entre Estado e Igreja a
um caso concreto por parte dos tribunais vai depender do “texto Constitucional, da situação histórica inicial,
do ambiente político, da compreensão de integração, do teste jurisdicional para a interpretação das normas
relativas ao Estado e à Igreja, e da própria compreensão passiva e ativista dos tribunais constitucionais”.

Por isso, o autor defende que a jurisprudência poderá orientar e analisar o conflito, esclarecendo to-
das as vantagens e desvantagens ao se escolher aplicar determinado modelo de sistema relacionado a Estado
e Igreja. Contudo, essa atividade deve ser feita de forma limitada, de modo que ninguém melhor do que os
julgadores que vivem dentro daquele Estado para avaliar a melhor solução a ser aplicada ao caso concreto.

Na parte final do artigo, o autor traz casos reais que foram objeto de análises por parte de Cortes
Constitucionais.

De acordo com a Corte Constitucional Americana, aulas de religião não devem ocorrer em escolas
públicas, fazendo-se presente uma parede para separar espacialmente e de forma rígida as relações entre
Estado e Igreja. Por outro lado, servidores públicos podem dar aulas de disciplinas leigas tanto em escolas
públicas quanto em escolas particulares e o Estado pode financiar livros para ambas as escolas, verificando
assim a inexistência de qualquer tratamento desigual.

O servidor público ao ingressar no serviço não precisa fazer o juramento para não prejudicar a liber-
dade religiosa e por haver a separação rígida entre Estado e Igreja.

No que diz respeito ao uso de símbolos religiosos por parte do Estado, há um debate acalorado entre
os defensores do modelo de separação rígida e moderada na jurisprudência norte-americana, pois aqueles
defendem a impossibilidade de se montar, por exemplo, uma árvore de Natal nos parques da cidade, em
ruas ou repartições públicas, enquanto os moderados relativizam essa posição rígida e defendem que não há
violação da liberdade religiosa desde que se deixe explícito que no Estado não há nenhuma preferencia por
uma determinada religião.

No tocante as cruzes fixadas nas paredes de escolas públicas, salvo melhor juízo, Brugger entendeu
que não há que se falar em transgressão a liberdade religiosa quando esses símbolos fazem referencia ao
caráter histórico do país. Entretanto, o Tribunal Constitucional interpreta o crucifixo como sendo uma men-
sagem cristã que gera discriminação e apela para os alunos não cristãos.

O autor conclui afirmando ser impossível distinguir por completo Estado e Religião, seja como campo
da política, seja judicialmente.

Percebe-se de maneira clara que Brugger aceita os modelos 02, 03 e 04 de relações entre Estado e
Igreja no Direito Moderno. Acredita ainda que o quinto modelo também pode ser implantado com ressalvas,
sob a justificativa de que em todos esses modelos de Estado, cada indivíduo pode decidir confessar uma cren-
ça e ainda continuar sendo ideologicamente livre.

2. LAUTSI CONTRA ITALIA: SOBRE A LIBERTADE RELIGIOSA E OS DEVERES DE NEUTRALIDADE E


IMPARCIALIDADE DO ESTADO.

O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fun-
damentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de
crucifixos em salas de aula italiana.

No ano de 2002, a Sra. Lautsi pleiteou a retirada do crucifixo fixado na sala de aula da escola públi-
ca onde estudavam seus dois filhos Dataico e Sami Albetin perante a diretoria da instituição. Diante do seu
pedido negado, a mãe recorreu ao Conselho Escolar, ao Tribunal Administrativo de Veneza, bem como ao
Conselho de Estado, onde também lhe foram negados o pedido.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O caso Lautsi contra a Itália teve início em razão das várias e sucessivas demandas da Sra. Lautsi ao
impugnar judicialmente a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, sob o fundamento de
que a exposição desses símbolos nos centros públicos estava ferindo o seu direito de criar e educar os seus
filhos em conformidade com as suas convicções filosóficas e religiosas.

A demandante argumentava que a fixação das cruzes era inconstitucional porque era uma verdadei-
ra violação do princípio da laicidade do Estado, o qual estava expressamente contemplado na Constituição
italiana.

A Sra. Lautsi defendeu que a sua liberdade religiosa estava sendo violada e que o Estado não estava
cumprindo com o disposto no Art. 9° da Convenção Europeia. Além do mais, a obrigação de expor crucifixos
em sala de aula provém de normas que foram promulgadas durante o regime fascista de Mussolini e por isso
carecem de legitimidade democrática.

A demandante alegou violação do art. 9º e 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem
como o art. 2 de protocolo nº 1, que seguem abaixo transcritos:

Convenção Européia de Direitos Humanos


Artigo 9°
Liberdade de pensamento, de consciência e de religião
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência
e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
crença, assim como a liberdade
de manifestar a sua religião ou a sua crença,
individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do
ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou co-
lectivamente, não pode ser objecto de utras restrições senão as que, previstas
na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática,
à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à
protecção dos direitos e liberdades de outrem.
Artigo 14°
Proibição de discriminação
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve
ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo,
raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou
social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qual-
quer outra situação.
Artigo 2° (do Protocolo nº 1)
Direito à instrução
A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das
funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará
o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas
convicções religiosas e filosóficas. 1

Em contrapartida, o governo italiano sustentou como principal linha de defesa que a exposição de
crucifixos em salas de aula não possui significado religioso, mas se trata de um símbolo que faz parte da his-
tória e da identidade do povo italiano.

Em face dessas decisões, a Sra. Soile Lautsi interpôs no ano de 2006 um recurso ao Tribunal Euro-
peu de Direitos Humanos, o qual julgou no ano de 2009 por unanimidade que a conduta do governo italiano
efetivamente violou o Art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos c/c o Art. 2º do Protocolo n° 01 da
mesma Convenção. Decidiu-se ainda não analisar a questão sob o enfoque do Art. 14 da citada Convenção.

1  http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf. Último acesso em 18.02.2015

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No ano de 2010, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grande Sala do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos, conforme previsão legal. No julgamento, a Grande Sala decidiu por quinze
votos contra dois que a presença do crucifixo na escola pública não violava os mencionados dispositivos da
Convenção Europeia.

De imediato, verifica-se as incoerências com algumas decisões prévias do próprio tribunal.

De acordo com os argumentos para embasar a decisão definitiva, a Grande Sala entendeu que apenas
há violação ao princípio da laicidade quando o Estado ultrapassa a imparcialidade, ou seja, o Estado não pode
objetivar doutrinação ou direcionamento a uma determinada religião.

Outra ideia central presente no julgado é a da “margem de apreciação dos Estados” no respeito aos
direitos humanos, ou seja, os Estados possuem uma margem de conduta para atuar, atentando-se aos limites
previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota a doutrina da margem de apreciação nacional, por
meio da qual confere as autoridades nacionais uma certa discricionariedade na hora de justificar a adoção
de medidas que a princípio poderia interferir no exercício dos direitos reconhecidos na Convenção, mas que
seria possível atender e solucionar as peculiaridades do contexto doméstico.

A margem da apreciação nacional leva em conta diversos fatores, tais como: a natureza do direito
afetado e a sua importância, o fim perseguido pela medida estatal questionada, as circunstancias do caso. De
acordo com José Ignácio, a existência ou não de um consenso em torno da matéria que está sendo discutida,
funciona como uma espécie de válvula de segurança que alivia as pressões do sistema, permitindo ao tribunal
reforçar ou rebater o nível de supervisão e controlar as atuações estatais em cada matéria.

Assim, o Tribunal Europeu no âmbito da liberdade religiosa confere as autoridades nacionais uma
ampla margem de discricionariedade, pois a concepção de religião não uniforme, variando de um país para
o outro e por isso cresce a importância das autoridades nacionais em solucionar as demandas de acordo com
o contexto doméstico.

O autor destaca ainda em seu artigo a questão do uso de símbolos religiosos nos centros de ensino.
Nesse sentido, destaca o Cayón:

(...) o tribunal enfatizou que a ampla margem de apreciação que corresponde


as autoridades nacionais em matéria religiosa se impõe especialmente quan-
do os Estados regulam o uso de símbolos religiosos nos centros de educativos
dada a disparidade de soluções legislativas adotadas nesse tema. (CAYÓN,
2011, p. 578)

O autor coloca em pauta caso Leyla Sahin contra Turquía. Em 1998, o vice-reitor da Universidade
de Istambul proibiu a utilização de véus islâmicos que cobrissem a cabeça da estudante e o uso de barba em
cursos e aulas ministradas na universidade.

Em 1998, Sahin levou seu caso à CEDH. Em 2005, a Corte Europeia proferiu seu veredicto, afirman-
do a inexistência de violação ao artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Ora, verifica-se uma incoerência no tocante aos fundamentos utilizados pela Corte ao decidir sobre li-
berdade religiosa. No caso da Sra. Lautsi, a Grande Sala julgou que a presença de crucifixos nas salas de aula
das escolas não violava a sua liberdade religiosa de educar seus filhos conforme as suas convicções religiosas.
Por outro lado, analisando o caso Leyla contra a Turquia, a mesma foi impedida de expressar publicamente
a sua religião ao usar um véu nos centros de ensino.

Um véu pode representar um símbolo religioso tão inocente quanto um crucifixo. Ao mesmo tempo,
esses símbolos podem de fato serem capazes de influenciar na formação religiosa dos demais alunos. Contu-
do, questiona-se qual foi o fundamento utilizado pela Corte para definir o significado passivo de um crucifixo

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

e o caráter perigoso de um véu. Um crucifixo pode representar um símbolo religioso tão influente quanto um
véu. Por outro lado, esses símbolos podem exercer intensa dominação.

Outro caso que demonstra intensa incoerência dos critérios utilizados pelo Tribunal se faz presente
no caso Dahlab contra Suiza. A Corte julgou que a decisão de determinada escola suíça de proibir que uma
de suas professoras usasse o véu islâmico durante suas aulas, que eram ministradas para alunos de primário,
era uma medida “necessária em uma sociedade democrática”.

No entanto, o próprio Tribunal reconheceu a dificuldade de provar o impacto que o uso do véu por
parte de uma professora pode ter sobre as crenças dos alunos. Ressalte-se que não havia nada que provasse
que ao longo dos quatro anos em que Dahlab estava exercendo suas tarefas como docente usando o véu,
tenha produzido qualquer tipo de influencia.

Assim, de acordo com as palavras de Cayón, Dahlab precisaria provar que o uso do véu não provo-
cava qualquer tipo de efeito sobre as crenças religiosas dos alunos. Lautsi, por sua vez, teria que provar a
exposição do crucifixo em sala de aula exercia influencias nas convicções religiosas dos seus filhos e dos de-
mais alunos. Dessa forma, verifica-se uma total discrepância e divergências nos fundamentos utilizados para
decidir sobre questões religiosas, levando a crer a existência de uma verdadeira parcialidade por parte das
autoridades julgadoras.

Cayón, conclui o seu artigo afirmando que por meio do seu trabalho procurou demonstrar as estraté-
gias argumentativas utilizadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao decidir sobre liberdade religio-
sa. Segundo ele, o Tribunal utiliza como estratégia argumentativa de forma abusiva a doutrina da “margem
de apreciação nacional” que por sua vez só faz gerar uma jurisprudência voltada para a proteção das religiões
majoritárias e uma atuação estatal que não corresponde aos ideais de neutralidade e imparcialidade, preju-
dicando o pluralismo.

CONCLUSÃO

Enfim, tanto o professor Winfried Brugger quanto José Ignacio Solar Cayón procuram enfatizar a te-
mática das relações entre Igreja e Estado. A Corte Constitucional da Itália se pronunciou por diversas vezes
que a Constituição impõe o princípio da separação entre Estado e Igreja. Contudo, a adoção do princípio da
separação não significa dizer que o Estado é indiferente às religiões, pois tem o dever de garantir a liberdade
religiosa diante da existência de um pluralismo cultural, permitindo nesse liame que as crenças, culturas e
tradições coexistam sem qualquer discriminação.

Entretanto, na prática se percebe que os fundamentos utilizados pela Suprema Corte para assegurar
a liberdade religiosa em seu sentido amplo, muitas vezes termina por gerar violações desse direito, em espe-
cial naqueles indivíduos, cujas convicções religiosas estão em menor número.

REFERÊNCIAS

CAYÓN, José Ignacio Solar. Lautsi contra Italia: sobre la libertad religiosa y los deberes de neutra-
lidad e imparcialidad del estado. Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho. Universidad
de Cantabria, 2011.

BRUGGER, Winfried. Da hostilidade passando pelo reconhecimento até a identificação – modelos


de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa. Disponível em http://www.dfj.inf.br/Arqui-
vos/PDF_Livre/10_Dout_Estrangeira_1.pdf

EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço


para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. Disponível em http://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/383/823.

132
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

MORAIS, Márcio Eduardo Pedrosa. RELIGIÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O PRINCÍPIO DA LIBER-


DADE RELIGIOSA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO. Revista Brasi-
leira de Direito Constitucional–RBDC n, v. 18, p. 225, 2011. Disponível em: http://www.esdc.com.br/
RBDC/RBDC-18/RBDC-18-225-Artigo_Marcio_Eduardo_Pedrosa_Morais_%28Religiao_e_Direitos_Funda-
mentais_o_Principio_da_Liberdade_Religiosa%29.pdf

http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1718/1364

133
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO


À COMUNICAÇÃO:
A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM
MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA

Camila Freire Monteiro de Araújo


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Izídia Carolina Rodrigues Monteiro


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira

Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito
Público, Graduada em Direito na AESO/PE. narasantacruz@hotmail.com.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Esfera Pública, Democracia e Direito à Comunicação; 2. Os limites da con-


cepção burguesa do direito à liberdade de expressão; 3. Espaço midiático: concentração, privatização
e segmentação; 4. Liberdade de imprensa x direito à comunicação; 5. O Direito à comunicação na
América Latina; 5.1. O caso da Argentina; 5.2. Lei de meios; 6. Sistema Público de Comunicação;
Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Embora a redemocratização da sociedade brasileira tenha ocorrido há mais de duas décadas, as re-
gras que regulamentam a radiodifusão constituída no país pela rádio e televisão abertas permanecem, ainda
hoje, praticamente inalteradas, e a patente concentração dos meios de comunicação nas mãos de cinco
famílias (LOPES, 2011) talvez seja um dos exemplos mais explícitos da contradição da democratização no
Brasil. O oligopólio constituído durante o regime ditatorial militar permanece; como avanços no campo da
comunicação social, houve alguns, tímidos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo
governo federal em 2007, bem como a realização, em dezembro de 2009, da 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom).

Para o professor Murilo César Ramos (2000), o desenvolvimento do sistema de comunicação brasi-
leiro foi caracterizado por compadrio, patronagem, clientelismo e patrimonialismo. Associados a uma cultura
política e social arcaica, esses elementos desenvolveram-se pelo Brasil e sofisticaram-se por meio da rádio
e da televisão, servindo como instrumentos de reforço de dominação e manutenção das injustiças sociais e
contribuindo, sobretudo ideologicamente, para a manutenção da hegemonia do grupo econômico-político-
-militar que estava governando o país.

Em razão de ocupar lugar central no processo de construção da hegemonia, desde a segunda me-
tade da década de 1960 (LOPES, 2011, p. 2), a televisão precisa ser considerada como um dos elementos
fundamentais para pensar a democratização, tanto da comunicação quanto da própria sociedade brasileira.
Partindo-se do reconhecimento de que este meio de comunicação implica em um estratégico instrumento

134
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de poder, conclui-se que a sua democratização representa a potencialidade da democratização da cultura


política, da formação da opinião pública e dos costumes (MARTÍN-BARBERO, 2001).

Na sociedade de massas contemporânea, a opinião pública não se forma, como no passa-


do, sob o manto da tradição e pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou
grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência mental e emocional das transmis-
sões efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação de massa.  

A liberdade de opinião na esfera pública se torna a garantia básica da liberdade de expressão, porque
é através da imprensa que a opinião pública se concretiza como uma prática comunicativa regular (MAR-
QUES, 1997). Tal concepção vai além da liberdade de expressão como direito individual. Sendo a imprensa
a mediadora das relações política e privada, então, esta liberdade relaciona, já na sua origem, uma liberdade
individual negativa e uma liberdade social positiva – como uma só dimensão, uma extensiva à outra: a liber-
dade de expressão sendo relacionada à livre manifestação de idéias e opiniões, e, a liberdade de imprensa,
aquela que media e garante a liberdade de expressão através dos meios de comunicação (MARQUES, 1997).

1. ESFERA PÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITO À COMUNICAÇÃO

A mídia é o âmbito em que se dá a produção e circulação de bens simbólicos, constituindo-se como


campo de embate crucial para os processos de representações sociais e formação de identidades. Situa-se,
a imprensa, no que compreende-se como esfera pública, definida por Habermas como sendo um espaço de
articulação entre a esfera privada e o Estado (HABERMAS, 1991), em que os interesses e pretensões da
sociedade civil apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. (GO-
MES,1998).

A esfera pública surge com a consolidação da burguesia enquanto classe. Alijada de participação po-
lítica no contexto do Estado Absolutista da Idade Moderna, subjugada pelas autoridades política e religiosa,
a burguesia, que detinha o poderio econômico, identifica, na esfera pública, um reduto onde se fará possível
o debate livre das hierarquias dominantes. Esta nova esfera, embora fosse um local de debate entre homens
privados – destituídos de poder estatal – era investida de relevância pública, passando a integrar um inter-
câmbio social extenso, induzido e controlado publicamente, tornando-se relevante e autônoma, composta
pela sociedade civil emancipada (à época, representada pela burguesia) (GOMES, 1998, p. 160).

É dessa forma, ainda de acordo com Gomes, que surge a ideia de esfera pública como um local de
mediação entre o Estado e a sociedade civil. Tornando-se instrumento essencial à tomada e à legitimação de
decisões políticas, diante desse novo fórum público, a imprensa vai estar associada, desde então, principalmente
ao espectro da opinião pública política (GOMES, 1998), de modo que a liberdade de opinião na esfera pública
passa, desde então, a ser sede da liberdade de expressão.

Inobstante, analisando as transformações da esfera pública, sobretudo a partir da segunda metade do


século XX – compondo os fenômenos de consolidação do capitalismo contemporâneo - Habermas identificará
seu desvirtuamento, com a conversão da imprensa em empresa capitalista e a transformação do “cidadão”
em “consumidor de serviços”. Sob o signo da troca de conhecimentos e intercâmbios culturais, e com a
perspectiva de domínio e expansão comerciais, houve um intenso investimento para a instrumentalização da
comunicação com o objetivo de impulsionar a economia industrializada. Thompson, por exemplo, acredita
que a mídia criou uma nova concepção de esfera pública, desterritorializada e não dialógica (1995, p.42).

Os grandes grupos de comunicação falam da liberdade de imprensa apenas quando alguma medida
estatal tenta intervir em sua produção, seja por censura ou por regulamentação. Mas esquecem-se que a
liberdade de expressão requer meios de fala, para garantir a diversidade de interesses e representação dos
diversos grupos e setores sociais. Portanto, o direito à comunicação, na sociedade contemporânea, depende
da “universalidade da liberdade de expressão individual”. Ou seja, para que o direito fundamental à liberdade
de expressão seja garantido a todos e implique no direito à comunicação, precisa ser assegurado um conjunto

135
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de condições para um ciclo positivo de comunicação, cujo ponto de partida é o acesso aos meios de comuni-
cação em massa.(INTERVOZES, 2010, p. 23).

2. OS LIMITES DA CONCEPÇÃO BURGUESA DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

Em seu livro “Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movi-
mentos sociais”, Renata Rolim (2011, p. 33) elucida que “Naturalizada a ordem capitalista, o uso público da
razão transformou-se em operacional de administração dos conflitos dentro dos limites das condições sociais
existentes – privilégio de uma intelligentsia capaz de traduzi-la para as massas na esperança de transforma-
-las em seres racionais”.

Ao final da batalha contra o absolutismo monárquico, que culminou no fim do antigo regime e defini-
tiva ascensão da burguesia, assistiu-se ao triunfo da concepção liberal na condução da imprensa mediante a
positivação de seus elementos essenciais para o domínio capitalista, a liberdade de publicação e de empresa.
Mediante a apropriação empresarial dos meios de produção da informação, a burguesia viabilizou a imposi-
ção temática de sua esfera pública – autonomia individual, fundada na liberdade econômica, a que deve se
submeter toda organização política – sufocando outras interpretações e projetos, intentando – sem direito ao
contraditório - a consolidação da democracia política liberal. Com a ajuda do Estado, a burguesia utilizou-se
de mecanismos restritivos para afastar os trabalhadores e a população em geral do acesso às tecnologias de
produção da informação. A ingerência estatal nem sempre é mal vista pelos defensores do free trade (RO-
LIM, 2011).

3. ESPAÇO MIDIÁTICO: CONCENTRAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO.

Historicamente, a negação seletiva do poder de voz nos ambientes públicos de debate é utilizada como
uma eficiente ferramenta de exclusão e controle sociais. Tal restrição atua na subjetividade dos grupos que
se intenta controlar e marginalizar, vez que trabalha na perspectiva sistemática destituí-los de sua capacida-
de de argumentação, ação, reflexão e poder de auto representação, reverberando não apenas na impotência
ante a tomada desse espaço público, mas refletindo na própria identidade e auto-estima grupais. O início de
um ciclo positivo de comunicação imprescinde, portanto, da diversidade de conteúdo, e, consequentemente,
da diversidade da propriedade dos meios de comunicação (INTERVOZES, 2010, p. 23).

Ao estudar o desenvolvimento do cenário da comunicação brasileira, Renato Ortiz (1991) marca que,
aliada ao fenômeno do capitalismo tardio, a consolidação da cultura midiática de massa ganha forma mais
definida no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do fim
de tal regime, a lógica da concessão pública de outorgas mantém uma relação muito parecida ainda hoje.
Durante o regime ditatorial, a outorga e a concessão públicas dadas a estes veículos dependiam diretamente
da relação destes com a linha ideológica ditatorial – além do crivo da própria censura, pelo qual qualquer
programação passaria, independentemente.

Apesar de a abordagem dos grandes veículos de comunicação não ser mais plenamente vertical, suas
diretrizes continuam correspondendo à manutenção dos privilégios de elites políticas e econômicas domi-
nantes, à lógica do capital, do status quo, e, como consequência, à ideologia dominante. Em um cenário em
que poucos grupos empresariais controlam as comunicações no país, vale dizer que existem outros fatores
- para além dos mecanismos de controle estatais, hoje refreados - que restringem a liberdade de imprensa –
e, consequentemente, de expressão - àqueles que não dispõem do controle sobre os meios de comunicação.
Desse modo, a censura não mais caracteriza-se como sendo monopólio do Estado, mas “também está sendo
privatizada” (LIMA, 2010, pag. 105).

Tal aparente incoerência em relação a quê/quem ameaça ou censura a liberdade de imprensa de-
monstra a necessidade do debate livre e racional acerca do tema que é de interesse público - bem como do
resgate à teoria da esfera pública. Porém, afirma Kucinski que existe a interdição a este debate por parte
da chamada grande mídia, que costuma acusar qualquer tentativa de regulação democrática do setor como

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sendo “censura” (KUCINSKI, 2002) numa clara reivindicação da perpetuação de seu privilégio no controle
destes meios, e, por conseguinte, de controle sobre a poderosa opinião pública.

Afirma a chamada grande mídia que a regulação (qualquer que seja) representaria restrição ao di-
reito fundamental absoluto à liberdade de expressão - como se este direito lhes fosse privativo - invocando o
fantasma da censura estatal quando, em realidade, as iniciativas de regulamentar o setor vêm, de forma con-
tundente, não do Estado, ou do governo, mas da própria sociedade civil organizada, e dos movimentos sociais.
Assim, evitam que o debate floresça – o que lhes é bastante fácil, vez que detém os meios de comunicação
e “censuram” a entrada nestes desta discussão – e silenciam todos os atores políticos que pleiteiam voz e
representatividade na esfera pública, esterilizando qualquer tentativa de aprofundamento do debate através
da rotulação de “censura”, “restrição”, “repressão”. Nesse caso, o efeito silenciador vem do próprio discurso.

Em 2002, projeto inédito desenvolvido por Daniel Heinz e intitulado Donos da Mídia desvendou as
ramificações das seis principais redes nacionais de tv aberta – veículo de comunicação que exerce até hoje
papel estruturador no conjunto do mercado de mídia – quais sejam: Globo, Record, SBT, Bandeirantes,
RedeTV! e CNT. O estudo constatou que, por meio de grupos afiliados, as redes geram um vasto campo de
influência, em escala de massas, que capilariza por 294 emissoras de tv em VHF (90% do total de emissoras
do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em onda tropical (OT), além de 50
jornais. Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico
e político que se ramifica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões (HERZ, 2002).

Não é difícil concluir que, diante dos fenômenos da consolidação do capitalismo e da globalização
mundial, a comunicação é instrumentalizada para atendimento, manutenção e criação de mercados, detur-
pando seu caráter primordial, situação esta que reflete em problemas relacionados à representatividade quais
reverberarão nas esferas políticas e pessoais dentro da sociedade.

4. LIBERDADE DE IMPRENSA X DIREITO À COMUNICAÇÃO.

Na maioria dos países latino-americanos, a mídia desenvolveu-se com o apoio de governos autoritá-
rios, tendo a lógica do capital como embasamento para sua ampliação. Toda a infraestrutura necessária para
a expansão do rádio e da televisão foi promovida por tais governos, quais limitaram aos movimentos populares
o acesso às tecnologias de produção da informação, enquanto viabilizavam a adoção de políticas neoliberais
que intensificaram as economias de escala e a maior integração e dependência do setor em relação ao siste-
ma global comercial (ROLIM, 2011).

Na América Latina, foi adotado o free flow of information, isto é, a versão informacional da livre cir-
culação de capitais. Na década de 80, quando esse modelo foi implantado, apenas cinquenta corporações
globais dominavam quase todos os meios de comunicação existentes, número este que foi, ainda, diminuindo
com a chegada dos anos 90, em que apenas oito corporações detinham tal domínio - obtido através de estra-
tégias de desestatização das telecomunicações, como a permissão de investimentos estrangeiros e a liberali-
zação da propriedade de meios audiovisuais (ROLIM, 2011).

O free flow information ocasionou a diminuição do espaço para a criação de meios de comunicação
mais democráticos e de produções que não se adequam ao retorno de capital imediato, sendo responsável por
tornar vulnerável o mercado de trabalho da indústria cultural latino-americana em relação à concorrência
com os países centrais. O que é produzido pelos grandes grupos midiáticos tem como principal escopo a dis-
tração da audiência para o retorno econômico imediato, de modo que o processo comunicacional não reflete
a experiência social destes indivíduos (ROLIM, 2011).

5. O DIREITO À COMUNICAÇÃO NA AMÉRICA LATINA.

Segundo Paulo Freire, não há possibilidade de haver comunicação dentro de uma via de mão única,
uma vez que a comunicação se constrói na busca de significação dos significados entre os interlocutores. De

137
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

acordo com a sua teoria da comunicação “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, tam-
bém, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (PAULO FREIRE,
1970, p. 83). A comunicação, portanto, não deve ser vista como relação entre um sujeito ativo e outro passivo,
mas implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.

 O direito à comunicação, no entanto, sempre encontrou barreiras nos oligopólios midiáticos. Esses
grupos são responsáveis por adotar estratégias de censura à liberdade de informação, quando, por exemplo,
têm o poder de decidir o conteúdo que irá ou não ser veiculado em seus domínios (DÊNIS DE MORAES,
2013), bem como quando são capazes de silenciar as vozes que fazem oposição a seus interesses políticos.

Nos países latino-americanos, a adoção de políticas públicas foi de grande importância para possibi-
litar um maior acesso ao direito à comunicação - imprescindível que tais medidas viessem acompanhadas
da desconcentração do espaço midiático (DÊNIS DE MORAES, 2012), cedendo espaço a vozes contra he-
gemônicas. Devido ao seu contexto social e político, a Argentina é hoje um dos países que adotou de forma
bastante satisfatória a ampliação do direito à comunicação.

Dênis de Moraes (2011) em seu livro Vozes da América Latina aborda como as políticas públicas
devem direcionar-se à redefinição do setor de mídia em bases mais equitativas, tornando as relações mais
simétricas, combatendo os privilégios que vêm favorecendo a iniciativa privada. Aponta como as campanhas
opositoras orquestradas pelas elites empresariais detentoras do oligopólio midiático combatem a referida
diversificação da radiodifusão sob concessão pública, objetivando a manutenção de seus privilégios. Essas
campanhas denunciam uma suposta ameaça à liberdade de expressão imposta pelos governos progressistas,
reduzindo a liberdade de expressão à liberdade de imprensa e, esta, à liberdade de empresa.

A efetivação do direito à comunicação na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 era pretendida
a partir da criação de meios de comunicação alternativos, em que a propriedade e o controle seriam coletivos,
a partir da ampla participação na elaboração da programação. Na Venezuela foram implementados progra-
mas de incentivo às rádios e TVs comunitárias; na Bolívia, Evo Morales estimulou as rádios comunitárias
doando equipamentos e isentando-as do pagamento da licença e uso das frequências. Um fato importante a
ser destacado foi a criação da TELESUR, composta pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Ve-
nezuela. Trata-se de uma empresa pública multiestatal que tem como escopo a integração dos povos latino-a-
mericanos e que pretende ser uma alternativa ao discurso das corporações midiáticas (DÊNIS DE MORAES,
2011). Desse modo, as políticas públicas desses governos progressistas além de apoiarem os meios que não
atendem à lógica do capital e uma nova configuração do serviço público de radiodifusão, também ajudam na
difusão de conteúdos com incentivo à produção cultural e o estímulo à indústria audiovisual nacional.

5.1 O CASO DA ARGENTINA.

Considerado um dos primeiros países a reformular seu marco regulatório da comunicação, a Argenti-
na tornou-se referência para aqueles que lutam pela democratização da mídia. Dentre os países latino-ame-
ricanos a Argentina era o que adotava políticas neoliberais mais rigorosas, onde os processos de concentração
econômica tiveram grande avanço, além da desnacionalização do espaço midiático. Consequência disso foi a
concentração desses meios nas mãos dos dois maiores grupos presente no país, ADMIRA e Clarín, responsá-
veis por retransmitir várias produções importadas dos Estados Unidos.

Durante a redemocratização do país, no entanto, houve diversas tentativas de diversificação do es-


paço midiático, num longo processo que teve a sua culminância na promulgação de novo marco regulatório.
Vários movimentos sociais, comunitários e sindicatos uniram-se em torno da Coalizão por uma Radiodifusão
Democrática (CRD), a fim de atuar pela democratização dos meios de comunicação (BRÁULIO RIBEIRO,
2012). Esse projeto teve grande apoio da população, que se organizou em diversos atos, e, posteriormente, foi
apoiado pela presidente Cristina Kirchner. Tal apoio acarretou o embate direto entre o governo e os grupos
midiáticos, devido ao fortalecimento da crise política.

138
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Os oligopólios midiáticos se utilizaram das medidas adotadas para acusar Kirchner de atentar contra
a liberdade de imprensa e de expressão, enquanto os setores populares e seus aliados que ansiavam pela de-
mocratização dos espaços midiáticos demonstraram apoio à continuidade do governo, organizando protestos
decisivos para a aprovação do marco regulatório.

5.2. LEI DE MEIOS.

A Lei n. 26.522/2009, conhecida como a Ley de Medios, reorganizou o espaço midiático através da
desconcentração da concorrência, permitindo que outros atores obtivessem concessões para produzirem
outros conteúdos audiovisuais, não necessariamente alinhados com a ideologia dominante. Importante citar
as soluções normativas encontradas para equilibrar a democratização da mídia com os mecanismos de pro-
dução comuns do modo de produção capitalista.

A lei de meios pretendeu regular os critérios de outorga de licenças e operação, bem como o monito-
ramento da qualidade do serviço e do atendimento a critérios de pluralismo (LINS, 2009). Para garantir um
amplo acesso aos meios de comunicação foram tomadas medidas com o intuito de inibir a sua concentração.
Dentre elas, encontra-se a limitação do número de outorgas de licenças – quais são concedidas através de um
processo licitatório. Essas licenças passaram a ter um prazo de 10 anos, podendo ser renovadas uma única
vez; findo o prazo da renovação passou a ser necessário outro processo licitatório, havendo a possibilidade de
que antiga outorgatária concorra em condições de igualdade com outros pleiteantes (LINS, 2009).

Alguns artigos da lei tornaram-se os mais polêmicos por impor limites à concessão de faixas de radio-
difusão e audiovisual a grupos empresariais. Visando a coibir a tendência concentradora vigente no sistema
privado, a lei estabeleceu dois limites: o primeiro deles é o número de licenças e o segundo é a cota de mer-
cado. Outra exigência da lei é a proibição da coexistência de vínculos societários entre empresas de radio-
difusão, agências de publicidade e de jornais e revistas, como forma de impedir os processos de integração
vertical e horizontal.

A lei estabelece, a nível nacional, um limite de uma licença de radiodifusão por satélite, e até 10 li-
cenças de serviços de comunicação audiovisual por radiodifusão. A nível local, são estabelecidos os limites de
uma única licença de radiodifusão sonora em AM, uma única em FM, ou até duas, se houver mais de oito
emissoras na localidade. Quando se tratar da única frequência disponível, não pode ser outorgatário quem já
tenha outorga na mesma área ou em áreas adjacentes (LINS, 2009). Quanto à cobertura, as licenças conce-
didas estão proibidas de atingir um número superior a 35% da população. Como restrição à formação de re-
des, passou-se a exigir autorização formal do governo para que uma emissora atue como afiliada a uma rede.

A Ley de Medios reconheceu a importância das emissoras comunitárias, que deixam de sofrer res-
trições com o advento da lei, cabendo a elas 33% de todas as frequências de radiodifusão. Além disso, não
sofrem com restrições geográficas de alcance ou de temática e recebem autorização para se constituírem em
redes, desde que observadas as cotas de programação (ROLIM, 2011).

A fim de que a Lei de Meios pudesse ter sua efetivação garantida, foram criadas entidades regulado-
ras para atuarem de modo conjunto com a autoridade competente na matéria de telecomunicação. A Autori-
dade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) tem como escopo a interpretação e a aplicação
da lei com independência orçamentária e administrativa em relação ao governo nacional (ROLIM, 2011).
Tem como objetivos a melhoria da qualidade técnica dos serviços de radiodifusão, a igualdade de acessos e
a pluralidade de informações, bem como o controle da programação, a avaliação do conteúdo, bem como a
fiscalização, identificação de infrações e aplicação das sanções adequadas (INTERVOZES, 2010).

Embora a Lei de Meios seja reconhecida por abrir espaço para novas vozes e ser reconhecida como
uma das leis mais avançadas do mundo, ainda sofre bastante com entraves impostos tanto pelo Judiciário
quanto pela resistência por parte dos grandes grupos midiáticos. Mauricio Macri, que assumiu a presidência
da Argentina, atendendo a interesses dos grupos midiáticos, em 15 dias de mandato emitiu decretos presi-
denciais considerados nocivos para os ganhos já obtidos em relação ao direito à comunicação (INTERVO-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ZES, 2016). O último decreto modificou profundamente o que estava previsto na Lei de Meios, ampliando
a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com o alcance máximo de 35%, que se
trata de uma restrição à oligopolização do setor (REVISTA FÓRUM, 2016).

6. SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO.

O horizonte da mídia pública como sistema comunicacional engloba a quebra do paradigma da comu-
nicação como atividade comercial direcionada à obtenção de lucro para proprietários privados ou acionistas,
e, ao mesmo tempo, com a “alternativa” a esse sistema estatista que proponha a excessiva ingerência e domí-
nio governamentais. Intenta-se promover a participação pública, de cidadãos, no gerenciamento do sistema
comunicacional, forjando-o cada vez mais autônomo, sendo justamente essa a medida do caráter realmente
público que é capaz de atingir: a autonomia em relação ao mercado e ao Estado e, como condição essencial,
a abertura à participação, com poder deliberativo, ao cidadão (PEREIRA, 2011).

Quando se fala em sistema público de comunicação pensa-se justamente em um conjunto de mídias


públicas (nos diversos suportes, como rádio, televisão, internet etc.) que operam de modo integrado e sistê-
mico, tendo como horizonte o interesse dos cidadãos. Instituições de mídia cujos financiamentos se baseiam
na comercialização de sua audiência no mercado publicitário não podem encaixar-se nesta categoria. E, se
a agência pública de comunicação necessita de autonomia frente ao mercado, necessita também de inde-
pendência face às influências políticas governamentais para cumprir o seu papel de servir ao interesse dos
cidadãos.

Meios de comunicação de massa financiados por dinheiro público e livre do controle privado comer-
cial tem sido um modelo de comunicação bastante explorado e consolidado na maioria das democracias mo-
dernas. Segundo pesquisa realizada no ano de 2006 em sete países (França, Coréia do Sul, Alemanha, Reino
Unido, Itália, Estados Unidos e Japão) pelo Instituto NHK de Pesquisa em Radiodifusão (NHK Broadcasting
Culture Research Institute, 2006), 4 em cada 5 cidadãos consideram necessário existir um sistema público
de comunicação. Em países como Alemanha, Japão e Reino Unido – onde há cobrança de imposto específico
que financia mídias públicas – 60% dos entrevistados consideraram importante pagar este tipo de tributo
para sustentar tais corporações.

No Brasil, o tema da democratização da mídia ainda é tratado como uma espécie de tabu, o que se
dá, em parte, pelo fato de ter sido este debate abafado durante quase todo o século XX. Principalmente sob
o incentivo do regime militar, após os anos 60, o país desenvolveu um sistema de comunicação de perfil
majoritariamente comercial. Tal realidade fez com que, no Brasil, pouco se saiba sobre o real papel da mídia
pública (PEREIRA, 2011).

A sociedade brasileira convive com o modelo comercial achando que ele é


único, o que impede qualquer reivindicação transformadora. As iniciativas
de radiodifusão pública que surgem a partir do final da década de 1960 no
Brasil são tímidas e sem forças para concorrer com o modelo hegemônico es-
tabelecido. Sofrem da falta de recursos, das ingerências político-partidárias e
da ausência de programas de ação de médio e longo prazo. Além das pressões
abertas ou veladas dos radiodifusores comerciais contra uma possível concor-
rência do modelo público (LEAL apud PEREIRA, 2011, p. 4).

A despeito da negligência do Estado e das políticas públicas mesmo no período em que se vivenciou
a redemocratização do país após o término da Ditadura Militar, o projeto de um sistema público de comuni-
cação ganhou novo fôlego nas décadas subsequentes e culminou na criação da Empresa Pública de Comu-
nicação (EBC) através do Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Em seu artigo primeiro, o
decreto estipula que a EBC é “uma empresa pública, organizada sob a forma de sociedade anônima de capital
fechado, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (BRASI, 2008).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Dentre as finalidades da Empresa Pública de Comunicação, elencadas pelo art. 2º do Decreto nº


6.689, de 11 de dezembro de 2008, estão a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal;
a promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conte-
údo; a produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas;
a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; a autonomia em
relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema públi-
co de radiodifusão; e, finalmente, a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do
sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira (BRASIL, 2008).

Intimamente ligado ao problema da blindagem em relação a interesses de natureza partidária ou


privada, isto é, da autonomia e independência de uma mídia efetivamente pública, está o problema da legiti-
midade democrática, que remete à questão da participação. A Empresa Brasil de Comunicação possui uma
instância deliberativa (Conselho Curador) que tem as prerrogativas de aprovar o plano de trabalho anual da
empresa, bem como a sua linha editorial, fiscalizando e fazendo recomendações de acolhimento obrigatório
pela diretoria executiva da organização. O Conselho Curador da EBC é composto por 22 membros. São 15 re-
presentantes da sociedade civil (indicados pelo presidente da República nesta primeira gestão), 4 do Governo
Federal (representantes dos ministérios da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Comunicação Social,
também indicados pelo Executivo Federal), 2 do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e 1 dos funcionários
da empresa. Os membros têm mandato de quatro anos, com possibilidade de renovação a cada dois anos. A
legislação também prevê que a renovação das vagas dos representantes da sociedade civil será feita através
de uma consulta pública – apesar disso, o formato desta consulta ainda não está definido.

A existência de uma instância mista e com poder de decisão na EBC é significativamente positiva,
mas ainda é necessária a qualificação do modo de escolha de seus membros – o atual modelo é frágil e omisso
quanto aos critérios de indicação, o que põe em xeque a necessária autonomia da agência. A falta de objetivi-
dade na escolha dos componentes do órgão deliberativo acaba revestindo de personalismo as indicações a se-
rem feitas pelo Presidente da República, o que, por sua vez, faz com que tal instância passe a ser influenciada
por uma política de governo e não por uma política de Estado, como deveria ser e como acontece nos países
onde o sistema é mais consolidado (VALENTE, 2011). Necessário seria que esta instância fosse composta por
representantes indicados por um maior número possível de entidades da sociedade civil, algo que seja aberto
a ponto de garantir que o Conselho tenha proporcionalidade regional, diversidade de segmentos, pluralidade,
onde todos os setores como cinema, audiovisual, cultura se sintam representados.

Além das emissoras educativas-estatais e aquelas ligadas a fundações civis sem fins lucrativos, dois
outros segmentos também entram no debate sobre o campo público de comunicação: as emissoras univer-
sitárias e os canais comunitários de rádio e TV. Embora sustentem formatos bastante distintos de conteúdo
e transmissão, ambos os segmentos se vinculam ao campo através de sua aproximação com as comunidades
ou nichos públicos em que atuam, seja as comunidades universitárias, as comunidades de bairros urbanas
ou em pequenas localidades do interior e povoados rurais.

Os canais comunitários, de suma importância para a consolidação de uma mídia democrática e po-
pular, caracterizam-se por sua aproximação com o campo público, e em sua forma de gestão enraizada nas
comunidades. Seu caráter eminentemente comunitário, tanto no protagonismo para a criação de conteúdo
quanto em sua natureza autóctone, diferencia-as em relação aos demais veículos públicos de comunicação,
em razão da relação orgânica que possuem com o entorno – o que significa estar abertas à participação de
moradores e movimentos sociais da localidade, garantir o contraditório e a pluralidade de opiniões, prestarem
serviços de utilidade pública, estar comprometida com as lutas e demandas da comunidade (SÓTER apud
PEREIRA, 2009).

Peruzzo (1991, p. 162) defende que a participação na comunicação popular é fundamental para o
processo emancipatório, qual contribui para cidadania e possibilita ao homem tornar-se sujeito. A necessida-
de de conscientização e mobilização popular implica na demanda por meios de comunicação populares, aces-
síveis, a fim de que a prática comunicacional seja experienciada enquanto dinâmica social transformadora,
atuando simultaneamente como meio de conscientização, mobilização, educação e agenciamento cultural.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É esse processo de construção da cidadania que propicia e aponta para o desenvolvimento local, mediante a
combinação eficiente das potencialidades de cada território, de seus recursos e de sua força empreendedora.

CONCLUSÃO

Objetivo deste trabalho foi identificar, na teoria e na prática, o direito fundamental à liberdade
de expressão e a inter-relação que este possui, numa realidade midiatizada, com o direito à
comunicação. Como poderia se desenvolver democraticamente ao prescindir do acesso aos ve-
ículos através dos quais essa comunicação se dá? Intentou-se discutir, portanto, a situação da
comunicação – enquanto direito - em um cenário em que poucos grupos empresariais contro-
lam os veículos de imprensa no país, privatizando e restringindo o acesso a um espaço de fala
qual se constitui como principal lócus de desenvolvimento da própria opinião pública.

Ademais, objetivou-se compreender de que forma poderia se desenvolver um marco re-


gulatório para a comunicação no Brasil, por meio do qual fossem regulamentados os artigos 5,
21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal, efetivando a força normativa constitucional
por eles ostentada, promovendo o direito à comunicação como direito fundamental e corolário
da liberdade de expressão, para que a comunicação social seja orientada por princípios outros,
devidamente positivados em conformidade à exegese constitucional, que não o poderio econô-
mico e político dos locutores.

Desde 2013, movimentos sociais, organizações que compõem o Fórum Nacional pela Democratiza-
ção da Comunicação (FNDC) e ativistas pelo direito à comunicação, recolhem assinaturas para apresentação
ao Congresso de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação de um marco regulatório para a comu-
nicação no Brasil, que regulamenta os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Inspirada
nos tratados internacionais já ratificados pelo Brasil e em experiências regulatórias de países como a França e
a Espanha, a Lei da mídia democrática propõe mecanismos de implementação dos mencionados dispositivos
constitucionais, quais são objeto de retumbante omissão legislativa, carecendo de legislação infraconstitucio-
nal que os regulamente. Entre os principais dispositivos presentes no projeto de lei estão o veto à propriedade
de emissoras de rádio e TV por políticos, a proibição do aluguel de espaços da grade de programação, a defi-
nição e delimitação de regras para impedir a formação de oligopólios, a criação de um Conselho Nacional de
Comunicação e de um Fundo Nacional de Comunicação Pública.

Para além da elaboração de um novo marco regulatório que reorganize a comunicação como um todo,
uma série de propostas e teses vem sendo publicadas por instituições, associações e movimentos sociais sobre
o tema “sistema púbico de comunicação”. É possível listar alguns horizontes ou diretrizes que vem sendo
apontadas e reforçadas através dessas manifestações: ampliação do número de emissoras e fortalecimento
das já existentes no campo público (estatais, culturais, comunitárias, educativas); aumento da participação
civil nas empresas públicas de comunicação, através de instâncias deliberativas, com participação de repre-
sentantes da sociedade civil criteriosamente estabelecida e objetivada; estipulação de metas em torno de
percentuais a serem cumpridos quanto ao desenvolvimento entre os sistemas público, privado e estatal (seja
através de cotas na concessão de canais, seja através de fomento e políticas públicas de desenvolvimento para
atingir tal equilíbrio); fomento à produção independente e fortalecimento da cadeia produtiva entre os canais
e emissoras do campo público; criação de fundos para fomento do sistema público de comunicação; criação
de tributos ou redirecionamento de tributos já existentes para financiamento direto da comunicação pública;
tributação do sistema comercial para financiamento do sistema público, dentre várias outras.

Segundo GRAMSCI (2002), o enfrentamento da hegemonia só é possível quando o grupo social su-
balternizado possui condições de superar seus patamares de subalternidade até que seja capaz de “sair da
fase econômico-corporativa para elevar-se à fase da hegemonia político-intelectual na sociedade civil e polí-
tica” (1999, p. 460). Ao identificar o poder de palavra e da participação nos meios de políticos, grupos histo-
ricamente excluídos da esfera pública e, consequentemente das decisões políticas, através da comunicação,
são capazes de mudar a estrutura das representações sociais e mobilizar debates e iniciativas, integrando, de
fora efetiva, as movimentações populares que lutam por transformação social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA:


A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU
PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO
POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO

Carla Cristiane Ramos de Macêdo


Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES, participante do programa de Iniciação
Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA), e integrante do Projeto de pesquisa Cidadania e
Segurança Pública na Sociedade do/de Risco. E-mail: carlamacedo4@gmail.com

Roberta Cruz da Silva


Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de
Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por


morte como direito, o princípio da autotutela do estado e a obrigação do respeito ao devido processo
legal; 2. Enriquecimento sem causa por parte do estado em relação às contribuições previdenciárias
na aplicação desarrazoada do “abate-teto”; 3. O entendimento da jurisprudência quanto á aplicação
do “abate-teto”; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva fundamentado nos conceitos e entendimentos jurisprudenciais atuais,


destacar e demonstrar determinados aspectos do que se entente por devido processo legal, por enriqueci-
mento sem causa por parte do Estado e como se dá a aplicação do “abate-teto”, com ênfase em explicar que
a acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de agente público com pensão por morte de cônjuge/
companheiro também agente público é possível, pois os valores vem de dois instituidores diferentes, e que é
preciso repensar a autotutela administrativa.

Por meio dos métodos hipotético–dedutivo, histórico e comparativo será feita a análise dos efeitos no
âmbito da Administração e do Judiciário, os princípios constitucionais violados e a recepção deste fenôme-
no jurídico. Também será feita uma vasta explanação do entendimento jurisprudencial, por intermédio da
exposição de súmulas, acórdãos e decisões singulares, pareceres da Controladoria Geral da União (CGU),
da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e doutrinário sobre os temas
abordados.

Tal tema foi escolhido pela total relevância econômica, para a Administração Pública quanto
para os dependentes do servidor instituidor; social, já que esta pratica pode ou não ferir direitos constitucio-
nalmente garantidos, e jurídica, vez há uma disparidade entre o entendimento de todas as instâncias judi-
ciárias e da Administração sobre o assunto, visto que, há diversos julgados, das mais variadas linhas sobre a
constitucionalidade ou não da aplicação imediata e sem prévio aviso ao recebedor dos valores, do “abate-te-
to”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Neste contexto, o trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES
(INICIA) com foco nas áreas de direito administrativo e constitucional, teve como objeto o estudo sobre a
aplicação ou não do abate-teto nestes casos específicos.

1. ACUMULAÇÃO DE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU APOSENTADORIA COM PENSÃO POR


MORTE COMO DIREITO, O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA DO ESTADO E A OBRIGAÇÃO DO
RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O direito à aposentadoria constitui direito fundamental do cidadão, ligado à noção de dignidade da


pessoa humana.

A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha esclarece que o ato de aposentadoria, em verdade, não é
uma concessão do Estado, mas um direito que é assegurado ao agente público, formalizado por meio de um
processo de reconhecimento de sua aquisição pelo interessado. Sob esse prisma, a aposentadoria visa a ga-
rantir os recursos financeiros indispensáveis ao beneficiário, de natureza alimentar, quando este já não tenha
condições de obtê-los por conta própria. (ROCHA, 2005. p. 413.)

Não se trata, contudo, de nenhum privilégio, favor ou condescendência do Estado, mas sim de um
direito fundamental do servidor-trabalhador garantido pela Carta Magna como uma das formas de se assegu-
rar a dignidade da pessoa humana. (BITTENCOURT, 2014.)      

Desta feita, a concessão da aposentadoria constitui uma prerrogativa constitucional do servidor for-
malizada por intermédio de um ato administrativo emanado pelo Estado, em consequência do preenchi-
mento dos requisitos legais não havendo discricionariedade neste ato. Porém, mesmo sendo um direito do
recebedor, a Administração Pública tem aplicado o “abate-teto” aos casos de acumulação de remuneração,
subsídio ou proventos de um servido com pensão por morte deixada por outro servidor sem a devida análise
do caso, sem possibilitar sequer a ciência anterior do beneficiário sobre o fato até o momento que recebe o
valor a menor.

Muitas vezes com base no parecer do Ministro Benjamim Zymler, que será visto adiante, e não foi aca-
tado pela Corte, a Administração Pública aplica o “abate-teto” na soma de dois valores recebidos pela mesma
pessoa, cônjuge/companheiro, mas proveniente de contribuintes distintos e com fatos geradores diferentes.

É justamente diante deste acumulo de uma pensão por morte com alguma outra renda própria do
servidor beneficiário, que a Administração usa a autotutela.

Como se pode observar a autotutela estatal é um princípio administrativo que nesta aplicação em
concreto fere a segurança jurídica do beneficiário, que já tinha sua família, incluindo o de cujus, em uma
situação estabilizada.

A Administração deve garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (Constituição
Federal de 1988, artigo 5º, LIV e LV), visando este fim, tem-se os recursos administrativos são meios formais,
previstos em diversas leis, de controle administrativo, por meio dos quais o interessado inconformado postula,
junto a órgãos superiores da Administração, a revisão de determinado ato administrativo de órgãos inferiores,
lesivos ou não a direito próprio, visando à reforma de determinada conduta, por ilegalidade, inoportunidade
ou inconveniência. O recurso tramita pela via administrativa, sem ingerência da função jurisdicional. Há
garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MEDEIROS, 2014)

 Desse modo, fica evidente que não obstante exista o poder de autotutela ele não pode se sobrepor aos
interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla
defesa e o contraditório. (QUEIROS, 2014)

Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de
terceiros sem que o faça mediante o devido processo legal, por meio do qual se oportuniza a manifestação
prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados. (QUEIROS, 2014)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Desse modo, não se fala em devido processo legal apenas em situações que existam acusados, ou que
se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a
esses a possibilidade de manifestação prévia.

No uso deste poder de autotutela a aplicação do “abate-teto” está sendo feita de maneira automática
e sem ao menos haver a comunicação aos dependentes, quiçá a ampla defesa, tudo com base no teto-remu-
neratório.

A doutrina majoritária defende que o dispositivo que abarca o “abate-teto” (artigo 37. XI, CF/88) é
flagrantemente inconstitucional, porque fere o direito adquirido à irredutibilidade de vencimentos (artigo 37,
XV, CF/88). Tal dispositivo feriu uma cláusula pétrea. O que poderá ser feito pela Administração é manter a
remuneração irreajustável até que chegue no limite remuneratório constitucional. (QUEIROS, 2014)

Feita as devidas considerações sobre como está se dando o processo para se aplicar o “abate-teto” na
Administração e como deveria ser corretamente feito, tratar-se-á agora sobre o entendimento jurisprudên-
cias de tal desconto.

2. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR PARTE DO ESTADO EM RELAÇÃO ÀS CONTRIBUIÇÕES


PREVIDENCIÁRIAS NA APLICAÇÃO DESARRAZOADA DO “ABATE-TETO”

Uma das situações que tem gerado controvérsia no que tange à aplicação do limite remuneratório de
que trata o inciso XI do art. 37 da CF/ 88 consiste na acumulação de pensão por morte com outras verbas
sujeitas ao referido limite, como a remuneração decorrente do exercício de cargo, função ou emprego público
e os proventos de aposentadoria.

Pelo que se observa do referido comando constitucional, estão incluídas no chamado teto remunera-
tório as seguintes verbas: a remuneração e/ou subsídio ou quaisquer outras verbas remuneratórias devidas
aos agentes públicos, os proventos de aposentadoria e as pensões, percebidos cumulativamente ou não.

Porém, no caso da pensão por morte, tendo em vista que o instituidor é pessoa diversa do benefici-
ário, entende-se que esse benefício não deveria ser cumulado com verbas remuneratórias ou proventos de
aposentadoria, para efeito de incidência do chamado “abate-teto” visto que tal verba, em sua origem, tanto
como remuneração e/ou subsídio quanto como aposentadoria do instituidor, já sofreu em sua base de cálculo
a incidência do “abate-teto”.

Por meio do Acórdão nº 2079/2005 – Plenário do Tribunal de Contas da União, por maioria, concluiu
que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte
instituída por outro servidor público, não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se subme-
ta à limitação, como dito no parágrafo acima, prevista no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal.

Diante da divergência quanto à aplicação do teto remuneratório à soma de pensão com eventuais
verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria percebidos cumulativamente pelo beneficiário é im-
prescindível a lição de Couto e Silva:

A Administração Pública, quando lhe cabe esse direito [à invalidação] relati-


vamente aos seus atos administrativos, não tem qualquer pretensão quanto
ao destinatário daqueles atos. Este, o destinatário, entretanto, fica meramen-
te sujeito ou exposto a que a Administração Pública postule a invalidação
perante o Poder Judiciário ou que ela própria realize a anulação, no exercício
da autotutela administrativa. (COUTO; SILVA, 2004. pp. 7-59.)

Neste momento faz-se necessário analisar a jurisprudência sobre o assunto.

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Direito(s) em debate.

3. O ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO Á APLICAÇÃO DO “ABATE-TETO”

Há decisões do Tribunal de Contas da União que protegem o direto do beneficiário a receber o que
lhe é de direito, como por exemplo, a resposta ao pedido formulado em requerimento administrativo para a
Secretaria de Recursos Humanos/MP por uma servidora aposentada no sentido de que não seja aplicado o
denominado abate-teto sobre o somatório dos seus proventos de aposentadoria com a pensão por morte dei-
xada por seu esposo, citando em seu favor precedente do Tribunal de Contas da União. (BRASIL,TCU, 2005)

A resposta para sua manifestação foi no sentido de que:

O abate-teto deverá incidir sobre o montante resultante da acumulação de


proventos de aposentadoria com remuneração de cargo comissionado, mas
que eventual pensão recebida pela mesma pessoa deveria ser considerada
separadamente para efeito de teto salarial. (AGU, 2007, grifo nosso)

Para fundamentar seu entendimento, a Secretaria de Recursos Humanos/MP citou uma decisão ad-
ministrativa do Conselho Nacional de Justiça, no artigo 6º da resolução nº 13, de 21 de março de 2006, que
dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magis-
tratura, segundo a qual o teto remuneratório não deveria incidir sobre a soma da remuneração do servidor
com pensão por morte, tomando por base o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU que firmou entendi-
mento de que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão
por morte instituída por outro servidor público não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente,
se submeta à limitação prevista no art. 37, XI, da Constituição Federal. (BRASIL, CNJ, 2006)

Resolução nº 13/2006 do CNJ. Art. 6º Para efeito de percepção cumu-


lativa de subsídios, remuneração ou proventos, juntamente com
pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheira(o),
observar-se-á o limite fixado na Constituição Federal como teto remunera-
tório, hipótese em que deverão ser considerados individualmente.
(grifo nosso)

Porém diferentemente do entendimento do TCU e da SRH/MP o Advogado-Geral da União entendeu


que deve incidir o “abate-teto” nestes casos:

Conforme exposto pelo Ministro Benjamim Zymler, em seu Voto Revisor, as


limitações do art. 37, XI, da Constituição são destinadas ao recebedor, sem
qualquer ressalva à origem dos benefícios que vier a acumular.
Neste ponto, cabe transcrever o seguinte trecho do mencionado Voto, às fls.
18 dos autos: “As disposições do art. 37 sobre limite de remuneração são des-
tinadas ao recebedor (aquele que percebe, na forma do texto constitucional)
de remuneração e ‘benefícios’, inclusive considerados de forma cumulativa.
Creio que se o objetivo da norma fosse restringir a aplicação do teto consti-
tucional em razão da origem do benefício – ou seja, conforme o instituidor -,
a redação conferida deveria ser outra. Se houvesse um limite específico para
pensões, que não se comunicasse com os demais tipos de renda oriundas
do Tesouro, essa circunstância deveria ter sido expressamente prevista, pois
não pode ser extraída da redação aprovada”. (Voto prolatado por ocasião do
julgamento do qual resultou o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU.)
Ante o exposto, proponho que se responda à consulta em tela no sentido de
que o teto constitucional incide sobre o montante resultante da acumulação
de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão,
e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com
proventos da inatividade”. [...] (BRASIL, AGU, 2005)

148
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Neste ponto o Advogado-Geral da União concorda com o Ministro Benjamim Zymler, que o texto do
artigo 37 da CF/ 88 deveria ser diferente para se garantir a não incidência do “abate-teto”.

[...] Acerca do rigor do art. 37, XI, da CF/88, assim afirma Celso Antônio
Bandeira de Mello:
“O rigor quanto à determinação do teto, como se vê, é bastante grande, pois
sua superação nem mesmo é admitida quando resultante do acúmulo de car-
gos constitucionalmente permitido. Aliás, no que concerne a isto, a vedação
está reiterada no inciso XVI, última parte, do mesmo art. 37, assim como, no
que atine a proventos ou proventos cumulados com vencimentos ou subsídio,
no § 11 do art. 40”. (MELLO, 2006. p. 260.)
[...]
Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo tratam do tema em
seu livro “Nova previdência social do servidor público” e admitem expressa-
mente a incidência do teto sobre o somatório de pensão com aposentadoria,
quando assim afirmam:
“Caso o servidor perceba pensão da União e aposentadoria do Poder Exe-
cutivo do Estado-membro, por exemplo, deverá ser respeitado, no tocante à
parcela paga pelo Estado-membro, o teto estadual. Quanto ao valor pago pela
União, o teto será o valor do subsídio de Ministro do Supremo. A soma das
duas parcelas não poderá exceder este último”. (DIAS; MACÊDO, 2006. p.
155.)
[...]

Os autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macê-
do reafirmam a opinião de que a soma dos valores percebidos devem se limitar ao teto constitucional e caso
o ultrapassem deve sofrer a incidência do “abate-teto”.

[...]
Por fim, considerando que o presente parecer contrasta com o entendimento
majoritário do Tribunal de Contas da União, sedimentado pelo Acórdão nº
2079/2005 – Plenário, entendemos pertinente sugerir que a Advocacia-Geral
da União emita Parecer sobre a questão, a fim de que os órgãos e entidades
da Administração Federal passem a seguir o posicionamento que vier a ser
adotado pela AGU, nos termos do art. 4º, X, da Lei Complementar nº 73/93,
ipsis litteris:
Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União:
[...]
X - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos
normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Admi-
nistração Federal;
Ante o exposto, somos pela aplicação do teto salarial fixado no art. 37, XI, da
Constituição Federal à soma de pensão por morte com proventos de aposen-
tadoria percebidos pelo mesmo beneficiário, sugerindo o encaminhamento
dos autos ao Gabinete do Advogado-Geral da União para que seja fixado en-
tendimento sobre a questão, nos termos do art. 4º, X, da LC nº 73/93, uma
vez que o Tribunal de Contas da União adotou posição contrária à defendida
no presente Parecer. (BRASIL, AGU, 2005)

É justamente com base neste parecer que a Administração Pública vem aplicando o “abate-teto”
indiscriminadamente.

Como será mostrado adiante, assim como foi afirmado no próprio parecer do Advogado-Geral da
União, o entendimento majoritário não é este que ela adotou e sim um totalmente diverso.

149
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O Acordão nº 2079/2005 Plenário, do TCU é um marco neste entendimento, da não aplicação do


“abate-teto” sobre a acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte, pois
mesmo com divergências este foi o entendimento majoritário, como se verá a seguir.

O Ministério Público, solicitado a se manifestar nos autos deste Acordão 2079/2005, manifesta-se
conforme a seguir transcrito, por meio do parecer do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico:

A consulta, à primeira vista, reveste-se de singeleza. Entretanto, as nuances


envolvidas indicam necessário cuidado e atenção para que a interpretação
dos dispositivos se dê conforme a Constituição.
A Constituição de 1988 buscou estabelecer um limite máximo de remunera-
ção para o serviço público. Em seu texto original, a Constituição refletia um
limite inflexível que era robustecido pela dicção do art. 17 do ADCT, que re-
cusava a invocação de direito adquirido ou a percepção de excesso a qualquer
título. O que parecia ser de simples aplicação, no entanto, logo foi modificado
por decisões do Supremo Tribunal Federal que entendeu existirem variadas
exceções à expressão ‘a qualquer título’.
Assim, na esteira de inúmeras decisões judiciais, foram se ampliando as ex-
ceções na legislação até que, em 1994, a Lei nº 8.852/94 já contemplava a
previsão de dezessete exclusões.
O estabelecimento de limites remuneratórios retorna com a edição da EC
nº19/98, fixando-se limites máximos intransponíveis ‘a qualquer título’. Pre-
tensão já contornada anteriormente e que, na prática, voltaria a ser inócua
ante a não publicação de lei reguladora de iniciativa conjunta do Presidente
da República, do Presidente do Supremo Tribunal Federal e dos Presidentes
da Câmara e do Senado Federal para definição do valor do teto. (BRASIL,
TCU, 2005)

A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe as novas regras e tentou esclarecer as dúvidas existentes
sobre os limites aos tetos remuneratórios dos servidores públicos.

Como será visto adiante, serão analisados julgados que destoam do entendimento da AGU, do Minis-
tro Benjamim Zymler e do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico, para fundamentar a possibilidade
de acumulação sem a incidência do “abate-teto”.

Este embargo foi apresentado com a finalidade de contestar de quem é a competência para fazer o
desconto do “abate-teto” e esclarecer outras dúvidas.

[...]
16.Afirma (o embargante) que o CNJ, em 2007, amadurecendo o enten-
dimento sobre o tema, editou a Resolução nº 42 admitindo a incidência
isolada do teto no caso de percepção cumulativa de subsídios, re-
muneração ou proventos, com pensão. 18.Acrescenta que, ainda que
prosperasse tese diversa àquela por ele defendida, a administração estaria
diante de dificuldades operacionais para controlar e glosar parte da remune-
ração daqueles que recebem por mais de uma fonte. A aplicação do dispositi-
vo constitucional depende de definições normativas inexistentes que venham
orientar o procedimento do administrador em face de algumas questões, tais
como: de quem seria a responsabilidade pelo corte de valores que
ultrapassem o teto? da fonte responsável pelo pagamento de maior valor,
do órgão com vínculo mais recente ou seria dada a opção ao agente?; no caso
de vínculos com órgãos públicos de diferentes esferas de governo, que teto
aplicar? que esfera efetuaria o desconto do valor excedente? Deste modo, o
administrador, para dirimir estas dúvidas, depende de definições mediante
lei. 29. Ele se baseia nas Resoluções nºs 13 e 14/2006 do Conselho
Nacional de Justiça e na Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacio-
nal do Ministério Público, que consideram individualmente, para a

150
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

incidência do teto remuneratório constitucional, as remunerações


dos membros da Magistratura e do Ministério Público e dos servi-
dores do judiciário decorrentes do exercício do magistério e da fun-
ção eleitoral, além da pensão decorrente de falecimento de cônjuge
ou companheiro. (BRASIL, TCU, 2009. Grifo nosso)

Além do já exposto há resoluções do Conselho Nacional de Justiça versando sobre o tema. A Reso-
lução nº 13/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio
mensal dos membros da magistratura. (BRASIL, CNJ, 2006.)

Há, também, a Resolução nº 14/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório
constitucional para os servidores do Poder Judiciário e para a magistratura dos Estados que não adotam o
subsídio. (BRASIL, CNJ, 2006.)

Por sua vez, a Resolução nº 42, de 11 de setembro de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, afirma
que o “abate-teto” deve ser aplicado as parcelas de cumulação de subsídio, remuneração ou proventos soma-
dos a pensão por morte consideradas individualmente. (BRASIL, CNJ, 2006.)

Tem-se, também, a Resolução nº 10/2006 do CNMP que dispõe sobre a aplicação do teto remune-
ratório constitucional para os servidores do Ministério Público da União e para os servidores e membros dos
Ministérios Públicos dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNMP,2006)

Conforme se pode observar destas resoluções, os Conselhos excepcionaram situações muito especí-
ficas para a não-incidência do teto, fazendo uma interpretação sistêmica da Constituição que, por um lado
instituiu o teto e, por outro, possibilitou o exercício do magistério e, ainda, determinou que os órgãos da justi-
ça eleitoral fossem compostos por membros de outros órgãos do judiciário, então estas pessoas devem receber
pelo seu trabalho. Já quanto à norma que dispõe que a pensão decorrente de falecimento de cônjuge deva ser
considerada individualmente para observação do teto, acredita-se que a exceção se dá porque o fato gerador
ocorreu por pessoa distinta daquela que recebe o benefício.

O Agravo de Instrumento 25883 demostra o entendimento do Tribunal Regional Federal da Terceira


Região, que concede a antecipação de tutela para que pare de incidir o “abate-teto” no somatório total da
acumulação da pensão por morte, relativa ao seu marido, da aposentadoria relativa a cargo público ante-
riormente ocupado pela requerente e remuneração pela atividade que atualmente desempenha. (BRASIL,
TRF-3, 2012)

O Tribunal Regional Federal da Primeira Região demonstra na Apelação Cível 4939, não só, o enten-
dimento que o “abate-teto” deve incidir de maneira individual em cada benefício, como ainda estabelece a
devolução dos valores já descontados indevidamente, corrigidos monetariamente. (BRASIL, TRF-1, 2010)

A Apelação Cível 424834 cível julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quinta Região coaduna com
o entendimento de que as verbas devem ser consideradas isoladamente, e não cumulativamente, para efeitos
de aplicação do “abate-teto”. (BRASIL, TRF-5, 2004)

Como já abordado anteriormente, pode-se perceber no relato dos fatos a aplicação unilateral, por
parte da Administração Pública, do “abate-teto”, sem possibilidade de ampla defesa ou de contraditório por
parte do beneficiário.

Também o Tribunal de Justiça de Pernambuco no Agravo de Instrumento nº: 0294.343-7 entende


que o “abate-teto” não deve ser aplicado a soma de proventos com pensão por morte pois, a fonte de custeio
e o fato gerador das duas verbas tem caráter distintos arcados individualmente por cada um de seus institui-
dores e por isso devem ser individualmente consideradas.

[...] É o que deflui dos julgados infratranscritos: “Teto remuneratório - Cumu-


lação Irredutibilidade - Aposentadoria e Pensão - O pagamento cumulativo
de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores

151
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inci-


so  XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam
fundamento jurídico diverso. A limitação de vencimentos não pode
desconsiderar os princípios constitucionais básicos e a garantia
da irredutibilidade de vencimentos e proventos. Exige, no mínimo,
que seja respeitado o valor pago que resta congelado até que o valor do teto
o ultrapasse. Recurso adesivo da autora provido e improvidos o recurso da
ré e o reexame necessário.”.(TJ-SP - APL: 424305620108260053 SP
0042430-56.2010.8.26.0053, Relator: Lineu Peinado, Data de Jul-
gamento: 29/11/2011, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publi-
cação: 01/12/2011)”Servidora pública municipal - Cumulação - Aposenta-
doria e Pensão - Teto remuneratório - O pagamento cumulativo de proventos
de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores ultrapasse o teto
remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inciso XI da Constituição
Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico di-
verso. Recursos improvidos.”.(TJ-SP - -....: 21736020108260191 SP ,
Relator: Lineu Peinado, Data de Julgamento: 14/12/2010, 2ª Câ-
mara de Direito Público, Data de Publicação: 29/12/2010) “[...]. Pro-
ventos de aposentadoria e pensão por morte. Acumulção. Possibilidade. Teto
constitucional. Verbas analisadas individualmente. Recurso desprovido. [...].
2. Na linha da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, do Conselho
Nacional de Justiça e do Tribunal de Contas da União, a soma dos valores
percebidos a título de pensão por morte e de proventos de aposentadoria
podem ultrapassar o teto constitucional. [...].”(Ac. de 13.8.2009 no REs-
pe nº 28.307, rel. Min. José Delgado.) Ante todo o exposto, DEFIRO A
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL ALMEJADA, para fins de sus-
pender os descontos decorrentes do “excedente de remuneração
unificado” incidente sobre o montante global dos proventos de apo-
sentadoria e pensão percebidos pela demandante. (PERNAMBUCO,
TJPE, 2007. Grifo nosso.)

Foi com base nestes julgados, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco prolatou a sua decisão da não
aplicabilidade do “abate-teto” sobre as somas da pensão por morte com a renda própria do cônjuge sobrevi-
vente.

O Ministro-Relator Ubiratan Aguiar explana em seu voto o entendimento da Corte.

Cada servidor, mediante desconto mensal para a seguridade social, conforme


parâmetros fixados em lei, contribui para o fundo, genericamente falando,
que, no futuro, arcará com os desembolsos decorrentes do pagamento de sua
aposentadoria ou da pensão de seus beneficiários. O fato gerador do direito à
pensão é a morte do segurado. Já no caso da remuneração e da aposentado-
ria é o exercício do cargo público e o preenchimento dos requisitos definidos
para a inatividade. Nesse sentido, a cada servidor são assegurados esses be-
nefícios. [...]; (BRASIL,TCU, 2005.)

Um dos fundamentos que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, uti-
lizou para lastrear seu voto, foi que o instituidor da pensão já havia pago as contribuições necessárias para
garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, quando assim afirmou:

[...]Não há, portanto, que se confundir servidores distintos, detentores de


direitos distintos, constitucional e legalmente garantidos. A cada um, indi-
vidualmente, aplicam-se todos os dispositivos relacionados à acumulação de
cargos e ao teto de remuneração, em especial quando se fala daqueles de
natureza restritiva. Todavia, não é plausível querer extrapolar essas restrições
para o somatório dos direitos individuais. A prevalecer essa tese, estaríamos
restringindo direitos que a Constituição Federal não restringiu.

152
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Tomemos como exemplo marido e mulher, ambos servidores públicos, per-


cebendo remunerações próximas ao teto. Quando na atividade, a cada
um se aplicam as restrições anteriormente mencionadas. As respec-
tivas remunerações devem observar o teto constitucional. Só são permiti-
das as acumulações de cargos que a Constituição Federal considera legais.
Portanto, no exercício do cargo público, ou ao desfrutar da aposentadoria,
a cada um será permitido receber a remuneração/provento, ou o somatório
de remunerações/proventos de cargos legalmente acumuláveis, até o limite
fixado no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Qual o fundamento,
portanto, para concluir que, na hipótese de um dos dois vir a fale-
cer, passando o outro a ser beneficiário de pensão, nos termos da
lei, estaria criada uma nova situação em que seriam desconside-
rados os fatos geradores da remuneração/provento a que cada um
tem direito? Não encontro amparo legal para prosseguir em tal linha de
raciocínio, pois não se trata de verificação de renda familiar em face do teto
constitucional. Caso contrário, estaríamos admitindo a hipótese absurda de
ser mais vantajoso ao beneficiário da pensão exonerar-se de seu cargo. (BRA-
SIL, TCU, 2005. Grifo nosso)

Este entendimento se coaduna com o artigo 75 da Lei n° 8.213 (BRASIL,1991), que trata justamente
deste tema:

Art. 75: O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do
valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que
teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu
falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei. (grifo nosso)

Continua o Ministro Ubiratan Aguiar:

[...]Por essas razões, entendo que os dispositivos da Constituição Federal só permitem


a compreensão de que todas as restrições referem-se sempre a uma única pessoa.
Quer dizer: remuneração, proventos e pensões decorrentes do exercício de cargo ou
emprego por uma determinada pessoa estão submetidos ao teto constitucional. Por
outro lado, quando se trata do recebimento de pensão, que é a única situação em
que pessoa diferente do instituidor receberá seus benefícios, cumulativamente com
remuneração ou com proventos de aposentadoria, verifico que a Constituição Fede-
ral não contém dispositivo que permita extravasar o entendimento da aplicação do
teto, pois se trata de situações de servidores distintos que geraram direitos distintos.
E, como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento restritivo
quando a própria lei não o fez. (BRASIL, TCU, 2005.)

Pode-se perceber com esta leitura que a Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as situação
da aplicabilidade do teto constitucional, se propositalmente ou não, não se sabe, mas com as palavras do
próprio Ministro Ubiratan Aguiar “como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento res-
tritivo quando a própria lei não o fez”.

(...)
Entendo que as conclusões acima representam a aplicação de restrição quan-
do a Constituição Federal não quis restringir, pois, como busquei demonstrar,
todas as menções ao limite constitucional referem-se à remuneração e pro-
ventos de uma mesma pessoa, inclusive nos casos de acumulação previstos
na Carta Magna. Ao contrário da percepção do ilustre Representante do Mi-
nistério Público, verifico que a aplicação do teto às situações objeto da pre-
sente Consulta é que representaria mutação constitucional, haja vista que a
Carta Magna não contempla dispositivo nesse sentido.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O beneficiário da pensão não receberá melhor tratamento do que o institui-


dor. Da relação estabelecida em vida pelo instituidor com o Estado resulta o
direito do beneficiário à pensão, cujo valor submete-se ao teto constitucional.
De outra relação, constituída por outro servidor com o Estado, resulta o di-
reito à remuneração, quando na atividade, e ao provento de aposentadoria,
quando na inatividade. A cada uma das relações constituídas aplica-
-se, isoladamente, o teto constitucional. Ademais, esse entendimento
não pretende excluir as pensões do teto, até mesmo porque, com a edição
da Emenda Constitucional n° 20/98, o provento de pensão passou a constar
expressamente do limite estabelecido no art. 37, inciso XI, da Constituição
Federal. (BRASIL, TCU, 2005.)

A Corte de Contas da União acompanha o voto do Ministro Ubiratan Aguiar com o entendimento
que não deve ser despendido melhor tratamento para o recebedor da pensão por morte, como também não
deve este ser tratado de forma pior que o instituidor da pensão, haja vista que as verbas recebidas por este já
sofriam a limitação do teto constitucional.

Devido ao elevado número de julgados, em todas as esferas de jurisdição, com o mesmo entendi-
mento da não incidência do “abate-teto” sobre a soma da pensão por morte com remuneração/ subsídio ou
proventos, faz-se necessário parar esta análise e demonstrar outros pontos controversos do objeto de estudo.

Ao se falar em enriquecimento sem causa tomar-se-á como conceito para este trabalho a definição de
enriquecimento sem causa como a situação na qual o Estado aufere vantagem indevida em face do empobre-
cimento de outro, sem motivo que o justifique.

O conceito será melhor demonstrado, fazendo-se necessária antes uma análise do instituo no âmbito
geral.

O enriquecimento sem causa tratado pelo artigo 884 da lei 10.406 (BRASIL,2002) que instituiu o
novo Código Civil, configura-se pela existência de um enriquecimento obtido as custas de outrem sem uma
causa justificativa para o enriquecimento.

O enriquecimento sem causa, tem o condão de fazer com que o enriquecido restitua o empobrecido
com aquilo que se locupletou somente, sendo o foco central a vantagem auferida, e não o empobrecimento
necessariamente, sendo a restituição ao empobrecido uma espécie de reparação indireta, não se falando,
portanto em verba indenizatória, perdas e danos e etc. (SOUSA, [2015])

Como pode-se verificar no voto do Ministro relator Cezar Peluso, no recurso extraordinário, o Supe-
rior Tribunal Federal condena o enriquecimento sem causa por parte do Estado:

Processo: RE-AgR239552.Relator (a): Min. CEZAR PELUSO. Tribunal: STF.


Data da Decisão: 31/08/2004. Data da Publicação:17/09/2004. EMENTA:
RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor público. Aposenta-
doria. Férias e licença-prêmio não gozadas na atividade. Indenização. Direi-
to reconhecido. Vedação do enriquecimento sem causa e responsa-
bilidade civil do Estado. Fundamentos autônomos infraconstitucionais.
Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Precedentes.
A questão de indenização, na aposentadoria de servidor público, por férias e
licença-prêmio não gozadas na atividade, fundada na proibição do enriqueci-
mento sem causa da Administração e na responsabilidade civil do Estado, é
matéria infraconstitucional, insuscetível de conhecimento em recurso extra-
ordinário. (BRASIL, STF, 2004. Grifo nosso)

E é com embasamento no enriquecimento sem causa que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do
Tribunal de Contas da União, embasou seu Voto, quando afirmou que o instituidor da pensão já havia pago

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte,
não podendo o Estado se apropriar destes valores:

(...)
20.Concordo com o Ministro Benjamim Zymler quando afirma que o cará-
ter contributivo é relativo, tanto é que o servidor que acumula remunera-
ções, e proventos, tem sua renda limitada pelo teto. Mas, extrapolar esse en-
tendimento é desvirtuar totalmente o caráter contributivo da contribuição.
Ademais, em se tratando de regime acima de tudo contributivo, interpretação
distinta, mais que proteger os cofres públicos estaria, de fato, ocasionando
enriquecimento sem causa da União, uma vez que as contribuições de
toda uma vida laboral, cujo objetivo do instituidor foi amparar a si ou a seus
dependentes na hora devida, passará a ser apropriada pelo Estado. Defendo,
sim, o estado de direito, mas não o abuso do poder estatal. (BRASIL, TCU,
2005. Grifo nosso)

Por fim, observa-se que ao aplicar o “abate-teto” sem os devidos procedimentos legais e sem a análise
necessária por parte da Administração Pública, além de toda a ofensa, já comentada, que é cometida contra
o beneficiário, o Estado ainda enriquece às custas das contribuições pagas pelo servidor falecido.

CONCLUSÃO

Inicialmente é necessário esclarecer que o entendimento do TCU é que, devido ao caráter con-
tributivo dos benefícios, previsto no art. 40, caput, da Constituição Federal de 1988, o teto constitucional
aplica-se à soma dos valores percebidos pelos instituidores individualmente, mas não para a soma de valores
percebidos de instituidores distintos, portanto não incide o teto constitucional sobre o montante resultante da
acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante
resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade, por serem decorrentes de
fatos geradores distintos, em face do que dispõem os arts. 37, XI, e 40, § 11, da Constituição Federal de 1998.
(BRASIL, TCU, 2005

De acordo com as pesquisas que fundamentaram a elaboração deste trabalho, foi possível destacar a
importância do tema em debate, pois, explanando suas características, requisitos e evolução, pode-se enten-
der a importância da criação do teto remuneratório e da aplicação legal do “abate-teto”.

Sendo este, um assunto bastante polêmico e atual, pois é prática adotada na Administração Pública,
com habitualidade, de modo que desnatura o escopo previsto pela lei, ou seja, de ter a retribuição pecuniária
paga em razão do trabalho caráter alimentício, e que não deveria sofrer nenhum desconto, principalmente
sento este desconto proveniente de um fato gerador diverso do que está sendo adotado como razão para a sua
aplicação. Podendo-se afirmar, assim, que a reiteração desta prática, está tomando força, o que vem sendo,
inclusive, repudiado por decisões judiciais, que reconhecem o acordo entre o instituidor da pensão por morte
e o Estado, já que, em vida, o servidor contribuía com a sua previdência para garantir a sua aposentadoria ou
pensão por morte para seu/sua cônjuge/companheiro(a) e a segurança econômica de sua família.

O “abate-teto” surgiu e se firmou por meio do estabelecimento do teto remuneratório com a adven-
to a Emenda Constitucional 41/2003, que em seu artigo 9º reestabelece o artigo 17 do Ato de Disposições
Constitucionais Transitórias.

Inquestionável é a sua aplicabilidade ao subsídio/remuneração ou proventos de um servidor público,


porém o que se questiona é a sua aplicação sobre à renda de um servidor cumulada na pensão deixada por
outro.

Ainda que não haja dispositivo legal expresso quanto a esse ponto, restou demonstrado que tanto
a doutrina quanto a jurisprudência dominantes reconhecem a invalidade desta postura da Administração
Pública. Mas em que pese toda a evolução do ordenamento pátrio no que se refere ao reconhecimento e

155
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

determinação dos efeitos do instituto, faz-se necessária a positivação de normas de como o Estado deve agir
neste sentido.

O Brasil é um país com dimensões continentais, em que muitos entes administrativos alegam não
fazer o devido desconto ou fazer desarrazoadamente por não ter o controle de quantos vínculos o servidor
tem e qual os valores percebidos por ele.

Ante o exposto, conclui-se que as limitações constitucionais relativas ao teto remuneratório do ser-
viço público e o entendimento doutrinário e jurisprudencial não permitem a aplicação automática do “aba-
te-teto”, e quando isso é feito, está se desrespeitando o devido processo legal, sem se garantir ampla defesa
e contraditório, sobre benefícios com fontes de custeio distintas na cumulação de subsídio/remuneração ou
proventos de aposentadoria com pensão por morte em valor que supere o subsídio mensal dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal.

Como se tal fato já não fosse o suficiente para a não aplicação automática do “abate-teto”, ainda
ocorre o locupletamento dos valores por parte da Administração Pública sobre as contribuições do servidor
falecido, visto que este contribuiu para com o Estado com a promessa de no futuro, em caso de idade avan-
çada ou de sua morte, receber ele mesmo os proventos ou o seu cônjuge/companheiro(a) vir a receber a sua
pensão por morte para garantir a subsistência e o padrão de vida de sua família, visto que com esta finalidade
o contribuinte trabalhou a vida inteira.

Por conseguinte, não deve ser aplicado o chamado “abate-teto” sobre a soma de pensão por morte
com proventos de aposentadoria, subsídio ou remuneração decorrente do exercício de cargos, funções ou
empregos públicos, quando percebidos cumulativamente pelo mesmo beneficiário: a autotutela é legal, mas
a seara pública deve respeito ao devido processo legal.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Isabela Cristina Pedrosa. Acumulação de duas aposentadorias pelo servidor e a decadência para a
administração rever seus atos. Disponível em:< http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,acumulacao-de-du-
as-aposentadorias-pelo-servidor-e-a-decadencia-para-a-administracao-rever-seus-atos,48771.html#_ftn9>.
Acesso em 22/11/2014.

BRASIL. Lei n° 8.213/1991, de 24 de Julho de 1991.

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157
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE:
OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Carlos Henrique Felix Dantas


Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco
carloshenriquefd@hotmail.com

Raissa Lustosa Coelho Ramos


Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco.
raissa.lustosa@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. A pessoa transexual, o movimento transgênero e a busca por direitos fun-
damentais; 2. Contexto da medicina em relação à transexualidade; 3. Do direito à mudança de nome
independentemente da cirurgia de transgenitalização; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Sem dúvidas, o “fenômeno transexual” indica grandes modificações históricas da percepção cientí-
fica, cultural e política da identidade sexual durante a história (CASTEL, 1995). Significa uma quebra de
paradigmas históricos que definem homens e mulheres a partir de uma genitália feminina ou masculina, sem
meio termos, em que pessoas nascem e se adaptam com sua forma biológica sem se questionar a respeito
do que é gênero e o que é papel social. A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o seu sexo
biológico; em outras palavras, um homem que se sente “preso” no corpo de uma mulher, ou vice-versa. Uma
adequação justificada pelo fato de que a genitália e os aspectos fenótipos e genótipos de um indivíduo podem
não corresponder à personalidade psíquica com a qual ele se sente representado.

Adaptar-se em sociedade quando se é um indivíduo transexual passa pelo constante preconceito e


desrespeito que emana do exterior. O direito à identidade, que é inerente a todo ser humano, passa a ser, em
parte, negado para aqueles que se identificam como pessoas transexuais. E, considerando que a identidade
é o elo que liga o indivíduo e o resto da sociedade (BITTAR, 2015), não poder exercer sua personalidade e
identidade em conjunto representa uma agressão significativa. Esse preconceito pode ser percebido de for-
mas mais sutis, como o significativo afastamento de algumas pessoas do indivíduo tendo como motivo sua
transexualidade, ou mesmo de formas mais enérgicas, como a própria agressão física ou verbal, ou proibir a
entrada desse indivíduo em determinados ambientes, dentre outras ações. É neste ponto que o Direito deve
atuar como um defensor dos interesses individuais nessas situações de vulnerabilidade.

É um princípio da Constituição do Brasil promover o bem de todos, independentemente de condição


social, financeira, raça, ou outra condição de vulnerabilidade, o que deve ser estendido à transexualidade
(ARAÚJO, 2000).

1. A PESSOA TRANSEXUAL, O MOVIMENTO TRANSGÊNERO E A BUSCA POR DIREITOS


FUNDAMENTAIS.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Os quatro pilares da sexualidade humana são: Gênero, orientação sexual, papel sexual e identidade
sexual. O gênero é o sexo biológico do indivíduo, a orientação sexual tem a ver com o desejo, com atração,
o papel sexual tem a ver com o comportamento – por exemplo, um homem que pinta as unhas está num
papel feminino –, o papel sexual não tem nada a ver com a orientação sexual, ou seja, um homem dito como
“afeminado” ou uma mulher “masculinizada” não necessariamente são homossexuais e por fim, a identidade
sexual é como o indivíduo se percebe, alguns chamam de “sexo cerebral”.

Transexual é o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sen-
te-se, percebe-se e tem a vivência psíquica de pertencer ao outro sexo. A identidade de gênero (homem ou
mulher) não é congruente com o sexo anatômico, biológico, ou seja, o que define o transexual é que o seu
corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas num corpo de homem, ou vice-versa. A
sigla LGBTTT tem sido utilizada hoje para designar o grupo de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
transgêneras e travestis, respectivamente.

O termo transgênero se refere a uma pessoa que se identifica psiquicamente com o gênero oposto
ao seu de nascimento, ou que pertença a ambos ou nenhum dos dois sexos, estando incluídas nessa classe
travestis, pessoas intersexuais, pessoas transexuais, e mesmo Drag Queens e Drag Kings. É importante frisar
que o Movimento Transgênero (Transgender Movement) é distinto do do Movimento LGBTTT, que difere
por reivindicações próprias (ÁVILA; GROSSI, 2012). A diferença entre transexuais e transgênero pode ser
definida, de maneira básica, porque o Transgênero, apesar de possuir uma identidade de gênero distinta da
biológica, como ocorre com os transexuais, não visa enquadrar-se de forma completa em um só gênero, ou
deseja transitar entre esses, como é o caso das Drag Queens e Drag Kings, pois acreditam que essa é a melhor
forma de expressar sua identidade e dignidade.

Infelizmente, atitudes homofóbicas e transfóbicas ainda estão arraigadas na construção de valores


sociais pelo mundo todo. E isso se agrava quando o preconceito é o que diferencia aqueles que têm acesso
aos seus direitos básicos daqueles que não têm. É função primordial do Direito impossibilitar disparidades no
que diz respeito à efetivação de direitos, garantia constitucional de todos. É claro que não se pode englobar
e enumerar, em um texto apenas, todas as violações e agressões sofridas pela comunidade LGBTTT, pois
estas são, infelizmente, demasiadas. Mas tentaremos, na perspectiva da dignidade e da autonomia de tomar
decisões e ter acesso à direitos básicos, exemplificar algumas questões que merecem a atenção do Estado e
da população.

2. CONTEXTO DA MEDICINA EM RELAÇÃO À TRANSEXUALIDADE.

Atualmente, no Brasil, o grupo de pessoas que corresponde aos transexuais possui a extensão de seus
direitos em eminência. No entanto, ainda não se sabe quando alguns direitos fundamentais serão finalmente
garantidos, não sendo somente visto na teoria, mas, sim, também na prática. Nesse sentido, pode-se dizer
que o respeito a diferença não é algo impossível ou inalcançável, mas, sim, que pode ser trabalhado e proces-
sualmente aferido pela parcela da população que a rejeita, através da educação e do discernimento. A partir
disso, poderá ser falado que os direitos individuais poderão ser garantidos através da dignidade da pessoa
humana, como também através do princípio da autonomia da vontade, isonomia e do direito à liberdade.

Muitas pessoas não fazem ideia de como é a perspectiva de mundo das pessoas transgêneras. Viver
numa condição incompatível com o gênero que se tem é um fardo extremamente traumático. Isso ocorre
porque a sociedade tem necessidade em enquadrar as pessoas em papeis sociais, de acordo com a cultura de
cada lugar (EDWARDS, 1991). A não identificação emana não só da composição biológica, do corpo em si,
como muitos pensam, mas do próprio status de homem ou mulher. Desde os primeiros anos de vida, a pessoa
transgênera tem que conviver com todo o estereótipo do sexo oposto ao qual se identifica. Quando se entra
em lojas para produtos infantis, a separação é bem clara: o polo rosa, e o polo azul. Menino, menina. A dife-
renciação se faz bem marcante, como se a sociedade impusesse, mesmo que de formas subjetivas, a necessi-
dade de separar e distinguir um gênero do outro, desde cedo. Os meninos com carrinhos, e as meninas com
suas bonecas. Portanto, o sofrimento da pessoa “trans” começa desde cedo, vivendo num mundo que não é

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

seu, cercada por rótulos que a sociedade imprime e com o eterno sentimento de deslocamento psicológico, e
isso é um problema sociológico (BENTO, 2012).

Por causa do desconforto com o gênero biológico, algumas pessoas podem optar pela intervenção
médica para o processo de transformação em seu corpo. Os profissionais da medicina analisam e proferem
o diagnóstico clínico às pessoas transexuais de transexualismo, termo que designa transtorno psíquico de
gênero. Uma vez dado esse diagnóstico, um psicólogo ou psiquiatra deve estudar o paciente e emitir um
parecer que comprove o estado no qual vive o indivíduo, ou seja, diferente em gênero de sua natureza bioló-
gica. Depois disso, feitos todos os requisitos e análises, é preciso tratar com um profissional endocrinologista
para que se inicie o tratamento hormonal, sempre acompanhado de terapia psicológica. Quando o indivíduo
decide realizar a cirurgia de transgenitalização, aceita passar por todas essas etapas de transformação conhe-
cidas popularmente por “mudança de sexo”. A cirurgia de redesignação sexual tem finalidade terapêutica de
proporcionar ao paciente a identificação com seu corpo biológico e bem-estar. O Conselho Nacional de Me-
dicina é responsável pela autorização dos profissionais aptos a realizar o procedimento, e é necessário que os
estabelecimentos (hospitais, clínicas, consultórios) possuam uma equipe preparada e multidisciplinar para
realizar todas as etapas do processo.

Vale ressaltar, ainda, como bem entendem alguns estudiosos da área, que as pessoas transexuais se
dividem, também, entre as que são operadas e as que não são operadas. Desse modo, existem pessoas tran-
sexuais que tem interesse de fazer a transgenizatalização e as que não tem interesse em fazer a cirurgia de
mudança de sexo, devido às consequências possíveis da operação, como mutilação genital ou a possibilidade,
se a cirurgia for mal feita, de que o indivíduo que passou pela mudança de sexo não venha mais a sentir
prazer. Nesse sentido, parte do grupo de pessoas transexuais sofrem, pelo medo de fazer a cirurgia, hiper-
potencializando, assim, um sofrimento comum que se alicerça com o sofrimento que é fruto da sociedade.

O campo da Medicina guarda a polêmica de estar constantemente batendo de frente com a ideolo-
gia transexual, ao qualificar tal fenômeno como transtorno. Os métodos de análise e diagnóstico funcionam
como se, efetivamente, se tratasse como uma doença. E a comunidade “trans” ainda não se decidiu, de for-
ma una, o que pensar sobre isso. Há um medo muito grande de que se perca o direito de realizar o tratamento
e a cirurgia popularmente tratada como “mudança de sexo”, como cada passo é lento e conquistado através
de muita luta, é normal que a população transexual sinta-se intimidada. E no campo jurídico não se há uma
resposta sobre o problema. Quando se pleiteia que esse tratamento seja gratuito e custeado pelo Estado, ve-
rifica-se um choque no que diz respeito ao tratamento dessa condição como doença. Presencia-se dentro da
própria comunidade transexual e transgênera ideias opostas nesse sentido, o que é normal por se tratar de
uma questão polêmica. Afinal de contas, nem todo mundo tem condições financeiras para arcar com os cus-
tos desse procedimento e, sendo realizado pelo meio de saúde pública, seria necessário o enquadramento do
fenômeno como uma doença. E uma das lutas defendidas pelo Movimento Transgênero é justamente contra
a medicalização e patologização da transexualidade (ÁVILA; GROSSI, 2012), pois acreditam que o contexto
de doença não os representa, ou representa sua verdadeira condição como pessoa humana digna.

A transexualidade – tratada como transexualismo na Medicina – foi enquadrada no Manual Diag-


nóstico e estatístico das Desordens Mentais desde 1987 (CASTEL, 2001), sendo considerada, portanto, uma
doença atribuída para pessoas com “disforia de gênero”, que demonstrassem vontade de transformar o seu
sexo corpóreo e gênero social, vontade esta que só seria concedida após o acompanhamento do paciente du-
rante dois anos por profissionais da área, tendo o aval clínico para tal. O fenômeno chamado pela Medicina de
transexualismo também pode ser encontrado na Classificação Internacional de Doenças como “transtorno
de identidade de gênero”.

É claro que não é aceitável, no âmbito dos Direitos Fundamentais, que um indivíduo seja enquadrado
como “doente” porque é transgênero, sem qualquer debilidade ou incapacidade física ou psicológica. O pro-
cesso de precisar de um tratamento, de ter que se submeter à avaliação e às decisões de um profissional para
decidir se o indivíduo pode ou não pode submeter-se a uma cirurgia de transgenitalização e ao tratamento
hormonal é uma violência gravíssima. Não poder viver adequadamente sua identidade de gênero já é uma
violação à dignidade, e passar por todas essas etapas torna-se uma violação ainda maior (BUTLER, 2006).

161
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3. DO DIREITO À MUDANÇA DE NOME INDEPENDENTEMENTE DA CIRURGIA DE


TRANSGENITALIZAÇÃO.

É fato que qualquer questão relacionada à sexualidade e suas nuances, inadequações, modificações não
condizentes com os padrões heteronormativos e cisgêneres, desperta rejeição social. Épocas transcorreram
na história da humanidade sem que as diferenças fossem aceitadas ou mesmo ouvidas. Os registros históricos
da humanidade trazem a informação de que a sexualidade foi estigmatizada e moldada segundo padrões de
comportamento que não dizem respeito a um sentimento unânime – embora majoritário –, deixando dessa
maneira classes de pessoas à margem da aceitação social.

Desde a Idade Média, os avanços da Ciência costumam aborrecer o conservadorismo e a área jurí-
dica, e não só o Clero e a Igreja, como muitos pensam. É fato que, durante muito tempo e talvez até hoje,
o ordenamento jurídico tenha tendência a seguir os padrões sociais e os preconceitos populares, as prefe-
rências majoritárias, por assim dizer. Hoje, a biologia afirma que a determinação do gênero de uma pessoa
não é necessariamente decorrente da formação de uma genitália externa feminina ou masculina, e suas
características anatômicas. Embora existam, doutrinariamente, dentro da psicologia e medicina, explicações
diferentes para o fenômeno da não identificação psíquica com o corpo biológico – seja causada pelos próprios
genes da pessoa, seja uma formação diferenciada do feto justificada na diferença temporal entre o período
de formação do cérebro e o período de formação da genitália – o entendimento de que a transexualidade
existe é irrefutável. Ainda que a pessoa transexual reúna em si fisicamente todos os atributos do seu sexo
biológico, pode sentir-se psiquicamente direcionada com o sexo oposto. É um fato recente a possibilidade de
uma pessoa transexual poder alterar seu nome nos registros públicos, direito este que passou muito tempo
sendo negado pelo Estado. Fechar os olhos a uma realidade explícita não vai fazê-la desaparecer e a omissão
legal conseguirá apenas fomentar ainda mais a discriminação e o preconceito (DIAS, 2011.). O importante é
perceber que nem sempre a vontade da maioria deve ser sobreposta a interesses individuais, principalmente
se estes estão ligados a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. “Minorias” devem ser respeitadas
também, independente de aprovação social.

Na lei Lei 6015/73 de Registros Públicos, há a disposição de que qualquer pessoa pode mudar seu
prenome (primeiro nome) caso prove que seu “apelido público notório” – a forma como ela é popularmente
conhecida – é diferente desde prenome civil. O que não limita, semanticamente, que se interprete de forma
inclusiva ao nome social no caso das pessoas transexuais. Tal lacuna possibilita, dessa forma, que é válido
o entendimento de que este dispositivo pode ser voltado ao direito da pessoa transexual de substituir seu
prenome de nascença pelo seu nome social, que condiz com o gênero com a qual ela se identifica e não a
provoca sofrimento ou constrangimento. Infelizmente, como o ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz
demasiadamente omisso à causa transexual, é necessário conquistar os direitos da população transexual
através de analogias e interpretações do texto legal já existente, além de jurisprudências. Sem nenhuma
menção expressa no Código Civil ou na Lei de Registros Públicos.

Nada mais justo, portanto, que seja permitido à pessoa transexual alterar seu nome para adequar-se
ao gênero correto, mesmo sem antes ter efetuado a cirurgia e o tratamento para a mudança física. Não se
poderia exigir isso das pessoas, em primeiro lugar, porque se feita completamente de forma privada, esse tipo
de procedimento médico pode facilmente ultrapassar a marca de 40 mil reais. Em segundo, caso se opte por
pleitear a realização da cirurgia através do serviço médico público, seria necessário entrar numa fila imensa
que pode durar anos, ou mesmo décadas para ser realizada. Até porque, para que uma pessoa possa pas-
sar por esse tipo de procedimento cirúrgico, precisaria de laudos médicos e psiquiátricos comprovando seu
estado de desconexão com o sexo biológico, um procedimento que também requer tempo, como informa a
resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina.  

O processo de mudança de gênero com intervenção cirúrgica, hormonal e terapêutica é uma


das opções para que a pessoa transexual se sinta melhor sobre si mesma. Apesar de algumas preferirem per-
manecer com o aspecto físico e biológico que já possuem, exigindo apenas a mudança jurídica e social, boa
parte da população “trans” tem necessidade dessa intervenção. Entretanto, muitos ainda não fazem ideia a

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

quem recorrer quando tomam essa decisão. Todo o procedimento de cirurgias de transgenitalização no Brasil
é muito complicado e burocrático. Por esse motivo, muitos transexuais procuraram ajuda médica em outros
países, o que é um privilégio para poucas pessoas que integram esse segmento de indivíduos, o que, em face a
isso, acarreta uma procura de maneiras ilícitas de transgenitalizações, ora trazendo resultados esperados, ora
ocasionando mutilações no corpo ou mesmo morte. Nesse sentido, a ilegalidade carrega um escopo jurídico
que precisa ser superado, que seria a facilidade procedimental de mudança e adequamento desse indivíduo
em fiel conexão com sua personalidade. Exigir a comprovação de que a pessoa transexual passou por todas
essas etapas antes de concedê-la o direito de ter um nome social é ignorar toda a realidade composta por
barreiras pela qual essa comunidade é forçada a conviver durante anos, por bem dizer, ás vezes vida inteira.

Superado esse obstáculo, felizmente, várias jurisprudências com o objetivo de Ação de retificação de
registro público para alterar o nome de nascença da pessoa transexual já estão sendo aplicadas em cartó-
rios e tribunais em todo o País, depois de muita luta. Porque se torna cada vez mais claro, com o passar do
tempo e das lutas reivindicatórias da classe LGBTTT, a regra que sempre predominou que o sexo é ditado
pela genitália – e seria a genitália a responsável por separar um homem de uma mulher – tornou-se um
pensamento ultrapassado. O que faz um homem, afinal? O que faz uma mulher? Antes de nascermos, a
primeira coisa que todos querem saber é: É um menino, ou uma menina? Parece uma necessidade urgente
da sociedade definir o sexo da criança antes mesmo que ela saiba se reconhecer como um indivíduo. E
quando nasce uma criança hermafrodita – com a combinação dos dois sexos – imediatamente os médicos
e a família sentem-se compelidos a reduzir sua ambiguidade através de uma intervenção cirúrgica, para
que seja determinado um sexo apenas (MYERS, 1999). A mensagem que fica é de que nós temos, obriga-
toriamente, que ter um sexo designado, nada que fique no meio, nada que misture ambos. Segundo o psi-
cólogo norte-americano David Myers: Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas entre homem e mulher,
em termos sociais, não há nada.

A sociedade é muito radical em sua necessidade de definir um binarismo de gêneros, e gêneros es-
ses determinados exclusivamente por uma genitália. Tal pensamento não condiz mais com a realidade de
muitas pessoas, portanto não pode ser representada pelo Direito, que deve ser um instrumento de todos.
Essa cultura de papeis sociais predefinidos por gênero (EDWARDS, 1991.) é nociva para aquelas pessoas
que não estão dispostas a adaptar-se a todo custo a uma sociedade que não as aceita ou define.

O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lés-
bicas, Gays, Travestis e Transexuais protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4275),
movida pela Procuradoria-Geral da República em 2009 pedindo o reconhecimento do direito das pessoas
transexuais mudarem seu nome e sexo sem que seja necessário realizar a cirurgia de transgenitalização,
mas mediante a apresentação de laudos psiquiátricos comprovando a transexualidade do indivíduo. Paulo
Iotti, advogado e constitucionalista e atual diretor-presidente do GADvS, representou o GADvS e ABGLT
no processo referido. Sua proposta de levar para o Supremo Tribunal Federal uma visão contemporânea de
sexualidade e gênero, conseguiu grande repercussão nacional. O direito de ratificar o nome, adequando-se à
condição psíquica do indivíduo está ligado intimamente à identidade pessoal e social da pessoa, sendo indis-
pensável para obtenção da sua qualidade de vida e bem-estar.

Ademais, pode ser citado como uma vitória para a comunidade transexual o Decreto 49476, de
15/8/2012, que instituiu a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do
Sul. Embora tal decreto apenas vincule um estado, em todo o Brasil esse direito deve ser respeitado, como
dita as jurisprudências sobre esse tema. Segundo a avaliação do presidente da ABGLT, Toni Reis, essa é a
forma correta de julgar os pedidos. Para visar conforto à população e atender suas necessidades, ao conceder
nome adequado, diferente do de nascença, à pessoa transexual, sob a alegação de que essas pessoas são ci-
dadãs, que merecem o respeito da mesma forma que outras pessoas. Também vale ser citada a Lei 3/2007,
de 15 de março, que regula os requisitos de acesso para alterar o registro do sexo de uma pessoa no cartório,
quando esse registro não reflete a sua identidade de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Os avanços na área do Direito da Diversidade têm aumentado não só no Brasil, como no mundo. No
entanto, ainda sim é preciso que se faça mais, que se estude mais. As constituições e códigos ainda são muito
arcaicos, e não só em relação à comunidade LGBTTT, mas às novas formas de se relacionar das sociedades
em geral.

A pessoa transexual, bem como a transgênera, precisa ter mais visibilidade dentro da sociedade, pois
muitos ainda tratam o tema como um “tabu”. E, quando essas pessoas estão numa posição dentro do Gover-
no, a vulnerabilidade se torna evidente pela falta de políticas públicas inclusivas, pela falta de legislação sobre
o tema, mas, especialmente, pelo ódio e medo do diferente que ainda assola as sociedades pelo mundo. É
necessário que se complemente as leis já existentes com medidas novas que acompanhem as necessidades
atuais. É importante que se continue fazendo, dentro dos tribunais, o papel importante de retificação de
nome para as pessoas da comunidade “trans”, o que foi uma grande vitória para a Justiça brasileira. A urgên-
cia não começou há pouco tempo, é uma questão que vem sendo há muito tempo debatida e requerida pelo
povo. É ao povo que o legislador deve servir e atender, afinal de contas.

No mais, além de no âmbito jurídico, é necessário que se mude o jeito de pensar das pessoas, e isso
é feito com campanhas, atos públicos, ajuda da mídia e de veículos de comunicação em geral, mecanismos
públicos, ações direcionadas a reduzir o preconceito também. Nenhum padrão é rompido facilmente, mas,
para o bem de uma sociedade bem estabelecida e preparada para acolher a diversidade, faz-se necessário
uma construção coletiva de um novo pensar.

Ademais, o direito de mudança de nome social, o direito de ser e existir, assim como outros direitos
fundamentais, são tidos, por muitos, como novos direitos; mas será que são novos, ou sempre existiram e
nunca foram “ouvidos”? Nesse sentido, não são novos direitos porque são novos, são novos direitos porque
sempre foram tidos como direitos inexistentes. São novos direitos, portanto, porque historicamente há um
fluxo maior de pessoas a impulsionar respaldo jurídico e estatal a respeito da questão da transexualidade. É
um direito de ser e existir que deve ser considerado como infungível, fundamental e inalienável. Não há mais
como negar a existência e a voz das pessoas transexuais.

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164
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE


DECISÃO APOIADA:
DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA

Carlos Henrique Felix Dantas


Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco.
carloshenriquefd@hotmail.com

Raissa Lustosa Coelho Ramos


Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. raissa.
lustosa@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Interpretação e evolução histórica do início da personalidade jurídica no


brasil e no mundo; 1.1. Distinção lógica entre personalidade jurídica e capacidade civil; 2. Personali-
dade jurídica da pessoa com deficiência; 3. Tomada de decisão apoiada: desafios e propostas para um
efetivo acesso à justiça; 4. O acesso à justiça da pessoa com deficiência como ferramenta efetiva para
a busca da garantia dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Ao decorrer da vida do indivíduo que possui algum tipo de deficiência, a interatividade com o coletivo
se apresenta de maneira diferenciada; seu espaço no núcleo social, por diversas vezes, é limitado, restando
a esse indivíduo a posição de passividade ou impotência atrelada a sua deficiência. Essa lógica, no entanto,
nos parece um pouco controversa e insatisfatória. Em plenitude, entende-se, graças ao modelo social, gra-
dualmente implantado, que o assistencialismo, caractere principal do modelo médico, precisa ser mitigado e
transformado num processo de capacitação, para dar ensejo ao pleno desenvolvimento da capacidade de agir
e da capacidade de exercício da pessoa com deficiência, para garantir, então, que esse seja um cidadão em
plenitude, capaz de praticar atos na vida civil acompanhados ou não da tomada de decisão apoiada.

Nesse sentido, é necessário o debate acerca dos direitos intrínsecos a personalidade das pessoas
com deficiência e de que forma eles precisam, em plenitude, ser garantidos tanto na esfera dos interesses
privados, como na esfera de interesses coletivos, por conseguinte, salvaguardado na ideia dos direitos fun-
damentais. Ademais, o verdadeiro sentido por trás da lógica dos direitos fundamentais e dos direitos da per-
sonalidade, são a inexcusábilidade e a inalienabilidade desses direitos ora tidos como individuais, ora tido e
visto como coletivos, “são direitos que se relacionam com atributos inerentes à condição da pessoa humana”.
(BITTAR, 2015, p. 38).

A partir dessa lógica, deve-se ater a noção de respeito à diferença e a plena intenção de garantir os
direitos disponíveis de cada indivíduo. Ademais, desde a Convenção da ONU, sobre os direitos da pessoa
com deficiência, que existe a clara intenção de garantir direitos fundamentais, fragmentados pela noção de
dependência e da ideia de falta de capacidade das pessoas com deficiência em gerir determinados atos em
autonomia de suas vidas. Os direitos da personalidade, pois, surgem a partir do nascimento do indivíduo,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

isto é, desde a sua concepção com vida. No entanto, a intolerância e a falta de um olhar humanitário para o
outro tornaram de muita importância a ratificação de direitos tidos como óbvios, como o direito à autonomia,
direito à reprodução, direito pleno de ser e existir, assim como direito à pratica de determinados atos que
não sejam até negociais. Esses direitos, portanto, não novos, sempre existiram, e contemplam a plena noção
de direitos da personalidade. Esse artigo, desse modo, procura abordar de que maneira há uma inclinação,
a partir do Estatuto da pessoa com deficiência, em reconhecer esses direitos imprescindíveis e inalienáveis.

Diante disso, vale ressaltar que o respeito aos direitos da personalidade, de qualquer indivíduo, se
iniciam a partir do modo de tratamento que se dá o outro. Logo, é necessário falar a respeito do uso correto
de tratamento da pessoa que possua qualquer tipo de deficiência. Entende-se atualmente, por exemplo, que
não se é mais correto o uso do termo deficiente, sendo necessário, portanto, o uso do termo pessoa, afrente
do termo deficiência.

Atualmente, a expressão utilizada é “pessoa com deficiência”. A idéia de


“porta”, “conduzir” deixou de ser a mais adequada. A Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, que ingressou no sistema constitucio-
nal brasileiro por força do Decreto-Legislativo n. 186 de 09 de julho de 2008
e do Decreto de Promulgação n. 6949, de 25 de agosto de 2009, utiliza-se da
expressão contemporânea, mais adequada. A pessoa (que continua sendo
o núcleo central da expressão) tem uma deficiência (e não a porta). Com a
aprovação da Convenção, que tem equivalência com a Emenda à Constitui-
ção, por força do parágrafo terceiro, do artigo quinto, da Constituição Federal,
a terminologia nova revogou a antiga. Assim, apesar de os textos impressos
trazerem a expressão “pessoa portadora de deficiência”, a aprovação da Con-
venção, com status equivalente a Emenda Constitucional, tratou de alterar
o dispositivo constitucional. Assim, a Constituição deveria já estar retificada
para “pessoa com deficiência”, nome atual, constante de norma posterior,
convencional, de mesmo porte de uma emenda. Sendo assim, a Constituição
já foi alterada neste tópico. (ARAÚJO, 2011, p. 16)

Percebe-se, portanto, que além de qualquer deficiência que o indivíduo possa ter, há a necessidade
de usar o termo “pessoa” como indispensável, afim de garantir o respeito aos direitos da personalidade, mais
precisamente, ao direito de identidade, à honra e ao respeito, por exemplo. É imprescindível para garantir
a noção de igual, humanamente igual, perante o direito de qualquer ser humano. Desse modo, se é possível
perceber que não é mais correto o uso do termo portador de enfermidade ou o uso do termo doente mental.
O primeiro é incorreto pelo simples fato de que a pessoa com deficiência não porta a sua deficiência, mas sim
vive com ela. Nesse sentido, “portar” traz a ideia de transitoriedade, algo que alguém porta num momento,
mas que pode simplesmente deixar de portar, como uma camisa. O segundo, é incorreto pelo simples fato de
“deficiente” carregar consigo a noção de algo negativo, de menos, de algo incompleto ou vicioso.

1. INTERPRETAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO


BRASIL E NO MUNDO.

Há uma controvérsia entre o pensamento dos autores de diferentes Estados nacionais que delimitam
a respeito do começo da personalidade civil do indivíduo. Essa diferente percepção acompanha cronologica-
mente uma perspectiva de pensamento que segue em modificação e, em alguns casos, que segue na insistên-
cia da manutenção do pensamento, dentro do ensejo do meio jurídico de cada país. Particularmente o Estado
brasileiro, que é o foco desse trabalho, se apegou a noções do direito romano – que em tese influenciou de
grande maneira boa parte do mundo ocidental – além de outras teorias que em breve serão explanadas.

O direito romano parte da perspectiva de que a personalidade jurídica coincidiria com o nascimento,
antes do qual não seria possível falar a respeito de sujeito de direito ou objeto do mesmo. Para tal corrente de
pensamento, o feto, dentro da mãe, corresponderia a uma parte dela, “portio mulieris vel viscerum”, e não a
um ente ou um corpo, como bem explana o autor Caio Pereira (2002). Somado a isso, não significa que o feto

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

não teria seus interesses assegurados. Como particularidade, a mesma corrente pontua que mesmo sendo
necessário o nascimento para a adesão de direitos, enuncia, também, a regra da antecipação presumida de
seu nascimento, “nasciturus pro iam nato habetur quoties de eiues commodis agitu”. Desse modo, farar-se-á
uma equiparação do feto ao já nascido, não para considera-lo pessoa, mas com o propósito de assegurar seus
interesses novamente.

Observando o Código Civil brasileiro de 2002, que trata do surgimento da personalidade civil no seu
artigo 2º, percebe-se que o legislador abre espaço para diversas discussões doutrinárias, pois o texto aborda
o tema de maneira vaga. Fica entendido a partir do dispositivo que a personalidade civil de uma pessoa só
pode começar a partir de seu nascimento com vida, mas, ao mesmo tempo, a lei assegura desde o momento
da concepção os direitos do nascituro, o que dá uma certa ideia de confusão. A controvérsia reside justamen-
te no fato de o nascituro ter alguns direitos assegurados, e ao mesmo tempo ter o reconhecimento de uma
personalidade negado expressamente pelo Código Civil. A questão é que esse tema é extremamente subjetivo
e não se pode ainda afirmar uma verdade absoluta sobre ele, e por esse motivo é que existem correntes dou-
trinárias distintas.

A discussão a respeito das teorias Natalista e Concepcionista são trazidas também pelo Código Civil.
A que possui maior relevância, é claro, é a que em abrangência o Código Civil brasileiro ado-
tou, entretanto, é de extrema relevância se falar a respeito da outra, já que se fez necessário
a discussão. A Natalista se refere a ideia de que a personalidade só seria adquirida a partir do
nascimento com vida, de tal forma, o nascituro só seria pessoa em meio extrauterino, gozando
antes, apenas, de mera expectativa de direito. Ao contrário dessa conotação, a concepcionista
parte do princípio de que o nascituro já é pessoa. Logo, adquire personalidade desde a concep-
ção, inclusive no que tange a certos direitos patrimoniais. Ainda os concepcionistas afirmam
que, quanto ao direito à herança não há consolidação desse direito, exigindo-se o nascimento
(se abortar não haverá transmissão). Dentre ambas teorias abordadas, evidentemente, a ado-
tada pelo Código Civil foi a Natalista. Representando essa linha de pensamento, Carlos Roberto
Gonçalves define que o nascimento ocorre no momento em que a criança é separada do corpo da mãe, seja
através de parto natural ou por meio de intervenção cirúrgica, sendo essencial apenas que se desfaça a uni-
dade biológica que vincula os dois corpos – o cordão umbilical – sendo que os dois corpos possuam, depois
disso, vida orgânica separada.

Outro ponto que carece de ser bem explanado, como bem coloca o autor Salvo Venosa
(2003), seria o de que o nascituro é um ser já concebido, isto é, ele se difere daquele que não
foi, obviamente, mas que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma “prole
eventual”. Um ponto característico dessa afirmação, seria a noção de direito eventual, que se-
ria um direito em mera potencialidade. Logo, no Brasil, entendemos que a concepção do nasci-
turo extrapola a concepção da expectativa de direito. Sob o prisma da ideia de direito eventual,
pode-se entender que a questão está longe de estar pacífica na doutrina, tanto é que a teoria
Concepcionista é de extrema importância, como foi dito anteriormente, por em diversos pontos
do sistema brasileiro ser sentida a sua influência, “na medida que o nascituro é tratado como
se fosse pessoa” (BEVILÁQUA, 1975, p. 98).

A partir do que foi ressaltado, pode-se perceber que a então ideia do começo da personalidade jurídi-
ca do indivíduo, começa a partir do nascimento com vida, baseada na ideia da Teoria Natalista e do Direito
romano. Mas, para aprofundar-se, o que corresponderia a vida e o nascimento para a concepção do Código
Civil brasileiro?

Para Caio Pereira (2002), nascimento ocorreria quando o feto é separado do ventre materno, quer
seja a partir do parto natural, induzido ou artificial. O mesmo afirma que não há o que cogitar a respeito de
gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu nos termos ou antecipadamente, seriam questões desnecessá-
rias. Para o Direito Civil é suficiente e necessário apenas que se desfaça a unidade biológica, de modo a serem
mãe e filho, dois corpos com economia orgânica próprios.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Já a vida se espelharia na ideia do momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica com o
meio ambiente. De acordo com o autor, viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, mesmo que morra
instantes depois; ou seja, depois de ter respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota vida, mesmo
que não tenha sido cortado o cordão umbilical e as suas provas serão feitas através da visualização do choro,
movimentos e mais especificamente, quando houver padecimento, nos processos técnicos de que se utiliza
a medicina legal.

1.1 DISTINÇÃO LÓGICA ENTRE PERSONALIDADE JURÍDICA E CAPACIDADE CIVIL

A noção de personalidade se atrela a ideia de começo, de início de vida, findo o que já foi con-
versado, portanto, e a direitos inerentes a personalidade da pessoa jurídica, sendo essa física ou natural, por
exemplo. A personalidade jurídica, por conseguinte, é a aptidão para ser titular de direitos e contrair obriga-
ções na órbita jurídica. É importante falar, também, que é o atributo do sujeito de direito. Para o direito o sen-
tido de personalidade tem um sentido técnico, é a qualidade do sujeito de direito. A pessoa física e a pessoa
natural, portanto, é dotada dessa aptidão genérica. A pessoa jurídica também é dotada desse atributo, dessa
personalidade jurídica. Logo, o sujeito de direito é dotado de personalidade jurídica. (GAGLIANO, 2010, p.
124).

Diante disso, a ideia de personalidade jurídica carrega consigo a ideia de direitos inerentes a própria
constituição do indivíduo, sendo lhe carregado de direitos e obrigações que devem ser cumpridos para melhor
permitir o desenvolvimento interpessoal daquele indivíduo sujeito de direitos e obrigações, e é a partir dessa
lógica que se encaixa a ideia de capacidade civil. A capacidade civil está atrelada a lógica de possibilidade de
exercício de direitos e obrigações. O indivíduo, por exemplo, que obtiver personalidade jurídica, será aquele
que em potência poderá praticar atos jurídicos. No entanto, nem todo ato jurídico é possível, existem atos
ilícitos que contemplam e viciam a celebrações de negócios jurídicos. Um indivíduo, que, em pleno exercício
de sua capacidade civil desejar praticar atos patrimoniais, diz o Código Civil, deverá ser capaz, possuir capa-
cidade civil para constituir ato jurídico válido. Mas o que seria ato válido e de que forma ele atrelaria a lógica
de possibilidade e eficácia na celebração de um ato jurídico? Um ato possível e que produza eficácia, precisa,
primeiramente, existir. É necessário que o indivíduo seja capaz, que possua validade e haja boas intenções
e ausência de má-fé. A capacidade, portanto, está atrelada também, a lógica de idoneidade da celebração de
qualquer ato jurídico.

Em gênese, a ideia de capacidade, antes da lógica da Lei N° 13.146, colocava na figura do curador
prerrogativas que, por vezes, alienavam a capacidade de dizer e manifestar vontade do indivíduo que tivesse
deficiência. A partir da alteração da nova lei, houve uma tentativa de devolver a autonomia para esse indiví-
duo, respaldada, obviamente, ainda de uma assistência, de um acompanhamento, assunto que será tratado
adiante. Nesse sentido, a ideia de capacidade é a possibilidade de ditar direito de acordo com a vontade do
promitente, do indivíduo dotado de personalidade que deseja praticar, provocar ou se eximir de qualquer
possibilidade de direito atinente a sua personalidade.

Nesse sentido, a capacidade civil é classificada em capacidade de direito e capacidade de exercício.


A capacidade civil de direito, também conhecida como capacidade jurídica, é a aptidão para adquirir e trans-
mitir direitos e para a sujeição a deveres jurídicos. Já a capacidade de exercício, é a também conhecida por
capacidade de fato, entendida como a capacidade de agir ou a capacidade negocial, isto é, a capacidade de a
pessoa também agir com eficácia jurídica, em especial a capacidade de produzir, mediante negócio jurídico,
efeitos jurídicos. (LÔBO, 2013, p. 107, p.108).

2. PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Em verdade, se é possível ratificar que ao longo da história da humanidade houverem inúmeros mo-
mentos em que a pessoa com deficiência foi tratada de maneira desumana, sendo, inapropriadamente, colo-
cada na condição de animal, na condição de menos, na condição de pouca importância, como em sociedades
da Idade Antiga, por exemplo. Nesse período, havia a predominância do antropocentrismo, que é um olhar

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do mundo voltado para o homem, também marcado pelo equilíbrio e a perfeição. A partir dessas caracterís-
ticas se é possível, entender, por exemplo, que era nada mais do que comum o olhar para o outro em busca
de uma perfeição que, em tese, era de difícil encontro. Diante disso, ora as pessoas com deficiência eram na
História Antiga e Medieval tratadas com uma política assistencialista e ora com uma eliminação sumária de
outro – políticas essas adotadas veemente em muitos estados soberanos ainda hoje. Em Esparta, por exemplo,
os bebês e as pessoas que adquirissem algum tipo de deficiência eram descartados dentro da lógica cultural
de utilidade e perfeição do período. (SILVA, 1987).

O conceito de perfeição e utilidade dentro de uma lógica político-cultural segue em um performático


dinamismo até os dias de hoje. Nesse sentido, por exemplo, a tutela jurídica do direito incide nesses indivídu-
os nos dias de hoje, graças a uma evolução histórico-cultural, principalmente a partir da idade moderna, de
que existe, sim, um lugar, uma utilidade, o que revela uma triste realidade que associa a vida e a existência
da pessoa com deficiência no tempo condicionada a necessidade de utilidade definida por padrões generica-
mente impostos.

A ideia de personalidade jurídica, portanto, se atrela a noção de vida. Por conseguinte, uma série de
direitos e obrigações são constituídos como inerentes ao indivíduo concebido a partir da simples troca oxi-
carbônica. Nesse sentido, a ideia de personalidade jurídica da pessoa com deficiência nada se diferencia com
a personalidade jurídica de qualquer outro indivíduo que não possua qualquer deficiência, apesar do dife-
rente tratamento concebido historicamente pelas sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas.
Há, portanto, um olhar associado a utilidade e trabalho daquele que seria o ideal de produção. A existência
condicionada a realidade de, do que vale nascer homem, se não tem utilidade prática associada a produção?

Diante disso, não importa quais seriam os elementos entendidos como diferentes para constituir com
a ideia de deficiência atribuído ao homem. O que importa seriam os mecanismos desenvolvidos pela sociedade
para tentar minimizar e melhorar a qualidade de vida das pessoas que possuam qualquer barreira atitudinal
ou física. Hoje, entende-se que o conceito de pessoa com deficiência está conectado a relação com o meio,
com o ambiente, e não com a deficiência propriamente dita, sendo ela genética ou em consequência do dia
a dia. A deficiência seria uma atribuição do meio. O meio que precisa se readequar. Essa lógica é permitida a
partir da noção do modelo social quanto a deficiência. Por muito tempo se entendeu, graças ao modelo já em
uma processual transgressão e desuso, de que a pessoa com deficiência precisava ser colocada numa posição
de tutela assistencialista, o que muitas vezes não permitia em potência o pleno desenvolvimento de todas as
habilidades possíveis daquela pessoa que estava sendo curatelada. A partir da evolução desse pensamento,
de modelo social, houve um processual amadurecimento da sociedade civil brasileira, que ainda sim precisa
aprender muito, que a deficiência em sí não o que em grau dificulta a inserção da pessoa com deficiência no
meio, o que dificulta seriam as barreiras que em grau de qualidade permitiriam o pleno desenvolvimento da
personalidade daquele indivíduo que muitas vezes teve a sua pessoalidade negada.

Diante disso, se carece de um resguardo dos pais. Existe uma Responsabilidade Civil inerente ao po-
der familiar de cada família que existe uma pessoa com deficiência de permitir o pleno desenvolvimento de
todos os direitos inerentes a personalidade jurídica daquele indivíduo, como o direito à sexualidade, dando
respaldo o direito a reprodução, o direito a educação efetiva, assim como o acesso à justiça, constitucional-
mente assegurado. Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência (2009) ratificar esses direi-
tos expostos aqui, assim como outros, foi necessário a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015)
tentar ratificar mais uma vez esses direitos que existem, mas continuam sendo taxados pelos juristas e pela
sociedade civil como invisíveis, por mais dizer, inexistentes, apesar de assegurados pelo ordenamento jurí-
dico. São direitos novos, que na verdade sempre existiram. São necessários, portanto, a partir da ideia da
tutela do direito à liberdade, que sejam assegurados, para demonstrar que não existe nenhum direito que
seja menos importante do que outro e que toda humanidade deve ser em plenitude observada e assegurada
para todos em plena igualdade.

3. TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À


JUSTIÇA.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A ideia de tomada de decisão apoiada é inserida na Lei N° 13.146, que visa reafirmar os direitos que
já haviam sendo explorados a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com Deficiência (2008). No
entanto, foi somente a partir do Estatuto da pessoa com deficiência (2015) que, ironicamente, a sociedade
civil e alguns juristas passaram a se aperceberem melhor do assunto atinente as pessoas com deficiência.

O conceito de tomada de decisão apoiada tem um cunho assistencialista, mas não um assisten-
cialismo que poda a autonomia do exercício da vontade da pessoa com deficiência. O sentido associado se
baseia na ideia de que pessoas idôneas, ou seja, sem pré-disposição de desfavorecer ou prejudicar, ou que
tenha vontade viciada, contribuam para uma escolha positiva do indivíduo que esteja sendo assistido. Nesse
sentido, há, sim, um avanço na lei quanto a disposição de autonomia e legitimidade para o exercício de di-
reitos e deveres da pessoa com deficiência. Existe, nesse sentido, um aprimoramento e uma assistência de
duas pessoas, e não somente uma, decidindo e “roubando” a vontade da pessoa curatelada. Há, portanto,
um acompanhamento, de duas pessoas, que devem melhor orientar a pessoa com deficiência na tomada de
sua decisão sobre os atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos de informação necessários para que
possa exercer a sua capacidade. É, portanto, a tomada de decisão apoiada, um mecanismo que reforça a
validade dos negócios praticados pelas pessoas com deficiência, o que não implica numa necessária perca de
capacidade da pessoa que a requer.

A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência


elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos
e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão
sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações neces-
sários para que possa exercer sua capacidade. (BRASIL. Lei 13.146, 2015,
art. 1.783-A, caput)

A lei prevê ainda que a escolha de indicação dos apoiadores será feita pela pessoa com defici-
ência, cabendo a ela escolher a quem delegar esse papel. Além disso, ainda para garantir que sua vontade
seja melhor representada, os escolhidos poderão ser pessoas com quem mantenham vínculos e confiem. Será
traçado também, afim de garantir a idoneidade do processo e legitimidade da tomada de decisão apoiada,
para não findar desrespeito ou talhamento de direitos, que em juízo seja delimitado os limites do apoio a ser
oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade,
aos direitos e aos interesses da pessoa que deve apoiar, findado na lógica de respeito dos direitos à persona-
lidade jurídica da pessoa com deficiência, sempre visando um completo desenvolvimento intersubjetivo da
pessoa em questão.

Ademais, afim de garantir o pleno exercício da tomada de decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com
deficiência, traz, também, a noção de que se o apoiador agir com negligência, não adimplir com as obrigações
devidas ou chegar a exercer pressão indevida, poderá a pessoa apoiada ou qualquer outra pessoa prestar
denúncia ao Ministério Público ou ao Juiz de ofício. Ouvida a denúncia, sendo ela procedente, o juiz desti-
tuirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa com deficiência, e se for do seu interesse, outra pessoa para lhe
prestar apoio. Por demais, a pessoa com deficiência, pode, a qualquer tempo, decidir cessar o acordo firmado
do processo de tomada de decisão apoiada. Existe ainda, a noção de que o apoiador também pode solicitar ao
juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão, sendo seu desligamento condicionado
à manifestação do juiz.

Aplica-se, portanto, a noção de autonomia, resguardado numa preocupação em devolver a pessoa


com deficiência a titularidade de seus direitos, de modo a lhe fazer parte de suas decisões e escolhas na pres-
tação de apoio a que lhe deve, sendo-lhe facultada sempre, a permanência ou não dos indivíduos firmados no
processo de prestação de tomada de decisão apoiada. A noção de curatela associada unilateralmente a von-
tade do curador está mitigada e transformada na noção de em potência o exercício da capacidade da pessoa
curatelada em gozo e dignidade dos seus desejos, respeitando a noção de dignidade e de tutela à liberdade
da pessoa humana.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Por a lei estabelecer que os limites da tomada de decisão apoiada deve ser definida em acordo, vale
ressaltar, por conseguinte, que haverá modelos distintos. A tomada de decisão apoiada poderá ser diferente
para cada indivíduo que a utilize como mecanismo eficaz de acesso aos seus direitos disponíveis.

Além disso, é mister destacar que para parte dos doutrinadores brasileiros, no campo de Direito Civil,
a tomada de decisão apoiada ainda é um ponto de incógnita. Para alguns, a hipótese de substituição não seria
nada mais do que óbvio, baseado na ideia de que a tomada de decisão apoiada não surge em substituição, de
modo a excluir a curatela. Ela surgiria de modo a coexistir com a curatela, em caráter concorrente. Nesse
sentido, haveria a possibilidade de que a curatela entre em desuso ou não com o tempo. Outra parte dos
doutrinadores brasileiros, no entanto, acredita que a interdição seria medida excepcional, a regra passaria a
ser, portanto, a Tomada de Decisão apoiada, que se trata de um processo em que a pessoa com deficiência so-
licitará, como foi visto, duas pessoas de sua confiança, para dar mais visibilidade a sua autonomia de decisão.

Ainda há dúvidas também sobre de que modo se daria a tomada de decisão apoiada em casos em que
haveria incapacidade total do sujeito quanto a expressão de vontade, devido a algum tipo de deficiência. A
ideia que nos parece mais lógica ainda sim seria a tomada de decisão apoiada, visto que mesmo não havendo
a nítida expressão de vontade, haveria a possibilidade de auxílio de profissionais especializados, como psicó-
logos e afins, para auxiliar, em percepção de modo haveria um maior benefício daquele indivíduo a partir de
determinada tomada de decisão. O apoiador, de acordo com a nova lei, não impede que seja, por exemplo,
um dos apoiadores um profissional especializado. Ademais, é fato que a regra geral se basearia na afirmativa
de que a pessoa com deficiência deveria escolher as pessoas que lhes pareça mais adequadas a partir da sua
confiança, no entanto, essa escolha passa por aval de um juiz togado e adequado para o caso em questão. O
mesmo juiz, portanto, num caso de tomada de decisão apoiada em que haja um indivíduo que possua incapa-
cidade absoluta, poderá nomear, a partir da verocimidade das relações afetivas entre a pessoa com deficiência
e o apoiador aquele que melhor represente o indivíduo na respectiva decisão.

4. O ACESSO À JUSTIÇA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO FERRAMENTA EFETIVA PARA A


BUSCA DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O Estado Moderno, em especial o brasileiro, adotou para si o princípio do monopólio estatal de justiça,
trazendo, dessa forma, um modo de solução de conflito pacífico, marcado por heteronomia, isto é, a juris-
dição é marcada por um juiz imparcial e sem pré-disposição para favorecer uma das partes. Nesse sentido,
através da Ação, há uma tentativa de efetivo encontro entre a prestação jurisdicional e a satisfação da preten-
são insatisfeita de uma das partes. Além disso, se é possível falar, que apesar da tentativa de se estabelecer
um modo de solução pacífico de conflito, há também, um problema inerente a própria constituição do modo
de solução de conflito: como atender a todos que possuem um direito subjetivo que precisa ser satisfeito?

Afim de responder a essa pergunta, há, atualmente, assegurado na constituição brasileira, alguns
princípios decisivos que buscam consagrar o livre acesso ao judiciário, como o princípio da proteção judicial
efetiva (art. 5°, XXXV), do juiz natural (art 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5°, LV), que tem
influenciado decisivamente o processo organizatório da justiça, especialmente no que concerne as garantias
da magistratura e à estruturação independente dos órgãos (MENDES, 2013).

Ademais, ainda se é possível falar que existem obstáculos que precisam ser ultrapassados para garan-
tir um pleno e efetivo acesso à justiça tanto das pessoas com deficiência, como das pessoas que não possuem
quaisquer barreiras para um pleno e efetivo desenvolvimento psicossocial. A Lei Brasileira de Inclusão, tam-
bém conhecido por Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu Art. 3°, IV, define barreira como qualquer
entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa com de-
ficiência no meio social, bem como impeça o gozo, a fruição ou o exercício de seus direitos à acessibilidade, à
liberdade de movimento e de expressão, por exemplo. A Lei N° 13.146 ainda procura definir, taxativamente,
que existem cinco tipos de barreiras, tais quais:

Barreiras: [...]

172
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e pri-


vados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transpor-
tes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo,
atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o
recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de
comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou pre-
judiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa
com deficiência às tecnologias; (BRASIL. Lei N° 13.146, 2015, art. 1°, IV)

Diante disso, se é possível falar que o processo de tomada de decisão apoiada, a partir da noção
da Lei Brasileira de Inclusão, é uma das medidas que visa ir de encontro a uma acessibilidade quanto aos
direitos da pessoa com deficiência.

O acesso à justiça, atualmente, é um dos maiores paradigmas da sociedade moderna. Cada socieda-
de, a seu modo, procura eximir a linha tênue que é a efetiva prestação jurisdicional e a pretensão insatisfeita
de cada cidadão. No entanto, além das barreiras comuns, que atingem a maior parte dos cidadãos, como o
acesso à informação, o acesso ao local, etc., as pessoas com deficiência, como a Lei N° 13.146 procura res-
saltar, enfrentam barreiras a mais, estas, no entanto, fruto de uma sociedade corporativista, tal qual procura
voltar a sua atenção para os cidadãos que não possuam quaisquer tipo de deficiência que limitem a sua re-
lação com o meio social. A partir dessa noção, é nítida a percepção egoística de exclusão para qual é voltada
cerca de 45,6 milhões de brasileiros que declaram ter alguma deficiência, segundo o censo do IBGE de 2010.
Essa parcela, corresponde a cerca de 23,9 % da população brasileira. Esse percentual representa cerca de
um quarto da população brasileira total, o que significa que se deve haver maior atenção pública para essas
pessoas que são sectarizadas e tratadas ora de maneira desigual, ora de maneira a inferiorizar. O respeito a
diferença é o primeiro passo de encontro ao acesso à justiça das pessoas com deficiência.

A proposta de melhora de vida para essas pessoas, mais frisada neste artigo, é através da ideia de ca-
pacidade relacionada com a autonomia, que é almejada através da tomada decisão apoiada, como ferramenta
que impulsiona, a seu modo, o acesso à justiça. Consideramos que o direito de manifestar a própria vontade
não deve ser violado, pois a capacidade de pensar da pessoa com deficiência deve ser considerado, indepen-
dente da deficiência, contrariando a lógica de interdição, o qual talha esse direito à autonomia e o direito à
manifestação de vontade. Dessa forma, preservar os direitos inerentes à personalidade, assim como os direi-
tos fundamentais, são de mister importância para preservar em essência a humanidade daquele indivíduo
muitas vezes visto como inválido ou menos humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do presente estudo, observou-se que há uma necessidade de respeito à diferença. Esse res-
peito perpassa, ainda, na ideia da garantia de direitos inerentes à personalidade jurídica do indivíduo que
possua qualquer tipo de deficiência que venha dificultar a sua interação com o meio social. Nesse sentido, o
respeito à diferença e a garantia dos direitos da personalidade da pessoa com deficiência, representam o que
de mais óbvio deve ser garantido a qualquer ser humano, para que em igualdade de oportunidade esse possa
a vir, equitativamente, desempenhar um papel de agente modificador de seu próprio destino, e não mais um
agente passivo, perante o velho sistema de interdição que incapacita e coloca na condição de sujeito inváli-
do, imprestável, a pessoa com deficiência que pode, sim, praticar atos na esfera civil com maior autonomia,
através do auxílio da Tomada de Decisão apoiada ou não.

173
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Findo essa ideia, se é necessário, ratificar ainda, que há uma necessidade instransponível de qual-
quer cidadão, assim como dos juristas, de observar um fenômeno tão importante, como o acesso à justiça. O
acesso à justiça é um processo dinâmico e indispensável para garantir uma efetiva prestação jurisdicional de
qualidade em qualquer sociedade. Nesse sentido, observar de que forma cada seguimento da sociedade pode
vencer as suas barreiras é indispensável. Bem como aponta a Lei 13.146, existem, para as pessoas com de-
ficiência, algumas barreiras específicas, que acompanham esse agrupamento, além das que já existem para
qualquer cidadão. Nesse sentido, um olhar cuidadoso e mais humanitário é indispensável para que o acesso
à justiça jamais seja confundido com utopia ou displasia atitudinal.

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174
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

LEI MARIA DA PENHA:


UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros


Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professora da graduação
em Direito da Universidade Maurício de Nassau

Hallane Raissa dos Santos Cunha


Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculada
ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientada pela Profa.
Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello

Túlio Vinícius Andrade Souza


Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculado
ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientado pela Profa.
Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A lei 11.340/2006 e suas implicações no âmbito criminal; 2. Considera-


ções sobre uma pesquisa de campo; 3. A atuação da vara de violência doméstica e familiar contra
a mulher da cidade do recife (vvdfmr); 4. A (re)vitimização da mulher; 5. Violência doméstica e a
seletividade da clientela penal; 6. Lei maria da penha, teorias da pena e a revitalização do penal;
Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

No Brasil cada vez mais é possível a observação de uma sociedade punitivista, que cada dia mais
solicita a aplicação de um sistema penal como alternativa para reduzir a criminalidade. Essa requisição é
alimentada pelo sentimento de impunidade e sensação de insegurança, frequentemente expostos pela mídia
como conteúdo de exigências criminalizantes. Diante disso, o que se questiona é se o sistema de justiça cri-
minal promove, verdadeiramente, a contenção da criminalidade, uma de suas funções declaradas.

Em nome da proteção da família, da defesa da honra e da garantia do pátrio poder, desenvolveu-se


uma sociedade machista, onde os padrões atribuídos pelo sistema penal legitimavam exigências de deter-
minados comportamentos femininos, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e, ainda, ressaltaram as
diversas formas de controle sobre as mulheres (BARATTA, 1999, p. 19-80).

No passado, em razão da desigualdade legal entre homens e mulheres, a maioria dos crimes de gêne-
ro não era alvo de reconhecimento das autoridades e, assim, acarretavam no que se denomina “cifra oculta”
do crime. Consequentemente, tinha-se a sensação de que não existia violência contra a mulher. Todavia, com
a Constituição Federal Brasileira de 1988, os direitos entre os homens e mulheres se equipararam e, assim,
a violência contra a mulher começou a ocupar um espaço diferente no sistema de justiça do Brasil.

Quando o assunto é violência doméstica e familiar, a ineficiência do sistema para combater ou preve-
nir a criminalidade fica evidente. Aqui, a justiça criminal se mostra inapropriada para a resolução dos con-
flitos domésticos, complexos socialmente, principalmente após as medidas despenalizadoras serem descar-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tadas com o argumento de que elas eram insuficientes. Com a regulação da conduta por uma norma penal
severa, espera-se não só a proteção da vítima, mas uma “pena exemplar” para o agressor.

Diante desse cenário, tentou-se comprovar que um sistema incapaz de cumprir com suas próprias
funções, atuando de modo diverso, não seria capaz de tutelar um conflito doméstico, que é muito mais
complexo do que a norma penal pode prever. Indo mais além, buscou-se desconstruir o argumento de que o
sistema de justiça de criminal é o grande responsável por dar fim ao ciclo de violência doméstica e familiar
sofrido pela mulher.

1. A LEI 11.340/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES NO ÂMBITO CRIMINAL.

Primeiramente, é importante observar que, através da Lei 9.099/1995, foram criados os Juizados Es-
peciais Criminais, nos quais, dentre outras inovações, permitiu-se a aplicação dos institutos despenalizadores
aos crimes de menor potencial ofensivo, como a ameaça e lesões corporais leves. Foi também dentro destes
Juizados, por intermédio dos indicadores oficiais, que se evidenciou a alarmante presença de inúmeros ca-
sos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) na sociedade
brasileira. Constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos,
é também, paradoxalmente, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o
homem, marido e companheiro passou a ser confundido com o suposto agressor (ANDRADE, 2005, p. 95).

Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como para-
digma o comportamento individual violento masculino, a Lei 9.099/95 aca-
bou por recepcionar não a ação violenta e esporádica (...), mas a violência
cotidiana, permanente e habitual (...). Assim, os crimes de ameaças e de
lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritaria-
mente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70%
do volume processual dos Juizados. (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 4-5).

Houve, portanto, uma modificação no tratamento normativo dispensado à “violência conjugal”, as-
sumindo a caracterização de crime de menor potencial ofensivo, o que garantiu uma nova sistemática de re-
solução de tais práticas delitivas. O enquadramento dos casos de “violência conjugal” como sendo um crime
de menor potencial ofensivo acabou levando para a Justiça um crime que até então raramente chegava ao
Judiciário, e fez com que esses casos representassem o maior volume de processos nos Juizados (MORAES;
SORJ, 2009, p.52).

No entanto, o tratamento oferecido pelos Juizados sofreu inúmeras críticas, principalmente de alguns
setores dos movimentos feministas, cujas pressões por respostas estatais mais incisivas contra a criminalida-
de no âmbito doméstico, juntamente com a de outros setores da sociedade, resultaram na promulgação da
Lei 11.340/2006.

A então nova legislação, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, criou os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e ficou conhecida pelo rigor punitivo dispensado aos crimes de menor
potencial ofensivo cometidos contra a mulher no contexto doméstico, já que lhes vedou a aplicação da lei
9.099/95 e, consequentemente, dos institutos despenalizadores.

A dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais importantes funções que tem encomendada à
atividade jurídica geral em um Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente
ao poder arbitrário do Estado (ANDRADE, 2006, p.170). No entanto, analisando essas funções declaradas
em confronto com a realidade, observa-se que elas não são o foco do sistema de justiça criminal. Como bem
afirma Vera Regina de Andrade (2006, p.175):

Há, no âmbito do sistema penal, um profundo déficit histórico do cumpri-


mento das funções declaradas da dogmática penal ao mesmo tempo em que

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

o cumprimento excessivo de outras funções não apenas distintas, mas inver-


sas às oficialmente declaras.

Assim, surgem questionamentos acerca da ineficácia/deslegitimação do sistema em questão,


pois se percebe uma clara atuação oposta a sua real proposta declarada. Nesse sentido, é possível afirmar que
é um sistema de justiça que se sustenta meramente sobre suas funções simbólicas, que constrói uma imagem
ideal para ocultar a sua real funcionalidade.

Dessa maneira, no contexto da violência doméstica e familiar contra as mulheres, percebe-se


que uma quantidade significativa de mulheres que recorre às delegacias para apresentar à queixa ou à de-
núncia contra o suposto agressor, em seguida, desiste de prosseguir o inquérito policial, objetivando, somen-
te, utilizar o poder policial para renegociar a relação conjugal, ao invés de buscar a criminalização do agressor.

As inovações que a Lei 11.340/2006 trouxe são divergentes em relação à proposta minimalista da
Criminologia Crítica, alterando os tipos penais incriminadores com o aumento de penas e nas circunstâncias
de aumento das sanções com as agravantes e a obstrução dos institutos “diversificacionistas”, como a compo-
sição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. No entanto, tal argumentação de aumentar
as penas e obstruir as medidas diversificadoras, vem consolidando uma visão extremamente punitivista da
administração da justiça.

De tal modo, a Lei 11.340/2006 retrocedeu ao propor o encarceramento, assim como, foi de encon-
tro às propostas do movimento feministas, visto que as medidas alternativas apresentam maior eficácia em
relação à prisão, além de demonstrar maior possibilidade de solucionar os conflitos domésticos e familiares.

Foucault (1999) afirma que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las,
multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior,
aumenta. Assim, constata-se que o sistema penal é falho e a maior prova disso é o índice de reincidência cada
vez mais alto. Onde, ao invés de haver uma redução da criminalidade, ressocializando o condenado, produz
efeitos contrários a uma ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRA-
DE, 2006). Dessa forma, é notório que se este sistema, aclamado por uma sociedade movida pelo medo, é
incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir a criminalidade ou ressocializar o preso, também não atuará
com eficácia no âmbito da violência doméstica, pois não considera o grau de subjetividade e de afinidade
dessas mulheres com seus agressores.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA PESQUISA DE CAMPO.

Para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizadas duas técnicas de pesquisas, a bibliográfi-
ca, com a realização em análise de livros, revistas especializadas, jurisprudências; e a técnica empírica, que
analisa os assuntos críticos e interpretativos a respeito do tema em questão, fazendo-se o levantamento de
dados da pesquisa de campo. Em outras palavras, essas técnicas, apesar de serem distintas, são complemen-
tares, já que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a do-
cumentação direta (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 174-183). Não é seguro afirmar que a utilização dessas
técnicas aconteceu em momentos distintos e sucessivos, pois elas foram empregadas simultaneamente.

Para a obtenção dos dados quantitativos da pesquisa, optou-se por realizar uma pesquisa documental,
a qual, como o próprio nome já sugere, compreende a coleta e análise de documentos, considerados fontes
de informações que ainda não passaram pela sistematização, contemplação e tratamento científicos (SAN-
TOS, 2007, p. 27-29). As fontes documentais escolhidas foram processos criminais sentenciados na 1º Vara
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR). Trataram-se, pois, de documentos
jurídicos, tal que seu conteúdo está previsto, ordenado e procedimentalizado pelo Direito.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nesse contexto, para fins de aproximação representativa da realidade da VVDFMR, pareceu razoá-
vel a limitação da pesquisa à análise de todos1 os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de
01 ano na VVDFMR, precisamente, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014. Mencionado recorte foi
escolhido pelas seguintes razões: atualidade dos resultados, possibilidade de retratação de uma realidade,
facilidade de acesso ao material da pesquisa e, por fim, possibilidade e viabilidade da análise do material de
pesquisa em tempo de entregar o presente trabalho dentro dos prazos estabelecidos2. Dessa forma, preten-
deu-se obter, através dessa análise documental, o perfil socioeconômico das partes, bem como particularida-
des do relacionamento familiar dessas pessoas envolvidas no conflito doméstico e se a persecução criminal
tem respondido aos interesses da mulher.

Desses processos analisados, dados específicos foram colocados em um formulário antecipadamente


elaborado para análise. Assim, por existirem uma série de meios informáticos que, a depender das necessi-
dades do pesquisador, facilitam a manipulação e processamento de dados levantados em pesquisa, optou-se,
para o armazenamento, gestão e tratamento do conjunto de dados obtidos e posterior análise estatística, pela
utilização do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), software especialmente projetado
para estes fins em pesquisas na área de Ciências Sociais.

3. A ATUAÇÃO DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA


CIDADE DO RECIFE (VVDFMR).

A 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife está localizada no bairro
de Santo Amaro, bairro onde se localiza também a delegacia especializada de atendimento a mulher. É
fundamental ressaltar que as mulheres que procuram a Vara, por serem a maioria de baixa escolaridade e
pertencerem a uma classe mais abastada da sociedade, normalmente desconhecem todo o rito concernente
a um processo judicial, especialmente ao processo penal. Por isso, ao descobrirem que não podem retirar
mais desistir do processo ou que seus agressores estão/serão presos, sentem-se ainda mais vitimizadas por
não terem suas vontades atendidas.

Então, se por um lado as mulheres que chegam à Vara na esperança de serem ouvidas e terem seus
desejos atendidos – os quais normalmente não estão voltados para a prisão de seus agressores, mas para o
rompimento dos ciclos de agressão – por outro, findam por se sentirem frustradas quando descobrem que
suas pretensões frente ao conflito doméstico são olvidadas e suas falas são moldadas de acordo com as pre-
tensões dos agentes criminais.

Nesse contexto, muitas vezes acabam por modificar na audiência seus depoimentos em detrimento
das informações prestadas na delegacia; muitas vezes, chegam até a se culpar pelas lesões sofridas. No mais,
com frequência, tentam minimizar a gravidade dos fatos ocorridos; tudo com a intenção de livrar o ente
familiar querido – que podem ser, dentre outros, ex-companheiros, companheiros, namorados, maridos, ex-
-maridos, pais e filhos – da persecução criminal.

Dessa forma, os atores penais da Vara tratam essas mulheres com certo desdém, já que estas são
rotuladas como “mentirosas” ou como “mulheres que gostam de apanhar”, porque mudam suas versões dos
fatos, para que seus agressores não sejam punidos com a privação de liberdade. Com isso, os atores penais
desconsideram todo o grau de afeto por trás da relação violenta que existe entre mulheres e homens. Nesse
contexto, percebe-se, por parte do poder judiciário, uma atuação tradicional, apartada das peculiaridades que
envolvem a violência de gênero no contexto doméstico e familiar.

4. A (RE)VITIMIZAÇÃO DA MULHER.

1  No total, 177 processos criminais foram sentenciados no recorte temporal determinado, no entanto, 09 deles não foram en-
contrados na Vara, apesar dos inúmeros esforços para sua procura, tanto por parte dos pesquisadores, quanto dos funcionários do
Tribunal. Assim, foram analisados 168 processos criminais.
2  A presente pesquisa foi desenvolvida pelos autores no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PI-
BIC), exercício 2014/2015, da Universidade Católica de Pernambuco, orientados pela Profa. Dra. Marília Montenegro pessoa de
Mello. Ademais, está ligada à dissertação de mestrado da Ma. Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros, tal que representa
um recorte de sua pesquisa empírica realizada na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No Direito Penal comum, o “homem agressor” é denunciado pela “mulher agredida” e esse fato é
tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor
uma pena justa ao violador da lei. Assim, Hulsman (1993, p. 82) afirma que o sistema coloca o acontecimen-
to sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele, mas para o casal
que viveu o fato, o que verdadeiramente importa: este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida
em comum?

A vítima, ao entrar na Justiça Criminal tradicional, passa a não ser mais detentora do conflito, con-
figurando a primeira consequência. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve
ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor,
configura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, basean-
do-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 219).

A busca pelas funções declaradas do sistema de justiça criminal é o que leva a mulher a procurar
uma solução no sistema penal, funções essas: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o
condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Operando
o sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode
ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada
minora seus conflitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por implicar, acredita
Baratta (1997, p. 302):

“[...] mais problemas de quantos pretende resolver. Em lugar de compor con-


flitos, os reprime e, aos poucos, estes mesmos adquirem um caráter mais gra-
ve em seu próprio contexto originário ou também por efeito da intervenção
penal, podem surgir conflitos novos.”.

Quanto maior o distanciamento entre as partes envolvidas no conflito, menor é o envolvimento e


a compreensão da dor da aplicação da pena. Diferentemente ocorre quando existe aproximação entre as
partes, pois nesses casos mais facilmente se compreende os efeitos da pena e a estigmatização por essa
produzida, configurando tipicamente os casos de violência doméstica e familiar. Em 73,7% dos casos de vio-
lência doméstica que chegaram a VVDFMR, homem ou mulher eram ou já tinham sido parceiros íntimos.
Nesses casos, inclusive, os relacionamentos de longa duração (aqueles com mais de sete anos) foram os
mais frequentes (52,6%) e, nos processos em que o casal estava separado na data do registro da ocorrência
(52,3%), essa separação, normalmente, tinha ocorrido há pouco tempo (46,6% das separações haviam ocor-
rido há, no máximo, seis meses). Adicione-se, por fim, que 64% dos homens e mulheres que chegaram a
ter um relacionamento íntimo, tiveram filhos, e que 89,8% desses filhos eram menores de idade na data da
ocorrência da violência.

Nos casos de violência doméstica, a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da
prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional.
Na violência doméstica a intervenção estereotipada do Direito Penal age duplamente sobre a vítima, pois não
leva em conta a sua singularidade, os seus laços com o suposto agressor. O sistema penal visualiza todas as
vítimas, seja de um roubo, de uma lesão corporal ou de uma injúria, da mesma maneira, independente das
idiossincrasias. Assim, existe essa dupla vitimização da mulher, principalmente nos casos em que ocorrerem
à prisão provisória. A mulher passa a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro, e ela é diretamente
atingida com isso, tanto nos aspectos emocionais como financeiros, desestabilizando a organização social
(MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 458-460).

5. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SELETIVIDADE DA CLIENTELA PENAL.

Como previsto nas análises bibliográficas, quanto ao perfil socioeconômico, observou-se que as partes
envolvidas nesse conflito representam a seletividade da clientela do sistema penal, pois, em sua grande maio-
ria, pertencem a classes sociais economicamente pouco abastadas, já que possuem baixo grau de escolarida-

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Direito(s) em debate.

de (31% das mulheres que chegaram a VVDFMR sequer completaram o ensino fundamental e apenas 10%
possuem o ensino superior completo; no que diz respeito ao grau de escolaridade dos homens, 37,5% deles
sequer chegaram a completar o ensino fundamental e apenas 6,5% possuem ensino superior completo).

Ademais, moram em bairros da periferia e têm empregos com expectativa de baixa remuneração (ob-
servou-se que 25,6% das mulheres se dedicam unicamente à atividade doméstica, circunstância que indica,
muitas vezes, a ausência de independência econômica da mulher; no caso masculino, 13% eram vendedores,
seguido de 8% de pedreiros). Com relação à cor dos homens e mulheres, ressalte-se que, na maioria dos pro-
cessos (85% para as mulheres e 75,6% para os homens), não havia informação sobre a sua cor, prevalecendo,
entre ambos, porém, nos casos informados, a cor parda (11% para as mulheres e 16,7% para homens).

Essa seletividade corrobora com a afirmação de Alessandro Baratta (1997, p. 167) ao apresentar que
o cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante
de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação
social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. O cárcere representa, ge-
ralmente, a consolidação de uma carreira criminosa. Esse processo de seleção referido por Baratta crimina-
lizará (primariamente e secundariamente) os setores vulneráveis, permitindo a ampla imunização daqueles
setores resistentes ao sistema. Esta vulnerabilidade é inversamente proporcional à detenção de poder, seja ele
político, econômico ou científico. Estes setores imunes, que mesmo assim praticam as condutas tidas como
socialmente negativas, farão parte da chamada criminalidade oculta.

Com base nos dados acima, as funções declaradas da pena e, por extensão, do próprio sistema penal
que se evidencia através dela, serão basicamente reproduzir a desigualdade e o status quo. O sistema penal
não possui eficácia quanto aos seus objetivos declarados, mas sim em relação ao que não diz, ou seja, quanto
as suas funções latentes. Em verdade, o sistema punitivo atua na sua forma mais tradicional, selecionando a
sua clientela e reproduzindo violência e dor (MEDEIROS, 2015, p. 60-61).

6. LEI MARIA DA PENHA, TEORIAS DA PENA E A REVITALIZAÇÃO DO PENAL.

Buscar uma explicação para a aplicação das Penas Privativas de Liberdade como formas de resolução
de conflitos é, no mínimo, ponderar e avaliar os fundamentos de “punir”. Nesse sentido, Salo de Carvalho
(2010, p. 83), incita um desconhecimento dos fundamentos da pena. Então, faz uma análise sobre os diver-
sos institutos penais e quais deveriam ser as suas consequências com relação a sua aplicação. No entanto, em
seus estudos, ao observar que as penas privativas de liberdade não conseguem atingir sua função declarada,
ou seja, realmente ressocializar os indivíduos (e, analogicamente, no contexto da violência doméstica, sanar
os problemas decorrentes), ou trazer uma prevenção, seja ela geral ou especial (SANTOS, 2002), surge o
questionamento do por que da aplicação de penas tão desestruturadoras quanto a Pena Privativa de Liber-
dade.

Juarez Cirino dos Santos (2002, p. 53-57), por sua vez, mostra, basicamente, o que justificaria
a aplicação de tais penas, que seria a retribuição da culpabilidade, a prevenção geral e a prevenção especial.
No entanto, também observa a ineficácia da pena para atingir tais objetivos.

Nesse mesmo cenário, Ferrajoli (2006), com sua teoria do garantismo penal, incita a técnica
do estranhamento ao sistema penal, para que possamos observar o seu caráter segregador e a aplicação da
“Culpabilidade por Vulnerabilidade”, criada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2004). Assim, parte-se da ideia de
que a Vulnerabilidade é responsável pela conceituação do criminoso. No entanto, uma das ideias despertadas
pelos estudos da criminologia crítica é que não existem apenas sujeitos criminosos, na verdade são os sujeitos
criminalizados que estão vulneráveis a esse tipo de sistema.

Quando falamos de violência doméstica, a pesquisa de campo apontou que praticamente todas
as infrações penais (99,5%) que foram processadas na VVDFMR se encaixam no conceito de baixa lesividade
descrito na Lei n.º 9.099/95, dentre as quais se destacam a ameaça (55%) e as lesões corporais leves (23%).
Ademais, o meio percentual (0,5%) restante é referente a um crime de médio potencial ofensivo (incêndio),

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Direito(s) em debate.

abarcado, pois, pela redação do artigo 89 da Lei 9.099/95 a qual viabiliza, em geral, a suspensão condicional
do processo.

Nesse sentido, os resultados encontrados na pesquisa desenvolvida comprovam as expectativas de


que as infrações penais que seriam encontradas se tratariam, sobretudo, daquelas que se encaixam no con-
ceito legal de baixa potencialidade lesiva. Todavia, mesmo se tratando desse tipo de infrações, observou-se
que elas têm como consequência uma razoável quantidade de prisões, pois, em 17% dos casos analisados,
o réu esteve preso durante todo ou parte do processo. Além disso, muito embora 38% desses presos tenham
sido posteriormente condenados, a pena que lhe foi imposta, na maior parte dos casos (67%), sequer chegou
a lhes privar da liberdade, já que suas penas foram substituídas por restritivas de direito, suspensas condicio-
nalmente ou declaradas extintas já que haviam sido cumpridas durante a prisão provisória.

Percebe-se, também, que o tempo dessas prisões processuais concentrou-se principalmente na faixa
entre 03 (três) e 04 (quatro) meses. Nesse contexto:

A tendência, pois, é atuar em nome de uma suposta prevenção mediante


uma contenção provisória, que consiste efetivamente numa pena antecipa-
da, ocasionando uma inversão do sistema penal onde tudo é motivo para a
privação de liberdade (MEDEIROS, 2015, p. 136).

Do mesmo modo, foi também em razão desses crimes de baixa lesividade, que um quarto dos pro-
cessos pesquisados terminou com a condenação do réu. No entanto, embora tenham se reservado quase
exclusivamente a penas privativas de liberdade de curta duração (95,4%), as sentenças chegaram a ocasionar
o encarceramento de 15% dos condenados; os remanescentes (85%) tiveram suas penas suspensas condicio-
nalmente ou substituídas por restritivas de direitos.

Imprescindível, assim, realizar uma análise mais aprofundada com o objetivo de não gerar conclusões
simplórias. De início, necessário lembrar que são principalmente os crimes de menor potencial ofensivo que
ocasionam esse encarceramento. Assim, como abarcados pela Lei nº 9.099/95, dificilmente ocasionariam
um processo criminal. Segundamente, ainda considerando que são crimes de baixa lesividade, ressalta-se
a necessária cautela anunciada por Christie (1998, p. 15-17) quando da interpretação de números sobre o
encarceramento, os quais, segundo o autor, são extremamente relativos, tal que uma cifra baixa de encarce-
ramento tanto pode indicar muitos presos com penas de curta duração, como também poucos presos com pe-
nas muito altas. De acordo com a pesquisa realizada, 95,4% das penas privativas de liberdade dos condenados
na VVDFMR sequer superaram um ano; havendo, ainda, um grande percentual de penas que não superou a
faixa dos três meses (20,9%) ou dos seis meses (41,9%).

Nesse contexto, os dados relacionados ao encarceramento na Lei Maria da Penha se tornam alarman-
tes e levam ao entendimento de que a proibição da utilização dos institutos despenalizadores, em geral, dei-
xou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, uma vez que não considerou a possibilidade da utilização
de alternativas, evitando penas encarceradoras desumanas. Apesar das críticas que podem ser feitas aos
institutos despenalizadores, eles surgiram com a finalidade de descentralizar e minimizar a pena privativa de
liberdade. Então, muito embora se entenda que os institutos diversificacionistas tenham aumentado o âm-
bito do controle social penal, é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação
(CARVALHO, 2010, p. 47-49). Percebe-se, com isso, na tentativa de enfrentamento a violência doméstica,
uma maior utilização de medidas penais, em contradição ao apoio às mulheres, com as idealizadas medidas
não penais, aparentemente mais adequadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei Maria da Penha (11.340/2006) trouxe inovações em relação ao combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher, porque, através de sua redação, além de reconhecer e institucionalizar esse tipo
de violência conseguiu dedicar grande atenção à assistência e proteção das mulheres vítimas. No entanto, no

181
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

que se refere ao aspecto penal, tem se observado certo desvio de finalidade, uma vez que as mulheres quando
procuram o sistema, nem sempre desejam punir o agressor, mas sim, conseguir alguma proteção em relação
aos comportamentos violentos sofridos, assim como formas alternativas de resolução do conflito.

As relações de afeto e intimidade existente entre vítimas e acusados, com a expansão do Direito Pe-
nal, deixaram de ser contempladas, bem como as expectativas e necessidades das mulheres violadas, que,
preocupadas com o bem-estar da família e almejando a cessação da violência e o restabelecimento da harmo-
nia familiar, não se voltam para persecução penal de seus agressores. Logo, quando conhecem da possibilida-
de de privação da liberdade do sujeito ativo, as vítimas têm dificuldades em denunciar o abuso sofrido. Com
efeito, a irreversibilidade do procedimento processual penal, findará por inibir a procura do auxílio judicial e
contribuirá para o ressurgimento das “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher, pois o próprio
instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la.

De tal modo, considerando a ineficácia do Direito Penal, entende-se que sua aplicação deve ser sub-
sidiária, pois não é a forma mais adequada para resolver os conflitos familiares e domésticos, principalmente,
por causa da sua função seletiva e simbólica. Assim, o Estado precisa investir na atuação social, na prevenção
equilibrada da reprodução de um ambiente doméstico e familiar saudável, para que, posteriormente, não
precise reprimir o conflito social por meio do controle penal repressivo e arbitrário, sabendo que o Direito Pe-
nal, através do punitivismo, vem se afastando do seu referencial minimalista, tornando-se incapaz de resolver
os referidos conflitos. O Direito Penal além de não recuperar, não ressocializa o agressor.

Observando a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça cri-
minal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos das partes envolvidas, não
apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência,
resta, então, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, o que
não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Nessa perspectiva, é importante a discussão de meios
alternativos para a solução de conflitos, principalmente transferindo a responsabilidade para outros ramos do
Direito, como também pela utilização de medidas pedagógicas, psicoterapêuticas e conciliadoras, rompendo
com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. No
entanto, para os comportamentos mais lesivos, pode se pensar ainda na criminalização, porque não se defen-
de a prática de crimes realizados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, contudo, pretende-se que
seja encontrado um meio mais adequado do que o direito penal, priorizando a intervenção mínima, ou seja,
colocando o direito penal como um meio subsidiário para as respostas ao conflito.

Enquanto o direito penal pregar uma eficácia garantidora simbólica, ele continuará sendo ineficaz.
Isso acarreta em um discurso simbólico que visa à segurança jurídica, com igualdade e justiça nas decisões
para exercer um controle cada vez mais arbitrário e seletivo sobre a camada social mais vulnerável, tendo
uma ajuda muito importante da mídia nesse processo, pois ela superficializa as realidades sociais e distorce
o modo de enxerga-las, de modo que a essência dos problemas passa a ser ignorada.

Além disso, é perceptível que esse discurso punitivista pregado pelo sistema se propaga rapidamente
e, fazendo uso dele, o movimento feminista não só conseguiu dar uma maior visibilidade à violência domés-
tica contra mulher através da Lei Maria da Penha, mas também possibilitou um maior debate sobre as pecu-
liaridades trazidas pela lei e sobre os seus efeitos, que, para a surpresa das feministas, divergiram do esperado
pela ausência do desejo das vítimas de criminalizar seus agressores. Portanto, fica claro que a Lei 11.340/06,
apesar da sua importância, se mostra como mais uma forma de o Estado aumentar o seu poder, possuindo
legitimidade clamada mais uma vez pela própria sociedade, devido as suas inseguranças, seus anseios e seus
medos.

No que tange aos resultados alcançados com a pesquisa de campo na 1º Vara de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher do Recife, fica claro quem são essas mulheres e seus agressores, ou seja, mais
uma vez, o sistema penal possui seus atores pré-selecionados, com cor e perfil socioeconômico determinado,
atuando com seu discurso falacioso e sua máscara de proteção a essas mulheres que acabam sendo reviti-
mizadas, pois diferentemente do caso ocorrido à Maria da Penha, as verdadeiras “Marias do Recife” sofrem
mais uma vez ao terem suas vozes silenciadas e seus anseios arrancados pelos punhos fechados do Estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Necessário pontuar, ainda, que não se defende que os crimes praticados contra a mulher no contexto
doméstico sejam ignorados, mas, até que outro sistema menos famélico seja encontrado, é preciso que o Di-
reito Penal seja utilizado conforme os princípios que o regem, no caso específico, os da intervenção mínima,
da subsidiariedade e o da fragmentariedade, de modo que haja uma máxima contenção do paradoxal sistema
punitivo. As políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem focar na construção de um
ambiente doméstico e familiar equilibrado, superando, de tal modo, os empecilhos da ultrapassada, medieval
e maniqueísta inquirição do suposto agressor culpado e de uma eterna vitimização feminina.

Por fim, é válido compreender que as questões familiares, a relação vítima e agressor, não devem ne-
cessariamente passar pelo tratamento do sistema penal, pois a ampliação do Direito Penal deixou de contem-
plar as relações de intimidade e afeto existentes na família, bastante complexas. Ele também não superou os
interesses e expectativas das vítimas que almejam o fim da violência e o restabelecimento dos laços familiar,
e, principalmente, o bem-estar da família, que não está direcionado a criminalização do agressor, justifican-
do, assim, os dados encontrados na pesquisa de campo realizada na 1º Vara de Violência Doméstica e Fami-
liar Contra a Mulher do Recife. Assim, é necessária, portanto, a superação e não disseminação, no intelecto
social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade patriarcal e machista, que levam à
ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é pre-
ciso se voltar às origens do problema, essencialmente familiar e de origens históricas, da violência doméstica
e, definitivamente, a máxima intervenção punitiva do Estado não é a solução para isso.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIÁLOGO INTERJUDICIAL:
REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Caroline Alves Montenegro


Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco –
Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo
Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela
Universidade de Pisa/Itália. cacamontenegro@hotmail.com

Renata Santa Cruz Coelho


Advogada. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco –
Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Bolsista da CAPES. Especialista
em Direito do Trabalho pela UFPE. Contato – renatasantacruzcoelho@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos no


ordenamento jurídico brasileiro; 2. Controle de convencionalidade e a tutela multinivel de direitos
fundamentais; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O nosso trabalho está organizado em três partes. Inicialmente, pretendemos abordar o Brasil no
contexto histórico de nossa Constituição de 1988 em razão de uma crescente preocupação com os direitos
fundamentais dos cidadãos, assim como, a proteção dos direitos humanos como formas de reconhecer e
consolidar a democracia. Em seguida, como tem sido a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudências no ambiente interno em razão de uma releitura
de determinados casos com enfoque no que diz a Convenção Americana de Direitos Humanos (Daremos
destaque aos casos do depositário infiel e a audiência de custódia). Enfim, pretendemos analisar o diálogo
multinível de direitos fundamentais que pode gerar uma teoria constitucional dinâmica, já que as diversas
ordens podem acolher e reelaborar os direitos previstos nos diversos níveis, seja a partir da verificação das
suas normatividades, seja a partir da influência da própria jurisprudência das Cortes.

Os direitos humanos suscitam um processo de lutas e reivindicações sociais em busca da promoção


da dignidade humana. Assumem destaque, com a Declaração Universal de 1948, a partir da qual o respeito à
dignidade humana passou a ser objeto de todos os tratados e declarações de direitos humanos, que integram
o Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2011).

A Constituição Federal do Brasil possui cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos, que complementam o texto constitucional. Alguns países
latinos americanos, que fazem parte do Sistema Regional Interamericano deram passos dinâmicos e evoluí-
dos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos no ambiente constitu-
cional de cada Estado. Esses países foram muito influenciados não apenas pelas jurisprudências da CrIDH1,

1  CrIDH, neste texto, quer dizer Corte Interamericana de Direitos Humanos

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

como também, pelas recomendações da CIDH2, e também pelas consultas encaminhadas ao sistema que
deram origem a importantes modificações legislativas em seus ambientes jurídicos internos.

A Competência jurisdicional da CrIDH foi reconhecida pelo Brasil através do Decreto legislativo nº89,
de 03/12/1998. O Brasil tem o caso do depositário infiel e edição da Súmula Vinculante n. 25 que por força
da Convenção Americana de Direitos Humanos considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer
que seja a sua modalidade do depósito.

Há também o caso da audiência de custódia – preso levado imediatamente à presença do juiz. Repe-
tição do depositário infiel. Influência da Convenção Americana (art.7º, §5º). Ainda não há discussão no STF
sobre esse caso. O CNJ quer implementar em todo o país, o preso passará imediatamente a ser levado a uma
audiência de custódia e não ser mais apenas comunicado por meio de um papel ao juiz.

1. NATUREZA JURÍDICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO3

Segundo Piovesan (2013), não é demais recordar que os tratados internacionais são considerados
obrigações assumidas espontaneamente pelos Estados, portanto, após a sua constituição, precisa haver o
seu adequado cumprimento, em razão do seu caráter obrigatório e vinculante. Em termos mais específicos,
aqueles acordos internacionais podem ser considerados como convenções, pactos, cartas, etc.

Não é demais ressaltar, o posicionamento de Ramos (2013) sobre a internacionalização dos direitos
humanos e as obrigações internacionais, a saber:

[...] a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontor-


nável. Graças a ela, temos obrigações internacionais vinculantes na seara
ora dominada pelas Constituições e leis locais. O descumprimento de uma
obrigação internacional pelo Estado torna-o responsável pela reparação dos
danos porventura causados (RAMOS, 2013, p.31).

Ainda com base em Piovesan (op. cit.), existe um processo de formação dos tratados internacionais
na Constituição Brasileira de 1988, cuja competência privativa é do Presidente da República, art.84, VIII,
mas precisa do referendo do Congresso Nacional. É um processo complexo constituído pela celebração do
Chefe do Executivo nacional e aprovação mediante decreto legislativo do Congresso Nacional.

O procedimento para a incorporação de um tratado de direito internacional no ordenamento jurídi-


co brasileiro é desenvolvido da seguinte maneira: inicialmente, o tratado necessita da assinatura de um dos
representantes legislativos4; em seguida, é levado ao Presidente da República, que encaminha ao Congresso
Nacional um requerimento de aprovação, então, é submetido para aprovação ou reprovação no Senado. Se
esta casa legislativa o aprovar, segue para aprovação ou reprovação na Câmara Federal. Caso seja aprovado,
compete ao Presidente do Senado elaborar um decreto legislativo para o Presidente da República, que, dis-
cricionariamente, pode ratificar5 o tratado. Quando este confirma, o tratado é conduzido para publicação

2  CIDH, neste texto, significa Comissão Interamericana de Direitos Humanos


3  Uma versão anterior de parte deste tópico está disponível em: dissertação – Montenegro, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia
dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. p.91-92 e 94-95, jun.2014
4  Os representantes legislativos deste procedimento no Brasil são os seguintes: 1- Chefe de Estado – no nosso país é um dos
atributos do Presidente da República (privativamente – art.84, VIII da CF/88); 2- Pleni Potenciário – pessoa escolhida pelo Chefe
do Estado e do governo (Brasil Presidente da República) com a confirmação do Ministro das Relações Exteriores – geralmente
corresponde a um diplomata – que possui seus poderes plenos, mas restrito ao que dispõe a carta, que aquele recebe; 3- delegação
nacional – a forma de escolha é igual à do pleni potenciário, corresponde a um grupo em missão especial para negociar e assinar
um tratado internacional, que tem seus poderes submetidos ao que dispõe a carta e 4- Ministros das Relações Exteriores – ele
prescinde da carta de pleno poderes.
5  O Presidente poderá deixar de ratificar um tratado internacional se houver perda de interesse, quando não cuida de interesse
ao Brasil, ou, outra norma de direito internacional mais benéfica for aprovada anteriormente. O decreto legislativo apenas autoriza
a ratificar, não o obriga.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

no Diário Oficial da União. A partir de então, já existe, possui vigência, validade e obrigatoriedade no direito
estatal, ou seja, está apto a produzir os efeitos jurídicos.

Para Piovesan (op. cit.):

[...] Há, portanto, dois atos complementares distintos: a aprovação do tratado


pelo Congresso Nacional, por meio de um decreto legislativo, e a ratificação
pelo Presidente da República, seguida da troca ou depósito do instrumento
de ratificação. Assim, celebrado por representante do Poder Executivo, apro-
vado pelo Congresso Nacional e, por fim, ratificado pelo Presidente da Repú-
blica, passa o tratado a produzir o efeito jurídico (PIOVESAN, 2013, p. 138).

Por outro lado, ainda com base em Piovesan (op. cit.), os tratados internacionais de direitos huma-
nos, por serem considerados normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, não necessitam do
processo de formação legislativo, como os tratados internacionais tradicionais, nem do decreto de execução.
Aqueles tratados internacionais de direitos humanos são automaticamente incorporados ao ordenamento
jurídico brasileiro, enquanto estes tradicionais necessitam se submeter ao processo não automático.

Convém ressaltar que Piovesan (2011) e também Cançado Trindade são adeptos de uma corrente
minoritária, os quais entendem que para os tratados de direitos humanos se adota o sistema de recepção
automática, pois estes tratados seriam self- executing, ou melhor, eles se incorporam ao direito brasileiro as-
sim que ratificados. Para a professora citada, o Brasil adota a concepção dualista para a vigência interna dos
tratados em geral, mas no que se refere aos de direitos humanos a concepção monista, que não necessita da
promulgação, em virtude da eficácia imediata que o art.5º, §1ºe 2º, lhes outorga.

O professor André Carvalho tem um posicionamento distinto e para ele a incorporação de um Tratado
Internacional de Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, não é distinto do comum, portanto,
necessita obedecer às quatro fases descritas acima. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, e, assim,
estes doutrinadores são adeptos ao sistema de recepção legislativa.

Observa-se, assim, que o nosso país passou por um processo de progressivo crescimento quanto ao
reconhecimento dos tratados internacionais no cenário jurídico interno. Além disso, desde a promulgação da
Constituição cidadã, inúmeras interpretações surgiram, atribuindo um tratamento diferenciado aos tratados
relacionados aos direitos internacionais dos humanos, em razão do §2º e 3º do art.5º da CF/88.

Ab initio, o STF sustentava6 que os tratados internacionais incorporados no ordenamento jurídico


brasileiro gozavam de status equivalentes ao de uma lei ordinária. O grande inconveniente desta posição
hierárquica consiste no fato de as leis ordinárias serem passíveis de perda de eficácia, quando surgem leis
posteriores tratando do mesmo assunto de forma idêntica ou contrária. Sendo assim, o Brasil não ficava obri-
gado a cumprir o tratado internacional anterior, pois não possuía nenhuma validade interna.

Todavia, em 20087, o pleno do STF, em uma maioria apertada (dos 9 ministros presentes – a vota-
ção encerrou em 5x4), consagrou caráter supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos
internacionais ratificados antes da EC n°45/04. Definiu-se, a partir de então, que os direitos fundamentais
não estão apenas no artigo 5° da CF/88, mas em outros dispositivos do próprio texto constitucional, de nor-
mas infraconstitucionais e de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Com isso, esses
tratados internacionais de direitos humanos incorporados no direito brasileiro, como direitos fundamentais,
são cláusulas pétreas, correspondem aos do artigo 5°§ 2°8 da CF/88 e também possuem o mesmo quórum de
uma lei ordinária.

6  Posicionamento firmado em 1977, quando o STF julgou o RE 80.004/SE.


7  Posicionamento firmado em 2008, quando o pleno do STF julgou o RE 466.343.
8  § 2º do artigo 5°da CF/88 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

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Para Piovesan (2013), esses tratados de direitos humanos do artigo 5º § 2º, através de uma interpre-
tação sistemática e teleológica, como possuem um caráter especial, são considerados normas constitucionais
de aplicabilidade imediata. A jurista justificou seu posicionamento em razão do jus cogens, ou seja, esses
tratados de direitos humanos constituem um direito cogente e inderrogável. Caso os tratados firmados pelo
Brasil sejam tão somente internacionais, são considerados supralegais e de hierarquia infraconstitucional,
em razão do princípio da boa-fé e do que diz o artigo 27 da Convenção de Viena.

Partindo-se do posicionamento de Piovesan (2013), constata-se que os tratados de direitos humanos,


mesmo ratificados antes da EC/45, que excederam o quorum necessário para tornar-se uma Emenda Cons-
titucional, seriam recepcionados como normas materialmente constitucionais. O quorum qualificado tão so-
mente reforça a natureza constitucional, fundamentada em razão de o tratado ser considerado internacional
de direitos humanos.

Neste sentido:

[...] Com efeito, nunca é demais lembrar que a tese da paridade entre a
Constituição e os tratados de direitos humanos é anterior à EC45 e encon-
tra sustentação já no teor do §2º do mesmo artigo, que, na sua condição de
norma inclusiva, consagrando a abertura material do catálogo constitucional
de direitos fundamentais, já vinha- e a doutrina já colacionada em prol da
hierarquia constitucional assim já o sustenta há tempos – sendo interpretado
como recepcionando os direitos humanos oriundos de textos internacionais
na condição de materialmente constitucionais (SARLET, 2010, p.90).

Não restam dúvidas o crescimento progressivo das questões relacionadas aos direitos humanos, assim
como, a necessidade dos países membros dos sistemas internacionais e regionais se comprometerem com a
consolidação destes direitos, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da poten-
cialidade daqueles sistemas.

O Brasil, enquanto um Estado democrático de direito, vem adotando, a partir da Constituição cidadã
(CF/88), atos relacionados à sua soberania externa como: tratados, acordos e convenções regionais e inter-
nacionais relacionadas aos direitos humanos. Ademais, em conflitos de normas de direitos internacionais dos
direitos humanos há uma tendência de se faz valer a primazia da norma mais favorável à dignidade humana,
quer dizer, o princípio internacional pro homine, não importa se é um decreto, ou, qualquer tipo de lei, assim
como, o princípio da proibição do retrocesso.

Em síntese, o que se constata é que há quatro correntes com relação à natureza jurídica do
Tratado Internacional de Direitos Humanos, antes da EC/45, a saber:

1ª corrente – supraconstitucionalidade

2ª corrente – constitucionalidade

3ª corrente – supralegalidade

4ª corrente – legal

Convém ressaltar que, a tese atual do STF é da natureza jurídica supralegal às normas internacionais
de direitos humanos anteriores a EC/45. Ademais, já se decidiu no STF que, a Convenção Americana quando
amplia direito das pessoas deve ser aplicada, ainda que a CF/88 ofereça uma proteção menor, seja pela tese
da supralegalidade, seja pela tese da norma mais benéfica.

2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A TUTELA MULTINIVEL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O Brasil é detentor de direitos e obrigações na área de direitos humanos que devem ser cumpridos
sob pena de ofensa as normas positivadas na Constituição e na Convenção Americana, já que o nosso país não

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

apenas é membro da OEA assim como, ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica) em 1992, reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana9, e também é signatário de
tratados de direitos humanos tanto no âmbito interamericano quanto universal (leia-se das Nações Unidas).

A importância da internacionalização dos direitos humanos no Brasil se justiça também através do


art.7º do ADCT10. Constata-se como afirma Ramos (2013) que o “Diálogo das Cortes” entre órgãos interna-
cionais de direitos humanos não consiste em uma obrigação que deve ser realizada pelos juízos nacionais,
sob pena de ofensa a independência funcional e ao Estado Democrático de Direito. No entanto, deve-se ter
em mente que, o Controle da Constitucionalidade cabe ao STF e nosso país deve também se submeter a um
controle de convencionalidade, como um mecanismo interno do cumprimento de obrigações internacionais,
decorrentes da Convenção Americana.

A existência de um controle de convencionalidade no país – leis comuns (ordinárias e complemen-


tares) e a obediência também dos tratados internacionais de direitos humanos, da Convenção Americana.
O controle de convencionalidade possui dois efeitos: 1- revogam as normas infraconstitucionais contrárias à
Convenção Americana e 2- impedem que normas infraconstitucionais contrárias à Convenção ingressem no
sistema normativo.

Para Ramos (2013), um exemplo do duplo controle (Constitucionalidade e Convencionalidade) exis-


tente no Brasil corresponde a ADPF nª153 e o Caso Gomes Lund vs.Brasil. Com a decisão do STF, houve por
maioria de votos, uma anistia dos agentes da ditadura militar no Brasil. Já, para CrIDH: não se pode invocar
a anistia pelos mesmos agentes.

Constata-se que para ocorrer um diálogo entre a jurisdição nacional e a internacional é preciso que
ocorra uma interpreção dinâmica, ficando a cargo dos tratados internacionais esclarecerem e desenvolverem
os princípios e regras neles estabelecidos. A partir do momento em que há um cumprimento das obrigações
internacionais, observa-se também, uma maior abertura para a utilização das jurisprudências dos órgãos in-
ternacionais de proteção de direitos humanos, consequentemente, uma tendência à formação de um diálogo
multinível de proteção destes direitos.

A tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos tem sido um assunto de tendência inter-
nacional e de grande importância para o direito constitucional. Por meio deste estudo, podem-se introduzir
novas formas de jurisdição, quer seja por meio de uma constitucionalização de direitos, ou, de uma interna-
cionalização de direitos fundamentais previstos nas Constituições.

Podem-se citar, como uma forma de reflexão sobre a proteção multinivel dos direitos fundamentais,
debatendo-se a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpre-
tações jurisprudenciais no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque
no que diz o Pacto de São José da Costa Rica. O caso do depositário infiel e da audiência de custódia serão
abordados.

A audiência de custódia é oriunda de um projeto de lei do Senado Federal (PL nº554/2011) com a
finalidade de alterar a redação do §1º do art.306 do CPP, como uma tentativa de combater a tortura e maus
tratos dos presos em flagrante, permitindo um contato imediato do preso com o juiz, na presença do Minis-
tério Público e com defensor, o preso não mais será apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. Há
também a ADPF nº347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solici-
tada, que pede providências para a crise prisional do país.

O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada na Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país,
a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo

9  O Brasil reconheceu a jurisdição da CrIDH em dezembro de 1998 por meio do decreto legislativo n.89 de 3 de dezembro de
1998.
10  Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas
contadas do momento da prisão.

Na ADPF 347 postulou-se, em síntese, que o STF reconheça e declare o estado de coisas inconstitu-
cional do sistema prisional brasileiro, e, diante disso, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à
promoção da melhoria das condições carcerárias do país e a contenção e reversão do processo de hiperencar-
ceramento que o Brasil vivencia. Mesmo sem ainda ter sido aprovado no Congresso Nacional, a audiência de
custódia tem sido utilizada como uma sugestão do CNJ para ser implementada em todo país, com garantia
do que dispõe a Convenção Americana em seu §5º, art. 7º.

Nesse sentido, observa-se o que trata Lima (2015), a saber:

Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional,
o Conselho Nacional de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já
vem adotando resoluções e procedimentos com o objetivo de implementá-la,
porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Conven-
ção Americana sobre os direitos humanos (Dec.678/92), dotada de status
normativo supralegal, cujo art.7º, §5º, dispõe que:”toda pessoa detida ou re-
tida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autori-
dade pela lei que exercer funções judiciais.”[...] (LIMA, 2015, p.927)

No Brasil tem o caso do depositário infiel e a edição da Súmula Vinculante n. 25, que por força da-
quela Convenção considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do
depósito. Há interpretações no sentido de que a partir de então, houve uma mutação informal na constitui-
ção, não admitindo a prisão civil no caso citado, com sucedâneo na Convenção Americana. Para estes juristas
a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos seria constitucional. Tese não admitida
no STF, pois o posicionamento atual da Suprema Corte é de que as normas internacionais de direitos huma-
nos anteriores a EC/45 tem natureza jurídica supralegal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proteção do dos Direitos Humanos tem se ampliado, complementando o sistema jurídico nacional,
não sendo causa de antinomias, nem sendo forma de ofensa à soberania nacional, mas conferindo maior
cooperação à efetividade destes direitos, frente às violações mundiais, principalmente após as Guerras Mun-
diais do século passado e as arbitrariedades dos regimes nazista e fascista, não deixando de lado as ditaduras
da América na década de 70.

O Sistema Interamericano é formado pelos países das Américas, que fazem parte da OEA, possui
como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa
Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos humanos. Alguns Estados partes deram passos dinâ-
micos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas
constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições
democráticas e Estados de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da
potencialidade do Sistema no continente americano.

O controle de convencionalidade no Brasil representa um importante avanço no constitucionalismo


interno, sendo uma das formas de se concretizar o desejado Estado constitucional e humanista de direito, as-
sim como, ser uma forma de validade normativa nacional. Ademais, leva ao Estado brasileiro e demais países
da América, membros da OEA e signatários do Pacto de San José da Costa Rica, a adequarem a sua produção
legislativa às obrigações internacionais ajustadas, caso contrário, eles se tornam sujeitos de responsabilidade
internacional.

Há uma tendência ao tratamento diferenciado dos direitos e garantias fundamentais na Constituição


de 1988, por conseguinte, uma maior abertura em relação às normas internacionais, resultando em uma

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ampliação do “bloco de constitucionalidade”. Esse fato é importante para a aplicação da tutela multinível
de direitos fundamentais e/ou humanos que tem sido um assunto de tendência internacional e de grande
importância para o direito constitucional.

REFERÊNCIAS

CASA CIVIL. 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal. Dispo-
nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#adct> Acesso em: 10.01.16.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Bahia: Editora JusPodvim, 2015.

MONTENEGRO, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil
no período da ditadura militar. CDU 342.7(81). p.91-92 e 94-95, defesa em jun.2014

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. 12ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2011.

___________________. Manual de Direito Internacional Público. 19ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

___________________. Temas de Direitos Humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva 2013.

RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de direitos Humanos. 3ed. São Paulo: Saraiva,
2013.

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Tratados de Direitos Internacionais em matéria


de Direitos Humanos: Revisitando a Discussão em torno dos Parágrafos 2º e 3º do art.5º da Constituição
Federal de 1988. In: NEVES, Marcelo (Coord.). Transnacionalidade do Direito: Novas Perspectivas dos Con-
flitos entre Ordens Jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

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A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E


POLÍTICAS PÚBLICAS

David Cavalcante
Mestre em Ciência Política-UFPE e Graduando em Direito-UNICAP

SUMÁRIO: Introdução; 1. Os refugiados e os direitos humanos no pós-segunda guerra; 2. O brasil e


os direito humanos dos refugiados; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Há anos um tema humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil, dos
governos e da imprensa mundial quanto o tema dos refugiados, oriundos principalmente da Síria para a
Europa. O  Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) responde pela assistência
internacional prestada aos refugiados e, sob determinadas condições, aos deslocados internos e apátridas.
Em 2012, o número de pessoas com necessidade de apoio no mundo atingiu 45,2 milhões, número que vem
crescendo com o recrudescimento da Guerra Civil na Síria.

O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e do Protocolo
de 1967 – além de integrar o Comitê Executivo do ACNUR, desde 1958. Esses tratados normatizam a relação
do país com os refugiados e apátridas que poderão solicitar refúgio no Brasil, devido a fundado temor de ser
perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social específico ou opinião
política, encontrem-se fora de seu país de nacionalidade e não possam devido a tais temores, ou não queiram
retornar ao país de origem, buscando preservar suas vidas.

A política brasileira para o acolhimento de refugiados avançou bastante nas últimas duas décadas,
após a promulgação do Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). Essa lei instituiu as
normas aplicáveis aos refugiados e aos solicitantes de refúgio no Brasil e criou o Comitê Nacional para os Re-
fugiados (CONARE) – órgão responsável por analisar os pedidos e declarar o reconhecimento, em primeira
instância, da condição de refugiado, bem como por orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da
proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados.

Este trabalho busca analisar o avanço do marco jurídico no trato da questão dos refugiados, ao passo
que analisa de forma crítica a insuficiência de políticas públicas reais para recepcioná-los com mais ênfase
na agenda contemporânea governamental brasileira, principalmente diante do cenário na crise do Oriente
Médio.

1. OS REFUGIADOS E OS DIREITOS HUMANOS NO PÓS-SEGUNDA GUERRA

A temática do refúgio humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil
e da imprensa mundial, desde a Segundo Guerra Mundial. Jornais, revistas, sites, declarações de governos e
instituições evidenciam a progressiva e dolorosa travessia de milhões de refugiados da África e da Ásia para
Europa ou para países vizinhos oriundos das regiões em conflitos violentos, guerras civis e drásticas crises
econômicas.

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Direito(s) em debate.

O fator mais emblemático dos últimos anos para o aumento dos refugiados é a Guerra Civil na
Síria onde as informações dão conta que mais de 4 milhões de pessoas já foram expulsas de suas casas e ci-
dades devido aos enfrentamentos militares, ou seja, quase ¼ da população total daquele país. As informações
de ativistas de direitos humanos, dentro e fora da Síria, dão conta que o número de mortos no conflito pode
passar das 220 mil pessoas, sendo a grande maioria de civis, sendo que mais de 130 mil pessoas teriam sido
detidas pelas forças de segurança do governo. 

A grande maioria dos 4 milhões de sírios que já teriam buscado refúgio no exterior para fugir
dos combates, tentam abrigo nos países vizinhos, como no Líbano, Jordânia, Iraque e Turquia. No entanto,
esses países, já atingidos por fortes conflitos internos e sem grandes infraestruturas para receber uma po-
pulação tão numerosa, acabam por estimular também um corredor migratório para a Europa, mediado pelo
tráfico clandestino de pessoas, pelas travessias perigosas do Mar Mediterrâneo até o velho continente, através
da Grécia e Itália. Esta nova rota migratória soma-se aos já constantes e massivos fluxos oriundos da África.

O fenômeno do refúgio não é novo. Os povos, ao longo da história, sempre se depararam com
migrações em massa resultantes das guerras e conflitos militares entre os países e até mesmo intraregionais.
O conceito de “refugiados” compreendido de forma lato sensu é um fenômeno histórico e social presente na
humanidade desde a antiguidade, mas localizando-o no âmbito jurídico e político do Direito Internacional e
dos Direitos Humanos é o tratamento diferenciado que os Estados passam a ofertar às populações migrantes
forçadas a se retirarem de suas pátrias originárias por motivos de ameaças iminentes às suas vidas e/ou de
proteção familiar. De modo que o estatuto de proteção ao refúgio adquire relevância no âmbito da ascensão
contemporânea dos Direitos Humanos:

Quando se relacionam refugiados e direitos humanos, imediatamente perce-


be-se uma conexão fundamental: os refugiados tornam-se refugiados porque
um ou mais direitos fundamentais são ameaçados. Cada refugiado é conse-
quência de um Estado que viola os direitos humanos. Todos os refugiados
têm sua própria história – uma história de repressão e abusos, de temor e
medo. Há que se ver em cada um dos homens, mulheres e crianças que
buscam refúgio o fracasso da proteção dos direitos humanos em algum lu-
gar. Os mais de 20 milhões de refugiados acusam esse dado [...] Há assim
uma relação estreita entre a Convenção de 1951 e a Declaração Universal
de 1948, em especial seu art. 14, sendo hoje impossível conceber o Direito
Internacional dos Refugiados de maneira independente e desvinculada do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses Direitos têm em comum
o objetivo essencial de defender e garantir a dignidade e a integridade do ser
humano. [...] (PIOVESAN, 2015, p. 254)

A resultante destrutiva das forças produtivas e da humanidade, herdadas da Segunda Guerra Mun-
dial, desenvolveram um nova consciência política-jurídica e iniciativas humanitárias que pudessem acolher
às milhões de vítimas do maior conflito bélico já registrado no planeta. Além dos mais de 50 a 70 milhões
de mortes, confiscos de propriedades e toda a modificação da geopolítica internacional, os sobreviventes da
destruição constituíram as correntezas humanas em busca de países viáveis para trabalhar e viver com suas
famílias, já anteriormente desfeitas e abaladas por perdas materiais e de seus parentes. Somente nos Estados
Unidos, país que não teve seu território continental atingido pelos conflitos militares, entre os anos de 1945
e 1952, admitiram em seu território 400.000 sobreviventes do nazismo, deslocados de guerra, e entre eles
96.000, cerca de 24%, eram judeus.

Nesse contexto, em face da necessidade de acolhimento das migrações dos sobreviventes da II Guer-
ra que cujos países foram destruídos foi aprovada no âmbito da Conferência da Organizações das Nações
Unidas – ONU, realizada em 28 de julho de 1951, A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados
que constitui um inovador status jurídico para os refugiados.

A citada Convenção, em seu art. 1, § 1, alínea c, define que são refugiados as pessoas que se encon-
tram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Tam-
bém são refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada
e violação massiva dos direitos humanos. Naquela data, a Convenção se restringia a contemplar somente os
refugiados resultantes dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, mas posteriormente essa
restrição temporal foi substituída por uma maior amplitude no Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos
Refugiados, seu Art. 1º, § 2º, ampliando a cobertura temporal e geográfica da Convenção:

Para os fins do presente Protocolo, o termo “refugiado”, salvo no que diz


respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que
se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as
palavras “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janei-
ro de 1951 e...” e as palavras “...como conseqüência de tais acontecimentos”
não figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.[...] O presente Protocolo
será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; en-
tretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do
artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime do presente Proto-
colo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham sido ampliadas
de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.

A Convenção e o Protocolo ressignificaram a relação dos Estados que aderiram às mesmas, decisão
que foi resultante da Assembleia Geral de 1950 (Resolução n. 429 V), convocando em Genebra, em 1951,
a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para redigir a Convenção regulatória que atribui um
novo status legal dos refugiados.

A partir de tal ano, consolidam-se prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados,
fornecendo a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional, estabelecendo
padrões básicos para o tratamento de refugiados, sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam
desenvolver esse tratamento, pois o amparo não atenta contra a soberania das nações.  

A Convenção somente entra em vigor em 22 de abril de 1954, mas deve ser compreendida no cená-
rio político das pressões da nova consciência planetária sobre as Nações Unidas, que também, já em 1950,
constitui o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O ACNUR foi criado pela As-
sembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da
violência e da intolerância. Tal agência já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, sendo atualmente uma das
principais agências humanitárias do mundo.

O crescimento contemporâneo dos fluxos de refugiados remete-nos à II Guerra Mundial. As seqüelas


humanitárias da II Guerra e do após-Guerra são incomensuráveis, demonstrando que para além das redefi-
nições geopolíticas e da emergência do novo sistema mundial de Estados, as perdas e os desterros humanos
são a face mais cruel já registrada na história mundial. Como destaca Paiva:

O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa,


de um contingente significativo de pessoas vítimas do conflito. Os números
são controversos, mas não seria equivocado afirmar que aproximadamente
dois milhões de pessoas estavam fora de suas regiões de origem após o con-
flito, vítimas de deslocamentos forçados por forças de ocupação. [...] Em sua
maioria, eram egressos de países que foram situados, após o conflito, na zona
denominada Leste Europeu e, portanto, na órbita política da União Sovié-
tica. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria, Itália e
Grécia, e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou
quão complexas eram as formas da política internacional a partir da segunda
metade do século XX. Entre 1947 até 1951 a Organização Internacional de
Refugiados foi a principal responsável pela realocação desse contingente em
diversos países do bloco ocidental, dentre eles Israel, Estados Unidos, Aus-
trália, África do Sul, Nova Zelândia, Venezuela, Argentina, Peru, Canadá, etc.
(PAIVA, 2009)

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Direito(s) em debate.

Percebe-se que a principal vítima das Guerras são os Direitos Humanos, onde os direitos funda-
mentais são pisoteados em nome das conquistas, naquele contexto, das correntes ideológicas nacionalistas,
exacerbadas principalmente pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano que desencadearam máquinas
assassinas de extermínio humano, principalmente no continente europeu.

Assim, localiza-se historicamente o surgimento da Declaração Universal dos Direitos dos Direitos
Humanos de 1948 como referência político-jurídica normativa para a constitucionalização dos Direitos Hu-
manos em diversos países bem como para os tratados e convenções internacionais que envolvam a temática
dos direitos referidos. Piovesan lembra que:

[...] a Declaração de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepção


contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivi-
sibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão uni-
versal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o
requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano
um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade,
esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a ga-
rantia dos direitos civis e político é condição para a observância dos direitos
sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os
demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade
indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo
de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e
culturais. (PIOVESAN, 2015, p 49)

A derrota do nazifascismo pela aliança do Ocidente com a URSS foi um marco histórico mun-
dial para a reemergência dos Direitos Humanos como uma pauta universal, já que a guerra, os regimes totali-
tários e a ideologia da unidade nacional, em detrimento da democracia e dos direitos contra o inimigo externo
foi que prevaleceu na pauta política e no regime político da maioria dos países, inclusive onde havia tradição
democrática anterior. Sem dúvida a construção de uma nova agenda internacional dos Direitos Humanos é
a resultante do sentimento ético mundial em repúdio aos massacres da II Guerra que resultou, a partir da
constituição do novo sistema mundial de Estados, na formação da Organização das Nações Unidas, em 1945,
como bem define sua Carta de Fundação1:

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vin-


douras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida,
trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igual-
dade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes
e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às
obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional
possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições
de vida dentro de uma liberdade mais ampla [...] E para tais fins praticar a
tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas
forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela acei-
tação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será
usada a não ser no interesse comum, e empregar um mecanismo interna-
cional para promover o progresso econômico e social de todos os povos [...]

As crises humanitárias relacionadas aos fatores políticos, econômicos e mili-
tares, são recorrentes e mesmo depois da criação da ONU, logo em seguida,
novos fatores geopolíticos de disputas de territórios e recursos naturais no
planeta são os grandes causadores dos processos migratórios forçados, prin-
cipalmente àqueles relacionados com os interesses dos países imperialistas
e beligerantes. Basta destacar que, já em 1947, apenas 2 anos após o fim da
Segunda Guerra, em seguida à criação do Estado de Israel, mais de 700 mil

1  http://nacoesunidas.org/conheca. Acesso em 25 de set. 2015.

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Direito(s) em debate.

palestinos foram expulsos por medo, massacres de civis ou pela Guerra Israel
x países árabes.

Os refugiados da Palestina foram as primeiras vítimas, depois da Segunda Guerra, de uma migração
forçada em massas. Daí surge a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos - UNRWA, que
trabalham com a definição de que os refugiados palestinos são as “pessoas cujo lugar de residência habitual
era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios
de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948”, ou seja, aos milhares foram aqueles obri-
gados a deixar a região da Palestina onde se constituiu o Estado de Israel, refugiando-se nas outras partes da
região e países vizinhos.

O número de refugiados palestinos chega a mais de 4 milhões de pessoas, sendo que a Resolução
194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro de 1948, seria a primeira de uma série de
resoluções da ONU a mencionar a necessidade de se chegar a um acordo justo para o retorno dos refugiados
ou para compensá-los pelas perdas e danos sofridos. A ONU considera também os descendentes dos refugia-
dos de 1948, de modo que o número total de refugiados registrados seria, atualmente, superior a população
palestina que vive sob os territórios ocupados da Cisjordânia e Faixa de Gaza.

No entanto, na contemporaneidade - destacando-se nas últimas décadas a crise do Estado de Bem


Estar Social Europeu e a Primara Árabe - o número de refugiados no mundo não pode ser visto sem relações
com a economia global que, por um lado, está cada vez mais internacionalizada, informatizada e financeiri-
zada, por outro, cada vez mais excludente e concentradora de riqueza nas mãos de uma pequena minoria de
bilionários, principalmente a partir da Crise Financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008, o que
aprofundou a crise do capitalismo global, aumentando o número de refugiados no mundo, agregando mais
motivações para guerras e migrações também relacionadas aos problemas econômicos, como bem demonstra
o gráfico:

Figura 1 - Aumento das migrações forçadas2

No caso dos refugiados sírios, tal tragédia se inicia com a resposta interna que o governo do Presi-
dente Bashar al Assad oferece à revolta popular por democracia e direitos civis ocorrida em vários países do
Oriente Médio e Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, que ao chegar à Síria, foi respondida por
massacres de militares a civis e o uso de armas química.

O Presidente Assad governa a Síria desde o ano de 2000, quando sucedeu seu próprio pai, após 30
anos de poder absoluto do genitor, mas o país vive uma guerra civil onde vários grupos internos e externos
atuam e controlam parte daquele território, como é demonstrado no mapa da guerra civil, que já dura mais
de 4 anos, onde o governo controla apenas uma pequena parte do território e as outras 4 partes são contro-
ladas pelos Curdos e suas organizações políticas e militares, pelo Estado Islâmico cujo poder se expande até
o Iraque, pelo Exército Livre da Síria e pelo grupo terrorista, Frente Al Nusra/Al Qaeda; entre tantos outros
grupos.

2  Fonte: ACNUR. Disponível em http://www.acnur.org/t3/portugues/. Acesso em 25 de set. de 2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A guerra civil agravou algumas rotas de fuga para os refugiados aos países vizinhos, mas também
para a Europa como bem evidencia o noticiário internacional. A rota de migração para a Europa passa pela
Turquia, Grécia e Itália de forma que as viagens são extremamente perigosas e submetem famílias inteiras,
incluindo crianças, a condições sub-humanas de viagens de milhares de quilômetros à pé, sem alimentação
nem direito a acampamentos organizados, submetidos às humilhações, agressões e aos “coiotes” que são os
mercenários que organizam as trilhas sob condições extorsivas, sendo que as viagens não-raramente termi-
nam em mortes por afogamento, estupros, doenças ou fome.

2. O BRASIL E OS DIREITO HUMANOS DOS REFUGIADOS

O Brasil, partindo de um atraso histórico de desenvolvimento econômico e social, típico da resultante


do processo de colonização e desenvolvimento tardio do capitalismo nos países latino-americanos e nesta
esteira, também permeado por um anacronismo na edificação de uma sociedade civil ativa bem como de
instituições e instâncias de poder estatais modernas e democráticas.

Bem ao inverso, a evolução política do país tem como marcas fundantes uma herança monárquica
que, ao contrário dos países vizinhos em seus processos de libertação nacional, perdurou por quase 70 anos
no Século XIX, resultando ainda numa república oligárquica e elitista em seus primórdios, bem como um re-
tardo na garantia dos direitos civis e mais ainda, dos direitos sociais e coletivos, agravados por toda a herança
escravocrata.

Neste aspecto, a Constituição de 1988 é considerada a Constituição Cidadã, em razão dos princípios
norteadores de sua aprovação pela Assembleia Constituinte de 1987-88 estarem referenciados no primado
dos Direitos Fundamentais que foram totalmente vilipendiados pelo regime ditatorial de 1964-84. Sobre o
processo de transição à democracia e o papel da Constituição de 1988, o historiador Boris Fausto destaca:

Com todos os seus defeitos, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocor-


rido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políti-
cos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias. Entre outros avanços,
reconheceu-se a existência de direitos e deveres coletivos, além dos indivi-
duais. A partir daí, a faculdade de impetrar mandado de segurança contra
autoridade pública para proteger direitos líquidos foi estendida aos partidos
políticos com representação no Congresso e às organizações sindicais. Os
constituintes criaram também a figura do habeas-data, pela qual o cidadão
pode assegurar a obtenção de informações relativas a sua pessoa, constan-
tes de registros de entidades governamentais. O objetivo desse direito é o
de impedir que registros secretos, especialmente de natureza policial, sejam
utilizados contra as pessoas, como ocorreu no regime autoritário. No que diz
respeito as minorias, um capítulo da Constituição reconheceu aos índios “sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos ori-
ginários sobre as terras eu tradicionalmente ocupam. O texto constitucional
é bastante abrangente, mas, mais do que em qualquer outro campo, há aqui
uma enorme distância entre o que diz a lei e o que acontece na prática. [...]
(FAUSTO, 2013, p. 446)

No vácuo do processo de transição desencadeado pelas mobilizações sociais por democracia, liberda-
de e direitos civis, é promulgada a Carta Magna de 1988 e também com suas contradições e limitações, mas
com avanços significativos, incorpora em seus princípios fundamentais o perfil garantista principiológico e
normativo dos direitos humanos fundamentais.

Neste esteio, é que se erigem no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos por força do art.
5º, § 2º, a hierarquia dada aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, assentados na dig-
nidade da pessoa humana, entre os quais estão incluídos os tratados que abrangem o direito dos refugiados.
Porém, somente em 1997 é sancionada a Lei nº 9.474/97 que trata da regulamentação e define mecanismo
para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.

197
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A partir da Lei nº 9.474/97 nasce o Comitê Nacional dos Refugiados-CONARE, órgão colegiado, vin-
culado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade
Civil e das Nações Unidas, e que tem por finalidade: a) analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição
de refugiado; b) deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante requerimento das autoridades compe-
tentes, da condição de refugiado; c) declarar a perda da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as
ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a
participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e e) aprovar instruções normativas que
possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97.

O CONARE é composto por representantes do Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das
Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saú-
de; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedi-
ca a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio
de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, com direito a voz, sem voto.

Percebe-se que no âmbito normativo o Brasil tem sido referência para o continente, no que diz respei-
to das garantias dos direitos humanos ao estrangeiro refugiado, no entanto como destaca Piovesan, o aspecto
normativo deve ser acompanhado de medidas práticas duradouras haja vista as dificuldades de assistência
até mesmo para utilização dos recursos jurídicos no âmbito da postulação da inserção social na comunidade
nacional.

[...] É necessário que a problemática dos refugiados seja enfrentada sob a


perspectiva dos direitos humanos. Hoje é amplamente reconhecida a inter-
-relação entre o problema dos refugiados, a partir de suas causas principais
(as violações de direitos humanos) e, em etapas sucessivas, os direitos hu-
manos. Assim, devem os direitos humanos ser respeitados antes do processo
de solicitação de asilo ou refúgio, durante ele e depois dele (na fase final das
soluções duráveis). Há uma relação direta entre a observância das normas de
direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas da proteção,
sendo necessário abarcar a problemática dos refugiados não apenas a partir
do ângulo da proteção, mas também da prevenção e da solução (duradoura
ou permanente). (PIOVESAN, 2015, p. 257)

Das informações oficiais do Ministério da Justiça, há registros de menos de 5 mil refugiados no


país. Número que diante da situação internacional revela-se bastante reduzido haja vista as levas de refugia-
dos noticiados na imprensa mundial que se somam aos milhões. A importância de recepção dos refugiados no
território nacional reforçaria nossos laços de intercâmbio culturais e abrangência das relações humanitárias
entre a população brasileira e os povos do mundo inteiro, exemplo que deve ser praticado ante a o aprofun-
damento do processo da globalização onde prevalecem os interesses comerciais e financeiros em detrimento
dos interesses da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que no campo normativo há importantes avanços no reconhecimento dos Direitos Humanos
que incidem também na esfera internacional pelas resoluções e convenções das Nações Unidas com relação
ao tratamento jurídico e acolhimento dos refugiados no mundo, no espírito de que a liberdade constitui um
direito humano fundamental universal, tal como o refúgio.

Neste âmbito, a detenção de solicitantes de refúgio não deve ser aceita, tendo como referência a Con-
venção sobre Refugiados. Principalmente quando se incluem pessoas muito vulneráveis – crianças, mulheres
sozinhas e pessoas que necessitam de cuidados especiais de caráter médico ou psicológico, como é o caso
daqueles que foram objeto de tortura. Os requerentes de asilo não devem ser considerados criminosos, pois
sofreram muitos infortúnios e o seu encarceramento é um procedimento abusivo.

198
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 Relativo ao Estatu-
to dos Refugiados são dois grandes referenciais relevantes universais para a temática mais abrangente dos
Direitos Humanos internacionais cujo impacto na constitucionalização dos direitos humanos no Brasil se
traduziu também na criação do Conselho Nacional para Refugiados-CONARE.

O passo mais difícil são as medidas dos governos conservadores da Europa, os quais muitas vezes
fecham as fronteiras e acabam dificultando ainda mais as condições de travessia ou permanência dos povos
refugiados em busca de um lar para viver. O outro passo é desenvolver políticas públicas internacionais e
nacionais que possam acolher os refugiados nos países receptores para incluí-los em condições de tratamento
igualitário aos migrantes legais, onde possam ter moradia, trabalho, saúde e escolas. Este último é o mais
distante em vista de que diante de uma profunda crise econômica internacional os governos apelam para os
sentimentos nacionalistas e xenófobos para dificultar e impedir a permanência dos povos refugiados.

Daqui se deduz o papel que deve o papel da sociedade civil, organizações sindicais, movimentos so-
ciais, organizações não-governamentais e de solidariedade, governos estaduais e locais, no sentido de pres-
sionar os parlamentos e os governos, bem como as instituições e eventos internacionais para que busquem
superar as boas intenções e tratem de efetivar orçamentos e políticas públicas reais para apoiar os refugiados
do mundo inteiro.

O Brasil pela sua tradição política e jurídica pode ampliar suas políticas públicas, envolvendo a socie-
dade civil, no sentido de receber uma maior quantidade de refugiados, bem como desenvolver mecanismos
de inserção dos refugiados na comunidade e na economia locais com vistas ao cumprimento dessa missão
humanitária tão relevante nos dias atuais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a
implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º
ao 5º da Constituição de República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9ª ed. São
Paulo: Atlas, 2011.

PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados da Segunda Guerra Mundial e os Direitos Humanos. Disponível em http://
diversitas.fflch.usp.br/node/2180. Acesso em 25 de set. de 2015.

PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

LEI MARIA DA PENHA:


UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS DOMÉSTICOS

Débora de Lima Ferreira


Mestranda-bolsista CAPES-PROSUP do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de
Criminologia. Advogada

Marília Montenegro Pessoa de Mello


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito
da Universidade Católica de Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: 1. O movimento feminista no Brasil e a luta no combate a violência contra mulher; 2.


As estratégias punitivas da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência doméstica contra
a mulher e o simbolismo penal; 3. Investigando a realidade da aplicação das prisões preventivas e das
formas de resolução dos conflitos domésticos à luz da criminologia crítica; Conclusão; Referências.

1. O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL E A LUTA NO COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER

No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se, essencialmente,
ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas
também os direitos sociais, humanos e políticos. Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pe-
dagógico - o da formação de mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o
capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 37).

O feminismo como movimento social busca a transformação de um nascer


mulher, para um tornar-se “mulher”1, baseando-se no enfrentamento das
questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para
demonstrar e sistematizar as relações de dominação e subordinação, que en-
volvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre estas (TELES,
2003, p. 16).

Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca:

Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua apa-
rição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter
fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra
indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos

1  Paráfrase à famosa assertiva de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” que identifica a construção social do gênero como
meio de estabelecimento das divisões sociais.

201
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto


relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam
preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava
sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o
termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário
de análise (1990, p. 5).

A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “Para nós, trata-
-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade,
fundamentadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13).

As ideias feministas partem do pressuposto de que a sociedade patriarcal sempre usou a violência
como mecanismo de contenção da mulher no âmbito privado, em que o homem, dominando-a, impunha-lhe
o regramento da vida, subordinando as potencialidades femininas às pretensões culturais patriarcais em que
homem e mulher exerciam papéis sociais definidos.

Sobre o patriarcado, Saffioti apresenta a seguinte compreensão:

[...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base
material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade
entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o
sistema masculino de opressão das mulheres (Apud. CASTILLO-MARTÍN;
OLIVEIRA, 2005, p. 41).

Não obstante a realidade patriarcal, o anseio dos movimentos feministas é o da libertação das mulhe-
res de seus cativeiros privados ou públicos e da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Maria Betânia
Ávila resume bem o propósito, “O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a relação entre
liberdade pública e dominação privada” (2007, p. 6).

As dimensões das relações na sociedade inferiorizaram a mulher, tendo em vista os pilares de seus
estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservou-se a elas os aspectos estáticos e privados, em
razão de um controle social neutralizado, que reflete padrões e comportamentos construídos e aceitos cultu-
ralmente. O poder exercido sobre as mulheres é reflexo de fundamentos ideológicos e não naturais e condi-
ciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA, 1999, p. 19), estabelecendo,
assim, limites específicos para as mulheres exercerem sua cidadania e autonomia.

A violência doméstica, como exemplo dessa subordinação tem fundamento em causas eminentemen-
te sociais.

Segundo Maria Berenice Dias

Ninguém dúvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente


culpa do agressor2. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a vio-
lência, o que impõe a necessidade de tomar a consciência que, na verdade,
a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no
exercício do poder, que levam a uma postura de dominante e dominado. [...]
Daí o absoluto descaso de que sempre foi vítima a violência doméstica (2010,
p.18).

O movimento feminista, em contrapartida aos modelos e padrões que vitimizam e exercem opressão
sobre as mulheres, objetiva estabelecer uma “reconstrução social do gênero” (BARATTA, 1999, p. 22) a fim
de garantir espaços sociais, políticos e econômicos através de práticas cidadãs e democráticas.

2  Entretanto, não se quer dizer com isso que se assume uma postura de considerar a mulher como corresponsável pelas
agressões, assim como propõem parcela da vitimodogmática.

202
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A história das “mulheres” como novo sujeito social, entendidas assim como um movimento, um gru-
po de transformação social, é marcada por uma série de barreiras e preconceitos, baseados em apenas uma
característica: ser do sexo (biológico) feminino, ter nascido mulher.

Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do feminismo brasileiro
na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta
dos movimentos feministas são continuas e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade
como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingin-
do gerações. A “cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15).

No entanto, os movimentos feministas passam a ganhar reconhecimento e a partir da década de


setenta se organizaram no país, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação da mulher e da igual-
dade entre os sexos (ANDRADE, 2003a, p. 133-134).

O ano de 1975 tem sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro. Até então o
movimento estava restrito a grupos muito específicos, fechados e intelectualizados, chegando mesmo a se
configurar mais como uma atividade privada, que acontecia na casa de algumas pessoas.

Todavia, os interesses do movimento feminista da década de 70 já não correspondiam


mais aos da maioria das mulheres, ou porque já tinham sido atendidos, ou porque as
mulheres pretendiam debater assuntos mais específicos sobre a condição feminina,
como sexualidade, direito ao corpo e violência doméstica (MANINI, 2011, p. 56).

Neste sentido, a década de 80 foi um marco para o movimento feminista e, inclusive, para a demo-
cratização do país. Surgiram pelo Brasil inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência; a
primeira delas foi a SOS Mulher, inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. A trajetória desse tipo de ação femi-
nista é particularmente interessante na medida em que aponta para uma tendência que será predominante
no movimento na década de 1980. O objetivo dos SOS Mulher era constituir um espaço de atendimento de
mulheres vítimas de violência e também um espaço de reflexão e de mudança das condições de vida des-
sas mulheres. No entanto, logo nos primeiros anos, as feministas entraram em crise, pois seus esforços não
resultavam em mudanças de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhi-
mento, voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, não retornando aos grupos de reflexão
promovidos pelo SOS Mulher.

Em verdade, esses movimentos, em todos os países, sempre estiveram comprometidos com o comba-
te a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações
de gênero (RORIZ, 2010, p. 41).

A partir de 1985, a questão da violência contra a mulher toma outros rumos com a criação da pri-
meira delegacia especializada. As DEAMs constituíram política pública de combate e prevenção à violência
contra a mulher no Brasil, especialmente a violência conjugal (MORAES; SORJ, 2009, p. 14). Entretanto,
percebeu-se, com sua criação, que muito embora tenha possibilitado demonstrar os verdadeiros índices de
agressão, a sua função legal de usar o poder policial para reduzir tais violências não estava sendo e nem po-
deria ser cumprida. Os anseios dessas vítimas, contraditoriamente à expectativa feminista, eram apenas de
não serem mais agredidas.

As mulheres que tomavam a frente dos movimentos eram “cultas e politizadas” e geralmente não
eram vítimas desse tipo de violência (MELLO, 2009, p. 48). Mas, o feminismo pretendia criminalizar a vio-
lência doméstica e assim, conscientizar tanto agressores como vítimas dos direitos das mulheres.

Segundo asseveram Aparecida Fonseca e Bila Sorj:

O uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica
da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que
a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias espe-
cializadas consiste em usar o poder policial para renegociar o pacto conjugal

203
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

e não para criminalizar o parceiro. [...] a polícia é procurada, predominante-


mente, como forma extraoficial de arbitragem com vistas à renegociação dos
pactos domésticos (2009, p.14).

Essas delegacias se popularizaram por todo o país e, em 1992, já somavam 141, nas mais diversas
regiões. Essa foi uma política pública bem-sucedida que, em primeiro lugar, atendia a uma demanda das
feministas, ou seja, a criação de um espaço na polícia no qual o ambiente não fosse hostil à mulher agredi-
da. A grande queixa dos delegados de polícia é a mesma, apenas em outra esfera, das feministas do SOS: as
mulheres vão às delegacias no momento da agressão, mas dificilmente mantêm a queixa; o que realmente
elas desejam do órgão policial é que o agressor seja chamado e se comprometa a não prosseguir na conduta
agressiva.

O feminismo, as feministas e as delegacias da mulher não resolveram a ques-


tão da violência contra a mulher. Houve uma tendência nas últimas décadas
de um aumento generalizado da violência tanto contra as mulheres como
contra todas as pessoas que se encontram em posição de fragilidade, mes-
mo que circunstancial. Mesmo assim, para a mulher houve um avanço fun-
damental quanto à questão da violência: ela se tornou reconhecida como
vítima, daí ter direito ao tratamento dado pelos órgãos públicos às demais
vítimas (PINTO, 2003, p. 82).

O feminismo brasileiro, e também mundial, mudou, e não somente em relação àquele movimento
sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos
1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada
nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas.

O movimento feminista brasileiro, enquanto “novo” movimento social, extrapolou os


limites do seu status e do próprio conceito. Foi mais além da demanda e da pressão
política na defesa de seus interesses específicos. Entrou no Estado, interagiu com
ele e ao mesmo tempo conseguiu permanecer como movimento autônomo. [...]. No
espaço do movimento, reivindica, propõe, pressiona, monitora a atuação do Estado,
não só com vistas a garantir o atendimento de suas demandas, mas acompanhar a
forma como estão sendo atendidas (COSTA, 2009, p. 75).

O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na história do Brasil e de importân-


cia indiscutível no combate à violência contra mulher.

2. AS ESTRATÉGIAS PUNITIVAS DA LEI MARIA DA PENHA PARA O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E O SIMBOLISMO PENAL

Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empoderamento, um dos importantes


pleitos dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título de equilíbrio, que
pretende proteger a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. Cabe à lei ordinária
tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas (MELLO, 2009, p.
474).

A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a despeito de inúmeras
críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher.

Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égi-
de da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto
as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamenta-
ram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como
maneira de enfrentamento daquelas formas, representando, portanto, o falacioso discurso oficial de eman-
cipação da mulher.

Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminadores surgiram conforme a atual
tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos
preexistentes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não consigam demonstrar a
relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI,
2009).

Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é,
notadamente, de menor potencial ofensivo, a vedação de aplicação da Lei n.º 9.099/95 implicou na impos-
sibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incon-
táveis casos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos
descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que des-
programou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e
aplicação de penas encarceradoras e desumanas.

No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistência às estratégias expansionistas
do Direito Penal, cedeu às pressões populares (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e,
ao julgar a ADI 44243, optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incon-
dicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica.

A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas que foram lan-
çadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conflitos domésticos e familiares. No entanto,
resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminalizador têm sido
atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação
da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que
as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem
social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a dominação masculina sobre a qual se ali-
cerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final
do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18).

Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para-
doxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral
societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir,
sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os
próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).

Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas
alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes
em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto,
as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas.

Nesse sentido, Marília Montenegro assegura:

O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do mo-
vimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo
que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata,
uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários
por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadei-
ras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes,

3  O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da
República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência
doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal
não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem
buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica
(MELLO, 2010b, p. 940).

A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização de complexos pro-
blemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica com-
provam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência
e promoção da segurança (CASTILHO, 2007, p. 104-106).

3. INVESTIGANDO A REALIDADE DA APLICAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS


DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Visando compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, foi realizada pesquisa de cam-
po no Juizado da Mulher da cidade do Recife a fim de compreender em que medida aquelas pretensões do
movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe um estudo com relação à aplica-
bilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha, seja durante o processo, através da prisão
preventiva, seja ao final do processo, através da prisão pena.

A abordagem acerca dos dados coletados será realizada à luz do discurso da criminologia crítica, o
qual atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica
nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de
reprodução do poder social” (SANTOS, 2008, p. 88).

A vertente criminológica parte do pressuposto de que o Direito deve declarar a função de proteger a
ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. Investiga-se essa coerência por meio de uma
metodologia dialética a qual visa identificar funções latentes, não declaradas, ideologicamente encobertas
para “assegurar a realização das funções que ela tem no interior do conjunto da estrutura social” (BARATTA,
2004, p. 95) e as declaradas, que no caso dos movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a
diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia crítica com o objetivo
de trazer a crítica feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos
movimentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres,
essa criminologia percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica, que pos-
sa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), pois parte do pressuposto de que
esse sistema não está apto a garantir direitos, uma vez que atua simbolicamente, criando a sensação apenas
ilusória de segurança jurídica.

É neste sentido que a criminologia afirma que o Direito reproduz desigualdade como mecanismo de
reprodução da realidade social, e o pior, legitimando as relações de produção a partir de um consenso seja
ele real ou artificial. Ou seja, a reprodução social da imagem de vítima em busca do apoio penal, por meio
do enrijecimento normativo em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência
entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia,
de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito
penal simbólico (RORIZ, 2009, p. 48).

Nesse contexto, assevera Vera Andrade:

A pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efe-


tivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se ba-
seiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a
reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou,
na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente.
Em geral, está demonstrado, nesse sentido, que a intervenção penal estigma-

206
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tizante (como a prisão) ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando


o condenado, produz efeitos contrários a uma tal ressocialização, isto é, a
consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 1999, p. 291).

As estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defen-
didas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência domés-
tica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira.

Na pesquisa de campo (técnica da documentação direta), pretendeu-se conhecer o andamento\des-


fecho de 30 processos criminais sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar
do Recife, número este que representa a metade de todas as sentenças do referido ano. A pesquisa empírica
possuiu um caráter quantitativo, pois foi traçado um quadro com o número de penas privativas de liberdade
e respectivo regime, referente aos processos crimes das mulheres vítimas da violência doméstica que procu-
ram o auxílio estatal, no ano de 2014.

Dos 30 processos-crimes analisados, em apenas 2 foi aplicado o regime fechado de cumprimento de


pena privativa de liberdade e, em apenas 1 processo aplicou-se o regime semi-aberto. Nos demais casos, foi
aplicado o regime aberto, em virtude das penas privativas de liberdade determinadas ao caso concreto.

A amplíssima aplicação do regime aberto aos casos de violência doméstica justifica-se em virtude das
penas mais brandas aplicadas aos crimes de lesão corporal leve, ameaça e crimes contra a honra, mais co-
muns no âmbito em estudo.

Importante, através destes dados, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como
um problema social, que vai além do Direito Penal. Por isso a importância da discussão dos objetivos decla-
rados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o paradigma penalista
tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.

A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso da criminologia
crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e
identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garan-
tia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88).

Em seguida, a pesquisa voltou-se para a análise do número de prisões preventivas nos 30 proces-
sos-crimes sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar. Apesar de o discurso
declarado ou o conteúdo programático do direito processual brasileiro erigir a presunção de inocência a prin-
cípio fundamental, com assento na Constituição Federal e, portanto, como regra que impede o tratamento
de culpado àqueles que não tenham sido condenados pela prática de um crime, mais de 50% (cinquenta
por cento), dentre todos os processos analisados, experimentaram prisão preventiva, número que chama a
atenção de criminólogos, mas também de pesquisadores de diversas outras áreas, bem como de uma parce-
la da sociedade civil, para a opção feita pelo sistema de justiça criminal de privação da liberdade anterior à
condenação.

Esse número causou estranhesa, senão, um verdadeiro contrasenso em relação á programação nor-
mativa da legislação do país. Prender é, sem dúvidas, penar, causar dor e mortificação. Ocorre, portanto,
antes da condenação, o fenômeno do encarceramento em massa que destrói vidas e famílias.

Existe uma contradição estrutural ou eficácia invertida do sistema penal entre aquilo que a legislação
declara e aquilo que efetivamente se cumpre.

Neste sentido, a seletividade policial realizada, como demonstram os estudos da criminologia crítica
sobre os extratos mais débeis e precários da sociedade, é chancelada pela seletividade judicial, que contribui
decisivamente para que o sistema penal realize suas reais funções de neutralização e disciplina das classes
sociais inferiores.

CONCLUSÃO

207
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a violência e estabe-
lecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que
Vera Andrade denomina de eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das
declaradas (ANDRADE, 2003, p. 74).

O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âm-
bito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade
culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será.

Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na re-
alidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema,
forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas.

Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive sobre as mulheres,
resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de eman-
cipação.

O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a asso-
ciação à figura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui, antes ratificam a imagem da mulher como ser
frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determi-
nado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse
contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos
domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios al-
ternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros
ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas,
rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade
com rigor penal.

A partir dos dados, constatou-se a contradição ou disfunção entre o discurso legal declarado e o mun-
do dos fatos, no que respeita ao encarceramento de pessoas que não foram ainda julgadas e, estão, portanto,
presas “preventivamente”.

Segundo Zaffaroni (2011, p. 67), esta região do globo optou pelo exercício do poder punitivo por meio
de medidas de constrição antecipadas, ou seja, com a determinação de prisão antes do julgamento definitivo
e prolação de sentença.

Observa-se na realidade da violência doméstica a necessidade, por parte do poder punitivo, mesmo
que antecipada, da imposição de sofrimento irreparável e de consequências irreparáveis. Grande contradição
do sistema de justiça criminal, tendo em vista que a prisão não é aplicada ao final do processo (amplíssima
aplicação do regime aberto). Todo encarceramento tem, ontologicamente, natureza punitiva, importando
(em todos os casos) em um tratamento como culpado, contribuindo para o controle social e construção es-
tigmatizante e seletiva da criminalidade.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O DIREITO PENAL SIMBÓLICO:


DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA

ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO


Doutora em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito
Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco –UNICAP - Pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia

ANDRIELLY S. GUTIERRES SILVA


Graduanda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do
Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa
Branca de Criminologia

WILLAMS FRANÇA SILVA


Graduando em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do
Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Asa
Branca de Criminologia

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do liberalismo radical ao intervencionismo excessivo: a relação proble-


mática entre Estado de Polícia e o Estado de Direito; 2. Política Criminal e o Estado Democrático
de Direito; 3. Uma política criminal dirigida à proteção da vítima; 4. A necessidade de uma política
criminal racional e os efeitos do realismo de esquerda; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O poder punitivo, caracterizado pelo confisco do conflito pelo Estado, foi e é exercido de acordo com
certas decisões arbitrárias do poder (estado de polícia) ou disposições legais igualitárias (Estado de Direito).
Essa divisão, de simples fim pedagógico, não pode ser entendida como características ou temporalidades
separadas ou puras, já que o Estado de Direito sempre encerra em seu interior um Estado de Polícia, gestando
um jogo de forças relacional-dialético: o primeiro aspira conter o exercício real do poder punitivo; o segundo
pretende ampliá-lo (ZAFFARONI, 2007).

O substrato temporal – político, social e cultural – é fundamental para a compreensão da relação


incessante entre o Estado de Direito e o Estado de Polícia e assinala o modelamento maleável deste, na
medida em que pode acomodar e apropriar, ideologicamente, discursos, no seio do estado penal mínimo,
tornando-os, paradoxalmente, úteis à expansão punitiva. Importante observar como a ampliação do discurso
de combate à violência mostra-se aqui em sua tessitura mais sutil: pode, disfarçadamente, sugerir um suposto
empoderamento de certos grupos ou seguimentos sociais considerados frágeis.

Na estreiteza desse arcabouço, esse trabalho discute como o conceito de vulnerabilidade da vítima é
redimensionado e posto à serviço do Estado Penal máximo, especialmente na lógica política de movimentos
sociais, o que se denominou de esquerda punitiva (KARAM, 2001).

211
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O objetivo é identificar as reformas penais que perpassam pela questão da criminalização de mino-
rias – justificada a partir da vítima – desde o Código Penal de 1940 até agosto de 2014, de modo a aferir suas
tendências político-criminais.

Para tanto, utilizou-se do banco de dados produzido pela pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal:
a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”, vinculada ao CNJ Acadêmico e
coordenada pelo Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal
(GPESC/PUC/RS) em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (UnB) e o Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (UFPE). O banco de dados contém
todas as reformas penais aprovadas no Brasil entre 1940 e 2010 (totalizando 320 legislações), bem como as
justificativas dos projetos de leis que as originaram.

Ora, as problemáticas trabalhadas a partir da análise supracitada não podem caminhar sem a com-
preensão das dificuldades que circundam e subscrevem a Política Criminal. Levando-se em consideração a
sua importância no corpo das ciências criminais, a falta de definição clara do seu campo de conhecimento e,
consequentemente, o modo como ela “serve” às gamas variadas de concepções e interesses, impõe-se como
obrigação necessária lançar um olhar questionador e crítico sobre sua natureza e função (FREITAS, 2008).

Ultimamente, a doutrina nacional faz alusões recorrentes à Política Criminal sem, no entanto, haver
um consenso mínimo entre os doutrinadores do que realmente seja ela, exigência básica para a postulação
de um estatuto teórico. Assim, no lugar da rigidez científica, há a preponderância de uma Política Criminal
marcadamente empirista e entregue à baila do jogo de forças político-ideológicas de cada época. A Política
Criminal, carente de um arcabouço teórico, encontra-se imersa na dimensão propriamente prática.

Essa completa indefinição e incerteza que circunda a Política Criminal tem sido um instrumento útil
à maximização do Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito, galgado, entre outras coisas, no uso
(ideológico) da vulnerabilidade da vítima. A pergunta é se o Congresso Nacional, orientado por uma Política
Criminal sem qualquer delineamento, não tem se apropriado de discursos tradicionalmente identificados
como de esquerda para expandir o controle penal sob o pressuposto ideológico de proteção às vítimas consi-
deradas vulneráveis, seja por condições biológicas, sociais ou históricas.

1. DO LIBERALISMO RADICAL AO INTERVENCIONISMO EXCESSIVO: A RELAÇÃO PROBLEMÁTICA


ENTRE ESTADO DE POLÍCIA E O ESTADO DE DIREITO.

Apontando a necessidade da exigência de uma política criminal, necessário se faz retomar a discussão
sobre a relação incessante entre Estado de Polícia e Estado de Direito, ressaltando o percurso histórico, ainda
que brevemente, para viabilizar a compreensão do acentuado intervencionismo penal na atualidade.

Ora, é impossível compreender satisfatoriamente o direito concebendo-o como simples fenômeno


desapegado do contexto histórico no qual foi produzido e ao qual é útil (MIAILLE, 1978). O direito desempenha
funções concretas de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira. É
imperioso lançar um cuidadoso olhar sobre a conjuntura histórica que condiciona e é condicionada pelo
modelamento do aparelho punitivo estatal dentro das relações interativas – conflitivas ou não – de cada
momento.

Nesses termos, é importante perceber que em cada modelo de conjuntura sócio-política subjaz con-
struções ideológicas sustentadoras e fins a serem operacionalizados. O Estado politicamente absoluto, por
exemplo, ensejou um sistema de punição que funcionou como instrumento de manutenção da ordem so-
cial e defesa do príncipe ancorado por discursos que exigia “a transmissão total do poder dos indivíduos ao
soberano” (HOBBES, 2006). As práticas punitivas concretizaram-se com completa arbitrariedade, o que
corroborou para a difusão de um clima de incerteza, insegurança e injustificado terror.

O iluminismo – século XVIII – agrupou alguns pensadores em torno de ideias fundamentadas na li-
berdade e dignidade da pessoa humana e na separação necessária entre o público e o privado, reduzindo ao
máximo a intervenção do Estado na vida de cada indivíduo. Aqui, a crítica viabilizada pelas percepções liberais

212
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de Montesquieu, Rousseau e Locke, dentre outros, abalou definitivamente as estruturas do Absolutismo: na


perspectiva econômica, o liberalismo buscou a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a
economia de mercado, baseada na livre iniciativa e competição; no aspecto político, o liberalismo se baseou
nas teorias contratualistas para assentar as formas de legitimação do poder como expressão do consentimento
dos cidadãos; do lado ético, o liberalismo pregou a garantia dos direitos individuais, tais como liberdade de
pensamento e expressão, o que supõe um estado de direito em que seja evitado o arbítrio, as prisões sem
culpa provada, a tortura e as penas cruéis (ARANHA, 2009).

Com a base da Ilustração surge um Estado cuja atuação está circunscrita pelo campo da necessidade.
O poder estatal, de forma geral, e mais ainda em sua vertente punitiva, só pode atuar quando as circunstân-
cias concretas exigirem tal intervenção e quando os direitos individuais não forem ameaçados de violação por
tal intromissão. Nasce daí o que se costuma conceituar por Estado de Direito, isto é, um Estado cujo poder
está limitado formal e substancialmente pelos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (FERRAJOLI,
2002).

Mas o liberalismo não concretizou todas as suas promessas de valorização do ser humano e liberdade
do indivíduo. Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permaneceram sem
solução questões econômicas que afligiam a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de
quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças.

As gravíssimas crises econômicas no inicio do século XX apontaram para a necessidade urgente de


uma reviravolta no plano político, econômico e social. O “Estado Mínimo” não contou com a ajuda milagro-
sa da “mão invisível”: a perspectiva formal, e porque não dizer, ideológica de liberdade, não logrou êxito
no campo das relações concretas da maioria dos indivíduos. As contradições aprofundaram-se ainda mais
com o aumento da concentração de renda, o aprofundamento da pobreza e da violência urbana, além da
precarização do trabalho.

Em razão disso, o Estado Liberal de Direito se transmuta, a partir da primeira metade do século pas-
sado, em Estado Social-Democrático de Direito ou, simplesmente, Estado Social de Direito. Este toma como
ponto de partida os valores e princípios políticos liberais, visando ampliá-los e afirmando a necessidade de
maior intervenção do Estado no sentido de assegurar proteção e igualdade social aos indivíduos, mas sem o
sacrifício de seus direitos civis. O Estado Intervencionista duramente criticado pelos filósofos liberais revivi-
fica-se, não mais para conservar a ordem político-social, mas para proteger a grande massa de vulneráveis.

O Estado agora, sob essa nova roupagem, é convidado a interferir ativamente no plano social realizan-
do prestações positivas. Ou seja, a sociedade exige a participação estatal efetiva por considerá-la fundamental
para a promoção e garantia dos direitos individuais (legado liberal), bem como para a proteção e fortaleci-
mento dos grupos hipossuficientes (perspectiva social). Assim, o Estado se expandiu demarcando presença
nos mais diversos campos considerados fundamentais ao bem estar e à dignidade da pessoa humana. O
combate à pobreza e à miséria, a criação de postos de trabalhos, a garantia de moradias, a limpeza urbana,
os serviços públicos de saúde, educação e segurança – em tudo isso a incumbência majoritária recai sobre o
Estado que deve fazê-los sem ofender a liberdades individuais.

O desafio de harmonizar tais perspectivas apresenta-se problemática diante de um Estado que, em


nome da segurança e da paz social, tornou-se um ente, em certo sentido, onipresente. Em nome da garantia
das liberdades individuais de certos grupos considerados mais vulneráveis, e legitimados pelos mais diversos
seguimentos sociais, o poder estatal protege para envolver, promove para expandir-se. Espraia-se num cont-
ínuo até a realização de sua onipresença. Afirma-se.

Maximiza-se não só o Estado garantidor e protetor: o discurso de combate à criminalidade se robus-


tece ao usar como âncora, entre outras coisas, o conceito de vulnerabilidade (GARLAND, 2008).

Se os valores que fundamentam e perpassam o Estado Social Democrático de Direito dirigem-se à con-
templação, promoção e proteção das minorias profundamente desapoderadas, o discurso estatal assistencial
de defesa (principalmente penal) dessas minorias, apodera-se. Se ao Estado cabe intervir em favor dos

213
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

grupos historicamente fragilizados, caber-lhe-á ainda mais reprimir qualquer tipo de violência ou ameaça de
violência intentada contra tais grupos.

Esta nova perspectiva torna-se extremamente problemática diante da seguinte proposição: o modelo
de punição hodierno carece de justificação. Os coletivos, os movimentos sociais e as instituições de direitos
humanos conhecem e denunciam isso.

É inquestionável a verdade de que o sistema punitivo necessita da mais elementar legitimação


constitucional para continuar existindo num Estado Democrátivco de Direito. É sabido que o Sistema de
Justiça Criminal é, estruturalmente, racista, sexista e classista e que é com base nessa estrutura que ele
seleciona sua “clientela” (BARATTA, 2002). É indiscutível que as prisões são depósitos de almas e corpos
“indesejados” e condenados ao etiquetamento atroz, mortífero e desumano. É notório que o Direito Penal
não evita e, em geral, não diminui, nem põe termo à violência. É verificável que os instrumentos processuais
de punição trazem, por baixo do seu figurino, mecanismos de nova vitimização da vítima, ao silenciá-la
completamente (ANDRADE, 2005).

Mesmo assim, nos últimos anos, tem-se demandado, em montantes assustadores, a intervenção desse
mesmo sistema de violência estatal para proteger grupos historicamente vulneráveis, através da aniquilação
da violência e punição dos agressores. O que assusta é que grande parte desses demandantes é oriunda de
movimentos sociais que esboçam uma visão desconstrutivista das prisões (KARAM, 2001).

A lógica operante é a seguinte: o Sistema de Justiça Criminal é ineficaz, duplicador da violência,


desumano e, num Estado Democrático de Direito, essencialmente ilegítimo. Porém, goza, mesmo manten-
do todas essas características, de uma legitimidade exógena: a condição de vulnerabilidade da vítima. Se o
cárcere, por um lado, não é o lugar de seres humanos, ainda que rotulado de criminosos, poderá ser – e de-
verá ser – o lugar de certos seres humanos agressores de determinados grupos vulneráveis. A favor desses, a
proteção, ainda que inócua; contra aqueles, a punição, ainda que mortificadora.

O problema do intervencionismo penal agrava-se ainda mais pelo fato de não haver, como foi sinaliza-
do acima, um arcabouço epistemológico que defina e circunscreva os limites e as condições de possibilidade
de uma Política Criminal. Vale ressaltar que a política criminal está umbilicalmente ligada à configuração da
política em geral (BARATTA, 2002) e, na inexistência de um conteúdo bem definido, colonizada por esta.
Entregue aos devaneios doutrinários, ao oportuno populismo legislativo e ao fortíssimo apelo midiático, a
Política Criminal se apresenta como instrumento por meio do qual se espraia o Estado Penal Máximo.

2. POLÍTICA CRIMINAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

Não é possível oferecer uma definição única à Política Criminal. O esforço por conceituá-la exige,
necessariamente, estabelecer as características mais gerais e essenciais extraídas do universo das diversas
contribuições doutrinárias nesse sentido (FREITAS, 2008). Aqui basta fazer referências a duas classificações:
Política Criminal em sentido amplo e estrito e Política Criminal em sentido teórico e prático.

A primeira classificação denota a abrangência e amplitude da atuação da Política Criminal. Assim,


no sentido estrito ou rigoroso do termo, ela é o conjunto de “princípios ou recomendações para a reforma ou
transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação, compreendendo a política
de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária” (BATISTA, 2007).

No seu aspecto amplo, a Política Criminal não se limita aos problemas propriamente penais de contro-
le do desvio (direito penal, direito processual penal, direito penitenciário), mas alcança reflexões, elaborações
e execuções de políticas mais extensas de intervenção social (FREITAS, 2008). Fala-se aqui, portanto, em
políticas sociais gerais de enfretamento às causas do fenômeno criminal, sendo a intervenção essencialmente
penal (política criminal em sentido estrito) seu elemento último e mais gravoso.

Nota-se, pois, que há uma relação do tipo gênero-espécie entre a política criminal em sentido amplo
e política criminal em sentido estrito, conforme verificamos na lúcida explicação de Ricardo de Brito (2009):

214
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Direito(s) em debate.

Ao englobar o conjunto das políticas sociais e econômicas de controle social, a


política criminal em sentido amplo mantém com a política penal uma relação
do tipo gênero/espécie, sendo que esta última se ocupa apenas dos meios
penais de contenção da criminalidade. Enquanto a política penal consiste
numa resposta à questão criminal circunscrita no âmbito do exercício da
função punitiva do Estado, a política criminal em sentido amplo é uma
política de transformação social.

A segunda classificação coloca no centro da discussão a existência ou não de um estatuto teóri-


co, e, portanto, científico, da Política Criminal. No sentido prático, a política criminal se configura como o
universo de atividades dirigidas ao enfretamento racional à criminalidade. O sentido teórico denota o estudo
e a elaboração de princípios teóricos que se destinariam a nortear e racionalizar as atividades práticas de
combate à criminalidade. No primeiro caso, a política criminal é considerada eminentemente prática e, as-
sim, destituída de caráter científico. No segundo sentido, a política criminal é definida como atividade teórica
destinada a fins práticos e por isso passível de ser considerada uma ciência criminal (FREITAS, 2008).

Note-se que há um entrecruzamento entre ambas as classificações: a política criminal como saber
teórico tem como objeto, tanto a política criminal sentido amplo, como a política criminal em sentido estrito.

A partir dessa sistemática se compreende o contexto atual marcado pela inflação legislativa no campo
penal: o Congresso Nacional, ante uma política criminal sem diretrizes, regra geral, despreza as contribuições
de pesquisas e estudos científicos, rendendo-se ao “populismo penal” midiático e invocando práticas demagó-
gicas que se amparam no sentimento de vingança e exploração do medo da população. Os momentos de
instabilidade são mais notáveis nesse sentido, vez que neles, invariavelmente, aparecem respostas milagrosas,
rápidas e viáveis administrativamente, mesmo que ineficazes do ponto de vista da redução da criminalidade
ou de resolução dos conflitos sociais.

Essas medidas legislativas que nascem sem qualquer discussão que tenha o mínimo de rigor teóri-
co e científico, recrudescem ainda mais a política criminal nacional quando se abastece da condição de
vulnerabilidade da vítima. Se a política criminal prática é vazia de conteúdo e, por isso, incapaz de limitar o
exercício do poder punitivo estatal, o discurso assentado sobre a condição desfavorável da vítima aguça ainda
mais o “populismo legislativo” e possibilita a composição de uma “legislação penal do terror” e, como tal,
mitigadora dos direitos e garantias fundamentais (CARVALHO, 2010).

A análise às legislações aqui apresentadas, portanto, aponta para um Congresso Nacional que trabalha
incansavelmente e com total discricionariedade no campo da repressão penal – sobretudo em razão da falta
de uma teoria própria à política criminal que circunscreva limites à atuação estatal nesse campo – e cujo
efeito inevitável é a superposição do Estado de Polícia ao Estado de Direito. O resultado é, como se pode ver
no gráfico abaixo, uma elevação exponencial das legislações penais – 320 leis no período de 1940 a 2010:

215
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3. UMA POLÍTICA CRIMINAL DIRIGIDA À PROTEÇÃO DA VÍTIMA.

O banco de dados formulado pela pesquisa que ora se apresenta mostra uma inflação legislativa ocor-
rida ao longo dos anos. O recorte temático da proteção à vítima, perpassado pela justificação de situação de
vulnerabilidade desta, pode ser observado no universo de 44 leis, distribuídas, em termos de ano, da seguinte
maneira:

Todas essas legislações têm iniciativa no Congresso Nacional e perpassam diversas matérias, desde
tipos penais que visam proteger a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, a tipos penais que propõem
a proteção `a mulher, a igualdade racial...

São todas legislações punitivas, porque prevêm em seu bojo ou a criação de um tipo penal ou a ma-
joração de pena. O fato é que os argumentos que justificam a lei trazem sempre uma suposta intenção de
defesa efetiva do bem jurídico tutelado, especialmente para as pessoas que apresentam algum tipo de hipos-
suficiência.

A título de exemplo, a justificativa da Lei n.º 10.886 de 2003, que trata da violência doméstica, cami-
nha no sentido de sustentar que “não se deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho
e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência”, e prossegue aprofundando os apelos com fins
explícitos de materializar o agravamento penal quando diz:

O delito praticado por extranhos em poucos casos voltará a acontecer, muitas


vezes agressor e vítima se quer voltam a se encontrar, já o delito praticado
por pessoa da convivência tende a acontecer novamente, bem como, pode
acabar em delitos de maior gravidade, como é o caso de homicídio de mu-
lheres inúmeras vezes espancadas anteriormente – esta especificidade da
violência doméstica exclui os delitos decorrentes dessa forma de violência da
classificação “menor potencial ofensivo”. Embora tecnicamente levando-se
em consideração a pena – no caso de lesões corporais leves e da ameaça – a
classificação seja menor potencial ofensivo, as circunstâncias que cercam o
delito majoram esse potencial.

Vê-se aqui, portanto, construções jurídico-penais aparentemente bem intencionadas e sofisticadas,


com argumentos que favorecem o agravamento penal em razão da proteção de vítimas que, por sua condição
de convivência com o agressor, apresentam certa vulnerabilidade. Em nenhum momento, porém, a justifica-
tiva problematiza acerca das consequências reais da intromissão do Estado penal nas relações intersubjetivas
e privadas, tampouco indaga se a lei tem o potencial necessário à resolução concreta do conflito real. A jus-
tificativa da Lei n.º 11. 340 de 2006, intitulada simbolicamente de “Lei Maria da Penha” segue esse mesmo
caminho argumentativo, quando propõe que,

É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das mu-


lheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica que
dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não
haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus
tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.

Não há ao longo da argumentação justificadora da criação da supracitada lei nenhum fundamento


minimamente crítico e comprometido com a extensão da probabilidade de realização fática da afirmação de
que uma mera lei pode garantir dignidade e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O que se percebe, na verdade, são construções argumentativas com signos linguísticos em certo
sentido até coerentes, mas sobrecarregados de elementos simbólicos, e por isso ideológicos, sem qualquer
compromisso com a realidade interativa e conflitiva da dinâmica social.

O que importa, para além de qualquer função declarada da lei, é a perpetuação e a expansão do
Direito Penal como fórmula tradicional de controle social. E aqui o direito penal expancionista mostra sua
feição mais perversa: apropria-se de conceitos, causas, lutas e pautas sociais, historicamente ligadas aos mo-
vimentos políticos, ideologicamente de esquerda, e sob o pressuposto de defesa de indivíduos desapoderados,
realiza o efeito reverso: maximiza o Estado policialesco.

Ora, a sociedade contemporânea é transpassada por uma infinitude de questões caracterizadoras do


que se passou a denominar “a sociedade do risco” (BECK, 2009). O medo distribuído indiscriminadamente,
sobretudo pela mídia, gesta no imaginário geral, a impressão de que ser vítima de violência é uma possibili-
dade mais que real, algo iminente. Resultado disso é uma sociedade marcada pela incerteza, cujos membros,
pelo menos potencialmente, se veem identificados com qualquer pessoa que esteja em situação vitimatória.

Nesse contexto, e em nome da proteção, sobretudo, dos hipossuficientes, o rigor do direito penal não
vê limites: se os riscos (virtuais ou não) no convívio social são incalculáveis e múltiplos, a multiplicação de
leis penais rigorosas está legitimada.

4. A NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA CRIMINAL RACIONAL E OS EFEITOS DO REALISMO DE


ESQUERDA .

Ocorre que essas leis têm razoável conotação simbólica, uma vez que o impacto carcerário que pro-
vocam não é significativo, pois, como é claramente divulgado, os principais tipos penais que têm levado ao
hiperencarceramento é tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio.

Importante pontuar que o simbolismo não é uma qualidade exclusiva do Direito Penal. Mesmo assim,
chama a atenção a grande produção legislativa com forte caráter simbólico. O direito penal simbólico denota
uma disparidade entre a realidade e a aparência, o implícito e o explícito, entre o que é querido e o que de
outra forma é aplicado. É possível dizer que o simbolismo penal visa satisfazer a pressão social e produzir
confiança na capacidade de atuação do Estado, por meio da distribuição (desigual) da punição, sem atentar,
necessariamente, para a resolução dos problemas.

As normas penais, nesse sentido, tendem a produzir um engano, vez que não são criadas para serem
aplicadas com toda efetividade, nem muito menos para por fim aos conflitos concretos, mas para gerar resul-
tados e alcançar fins não declarados.

Não se trata aqui do simbolismo (denominado positivo) manejado pelo Direito Penal para reforçar
a função instrumental de controle de condutas desviadas, protegendo valores selecionados como os mais
importantes pela coletividade, tal como “O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de
proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina afirmar-se que tutelar os bens jurídicos é a missão do
Direito Penal” (BRANDÃO, 2007, p. 7).

Como se vê, sendo a função instrumental voltada aos fins do Direito Penal, no caso, a proteção de
bens jurídicos, a função simbólica (positiva) volta-se à função de transmitir à sociedade certas mensagens
ou conteúdos valorativos com poder de influenciar as consciências com representações mentais para a
conformidade com a norma e que o faz através da criminalização. Todavia, quando se constata que não é
capaz de operacionalizar, sua capacidade legislativa perderá toda a credibilidade, de modo que a aparência
não poderá sustentar a função declarada do sistema de proteger bens jurídicos.

Trata-se, desse modo do uso do Direito Penal em desacordo com o próprio discurso legitimador do
jus puniendi estatal, sendo a adjetivação “simbólico” sinalizadora de um direito penal cuja função de pro-
teger bens jurídicos é corrompida, levando ao descrédito da justiça estatal. Logo, sob esse viés, é Direito
Penal simbólico aquele no qual a função de prevenção geral positiva, ou seja, a função de formação de con-

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Direito(s) em debate.

vicções jurídicas é exacerbada, visando à imposição de valores morais através do progressivo agravamento da
ameaça penal, configurando-se numa apelação na qual a função estabilizadora dos conflitos sociais é apenas
aparente. A caracterização de um direito penal simbólico é, pois, decorrente da predominância, ou mesmo,
da exclusividade dessas pretensões ideológicas.

A estratégia de aparente eficácia não é à toa, é destinada a acalmar a demanda social, alarmada, e
exonerar o Estado de ampliar e realizar políticas sociais. Isto é, as políticas punitivas têm o traço comum
de serem alarmistas e causar uma ansiedade difusa, de modo que ao canalizá-la à figura do delinquente de
rua, a severidade penal que passa a ser uma necessidade vital, desvia a atenção daquilo que não consegue
realizar: uma política social eficaz.

No Brasil, tais problemáticas ganham dimensões ainda maiores, dada a fragilidade da política crimi-
nal eminentimente prática, cujo conteúdo e alcance são determinados, com certa prepoderância, pela supe-
resposição midiática com respaldo no forjado consenso popular sedento por segurança pública e punição. Por
outro lado, parcela da “esquerda” nacional não se dá conta dos efeitos reversos maléficos que, inevitavelmen-
te, resulta da opção pelo Direito Penal como fórmula e remédio para resolução os conflitos sociais.

Por tudo já dito, percebe-se a urgente necessidade de se pensar em uma política criminal fundamen-
tada em saberes teóricos roubustos e racionais, de modo a evitar a expansão desregrada do Estado penal com
a consequente mitigação das liberdades individuais e a flexibilização dos direitos fundamentais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do século XX nasce uma outra modalidade de Estado chamado Estado Social de Direito,
que teria o propósito de agir como motor ativo na vida da sociedade, modificando efetivamente as relações
sociais, sem, contudo, abandonar as conquistas do Liberalismo. Do Estado Liberal dito “imparcial” se passa
a um Estado Social “intervencionista”. No que diz respeito aos seus caracteres básicos, o Estado Social De-
mocrático de Direito defende, ao menos em tese, a observância do princípio da legalidade, da igualdade e a
supremacia da lei, como garantia máxima de segurança jurídica para todos os cidadãos.

Como já fora discutido mais acima, a relação entre Estado de Direito e Estado Social Democrático
de Direito é complexa e delicada, de modo a exigir moderação quando da necessidade de reivindicar recuos
ou ações prestacionais positivas desse mesmo Estado. Assim, e com base em todas as reflexões aroladas no
corpo desse trabalho, se faz necessário está completamente em alerda nesse momento em que se demanda
em montantes assustadores a intervenção estatal por meio do Direito Penal.

Põe-nos sob alerta o fato de que ultimamente vem crescendo movimentos reividincatórios por uma
ainda maior intervenção do Direito Penal para efetivar uma transformação social ou para promover a eman-
cipação e proteção dos oprimidos ou vulneráveis. Adimira que tais “solusões” sejam requeridas por setores
políticos de esquerda, aqueles usualmente atentos às desigualdades que definem e caracteriza historicamen-
te o Estado brasileiro.

Esta “esquerda punitiva” (KARAM, 2008), contraditoriamente, contribui no sentido da fragilzação


das bases do próprio Estado de Direito, reivivicando o denebroso Estado de Polícia, ao tentar dar feições
positivas a um instrumento que, pela sua natureza e poder, se contrapõe as liberdades individuas, dentre ou-
tras conquistas históricas. Assim, a título de conclusão, como bem lucidamente conclui Maria Lúcia Karam
(2008),

O rompimento com a excludente e egoística lógica do lucro e do mercado, há


que ser acompanhado do rompimento com qualquer forma de autoritarismo,
para que a bens econômicos socializados corresponda a indispensável garan-
tia da liberdade individual e do direito à diferença, para que a solidariedade
no convívio supere e afaste a crueldade da repressão e do castigo, para que
um exercício democratizado do poder faça do Estado tão somente um instru-
mento assegurador do exercício dos direitos e da dignidade de cada indivíduo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A


REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO

Érica Babini L. do Amaral Machado


Doutora pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professora de Direito Penal e
Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pesquisadora do Grupo
Asa Branca de Criminologia.

Maurilo Miranda Sobral Neto


Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculado à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos.
Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia.

Vitória Caetano Dreyer Dinu


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com
bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A doutrina da proteção integral e seus paradoxos na realidade latino ame-
ricana; 2. Análise dos dados; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

A Doutrina da Proteção Integral marca a transição do paradigma tutelar de menores para o da eman-
cipação de sujeitos de direito, a partir da inserção desses sujeitos nas bases dos Direitos Humanos.

No entanto, a prática dos agentes das instituições formais de controle não corresponde a essa mu-
dança de lentes. Pesquisas recentes apresentam uma dicotomia entre passado e presente. Desde a década de
80, as pesquisas sobre violência, criminalidade, segurança pública e sistema de justiça se tornaram temáticas
institucionalizadas nas contribuições sociológicas (KANT DE LIMA, MISSE, MIRANDA, 2000).

Antes mesmo, na década de 70, com o trabalho pioneiro sobre delinquência juvenil de MISSE (1973),
discutiu-se a forma de responsabilização de adolescentes conduzida pelo Judiciário, que, à época, não cum-
pria os preceitos estabelecidos na legislação menorista. Atualizando a problemática, com estudo em sede de
recursos, pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, na Série Pensando O Direito, em 2010, também
aponta sérias críticas aos fundamentos das medidas socioeducativas de internação dados pelo Poder Judici-
ário.

A execução das medidas socioeducativas de internação, na prática, reproduz as problemáticas do sis-


tema prisional (seletividade e estigmatização), e é possível comprovar tal afirmativa em trabalhos específicos
de dissertações e teses, como a de MELLO (2004), que constatou, na realidade das unidades de internação
de Pernambuco, que o caráter pedagógico da medida não a torna mais branda que a pena, porque privar a
liberdade de pessoa em desenvolvimento, no auge da conquista do gozo da liberdade, é uma resposta pior
do que a própria pena. FACHINETTO (2008) se debruçou sobre a realidade do sistema socioeducativo de
adolescentes do sexo feminino no Rio Grande do Sul; MALLART (2014), em versão antropológica, retratou a

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

realidade de unidade de internação de adolescentes do sexo masculino em São Paulo, e MACHADO (2014)
se debruçou sobre a realidade da unidade de internação de adolescentes do sexo feminino em Pernambuco,
apontando as mesmas conclusões: a medida socioeducativa de internação, em essência, em nada se diferen-
cia da pena privativa de liberdade.

Institucionalmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), com o objetivo de atualizar pesqui-
sa de 2012 que já apontava diversas formas de violações de direitos no âmbito da Justiça da Infância e da
Juventude, mapeou a realidade das instituições de internação para adolescentes do sexo feminino em PE,
PA, SP, DF e RS, apontando que

O Estado, no exercício da proteção e diretos, falha na consagração dos direi-


tos mínimos à cidadania e na execução das medidas socioeducativas, faz das
unidades de internação depósitos de contenção de adolescentes demoniza-
das em suas trajetórias, rotuladas como incapazes de viver socialmente. Sob
esse prisma, a medida socioeducativa de internação tem o mesmo sentido da
prisão: castigo (CNJ, 2015, p. 212).

Diante de várias pesquisas já realizadas, percebe-se a manutenção da dicotomia entre tutela e eman-
cipação de sujeitos. Nesse sentido, a pesquisa busca identificar o que os magistrados entendem sobre as
finalidades da medida socioeducativa de internação, por meio da análise dos fundamentos de sentenças de
aplicação de medida de internação proferidas no Estado de Pernambuco para adolescentes do sexo feminino.

O corpus da pesquisa é constituído por 28 sentenças de adolescentes internadas no Centro de Aten-


dimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril/20121, sendo que, dessas, a análise se deteve sobre 9
(32% do total) que utilizaram o argumento da finalidade da medida, dentre outros, para justificar a interna-
ção.

Para tanto, utiliza-se a metodologia da Análise de Conteúdo, de forma a possibilitar aos pesquisado-
res encontrar o latente nas sentenças, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo de documentos
(BARDIN, 1977). Daí se inferiu que, quando os magistrados aludem às finalidades da medida, constroem
basicamente dois raciocínios: ou a internação tem por fim a pura retribuição/neutralização – bastando auto-
ria, materialidade, e o ato infracional ser grave –, ou serve à retribuição/socialização – mesmo que não reste
comprovado o cometimento do ato infracional – supostamente, como julga, colmatando lacunas de educação
deixadas pela família e pela comunidade.

Considerando que o objetivo é identificar representações de magistrados sobre a finalidade da medida


socioeducativa de internação, nada melhor do que compreender os discursos que permeiam o texto.

É importante ponderar que representação é “algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida
social” (BECKER, 2009, p. 18). São informações que orientam as práticas e relações humanas, construídas
através de comunicações sociais e apreendidas socialmente (MOSCOVICI apud ANCHIETA; GALINKIN
2005), além de variar em função dos extratos econômicos e culturais em que se inserem os indivíduos ou
grupos (PORTO, 2006).

As representações sociais funcionam como princípios orientadores e indutores de condutas de indi-


víduos, grupos ou instituições, de modo que, compreender como a magistratura representa a finalidade das
medidas socioeducativas de internação importa desvendar o que se pensa sobre o instituto, captando seus
significados, expondo seus sentidos.

Deste modo, o estudo da representação social da magistratura acerca da finalidade da medida socioe-
ducativa de internação não se dirige ao juiz, mas aos conteúdos que eles simbolizam. O magistrado, ausente
enquanto tal, está presente como expressão de padrões de organização social, de modelo de comportamento

1  Esse número refere-se à quantidade de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa
Luzia em abril de 2012, momento no qual a pesquisa etnográfica na unidade, realizada pela primeira autora, no âmbito do dou-
toramento, teve início. Na verdade, existiam 35 adolescentes, porém, 7 delas estavam na modalidade de internação sanção, o que
não compõe o universo da pesquisa.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

interpessoal e de um certo tipo de saber. É certo que o quadro organizacional de que se fala está a associado
a modelos de comportamentos interpessoais que nele se inspiram e se reproduzem. Enfim, a representação
social do magistrado veicula um modelo de homem e de sociedade.

A partir daí, problematizam-se esses argumentos à luz da Criminologia Crítica e das diretrizes da
Sociedade de Controle. Enquanto a primeira demonstra que o Sistema de Justiça Criminal – ou, no caso,
o Sistema de Justiça Juvenil –, embora não declare funções de defesa social, é esse o valor que norteia as
avaliações judiciais2; o marco da Sociedade de Controle aduz que indivíduos identificados como constantes
agentes de “riscos”, seja por serem inseridos em uma classe economicamente excluída, ou por possuírem um
padrão vida que não interessa aos mecanismos de produção da sociedade, são comumente alvos de interven-
ções das inúmeras instituições de controle do Estado.

Siga-se adiante.

1. A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E SEUS PARADOXOS NA REALIDADE LATINO


AMERICANA.

Com o objetivo de compreender como se desenvolveu o atual paradigma do trato jurídico sobre a
infância e a juventude, não se pode deixar de expor brevíssimo aporte histórico3. Ao se olhar para o passado,
não se pretende explicar o presente como uma mera e inescapável evolução da humanidade; pelo contrário,
objetiva-se estabelecer diálogos entre as racionalidades de ontem e de hoje.

Nesse sentido, a dicotomia teórica da Doutrina da Proteção Integral com um ranço prático da Doutri-
na da Situação Irregular nos operadores do Direito pode ser explicada na realidade latino-americana.

Primeiramente, é preciso acabar com a ideia de que o “novo” suplanta totalmente o “antigo”. Afinal, a
história vai muito além de simples divisões binárias. Nessa linha, elucidativa a colocação de Patrice Schuch:

[...] ao colocarmos o ECA numa economia geral discursiva que vem configu-
rando o domínio jurídico-estatal da infância e juventude, no Brasil, desde o
início do século XX, poderemos tentar problematizar as rupturas maniqueís-
tas entre o ‘ontem’ e o ‘hoje’, que contribuem para um obscurecimento das
relações de poder vivenciadas no presente (2005, p. 70).

Anteriormente, o controle incidente sobre a juventude era justificado pela Doutrina da Situação Irre-
gular, fundamento do Código de Menores de 1979, que se estruturava em torno da categoria menor. Foi uma
tendência nascida da corrente filosófica do positivismo, segundo a qual a situação de abandono criava uma
necessidade protetiva, ao considerar o menor objeto de compaixão e repressão ao mesmo tempo (TUARDES
DE GONZÁLEZ, 1996).

A teoria considerava que os menores sempre estariam em situação irregular e, por isso, mereceriam
a segregação, sem nenhuma preocupação com o seu desenvolvimento, incapacidades de socialização e po-
tencialidades. Na sua vigência, as garantias individuais eram desprezadas sob o falacioso argumento de que
incidiam apenas no processo de adultos, não tendo razão para sua incidência no campo do Direito do Menor.

Menores eram aqueles supostamente4 abandonados, excluídos, ao passo que os incluídos em famílias
e suas escolas eram crianças e adolescentes, a partir de um processo de construção estigmatizante. Assim, as

2  Até porque, além do sistema penal em sentido estrito, existem outros paralelos, compostos por agências de menor hierarquia,
destinado a operar com punição a menor, razão pela qual goza de maior discricionariedade e arbitrariedade. Porém, tal qual o
punitivo, admite técnicas (ilícitas) subterrâneas normalizadas em termos estatais, dado o fim que promete cumprir (ZAFFARONI,
2003).
3  Nesse ponto, seguindo o alerta de Luciano Oliveira, não se pretende descrever a evolução histórica como um simples ritual e
demonstrar uma visão simplória das mudanças de concepção ao longo do tempo (2015, p. 163).
4  Supostamente porque o estado de abandono era decretado por juízes rotineiramente, apenas fazendo uma relação com a
carência de recursos materiais, independentemente de fatos infratores. Não é por outra razão que os textos clássicos da cultura

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

infrações dos incluídos eram resolvidas no âmbito da esfera privada, mesmo se constituísse um delito, posto
que a amplitude judicial e o poder direcional do juiz resolveriam de forma particular; mas, se fosse um ato
de menores, é porque estes estavam em situação irregular e demandavam a tutela do Estado para serem
corrigidos, educados.

Se encontrados em “situação irregular” – o que era definido, primordialmente, em função da situação


de pobreza (SCHUCH, 2005, p. 59) – poderiam ser levados para internação, de forma indistinta.

O referido processo de internação, no Brasil do início do século XX, chegou inclusive a apresentar
um viés civilizatório, fazendo parte das preocupações de construção da nova República brasileira (SCHUCH,
2005, p. 57). Desta feita, por mais que fossem declarados os objetivos de salvar as crianças, de protegê-las do
perigo moral, havia esse viés de controle e de verdadeira salvaguarda mais eficaz da sociedade (MÉNDEZ,
2004, p. 31).

Diversas foram as críticas a esse modelo, mormente pela primazia da internação, pelo tratamento
indiferenciado de crianças abandonadas e crianças supostamente criminosas, bem como pela imposição de
padrões comportamentais aos “menores” com o propósito de proteger a sociedade de futuros delinquentes
– sendo esta última característica presente até hoje. Sobre a temática, precisas são as palavras de Edson
Passetti:

A integração se dá pelo avesso na ilegalidade; a vida austera mortifica indivi-


dualidades e dispõe os indivíduos enfileirados para ações delinquenciais. E
mesmo com a falência dos internatos, eles se transformaram no estandarte
dos amedrontados que clamam por mais segurança, muitas vezes exigindo
prisões de segurança máxima e até a pena de morte (2010, p. 356).

A Doutrina da Situação Irregular passou a ser abalada no contexto pós Segunda Guerra Mun-
dial, com a proclamação de direitos universais, acima de qualquer identidade, bem como com a constatação
de que a atitude paternalista dos Tribunais de Menores vilipendiava esses direitos, desrespeitando a legali-
dade em nome de uma suposta proteção. Assim, as crianças e adolescentes também passaram a ter os seus
direitos fundamentais enumerados. Daí surge a primeira característica do novo paradigma, a Doutrina da
Proteção Integral: as crianças e adolescentes não mais são objetos de compaixão e repressão, mas sim sujei-
tos de direitos. Além disso, outro grande marco do novo paradigma foi o término da confusão na gestão dos
abandonados e dos adolescentes transgressores (BARATTA, 1995, p. 5).

De forma sintética, as grandes características da Doutrina da Proteção Integral – albergadas juridica-


mente pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pelas Regras de Beijing, pelas Regras Mínimas
das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes de Riad – são as seguintes: as
normas são para o conjunto da categoria infância, e não apenas para aqueles indivíduos em situações difí-
ceis (“menores”); presença obrigatória de advogado e papel de controle do Ministério Público; não é mais a
criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas a pessoa ou instituição responsável pela
ação ou omissão; eliminação das internações não vinculadas ao cometimento de ato infracional; crianças
e adolescentes como sujeitos plenos de direitos; incorporação dos princípios constitucionais de segurança
(MÉNDEZ, 2004, p. 13).

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi o responsável pela introdução da nova
doutrina no ordenamento, dividindo a infância e juventude entre aqueles que estão no exercício da cidada-
nia, as crianças e adolescentes sujeitos a medidas de proteção (abandonados), e os adolescentes sujeitos a
medidas socioeducativas (em virtude do cometimento de atos infracionais). No que tange a este último gru-
po, a ideia da Doutrina da Proteção Integral é a de introduzir uma pedagogia de responsabilidade e a assun-
ção de direitos por parte dos menores, de forma que o adolescente seja um ator social (RODRIGUES, 1999).

menorista referem-se ao juiz como um pai de família que, não podendo forçar o estado em suas políticas públicas, deve institucio-
nalizar a criança para protegê-la.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Todavia, todo o exposto é o que se vislumbra do ponto de vista normativo. A superação da Doutrina
da Situação irregular não é tão clara e simples assim, em virtude da existência de aparatos de poder e con-
trole mesmo que sob a égide da Proteção Integral. Como alertou Patrice Schuch, a troca de paradigma é um
processo complexo, em que estão em jogo vários fatores, dentre eles a permanência e/ou mudança de valores
(2005, p. 81). Daí que se utilizará o marco teórico da Criminologia Crítica, a fim de desvelar o que está por
trás das funções declaradas do novo paradigma – mormente no que tange ao julgamento de adolescentes acu-
sados do cometimento de atos infracionais –, bem como da Teoria da Sociedade do Controle, para entender
o real objetivo da incidência das normas sobre determinados adolescentes, e não outros.

Sim, pois a juventude brasileira tem sido cada vez mais o maior alvo do sistema punitivo (formal e
informal), especialmente quando diante da atuação das polícias brasileiras.

O Anuário Brasileiro de 2014, apresentando dados de 2013, aponta um total de 809 casos de pessoas
mortas pelas Polícias militar e civil brasileiras, quando em serviço no ano de 2013. Isso significa cinco pessoas
mortas pela Polícia por dia no Brasil (FBSP, 2014). Em 2015, esse número é 3.022, com aumento de 37%
(FBSP, 2015). Entretanto, o relatório da Anistia Internacional, analisando tão somente a realidade do estado
do Rio de Janeiro, discute a ausência de transparência e sistematização desses dados. Esse cenário é repetido
nos dados sobre as mortes violentas intencionais em todo o país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública
de 2014 aponta o crescimento da vitimação juvenil, chegando a representar, com os dados de 2012, 53,4%
dos homicídios ocorridos (FBSP, 2014).

Portanto, é possível perceber o extenso número de mortes com autorização social de uma população
quemuito além do descaso histórico em relação à precariedade das condições de vida e da indiferença social,
essas populações sofreram toda sorte de violência, em especial a física, perpetrada pelos muros da internação
e pela arbitrariedade policial materializada sob a forma de tortura e maus tratos que por vezes terminam em
morte (VARGAS, 2011, p. 30).

Essa continuidade, porém, tem uma peculiaridade. A reatualização da dicotomia abandonado/delin-


quente da Doutrina da Situação Irregular: ontem, os considerados pivetes estavam vinculados à prática de
furto e roubo, hoje, estão vinculados ao tráfico. Os dados apresentados por Joana Vargas (2011) indicam os
argumentos empíricos da atuação das polícias no sentido da dezumanização do humano.

Por outro lado, o Poder Judiciário parece alheio a todo esse processo, não impondo resistências aos
arbítrios do controle repressivo da ordem pública, deixando evidente que o Estado ainda convive com a in-
capacidade do controle da violência ilegal, a manutenção de uma imensa desigualdade social e econômica,
além de baixíssima legitimidade das instituições representativas, envolvidas em processos de corrupção, ile-
galidades, violências etc.

O fato é que, levando em conta o alto índice de seletividade do sistema punitivo, os adolescentes
de classes sociais mais baixas, com histórico de desvantagens econômicas, são mais punidos do que os
adolescentes de classes mais avantajadas, de modo que o sistema protege aqueles que têm mais chance de
socialização e é injusto e viola a dignidade daqueles que têm menos chance (COUSO, 2006).

Esse quadro é esquizofrênico, pois as vítimas do sistema punitivo são os mais débeis e são exatamente
os que precisam do poder público para representá-los e atuar por eles, porém este poder público não tem tido
a capacidade de responder à questão – quem custodiará os custodiados? (MELOSSI, 1996) Não obstante a
crise, não se pode parar de exigir, como dever cívico de garantia da vida democrática, menos violência.

São os adolescentes autores de atos infracionais jovens-resultados. Resultados de um somatório de


fracassos - de suas famílias, de suas comunidades, das políticas sociais públicas... resultado do insucesso do
projeto de desenvolvimento do país (KONZEN, 2005), mas sujeitos de direito que não podem ser revitimiza-
dos no sistema infracional, cabendo aos representantes do Estado juiz, no momento da prolação das senten-
ças, reconhecer esta realidade, e não se reduzir à retórica da percepção da realidade presumida.

Assim, no que tange aos adolescentes, por mais que a divisão entre abandonados e jovens em conflito
com a lei tenha sido importante em termos de conferir um tratamento jurídico adequado para cada grupo, o

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

refinamento dessa dicotomia acabou por recrudescer o estigma de criminoso dos adolescentes selecionados
pelo sistema que cometem atos infracionais, sobre os quais recai todo um discurso punitivista. Por mais que
haja um discurso de “infância universal”, una, com direitos garantidos a todos, a prática evidencia a dico-
tomia entre crianças “em perigo” e “perigosas”, sendo que estas, em nome da “defesa da sociedade”, estão
tendo direitos suprimidos.

Para enfrentar os desafios dessa “via de mão dupla” da Proteção Integral, é preciso relembrar, como
aduz Baratta (1995, p. 10), que o trato dos adolescentes em conflito com a lei não deixa de ser uma espécie
de responsabilização penal, com diferença de grau e nas sanções aplicadas. Desta feita, todos os filtros para a
imposição do poder punitivo sobre os adultos também devem atuar na definição das medidas socioeducativas
para os adolescentes, sob pena de violação das garantias penais e processuais penais. Com esse alerta sobre
a Proteção Integral em mente, é que se passará, mais adiante, à análise das sentenças objeto desse trabalho.

2. ANÁLISE DOS DADOS.

Nas 28 sentenças integrantes do corpus desta pesquisa, quando se trata de ato infracional que não
é grave ou não há indícios de autoria e materialidade, a principal fundamentação da imposição da medida
socioeducativa de internação assenta-se no que os magistrados definem como deficiências, entendidas essas
as referentes à pessoa da adolescente e a sua história pessoal, fazendo uma retrospectiva da sua vida que,
mais a frente, vai justificar (ou não) a medida socioeducativa.

Todas as vezes que estes elementos aparecem nas sentenças, são utilizados para justificar a necessi-
dade da medida socioeducativa, sem qualquer discussão quanto à prática do ato infracional, como se ela fosse
responsabilizada pela sua conduta de vida, sua personalidade a até de seus familiares, como se verá adiante,
independentemente do que tenha praticado.

Conforme já indicado, das 28 sentenças, 9 delas (32%) apresentam como argumento para a imposi-
ção da internação a finalidade da medida socioeducativa – apontada de forma ambígua nas diversas senten-
ças –, sendo possível definir dois grandes grupos sobre este item.

O primeiro grupo trata a medida de internação como retribuição do mal praticado, e assim o faz na-
quelas situações em que exclusivamente só foi analisada materialidade e autoria e o ato infracional é grave,
sem nenhuma consideração dos itens referentes à pessoa e à trajetória da adolescente. Neste grupo inserem-
-se as sentenças que veem na medida de internação um instrumento de neutralização da adolescente, para
proteger a sociedade e a própria adolescente.

O segundo grupo indica as medidas socioeducativas como instrumentos de supressão das deficiências
de socialização do adolescente, mencionando, inclusive, incapacidades educacionais da família, cabendo
ao poder público ensinar os pais como educar. Isso não exclui o fato de que, na grande maioria das vezes,
também menciona a retributividade da medida de internação.

No primeiro grupo, a consideração sobre a gravidade do ato infracional é que justifica a medida, tanto
que as sentenças tratam dos atos infracionais de homicídio (5), roubo (3), tráfico (2) e lesão corporal (1) –
essa última foge à regra da gravidade, mas, considerando ter sido realizada com o irmão e com faca, esse dado
pode ter sido levado em consideração.

A perspectiva da retribuição é verificada na pretensa compreensão do mal praticado que se espera


que a medida possa instrumentalizar, como se vê neste trecho: “reconhecer as consequências de seus atos,
que chegou ao extremo de atingir o bem mais precioso de todo o ser humano, a vida, necessitando medida
mais severa” (SENTENÇA 3).

Em muitos momentos, são evidentes a ansiedade para a neutralização da adolescente e até a


exemplificação (prevenção geral), mas, como isso não pode ser reconhecido, o eufemismo se apresenta,
como neste trecho: “ao mesmo tempo que a internação protege a sociedade, também resguarda a integri-
dade física do adolescente infrator que na grande maioria das vezes encontra-se envolvido com quadrilha e

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

traficantes” (SENTENÇA 13). Ou seja: no caso, proteger a adolescente justificou a internação, quando não
há sentido em alguém ter a liberdade cerceada para a própria proteção. Mais uma vez, tem-se o discurso da
proteção como uma via de violação de direitos.

Estes trechos apresentam a seguinte visão da magistratura: “A adolescente tem tendência para a
prática de ato infracional, sendo imperativa a retirada da comunidade onde vive justificando a aplicação da
medida socioeducativa de internação” (SENTENÇA 8).

Daí, os juízes passam a narrar a gravidade dos atos infracionais como as piores coisas da humanida-
de - o tráfico ilícito é conduta grave, tem como vítima a sociedade, sendo dever do Estado, como medida de
proteção, afastar os menores da vivência da marginalidade (SENTENÇA 13).

O trecho abaixo exemplifica esta visão:

É sabido que o tráfico vem sendo considerado o flagelo da humanidade, cres-


cendo cada vez mais, destruindo famílias, sem contar com a cooptação de
crianças e adolescentes para as trincheiras do tráfico, sempre ao argumento
e que, por não constar no rol daqueles atos infracionais passíveis de inter-
nação, são postos, imediatamente em liberdade, retornando as crianças e
adolescentes seu lugar de destaque no tráfico de entorpecentes [...] a medida
é a mais recomendável a ser aplicada, considerando a conduta dos mesmos e
para que não voltem a delinquir, tornando-se profissionais dos tráfico; afastá-
-los do perigo iminente de serem resgatados pelo tráfico é que tenho a medi-
da como imprescindível (SENTENÇA 25).

No caso de um ato infracional relativo a roubo, praticado pelo namorado da adolescente, que, segun-
do as testemunhas, ela só chegara, procurando-o (porque estava grávida e intuíra que algo estava aconte-
cendo, narra a adolescente), quando o roubo já estava consumado, a opinião judicial é que “trata-se de ato
infracional de natureza grave, praticado mediante violência e grave ameaça contra a pessoa, sendo conduta
extremamente reprovável, reclamando, portanto, rígida intervenção estatal” (SENTENÇA 21).

Em relação à prática de homicídio em que a magistrada reconhece não ter sido a adolescente a dis-
parar a arma de fogo, e que coube a ela, somente, “atrair a vítima para emboscada”, tem-se que:

A conduta infracional praticada pelo representado demonstra um compor-


tamento totalmente primitivo e reprovável, exorbitando os padrões normais
aceitáveis do adolescente médio. A população intimidada, chega a desacredi-
tar das autoridades, porque muitas vezes desconhecem os trâmites proces-
suais e as dificuldades com que trabalha o aparato policial. [...] entretanto
ressalto que fundamento precípuo da medida socioeducativa é a ressociali-
zação do adolescente em conflito coma lei, com a finalidade de reintegrá-lo
ao contexto da comunidade, para o seu desenvolvimento e amadurecimento
social e não como simples punição (SENTENÇA 23).

Após todo o exposto, observa-se o quanto o fato de o crime ser grave foi decisivo para a imposição da
medida socioeducativa de internação. Ou seja, a finalidade retributiva da medida acabou sobressaindo na
fundamentação das sentenças, seja esse argumento explicitamente verbalizado ou não. Todavia, dar ênfase
a um caráter retributivo não se coaduna com a ideia de Proteção Integral. Mesmo que o Estatuto não tenha
um dispositivo indicando as finalidades da medida socioeducativa – diferentemente do Código Penal, o qual
aponta as funções de reprovação e prevenção da pena (art. 59 do CP) –, é possível inferir, pelo escopo da
Proteção Integral, que o foco deve ser a integralização do adolescente à vida coletiva. Aliás, aqui se justifica a
próxima crítica, baseada na teoria da sociedade do controle.

Ora, se a infância é “universal”, a “proteção integral” conferida às crianças e adolescentes sujeitos


às medidas de proteção especial deve ser equivalente à conferida aos adolescentes sujeitos às medidas
socioeducativas. Daí ser possível afirmar que, em paralelo ao estatuído pelo art. 100 do Estatuto (relativo às

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

medidas de proteção), a aplicação das medidas socioeducativas também deve levar “em conta as necessida-
des pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
Ou seja, no que tange à medida socioeducativa de internação, deve ela – além de ser excepcional (conforme
o art. 121 do ECA) – se afastar de uma ideia retributiva, não indicada em nenhum momento pelo Estatuto.
Pelo contrário, se o foco é fortalecimento de vínculos, a meta é a integração social, e não punição.

Por mais que o ECA fale que é preciso analisar a gravidade da infração para imposição da medida (art.
121, §1º), outras questões devem ser sopesadas – como as circunstâncias e a capacidade de cumprir a me-
dida socioeducativa, indicadas no mesmo dispositivo –, sob pena de uma espécie de bis in idem: se o adulto
não pode ser submetido a regime de pena mais severo por conta da gravidade da infração, por si só (Súmula
718 do STF), porque o adolescente deveria o ser?

Portanto, impor internação porque o crime é grave, sem considerações sobre o que seria melhor para
a integralização da adolescente à vida coletiva, no caso concreto, ou sobre a sua “culpabilidade”5, não coadu-
na com a Proteção Integral – ou melhor, é prática que se opera sob o pretexto da referida doutrina. Prevalece,
assim, uma prevenção especial negativa, em seu caráter de neutralização da adolescente.

No segundo grupo, as considerações sobre a finalidade da medida socioeducativa são diversas.

Na grande maioria, volta-se à moralização e à necessidade de controle, o que fica claro quando reite-
radamente se fala em fiscalização: “a menor seja submetida a controle e fiscalização do seu comportamento”
(SENTENÇA 22); “o que sinaliza a necessidade de conduta mais enérgica, para que surta efeito pedagógico
esperado, através do acompanhamento sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 6); “acompanhamento
sistemático para que seja demonstrado orientação no sentido de reconhecer as consequências dos seus atos,
necessitando de medidas mais enérgicas” (SENTENÇA 3).

Este trecho exemplifica uma situação:

levando em consideração a gravidade do ato infracional contra a pessoa e o


perfil da adolescente, que não demonstrou arrependimento pelo fato, con-
venço-me de que a internação é a medida socioeducativa ideal, pois implica,
além da apreensão do desvalor do ato perpetrado, uma obrigatória escolariza-
ção/profissionalização da adolescente (SENTENÇA 5).

O fato de haver menção às questões pessoais das adolescentes não exclui considerações sobre a gra-
vidade do ato, de forma semelhante como feito no item anterior, mas nesse caso, com sentença proferida por
magistrado de outra comarca:

deve-se destacar a extrema gravidade do tráfico ilícito de entorpecentes que


muito contribui para o aumento desenfreado da violência vivenciado pela
sociedade e tão veemente repelida. Sabe-se que a droga não só danifica a seu
usuário, mas atinge famílias e seu mal se espalha de forma incontrolável, vin-
do a destruir lares, vidas, estando a sociedade cada vez mais contaminada por
esta destruição. Assim, qualquer ato que venha contribuir para a proliferação
deste mal deve ser repreendido e levado muito a sério, a fim de evitar que
mais pessoas venham ser atingidas e destruídas (SENTENÇA 1).

E, em razão dessa gravidade, encerra a avaliação: “não nos é permitido deixar de aplicar a medida
socioeducativa, visto ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências da prática
infracional” (SENTENÇA 1).

5  É bem verdade que inexiste, no âmbito da análise do ato infracional, a culpabilidade, que em si representa o elemento na teoria
do delito responsável pela avaliação do autor do fato. Porém, é ela imprescindível para gerar a responsabilização socioeducativa de
adolescentes em conflito com a lei, devendo ser entendida como especial capacidade de culpabilidade, fundada no princípio da
autonomia ética da pessoa humana que não pode ser utilizada como meio para outro fim, e tão somente fim em si mesma Portanto,
a imposição da medida socioeducativa “depende não apenas do desvalor do resultado, mas, principalmente, do desvalor da ação ou
omissão do adolescente, ou seja, do comportamento consciente ou negligente” (CILLERO BRUÑOL, 2011, p. 20).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Então, por ora cabe à medida “interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando
resgatar, mediante apoio técnico a sua potencialidade” (SENTENÇA 20) e, por ela, possa a adolescente “dar
direcionamento à sua vida” (SENTENÇA 4), na medida em que oferece “uma obrigatória escolarização e
profissionalização” (SENTENÇA 5), tornando-se portanto “cidadão útil” (SENTENÇA 18); por ora, cabe à
retribuição do mal praticado e até mesmo, por vezes, cabe a ela oferecer “terapias psicológicas” (SENTENÇA
16), quando a adolescente é diagnosticada por profissionais da saúde como portadora de transtornos mentais.

Todas essas situações justificam a medida, mesmo quando ela não é cabível, pois não inserida nas
hipóteses do art. 121, ECA; como foi o caso de tráfico, já tantas vezes mencionado, e o caso de um ato infra-
cional equiparado à ameaça que “por si só” não justificaria a internação, “entretanto, diante” (SENTENÇA
10) do risco pessoal, das ameaças de traficantes e dos distúrbios de conduta agravados pelo uso de drogas, a
medida está justificada.

Todas as confusões possíveis entre socioeducar, neutralizar, retribuir, são resumidas nesta passagem:
“ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências de sua prática infracional
[...] conduta mais enérgica para que surta o efeito pedagógico esperado através de acompanhamento mais
sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 11). Ou será melhor percebido neste trecho?! “Considerando a
capacidade da adolescente cumprir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração, assim como sua
personalidade e a possibilidade de entender o efeito pedagógico da medida e a ilicitude do ato pratico, tenho
por bem aplicá-la” (SENTENÇA 20).

Enfim, o que realmente quer dizer este efeito pedagógico – castigo pelo mal que fez ou complemen-
tação das problemáticas relativas à socialização? Para uma ou outra coisa, há enorme arbitrariedade. Caso
a educação seja via retribuição, o efeito da media socioeducativa é penal, sendo que este é aplicado sem
qualquer discussão sobre a culpabilidade. Por outro lado, se a finalidade educacional da medida busca suprir
lacunas de sociabilidade, abre-se espaço para as práticas “menoristas”, com violações aos direitos fundamen-
tais dos adolescentes; mas parece que, neste caso, as ilegalidades seriam justificadas em nome da proteção...

Essas contradições são repetidas, na medida em que a maioria das sentenças nega o caráter penal da
medida, porém indicam veementemente a necessidade de ser compreendido o desvalor da ação, em clara
perspectiva retribucionista.

A ideia de retribuição está presente nesta passagem: “para que possa pensar e sentir as consequên-
cias de sua prática infracional”. Mas também a indicação da necessidade pedagógica é evidenciada neste
outro trecho que se mistura com a retribuição: “implica além de compreensão do desvalor, uma obrigatória
escolarização/profissionalização” (SENTENÇA 5).

Este último caso é interessante porque não trabalha qualquer fundamento sobre a necessidade da
medida, como se homicídio fosse tão grave e suficiente por si só. Mas depois aplica a medida afirmando que
a adolescente necessita de escolarização, sem fazer qualquer referência sobre a condição escolar dela – isto
é, sem nada saber sobre a realidade da mesma, pelo menos em termos da sentença.

É como se presumisse que a medida é necessária, afinal “A medida socioeducativa deve ser pautada
na ressocialização do adolescente, com a finalidade de reintegrá-lo ao convívio da comunidade para o seu
amadurecimento e desenvolvimento” (SENTENÇA 9).

No segundo grupo, portanto, a finalidade da medida socioeducativa de educação/ressocialização é


um dos fundamentos para a escolha pela internação. A nosso ver, essa função socializadora da medida con-
substancia uma representação falaciosa dos magistrados quanto à internação, demonstrando a falta de co-
nhecimento deles da realidade das instituições, com grandes dificuldades para a efetivação de uma prática
pedagógica. Nas duras palavras de Juarez Cirino dos Santos, as medidas privativas de liberdade (art. 120 e
121 do ECA) podem ser qualquer coisa, menos socioeducativas (2001).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

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Direito(s) em debate.

Qual seria, então, o significado de ressocialização, no contexto do Estatuto, em consonância com o


princípio basilar de Proteção Integral? Neste ponto, importante destacar que coadunamos com a concepção
de Jaime Couso (2006) sobre o papel desse escopo de ressocialização: não se trata de um “fundamento” das
medidas socioeducativas, mas de um limite à aplicação delas.

Isso significa que, quando da análise de qual medida socioeducativa deve ser aplicada, é preciso ter
em mente que é impossível ressocializar uma pessoa apartando-a da sociedade, conforme é denunciado pela
Criminologia Crítica há tempos. Com efeito, denuncia-se inclusive a potencialidade criminógena do encarce-
ramento, com “efeitos dessocializantes devastadores” (RODRIGUES, 1999, p. 290). Consequentemente, a
ideia de ressocialização deve promover a redução da gravidade da medida aplicada (constituindo, pois, limite
à medida), de forma que a internação, de fato, constitua exceção.

Caso se busque uma verdadeira socialização, o que deve haver é desencarceramento, e não a prática
de fundamentar o encarceramento sob pretextos educacionais. Essa “educação”, em verdade, ao invés de
promover o aprendizado para a vida na sociedade, com respeito às individualidades, apresenta-se como dire-
cionamento de comportamentos, em que a tônica é o controle social (COUSO, 2006).

Como se percebe, as representações dos magistrados sobre as medidas socioeducativas de internação


consistem no controle da juventude, daquilo que eles consideram como sendo uma “juventude normal”.

A evidência está nas sentenças que, sob o argumento de que as adolescentes precisam das finalidades
da internação em suas vidas, a fim de que haja a Proteção Integral, descumprem o devido processo legal e
ignoram a condição de sujeitos de direito, em claro desrespeito às diretrizes constitucionais.

Na verdade, a construção metódica que concede racionalidade ao ato judicial, revestido do método
silogístico da dogmática, encobre que a imposição de medida socioeducativa tem por base questões relativas
à socialização da adolescente. Se a finalidade da medida é castigo, tem-se o efeito penal e, se é penal, está
sendo aplicada medida sem nenhuma observância da culpabilidade da adolescente; por outro lado, se o efei-
to pedagógico é para complementar as deficiências, está-se diante de um direito de menores, com violações
à legalidade, ao devido processo legal e à presunção de inocência, ao se impor um verdadeiro direito penal
do autor. Nesta prática, não se tem educação, mas apenas controle social. Esses argumentos serão melhor
tratados adiante.

Assim, os magistrados ignoram a realidade, bem como violam a Proteção Integral, ao utilizarem-se do
projeto preventivo-especial das medidas de internação se limitando à simples constatação de autoria e mate-
rialidade, para, ao cabo, determinar a internação. Não obstante o art. 122 do ECA indicar como requisito da
internação ato cometido com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de infrações graves, isso não
quer dizer que, obrigatoriamente, adolescentes os quais se encaixem nessas hipóteses devam ser internados,
até por conta da excepcionalidade da medida.

Quanto aos atos infracionais mais leves, o ideal de ressocialização, ao invés de impedir que a adoles-
cente tenha sua liberdade privada, acaba exercendo um papel inverso, justificando a internação como possi-
bilidade salvadora de educação da jovem. Todavia, conforme exposto ao longo deste trabalho, é preciso refletir
sobre que educação para sociabilidade é essa, cuja execução se dá em ambiente de privação de liberdade, em
um inegável paradoxo. Embora a ressocialização devesse buscar manter vínculos familiares e comunitários,
o que acaba por emergir é uma espécie de direito penal juvenil do autor. Desta forma se acredita que o ar-
gumento ressocializador deva ser usado para a redução da intensidade da intervenção estatal na vida dos
adolescentes em conflito com a lei.

Nesse contexto, evidencia-se como o ideal de Proteção Integral, por mais que tenha efetuado uma
ruptura histórica com o paradigma da “menoridade”, presta-se a possibilitar supressão de direitos, sob o véu
de que tudo está sendo feito em favor dos adolescentes. Diante de uma estrutura normativa tão fluida, mais
do que nunca os juristas devem estar atentos e repensar quais são suas representações sobre as finalidades da
medida socioeducativa, a fim de que a prática não se aparte das diretrizes constitucionais, e os adolescentes,
“sujeitos de direitos”, não tenham suas garantias penais e processuais penais olvidadas.

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Direito(s) em debate.

Nesse sentido, mesmo que a Doutrina da Proteção Integral represente, normativamente, um avanço
na tutela dos direitos humanos, no Brasil, a categoria menor é reatulizada, sob a perspectiva do controle.

Não obstante a mudança, para Liana de Paula (2015), a pobreza6 é uma categoria catalizadora do
tratamento do adolescente em conflito com a lei, que, em si, tornou-se um campo de discursos e práticas,
organizado em torno da criminalidade urbana. De fato, é isso que os dados apontam.

Por mais que haja uma legislação avançada, como é indicado por vários autores os quais se debruçam
sobre a matéria, a ampla discricionariedade permitida pelas normas, bem como a mentalidade jurídica no
Brasil – que permanece penalizadora e cada vez mais contrária ao ECA (PASSETI, 2010, p. 371) –, acabam
fazendo com que haja a permanência de estruturas de controle sobre os adolescentes em conflito com a lei.
Imprescindível, pois, o cuidado no trato com a Doutrina da Proteção Integral, que pode se prestar a esconder
violações de direitos fundamentais sob a retórica de proteção desses mesmos direitos.

REFERÊNCIAS

ANCHIETA, Vânia Cristine Cavalcante; GALINKIN, Ana Lúcia. Policiais Civis: representando a violência.
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DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS:


UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Erika Patrícia Ferreira dos Santos


Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES

Isabel Cristina Souza Queiroz


Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES

Marco Aurélio da Silva Freire


Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES e em Ciência Contábeis pela FAFICA.
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
professor universitário na Faculdade ASCES.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direitos Sociais; 1.1. Democracia; 2. Conselhos de políticas públicas;


Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o escopo de analisar os Conselhos Municipais de Educação como meio de
concretização da cidadania, da democracia e, por conseguinte, do fortalecimento dos direitos sociais. Para
isso, foi feita uma pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, tratar-se-á da transformação e fortale-
cimento dos direitos sociais, estes, que como veremos mais adiante, passaram por várias etapas resultantes
de vários momentos históricos. Com isso podemos dizer que os direitos sociais são produtos de um longo
processo de constitucionalização que se estende até o período atual, onde os direitos são garantidos, mas nem
todos são efetivados, necessitando, por vezes, do acionamento do Poder Judiciário ou até mesmo de normas
infraconstitucionais que garantam sua eficácia plena. Pois, sabemos que a ativação dos direitos sociais é um
meio para se atingir um mundo econômico, sócio-político e ético-cultural melhor e mais justo.

Logo mais adiante, abordar-se-á a democracia e os tipos de exercê-la, ressaltando os prós e os contras
da democracia representativa e apresentando a democracia participativa como um escape para uma demo-
cracia representativa, esta que está perdendo o respeito da sociedade. Apresentar-se-á também alguns tipos
de democracia participativa, destacando, por sua vez, os conselhos de políticas públicas. Dentre os conselhos,
merecerá destaque o Conselho Municipal de Educação, visto que a educação apresenta resultados para além
de si e podendo ser, se bem administrada, a solução para muitos dos problemas sociais e estruturais enfren-
tados pelo Brasil – como, por exemplo, as drogas, a violência e a corrupção.

No decorrer do trabalho também trataremos a respeito do funcionamento dos conselhos municipais


de educação, sua formação, como se dão as reuniões entre os membros da sociedade civil e representantes
do Estado, estas que podem ser de cunho deliberativo ou consultivo, além de analisar sua eficácia. Soma-se
a isso que serão expostos alguns dos problemas enfrentados pelos conselhos tendo em vista que muitas vezes
estes são objetos de clientelismo e coronelismo, resultam na escolha de conselheiros mal informados e pouco
representativos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais, são direitos de 2ª (segunda) dimensão, referentes à igualdade. Segundo José Afon-
so da Silva os direitos sociais são:

Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,


enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições
de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situ-
ações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito ao di-
reito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais
na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento
da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível
com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2010, p. 286-287)

Ao analisar a história dos direitos sociais, no Brasil, percebe-se que os mesmos sofreram constantes
transformações devido aos contextos históricos diversos, as mudanças demográficas e as variações nas con-
cepções político-econômicas.

Sabe-se que na década de 30, o Brasil, passava por transformações estruturais. Os altos níveis de
migrações para os centros urbanos ocasionaram problemas sociais e atingiram diretamente a infraestrutura
do país. Neste mesmo período histórico, a posse do poder estava com a elite e o Estado tinha o domínio sobre
quase tudo, instaurando um estado hobbesiano, ou seja, uma política de controle.

Esse dirigismo estatal prevaleceu até o governo Dutra, pois, surgem nesse período histórico movi-
mentos sociais e associações civis que tinham, dentre outros objetivos, reivindicar ao Estado, a ampliação
dos direitos sociais. Instala-se no Brasil, então, um resquício de democracia, onde será marcado por grandes
conquistas como, por exemplo, ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários.

Porém, em 1964, com a instalação do regime ditatorial, ocorre a extinção dos direitos políticos e civis,
que, por conseguinte, prejudicou a manutenção de alguns direitos sociais. Ainda no ano 1967, grande parte
da sociedade não tinha acesso aos seus direitos fundamentais, mesmo estes sendo garantidos no artigo 150
da Constituição de 1967, e dos direitos sociais previstos no artigo 158.

Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, garantindo a redemocratização. Porém, como
é sabido, nem todos direitos sociais por ela ofertados foram implementados, tornando-se um período de “po-
lítica social sem direitos sociais” (VIEIRA, 1997, p. 14).

Sabe-se que até os dias atuais alguns direitos sociais não são efetivados necessitando, por vezes, acio-
nar o Poder Judiciário para concretização desses direitos. De acordo com Barroso:

O judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos


direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusi-
ve em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramarjoritária, nessas
hipóteses, se dará a favor e não contra a democracia (BARROSO, 2009, p.
346).

Para Peter Häberle, há uma relação umbilical entre a democracia e os direitos sociais na constituição
de um Estado Democrático de Direito, sendo exigidos pela democracia os direitos sociais, além destes serem
necessários para participação política. Infere-se, portanto, que os direitos sociais devem servir para o controle
da política por parte dos cidadãos, sendo assim o pressuposto básico da democracia.

1.1 DEMOCRACIA

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Entende-se por democracia o exercício dos princípios da cidadania e da soberania popular. Ou seja,
democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo1. Segundo Norberto Bobbio em “O Futuro da Demo-
cracia”, a democracia é caracterizada:

Por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem


quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimen-
tos. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo
como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos
(um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso
que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetu-
dinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as
decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais
procedimentos (BOBBIO, 1986).

Podemos classificar a democracia de modo geral em: direta, indireta ou semidireta. Na democracia
indireta ou representativa, o povo, o soberano, escolhe seus representantes, outorgando-lhes poderes para
que por eles e para eles governem o país. Enquanto que na democracia direta o poder é exercido pelo povo,
sem representações. Já na democracia semidireta ou participativa, haverá representatividade e a participa-
ção direta do povo nos atos estatais. De acordo com Robert Dahl é possível definir alguns critérios de um
processo democrático:

• Participação efetiva. Antes de ser adotada uma política pela associação,


todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer
os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta
política.
• Igualdade de voto. Quando chegar o momento em que a decisão sobre a
política for tomada, todos os membros devem ter oportunidades iguais e
efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais.
• Entendimento esclarecido. Dentro de limites razoáveis de tempo, cada
membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as
políticas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas
prováveis consequências.
• Controle de programa de planejamento. Os membros devem ter a opor-
tunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questões
que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democráti-
co exigido pelos três critérios anteriores jamais é encerrado. As políticas
da associação estão sempre abertas para a mudança pelos membros, se
assim estes escolherem.
• Inclusão dos adultos. Todos ou, de qualquer maneira, a maioria dos adul-
tos residentes permanecentes deveriam ter o pleno direito de cidadãos
implícito no primeiro de nossos critérios. Antes do século XX, este critério
era inaceitável para maioria dos defensores da democracia. Justificá-lo
exigiria que examinássemos por que devemos tratar os outros como nos-
sos iguais políticos. (DAHL, 2001)

Pode-se perceber, porém, que muitos desses critérios elencados por Dahl ainda não são plenamente
concretizados, precisando, por vezes, democratizar a democracia. No Brasil criou-se uma cultura onde os
políticos são vistos pela população como uma classe superior e inatingível, distanciando, desta forma, o polí-
tico do contexto social.

Tal fato atinge então a democracia representativa, visto que com o distanciamento do representante,
político, do representado, sociedade, aquele usa o poder como meio de satisfação dos próprios anseios ou até

1  SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 31ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 2014

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mesmo como instrumento de dominação da classe dominante, esta que lhe rendeu ou renderá mais votos
para que possa ser reeleito. Quanto a isso Norberto Bobbio faz uma crítica direta:

As democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais


por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem
estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral,
uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu
mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente pe-
rante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses
gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela
categoria. (BOBBIO, 1986)

Sendo assim, forma-se uma nova classe, a dos políticos de profissão. Estes vivem para política e da
política, buscando sempre a manutenção do poder e os interesses particulares, esquecendo-se, por sua vez,
das necessidades do soberano, o povo.

Como escape para uma democracia representativa em crise, tem-se a democracia participativa ou
direta, onde os cidadãos poderão participar ativamente das políticas públicas e fiscalizar os atos estatais. De
acordo com Fernando Novelli Bianchini, entende-se por democracia participativa:

O processo político que possibilita e estimula a participação do cidadão e de


sua comunidade, via de regra de forma direta e por vezes de forma semidi-
reta, na elaboração da vontade e dos atos próprios do governo já construído,
em suas tarefas legais e administrativas, descartando a representação por
meio de uma assembleia eletiva para tanto. Em sua essência a democracia
participativa é caracterizada por um conjunto de pressupostos normativos
que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida cole-
tiva dentro de uma agenda previamente determinada de assuntos. Pode-se
afirmar que a democracia participativa impõe o exercício da cidadania nos
atos de governo, significando, em última análise, um sistema no qual os ci-
dadãos possam efetivamente participar das decisões políticas fundamentais.
(BIANCHINI, 2009, p. 15)

Há alguns instrumentos para efetivação da democracia participativa. Os mais comuns citados pela
ciência política e jurídica são: referendo, projeto de lei de iniciativa popular, orçamento participativo, audiên-
cias públicas, ação popular, conselhos de políticas públicas, entre outros. Merecerá destaque e será abordado
mais adiante, os conselhos de políticas públicas, mais especificamente, os conselhos municipais de educação.

Insta salientar, todavia, que a democracia participativa e a democracia representativa devem ser
desenvolvidas respectivamente, visto que são complementares. Dessa forma, haverá a concretização dos
princípios da soberania, da cidadania e da democracia, instaurando assim um legítimo Estado Democrático
de Direito.

2. CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

A participação da sociedade nos atos do governo é algo recente, principalmente, na gestão de políti-
cas públicas. Como já foi dito, a democracia sempre esteve muito limitada ao voto direto e após essa decisão
a população passava apenas a agir de forma passiva dentro das relações estatais. Políticas públicas são aqui
entendidas como ações do governo que objetivam a inclusão social, seus elementos principais são:

possibilitam a distinção entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato


faz; envolvem vários níveis de atores e decisões, incluindo participantes in-
formais; são abrangentes e não se limitam a leis e regras; são ações intencio-
nais, com objetivos e metas a serem cumpridas; costumam produzir impacto
em logo prazo.” (SOUZA, Celina. 2006, p. 24).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Com o déficit de participação advindo da democracia representativa, a partir da década de 90


começam a surgir outros mecanismos de participação que iriam além do voto. podemos citar como exemplo
os conselhos, que devem ter preferencialmente formação paritária entre membros da sociedade civil e mem-
bros do poder público. Deu-se a esses conselhos competência para programar e fiscalizar políticas públicas
desenvolvidas pelo governo.

A participação do povo na gestão da coisa pública reflete algumas implicações:

1. A participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democrati-


zando o sistema decisório.

2. A participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um
avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas; e

3. A sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações


estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no interesse
público.2

O conceito mais apreciado dos conselhos de políticas públicas é o de Maria da Glória Gohn, onde são
definidos como “canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder pú-
blico estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos”. (GOHN, 2001, p. 7). A nossa análise
permeia na relação desses conselhos com a efetivação da democracia, percebemos até aqui que esses órgãos
permitem de fato a presença de entes não governamentais, que se caracterizam como atores informais e que
são garantidores da participação que concretiza os direitos sociais constitucionalmente dispostos.

Dessa forma, a constituição Federal de 1988 estabeleceu em diversas nor-


mas a obrigatoriedade da cooperação entre a sociedade civil e as instâncias
de governo, que ocorre ordinariamente por meio dos Conselhos de Políticas
Públicas, para: (1) o planejamento municipal (art. 29, XII); (2) a gestão da
seguridade social que compreende um conjunto integrado de ações de ini-
ciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social, deve se pautar pelo
caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos
aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (inciso IV, parágrafo único,
art. 194); (3) assegurar a participação da comunidade na gestão das ações e
serviços públicos de saúde que devem integrar uma rede regionalizada e hie-
rarquizada e constituem um sistema único (art. 198, III); (4) a participação
da população, por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações em todos os níveis, das ações governamen-
tais na área da assistência social realizadas com recursos do orçamento da
seguridade socialv(art. 201, II); (5) a gestão democrática do ensino público
(art. 206, VI); (6) participação de entidades não governamentais em progra-
mas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem,
promovidos pelo Estado, mediante políticas específicas (art. 227, parágrafo
1º.). (ALVES, 2013, p. 234.)

Com isso podemos afirmar que os Conselhos de Políticas Públicas são órgãos do poder público de
composição preferencialmente paritária entre o governo e a população, estão previstos na constituição e
garantem a participação social efetivando direitos sociais. São várias as áreas de atuação desses conselhos,
podemos destacar o Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional de Política Criminal e Previ-
denciária, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Conselho Nacional de Educação entre outros. Decidi-
mos especificar nosso estudo ao Conselho de Educação no âmbito municipal. Esclareceremos aqui que nossa
escolha tem fundamento na grande importância da educação, não só no contexto social atual, mas também,

2  SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Participação Social, Conse-
lhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. P. 375.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

no futuro, já que os resultados originados das deliberações feitas nesse conselho são de caráter mediato, ou
seja, têm um longo prazo para se efetivar e atinge a maior parte da população, tanto quem está diretamente
ligado às questões educacionais, (pais, alunos e professores), quanto os que indiretamente são atingidos por
meios de reflexos, pois, a educação é importante para se construir um mundo sócio-político, econômico e
cultural melhor.

Além das áreas de atuação os conselhos podem ser analisados a partir de sua função, destacamos as
mais importantes na esfera do CME, função deliberativa, quando os conselheiros podem decidir de forma
direta sobre matérias específicas e elaborar normas de estruturação das políticas sociais no respectivo âmbito
de atuação, e a função consultiva, quando os membros emitem parecer, quanto às questões propostas, que
vão influenciar nas decisões que serão tomadas mais a frente, é uma maneira de assessorar as deliberações.
O exercício dessas funções permite que, de forma direta, a população possa interferir na construção e toma-
da de decisão por parte do Estado. Faz-se necessária a existência de discussões dentro desse conselho, pois
só assim podemos subentender que está havendo ponderação de direitos, não se preza o consenso rápido e
imediato, e sim, a forte deliberação, pois, por ser formado pela sociedade e pelo poder público esse órgão tem
por princípio de constituição a representatividade e o respeito às diferentes vontades.

Entretanto, não podemos inferir que a existência do conselho efetiva e concretiza de fato a demo-
cracia, é preciso analisar a eficácia de sua atuação, “quando se compreende eficácia como capacidade de
deliberar, controlar e fazer cumprir suas decisões”. (CARVALHO E TEIXEIRA, 2000, P. 93). Sabe-se que a
escolha dos conselheiros não é feita através do voto, dessa forma eles não se sentem obrigados a deliberar e
correspondendo anseios sociais como forma de recompensa ao voto.

Quanto à representatividade, é difícil assegurar que a escolha dos conselheiros seja democrática, sob
a perspectiva da sociedade civil, da mesma forma que os membros não estão sujeitos a quaisquer processos
de controle e responsabilização. Os representantes populares nos conselhos não são submetidos a qualquer
procedimento de legitimação substantiva, já que não são eleitos pelo voto universal, e por isso não recebem
uma delegação explícita, como seria desejável em qualquer regime democrático. (ALVES, 2013, p. 238.)

Sendo escolhidos por sua relação com as entidades ou setores da sociedade representados, com os
quais devem manter um processo de interlocução permanente, os conselheiros representantes da população
devem corresponder com as necessidades apresentadas pelo setor social, já que, estes estão ligados e são
beneficiados com as escolhas tomadas. Então, em contraposição ao que foi trazido pelo autor, acreditamos
que a escolha dos conselheiros pode beneficiar a efetivação democrática, mas, se esses representantes deli-
beram conforme sua vontade a eficácia estará será reduzida. Somado a isso, é importante analisar se há um
conhecimento por parte da sociedade sobre a existência desse órgão, muitas vezes a falta de eficácia está
atrelada ao pouco envolvimento da sociedade civil no conselho, isso pela falta de divulgação das reuniões e
da importância funcional do mesmo.

CONCLUSÃO

A implementação de uma política pública por parte do Estado, faz garantir um direito de cidadania,
por meio da participação da sociedade civil, que assegura a manifestação da vontade social ante as decisões
da coisa pública. É perceptível que esse direito é um direito político, mas precisamente a democracia, pois:

considerando que a democracia só pode acontecer em contextos igualitários,


em que as condições de participação e deliberação pública são precedidas por
condições materiais assecuratórias de que a esfera pública irá se constituir
a partir de atores não meramente formais, os direitos fundamentais sociais
se constituem em verdadeira condição material de ocorrência do político.
(ALVES, 2013, p. 256).

Dessa forma, podemos olhar para os conselhos municipais de educação e enxerga-los como órgãos
que permitem a participação popular e concretizam os direitos dispostos na Constituição Federal, como traz

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Leonardo Avritzer (2009, p. 146) “a criação de conselhos como mecanismo institucional para dar concretude
ao direito constitucional à participação, entendida, assim, como a intervenção efetiva da sociedade na formu-
lação, implementação e controle da política pública”.

Os conselhos podem ser considerados como uma das mais avançadas formas de exercício da demo-
cracia, ele garante a participação e a interferência da população, que por um longo tempo foi agente passiva
na política de decisão, e que agora é vista como ativa dentro do processo de formação e tomada de decisão de
assuntos que dizem respeito à gestão da coisa pública.

Entretanto não podemos nos prender tão somente a existência do conselho, é preciso verificar como
está se dando sua atuação e assim, confirmar se a concretização dos direitos sociais é garantida através desse
órgão, que permite um diálogo permanente entre a sociedade civil e o poder público. É de grande importân-
cia a construção desses conselhos no âmbito municipal, porém, ainda mais valioso é o interesse da sociedade
em procurar manter a eficácia desse órgão, seja por meio da fiscalização ou por meio da participação direta
dos conselheiros da sociedade civil, que podem garantir essa eficácia deliberando conforme as necessidades
da população que tem relação com a área de atuação do conselho. Portanto, os conselhos devem constituir-se
“como o espaço legítimo de interlocução e de deliberação, com presença constante nas reuniões, e o devido
respeito à autonomia dos membros da sociedade civil”. (AVRITZER, 2009, p. 150)

No que diz respeito à eficácia dos conselhos, os grandes obstáculos apresentados são justamente a
escolha dos conselheiros e a falta de envolvimento por parte da sociedade civil, é notável ainda que a forte
presença autoritária do Estado muitas vezes orienta as relações estatais sociais, esse é um problema presente
nas mais diversas formas de efetivação da democracia participativa.

Por fim acrescentamos a necessidade de movimentos sociais para a construção de políticas públicas
que realmente funcionam, pois, aquelas que veem de forma imposta pelo Estado na maioria das vezes apre-
sentam caráter de anexos da atuação do poder público. A pressão social é responsável também pelas ações do
Estado, e quando esse se compromete a atender a demanda social a população deve continuar agindo para
que essa ação continue com efeito qualitativo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL


PÓS 88

Eriverton Felipe de Souza


Bacharelando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Monitor
da Disciplina de Direito Constitucional III na mesma Instituição de Ensino. Estagiário da
Procuradoria Regional da República da 5ª região.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A jurisdição constitucional no Brasil pós 88: breves apontamentos; 2. O


Poder Legislativo e a Jurisdição Constitucional: eficácia subjetiva das decisões no controle de consti-
tucionalidade; 3. A reação/superação legislativa; 4. O efeito backlash como impulsionador da reação/
superação legislativa; 5. Considerações finais; Referências

INTRODUÇÃO

É de larga sapiência que o Poder Judiciário vem exercendo um protagonismo em relação aos demais
Poderes constituídos nas democracias contemporâneas, pelo menos no lado ocidental do globo terrestre,
isso vem acontecendo a partir segunda metade do Século XX. Sobretudo no que diz respeito ao exercício da
jurisdição constitucional por meio das Cortes Constitucionais ou dos Tribunais Constitucionais. E no Brasil
não foi diferente, notadamente após a promulgação da atual Constituição em 1988.

Sendo assim, o presente trabalho discute a reação legislativa frente às decisões do controle de cons-
titucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Buscou-se debater quais os mecanismos utiliza-
dos para que haja uma reversão dessas decisões no âmbito do Poder Legislativo. O objetivo deste trabalho
é discutir os meios que o Poder Legislativo se utiliza para reverter tais decisões. E quais os limites a serem
obedecidos por essas reações.

A investigação bibliográfica compõe a principal metodologia utilizada neste trabalho. O tema foi pes-
quisado em teses, dissertações e artigos disponíveis na internet em revistas especializadas. Bem como se
utilizou de livros que tratam direta ou indiretamente sobre a temática. Além de se proceder ao estudo de
algumas decisões do STF e os votos de seus ministros.

O trabalho começa tratando da jurisdição constitucional e suas características no Brasil pós Consti-
tuição de 1988. Segue tratando dos efeitos das decisões no controle de constitucionalidade e sua relação com
o Poder Legislativo. Trata também do chamado “ativismo congressual” que nada mais é que a superação le-
gislativa da jurisprudência do STF. E por fim, discute-se o efeito backlash como um impulsionador da reação
legislativa.

1. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88: BREVES APONTAMENTOS;

Inicialmente convém dizer, em linhas gerais, o que viria a ser a jurisdição constitucional. Entende-se
como jurisdição constitucional a outorga de poderes jurisdicionais a determinado órgão, juiz ou tribunal,
no afã de conferir a conformidade de um ato normativo com o texto constitucional, que é o centro de onde
emana todo o ordenamento jurídico. O controle de constitucionalidade é o meio pelo qual se busca aferir essa
conformidade.

242
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No Brasil vigora um modelo hibrido de controle de constitucionalidade e essa peculiaridade faz com
que o modelo vigente aqui seja único. Como dito, o controle de constitucionalidade das leis à brasileira com-
bina aspectos de dois modelos, o desenvolvido nos Estados Unidos da América, chamado de sistema difuso ou
concreto, onde qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Sendo que nesse
caso os efeitos são interpartes. E também combina aspectos do modelo desenvolvido na Europa, idealizado
por Hans Kelsen, o sistema concentrado ou abstrato, no qual somente um Tribunal é responsável por decla-
rar a inconstitucionalidade de uma lei. Aqui os efeitos são erga omnes (contra todos) e vinculante.

Esse último recebe especial atenção, sobretudo após o advento da Constituição de 1988, porque foi
através dela que vieram as inovações que contribuíram para uma expansão da atividade do Judiciário no país,
notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde já, alerta-se que esse fenômeno ocorre no mundo
todo. Tanto a quantidade de ações do controle concentrado, bem como a variedade de assuntos e o extenso
rol de legitimados para propô-las, são fatores que influenciam no ganho de maior atividade do Judiciário em
detrimento dos demais poderes. Segundo Luís Roberto Barroso (2014, p.3-4) a jurisdição constitucional
compreende duas atuações que são feitas de modo muito particular,

A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempla-


das. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do
Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tribu-
tária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia.
A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá
quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma
norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir
a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação
conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende
o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição,
no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Po-
der Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional
conforme a Constituição.

Junte-se a isso outro fenômeno que acontece por aqui, que é a judicialização da política. Este fenô-
meno faz com que o Tribunal tenha sua atuação expandida para decidir questões que anteriormente eram
resolvidas por outros departamentos do poder político, interna corporis. Nas palavras de BARROSO (2014,
P. 4) “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo
decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder
para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o
Executivo.”

Ainda segundo BARROSO (2014, p.4) as naturezas das causas que explicam o fenômeno da expan-
são do Poder Judiciário e da Judicialização são diversas, nesse sentido:

A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte


e independente, como elemento essencial para as democracias modernas.
Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de
juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, parti-
cularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política
majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos
parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, prefe-
rem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas,
em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade.

No Brasil o fenômeno ganhou proporções maiores devido às características da própria constituição,


a qual é abrangente e analítica, o que gerou a constitucionalização do Direito1. A consequência disso aponta

1  […] constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicia-
lizáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal

243
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

BARROSO (2014, p.6), é que “quase todas as questões de relevância política, social e moral foram discutidas
ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal”.

Insta diferenciar, neste momento, o fenômeno da judicialização do ativismo judicial, embora não se-
jam objeto direto deste estudo, mas guardam com ele estreitas relações. A primeira é decorrente do modelo
de desenho institucional adotado no Brasil, já este último, em linhas bem gerais, haja vista a dificuldade de
sua conceituação, deve ser entendido como uma atitude, uma escolha deliberada do Tribunal de interpretar
a Constituição, expandindo seus poderes de atuação. Existe, nesse sentido, uma proatividade. E como bem
sabido, o ativismo pode ser tanto liberal quanto conservador.

Como decorrência da supremacia constitucional e da supremacia judicial, idealizou-se um dogma de


que o STF tem a “última palavra” em termos de interpretação constitucional, ou seja, criou-se uma preva-
lência da concepção juriscêntrica na interpretação da Constituição. Neste trabalho, parte-se da premissa de
que não há última palavra em muitos casos. Entende-se que há de fato um pronunciamento provisório do
STF em matéria constitucional que, a depender da matéria veiculada ou da repercussão obtida, pode sofrer
uma reversão. Como se pretende demostrar. Obviamente, não se quer esvaziar o importante papel que tem o
Tribunal na construção do significado da Constituição. Mas, como adverte SARMENTO (2013, p. 136-137),
”Uma decisão do STF é, certamente, um elemento de grande relevância no diálogo sobre o sentido de uma
norma constitucional, mas não tem o condão de encerrar o debate sobre uma controvérsia que seja verdadei-
ramente importante para a sociedade”.

SARMENTO (2013, p.136) ainda afirma que a premissa de o STF ter a “última palavra” lhe parece
equivocada tanto sob o ângulo descritivo quanto sob o ângulo prescritivo. Pois para ele, não é verdade que o
STF dê sempre a “última palavra” sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato, de que em muitos
casos não há última palavra. Ainda sobre o tema, assevera o referido autor,

Sob o ângulo prescritivo, não é salutar atribuir a um órgão qualquer a prer-


rogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. Definitiva-
mente, a Constituição não é o que o Supremo diz que ela é. Em matéria de
interpretação constitucional, a Corte, composta por intérpretes humanos e
falíveis, pode errar, como também podem fazê-lo os poderes Legislativo e
Executivo. É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma
instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo - o “direito de errar por
último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no
campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em
lugar da visão mais tradicional, que concede a última palavra nessa área ao
STF. (SARMENTO, 2013, p. 137)

Nesse sentido, não há se falar em última palavra, o que pode haver, em verdade, é uma estabilização
do sentido da constituição. Porque, até aquele momento, em virtude da controvérsia que a envolvia, já que
os desacordos não haviam cessado. Além de que, quando se fala em “última palavra” somos remetidos a uma
ideia de sobreposição, de imposição de vontade de um Poder sobre o outro. Algo que em um ambiente demo-
crático não parece acertado. Como bem salienta Juliano Zaidan BENVINDO (2014, p.81)

A tese a ser defendida é que a própria construção argumentativa de algum Poder ‘de-
tentor da última palavra’ é, por si só, uma afirmação que aparece como discurso por
mais poder. Até porque não existe, em uma democracia constitucional, que prima
pela cidadania, um órgão que possa arvorar-se o detentor da última palavra.

2. O PODER LEGISLATIVO E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: EFICÁCIA SUBJETIVA DAS


DECISÕES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

por via de ações diretas. ( BARROSO,2014, p.6)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A eficácia subjetiva das decisões do controle concentrado de constitucionalidade é erga omnes (con-
tra todos) e vinculante, segundo previsão do art. 102, § 2º da CFRB/88. Contudo, tais efeitos dizem respeito
relativamente, além dos particulares, aos demais órgãos do Poder judiciário e a Administração Pública, direta
e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Dessa forma, caso haja algum descumprimento caberá
reclamação perante o STF. Deve-se lembrar também que essas decisões não vinculam o próprio Tribunal
que, mais tarde, pode rever o seu posicionamento em virtude de mudanças de ordem econômica , política
ou até mesmo social. Inclusive, uma mudança na composição do próprio Tribunal.

Conforme se nota, o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não está vinculado às decisões
do STF em sede de controle concentrado. Nessa toada, o Legislativo poderia editar nova lei com o conteúdo
idêntico ao que fora declarado inconstitucional pelo STF ou, no exercício do poder constituinte reformador,
editar uma emenda à Constituição visando a reversão da jurisprudência da Corte. Isso evita que haja um con-
gelamento da Constituição. E atente-se ao fato de que, nesse caso, não é cabível uma Reclamação. Trata-se
exatamente do espaço de livre conformação do legislador, o qual não sofre influencia dos efeitos do controle
de constitucionalidade.

Essa reação legislativa não necessariamente ocasionará na inconstitucionalidade, de pronto, da emen-


da ou lei editada. Isso porque, como fora dito a pouco, o legislador tem certa liberdade. E além de que ,existe
um potencial epistêmico na reação legislativa que contribui para um diálogo entre os Poderes. É claro que
o Legislativo pode não vir a contribuir com um melhor entendimento do texto constitucional. Mas também
é verdade que a interpretação dada por ele poderá trazer novas luzes a determinada temática de elevada
controvérsia constitucional. A esse respeito, transcreve-se o entendimento de Mariana WILLEMAN (2013,
p.II-23), que pontua:

De fato, reconhecer que juízes e legisladores ostentam condições de partilhar


a interpretação constitucional de maneira dialógica, mediante o estabeleci-
mento de uma relação consideração recíproca para o exercício de tal respon-
sabilidade, representa grande avanço em termos interpretativos e de busca
por efetividade da Constituição. E assim o é não apenas porque tais instân-
cias encontram-se situadas institucionalmente de maneira diversa, mas tam-
bém porque cada uma delas pode trazer perspectivas distintas e valiosas para
os conflitos constitucionais exatamente em função dessas características e
responsabilidades institucionais distintas.

Dessa forma, frente à reação/superação legislativa da jurisprudência, existem, dois caminhos a se-
rem tomados pelo STF. Ou o Tribunal revê a sua jurisprudência, acatando os novos argumentos apresentados
pelo Legislativo ou o Tribunal reafirma sua jurisprudência, fazendo prevalecer seu entendimento. Não se
busca defender a ideia de que o Legislativo tem o poder irrestrito e pleno, ao discordar de uma decisão do
STF. Pelo contrário, se quer defender o entendimento de que existe a possibilidade do Tribunal errar, e em
isso ocorrendo, o Legislativo também é um importante intérprete da Constituição. O que se quer dizer é que
toda e qualquer tentativa de superar a jurisprudência do Tribunal é legítima.

Há nesse caso, a devolução ao Legislativo da oportunidade de conformação legislativa. E em assim


sendo, assevera ROTHEMBURG (2007),

Essa atitude pode não revelar apenas um episódio de teimosia, mas uma
reapreciação ponderada da situação, com a consideração dos argumentos
tecidos em sede de jurisdição constitucional. Se, após o momento 1, em que
o Legislativo editara a norma com a qual expressara sua interpretação da
Constituição (no espaço de conformação legislativa dado por esta), o Judici-
ário, no momento 2, declarara a inconstitucionalidade dessa norma, fazendo
a sua interpretação da Constituição, o momento 3 pode aparecer como a
síntese de um processo democrático de instrução e reflexão, de avaliação das
expectativas da sociedade, em que o Legislativo conclui pelo acerto de sua
opção original (momento 1), produz outra norma semelhante ou idêntica
àquela, e essa opção é enfim aceita pelo Judiciário.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A prática da superação das decisões constitucionais do STF mostra-se como um instrumento viável
de comunicação das preferências do povo e de seus representantes com o STF. Dessa forma, tem-se uma
espécie de accountability e uma abertura do processo de interpretação e aplicação da Constituição (BRAN-
DÃO, 2012, p.304-305).

3. A REAÇÃO/SUPERAÇÃO LEGISLATIVA;

Tendo em vista que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o Poder Legislativo,
como já mencionado, então entende-se como natural a ocorrência de uma eventual reação com o objetivo de
superar tais decisões. Assim, tem-se a chamada Reação ou superação legislativa da jurisprudência.

Reação legislativa ou superação legislativa da jurisprudência é o ato praticado pelo Poder Legislativo
em contrariedade às decisões do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. É o que tem
sido considerado como sendo uma espécie de “ativismo congressual”. Sob esse ponto de vista o Congresso
Nacional visa reverter as decisões de inconstitucionalidade do STF, onde fiquem evidentes situações de au-
toritarismo judicial ou comportamento antidialógico, incompatível com a separação de poderes. Pode ocorrer
por meio de Emenda à Constituição ou por meio de edição de lei ordinária superadora. Sobre a temática
assim se pronunciou o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) , relator da ADI 51052:

Por uma vertente descritiva, há diversos precedentes de reversão legislativa


a decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional,
seja por lei ordinária, que per se desautorizariam a concepção de última
palavra definitiva. Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na
realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e,
por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde
que, é claro, observados os balizamentos constitucionais.

De início, pode-se entender que uma situação de autoritarismo judicial ou comportamento antidia-
lógico esteja relacionada com uma decisão classificada de ativista, mas nem sempre uma decisão tida por
ativista, necessariamente, significa um autoritarismo judicial ou um comportamento antidialógico, já que
muitas vezes esses tipos de decisão visam salvaguardar direitos fundamentais ou proteger as regras do jogo
democrático. Ou seja, são decisões necessárias às concretizações de determinados direitos.

Na decisão supramencionada o Tribunal buscou delimitar o espaço de conformação do legislador


para proceder às correções jurisprudenciais. Para tanto, fez uso de dois argumentos, o primeiro foi de que, do
ponto de vista do Estado de direito, não se quer deixar vulnerar o conteúdo da Constituição, e o segundo, do
ponto de vista democrático, pretende-se não fossilizar o sentido das disposições constitucionais. Percebe-se
que foi o próprio Tribunal o responsável por tornar mais clara as limitações à reação legislativa, baseado em
sua própria jurisprudência.

A Constituição de 1988 confiou ao STF a faculdade de invalidar qualquer lei ou ato normativo prove-
niente das instâncias políticas majoritárias. Nesse caso, o Tribunal exerce uma de suas funções que é a con-
tra majoritária. O que sob a ótica formal tornaria o Tribunal o detentor da última palavra. Tudo isso porque,
de um ponto de vista democrático, os seus pronunciamentos não se sujeitam a qualquer controle posterior.
Ocorre que tal entendimento se mostra equivocado, como bem salienta o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) em
seu voto, e assevera:

Sucede que, a despeito desse arranjo, não se pode advogar que o arquétipo
constitucional pátrio erigiu um modelo de supremacia judicial em sentido

2  As disposições impugnadas na referida ADI decorreram de superação legislativa da interpretação conferida pelo Supremo Tri-
bunal Federal ao art. 47, § 2º, II, da Lei nº 9.504/97, nas ADIs 4.430 e 4.795, ambas de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli.
Naquela oportunidade, o Plenário deu interpretação conforme ao indigitado preceito da Lei das Eleições, no afã de salvaguardar
aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois
terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Meses depois, o Congresso Nacional editou a Lei
nº 12.875/2013, a qual veiculava as disposições combatidas na ADI 5105/DF.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

forte ( ou material), de vez que, além de equivocada, sob a ótica descritiva,


não se afigura desejável sob o ângulo prescritivo.

Os mecanismos por meio dos quais o Congresso Nacional pratica esse “ativismo congressual” são as
Emendas Constitucionais e as Leis Ordinárias, cada qual com suas limitações. No caso das “emendas su-
peradoras”, essas encontram obstáculos, e poderão ser declaradas inconstitucionais, quando não respeitar
as cláusulas pétreas ou o procedimento necessário para a sua aprovação, conforme previsão do art. 60 da
CFRB/88. Ou seja, quando houver desrespeito aos limites materiais (cláusulas pétreas) , formais, objetivos e
subjetivos, e circunstanciais, aos quais o poder reformador está submetido. Aliás, a exemplo do que já acon-
tece normalmente com as emendas. Sendo que no caso ora apresentado, ela visa superar jurisprudência do
STF sobre determinada matéria.

Poder-se-ia considerar esse como sendo um caminho mais curto para mudar o entendimento firma-
do no âmbito do STF que tenha causado alguns dissabores. Ocorre que uma “emenda superadora” não pode
simplesmente visar tal objetivo sem que para isso apresente significativas justificativas e excelentes argu-
mentos passíveis de contribuir, verdadeiramente, para a solução mais adequada de determinada controvérsia
constitucional. Sob pena de ser taxada de puro revanchismo ou de instrumento na disputa por mais poder
político.

No que diz respeito aos limites materiais, não fica claro no julgamento mencionado, mas entende-se
que tal limitação compreende tanto as cláusulas pétreas explícitas quanto as implícitas. Sobre as “emendas
superadora”, WILLEMAN (2014, p. II-16), assim se posiciona:

À luz do modelo constitucional brasileiro de 1988, fortemente baseado na


supremacia judicial da interpretação constitucional, a resposta do legislativo
a uma decisão do STF em matéria constitucional demanda, via de regra, a
atuação do poder constituinte derivado, por meio da aprovação de emenda à
Constituição. Assim, o Congresso Nacional manifesta sua divergência para
com a interpretação conferida pelo STF a uma norma mediante a reforma
do próprio parâmetro de controle, com a ressalva de que tal expediente ape-
nas se revela possível nos casos em que não haja qualquer cláusula pétrea
envolvida.

Em seu voto na ADI 5105/DF o Ministro busca inventariar todas as hipóteses de reação legislativa
pela via das emendas superadoras e para isso enumera alguns casos paradigmáticos como as EC’s 41/20033,
52/20064, 57/20085 e a 58/20096. Todas sofreram uma apreciação posterior perante o tribunal, embora não
tivessem sido capazes de mudar a jurisprudência firmada e terem sido declaradas inconstitucionais por
violarem os limites há pouco mencionados. Mas serviram como tentativas de promoção de superação da
jurisprudência do Tribunal que atestam a ocorrência, legítima, da prática da reação legislativa. Há, porém,

3  [...]a EC nº 41/2003 dispôs expressamente que as vantagens pessoais estariam albergadas no cômputo do teto remuneratório,
bem como consagrou a autoaplicabilidade do novo teto, em tentativa de superar o entendimento fixado por esta Suprema Corte,
que apontava exatamente em sentido oposto.
4  A mencionada EC estabeleceu a plena e imediata autonomia dos partidos políticos de formarem coligações sem vínculos entre
as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal e o Tribunal, na ADI nº 3.685, entendeu pela verticalização
das coligações partidárias para as eleições gerais de 2006, prestigiando, em consequência, a interpretação fixada pelo Tribunal
Superior Eleitoral ao art. 6º da Lei das Eleições, materializada na Resolução nº 21.002/2002 (STF, ADI nº 3.685, rel. Min. Ellen
Gracie, DJ de 10/08/2006).
5  Referida emenda exsurgiu no contexto em que reconhecida, pelo STF1, a inertia deliberadi do Congresso Nacional para pro-
mulgar a Lei Complementar, a que se refere o art. 18, § 4º, da CRFB (redação dada pela EC nº 15/96), que deveria disciplinar os
critérios de criação dos municípios.
6  A Emenda Constitucional nº 58/2009 também representa hipótese de correção legislativa, na medida em que objetivou su-
perar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 197.917/SP, rel. Min. Maurício Corrêa (Caso Mira Estrela) e,
posteriormente, na ADI nº 3.345, rel. Min. Celso de Mello.

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Direito(s) em debate.

outros casos em que houve a buscada reversão jurisprudencial, são exemplos as emendas 19/19987, 29/20008
e 39/20029. E como não houve ofensas aos limites já mencionados, não restou alternativa ao Tribunal que
não a de aceitar a manifestação legítima, do Poder Constituinte reformador como tendo o argumento mais
adequado.

Em se tratando das leis ordinárias superadoras, essas deverão comprovar que as premissas fáticas e/
ou jurídicas sobre as quais se fundaram a decisão do STF no passado, deixaram de existir. Nesse último caso,
em que há colisão com a jurisprudência do Supremo, a lei nasce com uma presunção relativa de inconstitu-
cionalidade que deverá ser aferida por meio próprio, embora mais rigoroso, e não tida por inconstitucional de
pronto, tendo em vista o potencial construtivo da espécie. Quando se tratar de lei ordinária superadora como
assevera FUX (2015, p.17) “caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção
do precedente se afigura legítima”.

Deve-se atentar ao fato de que se assim proceder, o Legislativo poderá contribuir para que haja uma
mudança de entendimento jurisprudencial ou pode ser que a lei superadora sirva apenas para que o Tribunal
possa confirmar que o seu argumento é o mais acertado. O que não se pode negar é esse ambiente de diálogo
entre os Poderes. Esse também é o entendimento adotado por Rodrigo BRANDÃO (2012, p.302), in verbis:

Desta forma, tanto na hipótese de lei idêntica à declarada inconstitucional


pelo STF quanto na de lei que veicule interpretação constitucional diversa
da atribuída pelo STF, deveria o Tribunal reexaminar o conteúdo das novas
leis, podendo manter o seu entendimento anterior (declarando, portanto, a
inconstitucionalidade das leis) ou aderir às novas razões trazidas pelo legis-
lador( pronunciando, assim, a sua constitucionalidade). Contudo, tais leis
nasceriam presunção relativa de inconstitucionalidade, diante da sua incom-
patibilidade com a atual interpretação constitucional do STF.

O relator também menciona um caso paradigmático em que a reação se deu por meio de lei ordinária,
como é o caso da Lei nº 10.628/200210 que tivera sua constitucionalidade questionada na ADI 2797, DJE
19/12/2006, cuja relatoria coube ao Ministro Sepúlveda Pertence. O caso merece tal destaque porque na
ocasião de seu julgamento foram apresentados vários argumentos e fundamentos, os quais tornam evidente
que ao legislador é franqueada a capacidade de interpretação da Constituição, a despeito de decisões de in-
constitucionalidade do STF. Da análise dos citados diplomas, o Ministro relator chega a seguinte conclusão:

7 “Por meio da Emenda Constitucional n. 19/98, conhecida como ‘reforma administrativa’, o legislador constituinte derivado
claramente pretendeu revisitar a interpretação conferida pelo STF à abrangência do denominado teto remuneratório do funcio-
nalismo público. Isso porque, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal no julgamento da ADI n. 14, não
deveriam ser computadas, para fim de aferição do teto previsto no artigo 37, inciso XI, da CRFB, as vantagens de caráter pessoal.
Em resposta, a Emenda Constitucional n. 19/98, dentre outras providências, alterou a norma para deixar expresso que as referidas
vantagens de índole pessoal incluem-se no limite máximo remuneratório.” WILLEMAN (2014 p. II-17)
8  “Da mesma forma, a Emenda n. 29/2000 traduziu inequívoca reação legislativa à jurisprudência firme do STF no sentido da
inconstitucionalidade de alíquotas progressivas de IPTU que levassem em consideração a capacidade econômica do contribuinte.
De acordo com o pacífico entendimento da Corte, sendo o IPTU um imposto de natureza real, a progressividade de suas alíquo-
tas não poderia decorrer de critérios atinentes à capacidade econômica do contribuinte, admitindo-se a progressividade apenas
para o fim extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade (à luz do artigo 182, §4º, inciso II, da CRFB).”
WILLEMAN (2014, p. II-17)
9 “ Por fim, também a Emenda Constitucional n. 39/2002 pretendeu reverter um posicionamento do STF, novamente em maté-
ria tributária. Tratava-se, dessa vez, de descontentamento com os precedentes – sumulados no Enunciado n. 67049 – do Tribunal
que rejeitavam a possibilidade de o serviço de iluminação pública ser custeado por meio de taxa. Como forma de contornar o en-
tendimento consolidado, aprovou-se a referida emenda que expressamente passou a contemplar a possibilidade de instituição de
contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública – em franca reação à jurisprudência constitucional que considerava
que o serviço deveria ser suportado por meio da receita de impostos.” WILLEMAN (2014, p. II-18)
10  Mencionado diploma alterou o art. 84, §§ 1 e 2º, do Código de Processo Penal, a fim de restabelecer o foro por prerrogativa de
função a ex-detentores de cargos ou mandatos eletivos. À época, a orientação consolidada na Corte era no sentido de que o término
do mandato implicaria, consequentemente, a perda do foro aos ex-ocupantes de cargos político-eletivos, orientação firmada pelo
STF no julgamento da Questão de Ordem no Inquérito nº 687, rel. Sydney Sanchez, DJ de 25/08/1997, e que culminou, como
todos sabem, com o cancelamento da Súmula nº 394. Na ocasião, o referido diploma foi declarado inconstitucional por apresentar
vício formal.

248
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

[...] (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa


pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão
jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá,
nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus
§§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordi-
nária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte
tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às
opçõespolíticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer-
supremacia judicial nesta acepção mais forte. ( ADI 5105-DF,2015, p.10)

Há de se pontuar a diferença existente entre uma emenda constitucional superadora e uma lei or-
dinária superadora, além de se tratarem de espécies normativas distintas. Na primeira há uma alteração
formal, tendo em vista que esse é o mecanismo habitual por meio do qual o Poder Constituinte reformador
se manifesta e mantém a Constituição atualizada, enquanto na segunda há uma alteração interpretattiva
do sentido que fora atribuído a determinada norma pelo Tribunal, ou seja, uma mutação constitucional por
iniciativa do legislador11. A esse propósito, assim se pronunciou BRANDÃO (2012, p.307), in verbis:

Note-se, porém, que há diferenças significativas em relação à reversão da


jurisprudência do STF por emenda constitucional e por lei ordinária. Na
primeira hipótese, há alteração formal da Constituição ,de maneira que ao
alterar-se o dispositivo constitucional interpretado pelo STF, modifica-se a
interpretação final.

O ministro FUX (2015, p.17), baseado na doutrina de Conrado Hübner Mendes, concebe o STF
como um catalisador deliberativo quando se funda em premissa dialógica e plural de interpretação da Consti-
tuição. Dessa forma, promove uma interação e o diálogo institucional, maximizando a qualidade democrática
na obtenção dos melhores resultados no que diz respeito à apreensão do significado da Constituição. E como
bem saliente WILLEMAN (2013, p.II-22),

Não parece legítimo, portanto, simplesmente coarctar a atuação legislativa e


presumir, antecipadamente, que toda e qualquer lei “corretiva” será inevita-
velmente inconstitucional por contrariar a “última palavra” ditada pela Cor-
te Constitucional. Muito pelo contrário, se o legislador ordinário manifesta
divergência com a interpretação conferida pelo STF em determinado tema
constitucional, essa circunstância não pode ser, de plano, ignorada, mere-
cendo ser encarada como uma forma de se fazer instaurar uma dialética que
atue em prol do desenvolvimento do direito constitucional.

Como já fora dito, existe um potencial construtivo na reação/superação legislativa. Isso significa que o
fato de haver a colaboração de dois atores, Legislativo e Judiciário, na busca da democratização da construção
do sentido da constituição, pode-se chegar a uma solução mais adequada. A esse propósito, registra Mariana
WILLEMAN (2013, p. II -22),

A compreensão ora preconizada acerca do fenômeno da reação ou da respos-


ta legislativa à jurisprudência constitucional busca enfatizar o potencial cons-
trutivo que divergências interpretativas naturalmente apresentam e, nesse
sentido, procura maximizar a dinâmica dialógica da jurisdição constitucional
criando espaços que propiciem a formulação de melhores respostas para as
questões constitucionais, combinando as perspectivas de variados atores de
forma a se alcançar equilíbrio em relação ao significado constitucional.

11  “Não se pode desconsiderar a hipótese de o Supremo restar convencido de ter cometido um erro no julgamento anterior,
diante da insistência e, especialmente, das novas razões expostas pelo Legislativo. Tratar-se-ia, no caso, de mutação constitucional
por iniciativa do legislador, já que o sentido da norma constitucional teria mudado, sem alteração do seu texto, por provocação do
legislador.” (BRANDÃO, 2012, p.306)

249
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

4. O EFEITO BACKLASH COMO IMPULSIONADOR DA REAÇÃO/ SUPERAÇÃO LEGISLATIVA;

Este ponto do trabalho pretende discutir a partir de qual momento e por quais razões estaria o Con-
gresso Nacional autorizado a buscar a superação de uma decisão proferida pelo STF no controle de cons-
titucionalidade. As decisões do STF, como já fora dito, produzem efeitos para além do mundo jurídico, elas
também têm desdobramentos políticos e sociais.

Da mesma forma, como já fora mencionado, além de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasi-
leiro, o STF é um Tribunal Constitucional e como tal, tem atuação política. Sendo assim, o que autorizaria o
Congresso Nacional a reagir de modo a reverter o que fora decido no âmbito daquele Tribunal? Do ponto de
vista democrático, essa reação seria legítima? Vimos que sim, essa reação é legítima. Mas quais as motivações
que levariam a uma eventual reação legislativa?

Algo que pode ser considerado um motivador para que se opere a referida reação legislativa é o que
o constitucionalismo democrático norte-americano12 chamou de Efeito Blacklash13 14. O Backlash é uma
forma de resistência contra decisões judiciais que divergem profundamente dos anseios do povo e expressa o
desejo desse povo, que é livre, de influenciar o conteúdo de sua constituição (POST, SIEGAL, 2007 p; 376).
Como salientam Robert Post e Reva Siegal (2007, p. 374), “If courts interpret the Constitution in terms that
diverge from the deeply held convictions of the American people, Americans will find ways to communicate
their objections and resist judicial judgments.”15

Nas palavras de Mariana Montebello WILLEMAN ( 2013, p.5), o efeito Backlash deve ser “[…] as-
sim considerado, no contexto do direito constitucional, o movimento de intensa reprovação ou rejeição de
uma decisão judicial, acompanhado da adoção de medidas de resistência tendentes a minimizar ou a retirar
sua carga de efetividade.”. Deve-se salientar que a resistência por traz do efeito backlash não alcança toda e
qualquer decisão judicial, é preciso esclarecer que são as decisões proveniente das Cortes ou Tribunais Cons-
titucionais e que tenham alta carga de controvérsia constitucional.

O estudo do efeito backlash não é uma total novidade no cenário internacional, pois o fenômeno da
reação social ou institucional a uma decisão originária do Tribunal Constitucional tem merecido especial
atenção na elaboração doutrinária americana dedicada ao estudo desse fenômeno (VALLE, 2015).

O Backlash desempenha uma importante função, pois desconstrói a presunção usualmente aceita
de que as decisões judiciais em matéria constitucional devem ser objeto de deferência sem protesto do Poder
Legislativo (WILLEMAN, 2013, p.6). Nesse sentido, reconhece-se que o povo pode influenciar no conteúdo
da Constituição, como dito, através seja da sociedade civil organizada, da opinião pública, de agentes go-
vernamentais ou de seus representantes no Poder Legislativo. Aliás, esses últimos, por excelência legítimos
representante do povo, com grandes chances de colher bons resultados na construção do significado da

12  “A premissa sobre a qual se baseia o constitucionalismo democrático considera que a autoridade da Constituição depende de
sua legitimidade democrática, ou seja, de sua capacidade para fazer com que seus destinatários a reconheçam como a sua consti-
tuição. Nessa linha de raciocínio, eventuais resistências a interpretações judiciais podem atuar em fortalecimento da legitimidade
democrática da Constituição e, portanto, a partir de tal perspectiva, o fenômeno do backlash ostenta um potencial construtivo que
não deve ser ignorado.”( WILLEMAN, 2013, p.7)
13  “É de Stern (1965, p. 156-157), ainda na década de 60, o registro da rotinização do emprego da palavra backlash na arena
política norte-americana a partir de reações às decisões da Suprema Corte envolvendo a proteção a direitos civis havidas na década
de 60. Post e Siegel (2007, p. 1-66) por sua vez apontam que a expressão passou a designar contra forças libertas por mudanças
tidas por verdadeira ameaça ao status quo numa reprodução bastante fiel ao conceito metajurídico acima exposto.” (VALLE, 2013)
14  “No plano coloquial, a palavra backlash tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta
a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento. O conceito inicial tem origem na física, aludindo à dinâmica, e se
identifica com a enunciação da terceira Lei de Newton - a toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. Esse
mesmo princípio se viu transposto para a realidade social, igualmente associado a uma forte e violenta reação a uma mudança
também intensa e expressiva no ambiente, nas regras de convívio, etc. A transposição desse significado verdadeiramente natura-
lístico da palavra para o campo do direito foi um desdobramento natural de sua incorporação ao universo de relações humanas:
mudanças bruscas num padrão de comportamento têm a aptidão de determinar reação de mesma intensidade, no mais das vezes
em sentido contrário.” (VALLE, 2013)
15  Tradução Livre “Se a corte interpreta a Constituição de modo que divirja profundamente das convicções mantidas pelo povo
americano, eles podem encontrar maneiras de expressar suas objeções e resistir às decisões judiciais.”

250
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Constituição, haja vista os mecanismo que tem a sua disposição (emendas constitucionais e leis ordinárias
superadora) e a possibilidade de trazer novos argumentos à discussão constitucional.

De acordo com George Marmelstein (2015), o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das
decisões judiciais constitucionais polêmicas, decorrente de uma reação do poder politico contra a pretensão
do poder judiciário de controla-lo. Assim resume o autor o processo do efeito backlash:

 (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma
decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos
fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolida-
da, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflama-
dos, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e
politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opi-
nião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da
população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador
costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões
de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o
grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspon-
dam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia
a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são
indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento
dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retro-
cesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que
havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente,
seriam beneficiados com aquela decisão.

O autor associa a ocorrência do efeito backlash ao ativismo judicial, para ele o referido efeito ocorre
a medida em que o Tribunal decide de modo mais liberal. Acredita que haverá sempre uma reação conser-
vadora a essa decisão ativista. De modo que, do seu ponto de vista, uma decisão ativista é sempre liberal e
uma reação ou superação legislativa é sempre conservadora. Em que pese o brilhantismo e a inteligência do
autor, tal entendimento não merece prosperar, pois olvidou o mesmo que existe o ativismo liberal e o ativismo
conservador. Assim, nem sempre uma reação/superação legislativa será conservadora.

Um outro importante aspecto do efeito backlash é que a possibilidade de sua ocorrência pode ser le-
vado em consideração pelos Tribunais e Cortes constitucionais como um mecanismo influenciador nas suas
decisões. Desse modo, tendo em vista os vários efeitos causados pelas decisões no judicial review, entre eles
o backlash, o Tribunal poderá ter uma postura mais ativa ou mais minimalista a depender do grau do efeito
backlash que elas podem causar. Convém destacar que no Brasil o efeito backlash tem ocorrido, sobretudo
como resposta ao aumento do protagonismo judicial exercido pelo STF. Mas por uma questão de espaço e por
não ser o principal objeto do presente trabalho, não será aprofundado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho demonstrou que não é acertado se falar em “última palavra” sobre a interpreta-
ção da Constituição, pelo menos não materialmente. E que as decisões do controle de constitucionalidade
não vinculam o legislador a ponto de impedi-lo de buscar reverter a jurisprudência do STF no controle de
constitucionalidade.

Também ficou demonstrado que além de legítima, a prática da reação legislativa buscando reverter a
jurisprudência do STF, é um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus repre-
sentantes com o Tribunal. Registra-se da mesma forma que existe um potencial epistêmico quando ocorre a
reação legislativa. E por fim, entendeu-se que o efeito backlash pode ser tido como um fator impulsionador
para que haja uma eventual reação legislativa.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Em conclusão, o propósito principal deste trabalho foi discutir, sem pretensão exaustiva, os meca-
nismos que o Poder legislativo se utiliza para reagir à jurisdição constitucional. Bem como a potencialidade
dessa reação para o fortalecimento de um quadro de diálogo entre os Poderes Legislativo e Judiciário, nota-
damente sobre o sentido da Constituição. Verificou-se que tanto por meio de emenda constitucional quanto
pode meio de lei ordinária, essa reação pode ocorrer, e as vezes de modo eficiente, vindo a contribuir signifi-
cativamente para a construção do significado da Constituição.. E que há limitações para ambas as espécies
normativas no que diz respeito ao tema por elas tratados.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Jurisdição constitucional: a tênue fronteira entre o direito e a polí-
tica. Disponível em :<http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140204-06.pdf> Acessado em :
03/12/2015.

BENVINDO, Juliano Zaidan. A última palavra, o poder e a história. Ano 51 Número 201 Jan./Mar.. 2014

BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última
palavra sobre o sentido da constituição? Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2012.

BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de ou-


tubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acessa-
do em 03/01/2016.

_________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5105/ DF. Relator:
Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 1/10/2015, Tribunal Pleno, Informativo nº 801.

MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da jurisdição Constitucional: reações políticas à atu-


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POST, Robert C.; SIEGEL, Reva B. Roe Rage: democratic constitutionalism and backlash. Faculty
Scholarship Series. Paper 169 (2007). Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/169.

ROTHEMBURG, Walter Claudius. “A dialética da democracia: entre legisladores e jurisdição cons-


titucional”, do livro “Direitos humanos e democracia”, coordenado por Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wol-
fgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini (Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 429-440 – ISBN 978-85-309-
2488-1)

SARMENTO, Daniel. DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Notas sobre jurisdição constitucional e democracia:
a questão da”última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção judicial – ANO 2013 - Revista Quaestio Iuris
- vol.06, nº02. ISSN 1516-0351. Disponível em :< http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/11773>
Acessado em :20/01/2016

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo tribunal Federal: pela naturalização
do dissenso como possibilidade democrática. Disponível em: < https://www.academia.edu/5159210/
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WILLEMAN, Marianna Montebello. Constitucionalismo democrático, backlash e resposta legisla-


tiva em matéria constitucional no brasil. Nº 33 – janeiro/fevereiro/março de 2013 – Salvador – Bahia
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252
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

NEGOCIADO X LEGISLADO:
O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO

Fábio Túlio Barroso


Advogado. Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Granada, Espanha. Doutor
em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do
Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Presidente Honorário da
Academia Pernambucana de Direito do Trabalho - APDT. Membro Efetivo do Instituto de
Advogados Brasileiros - IAB. Membro Efetivo do Instituto de Advogados de Pernambuco
– IAP (Presidente da Comissão de Direito e Processo do Trabalho). Membro da
Asociación Española de Salud y Seguridad Social. Professor da Universidade Católica de
Pernambuco–UNICAP (Graduação e PPGD). Professor da Faculdade de Direito de Recife
- FDR, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor da Faculdade Integrada
de Pernambuco - FACIPE. Líder do grupo de pesquisa Efetividade das Normas Trabalhistas
na Pós-modernidade.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização - Disciplinamento da matéria trabalhista; 2. A subver-


são do Direito do Trabalho; 3. Conclusão; Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Como o presente texto tem-se como perspectiva expandir o debate sobre tema atual nas relações de
trabalho, cuja ideia mais recente é a aplicação da regulamentação da matéria por meio de negociação cole-
tiva, impondo um novo panorama em que o conteúdo do que for negociado possui maior segurança jurídica
do que o legislado, supostamente.

A regulamentação autônoma coletiva possui limites e finalidades presentes na estrutura trabalhista e


precisa de discussões com maior acuidade, evitando que se tenha como resultado a afronta ao princípio do
não retrocesso social.

Logo, serão abordados vários elementos de discussão, perpassando o elemento formal e o político-ju-
rídico para que seja possível contribuir e enriquecer o debate.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO – DISCIPLINAMENTO DA MATÉRIA TRABALHISTA.

Os Direitos sociais nascem na maioria das vezes de demandas e pressões sociais. Com o Direito do
Trabalho não foi diferente. Com a revolução industrial e as precárias condições de trabalho que os obreiros
eram submetidos, aliado ao abstencionismo estatal e ao contratualismo que permitia que trabalhadores e do-
nos dos meios de produção estabelecessem as regras do pacto laboral, não demorou muito para que houvesse
uma insatisfação generalizada que colocou em risco a continuidade da sociedade capitalista.

Em uma relação em que os sujeitos são naturalmente desiguais, a igualdade formal não pode ser
mantida, em face do natural desequilíbrio da igualdade material.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Cabe o registro ainda que nas sociedades burguesas do período inicial da revolução industrial, havia
o fomento à liberdade individual, com repressão por parte do Estado à liberdade coletiva, motivo pelo qual o
associativismo era caracterizado como delito. (SORIA, José Vida e outros, 2011, pág. 17)

Destaca-se neste universo de situações políticas e normativas o Combina-


tion Act, 1799, no Reino Unido, o Código Penal de Napoleão, em 1810, na
França, o Codice Penale Sardo, 1859, na Itália, dentre outras normas, que
foram emitidas pelos países, que tinham além do ideal liberal a realidade
industrial em plena expansão. Contudo, a mais contundente de todas, foi a
Lei le Chapelier, de 1791 na França, que caracterizou as corporações como
atentatórias aos direitos do homem e do cidadão. (BARROSO, Fábio Túlio.
2010, págs. 24 e 25)

Logo, o ambiente produtivo era desprovido de regulamentações estatais no sentido de limitar a utili-
zação da mão de obra assalariada, que assumia o risco da atividade empresarial junto com o empreendedor,
em uma condição sub-humana de prestação de serviços1.

Não obstante, a classe trabalhadora passa a ser reconhecida como sujeito coletivo, sobretudo por meio
de elementos ideológicos, como o Manifesto do Partido Comunista de Carl Marx e Friederich Engels de 1848,
cujo panfleto proclamava a classe trabalhadora à união e à reforma da sociedade, sem que houvesse mais a
exploração dos trabalhadores naquelas condições degradantes.

Como aparecimento de uma sociedade de classes, duas obras são de funda-


mental importância para entender os fenômenos consequentes e a sociedade
do trabalho que se instaura a partir de então: O Manifesto do Partido Comu-
nista, de Marx e Engels, em 1848 e a Encíclica Rerum Novarum, do Papa
Leão XIII, em 1891.Ambos documentos relatam a situação e a necessidade
de mudanças no ambiente do trabalho. O Manifesto do Partido Comunista
serve como um instrumento ideológico de agregação da classe trabalhadora
contra a exploração proporcionada pelo capitalista. Propõe a extinção da so-
ciedade de classes e o fim do Estado burguês, por meio da tomada do poder
e a administração dos meios de produção pelos próprios trabalhadores. O
fim do capitalismo.Já a encíclica Rerum Novarum, critica a situação absurda
que os trabalhadores eram submetidos, pleiteando uma alteração da forma
de utilização da mao de obra, de forma predatória ao passo que criticava as
medidas marxistas. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26).

Obviamente que a organização dos trabalhadores se sobrepõe a elemento meramente ideológico, mas
a união de interesses levou à exigência de reconhecimento de condições dignas de trabalho, o que paula-
tinamente foi sendo reconhecido pelos Estados industrializados, ao admitir as demandas sociais presentes
nas relações de trabalho e suas representações por meio de entidades de classe (CARINCI, Franco e outros,
2015, pág. 30).

Na Inglaterra, em 1824, com a criação de entidades coletivas de representação de


classes e em 1871, com o Trade Union Act, proporciona-se o movimento sindical
mais antigo do mundo. Na França, a lei Waldeck-Russeau de 1884 revoga a lei le
Chapelier. Na Alemanha, o Código Industrial Prussiano de 1869, admite associa-
ção profissional e em 1919, a Constituição de Weimar expande garantias sociais aos
trabalhadores, possibilitando a liberdade de associação profissional e econômica .
A Constituição do México, mesmo sem ser um país do centro do sistema capitalista
industrial, inova em 1917, sendo o primeiro diploma constitucional a tratar das con-
dições de Trabalho, com proteção ao trabalho assalariado e à organização coletiva de
trabalhadores. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26)

1  Sobre as condições de trabalho e discussões sobre o porvir das relações industriais, sugere-se a leitura da obra clássica
Germinal, de Emile Zola. São Paulo, Martin Claret, 2006.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Ocorre que finalmente em 1919, se tem a sistematização do Direito do Trabalho como disciplina
jurídica, com a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, no Tratado de Versalhes, que esta-
beleceu um padrão internacional de comportamentos entre os sujeitos da relação de trabalho, seja no âmbito
individual, seja coletivo.

Sendo assim, com o intervencionismo estatal cria-se uma sistematização de normas mínimas de pro-
teção social aos trabalhadores para a utilização no âmbito do contrato de trabalho, podendo ser melhorada
por meio de elementos negociais presentes nas normas coletivas, que por sua vez, deverão estabelecer con-
dições de trabalho específicas e mais favoráveis aos trabalhadores, que aqui no Brasil são as convenções e os
acordos coletivos de trabalho.

Desde el entedimiento de la naturaleza contradictória del Derecho del Traba-


jo, ésta, al legalizar a la clase obrera, expresa la explotación de la fuerza de
trabajo y la represión de la acción obrera, al mismo tiempo que expresa y le-
galiza esta lucha y las ventajas que ha permitido conquistar. La tesis central
se resume en la idea de que el Derecho del Trabajo, tal y como existe hoy en
los países del capitalismo maduro, es esencialmente Derecho del capitalismo,
sector específico del orden jurídico de una sociedad altamente compleja y
“pluriconflictual”. (...) el Derecho del Trabajo participa en la misma consti-
tución de las relaciones de producción: expresa y “codifica” las relaciones de
producción al mismo tiempo que las enmascara y posibilita su reproducción.
(...) el ordenamiento laboral es, asimismo, un elemento y una apuesta de la
acción de la clase obrera contra el orden capitalista, y un elemento de lucha
de la clase dominante contra la acción de los trabajadores (PÉREZ, José Luis
Monereo, 1996, págs. 24 e 25).

Ou seja, o Direito do Trabalho como disciplina jurídica consegue manter a ordem econômica vigente
como elemento de manutenção da ordem e da continuidade das relações produtivas, estabelecendo condi-
ções mínimas de dignidade e de inserção do trabalhador na dinâmica do sistema econômico, ao passo que,
ao reconhecer as entidades representativas de classe, os sindicatos, permite e fomenta um constante diálogo
entre os representantes de cada lado da sociedade do trabalho como elemento de pacificação, conhecimento
recíproco e redução de conflitos sociais, tudo isso dentro da legalidade: limita o conflito de interesses na pers-
pectiva de implementar uma ordem civilizatória.

Evidenciou-se inquestionável, em suma, que a existência de um sistema de-


sigual de criação, circulação e apropriação de bens e riquezas, com um meio
social fundado na diferença econômica entre seus componentes (como o
capitalismo), mas que convide com a liberdade formal dos indivíduos e com
o reconhecimento jurídico-cultural de um patamar mínimo para a convivên-
cia na realidade social (aspectos acentuados com a democracia), não pode
mesmo desprezar ramo jurídico tão incrustado no âmago das relações de
trabalho. (DELGADO, Maurício Godinho, 2015, pág. 104).

Ou seja, o Direito do Trabalho por meio de suas normas estabelece elementos mínimos de proteção
social ao trabalhador e estabilidade econômica ao empregador, devendo, em regra, melhorar estas condições
mínimas por meio do negociado, que é acessório do legislado. Apenas excepcionalmente, quando o legislador
permitir, é que poderá haver a redução destas garantias mínimas previstas em lei ao trabalhador, como no
caso das normas do art. 7º, VI, XIII e XIV da Constituição da República.

2. A SUBVERSÃO DO DIREITO DO TRABALHO.

Pois bem, pautado o Direito do Trabalho como instrumento mínimo de inserção social com dignidade
do trabalhador na dinâmica do sistema capitalista, tem-se uma sistematicidade normativa e principiológico
que estabelece os limites mínimos desta proteção social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A negociação coletiva é fomentada pelo Estado, pautado em valores de tutela aos hipossuficientes
como forma de equilíbrio das relações materiais pelo formalismo legal. Assim, tem-se nos artigos 7º, XVI,
8º, VI, ambos da Constituição da República e 611 e seguintes da CLT os elementos que propiciam a criação
de condições específicas e mais favoráveis para os trabalhadores por meio de procedimentos negociais, que
deverão ser formalizados nas convenções ou acordos coletivos de trabalho.

Estas normas autônomas coletivas servem como instrumento de ratificação da vontade social do
Estado, reconhecendo que o legislado é o mínimo assegurado e que o negociado assegurará a melhoria da
condição social do trabalhador, como previsto e programado na carta maior.

Tal projeção para as normas coletivas deverá ser sistematicamente respeitado e coadunado com os
princípios do Direito do Trabalho, em especial, o da indisponibilidade de suas normas.

O princípio da indisponibilidade dos direitos ou da irrenunciabilidade de di-


reitos baseia-se no mandamento nuclear protetivo segundo o qual não é dado
ao empregado dispor (renunciar ou transacionar) de direito trabalhista, sen-
do, por conta disso, nulo qualquer ato jurídico praticado contra esta disposi-
ção. Tal proteção, que em última análise, visa proteger o trabalhador das suas
próprias fraquezas está materializada em uma série de dispositivos da CLT,
entre os quais se destaca o seu art. 9º. Esta atuação legal impede que o vul-
nerável, sob a miragem do que lhe seria supostamente vantajoso, disponha
dos direitos mínimos que a custa de muitas lutas históricas lhe foram assegu-
radas nos termos da lei. (MARTINEZ, Luciano, 2013, pág. 108)

Ou seja, o conteúdo mínimo previsto em lei não poderá ser modificado, salvo o já previsto na Cons-
tituição, pois a disponibilidade na aplicação da norma trabalhista retira a sua função social de proteção ao
hipossuficiente.

Nessa esteira, fica nítido que qualquer proposta que venha a desvirtuar o elemento tutelar do Direito
do Trabalho, acaba por desqualificar ou desconstituir sua estrutura normativa e principiológica, em defesa
de interesses que desestabilizam a regulação do trabalho sob um supedâneo mínimo de proteção e equilíbrio
social.

Em momentos de crise como a que o país passa no momento, são vários os argumentos, boa parte
deles falaciosos, que a flexibilização das normas trabalhistas trará mais empregos, proteção social e segurança
jurídica, dando protagonismo à negociação coletiva para a sua implementação, clamando por uma “moderni-
zação” das relações de trabalho.

De logo, o sindicato em sua função representativa não possui ferramentas éticas e legais para dispo-
nibilizar o direito em que é mero representante, consonante norma fundamental prevista no art. 8º, III da
Constituição. Por sua vez, a CLT é uma dos diplomas mais atualizados, com menos de 20% do seu conteúdo
original.

O desvirtuamento das funções sindicais para que possa negociar o direito dos trabalhadores, no sen-
tido de disponibilizar a sua aplicação vai no sentido unívoco de potencializar a autonomia privada coletiva e
reduzir o poder e a eficácia das normas legisladas, que passam a ser meros dispositivos ou instrumentos de
combinação de interesses, de acordo com o momento econômico e político que o país atravessa, sem qual-
quer perspectiva de retorno a elementos tutelares aos hipossuficientes.

Ou seja, a ideia de dividir em várias parcelas o gozo das férias e o pagamento do décimo terceiro salá-
rio, por exemplo, rompe com o mínimo de proteção social previsto em lei.

Se estabelece uma lógica de retorno ao abstencionismo estatal no tocante à aplicação das normas,
com um catálogo mínimo de normas trabalhistas que serão utilizadas ao bel prazer das conjunturas, e o mais
grave, com sindicatos com enorme dificuldade de representatividade, o que reverbera em um enorme retro-
cesso social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Isso acontece de várias formas, com o estabelecimento de variados modelos


de realização. Serve, inclusive para legitimar a execução da política de fle-
xibilidade laboral, como consequência do modelo neoliberal nas relações de
trabalho em uma escala jamais vista na história da humanidade, como resul-
tado da globalização.Essa nova realidade acerca das funções, das matérias
tratadas, dos sujeitos que compõem a negociação coletiva e da intervenção
estatal de forma material e ideológica, estabelece novos fundamentos com
práticas diferenciadas ao citado modelo clássico de relações de trabalho, ao
se utiliza do princípio da adequação setorial negociada em sua vertente ne-
gativa, justamente para estabelecer condições de trabalho in pejus ao traba-
lhador, levando-se em conta a negociação coletiva de primeira geração ou o
modelo industrial de negociação em que são sujeitos as entidades sindicais de
base, geralmente. (BARROSO, Fábio Túlio, 2012, págs. 105 e 106)

Naturalmente, que esta nova função designada às entidades sindicais estabelecem um negativa do
papel representativo presente na estrutura sindical, inserida na sistematicidade das normas de Direito do
Trabalho, pois, caberá a estas entidades defender os interesses, no caso dos trabalhadores, no sentido de
melhoria da sua condição social, em paralelo ao princípio do não retrocesso social, o que deixa de ocorrer.

Por essa razão, comumente são arrolados dois principais conteúdos do princí-
pio da vedação do retrocesso social: Positivo e o negativo. O conteúdo positivo
reside no dever de o legislador perseverar no propósito de ampliar, progressi-
vamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas, o grau de concre-
tização dos direitos fundamentais sociais, “não se trata de mera manutenção
do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social”. O negativo,
refere-se a imposição ao legislador de, na atividade legiferante, respeitar a
não supressão ou a não redução do grau de densidade normativa que os
direitos fundamentais já tenham alcançado por meio do arcabouço normati-
vo-positivo. (MESQUITA, Carolina Pereiria Lins, 2012, pág. 176)

No Brasil, foram várias as alterações ocorridas, sobretudo, a partir da década de 1990 do século pas-
sado, quando a negociação coletiva viabilizou e legitimou a flexibilização do Direito do Trabalho. A título de
exemplo, tem-se o contrato de trabalho por prazo determinado sem causa, pela lei nº 9.601/98, a modificação
do contrato ordinário de trabalho para o contrato a tempo parcial por cláusula negocial, art. 58-A, § 2º da
CLT e a natureza não salarial dos valores decorrentes da participação nos lucros e resultados da empresa,
conforme a lei nº 10.101/00.

No plano constitucional, tem-se a possibilidade de redução das garantias mínimas sociais como ex-
cepcionalidade, como a redução de salários, a compensação de jornada e a alteração dos turnos ininterruptos
de revezamento, como acima indicado os respectivos incisos do art. 7º.

Observa-se em todas as medidas que pretendem estabelecer a prevalência do negociado ao legislado


a tentativa de ruptura do modelo ordinário de relações de trabalho, implementando uma disciplina jurídica
que prima pela falaciosa autonomia e empoderamento das partes negociais, principalmente os trabalhadores,
bastante presente na fonte material do direito que se destaca, a ideologia neoliberal.

Há uma sistemática crítica à necessária proteção do hipossuficiente, como se fosse um pecado capital
a defesa de um sujeito em condição de inferioridade diante do outro.

Na prática, tem-se uma proposta de redução do custo do trabalho, da capacidade de organização


dos trabalhadores, com o fomento a competitividade entre eles, reduzindo a possibilidade de solidariedade e
acuidade do diálogo entre os envolvidos na negociação coletiva.

Nos países que utilizaram o modelo flexível de legislação do trabalho de natureza neoliberal foi obser-
vado uma ruptura da garantia social presente na legislação do trabalho do modelo anterior.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A proposta de se utilizar a legislação do trabalho como mero elemento ilustrativo de direitos, com
ampla disposição na sua aplicação é uma subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de
trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disciplina jurídica
que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade.

3. CONCLUSÕES.

Temas desta natureza não comportam conclusões, visto que a matéria trabalhista é a síntese do con-
flito de interesses. Contudo, quando se tem perspectiva de retrocesso social diante da desconstrução de um
modelo de relações jurídica que acarreta dignidade à pessoa é preciso se chegar a sínteses, ainda que mo-
mentâneas, visto que diante de natureza da matéria sempre haverá novas situações dignas de estudo.

Assim, não se pode concordar com proposta de utilização da negociação coletiva como instrumento
de flexibilização do Direito do Trabalho, visto que o elemento mínimo de proteção social ao trabalhador já está
previsto no seu conteúdo legal que não comporta disponibilidade. Qualquer alteração ao conteúdo material
e prático das normas desta natureza somente poderá acontecer para trazer melhoria da condição social, em
absoluta adequação ao princípio do não retrocesso social.

A negociação coletiva não poderá servir como instrumento de legitimação de uma política econômica
que desconsidera a hipossuficiência jurídica e a dignidade do trabalhador, já asseguradas nas normas legis-
ladas e que não poderão ser disponibilizadas. Tampouco poderá servir para a desconstrução do Direito do
Trabalho.

A prevalência do negociado sobre o legislado é a subversão ao conteúdo humanista e democrático das


relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disci-
plina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARROSO, Fábio Túlio. Novos Parâmetros da Negociação Coletiva na Sociedade Contemporânea, em: BAR-
ROSO, Fábio Túlio e MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. Direito do Trabalho, Valorização e Dignidade do Tra-
balhador no século XXI. Estudos em Homenagem ao Professor José Guedes Corrêa Gondim Filho, São Paulo,
LTR, 2012.

CARINCI, Franco, TAMAJO, Raffaele de Luca, TOSI, Paolo e TREU, Tiziano. Colaboradores: BROLLO, Ma-
rina, CAMPANELLA, Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução:
AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA,
Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da
tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 14ª edição, São Paulo, LTR, 2015.

MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho, 4ª edição, São Paulo, saraiva, 2013.

MESQUITA, Carolina Pereira Lins. Teoria Geral do Direito do Trabalho. Pela Progressividade Sociojurídica
do Trabalhador, São Paulo, LTR, 2012.

PÉREZ, José Luis Monereo. Introducción al nuevo Derecho del Trabajo. Una Reflexión Crítica Sobre el Dere-
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258
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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SORIA, José Vida, PÉREZ, José Luis Monereo e NAVARRETE, Cristóbal Molina. Manual de Derecho del Tra-
bajo, 9ª edição, Granada, Comares, 2011.

ZOLA, Emile, Germinal. São Paulo, Martin Claret, 2006.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA

Fábio Túlio Barroso

INTRODUÇÃO

Uma das principais dificuldades dos operadores do Direito Sindical no Brasil após a Constituição da
República de 1988 está relacionada à validade das normas sobre a matéria presentes na CLT, visto que o texto
constitucional estabeleceu ampla autonomia, quando não cabe ao poder público interferência nem interven-
ção na organização sindical.

Isso quer dizer que após a carta maior ser promulgada, deverá prevalecer o conteúdo dos estatutos
das entidades sindicais sobre a lei, em clara obediência à natureza associativa das entidades sindicais.

Contudo, alguns institutos do período anterior à Constituição foram mantidos, como a unicidade e a
contribuição sindical compulsória que contrariam a ampla liberdade sindical, estabelecendo um modelo de
autonomia, visto que estas limitações são de ordem legal, cogentes.

Sendo assim, este texto faz uma análise sobre o modelo de autonomia sindical brasileiro, que precisou
ser aperfeiçoado em alguns momentos pela jurisprudência, no sentido de estabelecer comportamentos ou
limites objetivos à aplicação das normas sindicais no Brasil.

O texto não tem a pretensão de esgotar o tema, apenas apresentar alguns elementos científicos sobre
esta interessante matéria.

1. O SINDICALISMO À BRASILEIRA – AUTONOMIA SINDICAL.

A estrutura sindical brasileira é bastante complexa e por vezes contraditória. Tem-se na sua organi-
zação originária um modelo de organização por unicidade sindical, que é um resquício do corporativismo de
Estado e sua mais recente atualização foi no sentido de reconhecer formalmente as centrais sindicais que
não fazem parte desta estrutura, organizando-se por pluralidade, em absoluto paradoxo técnico entre as for-
mas de associativismo, podendo ser considerado suis generis (BARROSO, Fábio Túlio. 2014).

Por sua vez, o Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que trata da Liberdade Sindical e Proteção ao
Direito de Sindicalização, paradigma normativo internacional sobre a liberdade sindical. Contudo, várias de suas normas
que tratam da matéria do associativismo foram recepcionadas na própria carta magna, sem que houvesse a necessidade
de formalização do teor da referida norma internacional.

Nesse espeque, tem-se ainda que o modelo internacional de liberdade sindical está estabelecido em um espectro
normativo ainda mais amplo, com a convergência dos postulados presentes nas Convenções nº 981 e 1352 da OIT,
respectivamente, ambas ratificadas pelo Brasil.

A doutrina internacional é neste sentido, ao reconhecer a amplitude das normas de liberdade sindical além do
conteúdo estabelecido em sua norma paradigmática:

1  Aprovação: Decreto Legislativo n. 49, de 27.8.52, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 33.196, de 29.6.53. http://
www.oitbrasil.org.br/node/465.
2  Aprovação: Decreto Legislativo n. 86, de 14.12.89, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 31, de 22.5.91. http://
www.oitbrasil.org.br/node/489

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

La aprobación por la OIT del Convenio nº 87, relativo a la libertad sindical y a la protección del derecho de sindicación
(1948), y el Convenio nº 98, sobre aplicación de los princípios del derecho de sindicación y negociación colectiva
(1949), marcará un cambio radical. Estas normas pueden considerarse, pese a sus carencias y contradicciones, como
dos de las piezas normativas más señeras del enterro Derecho Internacional del Trabajo. La preocupación de la OIT
por crear los princípios y las reglas de un nuevo modelo de regulación de la autonomia colectiva de los trabajadores
se proyectará en otros instrumentos normativos posteriores, tanto en Convenios cuanto en Recomendaciones. (...)
Y después con la adicción de nuevos instrumentos, fundamentalmente el Convenio nº 135 (y la Recomendación nº
143), sobre protección y facilidades a otorgar a los representantes de los trabajadores en la empresa (1971), que
configuran, en contraste con la posición anterior del próprio movimiento asociativo, la acción en la empresa como
un contenido esencial de la libertad sindical. (PEREZ, José Luis e outros, pág. 26)

A liberdade sindical em seu aspecto mais amplo deverá ser entendida como:
(...) a impossibilidade de qualquer agente estranho, alheio à entidade sindical, seja ele o Estado ou mesmo
qualquer pessoa física ou jurídica, que possa mitigar ou limitar a criação, o exercício de suas atividades
negociais, de filiação ou desfiliação, de representatividade e de administração
A ordem jurídica deverá garantir uma atividade sindical sem que haja intervenções de agentes estranhos
à atividade interna e externa das entidades sindicais, nem tampouco que seja possível a interferência
nas suas atividades específicas no seio da sociedade do trabalho, quando o exercício sindical deverá ser
desatrelado de compromissos ou limitações que tenham por finalidade desvirtuar a representatividade dos
interesses próprios das bases que conformam os coletivos sindicais, econômicos ou profissionais, seja
administrativamente ou judicialmente (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, pág. 86)

Entendido ainda que a liberdade sindical se estabeleceu como direito fundamental em diversos diplomas
internacionais. (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 110 e DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de.
2016, pág. 60).

E é justamente neste contexto em que se enquadra o sindicalismo brasileiro no seu aspecto formal, porém, com
limitações que serão apresentadas a seguir.

Como o país não ratificou a norma paradigma internacional sobre liberdade sindical, possui basicamente os
limites do seu modelo de liberdade sindical presentes na unicidade e na contribuição sindical.

Não fossem estes limites acima indicado, as demais previsões da referida convenção da OIT foram admitidas no
ordenamento.
Este poder de autorregulamentar-se foi absorvido pela ordem constitucional brasileira, ao estabelecer na
parte final do inciso I do art. 8º, em que estão vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na
organização sindical. Entendido que a interferência é o ato de persuasão, ingerência imaterial e a intervenção
é o ato físico de intromissão nos assuntos sindicais, que tem em sua origem a organização, que é própria de
uma pessoa jurídica de direito privado e que não cabe em hipótese nenhuma estas formas de participação
estatal na vida das entidades sindicais. (BARROSO, Fábio Túlio, 2010, pág. 93)

Quanto à autonomia, há impedimento por norma constitucional de a lei exigir autorização do Estado para criação
de entidade sindical, não devendo haver qualquer “interferência ou intervenção na organização sindical”, como se tem
do art. 8º, I da carta maior. Ou seja, deverá prevalecer o conteúdo do estatuto da entidade sindical sobre a lei, o que
também impede que haja a dissolução ou a suspensão da entidade por via administrativa.

Naturalmente que a previsão constitucional está relacionada à impossibilidade de qualquer órgão estatal
definir limites de criação das entidades associativas sindicais por limitativos legais, como havia no período anterior à
Constituição, quando se aplicava o enquadramento sindical do art. 570-577 da CLT.

De igual modo, não é possível admitir que a lei venha a exigir autorização do Estado apenas para a criação de
entidade sindical de base, sindicatos, visto que a estrutura sindical brasileira está montada em várias entidades de classe,
cujo sindicato é apenas uma delas.

Ora, se no sistema confederativo de organização sindical, onde se aplica a unicidade em qualquer grau, tem-se

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

os sindicatos como entidades de base e as federações e as confederações como entidades de grau superior (arts. 516,
533-535 da CLT), todas perfazendo uma estrutura nos termos consolidados antes mesmo da Constituição de 1988. Ou
seja, a carta maior admitiu que o modelo de organização sindical tanto do setor profissional quanto do econômico se
organizam por unicidade, em obediência ao conteúdo do art. 8º, II.

Ainda assim, a criação das entidades sindicais caberá aos “trabalhadores e empregadores” interessados, não mais
havendo definição dos critérios pré-existentes ao Estado, quando enquadrava as atividades econômicas e profissionais
nos termos do anexo ao art. 577 consolidado.

Ou seja, mesmo com delimitação quantitativa, qualitativa e territorial de organização sindical para as entidades
do sistema confederativo, caberá apenas aos interessados a criação das respectivas entidades, com os limites impostos
pela unicidade sindical, o que vai de encontro ao modelo proposto pela OIT, em sua Convenção nº 87.

Por sua vez, quando se fala nas garantias ao emprego aos dirigentes sindicais, tema relacionado à liberdade
sindical individual, tem-se na estabilidade provisória prevista nos arts. 8º, VIII3 da Constituição e 543, § 3º4 da CLT uma
série de limitações estabelecidas pelo Poder Judiciário, em aplicação da autonomia sindical.

Inicialmente, porque as normas que tratam tanto do quantitativo de dirigentes, quanto da forma como se dará
a manutenção no emprego são anteriores à Constituição e com forte interferência do Estado no comportamento dos
sindicatos.

Assim, as súmulas de nº 197 do STF e 379 do TST, acabam por delimitar de que forma deverá se dar a apuração
da falta grave que justifica a terminação do contrato de trabalho do dirigente estável, como se tem a seguir:
Súmula 197/STF - 12/07/2016. Trabalhista. Sindicato. Sindicalista. Estabilidade provisória. Inquérito para
apuração da falta grave. CLT, art. 543.
O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta
grave.

Súmula nº 379 do TST


DIRIGENTE SINDICAL. DESPEDIDA. FALTA GRAVE. INQUÉRITO JUDICIAL. NECESSIDADE
(conversão da Orientação Jurisprudencial nº 114 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
O dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito
judicial, inteligência dos arts. 494 e 543, §3º, da CLT.

Cabe especial registro para o fato de a legislação do trabalho não possuir norma específica que trate do inquérito
judicial para o dirigente sindical, utilizando-se as originariamente previstas para os estabilitários decenais.

Ainda no tocante à estabilidade provisória dos dirigentes sindicais, chama a atenção o conteúdo da Súmula nº
369 do TST:
Súmula nº 369 do TST
DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item I alterada na sessão do
Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012
I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do
registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da
CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho.
3  Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
(...)
VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se
eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.
4  Art. 543 - O empregado eleito para cargo de administração sindical ou representação profissional, inclusive junto a órgão de deliberação
coletiva, não poderá ser impedido do exercício de suas funções, nem transferido para lugar ou mister que lhe dificulte ou torne impossível o
desempenho das suas atribuições sindicais.
§ 3º - Fica vedada a dispensa do empregado sindicalizado ou associado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção
ou representação de entidade sindical ou de associação profissional, até 1 (um) ano após o final do seu mandato, caso seja eleito inclusive como
suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

II - O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade
a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes.
III - O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na
empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente.
IV - Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para
subsistir a estabilidade.
V - O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio,
ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da
Consolidação das Leis do Trabalho.

Em especial, nos seus itens I, II e V.

Isso porque para as respectivas normas, tem-se muito mais a interpretação teleológica do conteúdo da autonomia,
aliado ao formalismo da norma consolidada.

Nesses casos, não era possível estabelecer um paradigma restrito à norma consolidada, visto que o teor do § 5º
do art. 5435 representa uma clara violação à autonomia. De igual modo, o intervencionismo do art. 5226 consolidado
estabelecia limites impensáveis numa realidade de não se ter interferência ou intervenção na organização sindical.

Logo, para o TST, deverá haver a comunicação ao empregador para que o mesmo tenha conhecimento da
estabilidade do candidato ou dirigente, de qualquer forma inequívoca, desde que durante o vínculo empregatício.
Contudo, o limite de validade do aviso no curso do contrato esbarra no aviso prévio, visto que a partir de então não
caberá mais pleitear estabilidade, segundo a combinação do conteúdo dos itens I e V da Sumula nº 369.

Por sua vez, no tocante ao item II, acabou por estabelecer que o limite que antes era máximo, de 7 (sete)
dirigentes, que, levando-se em conta que o conteúdo da sumula possui natureza normativa, impõe um limite mínimo de
dirigentes, com seus suplentes, que poderá ser ampliado por norma autônoma coletiva; convenção coletiva de trabalho.

Isso se dá pela possibilidade de se estabelecer conteúdo mais favorável aos trabalhadores, estabelecendo um
número superior a sete, por meio de autocomposição, com a participação de entidades do setor econômico.

A solução acabou sendo normativa pelo limite da razoabilidade, pois não havia qualquer outro paradigma normativo
a ser aplicado, ainda que, tal conclusão, stricto sensu, acaba ainda por colidir com a capacidade de autorregulamentação
dos sindicatos, a autonomia sindical, visto que um outro órgão estatal, o judiciário, estabelece limites na organização
sindical.

Outra situação referente a autonomia sindical se deu com o reconhecimento formal das centrais como entidades
desta natureza, por meio da lei nº 11.648 de 2008, deveria haver o mesmo respeito aos elementos de autonomia de
criação das respectivas entidades.

Contudo, o posicionamento legal foi diferente. Como se tem dos arts. 2º a 4º7 da referida lei, o poder público
delimitou injustificadamente a qualidade e a quantidade das entidades constitutivas das centrais sindicais, conseguindo

5  § 5º - Para os fins deste artigo, a entidade sindical comunicará por escrito à empresa, dentro de 24 (vinte e quatro) horas, o dia e a hora do
registro da candidatura do seu empregado e, em igual prazo, sua eleição e posse, fornecendo, outrossim, a este, comprovante no mesmo sentido.
O Ministério do Trabalho e Previdência Social fará no mesmo prazo a comunicação no caso da designação referida no final do § 4º.
6  Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de
um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembleia Geral.
7  Art. 2o Para o exercício das atribuições e prerrogativas a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei, a central sindical deverá
cumprir os seguintes requisitos:
I - filiação de, no mínimo, 100 (cem) sindicatos distribuídos nas 5 (cinco) regiões do País;
II - filiação em pelo menos 3 (três) regiões do País de, no mínimo, 20 (vinte) sindicatos em cada uma;
III - filiação de sindicatos em, no mínimo, 5 (cinco) setores de atividade econômica; e
IV - filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional.
Parágrafo único. O índice previsto no inciso IV do caput deste artigo será de 5% (cinco por cento) do total de empregados sindicalizados em
âmbito nacional no período de 24 (vinte e quatro) meses a contar da publicação desta Lei.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

afrontar ao mesmo tempo tanto o modelo de liberdade sindical brasileiro previsto no art. 8º da Constituição, quanto o
proposto pela Convenção nº 87 da OIT.

CONCLUSÕES

Como se observa, a Constituição estabeleceu limites à intervenção do poder público nas atividades sindicais.
Contudo na aplicação da autonomia sindical, ainda se tem um formal elemento cultural do sindicalismo de Estado no
pais.

Tal cultura se observa tanto nas normas interventivas do período anterior à carta maior, quanto na interpretação
jurisprudencial, que acaba por estabelecer paradigmas por meio do modelo anterior de sindicalismo.

Na mesma seara, normas atuais também acabam por remanescer na cultura controladora do sindicalismo
brasileiro, como é o caso da lei que reconheceu as centrais sindicais, que incorre em flagrante inconstitucionalidade, ao
afrontar o modelo próprio de liberdade sindical brasileiro e até mesmo o previsto pela OIT..

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Fábio Túlio. Complexidades e Contradições do Sindicalismo Brasileiro. http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/


complexidades-e-contradicoes-do-sindicalismo-brasileiro/14849.

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MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela
Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015.

DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de, A liberdade Sindical Como Direito Fundamental e a não ratificação
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PÉREZ, José Luis Monereo, NAVARRETE, Cristóbal Molina y VIDA, Maria Nieves Moreno. Manual de Derecho Sindical, 9ª
edição, Granada, Comares, 2014.

Art. 3o A indicação pela central sindical de representantes nos fóruns tripartites, conselhos e colegiados de órgãos públicos a que se refere o
inciso II do caput do art. 1o desta Lei será em número proporcional ao índice de representatividade previsto no inciso IV do caput do art. 2o
desta Lei, salvo acordo entre centrais sindicais.
§ 1o O critério de proporcionalidade, bem como a possibilidade de acordo entre as centrais, previsto no caput deste artigo não poderá prejudicar
a participação de outras centrais sindicais que atenderem aos requisitos estabelecidos no art. 2o desta Lei.
§ 2o A aplicação do disposto no caput deste artigo deverá preservar a paridade de representação de trabalhadores e empregadores em qualquer
organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas.
Art. 4o A aferição dos requisitos de representatividade de que trata o art. 2o desta Lei será realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
§ 1o O Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, mediante consulta às centrais sindicais, poderá baixar instruções para disciplinar os
procedimentos necessários à aferição dos requisitos de representatividade, bem como para alterá-los com base na análise dos índices de
sindicalização dos sindicatos filiados às centrais sindicais.
§ 2o Ato do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego divulgará, anualmente, relação das centrais sindicais que atendem aos requisitos de que
trata o art. 2o desta Lei, indicando seus índices de representatividade.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


POTENCIALIDADES E RISCOS

Fernanda Fonseca Rosenblatt


Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra). Professora de Direito
da Universidade Católica de Pernambuco. Orientadora na Iniciação Científica (PIBIC/
UNICAP). Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. ffrosenblatt@unicap.br.

João André da Silva Neto


Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). joao.law.
neto@gmail.com

Maria Júlia Poletine Advincula


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do
Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).
juliapoletine@gmail.com

Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos


Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Email:
pedrohrcoutinho@gmail.com

SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias sobre a ineficácia e crise de legitimidade do sistema


penal; 1.1. O “Roubo” dos Conflitos pelo Estado e a Necessidade de Devolução destes às Partes Di-
retamente Envolvidas; 1.2. Do Esquecimento ao Indispensável Protagonismo da Vítima no Processo
Penal; 2. O caso específico da violência doméstica no brasil; 2.1. O Surgimento da Lei Maria da Pe-
nha; 2.2. A Persistência da Violência Doméstica, a Revitimização Secundária e a (In)Eficácia da Lei
11.340/2006; 2.3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424 e mais um “Roubo” de Conflitos pelo
Estado; 3. A justiça restaurativa como alternativa aos conflitos de violência doméstica; 3.1. A Experi-
ência Internacional; 3.2. Sobre alguns Riscos da Aposta Restaurativa; 4. Considerações finais sobre
o uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica e a sua operacionalização no brasil;
Referências.

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A INEFICÁCIA E CRISE DE LEGITIMIDADE DO


SISTEMA PENAL.

Como bem ressalta Gonçalves (2012, p. 23):

O homem é um ente social e gregário. [...] Entre as necessidades humanas


mais profundas está a do convívio social, a de estabelecer relações com outros
homens, com as mais diversas finalidades e os mais variados graus de inten-
sidade (GONÇALVES, 2012, p. 23).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Com efeito, é inerente ao ser humano um caráter de socialização essencial à espécie. Estado e Di-
reito, portanto, surgem com o objetivo de controlar a vida em sociedade, de forma a sustentar as relações
interpessoais. Ocorre que as primeiras experiências humanas pautadas em regras de convivência foram in-
troduzida pelo famigerado “Direito Penal do Terror”, assim denominado por ter sido marcado pela “vingança
privada”, caracterizada fortemente pelo arbítrio, o autoritarismo e o punitivismo. Nesse contexto, o conflito já
nascia sendo interpretado de forma negativa: “A vingança e a pena, confundindo-se uma com a outra, redu-
zia-se a um ferimento tal que bastasse para ressarcir a vítima ou seus amigos, ou a dor causada ao ofendido”
(LOMBROSO, 2007, p. 91).

A partir do fracasso dessa lógica, há a necessidade de analisar os conflitos criminalizados à luz da


Criminologia Crítica, pautada na questão dos direitos humanos e na importância de se encontrar alternati-
vas viáveis à justiça meramente retributiva, tão retrógrada e falha. Como possibilidade de mudança, surge a
Justiça Restaurativa, definida por Howard Zehr (2012, p. 49.) como

Um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm in-
teresse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica
e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de
promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida
do possível.

É justamente diante da possibilidade restaurativa, ou através de “lentes restaurativas” (ZEHR, 2008),


que se pretende, nesse primeiro momento, denunciar a ineficácia e a crise de eficiência do modelo tradi-
cional de justiça criminal. Dentre as mais diversas e possíveis críticas ao sistema penal, entretanto, e já em
vista da temática central do presente artigo, dar-se-á destaque à apropriação dos conflitos pelo Estado e ao
consequente negligenciar da vítima no curso dos processes penais contemporâneos.

1.1 O “ROUBO” DOS CONFLITOS PELO ESTADO E A NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DESTES ÀS PARTES
DIRETAMENTE ENVOLVIDAS.

Seguindo a linha de pensamento de Christie (1977), é indispensável enquadrar os conflitos como


benéficos para toda e qualquer comunidade que deseje desconstruir, amadurecer e se fazer renovável. La-
mentavelmente, porém, a existência destes é normalmente “sufocada” pelo Estado, o qual concede certo
monopólio de controle aos professional thieves (CHRISTIE, 2004), profissionais especializados em se apro-
priar dos conflitos pertencentes às partes diretamente atingidas por eles. Com efeito, advogados, promotores,
juízes, dentre outros profissionais da “Justiça”, são treinados para “roubar” os conflitos dos jurisdicionados
e “resolvê-los” (na verdade, “decidi-los”) num ritmo e segundo ritos e regras típicas de uma lógica amarra-
da à busca por soluções-padrão e impessoais. Impende destacar, entretanto, que enquanto os profissionais
decidem o que é relevante e pertinente, a vítima e o ofensor são distanciados do – ou silenciados no – seu
próprio caso, de modo que essas partes normalmente não experimentam um senso de “justiça procedimen-
tal” (TYLER, 1990). Por outro lado, a comunidade em nada contribui para o – e nada leva do – processo de
resolução daquele conflito.

Em compatibilidade com essa lógica fria e automatizada, o crime, qualquer que seja ele, ao invés de
representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma
infração cometida contra o Estado (ROSENBLATT, 2015). A “justiça”, então, é “terceirizada” ao profissional,
representante do Estado, que raciocina em termos de fato típico, antijurídico e culpável, pouco importando
as subjetividades que circundam o caso. Temos por consequência, e no dia-a-dia dos fóruns criminais, a
busca por uma ideia abstrata de “justiça vertical”, aquela que se utiliza da punição para manter o status quo,
qualquer que seja ele. Ocorre que, como bem destacado por Zehr (2012, p. 47), “[a] justiça deve reconhecer
tanto nossa condição de interconexão quanto a nossa individualidade. O valor da particularidade nos adverte
que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados”. Nesse ínte-
rim, a Justiça Restaurativa, diferentemente do modelo tradicional de justiça criminal, busca envolver todos
aqueles que tenham interesse no conflito, buscando como principal desfecho a reparação dos danos advindos

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do crime. Desse modo, trata-se de um modelo de justiça “horizontal”, onde os conflitos são “devolvidos” às
partes diretamente afetadas por ele.

1.2 DO ESQUECIMENTO AO INDISPENSÁVEL PROTAGONISMO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL.

A total “despersonalização” do processo penal causa, dentre outros fracassos e frustrações, o fenôme-
no da “vitimização secundária”. Ou seja, no que a vítima perde seu papel de protagonista dentro do processo
penal, ela sofre duas vezes: pela agressão que lhe foi dirigida (quer dizer, pelo crime sofrido) e pelo confisco
de “seu” conflito pelo Estado (ROSENBLATT, 2015). Segundo Zehr (2012, p. 25),

Não raro as vítimas se sentem ignoradas, negligenciadas ou até agredidas


pelo processo penal. Isto acontece devido à definição jurídica do crime, que
não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado,
e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral
as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo
judicial.

Com efeito, nos processos penais contemporâneos, altamente profissionalizados, a vítima é geral-
mente tratada como uma mera “testemunha”, não como o “ator” central do drama entre ela e o “ofensor”
(CHRISTIE, 2010). Assim, enquanto se brada fazer “justiça” em nome da vítima, suas vontades e necessida-
des, na verdade, são corriqueiramente negligenciadas.

Como ensina Pallamolla (2008, p. 4), tendo como uma das suas inspirações o movimento vitimológico
contemporâneo iniciado nos anos 80, “a justiça restaurativa surge como uma resposta à pequena atenção
dada às vítimas no processo penal”. Com efeito, a Justiça Restaurativa valoriza no processo de resolução de
conflitos a interação entre vítima e agressor, pois considera que, a partir do diálogo, os sentimentos indivi-
duais são expostos e debatidos – e, assim, os danos provocados pelo crime, esclarecidos e enfrentados. E por
promover o diálogo entre as partes diretamente afetadas pelo conflito criminalizado, trata-se de um modelo
de justiça espontaneamente mais atento às necessidades das vítimas. Nas palavras de De Vitto (2005, p. 48),

A Justiça Restaurativa representa um novo paradigma aplicado ao processo


penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizado pelo
crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento. As-
sim, e desde que seja adequadamente monitorada essa intervenção, o mode-
lo traduz possibilidade real de inclusão da vítima no processo penal sem abalo
do sistema de proteção aos direitos humanos construído historicamente.

Com efeito, no processo restaurativo, o objetivo de reconduzir a vítima a um papel que um dia lhe
foi retirado é o de conhecer e tornar evidente qual foi o dano e como é possível a sua reparação. Nesse pro-
cesso, as vítimas são empoderadas através da valorização de sua contribuição e participação na definição de
necessidades e resultados ou decisões (ZEHR, 2012, p. 79). Ademais, para a Justiça Restaurativa, além da
chamada vítima primária, que é a mais atingida pela ofensa, seus familiares, testemunhas e a comunidade
em geral também sofrem e devem ser incluídas no processo de resolução do conflito. O crime, como sugerido
acima, é tido como um ato praticado contra indivíduos – e não abstratamente concebido como um atentado
contra o Estado. O Estado, portanto, deve investigar os fatos, mas não é enquadrado como vítima, apenas um
mero facilitador.

Para que a vítima se sinta parte integral do processo, ela precisa ter acesso a informações judiciais de
forma clara e objetiva. Sua narrativa da história deve ser considerada como elemento essencial, de forma que
haja uma reflexão terapêutica do ato sofrido. A questão do empoderamento, porém, é ainda mais importante,
pois

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida privou-lhes do controle so-


bre sua propriedade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se com
o processo judicial e suas várias fases pode ser uma forma significativa de
devolver um senso de poder às vítimas (ZEHR, 2012, p. 26).

É óbvio que a ampliação do poder das vítimas associada ao poder estatal pode resultar em uma socie-
dade ainda mais punitiva (CHRISTIE, 2010, p. 118), o que seria incompatível com a índole crítica – e, até,
abolicionista (ACHUTTI, 2014) – da Justiça Restaurativa. Como esclarecido por Christie (2010, p. 118), é
importante destacar que

A diferença essencial entre os encontros de resolução alternativa de conflitos


e os nas cortes penais é a questão do poder de punir. Punição significa trans-
ferir dor, intencionalmente como dor. Em encontros de justiça restaurativa
não estamos querendo criar dor, mas criar entendimento. Sem espada [refe-
rência ao símbolo da Justiça no Direito], e consequentemente sem necessi-
dade de prevenir o abuso da espada.

Com efeito, o processo restaurativo

[...] atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando


as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo, em que o Es-
tado figura, com seu monopólio penal exclusivo, como a encarnação de uma
divindade vingativa sempre pronta a retribuir o mal com outro mal (PINTO,
2005, p. 21).

Mas seria o modelo restaurativo indicado aos casos de violência doméstica? Antes de problematizar
essa questão e ensaiar caminhos para uma possível resposta, é importante compreender a ineficácia do sis-
tema penal em relação especificamente aos casos de violência doméstica no Brasil.

2. O CASO ESPECÍFICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL.

Para falar sobre violência doméstica no Brasil e, principalmente, sobre o tratamento legal (em es-
pecial, penal) dado a esse tipo de conflito em nosso País, é necessário lembrar alguns aspectos em torno do
movimento feminista brasileiro, peculiarmente diferente em relação ao tempo e às interações sociais com
outros movimentos sociais se comparado com os movimentos feministas da América do Norte e da Europa
(CAMPOS; CARVALHO, 2006).

No Brasil, o movimento feminista surgiu na década de 70, mas não se estabeleceu tão radical como
os movimentos de mulheres de outros países. Ele seguiu, aqui, uma agenda política compatível com outros
movimentos, representando, muitas vezes, uma junção de ideias ou, de fato, lutas semelhantes em comuni-
cação (CAMPOS; CARVALHO, 2006). Muito embora não se possa falar de um feminismo apenas1, dentre às
suas associações, o movimento feminista brasileiro, de um modo geral, aliou-se à sede por “justiça” própria
dos movimentos em prol do recrudescimento do Direito Penal. Quer dizer, a luta pelo respeito aos direitos
constitucionais das mulheres quase sempre passou, em nosso País, pela ideia de mais Direito Penal, mais
polícia, mais punição e mais prisão.

Várias críticas foram tecidas a essas correntes do movimento feminista por se associarem a um mal
(o Sistema de Justiça Criminal) como forma de expurgar outros males (dentre eles, a violência doméstica).
Para Andrade (1999), por exemplo, enquanto as mesmas mulheres, tão progressistas, lutavam também por
uma maior intervenção penal em determinadas áreas (dentre elas, a da violência doméstica), existia, ali,
um caráter ambíguo em sua busca por maior liberdade, reconhecimento e proteção. Com efeito, a sua força
reivindicatória e o seu caráter libertário, quando unidos com um movimento tão retrógrado como o penal,
1  De fato, deveria se falar em diferentes correntes ou em diferentes feminismos brasileiros (ANDRADE, 1999).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

acabaram por se converter na revitimização das mulheres que recorrem à polícia e acabam por conhecer,
muitas contra a sua vontade, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Mas por que retrógrado e por que dizer que a busca por proteção não deveria ser feita pelo âmbito do
sistema penal? Nas palavras de Andrade (1999, p. 112-113):

Isto se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de


homens quanto de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência
institucional, que exerce seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir
sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei,
polícia, Ministério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez, a
culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o
sistema penal duplica, em vez de proteger, a vitimização feminina.

No âmbito da violência doméstica contra a mulher, e ignorando esse alerta, surge a Lei Maria da Pe-
nha, festejada justamente pelo enrijecimento penal que promove.

2.1 O SURGIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA.

A Lei 11.340/2006, mais conhecida pela alcunha de “Lei Maria da Penha”, surgiu num momento
histórico de clamor público incitado pela mídia, e representou, politicamente, uma ação de cunho eleitoreiro
em resposta àquele clamor. Mas não foi esta Lei a primeira tentativa de resposta ao problema da violência
contra a mulher.

Num passeio muito rápido pela história, e já na década de 80, merece destaque a consolidação das
chamadas “Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher”, as quais surgiram em resposta àquelas
pressões feministas da década de 70. Já naquela época, percebeu-se que as mulheres passaram a buscar es-
sas delegacias, não para criminalizar o seu companheiro, mas para criar um ambiente no qual o seu agressor
fosse intimidado. Uma forma de coação informal ou até de mediação (MELLO, 2015).

Na década de 90, a criação dos Juizados Especiais pela Lei 9099/95 abarcou um grande número de
crimes, definidos como sendo de menor potencial ofensivo. O imenso número de casos evidenciados, a partir
destes Juizados, de mulheres que sofriam algum tipo de violência, serviu para descortinar algo que antes en-
contrava-se mantido dentro dos lares por uma sociedade extremamente patriarcal: a violência praticada pelos
companheiros, pais, pelo homem contra a mulher (MELLO, 2015). Contudo, conforme destacado alhures,

[...] por mais que os JECrims tenham implicado no desvelamento da violên-


cia doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou de encontrar outras
formas de tratamento preventivo ou repressivo [...]. A substituição das Penas
Privativas de Liberdade por Penas Restritivas de Direitos (na maioria das ve-
zes, penas de multa e pagamento de cestas básicas) foi vista por muitos como
uma banalização da violência de gênero. E também foi criticado o fato de o
conceito de Crime de Menor Potencial Ofensivo não compreender as particu-
laridades da violência doméstica (BARBOSA et al., 2015, p. 4).

A impossibilidade de visualização das nuances da violência doméstica e consequentemente uma so-


lução para o conflito, conjuntamente com a pressão política, acabara por fazer com que o Governo tomasse
uma atitude: a criação da Lei Maria da Penha.

Tendo sido muito bem recebida por tratar-se de uma lei de caráter protecionista (pela facilidade no
acesso à justiça e a possibilidade da aplicação de medidas protetivas), a Lei Maria da Penha trouxe maior
enrijecimento penal. Os processos que antes se encontravam na jurisdição dos Juizados Especiais Criminais
foram destes retirados, sendo “escanteadas” as medidas despenalizadoras e entrando em seu lugar penas
mais rígidas abstratamente.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

2.2 A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, A REVITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA E A (IN)EFICÁCIA DA


LEI 11.340/2006.

Em quase uma década de Lei Maria da Penha, a violência doméstica contra a mulher continua la-
tente. Quer dizer, mesmo com as medidas adotadas a pedido de movimentos sociais, principalmente segui-
mentos do movimento feminista, este tipo de violência continua a ser um grande problema no Brasil. Com
efeito, uma das primeiras cidades a criar o Juizado da Mulher, a cidade do Recife, que hoje sedia duas Varas
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (VVDFM), serve para mostrar três problemas: a violência
persiste; existe uma revitimização das mulheres que frequentam essas Varas; e a Lei Maria da Penha, para
muitas, é ineficaz (MEDEIROS, 2015).

Em pesquisa empírica concluída pela pesquisadora Medeiros (2015)2 naquela comarca, evidenciou-
-se que a regra do cárcere necessário dentro das VVDFMs não respeita a vontade das mulheres enquanto
age da forma mais agressiva possível. Ao contrário, ao longo do processo penal orquestrado pela Lei Maria da
Penha, o que ocorre é o silenciamento quase por completo destas mulheres, as quais, ironicamente, procu-
ram na Lei um lugar para ter sua voz ouvida, para encerrar o ciclo de violência, e recebem, em troca, mais
violência contra aqueles que ama e, de fato, contra si mesmas.

A forma como a Lei atua faz com que a mulher seja resumida à mera informante. Dentro da sala de
audiência, um momento que deveria ser de fala e protagonismo, vemos o imperialismo de um Sistema que
é guiado por fatos típicos e sua adequação a um artigo específico do Código Penal. As pessoas que ali estão,
suas vidas e singularidades são subsumidas e suas vozes roubadas. Mulheres que procuram apenas o cessar
da violência acabam por deparar-se com uma triste realidade: seu companheiro de anos, muitas vezes de
décadas, será preso provisoriamente por uma injúria ou uma ameaça (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS,
2015; MELLO, 2015).

Partem então, estas mesmas mulheres, em busca da liberdade daquele que lhe agrediu. Dentro das
Varas são tidas como loucas, tratadas como irracionais por não entenderem o “bem” que lhes foi feito. São,
em outras palavras, revitimizadas. Sofrem pela violência e pelas perdas promovidas pelo processo penal,
além das consequências sociais. Com efeito, muitas são economicamente dependentes daquele homem que
foi preso inteira ou parcialmente. Sua renda é baixa e existem filhos para criar. O Sistema de Justiça Criminal
cria, então, um problema maior que o antes existente (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO,
2015).

Corroborando com o exposto, Barbosa et al. (2015) afirma que:

O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que en-
volvem partes que pouco se conhecem (ou nem se conhecem) e lida com
tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violência doméstica
foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua
maioria (73,7%), pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que,
por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com o qual o Sistema Penal não
está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram
um relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a au-
mentar a ligação afetiva entre vítima e suposto agressor.

Nesse contexto, as mulheres, em grande parte, procuram a Justiça como forma de obter as medidas
protetivas de urgência, sendo que o Sistema de Justiça Criminal, engessado pelo seu ímpeto encarcerador,
atrela as medidas protetivas à existência de uma ação penal, ignorando o fato de que a vontade das mulheres,
no mais das vezes, não é de continuar essa ação e sim encerrá-la.3

2  Um dos co-autores do presente artigo, o pesquisador João André da Silva Neto, participou ativamente da referida pesquisa,
contribuindo para a coleta e a análise dos dados empíricos aqui comentados.
3  A pesquisa de campo realizada por Barbosa et al. (2015) evidencia que 43,5% dos processos observados foram extintos sem
resolução do mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher: 29,8% por retratação; 10,1% por decadência; 2,4

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Mostra-se a Lei, então, ineficaz para o que se propõe. Aliás, atinge, a Lei, um efeito contrário: por
temer as reações do Sistema de Justiça Criminal, muitas mulheres acabam por não comunicar a existência
das agressões, sendo a Lei, que veio para proteger, na verdade, um dos fatores de perpetuação da violência.

2.3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4424 E MAIS UM “ROUBO” DE CONFLITOS PELO


ESTADO.

Mesmo diante de todos esses fatores, o Legislador não tem recuado e muito menos o Judiciário. A
política criminal encarceradora continua a ser praticada e, no caso específico da Lei 11.340/2006, sem ne-
nhum tipo de estudo de impacto – e apesar dos estudos empíricos já publicados e debatidos no âmbito aca-
dêmico-científico.

Não bastasse esta atuação desmedida, a mulher, que já não tem vez e voz, foi mais uma vez silencia-
da com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Com efeito, o entendimento do STF, ao julgar a ADI 4424, chancela a apropriação pelo Estado de um
“conflito” pertencente às partes, vez que retira da mulher a decisão sobre representar ou não representar
nos casos de lesão corporal leve. De fato, na medida em que a ação penal deixa de ser pública condicionada
e passa a ser pública incondicionada, nos casos de lesão corporal leve praticada no âmbito da Lei Maria da
Penha, ao invés de empoderada, a mulher acaba como escrava da sua vontade de revelar a violência sofrida
às autoridades.

3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AOS CONFLITOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

A questão motivadora do presente artigo é se a Justiça Restaurativa, enquanto processo que tem
como fim o entendimento e não o “gerar dor” (CHRISTIE, 2010), se configura como alternativa de resolu-
ção do conflito de violência doméstica – como visto acima, um conflito tão peculiar, marcado pela afetividade
entre o agressor e a vítima.

Como argumenta Christie, “quanto mais próximos estamos do outro, mais hesitamos em querer, in-
tencionalmente, deixar o outro sofrer” (CHRISTIE, 2010, p. 120). O desejo da maioria das mulheres vítimas
de violência doméstica de não punir seus agressores, entretanto, não implica no fato de que essas mulheres
não querem que seus agressores assumam a responsabilidade pelo dano que causaram e, consequentemente,
trabalhem formas de reparar esse dano e de desistir do seu comportamento violento. Mas será que é possível
garantir à mulher o “direito ao conflito” em casos de violência doméstica, geralmente marcados pela “de-
sigualdade de poder”? Seria o uso da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica uma saída sim-
plesmente ineficaz e que ainda pode a revitimizar? Por enquanto, enquanto engatinhamos no tema aqui no
Brasil, o que podemos fazer, em termos empíricos, é observar a experiência que vem de fora do País.

3.1 A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL.

Em agosto de 2014, a Convenção de Istambul4 entrou em vigor na Europa, proibindo a imposição


de modos de resolução alternativa de conflitos em casos que envolvem violência doméstica (DROST et al.,
2015), assim como havia sido recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009.5 O que se
proibiu, portanto, não foi a utilização voluntária (quer dizer, não imposta às partes) de práticas restaurativas
em casos de violência doméstica, mas a imposição do processo restaurativo nesses casos. Dessa proibição,
entretanto, podemos extrair um certo pessimismo na utilização da justiça restaurativa nos casos de violência
doméstica, na medida em que foi dado destaque aos potenciais riscos em torno da empreitada restaurativa,
como a possibilidade de manipulação do processo pelo infrator e consequente sobrevitimização da vítima,
% por renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% por perempção.
4  Istanbul Convention ou Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic
Violence.
5  No ano de 2009, a ONU publicou, no Handbook for Legislation on Violence against Women, a recomendação de proibição de
mediação em todos os casos de violência contra a mulher, tanto antes como durante processos penais.

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Direito(s) em debate.

nesses que são conflitos tipicamente marcados pelo desequilíbrio de poder entre as partes. Apesar desta apa-
rente “rejeição”, existem inúmeras experiências de aplicação (voluntária) da Justiça Restaurativa em casos
de violências doméstica em países europeus, a exemplo da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda
e Reino Unido, as quais foram comparadas em estudo recente, financiado pela Comissão Europeia (DROST
et al., 2015, p. 7).

Nestes países, a Justiça Restaurativa pode ser observada em todas as fases do processo criminal
(DROST et al., 2015, p. 19), entretanto, em alguns países, existem critérios específicos de elegibilidade para
aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica. Na Grécia, por exemplo, a mediação
vítima-ofensor é possível apenas nos casos de violência doméstica que envolvam contravenções, ameaça,
insulto ou coerção. Além disso, alguns pressupostos são necessários como a “palavra de honra” do ofensor de
não mais praticar violência doméstica; a saída do ofensor da residência da vítima quando a mesma desejar;
a compensação do ofensor à vítima; e a participação do ofensor em programa psicoterapêutico (DROST et
al., 2015).

O serviço de mediação para casos de violência doméstica da Áustria, conhecido como Neustart, tem
um método diferente para a realização de encontros restaurativos. O Neustart trabalha, por ano, com mais
de 1200 casos envolvendo violência doméstica (DROST et al, 2015, p. 21). Quanto à condução do encontro
restaurativo, primeiramente, o ofensor e a vítima são entrevistados separadamente a fim de se analisar se o
encontro é um meio apropriado, assim como para preparar a mediação vítima-ofensor. Daí o primeiro mo-
mento ser chamado de “trabalhando em dois times”. Posteriormente, num segundo momento, são realizados
encontros com a vítima e o ofensor ao mesmo tempo, mas em diferentes salas. Logo depois, há a sessão de
mediação com a presença das partes envolvidas. Os mediadores contam o que ouviram para cada um – o que
é chamado de “espelho de histórias” – para somente depois as partes poderem comentar, corrigir e modificar
o que ouviram (DROST et al, 2015, p. 23).

Ainda na Áustria, as mediações são aplicadas a casos envolvendo violência doméstica desde o começo
dos anos 90. No ano de 1999, pesquisas qualitativas demonstraram o potencial dessas “resoluções” no pro-
cesso de empoderamento das vítimas. Em estudo realizado dez anos depois, por meio da aplicação de ques-
tionários, da observação de sessões de mediação e de entrevistas, os resultados foram de que 83% das vítimas
de violência doméstica não reportaram mais violência – e para 80% dessas mulheres, a violência cessou por
causa das mediações. Outrossim, para 40% das mulheres que continuaram o relacionamento ou que ainda
estavam em contato com o ofensor e não tiveram experiências violentas novamente, os parceiros mudaram
de comportamento como resultado da mediação (LOSEBY; NTZIADIMA; GAVRIELIDES, 2014).

Nos países analisados pelo estudo comparado, o modelo de prática restaurativa mais utilizado em
casos de violência doméstica é a mediação vítima-ofensor. (DROST et al, 2015, p. 21). É importante ressal-
tar que em todos os países analisados, o consentimento da vítima é pré-condição do processo restaurativo e
a saída da mesma pode ocorrer a qualquer momento do processo (DROST et al, 2015, p. 20). Em todos os
países analisados na pesquisa, com exceção da Grécia, o ofensor e a vítima podem, como regra geral, levar
pessoas de sua confiança para acompanhá-los e desempenharem um papel de “suporte” durante a mediação
vítima-ofensor (DROST et al, 2015, p. 24).

Na maioria dos países, a consequência do encontro restaurativo é uma espécie de acordo entre as
partes – que podem ou não decidir manter o relacionamento. Os acordos nos casos de violência doméstica
geralmente consistem na busca de ajuda e terapia para o comportamento violento do agressor e/ou para o seu
envolvimento com o álcool, mas a maioria dos acordos tem por foco principal o comportamento do agressor
no futuro (DROST et al, 2015, p. 25).

Na Áustria e na Grécia, o sucesso do desenvolvimento do encontro restaurativo pode culminar na


desistência da persecução criminal. Na Holanda e na Finlândia, o resultado do encontro restaurativo pode
ocasionar o fim do caso ou ser considerado, pelo juiz, no momento da sentença. Já na Dinamarca, a media-
ção vítima-ofensor não se configura como alternativa à punição. No Reino Unido, após a realização – com
sucesso – do encontro restaurativo, o juiz receberá um relatório e poderá aplicar uma sentença mais leniente
(DROST et al, 2015, p. 20).

273
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3.2 SOBRE ALGUNS RISCOS DA APOSTA RESTAURATIVA.

Conforme já afirmamos alhures (ROSENBLATT; MELLO, 2015, p. 107), ao buscar a reparação de


danos e de relacionamentos, um dos riscos atribuídos à Justiça Restaurativa é de que ela pode acabar forçan-
do uma reconciliação entre as partes. Isto é, enquanto o modelo tradicional de justiça criminal pode acabar
forçando o rompimento da relação entre as partes, este modelo alternativo pode acabar tolhendo a vontade
que algumas vítimas de violência doméstica têm de romper com o seu parceiro. De uma forma ou de outra,
a mulher permaneceria silenciada no processo de resolução do seu próprio conflito – quer dizer, o conflito
permaneceria “roubado”.

É importante salientar, entretanto, que a Justiça Restaurativa não se confunde com a mediação nem
tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação (ZEHR, 2012). No caso específico de conflitos de vio-
lência doméstica, elementos típicos da mediação como o conceito de “culpa compartilhada” e a “linguagem
neutra” não são adequados, uma vez que as vítimas podem se sentir insultadas (ZEHR, 2008). Com efeito,
a Justiça Restaurativa não busca um retorno à vingança privada, mas também não tem como foco o perdão
incondicional:

De fato, algum grau de perdão, ou mesmo reconciliação, realmente ocorre


com mais frequência do que no ambiente litigioso do processo penal. Con-
tudo, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos participantes. Não
deve haver pressão alguma no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação
(ZEHR, 2012, p. 18).

Destaca-se, outrossim, que os que defendem a não aplicação da mediação vítima-ofensor em casos
de violência doméstica comumente desconsideram a “lógica” do sistema tradicional de justiça criminal – que
tem a punição como fim e não se preocupa com os desejos/necessidades da vítima. Ocorre que, nos debates
sobre Justiça Restaurativa e Violência Doméstica, não se pode ignorar o fracasso do sistema de justiça cri-
minal na satisfação das necessidades das vítimas de crimes. Por outro lado, é importante destacar (e, claro,
melhor avaliar) os dados empíricos coletados em outros países, os quais, como se viu acima, sugerem um
otimismo das vítimas de violência doméstica em relação à sua experiência restaurativa.

Os céticos da aplicação da Justiça Restaurativa para casos de violência doméstica também normal-
mente ignoram a distinção entre as vítimas de “terrorismo doméstico” (intimate terrorism) e as de situações
esporádicas e isoladas de violência entre o casal (situational couple violence). É evidente que a aplicação da
Justiça Restaurativa nos casos de “terrorismo doméstico” – nos quais a vítima vive permanentemente com
medo e sofre reiterados atos de violência combinados com o “exercício” de poder e controle – é bastante pro-
blemática, além de perigosa (DROST et al, 2015, p. 9). Mas será que os casos de situational couple violence
merecem as mesmas preocupações? Ademais, inclusive os favoráveis à aplicação da Justiça Restaurativa em
casos de violência doméstica que envolvam traumas graves destacam a necessidade de imposição de “bar-
reiras protetoras” em prol da segurança das vítimas, a qual deve ser prioritária no processo: a participação
voluntária da vítima, assim como a possibilidade de desistência do processo a qualquer momento; o benefício
de serviços de apoio às vítimas antes, durante e depois do processo; o reconhecimento da responsabilidade
do agressor; e a formação apropriada dos facilitadores para a “administração do conflito” em questão (JAC-
COUD, 2005, p. 175).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E A SUA OPERACIONALIZAÇÃO NO BRASIL.

O Projeto de Lei Nº 7006 que prevê a implementação de procedimentos da Justiça Restaurativa no


Sistema de Justiça Criminal brasileiro está em tramitação na Câmara nos Deputados desde 2006. Se, por um
lado, esse projeto de lei representa a inércia política do movimento restaurativo brasileiro, de outro, o Con-

274
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

selho Nacional de Justiça vem demonstrando bastante entusiasmo quanto à (tentativa de) operacionalização
da Justiça Restaurativa no Brasil (ROSENBLATT; MELLO, 2015).

Por óbvio, a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil não pode consistir em uma mera “im-
portação” de práticas para uma realidade, a nossa, tão violenta, punitivista e marcada pela desconfiança da
população em relação às instituições do Sistema de Justiça Criminal (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015).
Além da necessidade de uma “latinização” da justiça restaurativa (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015),
este processo de operacionalização inspira cuidados quanto aos perigos da aplicação de práticas restaurati-
vas no âmbito dos mais diversos crimes, inclusive nos casos de violência doméstica contra a mulher. Preci-
samos nos perguntar sobre as potencialidades e os riscos de se aplicar a Justiça Restaurativa aos conflitos
domésticos, mas também precisamos explorar os riscos da sua não aplicação. Nesse ínterim, mais uma vez,
a experiência estrangeira destacada deve servir de fonte de inspiração. Entretanto, ainda mais no ano que a
Lei Maria da Penha completa 10 anos, sem atingir os fins pelos quais foi criada, é importante iniciarmos um
debate nacional mais detalhado e aplicado à realidade brasileira acerca da possibilidade restaurativa para os
casos de violência doméstica contra a mulher. Este, portanto, foi apenas um ensaio para lançar um tema que
ainda não foi entusiasticamente abraçado no nosso País.

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276
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO


STF:
UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?

Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes


Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP

Laís Emanuella da Silva Lima


Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP

Maria Eduarda Moreira de Medeiros


Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP

SUMÁRIO: Introdução; 1. A política antidrogas no Brasil: a guerra às drogas; 2. A indistinção usuário


x traficante de drogas; 3. Análise dos Votos relatados pelos Ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin
e Luís Roberto Barroso; Considerações finais.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos proferidos até então pelos Ministros
do Supremo Tribunal Federal, em seus respectivos votos, no recurso extraordinário 635659, que discute a
descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O recurso discute a inconstitucionalidade do
artigo 28 da Lei de Drogas, Lei 11.343/2006, o qual, em seu texto atual, tipifica como crime o porte de drogas
para uso próprio e penaliza a conduta com advertência, prestação de serviços à comunidade e compareci-
mento à programa ou curso educativo. Até então, verificou-se que os votos tendem a problematizar a violação
à liberdade, individualidade e a personalidade do indivíduo, afetando, também, os princípios da dignidade
da pessoa humana, da proporcionalidade das penas, caracterizando uma conduta e impondo uma atuação
autoritária e paternalista ao direito penal com relação a uma conduta que só atinge a esfera individual, não
lesionando bem jurídico alheio, e desrespeitando direitos fundamentais previstos no artigo 5º da nossa Cons-
tituição Federal, como o direito à intimidade e à vida privada.

É válido ressaltar que, infelizmente, a liberdade, sendo condição humana essencial, é secundarizada
e muitas vezes suprimida, acentuando um Estado de Polícia de supremacia de poder sobre as pessoas. A
criminalização do uso de entorpecentes obedece a uma agenda de guerra às drogas, cujas principais conse-
quências são uma maior estigmatização do usuário perante a sociedade e, por muitas vezes, também a sua
efetiva prisão, enquadrando-o como traficante, já que não existe um critério objetivo para a distinção das
duas condutas, ficando essa imputação – de uso ou tráfico - arbitrariamente sujeita a um entendimento sub-
jetivo e seletivo do poder policial. Então, rediscutir a política de drogas é uma forma de enfrentar a questão
da violência que assola o país desde a sua origem e restringir o atual sistema de repressão. Não obstante, fica
claro observar a utopia da criminalização por meio da ineficácia das guerras às drogas, que se esconde ainda
em um discurso sanitarista, mas sempre abusou do poder para impor o controle de populações específicas.
Com isso, tomando como impulso o caso do cidadão Francisco Benedito da Silva que foi flagrado com três
gramas de maconha para uso próprio, o STF discute a pauta da descriminalização com o objetivo de pôr fim
à estigmatização e ao modelo proibicionista. Por fim, a análise terá como marco teórico a criminologia crítica

277
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

e a metodologia utilizada será o método indutivo por levantamento bibliográfico e análise dos votos dos minis-
tros, bem como as legislações vigentes acerca do tema.

1. A POLÍTICA ANTIDROGAS NO BRASIL: A GUERRA ÀS DROGAS.

Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde droga é qualquer substância não produzida
pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações
em seu funcionamento. Drogas que alteram o funcionamento cerebral e causam modificações no estado
mental e no psiquismo do indivíduo que faz uso são chamadas de psicoativas ou psicotrópicas, substâncias
estas que têm a capacidade de provocar dependência. Também chamadas de substâncias entorpecentes, as
drogas podem ser classificadas como lícitas, permitidas para consumo, como exemplo das bebidas alcoólicas
e o cigarro de nicotina; ou ilícitas, aquelas que são criminalizadas e proibidas, como exemplo da maconha,
cocaína e crack.

A Lei 11. 343/2006 trata dos crimes relacionados às drogas, porém não define quais as substâncias
são criminalizadas no Brasil, isso fica a cargo da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por meio
da Portaria nº 344 de 1988 de listar todas as substâncias. E neste caso estamos diante de uma Lei Penal em
Branco, pois somente a Lei 11.343/06 não seria capaz de criminalizar uma conduta por si só, precisando ser
complementada por outra lei, nesse caso a Portaria nº 344/98.

As drogas sempre existiram na sociedade e o homem sempre fez uso delas, seja de maneira natural
como fumando a planta da maconha ou fazendo chás com outras ervas, seja misturando substâncias que
proporcionavam um efeito diferente no seu organismo. Há notícias do uso de drogas pelo homem vem desde
os primórdios da sociedade, quando achados arqueológicos e desenhos pré-históricos demonstraram que
provavelmente o uso e consumo de substâncias psicoativas vem desde os primórdios da humanidade.

Nem sempre a palavra droga foi sinônimo de guerra e violência, nem sempre ela foi tão estigmatizada
e combatida como hoje em dia em que vivemos uma política criminal de guerra às drogas apoiado por um
discurso médico-jurídico que traz o uso das drogas como uma patologia que precisa ser tratada, respaldada
ainda num discurso sanitarista, e uma criminalidade que precisa ser sanada. “Droga vem do holandês Droog,
que significa folha seca. A mesma começou sua história como remédio devido ao uso indiscriminado para
fins recreativos, passou a ser considerada ilícita, principalmente quando saiu do âmbito médico, ganhando
as ruas.” Essas proibições permeiam até hoje em nossa sociedade, mas em sua historicidade as drogas não
tinham um peso moral, elas eram vistas em termos religiosos, culturais e filosóficos.

O estereótipo do doente, o dependente, surge quando as drogas começam a ganhar um alto consumo
entre os jovens da classe média e alta e não mais é visto como algo dos pobres, negros de periferia. Com isso
surge a necessidade de separar quem fornece de quem consome, o usuário, agora de classe média-alta, se
torna vítima e não mais delinquente e é preciso diferenciá-lo daquele que vende a droga, de quem trafica,
geralmente o marginal, de classe mais baixa, no qual recai a responsabilidade.

Até o final do século XIX não há muita preocupação em relação as drogas, mas é a partir do século
XX que surgirão as primeiras leis criminalizando o uso de certas drogas, a posse ilícita de substância entor-
pecente não era punida, logo mais passa a ser, e com o passar dos anos essas leis vão sendo expandidas para
mais tipos de substâncias, aumentando também os verbos que compõe suas criminalizações e o tipo básico
do tráfico começa a acumular núcleos (exemplo: “vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou de qualquer modo,
proporcionar”).

Já em meados do século XX, no fim da década de 60, após a criação da Organização das Nações Uni-
das, surge, pela primeira vez, uma diretiva mundial de como lidar com a problemática das drogas. Conven-
ções que buscavam um mundo livre das drogas. E o presidente Richard Nixon se tornou o exemplo mais claro
desse tipo de política, no início do seu mandato declarou “guerra às drogas”. Nixon aumentou investimentos
e tornou o combate às substâncias psicoativas prioridade para todo o aparato estatal, especialmente a polícia,
declarando as drogas como “inimigo número um”. Essa política dos EUA refletiu em vários países, inclusive

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

no Brasil, onde a guerra às drogas se intensificou nos anos 80, quando o Brasil aparece como rota de tráfico
para os EUA e a Europa. Nesse período traficantes instalaram-se nos morros, nas favelas e o Estado reagiu
mandando soldados para atacarem e prenderem os traficantes. Com esse cenário instalado os conflitos se tor-
nam cada vez mais recorrentes, causando mortes e preocupação para os que vivem no meio desse conflito ar-
mado de ambos os lados. O mercado de tráfico de drogas expandiu e se consolidou fazendo com que o Estado
se sentisse cada vez mais ameaçado e querendo reagir cada vez mais forte. Em 2006 surge a Lei 11.343-2006
que traz várias medidas voltadas as condutas relacionadas às drogas, e a clara distinção em relação as penas
para traficante e usuário, porém, mesmo o usuário não tendo como pena a prisão, ele ainda é um sujeito que
comete uma ação típica e precisa ser punido de forma diferente. O traficante se torna o inimigo, o culpado
por todo esse caos causado e sentido pela sociedade, e que segundo Becker “é o indivíduo que vivendo em
uma sociedade, comete o comportamento que segundo essa sociedade é tomado como desviado” (Outsiders,
1960), é o Outro que precisa levar a culpa, que pode ser julgado por valores estabelecidos por quem está no
topo da sociedade.

E pautado nessa certeza é que em 2007 o Rio de Janeiro vira palco de uma das maiores represen-
tações da política de drogas no Brasil, a guerra às drogas toma proporções cada vez maiores, mais violentas.
Favelas passam a ser invadidas constantemente, o número de vítimas só aumenta e o tráfico também. Criam-
-se medidas cada vez mais extremas, através da GLO ( Garantia de Lei e Ordem) estabelecida em sua 1º
edição pela Portaria nº 3416 de 2013, estabelece a permissão para as forças armadas, respaldadas sobre o
objetivo de preservar a ordem pública, poderem invadir algum lugar suspeito e passar por cima até dos direi-
tos constitucionais de cada cidadão, um estado de guerra declarado que só aconteceram dentro das favelas,
principalmente do Rio de Janeiro, fazendo tantas vítimas por guerra em nome da paz, também chamadas de
PPP’s , Programa de Polícia Pacificadora.

2. A INDISTINÇÃO USUÁRIO X TRAFICANTE DE DROGAS

Como explanado anteriormente, a lei 11.343/06 fere a ideia de liberdade, proclamada pela Revolução
Francesa e, hoje, assegurada constitucionalmente como direito fundamental. É imprescindível ressaltar que
não só a liberdade individual é ferida como também o direito à privacidade e à intimidade, elementos funda-
mentais para garantia da dignidade da pessoa humana. Então qual o real sentido da tão anunciada “guerra às
drogas” pelo Estado “Democrático” brasileiro? Os legisladores que acreditam que esse modelo proibicionista
aniquilará o consumo/produção de drogas estão completamente destoados de razão. As substancias alucinó-
genas sempre existiram na natureza ou por criação química do homem e não possuem expectativa para seu
fim. Mas uma coisa é certa: a lei alimenta o mercado ilegal, o medo e o crime.

Para se ter ideia do poderio do tráfico de drogas, é sabido que, por ano, o crime organizado movimenta
cerca de 750 bilhões de dólares, sendo 500 bilhões gerados pelo narcotráfico.1 E quem ocupa essa figura do
narcotraficante? De acordo com o discurso estereotipado, divulgado pela mídia, este é um “criminoso orga-
nizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa
legislação como “entorpecente” e hoje, genericamente, como “droga”. (ZACCONE, 2007, p.01). A busca
insanável por derrotar esse “inimigo” fez crescer na sociedade o sentimento de punição, aflorado com a falta
de informação que engloba grande parte da população brasileira.

Por conseguinte, a lei 11.343/06 aumentou o número de presos por tráfico de drogas; de 2003 a 2013
a população carcerária triplicou e a grande contribuinte para o real fato foi a margem apreciativa que os poli-
ciais passaram a possuir para distinguir o usuário do traficante – seria redundante enunciar que milhares de
usuários foram/estão presos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a legalização das drogas ou a adoção
de penas alternativas para o pequeno traficante poderia liberar até 25% das vagas em presídios para combater
a superpopulação carcerária no país, que atualmente está em torno de 563 mil pessoas”2.

1  ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007.
2  LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em:<http://www.redebrasilatual.
com.br/cidadania/2015/06/fim-da-guerra-as-drogas-pode-liberar-25-da-populacao-carceraria-no-pais-2889.html > Acessado em 26 de Janeiro de
2016.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Bem, voltemos a discussão acerca da figura do narcotraficante. A seletividade punitiva engloba


todo o sistema do Direito Penal sendo majorada pela busca da “eficiência”, ou “resposta ao crime” (prisões).
É essa a ideação de Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 43, apud Zaccone), quando concluem que “como a inati-
vidade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda democracia e procedem à seleção”,
ressaltando que esse poder de seleção corresponde, fundamentalmente às agências policiais. Posto isto, a
veracidade dos fatos relata que os homens e mulheres que são presos por tráfico de drogas são pobres, com
baixa escolaridade, detidos na maioria dos casos sem resistência, popularmente conhecidos como “aviõezi-
nhos”. Essa política de seleção tem início com a ação da polícia que indiretamente delimita a faixa de atua-
ção da Magistratura e do Ministério Público, responsáveis pelo processo e julgamento. De acordo com José
Nabuco3:

É curioso observar como a figura do traficante é mitificada. A maior parte


deles é varejista – pessoas excluídas socialmente, vítimas de um estado
negligente. No entanto, a imagem do traficante, no imaginário, é a daquele
sujeito com fuzil a tiracolo, quando não a caricatura do vendedor de pipocas
que induz as crianças e os adolescentes a se viciarem.

Um dos grandes problemas da política de segurança pública brasileira é o olhar concatenado aos ín-
dices que são postos pela polícia. É um erro pensar que a criminalidade sofreu um impulso nos últimos anos,
pois crime sempre existiu, mas a atuação da polícia se tornou mais repressiva e os números são exemplos dis-
so. As frases “policial que prende é policial bom” ou “bandido bom é bandido preso”, já viraram jargões, não
é verdade? Isso é o reflexo do sentido que a polícia tem para a sociedade, quanto mais presos, mais eficiência
e maior a segurança. Contudo, é preso aquele que porta cinco quilos de crack e aquele com três gramas de
maconha, e aqui que reside a indistinção usuário x traficante.

3. ANÁLISE DOS VOTOS RELATADOS PELOS MINISTROS: GILMAR MENDES, EDSON FACHIN E
LUÍS ROBERTO BARROSO.

Por meio de Recursos Extraordinários, os ministros relatores do STF, até então citados, proferiram
seus votos declarando a descriminalização do uso de drogas para o consumo próprio. Sendo um tema atual,
mas um debate antigo da Criminologia Crítica, esse debate tirou o assunto do âmbito da invisibilidade bus-
cando melhores adequações sociais, sem discursos autoritários, paternalistas e moralistas. É positivamente
destacado quando o órgão mais alto coloca em pauta essa questão visando um efeito erga omnes, pois é mais
um passo no combate das guerras às drogas implantado pelos EUA que proibia o uso das drogas a fim de
reduzir o comércio ilegal.

É válido ressaltar que é defendido a descriminalização, e não a despenalização ou legalização, porque,


comumente, esses três termos são confundidos fazendo com que surjam leituras e interpretações equivoca-
das. Os ministros apoiam a exclusão de sanções criminais para a posse de drogas individual, permanecendo
em determinadas condutas a adoção de medidas administrativas. Tudo isso, declarando a inconstitucionali-
dade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que define como crime “adquirir, guardar, tiver em de-
pósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar”, já que viola direitos fundamentais. Tais direitos dos cidadãos devem
até mesmo ser limitadores do Poder Constituinte, pois esse usurpa a soberania do povo e retira o seu prota-
gonismo político. Então, é necessário uma legítima interpretação da carta constitucional, principalmente em
pontos ambíguos, que permita a real efetivação do que está escrito e mutualmente consentido por meio da
participação do povo. Por isso, é relatado nos votos que essa criminalização viola o artigo 5º da CF no qual é
dito “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...”. As escolhas individuais
desde que não ofensivas a terceiros ou a bens jurídicos alheios, não podem ser consideradas crime.

3  FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em: < http://www.diariodocentrodomun-
do.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/ > Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A forte repressão atual precisa ser modificada devido a vários fatores, já que só traz malefícios à socie-
dade. O discurso do Ministério Público alega que a conduta da descriminalização contribui para a propagação
do vício no meio social e que viola o direito à saúde e à segurança. Gilmar e Barroso citam explicitamente que
o uso não afeta a saúde alheia semelhantemente ao álcool e ao tabaco e que é a criminalização que exclui e
marginaliza socialmente. É indispensável se perguntar porque essa conduta ainda é tipificada de uma forma
seletivista e de acordo com estereótipos. Ficamos à mercê de relatos Policiais que maquiam constantemente
quem é usuário e traficante por meio do gênero e da classe. Muitos jovens são apreendidos como traficantes
sendo primários e sensíveis à enquadração do sistema criminal, provocando uma superlotação nas cadeias e
ficando sujeitos a aprender na “escola do crime”. Para isso, é primordial estabelecer a diferença traficante x
usuário, dando Barroso um passo maior em relação aos outros por estabelecer quantidades limites de 25g e
6 plantas fêmeas. É preciso ter o controle de evidência e de justificabilidade, verificando se o bem jurídico é
legitimado de forma correta pelo legislador e se a apreciação é objetiva e confiável pelas fontes de conheci-
mento.

Diferentemente de Gilmar Mendes, Barroso e Fachin foram limitadores restringindo a descriminali-


zação apenas para a maconha alegando ser o melhor caminho o da autocontenção. Surgiram várias críticas
a partir disso, se os ministros afirmam que a guerra as drogas fracassou porque continuar criminalizando
determinadas drogas como o crack ou porque continuar com tal estigma ao limitar apenas a uma droga dita
burguesa. Apesar de tais dissensos, todos os votos estão na direção da descriminalização até o julgamento ser
interrompido por um pedido de vista pelo ministro Teori Zavascki.. E isso deve ser o maior propósito quebran-
do o estigma dos argumentos perfeccionistas que justificam o tratamento penal do uso por meio da reprova-
bilidade moral dessa conduta, ou seja, acabar com discursos moralistas que desejam impor um padrão. De
acordo com Fachin, “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”,
com isso é necessário perceber que o dependente não deve ser tratado como criminoso e sim como vítima.
Sendo importante refletir que todos nós somos vítimas de um sistema e expressões vivas do meio em que
vivemos. A preocupação com conceitos é excessiva e tudo e todos são blindados contra a ordem do mundo
não podendo nada “sair do padrão” imposto. É necessário parar com tais estigmatizações e expandir o poder
da mente para novas descobertas e soluções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, a análise dos votos do STF é uma importante porta de entrada para um novo entendimento
político acerca das drogas, abarcando estudos na sua produção e regulamentação. É válido lembrar que o
usuário é o menor dos problemas na “luta contra as drogas”, pois é sabido que muito mais gente morre em
decorrência da violência gerada por essa “guerra” do que pelo seu consumo excessivo. Não se trata de apolo-
gia ao uso, mas de uma visão destoada de preconceitos, dogmas e conservadorismos. Nas palavras do Mestre
José Nabuco Filho, “ É preciso deixar de lado o míope fanatismo proibitivista e avançar rumo à descriminali-
zação das drogas. Essa é a melhor maneira de combatê-las”.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. Descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Disponível
em < http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Anota%C3%A7%C3%B5es-para-o-
-voto.pdf >Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

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Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio; tradução Maria Luiza X. de Bor-
ges. 1ª edição, Rio de Janeiro, editora Jorge Zahar, 2008.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/06/fim-da-guerra-as-drogas-pode-liberar-25-da-populacao-carceraria-no-
-pais-2889.html > Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

NIEL, Marcelo. Descriminalização das drogas: do debate a guerra. Disponível em: < http://revista-
visaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-das-drogas-do-debate-a-guer-
ra-293295-1.asp> Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

PORTAL DA EDUCAÇÃO. Disponível em: <http://www.portaleducacao.com.br/psicologia/artigos/53577/


aspectos-psicossociais-que-envolvem-o-uso-de-substancias-psicoativas> Acessado em 26 de Janeiro de 2016

PORTAL SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticia-


NoticiaStf/anexo/RE635659EF.pdf> Acessado em 26 de Janeiro de 2016.

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora
Revan, 2007.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS


PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Fernando Flávio Garcia da Rocha


Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e
Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito
Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e
Cibercultura.

João Paulo Allain Teixeira


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho
pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor Adjunto na Universidade Federal
de Pernambuco, Professor Assistente na Universidade Católica de Pernambuco e Professor
Titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador “ad hoc” do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação (MEC).
Membro da Comissão de Qualificação de Eventos para a área Direito da CAPES. Líder
do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização
de Direitos” no Diretório Geral de Grupos de Pesquisa CNPq. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado, atuando
principalmente nos temas Jurisdição Constitucional, Hermenêutica, Pluralismo e Teoria da
Democracia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Roberto Viciano Pastor: delimitando o tema; 2. Considerações a respei-


to das constituições: 2.1 Brasil (1988); 2.2 Colômbia (1991); 2.3 Venezuela (1999); 2.4 Equador
(2008); 2.5 Bolívia; 3 Neoconstitucionalismo Europeu e Novo Constitucionalismo Latino-Americano;
4 Reflexos no Pensamento Jurídico Brasileiro Contemporâneo; Considerações Finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o movimento latino-americano denominado “Novo
Constitucionalismo Latino-Americano”, que vem tomando espaço na academia desde o final do século XX e
até o presente.

O novo constitucionalismo é uma mudança paradigmática, que vem acontecendo na América Latina
especificamente em Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. Sua proposta consiste em distanciar-se das
culturas europeias e norte americana, que, de certa forma, tiveram influência no processo civilizatório dos
países da América Latina.

No primeiro momento, far-se-á a delimitação do tema a partir das considerações de Roberto Viciano
Pastor. Segundo Brandão, Viciano foi o primeiro a estudar o a temática sob o viés da Teoria da Constituição
(2015, p.12).1

1  Ressalta-se que a afirmação hoje não pode ser entendida no sentido absoluto, visto que muitos autores tiveram e continuam
tendo influência no estudo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Em seguida, tecer-se-á comentários ao Neoconstitucionalismo Europeu, tentando, assim, diferenciar


do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Essa análise pretende suscitar uma reflexão para saber se
um pode servir de continuidade do outro, ou seja, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode ser
entendido como extensão do Neoconstitucionalismo Europeu?!

Por fim, não pretendendo esgotar a complexidade do tema, estudaremos e tentaremos refletir os re-
flexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil.

1. PERSPECTIVA DE ROBERTO VICIANO PASTOR: DELIMITANDO O TEMA.

À primeira vista é necessário sugerir limites ao exagero terminológico, que gera entendimentos equi-
vocados sobre a matéria em análise. Vê-se a baixo o rol de nomenclaturas que permeiam o debate do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano:

i) novo constitucionalismo latino-americano; ii) constitucionalismo mes-


tiço; iii) constitucionalismo andino; iv) neoconstitucionalismo transfor-
mador; v) constitucionalismo do sul; vi) constitucionalismo pluralista; vii)
constitucionalismo experimental ou constitucionalismo transformador; viii)
constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo
constitucionalismo latino-americano; ix) novo constitucionalismo indoafro-
latino-americano; x) constitucionalismo pluralista intercultural; xi) constitu-
cionalismo indígena; xii) constitucionalismo plurinacional comunitário; xiii)
o novo constitucionalismo indigenista; xiv) constitucionalismo da diversida-
de; xv) constitucionalismo ecocêntrico; e xvi) nuevo constitucionalismo so-
cial comunitário desde América Latina (BRANDÃO, p.10).

Entende-se ser preocupante a extensa linhagem de termos que envolve o estudo do Novo Constitu-
cionalismo Latino-Americano, por essa razão, considera-se mais correto: novo constitucionalismo latino-a-
mericano.

Roberto Viciano Pastor faz a seguinte análise sobre o tema: primeiro, distingue o Novo Constituciona-
lismo Latino-Americano do Neoconstitucionalismo Europeu. Assim, este seria uma teoria do direito, enquan-
to que aquele uma teoria da Constituição porque visa a uma análise da dimensão positiva da Constituição.
Nesse sentido, não busca uma ruptura, apenas converter o Estado de Direito em Estado Constitucional de
Direito, embora reconheça a centralidade e o fortalecimento da Constituição, especificamente com a forte
presença dos princípios no ordenamento jurídico (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Ru-
bén. p., 17-18).

Brandão pondera que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano é um movimento surgido das


reivindicações e manifestações populares, diferente do Neoconstitucionalismo Europeu que é uma corrente
doutrinária fruto da academia, dos professores de direito constitucional (2015, p. 13). Enquanto que Pastor,
entende que aquele é uma corrente constitucional em período de construção doutrinária, com elementos co-
muns, mas sem um modelo hermético (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 4).

Em seguida, faz saber que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao mesmo tempo em que
absorve alguns comandos do Neoconstitucionalismo Europeu, especificamente a constituição no ordena-
mento jurídico, ostenta preocupação central com a legitimidade democrática da constituição, garantindo a
participação política, de forma que só a soberania popular pode determinar a alternativa da constituição, e
recuperando a origem democrático-radical do constitucionalismo liberal revolucionário jacobino (VICIANO
PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 18-19).

Ademais, uma das principais diferenças que marca o Constitucionalismo Velho da América Latina,
em relação ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, refere-se aos processos constituintes. Enquanto
que aquele era fruto de um acordo de elites, baseado em interesses comuns, este faz parte de uma dinâmica
participativa e marcada por tensões (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 22).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Logo após, diz que a Constituição brasileira de 1988, ainda que tenha traços essenciais, não é consi-
derada um exemplo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, visto que o seu processo constituinte é
deficitário de legitimidade democrática na Assembleia Constituinte, pois ainda era condicionada às regras do
Regime Militar (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 318-319).

Levando em consideração o exposto, acredita-se ter introduzido o tema para uma melhor compre-
ensão do tema ora proposto.

2. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS CONSTITUIÇÕES.

Não pretendemos esgotar a complexidade do tema sobre as Constituições, visto o notório arca-
bouço teórico e empírico. Nesse sentido, procuraremos colocar apenas os pontos que entendemos ser os mais
importantes.

Verifica-se presente, em primeiro lugar nessas constituições, o plebiscito como elemento legitimador
das constituições, visto ser condição indispensável para dar valor legal a todos os atos decorrentes da sua
aplicação. Aliás, foi a pré-condição estabelecida pela própria ditadura. Perpassaram oito anos e nada de ple-
biscito. O uso deste foi uma das características da ditadura fascista e nazista nas décadas de 1920 e 1930,
sempre com o intuito de buscar apoio popular a uma medida já em curso.

Segundo Villa, o século XXI, os novos caudilhos Latino-Americanos, como Venezuela, Bolívia, Equa-
dor e Colômbia, usaram diversas vezes desse instrumento, sempre como o mesmo intuito: aprovar medidas
que feriam as liberdades democráticas (2011, p. 76).

Contribui também Barros e Gomes Neto:

A proposta das constituições, fruto da doutrina constitucional “novo constitu-


cionalismo latino-americano”, é romper com esse constitucionalismo liberal
importado e construir um Estado que reconheça que a sociedade latino-ame-
ricana não é homogênea, mas plural, dando voz a grupos antes excluídos do
processo político, como os povos indígenas (2015, p. 2148).

A par disso, começa-se a observar as constituintes:

2.1. BRASIL, (1988).

Rocha e Saldanha (2014, p. 6) entendem que diferente das constituintes anteriores do Brasil, esta
previu uma organização tanto quanto satisfatória albergando todas as garantias e direitos dos cidadãos. Com-
preende, assim, em nove títulos, que cuidam: 1 Dos direitos fundamentais; 2 Dos direitos e garantias funda-
mentais; 3 Organização do Estado; 4 Organização dos Poderes; 5 Defesa do Estado e das Instituições Demo-
cráticas; 6 Da Tributação e do Orçamento; 7 Ordem Econômica e Financeira; 8 Ordem Social; 9 Disposições
Gerias. Embora possa ser considerada uma constituição que não faz parte o Novo Constitucionalismo Latino-
-Americano, pode-se dizer que após Emendas à Constituição, bem como às Emendas Revisionais, o cenário
permutou para uma legislação mais avançado, ao ponto se ser entendida, no sentido formal, como parte do
Novo Constitucionalismo Latino-Americano.

Brandão observa que a Constituição brasileira de 1988, ainda que anuncie alguns traços essenciais,
não é considerada um exemplo desse Novo Constitucionalismo Latino-Americano, devido ao seu processo
constituinte deficitário de legitimidade democrática em sua Assembleia Nacional Constituinte, condicionada
às regras ditatórias (BRANDÃO apud VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén 2015, p.
16).

2.2. COLÔMBIA, (1991) .

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A Constituição Colombiana de 1991, pode ser considerada um marco, em razão de sua proposta de
ruptura, de transformação da ordem política e através da ativação direta do poder constituinte, traços que se
repetiram nas cartas posteriores Venezuela, Bolívia e Equador (ORIO apud PASTOR e DALMAU, p. 172).
É de se ressaltar o impasse que essa Constituição passa, visto que alguns entendem que ela não faz parte do
Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém entendemos que, embora ela não tenha se desenvolvido
como as outras, foi a primeira a prever mudanças paradigmáticas em detrimento aos modelos colonizados.

Brandão entende que a Constituição Colombiana, entre outras coisas, foi a pioneira no reconheci-
mento da jurisdição autônoma indígena, contribuindo para o desenvolvimento do pluralismo jurídico nos
ordenamentos jurídicos de nosso continente. É claro que há outras constituições que contribuíram, com
menor intensidade, para o surgimento do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém a experiência
colombiana se destaca no campo constitucional de nossa região (2015, p. 85-86).

2.3. VENEZUELA, (1999).

A Constituição da Venezuelana está no limbo, ou seja, entre a pioneira ou precursora do Novo Cons-
titucionalismo Latino-Americano, ao lado na Colombiana que fora acima estudada. Ora, são citadas como
precedente desse movimento, outrora enquanto sua parte integrante, porém sem grande desenvolvimento
acerca de suas inovações e de sua importância, de modo que merecem uma atenção especial (BRANDÃO,
2015 p. 85).

A Venezuela com o restabelecimento da ordem democrática após a queda de ditador Marcos Pérez
Jiménez, 1958, constituiu-se numa chamada “democracia de vitrine”. Assim, erigida sobre e para a manu-
tenção da hegemonia das mesmas forças políticas e absolutamente incapaz de enfrentar problemas como a
desigualdades socioeconômicas e étnicas, o que se agudizou profundamente com a crise econômica dos anos
80, culminando num acirramento da luta de classes e na demarcação nítida dos campos políticos (ORIO
2013, p. 167).

2.4. EQUADOR, (2008).

Orio (2013, p. 169) observa que, no Equador os processos transformadores haviam alcançado desfe-
cho interessante do ponto de vista da tomada do poder por forças contra hegemônicas ainda em 2002, com
a eleição de Lucio Gutierrez para a presidência com apoio do movimento indígena, centralizado na Confede-
ração de Nacionalidade Indígenas do Equador (CONAIE).

Acrescenta o mesmo autor, o que se viu, todavia, foi um governo de orientação neoliberal, fazendo
com que logo após seu início o movimento indígena se lhe afastasse e acabasse por se dividir e consequente-
mente, perder forças e legitimidade. O cenário equatoriano para a derrubada do Presidente Lucio, destarte,
foi permeado por um movimento opositor difuso e semi-espontâneo, um amálgama de setores oriundos de
diversas correntes de esquerda, de cidadãos independentes e de organizações e ONGs que lutavam por ética
na política e contra a partidocracia (ORIO 2013, p.169)

Brandão denota que a Constituição Equatoriana é a que parece mais comprometida com a transfor-
mação radical da sociedade, inserindo no novo constitucionalismo elementos que antes eram estranhos à
teoria da constituição. A cosmovisão indígena incorporada por essa constituição é a experiência que certa-
mente reconstrói e, no mesmo interim, desconstrói a racionalidade monolítica a que o direito e a moderni-
dade estão acostumados (2015, p. 140).

2.5. BOLÍVIA, (2009).

A Bolívia, com as Guerras da Água e do Gás, desencadeada nas cidades bolivariana de Cochabomda e
El Alto, respectivamente, foram respostas à medida de aumento extraordinário no preço das tarifas do serviço
de distribuição de água, administradas por uma empresa transnacional, e à intenção do governo Sánchez de

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Lozada de exportar o gás bolivariano através do Chile, sem perspectiva de atendimento da demanda interna
(ORIO, 2013 p. 167)

Ademais, à medida que a repressão estatal tornava-se violenta, houve crescente aderência da so-
ciedade civil e outros setores organizados, culminando num movimento de espectro amplo, que não só rei-
vindicava a nacionalização dos recursos naturais bolivarianos, como também inaugurava novos marcos de
participação política e articulação social, pautado, especificamente, uma nova ordem política, protagonizada
por novos sujeitos políticos, tradicionalmente excluídos, em detrimento do monopólio das elites nos espaços
de deliberação (ORIO, 2013, p. 168).

Conclui-se este capítulo, afirmando que não se fez esgotado o tema das Constituições Latino-Ameri-
canas, porém procuramos tecer apenas alguns comentários sobre elas a fim de esclarecer um pouco de suas
virtudes. Verifica-se ainda que, essas são uma viravolta nos modelos de participação popular, visto ter um
regramento inovador; além de matérias referentes à natureza, dentre outros temas que serão analisados em
trabalhos futuros.

4. NEOCONSTITUCIONALISMO EUROPEU E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO:


UMA PROPOSTA DE CONTINUIDADE.

Observa-se que, atualmente, são veiculados em sites, blogs, revistas e em livros, artigos que têm
com o condão de estudar o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, bem como o Neoconstitucionalismo
Europeu. Todavia, na maioria das vezes, não se consegue distinguir ambos os sistemas, tendo em vista a ter-
minologia utilizada, com isso não se sabe, em razão da falta de clareza.

Por essa razão, sugerimos a utilização da seguinte nomenclatura Novo Constitucionalismo Lati-
no-Americano e não Neoconsconstitucionalismo, quando a pretensão for estudar o movimento Latino-Ame-
ricano.

O Neoconstitucionalismo Europeu surge logo após a 2º Guerra Mundial, na Europa Conti-


nental, especificamente no Itália, Alemanha, Portugal e Espanha (BARROSO, 2007 p. 3), para fortificar as
esperas jurídicas contra as forças de violação de direitos humanos.

As Constituições dos países mencionados têm como características comuns: a extensa decla-
ração de Direitos e Garantias Fundamentais, de forte conteúdo axiológico e cultural dotado de historicidade,
que representam a permuta de regime autoritários para democráticos, e adentram em temas que antes eram
estranhos à constituição.

André Rufino do Vale entende que esse movimento tem como características: mais princípios que
regras, mais ponderação que subsunção, mais constituição que lei, mais juiz que legislador (VALE apud Pie-
tro Sanchis, 2007 p. 68). Surge, assim, para proteger os Direitos Humanos dos regimes fascistas (Alemanha
Nazista, por exemplo).

O maior legado do Neoconstitucionalismo Europeu é o fortalecimento do ser humano no centro do


ordenamento jurídico. Em razão disso, acredita-se que esse sistema serviu de base para o Novo Constitucio-
nalismo Latino-Americano, ponto que será estudado mais a frete.

Pode-se dizer que a Dignidade Humana foi regulada na Constituição brasileira de 1988 e nas eu-
ropeias da Alemanha 1949, Itália 1947, Portugal 1976, Espanha 1978 e na própria Declaração de Direitos
Humanos 1948. Portanto, entende-se que o Neoconstitucionalismo Europeu trouxe a fortificação da Consti-
tuição e o reconhecimento da Dignidade Humana nos países Latino-Americanos.

Por outro lado, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano reconhece o Pluralismo Político e os


atores antes excluídos do processo democrático. Assim, esse sistema começa a surgir no fim do século XX,
e até hoje continua sendo pesquisado e bastante discutido, inclusive sendo proposta de vários congressos
mundo afora.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

César Augusto Baldi explica que, em fins do século XX, no continente americano, há importantes
modificações dentro daquilo que Raquel Yrigoyen denomina de “Horizonte Pluralista”, assim estudado em
três ciclos (BALDI, 2013, p. 92).

O primeiro ciclo o Constitucionalismo Multicultural 1982-1988, introduz o conceito de diversidade


cultural, ou seja, o reconhecimento da configuração multicultural da sociedade e alguns direitos específicos
para indígenas. Assim, os atores começam a surgir (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 92).

O segundo ciclo o Constitucionalismo Pluricultural 1989-2005, marca a internalização, na maior par-


te do continente, da Convenção 169- OIT, que revisa a anterior Convenção 107 e reconhece um amplo leque
de direitos indígenas (língua, educação, bilíngue, terras, consulta, formas de participação jurisdição indígena,
etc), (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93). A jurisdição indígena é reconhecida na Constituição colom-
biana de 1991 e depois pelo Peru 1993, Bolívia 1994-2003, Equador 1998 e Venezuela 1992.

O Terceiro ciclo o Constitucionalismo Plurinacional 2006-2009, está conformado pelas constituições


boliviana e equatoriana, reconhecendo, assim, os direitos dos povos indígenas. Fundado em dispositivo para
a refundação do Estado, e entendendo os indígenas como nações/povos e nacionalidades e, portanto, como
sujeitos políticos coletivos com o direito a definir seu próprio destino, governar-se em autonomias e participar
nos pactos de Estado (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93-94).

Com a apresentação dos três ciclos, torna-se evidente a diferença do Neoconstitucionalismo Europeu
do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Ressalta-se que o apresentado, como marco de distinção foi a
cosmovisão indígena, significa dizer que os modelos de matrizes europeia não reconheceram detalhadamen-
te essa questão, portanto, à luz dessa realidade colocou ao crivo para diferenciar ambos sistemas.

A proposta de continuidade, que propomos neste tópico, surge em razão da lógica temporal, isto é, o
Neoconstitucionalismo Europeu advém após fim da 2º Guerra Mundial 1945 e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano nasce no fim do século XX, e continua sendo estudo em pleno XXI.

Nesse sentido, a fortificação da Constituição que provém daquele ainda está presente neste, bem
como a dignidade humana, ambos corolários do sistema de matriz europeia. Então, não se trata necessaria-
mente de uma negação absoluta do Neoconstitucionalismo Europeu, pois há pontos de convergência entre
os dois movimentos (BRANDÃO, 2015 p. 63).

O que há, no caso apresentado, é uma mudança paradigmática nos agentes legitimados a alterar o
poder constituído, enquanto que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano é o povo o detentor dessa
prerrogativa, no Neoconstitucionalismo Europeu, são os mandatários e agentes legitimados.

Transpassando essas considerações, vamos estudar no item a seguir os reflexos desse movimento
Latino-Americano no contexto do pensamento jurídico brasileiro contemporâneo.

5. REFLEXOS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Neste penúltimo capítulo, vai-se elencar um quadro comparativo com as Constituições do Equador
e da Bolívia, a fim de comparar com a Constituição Federal do Brasil de 1988. Com isso, evidenciaremos os
avanços e os reflexos para o pensamento jurídico brasileiro.

Verifica-se na Constituição do Equador: I Elementos constitutivos del estado; II Derechos de las per-
sonas y grupos de atención prioritária; III Derechos de las comunidades, pueblos y nacionalidades; IV Dere-
chos de participación; V Garantías constitucionales; VI Participación y organización del poder; VII Función
Judicial y justicia indígena; VIII Biodiversidad y recursos naturales (Constituição do Equador, 2008).

Observa-se na Constituinte da Bolívia: I Bases Fundamentales del Estado; II Principios, Valores y


Fines del Estado; III sistema de gobierno; IV Derechos fundamntales y garantias; VI derechos civiles y po-
líticos; VII Derechos de las Naciones y Pueblos Indígena Originario Campesinos; VIII Derechos Sociales y
Económicos; IX composición y atribuciones del órgano ejecutivo (Constituição Bolívia, 2009).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Percebe-se na Constituição de Federal do Brasil: I Dos direitos fundamentais; II Dos direitos e garan-
tias fundamentais; III Organização do Estado; IV Organização dos Poderes; V Defesa do Estado e das Insti-
tuições Democráticas; VI Da Tributação e do Orçamento; VII Ordem Econômica e Financeira; VIII Ordem
Social; IX Disposições Gerias (Constituição Federal, 1988).

É notório, tanto primeira, quanto na segunda, o respeito aos direitos dos indígenas, talvez esse seja
a maior contribuição de mudança no cenário Latino-Americano. Além de do mais, a participação social da
população, incluindo os indígenas. O que se pode ter em mente é que as três Constituições têm em comum
garantias e preocupações parecidas, porém em certos casos a brasileira se distancia. Em razão de haver inú-
meras características, analisaremos as duas exposta aqui.

Segundo César Augusto Baldi, tanto a Constituição do Equador, quanto a da Bolívia, preveem o di-
reito à consulta prévia, livre, informada e de boa fé relativamente a medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetar as comunidades indígenas, em especial programas de exploração de recursos não reno-
váveis (BALDI, 2013, p. 101).

Nesse sentido, portanto, percebemos que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode influen-
ciar o Brasil a criar “novas medidas tendentes a respeitar com maior extensão os direitos dos indígenas”, bem
como “assegurar uma participação popular mais efetiva”, além de prever a “possibilidade de autodetermina-
ção dos povos indígena” ao ponto de permitir aos indígenas a possibilidade criar seus próprios Tribunais sem
a interfere do direito estatal.

O Brasil no sentido normativo, em razão dos avanços legais (emendas à constituição, por exemplo),
mostra-se ter as características do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Por outro lado, o que o dis-
tancia é a falta de atividades sem a participação popular, enquanto que no Equador e na Bolívia é pré-requi-
sito para o exercício a manifestação do povo.

Finalmente, entendemos que o diálogo entre Estados/Constituições pode ser positivo tanto para o
crescimento, quanto para o fortalecimento de medidas nacionais. Assim, Marcelo Neves destaca que a ra-
cionalidade transversal, quando não houver possibilidade de violação de direitos humanos, com mais de dois
sistemas viabiliza o intercâmbio construtivo entre política, direito e economia (NEVES, 2009, p. 50-51).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, conclui-se ressaltando a importância de se estudar o tema na América Latina, visto
ser uma temática em constante desenvolvimento que repercute no plano nacional e, também, no interna-
cional.

Os reflexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil dizem respeito ao modo de pen-


sar dos cidadãos, bem como dos mandatários. Assim, estes terão o condão criar medidas mais integrativas e
tendentes a dar vida ao texto normativo, enquanto que aqueles a responsabilidade de reivindicar os direitos
violados.

Por fim, não tivemos a pretensão de esgotar o tema, porém entendemos que podemos contribuir com
o debate.

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290
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO


DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO

Fernando Flávio Garcia da Rocha


Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e
Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito
Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e
Cibercultura.

Paloma Mendes Saldanha


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista
em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ).
Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE.
Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB

SUMÁRIO: Introdução; 1. Cibercultura sob a Perspectiva do Estado Democrático de Direito. 2.


Novas formas de Ensino: Educação versus Internet. 3. As novas tecnologias no ensino jurídico. Con-
clusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Durante muitos anos entendeu-se o ensino jurídico como algo geometrizado, ou seja, por analogia
o alunado deveria participar de um “jogo de memória” para apostar num futuro de conhecimento. Ocorre
que através da geometrização tem-se a criação de uma ilusão de segurança, certeza e fechamento para o
Direito. Entretanto, é esse método matemático que torna o Direito inseguro e o ensino jurídico sem qualquer
manifestação de pensamento ou despertar de senso crítico. É o que chamamos de ensino baseado no dog-
matismo. Entretanto a dogmática jurídica é uma “herança” que temos que decidir o que será feito com ela:
aperfeiçoamos ou a transformamos?

A partir de um novo contexto social baseado na evolução das novas tecnologias da informação, sobre-
tudo, com o advento da internet surgiram outras formas de transmissão de conhecimento. A cibercultura ao
trazer seu universo de informações, amplifica, exterioriza e modifica numerosas funções cognitivas huma-
nas. Dessa forma, o alunado que cresce sob a influência da “nova educação” termina por ter um pensamento
e raciocínio aberto, contínuo e não-lineares.

Assim, a utilização de novas metodologias acrescidas às novas tecnologias da informação terminam


por não aceitar o pensamento cartesiano, trazendo, portanto, a retirada do dogmatismo, da univocidade da
lei, bem como da interpretação literal desta. “Abrem-se as portas” para o pensamento crítico, para a herme-
nêutica, colocando, por sua vez, o direito como ciência da compreensão e trazendo para sala de aula, por
exemplo, um processo de ensino-aprendizagem baseado em jurisprudências.

Diante disso, pretende-se analisar novos paradigmas educacionais advindos da participação das novas
tecnologias no processo de ensino-aprendizagem jurídico, bem como analisar quais os benefícios e as melho-
rias com a utilização desses novos paradigmas educacionais para o operador do Direito e para o meio jurídico
propriamente dito.

291
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. CIBERCULTURA SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

A partir do contexto contemporâneo, é normal surgirem conceitos que envolvem tanto a Teria Geral
do Direito, quanto à Filosofia, à Sociologia, à Antropologia, à Hermenêutica e, assim, por diante. Ademais, é
comum haver definições que não corresponde à essência de cada instituto. Dessa forma, mesmo a Cibercul-
tura e o Ciberespaço tendo conceitos antagônicos e pretensões opostas, na prática acabam por se confundir.

Segundo Pierre Lévy:

O ciberespaço é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial


dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui
o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjun-
tos de redes hertzianas e telefônica clássica), na medida em que transmi-
tem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização
(LÉVY, p. 102).

Sabendo disso, é notável que atualmente o conhecimento é fruto de fontes diversas às quais sedimen-
taram o contexto Pós Segunda Guerra Mundial. Ou seja, modelo em que os receptores ficam submersos aos
transmissores. Como mudança, o ciberespaço traz um novo paradigma a ser absorvido pelas gerações mais
antigas vez que as novas gerações de indivíduos parecem já nascer predisposto ao acesso e vivência no meio
virtual.

Aurélio entende que a Cibercultura é conjunto de padrões culturais com a Internet e a comunicação
em redes de computadores. Isto é, enquanto que o conceito de ciberespaço especifica o que de fato é o espa-
ço, este esclarece a cultura pode ser desenvolvida por meio espações dinâmicos (FERREIRA, 2010). Dessa
forma, os conceitos não se confundem.

Considerando os pontos apresentados, verifica-se que a lógica dinâmica da rede é uma saída para
difundir o conhecimento. Assim, não precisando ficar adstrito a modelos ultrapassados de fomentação do
conhecimento. Sabendo disso, passa-se a análise dos instrumentos constitucionais de inclusão do cidadão ao
ensino.

José Afonso da Silva (2015, p. 853) entende que a Constituição de 1988:

deu relevância à cultura tomando esse termo no sentido abrangente da for-


mação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do
espirito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de re-
ferências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, que se exprimem por vários artigos, formando aquilo
que se considera ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural.

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 205, prevê que:

a base constitucional para o ensino. Dessa forma, a educação, direito de todos


e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colabora-
ção da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Acredita-se que, em razão da prevalência da Constituição, os entes Federativos (União, Estados,


Distrito Federal e Municípios) devem procurar sempre criar mecanismos para a concretização do direito
fundamental à educação. Ressalta-se que, a educação privada ou publica não interferem na proposta deste

292
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

trabalho, mas, sim, como ela está sendo reconhecida como forma de conhecimento. Portanto, cibercultura e
ciberespaço são elementos que podem servir de instrumentos para divulgação do conhecimento.

Assim, pergunta-se: A Cibercultura e o Ciberespaço podem contribuir à propagação de conhecimen-


to? De que forma a tecnologia influencia no ensino jurídico e como podemos designar esse novo processo de
ensino-aprendizagem tendo em vista a inclusão/participação das novas tecnologias da informação?

2. NOVA FORMA DE ENSINO E APRENDIZADO: EDUCAÇÃO VERSUS INTERNET.

Ao consultar o DICIONÁRIO AURÉLIO, educação é:

O princípio comunicativo, utilizado pelas sociedades, para desenvolver no


indivíduo a consciência de suas potencialidades, a partir de interpretação dos
sinais gráficos até a construção dos conhecimentos que favoreçam o desen-
volvimento d um raciocínio comportamental e disciplinar, na sua individuali-
dade, diante do grupo social e no meio ambiente de que vive.

A partir dessa premissa, é de salutar pertinência observar a importância do Ensino e até mesmo o que
se espera de um Estado através dos entes públicos e privados. Denota-se ainda que, o ensino privado, embora
seja criada por entes privados, o estado tem muita incidência em sua construção.

Sabe-se que a educação é um Direito Fundamental, além de ser um dever Estado Democrático pro-
mover políticas de prevenção e incentivo, bem como sendo um dever dos entes federativos desenvolver téc-
nicas tendentes a concretizá-la e/ou tornar presente e evidente. Sabendo disso, indaga-se como relacionar a
educação com a internet? Internet, relembrando, encontra-se vinculada diretamente com o ciberespaço ou
cibercultura, mas para definir é necessário para qual fim o acesso é utilizado.

Com o advento da internet/ou ciberespaço o conteúdo das disciplinas lecionadas em salas de aulas
de grandes universidades passou a ser compartilhado. Os grandes livros passaram a ser de acesso de todos,
sem que seja necessário, por exemplo, visitar um outro país para adquirir o exemplar. No Brasil expande-se
a oferta de cursos à distância através da internet, consequentemente o cenário é alterado significativamen-
te deixando de lado os métodos tradicionais. As novas tecnologias da informação com o auxílio/suporte da
internet trouxeram para as salas de aula uma maior dinâmica, fazendo com que o aluno deixe de ser mero
receptor de informações e passe a ser participante ativo no processo de ensino-aprendizagem.

A construção do conhecimento, a partir do processamento multimídico, é mais «livre», menos rígida,


com conexões mais abertas, que passam pelo sensorial, pelo emocional e pela organização do racional; uma
organização provisória, que se modifica com facilidade, que cria convergências e divergências instantâneas,
que precisa de processamento múltiplo instantâneo e de resposta imediata (MORAN 1998, pp. 148-152). Ou
seja, para captar e expressar de maneira absoluta todo o conteúdo que se pretende discutir, o ser humano
conecta informações, relaciona dados, acessa novos objetos e os integra das mais variadas formas. Pensar é
aprender a raciocinar através de critérios e razões bem fundamentadas. As informações chegadas tendem
a seguir o processamento lógico-sequencial que se define pela expressão da linguagem falada e escrita, ou
seja, a construção se dá aos poucos. Em outros momentos, conseguimos processar a informação de maneira
hipertextual. Ou seja, histórias se interconectam levando a ampliações e novos significados, o que garante
uma comunicação “linkada”.

O paradigma na era digital, na sociedade da informação, enseja uma prática docente assentada na
construção individual e coletiva do conhecimento. Não basta a aula expositiva para conhecer. O conheci-
mento se dá cada vez mais pela relação prática, teoria, pesquisa e análise. Assim, numa sociedade conectada
e multímidia, o conhecimento edifica-se melhor no equilíbrio entre as atividades individuais e grupais, com
muita interação e práticas significativas. A sala de aula passa a ser um locus privilegiado como ponto de en-
contro para acessar o conhecimento, discuti-lo, depurá-lo e transformá-lo. A troca de informações entre os
usuários pode acontecer em nível local, estadual, nacional e internacional. A pesquisa de dados, a assinatura

293
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de revistas eletrônicas e o compartilhamento de experiências em comum podem vir a anexar um novo sig-
nificado à prática docente. O uso da Internet com critério pode tornar-se um instrumento significativo para
o processo educativo em seu conjunto. Ela possibilita o uso de textos, sons, imagens e vídeo que subsidiam a
produção do conhecimento. Além disso, a Internet propicia a criação de ambientes ricos, motivadores, inte-
rativos, colaborativos e cooperativos.

Dessa forma, as TIC´s possibilitam a utilização do que se chama de metodologias ativas. Ou seja, o
trabalho em parceria com a aprendizagem colaborativa e significativa. A ideia é trazer o aluno para o plano de
protagonista da aula através do seu conhecimento prévio. Todos os alunos possuem um ponto de vista sobre
tudo, cabendo, apenas, ao professor direcionar esse olhar para o lado correto instigando o aluno a pensar
através de questionamentos que sejam feitos pelo professor ou até mesmo por outro aluno.

A interação em sala passa a trazer produtividade e fixação de conhecimento. Ao explicar um conceito


e verificar dúvidas na sala de aula, o Professor pode, por exemplo, solicitar ao aluno que disse ter compre-
endido o assunto que o explique para os demais que não entenderam. A linguagem e os exemplos utilizados
serão outros e, provavelmente, mais próximos da realidade do alunado. Esse momento é importante para o
Professor captar se houve de fato compreensão do que fora dito. E assim a aula segue com a participação
dos alunos e do Professor como facilitador do conhecimento. Retira-se a aula cujo objetivo é a transmissão de
conhecimento e dá-se lugar a criação do conhecimento.

MORAN (2011) entende que:

As redes digitais possibilitam organizar o ensino e a aprendizagem de for-


ma mais ativa, dinâmica e variada, privilegiando a pesquisa, a interação e
a personalização dos estudos, em múltiplos espaços e tempos presenciais e
virtuais. Assim, a organização escolar precisa ser reinventada para que todos
aprendam de modo mais humano, afetivo e ético, integrando os aspectos in-
dividual e social, os diversos ritmos, métodos e tecnologias, para ajudarmos a
formar cidadãos plenos em todas dimensões

Para DAMASCENO (2016),

A educação desprovida de novas tecnologias resumida ao uso das tecnologias


antigas e no simples discurso do professor admite que o espaço da aula trans-
figure-se num ambiente de monotonia sem estímulo algum aos principais
elementos de mobilidade do processo. Cabe ao professor buscar o conhe-
cimento sobre o uso adequado das novas tecnologias, uma vez que todo e
qualquer instrumento utilizado para mediar à interação professor/aluno é
considerado ferramenta tecnológica.

Entretanto, antes de ter competências técnicas, o professor deve ser capaz de identificar e de valorizar
suas próprias competências, conforme assegura Phillippe PERRENOUD (2000) quando diz que ”competên-
cia em educação é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, como saberes, habilidades
e informações, para solucionar problemas com pertinência e eficácia”.

3. AS NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO JURÍDICO.

Edgard MORIN (2002, p. 47) adverte que o ensino do futuro deve ser “centrado na condição huma-
na” e que os seres humanos “devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reco-
nhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano”. É necessário que se entendam em toda a sua
complexidade, e para isso não se pode estudá-los de forma desunida, é essencial que se tenha uma visão tan-
to oriunda das ciências naturais quanto das ciências humanas, assim como das humanidades, a fim de que
se chegue mais perto da compreensão da complexidade humana e da tomada de consciência dessa condição.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Seguindo o contexto da cibercultura, o Judiciário também enfrenta sua virtualização. Questões que
antes eram tratadas única e exclusivamente por via física, passam a ter como opção (e em alguns casos a
obrigatoriedade) o uso do Processo Eletrônico. Este, por sua vez, requer a utilização de aplicativos virtuais
para a confecção e envio das, agora, chamadas petições eletrônicas. E as provas, que antes eram de caráter
unicamente físico, passam a ter sua origem também no mundo virtual.

BERNARDES E ROVER (2010, p. 31) afirmam que:

“[...] a partir da idéia que o direito deve servir para solucionar problemas
decorrentes das novas relações sociais (que estão cada vez mais complexas),
para os quais nem sempre a legislação oferece respostas em suas normas. É
que desponta a necessidade de formação de profissionais sensíveis às trans-
formações culturais e novas demandas sociais existentes, ou seja, desde a
graduação os profissionais do direito deveriam ser treinados para apresentar
um pensamento dialético.”

Dessa forma, com a introdução das TIC´s, o ensino jurídico sai do tradicionalismo de abarcar unica-
mente áreas conservadoras e passa a fazer parte do mundo virtual com temas como contratos eletrônicos,
E-commerce, relação consumerista no ambiente virtual, privacidade on-line, assinatura e segurança ele-
trônica, direitos autorais, crimes cibernéticos e teletrabalho. Para melhor compreensão dos temas tratados,
faz-se necessária a introdução ao ambiente que se é estudado. Ou seja, ambiente virtual. Então, do ponto de
visa metodológico, entende-se que

o que se constata é que além de aulas expositivas (fundadas na educação


bancária), quase nada mais é oferecido ao aluno. Assim, a faculdade de di-
reito que deveria ser o locus apropriado para o aluno aprender a pesquisar,
raciocinar, compreender e, sobretudo, interpretar, pouco faz no sentido de
preparar o futuro profissional para o mercado, o que dificulta sobremaneira
a empregabilidade do diplomado e contribui para aumentar a falta de con-
fiança da população no advogado. (BERNARDES E ROVER (2010, p.30-31)

As novas ferramentas do processo de ensino-aprendizagem permitem que o alunado do ensino ju-


rídico se visualize como protagonista do procedimento a partir do momento em que, por exemplo, trazem
instantaneamente para dentro da sala de aula uma decisão recente sobre o tema discutido. Ora, qual seria
a proposta da utilização das novas tecnologias no ensino jurídico que não a promoção do debate a partir de
análise crítica entre as partes envolvidas?

Logo, a utilização de chats, fóruns, redes sociais, blogs, etc. antes, durante e depois das aulas jurídicas
pode ser vista como uma imersão conjunta necessária para o desenvolvimento mais apropriado do conteúdo
proposto pelo Professor, uma vez que todo o aparato tecnológico permite o desenvolvimento do raciocínio
no modo hipertexto. O que ocasiona uma maior evolução quanto a capacidade/habilidade de participação e
promoção de debates aprofundados que, consequentemente, gera uma mente crítica.

Os conteúdos teóricos não deixam de existir, pois não se aprende nada desvinculado do conhecimen-
to teórico, mas trata-se de trabalhar essas informações de forma diferente dando-lhes um significado, assim
como afirma Jean PIAGET (1987):

O primeiro objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas no-


vas, e não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram. Pessoas
criativas, inventivas e descobridoras. O segundo objetivo da educação é for-
mar mentes que possam ser críticas, possam verificar e não aceitar tudo o
que lhes é oferecido. O maior perigo, hoje, é o dos slogans, opiniões coletivas,
tendências de pensamento ready-made. Temos de estar aptos a resistir (...), a
criticar, a distinguir entre o que está demonstrado e o que não está. Portanto,
precisamos de discípulos ativos, que aprendam a encontrar as coisas por si

295
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mesmos, em parte por sua atividade espontânea e, em parte, pelo material


que preparamos para eles.

Dessa forma, para se conseguir uma maior dinamização, bem como o pensamento linkado, trazendo
o aluno como protagonista do seu aprendizado e retirando o professor da posição de soberano, é necessária a
inclusão digital através da utilização de ferramentas tecnológicas.

CONCLUSÃO

Os professores não devem apenas fazer uso das novas tecnologias como instrumentos em substituição
aos tradicionais, devem é saber “transformar informação em formação” (DEMO, 2004, p. 40). Ou seja, não
se trata de uma questão de apenas saber utilizar pedagogicamente estas novas tecnologias. Deve-se apropriar
esse potencial de forma construtiva, sem cair na simples substituição da interação tradicional professor-alu-
no (no sentido de quando o professor apenas repassa a informação), pela interação máquina-aluno, sem que
haja um crivo do conteúdo a ser acessado e uma direção crítica de como isto pode/deve ser feito, de forma
a estimular o aluno para que tenha um melhor aproveitamento do mundo de informações a que pode ter
facilmente acesso. Nesse sentido, o professor “passa a não ser mais um detentor do conhecimento e sim um
facilitador de seu acesso por intermédio das novas tecnologias” (MARQUES, 2010, p. 200), sendo que tal
facilitação deve se dar de forma a permitir que os alunos, além compreenderem os conteúdos esperados,
mantenham a consciência da sua condição humana e seu papel na sociedade.

A aprendizagem colaborativa, então, passa a ser a protagonista das salas de aula, cabendo ao professor
assumir o papel de orientador, deixando de lado o papel de autoridade. A sala de aula é centrada no aluno,
e, este pode ser considerado uma lâmpada a iluminar. Só com esses pontos de modificação verifica-se a pró-
-atividade do alunado ao trazer para a sala de aula uma mente aberta e investigativa, dando importância ao
processo de ensino-aprendizagem uma vez que ele agora é o protagonista e o maior responsável do seu saber.
A aprendizagem colaborativa pressupõe, então, a interação e participação mútua de todos os alunos envolvi-
dos, cabendo aos professores, aqui chamados de facilitadores ou moderadores, propiciarem situações em que
todos aprendam com todos.

Como já dizia Paulo FREIRE (2002, p. 19), “a alegria não chega apenas no encontro do achado, mas
parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da ale-
gria”. “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a
sua construção (o pensador- online)”.

Atualmente, o mundo no seu conjunto evolui tão rapidamente que os profes-


sores, como aliás os membros das outras profissões, devem começar a admitir
que a sua formação inicial não lhes basta para o resto da vida: precisam atua-
lizar e aperfeiçoar os seus conhecimentos e técnicas, ao longo de toda a vida.
O equilíbrio entre a competência na disciplina ensinada e a competência
pedagógica deve ser cuidadosamente respeitado. [...] A formação de profes-
sores deve, [...], inculcar-lhes uma concepção de pedagogia que transcende
o utilitário e estimule a capacidade de questionar, a interação, a análise de
diferentes hipóteses. Uma das finalidades essenciais da formação de profes-
sores, quer inicial quer contínua, é desenvolver neles as qualidades de ordem
ética, intelectual e afetiva que a sociedade espera deles de modo a poderem
em seguida cultivar nos seus alunos o mesmo leque de qualidades. (DELORS
et al, 1999, pp. 161-162)

Enfim, levar estas novas tecnologias para a sala de aula como ferramentas, bem como demonstrar as
suas possíveis utilidades na vida profissional é uma atitude que deve ser cobrada dos professores. Todavia,
as instituições de ensino dever propiciar a formação desses professores para que façam isto, e estimular a
pesquisa e o aprendizado destes também.

296
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO


DISCURSO PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA

Fernando Borba de Castro


Graduado em Direito pela FURB. Assessor da Procuradoria-Geral do Município de Gaspar/
SC. Pesquisador, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos e Criminologia

Lenice Kelner
Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Professora da FURB. Coordenadora do Programa
de Extensão da FURB – Gestão de Conflitos Penais na Comarca de Blumenau.

Leonardo Idenio Soares


Graduando em Direito pela FURB. Pesquisador.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Elementos para pré-compreensão do tema: por que refletir o direito, o
controle penal e o ius puniendi de forma crítica?; 2. Justiça restaurativa: um paradigma insurgente;
3. Restaurar e reabilitar: um contraponto à desumana sociedade da retribuição; Considerações finais;
Referências.

INTRODUÇÃO

A tradicional reação da sociedade civil organizada e do Poder Público quando da ocorrência de uma
violação à lei penal consiste em castigar e punir os infratores. Raramente o sistema punitivo permite que
seja realizada uma reflexão acerca das estruturas de poder, das funções das instituições repressivas e dos
desiguais tratamentos dispensados a pessoas em similares situações, porém pertencentes a grupos, classes
sociais ou raças diversas. Da mesma forma, são extremamente escassos os casos em que a aplicação da pena
permite a reinserção dos transgressores ao harmônico convívio em sociedade ou propicia a cura das feridas
provocadas pelos ilícitos às vítimas. Este panorama torna-se ainda mais preocupante em sociedades perifé-
ricas da América Latina, nas quais as violências sociais e institucionais epidêmicas violam diariamente os
Direitos Humanos.

Em que pesem os pífios resultados produzidos pelo tradicional modelo de reação ao fenômeno crimi-
nológico, não é tarefa fácil adotar uma postura crítica nesta paradoxal e líquida pós-modernidade. Afinal de
contas, muitas vezes sob a influência da mídia sensacionalista, que direciona a opinião pública segundo os
interesses dos poderes dominantes, pune-se cruelmente o transgressor da lei penal esperando-se a reabili-
tação; esbraveja-se aos quatro ventos que a lei é excessivamente branda com menores infratores, que como
adultos deveriam ser tratados, mas ignora-se a realidade das periferias, agindo de forma indiferente em rela-
ção aos menores abandonados e propiciando exíguas oportunidades aos jovens carentes, embora permaneça
inabalável a crença na meritocracia das classes que há muito detém o poder econômico e político. Não se
correlaciona indiferença política e desigualdade à criminalidade; as diferenças de oportunidades que pos-
suem os filhos das classes dirigentes e os dos carentes à precariedade do trabalho, que facilita o aliciamento
dos jovens pelo mundo do crime. Tortura-se e mata-se nas delegacias, nas penitenciárias e nas ruas, muitas
vezes sob o manto estatal e aplausos da população, e espera-se que o egresso volte ao pacífico e sadio convívio
social; ou melhor: indaga-se, com franqueza, se não seria melhor eliminá-lo, ainda que não se questione quão

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tirana seria a decisão, abstendo-se a sociedade da interrogação quanto à sua parcela de contribuição para a
produção do infrator e da violência que a todos devora.

É delicada a situação da sociedade do culto sem limites ao capital, cujo pressuposto é a desigualdade,
a volatilidade, a exclusão e a indiferença, pois não há espaço para todos, uma vez que o sucesso de alguns
deve necessariamente excluir o de muitos – embora, evidentemente, a construção deste conceito de sucesso
seja muito questionável. As pessoas que não produzem lucratividade são invisíveis, e, por essa razão, podem
ser descartadas sem grandes questionamentos. A violência (não apenas a física, é preciso salientar) de fato
se transformou na regra, e o diálogo, na exceção. Proliferam-se comportamentos intolerantes em todos os
ambientes, como nas famílias, nas escolas, no trânsito e até mesmo em espaços de lazer, como os estádios de
futebol, bem como brutalidades contra minorias, como indígenas e homossexuais.

Neste contexto, é imprescindível que o operador do Direito conteste o mito juspositivista da neutra-
lidade do intérprete e seja capaz de enxergar para além da simples aplicação da lei penal, que é incapaz de
atingir as raízes de graves problemas de sociedades profundamente abaladas por desigualdades e exclusões.
O Direito Penal positivo, ao encarar o transgressor como o responsável pela violência e como inimigo comum
da sociedade, deixa de refletir que a infração penal é um reflexo do desequilíbrio das relações sociais. A res-
ponsabilidade pela prática de infrações penais, ao contrário do discurso jurídico-penal tradicional, não pode
ser atribuída exclusivamente ao sujeito transgressor, mas às próprias condições estruturais da sociedade
(sobretudo a desigualdade e a exclusão que afligem América Latina) que permitem a existência de relações
de profunda desarmonia.

As limitações do modelo punitivo são visíveis, pois seu discurso parte de uma lógica muitas vezes
contrária às garantias fundamentais do indivíduo e à reabilitação de vítimas e infratores, subsistindo apenas
em virtude da ilusória promessa de segurança jurídica e social do discurso jurídico-penal. Não se consegue
reintegrar o transgressor à sociedade ou tampouco oferecer qualquer conforto à vítima porque a lógica puni-
tiva é estranha a estas necessidades, se esgotando na violência estatal. As perversidades do sistema penal, em
verdade, isolam as pessoas, ampliam o abismo social existente e impedem que medidas de adequada política
criminal e respeito aos Direitos Humanos surjam como alternativas.

A Justiça Restaurativa, em contraposição ao modelo simplesmente retributivo, desponta como uma


renovação da esperança de produção crítica e democrática do Direito, capaz de repensar o controle penal
em sociedades latino americanas, que são especialmente marcadas por explorações e desigualdades que re-
montam à colonização e violências sociais e institucionais que jamais deixaram de preponderar. O fato de a
população carcerária brasileira, por exemplo, se tornar a terceira maior do mundo, não deixa dúvida de que
a promessa de segurança do modelo punitivo não pode ser cumprida.

A Justiça Restaurativa muda o enfoque acerca do fenômeno criminológico, propugnando que as infra-
ções penais geram feridas especialmente às vítimas, aos seus amigos e aos seus familiares que necessitam ser
curadas para a manutenção do corpo social, cada vez mais fragmentado nas pós-modernas sociedades capita-
listas. Segundo os postulados da Justiça Restaurativa, a prática de uma infração penal significa o rompimento
ou abalo de uma relação social, pois a comunidade falhou na tarefa de conviver pacificamente. Posterior-
mente à infração, o que se deve buscar é o restabelecimento das relações com a cura das feridas provocadas
pelo ilícito. Assim, privilegia-se a restauração em detrimento da punição e a coesão social à marginalização
e à estigmatização. A Justiça Restaurativa propõe o resgate do diálogo e da participação comunitária, bem
como busca incentivar o perdão e o arrependimento, comportamentos e sentimentos raros nas sociedades
individualistas típicas do sistema capitalista, razão pela qual poderia ser adotada na América Latina para a
construção de soluções mais humanas aos conflitos sociais.

1. ELEMENTOS PARA PRÉ-COMPREENSÃO DO TEMA: POR QUE REFLETIR O DIREITO, O CONTROLE


PENAL E O IUS PUNIENDI DE FORMA CRÍTICA?

As Ciências Criminais estudam questões complexas. O fenômeno criminológico é um dos pontos


que é objeto deste ramo do Direito que não apresenta respostas simples, assim como soluções absolutas que

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decorram simplesmente de conceitos fornecidos pela lei. Os vícios da sociedade seriam resolvidos de forma
mais descomplicada se assim o fosse. Destarte, é imperiosa uma análise acerca de alguns fenômenos que
transcenda a superficialidade dos discursos costumeiramente empreendidos e pretenda perquirir, com pro-
fundidade, possíveis origens de problemas sociais (e jurídicos) e eventuais soluções que estejam em sintonia
com os Direitos Humanos.

Nessa linha de raciocínio, impõe-se ao operador do Direito uma atividade que o pensamento tradicio-
nal diz não ser sua função, mas de outros profissionais (como do historiador ou do sociólogo, por exemplo),
qual seja: a contestação do Direito posto através da valoração ética e política dos fatos sociais subjacentes à
aplicação das normas. Enquanto a doutrina tradicional propugna não caber ao operador do Direito questio-
nar, por exemplo, a precariedade das condições de trabalho, a concentração de terras e riquezas nas mãos
de poucos ou a seletividade estrutural do sistema penal no momento de aplicar as normas, a teoria crítica
conclama a atuação positiva do operador jurídico, e não meramente passiva.

É manifesta a ineficiência das medidas adotadas pelo Estado e pela sociedade civil organizada para
combater o exacerbado grau de criminalidade que assola um povo como é o latino-americano, profunda e
historicamente agredido por violências sociais e institucionais que remontam à desumana colonização sofri-
da. Apesar das evidências da fragilidade do modelo de reação ao fenômeno criminológico, parece existir uma
permanente ilusão acerca da resolução de conflitos na esfera penal através da cada vez mais forte atuação
punitivista estatal. Ainda que o atual modelo de administração da Justiça Criminal revele-se violador dos
Direitos Humanos e um mecanismo eficiente apenas para amplificar violências, permanece sendo, por pa-
radoxal que seja, a aposta absolutamente preponderante da sociedade e do Poder Público na América Latina
(embora práticas restaurativas venham se expandido não apenas no continente, mas no mundo todo).

É neste contexto que se insere, sobretudo, o papel do operador do Direito. Além de refutar soluções
imediatistas, geralmente desprovidas de racionalidade e inaptas a propiciar quaisquer ganhos sociais, é sua
mais elementar função, enquanto sujeito transformador da realidade e não mero telespectador, retirar a ven-
da dos olhos da sociedade, que, entorpecida e incapaz de enxergar as questões correlatas à criminalidade em
sua raiz, aceita, sem grande contestação, a violência epidêmica como suposta fonte de pacificação da socieda-
de. Afinal de contas, o mito juspositivista da neutralidade do intérprete costuma operar em prol da opressão.

É possível verificar que a estrutura de poder é hábil ao aliciar tanto operadores jurídicos como mem-
bros da sociedade em geral, os quais, impossibilitados de pensar de forma autônoma, são seduzidos pelas
promessas simples daqueles que detém o status quo. É claro que a dominação raramente é facilmente per-
ceptível, visto que existe um arcabouço cujo objetivo é justamente acobertá-la. Há, nitidamente, os que são
beneficiados por esta estrutura de poder e também aqueles que são os prioritariamente atingidos e afetados
pelo Direito Penal e pela máquina punitiva estatal, quase sempre os mais vulneráveis da sociedade. Esses
fatos não são produto do mero acaso.

É precisamente por essa razão que a missão do operador do Direito adquire relevância. Uma forma-
ção crítica é de vital importância para compreensão dos fenômenos sociais e da estrutura de poder que en-
volve o discurso político e jurídico. Espera-se dele que milite para a necessária transformação da sociedade,
não se subordinando às verdades postas.

Neste sentido, Luís Roberto Barroso (2001, p. 10) explica que em todas as sociedades organizadas,
o Direito surge como a institucionalização dos interesses dominantes, como o acessório normativo da hege-
monia de classe. O doutrinador pontua que a dominação se oculta em nome da racionalidade, da ordem e da
justiça, disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e neutra.

Verifica-se que o sistema penal está estruturado tão somente para punir e estigmatizar, embora o
discurso dogmático propugne a ilusória segurança jurídica e social. A persecução penal é inapta a propiciar
quaisquer ganhos sociais ou individuais. Incapaz de conter a violência, de curar os ferimentos sofridos pela
vítima e readaptar os infratores ao convívio em sociedade.

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Direito(s) em debate.

Os atingidos pela violenta estrutura de poder do sistema penal em sua maioria são justamente aqueles
que possuem extrema dificuldade para inserir-se socialmente, como jovens negros de periferias, que consti-
tuem uma parcela cada vez mais considerável dos encarcerados no país. O único Direito para eles constru-
ído, em uma sociedade marcada pelo déficit de cidadania ainda é o criminal. A violência do sistema penal,
eficiente em encarcerar, mas absolutamente falha em reinserir os que são alvo do poder punitivista estatal,
é problemática, uma vez que sonhos de um futuro digno de uma geração inteira de jovens são destruídos ao
dispensar-lhes tratamento exclusivamente com o Direito Penal. Sem mencionar, evidentemente, as vidas
ceifadas diretamente pela criminalidade, que não são menos importantes do que aqueles que são agredidos
diariamente por abordagens policiais violentas e torturas em delegacias e presídios. Trata-se de um sistema
que gera vítimas diretas e indiretas, que possuem a característica comum de serem, de uma forma ou outra,
alvejadas pela brutalidade de um sistema que devora a si mesmo.

Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 290), alicerçada em lição de Eugenio Raúl Zaffaroni, pro-
põe primordial discussão acerca do sistema punitivo, refletindo que a realização de princípios garantidores do
Direito Penal (como legalidade, culpabilidade, humanidade e, sobretudo, igualdade) é uma ilusão, uma vez
que a operacionalidade do sistema penal está estruturalmente preparada para violar a todos. Propugna que
ocorre mais do que uma violação: trata-se de uma contradição estrutural entre a lógica do sistema penal e a
ideologia dos Direitos Humanos, porque estes designam um programa idealizador de igualdade de direitos de
longo alcance, ao passo que os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigual-
dade de direitos em todas as sociedades.

Diante do esgotamento e das limitações do presente modelo e também do tradicional saber, a visão
crítica insurge-se em relação ao chamado conhecimento puro do Direito, o qual, além de negar interferência
dos demais campos do saber na interpretação e construção das Ciências Jurídicas, propugna por uma ciência
tão somente instrumental, com visão meramente técnica e neutra do conhecimento. Luís Roberto Barroso
(2001, p. 10), alicerçado em lição de Óscar Correas, pontua que a teoria crítica surge como contraponto à
ideia de completude, de auto-suficiência e de pureza do Direito, refutando a cisão do discurso jurídico, que
dele remove outros conhecimentos. Não pode haver esse distanciamento do Direito da realidade (sociologia
do Direito) e das bases de legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar sua própria crítica (filosofia do
direito), pondera o jurista.

Não é razoável, levando-se em consideração o patente o insucesso do modelo tradicional, capaz, no


âmbito criminal, de revelar as mais flagrantes violações dos Direitos Humanos, que insista em preponderar
na América Latina a visão conservadora e compromissada com a manutenção do status quo, a opressão e a
violência, e não com ganhos sociais e a reintegração dos envolvidos no conflito.

O sistema penal descumpre promessas vitais e traduz excessivas desigualdades, injustiças e mortes
não prometidas, reflete com o brilhantismo que lhe é peculiar Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p.
293). A doutrinadora pontua (1997, p. 303-304) que a promessa dogmática de converter-se em ciência ins-
trumental da justiça penal tem sido cumprida com uma eficácia invertida. Não há uma racionalização deci-
sória para gestação da desigualdade e segurança jurídica, mas uma racionalização da seletividade decisória
e da violação dos Direitos Humanos consumada pela operatividade do sistema penal. A jurista assevera que
a promessa dogmática tem ainda colocado em circulação social sinais de punição perfeitamente ajustados: o
simbolismo da segurança jurídica, o qual exerce efeitos fundamentais de legitimação do sistema penal.

Nessa linha de raciocínio, Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, a, p. 27-28-29) sustenta que a sociedade é
induzida a acreditar na suposta segurança que o sistema penal propicia, que de forma alguma existe. O siste-
ma penal se encontra na mais notória insolvência estrutural da civilização, de acordo com o jurista. Defende
que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual (que é a exigência de
que todos os autores de fatos típicos, ilícitos e culpáveis sejam criminalizados pelos órgãos do sistema penal)
não aconteça e sim para que exerça seu poder com extremo grau de arbitrariedade seletiva, dirigida, natu-
ralmente, aos setores mais vulneráveis da sociedade. O autor assevera que o sistema penal só pode exercer
seu poder repressivo em um número insignificante de hipóteses, o que gera uma seletividade estrutural do

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sistema penal, que consiste na mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual procla-
mada pelo discurso jurídico-penal.

Alessandro Baratta, citado por Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 294-2 295) defende que os
princípios estruturais e funcionais necessários para organizar cientificamente o conhecimento do sistema
penal são opostos aos que por ele mesmo são declarados. Assim, partindo de um conceito dialético de racio-
nalidade, é possível excluir que essa contradição entre princípios e o funcionamento real do sistema seja um
acidente, devido à imperfeição inerente ao que é humano. O doutrinador propugna que não se deve atribuir
o descompasso entre os princípios e a realidade a erros dos operadores e do público, pois tal se deve à ideolo-
gia penal. O funcionamento do sistema penal se dá não obstante, mas através dessa contradição. Trata-se de
um elemento importante, como outros do sistema, para garantir a realização das funções que tem no interior
do conjunto da estrutura social. Destarte, assevera que o elemento ideológico não é acidental, mas inerente
à estrutura e ao modelo de funcionamento do sistema penal. Segundo o jurista, a ideologia penal atua para
assegurar, reproduzir e mesmo legitimar as relações de desigualdade caracterizadoras da sociedade, a má
distribuição dos recursos e do poder, a conseqüência visível do modo de produção capitalista.

Em primoroso ensinamento, Eugenio Raúl Zaffaroni (2007, b, 11) assinala que o poder punitivo sem-
pre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição
de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhosos. Esses seres humanos são
assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações
sancionadas dentro dos limites do Direito Penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional
dos Direitos Humanos estabelece universal e regionalmente.

Lenio Luiz Streck (2014) demonstra veemente preocupação com a absoluta indiferença de grande
parte da população e do Poder Público às violações dos direitos e garantias fundamentais dos infratores que
ocorrem diariamente em abordagens violentas nas ruas e nos presídios. Aponta o jurista que ninguém se
importa com a população carcerária no Brasil. Estes são invisíveis. Mais de meio milhão de presos no Brasil
que são tratados como se descartáveis fossem. Segundo o doutrinador, mais de dois séculos se passaram
desde que Michel Foucault iniciou a obra “Vigiar e Punir” relatando torturas e esquartejamentos de presos
desmanchados por cavalos que arrancavam seus membros, porém ainda há presos sendo empalados, abu-
sados e castrados. Diante dessa realidade, é mesmo possível querer que um sujeito assim tratado seja um
cidadão ao sair do cárcere, provoca o autor? O hermeneuta tece crítica às autoridades brasileiras, afirmando
que poderiam ao menos ser utilitaristas ou fazer uma análise econômica, não precisando ser humanitários,
pois é um péssimo investimento despender dois mil reais por mês e ter a certeza de que o preso retornará à
sociedade pior do que ingressou. Profere também crítica à população em geral, pois os mesmos que afirmam
que gostariam de ver o preso morto sentem-se surpresos e indignados quando o egresso lhe aborda, de arma
na mão, para lhe subtrair algum bem.

Um questionamento acerca dos resultados produzidos pelo sistema penal na América Latina é pri-
mordial, indagando a quem ele interessa e se é apto a conduzir à construção de uma sociedade mais livre,
justa e solidária, a erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais,
bem como a promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação, conforme preveem os objetivos fundamentais da República (artigo 3º da Consti-
tuição Federal). Uma célere ponderação é capaz de indicar que o sistema penal retributivo é a antítese das
promessas da modernidade.

2. JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM PARADIGMA INSURGENTE

O tradicional modelo de administração dos conflitos penais se esgota na retribuição ao mal praticado
pelo transgressor da lei criminal com a imposição de outro mal: a privação de sua liberdade. Trata-se de um
mal estatal e, portanto, oficial, agindo o Direito como instrumento de imposição de castigo, dor e morte. A
justificativa se alicerça no discurso de segurança social e jurídica, promessas que a cada dia revelam-se mais
ilusórias. A violência epidêmica se espalha pelas cidades latino-americanas, hoje não mais característica

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apenas dos grandes centros urbanos. Esse sistema é ineficiente para frear a violência, ressocializar os encar-
cerados e oferecer qualquer espécie de conforto ou reparação às vítimas das infrações.

A Justiça Restaurativa se alicerça em um paradigma diverso da presente forma de reação à prática de


infrações penais que chamamos de retributivo. O atual sistema é caracterizado por escolher a violência como
forma de combate ao fenômeno criminológico, sem analisar se tais medidas se coadunam com os Direitos
Humanos e se são justas do ponto de vista social. A Justiça Restaurativa, por sua vez, dispensando tratamento
digno aos envolvidos no conflito, visa atender as necessidades daqueles mais afetados pelos ilícitos. Por isso é
possível dizermos que, se no modelo retributivo o crime é encarado como uma agressão contra toda socieda-
de, que busca, por meio do Estado, responder ao mal praticado pelo infrator com a imposição de outro mal
(consistente na privação da liberdade deste), sob a ótica restaurativa o imprescindível é a cura das feridas
ocasionadas às pessoas diretamente atingidas pela infração penal.

Howard Zehr (2008, p. 181) defende que pela perspectiva da Justiça Restaurativa a infração consiste
em uma violação a pessoas e a relacionamentos. A infração gera obrigações para corrigir os conflitos. A justiça
envolve a vítima, o infrator e a comunidade em busca de soluções que promovam a reparação, a reconcilia-
ção e a confiança. Segundo o autor (2008, p. 68), a Justiça Restaurativa visa compreender e restaurar o mal
causado pelas infrações penais às vítimas e às comunidades atingidas. Para compreendê-lo, o doutrinador
alerta que é necessário usar outras lentes, uma vez que sistema tradicional, ao contrário, não foca no mal
impingido à vítima, concentrando-se na punição pura e simples do infrator da lei penal, o que sustenta ser
algo até mesmo contraproducente.

No processo penal brasileiro, por exemplo, vigoram os princípios da obrigatoriedade e da indisponi-


bilidade da ação penal (embora flexibilizados pelos institutos da transação penal e da suspensão condicional
do processo, respectivamente, inovações da Lei n. 9.099/1995), que consistem, sucintamente, na ausência
de discricionariedade do órgão responsável pela acusação (Ministério Público) quanto ao oferecimento da
denúncia (quando há prova da materialidade e indícios suficientes de autoria) e na impossibilidade de desis-
tência da ação penal proposta.

A Justiça Restaurativa, por outro lado, funda-se em um paradigma distinto, buscando não a mera for-
mação da convicção do magistrado quanto à culpa técnica do transgressor para que a esse possa ser imposta
a retribuição ao mal que por ele foi causado à toda sociedade, mas, precipuamente, restaurar o mal impin-
gido aos mais feridos pelo ilícito. Enquanto ao sistema retributivo interessa apenas verificar se uma pessoa
culpável cometeu um fato típico e ilícito, o modelo restaurativo vai além. A pretendida pacificação, pela ótica
restaurativa, não pode ser atingida sem o tratamento das lesões (que não são apenas físicas ou meramente
patrimoniais, é preciso salientar) que a prática de um crime produz à vítima, aos seus amigos e familiares.
São esses os personagens centrais do conflito e também os que necessitam de maior atenção, uma vez que
são relegados a segundo plano no modelo meramente punitivo.

Destarte, o conflito, segundo interessante lição de Cleber Rogério Masson (2011, p. 553-554), ante-
riormente protagonizado entre o Estado e o responsável pela conduta delituosa, passa a ter como atores a
figura do ofensor e do ofendido. Deixa de ser finalidade imediata do Direito Penal a punição, havendo pos-
sibilidade de conciliação entre as partes (ofensor e vítima), e, logo, a persecução penal é mitigada, visto não
ser mais obrigatório o exercício da ação penal. Assevera o autor, portanto, que o objetivo principal da Justiça
Restaurativa não é a imposição de uma pena ao violador da lei penal, mas reequilibrar as relações entre o
agressor e o agredido. Para alcançar essa finalidade, surge a figura da comunidade, que também é atacada
pela conduta criminosa, desempenhando papel decisivo na restauração da paz social violada. Assim, a viola-
ção possui como agentes passivos as pessoas e os relacionamentos coletivos, e não o Estado. Insiste o doutri-
nador, em vista disso, que a infração penal deixa de significar um ato contra o Estado para consistir em ato
contra a comunidade, contra a vítima e inclusive contra o próprio autor, pois esse também é agredido com a
violação do ordenamento jurídico-penal. Consequentemente, se na tradicional Justiça Retributiva o interesse
que existe na atuação do Direito Penal é público, na Justiça Restaurativa o interesse é pertencente às pessoas
envolvidas no episódio criminoso. Propugna o doutrinador que não mais se imputa a responsabilidade pelo
crime pessoalmente ao seu autor, coautor ou partícipe, mas a todos os membros da sociedade, que falharam

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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na missão de viverem pacificamente em grupo. Logo, os procedimentos rígidos da Justiça Retributiva dão es-
paço a meios informais e flexíveis, prevalecendo a disponibilidade da ação penal. O resultado é que a Justiça
Restaurativa, segundo o autor, proporciona coragem ao agressor para responsabilizar-se pela conduta lesiva,
refletindo sobre as causas e os efeitos de seu comportamento em relação aos seus pares, para então modificar
seu comportamento e ser aceito posteriormente de volta na comunidade. Assim, o paradigma restaurador de
se fazer justiça pode acarretar o perdão recíproco entre os envolvidos, aduz, bem como a reparação à vítima,
em dinheiro, por exemplo, ou até mesmo em prestação de serviços à vítima ou à comunidade.

André Gomma de Azevedo (2005, p. 140) aprofunda a reflexão, destacando a finalidade de reparação
não apenas material da Justiça Restaurativa, mas também moral dos danos causados à vítima, através da par-
ticipação das partes (ofensor, vítima e comunidade) na busca pela solução do conflito social, o que além de
humanizar as relações processuais, pode propiciar a manutenção ou restauração de relações possivelmente
preexistentes à infração:

(...) A Justiça Restaurativa pode ser conceituada como a proposição metodo-


lógica por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas,
a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas en-
tre vítimas, ofensores e representantes da comunidade voltadas a estimular:
i) a adequada responsabilização por atos lesivos; ii) a assistência material e
moral de vitimas; iii) a inclusão de ofensores na comunidade; iv) o empode-
ramento das partes; v) a solidariedade; vi) o respeito mútuo entre vítima e
ofensor; vii) a humanização das relações processuais em lides penais; e viii) a
manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente
preexistentes ao conflito. (AZEVEDO, 2005, p. 140).

Paul Maccold e Ted Wachtel (2003) defendem que a Justiça Restaurativa é uma nova maneira de
abordar a justiça penal, focando na reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de
punir os ofensores. Os autores defendem que em virtude dos danos e consequências trazidas pela prática de
crimes à pessoas, relacionamentos e sentimentos, a Justiça Restaurativa não é realizada por razão de mere-
cimento, mas por ser necessária, através de um processo cooperativo que envolve todas as partes principais
que possuem interesse na determinação da melhor solução para reparar o dano causado pela prática da
infração. Assim, visualizam a Justiça Restaurativa como um processo colaborativo que envolve os afetados
diretamente por um crime, chamados de partes interessadas principais, para determinar a melhor forma de
reparar o dano causado pela transgressão. O sistema de Justiça Restaurativa, portanto, tem como finalidade
não somente reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre as pessoas. 

A proposição dos autores acima mencionados é valiosa. Devemos ter o cuidado, contudo, de não con-
ceituar a Justiça Restaurativa como uma prática da pós-modernidade, eis que uma análise histórica demons-
tra que práticas restaurativas possivelmente sempre existiram. Segundo Mylène Jaccoud (2005, p. 163-164),
as sociedades comunais (pré-estatais europeias e as coletividades nativas), em virtude do seu modelo de or-
ganização, privilegiavam as práticas de regulamento social que objetivavam a manutenção do grupo. Quando
ocorria a violação de uma norma, buscava-se uma solução rápida para o conflito e para o restabelecimento da
harmonia violada, uma vez que os interesses coletivos superavam os individuais. Ainda que formas punitivas
severas, como a vingança ou a morte, não tenham sido excluídas por essas comunidades, havia a tendência
de se aplicar mecanismos que não rompessem com a coesão do grupo social. A doutrinadora explica que ves-
tígios de práticas restaurativas, reintegradoras e negociáveis se encontram em muitos códigos antes mesmo
da primeira era cristã. Os Códigos de Hammurabi (1700 a.C) e Lipit-Ishtar (1875 a.C), por exemplo, descre-
viam medidas de restituição para os crimes contra o patrimônio. Além disso, o Código Summeriano (2050
a.C) e o Eshunna (1700 a.C) previam a restituição nos casos de crimes cometidos com o emprego violência.
A autora sustenta que a centralização dos poderes, com o surgimento dos Estados nacionais centralizados
(sobretudo, pela monarquia de direito divino) acabou por reduzir consideravelmente as possibilidades de
aplicação da justiça negociada. O afastamento da vítima do processo penal e a quase extinção das formas de
reintegração social nas práticas da justiça clássica coincide com o surgimento do Estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Pedro Scuro Neto e Renato Pereira Tardeli propõem (2000, p. 8-9) que o processo de Justiça Restau-
rativa tem impacto sobre mais pessoas e resultados melhores que a pena e o tratamento dispensado pelo mo-
delo retributivo convencional. Através de seu principal mecanismo, os círculos ou câmaras restaurativas, os
doutrinadores explicam que o paradigma pode ser viabilizado em praticamente todo tipo de contexto, como
na família, comunidade, escola ou empresa, consubstanciado nas estruturas e características desses grupos,
nas estruturas e características das suas normas e de seus valores e relacionamentos.

Segundo os autores, em uma câmara restaurativa reúnem-se as pessoas que foram atingidas pela
infração penal e por causa dela sofreram prejuízos graves. Nelas, infratores, vítimas e as pessoas que lhes dão
sustentação encontram meios de reparar prejuízos e evitar a repetição da conduta negativa. Na reunião, as
partes têm a chance de relatar os acontecimentos a partir do seu próprio ponto de vista, assim como expres-
sar o que se passou desde a ocorrência da infração, explicam os doutrinadores. É imprescindível que todos
tenham clareza das consequências da infração penal e haja um engajamento para resolver o que será feito
para que os danos físicos e emocionais de alguma forma sejam reparados, assim como para minimizar efeitos
negativos futuros.

Renato Campos Pinto de Vitto (2005, p. 41-43) pontua que o modelo restaurativo de se fazer justiça
mostra-se ressocializador. É benéfico ao infrator da lei penal porque enseja seu amadurecimento pessoal,
a partir do enfrentamento direto das consequências sofridas pela vítima, predispondo-se a comprometer-se
na solução dos problemas causados, diferentemente do que ocorre no processo penal tradicional, no qual o
infrator se posiciona em uma posição distante e alheia ao fato, protegido por uma estratégia ou possibilidade
de defesa técnica, a qual dissolve a realidade do dano e ignora a vítima, desumanizando a relação social exis-
tente. A Justiça Restaurativa, por outro lado, foca sua atenção na função reabilitadora da pena em relação à
pessoa do infrator, que passa a ser enxergado como parte essencial e integrante de qualquer reação ao delito,
o que agrega um valor-utilidade para o infrator à resposta estatal. Assim, há uma redução dos efeitos nocivos
da pena em relação ao infrator através de uma intervenção que pretende ser positiva e benéfica aos detentos,
defende o autor.

A Justiça Restaurativa revela-se uma alternativa ao perverso e inidôneo sistema que está posto, vio-
lador dos Direitos Humanos dos povos latino-americanos. Perverso em virtude de sua seletividade estrutural
e da indiferença do Poder Público e da sociedade civil organizada às barbáries do cárcere, o qual é absoluta-
mente contraproducente. Inidôneo porque inapto a conter a criminalidade e a propiciar qualquer benefício
às vítimas, usurpadas pela figura de um vingativo Estado no quimérico processo penal positivo, que em nada
se coaduna com as garantias fundamentais do indivíduo. O modelo restaurador renova a esperança de produ-
ção crítica e democrática do Direito na América Latina, que possa ser instrumento de harmonia e libertação
ao resgatar sentimentos que parecem utópicos para o autofágico modelo de culto ao capital em detrimento
da dignidade humana.

3. RESTAURAR E REABILITAR: UM CONTRAPONTO À DESUMANA SOCIEDADE DA RETRIBUIÇÃO

Como temos exposto, o modelo de administração da Justiça Criminal que prepondera no ordena-
mento jurídico-penal latino-americano privilegia a punição do infrator da lei. Ao transgressor da lei criminal
deve ser imposto um mal que faça frente ao sofrimento que este ocasionou com a prática da infração penal.
O infrator é enxergado como um perigo em si mesmo, como “algo” que precisa ser combatido e até mesmo
eliminado. Já refletia Michel Foucoult (1997, p. 86) que a infração penal lança o indivíduo contra toda a
sociedade, que tem o direito de se levantar em peso contra ele para puni-lo. O infrator se torna o inimigo
comum, um traidor, pois desfere seus golpes dentro da sociedade. Transforma-se em monstro, sobre o qual
recai o direito absoluto da sociedade de punir.

É precisamente essa a base do pensamento da criminologia etiológica, a qual perquire as causas do


crime no sujeito. Apesar de sua evidente limitação, tal pensamento está longe de ser superado. Ao fazermos
uma análise das medidas adotadas pelas autoridades e dos comportamentos da sociedade civil é possível
verificarmos que, conscientemente ou não, ainda se pretende explicar o fenômeno criminológico prepon-
derantemente no sujeito, e não na realidade social subjacente à aplicação das normas. Ao menos é isso que

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

podemos auferir pelo modelo adotado pelo sistema oficial de reação à violência. Exemplificativamente, não
podemos deixar de citar os crescentes e bárbaros casos de vinganças privadas (justiça com as próprias mãos)
realizadas contra jovens negros de periferias no Brasil, que voltaram a ser acorrentados em postes e espan-
cados até morte.

Como temos sustentado, muitas são as violências perpetradas não apenas pelo aparato e órgãos do
Estado, mas também por particulares sob o argumento de combate à violência. Outro exemplo disso é o
absoluto descaso estatal e de grande parte da população à torturas e execuções que ocorrem diariamente em
penitenciárias, delegacias e ruas de periferias. Não fosse o suficiente, a mídia e políticos sensacionalistas bra-
dam que o sistema penal é comedido demais e que há impunidade. Essa existe, é verdade, mas apenas para
as classes dirigentes, que aparentemente são imunes ao controle penal, e não para os que vivem a realidade
do cárcere e das periferias na América Latina. A realidade do sistema carcerário é a antinomia da impunida-
de. É o genocídio direto dos presos. E o genocídio indireto das vítimas dos que sobrevivem ao cárcere, mas
retornam à sociedade habituados à barbárie. Não há nada de surpreendente neste fato, por mais lamentável
que o seja. Embora não justificável, trata-se do óbvio resultado da opção política pela violência epidêmica.
Pela autofagia que é o sistema penal.

O que permite que a violência seja naturalizada e até mesmo encarada como necessária é a ideia
incutida na mente da coletividade de que o transgressor é uma ameaça, merecendo ser punido por ter viola-
do o contrato social de viver pacificamente. É esse o fundamente da criminologia etiológica: o pacto social é
rompido pelo sujeito, que precisa ser punido para ser curado, não se questionando se outros fatores interfe-
rem no fenômeno criminológico, bem como se abstendo de indagar acerca da parcela de responsabilidade da
sociedade na produção do comportamento criminoso. Essa ideia permite que o infrator seja, sem grande con-
testação, encarado como um inimigo da paz e da segurança, conforme já propugnava Michel Foucoult (1997,
p. 26), devendo passar por suplícios capazes de corrigirem sua deformidade. Segundo o autor, a sociedade
pune o transgressor com a crença de tratá-lo, como um modo de dizer, na verdade, que deseja obter a cura.

Em fascinante preleção, Pedro Scuro Neto e Renato Pereira Tardeli (2000, p. 5) indicam que pela
perspectiva retributiva de se fazer justiça, a resposta que deve ser imposta ao infrator, isto é, a própria pu-
nição, é considerada uma forma de tratamento, o que resulta em custos e prejuízos cada vez maiores, em
períodos de internação cada vez mais longos e no surgimento de criminosos cada vez mais jovens e perigosos.
Segundo os autores, na mente de juízes, promotores, legisladores e da opinião pública, o impacto da retribui-
ção se deve à relação direta entre pena, desaprovação do comportamento proscrito e eventuais conseqüên-
cias adversas para o infrator. Os autores defendem que por sua vez, por estar circunscrita a esse esquema,
a função tratamento não consegue estabelecer um vínculo claro com a infração. Concentra-se, da mesma
forma que a função punitiva, unicamente nos motivos e nas necessidades do infrator, do qual, todavia, nada
se exige.

O desafio da sociedade latino-americana, portanto, é a construção de um sistema de Justiça mais efi-


ciente. Um sistema que respeite os Direitos Humanos e produza resultados mais satisfatórios para as partes
diretamente envolvidas no conflito e também para a sociedade. A violência do atual modelo é apresentada
como um infortúnio que precisa ser tolerado em nome da segurança social e jurídica. Seus defensores ale-
gam que seria preferível um sistema imperfeito a um sistema que pudesse conduzir à desordem.

Ainda que se tente acreditar em um Direito Penal Mínimo e garantista, que respeite os valores demo-
cráticos insculpidos na Constituição e observe princípios como o da intervenção mínima, da estrita legalidade
e da taxatividade, parece haver uma contradição irremediável entre a ideia de punir e concomitantemente
preservar o sistema de garantias do indivíduo previsto na Carta Magna. Isso porque as promessas do Direito
Penal Mínimo não podem ser cumpridas com a violência e a seletividade que é inerente ao modelo de contro-
le social. Por essa razão, Eugenio Raúl Zaffaroni (1989, a, p. 19) reflete que é incontestável que a pretendida
racionalidade do discurso jurídico-penal tradicional e a consequente legitimidade do sistema penal tornaram-
-se utópicas e atemporais: ou seja, não se realizarão em lugar algum e em tempo algum.

É fundamental que se reflita com circunspecção acerca dos custos sociais e humanos desse modelo
de controle penal. A esse respeito, Antonio Carlos Wolkmer (1995, p. 134) propugna com maestria que a

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

questão do crime e do controle social no contexto de formações sociais capitalistas periféricas insere-se na
esfera dos mecanismos burocráticos do Estado e de seus aparatos repressivos, o que, na maior parte dos ca-
sos, inviabiliza ou limita as práticas de política criminal alternativa.

A Justiça Restaurativa, nesse contexto, significa esperança. Esperança de formação de um pensa-


mento crítico capaz de insurgir-se ao fetichismo da lei e à ineficiência do modelo que está posto – produtor,
reprodutor e amplificador de violências, mas incapaz de proporcionar benefícios individuais ou coletivos.

Uma das grandes vicissitudes do presente modelo de reação ao fenômeno criminológico reside na ex-
cessiva preocupação quanto ao passado, mas praticamente inexistente cuidado quanto ao futuro. O cerne do
contemporâneo processo penal é a decisão acerca da culpa ou não do réu. Em caso de resposta positiva, deve
o réu sofrer punição, não se discutindo as causas da infração penal, suas consequências e, principalmente,
tampouco se procura restaurar as feridas causadas à vítima e evitar novas ocorrências.

Trata-se, sobretudo, de um processo que se esgota em si mesmo. Com a tirania estatal, que atira o
infrator contra toda a sociedade, evidentemente nasce um estado de necessidade que faz com esse busque
a todo custo livrar-se das mazelas do cárcere. Não se encoraja, assim, que o infrator se responsabilize pe-
los seus atos, pois o que existe é um processo indiferente aos sentimentos das partes e a atitudes como o
arrependimento e o perdão, cada vez mais raros na sociedade pós-moderna, marcada pelo individualismo e
pela fragmentação social.

Assim, a pena esgota-se em punição, que é inábil a evitar a prática de novas infrações. Pedro Scuro
Neto e Renato Pereira Tardeli (2000, p. 5) pontuam que a incapacidade de reabilitar do sistema se deve à
unidimensionalidade do modelo repressivo que ele utiliza, o paradigma retributivo, pois existe contradição
entre punir e reabilitar, que se expressa, de um lado, na intenção de atender necessidades coletivas (excluir
o “elemento perigoso” e mostrar ao criminoso de qualquer idade que sua conduta é desprezível e passível de
rigorosa punição) e, ao mesmo tempo, satisfazer carências individuais (em particular de jovens infratores)
por meio de tratamento, serviços especializados e programas de reabilitação.

A Justiça Restaurativa dispõe-se a tratar o fenômeno criminológico de uma forma diversa do modelo
que está posto. Entre outras, possui finalidades como a superação tanto do monopólio do punitivismo do sis-
tema criminal como da judicialização dos conflitos, que hoje só podem ser dirimidos pelo Estado. Busca-se
incentivar práticas não violentas de resolução de conflitos na esfera penal, com participação comunitária.

O esgotamento e a crise de legitimidade do sistema penal conduzem a uma necessária discussão


acerca de redefinição do papel do Direito Penal e do Estado e de suas subseqüentes missões, visando redu-
zir o estigma propiciado pelo cárcere e o atendimento das necessidades das vítimas. Não se pode falar em
pacificação social com a continuidade das violências sociais e institucionais do modelo punitivo. A Justiça
Restaurativa representa a renovação da esperança da construção de um sistema verdadeiramente alicerçado
nos princípios democráticos e na defesa dos Direitos Humanos dos povos latino-americanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente paradigma de reação à prática de infrações penais revela-se ineficiente. Constata-se que a
promessa de segurança jurídica e social não é e nem pode ser cumprida por meio desse paradigma. A violên-
cia epidêmica é intrínseca ao sistema retributivo, o qual é inapto a oferecer a proteção pretendida pelo dis-
curso jurídico-penal. A consequência da insistência na manutenção de um sistema envolto na mais notória
insolvência da história da civilização, como diria Eugenio Raúl Zaffaroni, é a perpetuação da violação diária
dos Direitos Humanos na América Latina através da violência praticada em todos os ambientes de convivên-
cia, inclusive os mais elementares, tais como o familiar, escolar, comunitário, profissional etc.

É preciso que se reflita o Direito Penal de forma crítica para se questionar os resultados do modelo
meramente retributivo. Há de se refutar soluções imediatistas, populistas e midiáticas que propugnem o
combate ao fenômeno criminológico tão somente combatendo a figura do sujeito transgressor, afastando a
interferência de questões sociais na produção do conflito que se traduz na prática de uma infração. A questão

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

da criminalidade na América Latina se insere no contexto periférico típico de colônias de exploração, onde há
concentração de riquezas e terras nas mãos de poucos e uma justiça mansa com as classes dirigentes, mas
dura com os pobres. Afinal, conforme alertou sabiamente Eduardo Galeano, a Justiça é como as serpentes.
Só morde os descalços.

A Justiça Restaurativa pretende alterar o enfoque do debate acerca do fenômeno criminológico, hoje
concentrado apenas no ofensor e na punição, para resgatar a importância da vítima e incentivar práticas que
possibilitem o tratamento das feridas ocasionadas pela lesão sofrida. É preciso superar o paradigma retributivo
para compreender que a infração penal atinge precipuamente a vítima, seus amigos e familiares, gerando-
-lhes traumas e feridas que não são objeto de cuidado e tratamento no modelo positivo. A Justiça Restaurativa
compreende que o primordial é propiciar formas de se buscar a restauração das relações que foram violadas
com a conduta infratora. Assim, o formal e rigoroso processo penal protagonizado entre o onipotente Estado
e o infrator cede espaço a um paradigma preocupado em buscar o diálogo entre o transgressor e a vítima, pois
só assim será possível compreender a infração penal como o reflexo de relações de desequilíbrio e propiciar
a coesão das cada vez mais fragmentadas sociedades pós-modernas.

A busca por soluções que estejam em sintonia com a Constituição Federal e com tratados interna-
cionais sobre Direitos Humanos é premente. É preciso que o Direito cumpra, ainda que de forma tardia, as
promessas da modernidade. Afinal, o Direito assume uma nova missão, sobretudo em sociedades visivelmen-
te excludentes como as latino-americanas, consistente na transformação da realidade subjacente à aplicação
das normas, servindo como um instrumento à disposição para quem dele necessite.

A Justiça Restaurativa simboliza uma luz em um sistema marcado por contradições que não parecem
ser fruto do acaso, mas produto de um discurso compromissado com a manutenção das estruturas de po-
der e com eliminação de qualquer alternativa que afaste o punitivismo. É imprescindível que esse sistema,
marcado pela contradição entre punição e reabilitação, seja substituído, ainda que paulatinamente, por um
paradigma como o restaurador, cuja essência é a defesa dos Direitos Humanos. Não se pode, afinal de contas,
acreditar na prevalência dos Direitos Humanos em um contexto em que sua mitigação é a regra, e sua vin-
culação, a exceção.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO


ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO

Flora Oliveira da Costa


Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco; Especialista em Direito do
Trabalho pela Esmatra 6ª e Mestranda em Direito pela Universidade Católica de
Pernambuco. Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Bens jurídicos tutelados no trabalho escravo; 2. Projetos de lei 432/2013
e 3842/2012; 3. Críticas aos projetos de leis; Conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO

Desde 1995 o Governo Federal admitiu a existência de trabalho escravo no seu território, após des-
dobramentos do episódio conhecido como “Caso José Pereira”1 – trabalhador violentado quando tentava fugir
das condições análogas a de escravidão no Estado do Pará – oportunidade em que o país foi denunciado na
Corte Interamericana de Direitos Humanos e como sanção se comprometeu a adotar medidas para a erradi-
cação do trabalho escravo no país2.

Após essa intervenção da Organização Internacional do Trabalho e das políticas voltadas ao trabalho
escravo contemporâneo, cerca de 50 mil pessoas já foram libertas da condição de trabalho análoga a de es-
cravo3, a partir das medidas oficiais adotadas, como a criação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel.

Todavia, em razão das consequências da globalização4, que acelera a economia nacional em busca
da produção em massa e da precarização das condições de trabalho, emergem cada vez mais denuncias de
privação da liberdade, além das afrontas à dignidade do trabalhador, seja mediante condições degradantes de
trabalho, seja com a imposição de jornadas exaustivas.

Com vistas a combater o trabalho escravo contemporâneo, a partir do princípio Constitucional da fun-
ção social da propriedade, foi aprovada, após mais de 13 anos, a Emenda Constitucional 81/14, alterando o
artigo 243 da CF/88, passando a dispor que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde
forem localizadas exploração de trabalho escravo, devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a
programas de habitação popular.

Entretanto, a Emenda Constitucional, apesar de ser esperada como instrumento de freio à prática de
trabalho escravo, trás em seu texto a necessidade de regulamentação em lei específica do que seria trabalho

1  SAKAMOTO, Leonardo (Coor. De Estudos). Trabalho Escravo no Brasil do século XXI. Brasília. Organização Internacional do
Trabalho, 2007.
2  OIT. As regras do jogo. Uma breve introdução às normas internacionais do trabalho. Edição do Gabinete para a Cooperação do
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social de Portugal. 3 ed., fev. 2007, pag. 27-30.
3  Dado retirado da página virtual do Ministério do Trabalho e Emprego, disponível em: http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/
resultados-das-operacoes-de-fiscalizacao-para-erradicacao-do-trabalho-escravo.htm..
4  LAITT, Isabela Parelli Haddad. O trabalho escravo à luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho.
In: Alvarenga, Rúbia Zanotelli de, CONNAGO, Lorena de Mello Rezende, coord. Direito Internacional do Trabalho e as Convenções
Internacionais da OIT. São Paulo: LTr, 2004, pag. 269.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

escravo, em que pese o Código Penal estabelecer, em seu artigo 149, quais as hipóteses de ocorrência do
trabalho escravo.

Sobre a regulamentação do trabalho escravo, já estava em tramitação no Senado federal desde 2013,
o Projeto de Lei nº. 432/20135, de iniciativa do Senador Romero Jucá (PMDB/RR), que dispõe sobre a ex-
propriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizam a exploração do trabalho escravo, ou seja,
antes mesmo da Emenda Constitucional 81/14 ser aprovada. O projeto atualmente6 está na em votação na
Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça, do Senado Federal.

Além desta, existe também o Projeto de Lei nº. 3842/127, de iniciativa do Deputado Federal Moreira
Mendes (PSD- RO), com a finalidade de alterar o artigo 149 do Código Penal. Este projeto de lei foi aprovado
em 17 de abril de 2015, pela comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento rural,
devendo passar pelas Comissões de trabalho, administração e serviço público e de Constituição, justiça e
cidadania, para ir à votação no Plenário na Câmara dos Senados.

Os dois Projetos de Lei visam retirar da caracterização do trabalho escravo o trabalho degradante e a
jornada exaustiva, que foram inseridos desde 2003, através da Lei 10. 803, de 11.12.2003, no Artigo 149 do
Código Penal Brasileiro, representando a tutela à dignidade do trabalhador.

Deste modo, o presente ensaio visa analisar, a partir das justificativas dos Projetos de Lei 432/13 e
3842/12, a ameaça de extinção da proteção à dignidade do trabalhador, no âmbito do combate ao trabalho
Escravo.

1. BENS JURÍDICOS TUTELADOS NO TRABALHO ESCRAVO.

O Trabalho Escravo está regulamentado no Código Penal brasileiro, em seu artigo 149, que antes
da alteração, em 2003, era assim redigido: “Reduzir Alguém a condição análoga a de escravo.” Observa-se
que o tipo penal estabelecia a existência de relação de trabalho entre as partes, sendo portanto, um conceito
bastante abrangente, causando inúmeras dificuldades ao Judiciário e aos Grupos de Fiscalização Móvel, já
que sua tipificação era aberta.

O Brasil recepcionou a convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho8, falar em trabalho


escravo era sinônimo de proteger à liberdade do trabalhador. Tanto é verdade, que o crime de reduzir alguém
à condição análoga a de escravo esta inserido no capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade indivi-
dual, especificamente na seção I, que dispõe sobre os crimes contra a liberdade pessoal.

Após alteração no artigo 149, introduzido pela Lei n. 10.803, de 11.12.2003, houve significativa
mudança na prática do trabalho escravo, ficando claro que prescindia de uma relação de trabalho entre as
partes, sendo agora tutelado à liberdade pessoal e a dignidade do trabalhador9.

O quadro abaixo mostra com exatidão como a modificação do artigo 149 do Código Penal fomentou
as denúncias e libertações investigações do trabalho escravo após a modificação do artigo 149 do Código Pe-
nal, por parte do Grupo Móvel de Fiscalização, em razão das novas modalidades de trabalho escravo, sendo

5  http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=138660&tp=1 Acessado em 30/04/15


6  http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=114895. Acesso em 28/04/15
7  http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=990429&filename=PL+3842/2012 Acessado em
30/04/15
8  Conceito de Trabalho Escravo presente no artigo 2ª da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho: Para fins
desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório”, compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob
a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
9  Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.§1
Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-
lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais
do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2ª. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra
criança ou adolescente; II- Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

eles, “jornada exaustiva” e “condição degradante de trabalho”, bem como da condição dos sujeitos do crime
estarem inseridos no relação de empregado e empregador.

A alteração do tipo penal reduzir alguém a condição análoga a de escravo tornou a conduta mais
específica, além de delimitar as hipóteses de verificação do trabalho escravo, ao coibir a sujeição ao trabalho
forçado, a jornadas exaustivas, condição degradante e à proteção a liberdade do trabalhador.

Ademais, surgida após a promulgação da Constituição Cidadão, a alteração do artigo 149 do Código
Penal é instrumento de autodeterminação dos objetivos e princípios do Estado Democrático de Direito. Sobre
o tema, importante registro fez o Doutrinador José Cláudio Monteiro10:

Restringir a liberdade, em todas as suas formas, e não somente a liberdade


de ir e vir, então é atentar contra a Constituição da república, que trás, por
exemplo, no artigo 1ª, IV, o valor social do trabalho como fundamento da Re-
pública, no art. 3ª, I, o objetivo fundamental de construção de uma sociedade
livre, assim como registra, mais à frente, a liberdade do exercício de qualquer
trabalho (art. 5ª, XIII), o que é de todo incompatível com a situação de ter
alguém em condições assemelhadas às de escravo. Mas há, como será visto
mais adiante, um bem maior a proteger, que é a dignidade da pessoa huma-
na, considerada o principal fundamento da República, e prevista n artigo 1ª,
inciso III. A dignidade da pessoa humana é patente, sustenta a existência de
todos os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e revela que
o ordenamento jurídico está construído para a proteção dos direitos básicos,
essenciais, dos seres humanos, entre eles os previstos para a proteção daque-
les que vivem de sua força de trabalho.

Deste modo, têm sem que os bens jurídicos tutelados no artigo 149 do Código Penal são a liberdade
pessoal do trabalhador e a dignidade do trabalhador, como instrumento de efetivação da dignidade humana.
Este inclusive é o posicionamento da Corte Suprema do País, sobre o trabalho escravo, observa-se:

EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO.


ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA
CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para con-
figuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove
a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade
de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alter-
nativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a
do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos cons-
trangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de
sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa
humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela
violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao
trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade
da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também
significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer
violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação
aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se
os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou
a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento
no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão receben-
do o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade
e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais.
(Inq 3412, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min.

10  BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de, TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA, São Paulo, LTr, 2014,
p. 47.

312
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2012, ACÓRDÃO ELE-


TRÔNICO DJe-222 DIVULG 09-11-2012 PUBLIC 12-11-2012 RTJ VOL-
00224-01 PP-00284).

2. PROJETOS DE LEI 432/2013 E 3842/2012.

A alteração do artigo 243 da Constituição Federal, a partir da Emenda Constitucional nº. 81/14 trouxe
a desapropriação de bens imóveis como importante ferramenta no combate ao trabalho escravo, todavia, não
levou em consideração a legislação já existente no âmbito penal para tipificação do trabalho escravo.

Não só desconsiderou o artigo 149 do Código Penal, como já existe Projeto de Lei em trâmite no
Congresso Nacional, para regulamentar a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem
a exploração de trabalho escravo, e outro que visa à alteração do artigo 149 do Código Penal, sendo eles os
Projetos de Lei 432/2013 e 3842/2012, respectivamente.

Justificando os respectivos Projetos de Lei, o Senador Romero Jucá e o Deputado Federal, Moreira
Mendes, voltam-se a dificuldade de incriminação pelo ilícito penal do trabalho escravo, defendendo a exclu-
são da jornada exaustiva e ao trabalho degradante.

O Deputado Moreira Mendes, em sua exposição de motivos, cita o documento apresentado pela Re-
latora oficial da ONU, Sra. Gulnara Shahinian, sobre as formas contemporâneas de escravidão, relatadas em
missão ao Brasil nos dias 17 a 28 de maio de 2010.

O Senador argumenta que após alteração do artigo 149 do Código Penal, em 2003, não determinou
de modo objetivo o que seria trabalho degradante e jornada exaustiva.

Já o Projeto de Lei 432/2013, justifica sua necessidade no fato das Convenções da OIT que tratam so-
bre o trabalho escravo (29 e 105) já não conseguirem conceituar tal prática, existindo atualmente inúmeras
formas de restringir a liberdade de alguém, mediante o trabalho escravo. O Senador inclusive defende que a
ocorrência do trabalho escravo está subjugada ao tolhimento da liberdade do trabalhador com o objetivo de
explorar o seu trabalho.

Por conseguinte, o Projeto de Lei 3842/2012, propõe alterar o atual artigo 149 do Código Penal para
a seguinte redação:

Para fins desta Lei, a expressão “condição análoga à de escravo, trabalho for-
çado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma
pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e para o
qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Já o Projeto de Lei 432/2013, com vistas a regulamentar a expropriação das propriedades em que
forem localizadas o trabalho escravo, define as seguintes condutas, como condutas típicas do trabalho escra-
vo, passível de expropriação:

Os imóveis rurais e urbanos, onde for identificada a exploração de trabalho


escravo diretamente pelo proprietário, serão expropriados e destinados à re-
forma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização
ao proprietário que foi condenado, em sentença penal transitada em julgado,
pela prática da exploração do trabalho escravo e sem prejuízo de outras san-
ções previstas em lei, conforme o artigo 243 da Constituição Federal de 1988.
§1º: Para os fins desta lei, considera-se trabalho escravo:
A submissão a trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação,
ou que se conclui de maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal;

313
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com


o fim de retê-lo no local de trabalho;
A manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de docu-
mentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
A restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador, em razão de dívida
contraída com empregador ou preposto.

3. CRÍTICAS AOS PROJETOS DE LEIS.

Estabelecer o trabalho escravo à lei específica que em seu projeto, traga conceito distinto do concei-
tuado no artigo 149 do Código Penal, é retroceder os avanços trazidos no combate ao trabalho degradante e
as jornadas exaustivas, sendo estas as hipóteses em que há mais ocorrências do trabalho escravo.11

De outro víeis, havendo a possibilidade do Projeto de Lei 432/2013 ser aprovado antes do Projeto de
Lei 3842/2012, coloca-se a possibilidade de ocorrerem casos nos quais haverá a caracterização de trabalho
escravo nos âmbitos penal e trabalhista, mas não ocorrerá a perda da propriedade pela mencionada diferença
conceitual que irá tratar as jornadas exaustivas e as condições degradantes de forma distinta.

Registra-se que a referência feita no Projeto de Lei 3842/201212, diz respeito ao combate ao combate
ao trabalho escravo no meio rural, devendo o referido Deputado Federal ter feito menção a este detalhe, para
não confundir a população.

Não é certo que as hipóteses de trabalho degradante e jornada exaustiva não apresentam conceitos
definidos, causando prejuízo no momento da caracterização do trabalho escravo. Tais ocorrências protegem
a dignidade do trabalhador, pois afastando-se dos conceitos de privação da liberdade pessoal, tutelam um
ambiente sadio de trabalho, existência de alojamento em condições mínimas, o não fornecimento de Equi-
pamentos de Proteção Individual, jornadas que não coloquem a vida do trabalhador e nem de seus colegas
em risco. 13

Ademais, no que concerne a jornada exaustiva, o próprio Ministério do Trabalho, através da Secre-
taria de Inspeção do Trabalho, lançou a Instrução Normativa n. 91, de 05 de outubro de 2011, que define a
jornada exaustiva, para fins de fiscalização do trabalho, como sendo:

Toda jornada de trabalho de natureza física ou mental que, por sua extensão
ou intensidade, cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas
da pessoa do trabalhador, ainda que transitória e temporalmente, acarretan-
do, em consequência, riscos a sua segurança e/ou saúde.

Igualmente, tem-se que as tentativas de reduzir a proteção jurídica à dignidade do trabalhador no


combate ao trabalho escravo, são de iniciativas de Políticos que representam bancadas conservadoras, de
interesses ruralistas, que lutam, na verdade, pela conservação de suas propriedades.

CONCLUSÕES

O Direito do Trabalho, para efeitos de análise do trabalho escravo, utiliza-se do conceito previsto no
art. 149 do Código Penal, dada a inexistência de definição na legislação trabalhista. A fiscalização do trabalho
adota o tipo penal para resgatar os trabalhadores encontrados em situação de trabalho escravo.

11  _____ TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA. São Paulo; LTr, 2014.
12  http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-escravo/relatorio-da-relatora-especial-onu-
sobre-formas-contemporaneas-de-escravidao Acessado em 01.05.2015
13  MELO, Luis Antônio Camargo de. PREMISSAS PARA UM EFICAZ COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO. Revista do
Ministério Público do Trabalho. São Paulo, Ltr, n. 26, p. 15, set. 2003.

314
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A criação de uma segunda definição legal de trabalho escravo que seja mais restritiva e menos pro-
tetiva será trágica para a tutela laboral, tendo em vista que será viabilizada a possibilidade de utilização do
conceito previsto no Projeto de Lei n. 432/2013 na esfera trabalhista.

Tal fato afetará gravemente a segurança jurídica, uma vez que haverá dois conceitos legais de traba-
lho escravo em um contexto em que inexiste previsão no ordenamento jurídico laboral.

Deve-se destacar que não se ignora a principiologia do Direito do Trabalho, que nos indica a aplicação
da norma mais favorável ao trabalhador no caso concreto, e torna óbvia a adoção do tipo penal para efeitos
trabalhistas.

Contudo, o mero fato de ser necessário o uso de princípios para se chegar a uma conclusão que atu-
almente não demanda qualquer esforço hermenêutico demonstra a lesividade que os mencionados Projetos
pode acarretar.

Por fim, não é possível retroceder as conquistas históricas de combate ao trabalho escravo em razão
de jornadas exaustivas e do trabalho degradante, haja vista esta última hipótese, a Constituição Federal inclu-
sive veda o tratamento degradante, em seu artigo 5ª, inciso III, em respeito aos seus direitos fundamentais.

É preciso estar atento as mudanças e sobretudo ao interesse nos bens jurídicos que o Poder Legis-
lativo pretende estabelecer proteção jurídica, a fim de não representar um retrocesso as conquistas, quiçá
histórias, no combate ao trabalho escravo contemporâneo.

REFERÊNCIAS

BRITO, José Claudio Monteiro de, Trabalho decente: análise da exploração, trabalho escravo e ou-
tras formas de trabalho indigno, 2. ed., São Paulo: LTr, 2010

_______ , TRABALHO ESCRAVO: CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA, São Paulo, LTr, 2014

BRASIL. Ministério do Trabalho. Grupo Especial Móvel. Portaria n. 265, de 06 de junho de 2002.

LAITT, Isabela Parelli Haddad. O trabalho escravo à luz das Convenções ns. 29 e 105 da Organização In-
ternacional do Trabalho. In: Alvarenga, Rúbia Zanotelli de, CONNAGO, Lorena de Mello Rezende, coord.
Direito Internacional do Trabalho e as Convenções Internacionais da OIT. São Paulo: LTr, 2004,
pag. 269-270

OIT. As regras do jogo. Uma breve introdução às normas internacionais do trabalho. Edição do
Gabinete para a Cooperação do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social de Portugal. 3 ed., fev. 2007,
pag. 27-30.

MELO, Luis Antônio Camargo de. PREMISSAS PARA UM EFICAZ COMBATE AO TRABALHO ES-
CRAVO. Revista do Ministério Público do Trabalho. São Paulo, Ltr, n. 26, p. 15, set. 2003.

Ministério do Trabalho e Emprego. Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva: Referências para


estudos e pesquisas. Disponível em: portal.mte.gov.br/data/files/.../retrospec_trab_escravo.pdf

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o trabalho. Revista da AMATRA, II, São Paulo, 2003, p. 13.

Sakamoto, Leonardo (Coordenação de estudos). Trabalho escravo no Brasil do Século XXI.Brasília.


Organização Internacional do Trabalho, 2007.

_____ As boas práticas da inspeção do trabalho no Brasil: A erradicação do trabalho análogo ao


de escravo / Organização Internacional do Trabalho. – Brasília: OIT, 2010

315
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

PROJETO DE LEI 432/2013 disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?-


t=138660&tp=1 Acessado em 30/04/15

PROJETO DE LEI 4842/2012, disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_


cod_mate=114895. Acesso em 28/04/15

RELATÓRIO DA RELATORA ESPECIAL SOBRE FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVI-


DÃO, INCLUINDO SUAS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS, disponível em http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atu-
acao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-escravo/relatorio-da-relatora-especial-onu-sobre-formas-
-contemporaneas-de-escravidao Acessado em 01.05.2015

___________INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº. 91, DE 05 DE OUTUBRO 2011. (PUBLICADA no DOU de


06/10/2011 Seção I pág. 102). Disponível em http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D32DC09BB0132D-
FD134F77441/in_20111005_91.pdf

316
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO


UM OLHAR LUHMANNIANO

Flora Oliveira da Costa


Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco; Especialista em Direito Judiciário
e Magistratura do Trabalho pela Escola Superior de Magistratura Trabalhista da 06ª Região;
Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco; Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Breves Considerações sobre a Teoria dos sistemas de Luhmann; 2. O


Direito como forma de redução das expectativas sociais; 3. O Trabalho decente como redutor de
complexidades no universo trabalhista; 4. O Trabalho decente como redutor de complexidades no
universo trabalhista; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O direito do trabalho sempre mostrou sua força nas diversas formas de Estado, seja como produto do
capital, seja como movimento social combativo por melhorias voltadas para sua categoria.

Assim, pode-se delimitar como início do direito do trabalho como ramo especializado, à revolução
industrial, que veio trazer a preocupação com a relação empregatícia, além de unir toda a classe pela luta de
progressos em suas condições de trabalho.

Essa classe trabalhadora buscou melhorias para sua categoria, lutando sobretudo contra o abandono
de sua dignidade, em virtude dos ideais liberais. Sobre esse período, Ricardo Antunes (2002) observa:

Sob a alternância partidária, ora com a social- democracia ora com os parti-
dos diretamente burgueses, esse “compromisso” procurava delimitar o cam-
po da luta de classes, onde se buscava a obtenção dos elementos constitutivos
do welfare state em troca do abandono, pelos trabalhadores, do seu projeto
histórico – societal. Uma forma de sociabilidade fundada no “compromisso”
que implementava ganhos sociais e seguridade social para os trabalhadores
dos países centrais, desde que a temática do socialismo fosse relegada a um
futuro a perder de vista.

Desse modo, pode-se defender que o Estado de Bem Estar social veio para proteger a classe trabalha-
dora, envolvendo o cidadão trabalhador em um conjunto de direitos e garantias que dão sentido ao mundo
do trabalho.

O direito do trabalho, portanto, faz parte dos direitos fundamentais constitucionais, justamente por
elencar garantias mínimas de realização, proteção, em relação ao homem trabalhador, seu futuro (seguridade
social) e o de sua família.

Em tempos de crise do Estado Social e hegemonia da cultura neoliberal, influenciados pela globa-
lização focada no capitalismo a todo custo, o mundo do trabalho está sendo atingindo sorrateiramente pela
economia, ou seja, os empregadores são os verdadeiros donos de seus funcionários, pois, sob a égide da su-

317
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

bordinação e de uma legislação trabalhista cada vez mais flexível (BARROSO, 2009 67), é gritante o cenário
de destruição da dignidade do trabalhado. Valendo-se, novamente, do doutrinador Ricardo Antunes (2002),
são as flagrantes metamorfoses no trabalho de hoje:

O mundo do trabalho viveu, como resultado das transformações e metamor-


foses em curso nas últimas décadas, particularmente nos países capitalistas
avançados, com repercussões significativas nos países do terceiro mundo do-
tados de uma industrialização intermediária, um processo múltiplo: de um
lado verificou-se uma desproletarização do trabalho industrial, fabril, nos pa-
íses do capitalismo avançado. Em outras palavras, houve uma diminuição da
classe operária industrial. Mas, paralelamente, efetivou-se uma significativa
subproletarização do trabalho, decorrência das formas diversas de trabalho
parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia infor-
mal, ao setor de serviços, etc. Verificou-se, portanto, uma significativa hete-
rogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho.

Noutro aspecto, a própria Constituição Federal tem como fundamento da nação, a dignidade da pes-
soa humana e os valores sociais do trabalho, vindo o artigo 7ª da Constituição a elencar as condições sociais
de trabalho e seu futuro (previdência). Entretanto, que pese a narrativa do texto constitucional, o cotidiano
da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho demonstra que a dignidade do trabalhador vem
sofrendo inúmeros atentados, tais como, remuneração em desconformidade a lei e ao estipulado em conven-
ção coletiva, ambiente de trabalho inseguro, sendo o ambiente do trabalho um dos lugares que mais se mata
no Brasil1, trabalho em condição insalubre e periculosa, frustração a direitos sindicais.

O trabalho decente corresponde a um universo de direitos e garantias do trabalhadores e por isso


devem conviver com a complexidade, heterogeinização e fragmentação do trabalho moderno, e não serem
ignorados e massacrados pela onda neoliberal.

A contribuição de Nicklas Luhmann na explicação da sociedade e seus sistemas, ilustra que o direi-
to, enquanto sistema, trabalha na redução das complexidades do entorno de forma constante, afetando seu
sistema interno a partir deste diálogo com o que é externo.

Dessa forma, o presente ensaio visa analisar as formas de complexidade presentes no entorno do tra-
balho decente, a luz da teoria dos sistemas de Luhmann, como possibilidade de dar efetividade a dignidade
do cidadão trabalhador.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DOS SISTEMAS DE LUHMANN.

Nicklas Luhmann presenteou a modernidade com seus inúmeros livros e artigos, ao explicar a socie-
dade e o direito a partir da teoria dos sistemas. Humildemente, enquanto esperava o início de uma conferên-
cia, o sociólogo em um amistoso chá da tarde com seu pupilo, Raffaelie Di Giorgi, observando vários grupos
de garotos jogando futebol em uma grande praça pública, brilhantemente, argumentou que a sociedade
estava representada naquela cena: Uma complexidade de sistemas, que autônomos e independentes, com-
pletavam o todo que é a sociedade.

Esclarece-se que em um primeiro momento, não é fácil a compreensão da teoria dos sistemas de
Luhmann, isto porque, o sociólogo busca amparo nas ciências exatas e humanas, para, de uma forma universal,
revelar uma teoria geral sobre a sociedade, trazendo inúmeras terminologias, que uma vez entendidos, po-
dem ser utilizados para compreender política, direito, o amor.

Assim, Nicklas trabalha a sociedade como um todo rodeado de complexidade, que quanto mais con-
tingente for, maior será a influência levada ao sistema. O sistema, portanto, atuará como redutor da complexi-
dade, a partir da relação em que, quanto maior a complexidade externa ao sistema, maior será a necessidade

1  http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/aeps-2013-anuario-estatistico-da-previdencia-social-2013/aeps-2013-secao-iv-acidentes-
-do-trabalho/ Acesso em 14.Ago.15

318
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do sistema internamente reduzir as complexidades, criando outros subsistemas. Explicando a Complexidade


(Corsi, Esposito, Baraldi,1996, p. 44), tem-se o seguinte:

La diferencia entre sistema y entorno consiste en um gradiente de compleji-


dad (komplexilalgefalle): el entorno es siempre más complejo que el sistema,
ya que el sistema fija los limites que delimitam el ámbito de lo posibleen
su interior. El desnível de complejidad entre sistema y entorno se configu-
racomo relación de relaciones: las relacionesasbstractamente posiblesentre
elementosdel sistema (complejidad del sistema) se vinculan en el sistema
mismo em relación com las compatibilidades del entorno (complejidad del
entorno). En um sistema social no todo puede ser actualizado simultanea-
mente em las operaciones (em la comunicación) precidamente en cuanto
que la complejidas está estructurada según uma perspectiva de compatibili-
daded com el entorno.

Nesse cenário, Luhmann se inspirou na teoria dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco
Varella, para explicar a autopoiése dentro dos sistemas, que nada mais é do que a evolução do sistema em ou-
tro ou subsistemas, a partir da influência externa da complexidade. Nesse cenário, observa-se a explicação:

Um sistema vivo, segun Maturana, se caracteriza por la capacidad de produ-


cir y reproducir por sí misma los elementos que lo constituyen, y así define
su própria unidad: cada célula es el produto de um retículo de operaciones
internas al sistema del cual ella misma es um elemento y no de uma accion
externa; (...) Mentras em el âmbito biológico se aplica exclusivamente a los
sistemas vivos, según Luhmann se individualiza um sistema autopoiético em
todos los casos em los que se está em la posibilidad de individualizar um
modo específico de operación, que se realiza al y solo al interior; (Corsi, Es-
posito, Baraldi, 1996, 31 -34)

Assim, os sistemas são autopoiéticos porque se autoreproduzem ou produzem a si mesmos enquanto


unidade sistêmica. A diferenciação entre sistema e entorno, por sua vez, realça as características do sistema,
que é operacionalmente fechado, sendo influenciado a partir do mundo externo através da comunicação.
Assim, outro detalhe importante para se compreender a teoria dos sistemas é esquecer a ideia do ser humano
como coadjuvante na sociedade, isto porque, Luhmann considera que as influências externas produzem co-
municação, podendo vir de pessoas ou instituições localizadas no entorno. (ECKERT; MONTEIRO NEVES,
2006, p. (15-17).

Percebe-se, assim, que entender o fenômeno da autopoise em Luhmann é fundamental para com-
preender a Teoria dos Sistemas, visto que é a forma de auto reprodução dos sistemas e subsistemas, a partir
de elementos como complexidade externa, comunicação e o código binário de seleção.

Ainda sobre a Autopoise em Luhman, se extrai brilhante lição (NEVES,1994, p. 118-119):

Luhmann não reduziu a reprodução autopoiética à auto referência dos ele-


mentos, mas apenas fixou que essa é a forma mínima de autopoiese. E o que
vai caracterizar exatamente a concepção dos sistemas autopoiéticos é que ela
parte dos aspectos operacionais, não se referindo primariamente à dimensão
estrutural (autonomia). Com relação aos sistemas sociais, enquanto se cons-
tituem a partir de uma conexão unitária (auto referencial) de comunicações,
a sociedade é o sistema mais abrangente. As unidades elementares da socie-
dade, as comunicações, que ela constitui através da síntese de informação,
mensagem e compreensão, só estão presentes no interior da mesma, não em
seu meio ambiente, de tal maneira que ela pode ser caracterizada como um
sistema “real – necessariamente fechado. Embora a reprodução de comu-
nicações só se realize dentro da sociedade (fechamento auto referencial),

319
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

existem imprescindivelmente comunicações sobre o seu meio ambiente psí-


quico, orgânico e químico-físico (abertura).

Outra observação importante a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann diz respeito ao código binário,
que corresponde a ideia de que o sistema fechado recepciona as contingências externas a partir do julgador
interno do que seria correto / errado. No caso do sistema direito, temos o código binário direito e não de di-
reito, para, de forma seletiva, separar o que é cognição e o que deve ter caráter normativo. Registra-se, pois,
o conceito de Código Binário (Corsi, Esposito, Baraldi,1996, p. 40-41)

Los esquemas binários son tipos específicos de distinciones caracterizadas


por un rígido binarismo com la exclusión de terceiros valores. Tal binarismo
se expresa en lógica en el principio del terceiro valores. Tal binarismo se
expressa em lógica en el principio del terceiro excluído: una comunicacion
cientifica es verdadera o no verdadeira, y no existen otras posibilidades; un
organismo está vivo o no vivo, y no puede estar un poco vivo. Una caracte-
ristica de la binariedad es por lo tanto uma drásrica reducción, que restringe
la gama infinita de las possibilidades a dos únicas opciones relacionadas me-
diante uma negación. También se disse que ua distinción que satisfaga esta
condición es tecificada, entendiéndose como técnica el aligeramiento de los
processos de elaboración de informaciones relacionadas com el hecho de que
no se toman en consideración todos las referencias de sentido implicadas.

O código binário funciona como uma organização sistêmica de redução das possibilidades em negati-
va ou positiva, como ferramenta eficaz na seletividade da complexidade externa.

Essas são, de forma breve, algumas conclusões sobre a forma Luhmanniana de enxergar a socieda-
de: Um todo complexo, porém autônomo e independente entre si, mas que emanam influências positivas
e negativas, de seu sistema interno e da complexidade do entorno, que sentidas, servem como motor que
impulsiona criação de novos sistemas, a partir da autopoiése.

Interessante registrar que a sociedade vista com os olhos de Luhmann não é aquela formada por
homens. Os homens são considerados apenas parte do todo complexo, sendo para o sociólogo representação
do sistema psíquico, porém a sociedade conta ainda com os sistemas orgânicos e os sociais. Esses sistemas
juntos, produzem comunicação.

Em linhas gerais, tem-se a teoria dos sistemas criada por Niklas Luhmann como modo especial de ex-
plicar a sociedade a partir de formas de redução da complexidade, através da influência dos sistemas sociais.

Assim, a complexidade do mundo é sempre maior do que a complexidade de um sistema, que por
outro lado, precisa de um grau de complexidade que lhe permita a redução da complexidade no seu meio.
Para sistemas sociais a redução da complexidade do mundo se traduz no problema de como enfrentar a dupla
contingência.

3. O DIREITO COMO FORMA DE REDUÇÃO DAS EXPECTATIVAS SOCIAIS.

Explicar o sistema direito foi objeto de inúmeros estudos de Nicklas Luhmann. Por conveniência,
cita-se aqui, alguns deles, como sociologia do direito I (1983); Sociologia do Direito II (1972), Lógica pelo
Procedimento (1980) e El Derecho de la sociedade (2006), inexistindo aqui intenção de se esgotar as obras
sobre o direito.

Nesse diapasão, cuidou o sociólogo de explicar o Sistema social na perspectiva da teoria dos sistemas,
trazendo informes próprios ao universo jurídico. Assim, Luhmann, ao introduzir sua Obra Sociologia do Di-
reito I, ao falar sobre o Direito, leciona (LUHMANN, 1983, p.12-13):

320
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O ordenamento jurídico, tal como nós o conhecemos atualmente, é uma cons-


trução de alta complexidade estruturada. Complexidade deve ser entendida
aqui e no restante desse texto como a totalidade das possibilidades de experi-
ências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de
sentido – no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente
permitido, mas também as ações legalmente proibidas, sempre que relacio-
nadas ao direito de forma sensível, como, por exemplo, ao se ocultarem. A
complexidade de um campo de possibilidades pode ser grande ou pequena,
em termos quantitativos, de diversidade ou de interdependência. A comple-
xidade totalmente desestruturada seria o caso limite da névoa original, do ar-
bítrio e da igualdade de todas as possibilidades. A complexidade estruturada
constitui-se na medida em que as possibilidades se excluam ou limitem re-
ciprocamente. Na complexidade estruturada constitui-se na medida em que
as possibilidades se excluam ou limitem reciprocamente (...). Dessa forma,
uma “constituição de Estado de direito” exclui mais ou menos efetivamente
numerosos modos comportamentais, abrindo, porém, e exatamente por isso,
o como por exemplo ações constitucionais que de outra forma não seriam
possíveis, por dependerem da estruturação (sendo contingentes). Com isso
a estrutura pode aumentar a complexidade de um sistema social no sentido
de que, apenas da limitação recíproca das possibilidades para uma escolha
sensata. É exatamente a exclusão estratégica de possibilidades que, vista em
termos evolutivos, constitui o meio para a construção de ordenamentos mais
elevados, que não podem consentir com toda e qualquer possibilidade, mas,
exatamente por isso, garantindo sua heterogeneidade.

Assim, Nicklas entende que o direito atua na redução da complexidade gerada pelas expectativas.
Estas podem ser cognitivas e normativas, sendo que as expectativas normativas não passar pelo crivo do de-
sapontamento, já que foram editadas e previstas evitar ou proteger determinadas contingências sociais.

Ao longo da evolução sociocultural, o direito foi se autonomatizando da moral, a partir de um processo


de diferenciação funcional, até chegar a constituir-se em um sistema autopoiético, composto de comunica-
ções de expectativas normativas, cuja validade se remete de modo recursivo a outras expectativas normati-
vas. (LUHMANN, 1983, p. 93);

A partir de sua organização interna, o sistema Jurídico acaba por estabilizar-se, pois todas as opera-
ções se reproduzem sem a influência externa, a não ser pela assimilação seletiva de fatores do entorno, de
acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. Toda a validação do direito é realizada de modo recursivo,
por seus próprios códigos jurídicos. O direito positivo reproduz-se de acordo com seus próprios critérios e
códigos de preferência. (NEVES; SAMIOS, 1997)

Temos, portanto, que o direito é o sistema social que se alimenta de expectativas cognitivas e norma-
tivas, e trabalha com o código binário do direito / não direito. Assim, a partir da influência do entorno e em
todos os outros sistemas (social, orgânico e psíquico), o substrato da comunicação vai influenciar a comple-
xidade interna do sistema direito, a fim de criar subsistemas cada vez mais especializados, a fim de prever
estabilidade a sociedade.

Após alteração no artigo 149 do Código Penal, houve significativa mudança na prática do trabalho
escravo, ficando claro que prescindia de uma relação de trabalho entre as partes, sendo agora tutelado à li-
berdade pessoal e a dignidade do trabalhador2.

2  Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto. Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§1 Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de re-
tê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais
do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2ª. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra
criança ou adolescente; II- Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A alteração do tipo penal reduzir alguém a condição análoga a de escravo tornou a conduta mais
específica, além de delimitar as hipóteses de verificação do trabalho escravo, ao coibir a sujeição ao trabalho
forçado, a jornadas exaustivas, condição degradante e à proteção a liberdade do trabalhador.

Ademais, surgida após a promulgação da Constituição Cidadão, a alteração do artigo 149 do Código
Penal é instrumento de autodeterminação dos objetivos e princípios do Estado Democrático de Direito. Sobre
o tema, importante registro fez o José Cláudio Monteiro (MONTEIRO, 2014, p. 63):

Restringir a liberdade, em todas as suas formas, e não somente a liberdade


de ir e vir, então é atentar contra a Constituição da república, que trás, por
exemplo, no artigo 1ª, IV, o valor social do trabalho como fundamento da Re-
pública, no art. 3ª, I, o objetivo fundamental de construção de uma sociedade
livre, assim como registra, mais à frente, a liberdade do exercício de qualquer
trabalho (art. 5ª, XIII), o que é de todo incompatível com a situação de ter
alguém em condições assemelhadas às de escravo. Mas há, como será visto
mais adiante, um bem maior a proteger, que é a dignidade da pessoa huma-
na, considerada o principal fundamento da República, e prevista no artigo 1ª,
inciso III. A dignidade da pessoa humana é patente, sustenta a existência de
todos os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e revela que
o ordenamento jurídico está construído para a proteção dos direitos básicos,
essenciais, dos seres humanos, entre eles os previstos para a proteção daque-
les que vivem de sua força de trabalho.

A Organização Internacional do Trabalho define como trabalho decente aquele trabalho adequada-
mente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida
digna. A concepção de trabalho decente para a OIT apoia-se em quatro pilares estratégicos3:

O respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios


e direitos fundamentais do trabalho (liberdade sindical e reconhecimento
efetivo do direito de negociação coletiva; eliminação de todas as formas de
trabalho forçado; abolição efetiva do trabalho infantil; eliminação de todas as
formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação; b) promoção
do emprego de qualidade; c) extensão da proteção social; d) diálogo social;
O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estraté-
gicos da OIT: o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles defi-
nidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios
Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade
sindical  e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)elimi-
nação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do traba-
lho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria
de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade,
a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social.

Neste compasso, são requisitos positivos para o trabalho decente (MONTEIRO, 2010, p. 27):

1) No Plano Individual: a) Direito do Trabalho; b) liberdade de escolha do


trabalho; c) Igualdade de oportunidades para e no exercício do trabalho; d)
Direito a uma justa remuneração; d) Direito a justas condições de trabalho,
principalmente limitação da jornada de trabalho e existência de períodos de
repouso; g) Proibição do trabalho infantil; 2) No Plano Coletivo: Liberdade
Sindical; 3). No plano da seguridade: Proteção contra o desemprego e outros
riscos sociais. Chama-se os direitos mínimos do homem trabalhador.

3  Agenda Nacional do Trabalho Decente, 2006: Disponível em: http: // www.oitbrasil.org.br

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Isto posto, observa-se que o trabalho decente não corresponde a uma única Convenção Internacional
da OIT, entretanto atua como caderno de direitos do cidadão trabalhador, que é de um todo abrangente, am-
pliando bastante, a ideia de trabalho forçado (embora também contemple a proteção a liberdade).

Consiste em universo de legislação voltada para o plano individual, notadamente no que tange a segu-
rança e saúde do trabalhador, como por exemplo as Normas Regulamentadoras instituídas pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, bem como os artigos da Consolidação das Leis do trabalho, sobre o contrato de trabalho
e sua regulação.

Platon Teixeira, preocupado na aplicabilidade do preceito legal do trabalho decente, elaborou uma
fórmula própria (TEIXEIRA,2015, p. 119), para o trabalho decente, que consiste em “Trabalho decente = a
dignidade + liberdade + igualdade + saúde + segurança + remuneração justa + atividade lícita + equidade
+ lazer + aposentadoria digna + liberdade sindical – trabalho infantil”. Ele finaliza resumindo tal fórmula
desse modo: “Trabalho decente = dignidade no trabalho + liberdade sindical – trabalho infantil. ”

O artigo 149 do Código Penal, portanto, vem a tutelar o trabalho decente, com cuidado especial ao
meio ambiente de trabalho, se preocupando com as condições de trabalho - alojamento, refeitório, equipa-
mentos de proteção, recebimento de salário equitativo, jornada dentro do previsto em lei – representando,
pois, cuidado ao direito individual do trabalhador, devendo ser verificados com sensatez, em razão da tendên-
cia do empregador brasileiro de burlar as normas de proteção a dignidade do trabalhador.

Isto porque, vige-se atualmente, uma tendência arrebatadora pela flexibilização dos direitos traba-
lhistas, que para a filosofia neoliberal, os princípios do direito do trabalho estão ultrapassados, o trabalho
não difere de outras mercadorias, vez que está baseado na autonomia da vontade e da liberdade contratual,
argumenta Fábio Túlio Barroso (BARROSO,2009, pag. 67).

Noutro aspecto, por ser um instituto de amplo alcance, que contempla diversos direitos trabalhistas,
tanto no plano individual como no coletivo, sem contar com o fato da Organização Internacional do Traba-
lho ainda não ter lançado uma Convenção Específica para este tema, é preciso voltar-se sempre aos direitos
sociais do trabalho e atuar pela sua validade, visto que a dignidade do trabalhador é o fim em si mesmo do
trabalho decente.

4. O TRABALHO DECENTE COMO REDUTOR DE COMPLEXIDADES NO UNIVERSO TRABALHISTA.

Utilizando o entendimento do Sociólogo Nicklas Luhmann, o direito é o sistema social que atua na
redução das expectativas, para que estas não gerem conflitos.

Nesse universo, o trabalho decente é a carta de direitos do cidadão trabalhador, que fundamenta no
capítulo de direitos sociais do trabalho promovido pela Constituição Federal, sem contar com o fato de que
promover a dignidade humana é um fundamento do Estado Democrático de direito, temos que o todo traba-
lho decente funcionada como sistema para evitar explorações aos trabalhadores, sendo sua pior forma, a de
reduzir alguém ao trabalho escravo.

Em que pese o texto, o trabalho escravo cresce em números alarmantes no território brasileiro, antes
mais isolado ao meio rural, porém em dias atuais está registrado nos grandes centros urbanos, com estran-
geiros trabalhando de forma ilegal em São Paulo, exemplo de Bolivianos encontrados em situação análoga à
de escravidão na empresa terceirizada de costura da varejista da Renner4, tem-se o trabalho escravo como
descontrole dos sistemas sociais, sobretudo, no âmbito do direito do trabalho.

Isto porque, o sistema direito atualmente proposto, em uma concepção pluralista pós-moderna, está
em constante crise de inconstitucionalidade, pois as normas jurídicas constitucionais atualmente vigentes
são atropeladas pela onda do capitalismo, do lucro a todo custo, favorecendo, no âmbito do direito do traba-

4  http://reporterbrasil.org.br/2014/11/fiscalizacao-flagra-exploracao-de-trabalho-escravo-na-confeccao-de-roupas-da-renner/
Acesso em 17. Ago. 15

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

lho, uma tendência a flexibilização das normas trabalhistas e reincidentes desrespeitos as normas e regras
atreladas ao mundo do trabalho.

A crise do constitucionalismo moderno é provocada pela tentativa de efetuar os fins do Estado social
de hoje com as técnicas do Estado de Direito de ontem. O problema atual é juridicizar o Estado Social, por
meio da garantia e da realização dos direitos sociais básicos. (BONAVIDES, 2007, p. 384).

Nesse cenário, comenta Marcelo Neves (1994):

Em nosso caso, pretendemos considerar algo mais radical, a própria falta de


autonomia operacional do Direito positivo estatal. Isso significa a sobrepo-
sição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico (ter/
não ter) e do político (poder/ não – poder), sobre o código “lícito/ ilícito”, em
detrimento da eficiência, funcionalidade e mesma racionalidade do direito.
(...) O fato da subordinação do direito ao poder político no contexto da cons-
titucionalização simbólica não deve, entretanto, levar à ilusão da autonomia
do sistema político. Tendo em vista que o pressuposto de tal autonomia, o
desenvolvimento da diferença “lícito/ ilícito”, como segundo código de poder,
não se realiza satisfatoriamente no âmbito da constitucionalização simbólica,
o poder político sobre injunções particularistas as mais diversas, tonando-se
ineficiente com respeito à sua função de decidir de forma vinculatória gene-
ralizada. Não havendo um sistema normativo- jurídico Constitucional efetivo
que se possa invocar legitimatoriamente para descarregar-se e imunizar-se
das pressões concretas de “cima” e de “baixo”, os respectivos governantes
(em sentido amplo), ficam suscetíveis às influências dos interesses particula-
ristas, surgindo daí mecanismos instáveis e compensatórios de “legitimação”.
Principalmente no que se refere às injuções do código “ter/não –ter” (econo-
mia), observa-se claramente a fraqueza do sistema político em situações de
constitucionalismo simbólico, um problema típico do Estado periféricas.

Percebe-se aqui uma crise na aplicação do direito como redutor das expectativas e dos conflitos so-
ciais, visto que, com a hegemonia da cultura neoliberal, o sistema do direito acaba sendo influenciado por
sistemas econômicos e políticos, passando a tutelar a economia e não os seres humanos, e como tratado aqui,
suas relações de trabalho.

O trabalho escravo contemporâneo vem para demonstrar a crise estrutural do direito, visto que, é
uma conduta abolida desde 1888 e atualmente corresponde a um ilícito penal (reduzir alguém a condição de
trabalho análoga a de escravo), mas nem por isso deixa de ser fiscalizado.

Atualmente, constata-se o trabalho escravo em todo os Estados do Brasil5, em algumas regiões com
maior número que outras, a depender da atividade economia primordial do Estado, representando um tema
atual e de importante estudo, sobretudo em tempos de crise de constitucionalidade.

A classe trabalhadora, na atualidade, têm fragmentado daquelas oriundas do Taylorismo e Fordismo


e diante de uma sociedade moderna tão complexa, isto porque tornou-se mais qualificada – hoje em dia
cada vez mais são os números de desempregados com diploma de graduação e pós graduação – e em contra
partida, desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos – para atender os interesses do mercado, o tra-
balhador tornou-se “polivalente e multifuncional” (ANTUNES, 2002, p. 189), exercendo diversas atividades
dentro de um mesmo cargo, sendo obrigado a cumprir uma carga horária cada vez mais exaustiva, tanto no
ambiente físico do trabalho, como de forma remota, em razão do trabalho de forma telemática.6

5  Quadro Geral das Operações de Fiscalização para erradicação do trabalho escravo SIT/SRTE, 1995- 2013. Disponível
em: http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A45B26698014625BF23BA0208/Quadro%20resumo%20opera%C3%A7%-
C3%B5es%20T.E.%201995%20-%202013.%20Internet.pdf. Acesso em 09.Ago. 15
6  Nova redação do artigo 6ª da CLT, a partir da Lei 12.551/2011: Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no esta-
belecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracteriza-
dos os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os países de terceiro mundo que vivenciaram as grandes ditaduras, tiveram uma modernidade tardia
no que tange o acesso ao Estado de bem-estar- social, passando, no caso do Brasil, a adotar em 1988, políticas
centralizadas na dignidade humana, a fim de garantir seus direitos fundamentais.

Entretanto, manter o Estado de bem estar social é até hoje em dia, custoso, já que para um mundo
que nunca havia se preocupado com as garantias dos indivíduos, passar a tutelar os direitos fundamentais,
tornou-se economicamente impossível, gerando crises e mais crises financeiras nos mais diversos setores.

Nesse cenário, a cultura Neoliberal está alta, como proposta de retorno aos ideários liberais, em um
cenário moderno. Os neoliberais propagavam que o Estado de bem- estar- social não conseguia frear à infla-
ção e o corte dos custos, pregando ainda que o lucro era o verdadeiro motor da economia.

Dessa forma, como efetivar o Estado Social se a ideologia neoliberalista predominante embaraça a lei-
tura e interpretação dos princípios constitucionais à luz dos valores sociais? Como concretizar a dignidade da
pessoa humana em um Estado Democrático de Direito que ainda não se solidificou em razão do pensamento
único que se dissemina e rejeita a dimensão social desse princípio basilar da sociedade moderna?

Admitir o trabalho escravo contemporâneo é reconhecer uma realidade impulsionada pela globali-
zação, que ignora as prerrogativas do Estado Social, e implementa cada vez mais a política do lucro a todo
custo, do capitalismo como fortaleza da modernidade, que se preocupa mais em acumular do que em incluir.

Isto posto, tem-se que a Teoria Social de Nicklas Luhmann é um importante modo de se estudar a
sociedade, pois além de entender a função do Estado na pacificação dos conflitos, é visível a influência de um
sistema no outro. Digamos que temos um entorno com forte tendência neoliberal, mas que guarda normas
sociais voltadas ao trabalho.

Essa situação prejudica o combate ao trabalho escravo contemporâneo, porque, é cada vez mais ur-
gente e necessário a punição de responsáveis, responsabilidade social das empresas, imposição de cláusulas
sociais, dumping social, além de políticas de (re) inserção, de educação e de formação profissional ao traba-
lhador resgatado do trabalho escravo.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.


São Paulo. Boitempo. Coleção Mundo do Trabalho. 6ª Edição, 2002.

AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. O trabalho decente com um direito humano. São Paulo. Ltr,
2015

BARROSO, Fábio Túlio. Direito Flexível do trabalho: abordagens críticas. Recife. Editora Universitá-
ria UFPE, 2009.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo. Editora Malheiros, 2007.

BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de, Trabalho decente: Análise Jurídica da Exploração, traba-
lho escravo e outras formas de trabalho indigno. 2 Edição, São Paulo. LTr, 2010.

ECKERT, Clarissa Baeta Neves; Monteiro, Alves Fabrício. O que há de complexo no mundo complexo?
Niklas Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, Ano 8, nº. 15, jan/jun 2006;

supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão
do trabalho alheio.

325
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Esposito, Elena; Baraldi, Claudio; Corsi, Giancarlo. Glosario Sobre La Teoría Social de Niklas Luhmann.
Universidad IberoAmericana; a.c, 1996

GIMÉNEZ, Pilar Alcover. El Derecho em la Teoria de La Sociedad de Niklas Luhmann. J.M Bosch
Editor, Barcelona, 1993.

LUHMANN, NIKLAS. Sociologia do Direito I. São Paulo: Biblioteca Tempo Universitário, Tempo Brasi-
leiro. 1983

MIRAGLIA, Livia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo: Conceituação à luz do prin-
cípio da dignidade da pessoa humana. 2 Edição. São Paulo. Ltr. 2015. Pag. 158

RODRIGUES, Leo Peixoto; NEVES, Fabrício Monteiro. Niklas Luhmann: a sociedade como sistema.
Porto Alegre: Edipucrs;

Neves, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo. Editora Acadêmica. 1994

Relatório do Grupo de Trabalho do Ministério Público Federal sobre as ações penais de trabalho escravo.
http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/gt-escravidao-contemporanea/jurisprudencia/ju-
risprudencia. Acesso 09.Ago. 15

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE


DROGAS:
UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA

GABRIELA PARISI DE AMORIM


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do
Grupo Asa Branca de Criminologia.

GISELE VICENTE MENESES DO VALE


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do
Grupo Asa Branca de Criminologia.

PALOMA DOS SANTOS SILVA


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e integrantes do
Grupo Asa Branca de Criminologia.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Perfil das mulheres presas em flagrante; 2. A mulher presente na base
dessa pirâmide; 3. O tráfico como seu sustento; 4. Impacto dessas prisões na vida dessas mulheres e
família; 5. Maternidade no cárcere; 6. A realidade das unidades prisionais as quais elas estão subme-
tidas; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O Direito Penal sempre foi utilizado, pelas mãos fortes do Estado, com o intuito de discriminar os
seres humanos, lhes conferindo um tratamento punitivo diferenciado. Nessa perspectiva, faz-se necessário
criar uma ideologia no imaginário das pessoas de que há um inimigo o qual precisa ser combatido, eliminado
a qualquer custo (inimigo da sociedade/inimigo do Direito Penal), segundo o criminólogo Raúl Zaffaroni.

O fato é que esse modelo era adotado pelos Estados Absolutistas e ainda vigora nos dias atuais, em-
bora seja totalmente incompatível com os princípios constitucionais do Estado de Direito. É importante pon-
tuar também que a Criminologia Tradicional tinha o objetivo de justificar, cientificamente, esse tratamento
diferenciado.

É certo que atualmente os países se pautam nessa política do inimigo da sociedade, sendo diferentes
de acordo com a realidade de cada país; a exemplo dos EUA, onde o medo principal é do terrorismo, bem
como na França onde há uma guerra declarada contra o Estado Islâmico, pois acreditam que é o cerne do
problema. Através dessas intensas guerras, mais precisamente no Oriente Médio, ocorrem migrações para
os países europeus, onde os estrangeiros são vistos com maus olhos, gerando um crescimento vertiginoso de
xenofobia na União Européia.

Ainda nesse cenário de inimigos da sociedade, partindo para a América Latina, o que se pode obser-
var é a Guerra às Drogas e consequentemente ao traficante, fadada ao fracasso, mas ainda existente por ser
pretexto de intervenção imperialista de alguns países dominantes, a exemplo da Colômbia, e por ser um mer-
cado bastante rentável para alguns, não obstante à higienização social nas favelas, causando um genocídio na
juventude majoritariamente negra e pobre.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Não há duvidas de que a política criminal de Drogas no Brasil, que tem como base ideológica (IDS:
Ideologia de Defesa Social; ISN: Ideologia de Segurança Nacional e MLO: Movimento Lei e Ordem), essa
interação dos horizontes de punitividade é a potencialização do princípio do bem e do mal na cisão da socie-
dade entre os criminosos e não criminosos.

Nesse sentido, há uma falácia por trás do Direito Penal, o qual afirma proteger os bens jurídicos mais
preciosos para a sociedade, quando na verdade pratica fins não declarados como manter a estrutura hierar-
quizada e seletiva do sistema, bem como de controle social. Ainda nessa perspectiva, a guerra às drogas tem
ceifado a vida de vários jovens, no entanto, com um olhar mais apurado em sentido ao sistema penitenciário,
pode-se observar que o tráfico de drogas é o crime que mais tem encarcerado mulheres no Brasil.

No último relatório do InfoPen, a evolução da população carcerária feminina foi de 567% entre 2000
e 2014 o que demonstra o quanto que essa política proibicionista tem sido arbitrária para essas mulheres,
sendo portanto necessário identificar e compreender como a mulher é vista pela política proibicionista de
drogas, sendo esta um ser vulnerável, em todo este processo, o que está intimamente ligado ao crescimento
vertiginoso de encarceramento feminino, pelo fato dela ser a base da pirâmide desse sistema.

Dessa forma, o estudo dessa temática é imprescindível para denunciar tal realidade social e deslegi-
timar o sistema criminal de justiça com todas as suas mazelas.

1. PERFIL DAS MULHERES PRESAS EM FLAGRANTE.

Há uma lógica moral a qual ainda está enraizada não apenas no senso comum social como também o
jurídico, contribuindo para a seletividade apurada do sistema. Nesse sentido, as leis penais funcionam como
aliadas dessa sociedade patriarcal e sexista, na qual predomina o androcentrismo de uma forma praticamen-
te irrefutável, como afirmava Vera Regina de Andrade.

Dessa forma, com base na pesquisa “Os autos de prisão em flagrante de mulheres presas por tráfico
de drogas na cidade de São Paulo”, o perfil das mulheres presas por tráfico de drogas já revela que a maioria
delas provém de uma condição social bastante vulnerável, têm-se que 40% das mulheres apreendidas apre-
sentavam entre 18 a 25 anos, 23% tinha entre 26 a 30 anos e 20% estavam com 31 a 40 anos de idade.

Bem como, as brancas representavam 34% e as não-brancas 66%; possuíam empregos informais,
desenvolvendo trabalhos autônomos e sem garantias trabalhistas; quanto à escolaridade 61% possuía Ensi-
no Fundamental completo, enquanto apenas 18% tinha ensino médio completo. Ainda 31% das mulheres
disseram estar desempregadas; e 8% das mulheres responderam serem estudantes. Além disso, a maioria
delas dependeu da Defensoria Pública para serem defendidas em seus processos (74%), o que já evidencia
as condições socioeconômicas em que se encontravam.

Nesse contexto, o dado que mais tomou relevo na pesquisa foi o de que praticamente todas as mulhe-
res entrevistadas não respondiam a outros processos criminais, tornando-se evidente que tal política remete
ao “caça às bruxas” da Idade Média, ao qual, sem fundamentação alguma, tais mulheres são fisgadas pela
polícia que representa o Estado ou a Máquina Kafkiana, como relata a metáfora Na Colônia Penal.

2. A MULHER PRESENTE NA BASE DESSA PIRÂMIDE.

Desde os tempos remotos a perspectiva proibicionista é uma conhecida de longa data das mulheres, a
maioria absoluta delas foi pega levando drogas para seus companheiros, maridos, filhos, irmãos internos nos
presídios, em seus próprios corpos, renunciando a condição de pessoas para se transformarem num simples
acessório vulnerável, dentro dessa lógica.

Além disso, tais mulheres foram introduzidas no tráfico através de uma figura masculina, isso quando
não ocupavam funções de “mulas” ou “aviõezinhos”, de baixa importância e reconhecimento. Essa “descar-
tabilidade” também atinge às moradoras de ruas e usuárias:

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Em relação às mulheres usuárias moradoras de rua, além de serem abarca-


das pelo projeto de lei que visa à internação compulsória para “tratamento”,
existe ainda a ideia proposta por alguns setores políticos de esterilização des-
sas mulheres, tendo em vista que essas mulheres supostamente seriam in-
capazes de criar seus próprios filhos, ostentando, portanto, não apenas uma
lógica higienista social, como, novamente, atropelando a autonomia da mu-
lher sobre seu próprio corpo (SERRETTI, Juliana. 2013).

Dessa forma, embora se recaia sobre as mulheres traços de vitimização, ao ingressarem no tráfico, os
papéis de ativo e passivo são intercambiáveis no sentido de esse discurso de vítima não ser regra para todas,
pois há mulheres que ingressam nesse meio para obterem visibilidade ou algum tipo de emancipação.

As mulheres condenadas por tráfico as quais majoritariamente se envolvem nesta atividade em vir-
tude da união afetiva com alguém que traficava tem seu modo peculiar de agir no tráfico de drogas, uma
tendência ética do cuidado, não expressando necessariamente violência.

3. O TRÁFICO COMO SEU SUSTENTO.

Pode-se afirmar que o papel da mulher, firmado pela sociedade, é o de vítima, se acentuando quando
se trata da incriminação dessa mulher. Entretanto, não é por esta vitimização correspondente ao papel central
da mulher no direito penal, que ela estaria de alguma forma excluída da seletividade do sistema carcerário.

Ainda que o foco do sistema de justiça penal esteja voltado para a mulher enquanto vítima, a realida-
de das últimas décadas é que o número de mulheres encarceradas vem crescendo desenfreadamente, como
já foi visto, não obstante sem considerar a cifra obscura de muitas outras que se envolvem.

Felizmente, em relação ao trabalho na prisão, 30% das detentas estão exercendo alguma atividade la-
boral no Brasil, dentre as quais, 25% estão em atividades internas e 75% em externas. Os dados de mulheres
empregadas em atividades laborais é consideravelmente maior do que o quadro geral composto principal-
mente por homens, simbolizando que a vitimização da mulher a coloca sobre um maior olhar de confiança
da sociedade.

Cabe analisar ainda que quando a mulher é encarcerada por tráfico de drogas, em sua mentalidade
ela não compreende o porquê de estar sendo capturada, pois o tráfico é uma fonte de renda rápida, porém
arriscada, a qual sustenta tanto ela quanto sua família, na falta de oportunidade de empregos, muitas vezes
até mesmo subalternos.

4. IMPACTO DESSAS PRISÕES NA VIDA DESSAS MULHERES E FAMÍLIA.

Outro problema cotidiano na vida destas mulheres é que a reduzida quantidade de unidades prisio-
nais femininas faz com que muitas presas sejam colocadas em prisões distantes de suas famílias, intensifi-
cando o seu isolamento, especialmente para as que são mães. Inequivocamente, a questão da maternidade é
sempre presente quando se fala sobre presas mulheres.

A angústia que enfrentam essas mães ao se deparar com o ambiente prisional, que não é nem de
longe o espaço ideal para a criação de seus filhos, é uma realidade constante. Em contrapartida, a dor da
separação e a falta de estrutura de uma família fora da prisão as deixam sem escolha a não ser manter as
crianças na penitenciária. Muitas daquelas mulheres e homens que hoje estão no cárcere nasceram nesse
ambiente, formando um ciclo vicioso de abandono e falta de estrutura.

No tráfico de drogas as mulheres sempre tiveram seu papel, mesmo que pequeno. O mais comum
é o de “Amélia”, como afirmou Helena Castro, que além de dedicada ao bem-estar do pai, irmão ou marido
na prisão, pode vir a roubar, mentir, traficar e dar sua vida, se isso for preciso para ajudar o prisioneiro. Isso

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

normalmente se dá por que a maioria das mulheres tem que se dividir entre o trabalho ilegal e os cuidados
com a família.

Nesse contexto, a invisibilidade sentida no fato de não preencher locais de importância na rede da
atividade ilegal acaba sendo também uma estratégia de proteção. As traficantes costumam vender as drogas
perto de seu domicílio, sem portar armas, com pequenas quantidades, conhecidas como “mulas”. Proceden-
do dessa forma, ficam aparentemente longe de problema e evitam ser presas ou mortas, o que traria conse-
quências não só para elas mas para todos que dela dependem.

Muitas vezes, o ingresso no tráfico de drogas representa a possibilidade de se emancipar, adquirindo


status social dentro da comunidade em que vive, principalmente em relação a outras mulheres da comuni-
dade; sustentar a família e ter poder de aquisição de bens. Exatamente por ser uma atividade ilícita, o tráfico
não impõe as dificuldades que o mercado formal apresenta ao ingresso das mulheres em seus quadros, mos-
trando-se um trabalho viável e atrativo.

Esse ingresso não se dá de forma principalmente econômica, o qual também não deixa de ser ex-
tremamente relevante. O envolvimento com homens traficantes costuma ser um ponto constante, já que
passam a dedicar-se para que este não venha a “cair” ajudando desde apoio moral até a traficar em conjunto,
muitas vezes assumindo o papel de comando da boca de fumo quando seu companheiro está ausente.

5. MATERNIDADE NO CÁRCERE.

Sendo a maternidade um atributo intrínseco da mulher, ele também está contido como elemento da
estrutura social do nosso sistema patriarcal, onde há séculos encerra a mulher no espaço de passividade da
família. Contudo, nos últimos anos está ocorrendo um aumento do encarceramento de mulheres, sobretudo
pobres, negras e em idade reprodutiva, tornando a vivência da gravidez na prisão um evento recorrente e
problematizado, pois há uma falta de adaptação nesses locais para as necessidades específicas desse gênero.

Nenhuma das penitenciárias femininas no Brasil funciona em respeito à legislação vigente, sobretudo
a LEP, o que se faz verificar que o sistema não considera que as detentas possuem uma maior sensibilidade,
tornando-as mais vulneráveis além de tudo as que estão na fase gestacional, acarretando uma generalização
da violação dos direitos humanos com relação às gestantes, e levando, desta forma, a uma mistura de alegria
pela descoberta de ser mãe e tristeza e medo diante da incerteza do futuro, pois, além do sofrimento da ape-
nada em gerar um filho em um ambiente violento e inadequado, passa-se a se deparar com uma extensão da
pena a pessoa do filho.

Assim afirma Soares e Ilgenfritz:

(...) a partir de agora, porém, pode-se – e deve-se – levantar a possibilidade


de que várias gerações de mulheres condenadas nasceram e deram à luz na
prisão. Embora a creche represente uma espécie de cartão postal do lado
bom do Sistema, as pesquisadoras observaram que é o espaço mais isolado
da penitenciária, sem o barulho e o burburinho próprios dessa prisão, além
de receberem diversas queixas das presas-mães, por se sentirem esquecidas
nesse recinto (Prisioneiras, 2002).

A mulher no período gestacional e de amamentação encontra-se em uma situação singular, ocupando


uma posição diferenciada, devendo receber condições especiais de tratamento como estabelecem normas
internas e internacionais, contudo, o que se observa é uma total falta de estrutura dos estabelecimentos
prisionais para abrigar indivíduos em estado de peculiar desenvolvimento, como a falta de estrutura física
adequada para as mulheres e seus bebês; sem como berçários e creches, sem padronização do tempo de
convívio da mãe com o recém- nascido e falta de assistência médica adequada, onde apenas 27,45% dos esta-
belecimentos prisionais femininos possuem estrutura específica para a custódia das mulheres grávidas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

5. A REALIDADE DAS UNIDADES PRISIONAIS AS QUAIS ELAS ESTÃO SUBMETIDAS.

Além dos problemas enfrentados pelas detentas durante a gestação, como a ausência de um pré-natal
correto, a situação se torna ainda pior ao dar à luz. Os recém-nascidos, na sua maioria, não possuem um
lugar adequado para ficarem, passando a viverem no mesmo ambiente precário que a mãe, que muitas vezes
dormem no chão em lugares insalubres, propícios a doenças; não possuem os cuidados que todos os bebês
devem ter para evitar doenças, já que são muito frágeis. Contudo, mesmo neste ambiente triste e desumano,
as mulheres, e agora mães, se solidarizam e ajudam umas às outras, realizando um trabalho de cuidado co-
letivo, onde todo colo é o lugar de acalmar e alimentar seus filhos.

Depois do período de amamentação que é de 180 dias, garantido pela Constituição Federal de 1988,
(Artigo 5-L-CF) e pela L.E.P (Lei de Execução penal V. Art. 89, Lei 7.210/84, alterado pela Lei n.11942/2009),
ocorre o momento da separação, momento em que o bebê deixará o presídio, que é bastante doloroso, pois
já existe um afeto entre a mãe e o recém-nascido que deverá ser desfeito abruptamente. Nesse momento
a criança, por decisão judicial, deverá ficar com alguém responsável fora das grades e quando isso não é
possível, quando as crianças não têm para onde ir, são direcionadas a abrigos o que torna a separação mais
lastimável.

Dessa forma, as mulheres encarceradas enfrentam diversos problemas relacionados à estrutura defi-
citária do cárcere, além dos problemas relacionados ao desrespeito ao tratamento diferenciado que deveriam
receber devido ao seu gênero, sobretudo durante o período de gestação e amamentação. Depois da separação,
outros fatores ainda estão presentes como a depressão, pois, muitas mulheres não aceitam se afastarem dos
seus filhos e se tornam tristes e doentes.

O encarceramento aparece como principal técnica de controle das populações tidas como marginais,
segregando e criminalizando a pobreza. Ainda que o número de homens presos seja bastante superior, o
contingente feminino encarcerado está crescendo, como apresentam os dados do InfoPen que apesar deste
processo de feminização dos presídios ser evidente, os espaços e as políticas para as pessoas presas descon-
sideram as particularidades e especificidades das mulheres, inviabilizando suas diferentes experiências e
direitos.

O encarceramento feminino reveste-se de peculiaridades, impostas por diversos fatores, como as di-
ferenças biológicas entre sexos e a característica patriarcal da nossa sociedade. O ordenamento jurídico bra-
sileiro garante que devem ser respeitados todos os direitos que não são atingidos pela privação da liberdade,
resguardando, desse modo, a integridade física e moral das condenadas. Contudo, não é isso que acontece,
pois a realidade das unidades prisionais femininas é cruel, ocorrendo descaso dos governantes, falta de es-
trutura, superlotação, etc.

Um exemplo disso foi o caso ocorrido, de repercussão internacional, numa Penitenciária do Rio de
Janeiro em outubro de 2015, gestante presa, prestes a dar à luz, foi colocada na solitária, de castigo. Ela teve
o bebê sozinha, apesar dos gritos de socorro das presas em uma cela vizinha. “Consta que a presa teve o bebê
no isolamento e, mesmo com os gritos de outras detentas pedindo ajuda, ela só saiu com o bebê já no colo,
com o cordão umbilical pendurado. Isso é de uma indignidade humana inaceitável”, criticou o juiz Eduardo
Oberg, titular da VEP. Segundo ele, a diretora negou ocorrido, mas foi desmentida.

As condições higiênicas são precárias e deficientes, não havendo sequer assistência específica para
as mulheres grávidas, tendo em vista que os serviços penitenciários são geralmente pensados em relação
aos homens. Outros direitos fundamentais são violados, como o direito à alimentação adequada, que muitas
vezes não possuem as mínimas condições de higiene, cabendo ao Estado, no desempenho da custódia da
mulher encarcerada, assegurar com absoluta prioridade o direito à vida, saúde e dignidade, mas não é isso
que vem acontecendo.

Segundo o Infopen Mulheres, apenas 34% dos estabelecimentos femininos dispõem de cela ou dor-
mitório específico para gestantes o que faz concluir que as mulheres não possuem um lugar digno de ter

331
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

os seus filhos dentro do cárcere, passando muitas vezes a conviverem em meio a esgotos a céu aberto e até
mesmo animais e insetos como ratos e baratas. Outro ponto também importante é sobre a questão do direito
sexual da presa, que enquanto os homens possuem uma liberdade, as mulheres são bastante restritas, sendo
humilhadas e até mesmo negadas as suas visitas íntimas com seus companheiros.

Dessa forma, as mulheres encarceradas sofrem diversas violações, principalmente as detentas grá-
vidas que não possuem nem sequer a dignidade de terem seus filhos em um ambiente salubre. Elas muitas
vezes são desprezadas, assim como sempre ocorreu nessa sociedade machista e patriarcal. Faltam-lhes cui-
dado e até itens que deveriam ser básicos, a exemplo de absorventes higiênicos, no qual há casos em que foi
substituído por miolo de pão, como relata o livro “Presos que menstruam”.

Assim, a realidade das unidades prisionais femininas é árdua, precária e deve ser reconfigurada, pois
até os próprios profissionais, que deveriam dar assistência a essas mulheres, não estão adaptados às neces-
sidades específicas das presas, como respeitar o quantitativo de agentes penitenciárias mulheres, praticam
abusos e exploração de todo e qualquer tipo, o que era para ser uma medida punitiva acaba se tornando uma
tortura com marcas psicológicas para o resto de suas vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, pode-se inferir que não há um fundamento constitucional sólido na política
de drogas brasileira, mais precisamente no artigo 28 da lei 11.343/06, na qual vem encarcerando mulheres
sem definir antes se são de fato usuárias ou traficantes; consequentemente há uma desestrutura nas famí-
lias, que são a célula-macro da sociedade. Percebe-se também um ciclo vicioso: prende-se as mulheres, e
seus filhos que posteriormente vão nascer nas prisões irão ter o mesmo desfecho de suas matriarcas, estabe-
lecendo-se, portanto, uma espécie de determinismo social.

Dessa forma, é relevante estudar as causas dessa problemática, verificando onde se inicia o tratamen-
to das mulheres taxadas como traficantes/usuárias, no processo judicial.

Para além da denúncia da falência da política de “guerra às drogas”, é fundamental também que as
mulheres, se apropriem do debate, engajando de fato na militância antiproibicionista, sobretudo em relação
ao uso de entorpecentes.

Assim, não se devem medir esforços para desconstruir as raízes por trás da proibição das drogas, que
usufrui dos corpos destas mulheres exploradas pelo tráfico, retirando-lhes a liberdade e a autonomia, bem
como os abusos físicos e morais corriqueiros ou ameaças, inerentes ao sistema carcerário e à lógica puni-
tivista do Direito Penal, refletindo ainda, sobre de quais formas todos esses pressupostos são componentes
integrantes de uma estrutura de dominação muito mais profunda.

REFERÊNCIAS

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cia/2015-10/presa-gravida-da-luz-em-solitaria-de-presidio-no-rio

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania Patriarcal: o Sistema de Justiça Criminal no trata-
mento da violência sexual contra a mulher. Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas, 2006.

CARVALHO, de Saulo. A Política Criminal de Drogas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.

CARVALHO, Denise; JESUS, Maria Gorete Marques de. Mulheres e o Tráfico de Drogas: um retrato
das ocorrências de flagrante na cidade de São Paulo. Revista do Laboratório de Estudos da Violência
da UNESP, 2012.

332
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O DITO PELO NÃO DITO: uma análise da criminalização das
traficantes na cidade do Recife. Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, PUC-RS, 2015.

DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciá-


rias: InfoPen mulheres. Brasília, 2014.

KAFKA, Franz. Na colônia Penal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Saraiva, 2015.

RIBEIRO, Juliana Serretti de Castro Colaço. SILENCIADAS PELO TRÁFICO: UmEstudo Crimi-
nológico do Duplo Grau de Vulnerabilidade das adolescentes internas do CASE Santa Luzia.
Dissertação – Faculdade de Direito do Recife, 2014.

SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades.
Garamond, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS


DIREITOS HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE
DIFERENTES CORTES

Gabriel Soares Ribeiro Lopes


Estudante do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.
Bolsista PIBIC/CNPq (2014-2015). gabrielsrl@outlook.com

Maria Carolina Oriá Veloso


Estudante do Curso de Direito da Faculdade de Direito do Recife – FDR/UFPE. oriacarol@
gmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Sistema Europeu de Proteção Internacional de Direitos Humanos; 2.


União Europeia: Estrutura Multinível; 3. Crítica ao Pensamento Eurocêntrico; 4. Acesso à Justiça e
Proteção Multinível; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A discussão acerca dos direitos humanos começa a ter destaque, principalmente, a partir do período
em que os efeitos da segunda guerra mundial começaram a ficar visíveis e os anseios populares clamavam
por atenção. Os desastres causados não se resumiram aos estragos físicos de monumentos históricos e es-
truturas prediais, pelo contrário, englobou diversos aspectos imateriais e psicológicos também. A dignidade
humana ficou extremamente abalada durante todo o período de guerras, gerando prejuízos de ordem jurídica
e social irreparáveis. Há de se perceber que o interesse da coletividade não estava na guerra, inclusive muitos
nem sabiam os porquês das batalhas e conflitos, entretanto, movidos pelas ordens dos poderosos, se subme-
tiam às condições deploráveis do período e, nas ruas, lutavam pelo que lhes diziam ser os interesses de todos.

Foi a partir do final das guerras que os impulsos legislativos internacionais tomaram como meta a
elaboração de ordens jurídicas que englobassem a proteção dos direitos humanos. A partir da criação da ONU
(Organização das Nações Unidas), em 1945, os esforços dos países-membros se voltaram para a concretiza-
ção de uma nova era, a qual prometia o resguardo dos interesses de cada indivíduo enquanto ser humano,
o que fica claro pelo próprio artigo 1° da Carta das Nações Unidas, quando fala em “estimular o respeito aos
direitos humanos” e também pelo artigo 68 que dispõe sobre a criação de comissões pelo Conselho Econô-
mico e Social a fim de proteger os ditos direitos. Destarte, em 1948, foi adotada, pela organização citada, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, construída por diferentes sujeitos e grupos ao redor do mundo
e que se estabeleceu como um marco histórico, já que era a de maior abrangência no mundo, vinculando
diversos países e regiões.

Quando se fala em direitos humanos, estão atualmente em pauta as ordens jurídicas multiníveis, isso
porque, diante dos contextos regionais e suas carências de resultados práticos, se viu latente a necessida-
de de um ordenamento forte, posto acima dos ordenamentos estatais e que garantisse os célebres direitos.
Consoante tal pensamento, foram organizadas, ao redor do mundo, Cortes regionais que cumpririam o papel
jurídico de decidir os litígios acerca das infringências perante as convenções assinadas pelos países membros,
as quais dispõem sobre várias matérias corolárias dos direitos do homem. O exemplo europeu é ainda o mais
desenvolvido e já possui toda uma estrutura concreta de leis e decisões que garantem maior efetividade ao

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

que está definido na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Não que isso seja sinônimo de perfeição do
modelo, é o oposto, uma vez que o direito é dinâmico e complexo, principalmente nesse contexto, portanto
está sempre em mutação. Ele serve de espelho para os outros ordenamentos regionais, como o americano,
africano e asiático, todos ainda em expansão e consolidação de suas normas.

É ainda um desafio latente o acolhimento dessas ordens supranacionais, quiçá a efetivação


dos direitos previstos, tendo em vista ser um processo de renúncia parcial da soberania instalada
durante muitos anos, em nome de um interesse acima da esfera local. Embora o conceito de
soberania tenha sido modificado ao longo dos tempos, se revelando cada vez mais representativo
(no qual o interesse dos blocos econômicos sobrepuja o nacional), ainda é possível vislumbrar
diversos impasses para a efetivação concreta da tutela jurídica dos direitos humanos em âmbito
universal.
A globalização é um dos desafios, porque tanto permitiu uma maior aproximação entre as mais varia-
das culturas ao redor do planeta, quanto gerou também diversos problemas. Imagina-se que há todo e qual-
quer tipo de pessoa espalhadas por todo o globo, constituindo estímulo para que haja uma universalidade no
entendimento dos direitos humanos, no entanto é também um entrave, quando se pensa, por exemplo, que
existem sujeitos que não se identificam com os direitos que o protegem naquela jurisdição.

Por outro lado, além das dificuldades, alguns tribunais há que já conseguem alcançar os resultados
práticos e estatísticos das decisões e precedentes construídos ao longo dos julgamentos realizados. Inclusive,
vale ressaltar que alguns dos principais efeitos foram as mudanças internas de cada país em suas próprias
Constituições e o avanço na proteção dos direitos humanos em escala global, colaborando para a manifesta-
ção da eficácia do direito.

1. SISTEMA EUROPEU DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS.

O debate acerca dos direitos humanos ainda é um universo cuja descoberta está sendo feita gradativa-
mente e com bastantes avanços, já que se percebem todos os ordenamentos jurídicos voltados para a conse-
cução do mesmo fim, qual seja a máxima efetivação da tutela de tais direitos. É sabido que as movimentações
visando à construção de uma ordem acima dos interesses individuais dos Estados são resultado das tentativas
de pacificação do mundo, após os turbulentos anos de guerra. Assim, em cada região, foram criadas organi-
zações supranacionais que sistematizam e criam um ordenamento jurídico em outro nível, com o propósito
de aumentar ainda mais a proteção dos sujeitos de direito.

No que concerne ao âmbito europeu, tem-se um dos sistemas mais desenvolvidos na área da tutela
multinível de direitos humanos, sendo, portanto, base para as demais ordens no planeta, como a africana e a
americana. A cada passo dado, uma vitória para o Estado de Direito é ganha, inclusive atrai novos membros-
-signatários, todos adequando seus ordenamentos para atenderem às demandas das convenções assinadas.
Isso ocorre porque os Estados renunciam parte de suas jurisdições para conferir a um órgão superior a sub-
sidiariedade da tutela dos direitos humanos.

A partir do momento em que se aceita a Convenção, é o início de uma fase, na qual haverá a subordi-
nação dos países membros aos ditames da nova ordem, mesmo que isso se dê, a priori, de forma subsidiária.
É uma questão também de efetividade a ser alcançada, até porque não provoca resultados positivos a simples
criação infinita de normas multiníveis, sem haver os devidos espaços que permitam o litígio da causa.

Na Europa, em busca de unificar o continente após o turbulento período de guerras, foi criada a Con-
venção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, em 1950, começan-
do com 8 estados-membros e tendo atualmente algo como 47 países sob a dita ordem1. No início, era dividida
em Comissão Europeia e a Corte Europeia, ambas integrantes do sistema, sendo que a primeira realizava
juízo de admissibilidade da petição, julgando o mérito posteriormente (tentando achar uma solução viável),

1  3
Disponível em http://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home. Acessado em 05 de dezembro de 2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mas, se não sucedesse, o pleito seria enviado para a Corte com um relatório denunciativo2. Seria então o
caso de atendimento ou não ao conteúdo do relatório, pois este caducava de poder vinculante, diferente da
decisão da Corte, a qual gerava uma ligação imediata com as sanções previstas.

Em 1998, tudo isso foi substituído por uma Corte permanente, através do Protocolo 11. A principal
mudança foi a garantidora do direito de petição, abrindo uma gama maior de possibilidades para o atendi-
mento dos anseios sociais, porque agora qualquer indivíduo, ONG ou grupo pode peticionar diretamente
à Corte alegando infringência das normas da Convenção por parte de determinado estado-membro. Antes
apenas estados-partes e a Comissão podiam.

Entre os princípios que estão presentes na Convenção, pode-se destacar o da interpretação dinâmica
das normas, o qual preza pela leitura contextual, isto é, que os comandos não sejam tratados literalmen-
te, mas, passíveis de alteração, como analogicamente é o processo de mutação constitucional, que prevê a
mudança de significado do texto sem mudar as palavras do mesmo, adequando a maneira de interpretar às
realidades sociais fáticas vigentes.

Com as mudanças, a cada ano cresce o número de demandas judiciais, tornando a máquina insufi-
ciente para resolver todos os casos. Mas a existência do sistema já é uma evolução que torna possível a apre-
ciação de pequenos problemas por grandes juízes. De acordo com o art. 20, são tantos juízes quanto forem
os estados-membros, vindo um de cada, a partir de uma seleção que é feita internamente dentre três opções;
possuem mandato de 6 anos e devem ter domínio de duas línguas: francês e inglês.

Não basta haver o simples direito e o posterior depósito da petição, pois é necessário que a mesma
cumpra os requisitos prévios, como o esgotamento dos recursos internos em seu país, a observância do prazo
de 6 meses a partir da data da decisão definitiva, não pode ser anônima, o Estado denunciado deve ser parte,
entre outros listados no artigo 35 da Convenção3.

O resultado do sistema é tal que vários países têm tido seus ordenamentos modificados para se ade-
quarem ao sistema imposto pela Convenção, pois a penalidade máxima para o não-cumprimento é a expulsão
do rol de signatários. Tanto os Estados vencidos, quanto os que, por ventura, ainda não foram parte em litígio,
têm alterado seus textos legislativos para conferirem harmonia ao sistema. Não é sempre que a tarefa de
adequação é simplória, pelo contrário, pode atingir áreas sensíveis.

É uma situação delicada, porque, enquanto há uma ordem interna que já goza de
segurança jurídica suficiente durante o tempo de vigência, aparecem comandos dotados de uma
força coativa sem precedentes que exigem as alterações. O poder de vinculação das decisões é
altíssimo, porque envolve questões diplomáticas, a integração da União Europeia, o risco de ser
considerado um Estado violador, entre outras consequências. Mas, para o sucesso do sistema, a
maioria dos países tem seguido as tendências, gerando uma evolução para o objetivo de garantir
os direitos humanos compartilhados.
Um dado interessante é que, em 2013, metade dos casos resolvidos eram concernentes a 5 Esta-
dos-membros: Rússia, Turquia, România, Ucrânia e Hungria. Além disso, no que tange à matéria analisada,
as estatísticas desse mesmo ano mostram que houve uma maior incidência de demandas que tratavam da
violação dos artigos 3° e 6° da Convenção, quais sejam, respectivamente o direito ao devido processo legal e
a proibição a tortura e a condições degradantes e desumanas de tratamento4. Já em 2014, os julgamentos se
concentraram nos Estados: Rússia, Turquia e România. Em 85% dos casos analisados, o Estado-membro ha-
via infringido de fato uma norma. Continuam no topo da lista a violação aos artigos 3° e 6°, seguidos pelo 5°5.

2  PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 71.
3  BRATZA, Sir Nicolas. Bringing a Case to the European Court of Human Rights: A Practical Guide on admissibility criteria.
Netherlands: Legal Publishers, 2011. P.13.
4  The ECR in facts & figures 2013. European Court of Human Rights, January 2014.
5  The ECR in facts & figures 2014. European Court of Human Rights, February 2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Embora haja muitos casos, já é possível vislumbrar mudanças comportamentais nos Estados, que
passam a respeitar mais as decisões da Corte, porque isso influencia bastante na imagem construída interna-
cionalmente, no que diz respeito aos direitos humanos e ao seguimento das normas estabelecidas no direito
internacional público.

2. UNIÃO EUROPEIA: ESTRUTURA MULTINÍVEL.

A União Europeia (UE) desenvolve hoje um dos programas mais avançados no quesito efetivação dos
direitos humanos, principalmente porque ali ocorreram os cenários das duas grandes guerras mundiais, que
deixaram suas infelizes marcas. Como já foi demasiadamente relatado acima, os resultados negativos das re-
feridas guerras trouxeram evoluções no âmbito do reconhecimento dos direitos individuais, mormente para
os direitos humanos.

Já presente na jurisdição em pauta, qual seja a região europeia, desde meados do século XX, o Tribu-
nal de Justiça da União Europeia atua nos litígios concernentes às diversas matérias que dizem respeito aos
tratados e convenções frutos da comunidade europeia. Teve seu nome e algumas disposições alterados pelo
nobel Tratado de Lisboa, de 2007, o qual se caracteriza por ser um tratado reformador de peças anteriores e
que trouxe a reforma do funcionamento da União. Para efeitos deste trabalho, cumpre destacar que o tratado
em menção tornou a Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa a todos os países membros, grande avanço
no tocante aos direitos humanos. Tal Carta foi adotada nos anos 2000 e passou pela fase acima descrita, de
vincular toda a comunidade europeia em 2008.

A questão da soberania foi alvo de diversos debates, porque o Tratado de Lisboa conferiu ainda mais
poder para a União Europeia, o que, em tese, de acordo com determinada doutrina, traria uma queda para
o nacionalismo que existia. Assim, os sujeitos estão, aos poucos, deixando de serem sujeitos nacionais, para
serem europeus, enfraquecendo o poder soberano de cada país-membro6. É também um impasse para que
se perfaça o aceite do ordenamento que está além das ordens individuais dos países.

Para resguardar especificamente os direitos humanos, foi criado, em 1959, o Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos, associado ao Conselho da Europa, não sendo propriamente dito, um órgão da União
Europeia. Entretanto, seu objetivo específico se restringe a averiguar as lides concernentes às infrações co-
metidas contra a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Dessa maneira, apenas os estados signatários
estão sub judice deste tribunal.

A questão da tutela multinível é bastante interessante e tem sido alvo de políticas da União Europeia,
tendo em vista que, com as infindáveis oportunidades, os cidadãos de todos os países migram constantemen-
te, seja em razão de trabalho, lazer, casamento, entre outros. Destarte, conflitos e casos a serem resolvidos,
dentro dessa movimentação, aparecem constantemente, gerando a necessidade de que haja uma flexibiliza-
ção nas fronteiras, a fim de comportar a todos. Até mesmo problemas do cotidiano são objeto de tal discussão,
e as regras processuais comuns vão se encaixar nas questões civis de famílias mistas, por exemplo, de divórcio
e de guarda dos filhos7.

3. CRÍTICA AO PENSAMENTO EUROCÊNTRICO.

É a partir de uma visão colonial que se tem a vigente concepção dos direitos humanos como fruto
de uma construção basicamente europeia. Foi através dos movimentos coloniais que as potências europeias
foram se impondo. Os defensores das teorias pós colonialistas afirmam ser ele (enquanto poder político)
influenciador das ideias que permeiam os conceitos de humanidade. Assim, por se tratarem de direitos in-
titulados como inerentes ao ser humano, então quer dizer que a sociedade apenas serve como parâmetro

6  BONDE, Jens-Peter. From EU Constitution to Lisbon Treaty. [S.I.]: Foundation for EU Democracy and the EU Democrats,
2008. P. 41.
7  Compreender as políticas da União Europeia: Justiça, direitos fundamentais e igualdade. Luxemburgo: Serviço das Publica-
ções da União Europeia, 2015. P.3.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

limitador das atitudes de cada indivíduo, já que ele é um ser livre e deve exercer tal liberdade, contanto que
não esbarre na do próximo. Percebe-se, que as ideias relatadas possuem um teor extremamente liberais, que
tratam a essência do ser humano como sendo necessitada de liberdade a todo custo.

As construções legislativas mais remotas e com maior influência mundial são fruto dos países e regi-
ões com maior força política e econômica, que impõem, desde a antiguidade, suas culturas sobre as demais,
causando antropofagia cultural em certas comunidades. Vê-se que, até os dias atuais, os tratados europeus e
norte-americanos são os que obtêm maior prestígio e força.

Assim, diante das críticas acima, se perfaz a ideia de que é bastante complicado considerar que há
uma ordem supranacional que satisfaça aos anseios de toda a população sobre a qual exerce força jurídica.
Como é possível esperar que um sujeito proveniente de cidades da África ou da Ásia e até mesmo de regiões
pacatas da Europa entenda que aquilo que foi estabelecido lhe caracteriza como humano. Que a Convenção
Europeia foi assinada com o objetivo de resguardar tudo o que o torna o ser que ele é, de maneira a assegurar
finalisticamente que todos possam conviver em harmonia. A ordem que esse indivíduo ou grupo quer que
seja seu amparo talvez vá de encontro com as ideias tradicionais e vigentes de direitos humanos, isso porque
sua cultura foi engolida na consideração dos tratados e normas internacionais.

Em pensamento consoante, chega Fernanda Frizzo Bragato à seguinte conclusão:

Portanto, a teoria mais influente sobre a fundamentação dos direitos huma-


nos combina fatos históricos e concepções antropológico-filosóficas próprias
do contexto europeu moderno, o que sugere não só a ausência de contribui-
ções para além das fronteiras do ocidente, mas também propõe que os direi-
tos humanos ostentam o ideário próprio de sua cultura (BRAGATO, 2013; p.
107)

É lógico que aqui se entende que a aplicação dos tratados serve ao princípio da
subsidiariedade, atendendo à primazia do direito interno, o qual será sempre soberano em
detrimento das ordens supranacionais. No entanto, na medida em que as leis locais não forem
compatíveis com esse sistema que foi assinado, serão objeto de sanção, problema que leva muitas
vezes ao estado-membro adotar a norma do tratado, quando sua cultura reflete o contrário.
Este é um dos desafios ao estabelecimento de uma ordem multicultural e unânime entre os diversos
países signatários, os quais, apesar de concordarem com o texto legal, muitas vezes o fazem com objetivos po-
líticos e econômicos de aceitação no bloco, com finalidades também de obterem reconhecimento e proteção.
Assim, devem adequar suas normas ao texto adotado como corolário, sob pena de sofrer, entre outras san-
ções, a de caráter coativo, feita por parte da comunidade internacional como reprovação do comportamento.

Trazendo a questão para exemplo nacional, tem-se que a Constituição Federal adota em seu artigo 5°,
§3° a equiparação dos tratados às emendas constitucionais, também precisando passar por um processo de
aprovação em dois turnos, por três quintos dos votos, no Congresso Nacional. Há, portanto, o caso do depo-
sitário infiel, que a própria Constituição pátria relatava como passível de prisão civil (art. 5°, LXVII), porém a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica) determinou como ilegal. Desta
feita, nos julgados concernentes ao assunto, o STF é obrigado a adotar o entendimento do pacto, em nome
do pacta sunt servanda, sempre citado quando há matérias de tratados e convenções internacionais.

Outro problema também nessa toada, é a aceitação integral dos preceitos do Estatuto de Roma,
porque o Brasil o ratificou sem reservas, mas há alguns dispositivos que vão de encontro com os princípios
e normas constitucionais. É o famigerado caso da prisão perpétua, prevista no tratado, mas proibida inter-
namente, com algumas exceções. Para o entendimento nacional, o ser humano é capaz de se reabilitar, po-
dendo cumprir, depois de um tempo, as atividades normais da sociedade. Ou seja, aqui se adotou a tese da
ressocialização enquanto medida necessária e presente no Direito Penal Brasileiro enquanto, sob ponto de

338
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

vista contrário, o Estatuto de Roma (art. 77) entende que, frustradas as oportunidades de reexame da pena
perpétua (art. 110 §3°), é lícito ao Tribunal Penal Internacional condenar nesse sentido8.

4. ACESSO À JUSTIÇA E PROTEÇÃO MULTINÍVEL

A efetivação da tutela jurisdicional dos direitos humanos e a proteção multinível como pontos resul-
tantes do diálogo entre as diferentes cortes, tem relações estritas com o acesso à justiça. Os seres humanos,
diante das novidades comportamentais introduzidas pela sociedade, buscam meios eficazes de acesso ao
jurisdicionado, e não é diferente com a proteção aos direitos humanos no território brasileiro e na ótica in-
ternacional.

No âmbito internacional, deveras importante para o tema em questão, é a Convenção sobre direitos
da pessoa com deficiência da ONU – Decreto nº 6.949/2009 –, que trata no Artigo 139 sobre o Acesso à
justiça das pessoas com deficiência. Diante deste artigo, os Estados signatários, tem função importante no
processo de acessibilidade das pessoas com deficiência, ajudando a desenvolver, promulgar e monitorar a
utilização de normas e diretrizes mínimas a serem seguidas nas instalações de serviços públicos, assim como
garantir o acesso das pessoas com deficiência aos novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação.

A Convenção supracitada também se relaciona intrinsicamente aos direitos humanos. Os países sig-
natários devem promover o acesso das pessoas com deficiência de forma livre e independente, de forma que
possam exercer as atividades diárias individualmente. O auxílio de terceiros viola o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, presente na Constituição Federal
de 1988 no art. 1º, inciso III.

Ainda na parte internacional, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cita-se o Artigo VIII10
como exemplo de proteção às pessoas ao acesso à justiça. Neste caso, garante-se o acesso pleno à justiça nos
casos de violação aos direitos fundamentais. Ainda como exemplo, vale salientar o Pacto de São José da Costa
Rica, que traz no decorrer do dispositivo a proteção judicial no primeiro tópico do Artigo 2511.

O conceito de acesso à justiça foi debatido por vários doutrinadores. Segundo Mauro Cappelletti e
Bryant Garth, abordando um conceito mais amplo:

O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamen-


tal – o mais básico de todos os direitos humanos – de um tem jurídico moder-
no e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de
todos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 12).

Para os autores, acesso à justiça não seria apenas um direito humano fundamental, basilar em qual-
quer sociedade, mas uma forma de tornar efetivo o acesso ao jurisdicionado, utilizando a moderna teoria
da ciência jurídica como objeto de estudos aprofundados acerca da temática discutida. Além disso, para os
doutrinadores, os operadores do direito precisam perceber que as técnicas do direito servem para a finalidade
social de garantir o acesso das pessoas efetivamente à finalidade na justiça.

8  JUNIOR, Paulo Eustáquio Luiz de Almeida. Conflitos (aparentes) entre o Estatuto de Roma e a Constituição da República
Federativa do brasil. 2009. 72 f. Monografia apresentada na Universidade Católica de Brasília para obtenção do grau de bacharel
em direito. P. 52-58.
9  Artigo 13, Acesso à justiça, 1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em
igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a
fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas,
em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares. 2. A fim de assegurar às pessoas com
deficiência o efetivo acesso à justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de
administração da justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema penitenciário.
10  Artigo VIII. Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem
os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
11  Artigo 25. Proteção Judicial. 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os
juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela
presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

339
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Já para outros doutrinadores, o conceito de acesso à justiça foi abordado de maneira diferente. Se-
guindo a lição de José Cichocki Neto, o conceito engloba características distintas:

Parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo, perpassa


por aquela que enforca o processo como instrumento para a realização dos
direitos individuais, e, por fim, aquela mais ampla, relacionada a uma das
funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência
do ordenamento jurídico; mas, outrossim, proporcionar a realização da justi-
ça aos cidadãos (CICHOCKI NETO, 2002, p. 61).

O acesso à justiça guarda relações bastante estreitas com a proteção multinível dos direitos huma-
nos. A tutela multinível dos direitos se relaciona à possibilidade da solução e discussão das relações jurídicas
por diversas instâncias e graus de jurisdição. Assim, um mesmo caso de violação aos direitos humanos, por
exemplo, poderá ser julgado tanto por tribunais nacionais como por tribunais internacionais, estrangeiros ou
supranacionais.

O acolhimento da existência de diversas instâncias decisórias para a discussão acerca de matérias


relacionadas aos direitos humanos precisa ser compatibilizado para que não ocorra o prejuízo dos direitos
humanos discutidos no caso concreto. A grande problemática está relacionada às diferentes possibilidades de
decisão entre os diferentes tribunais e cortes internacionais existentes.

Em relação a esta variedade de cortes, a multiplicidade de ordenamentos jurídicos internacionais,


vê-se que não há uma unificação entre todos os níveis jurídicos no mundo, relacionada à competência de
julgamento dos direitos fundamentais. O que se encontra é o inverso: o constitucionalismo multinível está
fundado na consolidação das regras jurídicas nacionais. A aplicação destas regras nacionais deve ter o objeti-
vo de, no momento da utilização, beneficiar outros casos existentes nos diferentes sistemas jurídicos.

Ainda discutindo sobre a relação entre o acesso à justiça e a proteção dos direitos humanos relacio-
nada a uma tutela multinível, salienta-se segundo Marcelo Neves:

O Transconstitucionalismo não se restringe a relações entre duas ordens


jurídicas, podendo envolver entrelaçamentos triangulares ou multiangula-
res entre ordens jurídicas em torno de um mesmo problema constitu-
cional. Especialmente no tocante aos direitos humanos, verifica-se um
Transconstitucionalismo pluridimensional envolvendo diversas ordens
jurídicas, que se desenvolve, igualmente, de formas as mais diferentes,
na América Latina (NEVES, 2009, P.280).

Salienta o renomado jurista que a discussão acerca dos direitos humanos e o debate sobre a proteção
multinível abarca não somente duas ordens jurídicas, mas, pode ocorrer a junção entre vários ordenamentos
jurídicos para discutir o mesmo assunto, e a América Latina poderá fazer parte no momento em que um
dos seus ordenamentos jurídicos for citado em determinados casos concretos. Cita-se, a este exemplo, o
julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos YakyeAxa vs. Paraguai e Sawhoyamaxa
vs. Paraguai, nos quais foi decidido o direito de propriedade dos indígenas de ambas as etnias.

Enfim, observa-se o caráter amplo de aplicabilidade do acesso à justiça aos direitos humanos, relacio-
nada à proteção multinível e o diálogo entre as diferentes cortes no âmbito nacional e internacional.

CONCLUSÃO

A partir de todo o tema desenvolvido até aqui, percebe-se que a relação estabelecida entre a tutela
multinível dos direitos humanos e o diálogo entre as diferentes cortes é um tema bastante atual e importante
para a dogmática do direito. Em relação a ele, admite-se variadas vertentes doutrinárias e diversas citações
nos ordenamentos jurídicos e órgãos nacionais e internacionais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O diálogo entre as diferentes cortes é fundamental para a concretização dos direitos humanos. Os di-
ferentes ordenamentos jurídicos devem ter participação importante nos debates acerca da tutela dos direitos
humanos, incluindo a América Latina – que possui casos exemplares de proteção a esses direitos.

O pensamento eurocentrista, imposto na cultura ocidental – através do conceito e do significa de


humanidade –, fruto da política colonizadora dos países da Europa, deve ser mitigado com outras espécies e
modos de pensamento de outras partes do Mundo. Se deve levar em consideração o indivíduo e o espaço em
que vive, não admitindo que uma pessoa proveniente de uma determinada cultura, seja influenciada pelo
modo de vida de outra cultura completamente diferente.

O acesso à justiça dessas pessoas se torna, então, fundamental para a consecução dos objetivos ati-
nentes aos direitos humanos. A abertura do jurisdicionado de maneira eficaz e célere a todas as pessoas
promoverá a maior ligação entre os diversos sistemas jurídicos e, consequentemente, a melhor concretização
dos entrelaçamentos triangulares, como pontos fundamentais para a efetividade da tutela dos direitos huma-
nos no ordenamento jurídico nacional e estrangeiro.

REFERÊNCIAS

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and the EU Democrats, 2008. P. 41.

BRAGATO, Fernanda Frizzo. Uma crítica descolonial ao discurso eurocêntrico dos direitos huma-
nos. In: LOPES, Ana Maria D’ávila. A eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2013. P. 107.

BRATZA, Sir Nicolas. Bringing a Case to the European Court of Human Rights: A Practical Guide
on admissibility criteria. Netherlands: Legal Publishers, 2011. P.13.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. 168 p. Tradução:
Ellen Gracie Northfleet.

CICHOCKI NETO, José. Limitações ao Acesso à Justiça. Curitiba: Juruá, 2002. 213 p.

COMPREENDER AS POLÍTICAS DA UNIÃO EUROPEIA: Justiça, direitos fundamentais e igualda-


de. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2015. P.3.

EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. The ECR in facts & figures 2013. January 2014.

______________________________________. The ECR in facts & figures 2014. February 2015.

JUNIOR, Paulo Eustáquio Luiz de Almeida. Conflitos (aparentes) entre o Estatuto de Roma e a
Constituição da República Federativa do brasil. 2009. 72 f. Monografia apresentada na Universidade
Católica de Brasília para obtenção do grau de bacharel em direito. P. 52-58.

NEVES, Marcelo. Do Diálogo entre as cortes supremas e a corte interamericana de direitos hu-
manos ao Transconstitucionalismo na América Latina. Rede Direitos Humanos e Educação Supe-
rior: Proteção Multinível dos Direitos Humanos, Barcelona, p.259-288, 09 dez. 2015.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 71.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA


MERCADORIA?

Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira


Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Larissa Brasileiro Malheiro


Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Participante
do Programa de Iniciação Científica PIBIC/UNICAP.

Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso


Doutora em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Diplomada em
Estudos Avançados (DEA) pela mesma Universidade e especialista em Relações
Internacionais na era da Globalização pela Universidade Católica de Pernambuco
(Brasil). Professora da Universidade Católica de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa
“Direitos Fundamentais: Instrumentos de concretização”. Integra, em nível de pós-
doutoramento, programa de pesquisa em ciências sociais, crianças e adolescentes na
América Latina da rede CLACSO (Centro Latino Americano de Ciências Sociais) / CINDE
(Centro Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano. Centro cooperador da
UNESCO).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Entre a teoria e a práxis; 2. A prostituição enquanto exercício ou explora-


ção do corpo; 3. Direitos fundamentais versus prostituição; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

A análise da temática proposta encontra inúmeros desafios, pois que o tratamento da mesma
através de um único ramo da ciência impossibilita uma tomada de postura. Faz-se necessário, portanto,
reconhecer a necessidade de um estudo multidisciplinar que sustente nossas ideias e posturas, bem como
afastar-se de toda uma carga emocional direcionada ao conceito pré-estabelecido deste instituto.

O referido conceito, - desenvolvido por uma sociedade machista e, na maioria das vezes, fundamen-
tada em valores morais de opressão do gênero – gera uma participação tímida da pessoa prostituída no que
se refere ao exercício de uma cidadania plena, pois que a sociedade, de maneira geral, tem demonstrado, ao
longo do tempo, uma velada repreensão de referida conduta.

Se não é assim, note-se que a prostituição, como se reconhece na atualidade, embora muito discuti-
da nos diferentes âmbitos sociais, sempre foi alvo de um discurso fundamentado na marginalidade de seus
praticantes.

1. ENTRE A TEORIA E A PRÁXIS.

Um tema muito discutido em torno do discurso social da prostituição esta fundamentado na ideia da
exploração ou exercício da atividade de prostituta(o). Fato é que o Código Brasileiro de Ocupação já reconhe-
ce referida atividade sob o código 519805 que denomina de profissionais do sexo. No entanto, não se pode ne-
gar que a prostituição, ainda, está longe de ser reconhecida como um mero exercício de atividade profissional

342
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

e não porque não tenhamos congressistas empenhados em tal processo, mas, simplesmente, porque referida
circunstância independe de Lei, mas de amplos debates sociais que devem estar direcionado a compreensão
dos anseios e clamores daqueles em atividade de prostituição.

Neste sentido, não é equivocado afirmar que a prostituição é um tema complexo e um tanto marginal
quando o comparamos com as demais urgências do mundo atual. Vale salientar, no entanto, a significativa
relevância que existe ao retratar as situações vividas pelos personagens presentes nesta realidade, uma vez
que a prática da prostituição sempre se manteve na encruzilhada da exploração versus exercício. Interes-
sante esclarecer que ao falar em “sempre esteve” quer-se tratar do assunto de maneira espacial, bem como
temporal, pois que a prostituição seja em qualquer tempo ou sociedade sempre foi - apesar de tolerada en-
quanto seu exercício - considerada uma exploração social. Assim, diversas facetas são formadas ao decorrer
das épocas, porém nunca pôde-se existir, de fato, uma situação plena de igualdade e de liberdade para com
o cidadão prostituído.

Desta feita, é possível, então, afirmar que o debate sobre a prostituição, na maioria das vezes, é feito
de forma meramente ilusória, ideológica, pois a prática se mostra, ao contrário do esperado, o oposto da teo-
ria. É em outras palavras, afirmar que pratica-se a ideologia da liberdade sexual da mulher, da sua dignidade,
entretanto o cenário não passa de uma composição de manipulações e explorações sobre o corpo feminino.
Tais explorações encontram seu alicerce em um modo de produção econômico fundamentado no capital que
se estabelece na exploração do outro através da máxima “eu quero, eu pago, eu posso”, e encontra reforço,
em nossa sociedade, nos valores machistas que julgam-se capazes de decidir o bem social.

2. A PROSTITUIÇÃO ENQUANTO EXERCÍCIO OU EXPLORAÇÃO DO CORPO.

Note-se que para alcançar a realização de um trabalho qualquer faz-se necessário a existência, o es-
forço do corpo. Se não, veja-se que seja através do uso da força, do intelecto ou, ainda, seja pela utilização de
suas habilidades é que o homem consegue realizar o trabalho.

Tomando como base essa compreensão à prostituição é, então, possível afirmar, que a mesma não
passa de um exercício do corpo como em toda e qualquer outra atividade laborativa, havendo, ainda, preço,
condições e, também, vantagens ao esforço físico de terceira pessoa.

Desta compreensão cabe a seguinte pergunta: se é a prostituição o exercício de uma atividade laboral
como outra qualquer porque, até hoje, não se encontra disciplinada e reconhecida como tal pela sociedade?
Muito pelo contrário, sabe-se que a prostituição, ainda em tempos atuais, geralmente é realizada por mulhe-
res que trabalham em condições precárias e pouco valorizadas.

Ora, tal resposta encontra fundamentação em um dado momento histórico, no qual o poder de capi-
tal passou a construir os ditames morais da sociedade, impondo à mulher uma verdadeira sujeição ao poder
masculino e a preservação do seu corpo no que se refere às questões sexuais. Circunstâncias que termina-
ram por promover, assim, a discriminação da prostituição, haja vista seus intuitos sexuais.

Por outro lado, cumpre destacar, também, uma certa influência dos ditames religiosos. Porém, não
se pode atribuir, tão somente, a Igreja toda a responsabilidade pelo menosprezo que se dedica a tal atividade.
Principalmente em tempos atuais onde os ditames religiosos tem, em certa medida, acompanhado o percurso
social.

Neste sentido, note-se que tem-se falado muito em exercício da prostituição pela livre e espontânea
vontade. Porém, cumpre refletir que embora haja, por parte daquele que realiza a prostituição, o comprome-
timento em aceitá-la, não, necessariamente, significa afirmar que ele, o agente prostituído, sente prazer pelas
ações ou por todos os atos praticados pelo agente pagante, legitimando, portanto, a exploração da sexualidade
do outro, pois que averigua-se uma hierarquização, um domínio sobre o corpo do sujeito em prostituição por
parte daquele que compra referido serviço.

343
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Tal fato termina por demonstrar o liame estreito entre o exercício - posto que a atividade está sendo
realizada em razão da livre vontade do sujeito em prostituição - e a exploração por parte do outro que detem
riqueza e por isso pagante, pois há a dominação da vontade do outro, bem como o controle sobre o corpo
deste outro, disseminando-se, assim, o desrespeito à igualdade, pois o sujeito em prostituição encontra-se em
condição de submissão dos prazeres ditados pelo que o outro pode pagar.

Desta forma, é possivel, então, afirmar que para o sistema capitalista em vigor, o corpo é dominado
pelo intuito do labor, que, por sua vez, possui como real pretensão a detenção do poder econômico no intuito
de gerar, a cada momento, o aumento posse do capital, posto que este é fonte de poder.

3. DIREITOS FUNDAMENTAIS VERSUS PROSTITUIÇÃO.

Admitindo o pressuposto da existência da exploração em razão do poder do capital na atividade da prostituição,


bem como uma exploração em razão de uma relação de gênero cumpre, então, questionar uma possível ofensa ao direito
fundamental à igualdade elencado no artigo 5º inciso I da Constituição Federal de 1988, que de maneira expressa aduz
que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Se não é assim, cumpre lembrar que se todos são iguais, é dizer, homens e mulheres porque, então, a maior
quantidade de pessoas em prostituição é do sexo feminino? E, ainda, porque o preço que se paga pela prostituição mas-
culina, ainda que realizada em acordo com o que se convencionou chamar de “prostituição de rua”, é mais alto que o
valor retribuído ao exercício da prostituição feminina?

Ainda no inciso II do mesmo ordenamento é possível encontrar: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Fato que leva a conclusão de que a exploração da prostituição ofende tam-
bém o direito fundamental à liberdade.

Ora, sustentamos até agora que a prostituição está fundamentada em relações de poder econômico fundamenta-
das no domínio e sujeição sexual de terceira pessoa. Fato que demonstra a ausência de liberdade daquele que a exerce.

Ademais, ainda que tentemos admitir a prostituição como atividade, como exercício de uma atividade laboral
é difícil compreender a proteção do inciso XIII do mesmo artigo, pois que o mesmo admite que “é livre o exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Pergunta-se: que
qualificações? Que lei? Sabe-se que a prostituição sequer se encontra devidamente reconhecida através de Leis concre-
tas.

Tais circunstâncias, apenas, demonstram algumas das barreiras ou, melhor, fronteiras que sugerem o referido
tema. Falar sobre prostituição é falar sobre uma segregação sexual imposta por um poder de capital que em nada con-
tribuiu no percurso da história para a igualdade dos gêneros, pois que era necessário manter a propriedade no poder de
alguns poucos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que o discurso em torno da prostituição é demasiado amplo e elenca consigo uma quantidade
infinita de perguntas que seriamos incapazes de responder, pois que o tema exige uma análise que ultrapassa
as barreiras de uma única ciência. Ora, falar em prostituição e esquecer as ciências sociais, a antropologia,
seus efeitos, os diferentes discursos em torno da referida temática, como é exemplo o discurso dos movi-
mentos feministas, enfim... é esbarrar em uma grande trave que impossibilita o caminhar na construção de
alguma ideia.

Por outro lado, essas tantas barreiras, também, dificultam uma radical tomada de posicionamento e
por isso, consideramos que falar sobre prostituição é uma construção permanente de saberes que podem, a
qualquer momento, encontrar novos rumos e posicionamentos.

Neste talante, consideramos, na atualidade, a prática da prostituição uma relação de poder sobre a
intimidade corporal de outrem, ainda que esse outrem tenha dado seu aval para a realização de tal atividade,

344
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

pois o aval quase sempre esta fundamentado em valores de sujeição e, sendo assim, consistiria em explora-
ção.

No entanto, nos resta claro que a construção do saber sobre referida temática pode, em momento
posterior, modificar nossas ideias. O que nos parece fantástico, pois significa, sem qualquer duvida, o cons-
truir de uma dialética essencial ao desenvolvimento de um trabalho de pesquisa.

REFERÊNCIAS

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BASSERMANN, Lujo. História da prostituição: uma interpretação cultural. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 1968.

CHAUVIN, Charles. Os cristãos e a prostituição. Petrópolis: Vozes, 1987.

DIMENSTEIN, Gilberto. Meninas da noite: A prostituição das meninas-escravas do Brasil. São Paulo: Ática,
1994.

ESTIARTE, Carolina Villacampa. Prostitución: ¿hacia lá legalización?. Valencia: Tirant monografías 783.
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FREITAS, Renan Springer de. Bordel, bordeis: negociando identidades. Petrópolis: Vozes, 1985.

MARTÍNEZ, Fernando Rey; MARTÍN, Ricardo Mata; ARGÜELLO, Noemi Serrano. Prositución y Derecho.
Editorial Aranzadi.

RAGO, L.M. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil: 1890-1930. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1987.

RIBEIRO, Úrsula de Nielander. Mulher mercadoria. São Paulo: Paulinas, 1980.

ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.

ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na idade média. Rio de Janeiro: paz e terra, 1991.

345
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO

Gessyca Galdino de Souza


Aluna da graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco; cursando o
8° período. Componente do grupo de pesquisa REC :RECIFE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS,
na linha de pesquisa “Direitos Humanos para Além da Jurisdição Constitucional: Diálogos
entre o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos” e estagiária da JFPE.

Gustavo Ferreira Santos


Doutor em Direito Público pela UFPE. Mestre em Direito pela UFSC. Professor de Direito
Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direito internacional de proteção; 2. Sistema regional de proteção aos


direitos humanos; 3. Liberdade de expressão entendimento doutrinário; 4. Liberdade de expressão
no sistema interamericano de proteção; 5. Radiodifusão e liberdade de expressão para o exercício da
democracia; 5.1. Regulamentação da Radiodifusão a Luz do Sistema Interamericano de Proteção; 6.
Participação do estado: liberdade de expressão sob a ótica positiva; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Entender o sentido e alcance da liberdade de expressão de acordo com os parâmetros constitucionais


e as garantias previstas nos tratados internacionais é o primeiro passo para um país democrático.

No caso brasileiro principalmente, uma vez que a sua constituição garante ao cidadão o direito de
pensar e manifestar os seus pensamentos de forma ampla, todavia o exercício da liberdade de expressão para
além da esfera individual exige a utilização de instrumentos de comunicação em massa, que garantam a
multiplicidade de vozes na sociedade, contribuindo para a formação da opinião pública plural, diversificada
e igualitária consequentemente o efetivo controle dos atos Estatais.

Dessa forma, o exercício da liberdade de expressão está intrinsecamente relacionado com o estudo
da regulamentação da radiodifusão, uma vez que aquela constitui a pedra angular da democracia e está não
existe se não houver pluralidade de vozes.

Contudo, não se pode restringir à proteção a órbita nacional, pois o próprio legislador constituinte
reconheceu a importância de adotar parâmetros internacionais de proteção, a fim de conceder plena efetivi-
dade aos direitos fundamentais.

Portanto, se faz necessário direcionar o estudo ao sistema regional de proteção aos direitos humanos,
que por meio de sua relatoria sobre a liberdade de expressão e os principais meios para sua difusão, tem
tratado do tema regulamentação da radiodifusão para a manifestação e concretização plena desse direito
fundamental.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. DIREITO INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO.

A consagração de direitos para além da ordem jurídica nacional e o reconhecimento de direitos ine-
rentes à condição humana independente de se estar vinculado a uma ordem jurisdicional se faz imprescin-
dível, pois se trata de mais um abrigo e proteção dos direitos e garantias fundamentais, mas agora sob a égide
internacional, logo é incontestável que a adoção de mecanismos de proteção internacional constituem meios
à ampliação das garantias e principalmente proteção a possíveis arbitrariedades ocasionadas pelo Estado.

Diante disso, o reconhecimento e a incorporação ao ordenamento jurídico interno constitui uma


relação de compromisso e cooperativismo assumido pelos órgãos internos com o sistema internacional de
proteção aos direitos humanos e principalmente representam uma obrigação para a promoção de direitos
e garantias fundamentais, de tal forma que o poder constituinte reformador elencou ao status de norma
constitucional os tratados que versem sobre direitos humanos e por meio da cláusula de abertura material
os demais tratados internacionais, concedendo status de norma supralegal conforme entendimento jurispru-
dencial.

Tal posicionamento reflete o comprometimento da constituição de 1988 em ampliar a efetividade e


eficácia dos direitos fundamentais, avançar na salvaguarda da tutela jurídica e principalmente enfraquecer
qualquer ato que viole ou lesione os direitos fundamentais constitucionalmente previstos.

Dessa forma é primordial definir o sentido e alcance do direito internacional de proteção aos direitos
humanos. Assim seguindo o entendimento de Trindade (2006,p.6)

Direito Internacional dos Direitos Humanos é corpus juris de salvaguarda


do ser humano, conformado, no plano substantivo, por normas, princípios
e conceitos elaborados e definidos em tratados e convenções, e resoluções
de organismos internacionais, consagrando direitos e garantias que têm por
propósito comum a proteção do ser humano em todas e quaisquer circuns-
tâncias, sobretudo em suas relações com o poder público, e, no plano proces-
sual, por mecanismos de proteção dotados de base convencional ou extra-
convencional, que operam essencialmente mediante os sistemas de petições,
relatórios e investigações, no plano tanto global como regional. Emanado do
Direito Internacional, este corpus juris de proteção adquire autonomia, na
medida em que regula relações jurídicas dotadas de especificidade, imbuído
de hermenêutica e metodologia próprias.

Com enfoque nos mecanismos de proteção aos direitos humanos a sua atuação se dá sob um prisma
global, a saber, o sistema ONU e a fim de atender maiores especificidades do estado, o sistema regional de
proteção aos direitos humanos, particularmente composto pala Europa, África e America.

Conforme leciona Piovesan (2012,p.224), ao definir os sistemas global e regional, o instrumento


global deve conter um parâmetro normativo mínimo, enquanto o que o sistema regional deve ir além, adicio-
nando novos direitos, aperfeiçoando outros, levando em consideração diferenças peculiares em uma mesma
região ou entre uma região e outra.

Elementar ao cidadão ter o conhecimento que sobre ele reside uma dupla tutela jurídica e há direi-
tos fundamentais para além dos limites nacionais, ou seja, conhecer para difundir a existência dos tratados
internacionais é mais uma forma de que ele como principal participante do regime democrático possa exigir
dos dirigentes estatais uma maior atuação no que concerne a aplicação dos tratados internacionais e cobrar
perante os órgãos internos a observância de suas orientações, a fim de ampliar e não retroceder nos direitos
conquistados, pois o papel desenvolvido por mecanismos internacionais proporcionam mais uma garantia
de efetividade e eficácia dos direitos fundamentais e não só, mais principalmente constituem verdadeiros
limitadores de possíveis retrocessos que o Estado signatário possa cometer daí se ter como resultado a res-
ponsabilização dos países signatários, por não aplicar as orientações emitidas pelos sistemas de proteção

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

internacional do qual fazem parte, tendo em vista que estariam consequentemente reduzindo a eficácia do
gozo de tais direitos pelo cidadão.

O ordenamento jurídico pátrio reconhece a importância dos tratados internacionais no âmbito inter-
no, mas não apenas reconhecer, mas também atribuir-lhe eficácia constitui dever e obrigação de seus órgãos,
atuando para a ampla aplicação e máxima efetividade dos tratados internacionais incorporados no âmbito do-
méstico, consequentemente atribuir maior eficácia aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos,
e não apenas estes mais os também reciprocamente considerados por seu conteúdo e importância espraiados
nas diversas espécies legislativas.

Tendo em vista a ampla abrangência de atuação do direito internacional, aplicado por meio dos órgãos
de proteção no plano global e regional, concluímos que ainda há muito que se avançar na ordem jurídica na-
cional para atribuir a máxima eficácia no âmbito interno das normas de proteção aos direitos fundamentais,
e que a consagração formal é apenas um passo de um longo caminho a ser trilhado para plena efetividade
dos direitos fundamentais.

2. SISTEMA REGIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS.

É inegável a importância da jurisdição internacional na proteção dos direitos fundamentais ao cida-


dão, a existência de sistemas no âmbito global e regional não anula a responsabilidade Estatal de conceder
ampla proteção, consequentemente uma esfera não atua excluindo ou restringindo o âmbito de atuação a
outra, pois o objetivo é fortalecer o âmbito de proteção. É certo que:

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Ins-


pirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o uni-
verso instrumental de proteção dos direitos humanos no plano internacional.
Em face desse complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao
indivíduo que sofreu violação de direito a escolha do aparato mais favorável,
tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois
ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral
ou especial. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos
interagem em beneficio dos indivíduos protegidos. (PIOESAN, 1996, p.2).

Considerando a atuação de cada mecanismo se faz necessário direcionar o estudo para o sistema
regional de proteção que atua considerando as maiores especificidades do tema proposto. A tutela dos di-
reitos humanos no plano regional incluem instituições criadas por organizações que congregam países de
determinados continentes os quais são o Europeu criado elo conselho da Europa, o Africano, criado pela
União Africana e o Americano, criado pela organização dos Estados Americanos. O Brasil integra o sistema
interamericano de proteção aos direitos humanos.

O sistema interamericano de direitos humanos é voltado a aplicação do Pacto de São José da Costa
Rica, formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sediada em Washington, EUA, dentro
da esfera de suas atribuições está o de emitir pareceres consultivos aos Estados membros por meio de suas
relatorias, investigar e decidir sobre possíveis violações aos direitos e acompanhar o desenvolvimento de cada
região na proteção aos direitos humanos por meio da emissão de relatórios. E ainda integrando o sistema
regional a Corte interamericana de Direitos Humanos, sediada em Costa rica com competência de investigar
as violações por parte das regiões e possibilidade de aplicabilidade de sanções por descumprimento as orien-
tações emitidas pela comissão interamericana.

O país tornou-se signatário do Pacto de São José da Costa Rica, assumindo a responsabilidade de seu
cumprimento no plano internacional no ano de 1998, aderindo às normas gerais e a cláusula facultativa de
reconhecimento da competência da Corte para o julgamento de possíveis inflações, sendo assim o país acatou
um pacto de seguir o entendimento consultivo da comissão interamericana e jurisprudencial da Corte Intera-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mericana devendo juízes e tribunais diante de um caso concreto aplicar não apenas o ordenamento jurídico
pátrio, mas também seguir a compreensão internacional.

O sistema regional de proteção representa fonte subsidiária à tutela dos direitos fundamentais, tendo
como um dos principais requisitos de admissibilidade do pedido o esgotamento das fontes internas de prote-
ção, dessa forma os órgãos de proteção internacional só são acionados diante de uma falha ou omissão por
parte do próprio Estado representado na pessoa de seus órgãos.

Aderindo a ideia de globalização dos direitos humanos, o reconhecimento de mecanismos de proteção


regional é de grande relevância a ordem democrática, principalmente por sua grande contribuição no enten-
dimento do tema liberdade de expressão e os principais meios para a sua difusão, ampliando a abrangência
do gozo desse direito fundamental que é considerado pela doutrina como o primeiro dos demais direitos a
serem exercidos.

3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO

Dentre os inúmeros motivos que levaram ao alargamento da proteção a liberdade de expressão é in-
contestável que as conquistas obtidas no presente, são fruto de inúmeros esforços em combater os retrocessos
do passado, no caso brasileiro principalmente, pois os anos sob um governo ditatorial foram suficientes para
comprovar que cecear a liberdade de expressão em uma sociedade é viver sob a égide de um governo ditatorial.

Seguindo o entendimento da Comissão Interamericana (2014), a plena e livre discussão evita que se
paralise uma sociedade e prepara para tensões e flexões que destroem as civilizações. Uma sociedade livre
hoje e amanha é aquela que pode manter um debate público e rigoroso sobre ela mesma.

Definir o sentido e o alcance da liberdade de expressão na atualidade é vital, principalmente por ser
tratar de um instrumento essencial para o exercício da democracia participativa de um país, pois, assegurar á
livre manifestação de opiniões, ideias e pensamentos é garantir ao cidadão o exercício e a conquista não ape-
nas da liberdade de expressão, mas de todos os outros direitos fundamentais constitucionalmente previstos.

Conforme Farias, Edilson (2004) a liberdade de expressão pode ser entendida como conjuntos de
direitos, liberdades e garantias relacionadas à difusão dos ideais.

A constituição de 1988 consagra liberdade de expressão em seu artigo 5 inciso IV como é livre a ma-
nifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Portanto o sentido adotado pelo texto magno concebe
o direito fundamental a livre manifestação de ideias e pensamento em sentido amplo, tendo como limite ex-
presso o anonimato, cabe ainda ressaltar que de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial
é possível conflitos entre a esse direito fundamental e a vida privada, honra e a intimidade, podendo diante
de um caso concreto ser relativizado tendo como principal parâmetro o interesse público.

Importante frisar que o sentido e alcance da liberdade de expressão adotado aqui como gênero, que
abrange não apenas a esfera subjetiva e individual do cidadão, mas alcança também o âmbito coletivo, pois
ao mesmo tempo é peça fundamental a formação do pensamento coletivo, assim poderia se concluir que,
restringir seu alcance atinge muito mais do que o plano individual, afeta o campo artístico, intelectual e co-
letivo, certo seria entender a livre manifestação de pensamento como direito transindividual coletivo, que
ultrapassa o interesse das partes e desemboca em um direito da coletividade, assim fundamental ao regime
democrático.

Pode-se afirmar que, em razão da livre manifestação de pensamento, de opinião e circulação de ideias
a sociedade participa ativamente do plano de atuação estatal na esfera social, o debate público é essencial
para a existência de uma verdadeira democracia tendo o direito a liberdade de expressão intrinsecamente
relacionada ao seu exercício, um governo livre é aquele que garante a primeira e mais importante dentre o
rol das liberdades defendidas desde o constitucionalismo liberal, que é nas palavras de Farias (2004), o direi-
to a manifestar livremente os próprios pensamentos, ideias e opiniões, crenças, juízos de valor, por meio da

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

palavra oral e escrita, de imagem ou de qualquer outro meio de difusão de ideias, bem como na faculdade de
comunicar ou receber informações verdadeiras sem impedimentos nem discriminações.

Tendo em vista o conceito doutrinário da liberdade de expressão como também o seu alcance como
direito fundamental constitucionalmente previsto, cabe agora analisar o sentido adotado pelo sistema inte-
ramericano de proteção mais especificadamente o entendimento da comissão interamericana de direitos
humanos, representado por sua relatoria.

4. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO

Diante do vasto conteúdo informativo e jurisprudencial da corte interamericana e os casos que ainda
trazem grandes repercussões na esfera jurisdicional, social e política do país, surge à necessidade de se ter
como eixo central o entendimento da convenção interamericana de direitos humanos sobre a liberdade de
expressão por ser instrumento essencial dentro de um governo democrático e por sua rica compreensão e
ampliação no sentido e proteção, mais especificadamente por sua interpretação do artigo 13 da carta de prin-
cípios da liberdade de expressão.

A concepção amparada no âmbito do sistema regional garante o mais amplo gozo e proteção à liber-
dade de expressão como gênero e suas diversas espécies como à liberdade de pensamento, artística, científica
ou conforme seu entendimento, por qualquer outro meio de sua escolha, expressão que garante amplíssima
proteção, estendendo-se inclusive a discursos contrários a maioria, sendo vedado qualquer meio direto ou
indireto que venha restringir o âmbito de exteriorização.

O artigo 13 representa mais uma conquista aos direitos e garantias fundamentais, de forma que
abarca as múltiplas vertentes de manifestação, assim como sua dimensão individual e social entendimento
fundamental ao governo democrático.

Da mesma maneira estende-se a proteção à dupla dimensão da liberdade de expressão, pois, segun-
do o entendimento da corte interamericana possui uma dimensão individual e uma coletiva, além do mais,
ao mesmo tempo em que o individuo tem direito de pensar e expressar seus pensamentos o coletivo tem o
direito, a saber, do pensamento alheio, buscar ideias e opiniões do outro, por esta razão a liberdade de expres-
são é concebida pelo sistema americano de pedra angular na existência de uma sociedade democrata, pois
contribui a formação da opinião pública. Conforme o parecer consultivo 5/85 (2014)

70. A liberdade de expressão é uma pedra angular na própria existência de


uma sociedade democrática. É indispensável para a formação da opinião pú-
blica. É também, conditio sine qua non, para que os partidos políticos, os sin-
dicatos, as sociedades científicas e culturais e, em geral, quem deseje influir
sobre a coletividade, possa se desenvolver plenamente. É, enfim, condição
para que a comunidade, na hora de exercer suas opções, esteja suficiente-
mente informada. Deste modo, é possível afirmar que uma sociedade que
não está bem informada não é plenamente livre.

A importância da aplicabilidade desse posicionamento na órbita nacional principalmente pelo poder


judiciário, é primordial, na medida em que, constitui direito fundamental primário para o exercício e gozo
dos demais direitos fundamentais, visto que, trata-se de um instrumento essencial dentro de um regime de-
mocrático, que preza pela dignidade da pessoa humana e sua autonomia de manifestar o seu pensamento,
seguindo o entendimento da convenção interamericana negar esse direito seria renegar a primeira e a mais
importante de nossas liberdades.

No mesmo sentido Mello (2012, p.58) citando a lição de Gárcia Ramirez

A Corte Interamericana de Direitos Humanos ocupou-se em estabelecer a


relevância da liberdade de expressão na sociedade democrática: é fundamen-
to e efeito desta, instrumento para seu exercício, garantia de seu desempe-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

nho. Há uma relação evidente entre o desdobramento da expressão e o gozo


da liberdade. Estes conceitos informam diversos instrumentos internacionais
relativos a direitos humanos no duplo plano universal e regional. A ordem
pública democrática reclama, portanto, a defesa da liberdade de expressão. A
ela serve, em seu âmbito de atribuições, a jurisdição da Corte.

Portanto, entende-se a relevância de se tutelar a liberdade de expressão para além do âmbito nacio-
nal, de proteger sua garantia e gozo não apenas pela jurisdição constitucional, mas também de forma subsi-
diária por uma corte internacional por ser instrumento fundamental a democracia e mecanismo de controle
da atuação estatal, resultando na garantia dos demais direitos fundamentais.

Assim seguindo o entendimento da declaração de Chaupetec (1994) entendemos que

Somente através da livre expressão e circulação de ideias, a busca e difusão


de informações, a possibilidade de indagar e questionar, de expor e reagir, de
coincidir e discordar, de dialogar e confrontar, de publicar e transmitir, que
é possível manter uma sociedade livre. Somente mediante a prática destes
princípios será possível garantir aos cidadãos e aos grupos seu direito de rece-
ber informação imparcial e oportuna. Somente mediante a discussão aberta
e a informação sem barreiras será possível buscar respostas aos grandes pro-
blemas coletivos, criar consensos, permitir que o desenvolvimento beneficie
a todos os setores, exercer a justiça social e avançar na conquista da equida-
de. Por isto, rejeitamos com veemência aqueles que defendem que liberdade
e progresso, liberdade e ordem, liberdade e estabilidade, liberdade e justiça,
liberdade e governabilidade são valores contrapostos.

5. RADIODIFUSÃO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO PARA O EXERCÍCIO DA DEMOCRACIA.

Embora a constituição elenque o direito fundamental a liberdade de expressão em posição de des-


taque, e amplie o seu âmbito de proteção para além da jurisdição constitucional consagrando sua proteção
por meio de tratados de direitos humanos e fundamentais, atingir o máximo de efetividade e eficácia do seu
exercício requer muito mais do que a proteção formal para a plena concretização no âmbito social, de forma
a abarcar os parâmetros estabelecidos pelo sistema regional de proteção. A livre manifestação de ideias, pen-
samentos e opiniões exige a garantia de instrumentos de comunicação livres e plurais, meios de interlocução
que garantam a diversidade e igualdade de difusão de informações, garantias formais e matérias na concre-
tização da democracia.

Sem embargo, perceber que a proteção ao direito fundamental considerado pedra angular da demo-
cracia requer a garantia formal de outros instrumentos que atingem diretamente o seu exercício de acordo
com os ideais estabelecidos pelo legislador constituinte, o que se quer mostrar é que ao prever normas que
tratam da radiodifusão, a constituição percebeu a importância dos meios de comunicação para o exercício de
vários direitos fundamentais, ou seja, proteção formal da radiodifusão; No que tange a liberdade de expressão
primordial a garantia formal, mas diante da crescente desigualdade social no âmbito brasileiro, substancial-
mente estabelecer parâmetros para uma radiodifusão livre, justa e plural é inevitável, dessa forma, ajustar-se
mais uma vez ao entendimento do sistema interamericano de proteção é fundamental no que diz respeito à
regulamentação da radiodifusão, afim de, realizar uma verdadeira ponte de diálogos para um governo demo-
crático, a liberdade de expressão legitima exige parâmetros democráticos para normatização da radiodifusão.

De acordo com o entendimento de Salomon e Mendel (2011) a regulação da radiodifusão envolve


necessariamente o direito à liberdade de expressão, já que pode ser vista como uma restrição dessa liberdade,
devido a sua própria natureza. Em verdade, pode se afirmar que a liberdade de expressão é a pedra angular
da regulamentação da radiodifusão nas sociedades democráticas e que a legitimidade ou não legitimidade
de determinada abordagem regulatória para o setor dependerá, no mais das vezes, de uma avaliação de seu
impacto sobre a liberdade de expressão.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Contudo, cabe destacar que regular não é estabelecer critérios limitadores de acesso à radiodifusão e
consequentemente restringir a liberdade de expressão, mensagem muitas vezes difundida por grupos deten-
tores de vários meios de comunicação, tal posicionamento é no mínimo equivocado, certo é que a liberdade
de expressão não se trata de um direito fundamental absoluto e estabelecer critérios para a sua difusão por
meio dos instrumentos de comunicação em massa torna-se legitimo, a partir do momento que se utiliza pa-
drões democráticos estabelecidos pelo exercício da liberdade de expressão.

Dessa forma, regulamentar a radiodifusão é estabelecer critérios legítimos e democráticos que te-
nham por finalidade a livre e justa difusão de ideias e pensamentos por instrumentos de comunicação, mais
de maneira igualitária e democrática, possibilitando o acesso aos diversos setores sociais e consequentemente
a manifestações de diversas informações e opiniões atendendo aos ditames da corte e da CIDH.

O controle dos atos estatais é o propósito do governo democrático, fim a ser alcançado com a partici-
pação social e a livre circulação de opiniões, é o que propugna a democracia e nada mais imperioso do que a
necessidade da efetiva pluralização do espaço público por meio de instrumentos de comunicação democrá-
ticos.

5.1 REGULAMENTAÇÃO DA RADIODIFUSÃO A LUZ DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO

A experiência brasileira obtida com as graves violações a direitos humanos e fundamentais no passado
se propagam no presente, com a preocupação do poder constituinte em estabelecer normas que são verda-
deiras medidas de proteção a retrocessos constitucionais, mais especificadamente o artigo 5 § 3 estabelece o
que Marcelo neves chama de diálogos constitucionais que tanto do lado da Corte IDH quanto da parte das
cortes estatais tem havido uma disposição de “diálogo” em questões constitucionais comuns referentes à pro-
teção de direitos humanos, de tal maneira que se amplia a aplicação do direito convencional pelos tribunais
domésticos (Neves, 2014 apud CARAZO ORTIZ, 2009, P 273).

O vasto entendimento da comissão interamericana, em matéria de liberdade de expressão têm con-


tribuído significativamente para o avanço na proteção e efetividade e como desdobramento lógico o sistema
interamericano tem contribuído com seu entendimento sobre a regulamentação da radiodifusão, tema cor-
relato exercício da livre manifestação de pensamento, logo adotar como parâmetro o seu entendimento sobre
os padrões para a regulamentação da radiodifusão livre, plural e igualitária é vital para o diálogo e aplicação
do direito internacional no âmbito nacional.

Com base nos padrões estabelecidos pela relatoria especial para a liberdade de expressão uma radio-
difusão livre e igualitária deve estar pautada nos ditames estabelecidos pela liberdade de expressão, pois, sob
a ótica de sua relatoria especial

Todas las personas tienen derecho a fundar o formar arte de meios de co-
municacionó y aquéllos que requieren del uso del espectro deben ser objeto
de uma regulación clara,transparente y democrática, que asegure el mayor
goce de este derecho para el mayor número de personas y por conseguinte,
la mayor circulación de opiniones e informaciones. Em efecto, como ya se há
indicado, la regulación del espectro electromagnético debe garantizar, al mis-
mo tiempo, la libertad de expresión del mayor número personas o perspecti-
vas, la igualdade de oportunidades em el acesso a los médios y el derecho a la
información plural y diversa de las sociedades contemporâneas. (MARINO,
2010, p.11)

De acordo com o seu entendimento, para orientar a regulamentação da radiodifusão três componen-
tes devem estar presentes: pluralidade de vozes, que significa medidas antimonopólicas, diversidade de vo-
zes, equivalente a medidas de inclusão social, e não discriminação, ou seja, acesso em condições de igualdade
e inclusão de todos os grupos sociais a ser seguida com a finalidade de garantir a igualdade no exercício da
liberdade de expressão.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O propósito central da comissão interamericana de direitos humanos, ao estabelecer como compo-


nentes da radiodifusão tais parâmetros é principalmente proteger a democracia, uma vez que, sem meios de
comunicação livres, independentes e plurais é impossível se ter a diversidade do debate democrático, com
isso não se quer dizer que a sua regulamentação não tenha restrições, ao contrário, o controle dos principais
instrumentos de interlocução deve existir com a normatização, mais desde que seja uma contenção legitima,
pautada nos ditames constitucionais e ampliada pelos parâmetros internacionais estabelecidos pelo sistema
regional.

Dessa forma, é indispensável à adoção dos três componentes estabelecidos pela comissão intera-
mericana, pois, medidas antimonopólicas devem ser tomadas, visto que é possível verificar que existem
determinados grupos detentores dos principais canais de informação como TV e rádio, resultando em um
verdadeiro filtro de opiniões, restrito a um pequeno grupo detentor dos instrumentos de comunicação em
massa, segundo Marino (2010), monopólios u oligopos em la propiedad por cuanto conspiran contra la de-
mocracia al restringir la pluralidad y diversidad que asegura el leno ejercicio del derecho a la infirmación de
los ciudadanos.

Com relação à diversidade de vozes, o que se entender é que o debate democrático exige a participa-
ção social de toda população, independente da classe econômica conforme Sarmento (2007), a liberdade de
expressão é tão importante em qualquer regime que se pretenda democrático. É sua garantia que possibilita
que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias, em que todos os grupos e cidadãos
tenham a possibilidade de participar, seja para exprimir seus pontos de vista, seja para ouvir os expostos de
seus pares.

Ademais, o modo mais eficaz para se combater o monopólio é se garantir a diversidade de vozes,
assegurando à população de forma igualitária o acesso a instrumentos de comunicação, é estabelecer leis
democráticas, com regras claras que assegurem o acesso por toda a população, com o objetivo de adotar po-
líticas de acesso que garantam a participação de grupos marginalizados da sociedade para que tenham voz e
participem do debate público, e aqui cabe ressaltar que é papel do Estado intervir para promover verdadeiras
políticas públicas de igualdade social, nesse entendimento

Es claro entoces que la regulación sobre a radiodifusión deberia apuntar a su-


perar lãs desigualdades existentes em el acesso a los médios de comunicaci-
ón, por ejemlo, de sectores sociales desfavorecidos econômicamente. En este
sentido, los Estados no solo deben abstenerse de discriminar a estos sectores
sino que además deben promover políticas úblicas activas de inclusion social.
(MARINO, 2010, p.20)

Portanto, estabelecer parâmetros democráticos de acesso aos instrumentos de comunicação em mas-


sa não é restringir a liberdade de expressão é poder ampliar o seu alcance, incluindo componentes que
permitem a pluralidade, diversidade e igualdade requerendo do Estado medidas positivas que garantam o
debate democrático, não adotar tais parâmetros é limitar o seu exercício que exige diálogos constantes entre
o âmbito nacional e internacional de proteção.

6. PARTICIPAÇÃO DO ESTADO: LIBERDADE DE EXPRESSÃO SOB A ÓTICA POSITIVA.

É inegável a importância do papel desempenhado pelo sistema regional de proteção e sua participação
na efetivação de um verdadeiro governo democrático, por conseguinte a concretização do seu entendimento
no âmbito doméstico exige muito mais do que medidas formais de proteção e participação ativa da suprema
corte na sua aplicação, mais reivindica a participação do Estado atuando de maneira positiva na promoção de
políticas públicas de inclusão que integrem todos os grupos da sociedade.

Nas palavras de Sarmento (2010), embora a dimensão preponderante da liberdade de expressão seja
realmente negativa, a garantia deste direito, sobretudo no quadro de uma sociedade profundamente desigual,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

também reclama ações positivas do Estado, visando assegurar a todos a possibilidade real do seu exercício e
o enriquecimento do debate público.

Dessa forma, deixa de se compreender a liberdade de expressão sob a ótica negativa que exige abs-
tenção do Estado, para ser um direito que reivindica a sua participação de forma positiva, promovendo a
concretização da sua dupla dimensão individual e coletiva.

Sarmento (2010, p.25), entende que, a intervenção estatal visando a democratizar a esfera comuni-
cativa é indispensável. Mais que uma faculdade, ela deve ser concebida como um verdadeiro dever do Esta-
do, sobretudo em sociedades desiguais como a brasileira, em que os meios de comunicação social se encon-
tram excessivamente concentrados nas mãos de uma pequena elite, e o mercado não proporciona aos pobres
qualquer acesso real à mídia. Esta intervenção não opera contra, mais a favor da liberdade de expressão, que
não, deve, portanto ser concebida como um mero direito negativo a uma abstenção estatal.

O principal objetivo de regulamentar a radiodifusão é estabelecer a pluralização do debate democráti-


co, contribuindo para a participação das diversas vozes do meio social e principalmente realizar o controle dos
atos estatais, garantias alcançadas pela democracia que está intrinsecamente relacionada com a liberdade de
expressão, de tal forma que sem meios de comunicação livres, plurais e diversos não há sua concretização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aderindo a ideia de globalização dos direitos humanos à constituição em seus artigos, traz expres-
samente o reconhecimento deste instrumento de grande relevância para a verdadeira democracia que é a
ratificação dos tratados internacionais, concedendo ao cidadão uma dupla proteção e ampliação o rol de di-
reitos que não mais se restringe aos consagrados no âmbito nacional mais vai além, por se tratar de mais uma
ferramenta que visa à efetividade dos direitos fundamentais agora na órbita internacional.

Em especial o papel desempenhado pela convenção interamericana de direitos humanos e a corte


interamericana por seu rico entendimento e contribuição na definição do sentido e alcance da liberdade de
expressão e o valor de sua aplicação na esfera nacional, e não só por sua elogiável atuação, mas também
por tratar-se de um mecanismo de proteção regional que acolhe os direitos fundamentais com suas maiores
especificações.

Fundamental tal entendimento, pois consubstancia a existência de um governo democrático, fun-


damentado no debate de ideias e livre circulação de informação imprescindível à formação do pensamento
critico e plural, compatível com a constituição cidadã de 88, consagrando o entendimento de ampla margem
de atuação da liberdade de expressão e compreendendo a importância dos mecanismos de informação no
seu exercício.

Portanto adotar os parâmetros estabelecidos pelo sistema regional de proteção é estabelecer diálogos
entre jurisdições, sendo o entendimento do Sistema interamericano de Proteção o ponto de partida para o
avanço na seara dos direitos fundamentais envolvendo a comunição.

Compreender que a liberdade de pensamento constitui uma dupla dimensão uma individual e uma
coletiva nos leva a desaguar em um segundo posicionamento que para a formação do pensamento individual
e coletivo é imprescindível o amplo acesso a instrumentos de difusão de informação e opinião no meio social.

Dessa forma, os principais canais de telecomunicações no país exercem importante papel político e
democrático na formação e consolidação de opiniões, de modo que, adotar critérios normativos que estabe-
leça a finalidade e os limites para sua regulamentação é atuar na consolidação de uma mídia democrática e
ainda mais é garantir o pleno gozo da liberdade de expressão que exige um pluralismo de ideias, criticas e
informação sem os quais não há uma pluralidade democrática.

Assim consideramos que, a relação da liberdade de expressão e a democracia esta intrinsecamente


relacionada à difusão de pensamentos plurais e críticos, verdadeiros instrumentos de formação da opinião

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

pública e controle dos atos estatais. Portanto, não basta apenas conceder a livre comunicação pelos diversos
meios disponíveis, mas regulamentar a sua difusão é preterível, para que seja um verdadeiro instrumento
democrático e não uma ferramenta monopolizada por grandes grupos socioeconômicos.

REFERÊNCIAS

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2013. 782 f.

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GOMES, Luiz Flavio et al (Org.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito
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JURISPRUDêNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: direito à liberdade de


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355
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO


DEFICIENTE A DIREITOS FUNDAMENTAIS:
ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 –
LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS

Glauco Salomão Leite


Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre
em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade de Pernambuco (UPE). Membro
do grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq).

Dyego José Holanda Pessoa


Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino


Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Condições para Judicialização da política e direitos sociais no Brasil pós-
-Constituição de 1988; 1.1 Ativismo judicial como reflexo da judicialização e seu caráter multidi-
mensional no caso da LOAS; 2. A proteção deficiente à seguridade social e a atuação do STF; 2.1
Regulamentação do art. 203, v, CF e controvérsias acerca do critério de pobreza; 2.2 Análise de caso e
posicionamento inicial da corte: ADIn 1.232/DF; 2.3 Mudança de paradigma: Análise da reclamação
3805/SP e 4374/PE; 3. Inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade do art. 20, §3º, da
Lei 8.742/93 (LOAS);

INTRODUÇÃO

Desde a previsão constitucional, em 1988, acerca da assistência social, o universo jurídico não alcan-
çou um consenso quanto à sua aplicação. Mesmo após os embates e divergências que levaram à criação da
Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993 – Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) –, percebeu-se a necessi-
dade de judicialização da matéria em questão, seja pela inércia do legislativo, seja por sua proteção deficiente
ao direito balizado na carta magna.

A princípio, faz-se necessário destacar que adotaremos uma ótica voltada à judicialização das políticas
sociais e o ativismo judicial em seu plano multidimensional. Com relação à judicialização, é sempre per-
tinente fazer lebrar que após a promulgação da Constituição da República em 1988 tivemos salvaguardado
grande rol de direitos sociais, no entanto, o Estado muitas vezes deixa de criar o mínimo necessário para
cumprir tais direitos, surgindo a necessidade do cidadão interpelar o judiciário na busca da concretização do
que foi disposto na lei maior.

Com relação ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF), levando em consideração sua
crescente liberdade de atuação após o fim do regime militar, é necessária uma visão multidimensional de que
este ativismo não é o resultado puro e simples de uma atitude deliberada de juízes e cortes, mas sim, que ele

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

responde a uma pluralidade de fatores. Estes, por sua vez, influenciam e podem explicar o comportamen-
to mais ou menos ativista dos juízes e das cortes, levando em consideração fatores institucionais, políticos,
sociais e jurídico-culturais, presentes no momento da decisão. Neste caso, o interessante é observar que,
devido à mudança social, econômica e de composição da Corte que se deu durante o trajeto da celeuma, o
tribunal mudou seu posicionamento com relação ao critério de miserabilidade da Lei Orgânica de Assistência
Social (LOAS).

A mudança observada, portanto, sai de um viés positivista e auto contencioso e passa por um rede-
senho, que pode ser considerado ativista pela mudança de ótica adotada pela Corte. Em tempo, tal ressig-
nificação propõe uma adequação ao princípio da proporcionalidade, se ajustando a proibição de proteção
deficiente de modo que tenta respeitar os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, não sem
antes gerar um embate acerca do tema que se perpetua hodiernamente, como melhor detalhado no decorrer
deste trabalho.

1. CONDIÇÕES PARA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-


CONSTITUIÇÃO DE 1988.

Precipuamente, destaque-se que aqui se entende a judicialização como um fenômeno que ocorre
quando o Poder Judiciário é chamado a atuar em questões de repercussão política e social, não obstante que
o dever tradicional de elidir tais questões seja do Executivo e Legislativo. Nesse sentido, o que ocorre é uma
transferência de poder para órgãos judiciais, que decidem a seu modo a aplicação e o resultado de uma nor-
ma ou direito originariamente previstos por outro poder constituinte.

Mesmo sendo um acontecimento mundial, o caso brasileiro exibe suas particularidades, como bem
aponta Luís Roberto Barroso ao definir três causas de judicialização presentes no modelo institucional brasi-
leiro: i) redemocratização após promulgação da constituição de 1988; ii) a constitucionalização abrangente
trazida pela carta analítica; e iii) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – um dos maiores do
mundo.

A referida redemocratização pós-ditadura militar, além de ser amplamente estudada, é facilmente


constatada, sem maiores esforços, o que não poderia ser diferente ante o leque de direitos trazidos com a
atual Constituição. O renascimento do Judiciário se deu com o resgate da consciência da população sobre
seus direitos – agora constitucionalmente garantidos –, elevando quantitativamente à procura pelo judiciá-
rio. Some-se isto ao fato do poder ofertado ao Ministério Público e o crescimento da Defensoria Pública, que
cumprem especial papel com relação ao salvaguardo de direitos sociais e fundamentais de hipossuficientes.

Como segunda e terceira causa, respectivamente, temos a grande quantidade de matéria inseridas
no bojo da atual Constituição, o que rendeu ampla possibilidade de atuação do judiciário devido à politização
dos direitos e o abrangente sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que se caracteriza por ser
um híbrido dos sistemas europeu e americano.

1.1 ATIVISMO JUDICIAL COMO REFLEXO DA JUDICIALIZAÇÃO E SEU CARÁTER MULTIDIMENSIONAL NO


CASO DA LOAS.

Na mesma mão da judicialização, outro fenômeno crescente e cada vez mais perceptível no sistema
jurídico brasileiro, é o denominado Ativismo Judicial. Difere da judicialização justamente quanto à vontade
do magistrado: no ativismo há uma opção interpretativa sobre a constituição na intenção de ampliar ou não
seu alcance, enquanto a judicialização versa sobre um fato, uma provocação social, não sendo um exercício
deliberado de vontade do agente político.

Ocorre que a judicialização das políticas públicas no Brasil tem provocado, gradativamente, a trans-
ferência de poderes decisórios das instâncias políticas para o Poder Judiciário, elevando as possibilidades de
atuações ativistas pelo STF. Tal exercício expansivo de poderes políticos normativos exercidos por juízes e
tribunais se caracterizaria a partir da conformação das lacunas normativas aos princípios e valores consti-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tucionais. O caso da Lei Orgânica de Assistência Social - a partir deste ponto chamada de LOAS -, é um
emblemático exemplo de lacuna ou vácuo normativo que provoca o judiciário a decidir de maneira ativista, a
princípio pela ausência de norma, e posteriormente, pela proteção deficiente causada pelo critério de mise-
rabilidade imposto para fins de concessão do benefício.

Imperioso destacar que, ao falar de Ativismo Judicial, a ótica pertinente a ser adotada é quanto ao seu
caráter multidimensional. Tal complexidade é revelada de modo particular, na forma como as decisões ativis-
tas se manifestam, apresentando diferentes dimensões, consistindo em práticas decisórias multifacetadas e
contendo múltiplos indicadores para sua consecução. Assim define Campos (2014, p. 141), sobre o ativismo,
destacando essa pluralidade de dimensões:

(...) defino o ativismo judicial como o exercício expansivo, não necessaria-


mente ilegítimo, de poderes político-normativos por parte de juízes e cortes
em face dos demais atores políticos, que: (a) deve ser identificado e avaliado
segundo os desenhos institucionais estabelecidos pelas constituições e leis
locais; (b) responde aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais
e jurídico-culturais presentes em contextos particulares e em momentos his-
tóricos distintos; (c) se manifesta por meio de múltiplas dimensões de
práticas decisórias (Grifos do autor).

Partindo da diretriz de que o ativismo judicial não é o resultado puro e simples de uma atitude delibe-
rada de juízes e cortes, percebemos que ele responde a uma pluralidade de fatores que influenciam e podem
explicar o comportamento mais ou menos ativistas dos magistrados, devendo ser levados em consideração
fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais, presentes no momento da decisão. Neste caso, o
interessante é observar que, devido às mudanças sociais, econômicas e de composição da Corte que se deu
durante o trajeto da celeuma – interregno de aproximadamente vinte anos de debate -, o tribunal mudou seu
posicionamento com relação ao critério de miserabilidade da LOAS.

2. A PROTEÇÃO DEFICIENTE À SEGURIDADE SOCIAL E A ATUAÇÃO DO STF.

A Constituição Federal (CF), reconhecendo a centralidade da questão social no Brasil, cuidou de


amparar a assistência social, de modo a regulamentá-la autonomamente dentro do complexo de direitos
sociais disposto aos trabalhadores. A seguridade social tornou-se, assim, parte das garantias individuais, sen-
do constituída pela saúde, assistência e previdência social. Com essa inclinação, o constituinte acolheu, de
forma inédita, direitos importantes que consolidaram um período de conquistas, mas que não redundaram
necessariamente em efetivos ganhos à população.

Na verdade, a partir de tal disposição, iniciou-se uma nova etapa na busca da efetivação dessas garan-
tias, uma vez que a própria Constituição as condicionava à existência de legislação infraconstitucional. Foi o
caso do Benefício de Prestação Continuada (BPC), estatuído pelo art. 203, v, da CF1, que, tendo seus efeitos
condicionados à regulamentação legal, inaugurou um exaustivo processo de judicialização para a resolução
de questões concretas, durante o silêncio do legislador.

2.1. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 203, V, CF E CONTROVÉRSIAS ACERCA DO CRITÉRIO DE POBREZA.

O BPC foi criado pela CF de 1988 em substituição a outro benefício, o RMV - Renda Mensal Vitalícia
-, destinado à idosos e deficientes, mas que necessitava da comprovação do pagamento de, no mínimo, doze
contribuições ao INSS. Entretanto, com a instituição do BPC, afastou-se a dependência de contribuições

1  Art. 203, v, CF, in verbis: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à se-
guridade social, e tem por objetivos:
v- a garantia de um salário mínimo de benefício à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

anteriores, garantindo assim o benefício de um salário mínimo mensal aos idosos e pessoas com deficiência,
incapazes de prover seu próprio sustento ou de tê-lo provido por seus familiares.

O constituinte, preocupado com a mora da regulamentação legal, por meio do art. 59, do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias (ADCT), impôs ao Executivo a incumbência de, no prazo de seis meses,
após a promulgação da CF, enviar ao Congresso Nacional os projetos referentes à organização da seguridade
social e seus planos de custeio. Assim, uma vez aprovados, estes projetos teriam de ser implementados de
modo progressivo nos dezoito meses subsequentes2.

Entretanto, apesar disso, até 1991, apenas a Lei Orgânica da Saúde havia sido promulgada, sendo
vetados os demais projetos relativos à assistência e previdência social. A Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS - Lei nº 8.742), por sua vez, foi publicada apenas em dezembro de 1993, ou seja, passados mais de
cinco anos da promulgação da CF.

Em sua tese de doutoramento, Silva (2011, p. 24), nos lembra que “em razão da mora do Congresso,
o Poder Judiciário foi acionado por meio de vários mandados de injunção e ingressou como um ator impor-
tante, capaz de garantir aos futuros beneficiários um direito social assegurado constitucionalmente”.

Um dos primeiros acenos para esse quadro de protagonismo judicial do Supremo Tribunal Federal
(STF) evidenciou-se, quando, em novembro de 1993, foi impetrado junto ao Tribunal o Mandado de Injunção
(MI) nº 448/RS. Nele se discutia a questão da concessão do BPC aos impetrantes, pessoas com deficiência,
que alegavam não terem condições de prover seu próprio sustento ou de tê-lo provido por suas famílias, sen-
do incapazes para “o desempenho de atividades dentro do padrão considerado ‘normal’ para o ser humano”,
conforme consta no relatório do Ministro Marco Aurélio3.

Em setembro de 1994, o Tribunal, seguindo o voto do relator, deferiu, em parte, o pedido do MI no


sentido de reconhecer a mora do legislativo, de modo a dar ciência ao Congresso Nacional da necessidade de
regulamentação do dispositivo constitucional, como mostrado na ementa que segue:

MANDADO DE INJUNÇÃO. EXCLUSÃO DO INSS DA RELAÇÃO PRO-


CESSUAL. FALTA DE REGULAMENTAÇÃO DO INCISO V DO ARTIGO
203 DA CONSTITUIÇÃO. MORA DO CONGRESSO NACIONAL. Deferi-
mento, em parte, do mandado de injunção para reconhecer a mora do Con-
gresso Nacional, dando-se a este ciência para que seja regulamentado o inci-
so v do artigo 203 da Constituição Federal.

Passado este primeiro momento, no entanto, com a publicação da LOAS (Lei nº 8.742/93), teve
início uma longa discussão em torno do critério de pobreza por ela estabelecido, em seu art. 20, §3º. Tal dis-
positivo pontua que, in verbis:

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário mí-


nimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco)
anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manu-
tenção nem de tê-la provida por sua família.
§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência
ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um
quarto) do salário mínimo. (Grifos do autor)

Ocorre que, diante de tal proposição legal, foram apontadas inúmeras críticas, questionando-se in-
clusive a sua constitucionalidade, por se tratar de critério de pobreza demasiadamente rígido, inviável à afe-
rição da garantia disposta no art. 203, v, da CF. Desse modo, ao deixar desagasalhadas pessoas em premente

2  ADCT, art. 59, Parágrafo Único..


3  O Acórdão do MI nº 448/RS está disponível em integro teor em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=A-
C&docID=81821

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

condição de miserabilidade, o judiciário foi excessivamente provocado a se posicionar quando da aplicação


do dispositivo alhures mencionado.

2.2. ANÁLISE DE CASO E POSICIONAMENTO INICIAL DA CORTE: ADIN 1.232/DF.

A discussão acerca do critério de miserabilidade (§3º, art. 20) estatuído pela Lei nº 8.742/93 (LOAS),
se fez presente de forma intensa no cumprimento do controle de constitucionalidade difuso, vez que os
Juizados Especiais Federais receberam incontáveis ações, buscando a concessão do benefício, mesmo por
postulantes que se enquadravam acima critério estipulado (renda familiar per capita inferior à ¼ do salário
mínimo).

Nesse contexto, em 1995, insuflado pelo cenário de intenso combate ao dispositivo utilizado para
a concessão do BPC e acolhendo representação do Ministério Público Federal do Estado de São Paulo, o
Procurador Geral da República ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232/DF junto à Corte
Suprema, tendo por objeto o §3º, do art. 20, da Lei 8.742/93.

Nessa perspectiva, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto sobre a Reclamação 4.374/PE, de 2007 -
posterior, mas que trata do mesmo tema -, ao mencionar o histórico da concessão do benefício em comento,
fez interessantes considerações acerca da atuação dos juízes no cenário sobre o qual se instaurou a ADIn
1.232/DF, reconhecendo que:

O exame dos diversos casos revela um comportamento judicial peculiar, po-


rém muito comum. A análise histórica dos modos de raciocínio judiciário
demonstra que os juízes, quando se deparam com uma situação de incompa-
tibilidade entre o que prescreve a lei e o que se lhes apresenta como a solução
mais justa para o caso, não tergiversam na procura das melhores técnicas
hermenêuticas para reconstruir os sentidos possíveis do texto legal e viabili-
zar a adoção da justa solução4.

Voltaremos mais a frente a tratar sobre esta Reclamação e o posicionamento final do Supremo, mas,
de antemão, convém ponderar sobre as considerações do Ministro, que, ao analisar a atuação dos juízes,
compreende que a busca de técnicas hermenêuticas se dispõe ao particular reconhecimento do justo, o qual,
porém, é construído a partir de um contexto mais amplo. Nesse diapasão, é cabível apontar para o amadu-
recimento de um posicionamento ativista por parte da nossa Corte Suprema, mesmo porque a sua atuação
passa também a “responder aos mais variados fatores institucionais, políticos, sociais e jurídico-culturais
presentes em contextos particulares e momentos históricos distintos.” (Campos, 2014, p. 7).

De todo modo, voltando à discussão envolvida pela ADIn 1.232, faz-se mister pontuar os argumentos
centrais assinalados pelo Procurador Geral, quando situa o critério de pobreza empreendido pelo legislador
no §3º, do art. 20, da LOAS.

Na verdade, a preocupação maior do requerente foi a de provocar o Supremo quanto à interpretação


do critério de pobreza combatido, já que ainda não havia entendimento pacífico quanto à aplicação deste
como único critério ou se caberiam outras formas de comprovação da pobreza. E, seguindo a linha de argu-
mentação ventilada na peça vestibular do requerente, sustentou-se que configuraria patente inconstitucio-
nalidade a utilização desse como único critério, haja vista a abrangência do escopo constitucional ao dispor a
concessão de tal benefício a quem dele necessitasse.

Não obstante o voto do relator, Min. Ilmar Galvão, que acenou pela procedência da ADIn – compreen-
dendo outros meios de comprovação da pobreza para além do referido dispositivo legal –, em agosto de 1998,
o Tribunal decidiu pela improcedência da ação, seguindo o voto do Min. Nelson Jobim, o qual entendeu que
caberia “à lei dispor sobre a forma de comprovação [da pobreza],” acrescentando que “se a legislação resolver

4  O Acórdão da Reclamação 4374/PE está disponível em integro teor em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-


TP=TP&docID=4439489>

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

criar outros mecanismos de comprovação, é problema da lei”5. Tal inclinação demonstrou, no entanto, que a
compreensão da Corte seguiu o intento de estabelecer o campo da política como necessário para a fixação da
escolha do critério para a concessão do benefício.

Com essa decisão, a Corte acreditava ter pacificado o entendimento em torno do critério de miserabi-
lidade utilizado para a concessão do BPC. Contudo, a decisão não teve o efeito esperado, haja vista o próprio
voto do Ministro Sepulveda Pertence que já apontava a possibilidade de inconstitucionalidade por omissão de
forma parcial. Nessa perspectiva, diante de perenes controvérsias, foram empreendidas inúmeras reclama-
ções e recursos extraordinários por parte INSS, junto ao STF, em virtude do crescente número de concessões
do benefício.

Os juízes de primeiro grau, por sua vez, procurando um caminho para garantir o direito dos cidadãos
em situação de miserabilidade, passaram a adotar a interpretação de que tal critério não seria o único, de
modo que poderiam ser compreendidas outras formas de comprovação da pobreza, abrangendo, assim, pes-
soas com renda familiar mensal per capita inferior à ½ (metade) do salário mínimo.

As Reclamações nº 2.303/RS e 2.323/PR foram emblemáticas, nesse sentido, pois levaram a Corte a
retomar essa questão. Em ambas as reclamações ajuizadas pelo INSS, o que se discutia era a concessão do
benefício a postulantes que aferiam renda familiar mensal per capita inferior a ½ (metade) do salário míni-
mo, mas que apresentavam evidente condição de miserabilidade.

Todavia, a Corte Suprema, ratificando entendimento anterior, reconheceu o critério da renda familiar
per capita de até ¼ (um quarto) do salário mínimo como único a ser utilizado. Destarte, tomando como base
o princípio constitucional do prévio custeio6, juntamente com o binômio necessidade do beneficiário e capa-
cidade de arcar com os encargos, o Tribunal inviabilizou a concessão do benefício para àqueles que aferissem
renda mensal superior à fixada pela norma legal, em virtude da limitação de recursos do Estado.

2.3 MUDANÇA DE PARADIGMA: ANÁLISE DA RECLAMAÇÃO 3805/SP E 4374/PE.

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha sedimentado entendimento sobre a constitucionalidade e


a taxatividade do critério de miserabilidade estabelecido pela LOAS, insistentemente, as instâncias ordinárias
permaneceram concedendo o BPC, mesmo àqueles que aferiam renda familiar mensal per capita superior a
¼ (um quarto) do salario mínimo.

Estabelecendo uma nova alternativa ao pleito dos que buscavam a garantia constitucional, os juízes
de primeiro grau fixaram a interpretação de que o próprio legislador havia reinterpretado o critério de renda,
já que teria editado normas supervenientes que o levava ao patamar de ½ salário mínimo.

Com isso, legislações posteriores, ao estabelecer critérios mais flexíveis para a concessão de outros
benefícios – a partir da Lei 9.533/97, que autorizou o Executivo a conceder recursos aos Municípios com pro-
gramas socioeducativos, da Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola, da Lei 10.836/04, que instituiu o Bolsa
Família, entre outras –, acabaram viabilizando a concessão do BPC para além dos parâmetros estatuídos pela
LOAS.

Diante disso, verificando-se que as decisões do STF não deram fim às controvérsias, e tendo em vis-
ta a permanência das concessões e as consequentes reclamações do INSS, alguns Ministros – Ayres Britto,
Ricardo Lewandowski e Celso de Mello –, mesmo em sede de decisão monocrática, revisando seus posiciona-
mentos, negaram seguimento às reclamações do INSS. Nessa perspectiva, apontaram as reclamações como
via processual imprópria para o reexame do conjunto fático-probatório em que se basearam as instâncias
ordinárias para conceder o BPC.

5  O Acórdão da ADIn 1.232/DF está disponível em integro teor em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&-


docID=385451>.
6  Art. 195, §5º, da CF, in verbis: Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem
a correspondente fonte de custeio.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O divisor de águas para essa questão foi, no entanto, a Reclamação 3.805/SP, que redirecionou o
entendimento do Tribunal no sentido de apontar para a normatividade e a importância dos princípios cons-
titucionais, sobretudo, no que se refere à dignidade da pessoa humana, juntamente com o direito à saúde
e os direitos fundamentais, de uma forma geral. Inclusive, o próprio Ministro Gilmar Mendes, em seu voto
sobre a Reclamação nº 4374/PE - que ratificou o pronunciamento daquela -, quando se refere à mudança de
posicionamento empreendida a partir da primeira reclamação, reconhece que:

O exame atento de todo esse contexto me levou a muito refletir sobre o tema,
o que culminou em decisão proferida nesta Reclamação, em 1º de fevereiro
de 2007, na qual revi muitos posicionamentos antes adotados e passei a in-
deferir as pretensões cautelares do INSS, mantendo as decisões de primeira
instância que concediam o benefício assistencial em situações de patente
miserabilidade social7.

3. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL, SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE DO ART. 20, §3º, DA LEI


8.742/93 (LOAS).

A revisão da ADIn nº 1.232/DF passou, naturalmente, pelo curso das reclamações, que, de modo
geral, se propõem a reexaminar as decisões do STF, as quais servirão de parâmetro para o próprio ajuizamento
das reclamações. Nessa perspectiva, o processo interpretativo que confronta o ato impugnado (objeto da
reclamação), com a decisão da Corte tida como violada, sugere de pronto uma nova configuração do conteúdo
e abrangência dos parâmetros da decisão.

No caso ADIn em comento, a inconstitucionalidade por omissão de que foi alvo o §3º, do art. 20, da
LOAS, estruturou-se a partir de um estado de proteção deficiente do direito fundamental à assistência social.
Esse vazio legislativo impulsionou uma reação dos potenciais beneficiários que, em patente situação de mi-
serabilidade, buscaram o judiciário para preencher essa lacuna e garantir o acesso a um direito fundamental
reconhecido pela Constituição Federal.

Com isso, tem-se, por parte do legislador, uma violação da proibição de proteção deficiente a um di-
reito fundamental, que acaba gerando um estado de omissão inconstitucional. Nesse sentido, percebe-se que
a inconstitucionalidade por omissão advém não necessariamente da falta de norma, mas precipuamente de
uma atuação insuficiente do legislativo, que não atingiu devidamente o comando constitucional.

O princípio da proteção deficiente é um desdobramento do princípio da proporcionalidade, que pode


se configurar tanto sobre a inconstitucionalidade derivada de um ato excessivo do Estado, como de sua pro-
teção ineficiente a um direito fundamental, o que foi melhor esclarecido por Loss (2014) quando fala que:

O princípio da proibição da não suficiência assim como o da proibição do


excesso são faces da proporcionalidade. Diferenciam-se em razão da função
do direito fundamental tutelado: se tem função defensiva (negativa), caberia
aplicar a proibição de excesso, se tem função protetiva (positiva) ser-lhe-ia
aplicável a vedação à proteção deficiente. Em outras palavras, ele surge de
um dever de proteção imputado ao Estado (Legislativo e Judiciário) e dimi-
nui, consequentemente, a discricionariedade do legislador.

Isto posto, verifica-se que a alteração do entendimento sobre a constitucionalidade de determinado


dispositivo legal pode vir a se configurar tanto por meio de eventual modificação nas relações fáticas, quan-
to através de significativas mudanças de concepções jurídicas. No tocante ao dispositivo legal supracitado,
percebe-se que houve um contínuo processo de inconstitucionalização, por força de consideráveis alterações
não apenas no plano fático, de ordem socioeconômica, mas também no plano jurídico, através de sucessivas
7  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 4.374/PE – Pernambuco. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Pesquisa de
Jurisprudência, Acórdãos, 18 abril 2013. p. 11. Relatório. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-
TP=TP&docID=4439489. Acesso em:10/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mudanças e redefinições do critério de miserabilidade, com a edição normas supervenientes, por parte do
legislativo.

Demais disso, considerando os possíveis prejuízos do afastamento de aplicação da norma, a Corte Su-
prema optou pela inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade do dispositivo para evitar danos
ainda maiores aos que já se enquadravam no critério de renda estabelecido pela LOAS. Entretanto, com tal
disposição, permanecendo inalterada a norma, os postulantes que não se adequavam continuaram tendo de
provocar o judiciário para terem reconhecido o direito fundamental à concessão do benefício nos casos de
recusa do INSS.

Desse modo, embora não tendo tido o alcance esperado, por ainda persistir a necessidade de análise
do caso concreto, o processo de inconstitucionalização sofrido pelo §3º, do art.20, da LOAS foi resultado de
uma árdua construção hermenêutica que perpassou pelos mais diversos aspectos, considerando fatores de
ordem política, econômica, social, institucional e jurídico-cultural.

CONCLUSÃO

A atuação do Supremo Tribunal Federal, em particular, no que concerne à questão da concessão do


Benefício de Prestação Continuada (BPC), regulamentado pela Lei nº 8.742/93 (LOAS), pode ser utilizada
de modo bastante elucidativo para demonstrar o caminho percorrido pela Corte para a construção de deci-
sões ativistas, no debate sobre o protagonismo judicial do STF.

Para tanto, deve-se mencionar o preponderante papel da Constituição de 1988 na consolidação de


um ambiente político-institucional ensejador da atuação de um judiciário independente. Esse foi, na ver-
dade, o marco que concedeu o espaço para a conformação de relevantes transformações sociais, políticas,
econômicas e institucionais.

O Judiciário passou a dialogar de forma mais aberta com os demais poderes, integrando importante
função na efetivação de políticas públicas e na sedimentação do regime democrático no país. Nesse senti-
do, fazendo um paralelo com o tema e as decisões tratadas no presente artigo, verifica-se que o período da
Ditadura Militar teve visíveis reflexos sobre ambiente de atuação judicial, mesmo no pós-Constituição de
88, sobretudo, no campo constitucional, haja vista a continuidade de alguns Ministros que remanesceram
daquele período.

Num primeiro momento, demonstrando certa feição ao positivismo jurídico e abstenção sobre ques-
tões de cunho socioeconômico – ADIn nº 1.232/DF e MI nº 448/RS –, o STF se inclinou ao aspecto majori-
tário que envolvia o tema do BPC, de modo a conferir a última palavra ao legislativo para que este se posicio-
nasse acerca das controvérsias que envolviam o tema, no que Campos (2013, p. 6) chamaria de “ortodoxias
de autorrestrição judicial”. No entanto, na medida em que a democracia brasileira se consolidava e as insti-
tuições cumpriam o seus papeis, nossa Corte Suprema foi adquirindo maior autonomia, sendo provocada a
se posicionar diante de temas cada vez mais sensíveis à questões de relevo moral e social, que eram deixadas
de lado pelo Poder Legislativo.

Demais disso, há que se pontuar também o amplo catálogo de direitos fundamentais, que, somado
à força normativa e axiológica da própria Constituição, estabeleceu um importante espaço para defesa dos
interesses sociais e das garantias constitucionais. A partir daí, e com o fortalecimento da normatividade dos
princípios, o STF passou a atuar sobre os vazios legislativos, como no caso do BPC, de modo a considerar a
centralidade dos direitos fundamentais.

As decisões sobre as reclamações nº 3.805/SP e nº 4374/PE, nesse sentido, demonstraram um impor-


tante amadurecimento da Corte para a composição de técnicas intermediárias de decisão, compreendendo o
processo de inconstitucionalização como resultado natural de mudanças no plano fático e jurídico.

Assim, temos que o ativismo judicial protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal materializou-se
através de uma pluralidade de fatores, que levaram em consideração os mais diversos aspectos. No âmbito so-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

cial, configurou-se com o pleito dos postulantes em condições de miserabilidade; no plano político, a partir de
sucessivas edições normativas; no institucional, por meio das condições de possibilidade para uma atuação
judicial independente; e no campo jurídico-cultural, apreendeu a normatividade dos princípios, juntamente
com a centralidade dos direitos fundamentais. Diante disso, compreende-se que a constituição de um posi-
cionamento ativista por parte do STF se deu pela construção de uma perspectiva plural e multidimensional.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo judicial e Legitimidade democrática. Disponível em:

<:http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf>. Último acesso: em 24/10/2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232/DF – Distrito Federal. Relator:
Ministro Ilmar Galvão. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 27 agosto 1998. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=385451>. Acesso: 11/12/2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº 448/RS – Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Marco
Aurélio. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdãos, 05 setembro 1994. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=81821>. Acesso em: 08/12/2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 4.374/PE – Pernambuco. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Pes-
quisa de Jurisprudência, Acórdãos, 18 abril 2013. p. 05. Relatório. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4439489>. Acesso em:10/12/2015.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense.
2014.

________. Explicando o avanço do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. RIDB, ano 2, nº 8, 2013. Disponível
em: < http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/08/2013_08_07881_07961.pdf>. Acesso em: 28/09/2015.

LOSS, Marianna Martini Motta. Os fundamentos jurídico-constitucionais do direito à assistência social na análise
da jurisprudência do STF. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 11 dez. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuri-
dico.com.br/?artigos&ver=2.51312&seo=1>. Acesso em: 12/12/2015.

SILVA, Janaína Lima Penalva. Igualdade Sem Mínimos: Direitos sociais, dignidade e assistência social em um estado
democrático de direito - um estudo de caso sobre o Benefício de Prestação Continuada no Supremo Tribunal Federal.
Brasília, DF. 2011. P. 24. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9768/1/2011_JanainaLimaPenalva-
daSilva.pdf>. Acesso em: 05/10/2015.

SILVA, Valdeonne Dias da. Ativismo judicial e judicialização da política: meios de concretização


dos direitos fundamentais . Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4002, 16 jun. 2014. Disponível
em: <http://jus.com.br/artigos/28333>. Acesso em: 12/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA:


ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Glauco Salomão Leite


Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre
em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP);
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Faculdade Damas de Instrução Cristã
(FADIC). Membro do grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq).

Mirella Luiza Monteiro Coimbra


Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

Pablo Diego Veras Medeiros


Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Cortes como arena de disputa política; 2. A Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade nº 4.650/DF; 3. Ativismo judicial nos votos vencedores; 3.1 Breve introdução; 3.2 Votos dos
ministros; Conclusão; Refências.

INTRODUÇÃO

A expressão “ativismo judicial” é caracterizada por sua vagueza e complexidade. Ora é utilizada em
sentido pejorativo, o que é mais comum, ora apresenta um sentido progressista1. É dever, primeiramente,
superar a problemática da indefinição conceitual, devido a seu sentido positivo quanto a um protagonismo
judicial, tendo por fim a garantia dos fundamentais, especialmente das minorias, voltado para uma interpre-
tação mais proativa da Constituição Federal.

É indispensável perceber a prevalência do valor negativo quanto à dimensão ativista, haja vista que
a crítica a tal prática relaciona-se com os limites da jurisdição constitucional, bem como com a ameaça do
regime democrático e da distorção da concepção liberal clássica de separação dos poderes. Isso seria, justa-
mente, uma defesa do uso pejorativo da locução, um eufemismo utilizado pelos que advogam protagonismo
é sinônimo de excesso judicial em detrimento dos outros poderes.

De toda sorte, o enfrentamento do tema ao pressupõe a expansão das Cortes em outras esferas, o
que torna - por consequência - os integrantes do Poder Judiciário verdadeiros atores políticos. Por isso, é
imperiosa a percepção de que o ativismo judicial difere do fenômeno da judicialização da política. Assim,
a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e Tribunais, decorrente do próprio modelo
constitucional adotado, e não de uma vontade política dos integrantes da magistratura. Já o ativismo judicial
é uma “atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu

1  Cf. KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of “judicial activism”. California Law Review, Berkeley, CA, v. 92, n.
5, oct., 2004, p. 1.441-1477.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sentido e alcance” 2. Ele envolve uma atuação mais ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização dos
valores e fins constitucionais, com maior interferência no campo de atuação dos demais poderes.

Nesta perspectiva, para além de seu tradicional papel contramajoritário, tem-se destacado que o
STF também apresenta um papel representativo e, até mesmo, iluminista. Segundo o Min. Roberto Barroso,
“as cortes constitucionais em geral e o Supremo Tribunal Federal em particular, desempenham três papéis
distintos. contramajoritário, representativo e iluminista.”3. O papel representativo, continua o autor, quando
as Cortes atuam para “atender demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Le-
gislativo, bem como para integrar (completar) a ordem jurídica em situação de omissões inconstitucionais
do legislador.”4 Adotando essa linha de pensamento, o referido ministro citou, como exemplo, a decisão que
proibiu a nomeação dos parentes em cargos públicos. Apesar das cobranças sociais, verificou-se que houve
uma omissão legislativa e, por consequência, o Tribunal extraiu a proibição do nepotismo dos princípios cons-
titucionais de moralidade e de impessoalidade administrativas.

Ao referir-se ao papel iluminista, o Min Roberto Barroso afirmou que os juízes:

Devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios


e empurrar a história. São decisões que não são propriamente contramajori-
tárias, por não envolver a invalidação de uma lei específica; nem tampouco
são representativas, por não expressarem necessariamente o sentimento da
maioria da população.5

Exemplos de atuação iluminista das Cortes podem seriam a decisão da Suprema Corte americana
que aboliu a segregação racial nas escolas públicas; a da Corte Constitucional da África do Sul, que baniu a
pena de morte; e a do STF no caso das uniões homoafetivas.

1. CORTES COMO ARENA DE DISPUTA POLÍTICA.

Em julho de 2013, foi criado um grupo de trabalho destinado a estudar e apresentar propostas re-
ferentes à Reforma Politica, sob a coordenação do deputado Cândido Vacarezza. Em treze reuniões, foram
debatidos os temas do sistema eleitoral, financiamento partidário e de campanhas eleitorais, unificação das
eleições, tempo de mandato e fim da reeleição, voto obrigatório ou facultativo, cláusula de desempenho par-
tidário, fidelidade partidária, abuso de poder político e econômico, filiação partidária e criação de partidos,
representatividade das unidades da Federação na Câmara dos Deputados e limitação dos gastos com propa-
ganda de rádio e televisão.

A partir da CF/88, foi dado destaque à questão do financiamento de campanhas eleitorais. O seu art.
17, inciso II, fixa a proibição de os partidos políticos receberem recursos financeiros de entidade ou governo
estrangeiro. Já o §3º, do referido artigo, afirma que os partidos políticos têm direito aos recursos do fundo
partidário e acesso gratuito a rádio e televisão, gerando a constitucionalização de modalidades de financia-
mento público direto e indireto.

Ao abordar do financiamento, Daniel Zovatto destaca que a maioria dos países da América Latina pos-
suem o financiamento misto de campanhas eleitorais. Um exemplo de financiamento estritamente privado
é a Venezuela; nenhum país na referida região possui o financiamento apenas público. Em alguns países, a
distribuição de fundos públicos partidários ocorre proporcionalmente e em outros países há a distribuição de

2  BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Mi-
randa; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição & ativismo judicial: limites e possibilidades da norma
constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 279.
3  BARROSO, Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em <http://www.
conjur.com.br/2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-ativismo-judicial-barroso> Acesso em 07/12/2015.
4  Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em <http://www.conjur.com.
br/2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-ativismo-judicial-barroso> Acesso em 07/12/2015.
5  Luís Roberto Barroso, 2015. Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em <http://www.conjur.com.
br/2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-ativismo-judicial-barroso> Acesso em 07/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

fundos de maneira igualitária entre todos os partidos. Para o autor6, não há sistema único para todos os países
da América Latina, haja vista que cada país necessita aplicar seu próprio sistema conforme sua cultura. No
Brasil, o modelo até então prevalecente vinha sendo financiamento de campanhas eleitorais em parte por
recursos públicos.

O financiamento privado de campanhas eleitorais foi discutido na ADI nº 4.650/DF, em que se ques-
tionou a participação de pessoas jurídicas nessa relação de construção do ambiente político. A apreciação da
ADI 4.650/DF configura inegável judicialização da política. Caso esse que dos onze ministros do STF, oito
concordaram com o autor da ação e declararam a inconstitucionalidade dos dispositivos que permitiam a
participação de pessoas jurídicas no financiamento de campanhas eleitorais. Daí surge a controvérsia, qual
seja, se a Corte teria a legitimidade de se posicionar sobre a temática, haja vista que o locus ideal de discus-
sões sobre questões preponderantemente políticas seria o Poder Legislativo.

É bastante significativo compreender que essa decisão da Suprema Corte, com efeitos erga omnes, se
configura como resultado de um quadro crescente de judicialização da política, o que suscita dúvidas sobre
sua legitimidade democrática. Um argumento utilizado para afrontar essa legitimidade foi fundamentado na
teoria clássica da separação dos poderes. Assim, o STF estaria invadindo a esfera deliberativa de outro poder,
sob o argumento de agir em defesa do texto constitucional.

2. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.650/DF.

A ADI nº 4.650/DF foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com
fundamento no art. 103, VII, e apontou a inconstitucionalidade de vários dispositivos da Lei das Eleições
(Lei 9.504/1997), tais como arts. 23, 24 e 81, e da Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995), nos seus arts.
31, 38, 39, os quais tratam de contribuições de pessoas jurídicas e pessoas físicas para campanhas eleitorais.

A fundamentação construída pela OAB se subdividiu em quatro argumentos: 1. que eleições e poder
econômico formam uma mistura tóxica à democracia; 2. que os dispositivos ferem o princípio da igualdade;
3. que violam o princípio democrático, 4. E atingem o princípio republicano.

De acordo com o primeiro argumento, o sucesso de uma campanha política está necessariamente vin-
culado à capacidade de o candidato ventilar seu nome e imagem, o máximo possível, em meio ao eleitorado.
Para isso, são necessárias a aquisição de espaços nas mais variadas mídias e veículos de publicidade - outdo-
ors, panfletagem, carros de som, blogs na internet e redes sociais -, aluguel de imóveis e veículos, contratação
de cabos eleitorais e marqueteiros, o que demanda grandes somas de dinheiro. Essa vinculação entre capital
e processo eleitoral engendra um resultado de cartas marcadas, pois eternizam candidatos que ou possuem
grande capacidade financeira pessoal ou têm acesso a canais de financiamentos e a contatos - empresários e
empresas - que os candidatos mais pobres não têm, para auferir os recursos necessários à campanha.

Ainda nesse ponto, a petição do Conselho Federal da OAB traz o argumento de que essas vinculações
econômicas entre candidatos - já mandatários ou futuros - e o empresariado em geral vai além de crenças
políticas desapegadas de resultados, desses últimos em relação aos primeiros. Como mostra o seguinte trecho
da petição inicial: “Além disso, dita infiltração cria perniciosas vinculações entre os doadores de campanha e
os políticos, que acabam sendo fonte de favorecimentos e de corrupção após a eleição”7

A peça ainda faz referência à palavras proferidas pelo Ministro Luís Roberto Barroso em Seminário
sobre a Reforma Política, que afirmou:

6  ZOVATTO, Daniel. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Latina: uma análise comparada Disponível em <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762005000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt> Acesso em 16/11/2015.
7  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/4650-1977686879-1794267.
pdf>. Acesso em 01/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

a conjugação de campanhas milionárias e financiamento privado tem produ-


zido resultados desastrosos para a autenticidade do processo eleitoral e para
a transparência das relações entre o Poder Público e os agentes econômicos8

Salienta o autor da ADI que essas vinculações sombrias conservam interesses entre financiadores de
campanhas, partidos políticos e candidatos a cargos eletivos, tendendo a se tornar uma fonte potencial de
corrupção nas instituições públicas. Os investidores visam gozar de preferências e privilégios em contratos
com os entes públicos, enquanto os dois últimos, além dos cargos em si considerados e o poder inerente ao
exercício das funções, miram o dinheiro da corrupção. Essa simbiose traz resultados nefastos ao modo como
a coisa pública é gerida. Com isso, os interesses particulares são priorizados em detrimento do interesse pú-
blico. Na referida ADI, pede-se, portanto, que seja declarada a inconstitucionalidade da capacidade de pesso-
as jurídicas participarem do jogo democrático, pois injeta interesses não pessoais, mas puramente monetários
nas campanhas eleitorais.

No segundo tópico argumentativo, da violação da igualdade, o Conselho Federal da OAB defendeu que
o princípio da igualdade, uma das do constitucionalismo democrático, não deve ser admitido como existente
um dado a priori. Na verdade, deve-se partir da premissa de que de nos encontramos em um ambiente de
grande desigualdade e, somente a partir disso, busca-se extinguir essas diferenças com atitudes diferentes
para pessoas social, política e economicamente diferentes.

Nesse diapasão, refere que o regime de financiamento de campanhas eleitorais agride violentamente
esse princípio, por reforçar diferenças entre ricos e pobres, fomentando privilégios. Isso se dá por permitir
que empresários, e grupos de empresários, deem o tom das eleições quando agem através de suas empresas,
com doações vultosas que o cidadão não possui capacidade de equiparar.

Dessa forma, os mais abastados financeiramente perpetuam-se no poder, convertendo quase que
automaticamente poder econômico em poder político. Esses movimentos excluem da política os candidatos
mais pobres, o que seguramente torna a política um ambiente reservado aos detentores do capital financeiro.
Mais ainda, o interesse público se transmuta em interesse dos particulares que são controladores das mes-
mas empresas que financiaram as campanhas. A res publica torna-se, nesse caso, essencialmente particular.
Como expressa o seguinte trecho da ADI 4.650/DF: “A elite econômica se mantém como tal não pela via da
concorrência legítima no mercado econômico, mas através da conversão dos governos em instrumento de
realização de seus interesses.”9

Além disso, o Conselho Federal da OAB defendeu que as pessoas jurídicas e físicas não são iguais
diante da política, pois as primeiras são entidades artificiais criadas pelo Direito com o fim de facilitar o trá-
fego jurídico e social, não devendo possuir a faculdade de competir com a vontade das pessoas naturais. A
legislação vergastada transforma esse desequilíbrio econômico fático entre grandes empresas e pessoas físi-
cas em lei. Assim, para a entidade, o direito de influir no processo político-eleitoral deve ser reservado àquele
que possui direitos políticos, ou seja, a pessoa física apenas, como delineia o trecho:

A doação para campanhas ou partidos se insere no sistema integrado pelos


direitos políticos, que são restritos ao cidadão: não se trata de direito indivi-
dual, passível de ser estendido também às pessoas jurídicas.10

Dessa maneira, defende que o principio constitucional da igualdade é diretamente ofendido pela le-
gislação atacada, e em múltiplas dimensões.

8  Luis Roberto Barroso. A Reforma Política: Uma Proposta de Sistema de Governo, Eleitoral e Partidário para o Brasil. In: http://
www.luisrobertobarroso.com.br, Acesso em 06.07.2011.
9  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arqui-
vos/4650-1977686879-1794267.pdf>. Acesso em 01/12/2015.
10  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arqui-
vos/4650-1977686879-1794267.pdf>. Acesso em 01/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O terceiro argumento foi o de que o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas viola
o princípio democrático. A fundamentação adentrou o campo de que o princípio democrático é considerado
uma espinha dorsal da Carta Magna de 1988 e pressupõe a igualdade entre todos os eleitores, pelo fato de
cada voto carregar o mesmo valor - one man, one vote -.

Pontuou-se que o princípio democrático delineia o princípio majoritário “segundo o qual, diante de
desacordos políticos, deve prevalecer a vontade da maioria, desde que não implique em ofensa aos direitos
da minoria.”11 Continuou o autor da ação sustentando que se não há igualdade fática no processo eleitoral, a
democracia se apequena face às elites, tornando-se uma aristocracia. Quando não, em situação semelhante,
se converte em uma “plutocracia”, quando a esfera política é subjugada à esfera econômica. O que deve ser
construído são limites à participação no processo eleitoral, de forma a garantir o justo exercício da cidadania.
Esses limites devem ser criados de forma que a esfera política esteja apartada do dinheiro e dos interesses
econômicos das empresas que não devem gozar do direito de intervir no processo de construção da demo-
cracia do país.

Em resumo, o sistema brasileiro de financiamento de campanhas, em fran-


co descompasso em relação aos valores igualitários da Carta da República,
infunde elementos fortemente plutocráticos na nossa jovem democracia, ao
converter o dinheiro no ‘grande eleitor’12 13

Por fim, como quarto argumento, o Conselho Federal da OAB trouxe à luz a violação ao princípio
republicano. Esse princípio está presente nos artigos 1º, ‘caput’, e 3º, da Carta Magna de 1988. O referido
princípio, segundo o autor, não se encerra simplesmente na indicação da forma de governo - temporário e
representativo, antagônico à monarquia -, mas torna imperiosa a observância de que aqueles que gerem a
coisa pública, não o fazem em nome próprio ou, muito menos, em razão de interesses pessoais. Na verdade,
os mandatários o fazem em nome de toda a coletividade, pois a esses últimos pertence a res publica.

Nesse sentido, buscou demonstrar que tal princípio não se compatibiliza com a legislação que disci-
plina o procedimento eleitoral. Embora, em número, as doações particulares são maiores, o que se verifica ao
passar das eleições é que a representatividade no valor total arrecadado é quase em sua totalidade dominado
por doações realizadas por poucas empresas, com grande capacidade financeira.

Outrossim, verificou-se que a simples disposição legal presente no art. 31, VII, da Lei. 9.096/95,
proibindo a doação por empresas concessionárias de serviços públicos, possui pouca efetividade em razão da
grande promiscuidade existente entre os atores políticos, devedores de dinheiro, e os atores econômicos, cre-
dores de ‘favores’. Apesar disso, a petição cuida em deixar claro que não toma como premissa a hipótese de
que os mandatários agem sempre em desacordo com a lei, mas, por outro lado, acredita que a atual legislação
deixa uma lacuna frutífera a esse tipo de comportamento antirrepublicano.

Dessa forma, deixa claro que a interpretação dos princípios constitucionais não se exaure com a leitu-
ra dos enunciados presentes na Carta Maior. Envolve necessariamente uma análise do mundo fático de que
trata o texto em questão, como assevera no seguimento:

Na hipótese presente, o campo empírico fornece indicações eloquentes de


que o modelo de financiamento de campanhas adotado pelo legislador brasi-
leiro vem comprometendo a eficácia social do Princípio Republicano, exigin-
do providências no âmbito da jurisdição constitucional, daí a inconstitucio-

11  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arqui-
vos/4650-1977686879-1794267.pdf>. Acesso em 01/12/2015.
12  Cláudio Weber Abramo, Um mapa do financiamento político nas eleições municipais brasileiras de 2004, apud Petição Inicial
da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/4650-1977686879-1794267.
pdf>. Acesso em 01/12/2015
13  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arqui-
vos/4650-1977686879-1794267.pdf>. Acesso em 01/12/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

nalidade das normas ora impugnadas em relação aos artigos 1º, ‘caput’ e 3º,
da Carta Maior.”14

3. ATIVISMO JUDICIAL NOS VOTOS VENCEDORES.

3.1 BREVE INTRODUÇÃO.

O STF em sessão do dia 17 de setembro de 2015, pôs um ponto final ao julgamento da ADI 4.650/DF.
Oito membros da Corte deliberaram no sentido de que o financiamento privado de campanhas por empresas
é inconstitucional, declarando, por conseguinte, a invalidade das normas que autorizavam a participação
pessoas jurídicas nesse patrocínio.

De agora em diante, o intuito do presente trabalho é identificar o protagonismo no voto do relator e


expor pontos congruentes nos votos daqueles que acompanharam.

3.2 VOTOS DOS MINISTROS.

Ministro Luiz Fux

No voto do relator da ação, encontramos diversos pontos que podem ser entendidos como ativistas,
alguns deles - inclusive - estão claramente identificados como ativistas, pelo citado magistrado.

Logo no começo do voto, Fux explica que a partir da promulgação da Constituição de 1988, o país
experimenta seu momento de maior estabilidade institucional, com redução das desigualdades sociais e esta-
bilização econômica com o fim da hiperinflação, dentre outras conquistas relevantes. Porém, ainda segundo o
relator, tais avanços não extirparam algumas patologias crônicas ainda entranhadas na democracia brasileira.
Em suas palavras, uma correção desses “desvios e disfunções” demanda por uma reforma política urgente.

Reconhece que há um descolamento entre a classe política e a sociedade civil e destaca:

Existe verdadeiramente uma crise de representatividade no país, colocando


em lados opostos os cidadãos, que a cada dia se tornam mais céticos em rela-
ção aos agentes eleitos, e os membros da classe política, que não raras vezes
privilegiam interesses particulares em detrimento do interesse público.15

O relator traz alguns dados estatísticos para corroborar seu voto, mostrando que houve um cresci-
mento dos gastos com campanhas eleitorais entre 2002 e 2012 na ordem de 471%. Tratando em valores, em
2002 foram gastos com campanhas políticas aproximadamente R$798 milhões de reais, enquanto em 2012,
foram gastos R$4,5 bilhões. Para que se tenha uma percepção dessa escalada, no mesmo período a inflação
acumulada foi de 78% e o crescimento do PIB, 41%, demonstrando que não há uma justificativa razoável
para uma ampliação tão maciça.

O Min. Luiz Fux trata, também, de explicar a legitimidade do STF para julgar a ação, especialmente
tendo em vista que Advocacia Geral da União que o financiamento de campanhas é assunto de alto teor po-
lítico e que uma interferência judicial nessa temática afrontaria o principio da separação dos poderes. Para o
relator, o locus ideal do debate político e da reforma política é, de fato, o Parlamento:

14  Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.br/arqui-
vos/4650-1977686879-1794267.pdf>. Acesso em 01/12/2015.
15  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em <http://www.stf.jus.
br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4650relator.pdf> Acesso em 10/10/2015.

370
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Disso, porém, não decorre uma interdição completa do exercício da jurisdi-


ção constitucional e uma deferência cega do juiz constitucional com relação
às opções políticas feitas pelo legislador (judicial self-restraint).16

Ainda embasando o seu voto, o Min. Luiz Fux diz não lhe parecer inerente ao regime democrático, em
geral, e à cidadania, em particular, a participação política por pessoas jurídicas, cabendo exclusivamente às
pessoas naturais três modalidades de atuação cívica: o direito de votar (ius suffragii); o direito de ser votada
(jus honorum); e o direito de influir na formação da vontade política através de instrumentos de democracia
direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de leis.

Por fim, cabe destacar trecho do voto, que arremata:

Por suas próprias características, tais modalidades são inerentes às pessoas


naturais, afigurando-se um disparate cogitar a sua extensão às pessoas jurí-
dicas. Nesse particular, esta Suprema Corte sumulou entendimento segundo
o qual as “pessoas jurídicas não têm legitimidade para propor ação popular”
(Enunciado da Súmula nº 365 do STF), por essas não ostentarem o status
de cidadãs.17

Ministro Joaquim Barbosa

O então Min. do STF, Joaquim Barbosa afirma em seu voto que:

A permissão para as empresas contribuírem para campanhas e partidos pode


exercer uma influência negativa e perniciosa sobre os pleitos, apta a compro-
meter a normalidade e legitimidade do processo eleitoral, e comprometer a
independência dos representantes.18

Para ele, além de vínculos pouco republicanos, a vedação ao financiamento de campanhas por pes-
soas jurídicas é instrumento necessário ao equilíbrio dos partidos políticos, para que possuam paridade de
armas no pleito eleitoral, continuando:

o risco do sistema vigente é criar um desequilíbrio entre os partidos, basea-


do na relevância dos recursos financeiros dispendidos no processo eleitoral.
Alguns empreendimentos, disse, estão interessados na atuação econômica
do Estado e em dispositivos regulatórios, e esperam que essas regulações
venham a se subordinar a seus interesses.19

Ministro Dias Toffoli

De acordo com o Min. Dias Toffoli, não se verifica na Carta Magna nenhum dispositivo que permita
a participação de pessoas jurídicas no processo eleitoral.

16  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em <http://www.stf.jus.
br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4650relator.pdf> Acesso em 10/10/2015.
17  Integra do Voto de Luiz Fux, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº4.650/DF, 2013. Disponível em <http://www.stf.jus.
br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4650relator.pdf> Acesso em 10/10/2015.
18  Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI 4.650 Disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/9/
art20150917-04.pdf> Acesso em 08/10/2015
19  Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na ADI 4.650 Disponível em <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/9/
art20150917-04.pdf> Acesso em 08/10/2015

371
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Não há nada na Constituição Federal de 1988 que justifique a participação


das pessoas jurídicas no processo eleitoral brasileiro, em qualquer fase e de
qualquer forma.20

Arremata no sentido, inclusive, da proibição, interpretando o art. 14, §9 da Carta Maior:

Qualquer deliberação sobre o sistema de financiamento de campanhas deve


preservar o eleitor da influência do poder econômico, argumentou o minis-
tro. Prova disso é que a Constituição Federal, em seu artigo 14 (parágrafo 9º)
fala em proteção da normalidade e legitimidade das eleições contra ‘a influ-
ência do poder econômico.21

Ministro Luís Roberto Barroso

É necessário analisar alguns fundamentos mais marcantes no voto do Min. Luis Roberto Barroso.

O Ministro iniciou seu voto perpassando o mesmo terreno que o relator, tratando sobre o crescimento
institucional do Poder Judiciário em decorrência da judicialização da política. Ressaltou que, hoje, no Brasil,
o Poder Judiciário vive um momento de grande credibilidade perante a opinião pública.

No decorrer de seu voto, sustenta, assim como o Min. Luiz Fux, que o local ideal de debate do tema
Reforma Política é o Parlamento. Entretanto, o poder econômico acaba devorando o interesse público, impe-
dindo com que matérias como essa avancem. Merece destaque um trecho particularmente ativista no voto
do Ministro, que diz “Em momentos como esse, cabe ao Supremo Tribunal Federal empurrar a história nesse
sentido.”

Finaliza o Min. Barroso, assumindo outra vez, uma atitude de protagonismo ante a inércia das ins-
tâncias majoritárias:

Existe uma outra competência que as Cortes Constitucionais desempenham,


que é a função de interpretar e procurar concretizar determinados anseios
da sociedade que estão paralisados no processo político majoritário. Por essas
razões, acaba sendo imprescindível a intervenção do STF, não contramajo-
ritária, mas representativa. É para fazer andar a história, quando ela tenha
parado.22

Ministro Marco Aurélio

O Min. Marco Aurélio defendeu em seu voto o posicionamento que o cidadão brasileiro merece uma
democracia em seu mais alto potencial de igualdade e participação, e não uma democracia fictícia, minada
em suas capacidades representativas por uma captura da esfera política pela esfera econômica, como mostra
o seguinte trecho:

Para mostrar-se efetiva como direito fundamental, a democracia precisa de-


senvolver-se por meio de um processo eleitoral justo e igualitário. Processo
governado por normas que o impeçam de ser subvertido pela influência do
poder econômico.23

20  Trecho do voto o Ministro Dias Toffoli na ADI 4.650. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/ADI_4650__Voto_Min__Dias_Toffoli.pdf> Acesso em 10/11/2015.
21  Trecho do voto o Ministro Dias Toffoli na ADI 4.650. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/ADI_4650__Voto_Min__Dias_Toffoli.pdf> Acesso em 10/11/2015.
22  Integra do voto do Ministro Luis Roberto Barroso Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/
uploads/2014/05/Voto-sobre-financiamento-de-campanha-ADI-46501.pdf> Acesso em: 10/10/2015
23  Trecho do voto do Ministro Marco Aurélio na ADI 4.650, Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/
anexo/ADI4650MA.pdf> Acesso em 10/11/2015.

372
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Para o tal Min., o processo eleitoral não pode permitir que a riqueza de poucos seja um obstáculo
intransponível ao exercício dos direitos políticos de muitos.

Ministro Ricardo Lewandowski

O atual presidente Corte deixou claro que a participação financeira de empresas no processo eleito-
ral desequilibrava candidatos, ferindo o princípio da Igualdade.

O financiamento de partidos e campanhas por empresas fere profundamente


o equilíbrio dos pleitos, que nas democracias deve se reger pelo princípio do
‘one man, one vote’. A cada cidadão deve corresponder um voto, com igual
peso e idêntico valor. As doações milionárias feitas por empresas a políticos
claramente desfiguram esse princípio multissecular, pois as pessoas comuns
não têm como contrapor-se ao poder econômico.24

Ministra Rosa Weber

De acordo com a Min. Rosa Weber:

o financiamento de campanhas eleitorais e partidos políticos é uma questão


delicada, de difícil equacionamento. A face real do problema é sombria, e não
há um sistema perfeito ou ideal que possa afastar possibilidade de fraude25

Continuou, tratando que

o artigo 14, §9º, da Lei Maior oferece densidade normativa suficiente para o
controle da constitucionalidade dos dispositivos questionados.

Ao citar essa disparidade entre os candidatos a cargos políticos, gerada pela participação destacada do
capital nas campanhas eleitorais, a Ministra reforça que essa intromissão culmina por transformar o pleito
eleitoral em um “jogo de cartas marcadas”.

Ministra Cármen Lúcia

A Min. Cármen Lúcia delineou seu voto, utilizando o parágrafo único do art. 1º da CF26: “No processo
eleitoral, na democracia representativa ou semidireta, povo é quem elege e pode ser eleito, quem vota e pode
ser votado”.

Para a Min., os princípios da paridade de armas e da igualdade restam violados por força da infiltração
excessiva do capital, o que desequilibra tanto os partidos políticos quanto os candidatos a cargos eletivos.

Acrescenta que essa contribuição financeira por vezes é reembolsada pelas pessoas jurídicas - que
contribuíram na fase de campanhas - em razão de privilégios com os atores políticos, agora eleitos.

CONCLUSÃO

Com a propositura da ADI 4.650/DF, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB, o Poder Judiciário foi
provocado a se posicionar sobre o tema do financiamento privado de campanhas eleitorais por pessoas jurí-
dicas.

24  Trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 4.650 Disponível em <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,-
MI198481,81042-Maioria+do+STF+e+contra+doacoes+de+empresas+para+campanhas> Acesso em 05/10/2015
25  Trecho do voto da Ministra Rosa Weber na ADI 4.650, Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=300015> Acesso em 09/10/2015.
26  Art. 1º, parágrafo único, Constituição Federal de 1988: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”

373
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É necessário o entendimento de que o STF possui a legitimidade para tratar da matéria, como abordou
pormenorizadamente o relator, Min. Luiz Fux, em seu voto. Também se faz observa que a Corte não invadiu
a esfera dos outros poderes. Nesse sentido pontuou o Min. Luís Roberto Barroso que o STF não exerceu uma
postura acentuadamente contramajoritária, mas sim, representativa, a fim de concretizar valores e fins repu-
blicanos e constitucionais travados no processo legislativo, por interesses políticos e monetários.

No que tange ao protagonismo judicial, a Corte se tornou o local de deliberação - não o locus ideal mas
-, talvez o único, que demonstrou capacidade institucional e interesse em dar cabo à discussão. Assim, parece
legítimo ao Tribunal julgar a matéria mesmo que traga consigo grande teor político, não se diferenciando de
outras hipóteses de controle concentrado de constitucionalidade. Foi neste contexto que um comportamento
do Poder Judiciário mais proativo quanto à interpretação e aplicação do texto constitucional se fez necessário.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Cláudio Weber Um mapa do financiamento político nas eleições municipais brasileiras de 2004,
apud Petição Inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650 Disponível em: <http://www.oab.org.
br/arquivos/4650-1977686879-1794267.pdf>.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Ja-
cinto Nelson de Miranda; FRAGALE FILHO, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição & ativismo
judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011

_______.Judicialização não se confunde com ativismo judicial Disponível em <http://www.conjur.com.br/


2015-dez-07/judicializacao-nao-confunde-ativismo-judicial-barroso>

_______. A Reforma Política: Uma Proposta de Sistema de Governo, Eleitoral e Partidário para o Brasil. In:
http://www.luisrobertobarroso.com.br

Cf. KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of “judicial activism”. California Law Review,
Berkeley, CA, v. 92, n. 5, oct., 2004, p. 1.441-1477.

ZOVATTO, Daniel, 2005. Financiamento dos partidos e campanhas eleitorais na América Lati-
na: uma análise comparada Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-62762005000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

374
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO:


O CASO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA USO PRÓPRIO.

Glauco Salomão Leite


Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre
em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade de Pernambuco. Membro do
grupo Recife de Estudos Constitucionais – REC (CNPq).

José Raimundo Silva Neto


Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

Raphael Crespo Forne


Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Integrante do
Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO: INÉRCIA LEGISLATIVA E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA;

INTRODUÇÃO: INÉRCIA LEGISLATIVA E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA.

Após 1988 e com o início do processo de redemocratização do país o Supremo Tribunal Federal,
gradativamente, foi sendo provocado a se pronunciar sobre as mais variadas e complexas questões, compre-
endendo assuntos de elevada carga política, moral, econômica e social. De uma mera instância jurisdicional,
a Corte se transformou em um espaço público de deliberação, onde importantes e polêmicas controvérsias
têm sido decididas.

Através do exercício da jurisdição constitucional o STF proferiu decisões que transformaram o ce-
nário social e jurídico brasileiro, dentre elas: a declaração da constitucionalidade das pesquisas com células
tronco embrionárias, a proibição de livre mudança de partido após a eleição e, a mais consagrada pela mídia,
a equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis convencionais e direito ao casamento civil, essas
e muitas outras decisões conferiram a Corte um papel de protagonista, ou poderíamos dizer ativista, na pro-
moção de direitos fundamentais e na manutenção do sistema democrático, desta forma, muito além da casa
de debate sobre hermenêutica constitucional, o STF se tornou um palco de avanços sociais.

Paralelamente à série de ativismos da corte constitucional brasileira, o Congresso Nacional adotou


uma postura omissa diante da necessidade de deliberação de questões sociais emergentes. Essa inércia legis-
lativa1 decorre da impossibilidade dos representantes conseguirem chegar a um consenso a respeito de temas
controversos e, principalmente, por evitarem tomar decisões que irão acarretar um elevado custo político
devido a sua repercussão. A constante omissão legislativa somente acentuou a crise de representatividade
que tem ocorrido no cenário político nacional, essa crise está manifestada através indiferença, desprezo e

1  SALOMÃO, G. (2015, 01). INÉRCIA LEGISLATIVA E ATIVISMO JUDICIAL: a dinâmica da separação dos poderes na or-
dem constitucional brasileira. Biblioteca PPGD UNICAP. Retirado 12, 2015, de http://www.unicap.br/biblioteca/pages/wp-content/
uploads/2015/09/Processo-hermeneutica.pdf

375
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

desconfiança que a sociedade civil desenvolveu em relação ao seus representantes eleitos; A imagem é clara:
enquanto os deputados e senadores estão ocupados deliberando sobre financiamento eleitoral e distribuição
de cargos de confiança os projetos acerca de demandas sociais sensíveis ficam arquivados até um próximo
mandato.

Essa crise de representatividade e de funcionalidade da casa legislativa propiciou a expansão do po-


der judiciário, juízes e tribunais se tornaram mais representativos dos anseios e demandas sociais do que as
instâncias políticas tradicionais. Não obstante, com a ampliação do acesso à justiça pela carta magna de 88,
iniciou-se a cultura da judicialização de tudo no Brasil, o poder judiciário em matéria de resolução de conflito
passou de Ultima Ratio para Prima Ratio, por causa disso começaram a surgir os conhecidos casos difíceis2:
pode uma mulher pretender engravidar do marido que já morreu, mas deixou o seu sêmen em um banco de
esperma? Poderia uma pessoa, nascida fisiologicamente homem, mas considerando-se uma transexual femi-
nina, celebrar um casamento entre pessoas do mesmo sexo com outra mulher? Ou, uma pessoa que estava
no primeiro lugar da fila, submeteu-se a um transplante de fígado. Quando surgiu um novo fígado, destinado
ao paciente seguinte, o paciente que se submetera ao transplante anterior sofreu uma rejeição e reivindicava
o novo fígado. Quem deveria recebê-lo?

Estes e outros casos difíceis foram levados ao STF nos últimos anos e nenhuma dessas questões
havia uma resposta pré-pronta e segura que pudesse ser colhida da legislação, assim, foi necessário que os
juízes construíssem uma solução a partir dos parâmetros fixados na norma, dos precedentes, da análise dos
elementos do caso concreto, da lógica e da jurisprudência de valores.

Dentro deste contexto de expansão do Poder Judiciário enquadra-se o conceito da chamada Judiciali-
zação da Política, que, segundo Tate Vallinder podem definidas de duas formas: (1) um procedimento em que
uma Suprema Corte assume atribuições que deveriam ter sido feitas, anteriormente pelos outros poderes,
como as políticas públicas. (2) Quando processos não judiciais são dominados e decididos perante métodos
e procedimentos judiciais. 3 Os autores também estabelecem condições para o desenvolvimento da judiciali-
zação da política, (conditions facilitating the expansion of judicial power)4:

(1) Democracia: empiricamente, nota-se uma dificuldade de desenvolvimento da judicialização da


política dentro de um ambiente antidemocrático, como foi observado, por exemplo, no Brasil, que apenas
após a redemocratização, pós Constituição de 1988, que foi ocorrer uma maior aproximação entre o povo e
o Poder Judiciário.

(2) Separação dos poderes: dentro de um regime autoritário, por exemplo, ocorre certa desorganiza-
ção dentro do princípio da separação dos poderes, tendo em vista o aumento dos poderes do Legislativo e do
Judiciário, a exemplo da subordinação de alguns direitos individuais à segurança nacional (COSTA, 2001,
p.165).

(3) Inefetividade das instituições majoritárias: essa condição enquadra-se diante da incapacidade
para provimento de certas demandas sociais pelas instituições majoritárias, que atuariam diante da inércia
dos políticos.

Tendo em vista que a transformação ou o surgimento de um conceito está associado à própria mo-
dificação da comunidade, e que uma das dimensões do mesmo tem a ver com o âmbito semântico, isto é, a
relação entre o conceito e a realidade retratada (CASSEB, 2012, p. 142), observa-se a importância de tais

2  BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políti-
cas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015 p. 23-50
3  Nas palavras dos autores: for clarity and consistensy, I follow Vallinder’s conceptual survey of the judicialization of politics ,
which suggests two core meanings for the:
1. the process by which courts and judges come to make os increasingly to dominate the making of public policies that had
previously been made (or, it is widely believed, ought to be made) by other governmental agencies, especially legislatures and
executives, and
2. the process by which nonjudicial negotiating and decision-making forums come to be dominated by quase-judicial (legalistic)
rules and procedures (VALLINDER, TATE, 1995, p. 28)
4  Condições analisadas no trabalho de Ernani (2004, p.117), que realiza ainda, a análise do uso dos tribunais por grupos de
interesse , uso dos mesmos pelos grupos de oposição e os direitos politicos.

376
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

conceitos à realidade do Ativismo Judicial, que se configura dentro de um contexto de crescimento do Poder
Judiciário, e da sua participação, principalmente pós década de 80, no caso do Brasil pós-redemocratização,
dentro de questões políticas.

1. ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO:

Diante das mais diversas formas de manifestação do ativismo judicial, uma delas torna-se reiterada
em meio às classificações dos diversos autores, que é a dimensão contramajoritária, que parte, basicamente
como pressuposto a hipótese de, dentro de um sistema democrático, uma Corte não eleita ter a prerrogativa
de declaração de inconstitucionalidade de uma decisão proveniente de instâncias majoritárias, eleitas pelo
povo. O modelo tornou-se aceito dentro do controle de constitucionalidade, principalmente sobre o argumen-
to da importância da efetivação de uma dimensão substantiva da democracia, que consiste na efetivação dos
direitos fundamentais, e a proteção à regra da participação de todos, já que se confere o Judiciário “o status
de sentinela contra a tirania das maiorias” (BARROSO, 2015, p. 36).

“The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics” foi publicado em 1962 por
Alexander Bickel, essa emblemática obra da doutrina constitucional americana tem como escopo compre-
ender o papel da Suprema Corte e demais tribunais sistema político, defendia que sua atuação se justifica-
ria pela proteção dos princípios fundamentais da sociedade. Além disso, Bickel reconheceu que o sucesso
da revisão judicial dependia da aceitação popular destas decisões. Para garantir o amparo público para sua
atividade e, ao mesmo tempo, desempenhá-la em acordo com estes princípios, a Corte deveria lançar mão
das chamadas “virtudes passivas”, técnicas doutrinárias que a permitem postergar a apreciação de questões
problemáticas até que a sociedade tenha tido tempo para lidar com elas.

Segundo Bickel, a “Judicial Review é uma força contramajoritária no sistema democrático” e conse-
quentemente, “uma instituição desviante na democracia americana”5. Quando a Corte invalida os atos dos
poderes sujeitos aos processos eleitorais, este controle é exercido “não em nome da maioria dominante, mas
sim contra esta”6, o que atribui à pequena minoria um poder de veto sobre a maioria. Acerca da revisão judi-
cial no Brasil o ministro Luís Roberto Barroso dispõe o seguinte: “Esse papel contramajoritário do Supremo
Tribunal Federal tem sido exercido, como é próprio, com razoável parcimônia. De fato, nas situações em
que não estejam em jogo direitos fundamentais e os pressupostos da democracia, a Corte deve ser deferente
para com a liberdade de conformação do legislador e a razoável discricionariedade do administrador. Por isso
mesmo, é relativamente baixo o número de dispositivos de leis federais efetivamente declarados inconstitu-
cionais, sob a vigência da Constituição de 1988”.7

A ideia de uma atuação contramajoritária das cortes constitucionais, na forma como desenvolvida
por Alexander Bickel, pressupõe uma atuação jurisdicional que afaste a normatividade do direito posto e
introduzido no ordenamento por intermédio dos representantes do povo, em prol de comando constitucional
que, nos moldes da narrativa da Carta Magna e não em sua literalidade, enleve preceitos valorativos. Esta
concepção, todavia, temo como pressuposto o fato de que o Parlamento efetivamente traduz, em seus posi-
cionamentos convolados em direito objetivo, os anseios e postulações sociais. Compreende-se o Parlamento
enquanto casa do povo, de sorte que decisão judicial em sentido reverso ao já delineado nos moldes do siste-
ma de elaboração de leis contrariaria a própria soberania do povo. Com base nesta ideia, podemos identificar
duas perspectivas da dificuldade contramajoritária8: a) aquela em que a invalidação de leis contraria posicio-
namento de congressistas; b) aquela em que a invalidação de leis contraria a opinião pública.

5  BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: The Supreme Court at the bar of politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill,
1962, p. 111-ss.
6  BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill,
1962, p. 16-18.

7  BARROSO, Luís Roberto. Reflexões sobre as competências e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídi-
co, 26 ago. 2014
8  Bickel se referiu, respectivamente: “counter-majoritarian force in our system”, “a deviant institution in the American democ-
racy”, “it thwarts the will of representatives of the actual people of the here and now”, “exercises control, not in behalf of the pre-

377
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A esta última hipótese denomina versão literal da dificuldade contramajoritária, corrobo-


rando a ideia de que quando o público dá suporte à decisão da Suprema Corte para anular uma lei, a decisão
não é contramajoritária em sentido literal. No entanto, ainda é contramajoritária em sentido tradicional, uma
vez que uma instituição derrubou uma lei aprovada por ramos governamentais eleitoralmente responsáveis.
No Brasil, como foi suscitado na introdução desta obra, existe um imenso abismo entre a sociedade civil e
seus representantes eleitos, em virtude desta crise de representação onze Ministros do STF (na verdade seis,
pois basta a maioria absoluta), que jamais receberam um voto popular, podem sobrepor a sua interpretação
da Constituição à que foi feita por agentes políticos investidos de mandato representativo e legitimidade
democrática. Esse cenário gerou uma aparente incongruência no âmbito de um Estado democrático e da
harmonia entre os poderes, e a, desta forma, tem-se configurado a dificuldade contramajoritária no sistema
democrático brasileiro.

2. ANÁLISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 635.659 DE SÃO PAULO.

O referido caso julga a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, relativo ao porte de dro-
gas para uso pessoal, que determina, in verbis:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer


consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia,
cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de
substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais,
bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas
pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput
deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas
comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais,
estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que
se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação
de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que
se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente
se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator,
gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial,
para tratamento especializado.

A presente análise terá como base o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, tendo como objetivo
a investigar a postura ativista ou autocontensiva do Tribunal, à luz do marco teórico do Ativismo Judicial
Contramajoritário.

vailing majority, but against it.”, “That, without mystic overtones, is what actually happens”. BICKEL, Alexander M. The least
dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1962, p. 16-18.

378
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

2.1 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

O voto do Ministro toma como base o controle de constitucionalidade e uso do princípio da propor-
cionalidade à luz do Tribunal Constitucional Alemão, estabelecendo os seguintes critérios para a análise da
constitucionalidade da lei supramencionada:

(1) Controle de evidência (Evidenzkontrolle): este controle consiste na visão de que somente poderá
considerar-se inconstitucional quando as medidas tornam-se inidôneas para a efetivação de um bem jurídico
fundamental, ou seja, medidas inadequadas ou insuficientes à proteção.

(2) Controle de justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle): esta etapa do controle evidencia o mo-


mento em que será avaliado se a decisão legislativa foi tomada após a apreciação objetiva e justificável de
todas as fontes de conhecimento disponíveis. Sendo assim, nesta etapa avaliar-se-á a inteiração no que diz
respeito às situações fáticas, sobre a declaração de prognósticos no que diz respeito às consequências de
atuação, e as técnicas procedimentais utilizadas.

(3) Controle material de influência (intensivierten inhaltlichen Kontrolle): esse controle parte do
princípio que as leis penais, por afetarem bens jurídicos de maior importância, devem ser submetidas a um
controle mais rígido do Tribunal, adentrando assim no próprio exame de ponderação do legislador. Examina,
portanto, se a medida interventiva em dado Direito Fundamental é, necessariamente, obrigatória do ponto de
vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes.

Observando-se a realidade do Tribunal Constitucional Alemão, que estabeleceu, durante muito tem-
po, um alto grau de importância a uma ordem objetiva de valores, e de procedimentos de ordem metodoló-
gica, a exemplo do próprio princípio da proporcionalidade, pode-se constatar que esses elementos propiciam
o desenvolvimento de um Tribunal ativista, sobre o argumento de que se expande a dimensão jurídica dos
direitos fundamentais, aumentando o poder de decisão dos tribunais, e, de certa forma, restringindo a liber-
dade legislativa. Tendo também, por consequência, o ônus da decisão, que seria a discordância das outras
instâncias políticas, e a própria reinvindicação por parte da sociedade (CAMPOS, 2014, p.105-106).

Ao analisar tais etapas do controle, o juiz encontra, em caso de inconstitucionalidade, incongruên-


cias na realização da norma pelo Poder Legislativo (instância majoritária), sendo assim, um juiz ativista. O
próprio Ministro menciona durante o voto, que o princípio da proporcionalidade atua como um limite à prer-
rogativa do Congresso Nacional de, discricionariamente, legislar em matéria penal, verificando-se uma não
deferência aos demais poderes 9.

2.2 CONCEITOS ESSECIAIS:

Para a maior compreensão do seu posicionamento, o ministro Gilmar Ferreira Mendes expõe concei-
tos semelhantes, porém com sentidos completamente diferentes, por vezes responsáveis por incompreensão.
São estes os conceitos de proibição, despenalização e descriminalização.

(1) Ao primeiro termo o Ministro atribui: “estabelecimento de sanções criminais em relação à produ-
ção, distribuição e posse de certas drogas para fins não medicinais ou científicos, no cenário internacional,
pode ser visto também como uma política de drogas estruturadas por leis penais”.

(2) À despenalização, busca-se o estabelecimento de sanções criminais, mas tirando do campo das
penas privativas de liberdade condutas a exemplo do porte drogas para uso pessoal.

9  Ao dissertar sobre a dimensão de não deferência aos demais poderes, Carlos Alexandre de Azevedo Campos expõe que a de-
ferência corresponde à latitude que as cortes permitem à discricionariedade, afirmando que um juiz ativista permite pouco dessa
latitude e, por isso, não encontra dificuldades, de fundo institucional, para afastar decisões de outros poderes e substituir pelas
próprias. O juiz exerce controle rígido de legitimidade sobre os atos dos demais poderes, minimizando standards como o da presun-
ção de constitucionalidade das leis.

379
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

(3) Já a descriminalização propõe uma exclusão das sanções criminais, propondo um deslocamento
das condutas para serem censuradas através de medidas administrativas.

A discussão á respeito do caráter ativista da corte, nestes pontos conceituais, gira em torno da dimensão
ativista de usurpação das esferas de outros poderes. Já que a competência para instituir sanções penais é compe-
tência do Congresso Nacional, o que estaria caracterizando o Supremo Tribunal Federal como um legislador po-
sitivo, já que estaria transformando a chamada despenalização, vigente no ordenamento, na chamada despena-
lização. Expõe-se o artigo 22, I, da Constituição Federal, in verbis: Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, especial.

3.3 CONTROLE DE EVIDÊNCIA ( EVIDENZKONTROLLE):

A primeira forma de controle e verificação de incongruências acontece dentro do debate da adequa-


ção da norma impugnada. Dentre as inadequações mencionadas pelo ministro, encontra-se a ausências de
critérios objetivos na distinção entre os usuários e os traficantes, fazendo com que um sistema penal repres-
sivo funcione apenas de acordo com aquilo que policial relata no auto flagrante, sendo indícios insuficientes
para a qualificação de penas extremamente distintas, o que constrói um quadro de extrema insegurança
jurídica.

Além disso, o Ministro expõe que o estabelecimento de medidas penais à condutas como a do porte
para uso pessoal, causa uma certa estigmatização, “neutralizando os objetivos do sistema nacional de política
sobre as drogas em relação aos usuários e os dependentes. O sistema expõe algumas medidas diferenciadas
para os usuários, com objetivos baseados na própria reinserção social, dentre eles estão os acompanhamen-
tos terapêuticos e observância das normas emanadas da CONAD. Assim versam os artigos 21 e 22 da lei
11.383/2006:

Art. 21. Constituem atividades de reinserção social do usuário ou do depen-


dente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas dire-
cionadas para sua integração ou reintegração em redes sociais.
Art. 22. As atividades de atenção e as de reinserção so-
cial do usuário e do dependente de drogas e respectivos fa-
miliares devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
I - respeito ao usuário e ao dependente de drogas, independen-
temente de quaisquer condições, observados os direitos funda-
mentais da pessoa humana, os princípios e diretrizes do Siste-
ma Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social;
II - a adoção de estratégias diferenciadas de atenção e reinser-
ção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos fa-
miliares que considerem as suas peculiaridades socioculturais;
III - definição de projeto terapêutico individualizado, orientado para a in-
clusão social e para a redução de riscos e de danos sociais e à saúde;
IV - atenção ao usuário ou dependente de drogas e aos respectivos familiares,
sempre que possível, de forma multidisciplinar e por equipes multiprofissionais;
V - observância das orientações e normas emanadas do Conad;
VI - o alinhamento às diretrizes dos órgãos de controle social de políticas
setoriais específicas.

4. CONTROLE DE JUSTIICABILIDADE (VERTRETBARKEITSKONTROLLE):

As segundas etapas da aplicação do princípio expõem que não existem estudos suficientes ou incon-
troversos que revelem ser a repressão ao consumo o instrumento mais eficiente no combate às drogas. Nesta
etapa o Ministro expõe alguns dados estatísticos que buscam comprovar indagações como, por exemplo, a
de que a criminalização do consumo tem pouco impacto dentro da decisão de consumir as drogas, sim d um
conjunto muito mais amplo de fatores. Dentre as diversas conclusões tiradas, uma delas é a de que o uso

380
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

indevido dos entorpecentes encontra o se cerne, muitas vezes, diante do contato precoce com o mundo da
ilegalidade e da violência, ligados até mesmo ao à condição de vulnerabilidade do próprio indivíduo diante da
sua família.

Além da questão supramencionada, o Ministro encontra anacronismos na elaboração da norma. As


normas que tratam das referidas questões datam do ano 1976, desconsiderando, muitas vezes, a nova reali-
dade do país, exemplo da condição de vulnerabilidade do próprio indivíduo, que necessitaria muito mais de
uma reinserção social, do que mesmo uma sanção criminal. O artigo 22, I, da li 11.383/2006 versa, in verbis:

Art. 22. As atividades de atenção e as de reinserção social do usuário e do


dependente de drogas e respectivos familiares devem observar os seguintes
princípios e diretrizes:
I - respeito ao usuário e ao dependente de drogas, independentemente de
quaisquer condições, observados os direitos fundamentais da pessoa huma-
na, os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacio-
nal de Assistência Social;

Uma transformação dentro que necessita de uma maior observação dos direitos essenciais de cada
pessoa, prejudicadas a partir do momento em que, por exemplo, traficante e usuário recebem qualificações
parecidas, desconsideradas, muitas vezes, as motivações.

5. CONTROLE MATERIAL DE INFLUÊCIA (INTENSIVIERTEN INHALTLICHEN KONTROLLE).

A última etapa da aplicação do princípio da proporcionalidade gira em torno de um debate entre dois
direitos imprescindíveis dentro do ordenamento jurídico brasileiro, adentrando propriamente na ponderação
do legislador, sendo eles: direito à segurança e à saúde pública em sede de perigo abstrato e o direito à auto-
determinação.

(1) Saúde pública e direito à segurança em sede de perigo abstrato: o Ministro defende que dentro
do conceito de saúde pública, pode-se falar de manifestações extremamente relevantes, até as manifestações
mais insignificantes, não podendo um bem jurídico tão importante ser tratado de uma forma tão genérica e
abrangente, sendo algo não passível de delimitação. A não delimitação de um conceito tão amplo dificulta
o seu enquadramento dentro de uma medida de natureza criminal. Sobre pena de punir-se gravemente o
irrelevante, ou punir-se brandamente o relevante.

(2) Autoderminação: segundo o ministro relator, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal
afeta a direito humano à liberdade e privacidade, que, por sua vez, afeta o direito à autodeterminação, já que
os direitos da personalidade são ao individuo as liberdade para decidiram como serão, inclusive no que diz
respeito a arriscar a sua própria saúde. Além disso, ainda menciona a questão da liberdade geral, que consta
na ideia de que só poderá haver restrições à autonomia da vontade a partir do momento em que existe uma
“finalidade de raiz Constitucional”. Outros argumentos constam na ofensa da própria dignidade da pessoa
humana, que pressupõe certa autonomia do indivíduo. Além dos argumentos supramencionados, o autor
alega “não se poder imputar ao traficante os malefícios da atividade ilícita”, “porém os efeitos estariam muito
afastados da conduta em si do usuário”, afastando essa questão do âmbito penal, já que geraria a necessidade
de relevância penal à autolesão.

CONCLUSÃO

Conclui-se que o papel das cortes, dentro do cenário brasileiro, por exemplo, vem aumentando bas-
tante quando se diz respeito a demandas relativas a questões morais e políticas, que competem originaria-
mente ao próprio Congresso Nacional, mas, porém, muitas vezes essas questões ultrapassam a esfera do
simples diferimento, ocupando-se de um encargo maior, que consta na efetivação dos direitos fundamentais
e da democracia em si, sendo esse o principal argumento para a legitimidade do Ativismo Judicial dentro de

381
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

um ambiente democrático. Dentro do voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, conclui-se que o ministro
se comporta de forma ativista, através do uso de questões metodológicas, a exemplo do princípio da propor-
cionalidade, que aumenta a dimensão jurídica dos direitos fundamentais restringindo a liberdade legislativa.
Dentro da análise do princípio o Ministro verifica claras incongruências da norma, além de propor o que
chamamos de descriminalização, apesar de dentro do ordenamento jurídico brasileiro viger o que chamamos
de despenalização, alteração esta que compete originariamente ao próprio Congresso Nacional.

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LIMA, Flávia Danielle Santiago. Ativismo e autocontenção no Supremo Tribunal Federal: uma proposta de
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382
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO


BRASIL:
UMA ANÁLISE DA ADPF 347

Glebson Weslley Bezerra da Silva


Graduando em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP. Extensionista
no Projeto de Assessoria Jurídica Popular – PROJURIS e no Projeto Escola Legal.
gleb.bezerra@gmail.com

Mariane Izabel Silva dos Santos


Graduanda em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca - UNIFAVIP
mariane.izabel@hotmail.com

Roberta Rayza Silva de Mendonça


Graduada em Direito – Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP.
robertas.mendonca@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Principais aspectos da adpf 347; 2. Cárcere e direitos humanos: quanto
vale uma vida?; 3. Reflexos sobre a dignidade do sujeito encarcerado; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O sistema carcerário brasileiro se constitui, historicamente, como sendo um mecanismo panóptico e


excludente. Analisando a concepção de poder exercida pelo Estado brasileiro, para garantir a ideia de segu-
rança e bem estar social, recorre-se a um modelo arcaico e desumano de punição. Em nosso ordenamento
jurídico pátrio a competência privativa para legislar sobre matéria penal é da União. Contudo, ao analisarmos
a recente decisão proferida pelo STF, que concedeu parcialmente liminar, através da solicitação da ADPF
347, pedindo providências para a crise prisional do país, vê-se que esta decisão vem corroborar a falibilidade
do atual modelo e o grave cenário de violações de direitos humanos.

Assim, o objetivo deste trabalho é analisar os aspectos –explícitos e/ou implícitos – existentes nos ter-
mos deste decisório, apontando alguns elementos que evidenciam o preocupante cenário político-criminal no
Brasil. Este estudo consiste em uma pesquisa de caráter bibliográfico-exploratório. Neste julgado, observamos
o reflexo da preocupação que o país vive quanto ao sistema prisional. Há uma dicotomia acentuada nesse
sentido, ao mesmo tempo que é desacredidato por todos como solução para o crime e a ressocialização, é, na
mesma proporção, almejado pela sociedade para que seja retirada do seu meio os “bandidos”. Nesse contexto,
observamos a luta pelos direitos humanos desses indivíduos e a busca por políticas públicas eficazes.

Os relatores da medida cautelar da ADPF 347 trazem em sua fala “o estado de coisa inconstitucional”
que temos vivido, que resulta em constantes violações dos direitos fundamentais dos sujeitos presos. A ausên-
cia de fundamentação nas decisões, embora seja um dever dos magistrados, é um dos aspectos violadores do
Estado Democrático de Direito que vivemos. Dessa forma, os ministros do Supremo frisam a importância de
se ter a audiência de custódia, pois, é preciso ter certeza da necessidade de se manter um indivíduo encar-
cerado, tendo em vista as violações ocorridas.

383
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

VERONESE,A recente
Alexandre.
decisãoAnos
judicialização
importa a saber
da política
que nona sistema
Américapenitenciário
Latina: panorama
brasileiro
do debate
ocorre
teórico
um sequestro
contem-
porâneo. Escritos: revista da Casa de Rui Barbosa, Rio de janeiro, v. 3, p. 215-265, 2009.
social, aqui entendido não como um sequestro físico, mas sim, um sequestro da significação humana, que
consiste na retirada da condição humana, de se reconhecer enquanto ser humano. Destarte, podemos com-
preender que a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitucional, e uma possível garantia aos
Direitos Humanos, é pensada e instituída na decisão do STF como marco ao posicionamento dos ministros,
neste julgamento.

1. PRINCIPAIS ASPECTOS DA ADPF 347.

A insatisfação com o sistema carcerário brasileiro tem aumentado com o passar dos anos, revelando-
-se como um sistema desumano e distante de cumprir com um de seus objetivos, qual seja, o da ressociali-
zação. Nesse contexto, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 347 pedindo providências aos Poderes Públicos quanto ao sistema penitenci-
ário brasileiro, para que reconhecesse o “estado de coisas inconstitucional”, bem como realizasse mudanças
estruturais no sistema para que cessem as violações aos direitos fundamentais dos presos.

Assim, o PSOL demonstrou a deplorável situação em que os presos vivem, em ambientes superlota-
dos, tendo sua dignidade constantemente violada, e atribui, em seguida, essa realidade aos Poderes Públicos,
em todas as suas esferas, tendo em vista que eles são os responsáveis por criarem vagas e não o fazem, cola-
borando para que a superlotação só aumente.

Ao observar a Constituição Federal de 1988 em seu art. 24, I, constata-se que a competência para
legislar sobre o Sistema Penitenciário é concorrente, ou seja, da União, dos Estados e do Distrito Federal, de
modo que a responsabilidade pela falibilidade do sistema carcerário recai sobre essas esferas.

Além disso, outro aspecto criticado pelo Partido é o fato dos recursos do Fundo Penitenciário –
FUNPEN, que devem ser repassados aos Estados e usados para a melhoria dos presídios, estavam sendo
retidos pela União, sendo importa uma grande burocracia, de modo que só acentuava a situação de calami-
dade do sistema carcerário.

Coloca-se, ainda, em destaque que:

O Poder Judiciário, [...], não observa os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis
e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, nos
quais é previsto o direito à audiência de custódia. [...] o procedimento poderia
reduzir a superlotação prisional (BRASIL, p.4, 2015).

Assim, vemos que além dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal serem violados,
ocorre o mesmo com os tratados internacionais de direitos humanos os quais o Brasil é signatário. Destaque-
-se que os referidos tratados, que preveem a audiência de custódia, entraram em vigor no território nacional
desde 1992, só vindo a fazer parte do Poder Judiciário em fevereiro de 2015 (BRASIL, 2015), de modo que
fica evidente as décadas de violações quanto a esse direito.

Constata-se que a audiência de custódia é um possível1 instrumento de combate a superlotação


carcerária, pois deve ser realizada em sede preliminar, isto é, em até vinte e quatro horas após a efetuação
do encarceramento, momento em que o preso poderá informar sobre a realidade dos fatos, podendo ter sua
prisão relaxada.

Trata-se, portanto, de um instituto inovador na realidade em que se encontra o sistema carcerário


brasileiro, pois rompe com a figura de um “preso invisível”, tão presente em momentos atuais.

1  Fala-se em possibilidade pois o instituto ainda é muito recente no Brasil, sendo implementado como um projeto somente em
fevereiro de 2015 (BRASIL, 2015) e ainda não foi aderido por todos os Estados brasileiros, de modo que ainda não há dados con-
cretos dessa aplicação.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Vê-se que, além das décadas de violações de um direito pelo Poder Judiciário, como acima citado,
ainda há o Poder Legislativo que, para dar uma resposta a sociedade e a mídia, legisla “políticas criminais
insensíveis ao cenário carcerário, contribuindo para a superlotação dos presídios e para a falta de segurança
na sociedade” (BRASIL, p.4, 2015).

Como dito acima, o PSOL requereu que fosse reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal o “estado
de coisas inconstitucional”, de modo que para que esse instituto fosse reconhecido são necessários:

[...] três pressupostos principais: situação de violação generalizada de direitos


fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autorida-
des públicas em modificar a situação; a superação das transgressões exigir a
atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades
(BRASIL, p. 24, 2015).

Verifica-se que os pressupostos ficaram comprovados de plano, tendo em vista todo o quadro prisional
brasileiro. No entanto, torna-se necessário saber quais as consequências que esse reconhecimento traria
para o STF, de maneira que essa dúvida foi esclarecida pelo relator da ADPF, o Ministro Marco Aurélio, em
seu voto:

[...] cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização


da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro, em vez de agravá-
-lo, como vem ocorrendo. Há dificuldades, no entanto, quanto à necessidade
de o Supremo exercer função atípica, excepcional, que é a de interferir em
políticas públicas e escolhas orçamentárias. Controvérsias teóricas não são
aptas a afastar o convencimento no sentido de que o reconhecimento de esta-
rem atendidos os pressupostos do estado de coisas inconstitucional resulta na
possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões
primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao princípio de-
mocrático e da separação de poderes (BRASIL, p. 25-26, 2015).

Desse modo, fica evidente que o Supremo é o órgão que se apresenta capaz de retirar os Poderes Pú-
blicos da inércia, para que novas medidas sejam tomadas, de modo que não pode ser utilizada a justificativa
de uma possível violação ao princípio da democracia se o STF assim intervir. Pois, se ele não for o instrumen-
to ativo para iniciar essa mudança, a probalidade de somar inércias é ainda maior (BRASIL, 2015).

A ADPF 347 é, portanto, uma provocação pioneira ao Poder Judiciário, pois conseguiu, em sede cau-
telar, o reconhecimento da audiência de custódia como instrumento de possível combate a superpopulação
carcerária, bem como alcançou a liberação dos recursos do FUNPEN e o reconhecimento do “estado de
coisas inconstitucional” em que se encontra o sistema penitenciário nacional.

2. CÁRCERE E DIREITOS HUMANOS: QUANTO VALE UMA VIDA?

Sabemos que no Brasil o sistema carcerário é composto por um emaranhado de problemas, sejam
eles em decorrência da má gestão das penitenciarias, da falta de verbas que deveriam chegar até as unidades,
a falta de agentes policiais, o quantitativo de encarcerados, que não corriqueiramente, é superior ao número
para o qual essas unidades foram construídas, e tantos outros.

Além de todos esses problemas, ainda nos deparamos com uma sociedade em que os sujeitos encarce-
rados são excluídos da sociedade, e onde a ressocialização é tida como impossível. Os sujeitos encarcerados,
mesmo que cumpram suas penas, e assim “paguem sua dívida com a sociedade”, encontrarão poucas, e nos
arriscamos a dizer, quase nenhuma oportunidade de espaço na sociedade ocidental, carregarão consigo a
marca de ex-presidiário.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Aqui vamos estudar como se dão as violações aos direitos humanos dentro dessas unidades, onde se
formam “submundos”, sociedades onde são estabelecidas novas regras, um mundo que fica a margem da
sociedade ocidental, sociedade esta que não se preocupa com os encarcerados, e que não mais os veem como
seres humanos, claro, até que chegue sua vez de participar desse “submundo”.

No Brasil, a população carcerária chegou ao número de 607.7312, tendo um déficit de 231.062, défi-
cit este que corresponde ao excedente de vagas disponíveis nas unidades prisionais, o que colocou o país na
quarta posição dos países com maior população prisional do mundo, ficando abaixo apenas de países como
Estados Unidos, China e Rússia, respectivamente.

Considerando o número de vagas disponíveis, e o número que ultrapassa essa disponibilidade, é pos-
sível observarmos, no mínimo, problemas de superlotação na maioria das unidades, o que nos faz pensar:
onde e como dormem aqueles que excedem o número possível de pessoas que deveriam ocupar as celas?
Existe um quadro de funcionários, sejam eles de equipe médica, assistentes sociais, ou mesmo policiais sufi-
cientes para o número de presos que ali se encontram?

Mameluque (2006) traça um perfil histórico da pena, de como ela era vista pela sociedade, observan-
do que era tida como uma espécie de castigo, que se dava sobre o corpo do indivíduo, e assim o era porque
acreditava-se ser possível uma “salvação”, um provável arrependimento do apenado.

O que não se distancia muito da realidade do nosso país, onde a população acredita que “bandido bom
é bandido morto”, e que aqueles que se encontram sob algum tipo de pena, devem ser segregados e esqueci-
dos, devem se manter à margem do convívio da sociedade, uma espécie de seletivismo entre o bem e o mal,
mas afinal, o que é ser bom? O que é ser mau?

A situação das unidades carcerárias são as piores possíveis, insalubridade dos locais, ou a superlota-
ção, que é um dos principais problemas, acarretando em tantos outros, fazendo proliferar doenças, além de
deixar os encarcerados mais vulneráveis, psicologicamente, o que, por vezes, deixa um clima acirrado entre
eles, tornando o ambiente propicio a brigas (MAMELUQUE, 2006).

Como não existe espaço, de maneira digna, para todos os encarcerados, eles são colocados em um
mesmo espaço, sem observar se algum deles possui alguma doença, seja ela mental ou não, fazendo com que
um preso sadio seja duplamente punido, além da pena privativa de liberdade, fica sujeito a contrair possíveis
doenças.

É preciso ainda lembrar das encarceradas, pois, ao falarmos das violações de direitos humanos dentro
dessas unidades, inconscientemente, ou não, esquecemos das mulheres, que também são vitimas deste ce-
nário de violações.

Algumas características são particulares as mulheres, e nem sempre essas unidades estão preparadas
para recebe-las. As grávidas, por exemplo, que tem seus filhos nessas unidades, precisam amamentá-los e
criar um vínculo com ele, e nem sempre as penitenciárias oferecem condições dignas para isso, o que coloca
não só a mãe, mas seu filho em condições degradantes.

Modesti (2011) nos mostra o drama de algumas mães, que não sabem se preferem que o bebê fique
com elas, para que possam criar um vinculo afetivo com eles, os se optam por seus familiares o criarem, de-
vido às condições do cárcere, pois acreditam que eles não merecem estar naquele ambiente.

Os direitos humanos possuem três características, como bem nos mostra Hunt (2009), onde ela nos
diz que eles são naturais, pois são inerentes a todo e qualquer ser humano; iguais, pois são os mesmos para
todos; e universais, aplicados por toda parte, mas diante deste cenário do sistema prisional, como garantir
tais direitos?

É preciso observar a dignidade da pessoa humana, entender que o fato do indivíduo estar cumprindo
uma pena não lhe retira a condição de ser humano, Grubba (2011) nos fala que deve haver uma “ética” que

2  Dados INFOPEN de 2014.

386
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

o símbolo da felicidade capitalista, pelo menos para aqueles que são capazes de inserir-se neste modelo de
sociedade” (KHALED JR, 2009, p. 118). Desta forma, a mídia rotula como perigosas àquelas classes sociais
que combatem a manutenção do sistema, construindo a criminalidade e contribuindo para a manutenção do
discurso dominante, “a informação é uma mercadoria como qualquer outra, que pode ser vendida através de
um marketing sensacionalista (que inclusive distorce os acontecimentos) visando tornar os desinteressados
devidamente interessados, de acordo com interesses econômicos e políticos” (KHALED JR, 2009, p . 117).
Resultando, então, na relação da imagem do MST à desordem, os taxando como ‘invasores’, transformando
a sua luta em uma ameaça à ordem social: “Nos últimos anos assistimos a uma sucessão contínua de discursos vei-
culados na imprensa nos quais os movimentos sociais em meio às suas ações e mobilizações são apresentados como ba-
derneiros e criminosos, sendo os seus líderes e defensores considerados radicais, extremistas e violadores da lei.(SILVA
FILHO, 2008, p. 8). Desse modo, a mídia acaba por construir a imagem de um movimento bárbaro, desordeiro,
violento, ilegítimo e, consequentemente, ilegal, “existe um estigma consolidado pela mídia de que aqui é o lugar do
mal” (SILVA FILHO, 2008, p. 09). Ainda para este autor:

As pessoas que só se informam a partir da televisão e das grandes revistas e jor-


nais possuem, via de regra, uma visão parcial dos fatos conflituosos da nos-
sa sociedade. Como disse o grande advogado Jacques Alfonsin: se tu quise-
res informações sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra te
aconselho a procurar no Google, pois a televisão não irá te informar nada. 
Ela só mostrará as ocupações, as supostas e as reais violências cometidas pelo movi-
mento, o trânsito que ficou estagnado por causa das passeatas, os trabalhadores que
chegaram atrasados no trabalho, e dificilmente dirá ao telespectador sobre os abusos
e violências cometidos contra os integrantes do movimento, qual a razão daquela ma-
nifestação e do próprio movimento, porque é necessária a reforma agrária no Brasil,
ou ainda quais e como são os inúmeros trabalhos e ações de caráter comunitário e
coletivo empreendidos pelo movimento, tais como escolas, cooperativas, atendimen-
tos de saúde, etc. (SILVA FILHO, 2008, p. 10)

Assim, como a construção de um estado de medo prega a insegurança social, a mídia cumpre seu
papel de base para a ideologia penal dominante.

4. A INVERSAO DO SISTEMA PENAL E A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS


AGRÁRIOS.

Os meios de controle social, tanto formal quanto informal, corroboram para que os excluídos sejam
cada vez mais excluídos e que, dessa forma, as estruturas se mantenham inabaladas, tratando qualquer fato
que possa resultar em um possível balanço a essas estruturas como um comportamento desviante, social-
mente inaceitável.

Dessa forma, nas palavras de Khaled Jr. “se de um lado, o Estado retira cada vez mais da esfera social,
abandonando qualquer pretensão a propiciar um estado de bem-estar [...], de outro lado, a resposta para a
questão social é dada através de um endurecimento cada vez maior da legislação penal”. Ou seja, para um
Estado Democrático de Direito, que se legitima enquanto tal, se intitulando um estado de bem-estar social,
enquanto na verdade pretende manter a estrutura de privilégios de poucos em detrimento de muitos, em que
a questão social é tratada como “caso de polícia”, nada mais útil que um sistema penal “igualitário”, que é
duplamente seletivo: em primeiro lugar quando assume um caráter fragmentário, que, ao invés de privilegiar
a natureza das coisas, como teoricamente se forma sua justificação, privilegia os interesses da classe domi-
nante imunizando do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dessas classes
e tende a criminalizar as formas de desvio típicos das classes subalternas. E em segundo lugar, quando revela
a contradição entre igualdade formal e igualdade substancial dos indivíduos, distribuindo de forma desigual
o status de criminoso, que coincidentemente, recaem sobre as classes mais vulneráveis e que precisariam de
uma maior prestação por parte do estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Resulta disso, então, a criminalização daqueles que legitimamente lutam em nome de seus direitos,
pois que na grande tensão existente entre a propriedade e necessidades fundamentais, dá-se preferência, em
geral, pela tutela da primeira. Importante ressaltar, que o processo de criminalização das ações do MST e, em
especial, de seus líderes, busca, em suma, deslegitimar as reivindicações sociais e desestruturar o movimen-
to. Dessa maneira, é interessante apontar que as acusações que recaem sobre o MST são, precisamente, de
crimes contra a propriedade, como o crime de dano (pela destruição de cercas e demais estruturas destruídas
nas ocupações), crime de furto (pelo desaparecimento de animais e cercas de arame), crime de usurpação
(pelas ocupações de terra) e formação de quadrilha (para cometer os crimes acima dispostos). Nas palavras
de Silva Filho:

Percebe-se, ademais, a ampla utilização, por parte das autoridades públicas,


de estratégias judiciais como a expedição de mandados de prisão e a negação
de liminares para seu relaxamento, mesmo quando estão presentes todos os
requisitos formais necessários. Quando tais movimentos reúnem pessoas em
ações e atitudes reivindicatórias são estas acusadas de formarem quadrilha.
[...] A ocupação de terras não se dá aqui, e em muitas outras ações semelhan-
tes, com o objetivo de esbulhar a propriedade, mas sim com o fim de protes-
tar, chamando a atenção para um grave problema brasileiro que segue sem
solução adequada e que remonta à chegada dos europeus às terras brasilei-
ras.[...] O indiciamento veio acompanhado de uma campanha de difamação
do movimento por parte da imprensa, conforme narra o relatório do MNDH.
(SILVA FILHO, 2008, p. 08)

Tendo em vista, como apontado por Silva Filho, que as invasões não se dão com o objetivo de atingir a
propriedade, e sim com o intuito de reivindicar, fazer pressão para que aqueles direitos que já lhes são assegu-
rados venham a ser cumpridos, fica claro que o dolo - referente aos exemplos de imputação já mencionados –
pode ser afastado sob diversos argumentos. Desse modo, a criminalização dos movimentos agrários confirma
e legitima a dominação histórica do latifúndio, fazendo com que a busca por mudanças seja comprometida,
ao passo que esses movimentos são barrados pela própria estrutura de deveria defendê-los. Além disso, colo-
cam na ilegalidade aqueles que justamente buscam o cumprimento do texto constitucional, no que se refere
aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, alicerces do Estado Democrático de Direito que
deveriam ser respeitados e efetivamente aplicados para que muitas das desigualdades existentes em nossa
sociedade fossem sanadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Importa ressaltar que o estudo do presente tema não se esgota neste ensaio. Cada tópico aqui tratado
– de maneira um tanto quanto superficial – merece um vasto aprofundamento para que possa ser entendido
em toda sua complexidade. No entanto, não há espaço no presente estudo para que se façam todas as expla-
nações necessárias. Sabe-se que o direito à propriedade é consagrado no Brasil como direito fundamental,
limitado pelo princípio da função social, ambos previsto na Constituição Federal da República. Desse modo, a
propriedade deve ser entendida como um instrumento à realização do bem-estar social, prestando-se não só
à acumulação do capital e a especulação, mas ao atendimento das necessidades básicas do cidadão.

Ocorre que, a história do Brasil demonstra que por aqui nunca houve uma efetiva política de distri-
buição da terra, que desde os tempos colônias ficou concentrada na mão de uma pequena parcela da popu-
lação, perpetuando o Brasil como o país do latifúndio.

Nesse contexto, ao longo da história vários conflitos surgiram pautados na luta por uma justa dis-
tribuição da propriedade e pela necessária realização da reforma agrária. Assim, com o passar dos anos, os
trabalhadores rurais foram se organizando e hoje formam movimentos sociais organizados de luta pela terra
em que se destaca, principalmente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Ocorre que, historicamente a questão social no Brasil é vista como “caso de polícia”. A pequena par-
cela da população que detém o poder econômico/político se aproveita do Estado para manter a dominação,
utilizando-se principalmente do sistema penal. Dentro desse modelo, foi de extrema importância a colabo-
ração da criminologia crítica para explicar essa ligação existente entre dominação/estrutura/criminalização,
explicando que o status de criminoso é adquirido em um processo social de criminalização que pouco tem a
ver com o desvalor da conduta/resultado.

A teoria do etiquetamento parte de uma concepção interacionista, assim odesvio é tido como o fruto
da interpretação de um comportamento, que feita a partir de regras criadas pela própria interação social as-
sume o papel de desvio a essas regras. Dessa maneira, para o Labelling Approacho desvio é fruto de uma rea-
ção social, que ao identificar o comportamento como “anormal” passa a assumir a identidade social de desvio.

Destacam-se, na estrutura proposta por essa teoria, as ações dos meios de controle social formal e
informal. Assim, enquanto que os meios de controle social formal selecionam as condutas e as tipificam como
crimes, ao mesmo tempo em que determinam que alguns sujeitos responderão por essas práticas, enquanto
outros não – seletividade e cifra oculta –, os meios de controle informal – ressalte-se o papel assumido pela
mídia nesta interação – legitimam a atuação do sistema formal, reforçando os estereótipos e os divulgando
em uma velocidade elevadíssima, o que eleva a criminalização secundária ao grau máximo.

Ocorre que, como demonstrado, a luta dos movimentos sociais agrários não se restringe a um bem
específico, trata-se de uma luta pela efetivação de direitos, uma luta pela própria afirmação e garantia da
legalidade.

Em que pese já estar em gestação o processo de mudança de posicionamento do judiciário brasileiro


diante da luta pela terra, a caminhada é lenta e o que se tem ainda é muito pouco. Assim, é preciso avançar!
Faz-se necessário um abandono da velha cultura, o rompimento com o paradigma, a superação das tradições.
O avanço está em um novo olhar sobre a realidade social brasileira, na percepção de que mais do que empre-
ender esforços para a mudança do Direito, é preciso efetivar aqueles já garantidos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE


DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO

Idalina Cecília Fonseca da Cunha


Pós-graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental (PUC-MG) e Bacharel em Direito pela
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) com período sanduíche na Universidad
de Salamanca (USAL). Advoga na área de Direito Público com ênfase em Direito Tributário
e Administrativo. Ensina Direito Tributário no Pejuris Cursos Jurídicos. idalinacfcunha@gmail.
com

SUMÁRIO: Introdução; 1. A promoção do direito social à saúde e a extrafiscalidade da tributação; 2.


Análise econômica do direito como instrumento de investigação; 3. O tributo como instrumento de
indução de comportamento; 4. O imposto pigouviano; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar uma interpretação da questão da extrafiscalidade do Imposto


sobre Produtos Industrializados incidente sobre o cigarro como mecanismo indutor para combater o tabagis-
mo e promover a saúde pública no país, elencada como direito social fundamental. No entanto, para que o
trabalho em formato de artigo seja possível, alguns cortes devem ser feitos a fim de reduzir a amplitude da
matéria, haja vista a sua interdisciplinaridade, envolvendo especialmente direito constitucional, direito tribu-
tário, ciência política e economia.

Busca-se verificar a efetividade das políticas públicas de desincentivo ao tabagismo, utilizando-se de


levantamento bibliográfico e legislativo, além de dados emprestados de órgãos oficiais. Algumas advertências,
no entanto, devem ser dadas. A primeira advertência – e a mais fundamental delas – é de que ainda que
exista um grande número de variáveis que influenciam direta e indiretamente os números e índices referen-
tes ao consumo do cigarro, tenta-se, aqui, analisar a relação entre o preço – influenciado pela tributação – e
a demanda, abstraindo-se importantes fatores como vício, renda, idade, entre outros, o que evidentemente
torna as observações incompletas e passíveis de imperfeições. A segunda advertência é de que, observadas as
limitações do presente trabalho, é possível prever, desde logo, que a medida a ser analisada não conseguirá
atingir a população por inteiro, tendo como verdadeiro público-alvo a os jovens e as camadas mais pobres da
população brasileira. Por fim, frise-se que apesar de pretender-se analisar a função da extrafiscalidade em
geral, o tributo em espécie a ser analisado é o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Dessa maneira,
acredita-se ser possível alcançar um resultado satisfatório no desenvolvimento da presente pesquisa a fim
de confirmar ou negar a real efetividade da tributação como política pública promotora da à saúde pública.

1. A PROMOÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA TRIBUTAÇÃO

O direito à saúde, previsto no artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil como direito
social, é também assegurado no artigo 196 da referida Carta, que dispõe (BRASIL, 1988) acerca do dever
do Estado de garantir políticas sociais e econômicas que “visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
É, então, nesse contexto, que se encontram as políticas públicas que promovem a saúde pública, as quais

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

englobam desde campanhas de conscientização para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou


para o combate ao acúmulo de dejetos facilitadores da proliferação de insetos transmissores de vírus até a alta
tributação sobre alimentos e produtos prejudiciais à saúde, objeto de análise do presente estudo.

Ao se analisar a conjuntura da saúde pública brasileira, é fácil perceber, segundo Haber Neto (2013,
p.159), que o Estado pode intervir no referido setor sem que tenha necessariamente que arcar com ônus
financeiro. Pode o Estado, contrariamente, incorrer em arrecadação de receita na promoção da saúde públi-
ca, através da exação tributária como instrumento interventivo, através da majoração da incidência tributária
sobre atividades que possam acarretar danos à saúde e da minoração de tal incidência sobre as práticas que
beneficiem de alguma forma o desenvolvimento e a promoção da saúde pública.

Dessa forma, ainda segundo o autor acima citado (HABER NETO, 2013, p.160), a relação entre a
saúde pública e tributo não deve ser vinculada estritamente à ideia de gasto público. Isso porque a tributação,
por si só, pode funcionar também como mecanismo de estímulo a práticas favoráveis à saúde ou de inibição
de práticas danosas a ela – como é o caso do tabagismo, – através de uma maior onerosidade.

Quanto ao papel da tributação extrafiscal, esse não é proibitivo ou punitivo, o que, inclusive, seria
incompatível com a natureza do tributo, conforme art. 3° do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966),
mas indutivo, com o propósito de, segundo Barbosa (2003, p.264), influenciar nas preferências e escolhas do
contribuinte no sentido de que sejam tomadas decisões favoráveis aos bens ou direitos a que se visa tutelar ou
promover. Não é demais lembrar que, no caso em tela, pretende-se proteger com a referida extrafiscalidade
o direito social à saúde, disposto constitucionalmente.

2. ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO COMO INSTRUMENTO DE INVESTIGAÇÃO.

A economia, conforme defendem Cooter e Ulen (2010, p.25), fornece uma teoria comportamental
que ajuda na previsão da reação das pessoas às leis, o que demonstra sua grande utilidade não só no processo
legislativo, mas também na tomada de decisões estatais em geral. Desse modo, com a análise econômica,
torna-se possível prever os efeitos das políticas públicas de forma mais segura do que com a mera intuição.

Ainda segundo Cooter e Ulen (2010, p. 26),

além de uma teoria científica do comportamento, a economia fornece um


padrão normativo útil para avaliar o direito e as políticas públicas. As leis não
são apenas argumentos arcanos, técnicos; elas são instrumentos para atingir
objetivos sociais importantes. (...) A economia prevê os efeitos das políticas
públicas sobre a eficiência. A eficiência sempre é relevante para a definição
de políticas já que é melhor atingir qualquer política dada a um custo menor
do que a um custo mais alto.

Assim, ao se analisar as consequências da alta carga tributária – e consequente aumento do preço


de venda – incidente sobre o cigarro como medida de política pública antitabagista, a economia apresenta-se
bastante adequada. Isso porque ela possui (COOTER; ULEN, 2010, p. 25), teorias matematicamente pre-
cisas e métodos empiricamente sólidos, tais como a estatística e a econometria, de avaliação dos efeitos dos
preços sobre o comportamento. Com isso presente, pretende-se analisar como os consumidores – e contri-
buintes – reagem a incentivos, em especial aqueles vinculados à seara fiscal.

Nesse contexto, merece destaque a expressão “normas tributárias indutoras”, trazida à doutrina bra-
sileira por Luís Eduardo Schoueri (2005, p. 351) e que, segundo o referido autor, são instrumentos de que se
vale o legislador para induzir o comportamento dos contribuintes, através de estímulos positivos ou negativos.
A extrafiscalidade da tributação sobre o cigarro ganha, portanto, espaço como importante política pública de
combate ao tabagismo, de modo a sobreonerar ou desonerar práticas a ele vinculadas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tenha por objetivo buscar condições que venham a assegurar a todos os indivíduos um caminho que tenha
por objetivo garantir a dignidade humana, analisando ainda, que não existe nada mais importante do que
atestar que todos tenham sua dignidade respeitada e garantida, independente de suas escolhas.

Million (2007) observa que quando falamos de dignidade da pessoa humana existe uma forte ligação
com alguns direitos fundamentais, como por exemplo o direito de não ser torturado, e que são estes direitos
fundamentais que podem assegurar aos indivíduos uma vida digna, garantindo uma humanização maior e
de respeito para com o outro.

Existem algumas normas que foram estabelecidas pela ONU, que nos mostram como devem ser tra-
tados os que estão reclusos, entre tantas regras, encontramos uma que nos parece ser a mais difícil de ser
realizadas, devido ao número de encarcerados que temos no Brasil, que é: “as celas ou quartos destinados ao
descanso noturno, não devem ser ocupados por mais de um prisioneiro” (BRASIL, 2009, p. 14).

No entanto, o cenário que se apresenta em nosso país é de um sistema prisional onde os seres hu-
manos são depositados sem nenhuma condição de higiene, apoio médico, segurança, garantias processuais
ou constitucionais, ou qualquer outro tipo de cuidado, um lugar onde a dignidade da pessoa humana pouco
importa, um lugar onde os direitos humanos não passam de mera fantasia, um lugar onde o ser humano
perde seu significado, sua própria humanidade.

3. REFLEXOS SOBRE A DIGNIDADE DO SUJEITO ENCARCERADO

Ao tratarmos sobre pessoa no ordenamento jurídico brasileiro, temos de maneira implícita o exercício
do principio da dignidade da pessoa humana. De tal modo, é de ciência que todos os seres humanos têm esse
direito inerente a si mesmo.

Como é possível observar no atual cenário político-econômico brasileiro, os cortes precisam ser reali-
zados para que se tenha um mínimo de estrutura ao país. Contudo, o que veio a ser proposto pelo executivo,
são cortes relacionados aos sujeitos em situação de cárcere, ou seja, aos sujeitos que são menos privilegiados
na sociedade.

Ao propor a retirada desses elementos básicos dos sujeitos encarcerados através da redução de cus-
tos, é possível chegar a conclusão que subjulgamento social que estes estão enfrentando, o que por sua vez
acaba menosprezando o princípio da dignidade da pessoa humana, consequentemente coisificando o sujeito
encarcerado. Sarlet (2005, p.32-33).ao tratar sobre esse princípio nos fala que

Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser re-
duzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também
o fato de [que] a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos
que a violem ou a exponham a graves ameaças. Como tarefa, da previsão
constitucional (explícita ou implícita) da dignidade da pessoa humana, […]
decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sen-
tido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de
medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.

Desta forma, nos fica claro o real condicionamento a qual é empregado ao sujeito encarcerado e as
políticas publicas que o alcançam de uma forma ineficaz. Roger Bortoluzzi (2005, p. 5), ainda sobre o prin-
cipio da dignidade da pessoa humana e seus objetivos, nos fala que:

Disso resulta que todos os órgãos, funções e atividades estatais ficam vincula-
dos ao principio da dignidade da pessoa humana, devendo todos um respeito
e proteção, explicitados na obrigação de abstenção, por parte do Estado, de

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, e


de proteção desta contra possíveis agressões oriundas de terceiros.

Nesse mesmo sentido, afirma José Afonso da Silva (2000, p. 146) que:

a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo)


fundamental que ‘atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais’, exige
e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de to-
das as dimensões […]. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os
direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando
a própria dignidade.

Sabemos que a prisão no Brasil é toda como uma maneira de exteriorizar o poder estatal acerca das
relações humanas. Sendo assim, esse poder vem a se destacar por se fazer presente em meio a construção
social, sendo um elemento essencial para formação desta, articulando-se pela maneira de agir.

Ao falarmos de poder na conjuntura prisional vamos levar em consideração o que Godinho (1995,
p.68) nos diz, tratando-se que:

Na concepção foucaultiana de poder, existem poderes disseminados em toda


a estrutura social por intermédio de uma rede de dispositivos da qual nin-
guém, nada escapa. O poder único não existe, mas, sim, práticas de poder,
[...] o poder não é algo que se possui, mas algo que se exerce, [...]

Sendo assim, podemos observar que a atual estrutura prisional brasileira permeia essas relações de
poder, através de suas práticas. O objeto a ser discutido no presente diz respeito a ADPF que não atendeu
a uma decisão do poder executivo em realizar cortes, uma vez que estaria dentre outras questões negar a
dignidade daquele sujeito que se encontra em situação de cárcere.

É certo e notório que o tratamento dos sujeitos encarcerados chega a ser degradante e desumano.
Contudo, pe necessário levar em consideração a condição de ser humano daquele sujeito.

Ao pensar dessa forma, a ADPF em questão vem trazer fortemente de uma maneira implícita a
condição de ser humano, apesar de estarmos vivendo um colapso social e econômico no país, não é possível
retirar humanidade de quem já não tem reconhecimento desta. Ou seja, não há a menor possibilidade de
reter fundos destinados a penitenciária, na tentativa de diminuir os gastos, uma vez que os sujeitos que estão
encarcerados necessitam de no mínimo a dignidade que lhe é inerente.

É de pesar observar a atual situação dos presídios brasileiros, uma vez que não temos a sensibilidade
de reconhecer o outro enquanto ser humano, enquanto detentor de direitos apenas porque se encontra em
uma situação distinta dos demais.

Esse mecanismo utilizado pelas penitenciárias e pelo próprio poder executivo acaba por criar o me-
canismo de prisionização do indivíduo, onde na maioria das vezes isso acaba ocorrendo em razão das insti-
tuições totais, é necessário atentar para o real entendimento do que vem a ser a pena imposta pelo Estado,
afinal queremos punir o agressor na tentativa que este entenda o mal que cometeu e se corrija ou queremos
apenas punir por vingança, para que a sociedade se sinta mais segura? Thompson (1980, p. 23) nos explica
isso ao afirmar que:

Todo encarcerado sofre, em alguma medida, o processo de prisionização, a


começar pela perda de status, ao se transformar, de um momento para outro,
numa figura de um grupo subordinado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nesse ponto, chegamos à conclusão que ao retirar direitos desses sujeitos, estamos punindo mera-
mente por punir. Segundo Castro (1990) ninguém aprende a viver em liberdade, sem liberdade. Não temos
aqui a pretensão de adentrar especificamente no sistema falido da ressocialização. Contudo, faz-se necessá-
rio apontar que a pena não vem sendo cumprida de maneira correta por parte do Estado, uma vez que não
consegue exprimir basicamente o que deve ser feito, a reinserção deste indivíduo.

Colocamos o nome reinserção, uma vez que acredita-se que o sujeito encarcerado enquanto detentor
de direitos no ordenamento jurídico pátrio, deve se colocar a disposição como agente ativo de sua volta à so-
ciedade. Embora, na maioria das vezes isso não venha a acontecer em razão do próprio Estado não permitir
essa reinserção social.

CONCLUSÃO

Após realizarmos algumas análises sobre a ADPF 347, sobre as violações aos direitos funda-
mentais/direitos humanos dentro das unidades aqui no Brasil, e da dignidade do sujeito encarcerado se faz
necessário fazer algumas considerações.

A situação das penitenciárias brasileiras não foge ao conhecimento de sua população, nem de
seus representantes, sejam eles de qualquer esfera do Poder Judiciário, no entanto, e mesmo com todos os
danos que essa situação acarreta para o desenvolvimento da sociedade, esse sistema é tratado e visto, por
muitos, como um descarte humano.

O ministro Marco Aurélio, em seu voto avaliou a “situação vexaminosa”, algo que é percep-
tível aos olhos de todos, do sistema penitenciário brasileiro, dizendo que o PSOL apontou violações de
direitos fundamentais dos presos decorrentes do quadro revelado por nosso sistema carcerário, para ele os
dados da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados (2007-2009), do CNJ e da Clínica
de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ confirmavam o cenário descrito pelo PSOL.

O ministro ainda observou que a maior parte dos detentos está sujeita às seguintes condi-
ções: superlotação dos presídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças
infectocontagiosas, comida imprestável, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual, e
tantas outras violências que nós já citamos.

Assim, a medida cautelar na ADPF 347, ajuizada pelo PSOL pedindo o reconhecimento da violação
de direitos fundamentais da população carcerária, busca nada mais do que garantir a dignidade humana
desses sujeitos encarcerados.

Observando que não só o princípio da dignidade da pessoa humana é violado, como também artigos
que estão explícitos em nossa Constituição, como: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante (art. 5º, III); suspensão ou interdição de direitos (art. 5º, inciso XLVII, alínea “e”);
a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo
do apenado (art. 5º, inciso XLVIII) entre outros direitos previsto em nossa Carta Magna, além dos tratados
internacionais do qual somos signatários.

É preciso fazer com que o sistema penitenciário brasileiro passe por uma reforma, e que seja
reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucional”, para que assim seja possível fazer com que esse
sistema cumpra seu papel, que é o de ressocializar este sujeito, embora, para nós, seja mais coerente usar
o termo reeducar, para que o sujeito encarcerado tenha garantida sua dignidade humana, e se reconheça
como tal.

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TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO

Indira Capela Rodrigues


Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger


Pós-Doutora em Direito pela UFSC, Doutora em Direito pela UFPR, professora adjunta
do Programa de Mestrado em Direito e do Curso de Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande-FURG. Professora do Mestrado em Direito
da Fundação Escola Superior do Ministério Público- FMP. Professora visitante na FURB-
Blumenau. Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre o Constitucionalismo latino-
americano e decolonialidade da FURG e do IMIgracidadania da Furg. Professora
Pesquisadora do CNPq e FAPERGS

SUMÁRIO: Introdução; 1. O papel dos movimentos sociais; 2. Direito a propriedade e função social
da propriedade; 3. Etiquetamento e seletividade; 4. A inversao do sistema penal e a criminalização
dos movimentos sociais agrários; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo discute o problema da criminalização e da seletividade do direito penal e da sua


conseqüência prática em relação aos movimentos sociais agrários. Aborda, nesse sentido o papel dos movi-
mentos sociais no “Estado Democrático de Direito”. Apresenta questões relativas ao direito a propriedade e
o modo como se dá a efetividade desse direito, bem como, a transformação, pelos meios de controle social,
de um luta legítima e justa em uma figura de barbárie e medo, que deve ser combatida. Por fim traz algumas
reflexões sobre a inversão do sistema penal e a criminalização dos movimentos socais agrários.

1. O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Nas últimas décadas os movimentos sociais acompanharam os passos democráticos de inúmeras


nações, inclusive do Brasil, nas últimas décadas. Estiveram presentes constantemente em acontecimentos
históricos relevantes, principalmente no que se refere a conquistas sociais. As vitórias democráticas tiveram
participação decisiva destes atores.

Para Gohn (2004, p. 13), os movimentos sociais são vistos para como

ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam dis-


tintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação
concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples
denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentra-
ções, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil,
negociações etc.), até as pressões indiretas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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Na verdade, os movimentos sociais são um mecanismo que os cidadãos utilizam para reivindicar e ver
reconhecidos seus interesses e anseios. A sociedade civil serve-se destes movimentos para conquistar direitos
negados ou não disponibilizados pelo Estado.

Segundo Corrêa,

Sabe-se sobejamente que nos Estados contemporâneos a usurpação do espa-


ço público é uma constante, sem dúvida muito presente no Estado brasileiro.
No entanto, é preciso admitir que, apresar deste desvirtuamento a privile-
giar o poder econômico, não se pode jogar fora a conformação estatal deste
espaço público, em torno da qual se estabelece a relação de forças caracte-
rizadora da institucionalização da luta de classes e do confronto dos demais
poderes sociais. Tanto as classes dominantes que hegemonizam a ocupação
dos aparelhos estatais como as classes e grupos dominados que neles atuam
sob forma de pressão e resistência combativa lutam em nome de tal espaço
público. É esta a atual guerra de posições, na expressão de Gramsci. E é nela
que devem ser entendidos os próprios movimentos sociais (1995, p.57).

Percebe-se, assim que estes são atores sociais que estão ajudando a escrever a história social. Para
Corrêa, “os vários movimentos sociais representam, sem a menor dúvida, uma das mais fecundas fontes de
criação jurídica, sendo neste sentido importantes sujeitos coletivos”. (1995, p. 60). Estão presentes na socie-
dade para desempenhar um papel protetor da população, especialmente das camadas menos favorecidas, e
inovador na busca de novos direitos. Os movimentos sociais são tentativas coletivas de buscar mudanças em
determinadas instituições sociais ou estipular uma nova ordem social (RIOS, 1987). Tiveram, como já dito,
demasiada importância na formação histórica social, representam forças sociais organizadas que aglutinam
as pessoas não como força-tarefa, de ordem numérica, mas como campo de atividades e de experimentação
social, e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais. O fruto das reivindi-
cações dos movimentos sociais resultaram, quase que geralmente, em amplas conquistas sociais. Na relação
Estado e sociedade, os movimentos sociais sempre foram o mais forte, e talvez último, meio de buscar um
equilíbrio de forças. Apesar da força estatal ter, quase sempre, larga vantagem sobre a sociedade, pelas movi-
mentações sociais esta vantagem é reduzida.

O Estado Democrático de Direito é aquele que tem como objetivo garantir, respeitar e proteger os
direitos e liberdades fundamentais. Ele ultrapassa o Estado de Direito, pois se propõe a uma superação da
simples obediência a lei, hierarquizando todo o ordenamento com base em um fundamento constitucional.
Assim, além do respeito às leis, todas as circunstâncias devem ter com pilares de sinalização os princípios
constitucionais.

Não há duvidas, principalmente, após a Constituição Federal de 1988, de que vivemos em um Estado
Democrático de Direito, garantidor de direitos fundamentais e limitador do poder punitivo. Porém, o que
muitos não enxergam, é que na verdade, esse dito “Estado Democrático de Direito”, antes mesmo de se tor-
nar efetivo, assumiu o papel de máscara, que se presta, de forma muito eficiente, a esconder um estado de
exceção. Nas palavras de Roberto Aguiar citado por Lyra Filho (1988, p. 8), “a lei sempre emana do estado e
permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o estado, como sistema de órgãos que regem
a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico,
na qualidade de proprietários dos meios de produção”. E assim, “o Direito aparece tão-só como forma de
controle social, ligado à organização do poder classístico, que tanto pode exprimir-se através das leis, como
desprezá-las, rasgar constituições, derrubar titulares e órgãos do Estado legal, tomando diretamente as réde-
as do poder” (LYRA FILHO, 1988, p.. 43).

Os altos custos cobrados por esse estado “garantidor” de direitos acabou por ocasionar, nas palavras
de Wacquant, “a substituição de um (semi) Estado do bem-estar por um Estado penal e policial onde a cri-
minalização da miséria e o enclausuramento das categorias marginalizadas tomam o lugar da política social”

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(WACQUANT, 2002, p. 09). Assim, ao invés da garantia, passa a ocorrer a supressão dos direitos, princi-
palmente, aqueles ligados a igualdade e a dignidade da pessoa humana, garantindo uma política, que nada
mais é, do que uma legitimação do poder e dos privilégios de uma classe dominante, e tudo isso muito bem
camuflado por uma razão ardilosa que justifica o injustificável.

Neste contexto, todos aqueles grupos que tentam travar uma batalha contra-hegemônica em nome
daqueles direitos que, em um Estado que de diz democrático de direito, são verdadeiramente seus, acabam
sendo estigmatizados, se tornando um inimigo do estado e da sociedade, que deve ser cassado e enclausurado
pela justiça penal. Ainda nas palavras de Wacquant, “uma guerra contra os componentes da população con-
siderados menos úteis e potencialmente mais perigosos, como desempregados, sem-tetos, sem-documentos,
vadios e outros marginais” (WACQUANT, 2002, p. 10). Diante disso, tentarei abordar, a partir da teoria do
etiquetamento, essa inversão do sistema penal e a criminalização dos movimentos sociais agrários.

.2. DIREITO A PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O direito a propriedade é consagrado no primeiro rol de direitos humanos, aqueles denominados


Direitos ou Liberdades Individuais. Essa primeira geração de direitos é totalmente ligada a uma concepção
racionalista, - advinda dos ideais iluministas - e assegura os interesses da crescente burguesia. Diante disso,
o Estado assume uma posição liberal e passa a ter o simples papel de preservar as liberdades agora positiva-
das, ou seja, os direitos que passam a ter superioridade normativa deixando de ser meros direitos naturais,
abstendo-se, porém, de intervir ou opinar sobre essas liberdades. O direito a propriedade, fica caracterizado
por assumir um caráter absoluto, classificação essa que pode ser observada na “Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, segundo o qual o seu exercício não estaria limitado senão na medida em
que ficasse assegurado aos demais indivíduos o exercício de seus direitos” (SILVA, 2010, p . 272). Outra ca-
racterística bastante importante é que, as liberdades consagradas no primeiro rol dos direitos humanos não
chegaram a toda a população. E a propriedade, inegavelmente, é um dos exemplos. Sua concentração ficou
detida nas mãos de poucos, ficando ao alcance de uma pequena fração da população, a burguesia, que por
deter a propriedade, passava a assumir privilegiada função no poder e em nome desse poder conseguia de
toda a forma manter essa ordem desigual que se estabelecia.

A prática desenfreada desses direitos individuais acabou por deteriorar a própria sociedade, abrindo
caminho para uma necessária reestruturação desses direitos. Assim surgem os direitos sociais, os direitos
coletivos e difusos e assim sucessivamente. Dentro desse contexto de transformação social que clama por
novos direitos, principalmente, aqueles que tornariam a sociedade, senão por completo iguais, menos desi-
guais, a transformação do direito a propriedade, torna-se não só uma vontade, mas uma necessidade. Com
isso, deixa-se de dar um contorno absoluto, passando a exigir-se que esse direito, como os demais, assumisse
um caráter social. Surge assim, a função social da propriedade. Nas sábias palavras de José Afonso da Silva:

O caráter absoluto do direito de propriedade, na concepção da Declaração


dos Direitos do Homem e do cidadão de 1789 [...] foi sendo superado pela
evolução, desde a aplicação da teoria do abuso do direito, do sistema de limi-
tações negativas e depois também de imposições positivas, deveres e ônus,
até chegar-se a concepção da propriedade como função social. (SILVA, 2010,
p. 272)

Se pensarmos na enorme vastidão territorial do Brasil, há de pensarmos que propriedade, por aqui,
nunca foi problema. No entanto, no Brasil não foi diferente: a terra e a propriedade, desde os tempos primór-
dios, das capitanias hereditárias ao atual modelo de aquisição, estiveram concentradas nas mãos de poucos.
Destarte, também o Brasil, de maneira simples ou através de lutas, foi ao longo do tempo sofrendo transfor-
mações sociais, e essas transformações foram modificando, também aqui, o sentido que era empregado ao
direito a propriedade.

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A Constituição Federal de 1988 consagra a tese segundo a qual a propriedade constitui várias insti-
tuições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares. Sendo explicita e precisa,
a constituição garante o direito de propriedade em geral, mas distingue claramente a propriedade urbana e
a propriedade rural. Como o interesse do presente estudo, enfoca principalmente a concepção que é dada a
propriedade rural e a sua função social, cabe agora, para melhor entendimento, um breve apanhado históri-
co, sobre a evolução dos conceitos, até chegarmos à função social da propriedade rural.

Como já mencionado, o primeiro sistema oficial de aquisição de terra no Brasil, foi instituído por D.
João III, em 1532, as capitanias hereditárias, que tinham por base o regime de sesmarias. No início do séc.
XIX esse sistema entra em crise por diversos motivos e juntamente ao fato da independência do Brasil, esta-
belece-se o regime de posses. Este regime reconhece a figura do posseiro, concedendo-lhe direitos sobre as
terras que havia cultivado. Este novo sistema sofre grandes modificações quando da instituição, em 1850, da
Lei da Terra, que estabeleceu a compra e venda como forma de aquisição da propriedade fundiária e limitou
quase que totalmente o usucapião. Estava claro que a Lei da Terra pretendia favorecer a grande propriedade
e assim, perpetuou a estrutura agrária desigual herdada dos tempos coloniais.

Essa profunda desigualdade acabou por gerar diversos conflitos, destancando-se, em um primeiro
momento, os de origem messiânica, intimamente ligados a figura de um líder. Nesse período, estão inseridos
os movimentos Canudos, na Bahia, liderado por Antônio Conselheiro e o movimento do Contestado, que se
desenvolve de 1912 até 1916 em Santa Catarina, liderado pelo monge José Maria. A segunda fase é definida
como “lutas radicais localizadas”:

Nesta fase ocorreram diversos conflitos violentos por terras e revoltas popu-
lares, em diversos lugares do Brasil. Na segunda metade do século XX, em
todo o país, diversos conflitos e eventos nasceram da organização camponesa.
Desenvolve-se um processo de organização política do campesinato, fruto
das lutas de posseiros e pequenos proprietários para resistirem nas terras. A
luta pela reforma agrária se popularizava, alcançando espaço político através
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Igreja Católica (BORTOLOZZI,
2008, p. 49)

Por volta de 1945, nasce no nordeste, as Ligas Camponesas, forte movimento de luta contra os des-
mandos dos latifundiários locais. Em 1947 o PCB (Partido Comunista Brasileiro) é posto na ilegalidade e a
forte repressão acaba com as ligas camponesas, muitas vezes, pela atuação de jagunços contratados pelos
próprios latifundiários. A questão agrária só volta a ser discutida no período de 1950-1960. As ligas campone-
sas, ressurgem em 1954, agora com o apoio do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Um dos grandes problemas
do movimento pela reforma agrária antes de 1964 era o fato de que a Constituição brasileira de 1946, pri-
meira constituição a consagrar o instituto da desapropriação por interesse social, só admitia a desapropriação
de terras mediante indenização prévia em dinheiro: “Mas somente com a Constituição de 1946 é que surgiu
a figurada desapropriação por interesse social, infelizmente incubada em estado latente até 1962, com o ad-
vento da Lei n. 4.132 de 1962, definidora das hipóteses de desapropriação por interesse social” (BOMFIM,
2000, p. 74).

Com João Goulart no governo, a questão social voltou a figurar no cenário político, ele defendia, desde
1961, uma reforma de base, que além de outras reformas, tinha como pleito a reforma agrária. “Criou-se
assim, em 1962, a Superintendência de Política Agrária SUPRA), e posteriormente o Estatuto do Trabalha-
dor Rural, aprovado em 1963. Este estendia aos trabalhadores do campo uma série de garantias e direitos
já garantidos aos trabalhadores urbanos na Era Vargas” (BORTOLOZZI, 2008, p. 26 ). Como parte impor-
tante do seu projeto, João Goulart enviou ao Congresso Nacional um projeto de reforma agrária, como havia
prometido em um comício popular realizado em 15 de março de 1964. O projeto não chegou a ser votado,
e em 1º de abril de 1964 com o apoio de grupos mais conservadores e dos EUA, que temiam uma expansão
comunista e uma revolução no campo aos moldes da que ocorrera em Cuba, as forças armadas derrubaram
o governo democrático de João Goulart.

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A ditadura militar, com a premissa de controlar as tensões agrárias, que ganhavam força, em especial
no nordeste (Ligas camponesas) e no Sul (‘Master’, encabeçado por Leonel Brizola), emitiu, ainda em 1964,
o Estatuto da Terra que reconhecia a função social da propriedade privada e permitia a desapropriação para
fins de assentamento agrário em caso de tensão social, e, mais tarde, na chamada Emenda Constitucional
no.1, de 1969 à Constituição brasileira de 1967, passou a admitir a desapropriação mediante pagamento
em títulos de dívida pública. Mesmo que dentro do contexto da ditadura essa idéia não tenha tido a devida
eficácia, mais tarde foi de suma importância, servindo de base para as tentativas de reforma agrária no pós-
-ditadura militar.

A Constituição Federal de 1988, que reflete todas as tensões vividas em peródos anteriores, principal-
mente, no período ditatorial, traz em si os direitos que não raras vezes foram motivos de luta, principalmente
aqueles direitos ligados a igualdade e a justiça social e, portanto, com os direitos ligados à reforma agrária não
seria diferente. Institui em seu art. 5º, XXII o direito a propriedade e logo a seguir, no art. 5, XXIII, a exigên-
cia de que a mesma atenderá a sua função social. Além disso, insere a propriedade privada e a sua função
social não só no rol dos direitos individuas, mas também como instituição da ordem economica (art. 170, I
e II) e que como tal, devem seguir a realização de seu fim, qual seja, assegurar a todos a existência digna,
conforme os ditames da justiça social.

Isso, no entanto, não quer dizer que efetivamente a reforma agrária tenha acontecido. São diversos
os motivos encontrados para tornar o direito inócuo. A função social deve seguir certos requistivos, que, nem
de longe, referem-se a fundamentos puramente econômicos: Reza o Art. 186. da Constituição Federal que
a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus
de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II - uti-
lização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários
e dos trabalhadores.

Dessa maneira a função social da propriedade nada mais é, do que o uso com liberdade do direito a
propriedade, mas sem desrespeitar o bem maior, que é o da coletividade, visando o bem-estar humano e não
permitindo que os imóveis rurais sirvam apenas a objetivos especulativos e acabem por resultar no êxodo
rural, massacre dos indivíduos e principalmente na miséria dos trabalhadores rurais.

No entanto, a função social e seus requisitos não são os únicos fatores a serem observados. Mesmo
que a função social não seja um fator meramente econômico, que obedeça somente a requisitos como pro-
dutividade ou tamanho, não se pode entender que a constituição permita que todos os imóveis rurais, sejam
desapropriados para esse fim. Existe uma classificação agrária prevista no art. 185 da Constituição Federal
- que não pode deixar de ser levada em consideração – referente ao tamanho da propriedade: de pequena,
média ou grande propriedade. E, assim, somente aquela que é definida como grande propriedade pode sofrer
ação expropriatória mediante indenização, pelo instituto da desapropriação, para que não se caracterize o
confisco, ou seja, para que mais uma vez, se proteja o direito à propriedade em seu caráter absoluto. Eviden-
te que o conteúdo do art. 185 se reveste de extrema relevância, porém, não raras vezes, a função social da
propriedade fica restrita a esse mero fator. O que, claramente, é inaceitável. Como já visto, o real sentido do
cumprimento da função social da propriedade está para além da economicidade do bem em questão, e o seu
alcance abrange a todos os imóveis rurais. Ainda nesse sentido, sendo esse um problema de direito público,
para que as já citadas exigências sejam cumpridas e a propriedade realmente siga o verdadeiro objetivo da
função social é preciso responsabilidade e fiscalização:

O estado exerce o papel de fiscalizador e orientador do princípio da imposi-


ção assumida pela propriedade, uma vez que é responsável pela vigilância
e direcionamento dos diversos segmentos da sociedade e, em especial, en-
carregado da promoção do bem-estar social. Portanto, essa obrigação estatal
decorre da necessidade de se efetivar o enfoque constitucional do direito de
propriedade, onde esta – a propriedade- deixa de ter características privati-
vas, egoísticas de outrora, para dar cumprimento aos princípios embutidos ao
novo conceito de detenção da propriedade, onde a justiça social tem sempre

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que prevalecer, até mesmo para fortalecimento da democracia. (OLIVEIRA,


2000, p. 36)

Destarte, é de se observar que nunca houve no Brasil uma efetiva fiscalização, nem ao mesmo, um
efetivo interesse para que houvesse uma real política de redistribuição de terras, de reforma agrária, per-
manecendo até hoje um modelo estrutural semelhante ao do período de colonização, baseado no grande
latifúndio.

Sendo assim, para que suas reivindicações fossem garantidas constitucionalmente e para que, depois
de serem reconhecidos, esses direitos sejam plenamente efetivados não pode se abrir mão da constante luta.
E então, ainda a partir do fim da ditadura militar e da retomada democrática no Brasil, os camponeses pu-
deram se reorganizar e retomar sua luta histórica pela reforma agrária. Surge então, com o apoio da igreja
e dos partidos de esquerda, através de ocupações de terras no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em
1980, mesmo período em que havia no Paraná um conflito entre famílias e o governo devido as inundações
de terras para construção da Itaipu, o movimento do trabalhadores sem terra (MST). “Outras lutas aconte-
ciam pelo Brasil todo, sendo que a partir do descobrimento da área do Pontal do Paranapanema (São Paulo),
o MST ganhou notoriedade nacional”. (BORTOLOZZI, 2008, p. 53)

Para entermos como o MST, movimento cuja luta é legitma, devido a instituições em que estão ali-
cerçadas, passa de um movimento social a um inimigo do estado e da sociedade, é preciso que conheçamos
de que forma se da a criminalização.

3. ETIQUETAMENTO E SELETIVIDADE

A teoria do etiquetamento ou Labelling Approach surge na década de 60, no âmbito da criminologia


norte-americana. Apesar de não derivar diretamente das teorias marxistas, traz em seu bojo algumas con-
cepções oriundas delas. Ela, como as demais teorias da reação social, surge como uma limitação as teorias
estruturais, rompendo com o paradigma etiológico, tornando-se um novo paradigma. “Muitos autores quei-
xaram-se de que a teoria da rotulação não fornece uma explicação etiológica do desvio, nem diz como as pes-
soas que cometem atos desviantes passam a fazê-lo – e especialmente porque elas o fazem, enquanto outras
à sua volta não.” (BECKER, 2008, p.180). Para ela, o delinqüente não pode mais ser o objeto de investigação,
em seu lugar aparecem às instâncias de controle social. O interesse da pesquisa se desvia do desviado e do
seu meio social e se aproxima daqueles que o definem como tal, ao invés de explicar a criminalidade passa a
explicar o processo de criminalização. Dessa forma, o Labelling Approach acaba por se inserir na dogmática
como um teoria crítica.

Para Munhoz Conde e Hassemer (2008), dentro da teoria do etiquetamento a criminalização


é vista como fruto de uma estigmatização. Segundo eles, para os autores mais radicais é simplesmente a eti-
queta aplicada pelos meios de controle social formal. Já os menos radicais admitem que os mecanismos de
etiquetamento estejam presentes também nos meios de controle informais.

Baratta (2002) defende que, partindo de uma concepção interacionista, o labelling approach aponta
que o desvio é tido como o fruto da interpretação de um comportamento, que feito a partir de regras criadas
pela interação social, assume o papel de desvio a essas regras. Dessa maneira, o desvio é fruto de uma reação
social, que ao identificar o comportamento como “anormal” tendo em vista não estar de acordo com as re-
gras, passa a assumir a identidade social de desvio. Nas palavras de Goffman, “A diferença, em si, deriva da
sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptu-
alizada pela sociedade como um todo.” (GOFFMAN, 1988, p. 134), já Becker se refere da seguinte maneira:

Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em


algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de
comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “cer-
tas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pes-
soa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial,

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alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo
grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider. (BECKER, 2008, p.15)

Então, para que um comportamento seja tido como desviante, ele tem de romper com a idéia de
“normalidade”, idéia essa que é criada pelas próprias estruturas, no entanto, “o simples desvio objetivo em
relação a um modelo, ou uma norma, não é suficiente: é necessário que desencadeie uma reação social cor-
respondente” (BARATTA, 2002, p. 96). Para que um comportamento seja então, rotulado com sucesso como
desviante pelo senso comum, ele deve, além de se distanciar das normas estabelecidas, pressupor que se o
autor tivesse querido poderia ter agido de acordo com as normas e que ele sabia o que estava fazendo. Na
ausência dos requisitos citados, o comportamento, mesmo infringido as normas, constituiria uma exceção.
Como se pode ver, os elementos utilizados na definição de comportamento desviante no âmbito do senso
comum correspondem exatamente às categorias construídas pela ciência jurídica para a imputação de um
delito a um sujeito. Desse modo, “o processo de definição interno ao senso comum corresponde ao que se
produz no âmbito jurídico” (BARATTA, 2002, p. 97)

Dito isso, para que o comportamento já definido pela sociedade como “desviante” assuma, definitiva-
mente, o papel de comportamento criminoso, alterando a identidade social do individuo, ou seja, tornando-o
uma pessoa estigmatizada, é necessário que haja a ação do sistema penal, que define e reage sobre esse com-
portamento. O status de delinqüente prescinde necessariamente, do efeito da atividade das instâncias ofi-
ciais, de modo que, aqueles que praticam a mesma ação e não sofrem a ação dessas instituições, não recebem
o status de delinqüente. “Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas
uma conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um infrator. O desviante é alguém a quem
esse rótulo foi aplicado com sucesso” (BECKER, 2008, p. 22).

Munhoz Conde e Hassemer (2008) registraram que, dessa forma, o sistema penal não leva em conta,
no momento de sua atuação, o problema da estigmatização, pois é o próprio sistema quem cria o delinqüen-
te. Denunciam que isso se deve a diversos fatores, alguns jurídicos e alguns não jurídicos.

Primeiramente, referem-se ao argumento não jurídico da cifra negra, que consiste na crítica do uso
de estatísticas oficias para embasar certos argumentos, tendo em vista que, o que esta ali representando é
uma imagem distorcida da realidade, tomando como um dos argumentos que “aqueles grupos cuja posição
social lhes dá armas e poder são mais capazes de impor suas regras” (BECKER, 2008, p. 30) pode-se afirmar
que nem tudo o que efetivamente acontece é efetivamente apontado por esses dados. Segundo Becker:

Se o impositor [das regras] não vai atacar todos os casos de que tem conheci-
mento ao mesmo tempo, ele precisa ter uma base para decidir quando impor
a regra, que pessoas cometendo quais atos devem ser rotuladas como des-
viantes. [...] Algumas pessoas tem influência política ou know-how suficiente
para serem capazes de evitar tentativas de imposição, se não no momento da
detenção, pelo menos num estágio posterior do processo. (BECKER, 2008,
p. 164)

Dessa forma, deve-se tomar muito cuidado ao levar em conta os dados publicados com base em
registros oficiais, pois “um exame mais atento de pessoas agindo juntas nos mostrou que registros também
são produzidos por pessoas que agem juntas, e devem ser compreendidos nesse contexto” (BECKER, 2008,
p.193). Para Munhoz Conde e Hassemer (2008), são os poderosos que se inserem no âmbito da cifra negra
e, portanto, “as regras que determinam a definição de desvio e de criminalidade no sentido comum, estão
ligadas as leis, mecanismos e estruturas objetivas da sociedade, baseadas sobre relações de poder (e proprie-
dade) entre grupos e sobre as relações sociais de produção.” (BARATTA, 2002, p. 106) Outros dois fatores
citados são: O papel que o juiz assume como criado do direito e o relativo ao caráter invisível da esfera interna
do delito.

O primeiro nos remete ao fato de que a lei por si só não pode assegurar por completo a sua aplicação,
de modo que, a etiqueta advém não da lei, mas da interpretação que é feita pelos órgãos encarregados por

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sua aplicação. No entanto, não podemos esperar como fazia Montesquieu, que o juiz seja mera boca da lei.
Para Coutinho, “hoje, dogmas como o isolamento kelseniano do direito são coisa do passado, a neutralidade
dos juristas é quase arqueologia jurídica e sua imparcialidade só é imaginável com muito discurso que lhe dê
conta” (apud KHALED JR, 2009, p. 286). Destarte, quem dita à lei, ou “distribui a etiqueta”, é o agente do
controle social formal, que como já sabemos introduz elementos de cunho subjetivo a interpretação da lei, e,
o que se torna ainda mais perigoso, detém o livre convencimento sobre as provas, momento em que pode ser
ainda mais influenciado por preconceitos pessoais.

Outro problema suscitado se baseia na invisibilidade da esfera interna do delito, ou seja, a dificuldade
que o juiz tem de ascender à subjetividade do autor, fato que é exigível no âmbito do processo penal que se
utiliza de elementos como o grau de consciência e vontade. Isso significa que quando se trata do interior do
indivíduo, os agentes do controle social formal, devem deduzi-las com base em fatos ou dados nem sempre
inequívocos. Dessa forma, abre ainda mais precedentes para uma interpretação com base em convicções
pessoais. “O juiz inevitavelmente irá interpretar, seja intencionalmente ou não. Ele deve estar consciente
disso, para que possa exercer um mínimo de controle sobre sua própria subjetividade” (KHALED JR, 2009, p.
291), no entanto, a maioria das pessoas, ainda acredita que seja possível a total imparcialidade e neutralidade
desses agentes, inclusive eles próprios, e partir disso, deixam de lado a busca por uma verdade problemática,
acreditando que são capazes de obter a verdade real. Com isso, “a criminalidade como realidade social não é
uma entidade preconstituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últi-
mos a determinados indivíduos” (BARATTA, 2002, p. 107) e ainda, reafirmando e reproduzindo, no âmbito
da criminalização, “os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em
uma dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e oportunidades entre os indivíduos” (BARATTA,
2002, p. 106).

Contudo, a etiqueta de criminoso é desigualmente distribuída entre os indivíduos, alterando a identi-


dade social do estigmatizado, fazendo com que, na maioria das vezes, o individuo permaneça nessa condição.
Segundo Goffman:

Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja
completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discrimina-
ções, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos
suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia
para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, ra-
cionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças,
tais como as de classe social. (GOFFMAN, 1988, p. 15)

E assim, por exemplo, “o delinqüente de classe baixa que luta para defender seu “território” faz ape-
nas o que considera necessário e direito, mas professores, assistente sociais e a polícia vêem isso de maneira
diferente” (BECKER, 2008, p. 28).

Como já vimos, as instâncias oficiais de controle assumem um papel fundamental no processo de


criminalização dos indivíduos, principalmente no que concerne a distribuição da etiqueta de criminoso a
indivíduos dos estratos mais baixos da sociedade, como uma maneira de manter o status quo. No entanto,
outros meios de controle social também auxiliam nesse processo. Faremos breves considerações acerca do
papel da mídia enquanto meio de controle social informal e formadora de opinião.

É evidente o papel da mídia na construção de estereótipos criminosos, bem como na construção da


própria criminalidade. O sensacionalismo jornalístico acaba por criar mitos que são incorporados pela so-
ciedade, nas palavras de Khaled Jr. “neste contexto de espetáculo midiático, o convencimento da população
é obtido a partir de um discurso eminentemente sedutor, que faz com que o próprio publico para o qual é
voltado este direito penal repressivo acredite que essas medidas são eficazes”(KHALED JR, 2009, p. 116).
Um destes mitos, por exemplo, é a luta entre o bem e o mal, sendo que, o cidadão “proprietário” representa
o bem, enquanto que aqueles que se revoltam contra as instituições representam o mal. Segundo Khaled Jr.,
“a ânsia de adquirir bens deixa de ser um meio para a realização da vida, tornando-se um fim em si mesmo,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3. O TRIBUTO COMO INSTRUMENTO DE INDUÇÃO DE COMPORTAMENTO.

Importante ressaltar que apesar da alta carga tributária e consequente alto preço final dos produtos, o
que faria surgir, teoricamente, um conflito entre as preferências e os obstáculos à sua satisfação (COOTER;
ULEN, 2010, p.44), nem sempre o consumidor precisa abdicar de algo. Isso porque há uma parcela dos
consumidores, devido a fatores como renda, cultura, vício, restrição/possibilidade de consumo que não terão
seu poder aquisitivo afetado. No entanto, apesar dessa faixa da população ser indiferente às medidas aqui
trabalhadas, ressalve-se que aqueles mais afetados – e mais dependentes das prestações de serviços públicos
de saúde – são, em sua maioria, atingidos pela política de sobreoneração tributária.

A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde representa um


tratado internacional de saúde pública contra o tabagismo, e foi recepcionada no ordenamento jurídico bra-
sileiro através do Decreto Legislativo n. 1.012, de 2005. A referida Convenção, em sua parte III, ao tratar das
medidas relativas à redução da demanda de tabaco, traz, em seu artigo 6°, dispõe:

1.As Partes reconhecem que medidas relacionadas a preços e impostos são


meios eficazes e importantes para que diversos segmentos da população, em
particular os jovens, reduzam o consumo de tabaco.
2. Sem prejuízo do direito soberano das Partes em decidir e estabelecer suas
respectivas políticas tributárias, cada Parte levará em conta seus objetivos
nacionais de saúde no que se refere ao controle do tabaco e adotará ou man-
terá, quando aplicável, medidas como as que seguem: a) aplicar aos pro-
dutos do tabaco políticas tributárias e, quando aplicável, políticas
de preços para contribuir com a consecução dos objetivos de saúde
tendentes a reduzir o consumo do tabaco; (...)

Assim, não é de se ignorar a importância da tributação como instrumento de redução do tabagismo,


principalmente quando tal ideia é proposta (INCA, [2015]) por um tratado internacional elaborado pela Or-
ganização Mundial de Saúde e ratificado – até a data de 04 de março de 2015 – por 180 (cento e oitenta)
países.

É de fundamental importância ressaltar que a finalidade indutiva de determinada atuação estatal,


como a tributação aqui discutida, pode possuir tanto um caráter de incentivo como de desincentivo, quando
o que se busca, na verdade, é evitar tal prática. Para tanto, Grau escreve (2014, p. 145):

(...) Dois aspectos devo, no entanto, ainda pontualizar. O primeiro respeita ao


fato de nem sempre a indução manifestar-se em termos positivos. Também
há norma de intervenção por indução quando o Estado, v.g., onera por im-
posto elevado o exercício de determinado comportamento, tal como no caso
de importação de certos bens. A indução, então, é negativa. A norma não
proíbe a importação desses bens, mas a onera de tal sorte que ela se torna
economicamente proibitiva.

Ressalte-se, ainda, que resultados publicados pela Fiocruz (2014) confirmam ser a elevação dos
impostos sobre o cigarro fortes indutores na redução do consumo do produto e afirmam que ao se tornar o
cigarro economicamente menos acessível, houve uma redução média anual de 2% entre os anos de 2009 e
2013. Além disso, ainda segundo a Fiocruz (2014), o número de experimentação de cigarros por adolescen-
tes também diminuiu.

Demonstra-se aqui, portanto, que a tributação é forte elemento de desestímulo ao consumo do taba-
co, revelando-se como um instrumento multiuso e multifacetado, capaz de arrecadar receita enquanto inibe
práticas indesejadas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

4. O IMPOSTO PIGOUVIANO.

O imposto pigouviano, que recebe esse nome em homenagem ao economista britânico Arthur Pigou,
refere-se, segundo Mankiw (2005, p.213) aos impostos criados para a correção dos efeitos de externalidades
negativas. Por sua vez, externalidade negativa, ainda segundo Mankiw (2005, p.204), pode ser definida como
“o impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não tomam parte da ação”. Assim, ape-
nas a título de exemplo, diante de infinitas possibilidades, pode-se citar as externalidades negativas a poluição
resultante do consumo de combustíveis fósseis ou de quaisquer outras atividades industrias e, em especial,
as externalidades negativas provenientes do tabagismo.

Nesse sentido, ao se levar em conta os ônus resultantes do consumo de cigarro, como (INCA, [2015])
os gastos com programas de prevenção e conscientização sobre malefícios da referida prática, o tratamento
de inúmeras doenças que assolam fumantes ativos e passivos, a concessão de aposentadorias, pensões e ou-
tros benefícios previdenciários são apenas algumas das externalidades a que se visa corrigir.

Com o objetivo de sanar as mencionadas externalidades negativas, não apenas consequentes do uso
do tabaco, mas de muitos outros produtos, diversos países recorrem à majoração de tributos e preços para
conduzir a uma redução de consumo. Foi exatamente nesse intuito que o governo dinamarquês instituiu o
denominado “fat tax” incidente sobre alimentos ricos em gordura saturada. Apesar de tal medida não ter
continuidade em decorrrência de grande insatisfação da população, sendo extinta após cerca de um ano de
sua instituição (TERRA, 2012), percebe-se a finalidade de corrigir externalidades causadas por tal substân-
cia, como combater a obesidade em seu país e evitar (ou, até mesmo, ajudar a arcar com) futuros gastos da
máquina estatal com tratamentos de doenças decorrentes do sobrepeso, como diabetes e cardiopatias. Nessa
mesma linha, chegou também a se pensar, ainda na Dinamarca, na instituição de imposto sobre o açúcar e
produtos como o chocolate, mas, novamente, devido a pressões externas, a medida acabou por não se con-
cretizar.

Nesse sentido, observe-se o que Paes (2014, p. 180) assevera:

Um segundo motivo para se aumentar a arrecadação com o tabaco é a corre-


ção de externalidades (...). Produtos como cigarros, bebidas e combustíveis,
por exemplo, impõem custos a sociedade, e não apenas aos indivíduos que os
consomem. Assim, receitas extras são necessárias para cobrir este custo ex-
cedente. Neste caso a tributação de cigarros é vista como uma forma de fazer
com que os fumantes arquem com os custos que impõem à sociedade. [...]
alguns exemplos de custos impostos a outras pessoas pelo fumante, como o
mal-estar de se ficar perto de alguém que fuma, os prejuízos à saúde de quem
convive com fumantes (‘fumante passivo’) e os custos ao sistema público de
saúde por doenças relacionadas ao fumo.

Acerca do Imposto sobre Produtos Industrializados incidente sobre o cigarro, tributo objeto de estudo,
esse teve sua sistemática alterada pela Lei n. 12.546 de 2011, que, entre outras medidas, instituiu (INCA
[2015]) uma política de preços mínimos para os cigarros, além de estabelecer a utilização de alíquota ad va-
lorem de 300% aplicada sobre 15% do preço de venda a varejo do cigarro, resultando em uma carga efetiva de
45% de IPI sobre o preço final de venda. Com a vigência da supracitada lei (BRASIL, 2011), a carga tributária
total incidente sobre o cigarro chegou ao patamar de 81%, dos quais 45% destinam-se ao IPI, 11% a título de
PIS/Confins e, ainda, 26% relativo ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Ademais, conforme Haber Neto (2013, p.166), “o hábito de fumar é um dos principais fatores de ris-
co para o desenvolvimento de doenças crônicas, como o câncer e as enfermidades respiratórias”, o que deixa
claro que tal prática inviabiliza ou, no mínimo, dificulta a consecução do esculpido no artigo 196 da Magna
Carta. Assim, a utilização do IPI como um “imposto pigouviano” mostra-se como meio de arrecadação de re-
ceita, desincentivo de consumo e custeio das atividades estatais necessárias à prestação estatal para correção
das externalidades provocadas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi apresentada uma brevíssima consideração acerca da questão da extrafiscalidade do IPI incidente
sobre o cigarro como instrumento de indução comportamental e política pública de combate ao tabagismo
com a finalidade de proteger e promover a o direito social à saúde, demonstrando a grande utilidade de tal
medida.

Ao se analisar a relação preço versus demanda, foram esses dois elementos isolados de outro que
inevitavelmente influenciam nos resultados obtidos. Entretanto, o presente trabalho faz parte de um projeto
de longa duração, que busca, na verdade, questionar a real efetividade da tributação como política pública de
combate ao tabagismo. Pretende-se, a longo prazo, analisar cada uma – ou, ao menos, algumas – das variáveis
que trazem grande complexidade e dificuldade ao alcance do objetivo buscado, destacando-se, entre elas, o
vício.

De todo modo, é inegável a importância do contínuo debate acerca das possibilidades de resultados
provenientes de políticas públicas que combatam o tabagismo e demais práticas que possam influenciar ne-
gativamente o saúde e o bem estar social. A tributação ganha, então, destaque por figurar como um meio
economicamente viável – e rentável – para o Estado, haja vista ser responsável por um acréscimo patrimonial
do Estado, enquanto grande parte das políticas antitabagistas resulta em dispêndio de recursos públicos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA:


O PUNITIVISMO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E A IMPOSIÇÃO DA PENA PELO SISTEMA DE JUSTIÇA
CRIMINAL

Iricherlly Dayane da Costa Barbosa


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/CNPq).
iricherlly@gmail.com

João André da Silva Neto


Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).
joao.law.neto@gmail.com

Marília Montenegro Pessoa de Mello


Doutora em Direito pela UFSC, professora de Direito Penal na Universidade Católica de
Pernambuco e UFPE e coordenadora do grupo Asa Branca de Criminologia.
marilia_montenegro@yahoo.com.br

SUMÁRIO: 1. Considerações preliminares; 2. Metodologia; 3. PERSPECTIVAS DO SISTEMA PE-


NAL; 4. DEAMs, JECrims e a Lei Maria da Penha; 5. “Proteção” que silencia: constatações de uma
pesquisa de campo; Considerações finais; Referências.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surge num contexto de grande reivindi-
cação popular e midiática, como também, dos movimentos de mulheres e organizações feministas. Os seus
objetivos declarados que são o da prevenção e coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher,
estão inseridos num contexto constituído por muitas barreiras e resistências. Uma delas é o próprio motivo
de sua criação, ou seja, o machismo e os tradicionais estereótipos de gênero ainda entranhados na sociedade
brasileira, assim como as resistências, para além do social, que encontram seus representantes no cenário
político.

Medidas que procuram enrijecer o sistema penal, maximizá-lo no que tange a violência doméstica e
familiar contra a mulher, assim como controlar e silenciá-la encontram largo espaço na sociedade brasileira.
Nessa perspectiva, foi feita a pergunta pela eficácia e aplicabilidade da Lei Maria da Penha.

Adotou-se como referencial teórico um discurso à luz da Criminologia Crítica, tendo em foco o dilema
do sistema penal como propagador de violência estatal (e estrutural) seletiva que oculta a origem do confli-
to, escolhendo seletivamente e simbolicamente um culpado para impor-lhe uma pena. E sua inapropriação
para resolver os conflitos domésticos e familiares, tendo em vista o fato de que o Direito Penal ao invés de
minimizar o conflito, acaba criando outros novos conflitos, que terminam por envolver além da mulher, seus
familiares e o seu agressor, a partir da consciência de que o processo penal já corresponde a uma pena.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. METODOLOGIA.

O levantamento dos dados desta pesquisa se deu pela utilização de duas técnicas distintas, porém
complementares, visto que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação
indireta e a documentação direta (cf. LAKATOS; MARCONI, 1991, 174-183). Por meio da primeira técnica,
foram feitas análises e estudos interpretativos e críticos, tanto de fontes documentais (textos legislativos e ju-
risprudenciais), quanto de fontes bibliográficas (livros, artigos, revistas especializadas e publicações avulsas).

O estudo documental e bibliográfico desenvolvido na primeira parte da pesquisa teve a finalidade de


munir a pesquisadora de fundamentação teórica para o desenvolvimento satisfatório da segunda etapa da
pesquisa, que foi realizada na 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVD-
FMR), que consistiu na pesquisa de campo.

Na pesquisa de campo foram coletados e analisados os processos criminais com sentenças prolata-
das ao longo de 1 (um) ano, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014, na VVDFMR. Entretanto, faz-se
necessário pontuar que a pesquisa deveria contar com a totalidade dos processos criminais com sentenças
prolatadas no lapso temporal supracitado (contabilizando um universo de 177 processos); no entanto 09
deles tiveram que ser descartados porque não foram encontrados, em hipótese alguma, na Vara. Contudo, a
pesquisa não ficou comprometida, tendo em vista que será realizada a análise de 168 processos (94.91% do
total).

2. PERSPECTIVAS DO SISTEMA PENAL.

O sistema penal que conhecemos hoje se desenvolveu durante os séculos XVIII e XIX tendo sua base
nas ideias liberais e na ideologia da defesa social, além de afirmar-se como ultima ratio, sendo usado teorica-
mente apenas quando os demais ramos do Direito não conseguissem resolver o conflito em questão (PINTO,
2002). Esse sistema trouxe consigo a ideia de uma proteção que atuaria tanto de forma geral, intimidando a
sociedade e consequentemente desmotivando o advento de novas infrações penais, quanto de forma espe-
cial, visando uma “ressocialização” do infrator. Contudo, o que é visto na prática é a atuação de um sistema
seletivo que escolhe sua clientela e que atua através da lógica de higienização social imposta pelo capital; de
tal forma que para uns existirão as garantias individuas e para outros a mão de ferro do Estado Punitivo.

O sistema que atuaria como última medida apresenta-se hoje como um sistema em larga expansão.
Por trás de um discurso emergencialista trazido por uma lógica de medo e justificador do Estado de Exceção
esconde-se uma lógica liberal de atuação, onde o Estado garantidor é mínimo e o Estado punitivo é máximo.

Por sua vez, analisando-se especificamente a questão de gênero, o Direito Penal tem um histórico no
qual a mulher sempre foi colocada no polo passivo, por sua condição de “vulnerável” e “inferior”, desde que
atendesse à “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005).

Foi seguindo essa lógica que se firmou ainda mais uma sociedade patriarcal, que legitimava, com o
auxílio do sistema penal, condutas que diziam visar a “defesa da honra” e a “proteção da família”. E por trás
dessa “defesa” legitimada pelo sistema, muitos casos de violência contra a mulher foram silenciados. (BA-
RATTA, 2009).

Como não havia igualdade de direitos entre homens e mulheres, a maioria dos crimes praticados
contra a mulher não chegava ao conhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não
resultava em processo criminal, gerando a chamada “cifra oculta” do crime. Por conseguinte, tinha-se falsa
impressão de que não havia violência alguma contra a mulher.

A mulher só começou a ter algum tipo de visibilidade após a vigência da Constituição Federal Brasilei-
ra de 1988, quando os direitos das mulheres e dos homens foram equiparados. Contudo, a violência domés-
tica e familiar contra a mulher só começou a ser evidenciada a partir do surgimento dos Juizados Especiais
Criminais, em 1995, quando o número de denúncias relativas a esse tipo de violência passou a ser alarmante.

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Depois de evidenciada pelo sistema, a violência doméstica e familiar contra a mulher começou a ser
publicizada e assim aumentaram os clamores por uma punição mais severa e um meio emancipador para
a mulher, clamores que não vieram mais exclusivamente do movimento feminista, mas da sociedade como
um todo. Foi devido a essa pressão social que o legislador viu-se obrigado a tomar uma medida, e de forma
imediatista elaborou a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha.

Entretanto, faz-se necessário avaliar até que ponto essa lei penal tem condições de solucionar o con-
flito relativo à violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo, também, um meio emancipatório. E é
imprescindível atentar para o fato de que nas últimas décadas nossa política criminal foi sempre uma política
emergencial, não amparada por qualquer arcabouço teórico e apartada de dimensões axiológicas, resultando
assim em um Direito Penal Máximo, inflacionário e inefetivo (FERRAJOLI, 2002).

3. DEAMS, JECRIMS E A LEI MARIA DA PENHA.

O combate institucionalizado à violência doméstica teve seu início na década de 70, através do SOS
Mulher, que servia como um centro de atendimento para as vítimas. De modo que através dele as agressões
sofridas pelas mulheres tomaram certa visibilidade, o que possibilitou a criação das Delegacias Especializadas
de Atendimento à Mulher (DEAM). Apesar de terem sido criadas com o propósito de atuar como as demais
delegacias, na prática, tais delegacias tiveram suas funções alteradas. Ao invés de instaurar um inquérito,
as mulheres procuravam as DEAMs para que seu conflito fosse mediado. A pretensão não era penalizar o
agressor, mas apenas intimidá-lo (uma coação informal). O espaço servia para um aconselhamento e evitava
a atuação impessoal da Lei Penal.

Por sua vez, os Juizados Especiais Criminais (JECrims), regulamentados pela Lei 9.099/95 em aten-
ção ao disposto no artigo 98, I, da Constituição Federal, surgiram como uma alternativa à desburocratização
da pesada máquina de persecução penal (CAMPOS; CARVALHO, 2006).

Esses juizados passaram a receber os casos de violência doméstica contra a mulher, com exceção
apenas do homicídio, do abuso sexual e das lesões mais graves. Dos casos que chegavam aos juizados espe-
ciais cerca de 70% tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Contudo, por mais que os
JECrims tenham implicado no desvelamento da violência doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou
de encontrar outras formas de tratamento preventivo ou repressivo (CAMPOS; CARVALHO, 2006).

O tratamento dado aos casos de violência doméstica contra a mulher equiparando-os aos crimes
classificados como de menor potencial ofensivo menosprezou a peculiaridade e a complexidade da situação,
e tirou do debate a violação a direitos fundamentais que é tal violência. De modo que 90% dos casos de vio-
lência doméstica contra a mulher trazidos aos juizados eram arquivados, e os que tinham alguma resposta do
poder público à violência sofrida, o agressor era condenado, por meio da substituição das penas privativas de
liberdade por penas restritivas de direitos, a pagar cestas básicas a alguma entidade filantrópica ou pequena
multa em dinheiro. (CAMPOS, 2011).

Dessa forma, não demorou muito para que o modelo de atuação dos Juizados Especiais Criminais
começasse a ser questionado. Como afirma Campos e Carvalho (2006, p. 413)

Sem observar a predominância histórica do paradigma masculino que se in-


filtrou na nova Lei, a maioria dos juristas, inclusive número expressivo da
crítica jurídica, acabou por não considerar em suas análises tais implicações.
A mais importante deriva do fato de que, em se tratando de violência de gê-
nero, o polo passivo (da relação penal material) é composto majoritariamente
de mulheres. Assim, a exclusão da análise de gênero sobre a Lei 9.099/95
impossibilitou compreender as diferenças da incidência do controle formal
sobre as mulheres.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

De maneira que a banalização feita nos juizados especiais em relação a violência doméstica, tornou-
-se algo latente até aos olhos das novelas brasileiras (a exemplo da novela Mulheres Apaixonadas, 2003, do
canal Globo). As críticas em relação ao crescimento da violência doméstica (o que não corresponde necessa-
riamente a um aumento real dos casos de violência doméstica, mas que estes estavam tomando visibilidade)
e a permissividade da lei com os agressores, ensejaram o apoio midiático e populacional, que pressionaram o
Estado a tomar uma resposta política, e a Lei 11.340 foi sancionada.

A Lei Maria da Penha veio com o escopo de ampliar os mecanismos estatais de proteção da mulher,
criando meios de prevenir e coibir a violência doméstica e familiar. A Lei 9.099/1995 foi afastada, não inci-
dindo mais sobre os casos de violência doméstica e familiar (art. 41, Lei 11.340/06), uma vez que a violência
doméstica não poderia mais ser vista como um delito de menor potencial ofensivo, mas deve ser tratada
em toda a sua complexidade no que tange áreas penais, cíveis etc., como a peculiaridade do envolvimento
afetivo característico da agressão. Além de facilitar o acesso à Justiça, a nova Lei possibilitou a utilização de
medidas protetivas de urgência, previu a criação de grupos multidisciplinares de apoio à vítima, unidades de
atendimento aos agressores e trouxe para o Estado a responsabilidade de se utilizar de medidas de prevenção
à violência doméstica contra a mulher.

A Lei expressamente declara seu objetivo de amplificar os mecanismos de atuação do Estado no tra-
tamento dos casos de violência doméstica e familiar, não se restringindo ao viés da punição penal do agressor:
uma previsão que não resistiu a empiria.

Contundo, faz-se necessário evidenciar o enrijecimento trazido pela Lei Maria da Penha. Tal lei tam-
bém aumentou o referencial quantitativo da pena em abstrato dos crimes de violência doméstica (de seis
meses a um ano, para de três meses a três anos) de modo que eles deixaram de ser considerados Crimes de
Baixo Potencial Ofensivo; possibilitou a utilização da prisão preventiva quando o crime envolver violência
doméstica e familiar contra a mulher; vedou a possibilidade de condenação à prestação pecuniária ou ao pa-
gamento isolado de multa; e afastou expressamente, no seu artigo 41, ou seja, a aplicação da Lei nº 9.099/95.

A incidência da Lei Maria da Penha e consequente vedação de atuação dos Juizados Especiais Crimi-
nais em casos de violência doméstica não vem conseguindo minorar, no âmbito familiar, a figura da violência
doméstica. Essa Lei, que pretendia também trazer um empoderamento para a mulher vem fraquejando
frente à lógica penal (e ainda patriarcal) vigente.

4. “PROTEÇÃO” QUE SILENCIA: CONSTATAÇÕES DE UMA PESQUISA DE CAMPO

Depois de um ano de pesquisa o que pôde ser visto foi que a lei, que deveria dar voz a mulher, até en-
tão calada por esse Sistema, vem mais uma vez reforçar o caráter apropriador de conflitos da lógica penal. A
vítima, maior interessada na resolução do conflito, continua tendo sua voz usurpada por um Sistema que diz
(falsamente) a proteger; que tem como função real, como nos diz Andrade (2006, p.28), “manter estruturas,
instituições e simbolismos, razão pela qual, repita-se, não pode ser um aliado no fortalecimento da autonomia
feminina”.

Na maioria das vezes, como pôde ser visto no desenvolver da pesquisa de campo, o que é almejado
pela mulher não é a persecução penal, mas o rompimento do ciclo de violência e a consequente retomada
da paz familiar.

Conforme os dados coletados na pesquisa de campo, dos casos passíveis de retratação, a porcentagem
de mulheres que pediram a retratação foi de 41%, as que expressaram o desejo de retratar e foram obstadas
em razão da superação do prazo legal para tanto foi de 6%, quase 50% das mulheres, valendo a ressalva pre-
sente no comentário acerca do fato pela pesquisadora Carolina Salazar, essa parcela poderia ultrapassar os
50%:

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Observe, no gráfico acima, que há a indicação de casos em que a mulher


desejou retratar-se e foi obstada de assim proceder em razão da superação do
prazo legal concedido para tanto (6%). A prévia contemplação dessa possibi-
lidade na pesquisa documental se deu em razão da visualização, na pesquisa
etnográfica, de inúmeros casos em que a vontade de retratar da mulher era
tolhida pela superação do prazo no qual a lei lhe facultava o exercício da re-
tratação da representação. Já esperava, entretanto, a baixa frequência de tal
informação nos resultados da pesquisa documental porque constatei que, no
cotidiano da VVDFMR, a informação de que uma mulher manifestou a sua
vontade de retratar no período em que a Lei não mais lhe permitia é rara-
mente é incluída no processo. (MEDEIROS, 2015, pg 110)

Dados ainda mais significativos são os dos processos em que há a referência expressa que a mulher
manifestou vontade de “desistir” do processo, nos casos em que os crimes não são passíveis de retratação.
Corresponde a 28,8% o percentual no qual foi expresso no processo a vontade de desistência da mulher.
Levando em consideração a mesma ressalva feita para os crimes passíveis de retratação, o percentual aqui
mostrado de 28,8% é quando pensado nos desejos não incluídos no documento do processo. Estes dados só
confirmam o fato de que uma parcela considerável das mulheres não deseja a continuação do processo, nem
a criminalização dos seus agressores, tendo suas vontades tolhidas.

Nesse Sistema Penal que impera não há espaço para outras formas de resolução de conflitos; ele re-
duz o possível leque de soluções que a vítima poderia trazer, tendo em vista que ninguém sabe mais de suas
necessidades do que ela própria, à única resposta que o Direito Penal sabe dar: o punitivismo encarcerador.

Frente à lógica processual penal, é relegado à mulher o papel secundário na ação penal. Após a in-
formação oficial da ocorrência ou após a representação penal, a vítima não passa de uma mera informante
e seus anseios pouco importam; a prioridade nesse momento passa a ser a condenação do réu. Trata-se de
uma estrutura processualística que neutraliza a vítima e apropria-se do conflito (FAYET JÚNIOR; VARELA,
2014).

As audiências do artigo 16, que antes eram realizadas para saber se a mulher desejaria retratar ou
não, nem são mais realizadas na Vara na qual se deu a pesquisa de campo, como forma de fazer com que
elas não se sintam pressionadas a desistir (e aqui já vemos uma atuação que, visando “proteger” a mulher,
acaba por retirar parte do seu poder de resolução do conflito). Sem as audiências, muitas das mulheres que
desejavam retratar acabam não o fazendo por não conhecerem os trâmites legais. Sendo importante pontu-
ar o baixo nível de instrução dos homens (apenas 12,5% tem o ensino superior completo ou incompleto) e
mulheres (apenas 15,5% tem o ensino superior completo ou incompleto) que frequentam a Vara. Quando
vêm após o prazo para retratação, muitas vezes não entendem do que se trata e acabam por retornar várias
e várias vezes na tentativa de desistir de um processo que não procuraram.

E é nesse contexto que começa a acontecer um novo silenciamento por parte das mulheres. Quando
ficam sabendo da possibilidade de prisão do seu agressor e da sua “impotência” perante o processo penal, as
vítimas acabam preferindo o silêncio à denúncia.

O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que envolvem partes que pouco se
conhecem (ou nem se conhecem) e lida com tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violên-
cia doméstica foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua maioria (73,7%),
pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que, por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com
o qual o Sistema Penal não está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram um
relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a aumentar a ligação afetiva entre vítima e
suposto agressor.

Fica claro também que o maior interesse das vítimas é pelas Medidas Protetivas de Urgência, tendo
em vista que em 70,2% dos processos analisados tais Medidas foram solicitadas (sendo 89,6% delas solici-
tadas pela própria vítima perante à autoridade policial). No entanto, as mulheres só têm direito às Medidas

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Protetivas caso estas estejam vinculadas à um Processo Criminal, Processo esse que não é bem quisto por
boa parte das vítimas, tendo em vista que 43,5% dos processos averiguados foram extintos sem resolução do
mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher (29,8% retratação; 10,1% decadência; 2,4
% renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% perempção).

Dessa forma fica evidente que o Sistema de Justiça Criminal só “protege” aquelas mulheres que per-
mitem a sua atuação.

A decisão pela aplicação das medidas protetivas de urgência em Ação Cível, ou seja, autônomas ao
processo penal, encontra divergência na jurisprudência do STJ, sendo infelizmente, minoria no tocante ao
tema. (Vide Recurso Especial Nº 1.419.421, do Relator Luis Felipe Salomão, 2014). Há uma resistência por
parte da doutrina e da jurisprudência em fundir as esferas cíveis e penais no tratamento da violência do-
méstica, o que vai de encontro com o escopo da Lei, que visa, para além da alçada penal, prevenir e coibir
a violência de gênero através de mecanismos além dos penais, sejam cíveis, administrativos ou de qualquer
outra natureza, sendo um retrocesso limitar os mecanismos da Lei a criminalização penal (Vide art. 7 da Lei
11.340/06). De forma que o entendimento preponderante de que as medidas protetivas de urgência devem
estar atreladas a um processo penal, ao invés de tornar as medidas protetivas uma possível solução do conflito
sem necessidade da intervenção penal, faz com que elas se configuram como uma antecipação ou acréscimo
da punição:

As medidas não-penais de proteção à mulher em situação de violência, pre-


vistas nos arts. 9º, 22 e 23 da Lei Maria da Penha, mostram-se providências
muito mais sensatas para fazer cessar as agressões e, ao mesmo tempo, me-
nos estigmatizantes para o agressor. Entretanto, inseridas em um contexto
criminalizante, pode-se imaginar que logo estaremos assistindo à colonização
das medidas protetivas pelas iniciativas tendentes à punição (mesmo antes
da condenação) dos supostos agressores, nos casos que conseguirem ultra-
passar a barreira do inquérito e alcançarem uma audiência judicial, quem
sabe quanto tempo depois do momento da agressão (AZEVEDO; CELMER,
2007, p. 12, apud MEDEIROS, 2015, p. 40).

O que se evidencia é que em nenhum momento é dado à mulher o protagonismo da Ação Penal. Não
cabe, dessa forma, à mulher decidir qual a melhor maneira de resolver ou amenizar seu conflito; até porque,
a partir do momento em que a vítima autoriza a persecução penal o conflito deixa de ser dela e seus anseios
não mais importam, a única coisa que importa é saciar a sede punitiva do Sistema e da população que bus-
cam em todos os casos de violência doméstica encontrar uma Maria da Penha. A mulher que vinha sendo
subjugada no âmbito privado, pelo seu suposto agressor, agora passou a ser subjugada no âmbito público, pelo
Sistema de Justiça Criminal. Sistema esse que como nos diz Andrade (2003, p. 120):

[...] não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à


mulher, como a única resposta que está capacitado a acionar – o castigo – é
desigualmente distribuído e não cumpre as funções intimidatória e simbólica
que se lhe atribui. Em suma, tentar a domesticação da violência com a re-
pressão implica exercer, sobre um controle masculino violento de condutas,
um controle estatal tão ou mais violento; implica uma duplicação do controle,
da dor e da violência inútil.

Dessa forma, o Sistema Penal, devido a seus mecanismos processuais e sua lógica de atuação, fez o
que seu histórico mais remoto já vinha apontando: as calou. É como diz Otero (2008, p.47-49), “o conflito,
portanto, é subtraído, por completo, da órbita de alcance das partes envolvidas e as múltiplas formas de solu-
ção disponíveis são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva”. E uma das consequên-
cias disso tudo é que as mulheres estão começando a preferir o silêncio à dolorosa e ineficiente intervenção
penal.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente a necessidade de mecanismos que minorem a violência doméstica. Contudo é preciso que
tais mecanismos sejam pensados para além do Sistema de Justiça Criminal. O Sistema Penal não protege
as mulheres de novas violências, não escuta os anseios das partes envolvidas (principalmente os da vítima),
não contribui para transformação das relações de gênero (tendo em vista seu caráter predominantemente
repressor) e pior, revitimiza as mulheres que veem-se sem poder algum diante de seu próprio conflito.

O Direito Penal tem um histórico de subjugamento da figura feminina, de manutenção de um pátrio


poder, e essa característica perdura até a atualidade. Não é possível que o Sistema que até hoje oprime, e que
ainda trabalha com parâmetro de honestidade feminina, venha trazer a proteção tão almejada.

É preciso dar espaço para que novas medidas sejam postas em prática, ou que medias já existentes
possam ter uma aplicação diferente, como é o caso das Medidas Protetivas de Urgência que poderiam começar
a ser aplicadas independentemente da existência de um Processo Criminal vinculado a elas. Entretanto, o
principal é dar voz às mulheres vítimas da violência, é considerar que só elas sabem as particularidades que
envolvem o seu conflito, só elas sabem os desdobramentos que determinadas medidas podem proporcionar.
É preciso perceber que essas mulheres não podem continuar sendo caladas, nem mesmo por outra mulher.

E por fim, faz-se necessário pontuar que ao desconsiderar a forte questão afetiva que envolve o crime
de violência doméstica, muito provavelmente, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) está incorrendo em um
erro tão grave quanto o cometido pela Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais) ao desconsiderar a questão
de gênero que este crime também envolve.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO


INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Jaqueline Maria de Vasconcelos


Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional,
pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa
Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com

Patrícia Freire de Paiva Carvalho


Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), pós-graduada
em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (MACKENZIE), mestre
em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora de
Direito da Faculdade Boa Viagem – Devry (FBV-DEVRY). pcarvalho7@fbv.edu.br

SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A cooperação entre os sujeitos processuais e o “novo” juiz no


Estado Democrático de Direito; 3. Influências do Novo Código de Processo Civil e os princípios da
Dignidade da Pessoa Humana e Acesso à Justiça; Considerações finais; Bibliografia

CONTEXTUALIZAÇÃO

Como já dizia Franco Júnior (1999, p. 180) “um mundo obsessionado pela atualidade é um mundo
obsessionado pelo esquecimento.” Tendo isso em vista, o presente trabalho foi disposto de modo a realizar
um breve retrospecto histórico.

Neste ano de 2015, a Magna Carta do Rei João Sem Terra completa os seus 800 anos e pergunta-se,
oportunamente, o porquê de toda sua relevância. Ora, é indubitável que a Carta de 1215 constituiu uma ver-
dadeira quebra de paradigma, uma vez que ousou ao impor diversas limitações ao poder do rei, o Absolutista.
Mas, além disso, ela já trouxe consigo institutos que são utilizados até hoje, no qual, dentre eles, tem-se o
Law of the Land (lei da terra/ devido processo legal), que hoje configura a base para manutenção do Estado
Democrático de Direito, como Lucon (1999, p. 113) compreende: “a cláusula genérica do devido processo legal
tutela os direitos e as garantias típicas ou atípicas que emergem da ordem jurídica, desde que fundadas nas
colunas democráticas eleitas pela nação e com o fim último de oferecer oportunidades efetivas e equilibradas
no processo.”

Imerso nesse contexto histórico de lutas sociais, Revoluções e conquistas, verifica-se, por outro lado,
a carência de um “novo” juiz que se adeque às necessidade de um mundo dinâmico e globalizado, que de-
senvolva de forma criativa sua função interpretativa da norma à luz dos preceitos constitucionais, trazendo
consequências ao resultado da sua aplicação, demonstrando a preocupação do Estado, a quem recebeu a
missão de representar, com as exigências sociais.

Atualmente, não se admite mais o juiz como mero expectador, simples reprodutor na lei, como se
dava no Estado Liberal, no qual ele era servo da legislação, sua atividade se restringia a aplicar a lei. Em
contraposição ao que ocorria no Direito Liberal, o formalismo moderno repudia o juiz limitado a aplicação

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

das normas de forma automática, desassociado dos valores sociais, do direito material e da efetividade do
processo.

Ademais, nota-se o enorme avanço da iminente legislação processualista no momento em que prome-
te conferir a possibilidade de influir na decisão do juiz de modo preventivo, antes mesmo do recurso, estimu-
lando um Estado-juiz mais proativo e ativo em prol de um Estado efetivo, que paulatinamente desentranhe
da população a inerente imagem de uma justiça lenta, falha e que olvida os direitos e garantias fundamentais.

É nesse espectro de mudanças e busca por um juiz mais ativo e proativo no processo civil, com vistas
a aproximá-lo do direito material, que surge o princípio da cooperação entre os sujeitos processuais, que se
devidamente aplicado, dá uma nova roupagem a garantia constitucional do contraditório, tornando-o mais
eficaz no sentido de oportunizar as partes não apenas a possibilidade de se manifestar (PARCHEIN, 2012).

Mas também de ajudar, efetivamente, o juiz na apuração e esclarecimento dos fatos ensejadores do
conflito, a fim de que o raciocínio jurídico por ele firmado quando na prolação da decisão seja com base na
verdade real, verdade material e não na verdade dos autos, verdade formal, muitas vezes construída em cima
de presunções decorrente de omissão da parte, ou alegações truncadas, provas mal instruídas, por exemplo.
Nesse sentido, é que o Novo Código de Processo Civil enfatiza os princípios processuais constitucionais,
como o do contraditório, ampla defesa e motivação das decisões Os dois primeiros encontram ênfase na
maior cooperação entre os sujeitos processuais, a partir de uma dialética mais ampla, dinâmica e horizontal
do processo (LAUAR, 2011)

O diálogo entre as partes e dessas com o magistrado a partir do novo código de processo civil ganha
contornos mais profundos. Está previsto o dever do juiz auxiliar as partes quando estiverem com dificuldades
para realização de qualquer diligência ou obtenção de alguma prova, a possibilidade do juiz pedir esclareci-
mento as partes de assunto que vislumbrou pouco ou mal explorado na inicial ou contestação, de prevenir
as partes dando a possibilidade de sanar vícios e evitar decisões surpresas, advertindo-lhes, por exemplo, de
questões de ordem pública que pensam estar visualizando nos autos, dando-lhes oportunidade de se mani-
festarem a respeito, antes de ser emitida qualquer decisão, ou seja,  ofertando a possibilidade de influir no
poder de decisão do juiz nessas matérias de modo preventivo e não apenas por meio de recursos.

Com isso, almeja-se um juiz que não apenas estimula as partes a prestarem esclarecimentos de
alegações por elas realizadas, como também as ajudam a afastar pequenos empecilhos que surjam para que
consigam dar o bom andamento ao processo e, ainda, as consultam acerca de alguma questão de mérito que
surja, até mesmo de ordem pública, para que se manifestem antes de proferir sua decisão, evitando decisões
surpresas e as proferindo de forma mais madura, com maior poder de convencimento (PARCHEIN, 2012).

Não há de se admitir uma interpretação gramatical da norma, como no Estado Liberal, tampouco o
juiz como sujeito supremo, um deus, no processo. Requer uma atividade interpretativa que vá além do texto
impresso da lei, que supere por definitivo o Estado Legalista, que descaracterize a Constituição simbólica,
aos moldes do professor Marcelo Neves, que não apenas garanta o direito de poucos, mas o direito de todos.

O juiz como sujeito cooperativo às partes e essa iteração total entre todos os sujeitos processuais ultra-
passará as barreiras da doutrina e jurisprudência com a vigência do Novo Código de Processo Civil, em 2016.
Isso porque o seu texto positivará essa postura colaborativa, dará sustento a esse novo conceito de contradi-
tório, influenciado pelo princípio da cooperação, modificando por completo a estrutura processual do Código
de Processo Civil de 1973, vinculado ao direito formal (GRECO, 2005).

Desta forma, através do método dedutivo com o levantamento bibliográfico de livros, artigos e perió-
dicos, serão postos em xeque os avanços e as limitações neoprocessuais, assim como a intensidade de sua
ligação com o movimento neoconstitucionalista em busca dos valores sociais e da construção de técnicas que
torne a prestação jurisdicional mais célere e efetiva.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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1. A COOPERAÇÃO ENTRE OS SUJEITOS PROCESSUAIS E A NECESSIDADE DO JUIZ HERMES.

O Estado Democrático de Direito é de salutar importância para a construção e manutenção de uma


sociedade justa e harmônica. Entretanto, construir e manter esses ideais sociais não é uma tarefa fácil e faz
emergir a busca constante a novas técnicas para o aperfeiçoamento jurídico.

Como traz Eduardo Cambi (2007, p.24), “a função dos juízes, pois, ao contrário do que desenvolvia
Giuseppe Chiovenda, no início do século XX, deixou de ser apenas atuar (declarar) a vontade concreta da lei
e assumiu o caráter constitucional.” Dessa forma, tem-se um processo como produto da relação e interação
de todos os sujeitos. Um juiz proativo buscando a apuração e demonstração da verdade, juntamente com as
partes, seja esclarecendo dúvidas, seja ele mesmo solicitando esclarecimentos sobre as alegações das partes
ou as orientando, quando necessário.

Sob esse prisma de cooperação, o contraditório passa contribuir efetivamente, como busca à verdade
material e efetivação da decisão judicial, para a formação do convencimento do juiz. Isso porque passará a
atuar como anteparo à lacunosidade ou insuficiência da sua cognição, por meio do caráter dialético do pro-
cesso, nitidamente presente ante os deveres conexos ao princípio da cooperação, a saber: de esclarecimento,
auxílio, consulta e prevenção.

O que se percebe é que mesmo diante de uma legislação processual civil que privilegia a verdade
formal, como o código vigente, de 1973, os anseios da sociedade moderno começou a cobrar mais do juiz da
condução do processo, exigindo um ativismo antes desconhecido.

Por essa razão, é que surgiu o princípio da cooperação entre os sujeitos processuais, dando nova in-
terpretação e aplicação às regras processuais. O direito moderno, exige um formalismo menos burocrático,
com maior margem de liberdade aos sujeitos processuais para demonstrarem e buscarem a verdade real nos
autos, o que é essencial para se aproximar ao ideal de justiça, esperada da atividade jurisdicional do Estado.
A partir daí é que os juízes modernos passaram a modificar a sua postura, como se pode perceber por meio
dos julgados colacionados nesse artigo (LAUAR, 2011).

O Estado Democrático de Direito busca de forma progressiva o acesso justo à justiça e é nessa propos-
ta que se encaixa o neoprocessualismo, trazendo consigo uma verdadeira quebra de paradigma, realçando o
princípio da dignidade da pessoa humana. Na contramão desse ideal, tem-se a resistência do judiciário para
se adequar a essa nova realidade, aos novos tempos. Mas, na verdade, qual modelo de juiz (e de justiça) que
se busca?

O professor Belga François Ost (MELEU, 2013), traz três modelos de juízes: o Júpter, o Hércules e o
Hermes. O primeiro é vinculado a um formalismo exacerbado; o segundo um juiz utópico, com tempo ilimita-
do e conhecimento absoluto, capaz de exercer a atividade hermenêutica no processo isoladamente, solitário
na construção de seu raciocínio para dar solução à lide.

Já o modelo herculeano está sustentado na figura do juiz, que seria a única


fonte do direito válido. Trata-se de uma pirâmide invertida, no dizer de Ost. É
Dworkin quem, no dizer do autor, ao revalorizar até o extremo a figura do juiz
moderno, atribui-lhe as características de Hércules. Embora diga que não
pretende “equiparar” a tese de Dworkin aos realistas ou pragmatistas, Ost
termina por colocar no Hércules dworkiano os “defeitos” que caracterizariam
o juiz “monopolizador da jurisdição” no modelo de direito do Estado Social,
em que o direito “se reduz ao fato”, enfim, à indiscutível materialidade da
decisão. Esse juiz propiciaria um deciosionismo, a partir da proliferação de
decisões particulares (STRECK, 2010, p. 22).

O último juiz – Hermes – privilegia a dialética entre os sujeitos processuais, que segue o princí-
pio da cooperação no processo civil, que demonstra a sua influência na atividade judicial através da condução
do processo, trazendo consequentemente uma maior efetividade, credibilidade e segurança jurídica, sem a

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

própria imparcialidade. “O juiz Hermes não é nem transcendência nem imanência; encontra-se em uma e
outra dialética ou paradoxalmente (uma e outra)” (STRECK, 2010, p. 22).

Nesse sentido, o Estado Liberal, que possui de forma metafórica o modelo jupteriano de juiz, utiliza(va) a igual-
dade formal como critério de justiça, com uma interpretação gramatical da lei. A atividade do judiciário, por conseguin-
te, se torna engessada, limitando-se à literalidade da norma como se fosse o interesse estatal cristalino e legítimo. Nota-
-se que com essa prática a atividade hermenêutica é tão somente reduzia à técnica gramatical, sem preocupação
com a finalidade da norma ou com a sua devida adequação à realidade.

Esse modelo hoje tão repudiado, possuía em sua essência o temor do retorno ao modelo de Estado
Absolutista. Dessa forma, acreditava-se que se houvesse diferença entre o julgamento e a lei, a liberdade
política estaria sendo violada, resultando em uma época do formalismo extremo, sendo conhecida a era da
geometrização do Direito. A analogia que se fazia do direito com as ciências exatas se justifica com a missão,
hoje sabidamente impossível, conferida ao legislador, de prever solução para todos os casos que pudessem ser
objeto de conflito, bem como de acompanhar, a contento, as modificações sociais (GRECO, 2005)

Emergia, então, novas necessidades sociais e a modificação dos costumes não comportava mais um
direito exacerbadamente formal, dando vez ao modelo de Estado Social decorrente de numerosas lutas so-
ciais entre o proletariado e os detentores do capital. Ao contrário do que se tinha no liberalismo, a proposta
do Estado Social era de natureza intervencionista e de compromisso social no que se refere à tutela dos in-
teresses coletivos (BONAVIDAES, 2009). 

Mas o Estado Social foi frustrado pelos modelos antagônicos à democracia. Hitler e Mussolini, na
Alemanha e Itália, também pleiteavam pela satisfação das necessidades primárias do povo. Ocorre que o
totalitarismo anulava a liberdade, as garantias e os direitos humanos. Assim, o pós Segunda Guerra Mundial
cravou um verdadeiro marco na luta por instrumentos para efetivação da justiça e de proteção à democracia
e ao cidadão, trazendo consigo o Estado Democrático de Direito.  

O Estado Democrático de Direito, enquanto paradigma superador de outros


tipos de Estado que aconteceram, requer não apenas uma nova hermenêu-
tica constitucional, mas também, um “novo juiz” cujo modo de interpretar e
aplicar o direito supere a figura do juiz que poderia servir no Estado absolu-
tista ou no Estado liberal, mas não, no Estado Democrático de Direito. Este,
em razão de sua constituição principiológica, necessita de uma hermenêu-
tica constitucional capaz de trabalhar não apenas com regras, mas também
com princípios. [...] Essa nova hermenêutica pressupõe a presença de um
“novo juiz”. Um juiz que mantenha os olhos abertos aos novos tempos, tem-
pos estes que, se, por um lado, apontam para muitos riscos, por outro, são
também de renovação e esperança. Este “novo juiz” caracteriza-se não em
razão da idade, mas da mentalidade, isto é, do pensamento que orienta suas
ações (GOMES, 2009, p.363).

Nesse contexto, o juiz desempenha função de extrema e reconhecida importância na busca de uma
argumentação jurídica mais próxima da hermenêutica constitucional ao invés da legal. O “novo juiz” assumi
papel crucial na construção do neoprocessualismo, que consiste em uma verdadeira constitucionalização do
processo civil (LOURENÇO, 2011).

2. INFLUÊNCIAS DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA.

Não há que se discutir que o princípio da dignidade da pessoa humana é a premissa maior para o
Estado Democrático de Direito e o ponto de partida para qualquer discussão sobre a teoria do direito. Contudo,
se observa uma espécie de atrofiamento, que enfraquece a magnitude desse princípio, como Ferreira (2013,
p. 9) compreende: “Devido a sua excessiva invocação em muitos casos em que a dignidade da pessoa huma-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

na deveria ser defendida de forma mais vigorosa devido a sua clara violação ela acaba sendo tratada de forma
leviana e sem a necessária importância que lhe é devida.”

Mesmo com isso, a inclusão de alguns dispositivos no Novo Código de Processo Civil foi algo de di-
versas críticas. Havia um verdadeiro clamor contra a consignação expressa na legislação infraconstitucional
dos preceitos constitucionais e a justificativa se dava no sentido de que aqueles elementos só desempenham
meramente papel simbólico, uma vez que mesmo se não houvesse previsão, deveriam ser aplicados (MARI-
NONI, 2010).

A argumentação possui bastante coerência, mas desconsiderou o déficit cultural que a sociedade
brasileira possui quanto à dependência da legislação infraconstitucional, pois na prática e por vezes, ela se
sobrepõe aos ditames constitucionais. Já o neoconstitucionalismo visa fazer da Constituição o início e o fim
da interpretação jurídica (ALMEIDA, 2014).

Essa revisitação do fenômeno constitucional parte do pressuposto da reafir-


mação da força normativa da Constituição e sua consequente densificação.
Assim, com seu fortalecimento, em que a imperatividade de suas normas
atinge todas as searas do Direito, surge uma legalidade superior à legalida-
de ordinária, deslocando a primazia do legislador infraconstitucional para o
cumprimento da vontade do sujeito constituinte, composto de forma plu-
ral pelos mais variados segmentos da sociedade (AGRA, 2008, p. 436 Apud
LOURENÇO)

Diante desse cenário, o legislador infraconstitucional se preocupou em trazer no Anteprojeto do Novo


Código disposições que aproximassem expressamente a Constituição Federal do Processo Civil, no intuito
de complementariedade, conforme a teoria circular dos planos processual e material do italiano Francesco
Carnelutti. De modo a trabalhar o direito formal e material sem hierarquia, uma vez que ambos são instru-
mentos para efetivação de uma sociedade livre, justa, solidária.

Ora, a atuação do poder judiciário deve ser pautada na busca da efetivação da justiça e dos princípios
e fundamentos do Estado Democrático de Direito, de modo que haja pragmatismo dos direitos e garantias
fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. Dessa forma, verifica-se que essa nova fase do pensa-
mento jurídico, a interpretação da legislação infraconstitucional, que ensejou a nomenclatura “neoproces-
sualismo”, exige uma adaptação da norma, mas acima de tudo, do sujeito processual, do jurista aplicador do
direito (LOURENÇO, 2011).

E mesmo sob fortes críticas de prolixidade e simbolismo do anteprojeto do novo código de processo
civil, deve-se ter em mente que as cláusulas gerais que serão trazidas na lei buscará tão somente atender aos
fins sociais com a devida observância da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência sob
ligação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana, que não deveria ser novidade em ordenamento
jurídico que já trata desses dispositivos em sua Carta Magna há mais de 25 anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição do Estado e a sua legislação processual, por vezes, são apresentadas dentro de uma
faceta hierarquizada, como se o direito material estivesse sempre acima do direito formal. Decerto e não há
de se negar que o Direito Constitucional compreende um complexo axiológico que reflete e guia todo o or-
denamento jurídico.

O Novo Código de Processo Civil, por sua vez, vem quebrando os paradigmas enfatizando os princí-
pios processuais constitucionais, como o do contraditório, ampla defesa e motivação das decisões. Os dois
primeiros encontram ênfase na maior cooperação entre os sujeitos processuais, a partir de uma dialética
mais ampla, dinâmica e horizontal do processo, no momento em que prevê o dever de o juiz auxiliar as par-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tes, se necessário, na realização de diligências ou na empreitada pela busca da verdade real com a obtenção
de alguma prova.

Por meio da consagração do princípio da cooperação, ter-se-á uma quebra de paradigma e forte tran-
substanciação no processo civil, que passará a adotar novas bases na busca da solução do litígio, a partir da
preocupação com a apuração da verdade real, exigindo-se para isso o estabelecimento de uma dialética pro-
cessual que rompa a simples formalidade do contraditório como binômio de ciência e participação.

Em outros termos, exigindo-se do magistrado uma postura bem mais ativa e perto de ambas as partes,
estabelecendo-se uma real efetividade à dialética processual na busca de uma resolução mais justa ao caso
concreto. A estrutura triangular do processo, na qual o juiz se encontra em posição superior e onipotente
cede espaça a sua horizontalização, que prevalece durante o regular desenvolvimento do processo na apura-
ção dos fatos para formar o convencimento do juiz.

Com essas percepções, encara-se o novo cenário global e a obsoleta legislação processualista vigente,
que diferente do almejado, se torna um elemento aberto para fomentação da cultura protelatória brasileira.
Em outras palavras, o direito processual que deveria efetivar a justiça e fortalecer as diretrizes do Estado
Democrático de Direito, parafraseando Rui Barbosa, é tardio institucionalizando a injustiça.

Dessa forma, a presente pesquisa se pauta na teoria circular dos planos processual e material de
Carnelutti, defendendo um sistema de complementariedade entre o direito formal e material, uma vez que
ambos são instrumentos para efetivação de uma sociedade livre, justa, solidária. Sabendo que é preciso
uma atividade jurisdicional que entenda a necessidade da hermenêutica constitucional da norma à luz dos
anseios da sociedade, bem como de um processo civil com menos presunções e mais apuração na busca da
verdade material, da visão da importância de uma decisão mais próxima da realidade e, portanto, de uma
dialética mais ativa entre os sujeitos processuais.

Não se admite mais a interpretação gramatical da norma, como no Estado Liberal, tampouco o juiz
como sujeito supremo, um deus, no processo. A atividade interpretativa vai além do que se encontra no texto
impresso da norma, pois deve se buscar nele os valores sociais.

O século XXI já clama por um juiz ao moldes Hermes, que traceje o seu caminho sob a imparciali-
dade, sem comprometer a efetividade da jurisdição, com margens para uma atividade que lhe permita ir em
busca de uma solução verdadeiramente justa à luz da Constituição Federal.

REFENRÊNCIAS

ALMEIDA, Plínio Régis Baima. No neoconstitucionalismo, o neoprocessualismo: sobre a eficácia


normativa dos princípios e seu uso indiscriminado. XXIII Congresso Nacional CONPEDI, 2014.

BONAVIDES. Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n.6, fev.


2007. Disponível em << www.panoptica.org >>. Acesso em dez de 2015.

FERREIRA, Renato dos Santos. Neoprocessualismo: o processo como mecanismo de afirmação e


efetivação dos direitos fundamentais e como ferramenta de acesso à justiça. Escola de Magistra-
tura do Estado do Rio de Janeiro, 2013.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1999.

GOMES, Sérgio Alves. Hermenêutica Constitucional: um contributo à constituição do Estado Democrá-


tico de Direito. Curitiba:Juruá Editora, 2009.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO:
UMA ANÁLISE PROCEDIMENTAL DA ARGUIÇÃO DE DESCUPRIMENTO FUNDAMENTAL NO
CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO A PARTIR DE JACQUES DERRIDA

Joyce Batista do Nascimento


Graduada em Direito pela UNICAP (2012) Pós- graduação em Direito Público, e pós-
graduanda em Direito Penal; Sócia fundadora da Bassani & Nascimento Advogados
Associados, atua nas áreas Consultiva e Contencioso. Bolsista do CNPQ durante 3 anos
desenvolvendo pesquisa na área de Direito Constitucional e Filosofia do Direito.

João Paulo Allain Teixeira


Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD-UNICAP)
(Mestrado e Doutorado), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Professor da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE), Professor
do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco
(Mestrado e Doutorado). Líder do Grupo de Pesquisa REC – Recife Estudos Constitucionais.
(CNPq).

SUMÁRIO: Introdução; 1. Teoria da desconstrução por Jacques Derrida; 1.1 Justiça e desconstru-
ção; 1.2 Justiça como aporias;

INTRODUÇÃO

A jurisdição constitucional brasileira foi construída num ambiente constitucional democrático e


republicano, apesar das interrupções causadas pelos regimes autoritários. Se as influências do modelo difuso
de origem norte-americana foram decisivas para a adoção inicial de um sistema de fiscalização judicial da
constitucionalidade das leis e dos atos normativos em geral, o desenvolvimento das instituições democráti-
cas acabou resultando num peculiar sistema de jurisdição constitucional (MENDES, 2010). O desenho e
organização da jurisdição constitucional brasileira reúnem, de forma híbrida, características marcantes dos
clássicos modelos de controle abstrato e de controle concreto de constitucionalidade.

A presente pesquisa utiliza-se da teoria da desconstrução como postura filosófico-epistemológica


importante para se entender o fenômeno jurídico enquanto algo aberto, complexo e multifacetado. Esta abor-
dagem é encetada por um pensador contemporâneo, um “crítico” da modernidade, que tem como principais
influências as novidades trazidas pela reviravolta lingüística. Trata-se de Jacques Derrida e a obra Força de
Lei, que traz importantes elementos para se pensar o direito e a justiça sob outras bases filosóficas e episte-
mológicas, para além do pendular movimento entre as correntes juspositivistas e jusnaturalistas sob as quais
se encerrou o problema jurídico nos séculos.

Na referida obra o filósofo encaminhou a temática da justiça a partir de um questionamento da força


da lei e do direito. Foi possível observar que o mesmo pensou o direito a partir da exposição de suas aporias
e enquanto texto (regra, norma, decisão) em busca de realização da justiça, apontando a inevitável (des)
construção da própria estrutura interna da normatividade posta (DERRIDA, 2007).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Esse entendimento permeará as discussões a cerca dos conceitos de justiça e direito a fim de se
chegar a um denominador comum, a saber: o papel das cortes constitucionais, em particular o do Supremo
Tribunal Federal no Controle de Constitucionalidade Brasileiro bem como os dizeres dos ministros em sede
de ADPF nos últimos anos.

1. TEORIA DA DESCONSTRUÇÃO POR JACQUES DERRIDA.

Em sua obra Força de Lei, Jacques Derrida questiona a força da lei, com este o autor busca compre-
ender o que faz com que uma lei seja aplicada. Derrida enceta o caminho de uma resposta a partir daquilo
que no inglês se diz como “enforceability”. Esta remissão à língua inglesa é esclarecedora, pois com isso se
mostra um dos aspectos envoltos na aplicabilidade de uma lei: a aplicação de uma lei exige força. Esta toma-
da em sentido físico mesmo, tal como Kant postulou na sua teoria do Direito: “(...) o direito apóia-se (...) no
princípio da possibilidade de uma coação exterior”. Facilmente se é levado juntamente com Kant a perguntar
pela legitimidade da força, - ‘Gewalt’, em alemão - por que a força é justa? Em outras palavras, o que justifica
o uso da força? (FERNANDEZ E PACKER, 2008).

Interessante frisar que o mesmo pode-se encontrar em Pascal. No fragmento deste último trazido
por Derrida, lê-se: “Justiça, força – É justo que aquilo que é justo seja seguido, é necessário que aquilo que é
mais forte seja seguido” (DERRIDA, 2007). A primeira parte desse aforismo é tautológica, diz apenas que o
justo deve ser seguido porque é justo; a lei deve ser obedecida pelo fato de ser justa, como se a justiça da lei
justificasse a sua aplicabilidade. A lei é justa e a justiça é a aplicação da lei. Na segunda parte do aforismo,
encontra-se a idéia de que pra que a justiça seja realizada, para que a lei seja obedecida, necessita-se de for-
ça; fica claro que justiça e força andam juntas. E o que justifica a força presente na lei é a justiça.

Assim, a força não é algo que se acrescenta ou não ao direito, ela faz parte da sua essência. Não há
direito sem força.

Esse tipo de concepção, porém, tem raízes muito mais antigas, pois Platão já colocava na boca do
sofista Trasímaco a afirmação de que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte, e que,
portanto, os valores entendidos como justos não são o fundamento da autoridade, mas decorrência das rela-
ções de poder (PLATÃO,1994).

Todavia, Fernandez e Packer (2008) afirmam que quando Kant menciona o uso da força, ainda não
se solucionou de todo o problema, e o mesmo pode se dizer da explicação de Pascal, haja vista que afirmar
que aplicar a lei justa é fazer é justiça é incorrer em circularidade, em falta de fundamentação, em falta de
razões, em aporia.

Resta ainda a pergunta pela força de uma lei, e também a pergunta pela força da força e assim inde-
finidamente. Não se recorreria a outra força física para justificar o uso da primeira, pois se cairia na mesma
aporia, em regressão ao infinito. A partir de Derrida(2007) pode-se enxergar um outro modo de força que
não seja físico. O autor afirma:

No começo da justiça, terá havido o logos, a linguagem ou a língua, mas isso não é ne-
cessariamente contraditório com outro incipit que dissesse: ‘No começo, terá havido
a força’. O que se deve pensar é, pois, esse exercício da força na própria linguagem.

Neste trecho, Derrida aponta para um outro tipo de força que não é físico, ele se refere à força da lin-
guagem. Logo, poderíamos pensar a justificativa/justiça de uma força física a partir da linguagem; seria esta
capaz de apresentar argumentos ou razões que justificassem o uso da força ou a mostrassem como legítima?
Segundo Derrida (2007), isto não é possível, pois não temos como apresentar razões para dizer que um ato
de força que funda, instaura e aplica a lei é justo ou injusto. Ele afirma:

Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consisti-


ria num golpe de força, numa violência performativa e, portanto, interpreta-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tiva que, nela mesma, não é nem justa nem injusta, e que nenhuma justiça,
nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pree-
xistente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar.

Em outras palavras e em última instância, não há como legitimar o uso da força, não há como dizer
que uma força ou uma lei é justa e tampouco dizer que é injusta recorrendo-se a noções anteriores ao direito
ou à linguagem. Nessa tentativa, o discurso encontra seu limite6. Tentar falar de ou estipular um critério
preexistente ao ato fundador da lei e que justificasse a sua aplicação mediante a força é tentar extrapolar
limites. O limite aqui não é pensado como o que separa uma coisa de outra, mas como aquilo que impõe
barreiras e que não podem ser transpostas; o que está em jogo aqui é a noção de finitude. A impossibilidade
de transpô-lo marca a impossibilidade de se falar; não se pode tentar expor através da linguagem um critério
último e definidor de justo ou injusto, sobre isso devemos nos calar e nos silenciar.

Derrida (2007) fortalece essa afirmação a partir de Montaigne: “Ora, as leis se mantêm em crédito
não porque elas são justas. É o fundamento místico da autoridade, elas não têm outro...”. O termo místico
usado aqui por Montaigne diz respeito justamente à falta de fundamento, o qual é impossível de ser demons-
trado e destarte ilusório e irreal.

Toda a tentativa de pensar a justiça identificada com a lei, direito e a força inerente a este, resulta em
aporia, numa falta de fundamento e razões.

1.1 JUSTIÇA E DESCONSTRUÇÃO.

Dando seguimento ao pensamento de Derrida (2007), observou-se que o autor se propõe a tarefa de
pensar a justiça não mais com relação ao direito, mas separada e descolada do direito, afirma ele:

(...), para reservar a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas
exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha nenhuma relação com o di-
reito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito
quanto excluí-lo.

Infere-se que essa outra forma a que Derrida se refere é a maneira de pensar a justiça a partir da
desconstrução, que pode ser entendida de forma não-definitiva, seria, portanto, uma desestabilização de teo-
rias e construtos teóricos por meio da denunciação de suas aporias, desmascaramento de seus antagonismos
e contradições, marcada por uma reinterpretação e releitura de tudo o que nos foi legado historicamente na
filosofia e no direito. Sendo que tudo o que nos foi legado historicamente o foi através da escrita, a descons-
trução é a releitura dessas concepções herdadas, que, em razão de terem sido construídas em determinado
contexto e historicamente datadas, podem ser desestabilizadas e reconstruídas, relidas.

Kelsen, em sua época, operou uma espécie de desconstrução epistemológica em nome da verdade,
o que levou a negar cientificamente às construções jurídicas existentes e enveredar-se no desenvolvimento
de uma teoria verdadeiramente científica sobre o direito. Como um bom relativista, ele não buscou afirmar
que sua concepção pessoal de justiça é a Justiça, mas atuou vivamente contra a apropriação da idéia de jus-
tiça pelas ideologias jurídicas, na tentativa de justificar suas próprias opções políticas em um valor objetivo
(KELSEN, 1998).

Acrescenta Derrida (2007) afirmando que, pensando no caso da nossa época, engloba a desconstru-
ção de alguns pilares da modernidade tais como a noção de sujeito, consciência, sujeito de direito, sujeito
responsável, a oposição entre convenção e natureza, em suma, é a investida contra uma metafísica antropo-
cêntrica que alçou o homem ao lugar de fundamento e fim último sobre a terra (DERRIDA, 2007).

Logo, se pensarmos que tanto o direito atual quanto a noção de justiça que nos foi legada, qual seja, a
da identidade entre justiça e direito, estão pautados nas teses desestabilizadas e desmascaradas pela descons-
trução, seria sensato, à primeira vista, pensar que a relação que a desconstrução guarda com o direito e com

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

a justiça seria uma relação de desconstruir o direito e também a desconstrução da justiça e de suas regras tal
como conhecemos tradicionalmente.

Segundo Fernandez e Packer (2008) para fugir dessa situação e então poder estabelecer relações
entre a desconstrução e a justiça, é necessário diferenciar que o direito é algo posto, herdado, criado por
meio da escrita e datado, “construído por camadas textuais interpretáveis e transformáveis”, que pode ser
apreendido e conceituado, que permite destacar o legal do ilegal, que é medível e manipulável; por outro
lado, a respeito da justiça, Derrida afirma (2007): “(...) não se pode falar diretamente da justiça, tematizar ou
objetivar a justiça, dizer ‘isto é justo’ e, ainda menos, ‘eu sou justo’, sem trair imediatamente a justiça(...)”.
Isto é, não se pode tematizar a justiça, ela não é um conceito, dado, pronto e acabado, pois não existe a justiça
enquanto tal, existindo separadamente de nós homens alhures (uma concepção substancialista), a ser alcan-
çada e conhecida, e por não ser passível disso, por ela não estar pronta é que ela não pode ser desconstruída.

No pensamento Derridiano, o direito por estar posto, sedimentado na linguagem e na escrita, é algo
que pode ser desconstruído; a justiça não se encontrara pronta no direito e tampouco fora dele e além dele,
por não ter esse caráter, não pode ser desconstruída, ela é indesconstruível. A desconstrução não desconstrói
a justiça, a desconstrução é a justiça.

A desconstrução como modo de se apresentar contradições e apontar aporias, deixa as nossas con-
cepções na falta de fundamento, deixa-as em aberto para ao mesmo tempo fechá-las; em outras palavras,
desconstrói respostas dadas anteriormente e herdadas por nós e põe novas respostas, as quais nunca são
definitivas, totalizantes e universais; o que é “construído” nunca é definitivo, pelo contrário, já traz em si a
possibilidade de ser desconstruído. Neste contexto, pelo fato de não se tentar postular algo eterno e imutável,
a justiça se manifesta mais propriamente como puro movimento de desconstrução cujos resultados nunca
são fechados e acabados, sendo sempre algo por vir e por se realizar (DERRIDA, 2007).

Mister frisar que no dizer de Derrida, a justiça é um apelo à justiça, ela é sempre algo por vir e que
nunca se completa, mas que, no entanto, não pode nunca sair debaixo de nossas vistas, sob pena de cairmos
num irracionalismo e assentir que, uma vez que não existem respostas últimas e definitivas para os pro-
blemas do homem, tudo é possível e já não há sentido em nos guiarmos por algo. Pelo contrário, contra os
riscos substancialistas (da existência de uma justiça para fora ou além do direito) e irracionalistas (que não
há nada e que tudo vale) há algo que sustenta a esse movimento, esse algo é o próprio impulso, vontade de
justiça. Segundo o autor (DERRIDA, 2007, p.39): “Pois, afinal, onde a desconstrução encontraria sua força,
seu movimento ou sua motivação, senão nesse apelo sempre insatisfeito(...)”.

Se ao pensarmos a justiça colada ao direito nos vimos em aporia, quando a pensamos a partir da des-
construção, e, portanto, já descolada dele, de certa forma também estamos em aporia, pois não se postula a
existência de fundamentos sólidos e inabaláveis, porém, a peculiaridade da desconstrução é que ela assume
essa falta de fundamento e a utiliza de tal forma que sempre permite o novo e a mudança.

Costa (2007) corrobora a ideia de Derrida no tocante ao fato de que a justiça que é desconstrução não
pode ser reduzida a um sistema dogmático nem cabe em uma descrição fechada, pois ela é sempre abertura
para o novo e para a diferença. Isso não quer dizer, porém, que não se possa praticar atos em nome da justiça,
isso é feito a cada momento, pois a justiça pretende realizar-se em cada uma das nossas ações, especialmente
naquelas que instituem ou aplicam normas jurídicas. Portanto, para que um decisão jurídica seja justa, não
basta que ele seja conforme a lei, mas é preciso que ela ponha em suspenso a validade da lei, para, em cada
caso, reinventá-la, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e livre do
seu princípio.

Para Fernandez e Packer (2008) impelidos pelo pensamento de Derrida, sustentam que concebendo
a justiça como esse nada, este por vir que não é o futuro; mas um impulso ou vontade de transformação que
está sempre acolá; esta não pode ser construída (desconstruída) e presentificada, ou seja, manipulada, calcu-
lada e estabilizada. Este papel de fixação, estruturação do presente a fim de assegurar alguma calculabilidade
ou estabilidade das relações em determinado momento pertence ao direito, à lei. Deste modo o direito, para
não se apresentar como mera regulação, conservação e dominação, deve, ao fechar-se, abrir-se. Ao colocar-se

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

enquanto determinado conteúdo de sentidos em textos legais, deve-se admitir as n possibilidades de sentidos
negadas para poder presentificar-se.

1.2 JUSTIÇA COMO APORIAS.

“Uma aporia é um não-caminho. A justiça será, deste ponto de vista, a expe-


riência daquilo que nós não podemos experimentar (...) eu acredito que não
exista justiça sem essa experiência, tão impossível quanto ela seja, de uma
aporia. A justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma
exigência de justiça cuja estrutura não seja a experiência de uma aporia não
terá a chance de ser o que ela é, notadamente, um chamado por justiça.”(-
DERRIDA, 2007)

Para Derrida (2007) o direito não é a justiça. O direito é um elemento de cálculo e é justo que exista
o direito, mas a justiça é o incalculável, ela requer que nós calculemos o incalculável; e as experiências apo-
réticas são experiências, tão improváveis quanto necessárias, da justiça, quer dizer, de momentos em que a
decisão entre o justo e o injusto não é jamais assegurada por uma regra.

Por esse prisma a justiça se caracterizaria por ser infinita, incalculável, avessa à simetria, enquanto
o direito existe no âmbito da legalidade, estável e estatutária, como um sistema regulador e normativo. Uma
das mais difíceis tarefas para a reconciliação do direito com a justiça é equacionar a generalidade daquele
com a necessária singularidade desta. Essa é a questão que está por detrás de toda a aplicação do direito
pelos tribunais: Como nós podemos conciliar o ato da justiça que sempre é concernente à singularidade, a
indivíduos, insubstituíveis grupos e vidas, com o outro ou eu mesmo como outro, em uma situação única,
com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, o qual, necessariamente, tem uma forma genérica,
ainda que esta generalidade prescreva uma aplicação singular em cada caso?

Ou seja, interpretar e aplicar o direito obriga sempre a um balanceamento entre o geral e o singular,
entre o texto passado da norma e a exigência presente da justiça. Atender ao chamado da justiça exige a
recriação da norma contida no texto legal, não somente no sentido de que toda leitura/interpretação implica
na construção de um sentido novo, mas também no sentido de que a interpretação jurídica deve atender à
singularidade de cada caso, através dos padrões gerais contidos na norma. Como fazer isso sem violar a ge-
neralidade da regra, sem abandonar mesmo essa regra ou, ainda, sem tornar seu conteúdo, inscrito no texto
passado, tão fluido que ele já não sirva mais como um instrumento de mediação e estabilização, funções
caracterizadoras do direito?

Na resposta a essa questão é possível perceber a importância da desconstrução para o direito — e sua
interpretação — e para a democracia. Pois tal resposta revela:

a) a adequação entre o passado, o presente e o futuro — no sentido de que a construção do sentido


da norma se dá na sua interpretação e a aplicação da mesma implica uma busca incessante pela justiça;

b) essa busca incessante pela justiça, através de um compromisso ético dos tribunais para com a mes-
ma pode levar à transformação do direito e à sua melhor adequação a uma sociedade democrática;

c) o direito, servindo como elemento de estabilização das relações e efetivamente comprometido com
a realização da justiça, pode levar à consolidação dos princípios políticos constitutivos da sociedade política
(liberdade e igualdade, basicamente) fortalecendo os laços de solidariedade social e, por fim;

d) um tipo de interpretação do direito que reconheça a sua indeterminação de sentido e que reconhe-
ça a contingência e fragmentação do social estaria melhor preparada para fazer frente ao crescente grau de
complexidade e ao incremento do número de conflitos, típicos das sociedades contemporâneas.

O caminho teórico para buscar a resposta a essa questão implica um compromisso ético com a obten-
ção da justiça e a visualização desta como aporia, ou seja, como algo impossível de ser experimentado, mas

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

cuja experiência é imprescindível. Em primeiro lugar, o que se coloca é uma responsabilidade sem limites
perante a memória, no sentido de se recuperarem as direções e os limites contidos nas concepções de direito
e justiça historicamente construídos em cada sociedade. A desconstrução pode significar um clamor infinito
pela justiça e por um incremento incalculável de responsabilidade. É no intervalo entre o direito e a justiça
que a desconstrução encontra seu lugar privilegiado; desconstruindo-o, desestabilizando o tradicional do di-
reito, a justiça pode encontrar caminhos para a sua expressão.

Partindo da obra de Emmanuel Levinas, Derrida considera ser a ética a primeira filosofia, em termos
de ética como uma relação entre pessoas. A ética, tal como Levinas a concebe, coloca em questão minha
liberdade e espontaneidade, minha subjetividade, e o outro. Para Levinas (2000), a justiça define e é definida
por uma relação ética com o outro, em resposta ao sofrimento do outro, para com o qual o sujeito tem uma
infinita responsabilidade. Mas esta concepção ética de justiça também se coaduna com uma noção política de
justiça, no sentido de que toda relação ética é sempre situada em um determinado contexto sócio-político, o
qual implica diferentes concepções éticas, levando à necessidade da escolha entre estas, ou de uma decisão.
Na realidade, a concepção ética da justiça em Derrida, configurada na leitura que este faz de Levinas, é tam-
bém uma concepção política, no sentido de que envolve a ideia de transformação política, a abertura para o
futuro que pode trazer mudanças. A ideia de justiça como a experiência daquilo que não pode ser decidido
é o que leva o sujeito à política (e pode-se dizer que ao direito, também), dada a necessidade da decisão. Do
indecidível para a decisão, esse é o momento do julgamento, a passagem de uma experiência ética da justiça
para a ação política. De que forma isso pode ser feito, ou quais são os conteúdos dessa ação política? A res-
posta, em Derrida, jamais se encontra no presente, ou em alguma forma específica de ação política (assim
também, como vai ser referido adiante, nunca uma decisão judicial específica pode ser considerada justa); a
justiça deve servir de guia, de elemento crítico, mas ela jamais poderá ser tornada presente.

Um aporte desconstrutivista da política, baseado na separação radical entre justiça e direito e na não
presença da primeira dentro do último, leva-nos ao que se pode chamar de descorporificação da justiça, onde
nenhum Estado, comunidade ou território pode ser tido como expressão da justiça. Alguém pode dizer que
a “experiência” da justiça é a de uma absoluta alteridade ou transcendência, a qual guia a política sem estar
completamente no reino público.

A forma política que melhor poderia conduzir a essa experiência da justiça seria a democracia. Não
uma democracia realizada aqui e agora, mas a democracia entendida como possibilidade, como abertura para
o futuro. Outrossim, justiça e democracia se entrelaçam como representações que escapam ao aqui e agora,
escapam ao presente, representando algo que está sempre por acontecer. Algo que não se realiza no presente,
mas também não no futuro (DERRIDA, 2007).

A justiça permanece, é ainda, é algo por vir, a verdadeira dimensão de eventos irredutíveis no tempo.
Ela sempre terá esse por vir, por acontecer, sempre o tem. Talvez seja por essa razão que, desde que a justiça
não é somente um conceito jurídico ou político, ela se abre para esse por vir da transformação, a reformula-
ção ou refundação do direito e da política.

Para Derrida (2007) se a justiça representa o encontro com o outro, a infinita responsabilidade que
o outro demanda, a verdadeira experiência da alteridade, ela é algo que nunca se apresenta. Ainda assim,
ela pode significar a possibilidade da transformação do direito e da política, enquanto percebida como uma
responsabilidade inafastável e inadiável. E por isso se torna importante ressaltar, com o autor, a separação
das idéias de futuro e o que ele chama de àvenir/ to come: o futuro pode significar a mera reprodução do
presente ou, quando muito, a sua evolução. Ao contrário, a idéia de algo que está por acontecer representa a
possibilidade da transformação, um recriar, repensar, reformular. Talvez seja essa a principal conclusão que
se pode retirar da percepção de justiça como aporia, neste autor: a de que o fato de a justiça exceder as fron-
teiras do jurídico e do político, e o fato de que ela não é um elemento de cálculo, não pode servir como álibi
para alguém negar a responsabilidade na busca da transformação das instituições que compõem a sociedade.
Essa idéia está diretamente ligada ao ideal de emancipação, que Derrida afirma jamais ter sido realizado e o
qual deve sempre ser perseguido.

428
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Justiça e direito. A justiça fora do direito. A justiça enquanto algo por acontecer. Assim como a de-
mocracia. A descorporificação ou despersonalização da justiça, que pode ser melhor representada a partir
da democracia, como esta também significou a descorporificação ou despersonalização do poder; o corpo do
príncipe que deixou de ser identificado com o Estado/soberania.

Nesse sentido, a democracia seria a forma política mais apta a significar tal perspectiva de justiça.
Perspectiva esta que não se esgota na ação política, mas pressupõe a ação política. Não se contém nos limites
do ordenamento jurídico, mas pressupõe o direito como elemento de estabilização e prioriza o momento da
decisão, ou melhor, do julgamento (significado este por um compromisso ético). Essa democracia pode ser
significada pela busca infinita da justiça e representada por um compromisso com o outro. Democracia que
em si também é um por acontecer. A radicalização da democracia, compreendida pelo aprofundamento das
relações democráticas; uma democracia plural, que possa reconhecer o outro em toda sua plenitude e que,
indo além da razão, possa captar a importância das paixões como força motriz das ações humanas. Para que o
direito possa significar um instrumento para viabilizar a justiça e a democracia é necessária que efetivamente
exista um compromisso dos seus órgãos aplicadores com a justiça e a democracia

2. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO.

A Jurisdição Constitucional no Brasil pode ser hoje caracterizada pela originalidade e diversidade
de instrumentos processuais destinados à fiscalização da constitucionalidade dos atos do poder público e
à proteção dos direitos fundamentais, como o mandado de segurança – uma criação genuína do sistema
constitucional brasileiro – o habeas corpus, o habeas data, o mandado de injunção, a ação civil pública e a
ação popular. Essa diversidade de ações constitucionais próprias do modelo difuso é ainda complementada
por uma variedade de instrumentos voltados ao exercício do controle abstrato de constitucionalidade pelo
Supremo Tribunal Federal, como a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de inconstitucionali-
dade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito
fundamental (MENDES, 2010).

Jurisdição ou justiça constitucional, no dizer de Canotilho (2000), consiste em decidir vinculativa-


mente, num processo jurisdicional, o que é o direito, tomando como parâmetro material a constituição ou o
bloco de legalidade reforçada, consoante se trate de fiscalização da constitucionalidade ou de fiscalização da
legalidade. Como em qualquer jurisdição, trata-se de obter a ‘medida do recto e do justo’ de acordo com uma
norma jurídica. Só que, no nosso caso, essa norma é a Constituição considerada como norma fundamental
do Estado e da comunidade.

Bonavides (2004) remata que o conceito de jurisdição constitucional, qual é entendida na sua ver-
são contemporânea , prende-se à necessidade do estabelecimento de uma instância neutra, mediadora e
imparcial na solução dos conflitos constitucionais. E em se tratando de sociedades pluralistas e complexas,
regidas por um princípio democrático e jurídico de limitações do poder, essa instância há de ser, sobretudo,
moderadora de tais conflitos.

Mendes (2010) a multiplicidade de mecanismos processuais e a robustez do texto constitucional, o


qual possui um dos catálogos de direitos fundamentais mais extensos do mundo, têm permitido ao Supremo
Tribunal Federal do Brasil desenvolver o controle de constitucionalidade com extrema desenvoltura.

Assim, o início deste Século XXI tem sido marcado, no Brasil, por uma vertiginosa evolução da jurisdi-
ção constitucional, o que pode também ser caracterizado pelo ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal
na proteção da Constituição e dos direitos fundamentais.

Os desafios, não obstante, ainda são variados e complexos. A Constituição de 1988 instituiu uma
extensa agenda social, ao incorporar os mais diversos anseios sociais e políticos. São visíveis os déficits na
elaboração e implementação das políticas públicas necessárias à efetivação de direitos elementares, o que
gera uma enorme carga jurisdicional e política em torno da jurisdição constitucional, que se vê compelida a
atuar diante de patentes casos de omissão legislativa e administrativa (MENDES, 2010).

429
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

2.1 CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE


PRECEITO FUNDAMENTAL - ADPF.

A lei sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) surgiu ante a necessida-
de de haver um mecanismo, dentro do controle concentrado de constitucionalidade, para discutir acerca das
questões relativas ao direito pré-constitucional, controvérsia constitucional sobre normas revogadas, controle
de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal, além da interpretação direta
das cláusulas constitucionais pelos juízes e tribunais (MENDES, 2009)

A arguição de descumprimento de preceito fundamental está prevista no artigo 102, § 1º, da Consti-
tuição Federal e regulamentada pela Lei nº 9.882/99, fazendo parte do rol das ações aptas a suscitar o con-
trole judicial de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, tornando relevante a apreciação
das inovações impostas por ela ao ordenamento jurídico pátrio (BARROSO, 2008)

Dessarte, a ADPF veio completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente


concentrado no Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões até então não apreciadas no âmbito do
controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de consti-
tucionalidade) poderão ser objeto de exame no âmbito da nova ação (MENDES, 2009).

A arguição de descumprimento de preceito fundamental se insere no rol dos institutos voltados ao


controle concentrado de constitucionalidade, mormente devido a característica específica da ação, qual seja,
tutela dos preceitos fundamentais constitucionais fundamentais (TAVARES E ROTHENBURG, 2001).

A Constituição Federal determina em seu § 1º, do art. 102, introduzido pela Emenda Constitucional
nº 3, de 17-3-1993, que a ADPF decorrente da Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal
na forma da lei.

Com efeito, verifica-se que se trata de norma constitucional de eficácia limitada, e por esta razão o
Congresso Nacional editou a Lei nº 9.882/99, a fim de regulamentar a ADPF.

É sabido que a ADPF é cabível para evitar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder
público, para reparar lesão a preceito fundamental, também resultante de ato do poder público e quando for
relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou muni-
cipal, incluídos os anteriores à Constituição (OLIVEIRA, 2004).

Ademais, verifica-se a existência de duas modalidades de ADPF, quais sejam, a arguição autônoma
e a incidental. A autônoma está prevista no art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/99, o qual prevê o cabimento da
ADPF para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público. Já a incidental,
conforme dispõe o art. 1º, parágrafo único, do mesmo diploma legal, caberá ADPF quando for relevante o
fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclu-
ídos os anteriores à Constituição (MENDES, 2009).

A arguição autônoma constitui ação voltada para o controle concentrado de constitucionalidade,


sendo assim, esta será utilizada na hipótese em que as outras ações constitucionais não forem cabíveis, ou
seja, não sendo o caso de ajuizar ADIN ou ADC caberá ADPF, ante o caráter subsidiário desta última, como
veremos adiante (TAVARES E ROTHENBURG, 2001).

Já em relação a arguição incidental, esta pressupõe a existência de uma ação, ou seja, de uma de-
manda já submetida ao Judiciário. Logo, esta modalidade da ADPF representa um mecanismo destinado a
provocar a apreciação do STF sobre a controvérsia constitucional relevante, que esteja sendo discutida em
qualquer juízo ou tribunal (OLIVEIRA, 2004).

Insta frisar que é possível a concessão de medida liminar no âmbito na arguição de descumprimento,
mediante decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal.

430
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Entretanto, em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso,
poderá o relator conceder a medida liminar, ad referendum do Tribunal Pleno (BARROSO, 2008)

Caso haja necessidade, poderá o relator, antes de decidir acerca da liminar,ouvir os órgãos ou auto-
ridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado Geral da União ou o Procurador-Geral da
República, no prazo comum de cinco dias (art. 5º, § § 1º e 2º). O deferimento da liminar tem o condão de
decretar a suspensão direta do ato impugnado. Além do mais, a liminar poderá consistir na determinação de
que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qual-
quer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito
fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada (MENDES, 2009; TAVARES E ROTHENBURG, 2001).

A seguir foram elaborados quadros que facilitarão o entendimento e aplicação dos conceitos aborda-
dos na presente pesquisa, uma vez que serão analisadas, apenas, aquelas ADPFs que já tiveram algum tipo de
decisão formada. Tais informações foram coletadas pelo site oficial do Supremo Tribunal Federal no período
de dezembro/2010 a janeiro/2012. Os dados estão atualizados até o dia fevereiro de 2012.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES.

QUADRO DAS ADPF’S 1993 – 2012.

DECISÃO FINAL QUANTIDADE


PROCEDENTES 6
PROCEDENTE EM PARTE 2
IMPROCEDENTES 3
NÃO CONHECIDA 126
TOTAL DA DECISAO FINAL 137
LIMINAR QUANTIDADE
COM LIMINAR DEFERIDA 8
COM LIMINAR DEFERIDA EM PARTE 1
COM LIMINAR INDEFERIDA 6
PREJUDICADO 0
TOTAL LIMINAR 15
AGUARDANDO JULGAMENTO 88
TOTAL DE DISTRIBUIDAS 240

A primeira questão que pode ser aqui levantada é quanto à existência, ou não, de uma efetiva preocu-
pação da chamada teoria desconstrutivista com a justiça. Nas palavras do próprio Derrida, la déconstruction
est la justice vislumbra-se o questionamento do Por que desconstrução é justiça?

É devido à existência do caos que a estabilidade é necessária; é precisamente porque o mundo se


apresenta aos homens “em desordem” que estes necessitam de instrumentos para “ordená-lo”. Nesse senti-
do, foi afirmado que o direito pode ser compreendido como um instrumento para a obtenção de estabilidade,
ainda que parcial e provisória. O direito como uma construção do homem, pode ser sempre desconstruído.
Desconstruir o direito pode ser considerado uma prática destinada a demonstrar que qualquer lei, qualquer
ordenamento jurídico, pode ser “desestabilizado”. O sentido de todo texto — e o direito se revela através dos
textos — resta sempre em aberto; qualquer fechamento final ou definitivo de sentido é autoritário. A des-
construção exige que toda leitura de um texto possa ser submetida a uma nova leitura,em um movimento
que une presente e passado, futuro e presente. Uma leitura/ interpretação de um texto é um reescrever do
texto passado, a sua tradução para o presente, ao mesmo tempo em que o texto presente é ele mesmo um não

431
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

texto, na medida em que existe apenas enquanto possibilidade para a construção futura de um novo texto, a
qual se dará pela sua leitura.

Dessa forma, uma prática desconstrutiva do direito pode significar um avanço no sentido do enri-
quecimento de seus conteúdos, pois, permanecendo o sentido em aberto, novas interpretações podem ser
obtidas, expondo o aparato jurídico e judiciário a novas formulações. Em suma, a desestabilização do direito
é realizada em nome da possibilidade de uma transformação deste e, em uma última análise, em nome da
justiça.

A análise preliminar dessa pesquisa será fundada na interrelação existente entre os conceitos estuda-
dos, anteriormente, de Derrida, acerca da justiça, do direito, da democracia e da força da lei. Insta frisar que
a totalidade de ADPF’s distribuídas já ultrapassam os números apresentados no relatório parcial do presente
trabalho. Houve a necessidade de renovação da bolsa, uma vez que o número de ADPF’s a serem analisadas é
elevado. Para finalizar essa etapa, foram selecionadas 4 decisões com resultado pela procedência dos pedidos
em sede de controle concentrado.

A- Ementa ADPF nº 33: Procedente, por unanimidade dos votos. “


Argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada com o ob-
jetivo de impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do Instituto
de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), sob o fun-
damento de ofensa ao princípio federativo, no que diz respeito à au-
tonomia dos Estados e Municípios (art. 60, § 4o , CF/88) e à vedação
constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim
(art. 7º, IV, CF/88). 2. Existência de ADI contra a Lei nº 9.882/99 não cons-
titui óbice à continuidade do julgamento de argüição de descumprimento
de preceito fundamental ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal. 3.
Admissão de amicus curiae mesmo após terem sido prestadas as
informações 4. Norma impugnada que trata da remuneração do pes-
soal de autarquia estadual, vinculando o quadro de salários ao sa-
lário mínimo. 5. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental (sob o prisma do art. 3º, V, da Lei nº 9.882/99) em virtude da
existência de inúmeras decisoes do Tribunal de Justiça do Pará em sentido
manifestamente oposto à jurisprudência pacificada desta Corte quanto à vin-
culação de salários a múltiplos do salário mínimo. 6. Cabimento de argüição
de descumprimento de preceito fundamental para solver controvérsia sobre
legitimidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive
anterior à Constituição (norma pré-constitucional). 7. Requisito de admissi-
bilidade implícito relativo à relevância do interesse público presente no caso.
8. Governador de Estado detém aptidão processual plena para propor ação
direta (ADIMC 127/AL, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04.12.92), bem como
argüição de descumprimento de preceito fundamental, constituindo-se ver-
dadeira hipótese excepcional de jus postulandi. 9. ADPF configura modalida-
de de integração entre os modelos de perfil difuso e concentrado no Supremo
Tribunal Federal. 10. Revogação da lei ou a to normativo não impede o exame
da matéria em sede de ADPF, porque o que se postula nessa ação é a de-
claração de ilegitimidade ou de não-recepção da norma pela ordem
constitucional superveniente. 11. Eventual cogitação sobre a inconstitu-
cionalidade da norma impugnada em face da Constituição anterior, sob cujo
império ela foi editada, não constitui óbice ao conhecimento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental, uma vez que nessa ação o que se
persegue é a verificação da compatibilidade, ou não, da norma pré-constitu-
cional com a ordem constitucional superveniente. 12. Caracterizada contro-
vérsia relevante sobre a legitimidade do Decreto Estadual nº 4.307/86, que
aprovou o Regulamento de Pessoal do IDESP (Resolução do Conselho Ad-
ministrativo nº 8/86), ambos anteriores à Constituição, em face de preceitos
fundamentais da Constituição (art. 60, § 4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine,
da Constituição Federal) revela-se cabível a ADPF. 13. Princípio da subsi-
diariedade (art. 4o ,§ 1o, da Lei no 9.882/99): inexistência de outro meio
eficaz de sanar a lesão, compreendido no contexto da ordem cons-

432
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

titucional global, como aquele apto a solver a controvérsia consti-


tucional relevante de forma ampla, geral e imediata. 14. A existência
de processos ordinários e recursos extraordinários não deve excluir, a priori,
a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental, em
virtude da feição marcadamente objetiva dessa ação. 15. Argüição de des-
cumprimento de preceito fundamental julgada procedente para de-
clarar a ilegitimidade (não-recepção) do Regulamento de Pessoal
do extinto IDESP em face do princípio federativo e da proibição de
vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo (art. 60, § 4º,
I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal)”

No primeiro e segundo pronunciamentos encontram-se algumas características de um modelo dog-


mático de se ver a justiça, onde vincula o justo ao que esta expresso na lei e nas formas da lei. Resta, en-
tretanto, aferir a força da lei Constitucional frente à aplicação inadequada dos princípios nela regidos. Para
Derrida, a lei é justa e a justiça é a aplicação da lei, e o que justifica a força presente na lei é a justiça. Assim,
a força não é algo que se acrescenta ou não ao direito, ela faz parte da sua essência. Não há direito sem força.

B- Ementa ADPF nº 47: Procedente por unanimidade de votos. “AR-


GÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. AR-
TIGO 2º DO DECRETO N. 4.726/87 DO ESTADO DO PARÁ. ATO REGU-
LAMENTAR. AUTARQUIA ESTADUAL. DEPARTAMENTO DE ESTRADAS
DE RODAGEM. REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES. VINCULAÇÃO AO
SALÁRIO MÍNIMO. NÃO-RECEBIMENTO DO ATO IMPUGNADO PELA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 7º,
INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A controvérsia posta nestes
autos foi anteriormente examinada por esta Corte quando do julgamento da
ADPF n. 33.2. Decreto estadual que vinculava os vencimentos dos servido-
res da autarquia estadual ao salário mínimo. 3. Utilização do salário míni-
mo como fator de reajuste automático de remuneração dos servidores da
autarquia estadual. Vedação expressa veiculada pela Constituição do Brasil.
Afronta ao disposto no artigo 7º, inciso IV, da CB/88. 4. Liminar deferida por
esta Corte em 7 de setembro de 2.005.
5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente
para declarar o não-recebimento, pela Constituição do Brasil, do artigo 2º do
decreto n. 4.726/87 do Estado do Pará.”

C- Ementa ADPF nº 130: Procedente, por maioria dos votos. “ARGUI-


ÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF).
LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIO-
NAL DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO
SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE
IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER
TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IM-
PRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE
MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRES-
SÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL.
LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA
E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE
E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PES-
SOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO
SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE
MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRES-
SÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL.
TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGA-
DOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE
CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE:
O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE
IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMI-

433
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCI-


DÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA
O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR
RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE
OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IM-
PRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A
INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI,
ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IM-
PRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA
E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A
TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDA-
DE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE
PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO
INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO
ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONO-
POLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E
AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBER-
DADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE
IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDA-
DE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967
PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DE-
CISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.”

D- Ementa ADPF nº 132: Procedente, por maioria dos votos. 1.


ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
(ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE RE-
MANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITU-
TO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NA-
TUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fun-
damentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de
conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código
Civil. Atendimento das condições da ação.

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO


SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO),
SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES.
A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITU-
CIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO
VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA
PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONO-
MIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁU-
SULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa
ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação
jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição
Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover
o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto
uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”,
segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está
juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual
como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direi-
to a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito
à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a
proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade
faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da
sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente
tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

434
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA.


RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EM-
PRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO OR-
TODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO
CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO
SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDU-
CIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial
proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em
seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importan-
do se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais hete-
roafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se
da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem
a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como
instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas,
mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômi-
ca. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos
direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade
e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e
pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar
no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família
como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperio-
sidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como insti-
tuição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da
Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção
do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supre-
mo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na
posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação
de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HO-


MEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA
ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER
RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE
AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTI-
TUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”.
A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu
art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade
para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito
das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente comba-
te à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso
da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969.
Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo
terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não
pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença
de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e
autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar”
como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação
de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se
proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um
legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na
hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à
sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade
do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e
garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime
e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos prin-
cípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO


ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar
Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impos-
sibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies
de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram
a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade
familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhe-
cimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMI-


DADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRE-
TAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETI-
VA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de
interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do
Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização
da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do
dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da
união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como
família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com
as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (ADF 132-RJ e ADI
4277-DF, Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198
DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011).

Diante de tais ementas é possível verificar que a forma de pensar o direito e a justiça dos operadores
do direito, neste caso dos Ministros do Supremo, pouco se assemelham ao defendido por Derrida em sua
Desconstrução.

Derrida se refere é a maneira de pensar a justiça a partir da desconstrução, que pode ser entendida
de forma não-definitiva, seria, portanto, uma desestabilização de teorias e construtos teóricos por meio da
denunciação de suas aporias, desmascaramento de seus antagonismos e contradições, marcada por uma
reinterpretação e releitura de tudo o que nos foi legado historicamente na filosofia e no direito. Sendo que
tudo o que nos foi legado historicamente o foi através da escrita, a desconstrução é a releitura dessas concep-
ções herdadas, que, em razão de terem sido construídas em determinado contexto e historicamente datadas,
podem ser desestabilizadas e reconstruídas, relidas.

Em suma, a concepção pré-formada do que é justiça e direito vista por Derrida, desencadearia uma
mudança de pensamento e de operação do direito pelos Ministros do STF, visto que no inteiro teor dos seus
acórdãos verifica-se uma repleto bloco de colagem, ou melhor , uma concatenização de idéias já consolida-
das, de resultados já efetivados e não uma desconstrução desse resultado para formação do “por vir” que é
a Justiça.

Neste contexto, Derrida afirma que pelo fato de não se tentar postular algo eterno e imutável, a jus-
tiça se manifesta mais propriamente como puro movimento de desconstrução cujos resultados nunca são
fechados e acabados, sendo sempre algo por vir e por se realizar.

4. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Saraiva, 2008.

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medina, 4ª. ed. 2000, pp. 904-905

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

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TAVARES, André Ramos; ROTHENBURG, Walter Claudius (Orgs.). Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental: análises à luz da Lei nº 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA:


A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE

Julia Santa Cruz Gutman


Graduanda em Direito pela PUC/RJ. juliagutman@gmail.com

Renata Santa Cruz Coelho


Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito
do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Direito pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. renatasantacruzcoelho@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Democracia e proteção aos direitos humanos; 2. Justiça Transicional; 3.


Direito à Memória e à Verdade; 4. Comissão da Verdade; 5. Passado e Presente - o sentido da Me-
mória; 6. Justiça Anamnética; 7. Os Mortos e Desaparecidos da Democracia - A Permanência das
Violações aos Direitos Humanos na Atualidade; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo consiste na análise das violações aos direitos humanos ocorridas no perí-
odo da ditadura civil-militar e no quanto elas influenciaram na vida de diversas famílias e de jovens que tive-
ram seus sonhos interrompidos. Mais do que isso, cabe mostrar aqui que a ditadura continua influenciando,
de certa forma, na vida de muitos.

Esta última afirmação se deve, pois, à conclusão de que há uma perpetuação de violações aos direitos
humanos mesmo nos dias atuais. Se pretende, com o presente artigo, a compreensão de que se não nos des-
fizermos desta “dívida” passada, não teremos condições de seguir em frente. Assim, a realização de políticas
de memória no nosso país, tal como a publicização e correta punição dos torturadores e mandantes da dita-
dura, precisa ser feita para que os erros do passado não se repitam e para que as presentes e futuras gerações
tenham conhecimento do ocorrido. Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça.

Nas palavras de Wadih Damous (2014), “A memória e a verdade não são temas fáceis. Sua comple-
xidade pode ser comprovada diante da demora do Estado na investigação dos crimes cometidos por seus
agentes, com a chancela dos superiores hierárquicos, incluindo a mais alta cúpula das Forças Armadas. Eles
mataram, torturaram e desapareceram com centenas de pessoas em nosso país, antes e durante a ditadura.
A Comissão da Verdade do Rio considera que todos os casos, sem exceção, precisam de esclarecimento”.

1. DEMOCRACIA E PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS.

Os regimes ditatoriais se instalaram na década de 70, na América Latina, com o falso argumento de
garantia da segurança nacional, sob o controle da mais alta cúpula das Forças Armadas. O contexto de grande
parte destes Estados era uma frágil democracia que produzia situações de instabilidade política e de grandes
desigualdades sociais. Para que tais países se mantivessem no poder, foram negados aos cidadãos o respeito
aos direitos humanos, através de governos repressores, instituindo o chamado terrorismo de Estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Com a transição do Regime Militar para o Estado Democrático de Direito, se mostrou essencial a pro-
teção dos direitos humanos, tendo em vista a observância de massivas violações destes e de garantias funda-
mentais durante o período de autoritarismo. Cabe destacar, neste ponto, que os direitos humanos abrangem
diversos significados, estando sempre associados a evolução dos direitos naturais e à proteção do princípio da
dignidade da pessoa humana. Eles são considerados como os direitos gerais de todos os seres humanos, sem
distinção de raça, religião, gênero ou qualquer outra especificidade.

Atualmente a noção de democracia é uma espécie de “conquista”, sendo essencial num “Estado
Democrático de Direito”. Desta forma, democratização consiste em fazer com que um regime politicamente
repressor e violador das garantias fundamentais adote como princípio básico e como forma de governo a de-
mocracia, considerada como um princípio fundamental.

2. JUSTIÇA TRANSICIONAL.

O termo “Justiça Transicional” se concretizou conforme se deram as transições políticas, as mudan-


ças de regimes ditatoriais ou autoritários para regimes democráticos. Desta forma, a Justiça Transicional é o
marco pelo qual são analisadas as relações entre história, memória e justiça, com a intenção de explorar seus
limites e possibilidades. (TEITEL, 2003)

Com o intuito de que se efetive o Estado Democrático de Direito, a justiça de transição tem por base
quatro características fundamentais: reparação às vítimas, busca da verdade e construção da memória, res-
tabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras dos crimes contra os
direitos humanos, visando, assim, evitar que violações à dignidade humana se repitam. Em outras palavras,
reconhecer o direito das vítimas, promover a paz, facilitar a reconciliação e garantir o fortalecimento da de-
mocracia são objetivos que pretendem ser alcançados de acordo com o ideal de justiça transicional.

No período ditatorial a produção de violência tinha um caráter político, tendo em vista que havia o
emprego de aparatos ou instituições estatais, efetivando a realização do crime de perpetração de violações
aos direitos humanos. Em outras palavras, a violação em massa dos direitos e liberdades mais fundamentais
está associada a práticas institucionalizadas, ou ao menos, respaldadas ou deliberadamente ignoradas pelo
aparato estatal, ou seja, consistem em violações praticadas pelo Estado ou em situações nas quais se tornou
omisso.

O pior aspecto de tudo isso consiste no fato de que os crimes e as violações cometidas eram acompa-
nhados por práticas de ocultação e esquecimento que asseguravam sua impunidade: desvalorizar ou crimi-
nalizar a memória, infundir o medo e obrigar o esquecimento para poder sobreviver, ocultar fatos e destruir
provas, escrever a história pela perspectiva dos violadores, entre outros métodos de aniquilação total da
identidade dos indivíduos.

Neste sentido, Zamora (2013, p.21-46):

As vítimas demandam, após o reconhecimento da verdade, que haja o fim


da impunidade, que se faça justiça. Os violadores obtiveram vantagens, por
meio do crime, construíram seu presente sobre injustiça cometida e preten-
dem assegurar um futuro que os permita seguir vivendo como se nada tivesse
ocorrido. A condenação dos fatos e dos responsáveis é imprescindível para
assegurar a verdade do crime.

Como forma de o Estado reconhecer sua parcela de culpa por ter se posicionado de maneira coniven-
te com os crimes cometidos na época da ditadura civil-militar, existem diversas medidas conciliatórias que
podem ser realizadas pelo atual governo brasileiro. Um exemplo é o pedido oficial de perdão à família dos
desaparecidos políticos e às vítimas de perseguições e práticas de tortura, que consiste em um ato simbólico,
porém, de extrema importância para quem sofreu as arbitrariedades de um governo violador de seus direitos.
Ligada ao conhecimento da verdade, tendo em vista que somente a partir do reconhecimento dos erros co-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

metidos que a reconciliação se torna possível, constrói-se um espaço para que as vítimas e familiares possam
recomeçar, prevalecendo a certeza da não repetição, da intolerância à repetição destes mesmos erros.

No que diz respeito à perspectiva internacional, se mostra importante destacar o sucesso na realização
efetiva da justiça de transição. Foi intensificada a busca pela verdade, memória e justiça em diversos países
da América Latina que possuem significativos avanços, como o Chile, Peru e, principalmente, a Argentina.

Contrariamente, no Brasil não houve nenhuma movimentação relevante, política ou legal, no sentido
de se rever a Lei de Anistia. Passados mais de 25 anos da promulgação da Carta Constitucional de 1988, as
políticas de Verdade, Memória, Justiça e Reparação ainda não se consolidaram em nosso país, não se poden-
do afirmar que a Justiça de Transição se efetivou. Consequentemente, o país se encontra na contramão do
seu continente e das decisões internacionais.

3. DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE.

É importante ressaltar que o direito à verdade não busca encerrar o debate histórico, mas sim fomen-
tá-lo. Na prática, o direito à verdade refere-se ao esclarecimento público sobre o funcionamento da repressão
e, especialmente, a abertura de todos os arquivos oficiais existentes, pois neles está contida “a mentira”, ou
seja: a “verdade” do sistema repressor jamais exposta a qualquer controle ou filtro.

Por outro lado, o direito à memória é essencial pois, a partir dele as vítimas podem construir seus
discursos com pretensão de verdade e apresentá-los ao Estado como meio de disputa democrática da versão
oficial sobre o passado. Em outras palavras, o direito à memória visa garantir a equidade destes cidadãos para
com os outros, permitindo que sua história de luta e reivindicação também possa ser acessada e avaliada
publicamente.

Desta forma, pode-se dizer que o binômio Verdade-Memória possui também a função de dentro do
aspecto da justiça transicional, construir uma “memória coletiva”, ou seja, um “senso comum democrático”,
como se pode verificar a partir da análise do escrito de Hannah Arendt (1989) que se segue:

Lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica, portanto, em


alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que
o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir so-
bre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda:
nossas lembranças configuram nossas percepções sobre o universo ao nosso
redor e são determinantes para a orientação de nosso agir, pois a memória
(bem como o esquecimento seletivo) contribuem para a formação de nossos
juízos mesmo nos planos não-conscientes.

Os mecanismos de justiça transicional, como a reparação e a promoção da memória, do ponto de


vista individual representam o resgate da dignidade humana negligenciada durante os períodos de exceção,
mas do ponto de vista coletivo representam um acerto de contas do Estado violador de liberdades e direitos
para com seus cidadãos. Isto porque, mesmo que uma vítima possa, individualmente, abrir mão da reparação
que teria direito individualmente, uma sociedade não pode abrir mão da memória de seu passado sem violar
individualmente seus cidadãos.

RUIZ (2009), em sua obra “Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência», propõe a reflexão
crítica acerca de uma teoria da justiça que leve em conta a condição das vítimas e que tenha como objetivo
a reparação da injustiça sofrida. Ele desconstrói a afirmativa de que a violência se legitima como necessária
para preservação da ordem, afirmativa esta que foi utilizada pelos Estados de Exceção, que se legitimaram a
partir deste artifício jurídico-político e ocultando seu objetivo real: o controle da vida humana.

O ser humano não pode abrir mão de seus direitos fundamentais, ficando “na mão” das autoridades
hierarquicamente superiores que se legitimam através de massivas e frequentes violações de direitos huma-
nos, alegando serem essas necessárias para a preservação da ordem e necessárias para a segurança da vida.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É neste sentido que se entende a memória como condição essencial para fazer justiça às vítimas.
Nas palavras de Ruiz (2009), “A memória da violência, feita pelas suas vítimas, tem o poder de neutralizar
sua potência, isto porque a recordação da violência inibe sua repetição, a violência esquecida propicia sua
reprodução”.

Assim, a vítima possui um papel essencial para a construção do verdadeiro conceito de justiça. “Isto
porque sem injustiça não há vítima, sem vítima não há injustiça”. (Ruiz, 2009). O que define a injustiça é a
alteridade humana negada. Portanto, nesse sentido, a justiça tem como objetivo reparar a injustiça cometida
contra as vítimas, levando em conta a sua condição, só dessa forma sendo efetivamente justa.

4. COMISSÃO DA VERDADE.

No dia 21 de dezembro de 2009 foi sancionado, no Brasil, o 3º Programa Nacional de Direitos Huma-
nos (PNDH-3). Seu maior mérito foi lançar a pauta de Direitos Humanos no debate público, como política
de Estado, criando, no capítulo que trata do Direito à Memória e à Verdade, uma Comissão Nacional da
Verdade1.

A Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei n° 12.528, de 2011, e instituída em 16 de maio de
2012, deu sequência à dois processos legais de busca pela verdade: a Comissão Especial sobre Mortos e De-
saparecidos, criada pela Lei 9.140/95, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, bem sucedida experiência
de reparação aos familiares de mortos e desaparecidos políticos entre 1961 e 1985; e a Comissão de Anistia,
criada pela Lei 10.559/02, que desde o governo Lula propicia medidas indenizatórias de reparação a pessoas
atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988.

A Lei n° 12.528/2011 estabelece, em seu artigo 1º, que a Comissão Nacional da Verdade é criada
“com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos praticadas no período
fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a fim de efetivar o direito à Memória
e à Verdade histórica e promover a reconciliação nacional2”.

A Comissão Nacional da Verdade, portanto, possuía como tarefa promover o esclarecimento público
das violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado na repressão aos que não se calaram
diante da ditadura civil-militar, e teve seu “fim” em dezembro de 2014, com a formulação de um relatório
mencionando os trabalhos realizados durante este período.

Algumas medidas realizadas pela Comissão Nacional e pelas diversas Comissões Estaduais e Mu-
nicipais de promoção da Verdade e preservação da Memória são os testemunhos da verdade, depoimentos,
oitivas, audiências públicas, fóruns de participação, seminários, reuniões ampliadas, entre outras ações e
atividades culturais. Além de revelar a Verdade, as Comissões podem ser criadas por iniciativa governamental
de maior importância para responder a violências ocorridas no passado e, simultaneamente, ser o ponto de
partida para que outras medidas essenciais da justiça de transição sejam estabelecidas.

O relatório da CNV, como é conhecida a Comissão Nacional da Verdade, encontra-se em discussão


por diversos movimentos sociais, meios acadêmicos, movimentos ligados aos direitos humanos, assim como
pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos.

Segundo Maria Auxiliadora Santa Cruz, irmã de Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde
1974, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi muito vago, afinal já tínhamos a lista de todos os
torturadores e diversas informações. Dora, como vários outros familiares de desaparecidos políticos, acredita
que foi um erro tal relatório de tamanha importância não apontar para punição de nenhum dos torturadores,
mandantes ou até financiadores do período.

Como familiar de Fernando Santa Cruz, pessoalmente, acredito que o relatório final da Comissão
Nacional da Verdade possui diversas lacunas e omissões, prolongando o silêncio que perpetua como resposta

1  Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf. Acesso em out/2015.


2  Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>. Acesso em out/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

à tantas perguntas que sempre tivemos com relação ao desaparecimento de Fernando e de outros militantes.
Mas não podemos deixar de mencionar a enorme importância política da Comissão da Verdade no nosso país,
que avançou muito no sentido da publicização das imensuráveis violações ocorridas na ditadura civil-militar.

Por fim, a conclusão que se chega é de que a luta e a dimensão política dos que ainda militam pela
memória de suas mães e pais, filhas e filhos, amigas e amigos, companheiras e companheiros ainda continua,
ela não começou nem vai terminar com o trabalho das Comissões da Verdade.

Portanto, diversas medidas já realizadas em resposta a graves violações aos direitos humanos, como a
criação das Comissões da Verdade, fortalecem o diálogo entre Justiça e Memória e o debate da responsabili-
dade que a geração presente tem com o tempo passado.

5. PASSADO E PRESENTE - O SENTIDO DA MEMÓRIA.

O debate estimulado no presente artigo não é “do passado”, como muitos pensam, mas sim uma
questão da contemporaneidade muito atual, tendo em vista que as futuras gerações precisam ter conheci-
mento do ocorrido. Isto porque memória é passado, mas também presente e futuro. A memória é, em todo o
momento e necessariamente, uma interação entre o esquecimento e conservação. Tais debates relacionados
ao tema direito à Verdade e à Memória estimulam, ou melhor, tem como finalidade auxiliar na formação de
consciência da sociedade brasileira, principalmente dos jovens, a partir da desconstrução de determinados
conceitos preestabelecidos.

É importante ressaltar que, em períodos de redemocratização, a cultura de memória está vinculada a


uma luta pelos direitos humanos e ao fortalecimento das esferas públicas da sociedade civil. Com isso, uma
justiça efetiva tem que ir além do horizonte estreito da equidade e da mera reparação.

6. JUSTIÇA ANAMNÉTICA.

A efetivação da justiça de transição não pode desmerecer a busca pelo direito à memória. Deve ser
combatida a amnésia das sociedades que passaram por ações estatais criminosas, sustentados por uma ide-
ologia política. Uma verdadeira política de esquecimento, que banalizou a barbárie da sociedade a tal ponto
de naturalizar-se a violência através de ações formais de atos de governos ao longo de séculos. As políticas
de esquecimento, além de difundirem a violência na sociedade cometem uma segunda injustiça contra as
vítimas dessas violências, apagando-as da história.

Nas palavras de Ruiz (2013, p. 79-108), “Uma secreta voz ecoa desde a fundura dos tempos claman-
do por uma justiça devida, por uma verdade não dita e por uma memória negada. É a voz das vítimas da
injustiça histórica que subsiste como potência e memória de uma justiça a ser feita”. O mesmo autor afirma:
“Ao desconhecer a injustiça sofrida negam a sua existência como vítimas e as condenam ao esquecimento
definitivo, sua segunda morte.” Tal combate se faz justamente pelo resgate da Verdade dos fatos e pela des-
construção de versões falsas de crimes praticados por agentes do Estado.

Nesses períodos ditatoriais, em diversos locais, contra diversos povos, foram cometidas cruéis viola-
ções aos direitos humanos, como torturas, detenções ilegais, desaparecimentos forçados, execuções, entre
outros. Os torturadores e os mandantes da época da ditadura civil-militar tinham como objetivo a aniquila-
ção da identidade dos presos políticos, tanto como pessoas, quanto como militantes. Se praticava a negação
jurídica, a negação de direitos, ou seja, eles não tinham direito a absolutamente nada. Assim, é importante
esclarecer também que muitas pessoas foram atingidas indiretamente pelo Regime Militar, como os familia-
res dos mortos e desaparecidos políticos, tendo em vista a enorme repercussão que tal fato trouxe para suas
vidas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No depoimento de Lúcia Murat (CNV, 2014):

(...). Puseram baratas passeando pelo meu corpo. Colocaram uma barata na
minha vagina. (...). Enquanto o torturador ficava mexendo nos meios seios,
na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada
de me defender. (...). Essa foi talvez a pior sensação da minha vida, a sensa-
ção de não poder morrer. Eu chorava igual uma louca dentro do carro e pedia
por favor para eles me matarem. (...)3

Um ponto considerado por muitos como essencial consiste no fato de que a vítima tem que ser inse-
rida no debate do direito à verdade e à memória. Essa ideia de inserção da vítima no debate teórico é impor-
tante e inclui o conceito de justiça anamnética, utilizando a memória como instrumento para dar voz a esse
sujeito. Isto porque muitos personagens dessa história de violações silenciada ainda estão vivos.

Neste sentido, o depoimento de Rosalina Santa Cruz, na carta a seu irmão, o desaparecido político
Fernando Santa Cruz, publicada no livro “Onde está meu filho?”: “Sobrevivi a ti, mas com a tua morte fui
assassinada e torturada cem mil vezes mais do que em todas as sessões de tortura que passei nas minhas
prisões4.”

Ao se resgatar a memória e evitar a amnésia social, se constrói, gradativamente, uma ideia que vai
sendo incorporada pela sociedade: a de que não se pode deixar passar em branco os crimes de tortura, desa-
parecimentos forçados e mortes praticadas por agentes do Estado.

Com relação à cultura de memória, é sabido que a vida em democracia imprescinde o direito de sa-
ber, que se converte num dever de recordar. Dessa forma, a expressão “nunca mais”, não impõe a ideia de
deixar o passado para trás, mas de, relembrando, evitar suas repetições. Afinal, reconstruir não é sinônimo
de esquecer.

7. OS MORTOS E DESAPARECIDOS DA DEMOCRACIA - A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES


AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADE.

O processo de democratização no Brasil foi incapaz de romper em absoluto com as práticas autoritá-
rias do Regime Militar, permanecendo um padrão de violência sistemática por parte da polícia (PIOVESAN,
2010). A transição democrática possui marcas de um continuísmo autoritário, além da violência policial,
diversos casos demonstram a violência cometida contra grupos socialmente vulneráveis como os povos indí-
genas, a população negra, as mulheres, as crianças e os adolescentes.

Segundo NEGREIROS (2014), há uma relação de causalidade entre a atual violência de Estado no
Brasil e a enorme necessidade da criação de políticas públicas que objetivem e possibilitem a chamada “tran-
sição democrática”, desde o fim da ditadura civil militar (1964-1985).

Um dos legados deixados pela ditadura, que influencia de forma significativa no funcionamento das
instituições de segurança pública e na realidade cotidiana de violações sistemáticas aos direitos humanos co-
metidas por agentes do Estado brasileiro, foi a Polícia Militar. Tal instituição não surgiu nesse período, porém,
seu papel de destaque nas atuais políticas públicas da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, teve como forte
influência sua função exercida durante o Regime Militar.

Conforme a análise de NEGREIROS (2014), toda a arquitetura institucional da ditadura civil-militar


se manteve até os dias de hoje e está fadada à produção de violência. Há uma clara relação entre a atualidade
da violência de Estado e a nossa “transição democrática”. Esta transição foi feita para não ser, de fato, uma
transição.

3  Lúcia Murat para a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro no dia 28 de maio de 2014.
4  Rosalina Santa Cruz, na carta a seu irmão, o desaparecido político Fernando Santa Cruz, publicada no livro “Onde está meu
filho?” Editora Paz e Terra, 1985. ASSIS, Chico de; TAVARES, Cristina; FILHO, Gilvandro; BRANDÃO, Glória; DUARTE, Jodeval;
NETO, Nagib Jorge. Onde Está Meu Filho? Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco (Cepe Editora), 2012.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Trabalhando com dados concretos, em nove anos (2003-2012), a Polícia Militar do Rio de Janeiro ma-
tou 9.646 pessoas, ou seja, mais de 1.000 pessoas por ano. Já a Polícia Militar de São Paulo, em cinco anos
(2005-2009), matou 2.045 pessoas. Para se ter uma ideia do que isto significa, basta imaginar que todas as
polícias dos Estados Unidos juntas mataram, nesses mesmos 5 anos, 1.915 pessoas. O Estado de São Paulo,
portanto, que tem 40 milhões de habitantes, mata mais do que os EUA, que têm mais de 300 milhões de
habitantes. E o Rio de Janeiro, com 16 milhões de habitantes, isto é, com apenas 5% da população dos EUA,
demora somente dois anos para matar o mesmo número de pessoas que todas as polícias norte-americanas
somadas matam em cinco. “Direitos para brancos, direitos para ricos; migalhas e porradas aos pretos, porra-
das e migalhas aos pobres”.

Pode-se dizer que o Brasil está diante de uma tragédia histórica. Segundo Luiz Eduardo Soares, cita-
do por Negreiros (2014):

Está em curso no Brasil um verdadeiro genocídio [...] são sobretudo os jovens


pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos [que são mortos] [...].
O problema alcançou um ponto tão grave que já há um déficit de jovens do
sexo masculino na estrutura demográfica brasileira. Um déficit que só se
verifica nas sociedades que estão em guerra.

Tal continuísmo autoritário, confirmado anteriormente por Flávia Piovesan (2010), é potencializa-
do diante de um sentimento de autoanistia e esquecimento. Pode-se chegar à conclusão de que no Brasil a
Justiça de Transição não foi completa e efetiva, tendo em vista que não houve preocupação com a reparação
integral da vítima, reabilitação ou com as garantias de não repetição. Foi contemplado, até a criação das
Comissões da Verdade, tão somente o direito à reparação financeira com o pagamento de indenizações aos
familiares dos desaparecidos com a Lei 9140/95 e Lei de Anistia. Consequentemente, não houve um compro-
misso da sociedade em manter algo do passado para o futuro, instituindo uma política de memória. Portanto,
pode-se dizer que a “falsa conciliação” representada pela anistia nega a memória, a verdade e a justiça.

Da mesma forma do ocorrido na ditadura civil militar, os agentes do Estado responsáveis pelos crimes
de lesa-humanidade permanecem impunes e no mais completo anonimato nos dias atuais. As circunstâncias
em que acontecem esses crimes não são elucidadas, os fatos quase nunca vêm a público.

O deputado estadual Marcelo Freixo (2015) em entrevista afirmou:

A mão que aperta o gatilho e que mata é acompanhada de uma outra mão: de
uma caneta que assina o arquivamento, que é feito pelo promotor”. Duran-
te a entrevista, afirmou também que o Ministério Público tem sido mais do
que omisso, tem sido conivente. “O auto de resistência só não é investigado
porque o MP não quer investigar, porque ele pede o arquivamento. E o juiz
arquiva

Segundo Negreiros (2014):

O Estado Oligárquico de Direito é organizado fundamentalmente a partir da


noção de margem. Quem está para além da margem – ou para além da ponte,
como se fala na periferia, para além dos rios que dividem a cidade – não é um
cidadão desse Estado. Ele não é ninguém, não tem nenhum direito. E é por
isso que ele pode ser morto. E é por isso que, quando ele é morto, ninguém
liga. Porque quem foi morto não é ninguém. Ou, se quisermos, podemos in-
verter a proposição: ninguém foi morto”.

Tendo em vista este mais absoluto abandono, se mostra urgente a constituição de políticas públicas
de reparação às vítimas do presente: reparação financeira, psíquica, entre outras, ou seja, uma política de re-
paração integral. Em outras palavras, é de extrema urgência a criação de políticas de memória e de verdade.

444
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Neste sentido o poema de Eduardo Galeano:

(...). Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os


nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não
são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam
religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que
não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm
folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da
imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata5.

A escolha do impactante trecho do artigo “Memória, Verdade, Justiça e Reparação para os crimes do Brasil pós-
-ditatorial”, de Dario de Negreiros e do poema do escritor Eduardo Galeano, respectivamente, demonstra o fato de que
as vítimas do nosso Estado Democrático de Direito estão fadadas a um esquecimento muito semelhante àquele que o
Estado Ditatorial as tentou imputar.

É preciso deixar claro que a voz dos mortos de hoje é tão importante quanto a dos mortos na época da ditadura
civil militar. Isto porque, como sabiamente disse Débora Silva, “os nossos mortos têm voz6”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reprovação moral dos crimes passados, feita de forma difundida e oficial, influencia na formação da
identidade de uma sociedade e na seleção de suas memórias. Nesse sentido, é de fundamental importância
o estudo sobre direito à memória e à verdade, tal como a análise das atuações das Comissões da Verdade.

Caso as violações aos direitos humanos ocorridas no passado não forem elucidadas, não teremos con-
dições de impedir que estas se perpetuem nos dias atuais. É preciso reconstituir com rigor a verdade históri-
ca, até hoje negada pela repressão. Da mesma forma, é preciso conscientizar as atuais gerações do ocorrido
na época da ditadura civil-militar, com o intuito de que estas conheçam sua verdadeira história.

A democracia é uma luta, uma conquista diária e não podemos viver num Estado Democrático de
Direito sem a identificação e a justa responsabilização dos mandantes e executores da época da ditadura civil-
-militar. A verdade precisa vir à tona. É importante ser colocado que não se trata de uma vingança, mas sim
a busca pela verdade e respeito à memória das vítimas e seus familiares. Com isso, podemos concluir que a
luta pelo direito à memória e à verdade é uma condição essencial para que o ocorrido na ditadura civil-militar
nunca mais se repita.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial. 2008.

ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 1989

ASSIS, Chico de; TAVARES, Cristina; FILHO, Gilvandro; BRANDÃO, Glória; DUARTE, Jodeval; NETO, Na-
gib Jorge. Onde Está Meu Filho?. Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco (Cepe Editora). 2012.

ASSY, Bethania; MELO, Carolina de Campos; DORNELLES, João Ricardo; GÓMEZ, José Maria (orgs.). Di-
reitos Humanos. Justiça, Verdade e Memória. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora. 2012.

DAMOUS, Wadih. Informe do Relatório Parcial da Comissão da Verdade do Rio. 2014.

5  Disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/262485-11. Acesso em out/2015.


6  Fundadora do movimento Mães de Maio, que teve o filho morto pela polícia em 2006.

445
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

MIGUENS, Marcela Siqueira. A Justiça de Transição no Contexto Latino-Americano: suas características,


fundamentos e uma comparação entre Brasil e Argentina. (Dissertação apresentada, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do Estadodo
Rio de Janeiro). Rio de Janeiro. 2011.

NEGREIROS, Dario de. Memória, Verdade, Justiça e Reparação para os Crimes do Brasil Pós-Ditatorial.
Publicado no dia 26/06/14 no site http://ponteorg/memoria-verdadejustica-e-reparacao-para-os-crimes-do-
-brasil-pos-ditatorial/.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11 ed. São Paulo: Saraiva.
2010.

RUIZ, Castor Bartolomé (org). Justiça e Memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo, RS:
UNISINOS. 2009.

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. (In)justiça, violência e memória: o que se oculta pelo esquecimento tornará
a repetir-se pela impunidade. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo
D. (Coord.) Justiça de Transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetiva-
ção. Belo Horizonte. Editora Fórum. 2013. p. 79-108.

TEITEL, Ruti. Transitional Justice Genealogy. (Symposium: Human Rights in Transition). In: Harvard Hu-
man Rights Journal. 2003.

TORELLY, Marcelo D. Justiça Transicional e Estado Constitucional de Direito: perspectiva teórico-compara-


tiva e análise do caso brasileiro. (Dissertação submetida à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
(UnB) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, Estado e Constituição). Brasí-
lia. 2010.

ZAMORA, José A. História, memória e justiça: da Justiça Transicional à justiça anamnética. In: SILVA FI-
LHO, José Carlos Moreira da; ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (Coord.) Justiça de Transição nas Amé-
ricas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo Horizonte. Editora Fórum. 2013.
p. 21-46.

Relatório da Comissão Nacional da Verdade. 2014.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE


CONSTITUCIONALIDADE:
BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS

Luciano José Pinheiro Barros


Mestre pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco.

Raquel Alves Almeida Silva


Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

Ana Beatriz Oliveira de Souza


Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: 1. Apresentação; 2. Características em sentidos opostos; 3. Características e aspectos


processuais; 3.1 Concentrado x difuso: competência; 3.2 Direto x indireto: competência; 3.3 Objetivo
x subjetivo: legitimidade; 3.4 Principal x Incidental: objeto (pedido x causa de pedir); 3.5 Abstrato x
concreto: obejto. 4. Conclusão; 5. Referências.

1. APRESENTAÇÃO

A Constituição propõe um conjunto de ideias e valores que se materializam em normas reveladoras


de direitos e garantias fundamentais, com a perspectiva voltada para o desenvolvimento e afirmação da de-
mocracia e da justiça social. Todavia, a acelerada e plural dinâmica dos tempos atuais, a suscitar situações
diversas - que vão da obviedade à perplexidade -, impõe a provocação de um eficaz diálogo entre o texto cons-
titucional e a realidade, em vista da concretização de uma verdadeira ideologia constitucional, atualizando o
seu alcance.

Os meios para a consolidação de uma pauta que encarne conceitos como dignidade e cidadania, en-
tre outros que pavimentam um Estado Democrático e Social de Direito, nos termos da Constituição de 1988,
devem ser acessíveis aos cidadãos. Em caso de ameaça ou lesão a direitos individuais e sociais, a inafastabili-
dade da apreciação do Poder Judiciário a situações concretas, sobretudo, mediante a disponibilização de ins-
trumentos adequados, pode ser a garantia eficaz em prol da legitimação da agitada ideologia constitucional.

A jovem democracia brasileira e a baixa densidade da nossa cultura constitucional revelam um ainda
tímido – e, por vezes, descalibrado – manejo da matéria constitucional, sobretudo em sede de controle difuso
de constitucionalidade. Nesse diapasão, a presente abordagem parte da constatação de um problema de or-
dem didática: o tratamento pouco rigoroso da doutrina, em relação aos termos e expressões que designam as
características dos dois principais sistemas de controle de constitucionalidade (europeu e norte-americano),
cujas premissas informam o sistema de controle misto de constitucionalidade brasileiro.

É consabido que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade consagra a convivência das


vias de controle difuso e concentrado, com a potencial ventura de angariar ganhos para a consolidação da
vida democrática do país. Ocorre que a instrumentalização da matéria constitucional em juízo, depende do
pleno domínio do que significa cada característica que inspira o nosso sistema misto de fiscalização constitu-
cional e seus aspectos processuais.

447
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Ora, não se pode presumir que toda pessoa que entre em contato com a matéria já tenha alguma
intimidade com ela olvide da necessária abordagem sobre os aspectos processuais que marcam cada caracte-
rística das vias do controle de constitucionalidade brasileiro, sob pena de sério comprometimento à sua com-
preensão. A título de ilustração, não se pode discorrer sobre o controle difuso, ora o chamando de incidental,
ora de concreto (às vezes no mesmo parágrafo) - ao sabor do estilo redacional do doutrinador -, sem antes
adentrar no significado de cada característica reveladora da sua correspondente dimensão processual. A
observação do aspecto processual que encerra cada característica da via de controle de constitucionalidade,
além de necessária ao esclarecimento do tema, ainda tem o condão de trazer considerações de ordem práti-
ca a abordagens eminentemente teóricas, conjugando substância e forma no tratamento de tema tão caro à
formação de intérpretes do direito, indispensáveis à construção da nossa democracia.

Assim, as considerações adiante alinhadas apresentarão as características dos sistemas europeu e


norte-americano, dispostas em sentidos opostos, bem como o seu desdobramento na experiência brasileira,
a partir de definições conceituais e do caráter processual que as distingue, com menção ou referência aos
correspondentes dispositivos normativos.

2. CARACTERÍSTICAS EM SENTIDOS OPOSTOS.

A experiência de fiscalização constitucional brasileira gerou a convivência entre os modelos europeu


e norte-americano de controle de constitucionalidade, numa evidência de que não se cogita de pretensa
excelência teórica de um modelo em detrimento do outro. Enquanto na Europa do início do Século XX, a
Constituição da Áustria preconizava um modelo de controle de constitucionalidade, segundo as ideias po-
sitivistas de Hans Kelsen (suprimidas com o advento da Primeira Guerra Mundial e aperfeiçoadas com o
pós Segunda Guerra Mundial); nos Estados Unidos, no ano de 1803, a célebre decisão da Suprema Corte
norte-americana, a partir do voto de John Marshall, no caso Marbury vs Madison, ofertou os fundamentos do
respectivo sistema de controle de constitucionalidade, assimilado no Brasil em 1891. O modelo de fiscaliza-
ção constitucional europeu somente foi absorvido no Brasil, a partir de 1965, com a criação da Ação Direta
de Inconstitucionalidade.

Com efeito, as características que definem dimensões importantes da jurisdição constitucional no


Brasil, encontram a sua gênese em processos político-culturais que preconizaram os sistemas de controle de
constitucionalidade na Europa e nos Estados Unidos. Numa breve análise, tem-se que:

a) na Europa, o legado dos movimentos constitucionalistas firmou alicerces a partir da ideia de su-
premacia parlamentar e da lei enquanto vontade geral do povo; a legitimidade para deflagração do
controle de constitucionalidade toca às autoridades políticas; a competência para conhecer direta-
mente, processar e julgar as questões constitucionais articuladas, cabe a órgãos de natureza política,
as chamadas Cortes Constitucionais; casos concretos não são objeto de exame pelas Cortes Consti-
tucionais; e, nesse passo, os interesses subjetivos também não se inscrevem no âmbito do controle
de constitucionalidade, mas apenas o exame da compatibilização entre norma infraconstitucional e
Constituição, abstrata e objetivamente considerada, para efeito da harmonização do ordenamento
jurídico;

b) nos Estados Unidos foi concebida a ideia de supremacia constitucional, que confere à Constituição
o status de Lei Maior, decorrente do reconhecimento da sua força normativa; todo sujeito de direito
tem legitimidade para pleitear uma proteção eficaz do seu patrimônio jurídico, a partir de casos con-
cretos; todo e qualquer juiz investido em funções jurisdicionais – respeitadas as regras processuais
de competência – pode decidir questões constitucionais a ele incidentalmente apresentadas, com a
possibilidade de recurso a uma Corte Suprema.

A fim de atender a critérios didáticos, voltados para uma melhor apresentação das características dos
sistemas europeu e norte-americano, é possível organizar as considerações sobre a matéria, reafirmando as
respectivas oposições e salientando os aspectos processuais envolvidos, sob o seguinte esquema:

448
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Em linhas gerais, enquanto o modelo norte-americano destaca a supremacia do Poder Judicial, em


face do histórico de lutas pela liberdade que marca os Estados Unidos; o modelo europeu realça a supremacia
parlamentar, presente o caráter político prognosticado por Kelsen no ambiente do controle de constituciona-
lidade.

Francisco Fernández Segado afirma que o modelo de controle de constitucionalidade europeu (infor-
mado pela ideia kelseniana do legislador negativo) não confiou aos juízes o poder para exercer a jurisdição
constitucional, por não enxergar representatividade nessa casta aristocrática. Ainda assim, o citado doutrina-
dor entende que, mesmo na Europa, os ordenamentos jurídicos contemporâneos vêm se aproximando mais
do modelo norte-americano do que do formatado por Kelsen, em busca de legitimidade (SEGADO, ano 2003,
p. 64).

3. CARACTERÍSTICAS E ASPECTOS PROCESSUAIS.

Presentes as características da fiscalização constitucional na Europa e nos Estados Unidos, bem


como os fatores de concepção de cada sistema – ainda que em breves linhas -, cumpre avançar sobre os as-
pectos conceituais que autorizam a compreensão de uma verdadeira oposição de critérios na formulação dos
respectivos sistemas de controle de constitucionalidade; todavia, ambientada na experiência do sistema de
controle de constitucionalidade brasileiro, com remissões aos aspectos processuais então observados.

3.1. CONCENTRADO X DIFUSO: COMPETÊNCIA.

As características difusa e concentrada que marcam o sistema de controle de constitucionalidade


brasileiro, designando-o misto, dizem respeito às vias de instrumentalização das questões constitucionais
apresentadas ao Poder Judiciário, que recebeu da Constituição de 1988, a competência exclusiva para o
exercício da jurisdição constitucional no país. Assim, no particular, cumpre realçar os aspectos dizentes com
a competência para conhecer, processar e julgar questões constitucionais.

A designação adjetiva difusa revela a característica do sistema de fiscalização constitucional que atri-
bui a todo e qualquer juiz, investido em função jurisdicional, competência – em razão da pessoa, matéria ou
lugar - para declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Trata-se de um espaço de jurisdição constitucional
que se apresenta bastante adequado à tutela dos direitos fundamentais (o que não significa que o controle
concentrado também não responda a essa expectativa) (RÊGO, 2001, p.259).

Saliente-se que o controle difuso decorre da livre prerrogativa conferida aos órgãos jurisdicionais de
proteger a Constituição e resolver as questões constitucionais a eles submetidas. A Constituição de 1988
prevê expressamente o controle difuso em, pelo menos, dois dispositivos: no inciso XXXV do art. 5º, que
assegura o acesso ao Poder Judiciário; e, no art. 97, relativo ao procedimento dizente com a declaração de
inconstitucionalidade pelos tribunais. Intimamente ligado à garantia de acesso à justiça, o controle difuso
é manejado através dos instrumentos colocados à disposição dos cidadãos e as suas decisões não estão tão
expostas a interferências políticas, como se vê no controle concentrado.

Sem dúvida, a ampliação do acesso à justiça atende a uma necessidade óbvia de efetivação ou con-
cretização dos direitos fundamentais, na sociedade a que se dirige a Constituição. Amparado pelo sobredito

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, desde o julgador comum é possível se desempenhar o con-
trole de constitucionalidade, na medida em que se observe lesão ou ameaça a direito. Assim, o cidadão sem-
pre terá à disposição uma via pavimentada para a proteção dos seus direitos fundamentais. Essa perspectiva
deixa claro que o controle difuso pode ser a regra para a proteção ou afirmação dos direitos fundamentais no
sistema de fiscalização constitucional brasileiro, uma vez que - ao menos, em tese - é acessível a quem a ele
necessite recorrer.

Já o caráter concentrado atribuído à jurisdição constitucional revela a existência de um único órgão


investido de competência para realizar a fiscalização constitucional, mediante ações específicas. No caso do
sistema misto brasileiro, pavimentou-se uma via de acesso ao Supremo Tribunal Federal, conferindo à mais
alta instância do Poder Judiciário, a competência para a realização do controle concentrado de constitucio-
nalidade, no Brasil.

A competência concentrada em único órgão, para realização do controle de constitucionalidade, ob-


jetiva conceder estabilidade a decisões que tem o mister de harmonizar o ordenamento jurídico com os prin-
cípios e regras insculpidos na Carta Magna, resguardando os bens e valores jurídicos mais caros à sociedade
brasileira. A Constituição de 1988 concentrou no Supremo Tribunal Federal a competência para conhecer,
processar e julgar as chamadas ações constitucionais: Ação Direta de Inconstitucionalidade, em suas moda-
lidades Genérica (art. 102, I, “a”), por Omissão (art. 103, ̕2º) e Interventiva (art. 36, III); Ação Declaratória
de Constitucionalidade (art. 102, I, “a”); e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102,
p 1º).

Ora, vê-se que o marco teórico do chamado neoconstitucionalismo brasileiro, dizente com a expansão
da jurisdição constitucional, deu-se de modo eloquente no âmbito do controle concentrado: antes da Cons-
tituição de 1988 havia apenas uma ação constitucional que poderia ser manejada perante o STF; e, com a
promulgação da nossa atual Carta Magna, são cinco as possibilidades de fiscalização constitucional, através
do controle concentrado, em inegável avanço democrático, na medida em que se tem ampliadas as possibili-
dades de defesa da atual constituição, promulgada após quase trinta anos de ditadura.

Assim, resta salientada a relação do aspecto processual da competência, a designar as características


difusa e concentrada do sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro, enquanto corolário de
nossa jurisdição constitucional a realçar um projeto de país democrático.

3.2. DIRETO X INDIRETO: COMPETÊNCIA.

O Supremo Tribunal Federal desempenha o papel de guardião da Constituição. O acesso a esta que
é a mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro, está diretamente relacionado com as características ditas
direta e indireta do nosso sistema misto de controle de constitucionalidade.

O chamado controle direto de constitucionalidade decorre da concentração de competência, num


único órgão, para conhecer, processar e julgar questões constitucionais, numa quase redundância ao que
revela a característica concentrada. Diz-se direto o controle de constitucionalidade que autoriza o ingresso da
ação constitucional diretamente na Corte Constitucional: sem escalas entre os entes legitimados à respectiva
propositura da ação e o dito órgão. No Brasil, o uso da expressão controle direto pressupõe a atuação do STF,
enquanto instância primeira e única num processo de fiscalização constitucional.

Sobre o controle indireto de constitucionalidade, tem-se que a sua realização se dá no âmbito difuso
da fiscalização constitucional, estando condicionada à admissibilidade do Recurso Extraordinário pelo Su-
premo Tribunal Federal (art. 102, III, da Constituição de 1988)1, face à negativa de vigência à Lei Maior pela
instância judicante a quo.

Nesse diapasão, nem todo controle difuso é controle indireto, uma vez que o juiz singular e as instân-
cias recursais anteriores ao Supremo Tribunal Federal podem realizar a fiscalização constitucional, pronun-
1  O STF não admite Recursos Extraordinários nos quais se pretenda discutir o que se denomina de inconstitucionalidade
reflexa ou indireta; e ainda requisita que a matéria tenha repercussão geral.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ciando-se sobre os incidentes de constitucionalidade presentes no processo, em razão do que preceituam os


arts. 5º e 97 da Constituição de 1988. Todavia, caso não se interponha o Recurso Extraordinário que deman-
de a palavra final do STF, no caso sub judice, ou na hipótese de inadmissibilidade desse recurso derradeiro,
não há que se falar em controle indireto, uma vez que a questão constitucional não chegou ao conhecimento
do Supremo Tribunal Federal.

Nesse passo, não se pode dizer que as expressões controle difuso e controle indireto seriam sinônimas.
Embora guardem relação com o mesmo aspecto processual da competência, correspondem a dimensões di-
ferentes, que não autorizam o seu uso indiscriminado: o controle de constitucionalidade sem a participação
do STF, não se compadece da expressão controle indireto.

3.3. OBJETIVO X SUBJETIVO: LEGITIMIDADE.

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, no que pertine aos interesses sob tutela, traz
consigo os caracteres objetivo ou subjetivo, cujo aspecto processual implica a legitimidade de autoridades
políticas ou sujeitos de direito, respectivamente autorizados à dedução de questões constitucionais em juízo,
a depender da via eleita para os correspondentes processos. Na via difusa, o controle será subjetivo; na con-
centrada, objetivo.

O controle subjetivo oportuniza ao cidadão buscar e obter uma declaração de inconstitucionalidade,


tornando-o também responsável pela preservação da ordem constitucional. Na medida em que um conflito
de interesses intersubjetivos agasalhe uma controvérsia sobre a constitucionalidade de uma lei, e isso confi-
gure uma lide instalada no Poder Judiciário; tem-se, por meio da defesa de interesses pessoais, a defesa da
Constituição, desde a judicatura de primeira instância. Presente eventual inércia dos entes legitimados à
propositura das chamadas ações constitucionais, diante de questões que suscitem uma declaração de incons-
titucionalidade, o cidadão pode se valer do controle subjetivo2 para ver respeitado o seu direito fundamental
e não ser obrigado a cumprir lei ou ato normativo inconstitucional.

Destaque-se que os efeitos produzidos por decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, em sede de controle subjetivo, alcançam apenas aqueles que protagonizam os polos ativo e passivo
do processo judicial (inter parts), não alcançando pessoas alheias à lide e quem ficou inerte, ante a ameaça
ou lesão a seu patrimônio jurídico. Assim, em caso de declaração de inconstitucionalidade, a lei é nula apenas
para as partes do processo, fazendo valer o brocardo de que “o direito não socorre a quem dorme”.

De sua parte, o controle objetivo de constitucionalidade é alheio a interesses pessoais e se presta à


tutela objetiva do ordenamento jurídico, em vista da pretendida harmonia entre norma infraconstitucional
e Constituição. Por esse motivo, não se confere legitimidade ao cidadão comum para instrumentalizar ques-
tões constitucionais perante qualquer órgão do Poder Judiciário, mas a autoridades políticas arroladas na Lei
Maior, tocadas com o condão constitucionalmente legitimador para a propositura das ações constitucionais,
perante o órgão competente para conhecê-las, processá-las e julgá-las.

No Brasil, os incisos do art. 103 da Constituição da República e do art. 2º da Lei 9868/99 reproduzem
o mesmo texto, atribuindo legitimidade a órgãos, pessoas e entes para promover ADIn ou ADC; bem como
o 2º da Lei 9.882/99 faz o mesmo em relação à ADPF, tudo, perante o Supremo Tribunal Federal. Todavia,
a jurisprudência do STF exige a demonstração de uma pertinência entre as prerrogativas ou fins institucio-
nais desses órgãos, pessoas ou entes e a matéria tratada pelo ato normativo questionado, passando a exigir
a caracterização do chamado interesse de agir, como critério objetivo para o conhecimento das ditas ações
constitucionais, no âmbito do processo objetivo do controle de constitucionalidade. Vê-se, na experiência
brasileira, um fenômeno de verdadeira aproximação entre os controles objetivo e subjetivo, na medida em
que um instituto originalmente previsto neste – tido como condição de ação - é requisitado para aquele – sob
a alcunha de “pertinência temática” -, a fim de evitar o indevido uso político do controle objetivo conferir
legitimidade e qualidade ao debate judicial.

2  v.g. mandado de segurança.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Assinale-se que os efeitos produzidos por decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, mediante controle objetivo, alcançam a todos os cidadãos indistintamente (erga omnes); ou seja,
em caso de declaração de inconstitucionalidade, a lei é objetivamente extirpada do ordenamento jurídico.

Uma vez assinalada a relação entre o aspecto processual da legitimidade e as características subjetiva
e objetiva do nosso sistema de controle de constitucionalidade, tem-se evidenciados os contornos da juris-
dição constitucional brasileira que lidam com a possibilidade de consolidação cotidiana dos direitos funda-
mentais, de um lado; e, de outro, conferem alcance geral à discussão da matéria constitucional, alicerçados
no instituto da legitimidade.

3.4. PRINCIPAL X INCIDENTAL: OBJETO (PEDIDO X CAUSA DE PEDIR).

As características que denominam as vias principal e incidental de controle de constitucionalidade,


tem a ver, respectivamente, com a articulação da questão constitucional no pedido ou na causa de pedir das
peças processuais que suscitam a fiscalização constitucional.

Diz-se principal a via de controle de constitucionalidade acessada através das chamadas ações consti-
tucionais, cujo manejo localiza a questão constitucional no pedido apresentado ao Supremo Tribunal Federal,
encerrando o objeto principal do processo.

Na estrutura de uma petição inicial, após a qualificação das partes e apresentadas as razões de direito
(causa de pedir), tem-se o pedido: a manifestação do que se deseja na demanda apresentada ao Poder Ju-
diciário: a materialização de uma pretensão deduzida em juízo. Ora, o pedido define o objeto da demanda e
corresponde ao próprio objeto do processo: aquilo que se pretende com a instauração da demanda e se extrai
a partir de uma interpretação lógico-sistemática do afirmado na petição inicial. O controle de constituciona-
lidade principal objetiva as declarações de inconstitucionalidade (ADIN), constitucionalidade (ADC) ou a ve-
rificação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), manejado através das ações constitucionais,
com os respectivos objetos expressamente indicados no pedido.

A via incidental de controle de constitucionalidade revela a possibilidade de fiscalização constitucio-


nal de uma lei, mediante a ocorrência de um incidente processual. A questão constitucional não corresponde
ao objeto principal da ação. No âmbito de um conflito intersubjetivo de interesses, confiado a um juiz inves-
tido em funções jurisdicionais, a declaração de inconstitucionalidade é articulada como causa de pedir algo
no processo.

Ao enfrentar as razões de fato e de direito envolvidas na lide, o juiz decide o incidente de inconsti-
tucionalidade, enquanto questão prejudicial de mérito; para, enfim, pronunciar-se sobre o pedido (objeto
principal do processo). Nesse passo, a via incidental de controle de constitucionalidade oportuniza a concre-
tização de direitos fundamentais; cotidianamente.

A doutrina autorizada de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior afirma que a
declaração incidental de inconstitucionalidade “será sempre incidenter tantum, ou seja, pressuposto para
a procedência ou improcedência da ação, que apreciará a tutela concreta do interesse instalado em juízo.
Aqui, a declaração de inconstitucionalidade antecede o mérito da questão” (ARAUJO; JUNIOR, 2003, p. 28)
e a fiscalização constitucional se dá quase que acidentalmente, pois as partes envolvidas no processo - seja o
requerente do pedido principal, seja a parte adversa - tem por objetivo ver os seus problemas pessoais resol-
vidos. A questão constitucional é causa de pedir a procedência ou improcedência do pedido.

Anote-se que a causa de pedir se divide em próxima (imediata), que correspondente aos fundamen-
tos fáticos articulados na petição inicial: os fatos da vida que servirão de alicerce para o pedido jurídico; e re-
mota (mediata), equivalente aos fundamentos jurídicos que também sustentam o pedido: a contextualização
de um fato qualquer da vida, dentro do ordenamento jurídico. As causas próxima e remota (ou imediata e
mediata) estão diretamente relacionadas, pois não há como se alegar a titularidade de determinado direito,
sem antes se analisar os fatos que fundamentem o pedido a ser feito.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Assim, na causa de pedir ou no pedido de uma ação, a questão constitucional encontra espaço de vei-
culação no sistema misto de controle de constitucionalidade brasileiro, ampliando as expectativas de adensa-
mento de nossa cultura constitucional e, consequentemente, de aprofundamento de uma recente experiên-
cia democrática, cujos instrumentos de defesa não podem ficar confinados a espaço de pretensa sofisticação
jurídica, distante da necessária e legítima elaboração do direito, a partir do manejo dos controles principal e
incidental.

3.5. ABSTRATO X CONCRETO: OBJETO.

No Brasil, o controle de constitucionalidade denota as características abstrata e concreta, enquanto


aspecto processual dizente com o objeto do processo que instrumentaliza a questão constitucional. Sobre o
objeto do processo recai enorme esforço doutrinário para alcançar o que pode significar tal instituto. No en-
tanto, a acepção sinônima correspondente ao mérito da causa, esclarece o sentido da expressão jurídica que
se relaciona com as citadas características abstrata e concreta da fiscalização constitucional (ao menos, para
o presente momento de breves considerações didáticas).

Em regra, o controle concreto é levado a efeito no âmbito de um debate judicial em torno de um caso
concreto e suas especificidades, ao ensejo da defesa de interesses pessoais ou de algum direito. Nesse âmbito,
o pronunciamento judicial leva em consideração um fato previsto em norma e a sua significação, que coe-
xistem em uma unidade concreta: o objeto processual (REALE, 1979 apud RÊGO, 2001, p.280).3 O controle
concreto tem o condão de produzir julgamentos sob medida, limitados aos respectivos objetos processuais,
realizando o direito específico a ser aplicado em cada caso, sob a perspectiva da conformidade ou não com a
Constituição.

O controle abstrato, no mais das vezes, é exercido em razão da verificação da validade de uma lei ou
ato normativo, em face da Constituição, em análises alheias a ocorrências reais. Marcado por elevado teor po-
lítico, o controle abstrato pode recorrer a expedientes presentes em processos que oportunizam a realização
do controle concreto de constitucionalidade, na medida em que passou a admitir a convocação de peritos ou
de comissão de peritos, na condição de especialistas em matérias que estejam submetidas a sua apreciação.
Ora, ordinariamente, peritos são requisitados para ajudar na elucidação de situações fáticas; mas, em nome
da delimitação do objeto processual, disponibilizam o seu conhecimento à realização do controle abstrato.

Presente, pois, a relação existente entre o aspecto processual do objeto e as características concreta
e abstrata do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, tem-se que as respectivas perspectivas
de concretização da vontade constitucional podem se materializar desde a instalação de situações cotidianas
no Poder Judiciário, até as considerações dizentes com a harmonização do ordenamento jurídico em face da
Lei Maior, requisitando argumentação específica e tecnicamente ajustada à revelação do objeto, em cada via
de fiscalização constitucional.

4. CONCLUSÃO.

O domínio sobre o que encerra cada característica do sistema misto de controle de constitucionali-
dade brasileiro, presentes os correspondentes aspectos processuais, parece ter a sua importância para uma
compreensão mais fluída da matéria, cuja instrumentalização materializa as possibilidades de defesa da
Constituição e promoção da democracia. Parece ser o caso em que o rigor na categorização de cada caracte-
rística contribui para a pavimentação de um conhecimento basilar, que pode oportunizar outros estudos e o
exercício mesmo de um controle de constitucionalidade eficaz.

3  REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 67. Apud RÊGO, Bruno Noura de Moraes Rêgo.
Ob. cit. p. 280.

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Direito(s) em debate.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 7ª Edi-
ção. São Paulo: Saraiva, 2003.

RÊGO, Bruno Noura de Moraes. Ação rescisória e a retroatividade das decisões de controle de
constitucionalidade das leis no brasil. 1ª Edição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.

SEGADO, Francisco Fernández. “La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional (Modelo Americano – Mo-
delo Europeo-Kelseniano) de los Sistemas de Justicia Constitucional”. In: Revista de Direito Público n 02
(out-nov-dez/2003)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA

Luciano José Pinheiro Barros


Mestre pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco

Mateus Siqueira Pacheco


Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

Sumário: 1. Crise, Democracia e Jurisdição Constitucional: Constitucionalismo; 2. Crise, Democra-


cia e a Expansão da Jurisdição Constitucional; 3. Crise, Jurisdição e o Papel do Juiz; 4. Jurisdição,
Democracia e o Ativismo Judicial; 5. Conclusão; Referências

1. CRISE, DEMOCRACIA E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONSTITUCIONALISMO.

Pode-se dizer que o constitucionalismo é um movimento que se apoia numa “teoria normativa da
política”, que “ergue o princípio de um estado limitado, indispensável à garantia dos direitos em dimensão es-
truturante da organização político-social de uma comunidade” (CANOTILHO, ano 1993, p.51). A afirmação
conceitual do constitucionalismo envolve uma articulação complexa de institutos plasmados nos universos
da política e do direito, construídos na base de uma realidade em transformação, por vezes, reveladora de
uma situação de crise. O empirismo que ressai dessa assertiva enxerga nas soluções orientadas a partir de
ideias e valores constitucionais (ideologias e práticas políticas e judiciárias), importante elemento legitima-
dor de um movimento que encerra a pretensão de superar situações de crise ou evidenciá-las, a partir da
instrumentalização do direito.

O movimento do constitucionalismo corresponde a uma dinâmica em torno e a partir do direito cons-


titucional, que articula e atualiza os fundamentos da vida democrática, ao estruturar e organizar o Estado
e projetar direitos e garantias individuais e sociais, numa perspectiva de limitação do poder e – atualmente,
pode-se dizer - empoderamento da pluralidade (CARDDUCCI, ano 2015, p. 205). A história registra que
o constitucionalismo se alimenta de realidades em crise e tem a ventura de produzir normas jurídicas, re-
dimensionar espaços e funções jurisdicionais, bem como patentear novas tecnologias hermenêuticas, em
nome de uma ideologia constitucional cada vez mais complexa e de difícil conciliação na (des)construção de
paradigmas democráticos.

Entende-se por crise uma experiência de dificuldades agudas ou perigosas. Em uma palavra, a tradu-
ção de uma conjuntura difícil. Interessa, presentemente, alcançar a dimensão de dificuldades ou problemas
contemporâneos que se relacionem com o constitucionalismo, através da instalação de questões constitu-
cionais no Poder Judiciário, realçando a dificuldade deste em lidar com a ressignificação de metavalores
como liberdade e dignidade, presente o desafiador ideal de realização da justiça. Nesse passo, a jurisdição
constitucional corresponde a um espaço especializado para a compreensão das situações de crise, a partir
das demandas a ela apresentadas, restando-lhe a missão de produzir decisões que se legitimem junto aos
destinatários e titulares de direitos fundamentais.

A jurisdição constitucional é expressão indeclinável da soberania de um país. Na definição kelseniana


corresponderia à garantia jurisdicional da Constituição que, ambientada na experiência brasileira, é exercida
pelo Poder Judiciário. O nobre instituto jurídico encerra uma competência conferida pela própria Lei Maior,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

voltada para a dicção do que se projeta sobre os sentimentos, ideias e vontades mais caros a uma sociedade
em permanente transformação. Ocorre que as decisões emanadas em sede de controle de constitucionali-
dade, cada vez mais, expõem evidentes dificuldades de diálogo entre as premissas que fundamentam o seu
juízo e legitimam o binômio Constituição/Democracia. É de se perguntar: a jurisdição constitucional deveria
estar preocupada com as causas que compõem o objeto das demandas que lhe são apresentadas? Deveria a
jurisdição constitucional dar respostas argumentadas que promovam um constitucionalismo jurídico, ou or-
bitar em torno de consensos, atendendo a um constitucionalismo político? (CARDDUCCI, ano 2015, p. 206).

Com efeito, a democracia corresponde a um produto histórico da civilização ocidental, cuja materia-
lização em texto constitucional decorre de uma decisão política fundamental que reconhece a coexistência
de valores como liberdade e dignidade humana (já mencionados), sufrágio universal e acesso à justiça, entre
outros, convertidos em direitos e garantias elevados ao status de Lei Maior. Na perspectiva das presentes con-
siderações, assinalar que a democracia, hoje, corresponde a uma filosofia, um modo de viver ou uma quase
“forma de governo”; impõe questionar se a gestão dos conflitos que marcam o pluralismo contemporâneo,
ainda que relativos a direitos fundamentais, encontra legitimidade na atuação dos juízes e no fundamento de
suas decisões argumentadas ou se a dimensão democrática da jurisdição constitucional reconhece e compar-
tilha autoridade com os demais órgãos que representam a diversidade das opiniões votadas pelos cidadãos.

A dinâmica imposta por situações de crise, protagonizada no âmbito da jurisdição constitucional, em


vista da promoção da democracia, enquanto valor quase dogmático do mundo ocidental, demanda por res-
postas constitucionalmente atentas às transformações de um mundo que dialoga com humanismos diversos,
fundando um constitucionalismo concreto e originalmente mundializado, com mais imprecisões do que res-
postas prontas, desde o que é fundamental ao que requisita soluções sistêmicas.

Sendo certo que os movimentos constitucionalistas se apresentam como resposta a situações de


crise, suscitando transformações na modelagem do Estado Constitucional, faz-se relevante observar que o
conjunto de transformações experimentadas com o neoconstitucionalismo forjado na Europa (pós II Guerra
Mundial) e observado no Brasil (pós ditadura militar), pode não se revelar suficiente para garantir a proteção
dos direitos individuais, sociais e culturais de cidadãos inseridos em outras realidades, ainda que próximas.

Para empreender essa reflexão, busca-se apoio no Novo Constitucionalismo Latino-Americano que,
ao atentar para situações próprias da América do Sul, procurou fixar novos fundamentos para a vida demo-
crática de alguns países. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano surge em um contexto de revoltas
populares na Venezuela (Caracazo, 1989), Bolívia (Guerra del Gas, 2003) e Equador (protestos de 2005),
em face de crises econômicas, sociais e de representatividade política, marcadas por protestos, depredações
e saques em série (VIEIRA, 2009, p. 02).

A edição de novos documentos constitucionais nesses países [Venezuela (1999), Equador (2008) e
Bolívia (2009)], inspirados por um constitucionalismo que pugna por maior legitimidade democrática e privi-
legia a participação popular nos processos de deliberação fundamental, instituiu a figura do Estado Plurina-
cional Comunitário, que subscreve o exercício de uma democracia direta, enquanto marco: a Constituição é
elaborada por uma assembleia constituinte participativa e, posteriormente, aprovada por meio de referendo
– por exemplo. Nesse modelo, a própria Constituição consagra uma série de institutos que autorizam a parti-
cipação popular no governo, como o “Poder Ciudadano” (Venezuela), o “Control Social” (Bolívia) e o “Quinto
Poder” (Equador), retirando a hegemonia absoluta do mandato representativo que caracteriza o sistema de
representação política tradicional (VIEIRA, 2009, p. 15).

Apesar de propor um modelo de participação direta e mais intensa do povo, na construção da vida
democrática de um país, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano não se restringe a um aspecto apenas
quantitativo da representação popular. O pluralismo é uma característica intrínseca desse movimento, proje-
tado sobre os textos constitucionais, que contemplam as culturas indígenas e toda a diversidade presente na
expressão de um Estado Plurinacional, cuja soberania também se manifesta através da criação de “Justiças
Comunitárias” e das decisões dos Tribunais Constitucionais.

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Direito(s) em debate.

Com efeito, as Justiças Comunitárias e Tribunais Constitucionais correspondem a espaços de parti-


cipação efetiva, conferida às comunidades, para a criação do direito - sobretudo o constitucional - pertinente
à dignidade da pessoa humana. É de se registrar que a produção de decisões sobre questões jurídico-políti-
cas, com amplos efeitos sociais, dá ensejo à concretização de princípios insculpidos nas constituições desses
países, máxime ante a forte intervenção do Poder Executivo, na condução de políticas econômicas; o que
salienta a importância do processo constitucional, na mediação da relação existente entre os diversos poderes
do Estado Plurinacional.

O Novo Constitucionalismo Latino Americano aposta na intensa participação popular e respeita o


condão multicultural que toca a composição do estado contemporâneo e o respectivo sistema jurídico, de
modo a garantir a legitimidade das premissas em que se apoia. Assim, tem-se superada a visão de um estado
nacional universalista por uma perspectiva decolonial, atenta às singularidades dos diversos grupos que com-
põem a sociedade plural dos dias de hoje.

2. CRISE, DEMOCRACIA E A EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL.

A história do mundo ocidental registra situações de crises relacionadas a experiências de regimes


totalitários, que impuseram o peso de suas concepções, em atentados contra a democracia e os direitos hu-
manos. A concertação de fatores políticos e jurídicos preconizaram a formulação de movimentos em torno e
a partir da Constituição, cujos marcos teóricos preconizam a construção de modelos que se afeiçoam demo-
cráticos em cada realidade de Estado.

Presentemente, cumpre contextualizar a expansão da jurisdição constitucional, enquanto marco te-


órico do neoconstitucionalismo europeu e brasileiro, a fim de trazer uma dimensão que instrumentaliza o
exercício do direito de acesso à justiça, em vista da concretização de direitos fundamentais e promoção de
um ideal democrático, através de decisões afirmativas de um direito constitucional atento aos anseios de
sociedades, então assombradas pelo julgo totalitário.

Numa Europa arrasada pela Segunda Guerra Mundial, a expansão da jurisdição constitucional se
deu – não por acaso -, a partir da edição da Constituição da Itália, em 1947, e da Lei Fundamental de Bonn
(Alemanha), em 1949. Os respectivos textos constitucionais previram a criação de Tribunais Constitucionais:
órgãos autônomos (independentes dos poderes constituídos), dotados de competência e destinados à reali-
zação do controle de constitucionalidade. O primeiro Tribunal Constitucional Federal da Europa foi criado,
na Alemanha, em 1951; a Corte Constitucional italiana foi criada posteriormente, em 1956. Nesses países,
a necessidade de superação dos traumas nazi-fascistas reclamava uma resposta urgente e em condições de
assegurar uma proteção eficaz aos direitos fundamentais.

No Brasil, os contornos do neoconstitucionalismo estão identificados com os movimentos que re-


sultaram na promulgação da Constituição de 1988, após quase três décadas de autoritarismo militar no
país. A expansão da jurisdição constitucional brasileira assinala a ampliação do direito de propositura das
ações constitucionais, como expressão desse marco teórico. Na definição de um modelo misto de fiscalização
constitucional, a atual Constituição, preservou a convivência da via difusa de controle de constitucionalida-
de (característico do judicial review norte-americano) com a via concentrada (inspirada pela experiência
concentrada) , ampliando o acesso à jurisdição constitucional, por essa última, de caráter objetivo, abstrato
e direto, que tem a questão constitucional como objeto principal do pedido deduzido perante a nossa Corte
Constitucional, o Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, antes da atual Constituição, o controle concentrado de constitucionalidade somente po-
deria ser acessado através de uma única ação constitucional, a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN,
criada em 1965, cuja instrumentalização era reservada tão só ao Procurador Geral da República. Após a pro-
mulgação da Constituição de 1988, o sistema pátrio de controle concentrado de constitucionalidade passou
a dispor de cinco ações constitucionais: a Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica - ADIN (art. 102,
I, “a”), a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO (art. 103, § 2º), a Ação Direta de Incons-
titucionalidade Interventiva (art. 36, III), a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC (art. 102, I,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

“a”) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF (art. 102, § 1º), as quais podem ser
manejadas, não mais apenas por uma única autoridade política; mas, agora, por nove órgãos ou autoridades,
conforme prevê o art. 103, I a IX, da Carta Magna. Vê-se, nesse passo, a nítida preocupação do Poder Cons-
tituinte em promover e proteger os avanços democráticos consagrados na Constituição de 1988, ao legitimar
entes e ofertar instrumentos na perspectiva da preservação da ordem constitucional.

A ampliação do direito de propositura, pois, corresponde a importante dimensão da de-


mocracia brasileira, cujo caráter instrumental – além de disponibilizar mecanismos de defesa da Constitui-
ção e incrementar o rol de autoridades habilitadas para tanto – ainda estabelece contatos com a sociedade
organizada, através dos institutos da audiência pública e do amicus curiae, previstas na legislação que regu-
lamenta os processos de ADIN, ADC e ADPF, na busca de uma maior legitimidade para o exercício da juris-
dição constitucional.

3. CRISE, JURISDIÇÃO E O PAPEL DO JUIZ.

A democracia brasileira atravessa um período de crise que atinge as estruturas do poder e, conse-
quentemente, a legitimidade da representação popular identificada com as instâncias políticas tradicionais
(legislativa e executiva). O quadro de instabilidade política que inspira processos de impeachment, as repeti-
das acusações de corrupção feitas a membros dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como a representan-
tes de diversos partidos políticos e grandes grupos empresariais, perfazem um cenário que reclama soluções
baseadas em regras e princípios constitucionais, garantidores da ordem democrática, cuja palavra final está
reservada ao Poder Judiciário, que também não está imune a críticas.

No atual momento de crise, registre-se que a apresentação do Projeto de Lei nº 280/2016, ao versar
sobre a regulação do crime de abuso de autoridade, criminalizando uma série de condutas praticadas pelo
agente público, ou aquele a ele equiparado, foi recebida como um acinte às prerrogativas da autoridade
policial, do Ministério Público e da magistratura; máxime em razão de membros dos Poderes Legislativo e
Executivo estarem sob investigação, respondendo a processos e até cumprindo penas. O referido PL precisa
ser bem discutido, cumprindo pontuar, entretanto, que os críticos dessa medida legislativa dizem que ela
representaria a abertura para a criminalização1 dos membros dos outros poderes, agravando a atual situação
de crise democrática.

Em relação à magistratura, por exemplo, há uma percepção de que estar-se-ia agredindo prerrogati-
vas que atingiriam a autonomia do Poder Judiciário, no cumprimento da função jurisdicional. Tem-se como
relevante para o processo democrático a preservação de garantias conferidas à magistratura (art. 95, I a III,
da CF), na medida em que a ela foi destinada competência – e até ampliada, na CF de 1988 - para concre-
tizar a vontade constitucional. Com efeito, as garantias constitucionais que tocam a magistratura, como a
autonomia orgânico-administrativa e orçamentária; bem como a vitaliciedade, inamovibilidade e a irredu-
tibilidade de subsídios, correspondem a fatores que não podem ser vulnerados, sob pena de grave prejuízo
à preservação da ordem democrática, desde a tutela dos direitos subjetivos, no controle concreto, como do
direito objetivo, em sede de controle abstrato.

A ordem jurídica contemporânea não se caracteriza por um positivismo estrito, marcadamente le-
galista. Tem-se a transfiguração do juiz “bouche de la loi” para a concepção de um juiz intérprete. O texto
normativo, de per si, não tem mais a pretensão de oferecer a solução integral para todos os problemas expe-
rimentados em sociedade; e requisita a exegese do magistrado ou corte, cuja interpretação se integra ao seu
relato abstrato, revigorando o Estado Constitucional Democrático e integrando o Poder Judiciário à dinâmica

1  Cabe ressaltar que o processo de criminalização não envolve apenas a condenação dos indiciados, ele se inicia desde a edição
de uma lei criminalizadora que já restringe o âmbito de pessoas que serão criminalizadas pelo novo delito. Outro aspecto impor-
tante deste processo é a imposição de um rótulo (BECKER, 2008, p. 17-24) na figura da pessoa criminalizada desde o início do
processo criminal. A possibilidade de abertura de processos criminais contra os membros da magistratura, pelo exercício de sua
atividade, parece afetar a imagem do Poder Judiciário e agravar a situação de crise. A conduta abusiva do magistrado, na condução
do processo, pode ser impugnada no âmbito recursal e levar o magistrado a responder processo administrativo disciplinar movido
nos Tribunais respectivos e Conselho Nacional de Justiça, conforme determinado na Resolução n° 135/2011/CNJ. Logo, a utiliza-
ção da justiça criminal parece uma atitude desarrazoada e atentatória contra as garantias da magistratura.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de promoção da ordem constitucional, como guardião da Lei Maior. Nesse passo, o juiz ou a corte não se li-
mitam a apenas aplicar o texto normativo em sua literalidade. Os limites restritos da atividade interpretativa
do juiz, observado o dever de fundamentação (art. 93, X, da CF) foram dilatados ante a necessidade de con-
cretização das normas constitucionais, mediante a interpretação mais condizente com a vontade expressa na
Constituição (ROMBOLI, ano 2013 p. 2-4).

Ora, tem-se uma crescente valorização da jurisprudência na realidade jurídico-política brasileira,


consolidando a ideia de ampliação dos poderes interpretativo-criativos do juiz e, principalmente, do STF, que
ocupa a posição de cúpula do Poder Judiciário. A importância das decisões do STF e seu alcance político pode
ser ilustrada pela possibilidade de o Senado Federal editar Resolução, que retire do ordenamento jurídico,
lei declarada inconstitucional pelo STF, em sede de controle subjetivo (art. 52, X): tem-se a interpretação
constitucional, enquanto produto do Poder Judiciário, como fator de integração entre os poderes.

De fato, aspecto relevante do constitucionalismo brasileiro, em sua intrínseca relação com a demo-
cracia, é o protagonismo do Poder Judiciário na afirmação da Supremacia Constitucional, a partir do reco-
nhecimento da força normativa da Lei Maior. No contexto de redemocratização do Brasil, esse protagonismo
se deu com a afirmação das garantias conferidas à magistratura, que teria o condão de imunizar a jurisdição
constitucional contra interferências anti-republicanas, mas sem invadir o espaço das deliberações majoritá-
rias e o que decorre de sua legitimidade. Nesse diapasão, o perfil do magistrado não se limita ao de um mero
técnico especializado; mas, munido das prerrogativas discricionárias que lhe tocam, deve estar imbuído da
missão de um verdadeiro protetor da ordem democrática.

É indeclinável a perspectiva de interação entre o juiz e a norma escrita, haja vista as categorias
presentes na dinâmica de interpretação constitucional, a validar a discricionariedade que dá suporte à sua
atuação. A existência de conceitos jurídicos indeterminados no texto constitucional, como “ordem pública”
e “boa fé”, entre outros, requisita que a atividade hermenêutica aproxime valores subjetivos e objetivos pre-
sentes na realidade, a fim de definir o sentido da norma e realizar a atividade jurisdicional, uma vez que o
enunciado normativo de expressões como tais é dotado de flexibilidade para atender à diversidade de situa-
ções que demandam soluções, à luz de uma teoria dos direitos fundamentais.

No mesmo sentido, a entrega da jurisdição constitucional fundamentada em princípios constitucio-


nais, cuja força normativa deve ser observada, também pedem ao intérprete que defina o conteúdo de valores
expressos sob a designação de “dignidade da pessoa humana”, “solidariedade”, por exemplo; sendo certo que
a ele caberá imprimir sentido e atribuir alcance às normas com tais características textuais e substanciais,
que “encerram fins públicos a serem realizados por diferentes meios” (BARROSO, ano 2005, p. 5).

Situações presentes no constitucionalismo contemporâneo, decorrentes do pluralismo que rendeu


ensejo a constituições complexas, materializam conflitos entre normas constitucionais, a serem solucionados
pela atividade interpretativa do juiz. O direito de ir e vir versus o de liberdade de expressão, meio ambiente
equilibrado versus promoção do desenvolvimento econômico, cotidianamente entram em rota de colisão
e pedem ao intérprete o uso da ponderação para eliminação da tensão entre valores caros à sociedade. A
reabilitação da argumentação, a fim de fundamentar a solução jurisdicional a ser aplicada, orientada pela
razoabilidade, fazem parte de um verdadeiro arsenal metodológico disponibilizado ao juiz, a fim de legitimar
suas decisões, apoiada nas prerrogativas conferidas à magistratura.

4. JURISDIÇÃO, DEMOCRACIA E O ATIVISMO JUDICIAL.

A Constituição Federal de 1988 é um documento complexo, dotado de caráter analítico que enumera
uma série de regras e princípios fundamentais, conferindo ao seu texto um sentido axiológico, em vista da
materialização de sentimentos, ideias e vontades de um povo. Enquanto fonte de interpretação da realidade,
o constituinte concede contornos formais a uma matéria política, encartando-a no ordenamento jurídico, em
seu mais alto grau:

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Na medida em que uma questão – seja de direito individual, uma prestação


estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional,
ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser
formulada sob a forma de ação judicial (Barroso, 2012, p. 24).

Logo, tem-se retirada do legislador a total discricionariedade na definição do que é direito, uma vez
que a pluralidade de temas inseridos no texto positivado atrai para o Poder Judiciário demandas que o inclui-
rão na linha de criação do direito, através da entrega da jurisdição, respeitadas as competências constitucio-
nalmente defendidas pelo princípio hermenêutico da conformidade funcional. Pergunta-se, outrossim, se já
não estaria havendo uma dilatação dos respectivos limites de competência?

Resta consequente a instalação de questões de grande importância política e social no Poder Judi-
ciário, caracterizando o fenômeno da judicialização enquanto um fato, que se apoia em 3 (três) fatores: (a)
na constitucionalização abrangente de variadas matérias, (b) na implantação do sistema brasileiro misto de
controle de constitucionalidade, e (c) na redemocratização do país (BARROSO, 2012, p. 24-25). A sinergia
produzida entre esses fatores, que consubstanciam a judicialização, resulta no aumento do prestígio do Po-
der Judiciário e reflete a crise de representatividade que toca aos demais poderes, gerando insumo para o
ativismo judicial.

Com efeito, a judicialização é caracterizada pelo protagonismo dos órgãos do Poder Judiciário, na
decisão de questões políticas e sociais de grande repercussão na sociedade (BARROSO, 2012, p. 24). Num
contexto de separação dos poderes e, consequentemente, limitação e fiscalização recíproca, cabe ao Poder
Judiciário zelar pelo cumprimento da vontade constitucional, desde a prolatação de decisões monocráticas
até a manifestação do STF, ainda que – em alguns casos - em contraposição à vontade política majoritária,
materializada em lei, se esta for inconstitucional.

No exercício da função jurisdicional, o magistrado deve realizar um juízo de valor que concretize uma
verdadeira ideologia da Constituição, em cada caso concreto analisado - no âmbito do controle subjetivo - ou
situação abstrata a ele confiada - no caso do controle objetivo. A autoridade judicial não poderia exceder os
limites de competência propugnados pela própria ordem jurídica, a ponto de intervir na seara de outro poder.
Caso o Poder Judiciário extrapole esses limites, estar-se-á diante de um fenômeno que a doutrina chama de
ativismo judicial, eis que

[...] ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir é à ultra-


passagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento
principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa
e, até mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da
legiferação (ou de outra função não jurisdicional), que, aliás, em circunstân-
cias bem delimitadas, pode vir a ser deferido pela própria Constituição aos
órgãos superiores do aparelho judiciário, e sim da descaracterização da fun-
ção típica do Poder Judiciário com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial
de funções constitucionalmente atribuídas a outros poderes (RAMOS, 2010,
p.116-117).

São característica do ativismo judicial a (a) aplicação direta da Constituição a situações não pre-
vistas no seu texto e de forma independente da manifestação do legislador ordinário; (b) a declaração de
inconstitucionalidade de uma lei, com base em critérios pouco rígidos; e (c) quando há a prescrição de
obrigações ou abstenções em questões de políticas públicas inscritas na margem de discricionariedade da
Administração Pública (BARROSO, 2012, p. 26): o que encerra uma atitude proativa do magistrado, em face
do distanciamento entre as instâncias políticas tradicionais e a sociedade.

Essa intervenção do Poder Judiciário, no afã de concretizar os fins constitucionais, deve-se, em gran-
de parte, à crise de legitimidade que afeta os demais poderes constituídos. Presente a incapacidade dos
Poderes Executivo e Legislativo - desprestigiados por acusações de corrupção e descalibrada atuação -, em

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

responder a demandas sociais, o Poder Judiciário vem sendo impelido a tomar decisões que supram as omis-
sões desses poderes.

Entretanto, essa atitude proativa do Poder Judiciário deve ser vista com cautela, em razão da legitimi-
dade reconhecida aos órgãos compostos por representantes eleitos pelo povo, dar a estes as prerrogativas de
representação que não são conferidas aos magistrados.

Outrossim, em contraposição à atitude ativista do Poder Judiciário, tem-se o passivismo (RAMOS,


2010, p.123) ou a auto-contenção judicial (BARROSO, 2012, p. 26), que orienta a atuação do magistrado
pela “primazia absoluta do texto normativo sobre a atividade do intérprete-aplicador, reduzida à mera cons-
tatação e aplicação mecânica dos enunciados normativos [...]”.

O passivismo ou a auto-contenção judicial é caraterizada pela (a) não aplicação direta da Constitui-
ção a situações não previstas no seu texto, ficando dependente da manifestação do legislador ordinário; (b)
utilização de critérios rígidos para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei; e (c) a não interferência
na definição de políticas públicas, deixando esse juízo para o Poder Executivo (BARROSO, 2012, p.26).

É de se ver que, enquanto no ativismo judicial é observada uma maior propensão à intervenção nos
demais poderes, por meio da atividade jurisdicional; no passivismo ou auto-contenção judicial, o magistrado
se abstém do engajamento necessário para a concretização de direitos fundamentais e limita o alcance da
sua atuação ao que está conformado pelo Princípio da Separação dos Poderes, ainda que o exercício das res-
pectivas prerrogativas estejam distantes do que postula uma experiência de Estado Democrático e Social de
Direito, segundo os cânones da Constituição vigente.

Ao tratar da crescente intervenção do Poder Judiciário, na vida democrática brasileira, que caracteri-
za o ativismo judicial, Barroso (2012, p. 27) destaca as três principais críticas a esta atitude: (a) o risco para
a legitimidade democrática, (b) a politização indevida da justiça e (c) a capacidade institucional limitada do
Poder Judiciário.

O risco da legitimidade democrática está centrada no argumento eleitoral: não sendo os componentes
do Poder Judiciário eleitos pelo povo, seria legítimo que suas decisões se sobreponham às dos outros poderes
constituídos, que gozam da aprovação popular? Na tentativa de responder a essa questão, faz-se relevante
compreender a própria função dos órgãos jurisdicionais, no que pertine à competência que lhes é atribuída
pela Lei Maior, autorizando-os a realizar o controle de constitucionalidade, seja em sede difusa ou concen-
trada. Tem-se o próprio fundamento constitucional a legitimar que o magistrado, no exercício da jurisdição,
faça prevalecer a deliberação constituinte sobre as de natureza ordinária.

Nesse sentido, a obra precursora do judicial review, o Federalista, em seu §78, afirma que

“Não há posição que se apóie em princípios mais claros que a de declarar


nulo o ato de uma autoridade delegada, que não esteja afinada com as deter-
minações de quem delegou essa autoridade. Consequentemente, não será
válido qualquer ato legislativo contrário à Constituição. Negar tal evidência
corresponde a afirmar que o representante é superior ao representado, que o
escravo é mais graduado que o senhor, que os delegados do povo estão acima
do próprio povo, que aqueles que agem em razão de delegações de poderes,
[não] estão impossibilitados de fazer não apenas o que tais poderes não auto-
rizam, mas sobretudo o que eles proíbem. (HAMILTON, 2003, p. 578).

Assim, a doutrina clássica também vê legitimidade na atuação do Poder Judiciário ao dizer que seria
“mais racional supor que as cortes foram destinadas a desempenhar o papel de órgão intermediário entre o
povo e o legislativo”. (Hamilton, 2003, p. 578). Os órgãos judiciários, ao realizar o controle de constituciona-
lidade, ainda que – e sobretudo - no âmbito do controle subjetivo, estão a resguardar a vontade constitucional
dos abusos perpetrados contra a própria ordem democrática. Sendo a democracia produto de um constitu-
cionalismo culturalmente engajado na preservação de valores como a dignidade, busca-se a proteção dos
direitos de todos e não somente os da maioria. A proteção dos direitos fundamentais e a limitação dos poderes

461
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

do Estado são essenciais para a promoção da vida democrática, escudando o povo da idiossincrasia circuns-
tancial e ilegítima daqueles que possuem o mandato eletivo – e das maiorias eventuais que se organizam ao
sabor de campanhas midiáticas.

Já em relação à politização indevida da justiça, a crítica se posiciona contrariamente à constante


aproximação entre direito e política, ao ponto de se acusar a atividade jurisdicional de absolutamente discri-
cionária e, até mesmo, arbitrária, na medida em que o juiz exerce a sua capacidade criativa e supostamente
chega às raias de assumir um pretenso caráter normativo que não se ajusta à competência que constitucio-
nalmente lhe foi deferida.

Sem embargo de dúvidas, tem-se que o magistrado carrega consigo convicções ideológicas. Todavia,
essa constatação evidente, por si só, não tem o condão de contaminar a objetividade e racionalidade que
devem presidir a tutela do direito. Uma decisão judicial não será arbitrária, desde que o magistrado observe
os limites da discricionariedade que lhe toca, faça uso da dogmática jurídica e se oriente pelos princípios de
interpretação consagrados na doutrina e jurisprudência. Assim, as decisões judiciais não ficariam a mercê da
vontade política de seu aplicador, mas refletiriam os valores consagrados num sistema jurídico que é expres-
são de um Estado Democrático e Social de Direito.

Por fim, a crítica ao ativismo judicial ainda recai sobre a capacidade institucional que teria o Poder
Judiciário, para tratar de temas presentes numa dinâmica social cada vez mais complexa, mediante solu-
ções processuais e hermenêuticas com indiscutíveis efeitos sistêmicos. As decisões judiciais devem levar em
conta os respectivos alcances econômicos, sociais e políticos, reunindo condições de executividade que não
se apeguem a casuísmos e garanta a entrega jurisdicional dentro do que é razoável e constitucionalmente
parametrizado – o que, todavia, é objeto de permanente redimensionamento.

5. CONCLUSÃO.

As respostas constitucionalmente adequadas a realidades de crise, que expressem uma ideologia ba-
seada em valores democráticos, devem pavimentar programas e práticas que respeitem e promovam direitos
individuais e sociais, na disposição de concretizar os sentimentos, ideias e vontades mais importantes de uma
sociedade.

Em sede jurisdicional, a solução de problemas ou o enfrentamento de situações de inconstitucionali-


dade, sob a forma de decisões, é encaminhada à luz de uma linguagem específica e argumentos que remetam
os respectivos fundamentos ao sistema jurídico, de modo a estarem legitimados por deliberações majoritárias,
seja de ordem constitucional ou legal. Nesse passo, não se pode negar que existe um caminho em busca de
uma maior legitimação para tais respostas, bem como outros a fazer, na medida em que a atual Constituição
consagra contornos definidos para o exercício de cada competência.

De efeito, as formulações desenhadas pelos movimentos constitucionalistas consagram teorias, reno-


vam paradigmas e impõem uma dinâmica criativa que revisita os parâmetros estabelecidos pela separação
dos poderes ou fontes de interpretação da realidade e, consequentemente, do direito; a fim de questionar
os sistemas de representatividade popular e definição de competências, ou realizar ajustes na linguagem e
no alcance contemporâneo dos fundamentos constitucionais e legais, requisitados para dar sustentação a
decisões judiciais.

Assim, premissas dizentes com o processo de construção de uma ordem democrática plural, como a
que está em curso, sinaliza para o reconhecimento de dimensões da vida pela jurisdição constitucional, não
claramente identificadas nos indicadores sociais tradicionais. Tem-se a necessidade de uma percepção agu-
çada para o exercício jurídico-político ora demandado às instâncias jurisdicionais, que devem ter legitimadas
as portas de acesso à justiça e cidadania, bem como de saída das suas decisões, ambas aptas à materialização
de uma ordem democrática voltada para todos e não para apenas uma maioria.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

REFERÊNCIAS

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS

Maria Alana Calado Capitó


Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Pedro Victor Montenegro de Albuquerque


Graduanda do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais; 2. Enfrentamento da Definição de Refugiado; 3. Breve Histó-


rico; 4. Situação Jurídica: óbices, desafios e conquistas; Considerações finais; Referências.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

Durante os últimos anos, foi observado um aumento sem precedentes do número de deslocamento
populacional forçado, como expressão e resultado da dos conflitos bélicos do Oriente Médio e adjacências.
Os números apresentados pelo sítio do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR)
mostram que uma média diária de 42.500 mil pessoas deixaram seu lar para buscar proteção, em seu próprio
país ou em outro, no ano de 2014.

Os refugiados foram, e continuam sendo, objeto de notícias, seja pelo infortúnio por eles enfrentado
durante penosas travessias em busca de outro ambiente para viver, seja em virtude de declarações de países
visando reduzir o número de refugiados a abrigar em seu território.

Entretanto, apesar dos holofotes que pairam sobre o tema, cumpre ressaltar o desconhecimento por
parte de setores da população brasileira, em relação aos refugiados abrigados no país, em virtude da escassez
de políticas públicas de integração e de divulgação das entidades comprometidas com a causa.

2. ENFRENTAMENTO DA DEFINIÇÃO DE REFUGIADO.

O fenômeno da migração humana enquanto evento propulsor de modificações significativas é ca-


racterística essencial do mundo moderno. Entretanto, o simples ato de mover-se ao redor do globo pode ter
múltiplos significados, gerando diferentes consequências ao redor do mundo em virtude, principalmente, da
causa geradora do movimento, que acaba por definir vários institutos de direito internacional.

Atualmente, em virtude de diversas crises de cunho socioeconômico, observa-se alarmante aumento


do movimento humano, seja voluntário ou involuntário, consequência direta da crise humana/humanitá-
ria, consequência das profundas múltiplas crises (econômica, política e cultural) que marcam o presente
contexto internacional, suscitando graves impassem também do ponto de vista jurídico, ângulo sob o qual
conduzimos esta análise.

Sob este ponto de vista, tais conflitos se regem por diferentes códigos, conforme a tradição de cada
país, e sobre os quais a ONU cuida de estabelecer balizas comuns. Ademais, a diferença entre institutos de
movimento humano como asilo e refúgio não gravita apenas em torno da motivação, do elemento volitivo que
gera o movimento, mas também no que tange à recepção dos países a esses homens e mulheres que ousam
deixar para trás o país.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A emigração, por si só, não possui outro elemento cerne que não o simples ato volitivo de mudar-se,
com esperança de encontrar um novo ambiente capaz de concretizar as oportunidades que trarão satisfação
pessoal ou financeira ao migrante.

Em sentido oposto, observe-se que o instituto do refúgio está intrinsecamente relacionado a grave vio-
lação de direitos humanos, ausência de elemento puramente volitivo e necessidade de fazer cessar a violação
ou ameaça de violação de direitos. Como consequência, os países signatários não possuem discricionariedade
na emissão da documentação dos refugiados se os requisitos estiverem devidamente preenchidos.

Tal não ocorre no instituto do asilo, posto que este se caracteriza por uma proteção concedida pelo
país receptor a um indivíduo estrangeiro cuja vida, liberdade ou dignidade esteja ameaçada por outro Estado,
geralmente por motivo de perseguição ou dissidência política. Nesse caso, o país pode ou não conceder o
asilo, de forma discricionária, pois se trata de ato de soberania do Estado, uma decisão puramente política.

Diferentemente do instituto do refúgio, o asilo não possui um tratado de alcance global, sendo garan-
tido em solo brasileiro pelo artigo 4º da Constituição da República. Entretanto, a previsão constitucional não
vincula o Estado a conceder o asilo em caso expressamente previsto, como ocorre com o refúgio.

Outra diferença a ser apontada é o alcance dos institutos; enquanto o asilo diz respeito, em geral, a
perseguição de cunho político, a concepção de Refugiado adotada pela Convenção de 1951 estende o status
a todos aqueles que

Em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de


1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionali-
dade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da prote-
ção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país
no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimen-
tos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Observe-se, ainda, que o Direito Internacional dos refugiados tem como princípio geral e funda-
mental o non-refoulement, ou não-devolução, que protege a dignidade da pessoa humana ao impedir que
seja devolvida contra sua vontade ao país de origem, onde sofria lesões a direitos fundamentais ou os tinha
ameaçados.

Dada a sua importância, destaca-se como um dos princípios basilares do instituto do refúgio no direi-
to interno e internacional, sendo condição essencial para a efetiva proteção do refugiado em âmbito interna-
cional.

Consoante José Francisco Sieber Luz Filho (apud SOARES, 2012), “trata-se de princípio inerente
à proteção internacional do refugiado, compreendido pela doutrina como o pilar de sua aplicabilidade. Na
ausência do princípio a proteção internacional resta vazia e ineficiente.

Entretanto, importa salientar que o instituto do refúgio, apesar de mais abrangente, ainda guarda fa-
lhas quanto a sua atualização. Tomando como exemplo o desastre ocorrido no Haiti no ano de 2010, que teve
um nível de destruição de 50% em algumas áreas segundo a ONU, verifica-se que não há hipótese expressa
para abarcar catástrofes ambientais nas disposições normativas sobre o refúgio. Tanto o é que inúmeros re-
querentes haitianos tiveram seus status de refúgio negados no Brasil em virtude do não enquadramento na
lei.

Há que se admitir, portanto, a conveniência de constante atualização da definição, buscando abarcar


casos que impliquem necessidade de garantir o status de refugiado.

3. BREVE HISTÓRICO.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Como uma síntese evolutiva do instituto, durante o período entre guerras, a Europa passou por uma
crise de deslocados forçados, em sua maioria russos. Durante a crise, a liderança da Liga das Nações foi a
responsável por tentar amenizar as tensões provocadas pela resistência dos países em abrigar os refugiados
em seu território, não havendo logrado grande sucesso, em virtude da ausência de organização.

Finda a Segunda Grande Guerra, surgiu uma nova organização, responsável por substituir a Liga das
Nações no trato do tema. A Organização Internacional dos Refugiados (IRO) foi apoiada pelos países euro-
peus e pelos EUA na promoção de grandes avanços acerca do tema.

Apesar de o fluxo migratório ser evento bastante comum desde a Antiguidade, os grandes movimentos
humanos apenas começaram a despertar a atenção da comunidade internacional, de modo a ensejar uma
regulamentação protetiva, durante o período após a Segunda Guerra. O primeiro movimento que buscou
reunir diretrizes gerais para a definição, com amplo reconhecimento da condição de refugiados, foi a Con-
venção realizada pela recém-criada ONU, a fim de regular a situação jurídica dos refugiados. Desse modo, a
Convenção de 1951, realizada em Genebra, é a grande responsável por consolidar, ainda que de forma mais
elementar possível, o tratamento devido aos Estados signatários para com os refugiados.

Saliente-se que, à época, foram criados dois limites, geográfico e temporal, que incluíam apenas os
deslocados radicados na Europa e apenas até a Segunda Grande Guerra. O limite temporal, entretanto, foi
revogado pela ONU, em atenção aos efeitos devastadores da crise húngara, estendendo o status de refugiado
também aos nacionais que sofriam com a mencionada crise.

No que tange ao limite geográfico, este foi jogado por terra, quando da descolonização europeia na
África, com o Protocolo de Nova Iorque, em 1967, tornando o trabalho da ACNUR global. Logo em seguida, a
ONU aprovou a Convenção da Organização da Unidade Africana sobre os refugiados, que vigora desde 1974,
dando a atual e ampla definição de refugiado.

Em âmbito nacional, o Brasil assinou a Convenção de Genebra, apenas em 1961, mantendo as res-
salvas geográficas e temporais até a década de 1990.

Durante a Ditadura Militar, o Estatuto do Refugiado foi regulado pela Lei nº 6815/80, e atualmente
a matéria se encontra disciplinada na Lei nº 9474/97 que, internalizando as disposições da Convenção, re-
conhece como refugiado todo indivíduo que, devido a temores de perseguição por motivo de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do seu país de nacionalidade e não possa
ou não queira acolher-se à proteção de tal país; não tendo nacionalidade e estando fora do país onde teve
residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas ante-
riormente; e devido à grave e generalizada violação dos direitos humanos, seja obrigada a deixar o seu país de
nacionalidade, para buscar refúgio em outro país.

O artigo 2º da referida lei dispõe também que a condição de refugiados será extensiva aos cônjuges,
ascendentes, descendentes e demais membros do grupo familiar que dependerem economicamente do re-
fugiado.

A promulgação da lei foi responsável por instituir o CONARE - Comitê Nacional para os Refugiados,
no âmbito do Ministério da Justiça, cujas atribuições encontram-se elencadas no artigo 12, dentre as quais se
destacam a análise do pedido e a declaração do reconhecimento da condição de refugiado.

Internacionalmente, diante da complexidade que envolve o tema, foi criado em 1950, no âmbito da
ONU, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Deve-se destacar que o ACNUR
tem desempenhado trabalho sério e árduo, no que concerne ao problema da migração forçada, tendo como
principais missões a proteção dos refugiados, seu repatriamento e assistência. Ao mesmo tempo, participa
de atividades consideradas fora de seu mandato, como: proteção ambiental, desativação de minas terrestres,
desenvolvimento comunitário e campanhas anti-racistas, como maneira de incentivar os Estados a acolhe-
rem refugiados.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Avaliando-se dados estatísticos, verifica-se a evolução dos requerimentos e status efetivamente con-
cedidos pelo Brasil, segundo o CONARE: o salto de 150 no ano de 2010 para 2.032 em 2014 representa
um aumento de aproximadamente 1.240%. Entretanto, cumpre ressaltar que, muito embora o número de
requerimentos e concessões tenha aumentado de forma exponencial, há que se observar que os recursos de
manutenção não acompanharam esse crescimento, fazendo surgir um novo problema a ser corrigido.

4. SITUAÇÃO JURÍDICA: ÓBICES, DESAFIOS E CONQUISTAS.

A concessão do status de refugiado, entretanto, não é o fim dos desafios enfrentados pelas vítimas
de violação de direitos humanos. A integração dos refugiados nos países acolhedores é, também, fonte de
preocupações, tendo em vista a multiplicidade cultural, social, religiosa.

O instituto é, em essência, de uma dialeticidade complexa, delicada. Há, de um lado, um país recep-
tor, solidário, mas também portador de singularidades culturais, inclusive contendo ambiguidades, a exemplo
de alguns traços de xenofobia, dificultando assim a uma convivência desejável com os refugiados.

De outro lado, o refugiado, que busca um recomeço, traz em sua bagagem uma cultura não raro bas-
tante diferente do país receptor, com tradições muitas vezes imutáveis, de difícil acomodação no novo país. A
situação-problema se agrava quando não há o devido diálogo entre refugiado e país receptor, entre população
refugiada e população originária do país receptor.

Cumpre salientar que o processo, muitas vezes equivocado, de acolhimento dos refugiados, não im-
porta uma assimilação cultural pela cultura “dominante” do país receptor. Há, de forma evidente, a adap-
tação às normas legais da nova sociedade pelo refugiado, mas não há, nem deve haver, a ruptura cultural
daquele com sua cultura originária. Dessa forma, vivencia-se um processo dialético de forma puramente
predatória, segregando o diferente, submetendo-o a um domínio cultural do país.

Em âmbito nacional, os problemas enfrentados pelos refugiados podem ser observados desde o início
do procedimento de requisição do status de refugiado, quando se verifica que a autoridade competente para
lidar com os recém-chegados e pretendentes ao instituto é a Polícia Federal.

Recapitulando: os indivíduos que tiveram direitos essenciais ameaçados pelo ambiente em que vi-
viam, fugiram muitas vezes com pouquíssima bagagem, em virtude da pressa de simplesmente deixar o país,
possui o primeiro contato não com um órgão estruturalmente preparado, de forma especial, a dar suporte
e orientação exclusiva para casos tão excepcionais, mas com um órgão cuja função principal é a repressão
criminal e a manutenção da ordem.

Ultrapassar o primeiro óbice, ou seja, reestruturando-se o modus operandi de recepcionar “candida-


tos” a refugiados, não torna a vida dos refugiados mais fácil no Brasil, em virtude da clara ausência de políti-
cas integrativas, que promovam a dialeticidade necessária anteriormente mencionada.

Em verdade, há ausência de política pública para o próprio povo brasileiro. Nesse diapasão, o refugia-
do que vinha sofrendo limitações em seus direitos é, muitas vezes, agredido no país receptor, de forma indi-
reta, pela ausência de promoção políticas que integrem o refugiado na língua pátria, na sociedade brasileira
e, consequentemente, no mercado de trabalho brasileiro, fruto de seus rendimentos e sem o qual se torna
mais um marginalizado, com seus direitos falsamente protegidos pelo novo Estado.

A ausência de dialeticidade e de políticas integrativas, portanto, findam por promover novas violações
de direitos humanos, partilhadas pela parcela marginalizada da sociedade brasileira. Ainda, abre espaço para
novos abusos por parte da sociedade receptora, como no âmbito trabalhista, em que não é raro um sistema
quase escravagista que se aproveita da ausência de suporte devido por parte do Estado, alimentando um
sistema cada vez mais cruel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Direito(s) em debate.

Observando-se a conjuntura social apresentada, percebe-se a importância não só da constante atu-


alização do instituto em âmbito internacional como forma de acompanhar as mudanças e necessidades da
população global, como também, em âmbito nacional, da modificação da postura estatal e social em relação
aos indivíduos protegidos pelo status de refugiado.

Na comunidade nacional, é necessário buscar maior engajamento do governo em relação a promoção


de políticas integrativas mais eficazes, que levem o refugiado de outra cultura a aproximar-se do povo brasi-
leiro de modo que barreiras linguísticas e culturais deixem de ser um problema para o efetivo estabelecimen-
to do refugiado, mas um enriquecimento maior para a cultura de miscigenação brasileira.

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CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS:


A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

Maria Raquel Firmino Ramos


Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal em Alagoas – UFAL; Estudante de
especialização no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; Bolsista CNPQ-CAPES.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Repartição de receitas e o dever de cooperação entre os entes federados;


2. A importância do Município na organização estatal; 3. Finanças municipais e cumprimento dos
direitos sociais; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O Município foi erigido como ente federativo na Constituição de 1988, recebendo, com isso, ampla
gama de tarefas próprias do Estado Social a fim de que promova serviços na área de educação, saúde, mora-
dia, saneamento básico, transporte, entre outros. A Federação brasileira, assim, tornou-se tripartite, situação
singular no mundo. A partir dessa configuração, a Constituição equiparou todos os entes pactuantes a fim de
que todos contribuíssem para o desenvolvimento nacional.

A implicação imediata dessa configuração tripartite é a difícil repartição equânime de encargos e


receitas. Nesse quesito, a atividade financeira do Estado se destaca, pois não será possível concretizar de-
mandas dos direitos sociais prestacionais sem que haja a munição dos recursos nos entes encarregados de
exercê-los.

A descentralização é umas das características elementares do sistema federal e pilar das sociedades
democráticas. A República Federativa do Brasil, por sua vez, constituiu-se tanto em bases federalistas quanto
nas democráticas, razão pela qual o Estado deve seguir essas bases. Infelizmente, no plano pragmático, há
enorme distorção dos enunciados inscritos na Magna Carta que preconizam a organização do Estado Federal.

Com o intuito de deliberar sobre novos caminhos a ser perseguido na Federação, o Congresso Nacio-
nal, via Senado, criou a Comissão Especial do Pacto Federativo. Nesse órgão, a pauta mais discutida é uma
repartição justa de recursos e de obrigações entre União, Estados e Municípios. Representantes de Estados e
Municípios requerem ao Congresso Nacional uma repactuação das obrigações orçamentárias, tendo em vista
que há uma concentração das receitas derivadas perante a União e, em detrimento a isso, a população cobra
uma demanda cada vez maior de serviços.

Muitas são as reivindicações dos entes descentralizados, sobretudo quanto à equalização das finanças
públicas, pois a concentração só agrava as desigualdades socioeconômicas existentes, tornando-as quase que
insuperáveis. As populações dos Municípios são as mais prejudicadas diante dessa desarmonia federal, pois a
máquina estatal se torna impossibilitada de executar as atividades a que estão obrigadas. Em grande medida,
isso é causado pela falta de recursos.

Assim, garantir autonomia financeira aos entes municipais, deve ser o primeiro grande passo para
exigir e construir uma máquina estatal eficiente e cumpridora dos direitos sociais a que essa esfera também
está obrigada.

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O presente artigo, portanto, pretende discutir essas questões, relacionando como a crise federativa,
que afeta, sobretudo, as finanças municipais, repercute negativamente no cumprimento dos direitos sociais,
preconizados pela Magna Carta de 1988.

1. REPARTIÇÃO DE RECEITAS E O DEVER DE COOPERAÇÃO ENTRE OS ENTES FEDERADOS.

Primeiramente, antes de adentrar na questão da repartição das receitas públicas em uma Federação,
convém esclarecer, em breves apontamentos, como o Brasil desenvolveu esse modelo de Estado. Assim, a
instituição da Federação Brasileira ocorreu por meio da Constituição Republicana de 1891, sob a influência
da Convenção da Filadélfia, de 1787, que uniu os Estados independentes em Estados Unidos da América,
tornando-o uma federação (CANOTILHO et al, 2014, p. 110).

Inicialmente, o Brasil assumiu o modelo federativo dual, tendo a União e os Estados como entes
federativos autônomos. Foi a partir da Constituição de 1934, entretanto, que o federalismo brasileiro trans-
formou-se em um modelo federal cooperativo, quando a União passou a ajudar financeiramente os estados
mais pobres a suprirem às suas necessidades (CANOTILHO et al, 2014, p. 112).

Por isso, é compreensível a afirmação de Wallace Oates, segundo o qual “[...] o federalismo de coope-
ração surge com o ente central atuando, outrossim, nas políticas distributivas de renda.” (Apud CARVALHO,
2010, p. 167).

Salienta, ainda, Ferreri, que o federalismo cooperativo, ou federalismo novo, com o fito de definir
objetivos comuns entre os entes, recorreu ao estabelecimento de uma interação federal-estadual. E pode ser
compreendido como uma redefinição do federalismo estadunidense, por meio da prestação de auxílio finan-
ceiro do ente central direcionadas aos entes periféricos (FERRERI, 1995, p. 21).

O federalismo cooperativo, modelo perceptível em vista do engrandecimento do Estado Federal e seu


consequente aumento de recursos, permitindo a distribuição dessas fontes de renda aos governos locais. O
governo federal, nesse contexto, assume a posição de líder da política doméstica a fim de assegurar a unifor-
midade e equidade na distribuição de recursos.

Não obstante o federalismo estadunidense ser considerado o parâmetro de Estado Federal, que tem
por característica basilar a descentralização do poder, percebe-se uma tendência centralizadora após 1930.
No Brasil, a tendência centralizadora expandiu-se ao longo das Constituições de 1937, 1946 e a de 1967, e
com a Emenda Constitucional n. 1/69 (há quem diga que sequer existia uma Federação). Foi a Constituição
de 1988 que institui uma nova fase do Federalismo Brasileiro, reconstruindo-o no plano jurídico e, conse-
quentemente, no plano fático. Inaugurou, portanto, a fase do federalismo de equilíbrio, elevando o caráter
cooperativo a fim de dissipar as desigualdades típicas no nosso federalismo assimétrico (OLIVEIRA, 2012,
p.42-43).

Para Castro Carvalho, no “[...] Brasil, a Constituição Federal de 1988 adotou claramente os preceitos
de federalismo cooperativo ao erigir os municípios como componentes da federação. Tal modelo, fatalmente,
acabou beneficiando-lhes fiscalmente” (CARVALHO, 2010, p. 166).

Partindo desse pressuposto de cooperação, é fundamental apontarmos o artigo 43 da Constituição


de 1988, pois ele disporá sobre as possibilidades da União desenvolver políticas de desenvolvimento e redu-
ção das desigualdades regionais em um determinado espaço geoeconômico e social. Demonstra, portanto,
a importância do incentivo de políticas de cooperação intergovernamental erigida pela Carta Magna, a qual
fomenta a criação de planos nacional e regional para o desenvolvimento socioeconômico.

Nesse mesmo sentido, argui Maurício Conti, que o Brasil adotou um modelo de federalismo coope-
rativo, o qual apesar de se preservar a autonomia dos entes federados, erigiu um sistema de interpenetração
entre eles, manifestando-se de forma mais evidente no campo das finanças públicas, por mecanismos de
partilhas de receitas e transferências intergovernamentais (CONTI, 2010, p. 24).

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No federalismo fiscal cooperativo adotado pela Constituição de 1988, os Municípios receberam as


competências tributárias para instituírem seus próprios tributos, bem como adquiriram o direito de partici-
parem, direta ou indiretamente, da arrecadação dos tributos arrecadados pela União e pelos Estados.

Não obstante se extraia a ideia cooperativa do Texto Constitucional, no plano pragmático é visível a
ocorrência de conflitos entre os entes federativos, principalmente relacionados à distribuição e compartilha-
mento das receitas disponíveis e à disputa pelo controle de gastos e políticas de desenvolvimento regional.
Infelizmente, esses são alguns impasses a serem ultrapassados para a efetivação de uma verdadeira coopera-
ção intergovernamental estabelecida pela Constituição de 1988.

Desse modo, cabe aludir que a ideia do federalismo cooperativo no Brasil versa sobre os meios cons-
titucionais e infraconstitucionais de reconhecer e tentar diminuir ou dissipar as desigualdades regionais do
nosso federalismo assimétrico. Entrementes, esbarra com uma série de conflitos que remontam a história do
Brasil e do desenvolvimento do modelo federalista.

O principal ponto de partida dos conflitos entre os entes federativos brasileiros, vale dizer, parte da
busca por recursos. A principal fonte de renda do Estado advém dos tributos, no entanto a discriminação de
rendas tributárias, a partir da divisão da competência para instituir tributos não resolve o problema da equa-
lização de receitas tributárias no Brasil, por causa desigualdade no desenvolvimento econômico dos entes
federativos que compõem a nação. É aí que entra em cena a partilha constitucional de receitas fiscais fun-
cionando como propulsor do desenvolvimento econômico e ao mesmo tempo fortalecendo a estrutura estatal
dos entes mais periféricos da estrutura federal brasileira.

Por isso, as normas que instituem as repartições de receitas tributárias no Brasil são fundamentais
para efetivarem a autonomia dos entes federais. Essa autonomia financeira está intimamente ligada ao pró-
prio funcionamento das estruturas estatais, sobretudo dos Estados-membros e Municípios, como entes mais
periféricos e mais carentes de recursos frente à União. Isso se deve ao fato de que sem finanças se inviabiliza
o cumprimento das múltiplas tarefas inerentes ao Estado de Bem Estar Social. Por isso, percebe-se a rele-
vância da efetividade das normas de transferência de rendas tributárias. Compreender a estrutura dessas
normas contribui para a compreensão da própria federação brasileira.

2. A IMPORTÂNCIA DO MUNICÍPIO NA ORGANIZAÇÃO ESTATAL

A descentralização e a autonomia regional não são características peculiares ao Estado Federal. Para
compreendermos isso, podemos indicar o Estado português, considerado Unitário, em que há uma compa-
tibilização entre autonomia e descentralização do poder com o princípio da unidade territorial. Chamado de
regime autonômico insular, a autonomia da municipalidade foi garantida pelo ordenamento jurídico lusitano
por meio de dois elementos: a) um núcleo estável e irreformável que garante a autonomia político-adminis-
trativa local; e, b) um regime jurídico próprio “[...] entendido como o complexo normativo contido na Consti-
tuição, nos estatutos regionais e no bloco de legalidade regional e especificamente respeitante à organização,
competências e funcionamento dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas” (CANOTILHO, 2003,
p. 359-360).

No Brasil, a autonomia do Município foi garantida constitucionalmente por meio da elevação da “au-
tarquia administrativa” (tal como é conhecida em Portugal) a pessoa política de direito interno, tornando-se
integrante do pacto federativo. Essa previsão garante ao ente subnacional autonomia interna comparativa-
mente àquela recebida pelos Estados-membros. Diferentemente do Estado Português, que, não obstante
tenha outorgado às regiões vários tipos de autonomias, não perdeu o seu caráter de Estado centralizado. A
atribuição de direitos e de deveres para as microrregiões significam muito mais um planejamento de descen-
tralização de poderes, discricionariamente realizado pelo poder central, do que o propriamente o significado
de autonomia que é inerente a um ente federativo, em que somente obedece à Constituição.

A importância de iniciarmos o tema da descentralização de competências territoriais com esse quadro


comparativo objetiva alertar para o fato de que a técnica de descentralização governamental recebe atenção

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não somente no Estado Federal, mas na própria organização estatal. A busca por eficiência do Estado é um
dos fatores principais para a repartição de competências ou até mesmo delegação de tarefas. Além da efici-
ência de gestão que a descentralização visa proporcionar, já é reconhecido que a proximidade da máquina
estatal com o cidadão é o objetivo de sociedades democráticas. Nesse entorno, vale acrescentar o reconhe-
cimento do princípio da subsidiariedade pela Carta Europeia da Autonomia Local (artigo 4º, nº 3), segundo
o qual: “[...] as decisões devem ser tomadas o mais perto possível dos cidadãos a quem se dirigem, pelo nível
administrativo mais próximo e directamente responsável face aos cidadãos, apenas devendo intervir o nível
superior nos casos em que isso é indispensável” (MONTALVO, 2003, p. 76).

Importa notar que a palavra subsidiariedade possui duplo sentido, o primeiro é o de que o nível su-
perior deve ocupar o segundo lugar na estrutura estatal, ou seja, deve ser subsidiário, e um segundo sentido
seria a ideia de que o nível superior serve ao nível inferior, ou aos cidadãos, a fim de satisfazer às suas neces-
sidades ou auxiliar na execução das tarefas estatais do governo local. Para reforçar essa ideia podemos buscar
na etimologia da palavra subsidium que significa “ajuda” ou “apoio” (MONTALVO, 2003, p. 77).

Nessa perspectiva, o governo local ganha predominância no atendimento às tarefas estatais, pois está
intimamente ligado aos anseios democráticos de participação da população diretamente interessada na coisa
pública. No Estado Unitário Português, os Municípios constituem elemento de sua organização democrática,
tendo auferido autonomia desde o final do século XX, conferida pelo poder Central que estabelece o conteúdo
dessa autonomia local. Tal como o Brasil, a história do municipalismo sempre demonstrou movimento pen-
dular, porquanto a autonomia local é encorajada pelos regimes democráticos e combatidos pelos totalitários
(MONTALVO, 2003, p. 96).

No Brasil, a municipalidade também enfrentou distintas restrições quanto à sua autonomia, mesmo
depois da instauração do modelo Federal de Estado, a depender da orientação política de seus governos,
sempre na lógica pendular e inversamente proporcional entre autonomia versus totalitarismo. Foi na Cons-
tituição Federativa de 1988 que recebeu patente destaque, auferindo competências e autonomias. Dessa
forma, os limites autonômicos dos Municípios estão definidos diretamente pela Lei Fundamental e não pela
discricionariedade e da contingencialidade dos governos centrais. Isso demonstra o caráter de definitividade
dada ao modelo democrático pelo legislador originário. Prova da vontade de não dar margens para o ressur-
gimento das tiranias dos regimes anteriores.

Da mesma sorte, vale ressaltar que o empoderamento do Município como medida de descentraliza-
ção é fortemente acentuado no texto constitucional português que atribui ao poder central a definição dos
direitos das autarquias locais e os limites de suas atividades. Apesar dessa aparente discricionariedade do
governo central, “[...] a legitimidade política e formal do Estado não pode afastar a legitimidade histórica e
natural dos municípios para a satisfação dos ‘interesses próprios das populações respectivas’ (art. 235, n° 2,
da C.R.P).” (MONTALVO, 2003, p. 76).

Esse paralelo com o tratamento ofertado ao Município português demonstra como esta estrutura
exerce respeitável função na persecução dos objetivos estatais, pois facilita o atingimento dos anseios demo-
cráticos, republicanos, e, no nosso caso, também federativo. Além de facilitar a promoção do bem comum,
fim de todo Estado, e delineado pelo Estado de bem estar social, bem como preconizado pela nossa República.

Por isso, a atual Constituição adotou o sistema de competências reservadas ou enumeradas para a
União e os Municípios, enquanto para os Estados-membros outorgou as remanescentes, conforme o § 1º do
artigo 25, ou residual – aquela que não fora concedida a União ou ao Município (MEIRELLES, 2014, p. 133).

Em relação às atribuições municipais, a Constituição Federativa de 1988 estabeleceu no seu artigo 23,
juntamente com os demais entes federados (União, Estados-membros e Distrito Federal), as competências
comuns, pois caberá a todos os entes atuar sobre matérias que estejam nas suas atribuições institucionais.
Esse delineamento decorre do modelo de cooperação adotado pelo federalismo brasileiro, visando manter o
equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no âmbito nacional (MEIRELLES, 2014, p. 134).

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Assim, os incisos II ao IX do artigo 30 elencam as competências municipais, as quais podem ser


exercidas privativa, comum ou concorrentemente com Estados e União. No mesmo artigo, no inciso I, a
Constituição conferiu ao Município competência para “legislar sobre assuntos de interesse local”. Para Hely
Lopes Meirelles, a expressão significa a predominância (e não exclusividade) do interesse em relação aos
demais entes federados, “isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente interesse estadual
e nacional. A diferença é apenas de grau e não de substância” (MEIRELLES, 2014, p. 136).

Nota-se, a partir disso, como o Município recebeu destaque no ordenamento jurídico e organização
Federal inaugurados na Constituição de 1988. Apesar de que o primeiro Estado Federal brasileiro tenha sido
positivado mediante a promulgação de 1891, esse modelo tem sido cada vez mais aperfeiçoado no contexto
brasieliro.

Nada a se estranhar, pois o federalismo constantemente é atrelado à Democracia. Isso porque os


Estados Federais (Alemanha, Argentina, por exemplos) são também Estados democráticos, tornando quase
que automática a vinculação desses modelos. Não obstante esse panorama, alguns Estados já apresentaram
a estrutura federalista antes da aderência a regimes democráticos (Império Germânico, por exemplo) (BA-
RACHO, 2014, p. 53-54).

Essa associação é de simples visualização porque a descentralização do poder proposta pelo modelo
federativo torna-se compatível com o ideal democrático. Ademais, no princípio da subsidiariedade, em que
os níveis menores de governo prevalecem sobre os níveis maiores, percebemos a estreiteza de laços entre re-
presentação e representados. Afinal, nada mais democrático do que uma melhor participação dos indivíduos
na governança.

Os problemas sociais por qual passamos ao longo da História brasileira, no entanto, impedem com
que esses ideais de participação ativa na política se concretizem. Somado a isso, percebemos que as causas
sociais não são colocadas como prioridade na sociedade em geral. E as poucas manifestações reivindicatórias
são marginalizadas e condenadas por grande parte da população. Isso pode ser explicado em grande medida
porque somos uma Democracia muito recente. E, uma cultura democrática, na qual os indivíduos partici-
pem ativamente das coisas do Estado, requer amadurecimento institucional e político, sobretudo quanto à
confiança nas instituições que compõem a máquina pública estatal.

Como já observado, ao versamos sobre o cumprimento do Estado Social percebemos como o fede-
ralismo cooperativo atende bem essa persecução. Observação bem ilustrada por Gilberto Bercovici, quando
assinalou que a cooperação é a forma mais apta a realizar os anseios do Estado Social (BERCOVICI, 2003,
p. 156).

Nesse sentido, o federalismo brasileiro requer as reformas devidas. Podemos considerar que, não
obstante, o modelo de Estado Federal no Brasil teve sua inauguração em 1891, a partir da primeira carta
Republicana, não podemos considerar que houve uma perenidade das instituições federalistas, pois con-
sideramos que cada Constituição definiu uma nova Federação. Por isso, analisamos a Federação brasileira
recortando-a a partir da Constituição de 1988, a qual, apesar de apresentar elementos das experiências fede-
rativas constitucionais anteriores, estabelece um novo federalismo, evidenciando, principalmente o caráter
cooperativo. No entanto, é na prática que as instituições são aprimoradas. Por isso, nada mais salutar para o
amadurecimento da Federação a existência das reivindicações de reformas que se destacam na atualidade,
dentre elas, como já vislumbrada, a elaboração da Comissão do Pacto Federativo, a qual levanta, em grande
medida, a bandeira municipalista.

A descentralização das receitas tributárias ocupa a centralidade na discussão dessa cooperação. Ape-
sar da problemática da distribuição de receitas tributárias não ser a única problemática a ser enfrentada para
o aprimoramento institucional nas esferas federativas, essa é uma das suas bases. Afinal, como visto, envolve
a garantia da autonomia federativa. Nessa seara, um dos principais indicadores de que a Federação brasileira
não cumpre a base cooperativa que a Constituição de 1988 preconiza é, sem olvidar, o descumprimento
dos repasses vinculados de receitas para os Municípios. Vimos acima que, na primeira oportunidade, as
edilidades são suprimidas de recursos, tanto por parte dos Estados-membros quanto pela União. Na esfera

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federal, observa-se uma concentração de receitas não partilháveis, tendo em vista a crescente participação no
percentual da arrecadação das Contribuições dos impostos federais advindas da instituição das Contribuições.
De outro lado, os Estados-membros atuam inconstitucionalmente retirando a cota-parte do Município quando
concedem unilateralmente isenções sem o crivo do CONFAZ.

Dessa simples análise da situação financeira municipal, facilmente se deduz que o comando básico
da autonomia do Município não é obedecido. Essa afirmação também é escorreita, pois, como já vislumbrado
pela doutrina, é inócua a garantia de autonomia sem a respectiva fonte de financiamento das competências
atribuídas ao ente federado. Depreende-se desse panorama o completo desprezo pelo federalismo fiscal co-
operativo.

3. FINANÇAS MUNICIPAIS E CUMPRIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS

As medidas centralizadoras da União repercutem diretamente nas finanças municipais. Contexto


que deve ser superado pela prática constitucional e a proliferação das ações de promoção de base federativa.
A União como ente ocupante de posição privilegiada diante dos demais entes, por ter uma visão global sobre
o sistema federal a que se destina, possui a função de estabilizar a economia e tornar a divisão dos ingressos
financeiros mais equitativos.

O federalismo cooperativo é o modelo mais apto para alcançar essa estabilização econômica, ao mes-
mo tempo redistribuindo a riqueza entre os entes. Configura a forma mais equilibrada de desenvolvimento
em um Estado Federal Assimétrico, como é o Brasil. Isso porque fomenta não só o desenvolvimento da econo-
mia nacional, como incentiva e patrocina o fortalecimento local. O empoderamento dos entes descentraliza-
dos permite que a participação na riqueza da nação seja compartilhada e, em tempos de retração econômica,
os governos locais sentem menos os efeitos na queda da arrecadação. No modelo atual, em que os Municípios
dependem dos repasses de receitas tributárias da União e dos Estados, advindas sobretudo da arrecadação
dos tributos sobre o consumo. E em uma crise econômica a queda na arrecadação desses tributos, tamanha
a dependência dos demais entes, gera catastrófica queda nas finanças públicas municipais, invialibizando o
funcionamento da máquina pública local e a oferta de serviços públicos.

O problema é potencializado porque um dos principais as aspectos da política econômica se consubs-


tancia na política fiscal. No Estado Federal, as políticas fiscais devem ser congruentes e coordenadas com
todos os entes federados a fim de não criar tensões, viabilizando o processo de desenvolvimento nacional.
Assim, essas políticas não podem ser, a despeito dos demais entes, centralizar seus benefícios em prol do go-
verno central ou somente os estaduais. O poder central assume a responsabilidade primária de estabilizar a
economia, de proporcionar a forma mais equitativa de distribuição dos ingressos de receitas, bem como pro-
ver bens públicos que impliquem no bem estar de todos. Os níveis subnacionais devem proporcionar certos
serviços para suas respectivas jurisdições. Por isso, para os economistas, o federalismo é considerado como
uma forma ótima de governo (ATCHABAHIAM, 2011, p. 89-90).

A partir desses postulados, percebemos que caso os entes federados não possuam uma equitativa
distribuição da riqueza, seja por meio de arrecadação própria ou por via de distribuição de rendas de outros
entes, a ideia de eficiência e otimização propostas pelo federalismo se torna inócua. Do modo como a Fede-
ração brasileira se apresenta hoje, em termos de distribuição de receitas, permite-nos afirmar que os entes
maiores se beneficiam da sua posição de entes mais centrais para realizarem políticas fiscais e econômicas
alheias às consequências que causarão nas finanças do Município, comprometendo-lhe a autonomia. Para
confirmar essa tendência, podemos exemplificar a aprovação da emenda constitucional proibindo que a
União aprove medidas que impliquem em aumento de despesas nos níveis menores, sem a respectiva fonte
de financiamento. Ora, essa medida nada mais significa do que se proibir o que ocorre na prática, visto que,
na configuração federalista de estado não há algo mais óbvio a se seguir.

A crise federativa surge desse panorama desanimador, o qual compromete o desenvolvimento e o


financiamento de políticas destinadas a proverem os serviços públicos essenciais de educação, transporte,

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saneamento básico, saúde e, que, estão diretamente ligados à concreção de direitos sociais, os quais são re-
duzidos ou dizimados por causa da ausência de recursos na esfera municipal.

O grande perigo dessa situação se apresenta na medida em que, não obstante, a Constituição de 1988
tenha restabelecido a Democracia, isso não configura condição suficiente para modificar “padrões enraiza-
dos de distribuição da renda e de acesso a bens públicos.” Essas transformações nas desigualdades sociais
somente se evidenciam com a implementação de políticas com o intuito de promover a inclusão da parcela
da população excluída ao acesso aos bens essenciais (ARRETCHE, 2015, p. 7).

Diante disso, quando comparamos os dados de que 80% dos entes municipais não conseguem
autonomia financeira sem os repasses de receitas dos demais entes federativos, percebemos que a oferta de
serviços públicos são os primeiros a serem diminuídos ou comprometidos. E o agravamento das desigualda-
des, em tempos de recessão só estabiliza a situação de penúria vivida pela população dessas municipalidades.

As políticas de universalização na oferta de serviços públicos essenciais realizada no Brasil nos últi-
mos 40 anos contribuíram bastante para colocar o país dentre as nações que diminuíram as desigualdades
sociais, enquanto os países que no pós-segunda guerra promoveram a política de bem estar social, apresen-
taram a tendência contrária (ARRETCHE, 2015, p. 1).

Para se compreender a dimensão da mudança convém apontar que nos anos de 1970, a ausência de
serviços básicos de água, esgoto e energia elétrica e o baixo nível de escolaridade era uma constante em quase
todo o território nacional. Não havia sequer um Município com mais de 50% de alunos com 15 anos e ensi-
no fundamental completo. Em 2010, em 91% das municipalidades havia a oferta de energia elétrica a pelo
menos 90% da população. A oferta de água para a população e a coleta de lixo também cresceram bastante
nesse período. De 1980 para 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por mil nascidos vivos, e
longevidade saltou de 62 para 73 anos. A população com mais de 18 anos que atingiu o ensino médio cresceu
de 6,2 milhões para 39,7 milhões; e, a que chegou ao ensino passou de 3,4 para 21,5 milhões. Tudo isso, em
apenas 40 anos (ARRETCHE, 2015, p. 194-195).

Esse cenário animador poderia ter sido melhor, quando comparamos que o país ainda ocupa a 13ª
posição em desigualdade de renda. Não obstante, já tenha diminuído de 79 para 36 o nível de renda dos 5%
mais ricos em comparação com os 5% mais pobres (ARRETCHE, 2015, p. 1-2).

A recessão econômica apresentada desde 2008 no mundo, e com consequências mais visíveis no país
a partir de 2013, tem ameaçado os avanços alcançados até o momento no campo social. O agravamento da
pobreza municipal vai impedir novos avanços e, provavelmente, causar regressão nas conquistas alcançadas
ao longo desses anos.

A retomada do federalismo de cooperação por meio do fortalecimento das competências locais e da


repartição de receitas para os entes locais consistem nas ferramentas jurídicas capazes de proporcionar o
fortalecimento da máquina administrativa municipal, promover o bem estar social da respectiva população.

A precariedade das administrações em nível local tem como responsável, em grande medida, o com-
pleto abandono do sistema jurídico brasileiro em prover meios de aperfeiçoamento dos governos locais. A de-
pendência de recursos por parte da União e dos Estados, sobretudo quando esses estão sendo vilipendiados,
constrói uma velha disputa pelo poder nos níveis municipais, que o tornam apenas como trampolim político
para as esferas mais centralizadas de governo (estadual e federal). Não se pode ignorar que temos uma longa
tradição patrimonialista, em que a coisa pública é utilizada para alcançar fins particulares. A Constituição
Federal de 1988 já avançou bastante ao garantir autonomia aos Municípios, descuidou-se, no entanto, de
dar-lhe as armas para poder alcançá-la, impedindo que os demais entes a minassem.

CONCLUSÃO

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O presente trabalho analisou como a crise federativa brasileira provoca o empobrecimento dos entes
municipais, consequentemente afeta a efetividade dos direitos sociais, tendo em vista que as demandas so-
ciais típicas do Estado de Bem Estar Social são comprometidas com a má distribuição dos recursos.

Vimos também que, ao revés do modelo de federalismo fiscal cooperativo extraído das normas jurí-
dicas constitucionais, a União tem agido reiteradamente contra a autonomia financeira dos entes subnacio-
nais, deixando-os cada vez mais dependentes das transferências de receitas tributárias dos tributos federais.
No caso dos Municípios, a situação ainda é mais grave, pois a maioria dos cerca de 5.670 entes padecem com
as desigualdades socioeconômicas historicamente vivenciadas no Brasil. Tanto é isso que cerca de 80% das
municipalidades só conseguem sobreviver mediante o repasse de receitas tributárias.

Não obstante esse desprezo pelo ente mais periférico da Federação, a sua função é fundamental para
a concretização dos objetivos do Estado de Bem Estar Social. Essa importância da organização municipal
se apresenta, inclusive, em Estados Unitários, como Portugal, visto que atribuem ao ente mais periférico a
função de efetivar serviços e alcançar as necessidades do cidadão de forma mais eficiente e mais imediata.

A própria proporção das políticas públicas e os serviços prestados em nível local tornam a gestão
municipal algo muito menos complexo do que uma política executada em nível macro para toda a nação.
No entanto, no modelo atual, a Federação brasileira se apresenta um tanto desequilibrada, pois enquanto se
distribuíram várias tarefas constitucionais para a execução de serviços e políticas públicas, com vistas a efe-
tivar direitos sociais, as políticas centralistas da União acabam por inviabilizar o cumprimento dessas tarefas,
sobretudo quanto aos entes municipais.

A crise federativa brasileira agravada por meio da recessão econômica evidenciou como a população
dos Municípios mais periféricos – os quais constituem a maioria – , ficam a mercê das políticas da União e dos
Estados para usufruírem dos serviços mais básicos, como saúde, saneamento básico, educação, transporte,
etc.

Vimos que o Brasil avançou em muitos aspectos sociais nos últimos 40 anos, a partir de dados bastan-
te animadores. No entanto, ocupa a 13ª posição em desigualdades sociais diante dos demais países. Em uma
Federação composta em sua maioria por municipalidades, as soluções para os avanços na área social devem
necessariamente passar por tais entes, visto que os problemas locais são de todo o Estado Federal.

Portanto, o novo pacto federativo, que se discute em meio a crise federativa, deve ser realizado com
vistas a destacar o papel do ente municipal na promoção dos direitos sociais. E para isso, é de fundamental
importância que sejam respeitadas pelos demais entes federados a autonomia financeira municipal, confor-
me preconiza o federalismo fiscal cooperativo extraído das normas constitucionais. O retorno às bases do
federalismo de cooperação diz respeito à própria viabilidade do Estado de Bem Estar Social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006:


A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL.

Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora)


Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
marilia_montenegro@yahoo.com.br

Juliana Gleymir Casanova da Silva


Graduada no curso de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
integrante do Além das Grades – grupo de extensão da Faculdade de Direito do Recife
(UFPE).julianagcasanova@gmail.com.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Lei de drogas no Brasil; 1.1. Análise crítica da Lei 11.343/2006; 1.2. Lei
de Drogas: aspectos que apontam discriminação de gênero; 1.2.1. Art. 28 e Art. 33: a zona cinzenta
entre o uso pessoal e o tráfico de drogas; 1.2.2. Art. 35: associação para o tráfico; 1.2.3. Art. 40, inciso
III: tráfico de drogas na entrada do presídio; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

Mesmo com um número absoluto muito inferior ao masculino o crescimento da população feminina
encarcerada aumenta em uma velocidade maior do que a velocidade da população masculina. O processo de
criminalização de mulheres antes constituído, majoritariamente, por delitos relacionados à sua condição de
gênero, como o aborto, o infanticídio, a prostituição e os crimes passionais (DEL OLMO, 1996), atualmente
tem como propulsor o crime de tráfico de drogas, principalmente a partir dos anos noventa. (UNODC), (GIA-
COMELLO), (SOUZA) e (BOITEUX).

A população carcerária brasileira total é composta de 6,4% de presas mulheres. Entre 2007 e 2012,
o crescimento das presas por tráfico de drogas foi de 77,11%, tendo praticamente dobrado o número de mu-
lheres presas por tráfico nesse período (InfoPen). Assim, o crime de tráfico de drogas ilícitas é o que mais
encarcera mulheres, sendo o maior percentual das condenadas por tal crime 60,63%, seguido pelos crimes
contra o patrimônio, especificamente o roubo e o furto os quais representam, respectivamente, 11,41% e
8,71% dos crimes praticados pelo sexo feminino (INFOPEN, 2013).

Ainda que as mulheres se mostrem cada vez mais envolvidas na hierarquia do mercado ilícito de dro-
gas, elas permanecem invisibilizadas diante de uma legislação e política pública acerca das drogas guiada por
parâmetros androcêntricos. Dessa forma, negam-se as condições específicas do envolvimento feminino com
o tráfico que leva ao cárcere, de forma geral, mulheres em situação de extrema vulnerabilidade social, isto é,
jovens, desempregadas ou subempregadas, não brancas, com baixa qualificação educacional, mães e chefes
do lar, residentes em espaços urbanos marginalizados, ocupantes dos mais baixos níveis na cadeia do tráfico.

A lei de drogas, no fluxo do sistema penal, como um todo, nega qualquer compromisso com a pers-
pectiva de gênero ao conformar o sistema hierárquico de prevalência do masculino sobre o feminino além do

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sistema de classes, impondo, de forma geral, sanções penais rígidas ao elo mais vulnerável na esfera social e
no mercado ilícito das drogas: a mulher, pobre e não branca.

Com efeito, a criminalização do tráfico de drogas, através da lei nº11.343/2006, representa per si a
violação de direitos constitucionais fundamentais como a autonomia da vontade, a exigência da ofensividade
da conduta lesiva, a proporcionalidade e outros.

A partir do que foi acima exposto, o presente artigo elabora uma análise crítica da atual legislação de
drogas, a lei 11.343/2006, atrelada a uma perspectiva de gênero, isto é, resgatando o sujeito feminino da in-
visibilidade e revelando as especificidades da mulher selecionada e encarcerada por tráfico de drogas.

1. LEI DE DROGAS NO BRASIL.

1.1 ANÁLISE CRÍTICA DA LEI 11.343/2006.

A Lei 11.343, logo de início, no artigo 1°, corrobora com a concepção das leis anteriores ao consoli-
dar uma política criminal de drogas guiada pela ideologia da diferenciação1, tendo em vista a prescrição de
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
por sua vez, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico (traficante) de drogas
ilícitas e define crimes.

Podemos destacar como aspectos positivos da nova legislação a rejeição de sanções privativas da liber-
dade em caso de reincidência, além da descarcerização2 da posse para uso próprio (artigo 28) e a equiparação
a este da conduta de quem planta para consumo pessoal (art. 28, § 1o.), a redução da pena para a hipótese
de consumo compartilhado de droga ilícita (art. 33, § 3o.), antes equiparada ao tráfico, a previsão expressa
do “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas”
(art. 19, III), e o reconhecimento dos princípios da liberdade e da diversidade (art. 4º), medidas que refletem
uma redução do controle penal sobre o usuário de drogas, especialmente se comparadas com a antiga Lei
6.368/76.

Se em relação ao uso pessoal houve um arrefecimento punitivo, no que concerne ao comércio de


entorpecentes, a nova lei deu tratamento penal bastante diferenciado. Estabeleceu o aumento da pena míni-
ma do delito de tráfico de três para cinco anos de reclusão, além da pena de multa, obstacularizando, dessa
forma, a aplicação das penas alternativas.

É de se notar a total desproporcionalidade de uma pena mínima de cinco anos, superior até ao pata-
mar mínimo do crime de roubo, que requer violência ou grave ameaça, percebe-se, assim, a incoerência sis-
temática da matéria criminal. Ademais, a manutenção, pelo art. 44 da nova lei, da inafiançabilidade do delito,
a proibição da concessão de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória e vedada a substituição por
pena restritiva de direitos, contribuiu fortemente para que os presos por tráfico ficassem encarcerados um

1  Tal discurso estabelece nítida distinção entre consumidor e traficante, isto é, o doente e o delinquente. Dessa forma, sobre o
traficante recai o discurso jurídico-penal do qual se cria o estereotipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública; por sua
vez, sobre o consumidor incide o discurso médico-psiquiátrico que difunde o estereotipo da dependência. (DEL OLMO, 1990).
2  A opção pelo termo descarcerização se justifica pela concordância com a lição de Salo de Carvalho: ‘Não parecem satisfatórias
as leituras que afirmam ter havido descriminalização do porte para uso pessoal em face de o art. 1° da Lei de Introdução ao Código
Penal (LICP) considerar crime a ‘(...) a infração penal a qual a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente,
quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (...)’. Não se pode olvidar que a publicação da LICP ocorreu sob égide
da Constituição de 1937. A Constituição de 1988, porém, como novo lócus de interpretação e ilegitimidade das leis, redefine o
conceito de delito,, prescrevendo como consequência jurídica, para alem da privação e da restrição da liberdade, a perda de bens,
a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos (Art. 5°, inciso XLVI). O novo cenário constitucio-
nal amplia as hipóteses sancionatórias, não sendo cabíveis interpretações retrospectivas que potencializam leis ultrapassadas,
dando-lhes maior importância que à Constituição.’ Ademais, conforme explica Silveira (2011), o significado da despenalização
não consiste apenas na retirada da pena privativa de liberdade, mas que a conduta não é mais punida, nem com o cárcere nem
com qualquer outra medida. Assim, não há que se falar na ocorrência da despenalização, posto que a conduta continua sendo
penalizada. A descarcerização, por sua vez, não retira o caráter criminoso, tampouco a incidência de sanção penal. Visa apenas ao
afastamento da aplicação da pena privativa de liberdade em virtude da reduzida necessidade de intervenção por parte do Estado
(SAMPAIO, 2006).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tempo ainda maior. Tal situação foi amenizada com os recentes posicionamentos do STF acerca da inconsti-
tucionalidade das vedações à liberdade provisória3 e conversão em penas restritivas de direitos4.

Insta dizer que, na prática, a posse de drogas ilícitas para uso próprio já havia sido descarcerizada
desde a Lei 9.099/95, que trouxe a possibilidade da suspensão condicional do processo (art. 89) e, mais re-
centemente, pela Lei 10.259/01, que ampliou o alcance da transação penal (GOMES, 2011). Nesse sentido,
não se considera ter havido um avanço significativo, e que melhor seria manter a lei anterior, posto que o usu-
ário não era encarcerado da mesma forma, mas encaminhado ao Juizado Especial, enquanto a pena mínima
para o tráfico prevista era de três anos. Ademais, a descarcerização promovida pela atual política só alcança
aquele que não precisa traficar para consumir droga, visto que a estratégia penal é fracionada: para o viciado,
o modelo descarcerizador, influenciado pelo discurso médico-sanitário; ao traficante a prisão, justificada pelo
discurso simbólico do proibicionismo.

Assim, a mera descarcerização do uso de drogas, mesmo benéfica ao usuário, é ainda uma medida
muito tímida, por insistir em manter o controle penal sobre o uso de determinadas drogas, independente de
quantidade ou qualquer parâmetro objetivo, ainda que tal uso não cause qualquer risco concreto aos demais,
isto é, consolida crimes sem vítimas e, por consequência, viola diretamente normas fundamentais.

O princípio da legalidade e o princípio das liberdades iguais submetem todo o poder estatal ao con-
trole da lei e asseguram a liberdade individual como regra geral, situando quaisquer proibições e restrições
no campo da exceção e condicionando sua validade ao objetivo de assegurar o igualmente livre exercício de
direitos de terceiros. Desta forma, a criminalização de qualquer ação ou omissão há de estar sempre referida
a uma ofensa relevante a um bem jurídico alheio, relacionado ou relacionável a direitos individuais concre-
tos, ou à exposição deste bem jurídico a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Portanto, em uma
democracia, o Estado não é autorizado a intervir criminalmente quanto a posse para uso pessoal de drogas
ilícitas, que, equivale a um mero perigo de autolesão, assim como na venda ou qualquer outra forma de for-
necimento de drogas ilícitas para um adulto que quer adquiri-las tendo em vista a concordância do titular do
bem jurídico (KARAM, 2013).

Na soma dos retrocessos da ‘nova’ legislação sobre drogas, na contramão da Reforma de 2008, a mes-
ma definiu um rito processual específico com o interrogatório do acusado ao início da instrução, conforman-
do uma mentalidade jurídica inquisitória na qual o interrogatório representa um meio de prova ao invés de
um meio de defesa. Inflige, assim, a garantia constitucional da ampla defesa, pois o acusado se defende antes
mesmo de conhecer a integralidade da acusação e das provas que pesam contra ele5.

Apesar de questionado por seu fracasso, o modelo proibicionista se mantém forte graças à postura
norte-americana que mantém a defesa da estratégia punitiva nos fóruns internacionais. Por sua vez, a Eu-
ropa desenvolve a implementação de estratégias alternativas ao proibicionismo, como as de redução de da-
nos, e leis que prevêem desde a descarcerização da posse e do uso, encontrada na ampla maioria dos países
europeus, passando pela descriminalização levada a cabo por Portugal, Itália e Espanha, até a experiência
holandesa que despenalizou, além da posse de drogas, o cultivo e o pequeno comércio de cannabis.

Por isso, se defende um modelo alternativo mais humano e racional que é o da legalização controlada,
que inclui a legalização de todo o processo, do comércio à posse de drogas, que ficaria sujeito à fiscalização
pelo Estado, da mesma maneira que hoje se adota para as drogas lícitas (álcool e tabaco). Tal modelo deve
incluir necessariamente a proibição de propaganda, o controle de qualidade dos produtos e o maciço investi-
mento em prevenção e em estratégias de redução de danos.

1.2 LEI DE DROGAS: ASPECTOS QUE APONTAM DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO.

3  Na Sessão do Plenário de 10.05.2012, o STF proferiu decisão, por maioria e nos termos do voto do Relator, declarou, inciden-
ter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei nº 11.343/2006.
4  STF – RESOLUÇÃO N° 5: É suspensa a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos” do § 4º
do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal
nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.
5  LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre de Moraes da. Interrogatório deve ser o último ato do processo. Disponível em: http://www.
conjur.com.br/2015-jul-03/limite-penal-interrogatorio-ultimo-ato-processo. Acesso em: 05 de Julho de 2015.

481
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

As legislações penais brasileiras há muito tempo refletem um misto de preconceito e indiferença em


relação à condição feminina. Essa postura legislativa se evidencia, p.e., na disciplina dos crimes relacionados
à sexualidade, que até a reforma de 20056 trazia qualificativos de mulher honesta no crime de atentado ao
pudor mediante fraude e mulher virgem no extinto crime de sedução. Desta forma, revela-se um posiciona-
mento moralista, conservador e patriarcal sob o pretexto de proteção à mulher.

Ainda que a legislação recente tenha trazido avanços, o direito de forma geral mantém a primazia de
critérios ou padrões masculinos diante da realidade feminina. Conforme leciona Baratta (1999, apud MOU-
RA, 2005):

O direito é sexuado, esta analise sugere que, quando um homem e uma mulher se vêem frente ao
direito, não é o direito que não consegue explicar ao sujeito feminino os critérios objetivos, mas ao contrário,
aplica exatamente tais critérios, e, estes, são masculinos. Portanto, insistir na igualdade, na neutralidade e na
objetividade é, ironicamente, o mesmo que insistir em ser julgado através de valores masculinos. (p.30-31).

Ainda que o texto constitucional, em seu artigo 5º, verse sobre a igualdade de todos perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza (BRASIL, 2013), o Código Penal Brasileiro, destoa dos compromissos consti-
tucionais e, na prática, se revela como instrumento de potencialização de opressões contra às mulheres, uma
vez que não garante de fato proteção as mesmas, mas atua como um reforço da desigualdade social constru-
ída entre os sexos e a hierarquia masculina sobre a feminina. Segundo Vera Regina de Andrade:

[...] o sistema penal, salvo situações contingentes e excepcionais, não apenas


é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência, como
também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma es-
tratégia excludente que afeta a própria unidade do movimento. Isto porque
se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de
homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência
institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas.
E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de contro-
le social (Lei, Polícia, Ministério Público, Justiça, prisão) que representa, por
sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na
família, o sistema penal duplica, ao invés de proteger, a vitimação feminina,
pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas
(como estupro, atentados violentos ao pudor, assédio, etc.), a mulher torna-se
vítima da violência institucional pluri-facetada do sistema, que expressa e re-
produz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a
violência estrutural das relações sociais capitalistas (que é a desigualdade de
classes) e a violência das relações patriarcais (traduzidas na desigualdade de
gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigual-
dade, o que é particularmente visível no campo da moral sexual (1996, pg.3).

A lei de drogas, no fluxo do sistema penal como um todo, nega qualquer compromisso com a perspec-
tiva de gênero ao conformar o sistema hierárquico de prevalência do masculino sobre o feminino, além do
sistema de classes, impondo, de forma geral, sanções penais rígidas ao elo mais vulnerável na esfera social e
no mercado ilícito das drogas: a mulher, pobre e não branca.

Sobre a importância de adotar uma lente de gênero ao analisar os sujeitos no sistema punitivo, Espi-
noza ressalta:

Mais do que nunca devemos proceder as análises que adotem a perspectiva


de gênero para olhar a mulher e todos os indivíduos inseridos no sistema
punitivo. Assim, a óptica do gênero deve nos levar a questionamentos a res-
peito da própria estrutura do sistema, “desconstruindo o universo das formas

6  Por meio da Lei n 11.106, de 28 de março de 2005.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tradicionais de legitimação punitiva e procurando soluções mais equitativas,


que valorizem as situações concretas nas quais evoluem os diferentes prota-
gonistas da intervenção penal (2004, p. 77).

Dentro do parâmetro referenciado acima e com base na experiência vivida durante dois anos
de estágio em uma vara de feitos relativos a entorpecentes, procederemos a seguir uma análise, sob a pers-
pectiva de gênero, dos principais artigos incriminadores do sexo feminino da Lei de drogas e seus efeitos.

1.2.1 ART. 28 E ART. 33: A ZONA CINZENTA ENTRE O USO PESSOAL E O TRÁFICO DE DROGAS.

As sanções e tratamentos penal, processual penal e penitenciário dos crimes de tráfico (art.33) e
de porte para consumo (art. 28) são completamente diversos. Enquanto o primeiro é equiparado a crime
hediondo, com tratamento rigoroso da legislação específica ao cominar pena mínima de 5 (cinco) anos de
reclusão, e multa elevada, no intuito de atacar a produção não autorizada de drogas e reprimir a venda; o
porte para consumo, por outro lado, é equiparado a contravenção penal, sem a possibilidade de aplicação de
pena privativa de liberdade pois a finalidade do agente é o consumo pessoal.

O art.28 prevê cinco condutas - adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo - que
também fazem parte do artigo 337, cujo tipo penal abarca 18 (dezoito) verbos nucleares referentes a ações
puníveis. A forma de construção da tipicidade penal em ambos os delitos, a desigualdade entre o quantum
das penas previstas e a inexistência de tipos penais intermediários entre os dois modelos de condutas – co-
mércio e uso pessoal – acarreta problemas perversos de interpretação. Tais problemas são agravados quando
a decisão sobre a conduta do agente, se usuário ou traficante, não se baseia em um sistema de quantificação
legal que define um parâmetro – quantidade diária para consumo pessoal- mas em um sistema de reconhe-
cimento judicial ou policial, cabendo ao juiz ou a autoridade policial analisar cada caso concreto e definir o
enquadramento típico (GOMES, 2011)8.

A existência dessa zona cinzenta intermediária, conforme observa Salo de Carvalho (2013), além da
produção de prova vinculada fundamentalmente aos depoimentos policiais, com alta carga subjetiva, tende a
projetar a subsunção de condutas ambíguas em alguma das variadas ações puníveis integrantes do artigo 33
da Lei de Drogas, muitas vezes, ensejando condenações injustas.

Atualmente, temos, aproximadamente, doze perfis de mulheres presas por tráfico de drogas: bucha9,
consumidora, mula-avião10, vendedora, vapor11, cúmplice, assistente/fogueteira, abastecedora/distribuidora,
traficante, gerente, dona de boca e caixa/contadora (MUSUMECI; ILGENFRITZ, 2002, p. 87). Ainda que a
atuação de mulheres em posições mais valorizadas na hierarquia do tráfico- chefes de boca, gerente, conta-
doras e traficantes – tenha aumentado nos últimos anos, a grande maioria delas ocupam as funções menos
privilegiadas e mais vulneráveis; são condenadas, entretanto, na mesma medida daqueles que ocupam o
grande escalão do tráfico de drogas devido à excessiva amplitude do artigo 33 da Lei de Drogas.

1.2.2 ART. 35: ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO

7  Art. 33, caput: Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depó-
sito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e
pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
8  Lei 11.343/2006, art. 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: 2o  Para
determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes
do agente.(grifos nossos).
9  Bucha é a pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões.
10  Mula-avião são aquelas que pegam pequenas quantidades de drogas e transportam para entregar a alguém, em alguma boca,
para algum vapor. Fazem a circulação da droga.
11  Quem negocia pequenas quantidades no varejo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O artigo 35, caput, da Lei de Drogas estabelece associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de
praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts.33, caput e § 1o, e 34, da mesma
Lei, trata-se de associação para o tráfico. A lei o inclui como crime autônomo, isto é, sendo prescindível
para sua configuração efetiva a prática dos crimes previstos no artigo nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 da Lei
11.343/2006.12 Quanto a sanção aplica-se a reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (sete-
centos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.

A associação para o tráfico exige a reunião de ao menos duas pessoas de forma estável ou em caráter
permanente com a finalidade de cometer os crimes previstos no tipo. A reunião eventual é caracterizada
como concurso de pessoas. Indispensável, portanto, para a comprovação da materialidade, o animus associa-
tivo, ou seja, a intenção de se associar com o intento de praticar o crime almejado, mesmo que essa finalidade
não venha a acontecer efetivamente. 13

Apesar de ter entendimento jurisprudencial consolidado, na prática penal ainda é possível obser-
var parte dos operadores do direito, arraigados ao senso comum punitivo, aplicando o art. 35 a associações
eventuais sob justificativa da expressão ‘reiteradamente ou não’ que compõe o tipo. Todavia, tal expressão se
refere à prática da finalidade e não do ato de se associar como pretendem dar sentido.

No âmbito das causas de inserção das mulheres no tráfico de drogas é notória a importância das re-
lações afetivas que mantêm com filhos, irmãos e companheiro. Assim, é recorrente a apreensão de mulheres
por associação quando compartilham o espaço comum da residência com o parceiro que exerce atividade de
tráfico, algumas vezes elas reconhecem tal atividade ilícita, outras vezes até sem saber do envolvimento do
companheiro; muitas delas, por outro lado, acabam por participar de forma “indireta” do tráfico de drogas,
exercendo funções acessórias (vigiando, fazendo contabilidade, etc) para ajudar seus parceiros; outro caso
recorrente são de casais usuários ou de mulheres, usuárias ou não, presentes no momento da apreensão em
flagrante( a bucha), de certa quantia de droga, geralmente pequena, mantida em depósito, mas ainda assim,
pela ausência de uma parâmetro objetivo de aferição e por se encaixarem no estereótipo do criminoso (pobre,
não branca(o), moradora de favela) são denunciados(as) nos tipos de tráfico (art.33) e associação (art.35) ao
invés do porte para uso pessoal (art.28).

Desta forma, mediante afronta ao princípio da proporcionalidade, inúmeras mulheres tem suas pe-
nas sobrelevadas pelo concurso material entre tráfico de drogas (art.33) e associação para o tráfico (art.35),
pena mínima em abstrato de 8 (oito) anos, quando seu envolvimento é, na maioria estatística, pouco signifi-
cativo e não violento dentro da cadeia produtiva do tráfico.

Levando-se em consideração que o perfil das mulheres encarceradas por envolvimento com tráfico
de drogas é marcado pela maternidade, os efeitos da condenação ultrapassam a individualidade da mulher e
atingem o seio familiar, condenando-se paralelamente seus filhos, deixados, nos melhores casos, aos cuida-
dos de familiares, vizinhos e instituições de acolhimento; outros tantos, com menos fortuna, são deixados a
própria sorte e cuidados da rua. O prolongamento das penas femininas, dessa maneira, traz consequências
nefastas à estrutura familiar.

1.2.3 ART. 40, INCISO III: TRÁFICO DE DROGAS NA ENTRADA DO PRESÍDIO.

O art. 40 trata das causas de aumento específico sobre as penas previstas nos arts. 33 a 37 da Lei de
drogas, prevendo-se frações de um sexto (1/6) a dois terços (2/3) de elevação das penas. Entre as situações

12  STF: HC 74.738/SP, rel. min. Maurício Corrêa, DJU 18.05.2001: EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO E
DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE ENTORPECENTES, EM CONCURSO MATERIAL. 1. É da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal que é possível ocorrer concurso material entre os crimes de tráfico e de associação para o tráfico de entorpecentes
(arts. 12 e 14 da Lei nº 6.368/76)’, atuais artigos 33 e 35 da Lei n °11.343/2006.
13  O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que, para a caracterização do crime de associação para o tráfico (previsto no
art. 35 da Lei n. 11.343/2006), é preciso que haja o dolo de se associar com permanência e estabilidade. Por isso, a conduta é
considerada atípica se não houver ânimo duradouro (associativo permanente), mas apenas eventual (esporádico). Precedentes do
STF: HC 64.840-RJ, DJ 21/8/1987; do STJ: HC 166.979-SP, DJe 15/8/2012, e HC 201.256-MG, DJe 29/6/2012. HC 139.942-SP,
Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

previstas, uma delas é responsável pelo encarceramento de parte considerável da população prisional femini-
na: a infração ter sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais (inciso III).

Sob a promessa de uma recompensa pecuniária ou ainda sob coação, física ou moral, por parte de pa-
rentes ou pessoas próximas muitas mulheres arriscam-se na tentativa de adentrar nos presídios carregando
entorpecentes. A preparação para o crime envolve, primeiramente, a alocação da droga em um saco de arroz
por ser resistente; vedam-no com fita isolante, colocam-no dentro de um preservativo, e, posteriormente,
lubrificam-no e o introduzem ou na vagina ou no ânus. Embora algumas levem a droga em bolsas ou em
outros objetos externos ao seu corpo, a maioria o faz dentro do próprio corpo, quer na cavidade vaginal, quer
na cavidade anal (DIÓGENES, 2007).

Geralmente as mulheres são descobertas no momento da revista para entrada no presídio por ex-
ternarem certo nervosismo, em outros casos são denunciadas através de ligações anônimas, ou pelos presos
do estabelecimento onde vão entregar a droga. Nesse momento, muitas delas alegam que a droga seria para
consumir junto ao parceiro, tese que geralmente não se sustenta durante a instrução.

CONCLUSÃO

No presente trabalho, analisou-se a atual legislação sobre drogas brasileira através de uma perspecti-
va de gênero, ou seja, com enfoque nas condutas e circunstâncias de criminalização do sujeito feminino por
tráfico de drogas, mostrando-se, também, como os costumes e os papéis socialmente construídos ao redor
do que é próprio aos homens e as mulheres influenciam também a formação das redes criminais de tráfico.
Conforme exposto, a participação feminina é, na maioria das vezes, acessória, em posições mais baixas da
hierarquia, com menores rendimentos e mais vulneráveis a ação policial. Ademais, nota-se a importância das
relações afetivas, principalmente, com companheiros e filhos, para o envolvimento das mulheres no tráfico
de drogas. Desta forma, a conivência com a atividade ilícita do companheiro ou até mesmo pela coação desse,
e a busca pela subsistência familiar leva um sem número de mulheres ao cárcere.

A lei de drogas, nos moldes atuais, renega as especificidades das condições sociais do envolvimento
feminino no tráfico, de forma que reprime com rigidez a vulnerabilidade de mulheres já marcadas pela vio-
lência, privada e/ou pública, nas suas trajetórias de vida.

A desproporção das penas e a cegueira de gênero devem ser revistas e corrigidas à maneira de outros
Estados da America Latina, por exemplo, a Costa Rica que recentemente reformou a lei de drogas do país
em benefício das mulheres em condição de vulnerabilidade social, visto que a legislação brasileira atual gera
danos enormes e desnecessários diante de pouca evidência sobre seus efeitos, pois a aplicação de penas rígi-
das até então se mostra ineficaz para reduzir o crime ou diminuir a quantidade de drogas ilícitas disponíveis.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88:


A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Marco Aurélio da Silva Freire


Mestrando em Direitos Humanos pela UFPE

João Paulo Rodrigues do Nascimento


Bacharelando em Direito – 9º período, pela ASCES.

SUMÁRIO: 1. Histórico e Conceito de Democracia; 2. Democracia representativa; 3. Democracia


participativa; 4. Democracia no Brasil; 5. Instrumentos de participação social e seu papel como ga-
rantidores das políticas sociais; 5.1. Orçamento participativo; 5.2. Audiências públicas; 5.3. Plebiscito
e referendo; Conclusão; Referências.

1. HISTÓRICO E CONCEITO DE DEMOCRACIA.

A Grécia Antiga é o berço da civilização ocidental, mas também é o berço do principal instrumen-
to de um Estado justo e politizado, a democracia. Foi na cidade de Atenas, onde apenas os homens livres,
poderiam exercer todo e qualquer forma de poder. O sentido da palavra homem neste caso, deve ser inter-
pretado no seu sentido literal, refere-se ao sexo masculino, não de maneira a englobar todos os indivíduos
sem exclusão de gênero, a mulher não possuía a mesma instrumentalidade de poder ou autonomia para o
seu exercício.

As sociedades civilizadas, onde o papel dos cidadãos é mais amplo, a democracia se faz presente nas
suas diversas vertentes, onde se divide em democracia deliberativa, representativa e a participativa. A primei-
ra consiste no discurso e reflexão sobre idéias e propostas. É uma discussão continua, já que toda proposta
pode vir a ser modificada. Ela permite espaços para que se questione o futuro. Aí, o cidadão pode promover
debates e nesses podem justificar e difundir seus argumentos. Em suma, ela exige que o cidadão racionalize
sobre determinadas questões por um diálogo. Essa vertente não é o foco do estudo deste trabalho. Nos tópicos
que serão apresentados mais à frente discutirmos sobre os outros tipos.

A democracia é originária da palavra “demokrátia” , onde o termo “demos” quer dizer povo e “kratos”
significa “poder do povo”. O povo é soberanos e a ele pertence esse poder, isto quer dizer que, o fato do povo
ser soberano o torna independente e tanto ele quanto o Estado ao qual ele pertence não estão subordinados
a ninguém não tem poder acima dele, apenas o da sua própria constituição, que quando democrática de fato,
garante isso e protege, é o que modernamente é tido como a soberania popular, exercido pelo povo através de
mecanismos institucionalizados.

No mundo atual, a soberania dos Estados mais fortes (grandes potências), não é inquestionável pois
de um certo modo eles são interdependentes. Quanto aos Estados mais fracos (países em desenvolvimento
ou de industrialização tardia), essa soberania é de certo modo relativa, pois é enfraquecida pela superiori-
dade econômica das grandes potencias, foi o que ocorreu com o Brasil durante boa parte da sua história,
mais recentemente até o fim da década de 90 e inicio dos anos 2000, devido ao modelo político adotado para

487
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

a governância do país. Um país devidamente soberano é democrático quanto reconhece o povo como ente
instrumentalizador da soberania que é inerente a ele, e ele instrumentaliza esse poder quando ele permite
o povo participar da política, buscando direitos e mais ainda, buscando o direito de ter direitos.

Robert Dhal em sua Teoria Dedutiva sobre a Democracia, caracterizou a democracia como um arranjo advin-
do do pluralismo, marcado pela competitividade de interesses, dando espaço para a inserção de movimentos sociais
no campo político. Essa competitividade está interligada a buscas corriqueiras do homem por direitos, sem distinção,
sem diferenciação de classe social. Essa corrida tem que ser entendida como uma busca qualitativa e não quantitativa.
Isto quer dizer que, os direitos buscados devem ser adquiridos para atender as necessidades de todos, sem interferir no
direito do outro, sem concorrência entre classe A ou B, mas que todos busquem estes de forma pacífica e justa, já que o
direito e a justiça é correto que se opte pela justiça . (ABU-EL-HAJ, Jawad. 2008).

A democracia não se tornou algo exclusivo ao Ocidente e deixou de ser algo limitado a região A ou B. Na se-
gunda metade do século XX se tornou uma luta universal, onde Oriente e Ocidente, seguem os mesmos anseios quando
se trata da luta por um Estado de pluralista respeitável e igualitário.

O que fomentou as mudanças relacionadas a práticas e idéias democráticas foi a mudança da Cidade-Estado
para o Estado nacional como dito anteriormente, mas também com associações políticas supranacionais que visam pro-
teger e viabilizar o comercio internacional, por meio da internacionalização da economia, do processo produtivo e do
trabalho, difundindo a globalização. Como exemplos de órgãos políticos supranacionais, podemos citar a Organização
Mundial do Comércio (OMC).

Brevemente será discorrido sobre duas das três formas de democracia, a representativa e a participativa.

2. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA.

É o modelo de democracia mais comumente aplicado no mundo, principalmente no Ocidente,


inclusive no Brasil. Por meio desse sistema o individuo exerce o sufrágio ou o voto, dando direito a outro de
lhe representar e representar a sua vontade, tomando posições favoráveis ao funcionamento da estrutura e
instituições estatais.

Bobbio comenta da seguinte forma sobre o significado da democracia representativa:

[...] a expressão “democracia representativa” significa genericamente que as


deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dize, respeito à coletividade
inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que de dela fazem parte
mas por pessoas eleitas para esta finalidade [...]. (BOBBIO, Norberto. 1997,
p. 44)

Mas, não se fala de democracia representativa sem falar de democracia liberal. Esta se baseou prin-
cipalmente sob a vertente norte-americana, onde é sugerido o modelo de campanha eleitoral por meio de
mídia, dinheiro, campanha corpo a corpo exclusa e substituída pela TV.

Transformou-se em uma relação comercial, empresa-consumidor. A opinião dos cidadãos ou eleitores


por assim dizer, está sendo industrializada e colocada em conserva onde o pote só é aberto e esta opinião
é usada de quatro em quatro anos, limitando o cidadão à sua zona eleitoral, estreitando no sentido mais
negativo a relação entre cidadão-debate, cidadão-diálogo, cidadão-representante e sem sombra de dúvidas,
cidadão–democracia.

A representação pode ser vista como assim pode ser entendido, para casos de Estados Nacionais vas-
tos e com abrangência política interna complexa devido ao seu tamanho, como meio de atingir a igualdade,
mesmo que não plena, mas de modo significativo em relação a realidade da localidade. O embrião para a
democratização dos Estados Nacionais está em regiões onde já se tinha o poder legislativo que representavam

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

interesses diversos das mais variadas camadas da sociedade. Tais órgãos legislativos já não eram tão demo-
cráticos. Os que defendem a reforma dessa ala democrática buscaram torná-la ainda mais representativa por
meio do alargamento das garantias de liberdade e a criação de sistemas eleitorais que dariam uma segurança
jurídica maior para a escolha dos membros do legislativo (DHAL, Robert. 2012).

Com a idéia de igualdade através do sistema representativo a partir da transformação da Cidade-Esta-


do para o Estado Nacional, foi que surgiu a necessidade de a legislação ser sancionada pelos representantes
(democracia em larga escala) e não por meio de assembléia cidadã (menor escala). Para aplicar a lógica da
igualdade, a assembléia dos cidadãos precisou ser substituída pelos governos representativos.

A democracia em grande escala requer instituições da poliarquia e essas instituições políticas pos-
suem direitos políticos primários. Essa ampliação na escala preocupa quanto ao exercício de criação e ma-
nutenção de direitos, como forma de participar da vida política. Os direitos individuais visam nesse sentido
assegurar a liberdade pessoal que muitas vezes não é oferecida pela participação. Muitas vezes não oferece
em virtude do aumento vertiginoso da escala democrática.

A poliarquia está associada à sociedade com o alto desenvolvimento dos indicadores sociais como o
crescimento da renda per capta, expectativa de vida, crescimento econômico e de produção, migração do
campo para a cidade.

O que põe em questionamento quanto à democracia representativa é num problema que hoje abarca
boa parte do mundo só que principalmente nos países emergentes, que é a corrupção. Isso é a conseqüência
de se agir em detrimento de interesses pessoais e não da coletividade, tal qual previamente estabelecido.

3. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA.

Democracia participativa é o modelo no qual o poder é exercido com a participação popular no to-
cante a tomada de decisões políticas. A crise moral e os questionamentos quanto a segurança do sistema
representativo faz com que isso abra reflexão sobre a implementação de um sistema de participação.

É sem duvidas um meio bastante seguro para que grupos que se vêem excluídos, de requerem sua
participação através de instrumentos de participação como os conselhos de políticas públicas e o Orçamento
Participativo por exemplo, que nas ultimas duas décadas tem se mostrado ferramentas importantes e com
resultados louváveis.

A democracia participativa é uma forma de democratizar a democracia, reascendendo o sentimento


de cidadania, quando se trata da busca de direitos e garantias políticas. É uma forma de tornar a política
acessível, tirando-a de dentro dos palácios e dos gabinetes, despersonificando-a, tirando o caráter persona-
líssimo quando ela é associada a figura de apenas uma pessoa, um líder, um governante como aconteceu na
Alemanha com o Nazismo, na Itália com o Facismo e acontece hoje com a Coréia do Norte com o Comunis-
mo, já que a política deve ser tida como um instrumento integralizador e deflagração da luta pelo direito de
ter direitos.

Se o povo é soberano e democracia significa “poder do povo”, então por que não tirar essas amarras
e linhas que prendem e delimitam esse poder que foi concedido ao povo? É algo no mínimo contraditório
dizer que o povo é livre para pensar, debater e se expressar, quando na verdade essa liberdade política tem se
limitado apenas ao voto, a escolha de seus representantes.

Tem que se pensar em uma política participativa não para ser exercida em determinado lapso de
tempo, mas proporcionar meios para que seu ciclo de duração seja algo sem prazo de validade e que possa
dar condições em vez de impor condições ao seu exercício (GUIMARÃES, Juarez Rocha. 2009).

A liberdade é uma das maiores características da república. É a marca de um Estado democrático de


direito, o que leva a crer que democracia só é um elemento presente em Estados Republicanos o que seria

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

um equívoco, já que Estados como a Inglaterra, por exemplo, são democráticos mas o sistema de governo é
a Monarquia Parlamentarista (ARAÚJO, Cícero. 2009).

Um dos grandes problemas enfrentados pela democracia participativa está justamente nas criticas
feitas pelo liberalismo política. O pensamento liberal em sua essência tem uma tendência ao individualismo.
Essa redução do pensamento coletivo e a maximização do individualismo a partir dessa idéia, faz uma cone-
xão entre cidadania e mercado, ode ser cidadão quer dizer uma integração do capitalismo liberal, uma rela-
ção de consumidor-produto vitimando assim como o voto, a própria cidadania à conserva e a mercantilização.

4. DEMOCRACIA NO BRASIL.

O Brasil ao longo de sua história presenciou ciclos da sua democracia. Não alongando-se ao contex-
to histórico, mas sem deixar de citá-los, destacam-se os seguintes: após 1889 (Proclamação da República);
1930, apesar do forte conservadorismo do Estado; De 1934 até 1937 durante o governo constitucional de
Vargas; de 1937 até 1945 o Brasil viveu sua primeira ditadura, neste que foi fim do primeiro governo de Var-
gas; Em 1946 houve a retomada do Estado democrático de direito com a instituição da Constituição de 1946;
Em 1964 foi instaurado o Governo Militar com o golpe a Jango e a constituição de 1946 perdeu sua eficácia.
Por fim, nos final dos anos 80 a democracia foi restabelecida com a promulgação da Constituição de 1988.

O Brasil vive uma auto-formação e não uma formação. A primeira mobilização popular em prol da
formação e que precedeu o momento que se vive hoje, foi justamente a defesa da constituição da nação e
a defesa da soberania em oposição ao imperialismo internacional e até mesmo nacional, com as grandes
oligarquias comerciais. Foi a partir daí que surgiu a luta pela reforma agrária através das ligas camponesas
e também foi o berço da luta proposta pelo movimento estudantil por meio da UNE (União Nacional dos
Estudantes), (GUIMARÃES, Juarez Rocha. 2009)...

A partir de meados da década de 1970, surgiu a Teologia da Libertação, com Alceu Amoroso e a Li-
derança Profética com Dom Hélder Câmara; O Movimento Ecológico com Chico Mendes e Marina Silva e o
Movimento Feminista; todos esses movimentos incentivaram uma maturação democrática e por fim na dé-
cada de 80, surgiu algo inovador, símbolo de vanguarda na política de participação e inclusão, o Orçamento
Participativo.

Este ciclo de formação foi marcado por diversos momentos que destacaram a mobilização institucio-
nal: Diretas Já; Assembléia Constituinte; campanha pelo impeachment de Collor e a eleição do ex-presidente
Lula em 2002.

O socialismo democrático foi e é incentivado pelo PT (Partido dos Trabalhadores) em sua essência.
Este criticou o Stanlismo e resistiu a crise enfrentada pela extinta URSS (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas). Rompeu paradigmas como a idéia dualística de Estado/Sociedade e movimentos sociais/institu-
cionalidade.

Em suma, o Brasil provou de todos os lados, desde a ascensão à queda do Estado Democrático de
Direito. Graças a inúmeros fatores desde 1988 até os dias atuais, a democracia brasileira tem experimentado
sua plenitude. Tendo ficado inserida dentro de governos com tendências neoliberais ou mais sociais (po-
pulistas), com a garantia da liberdade de expressão e política. Cabe a cada cidadão exercê-lo de maneira a
satisfazer suas necessidades e mais ainda as necessidades e mais ainda as necessidades apresentadas pelas
demandas coletivas.

5. INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL E SEU PAPEL COMO GARANTIDORES DAS


POLÍTICAS SOCIAIS.

Discorrido no tópico anterior sobre a Teoria Democrática, em especial a Democracia Participativa.


É necessário comentar sobre o papel que a participação tem na implantação de políticas públicas e os seus
mecanismos de efetivação.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A participação promovida pela democracia participativa é uma importante maneira de ligar de ma-
neira direta a população ao poder público sem que haja hierarquizações, onde as duas partes assumem um
compromisso entre si, onde uma parte executa e a outra fiscaliza. Além disso à partir do momento em que
a população se insere na política, principalmente à cerca do debate sobre a implantação dessas políticas, o
poder público cumpre seu papel de oferecer um serviço de qualidade.

A democracia não só permite o cidadão ser realmente um ser político, mas também critico. A critica
faz parte da busca por um serviço eficiente, torna a política acessível e torna os serviços públicos essenciais
acessíveis ao ponto de muitas vezes até as camadas mais altas serem beneficiadas por eles de alguma forma.

E inúmeros são os mecanismos pelos quais se efetivam a participação. Quatro serão brevemente co-
mentados aqui, como o Orçamento Participativo, as Audiências públicas, o Plebiscito e o Referendo. Desses
quatro instrumentos os que são mais utilizados são o O.P e a audiências publicas.

5.1 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO.

[...] Quando os ciclos do mundo estão tendo a mover-se [...] Isso não é algo
restrito ao ocidente e nem algo que a china poderá evitar. Eu sei que em me-
nos de 100 anos todos os cinco continentes estarão sob o governo do povo e
que a nossa China não irá permanecer imune [a essa tendência][...]. (CHIA,
Ling Chi, Apud. AVRITZER; Leonardo, 2002, p.1)

Antes de adentrar na historicidade do Orçamento Participativo, far-se-á uma breve analise do cami-
nho da democracia até a criação desse mecanismo de participação.

Entre meados e final do século XVIII, segundo Leonardo Avritzer, o sentido de democracia estava
extremamente ligado ao conceito de soberania. Sobre isso ele fez a seguinte citação de o contrato social de
Jean Jaques Rousseau:

[...] a soberania não pode ser representada pela mesma razão que ela não pode ser
alienada. [...] Os deputados eleitos pelo povo não são e não poderiam ser os seus
representantes; eles são, unicamente os seus agentes. [...] Toda lei que o povo não
ratificar pessoalmente é nula. [...] O povo inglês acredita ser livre. [...] Na verdade,
ele está fortemente enganando; ele apenas é livre no dia da eleição dos seus represen-
tantes. Assim que os representantes são eleitos, o povo está novamente escravizado.
(ROUSSEAU. Jean Jaques, Apud. AVRITZER; Leonardo, 2002, p.1)

Esse trecho foi uma analise que Rousseau à cerca do parlamento inglês. Ele coloca os políticos ali
discutidos como de fato deveria ser, “agentes” da população, ou seja, um prestador de serviço à sociedade
e quando ele fala da lei ser nula por não ter sido ratificada pela população, ele aponta a participação direta
como forma necessária para a legitimação do processo de construção dessa. Vale ressaltar a falsa liberdade
do povo inglês, quando ele fala que os cidadãos ingleses só são de fato livres no momento de eleger seus
“representantes”, sendo assim escravos de um sistema político onde a liberdade tem um prazo de validade.

Avançando décadas a frente, chega-se ao histórico na democracia na America Latina e no Brasil,


tratada no primeiro capítulo, quando esta sofreu interrupções bruscas em virtude da imposição de ditaduras
militares. Isso ocorreu devido ao fato de as elites tentarem boicotar as eleições amplamente democráticas
até então, no Brasil (1964); na Argentina em (1966) e no Chile (1973). Nenhuma dessas interrupções da
democracia,obtiveram apoio da população.

No Brasil, mais precisamente o período militar, foi marcado pela forte desigualdade em nível local.
As grandes cidades cresceram de forma assustadora. Esse aspecto da desigualdade se refletiu principalmen-
te no aspecto social. O processo de modernização da economia brasileira não modernizou as condições de

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sobrevivência da maioria da população, principalmente do interior do Brasil. Essa disparidade entre a condi-
ção desigual da população não se limitava apenas à condição que pode-se chamar de Poder de Paridade de
Compra ou PPP, que mede a capacidade da população de adquirir bens materiais duráveis ou não. Ela está
expressa principalmente no campo das políticas públicas.

O crescimento desordenado das grandes centros urbanos não fez com que crescesse também o nível
de organização da administração publica e por conseqüência os serviços públicos torram-se críticos. Isso se
deveu a dois aspectos: a falta de organização da população e o clientelismo político já explicado nos capítulos
anteriores, que tiveram sérias conseqüências diante da distribuição dos bens públicos. A participação limita-
da ou quase que escassa da população através das associações políticas.

E nesse contexto da falta de organização populacional, da má distribuição de recursos públicos, da


falta de aplicabilidade de serviços púbicos básicos onde eram necessárias que surgiu uma inovação no campo
social, o orçamento participativo.

O orçamento participativo surgiu no final da década de 80 (1989), na cidade de Porto Alegre na


gestão do prefeito Olivio Dutra (PT). Leonardo Avritzer citou quatro etapas que levaram a constituição do
Orçamento participativo que foram as seguintes: o receio dos movimentos comunitários com o manuseio do
erário público e a construção do orçamento em nível local; a importância da participação atribuída pelo PT; a
descentralização proposta pelas secretarias de governo, ao incentivarem que a população atuasse de formar
direta na política e o fato de se propor a centralização das formas de participação no Conselho de Relações
com a Comunidade (CRC), (AVRITZER. Leonardo, 2002).

Segundo o autor ainda todo o processo de instituição do programa como método de deliberação está
associado a outros dois aspectos, como a criação de novos aspectos culturais dentro das comunidades e tam-
bém o fato de a sociedade brasileira ter reincorporado a noção de cidadania e assim colocá-la na constituição
por meio da participação nas associações. Foi um passo inovador para a implementação do novo modelo
institucional.

Ao analisar os precedentes à implementação do Orçamento Participativo, Boaventura de Souza San-


tos afirma que a globalização provocou e provoca um aumento acentuado da exclusão social, isso devido
ao fato de está cada vez mais difundido na sociedade o pensamento individualista, principalmente quando
se trata da corrida comercial provocada pelo capitalismo mal distribuído e minimamente democrático (DE
SOUZA SANTOS. Boaventura, 2003)

Esse descredenciamento desses grupos exclusos diante da globalização, provocou e provoca o surgi-
mento de movimentos sociais de caráter democrático-inclusivo que visou a participação como forma de in-
clusão não só política mas social principalmente. Essas políticas de participação são amplamente combatidas
pela política liberal, propagada pela globalização.

Segundo o autor ainda, desde a redemocratização do Brasil, o poder municipal é dividido entre a pre-
feitura e a câmara de vereadores e a esta ultima é dada a competência de aprovar o orçamento do município.
Ele buscou romper com os vínculos patrimonialistas e por que não paternalistas das políticas públicas. Fala-
-se paternalista por essas políticas públicas serem planejadas e executadas pelo Estado e no caso discutido
aqui, pelo executivo municipal, junto com o legislativo, ampliando a participação da população nas fases de
preparação, planejamento, execução e fiscalização dos recursos públicos, definindo quais as áreas que serão
prioridades para a aplicação desses recursos.

Denise Vitale associou a necessidade de implementação do Orçamento Participativo, as limitações


que são intensificadas pelos problemas enfrentados dentro do sistema eleitoral atual, principalmente no
âmbito municipal, onde muitas vezes a escassez de recursos e a pratica clientelista é intensificado, onde há
dificuldade de coalizão política. Ele promove ainda segundo a autora, a abertura sobre a discussão sobre o
orçamento e democratizar a utilização de recursos públicos, criando o que ela chama de “dupla democracia”
(VITALE. Denise, 2004).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Voltando a Boaventura, este colocou o Orçamento Participativo como ponte para uma nova roupagem
para a Teoria Democrática, instaurando-o como base para uma nova forma organizacional da administração
público-democrática e como um novo modelo de redistribuição dos recursos públicos (DE SOUZA SANTOS.
Boaventura, 2003).

O O.P segundo o autor ainda, consiste ainda em três instituições: uma que abarca a unidade adminis-
trativa do executivo municipal e que é responsável pelo debate com os cidadãos. As unidades são o Gabinete
de Planejamento (GAPLAN); a coordenação de Relações com a Comunidade (CRC); as Assessorias de Plane-
jamento (ASSEPLAS); os Fóruns das Assessorias Comunitárias (FASCOM); os Coordenadores Regionais do
Orçamento Participativo (CROP’S) e as Coordenações Temáticas (CT’s). Destas, as duas mais importantes é
a CRC e a GAPLAN. O segundo tipo de instituições são as organizações comunitárias que possuem autono-
mia. Nelas e através delas são feitas as escolhas das prioridades.

É considerado assim, em virtude do partilhamento do poder entre a população e o poder público, um


modelo de co-gestão, onde há a divisão de responsabilidades e nenhuma decisão é tomada unilateralmente
nas de forma conjuntam dando desta forma credibilidade ao próprio governo já que a população tem a opor-
tunidade de acompanhar a aplicabilidade do recurso.

5.2 AUDIÊNCIAS PÚBLICAS.

Instrumento que assim como o Orçamento Participativo busca manter o diálogo entre os mais di-
versos atores sociais. Além de buscar solucionar as carências da população, ela também serve para que se
colham dados sobre certos fatos ou demandas.

Para que as audiências publicas ocorram de maneira organizada e democrática, devem ser determi-
nadas diretrizes que busquem disciplinar esse contato entre população e governo.

Geralmente as audiências publicas ocorrem principalmente nas câmaras de vereadores municipais,


onde os vereadores convocam a população para debater medidas e propostas de programas de melhorias e
solução de problemas da cidade, de maneira que abarquem a cidade como um todo e não apenas determi-
nada parcela da população.

O Ministério Público pode de acordo com a Lei 8.625/93, inciso IV, propor audiências públicas. Como
fiscal da lei e garantidor do cumprimentos destas, é de bastante relevância esse ativismo, suprindo desta for-
ma a lacuna deixada pelo executivo e pelo legislativo.

Segundo o autor ainda, dentro da legislação, ela pode ser encontrada no artigo 58, § 2°, inciso II da
CF/88 onde as comissões do Congresso Nacional podem às propor. Lembrando que apenas orgãos públicos
podem propor audiências publicas.

5.3 PLEBISCITO E REFERENDO.

Plebiscito trata-se da consulta prévia feita à população sobre determinada proposição. Tem origem
na Roma Antiga, mais precisamente à partir dos Tribunais da Plebi, onde os plebeus exerciam seu direito
político e mais que isso, de participação, onde eles decidem sobre questões de seu interesse.

O plebiscito foi instrumento no Brasil pela primeira vez na CF/37. Na Carta Constitucional de 1946,
este instituto só seria utilizado para quando houvesse a proposta de incorporação, subdivisão ou desmembra-
mento de algum Estado. A primeira vez que o plebiscito foi utilizado em nível federal, foi em 1963 para de-
cidir quanto ao sistema de governo, se presidencialista ou parlamentarista. EM 1967 com o curso da regime
militar, todas as formas de participação social foram extintas.

Na CF/88, o plebiscito está disposto em quatro artigos: 2°, 14°, 187° e 49°. Além disso, em 1998 foi
editada a Lei 9.709/98 que visou regulamentar todas as formas de participação já presentes na CF.

493
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Já quanto ao referendo, este se trata de uma consulta onde a população aprova ou não determinado
projeto de lei. Ele permite que a população atue como se do legislativo fosse. É de fato uma das formas mais
claras do quão a democracia participativa e a representativa conseguem se aliar, sem que um interfira na
autonomia da outra.

Ele entrou na legislação brasileira apenas na CF/88 e assim como o plebiscito, também está regulado
na Lei 9.709/98.

O plebiscito e o referendo são aprovados ou rejeitados por quórum de maioria simples. Toda a regula-
mentação administrativa de ambos os institutos cabe a justiça eleitoral.

CONCLUSÃO

O presente estudo buscou apresentar de forma ampla a Teoria Democrática, em especial a Demo-
cracia Participativa e os seus principais mecanismos de concretização, como o Orçamento Participativo, as
Audiências Publicas, o Plebiscito e o Referendo. E não só isso, trouxe a discussão sobre instrumentos de Par-
ticipação social e seu papel como garantidores das politicas sociais.

Percebe-se que além de todos os mecanismos garantirem e alguma forma, conquistas significativas
no campo social, ele também possibilita uma conquista acima de tudo política, graças a relação direta criada
entre o poder publico e a sociedade, permitindo que haja desta forma estabilidade politica por meio de uma
relação de reciprocidade entre ambas as partes. Isto tudo sem a carcaça da hierarquia, onde o Estado está
acima e a população logo abaixo, mas de maneira horizontal.

A democracia vislumbra tornar também, ainda que não esteja expressa esta ideia, o cidadão como um
ser dotado de senso crítico, o que faz dele um fiel fiscalizador do serviço publico prestado ao meio em que
vive. Esse tom de critica que é permitido a ele e o papel de fiscal que lhe é concedido, tem o intuito de que
ele analise o serviço que lhe é prestado não só de forma quantitativa mas sobretudo qualitativa.

Observou-se que o mais eficiente dos três instrumentos é o Orçamento Participativo. Apesar de as
audiências, do Plebiscito e do Referendo terem desempenhado papeias importantes ao longo da historia da
democracia brasileira, pincipalmente pós-regime militar, ele é o que trouxe os melhores resultados e abar-
cou as maiores discussões a cerca das necessidades da sociedade. Ele permitiu uma melhor canalização de
recursos para todas as politicas sociais básicas – saúde, educação e segurança – e permite uma economia de
recursos de certa forma significativa, já que estes são bem direcionados.

Em um país como o Brasil, onde a democracia sofreu inúmeros atropelos e interrupções que deixa-
ram marcas e sequelas ao Brasil e onde esta é imatura principalmente devido a falta de maturidade politica
de maioria da população, se faz necessário o incentivo principalmente por parte do poder publico de imple-
mentação de politicas participativas, onde a população se sinta protagonista e como é constitucionalmente
garantido, que sua vontade se torne soberana na politica nacional não tão somente pelo voto, que é a maior
característica de um Estado Democrático de Direito.

REFERENCIAS

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495
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

(IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA


CONTRATAÇÃO INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO

Marta Rodrigues de Oliveira


Graduanda em Direito pela Faculdade ASCES. Bolsista do Programa de Iniciação
Científica ASCES – INICIA. Integrante do Grupo de Pesquisa “Cidadania e Segurança
Pública na Sociedade do/de risco”. Estagiária do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª
Região. E-mail: marta.rdg@hotmail.com

Roberta Cruz da Silva (orientadora)


Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de
Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada

SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza Jurídica do Regime Diferenciado de Contratações; 2. Regimes


de execução contratual e (in)constitucionalidade da contratação integrada; 3. Adoção da contratação
integrada pela Infraero; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A partir do ano de 2011, em meio a muitas discussões e polêmicas, a Administração Pública passou
a contar com mais uma modalidade licitatória: trata-se do Regime Diferenciado de Contratações Públicas
(RDC), criado para atender à necessidade de desburocratização e eficiência do serviço público, bem como
às especificidades de grandes eventos sediados no Brasil, a exemplo da Copa do Mundo Fifa 2014 e Jogos
Olímpicos e Paralímpicos de 2016.

A criação desse regime atendia um objetivo claro: agilizar e viabilizar as obras necessárias aos citados
eventos esportivos. Nesse sentido, preleciona Heinen (2015, p. 10):

Então, como dito, a responsabilidade em sediar eventos de repercussão mun-


dial fez com que se repensasse as formas de contratação públicas tradicio-
nais, ao ponto de se concluir pela imprescritibilidade em se modificar o re-
gime licitatório vigente, apresentando-se outro modelo, que foca em trazer
outro panorama normativo às contratações ligadas aos mencionados eventos
esportivos.

A peculiaridade é que este estatuto conta com um conjunto de regras bem específicas e diversas das
já estabelecidas pela Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993), e acredita-se que muitas dessas
inovações violam os princípios da moralidade, impessoalidade e publicidade, todos previstos na Constituição
Federal de 1988 e de obediência obrigatória por parte da Administração Pública. Por tais motivos, o RDC foi
objeto de ações de controle de constitucionalidade1.
1  Tão logo entrou em vigor, a Lei nº 12.462/2011 foi objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade. A primeira (ADI
4645), ajuizada pelos partidos políticos PSDB, DEM e PPS. A segunda (ADI 4655), proposta pelo procurador-geral da República.
Até a data de finalização deste trabalho, ambas pendiam de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O regime diferenciado de contratações, conforme preceitua o art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.462/2011,
objetiva ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; promover a
troca de experiências e tecnologias e o melhor custo-benefício; incentivar a inovação tecnológica; assegurar
tratamento isonômico entre os licitantes e selecionar a proposta mais vantajosa para o poder público.

Inicialmente, o RDC destinava-se às licitações e contratos de eventos esportivos. Todavia, a Lei nº


12.462/2011 foi, por diversas vezes, objeto de alterações legislativas, e atualmente, seu campo de incidência
é bem maior, de modo que, não mais se constitui um regime jurídico transitório e casuístico (HEINEN, 2015,
p. 10).

Diante da amplitude de seu objeto, cogita-se a possibilidade de que o RDC substitua a Lei Geral de
Licitações e Contratos. Todavia, deve-se levar em consideração que a lei instituidora do regime diferenciado
de contratações não foi idealizada para todo e qualquer tipo de licitação. Assim, Heinen (2015, p. 21) enfa-
tiza que o texto original do RDC não se adapta a qualquer tipo de licitação, haja vista ter sido idealizado para
aquisição de obras ou de serviços complexos, sendo de pouca adaptação à compra de objetos simples.

Destarte, se, de fato, o regime diferenciado alcançar os resultados para o qual foi criado, a saber, mais
eficiência nas contratações, melhores propostas, redução da improbidade, da morosidade e dos custos nos
procedimentos licitatórios, ele se tornará um forte candidato para substituição da atual Lei Geral de Licita-
ções, desde que, no entanto, se procedam com as alterações e complementações que se fizerem necessárias
para tornar o RDC um estatuto mais abrangente.

1. NATUREZA JURÍDICA DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES.

Muito já se discutiu sobre a natureza jurídica do RDC. Para entender o porquê da discussão, é im-
prescindível uma análise sobre a repartição de competência legislativa na estrutura federativa brasileira,
assim como a diferença entre lei federal e lei nacional. O art. 22 da Constituição Federal de 1988 congrega
o rol de competências privativas da União, entre as quais, destaca-se o inciso XXVII, o qual atribui à União a
competência para o estabelecimento de normas gerais sobre licitações e contratos.

Em que pese a controvérsia, da leitura do referido inciso conclui-se que a competência privativa da
União se restringe ao estabelecimento de normas gerais, cabendo aos Estados, independentemente de auto-
rização por meio de Lei Complementar, a edição de normas específicas sobre licitações e contratos.

Assim, em relação à matéria de licitações e contratos, a União só pode legislar de modo a vincular
todos os entes federados no estabelecimento de normas de caráter geral. Daí decorre a importância de con-
ceituar lei federal e lei nacional.

Conforme assevera Agra (2012, p. 527), a lei nacional disciplina os interesses de todas as entidades
federativas e, por isso, deve ter como requisitos a generalidade e a abrangência de todos os entes federativos.
Desta forma, conclui o autor, se a lei apenas causar efeitos no Distrito Federal ou em apenas um estado, não
deve ser considerada nacional. Já a lei federal se dirige exclusivamente aos órgãos e entidades que pertencem
à União.

Ainda na esteira de Agra (2012, p. 527), conclui-se que a lei nacional representa uma limitação à
autonomia legislativa dos demais entes. Por outro lado, essa medida se justifica diante da necessidade de
disciplinamento uniforme de matérias, que, devido a sua relevância, deve ser uniforme para todos os entes
que compõem a Federação.

Assim, devido as suas especificidades, a lei que disciplina o RDC não é considerada por alguns autores
como norma de caráter geral. Como consequência, estaria ela maculada por vício de inconstitucionalidade,
uma vez que, enquanto lei específica e federal, não poderia a mesma contrariar os dispositivos da Lei nº
8.666/1993 e apenas poderia ser dirigida à Administração Federal (CORRALO; CARDOSO, 2015, p. 19).

Heinen (2015, p. 5), dissertando sobre o assunto, escreve:

497
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A Lei nº 12.461/11 não foi clara em estabelecer a natureza jurídica das re-
gras do RDC. Não há dúvidas que foi estabelecida uma nova modalidade
licitatória, na linha do que já dispunha a Lei nº 8.666/93 – e suas várias espé-
cies de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite,
concurso, leilão e registro de preços) e a Lei nº 10.520/02 (que trata do rito
de pregão). A questão é definir quais os artigos tratariam de normas gerais e
quais deles seriam afetos somente ao ente federado União. Enfim, quais nor-
mas seriam de caráter nacional, e quais delas teriam a natureza de normas
federais (grifos no original).

Neste sentido, conclui-se, embora não se negue que a Lei nº 12.462/2011 possui alguns dispositivos
que apresentam um caráter mais específico, reitera-se que o referido diploma legislativo criou uma nova
modalidade licitatória, o que, por óbvio, só o pode ser feito mediante o exercício da competência privativa de
estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos conferida privativamente à União. Cabe ao Supremo
Tribunal Federal, então, a tarefa de distinguir quais dispositivos são gerais (aplicáveis, portanto, à União, es-
tados, Distrito Federal e municípios) e quais são específicos (aplicáveis apenas à União).

Na verdade, existe uma grande discussão doutrinária sobre o que vem a ser considerado ‘norma ge-
ral’ em tema de licitações e contratos. Aliás, a própria Lei nº 8.666/1993, contêm em seu bojo dispositivos que
já foram considerados específicos pelo Supremo Tribunal Federal. Conforme ensina Oliveira (2015, p. 64)
este Tribunal, em decisão cautelar proferida nos autos da ADI 927 MC/RS, concedeu interpretação conforme
a Constituição ao art. 17, I, “b”, e II, “b”, da Lei nº 8.666/1993, para esclarecer que a vedação insculpida nos
referidos dispositivos tem aplicação apenas no âmbito da União Federal. O mesmo entendimento foi aplicado,
no caso, em relação ao art. 17, I, “c”, e § 1º da mesma lei.

Nesta discussão, esclarecedoras são as palavras de Benjamin (2013, p. 298):

Não se olvida que, no mais das vezes, é árdua a tarefa de distinguir o que é
norma geral ou não em determinado diploma legislativo. A questão foi, in-
clusive, judicializada, quando o Supremo Tribunal Federal afastou o caráter
geral de alguns dispositivos da Lei nº 8.666/93, em que pese seu art. 1º con-
siderar como normas gerais todas as suas disposições. Nas palavras de Mar-
çal Justen Filho: “a fórmula ‘normas gerais’, utilizada pela Constituição no
tocante à licitação e contrato administrativo, não permite uma interpretação
de natureza ‘aritmética’. Ou seja, não é possível formular uma solução preci-
sa e exata destinada a identificar critérios abstratos e gerais para diferenciar
normas gerais de não gerais”.

Conclui-se que, embora contenha dispositivos que futuramente possam ser declarados específicos, a
lei que instituiu o RDC trata-se de verdadeira norma nacional, que vincula tanto a União quanto os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios.

2. REGIMES DE EXECUÇÃO CONTRATUAL E (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA CONTRATAÇÃO


INTEGRADA.

Para a devida compreensão dos diversos regimes de execução previstos nas Leis 8.666/1993 e
12.462/2011, é preciso entender o que é regime de execução. Assim, Altounian e Cavalcante (2014, p. 75)
conceituam que:

Regime de execução é a maneira pela qual a execução do projeto será aferi-


da, medida e paga. Seu conceito visa ao estabelecimento da distribuição de
responsabilidades e riscos entre os contratantes em face do que vier a ser en-
contrado no decorrer do empreendimento. Em regra, a discussão inicial está

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

na avaliação da opção pela qual os serviços realizados serão remunerados:


por preço certo e total (empreitada global) ou pelas quantidades efetivamen-
te executadas e aferidas (empreitada unitária).

O RDC contempla cinco modalidades de regime de execução: empreitada por preço unitário; em-
preitada por preço global; contratação por tarefa; empreitada integral e contratação integrada. Os quatros
primeiros são regimes já previstos na Lei nº 8.666/1993 – Lei Geral de Licitações e Contratos. A contratação
integrada, por sua vez, consiste em uma das maiores inovações do RDC, embora não se constitua novidade
no ordenamento jurídico, pois se trata de forma de execução já prevista no regime simplificado de licitação
da empresa pública Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, instituído pelo Decreto nº 2.745/1998.

Em se tratando de obras e serviços de engenharia, a Lei nº 12.462/2011 estabeleceu uma preferência


entre os regimes empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada. Apenas se a Ad-
ministração concluir pela inviabilidade dos referidos regimes de execução, poderá se utilizar da empreitada
por preço unitário ou da contratação por tarefa, através de ato devidamente fundamentado.

Heinen (2015, p. 53) assim define os diferentes regimes de execução:

Na empreitada por preço global, contrata-se a obra mediante pagamento


de preço certo e total. O pagamento pode ser feito ao final, quando do aca-
bamento da obra ou por meio de pagamentos periódicos, na medida em que a
ela se desenvolve, ou seja, no momento em que certas etapas são concluídas,
de acordo com o cronograma físico-financeiro. A sua utilização é recomen-
dada quando não se puder definir, com precisão, os quantitativos de serviço
a serem empregados no objeto contratual. [...] A empreitada por preço
unitário estabelece um regime de licitação no qual a execução da obra ou do
serviço é medida por unidade, ou seja, os pagamentos são efetuados a partir
do momento em que se concluem unidades do projeto total, de acordo com
o cronograma físico-financeiro. [...] Já a empreitada integral impõe que
o pagamento se dê somente quando a obra for entregue, e, principalmente,
em condições de funcionar plenamente. A execução compreende todas as
tarefas necessárias para a entrega do produto acabado e em pleno funcio-
namento, tudo isso a cargo da contratada. Esta deverá garantir, além disso,
a adequada segurança e os requisitos técnicos do objeto licitado. Enfim, não
basta entregar a obra, é preciso que ela funcione plenamente. A contrata-
ção por tarefa é estabelecida no momento em que se contratam serviços,
normalmente de pequena monta, com a entrega ou não de materiais, me-
diante pagamento de preço certo (grifos no original).

Percebe-se claramente que os diferentes regimes não se confundem, embora se notem algumas se-
melhanças entre eles. Para Dal Pozzo (2014, p. 75), a contratação por tarefa geralmente é utilizada em
contratações de mão de obras para pequenos trabalhos, com ou sem fornecimentos de materiais, sempre
ajustada por preço certo.

Contudo, como observa Carvalho Filho (2014, p. 184), a contratação por tarefa também se constitui
contrato de empreitada, já que o licitante vencedor procede com a execução do objeto contratado por sua
conta e risco. O que realmente diferencia esse regime de execução dos demais é o fato de que ele é apropria-
do para pequenas obras e serviços.

Dissertando sobre o tema, Diniz (2013) esclarece que as empreitadas apresentam em comum o fato
de que o licitante vencedor executa a obra ou serviço por preço determinado, por sua conta e risco. Dife-
rem-se entre si, basicamente, a partir de dois aspectos fundamentais: forma de remuneração e encargos
assumidos pelo contratado.

Dal Pozzo (2014, p. 75) assevera que, na empreitada por preço global, o preço é acertado conside-
rando o custo final da totalidade da obra ou do serviço, enquanto que, na empreitada por preço unitário, a

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

contratação acontece mediante preço certo de unidades determinadas da obra, embora a escolha do licitante
vencedor recaia sobre aquele que apresentar o menor preço global das unidades determinadas.

Em relação aos encargos assumidos pelo vencedor do certame, sabe-se que, na empreitada por preço
global, ele é muito maior. Neste particular, cabe considerar as observações de Justen Filho (2014, p. 162),
quando aduz:

Outra questão problemática envolve o risco assumido pelo particular. Algu-


mas vezes, pretende-se que a empreitada global imporia ao particular o de-
ver de realizar o objeto, de modo integral, arcando com todas as variações
possíveis. Vale dizer, seriam atribuídos ao contratado os riscos por eventuais
eventos (sic) supervenientes, que pudessem elevar custos ou importar ônus
imprevistos inicialmente. Essa concepção é equivocada, traduz enorme risco
para a Administração e infringe os princípios fundamentais da licitação.

Não se pode desconsiderar, no entanto, que, na empreitada global, o risco assumido pelo vencedor da
licitação é muito maior se comparado com licitações em que o regime de execução é o da empreitada por pre-
ço unitário. É por isso que a assunção dos riscos é embutida no valor das propostas oferecidas pelos licitantes.

Dal Pozzo (2014, p. 74) ainda destaca que a empreitada por preço unitário constitui a mais comum
das formas de execução de contratos, porém, tem sofrido fortes críticas por parte do Tribunal de Contas da
União, tendo em vista propiciar a ocorrência do “jogo de planilhas”, medida fraudulenta que permite o super-
faturamento de obras públicas. Nesse contexto, torna-se oportuno trazer à luz os ensinamentos de Heinen
(2015, p. 111):

Primeiramente, o “jogo de planilha” ou “jogo de preços” consiste em um


artifício utilizado pelos interessados, tomando por base projetos básicos de-
ficitários (v.g. que não prevêem os custos do objeto licitado com perfeição),
ou lastreados em informações privilegiadas. Eles conseguem saber anteci-
padamente quais os objetos que terão sua quantidade acrescida, diminuída
ou suprimido (sic) ao longo da execução da obra a ser licitada, a partir daí,
eles manipulam os custos unitários de suas propostas, aumentando-os para
itens que serão adicionados, e diminuindo para itens que serão subtraídos.
No entanto, durante a execução do contrato, percebe-se que o custo bara-
teia substancialmente justamente nos insumos que o licitante ofertou valores
elevados.

A empreitada integral, por sua vez, muito se assemelha a empreitada global – haja vista contratar-se
um empreendimento em sua integralidade. Difere-se desta, pois aqui o contratado entregará a obra em per-
feitas condições estruturais e operacionais para imediato funcionamento.

Já a contratação integrada, regime de execução previsto no RDC e cerne deste trabalho, se asseme-
lha à empreitada integral, com a diferença que, naquele, a Administração Pública contratante não elabora o
projeto básico, tarefa que caberá ao licitante vencedor.

Assim, Saadi (2014, p. 92) esclarece que:

Conceitualmente, a contratação integrada diz respeito ao regime de execu-


ção de avenças nas quais estão compreendidas, sob um mesmo instrumento,
a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução
de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-
-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para entrega
final do objeto.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Sabe-se que o projeto básico é considerado um instrumento muito relevante no contexto do plane-
jamento das licitações públicas, e, ao que parece, o Poder Público está abdicando do seu dever de planejar o
procedimento licitatório e a execução contratual. É por esse motivo que a contratação integrada tem sido tão
criticada.

Altounian e Cavalcante (2014, p. 75) assim definem projeto básico:

O projeto básico é o documento que define o objeto a ser licitado e que ga-
rante igualdade de competição entre os licitantes. É por meio dele que todos
os interessados em participar do certame terão subsídios para tomar as suas
decisões, envolvendo o preenchimento dos requisitos de habilitação exigidos
e os elementos a serem considerados na formação do seu preço.

Devido à relevância que é atribuída ao projeto básico, Campiteli (2006) explica que a falha na elabora-
ção desta peça pode ocasionar prejuízos para o Poder Público, já que possibilita a ocorrência do já explicitado
jogo de planilha. Para o autor a economicidade na execução das obras públicas está umbilicalmente atrelada
à precisão do projeto básico que serviu de apoio para o certame, haja vista que falhas de projeto ocasionam o
“jogo de planilhas”, que torna uma proposta com menor preço global falsamente mais vantajosa.

Em se tratando de contratações de obras, além do projeto básico, também é exigida a elaboração do


projeto executivo. Enquanto o projeto básico caracteriza a obra ou serviço de engenharia, o projeto executivo
detalha as definições do projeto básico. Assim, pode-se concluir que “[...] em apertada síntese, a diferença
entre o projeto básico e o executivo está no nível de detalhamento” (ALTOUNIAN; CAVALCANTE (2014,
p. 87). Isto é, o projeto executivo é o desdobramento do projeto básico, no que se refere à metodologia de
execução.

Como a entidade licitante não poderá iniciar o procedimento licitatório despida de um instrumento
que permita a devida individualização e caracterização do objeto a ser licitado, a Lei nº 12.462/2011 exigiu
a elaboração prévia de anteprojeto de engenharia caso se adote a contratação integrada. Dal Pozzo (2014, p.
83) ensina que:

[...] o legislador infraconstitucional estabeleceu que o instrumento convoca-


tório deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos
técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluin-
do a demonstração e a justificativa do programa, as condições de solidez, se-
gurança, durabilidade de prazo de entrega, estética do projeto arquitetônico
e os parâmetros de adequação ao interesse público, economia na utilização,
cuidados ambientais e acessibilidade (grifos no original).

Diante da vagueza dos conceitos utilizados, questiona-se até que ponto o anteprojeto de engenharia
se distingue do projeto básico (HEINEN, 2015, p. 63). Neste aspecto, não se pode esquecer que o objetivo
do legislador, ao instituir a contratação integrada, foi no sentido de diminuir as exigências quanto à definição
e as especificações da forma de execução do objeto, destarte, “[...] o grau de detalhamento e precisão desse
anteprojeto não será equiparável ao do projeto básico, mesmo porque, se assim o fosse, a inovação legislativa
não teria razão de ser” (RESENDE, 2011, p. 47-48).

É bem verdade que, não deverá a Administração Pública, ao se valer da contratação integrada, deixar
de oferecer elementos suficientes para individualizar e caracterizar o objeto da licitação no anteprojeto de
engenharia, sob pena de comprometer a lisura do certame e a factibilidade das propostas apresentadas.

É com essa preocupação que Heinen (2015, p. 43) adverte que a entidade licitante é desafiada a
elaborar um anteprojeto de engenharia que defina com nitidez e precisão o objeto da contratação. Por isso, o
mesmo autor adverte que esse regime de execução reclama uma maior capacitação dos recursos humanos
estatais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Tendo em conta tais preocupações, foram ajuizadas ações de controle de constitucionalidade em face
da Lei nº 12.462/2011, nas quais a contratação integrada foi apontada como inconstitucional. Segundo a
peça exordial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.645, a contratação integrada viola o art. 37, caput
da CF, especificamente os princípios da moralidade e isonomia, bem como ofende o princípio constitucional
da licitação (inciso XXI), que preconiza pelo julgamento objetivo (GARCIA, 2015).

No mesmo sentido, a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.655 aponta que a
não elaboração do projeto básico pela entidade licitante viola condições de disputa, e também os princípios
da competitividade, da isonomia e da impessoalidade, porque impediria o julgamento objetivo da licitação,
o que pode ocasionar graves desvios de verbas públicas em razão da deficiência e da insuficiência do citado
anteprojeto de engenharia (GARCIA, 2015).

No entanto, como ensina Reisdorfer (2011), a contratação integrada constitui um modelo de execu-
ção inovador, que pode resultar em ganhos de eficiência para a entidade licitante, dada à qualificação técnica
inerente aos concorrentes do certame que, na maioria dos casos, falece à Administração Pública. Além do
mais, a contratação integrada consubstancia-se numa possível solução para que haja comunicação efetiva
entre o projeto idealizado e a obra concluída, e isto porque o construtor vai participar da idealização e con-
cepção genérica da obra.

Corroborando com este pensamento, Heinen (2015, p. 41) assevera que:

A lógica da contratação integrada reside no fato de se intentar obter ganho


de eficiência no momento em que se transfere para o contratado o risco do
projeto, e as consequências financeiras decorrentes da imperfeição dele. Nas
obras e serviços de engenharia, tal negócio jurídico mostra-se inovador em
relação à lei geral. Aqui, o Estado está entregando ao particular uma tarefa
que tradicionalmente era sua, qual seja, a confecção do projeto básico (grifos
no original).

O autor também destaca que o planejamento da contratação é uma das fases mais burocráticas da
licitação. Como muitas vezes a Administração não tem o domínio técnico exigido, obras complexas acabam
não sendo concluídas. Assim, com a utilização da contratação integrada, o Poder Público passará este ônus
ao particular.

É unanimidade entre os doutrinadores que falta à Administração Pública capacidade técnica


suficiente para elaborar um projeto básico com o mínimo de qualificação e detalhamento que a lei exige,
principalmente em se tratando de obras complexas. Este é o pensamento compartilhado por Fernandes
(2012, p. 245), ao afirmar que a contratação integrada foi idealizada em face da dificuldade enfrentada pela
Administração Pública na elaboração de projetos básicos, eis que, muitas vezes, os servidores públicos não
possuem conhecimentos técnicos suficientes para produzir tais peças com o nível de detalhamento exigido
pela lei e os órgãos de controle, o que gera para a entidade licitante o dever de aceitar alterações dos preços
inicialmente pactuados e acarreta superfaturamento nas obras públicas.

O Advogado Geral da União, quando citado para defender a constitucionalidade da Lei nº 12.462/2011,
argumentou ser inócuo o entendimento de que apenas com a existência do projeto básico se teria requisitos
para uma contratação impessoal. Com efeito, a própria Lei nº 12.462/2011 em seu §2º do art. 9º, contempla
um rol de documentos técnicos que devem compor o anteprojeto e que visam permitir o julgamento objetivo
das propostas (GARCIA, 2015).

O que se pretende defender é que a elaboração do projeto básico pela entidade licitante, por si só,
não garante o sucesso da licitação e da execução da obra. Na verdade, a contratação integrada foi idealiza-
da justamente porque a Administração Pública não tem logrado sucesso nas licitações nas quais ela mesma
elabora o projeto básico.

502
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É por esse motivo que Jurksaitis (2014), ao refletir sobre, aponta os seguintes questionamentos: “De
que adianta um projeto básico que é completamente modificado uma vez vencida a licitação? E pior, com
custos para a Administração? Assim, vale a pena apostar em outras soluções para melhorar o sistema. Uma
delas é a contratação integrada.”

Boselli (2013), por sua vez, contribui para a temática enfatizando que, no plano do dever ser, a con-
tratação integrada não constitui afronta aos princípios constitucionais pertinentes à temática de licitações e
contratos, mesmo não deixando de considerar que é imperioso que se implemente uma fiscalização eficiente
para impedir que a prática desvirtue os conceitos dessa inovação legislativa.

Pelas razões expostas, conclui-se que a contratação integrada não implica afronta aos princípios da
moralidade, isonomia, competitividade, impessoalidade e julgamento objetivo. Trata-se de opção para que a
Administração Pública concretize o princípio constitucional da eficiência e economicidade na seara licitató-
ria.

No entanto, não se pode negar que, embora se trata de metodologia constitucional, a contratação
integrada pode encontrar problemas de operabilidade. Isso porque sua utilização demanda da própria Admi-
nistração Pública habilidades conceituais e técnicas nunca antes exigidas em matéria de licitações e contra-
tos.

3. ADOÇÃO DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA PELA INFRAERO.

De início cumpre destacar que o recorte deste trabalho recaiu sobre os contratos da Infraero já que
esta empresa pública, desde a publicação da Lei nº 12.462/2011 estava autorizada a se utilizar do RDC para
as licitações e contratos necessários à realização de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para
os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km das cidades sedes dos mundiais.

A referida empresa pública realizou 106 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC2, dos quais 74
foram homologados, o que corresponde a um percentual próximo a casa dos 70%, conforme sistematizado
na tabela a seguir:

SITUAÇÃO ATUAL: RDC Eletrônico RDC Presencial TOTAL

Homologada 39 35 74

Revogada 01 02 03

Deserta 00 01 01
Fracassada 15 08 23
Em andamento 05 00 05
TOTAL: 60 46 106
Tabela 1: Total de Licitações da Infraero sob a égide do RDC

A licitação RDC Presencial 013/DALC/SBCT/2012 foi a primeira e única licitação da Infraero sob o
regime da contratação integrada que chegou à fase de adjudicação do seu objeto. O referido certame tinha
como objeto o planejamento, gerenciamento e a execução integral de todas as fases do empreendimento de
reforma e ampliação do terminal de passageiros, do sistema viário de acesso e obras complementares do Ae-
roporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais/PR.

Tal procedimento administrativo foi objeto de fiscalização em auditoria realizada pela Secretaria de
Fiscalização de Obras Aeroportuárias e de Edificação – SecobEdif e foram constatadas diversas regularida-
des graves, a saber: 1) adoção de regime de execução contratual inadequado; 2) estimativa do custo total de

2  Editais, minutas contratuais e orçamentos disponíveis em: https://www.infraero.gov.br. Pesquisa realizada em 19/03/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

investimento deficiente; 3) restrição à competitividade da licitação decorrente de critérios inadequados de


habilitação e julgamento; 4) critério de julgamento inadequado em licitação regida pelo RDC, e 5) frustração
ao caráter competitivo do certame por violação ao princípio da isonomia entre os licitantes.

A primeira discussão que se travou por ocasião da auditoria foi em relação à pertinência da contra-
tação integrada para o objeto licitado. A auditoria fez suscitar uma reflexão sobre os objetos passíveis de ado-
ção da contratação integrada. Isso porque embora se leve em consideração que a Lei nº 12.462/2011 trate
a contratação como regime de adoção preferencial, é certo que a mesma lei traça hipóteses condicionantes
para sua utilização.

Desta feita, no Acórdão nº 1.510/2013 do TCU, ficou assente que não se pode conferir caráter ordi-
nário a um regime que apenas se amolda a situações específicas e excepcionais, assim, considerando que a
contratação integrada afasta uma das diretrizes do RDC que é o parcelamento do objeto, a excepcionalidade
na sua utilização deve ser assegurada. Além do mais, destacou-se que a utilização desse regime de execução
deve significar vantagens em termos técnico-econômicos, em detrimento dos outros regimes também tidos
como preferenciais.

Altounian e Cavalcante (2014, p. 289) explicam que foi o entendimento consubstanciado pelo TCU
no referido acórdão que levou a Presidente da República a adotar a MP nº 630/2013, convertida na Lei nº
12.980/2014, que, entre outras medidas, acresceu ao texto da Lei nº 12.462/2011 as hipóteses condicionan-
tes da contratação integrada, que não constavam da redação original do RDC, a saber: inovação tecnológica
ou técnica; possibilidade de execução com diferentes metodologias; ou possibilidade de execução com tecno-
logias de domínio restrito no mercado. 

Analisando a presença das justificativas técnicas e econômicas para a utilização da contratação in-
tegrada, o TCU concluiu que estas últimas não estavam presentes no caso concreto, o que poderia ensejar
a ocorrência de prejuízo para o Ente Público. Já do ponto de vista técnico, entretanto, justificada estava a
utilização da contratação integrada considerando a complexidade das obras e serviços a serem executados e
a manutenção da operacionalidade do aeroporto.

Outra justificativa utilizada pela Infraero para utilização da contratação integrada na referida licita-
ção foi a necessidade de atendimento dos prazos em virtude dos compromissos assumidos com o Governo Fe-
deral por ocasião dos eventos esportivos. Todavia, é consabido que a falta de planejamento das obras públicas
pode conduzir a contratações sem que o Poder Público tenha um balizamento mínimo daquilo que deseja ver
executado, o que é muito prejudicial.

A esse respeito, Motta e Bicalho (2012, p. 145) alertam para o efeito negativo que os “prazos políticos”
podem gerar nos custos das obras públicas. Segundo os autores, os chamados “regimes de urgência” impli-
cam um custo extra de, em média, 8% para os cofres públicos.

Assim, a Corte de Contas refutou o argumento da Infraero ao reafirmar que o prazo para entrega de
um empreendimento não pode figurar como justificativa para a escolha da contratação integrada.

Outra irregularidade apontada pelo próprio Ministro Relator do acórdão no procedimento licitatório
em análise diz respeito à ausência de matriz de riscos3. Para o Ministro Valmir Campelo o preço oferecido
pelos licitantes em qualquer regime de execução é proporcional aos riscos assumidos, assim, a distribuição
de responsabilidades de cada parte contratante se faz necessária, principalmente nos casos de adoção da
contratação integrada, com vistas a assegurar maior estabilidade e segurança jurídica.

A partir dos vários questionamentos levantados, a Corte de Contas observou que as irregularidades
apontadas poderiam ensejar a responsabilização dos agentes e até a declaração de nulidade do procedimento
licitatório. Entretanto, considerando que o objeto da licitação foi enquadrado como de alta complexidade,
considerando, ainda, o fato de que a contratação integrada se trata de inovação jurídico-legal inserida em um

3  “A ‘matriz de risco’ pode ser definida como o instrumento disposto no edital e no contrato, definidor de responsabilidade das
partes, em termos de ônus financeiro, decorrentes de fatos supervenientes à assinatura do ajuste que tenham potencial impacto
no adimplemento do objeto”. (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 264).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

contexto de interpretações controvertidas e carente de jurisprudência daquela Corte, optou-se por admitir-
-se, naquele caso concreto, a contratação integrada, todavia, a Infraero foi aconselhada para não utilizar a
referida metodologia contratual em obras comuns.

Assim, reitera-se que o próprio Tribunal de Contas da União reconheceu que o instituto da contrata-
ção integrada está inserido em um contexto de interpretações controvertidas, motivo que destaca o papel da
própria Corte de Contas para bem situar os gestores públicos no caminho da legalidade e no dever de bem
aplicar o dinheiro público e a necessidade de se discutir e aprofundar os debates já existentes sobre a temá-
tica em tela.

CONCLUSÃO

A lei que instituiu o RDC trouxe consigo uma esperança de atribuir eficiência, efetividade e agilidade
aos processos de contratações públicas. Entre os institutos consagrados pela nova lei destaca-se a contratação
integrada, regime de execução de obras que, em linhas gerais, transfere para o particular contratado a tarefa
de elaborar os projetos básicos e executivo, executar a obra em sua totalidade, realizar os testes pertinentes
e entregá-la ao poder público em plenas condições de funcionamento.

Indo ao encontro do que tem sido defendido pelos estudiosos da temática, a contratação integrada
tem sido utilizada com parcimônia pela seara pública. Isso, todavia, não denota que o instituto é ineficiente.
Ao contrário, trata-se de técnica inovadora que, se utilizada corretamente, poderá gerar benefícios para o
Poder Público.

Contudo, cuida-se de metodologia de utilização restrita, que exige a elaboração de um anteprojeto de


engenharia que especifique o objeto licitado e defina de forma clara as responsabilidades do contratante por
eventos imprevisíveis, e, ainda, deve ser justificada do ponto de vista técnico e econômico.

Tais exigências reforçam que a Lei nº 12.462/11, ao instituir a contratação integrada, privilegiou os
princípios da moralidade, impessoalidade e julgamento objetivo e, nesse aspecto, sua constitucionalidade
deve ser reconhecida. Portanto, conclui-se que a contratação integrada está atrelada à busca pela eficiência
nos processos de contratações públicas, pois foi idealizada como resposta ao planejamento falho/incompleto,
especialmente em contratações de obras complexas.

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506
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

SAADI, Mário. A contratação integrada e o planejamento das licitações: hipóteses de utilização e distribuição de riscos
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ciado de contratações públicas – RDC (Lei nº 12.462/11; Decreto nº 7.581/11). Belo Horizonte: Fórum, 2014.
A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA
ORDEM CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA:
O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO

Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo


Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2016). Áreas de interesse: Direito
Constitucional; Direito Comparado; Teoria Geral do Direito.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A constituição australiana e o impasse federativo na construção de um


consenso em torno da proteção dos diretos fundamentais; 2. As declarações de direitos editadas pelo
estado de Vitória e pelo Território da Capital Australiana e o modelo de controle de constitucionalida-
de fraco; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A ordem constitucional australiana apresenta um panorama que poderia parecer estranho aos
olhos de um jurista brasileiro: possui, em algumas de suas unidades federativas, uma proteção de direitos
mais ampla do que aquela prevista na constituição federal. Conforme apontado por Bruce Stone,

Mesmo várias décadas de militância falharam em produzir uma declaração


nacional de direitos na Austrália, deixando aquele país, como é agora rotinei-
ramente observado, na posição de única democracia madura que não conta
com tal instrumento. (Stone, 2013, p.1)

Trata-se de um fenômeno peculiar cujos contornos gerais serão apresentados pelo presente trabalho.
Mas o que estaria por detrás de tal quadro? Existiria alguma dificuldade em alcançar um consenso no que
tange ao alcance e especificação dos direitos aptos a receber proteção? A presença de declarações de direitos
regionais indicaria que ali existem pautas emancipatórias locais, tais como a afirmação de direitos linguísticos
de minorias1? Este trabalho busca investigar tal fenômeno, lançando um olhar sobre as origens da consti-
tuição australiana e o arranjo federativo escolhido por aquele país. Será visto como a escolha dos termos de
um dado pacto federativo pode influenciar o surgimento de um impasse no que concerne à ampliação do
regime de proteção de direitos fundamentais. Adicionalmente, será visto como o imobilismo nacional sobre
a matéria incentivou a adoção de iniciativas regionais. Ao final, são apresentadas conclusões e perspectivas
de trabalhos futuros.

1  Um exemplo clássico de uma pauta emancipatória local foi a experiência de Quebec no Canadá, e sua tentativa de afirmar os
direitos linguísticos dos francófonos através da Charte de la langue française promulgada em 1977, alguns anos antes promulgação
da atual constituição canadense em 1982.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. A CONSTITUIÇÃO AUSTRALIANA E O IMPASSE FEDERATIVO NA CONSTRUÇÃO DE UM


CONSENSO EM TORNO DA PROTEÇÃO DOS DIRETOS FUNDAMENTAIS

A constituição australiana data do início do séc. XX e suas origens coincidem com o próprio pro-
cesso de emancipação política da Austrália em relação à metrópole britânica. Assim como ocorreu nos EUA,
a federação australiana foi formada a partir de colônias britânicas distintas. Mas ao contrário do que ocorreu
por ocasião do processo de independência norte-americano, não houve ruptura traumática entre os colonos
australianos e o Reino Unido. Ao revés, a emancipação da Austrália deu-se com aquiescência do Reino Unido
o que, como será visto mais adiante, pode vir a explicar alguns traços do desenho constitucional adotado por
aquele país.

Um exame da constituição australiana demonstra que seus redatores optaram por uma carta rela-
tivamente lacônica no quesito de direitos fundamentais. Textualmente, estão previstos os seguintes direitos
de forma expressa: justa compensação em face de desapropriação estatal (s. 51, xxxi)2; liberdade religiosa
(s. 116); livre circulação de pessoas entre as unidades da federação (s. 92); julgamento pelo tribunal do júri
no caso de processos criminais (s. 80); não discriminação em razão do estado de origem (s. 117)3. Conforme
anota Cheryl Saunders (2010, p.120), até a própria redação utilizada por tais direitos é sintomática: os dis-
positivos tendem mais a expressar limites à atuação do governo do que propriamente direitos dos indivíduos.
E, neste sentido, há ainda um agravante, os dispositivos citados representam um limite à atuação do governo
federal, não lançando sua proteção contra a ação dos estados. Elaborar tais disposições constitucionais como
limites ao poder estatal é decerto uma diferença retórica sutil, mas que revela a relativa despreocupação dos
constituintes com a matéria. Um outro traço peculiar, que aponta na mesma direção, diz respeito à localiza-
ção dos direitos: um exame rápido mostra que não se encontram previstos em título ou capítulo próprio, mas
espalhados ao longo do texto constitucional.

Qual seria a causa para tal economicidade e despreocupação no que tange à elaboração de um rol de
direitos fundamentais? Algumas respostas são possíveis a partir do exame da gênese da constituição de 1900
e, em especial, do papel que o pacto federativo forjado pelos constituintes desempenhou na positivação dos
direitos fundamentais.

Aspectos práticos impulsionaram a formação da federação australiana: os diferentes representantes


das colônias estavam mais preocupados em viabilizar um governo único capaz de fazer frente às ameaças
expansionistas de alemães e franceses na região do que propriamente produzir um documento impregnado
de aspirações emancipatórias. Desta forma, mais importante do que prever expressamente no texto consti-
tucional os direitos titularizados pelos indivíduos era garantir os “direitos dos estados” frente ao governo cen-
tral. Além disso, é necessário relembrar algo já referido anteriormente: o processo de emancipação política
australiana ocorreu sem que houvesse uma ruptura total dos laços que que uniam os colonos à metrópole. A
influência britânica fazia-se sentir em vários aspectos e, entre eles, há de se considerar o influxo da própria
cultura constitucional inglesa, que à época tecia loas ao princípio da “soberania do parlamento”. Tal princí-
pio, que alcançou sua formulação clássica a partir da obra de Dicey (1915), tinha por corolário a primazia
do legislativo sobre outros atores institucionais. Sob a influência desta doutrina, seria de se esperar que a
proteção dos direitos fundamentais ficasse a cargo do próprio legislativo. Os representantes eleitos, vincula-
dos que estavam a ideia de um governo parlamentar responsável, seriam os melhores guardiões dos direitos.
Daí ser desnecessário tanto sua positivação em sede constitucional quanto a previsão expressa do controle
jurisdicional de constitucionalidade (French, 2010, pp.773-775).

Se a ausência de um rol significativo de direitos na constituição australiana pode ser justificada pela
forma como ocorreu a sua gênese, o que justificaria a manutenção de um cenário como este nos dias atuais?

2  As referências que se seguem, entre parênteses, dizem respeito às respectivas Seções da constituição australiana de 1900.
3  Além destes direitos, a doutrina australiana reconhece que alguns outros podem ser extraídos implicitamente dos princípios
adotados pela constituição, notadamente no que diz respeito à consagração de uma democracia representativa como forma de
governo e à previsão de um judiciário independente. Assim, extrai-se da constituição, por exemplo, o direito ao voto (mas não ne-
cessariamente o sufrágio universal) e o direito à liberdade de comunicação política, bem como o direito ao devido processo legal
(Saunders, pp. 122-124).

508
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No que tange a proteção de direitos, a carta australiana praticamente não sofreu modificações nos seus mais
de cem anos de vigência. Esta estabilidade do texto constitucional pode ser em parte explicada pelo próprio
procedimento de emenda à constituição que exige a formação de um amplo consenso nacional sobre a alte-
ração eventualmente proposta. Com efeito, a sessão 128 da constituição australiana, ao regular o processo de
emenda, estabelece que qualquer alteração do texto constitucional deva ser: (1) aprovada pela maioria abso-
luta em ambas as casas legislativas e (2) submetida à consulta popular nacional, somente logrando aprovação
se referendada pela maioria dos eleitores na maioria dos estados e territórios. Este último requisito é deno-
minado pela doutrina australiana como “regra da dupla maioria”, pois exige que não somente a maioria dos
eleitores, nacionalmente considerados, aprovem a proposta de mudança, como que tal proposta seja referen-
dada por maiorias individualmente consideradas na maioria das unidades da federação4. O referido processo
de emenda à constituição exige, portanto, a construção de um amplo consenso nacional sobre dada matéria
para fins de sua inclusão no texto constitucional5 e, até o momento, não foi possível chegar a tal consenso
no que diz respeito à ampliação do rol de direitos fundamentais previstos constitucionalmente. A última das
tentativas ocorreu em 1988 (Saunders, p.129), quando os eleitores australianos rejeitaram, categoricamente,
uma proposta que visava constitucionalizar alguns direitos fundamentais: não houve sequer a aprovação pela
maioria nacional, havendo a proposta sido rejeitada por 69.21% dos eleitores (Bennett; Brennan, 2000, p.4).

As tentativas de ampliação do regime de proteção de direitos através de diplomas legislativos ordiná-


rios também não lograram êxito até o presente momento. A ideia de utilizar uma lei federal para positivar
um rol amplo de direitos fundamentais é vista com ressalva pelas unidades da federação e vem encontrando
resistência ao longo dos anos no Senado (Galligan, Knopff; Uhr, 1990, p.53) daquele país, pois (1990, p.57),
“embora em cada uma das oportunidades tenha havido diversas razões para o insucesso, (...) questões fede-
rais têm representado elementos importantes da controvérsia” (Galligan, Knopff; Uhr, 1990, p.57).

Assim, para compreender tal resistência, é necessário discorrer brevemente sobre como a constitui-
ção australiana disciplinou a divisão de competências legislativas entre os estados e o governo federal. Assim
como ocorre nos EUA, os estados membros da federação australiana possuem ampla competência legiferan-
te, podendo legislar em áreas como direito penal, civil, processual penal e processual civil, por exemplo. Isto
porque a competência legislativa do parlamento federal está prevista expressamente na seção 51 da cons-
tituição, havendo ficado a cargo dos estados uma ampla competência residual. Diante deste cenário, uma
dificuldade inicial a ser superada é a ausência de uma previsão expressa, no rol trazido pela referida sessão
51, de permissão para legislar sobre matéria “direitos fundamentais”. No entanto, a High Court australiana,
que é a instância máxima do judiciário daquele país, já reconheceu que a competência para editar leis que di-
gam respeito a relações exteriores (s. 51, xxix)6 comporta uma interpretação bastante extensiva. Assim, seria
viável que o legislativo federal editasse diploma que ampliasse o regime de proteção de direitos fundamentais
na Austrália sob o argumento de que, desta forma, estaria meramente dando cumprimento aos tratados de
direitos humanos com os quais já houvera se comprometido anteriormente. Mas o que explicaria a resistên-
cia, principalmente do Senado australiano, a tal estratégia de proteção de direitos? Uma resposta pode ser
encontrada na seção 109 da constituição, que trata da hipótese de conflito entre leis estaduais e federais. O
dispositivo prevê que “quando a lei de um Estado é inconsistente com uma lei do Governo Federal, a última
deve prevalecer, ficando a primeira inválida na medida de sua inconsistência”7. Isto significa que, do ponto
de vista hierárquico, as leis federais se sobrepõem aos diplomas estaduais. Qual o impacto tal disposição teria

4  Section 128: This Constitution shall not be altered except in the following manner:
The proposed law for the alteration thereof must be passed by an absolute majority of each House of the Parliament, and not less
than two nor more than six months after its passage through both Houses the proposed law shall be submitted in each State and
Territory to the electors qualified to vote for the election of members of the House of Representatives. (...) And if in a majority of
the States a majority of the electors voting approve the proposed law, and if a majority of all the electors voting also approve the
proposed law, it shall be presented to the Governor-General for the Queen’s assent.
5  Segundo Chreryl Saunders (2010, p.129), durante os mais de 100 anos de vigência da constituição australiana, apenas 8
emendas ao texto constitucional foram editadas.
6  Section 51: The Parliament shall, subject to this Constitution, have power to make laws for the peace, order, and good govern-
ment of the Commonwealth with respect to: (...)
(xxix) external affairs;
7  Section 109: When a law of a State is inconsistent with a law of the Commonwealth, the latter shall prevail, and the former
shall, to the extent of the inconsistency, be invalid.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

na eventualidade do governo federal editar uma “declaração de direitos”, fazendo uso de sua prerrogativa
constitucional de legislar sobre relações exteriores (s. 51, xxix)? Tal cenário poderia vir a instaurar uma
desconfortável assimetria federativa no ordenamento australiano: a legislação federal, por gozar de posição
hierárquica superior em relação aos estados, funcionaria para estes como uma lei quase constitucional, vin-
culando-os do ponto de vista jurídico. Mas, por outro lado, o governo federal não estaria totalmente vinculado
à legislação que expedisse já que, tendo em vista tratar-se de diploma ordinário, poderia facilmente criar
exceções através de alterações legislativas posteriores (Stone, 2013, p.11). Esta perspectiva de desequilíbrio
federativo é provavelmente responsável pelo naufrágio de tentativas de edição de uma lei federal sobre a ma-
téria, notadamente no Senado australiano.

Diante do fracasso na construção de um consenso nacional sobre a questão, algumas unidades fede-
rativas resolveram editar declarações de direitos próprias. A seguir, serão analisadas as iniciativas empreen-
didas Território da Capital Australiana e pelo estado de Vitória.

2. AS DECLARAÇÕES DE DIREITOS EDITADAS PELO ESTADO DE VITÓRIA E PELO TERRITÓRIO DA


CAPITAL AUSTRALIANA E O MODELO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO

O modelo de proteção de direitos positivado pelo estado de Vitória e pelo Território da Capital Austra-
liana teve por inspiração experiências constitucionais de outros ordenamentos. O paradigma adotado segue,
em linhas gerais, os mesmos termos da sistemática neozelandesa e britânica de fiscalização de constituciona-
lidade: promulgação de um diploma legislativo de caráter ordinário onde há uma enumeração extensiva de
direitos e previsão de mecanismos de fiscalização a cargo tanto das instâncias políticas quanto do judiciário,
sem que, no entanto, possa este último declarar a inconstitucionalidade de atos legislativos. Esse modelo é
uma variante específica de uma categoria que Mark Tushnet (2008) denomina controle de constitucionali-
dade fraco (weak-form of judicial review).

Segundo Stephen Gardbaum (2013, pp.28-30) são quatro as características institucionais dos sis-
temas de controle de constitucionalidade fraco: (a) positivação dos direitos fundamentais, quer com sta-
tus constitucional quer apenas como legislação ordinária; (b) fiscalização prévia da constitucionalidade das
normas pelo poder legislativo; (c) fiscalização judicial da constitucionalidade, exercido posteriormente à
promulgação mas sem caráter de definitividade; e, finalmente, (d) a possibilidade do legislativo sobrepor-se
à interpretação judicial por algum mecanismo que não exija quórum especifico. A presença destes traços
característicos seria responsável por diferenciar os sistemas de controle fraco tanto do paradigma de supre-
macia legislativa (a e c), quanto de um cenário de supremacia judicial (d).

O Território da Capital Australiana foi a primeira unidade da federação adotar uma declaração de
direitos, o Human Rights Act de 2004 (doravante HRA). Dois anos depois, o estado de Vitória fez o mesmo
através da Charter of Human Rights and Resposibilities Act de 2006 (doravante CHRR). Nesta seção serão
explicitados os contornos gerais do regime de proteção de direitos criados pelos dois diplomas. A disciplina
normativa trazida pelos dois sistemas é bastante semelhante, razão pela qual a presente exposição terá por
objeto as duas declarações, fazendo menção às especificidades de cada uma delas quando necessário.

De uma maneira geral, ambas as declarações trazem como conteúdo um conjunto de direitos que
coincide com aqueles previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Gardbaum, 2013, p.257).
A especificidade aqui fica por conta do HRA, que faz menção expressa a um direito de caráter social, o di-
reito à educação, em sua seção 28. As duas declarações, entretanto, têm a forma de diplomas legislativos
ordinários, isto é, não gozam de precedência hierárquica sobre as demais leis editadas pelas unidades fede-
radas. Isto significa que, na prática, seus dispositivos podem ser revogados pelas mesmas maiorias legislativas
ordinárias responsáveis por sua edição. Não há, desta forma, uma vinculação formal do legislador quanto à
observância dos direitos previstos nas duas declarações. Cada um dos diplomas representa uma espécie de
“carta de intenções” legislativa, na qual são enumerados os direitos fundamentais a serem protegidos, mas
que não traz qualquer obrigatoriedade quanto ao respeito às suas disposições. O caráter ordinário das decla-
rações também limita a atuação do judiciário na espécie, pois diplomas posteriores que porventura possam
vir a violar os direitos enumerados não poderão ter sua aplicação simplesmente afastada. Mas este quadro

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

não faz com que as duas iniciativas representem apenas e tão somente uma mera enumeração de direitos:
os dois diplomas possuem um conjunto de mecanismos destinados à promoção de uma cultura judicial e
legislativa de proteção aos direitos fundamentais.

Ambas as declarações disciplinam que o processo legislativo deve prever necessariamente alguns
cuidados a fim de que seja garantido o respeito ao rol de direitos elencados. Em primeiro lugar, exige-se que,
quando da introdução de um projeto de lei, seja apresentada uma declaração de compatibilidade pelo ator
político a quem cabe a iniciativa legislativa. O objetivo deste requisito é dúplice: garantir que o detentor da
iniciativa seja constrangido pela necessidade de justificação prévia e que eventuais antinomias com o regime
de direitos fundamentais sejam dadas a conhecer no início do processo legislativo. Assim, a CHRR prevê,
em sua seção 28, que um membro do parlamento que deseje introduzir um projeto de lei deve fornecer uma
declaração na qual conste sua opinião sobre a compatibilidade do referido projeto com os direitos. O HRA,
por sua vez (s.37), prevê que tal declaração deve ser fornecida pelo Procurador-Geral do Território (Attorney-
-General). Em ambos é exigida uma exposição de razões que fundamente a compatibilidade do projeto e, se
for o caso, quais são os pontos de inconsistência a serem melhor escrutinados durante o curso da atividade
parlamentar. Ainda na seara do processo legislativo, os dois diplomas preveem que eventuais inconsistências
sejam reportadas pelas comissões parlamentares que venham a se debruçar sobre os projetos (s.30, CHRR;
s.38, HRA). Mas a não observância das disposições acima durante o processo legislativo não acarreta qual-
quer vício formal para a lei eventualmente editada. É o que prevê expressamente tanto a seção 29 da CHRR
e a seção 39 do HRA. Por fim, a CHRR traz uma disposição peculiar: sua seção 31 dispõe que o parlamento
estadual poderá, se assim considerar necessário, editar leis que violem expressamente o regime de direitos
fundamentais através de uma declaração expressa nesse sentido (override declaration). A veiculação da von-
tade parlamentar neste sentido deve ser direcionada ao dispositivo da lei que eventualmente viole os direitos
fundamentais ou, se for o caso, ao diploma legislativo como um todo. Em qualquer uma das situações, a over-
ride declaration terá duração de cinco anos (sujeita à renovação), durante os quais nenhuma das disposições
contidas na CHRR produzirão efeito sobre o(s) dispositivo(s) editado(s).

Tanto a CHRR quanto o HRA disciplinam uma etapa judicial de fiscalização da compatibilidade das
leis com os direitos nelas previstos. Como referido anteriormente, por se tratar de diplomas legislativos ordi-
nários, não há a possibilidade do judiciário afastar a aplicação de diplomas eventualmente conflitantes com as
duas declarações. O que é previsto, entretanto, é uma fiscalização mitigada, através de um dever de interpre-
tar os diplomas legais em consonância com o regime de direitos. Assim, em sua seção 32, a CHRR disciplina
que “até onde seja possível fazê-lo consistentemente com o seu propósito, todos os dispositivos legais devem
ser interpretados de maneira compatível com os direitos humanos”. A seção 30 do HRA tem praticamente o
mesmo teor. Ambas as disposições são um exemplo do que Mark Tushnet (2008, p.25) denomina mandado
interpretativo, através do qual se instrui o poder judiciário a interpretar os demais diplomas legais de maneira
consistente com os direitos fundamentais. Ou seja, diante de uma pluralidade de interpretações possíveis,
o julgador deve preferir aquela que melhor se compatibiliza com os direitos fundamentais. Este mecanismo,
semelhante à conhecida técnica da interpretação conforme, possui dois limites: o propósito legislativo e na
literalidade do texto sob exame. Ou seja, quando aplicável, o mecanismo é dotado de um enorme potencial
para que o judiciário impeça violações aos direitos fundamentais. Mas ainda assim existirão hipóteses nas
quais a incompatibilidade legislativa não poderá ser solucionada desta forma por não haver, na espécie, múl-
tiplas interpretações candidatas. Nestes casos, tanto o HRA quanto a CHRR põem a disposição do judiciário
um outro mecanismo: a declaração de incompatibilidade (HRA) e a declaração de interpretação inconsisten-
te (CHRR). Apesar da divergência de nomenclatura, o espírito das duas espécies de declaração é o mesmo:
fornecer ao judiciário uma ferramenta através da qual possa sinalizar que encontrou uma antinomia intrans-
ponível pela via interpretativa. Entretanto, não há, na hipótese, qualquer efeito prático do ponto de vista da
vigência do diploma sob exame ou para as partes que compõem o processo (CHRR, s.36(5); HRA, s32(3)).
As duas declarações de direitos preveem ainda a possibilidade de intervenção do Procurador-Geral da uni-
dade federada em qualquer feito no qual seja discutida a compatibilidade de um dado diploma legal com as
respectivas declarações (CHRR, s.34; HRA s.35). Tal participação é justificada pelo fato do Procurador-Geral
atuar como representante legal do governo em juízo, podendo vir a defender a compatibilidade da lei caso
entenda necessário.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Um exemplo prático desta etapa de controle judicial pode ser dado a partir de um precedente deci-
dido pela Suprema Corte do Território da Capital Australiana em 20108. No caso caso concreto, Isa Islam,
acusado de tentativa de homicídio, insurgiu-se contra a sua prisão cautelar, pleiteando que lhe fosse conce-
dida fiança a fim de que pudesse responder às acusações em liberdade. A legislação territorial em vigor sobre
concessão de fiança disciplinava que nos casos de acusação pela prática de homicídio, só poderia receber o
benefício aquele que conseguisse demonstrar a existência de “circunstâncias especiais ou excepcionais” na
espécie (seção 9C do Bail Act 1992)9. O réu alegou que o excesso de prazo de sua prisão cautelar (dez meses)
poderia ser considerado uma circunstância excepcional a seu favor e, subsidiariamente, que a seção 9C do
Bail Act deveria ser interpretada em conformidade com o disposto na seção 18(5) do HRA, que garantiria
o seu direito de responder ao processo em liberdade10. A Suprema Corte Territorial, entretanto, considerou
que, tendo em vista o propósito do legislador ao editar o Bail Act de 1992, não haveria uma “interpretação
consistente” ao alcance da Corte, sendo todos os sentidos normativos possíveis do dispositivo incompatíveis
com as disposições do HRA. Assim, afastou o pleito de fiança elaborado pelo réu e emitiu uma declaração de
incompatibilidade atestando ser impossível conciliar o diploma legislativo atacado com o direito à liberdade
previsto no Human Rights Act. Observe-se que, como já mencionado, de tal declaração judicial não foi possí-
vel extrair qualquer efeito prático, tanto no que tange ao réu (que continuou sob prisão cautelar) quanto em
relação ao Bail Act (cujo seção 9C continuou a vigir).

A terceira fase da sistemática prevista pela CHRR e pelo HRA é a reconsideração legislativa. O ob-
jetivo é permitir que o legislador possa corrigir eventuais violações de direitos detectadas pelo judiciário na
fase anterior. Assim, por exemplo, a seção 37 da CHRR prevê que, após o recebimento de uma declaração de
interpretação inconsistente, o ministro de governo responsável pelo diploma legal tido por incompatível deve
preparar uma resposta à declaração judicial no prazo de seis meses. A resposta deve ser então encaminhada
a cada uma das casas do parlamento bem como publicada na imprensa oficial do estado (CHRR, s.73). Da
maneira semelhante, o HRA disciplina que cabe ao Procurador-Geral do Território encaminhar à Assembleia
Legislativa, no prazo de seis dias úteis, qualquer declaração de incompatibilidade advinda do judiciário. Adi-
cionalmente, fica a cargo mesmo Procurador-geral elaborar e apresentar, à mesma Assembleia, uma resposta
no prazo de seis meses contados a partir do momento em que a casa legislativa teve ciência da declaração
judicial (HRA, s.33). Estes dispositivos garantem que o poder legislativo da respectiva unidade da federação
estará de posse dos subsídios necessários para, se quiser, sanar a incompatibilidade apontada pelo judiciário.
Não existe, entretanto, qualquer obrigação de fazê-lo, trata-se de mero convite à correção da norma. Um
exemplo de inação legislativa ocorreu justamente no caso da declaração de incompatibilidade da seção 9C do
Bail Act analisada mais acima: apesar da resposta elaborada pelo Procurador-Geral recomendar mudanças
legislativas tendentes a compatibilizar o regime legal da concessão de fiança com o HRA, o legislativo territo-
rial não promoveu, até o presente momento, as alterações sugeridas.

CONCLUSÃO

No início do trabalho, indagou-se se o fenômeno australiano poderia ser justificado a partir de uma
dificuldade na identificação dos direitos fundamentais, ou mesmo se existiriam pautas locais emancipatórias
aptas a estimular a adoção de declarações regionais. A resposta, como foi visto, é negativa. Os direitos tute-
lados pelas declarações do estado de Vitória e do Território da Capital Australiana são direitos consagrados
internacionalmente, típicos direitos de primeira geração, cuja redação nos respectivos instrumentos pratica-
mente coincide com aquela apresentada no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Viu-se que os termos nos quais é celebrado um pacto federativo podem influenciar sobremaneira a
sorte do regime de proteção de direitos. Embora tal lição possa parecer estranha em um contexto como o

8  In The Matter of an Application for bail by Isa Islam [2010] ACTSC 147, julgado em 19 de novembro de 2010.
9  Bail Act 1992, Section 9C(2): A court or authorised officer must not grant bail to the person unless satisfied that special or
exceptional circumstances exist favouring the grant of bail.
10  HRA, Section 18(5): Anyone who is awaiting trial must not be detained in custody as a general rule, but his or her release
may be subject to guarantees to appear for trial, at any other stage of the judicial proceeding, and, if appropriate, for execution of
judgment.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

brasileiro, no qual os conflitos federativos sobre direitos são apenas latentes (para não dizer inexistentes),
esta não é a realidade no direito comparado. A experiência australiana demonstra que os contornos da divisão
de competências e a relação hierárquica entre o direito federal o direito estadual podem levar a um impasse
na construção de uma agenda nacional sobre o tema. Não fossem tão rígidos os requisitos para modificação
da constituição australiana, talvez um consenso sobre a questão já pudesse ter sido alcançado. Mas a inviabi-
lidade prática da edição de uma emenda constitucional devolve a matéria para a arena política cotidiana, na
qual o entrave federativo parece estar longe de ser solucionado.

A adoção de declarações de direitos em nível estadual/territorial foi, desta forma, a solução possível
no contexto australiano. Há quem diga, como Gardbaum, que um modelo de controle fraco é capaz de alcan-
çar o equilíbrio normativo entre os paradigmas de supremacia judicial e supremacia legislativa. Não se trata
do melhor dos mundos para os entusiastas de uma jurisdição constitucional atuante. Com efeito, confere-se
ao judiciário um papel que, em certos momentos, poderá ficar adstrito a de mero coadjuvante, haja vista que
ausência de uma pluralidade de sentidos normativos restringirá o seu campo de ação. Mas mesmo tais entu-
siastas não podem negar que “alguma proteção” é melhor do que “nenhuma proteção”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS:


O CASO DE “RAS GERALDINHO”

Mateus Rafael de Sousa Nunes


Graduado em Licenciatura Plena em História ela Universidade de Pernambuco (UPE),
Bachareal em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Bacharelando em Direito e Mestrando em História pela UFPE.

A história do Brasil está intrinsecamente ligada à história da Cannabis. De acordo com Carlini (2006),
a planta chega ao país nas caravelas da expansão marítima portuguesa, que eram, elas próprias, feitas do
cânhamo. De acordo com o autor, a planta foi facilmente incorporada aos ritos indígenas e afro-brasileiros.
Por agrega-se à cultura afro-brasileira, a planta fica conhecida como “Fumo D’angola”.

Porém, a simples atribuição da proveniência angolana não é suficiente para determinar a sua origem,
tendo em vista que as fontes oficiais das quais tal análise foi desenvolvida não são confiáveis. Mott (1986)
argumenta que, nos primórdios do escravismo transatlântico, os escravos vinham completamente nus para o
Brasil, não sendo possível trazer estas sementes em “bonecas de pano” e “tangas”, como acreditava a histo-
riografia até então. Apesar dos fortes indícios de sua proveniência européia, esta não se dá, necessariamente,
em detrimento de uma possível ascendência africana e/ou intercruzamentos entre espécies.

A origem da Cannabis é imprecisa, mas o que é relevante na análise não é esta questão, e sim, a utili-
zação da repressão das várias práticas e usos da planta como concentração de poder e ampliação da coerção
por parte do Estado. Tal coerção incide, indubitavelmente, sob os estratos menos abastados, geralmente de
ascendência negra. Configura-se, igualmente, como uma forma eficaz de coagir tais estratos da população
à não participação de movimentos de lutas por direitos civis, políticos e sociais, do mesmo modo que a atri-
buição da origem da planta à África está intrinsecamente ligada à estigmatização dessa parcela da população
brasileira e ao processo político de higienização social.

Mesmo quando há o reconhecimento legal das religiões afro-brasileiras, este só é feitocom a ressalva
de que os ritos eliminassem o uso ritualístico da Cannabis, sendo assim, substituída pelo tabaco - já seguindo
uma lógica proibicionista estadunidense, como alega Aureliano (2004). Esta política introjetou tantas asso-
ciações de nocividade à maconha, que a repressão ocorreu e continua ocorrendo independentemente da
espécie de Cannabis considerada.

O uso sagrado da Cannabis remete a tempos imemoriais. Dos usos do cânhamo (anagrama de maco-
nha) como sacramento, o rastafarianismo é apenas uma das mais variadas expressões religiosas que reconhe-
cem na planta de poder, a autenticidade da aplicabilidade do conceito de enteógeno ( que desperta o deus
em quem a utiliza). Podemos citar várias outras expressões religiosas que possuem o mesmo entendimento
como: correntes do Santo Daime, o candomblé, o xintoísmo, o budismo, o judaismo e o cristianismo, que
reconhecem em seu livro sagrado a liberalidade do uso da planta e os mais variados ritos nativos americanos
(que chamam a planta de dirijo), são alguns exemplos de reconhecimento na Cannabis em uma planta sa-
grada. Não por acaso a origem da palavra maconha remete a ma + konia (mãe+ sagrada).

Os discursos vigentes no período de proibição das plantas, como o discurso de Freyre (2004), cons-
troem a imagem da maconha como uma planta desmoralizante. No caso do autor, é ressaltado o aspecto da
sexualidade, alegando que a planta incita comportamentos sexuais libidinosos, do mesmo modo que ausência
de caráter provocadas por esta.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

“A terra mais macia do litoral e da “mata” do extremo Nordeste e do


Recôncavo da Bahia parece ter influído sobre os seus próprios senho-
res- como sobre as plantas terríveis no tipo da maconha, importada da
África – amaciando homens do Norte agrário inteiro e não apenas da
cidade da Bahia naqueles baianos maneirosos que Joaquim Nabuco
retratou n’Um estadista do império - os políticos mais flexuosos e plásticos
da monarquia: às vezes excessivamente flexuosos e até falsos, homens sem
palavra, a ponto de “baiano” ter ficado para o resto do Brasil equivalente de
“francês”. E arredondando as mulheres naquelas iaiás dengosas que os Maci-
éis Monteiro e os Castro Alves cortejaram em versos tão sensuais e que foram
umas criaturas diabólicas pelas graças do sexo, desde muito verde especiali-
zado para o amor.” (FREYRE, 2004. P. 52)”

Tais comportamentos libidinosos se dariam, para o autor, até mesmo no universo onírico. De acordo
com este, os negros fumavam maconha para sonhar com mulheres nuas ou bonitas. O consumo da planta é
também ligado constantemente ao ócio típico da colonização monocultora, onde a economia canavieira de-
mandaria trabalho em apenas uma parte do ano. Freyre (2004) reconhece, contudo, o potencial econômico
da planta, relatando que até os seus dias os nórdicos aportavam no Nordeste para comprar “liamba” por altos
preços, do mesmo modo que, sua função social na estabilidade das tensões sociais típicas do que denominou
de “civilização do açúcar”. O autor relata que a planta e o tabaco seriam entorpecentes de gozo e evasão, con-
tudo, o tabaco seria utilizado pelos senhores brancos, ao passo que, a Cannabis seria utilizada pelos negros.
Tais entorpecentes, juntamente com a cachaça, seriam adequados aos meses de ócio proporcionados pelo
cultivo da cana e constituíam, na perspectiva do autor, fatores de relevância na estabilidade social.

Por sua vez Cascudo (1954) atribui a planta à degradação ética e moral, ligando o uso desta aos la-
drões, malandros que buscam coragem e leveza para roubar. O que há de mais contundente no discurso de
do autor é, entretanto, a atribuição da planta aos negros e o que o autor considera como a completa ausência
de cerimonial ritualístico da planta no país, desconsiderando os “trabalhos difíceis” realizados “secretamen-
te” pelo “catimbó” (citados por ele próprio em seu verbete).

“MACONHA - Diamba, Liamba, riamba, marijuana, rafi, fininho, baseado,


morrão, cheio, fumo-brabo, gongo; malva, fêmea, maricas (Cannabis sativa),
cânhamo, herbácea de origem asiática, vinda para o Brasil com os escra-
vos negros africanos, segundo a maioria estudiosa. Ópio do pobre, fumam as
fôlhas sêcas como cigarros”... “Estimulante, dando a impressão de euforia,
deixa forte depressão, a lomba, que só desaparece com superalimentação. A
planta tem seus segredos e técnicas até na colheita.”... “A maconha é estimu-
lante, fumada pela malandragem para criar coragem e dar leveza ao corpo.
Não há conhecimento de ter a maconha algum cerimonial secreto para ser
inalada. Como sucede no México, onde a dizem marihuana, grifa, soñadora,
oliukqui entre cantos do louvor. Nos catimbós usam, rara e sempre oculta-
mente, o óleo da liamba nos trabalhos difíceis. Nos xangôs e candomblés
não há prova do seu uso. É mais uma predileção dos gatunos e vagabundos.”
(CASCUDO, 1954 p. 368).

A ignorância (inata ou proposital) acerca da planta à época de sua criminalização pode ser observada
não apenas na desconsideração do seu uso ritualístico, como supracitado, mas mostra-se latente também na
completa falta de conhecimento sobre a forma de consumo desta, de seus efeitos nos usuários e de sua ori-
gem. O autor alega que são consumidas as ”fôlhas sêcas como cigarros” e que seu efeito é de euforia. Apesar
de não ser de uso exclusivo da cultura negra no país e não ter sido trazida por estes indivíduos é possível
perceber, em ambos os discursos, tanto o de Freyre (2004) quanto o de Cascudo (1954) como a atribuição da
planta a origem negra, ao ócio, à ausência de ritos no Brasil conduz a uma retórica de planta desmoralizante,
o que legitima sua proibição.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É possível perceber que o discurso proibicionista é profundamente marcado projeto de moralização e


disciplinarização do corpo tipicamente fascistas. De acordo com Dutra (2012) a década de 1930 no Brasil é
profundamente marcada por uma política sistemática de aperfeiçoamento físico, empreendida por parte do
Estado, que devido à inspiração fascista visa moralizar o corpo, a eugenia racial e a disciplina do trabalhador.
De acordo ela, a polícia é militarizada em 1936 por Getúlio Vargas, apenas dois anos antes do Decreto-Lei
de 1938, o que significa que a guerra às drogas implica numa polícia autoritária, centralizada e militarizada,
pois, faz-se necessária uma ideologia de um inimigo interno, matável (pois desunirá o país) e sem os mesmos
direitos de um “cidadão de bem”.

O paradigma antitético caracteriza o período em questão não permitindo abordagens menos radicais
ou liberais. Tal paradigma se apresenta, no que concerne ao uso de Cannabis, ao associar seu uso com prá-
ticas subversivas, promíscuas que denotam ócio, fraqueza e desperdício.

Aqui, no caso em estudo, o uso dos pares antitéticos se reveste da função de


identificação projetiva. Conjuram-se, no caso do anticomunismo a revolução,
a morte, a escravidão, a doença, a indisciplina, a barbárie, a anarquia, a lou-
cura, a injustiça; no caso da pátria, a traição, a agressão externa (comunismo
de um lado; imperialismo, de outro) a ruína, a instabilidade, o atraso, a velhi-
ce, a incerteza, a fragmentação; no caso da moral, a devassidão, o egoísmo,
a sensualidade, a orgia, o pecado, a corrupção, a imoralidade, o instinto, a
mentira, a desobediência; no caso do trabalho, a improdutibilidade, o deslei-
xo, a incompetência, o individualismo, a indolência, o ócio, o desperdício, a
fraqueza e a promiscuidade (DUTRA, 2012. p. 29-30).

O discurso da moralidade é, sobretudo, um discurso de disciplinarização do corpo, mas também


remete à corrupção de valores universais que devem ser defendidos pela autoridade. A liberdade e o domínio
sobre o próprio corpo é tratada como libertinagem, que leva impreterivelmente à degradação sexual, moral e
ética. A autora caracteriza a construção desse mundo novo por parte dessas três linhas políticas como intrín-
seca à negação dos desejos e do mundo que se quer deixar para trás.

O cidadão moral é, portanto, aquele que porta os atributos da honestidade, do as-


cetismo, do recato, do desprendimento, do patriotismo, da normalidade sexual, do
companheirismo, da verdade, da honra e da dignidade (DUTRA, 2012. p. 194).

O endeusamento do trabalho e a demonização do ócio se nos apresenta como uma dicotomia comun-
gada por todas as linhas políticas. O trabalho sintetiza todos os valores da sociedade é o “padrão absoluto”.
Nesse sentido, ligar a maconha ao ócio é torná-la antagônica ao progresso, à pátria, à civilização, à paz social,
enfim, inútil à sociedade moderna tal qual os indivíduos que dela fazem uso. O domínio sobre o corpo institui,
assim, uma moral e uma disciplina; estabelece um padrão maniqueísta e antitético que fortalece o estabele-
cimento de uma verdade que não suporta contradições.

Esse processo fez com que em meados dos anos de 1930 várias das manifestações religiosas, tendo
como maior exemplo o Candomblé, em busca de reconhecimento institucional e com o intuito de não serem
vítimas da guerra “às drogas”, passaram paulatinamente a excluir o uso sagrado da maconha e até mesmo
levando a tradição ao esquecimento. Tal processo é facilmente compreendido quando se coloca na “balança
as sanções imputadas pela espada de Themis. Passémos então à análise do local onde estão sendo dadas as
espadadas da deusa vendada.

Na contramão da demanda de legitimidade institucional, o fundador da Primeira Igreja Niubingui


Etíope Coptic de Sião do Brasil, Geraldo Antonio Baptista (53) conhecido como Rás Geraldinho Rastafári,
comungava do uso sagrado da Cannabis sativa no exercício constitucionalmente amparado de sua liberdade
de crença, na inviolabilidade de seu lar.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O sacerdote foi preso e condenado a 14 anos, 2 meses e 20 dias de prisão. O poder judiciário da ci-
dade de Americana alegou crime de tráfico de drogas com ampliação da pena por participação de menor e
associação para o tráfico.

Apesar de não constar qualquer tipo de mandato de busca e apreensão, a prisão pretensamente se
deu em flagrante. O Juiz responsável pelo caso alegou que a grande quantidade de provas produzidas, 37
pés de maconha, implicariam automaticamente no tráfico de drogas, apesar da legislação brasileira não se
utilizar de critérios objetivos para fazer a diferenciação usuário/traficante. A acusação de associação para o
tráfico e participação de menor se deu em decorrência de um jovem de 18 anos e um adolescente estarem
presentes na casa do réu.

Não foi realizado qualquer tipo de análise das plantas em questão para determinar os índices de THC,
mas várias das plantas apreendidas eram filhotes, ou seja, não gozavam da substância1.

A defesa afirmou que o cultivo era para uso religioso, sendo consumida apenas em ocasiões de culto.
A alegação é amparada pelo artigo 5º da Constituição Federal de 1988 no que tange ao amplo direito à liber-
dade religiosa.

Apesar dos argumentos da defesa, o magistrado não aceitou o argumento como excludente de antiju-
ridicidade e alegou que a liberdade de culto religioso só poderia ser invocada se o uso ritualístico não entrasse
em conflito com o Direito Penal. O magistrado ainda associou o conflito ao o sacrifício de virgens por parte
dos astecas, o que não seria permitido por parte da lei brasileira.

A infeliz comparação do homicídio com o uso de sagrado e ritualístico de uma planta que remete a
tradições milenares arbitrariamento tornadas ilícitas faz com que nos deparemos com o questionamento:
Quem é a vítima do uso da maconha como um sacramento?2

Nesse sentido, há um claro conflito principiológico representado pelo caso de Ras Geraldinho. O
artigo quinto da Constituição Federal de 1988 prevê liberdade religiosa, no entanto, tal liberdade no que con-
cerne ao uso religioso da Cannabis sativa é solapado em nome do direito penal.

Numa de suas análises à lei 11.343/06, Karam (2008) remete, como principais violações da lei à
constituição, à falta de proporcionalidade, falta de isonomia, de individualização da pena, violação da culpa-
bilidade pelo ato realizado e garantia da vedação de dupla punição pelo mesmo fato, violação da prerrogativa
de inocência, do acesso ao duplo grau de jurisdição, além do fato de ter uma progressão de pena diferenciada
por se tratar de um crime hediondo.

As sistemáticas violações a princípios e normas consagradas nas declarações


universais de direitos e nas Constituições democráticas, que, presentes na
nova lei brasileira, reproduzem as proibicionistas convenções internacionais
e as demais legislações internas criminalizadoras da produção, da distribui-
ção e do consumo das drogas qualificadas de ilícitas, já demonstraram que os
riscos e danos relacionados a tais substâncias não provêm delas mesmas. Os
riscos e danos provêm sim do proibicionismo. Em matéria de drogas, o perigo
não está na sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder
punitivo, superpovoando prisões e negando direitos fundamentais, acaba por
aproximar democracias de Estados totalitários (Karam, 2008. p. 117).

1  O THC está presente apenas nas plantas adultas e fêmeas e seus índices variam de acordo com as plantas. Plantas macho, ou
a Cannabis ruderalis, por exemplo, possui índices irrisórios de THC e são amplamente usadas na produção industrial.
2  É a falta de uma vítima no “crime” de uso de drogas é o que faz com que nos autos do processo conste como vítima “A socie-
dade”.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Dentre as mais variadas restrições características dos Estados autoritários, as restrições à liberdade
de culto e as imposições de um único modelo religioso que exclui todos os outros e lhes tira a legitimidade de
existir dão o “espírito do autoritarismo”.

A falta de liberdade religiosa em decorrência do autoritarismo fascistóide travestido de política públi-


ca de segurança, a guerra às “drogas” condenou o sacerdote da Primeira Igreja Niubingui Etíope Coptic de
Sião do Brasil (Rastafári) à uma pena muito próxima da pena máxima por tráfico de drogas (15 anos), além
de uma multa de 48,1 mil e da perda do imóvel onde a Igreja funcionava e foi invadida (invadiram sua casa
sem qualquer tipo de mandato). A perda do único imóvel é amparada pela hedioneidade da prática ritualísti-
ca tipificada como crime. Apesar dos dois habeas corpus impetrados no TJ e um no STJ a defesa não logrou
sucesso.

O caso em questão é emblemático na discussão dos limites do Direito Penal em seu conflito com os
direitos fundamentais de liberdade religiosa. A lei de drogas é uma “lei em branco”, ou seja, a ANVISA é quem
determina o que é considerado ilícito através de uma portaria. Tal órgão inclui e exclui plantas e substâncias
ao seu bel prazer sem que seja apresentado qualquer resultado positivo na guerra às drogas, tampouco não
há qualquer tipo de prestação de contas para a sociedade amparada em estudos que comprovem a necessi-
dade de criminalizar alguma droga e sua cultura. Sendo assim, o processo de criminalização de determinadas
substâncias psicoativas tornadas ilícitas pela “guerra às drogas”, perpetrada no início do século passado, parte
de uma premissa meramente arbitrária e em clara contraposição aos direitos fundamentais e constitucionais
do indivíduo. No caso em questão, além da violação do direito à liberdade de crença, é também violado o di-
reito individual de autolesão, caso haja algum tipo de malefício e/ou abuso no uso dessas substâncias.

No que concerne a esta lei penal em branco, Carvalho (2014) que a técnica dos preceitos em branco
gera uma grave crise no sistema de legalidade constitucional, pois permitem que o executivo estabeleça o
conteúdo formal do tipo penal.

A lei penal em branco é caracterízada por preceitos incompletos que reque-


rem preenchimento por terceiros dispositivos normalmente de cunho extra-
penal (administrativo).”...”A parte integradora do tipo não segue, portanto, o
rigoroso procedimento de criação de lei penal. Contudo produz os mesmos
efeitos incriminadores (CARVALHO, 2014, p. 274,275).

Tanto Karam (2008) quanto Carvalho (2006) vêem na geopolítica de drogas uma retórica que le-
gitime constantemente o estado de exceção criado pelo proibicionismo, traz luz ao paradoxo intrínseco ao
proibicionismo de drogas, que suprime os direitos civis, sociais e políticos do cidadão até mesmo no regime
democrático.

Ensina Carvalho (2014) que na referida lei há apenas uma forma de diferenciar a conduta passível
do cárcere, tráfico, da conduta passível de penas alternativas, consumo. Na perspectiva do autor a regra é a
inversão do ônus da prova.

Assim, do que se depreende da dogmática penal, a única forma de


diferenciação entre as condutas seria a comprovação do objetivo para
consumo pessoal (art.28). Em não ficando demonstrado este especial
fim de agir, qualquer outra intenção independente da destinação co-
mercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art. 33, decorrência
da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, em reali-
dade, espécie de zona gris de alto empuxo criminalizador na qual situações
plurais são cooptadas pela univocidade normativa. Em situação, inclusive,
não variavelmente potencializa na jurisprudência tendência à inversão do
ônus da prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a espe-
cial finalidade de agir, eximindo a acusação do dever processual imposto pela
Constituição, qual seja, confirmar, à exaustão, todas as hipóteses narrradas
na denúncia e efetivamente apresentar as evidências que permitem concluir

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

não ser a ação direcionada ao uso próprio ou compartihado (CARVALHO,


2014, p. 288-289).

Nesse sentido, o autor corrobora com a tese de inconstitucionalidade do art. 28 da referida lei, pois
fere o princípio da lesividade, da autonomia, da inviolabilidade da vida privada e íntima, bem como, incidem
de modo contundente no que concerne à moralização da prática secularizada do Direito.

Aliados aos argumentos decorrentes do princípio da lesividade e da autono-


mia individual, os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade
e da vida privada (art. 5º, X, CR) permitem a densificação da tese da incons-
titucionalidade do art. 28 da lei de drogas. A ofensa ao princípio da igualdade
estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento
penal (drogas ilícitas) e não penal (drogas lícitas) para usuários de dependên-
cia física ou psíquica. A variabilidade da natureza do ilícito tornaria, portanto,
a opção criminalizadora essencialmente moral. Todavia é nos princípios de
tutela da intimidade e da vida privada que os argumentos ganham maior
relevância.
Os direitos à intimidade e à vida privada instrumentalizam em nossa cons-
tituição o postulado da secularização que garante a radical separação entre
direito e moral. Nesse aspecto, nenhuma norma penal criminalizadorea será
legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser padrões de compor-
tamento que reforçam concepções morais A secularização do direito e do
processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralism,
da tolerância e do respeito à diversidade blinda o indivíduo de intervenções
indevidas na esfera da interioridade. Assim, está garantido ao sujeito a possi-
bilidade de plena reasolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua
conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo con-
creto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nestes casos (dano ou perigo con-
creto) haveria intervenção penal legítima (CARVALHO, 2014, p. 374-374).

Dada a presente discussão, a pena atribuída ao sacerdote Ras Geraldinho é de caráter hiperbólico e
não só não se sustentam nas ciências jurídicas, como são de caráter moralizante destas. Esse entendimento
solapa garantias constitucionais em nome da defesa jurídica de um bem abstrato que, além de não ser defen-
dido, serve de subterfúgio para a cruzada moral que prejudica não apenas o consumidor de drogas arbitraria-
mente tornadas ilícitas, mas que traz consequências danosas para a sociedade como um todo. Em nome da
segurança solapam a liberdade e sem liberdade o povo não pode se queixar de não ver tais promessas serem
cumpridas.

REFERÊNCIAS

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lei 11.343/06. São Paulo: 2014.

CARVALHO, S. de. Política de guerra às drogas na América Latina: entre o direito penal do inimigo e
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CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Letras e Letras, 1954.

519
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KARAM, Maria Lúcia. A lei 11343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. In: MacRAE, E. & CARNEIRO, H..
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MOTT, L. A maconha na história do Brasil, in: HENMAN, A. e PESSOA, O. Jr.(orgs.), Diamba sarabamba: coletânea
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ROBINSON, R. O Grande Livro da Cannabis: Guia completo para seu uso industrial, medicinal e ambiental.
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 1999.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA.

Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira


Mestranda em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito
Público. Graduada em Direito pela AESO/PE. narasantacruz@hotmail.com

Camila Freire Monteiro de Araújo


Graduanda em Direito pela UFPE. E-mail: cami.fmaraujo@gmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do direito ao esquecimento; 2. O conflito entre o direito ao esque-


cimento e o direito à liberdade de imprensa; Considerações finais; Referências

INTRODUÇÃO

Este artigo procura analisar alguns aspectos relevantes relacionados ao denominado “direito ao es-
quecimento”, sobretudo no que se refere ao surgimento, não raro, de conflitos entre este direito e o, não
menos importante, direito à liberdade de imprensa. É inegável o valor da imprensa para a sociedade e para a
consolidação e manutenção da democracia. Sendo assim, a imprensa não pode sofrer qualquer tipo de cen-
sura, mas, em contrapartida, deve ter responsabilidade total com a veracidade das informações.

De outro lado, não menos importantes, estão os direitos da personalidade. Dos direitos fundamentais
à privacidade e à intimidade, deriva o direito ao esquecimento. Tal direito compreende o desejo da pessoa de
não ser lembrado contra a sua própria vontade. Vale ressaltar que não se pretende com o direito ao esqueci-
mento apagar fatos ou reescrever a história. Longe disso, o que se pleiteia é apenas regular fatos pretéritos
que podem influenciar de forma danosa na vida do sujeito.

Com a ajuda da internet, a informação se propaga de uma forma bem mais eficaz do que no passado,
quando dispúnhamos apenas dos meios de comunicação tradicionais, como jornais e televisão. Além disso,
os dados pessoais são captados e acumulados pelos provedores, o que pode ocasionar uma perda de controle
sobre esses dados, por parte de seus donos. Dessa forma, a privacidade se tornou um problema nas socieda-
des modernas. As informações pessoais estão sendo comercializadas, mesmo quando são irrelevantes para a
formação da opinião pública.

Nesse contexto, são comuns os conflitos existentes entre o direito ao esquecimento, derivado dos
direitos da personalidade, e o direito à liberdade de imprensa. Vale dizer, não existe hierarquia entre ambos
os direitos. No presente artigo, analisaremos aspectos importantes dos referidos direitos conflitantes. Verifi-
caremos, ainda, a melhor técnica para resolver o conflito em questão.

1. ORIGEM DO DIREITO AO ESQUECIMENTO.

A internet, atualmente, é um meio muito eficaz para atingir um grande número de pessoas nos mais
diversos locais do mundo, com pouco investimento. No entanto, para alcançar uma quantidade expressiva
de usuários, faz-se necessária a captação, acumulação e utilização de dados pessoais, de várias formas, pelos
provedores. Dessa forma, a privacidade se tornou um grave problema na sociedade de informação.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

As consequências desses problemas são inesgotáveis. Considerando que a idade média mundial em
que as crianças entram nas redes sociais é de 12 anos (estudo realizado pela empresa Trend Micro, em ou-
tubro de 2011), a preocupação é ainda maior, tendo em vista que esses jovens, imaturos, muitas vezes divul-
gam e alimentam informações de caráter duvidoso, as quais podem repercutir de maneira negativa perante
a sociedade, conforme ensina Erik Noleta Lima (2013, p. 273).

A publicação de uma simples foto, por exemplo, pode causar danos futuros. O usuário de uma rede
social pode perfeitamente compartilhar uma ou mais imagens e, em momento posterior, resolver apagá-las,
todavia existe a possibilidade de tais imagens já terem sido catalogadas por sites de busca ou indexadores.
Nesse caso, a internet vai lembrar aquilo que o usuário pretende esquecer.

Portanto, a tecnologia, quando não utilizada com cautela, também pode ser considerada uma “vilã”.
Os dados constantemente coletados podem ser usados também fora do controle dos seus donos, o que é pe-
rigoso.

O direito ao esquecimento (“the right to be forgotten”) foi formulado, em fevereiro de 2007, por Vik-
tor Mayer-Schönberger. (2009, p. 7 apud Lima, 2013, p. 273). A intenção era terminar com a ilusão de que
o fato de deletar determinados dados pessoais da rede implicaria, necessariamente, em uma exclusão defini-
tiva desses dados. Nesse momento, o direito ao esquecimento passou a ter repercussão.

É mister esclarecer que o direito ao esquecimento não é absoluto, mas é através dele que o interes-
sado pode discutir se os fatos passados, a seu respeito, podem ser apagados ou não. Não se trata do direito
de apagar a história, mas apenas assegura a possibilidade de debater o uso que é dado aos fatos pretéritos.
(Enunciado 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil). Diz-se que não é absoluto, pois existem outros
direitos em jogo como, por exemplo, o direito à livre manifestação do pensamento. Vale a pena transcrever o
teor do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo CJF/STJ:

ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade


da informação inclui o direito ao esquecimento.
Artigo: 11 do Código Civil
Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação
vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua ori-
gem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela im-
portante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o
direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura
a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especi-
ficamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

Tendo em vista a repercussão do direito em questão, a União Europeia passou a realizar estudos vi-
sando uma revisão na legislação relativa à proteção de dados. Em 2009, a Comissão Europeia organizou uma
conferência para debater a proteção dos dados pessoais. Já no ano de 2012, foi proposta a codificação do re-
ferido direito, pelo Conselho e Parlamento europeus, em uma Diretiva (COM/2012/010) e um Regulamento.
(Lima, 2013, p. 274).

Nesse contexto, a União Europeia buscando conferir transparência ao mundo digital, apresentou pro-
jetos de regulamentação do direito ao esquecimento. A proposta de Regulamento da União Europeia prevê tal
direito, expressamente, em seu artigo 17. Viviane Reding (2012, p.5 apud Lima, 2013 p. 274), vice-presiden-
te da Comissão Europeia, apresentou duas argumentações principais aptas a ensejar o reconhecimento do
direito em questão. A primeira argumentação é referente ao fato do indivíduo não ter mais interesse que seus
dados sejam processados ou armazenados por um controlador de dados. O segundo argumento corresponde
à inexistência de justa causa para o controlador manter os dados.

O mencionado artigo 17 afirma que o titular dos dados tem o direito de obter a exclusão das infor-
mações e a cessação do uso posterior de seus dados, sobretudo quando o titular ainda era uma criança e,
portanto, sem maturidade. A exclusão dos dados pode acontecer, por exemplo, quando os mesmos deixarem

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de ser necessários em relação à finalidade que motivou o seu tratamento ou quando o titular retirar o con-
sentimento, nos termos do artigo 6º, nº. 1, alínea a, do próprio Regulamento.

Já, no Brasil, o movimento em torno desse direito é bem mais tímido, embora já tenha contado com
algumas manifestações. Tais manifestações são mais frequentes na área penal, quando alguém comete um
crime e depois de cumprida a pena quer ver apagadas quaisquer consequências penais do seu ato.

2. O CONFLITO ENTRE O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O DIREITO À LIBERDADE DE IMPRENSA.

O reconhecimento a nível europeu do denominado direito ao esquecimento gerou uma série de de-
bates sobre alguns aspectos. Abordaremos aqui a questão relativa aos meios de comunicação que contêm
informações sobre pessoas. Quando é possível exercer o direito ao cancelamento/esquecimento de uma de-
terminada informação pessoal que se encontra na rede?

Inicialmente, é importante falar sobre a natureza do direito ao esquecimento, visando compreendê-lo


melhor. Ele pode ser concebido em um duplo sentido, conforme os ensinamentos de Koops (2011, p. 231,
apud Rojas, 2013, p. 2): direito de esquecer e direito a ser esquecido. Pode, ainda, ser analisado de duas
formas: como um direito de caducidade de informação pessoal pelo transcurso do tempo ou no caso de ter
cumprido com sua finalidade, e; como um direito de esquecer uma informação que possa parecer negativa
para a pessoa -“novo começo” ou “ficha limpa”. (Koops 2011, apud Rojas, 2013, p. 2).

De acordo com os ensinamentos de Rojas (2013, p. 3), o direito ao esquecimento deve ser entendido,
em suma, como: “uma pretensão de esquecer ou ser esquecido certas informações de caráter pessoal, o que
em sentido estrito se trataria de um direito subjetivo ao cancelamento, retificação ou oposição/rejeição de
certa informação.”.

Como já foi dito, não se trata de um direito absoluto. O exercício da liberdade de expressão, em sen-
tido amplo, pode perfeitamente delimitar o direito ao esquecimento. Nesse contexto, é necessário fazer algu-
mas ponderações importantes acerca do direito constitucional (Art. 5º, CF/88) à liberdade de expressão. E,
vale ressaltar, liberdade de expressão em sentido amplo abarca a liberdade de informação, que compreende
o direito de informar, se informar e ser informado. Conforme ensina José Afonso da Silva (2005, p. 246):

A liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e


a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência
de censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer. O acesso de
todos à informação é um direito individual consignado na Constituição, que
também resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissio-
nal (art. 5º, XIV).

Nesse contexto, é possível afirmar que a liberdade de expressão compreende uma série de garantias
que visam promover e assegurar a ampla manifestação do pensamento e a divulgação da notícia, por qual-
quer meio (TV, jornais, internet, etc). Para George Marmelstein (2013, p. 121), é um instrumento muito
importante para o fortalecimento da democracia:

[...] é um instrumento essencial para a democracia, na medida em que per-


mite que a vontade popular seja formada a partir do confronto de opiniões,
em que todos os cidadãos, dos mais variados grupos sociais, devem poder
participar, falando, ouvindo, escrevendo, desenhando, encenando, enfim, co-
laborando da melhor forma que entenderem.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A liberdade de imprensa (ou liberdade de informação jornalística) é outro tipo de liberdade, também
compreendida pelo conceito de liberdade de expressão no seu sentido amplo. Refere-se à liberdade conferida
aos meios de comunicações para divulgar informações. Sobre o tema, as palavras de Karl Marx:

A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada


do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e
ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas
intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si
mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é
o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira
confissão da sabedoria. (apud Da Silva, 2005, p. 246).

A imprensa é, sem sobra de dúvidas, considerada um instrumento poderoso de formação da opinião,


exercendo influência em todos os setores da sociedade, sendo fundamental para a manutenção da demo-
cracia. É tão importante ao ponto da Constituição Federal de 1988 ter reservado um capítulo inteiro (“Da
Comunicação Social”) para tratar do tema. O artigo 220 da CF/88 estabelece o seguinte: “A manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Nesse contexto, é de fundamental importância que a imprensa respeite certos limites impostos, à
exemplo da verdade e do interesse social. De acordo com os ensinamentos de Judicael Sudário de Pinho
(2003, p. 128):

A liberdade de informação refere-se essencialmente à informação verdadei-


ra, assim ocorrendo porque a imprensa é formadora de opinião pública, com
relevante função social, possibilitando o amplo desenvolvimento da liberdade
de opção da sociedade para reforçar o regime democrático.

Dessa forma, quando se fala em liberdade de expressão, sobretudo no que se refere à liberdade de
imprensa, só abrange a informação verdadeira. O professor Marcelo Novelino (2010, p. 423) aponta três
limites ao exercício da liberdade de imprensa: veracidade (é preciso investigar a veracidade da informação e
conceder o direito de retificação, se for o caso), relevância pública (protege-se a informação relevante para a
formação da opinião pública) e forma adequada da transmissão (a informação deve ser transmitida sem con-
ter insultos e sem se estender a aspectos que não interessam à formação da opinião pública). A intimidade
da pessoa, por exemplo, deve ser preservada.

O direito ao esquecimento decorre do direito à intimidade, privacidade e demais direitos da persona-


lidade. Compreende o desejo da pessoa de não ser lembrado contra a sua própria vontade. Não se trata do
direito de reescrever a história. Não busca apresentar uma história, pessoal ou coletiva, afastada da realidade.
Não pretende, portanto, ser um elemento de modificação da informação. O direito ao esquecimento, na ver-
dade, gera a pretensão de que certo comportamento, por exemplo, possa ser esquecido. (Rojas, 2013, p. 4).

Atualmente, a privacidade vem sendo relativizada, assistimos a comercialização de informações ín-


timas, que em nada contribuem para a formação da opinião pública. Nesse sentido, a análise de Paulo José
da Costa Júnior (2007, p. 16):

Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso pre-
sente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investi-
gação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. O conceito de
vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva
em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a
existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo
posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais
possam ser notadas.

524
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É nesse cenário que surgem as discussões referentes ao direito ao esquecimento. O sujeito tem o di-
reito de não ser lembrado contra a sua vontade, sobretudo quando a informação desabona o sujeito e em nada
é relevante para a formação da opinião pública. Como já foi dito, não é uma questão de apagar fatos, mas sim
uma questão de regulá-los, freando a exploração excessiva e desnecessária da vida privada.

O conflito entre o direito à liberdade de imprensa e o direito ao esquecimento não é fácil de resolver,
pois de um lado temos o interesse legítimo de “revelar” e, do outro lado, temos o interesse também legítimo
de “ocultar”. Conflitos dessa espécie são comuns no Direito Constitucional Contemporâneo e acontecem em
razão da complexidade das sociedades modernas. (Barroso, 2012, p. 352-353). Barroso explica, ainda, que
os direitos fundamentais são expressos sob a forma de princípios, estando sujeitos à concorrência com outros
princípios. A aplicabilidade de um ou outro princípio será definida de acordo com as circunstancias jurídicas
e fáticas. (Barroso, 2012, p. 352-353).

Para Barroso (2012, p. 358), a técnica de subsunção não é constitucionalmente adequada para re-
solver o conflito, uma vez que não existe hierarquia entre as normas constitucionais (Princípio da Unidade
da Constituição). Pelo mesmo motivo, Barroso (2012, p. 358) descarta também os critérios tradicionais de
resolução de conflitos (cronológico, hierárquico e especialização).

Sendo assim, é preciso analisar o caso concreto para decidir qual dos princípios conflitantes deve,
naquele caso, prevalecer ou sofrerá menos constrição do que o outro. Nas palavras de Edilson Pereira de
Farias (1996, p. 96):

A “colisão de princípios”, ao revés de conflito de regras, tem lugar na dimen-


são da validez, acontece dentro do ordenamento jurídico [...], vale dizer: não
se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor do outro.
A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou a importância re-
lativa da cada princípio, a fim de se escolher qual deles, no caso concreto,
prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro.

Portanto, presente o conflito entre direitos fundamentais, deve-se utilizar a técnica da ponderação.
Tal técnica engloba três etapas. Na primeira etapa, o intérprete deve identificar as normas relevantes ao caso,
momento em que deve visualizar eventuais conflitos entre elas; na segunda etapa, o intérprete deve analisar
o caso concreto e os fatos, bem como a interação desses fatos com as normas; na terceira etapa, o intérprete
vai se dedicar à decisão, ponderando as normas aplicáveis e avaliando a repercussão das circunstâncias do
caso concreto, determinando, então, o grupo de normas preponderantes no caso. (Barroso, 2012, p. 359).

Pelo o exposto, é possível concluir que a Constituição Federal protege o direito à liberdade de impren-
sa, bem como protege o direito ao esquecimento, que é derivado do direito à privacidade. Ambos os direitos
são importantes para a proteção da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, sempre que surgir o conflito
entre os referidos direitos deve-se analisar o caso concreto, utilizando a técnica da ponderação, com o intuito
de decidir qual direito deve preponderar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade atual é marcada pela propagação rápida da informação, através da internet, a qual atinge
milhões de pessoas de uma só vez. Nesse contexto, surgem os problemas com a privacidade, uma vez que não
é raro o fato do usuário da internet perder o controle sobre seus dados pessoais. A rede não perdoa e lembra
o que a pessoa deseja esquecer.
Assistimos uma verdadeira invasão da vida privada, com a comercialização de informações de caráter
pessoal, que em nada são relevantes para a formação da opinião pública. O direito à liberdade de imprensa é
muito importante para a manutenção da democracia e não pode ser censurado. Todavia, a imprensa tem que
ter compromisso com a veracidade das informações, pois o fato de não poder sofrer censura não se confunde
com o fato de não ser responsabilizada pelas inverdades que veicular.

525
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Não menos relevante, é o direito ao esquecimento, derivado do direito à privacidade e à intimidade.


Restou evidente no presente artigo que não se pretende, com o direito ao esquecimento, reescrever a histó-
ria, mas sim regular fatos que possam influir de maneira danosa na vida de uma pessoa.
Instaurado um eventual conflito entre o direito ao esquecimento e o direito à liberdade de imprensa,
deve o intérprete analisar o caso concreto, aplicando a técnica da ponderação, decidindo qual deles deve
preponderar naquele caso concreto. Ficou claro que não existe hierarquia ente os direitos conflitantes, sendo
ambos os direitos protegidos pela CF e importantes para a concretização da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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527
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO


CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À
PRIVACIDADE:

UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA

Paloma Mendes Saldanha


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista
em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ).
Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE.
Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A privacidade e a sociedade da informação: uma nova cultura na rede.


1.1. A interconexão de informação entre os sites e sistemas. 1.2. Rastreamento de dados e o anoni-
mato. 2. A política de privacidade do Google: O que deveríamos saber? 3. Termo de uso e condições
do Google e infrações à legislação brasileira. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

É sabido que em tempo de virtualização das informações, questões como privacidade tem seu concei-
to cada vez mais relativizado. A coleta de dados, realizada “com” consentimento expresso do usuário da rede
através da assinatura do termo de uso e condições, no meio virtual, está cada vez mais usual e necessária
para que os cidadãos façam parte do novo conceito de sociedade ou socialização.

Os dados pessoais dos internautas passaram a fazer parte do mundo virtual completando o armaze-
namento de dados dos servidores responsáveis pela autorização do acesso ao conteúdo existente em determi-
nadas páginas da internet. A compra passou a ser on-line e a conversa passou a ser virtual. Numa sociedade
onde o “existir” começa a significar estar sozinho e ao mesmo tempo estar entre a coletividade, a Web 2.0 não
poderia ser diferente. Aguçou a curiosidade da sociedade gerando a troca de informações em perfis pessoais
ou profissionais vulneráveis e submissos às regras impostas pelas redes sociais.

Assim, o que de longe é algo extremamente benéfico para a sociedade, trazendo seu avanço tecnológi-
co dentro uma nova cultura (a cibercultura), tem-se a ameaça aos direitos fundamentais do cidadão, especi-
ficamente a privacidade do indivíduo. Neste cenário, surge a grande polêmica sobre a política de privacidade
adotada pela Google, uma das maiores empresas de serviços virtuais.

Mesmo diante de toda facilidade, celeridade e praticidade para os usuários mais exigentes quanto a
velocidade das páginas, muitos esquecem que se trata de uma invasão discricionária à privacidade e conse-
quentemente ao seu direito de autodeterminação informativa. Logo, mesmo ciente de todas as possibilidades
de utilização dos dados pessoais ali cadastrados e do monitoramento dos diálogos, a maioria dos usuários
permite tal conduta com receio de perder o acesso aos diversos mecanismos oferecidos pelo Google, uma vez
que as novas regras de privacidade não são opcionais, caracterizando, portanto, o termo de uso e condições
como um contrato de adesão repleto de cláusulas abusivas.

528
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Diante deste cenário, pretende-se analisar o termo de uso e condições disponibilizado pelo Google no
intuito de demonstrar as violações ocorridas na legislação brasileira, especificamente ao código de defesa do
consumidor, mas, principalmente, a violação constitucional à privacidade.

1. A PRIVACIDADE E A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: UMA NOVA CULTURA NA REDE.

A evolução da comunicação é um exemplo das grandes modificações que influenciam diretamente


no comportamento humano e consequentemente em seu meio social. Da oralidade para a escrita, primeira
“informatização da sociedade”, Sócrates dizia que a escrita levaria à negligência do cultivo da memória, e as
pessoas saberiam de muitas coisas, mas não das relações essenciais a elas. Platão, por sua vez, dizia que o
risco de interpretações equivocadas com a utilização da escrita seria muito maior, pois não haveria conheci-
mento do autor e do contexto sob o qual a escrita fora produzida1. De fato, esses anseios tornaram-se realida-
de. Hoje, o costumeiro é a consulta. E inexistindo atenção a leitura, pode-se interpretar erroneamente o que
determinado autor quis transmitir. Em contrapartida, a escrita facilitou a comunicação em longa distância,
possibilitando o registro de acontecimentos de modo duradouro.

A partir da necessidade de obtenção de informações de forma mais célere, bem como a necessidade
de alta capacidade de armazenamento de informações, surgiu a informática, consagrada com o advento da
Internet. Conhecida como rede aberta que possibilita a comunicação a distância, a Internet se apresentou
à humanidade como um veículo de comunicação baseado em respostas simultâneas (por exemplo, MSN –
Messenger), bem como uma comunicação assíncrona que não exige a coincidência temporal (por exemplo,
e-mail)2.

Dentro desse novo contexto, a sociedade já não era mais a mesma. E suas informações já não estavam
mais tão bem guardadas como antes. Benefícios como a praticidade/virtualização nas prestações de serviços,
a diminuição nas tarifas de ligações telefônicas, a possibilidade de comunicação simultânea entre um grande
número de pessoas de diversas localidades, e, a atualização constante quanto aos acontecimentos de todos
os setores da sociedade (economia, política, saúde, esporte e laser) através dos search engines, esconderam o
déficit ocasionado na privacidade do ser humano. Os dados pessoais dos internautas passaram a fazer parte
do mundo virtual completando o armazenamento de dados dos servidores responsáveis pela autorização do
acesso ao conteúdo existente em determinadas páginas da internet. Os hábitos de consumo do indivíduo
passaram a ser informações armazenadas em memórias de computadores. A compra passou a ser on-line e a
conversa passou a ser virtual. O que de longe é algo extremamente benéfico para a sociedade, trazendo seu
avanço tecnológico dentro uma nova cultura (a cibercultura), tem-se a ameaça aos direitos fundamentais do
cidadão, especificamente a privacidade do indivíduo.

Mas o que se entende por privacidade? Seria ela a possibilidade de fazer o que quiser? O direito de
ter seus segredos mais íntimos preservados? O direito de não ter sua vida privada, imagem ou preferência
pessoais abertas ao público? Doutrinariamente o direito de ser “deixado só”, de acordo com Marcus Parede3,
surgiu com a publicação de um artigo escrito em 1890 pelos advogados Samuel Waren e Louis Brandeis
e intitulado de “The right to privacy” (O direito à privacidade). A denominação foi utilizada pela Corte da
Geórgia após três anos de sua publicação. Sendo declarado em 1965, pela Suprema Corte Americana, que
a intimidade estava implicitamente assegurada em sua Constituição. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos em seu artigo 12, inciso I, expõe que ninguém será objeto de arbitrariedade em sua vida privada,
em sua honra e em sua reputação. Tratamento semelhante é exposto na Declaração Universal dos Direitos
do Homem, de 1948, que declara que todo indivíduo possui direito à proteção da lei contra atitudes abusivas
a sua reputação, honra e vida privada.

1  RAUCH, Wolf. Ética da informação – o problema sob a ótica da ciência da informação. in: KOLB, Anton; BAUER Ruchekn;
ESTERBOUR, Reinhold Cibernética: responsabilidade em um mundo interligado pela rede digital. São Paulo: Loyola, 2001, pp.
58-59.
2  LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de Correspondência na Internet. in: LUCA, Newton de e FILHO, Adalberto
Simão .Direito & Internet - Aspectos jurídicos Relevantes, São Paulo: EDIPRO, 2000, p.475.
3  PAREDES, Marcus. Violação da Privacidade na Internet. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revistas dos Tribunais,
v.3, n° 9, pp.189, jan /mar 2002.

529
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No direito interno, a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, estabelece
que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando, inclusive, o
direito à indenização pelo dano material e moral decorrente da violação desses direitos. Diante da conceitu-
ação dada pelas legislações internas e externas ao Brasil, cabe salientar que a privacidade só será licitamente
agredida quando um interesse público superior o exigir, demonstrando que em caso contrário poderá ocorrer
danos gravíssimos para a comunidade em geral. Neste sentido, é válido destacar o comentário de Alexandre
de Moraes4 quando diz que “os direitos à intimidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à
vida privada, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas”

Por intimidade, então, compreende-se um interesse individual desenvolvido isoladamente que pode
ser físico ou mental. Entretanto, independentemente de sua modalidade, deverá ser protegida de intromis-
sões que venham gerar perturbações. De outro modo, por vida privada, têm-se todos os relacionamentos
do indivíduo, inclusive os objetivos. Ou seja: relações comerciais, de trabalho, de estudo, dentre outros. A
privacidade, por sua vez, é um direito subjetivo consistente na possibilidade do indivíduo proteger o que
lhe é próprio, envolvendo circunstâncias as quais são compartilhadas de modo mais ou menos intenso com
algumas pessoas. É a proteção exclusiva de convivência, o resguardo à dignidade humana. Há, também,
quem entenda a privacidade em três esferas. Lisboa5, por exemplo, traduz a privacidade como esfera públi-
ca (dados tornados públicos pelo seu titular), esfera privada (dados não sensíveis à pessoa) e esfera íntima
(convicções pessoais em geral que possui relativa relação com o direito à liberdade de expressão). Pelo Direito
Civil brasileiro, o direito à privacidade é considerado como um direito da personalidade. Já a Constituição
brasileira de 1988, o entende como um direito fundamental que quando observado dentro de uma concepção
universal, estaria inserido no campo dos direitos humanos.

É interessante observar que no contexto do “existir” começa a significar estar sozinho e ao mesmo
tempo estar entre a coletividade. A Web 2.0 aguçou a curiosidade da sociedade, gerando a troca de informações
em perfis pessoais ou profissionais completamente vulneráveis e submissos às regras impostas pelas redes
sociais. Entretanto, para a nova geração, que já nasceu mergulhada na tecnologia digital, o conceito de
privacidade parece destoar do que fora apontado acima. Isto porque, grande parte do processo de socialização
passou a ser virtual. Como disse Ruy de Queiroz6, “a ideia de duas esferas distintas, o ‘público’ e o ‘privado’,
é, sob vários aspectos, um conceito ultrapassado para o jovem de hoje”, visto que “a disponibilização online
de conteúdo pessoal faz parte do processo de auto-expressão, de conexão com os pares, de socialização e
crescimento da popularidade, e da própria ligação com amigos e membros de grupos de pares”. Dentro desse
aspecto fica claro a forte presença da informação na sociedade e também o intenso controle que exerce sobre
a mesma. De forma a ser considerado por muitos como uma dimensão em que todos ao mesmo tempo em
que se encontram livres, possam sentir-se aprisionado. Como explana Paesani7:

Com a inserção desses novos mecanismos tecnológicos, cada vez mais sofisti-
cados de difusão de informações, há uma contribuição para um crescente es-
treitamento de círculo privado. Esses sistemas de vigilância, monitoramento
e controle, podem ser ilustrados pela narrativa apresentada no filme Matrix,
lançado em 1999 sob direção dos irmãos Wachowski, onde a sociedade é
transportada para o espaço totalmente passível de controle.

De toda forma, mesmo supostamente existindo uma nova ótica para o conceito de privacidade, não
se traduz como correta a submissão de toda a população a cláusulas abusivas, enganosas e não garantidoras
de direitos constitucionalmente tutelados.

4  MORAES, Alexandre de. Constituição Brasileira e Legislação Constitucional. 5º ed, São Paulo: Atlas, 2005. pp.224.
5  LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de Correspondência na Internet; in: LUCA, Newton de, SIMÃO FILHO, Adalberto
(coord): Direito & Internet - Aspectos jurídicos Relevantes, São Paulo: EDIPRO, 2000. pp.471
6  QUEIROZ, Ruy de. A evolução do conceito de privacidade. Disponível em: http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=230. Acesso
em 25 jan 2016.
7  PAESANI, Liliane Minardi APUD SANTOS, Salomão, Habib. Sociedade de controle: a perda da privacidade a partir
dos avanços tecnológicos. In CONGRESSO BRASILEIRO DE CIENCIA DA COMUNICAÇÃO, XXXII, 2009, Curitiba: INTER-
COM- Sociedade Brasileira de Ciência da Computação. 2009. p. 9.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1.1. A INTERCONEXÃO DE INFORMAÇÃO ENTRE OS SITES E SISTEMAS.

No papel, o direito está garantido. Mas na prática será que isso vale mesmo? Os usuários sabem o que
é feito com seus dados de navegação? Quantos dos usuários inscritos para utilização dos serviços da Google
leram os Termos de Privacidade do MSN, Orkut, Google, Facebook ou qualquer outro aplicativo, site, web 2.0
ou programa disponível na Internet?

Intimidade e vida privada também existem na Internet! Sites ou serviços que não cumprem a de-
terminação de preservar a privacidade e a intimidade estão infringindo princípios constitucionalmente es-
tabelecidos. Mas, o que muitas pessoas reclamam – e sem razão – é que o site X está tendo acesso aos seus
dados de navegação sem o seu consentimento. Porém, esta mesma pessoa não leu, sequer, a primeira linha
do Termo de Privacidade e lá pode estar escrito que o site ou software utiliza cookies e nenhum outro tipo de
explicação quanto ao que seriam cookies.

De uma maneira bem fácil, cookies nada mais são que arquivos criados na máquina do usuário8.
Esses arquivos servem para que os sites façam anotações de dados que futuramente serão utilizados para a
criação de páginas customizadas. Por exemplo: você entra em um site e se cadastra com seu nome. O cookie
já devidamente alojado em sua máquina fará com que na próxima vez que você entre nesse mesmo site, não
precise mais digitar seu nome. O que existirá é a leitura da anotação feita pelo cookie criado. Assim, pode-se
observar a existência de vantagens e desvantagens, pois a praticidade e facilidade repassada ao usuário são
reais. Porém, há um comprometimento da privacidade quando existe a permissão de que outros programas
leiam o conteúdo dos cookies criados em nossas máquinas.

As informações coletadas em qualquer dos sites da Google (Youtube, Gmail, Google+ e Blogger), por
exemplo, poderão ser compartilhadas por seus outros serviços. Tudo isso devido ao termo de uso que é assi-
nado pelo usuário, bem como decorrente da criação/envio de cookies ou identificadores anônimos. Estes são
tidos como “sequências aleatórias de caracteres utilizadas em plataformas, inclusive em alguns dispositivos
móveis nos quais a tecnologia dos cookies não está disponível”9. Ou seja, a finalidade dos identificadores anô-
nimos é a mesma, modificando apenas o intermediário.

Sérgio Amadeu10 entendeu que o rastreamento dos sites acessados pelos usuários ocorre o tempo
inteiro, especialmente por parte das grandes corporações. Inclusive, ressalta que o cruzamento de informa-
ções, conhecido como cruzamento do log (dado de conexão) com o número do IP, só deveria existir por via
judicial, ou seja, o cruzamento de informações realizado pelos cookies e identificadores anônimos, em tese,
só poderia ocorrer com autorização do Judiciário e quando houver suspeita de crime virtual.

1.2. RASTREAMENTO DE DADOS E O ANONIMATO.

Ao ingressar na internet um dos aspectos mais relevantes é à privacidade de quem percorre cibe-
respaço e deseja o anonimato. Entretanto, como supracitado, a interconexão de informações dos usuários
tornou-se prática comum no espaço cibernético tornando-se praticamente impossível para um internauta
passar despercebido em qualquer navegação. O cenário atual é totalmente incongruente com uma das prin-
cipais características da internet, um espaço de liberdade total em que na rede o usuário poderia acessar we-
bsites de qualquer natureza sem se identificar e sem ter contra si qualquer argumento legal que lhe impeça
o anonimato.

8  SOS Serviços Online de Segurança. O que são cookies e como eles podem me prejudicar. Disponível em: http://seguranca.uol.
com.br/antivirus/dicas/curiosidades/o-que-sao-cookies-e-como-eles-podem-me-prejudicar.html#rmcl Acesso em 11 jan 16
9  Site Política e Privacidade do Google. Políticas e Princípios. Termos-chave. Disponível em: http://www.google.com/intl/pt-BR/
policies/privacy/key-terms/#toc-terms-identifier. Acessado em 08 abr 2013.
10  TIInside. Rastreamento de sites só deve ocorrer com ordem judicial, defendem especialistas. Disponível em: http://conver-
gecom.com.br/tiinside/17/04/2012/rastreamento-de-sites-so-deve-ocorrer-com-ordem-judicial-defendem-especialistas/#.UWMp_
qJm1Bg. Acessado em 08 abr 2013.

531
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O anonimato aqui referido não se resume ao expresso no art. 5º, IV da CF/88 que veda o anoni-
mato na expressão de pensamento, mas sim ao anonimato de trânsito que é expressamente autorizado pela
Carta Magna em seu art. 5º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei”. Ocorre que, infelizmente, a obrigação do fornecimento de diversas informações dos usuários
tornou-se uma regra de funcionamento da rede, fazendo do ambiente virtual um celeiro de infrações aos
direitos essenciais do homem e de sua dignidade. E, por mais conscientes que alguns internautas sejam, o
receio da inutilização de determinados sites, contas, redes sociais acaba se sobrepondo ao interesse de prote-
ger a sua privacidade.

Chats, cookies e spam compreendem as modalidades mais comuns de violação da privacidade no


campo cibernético, no que diz respeito ao armazenamento de dados sem o consentimento do titular; Com-
preendem o acúmulo de informação nominativa não veraz ou falsa; Compreendem a subsistência de dados
caducos e a adulteração de dados sem conhecimento do usuário.

Chat é conhecido popularmente por sala de bate-papo. O teor das conversas, realizadas neste ambien-
te virtual, não pode ser alvo de conhecimento de pessoas estranhas à conversa, uma vez que se fere a priva-
cidade dos indivíduos participantes da mesma. Já os cookies, são arquivos gravados pelo servidor no disco
rígido do usuário, que armazenam informações sobre os hábitos dos consumidores. Estes dados devem ser
sempre atualizados para não haver a transferência de informações caducas do usuário, o qual deve ter acesso
às mesmas para verificar se elas são verdadeiras. Por sua vez, o spam é o envio/ recebimento não autorizado
de e-mails comerciais, cujo envio está cada vez mais intensificado. Principalmente com o auxílio de web sites
comerciais que utilizam o cadastro de dados como ferramenta de marketing.

É válido ressaltar a utilização de algumas ferramentas, como o Spy-cams (câmeras de espionagem),


as quais alimentam vídeos exibidos na Internet; Produtos Plls em pacotes, ou seja, venda de perfis de infor-
mações sobre pessoas publicadas na Internet, onde a pessoa consegue identificar por mapas a localidade da
residência, ou qualquer informação de um indivíduo; Pegadas de mouse, mecanismo usado para rastrear o
comportamento do indivíduo on line. Todas estas ferramentas citadas são mais uma forma de violação da
privacidade através da Internet, as quais podem ser prevenidas por meio da utilização de programas, como
comopretty good privaci. Estes programas são de técnicas criptográficas que dificultam a identificação dos
indivíduos e de seus dados ocasionando mais proteção e segurança às atividades eletrônicas. Contudo, estes
programas possuem caráter temporário, devendo ser constantemente atualizados.

Assim, independente da aceitação ou não do fornecimento de suas informações, o que a maioria dos
usuários não imaginam é que os dados vinculados as páginas/sites do Google são alvos de negócios virtuais e
passíveis de diversos mecanismos de rastreamentos de informações.

2. A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE: O QUE DEVERÍAMOS SABER?

O avanço tecnológico, em especial a internet, como já dito, propicia uma grande diversidade de
informações, facilitando o intercâmbio destas e gerando uma ilimitada capacidade de compartilhamento e
produção de informações de qualquer gênero em uma velocidade quase impossível de se acompanhar. Neste
sentido, os internautas necessitam atentar para o fato de que as informações inseridas na rede mundial de
computadores, hoje, se tornaram completamente vulneráveis, não sendo mais possível se ter o controle do
que poderá ou não ser visualizado por terceiros.

Infelizmente o deslumbramento frente às possibilidades de serviços e softwares faz com que os usuá-
rios distribuam sem o mínimo de atenção um oceano de informações sobre si mesmo, que fica apenas a um
clique de uma empresa atrás de clientes ou de criminosos atrás de vítimas. São informações disponibilizadas
com ou sem a autorização do proprietário. São dados expostos sem qualquer tipo de segurança e sem qual-
quer obediência aos princípios de proteção aos dados pessoais. Ou seja, não há garantia quanto a segurança

532
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

física e lógica do armazenamento dos dados em questão, bem como não existe obediência ao princípio da fi-
nalidade e da transparência, o que termina por afetar o princípio do livre acesso e o princípio da prevenção11.

Art. 8º, PL 4060/2012


I - Princípio da finalidade: a não utilização dos dados pessoais objeto de tra-
tamento para finalidades distintas ou incompatíveis com aquelas que funda-
mentaram a sua coleta e que tenham sido informadas ao titular; bem como a
limitação deste tratamento às finalidades determinadas, explícitas e legítimas
do responsável;
II - Princípio da necessidade: a limitação da utilização de dados pessoais ao
mínimo necessário, de forma a excluir o seu tratamento sempre que a finali-
dade que se procura atingir possa ser igualmente realizada com a utilização
de dados anônimos ou com o recurso a meios que permitam a identificação
do interessado somente em caso de necessidade;
III - Princípio do livre acesso: a possibilidade de consulta gratuita, pelo titular,
de seus dados pessoais, bem como de suas modalidades de tratamento;
IV - Princípio da proporcionalidade: o tratamento de dados pessoais apenas
nos casos em que houver relevância e pertinência em relação à finalidade
para a qual foram coletados;
V - Princípio da qualidade dos dados: a exatidão dos dados pessoais objeto de
tratamento, com atualização realizada segundo a periodicidade necessária
para o cumprimento da finalidade de seu tratamento;
VI - Princípio da transparência: a informação ao titular sobre a realização do
tratamento de seus dados pessoais, com indicação da sua finalidade, catego-
rias de dados tratados, período de conservação destes e demais informações
relevantes;
VII - Princípio da segurança física e lógica: o uso, pelo responsável pelo tra-
tamento de dados, de medidas técnicas e administrativas proporcionais ao
atual estado da tecnologia, à natureza dos dados e às características especí-
ficas do tratamento, constantemente atualizadas e aptas a proteger os dados
pessoais sob sua responsabilidade da destruição, perda, alteração e difusão,
acidentais ou ilícitas, ou do acesso não autorizado;
VIII - Princípio da boa-fé objetiva: o respeito à lealdade e à boa-fé objetiva no
tratamento de dados pessoais; e
IX - Princípio da responsabilidade: a reparação, nos termos da lei, dos danos
causados aos titulares dos dados pessoais, sejam estes patrimoniais ou mo-
rais, individuais ou coletivos.
X – Princípio da prevenção: o dever do responsável de, para além das dispo-
sições específicas desta Lei, adotar, sempre que possível, medidas capazes de
prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais.

Neste cenário, surge, nos dias atuais, a grande polêmica sobre a nova política de privacidade adota-
da pela Google, uma das maiores empresas de serviços virtuais. Em síntese, tudo o que o usuário fizer na
internet será enviado ao Google no intuito de facilitar a veiculação de publicidade personalizada. Ou seja,
ao realizar uma busca sobre determinado assunto no buscador da Google, por exemplo, o tema será auto-
maticamente enviado para o servidor Google que se encarregará de iniciar um “bombardeio” de publicidade
de produtos e serviços compatíveis com sua pesquisa inicial. Ressalta-se que a veiculação dessa publicidade
personalizada se dará nos demais canais/serviços da empresa, como pode-se observar do trecho extraído da
política de privacidade do Google12:

11  DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: Direito Privado e Internet. Coordenação
de Guilherme Magalhães Martins. São Paulo: Atlas, 2014. P. 71-72.
12  Política de Privacidade do Google. Disponível em https://static.googleusercontent.com/media/www.google.com/pt-BR//intl/
pt-BR/policies/privacy/google_privacy_policy_pt-BR.pdf Acesso em 25 de jan de 2016.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Informações que o usuário nos transmite.


Por exemplo, muitos de nossos serviços exigem que o usuário se inscreva em
uma Conta do Google. Quando o usuário abre essa conta, pedimos informa-
ções pessoais, como nome, endereço de email, número de telefone ou cartão
de crédito para armazenar com a conta. Se o usuário quiser aproveitar ao
máximo os recursos de compartilhamento que oferecemos, podemos tam-
bém pedir a ele que crie um Perfil do Google visível publicamente, que pode
incluir nome e foto.

Informações que coletamos a partir do uso que o usuário faz dos


nossos serviços.
Coletamos informações sobre os serviços que o usuário utiliza e como os
usa, por exemplo, quando assiste a um vídeo no YouTube, visita um website
que usa nossos serviços de publicidade ou quando vê e interage com nossos
anúncios e nosso conteúdo. Essas informações incluem:

Informações do dispositivo
Coletamos informações específicas de dispositivos (por exemplo, modelo de
hardware, versão do sistema operacional, identificadores exclusivos de pro-
dutos e informações de rede móvel, inclusive número de telefone). A Google
pode associar identificadores de dispositivo ou número de telefone à Conta
do Google do usuário.

Informações de registro
Quando o usuário utiliza nossos serviços ou vê conteúdo fornecido pela Goo-
gle, nós coletamos e armazenamos automaticamente algumas informações
em registros do servidor. Isso inclui: detalhes de como o usuário utilizou nos-
so serviço, como suas consultas de pesquisa. Informações de registro de te-
lefonia, como o número de seu telefone, número de quem chama, números
de encaminhamentos, horário e data de chamadas, duração das chamadas,
informações de identificador de SMS e tipos de chamadas. Endereço de pro-
tocolo de Internet (IP) informações de evento de dispositivo como problemas,
atividade de sistema, configurações de hardware, tipo de navegador, idioma
do navegador, data e horário de sua solicitação e URL de referência. cookies
que podem identificar exclusivamente seu navegador ou sua Conta do Goo-
gle.

Informações do local
Quando o usuário utiliza os serviços da Google, podemos coletar e processar
informações sobre a localização real dele. Além disso, usamos várias tecnolo-
gias para determinar a localização, como endereço IP, GPS e outros sensores
que podem, por exemplo, fornecer à Google informações sobre dispositivos,
pontos de acesso WiFi e torres de celular próximos.

Números de aplicativo exclusivos


Determinados serviços incluem um número de aplicativo exclusivo. Este nú-
mero e as informações sobre sua instalação (por exemplo, o tipo de sistema
operacional e o número da versão do aplicativo) devem ser enviados à Google
quando o usuário instalar ou desinstalar esse serviço ou quando esse serviço
entrar em contato periodicamente com nossos servidores, como para atuali-
zações automáticas.

Armazenamento local
Podemos coletar e armazenar informações (inclusive informações pessoais)
localmente em seu dispositivousando mecanismos como armazenamento no
navegador da web (inclusive HTML 5) e caches de dados de aplicativo.

534
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Cookies e tecnologias semelhantes


Nós, juntamente com nossos parceiros, usamos várias tecnologias para cole-
tar e armazenar informações quando o usuário visita um serviço da Google.
Tais informações podem incluir o uso de cookies ou tecnologias semelhantes
para identificação do navegador ou dispositivo do usuário. Também usamos
essas tecnologias para coletar e armazenar informações quando o usuário
interage com serviços que oferecemos a nossos parceiros, como serviços de
publicidade ou recursos da Google que possam aparecer em outros sites.
Nosso produto Google Analytics ajuda empresas e proprietários de sites a
analisar o tráfego nos respectivos websites e apps. Quando as informações do
Google Analytics são usadas com nossos serviços de publicidade, como os que
usam o cookie DoubleClick, elas são vinculadas a informações sobre visitas
a diversos sites, pelo cliente do Google Analytics ou pela Google, por meio da
tecnologia da Google.

Mesmo diante de toda essa facilidade, celeridade e praticidade para os usuários mais exigentes quan-
to a velocidade das páginas, muitos esquecem que se trata de uma invasão discricionária de privacidade. Ou
seja, mesmo ciente de todas as possibilidades de utilização dos dados pessoais ali cadastrados e das conversas
monitoradas, a maioria dos usuários permite tal conduta com receio de perder o acesso aos diversos meca-
nismos oferecidos pelo Google, uma vez que as novas regras de privacidade não são opcionais.

A grande preocupação está no aumento do controle da Google quanto às informações postadas e


cadastradas. Pois, apesar da empresa ter garantido que não haverá venda dos dados pessoais cadastrados13,
estes podem ser trabalhados pela Google para oferecer outro serviço ou uma publicidade, como dito acima.

Embora, se entenda como um modelo de privacidade transparente, no linguajar popular “jogar lim-
po” com o usuário (existindo, inclusive, um painel de controle para o acesso a todas as informações)14, a nova
política de privacidade do Google não pode ser vista como um avanço, mas sim como uma forma de invasão à
privacidade. Na realidade, diante de uma ótica crítica e razoável o que se observa é apenas um meio de se es-
quivar das responsabilidades e dos prováveis processos judiciais oriundos desse tipo de invasão. A motivação
aqui é não mais se permitir como argumento as políticas omissas de privacidade. Dessa forma, não é coerente
e nem aceitável se pensar que ao concordar com o armazenamento de dados para fins de recebimento de
resultados personalizados nas pesquisas, o usuário não preferiria utilizar a rede sem que todos os seus passos
fossem monitorados e ainda repassados para terceiros.

A política de privacidade em questão, como demonstrado acima através dos seus trechos, informa
que o Google coletará informações para fornecer serviços melhores a todos os seus usuários e, que poderá,
ainda, coletar informações específicas do dispositivo como, por exemplo, o modelo de hardware, versão do
sistema operacional, identificadores exclusivos de produtos e informações de rede móvel, inclusive número
de telefone do usuário. Em relação a este último, informa o buscador que também poderá identificar infor-
mações de registro de telefonia, como o número de seu telefone, número de quem chama, números de en-
caminhamentos, horário e data de chamadas, duração das chamadas, informações de identificador de SMS
e tipos de chamadas15.

Um exemplo fático de que a política de privacidade adotada pelo Google transgrede em todos os
aspectos o direito à privacidade, é a adesão conjunta a Aliança de Anunciantes Digitais (Digital Advertising

13  Portal R7 notícias. Polêmica, nova política de privacidade do Google entra em vigor. Disponível em: http://noticias.r7.com/
tecnologia-e-ciencia/noticias/polemica-nova-politica-de-privacidade-da-google-entra-em-vigor-20120301.html?question=0. Aces-
so em 01 de março de 2012.
14  Painel de Controle do Google. Disponível em: https://accounts.google.com/ServiceLoginAuth?continue=https%3A%2F%-
2Fwww.google.com%2Fdashboard%2Fb%2F0%2F%3Fhl%3Dpt-BR&followup=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2Fdashboar-
d%2Fb%2F0%2F%3Fhl%3Dpt-BR&service=datasummary&hl=pt-BR
15  SANTOS, Fabíola Meira de Almeida. O Google que tudo vê e tudo sabe. Disponível em: http://www.jornaldasmissoes.com.br/
noticias/geral/id/875/artigo-o-google-que-tudo-ve-e-tudo-sabe.html. Acessado em 10 de março de 2012.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Alliance)16. Ou seja, o usuário poderá decidir se quer ou não ter seu conteúdo rastreado pelo Google e a partir
de então utilizar uma função no navegador (acrescida por consequência da aliança) que permite ao usuário
bloquear o rastreamento das suas preferências de navegação. A aliança visa minimizar a utilização dos
“monitores de hábitos” que objetivam a formação do perfil de um cliente potencial, que são utilizados, em
regra, para a realização de propostas de cartões de crédito, seguros e vagas de emprego. Entretanto, é im-
portante destacar que esta medida ainda não é suficiente, uma vez que as informações que são coletadas do
usuário podem ainda ser utilizadas para pesquisa de mercado e desenvolvimento de produtos.

É justamente diante deste cenário que a sociedade da informação deve se questionar cada vez mais
sobre o que é feito com os seus dados de navegação, bem como deve ser crescente o interesse em ler os vastos
termos de privacidade antes de aceitar um serviço oferecido por um determinado navegador. Pois um dos
grandes problemas de invasão a privacidade é que os próprios usuários não são cautelosos com as suas infor-
mações pessoais e não se dão conta da livre interconexão de informações que ocorre no âmbito cibernético,
uma vez que a maioria, se não todos, os fornecedores de serviços ou softwares não avisam sobre a possibili-
dade de interconexão das informações dos seus usuários.

3. TERMO DE USO DO GOOGLE E INFRAÇÕES À LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

Passa-se, portanto, para a análise do termo de privacidade do Google sob a ótica do código de defesa
do consumidor, bem como sob o ponto de vista da violação ao direito constitucional à privacidade.

Newton De Lucca17 aponta o surgimento de “uma nova espécie de consumidor (...) – a do consu-
midor internauta – e, com ela, a necessidade de proteção normativa, já tão evidente no plano da economia
tradicional”. A modificação no conceito do “ser consumidor” atual, utiliza o meio ambiente eletrônico não só
para a efetivação do pacto contratual de bens ou serviços, mas, principalmente, para a coleta de informações
desses mesmos itens. Assim, o avanço da relação consumerista para o âmbito virtual, como tudo na socieda-
de, não trouxe só benefícios para o consumidor.

Para caracterização do fornecedor, tem-se no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, que tal
posto é assumido por toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira que desenvol-
vem atividades de comercialização de produtos, prestação de serviços, dentre outros. De acordo com o § 2º
do mesmo artigo e diploma legal, “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração”. Ou seja, nos termos do diploma em questão, para ser considerado serviço, este precisaria ser
remunerado. E o que entender sobre os serviços prestados pelo Google que são, em sua maioria, gratuitos? A
prestação é realmente gratuita?

Conforme decisão da Ministra Nanchy:

O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito


não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração”,
contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de
modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. (REsp 1316921 / RJ – STJ
2012)

No caso do Google, é clara a existência do chamado cross marketing, ou seja, ganho indireto con-
sistente numa ação promocional entre produtos ou serviços em que um deles, embora não rentável em si,
proporciona ganhos decorrentes da venda de outro. Dessa forma, a relação jurídica existente entre os inter-
nautas e o Google pode abarcar os entendimentos e regras trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
Dessa forma, há de se entender que inexiste prestação de serviço gratuita por parte do Google, vez que as
informações colhidas/entregues de forma espontâneas ao servidor são vistas como forma de pagamento pelo
serviço utilizado.
16  TIInsideOnLine. Google deixará de rastrear usuários em navegadores. Disponível em: http://convergecom.com.br/tiinsi-
de/23/02/2012/google-deixara-de-rastrear-usuarios-em-navegadores/ Acesso em 20 jan 2016.
17  DE LUCCA, Newton. Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier Latin, v.2, 2008, p. 27.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O Google enquanto pessoa jurídica estrangeira de direito privado que desenvolve atividades de co-
mercialização de produtos e prestação de serviços, independentemente de ser no meio virtual, possui todos
os requisitos de um fornecedor descrito pela legislação brasileira, não sendo, portanto, excluído dos deveres
positivados. Entretanto, no Termo de uso, verifica-se em alguns trechos a explícita afirmação de isenção de
responsabilidade pelo conteúdo ali postado. Por exemplo:

NOSSAS GARANTIAS E ISENÇÕES


Exceto quando expressamente previsto nestes termos ou em termos adi-
cionais, nem o Google, nem seus fornecedores ou distribuidores oferecem
quaisquer garantias sobre os serviços. Por exemplo, não nos responsabiliza-
mos pelos conteúdos nos serviços, por funcionalidades específicas do serviço,
ou pela confiabilidade, disponibilidade ou capacidade de atender suas ne-
cessidades fornecemos os serviços “na forma em que estão”. Certas jurisdi-
ções preveem determinadas garantias, como a garantia de comerciabilidade
implícita, adequação a uma finalidade específica e não violação. Na medida
permitida por lei, excluímos todas as garantias.

Outro ponto conflitante com a legislação brasileira é quando o mesmo termo de uso simplesmente
afirma ser de sua propriedade todo o conteúdo ali “derramado”. Assim, ao realizar qualquer upload nos ser-
viços do Google, automaticamente você está concedendo os direitos sobre aquele material, mesmo que deixe
de utilizar os serviços do site específico.

Quando você faz upload ou de algum modo envia conteúdo a nossos Servi-
ços, você concede ao Google (e àqueles com quem trabalhamos) uma licença
mundial para usar, hospedar, armazenar, reproduzir, modificar, criar obras
derivadas (como aquelas resultantes de traduções, adaptações ou outras al-
terações que fazemos para que seu conteúdo funcione melhor com nossos
Serviços), comunicar, publicar, executar e exibir publicamente e distribuir
tal conteúdo. Os direitos que você concede nesta licença são para os fins
restritos de operação, promoção e melhoria de nossos Serviços e de desen-
volver novos Serviços. Essa licença perdura mesmo que você deixe de usar
nossos Serviços (por exemplo, uma listagem de empresa que você adicionou
ao Google Maps). Alguns Serviços podem oferecer-lhe modos de acessar e re-
mover conteúdos que foram fornecidos para aquele Serviço. Além disso, em
alguns de nossos Serviços, existem termos ou configurações que restringem
o escopo de nosso uso do conteúdo enviado nesses Serviços. Certifique-se de
que você tem os direitos necessários para nos conceder a licença de qualquer
conteúdo que você enviar a nossos Serviços.

A partir dos últimos dois trechos dos termos de uso e condições do Google fica claro que a empresa
se coloca disponível para se tornar “proprietária” de todas as informações postadas, incluídas e sugeridas por
seus usuários. Mas, se coloca numa postura totalmente omissa quanto a responsabilidade pela manutenção,
armazenamento e segurança das mesmas informações que se apoderou. Resta clara a presença do princípio
da vulnerabilidade atrelado ao usuário/consumidor que se vê submetido a um contrato de adesão formulado
por uma empresa Multinacional que vincula a efetiva utilização dos seus serviços/produtos a assinatura de
um termo de uso e condições constante de cláusulas não trazem equilíbrio a relação contratual estabelecida.

Nesse contexto, a reparação pelos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação
de serviços ou a existência de informações inadequadas ou insuficientes sobre a fruição e riscos daquele ser-
viço, também recai o Google em nossa responsabilidade civil, sendo-lhe imputado o dever de indenizar. Isto
porque, conforme o parágrafo 3º do artigo 14 do CDC, o fornecedor de serviços só será isento da sua respon-
sabilidade quando provar a inexistência do defeito após a prestação do serviço, ou então a culpa exclusiva do
consumidor ou de terceiros.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Assim, analisando as cláusulas já mencionadas, verifica-se a ocorrência, do que se chama no Direito


do Consumidor brasileiro, de Cláusulas Abusivas. Ou seja, “cláusulas que tornem a prestação por uma das
partes excessivamente onerosas, vexatória ou opressivas, para o consumidor, relembrando que o CDC traz
princípios protetivos para resguardar a fragilidade deste diante do negócio”18. As cláusulas abusivas se apre-
sentam com maior frequência nos contratos de adesão. E para confirmar que o formato do contrato disponi-
bilizado pelo Google é um contrato de adesão, basta observar o item 2 do termo de uso e condições do Google
Chrome:

2. Aceitação dos Termos


2.1 Para usar os Serviços, o usuário deverá primeiro concordar com os Ter-
mos. Não é permitido o uso dos Serviços por parte do usuário se ele não
aceitar os Termos.
2.2 O usuário pode aceitar os Termos:
(A) clicando para aceitar ou concordar, no caso de essa opção ser disponibili-
zada pelo Google na interface do usuário do Serviço; ou
(B) usando efetivamente os Serviços. Nesse caso, o usuário compreende e
aceita que o Google considerará seu uso dos Serviços uma aceitação dos Ter-
mos a partir desse momento.

A abusividade das cláusulas postas pelo Google, como já dito e exemplificado, leva a violações da
privacidade e intimidade do usuário. Ou seja, a partir da captura e repasse dos dados pessoais, por exemplo,
tem-se a designação de gostos e valores de um determinado usuário. O que leva a existência das propagandas
repetitivas e constantes caracterizadas pela personalização do conteúdo gerado e recebido. Como já dizia Eric
Schmidt19, diretor Geral do Google, “a tecnologia vai ser tão boa que as pessoas terão muita dificuldade em
assistir ou consumir qualquer coisa que não tenha sido minimamente adaptada para elas”. Entretanto, a per-
sonalização do conteúdo virtual influencia no poder de escolha do indivíduo, causando, inclusive, um direcio-
namento de comportamento do usuário. Tal fato viola o direito a Autodeterminação Informativa, reconhecido
em 1983 pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão20 ao declarar a inconstitucionalidade parcial da Lei de
Senso de População da Alemanha. Para Ana Rosa Gonzales Morua21, a Autodeterminação Informativa é o:

(...) “derecho de todas as personas a controlar el flujo de informaciones que


él le conciernem, - tanto em la recolección como el posterior tratamiento
y uso de los datos personales – mediante uma série de derechos subjetivos
como el consentimento, el derecho de acesso, retificacíon, etc”

Na Espanha, o direito à Autodeterminação Informativa é considerado um direito fundamental, se-


gundo Vicente López–Ibor Mayor y Carmen Plaza22:

El derecho a la autodeterminación informativa se configura, pues, como un


derecho fundamental de la persona, que entendemos consagrado constitu-
cionalmente en nuestro texto fundamental en el artículo 18.4 cuando se

18  RIBEIRO, Raphael. Cláusulas abusivas e publicidade online em face do direito do consumidor: uma análise do
Google Inc. Disponível em: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/4352/4109 Acesso em 20 jan
2016.
19  SCHMIDT, Eric APUD PARISER, Eli. Tradução: Diego Alfaro. O filtro invisível. O que a internet está escondendo de
você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. P. 47.
20  PEREIRA, Marcelo Cardoso. O sistem de proteção de dados pessoais frente ao uso da informática e o papel o
direito da autodeterminação informativa. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2266/o-sistema-de-protecao-de-dados-
-pessoais-frente-ao-uso-da-informatica-e-o-papel-do-direito-de-autodeterminacao-informativa Acesso em 25 jan 2016
21  MORUA, Ana Rosa Gonzales: “Comentario a la S.T.C. 254/1993, de 20 de Julio. Algunas Reflexiones en torno al
artigo 18.4 de la Constitución y la Protección de Datos Personales”, in Informática y Derecho nºs 6 y 7, Aranzadi, Mérida,
1994. P. 243-244.
22  LÓPEZ–IBOR MAYOR, Vicente e PLAZA, Carmen. El Defensor del Pueblo: Derecho, tecnologías de la Información
y Libertades in Informática y Derecho nºs 6 y 7, Aranzadi, Mérida, 1994. P. 277

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

establece ‘la necesidad de limitar el uso de la informática para garantizar el


honor y la intimidad personal y familiar de los ciudadanos’.

É importante lembrar e dizer que a portaria federal n.º 5/2002/SDE/MJ complementou o elenco de
cláusulas abusivas constantes do artigo 51 do CDC, ao colocar em seu artigo 1 que:

Considera abusiva, nos contratos de fornecimento de produtos e serviços, a


cláusula que: I – autorize o envio do nome do consumidor, e/ou seus garan-
tes, a bancos de dados e cadastros de consumidores, sem comprovada notifi-
cação prévia; II – imponha ao consumidor, nos contratos de adesão, a obriga-
ção de manifestar-se contra a transferência, onerosa ou não, para terceiros,
dos dados cadastrais confiados ao fornecedor; III – autorize o fornecedor a
investigar a vida privada do consumidor.

Assim, está evidenciada a relação consumerista entre o usuário de internet e o Google, quando da
utilização dos serviços da empresa em questão, mesmo que não exista contraprestação pecuniária. Caracte-
rizada também está a abusividade de todas as cláusulas do termo de uso e condições do Google aqui expostas,
uma vez que o usuário dificilmente terá conhecimento técnico suficiente para lidar com a complexidade das
interconexões e desobediências técnicas e teóricas aos princípios de proteção aos dados pessoais.

No contexto da quebra de princípio estabelecido na Constituição Espanhola, bem como princípios


postos na legislação brasileira, verifica-se a transgressão não só ao código de defesa do consumidor enquanto
busca pela reparação de danos materialmente ocorridos. É importante estabelecer que as mesmas desobedi-
ências traduzem uma transgressão a princípios e direitos constitucionalmente tutelados no Brasil.

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 5º, X diz que “são invioláveis a intimidade, a vida pri-
vada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decor-
rente de sua violação”. A privacidade ainda se vê resguardada no direito brasileiro através do Marco Civil da
Internet em seu artigo 8º, caput. Trazendo ainda um parágrafo único contendo especificações consumeristas
e de indenização no tocante a violação do direito devidamente garantido pelo Estado e que deve ser mantido
por aqueles que aqui querem prestar serviço.

Art. 8o Lei 12.965/2014 - A garantia do direito à privacidade e à liberdade de


expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de
acesso à internet.
Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que vio-
lem o disposto no caput, tais como aquelas que:
I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas,
pela internet; ou
II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a
adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de servi-
ços prestados no Brasil.

É importante ressaltar que o direito do consumidor e o direito à privacidade por serem direitos
constitucionalmente amparados, caso sofram qualquer tipo de violação no âmbito virtual por parte de
empresas estrangeiras, estarão infringindo ou agredindo a soberania nacional do Brasil. Logo, cabe relembrar
o artigo 17 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro que diz que “as leis, atos e sentenças de
outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a
soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”. O termo de uso e condições do Google não passa
de uma declaração abusiva e unilateral sem eficácia jurídica no Brasil.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONCLUSÃO

Levando em consideração as transformações sociais frente às mutações tecnológicas que influenciam


toda a população, fazendo nascer o que conhecemos hoje por cibercultura, o direito à privacidade e o direito
do consumidor não teriam como sair incólumes. A freneticidade da convivência virtual traduz uma nova
forma de pensar, fazer, contratar e ser. E é a partir dessa nova forma de vida que se criam as novas regras.

A internet por muito tempo fora considerada espaço “sem lei”, ou seja, todas as regras postas pelos
ordenamentos jurídicos do planeta deveriam ser desconsideradas, pois, o domínio das “terras virtuais” não
pertenciam ao Estado. Hoje, tal entendimento se perpetua para alguns indivíduos e empresas. Estas, por
vezes, decidem trabalhar de maneira livre, utilizando-se unicamente das regras jurídicas existentes em seu
País de fundação ou estabelecimento. Entretanto, esquecem que desde sempre existem outros ordenamen-
tos que devem ser respeitados caso a intenção seja de, por exemplo, prestar serviço dentro do território vizi-
nho. Poder-se-ia, então, dizer que os direitos ou as regras continuam as mesmas. O que mudou ou o que foi
acrescentado fora uma nova localidade para a prática de todos os atos/negócios jurídicos. Não saímos do meio
físico, mas aderimos ao meio virtual. Essa é a cibercultura.

A existência de filtros, conexões, compartilhamentos, etc. ressalta a necessidade de precaução quan-


to a disponibilização dos dados no meio virtual. A cautela para a assinatura do termo de uso e condições deve
se assimilar a assinatura de um contrato físico. Assim, uma vez o sistema alimentado caberia ao proprietário
do site a responsabilidade pela manutenção, armazenamento e sigilo dos dados pessoais ali postados. O ras-
treamento, bem como a utilização daqueles dados para outros fins que não os especificados no termo de uso
e condições, infringe de imediato o princípio da finalidade que está devidamente posto no Brasil (E não só no
Brasil!) como um dos princípios de proteção aos dados pessoais.

O controle de informações também é algo considerado transgressor de direitos, vez que retira do
indivíduo o seu livre arbítrio de escolhas imotivadas, gerando unicamente um conteúdo personalizado que
segundo o Google traduz unicamente o início da facilitação e praticidade para os usuários e aquilo que eles
querem ter acesso. Entretanto, a personalização, como demonstrado durante todo o texto, não traz só o aces-
so rápido e prático ao conteúdo desejado, mas também anula todos os outros conteúdos e restringe o alcance
das informações, vez que pode chegar a retirar um indivíduo de uma sociedade plural, levando-o para um
círculo fechado no qual as ideias e ações se restringem àquela personalização. É a agressão ao direito da au-
todeterminação informativa.

O desconhecimento, por parte dos usuários, das quebras das regras jurídicas realizadas pelo Google
termina por não alertar para o fato do compartilhamento de informações para alimentar bancos de dados
de terceiros. O que acontece é o desconhecimento sobre a natureza jurídica da relação estabelecida entre o
usuário e o Google. Como ficou determinado no presente estudo, mesmo não existindo uma contrapresta-
ção pecuniária ao serviço prestado pelo Google aos usuários de internet, a relação descrita se compreende
como relação consumerista. E, portanto, deve obedecer aos ditames do Código de Defesa do Consumidor. A
contraprestação dada pelos usuários pode ser entendida como pagamento indireto. Ou seja, o usuário paga
o serviço de acesso e utilização do Gmail, por exemplo, com todos os dados que são alocados dentro do site
em comento.

Mesmo que o Google continue a dizer que não tem qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pelos
dados ali colhidos, configurada está a relação consumerista e principalmente a vulnerabilidade do consumi-
dor, vez que diante da rede mundial de computadores, para ter acesso ao serviço ele apenas alimenta o banco
de dados sem qualquer conhecimento técnico ou teórico de como essa alimentação é feita e como os dados
serão tratados. Por fim, a abusividade das cláusulas existentes no termo de uso e condições do Google traduz
o desrespeito a soberania nacional.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

REFERÊNCIAS

DE LUCCA, Newton. Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Quartier Latin, v.2,
2008.

DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: Direito Privado e Internet.
Coordenação de Guilherme Magalhães Martins. São Paulo: Atlas, 2014

GOOGLE. Painel de Controle do Google. Disponível em: https://accounts.google.com/ServiceLoginAuth?-


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LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de Correspondência na Internet. in: LUCA, Newton de e


FILHO, Adalberto Simão .Direito & Internet - Aspectos jurídicos Relevantes, São Paulo: EDIPRO, 2000.

MORAES, Alexandre de. Constituição Brasileira e Legislação Constitucional. 5º ed, São Paulo: Atlas,
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Direito(s) em debate.

DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS

Rafael Lima Rangel Vasconcelos


Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
rafaelrangelvasconcelos@gmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Discutindo a cidadania: brasileiro x estrangeiro; 1.1. Brasileiro nato; 1.2.
Brasileiro naturalizado; 1.3. Estrangeiro; 2. Direitos políticos; 2.1. Direito ao sufrágio; 2.2. Elegibi-
lidade; 2.3. Plebiscito e referendo; 2.4. Iniciativa popular de lei; 2.5. Direitos políticos passivos; 3.
Estrangeiros poderiam exercer direitos políticos?; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A concessão de direitos políticos aos estrangeiros, tem sido objeto de alguns debates no cenário políti-
co contemporâneo, principalmente através de Projetos de Emenda Constitucionais; associando essa conces-
são a questões de requisitos necessários para obtê-los. Esse contexto de concessões oferece a oportunidade
para questionamentos sobre qual a justificativa para certos direitos serem concedidos e outros não. Além
disso, deve-se questionar qual a importância para os estrangeiros da aquisição de direitos políticos.

A resposta a esse primeiro questionamento é dada através do debate realizado por uma análise cons-
titucionalista, para se chegar ao conhecimento do porque que os direitos políticos devem ser garantidos aos
estrangeiros que residem de forma permanente no Brasil. Alguns constitucionalistas, por exemplo, defen-
dem que os estrangeiros não devem adquirir os direitos políticos. Por outro lado, os debates são calorosos e
já tomaram proporção mundial. Há, portanto, quem acredite que os estrangeiros devam ter garantidos os
direitos políticos.

O segundo questionamento é sobre qual a importância desses direitos políticos para imigrantes, deve
ser realizada por uma análise sociológica-constitucionalista, para que se compreendao que os estrangeiros
podem realizar com direitos políticos e o que visam garantir com os mesmos.

Com a mudança dessas concepções, também muda a forma como a República Federativa do Brasil
passará a tratar os imigrantes de todo o mundo, acarretando, com isso, uma quebra de fronteiras para o
mundo, uma vez que a sociedade passará a ser caracterizada pela pluralidade, pois ainda se tem muito a
concepção de nação ligada à nacionalidade dos indivíduos1. (REIS, 2006, p. 157).

O objetivo deste artigo é oferecer uma apresentação crítica deste complexo debate sobre a concessão
dos direitos políticos aos estrangeiros residentes no Brasil. Para tanto, se procederá da seguinte maneira: no
primeiro ponto, serão oferecidas as definições de nacionais, sejam eles natos ou naturalizados, e estrangeiros.
Em seguida, iremos fazer uma análise do conceito e dos direitos políticos previstos na Constituição Federal
de 1988. Já no terceiro ponto, dedicar-se-á uma análise sobre a possível concessão dos direitos políticos aos
estrangeiros, apresentando os motivos pelos quais esses devem adquirir os direitos políticos e quais são os
direitos políticos que esses possam vir a adquiri-los, a fim de manter a discussão sobre essa possível concessão
dos direitos políticos aos estrangeiros.

1  REIS, Rossana Rocha. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais.
Vol. 19, n° 55, junho 2006. p. 157.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. DISCUTINDO A CIDADANIA: BRASILEIRO X ESTRANGEIRO.

As políticas de nacionalidade e imigração estão diretamente ligadas. Antes de tudo, deve se definir
quem é o nacional, para se chegar à noção de quem é o estrangeiro. (FRAZÃO, 2000, p. 3).

A nacionalidade diz respeito a um vínculo pessoal e político entre o indivíduo e o Estado. Através
desse vínculo, o indivíduo se integra em determinada comunidade política. Esse vínculo é o que distingue o
nacional do estrangeiro, pois esse não possui o vínculo.

O próprio Estado, por sua natureza, faz a distinção entre esses, no que concerne aos seus respectivos
direitos, pois o Estado não concede aos estrangeiros os mesmos direitos que concedem aos brasileiros, e não
concede aos brasileiros naturalizados, todos os direitos que são concedidos aos brasileiros natos.

1.1 BRASILEIRO NATO.

Brasileiro nato é aquele que adquire a nacionalidade brasileira através do fator nascimento2. Cor-
responde a aquele que nasce na República Federativa do Brasil. É também denominada de nacionalidade
brasileira primária, pois ela decorre do fator nascimento. Ela decorre, portanto, de um fato natural, seja pelo
critério jus soli, jus sanguini ou misto. Segundo a Constituição Federal de 1988, também será considerado
brasileiro nato aquele que nascer em território estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que
qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil e aquele que nascer no território estran-
geiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente
ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a
maioridade, pela nacionalidade brasileira. Ou seja, nem somente aquele que nascer no território brasileiro
será brasileiro nato, mas o que nascer em território estrangeiro também, desde que preencha os requisitos
citados acima.

1.2 BRASILEIRO NATURALIZADO.

O brasileiro naturalizado é aquele que adquire a nacionalidade brasileira secundária. Ela resulta de
um ato voluntário, e não do fator nascimento. (FRAZÃO, 2000, p.4). Ou seja, é imprescindível a vontade do
indivíduo de adquirir a nacionalidade brasileira.

A República Federativa do Brasil disponibiliza esse único meio derivado para aquele estrangeiro, de-
tentor de outra nacionalidade, e, para o apátrida, que desejar adquirir a nacionalidade brasileira, mas, qual-
quer desses, deve preencher os requisitos necessários para que possa adquirir a nacionalidade brasileira3.

Esses não possuem as mesmas condições jurídicas, ou seja, não têm os mesmos direitos ou os mes-
mos deveres de que o brasileiro nato. O brasileiro nato possui o direito de exercer cargos aos quais os brasi-
leiros naturalizados não têm competência para exercê-los, por serem cargos que dizem respeito à soberania
e aos interesses políticos do país4.

1.3 ESTRANGEIRO.

São considerados estrangeiros, à contrário sensu, todos aqueles que não estão compreendidos nas
condições de reconhecimento de nacionalidade pela Constituição Brasileira de 1988. (LOBO, 1968, p. 12).
É aquele que tenha nascido fora do território nacional que não tenha adquirido a nacionalidade brasileira,

2  Idem, p. 156.
3  BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
4  Ibdem.

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Direito(s) em debate.

por qualquer forma prevista na Constituição. A Constituição brasileira considera os estrangeiros como resi-
dentes e não residentes no Brasil. Para a análise só irá interessar os estrangeiros residentes no país, visto que,
iremos analisar a sua condição em relação aos direitos políticos. Na Constituição Federal de 1988, existe um
princípio que afirma que os estrangeiros, residentes no país, gozam dos mesmos direitos e também tem os
mesmos deveres de que os brasileiros, porém se fazem presentes algumas ressalvas quanto a esse dispositivo.
Essas ressalvas estão previstas num estatuto especial, referente à lei 6.815/80, ao qual estão condicionados
os estrangeiros.

2. DIREITOS POLÍTICOS

Direitos políticos são o direito de participar no exercício do poder político, como membro do corpo
investido de autoridade política, ou como eleitor dos membros de tal corpo. (MARSHALL, 1998, p. 94)

É o direito à participação na formação ou do exercício da autoridade nacional, esteja ele na posição


de eleitor ou de quem está exercendo um mandato político.

Os direitos políticos se dividem em direitos políticos ativos e direitos políticos passivos. Os direitos po-
líticos ativos são: o direito de sufrágio, que se refere ao direito de votar (alistabilidade) e ser votado (elegibili-
dade); plebiscito; referendo; e a iniciativa popular de lei. Já os direitos políticos passivos são: a inelegibilidade,
e as normas de perda e suspensão os direitos políticos.

Os direitos políticos ativos dizem respeito à forma de participação do indivíduo na democracia repre-
sentativa, que é o regime de governo previsto na Constituição Federal de 1988. A seguir, serão demonstrados
exemplos de direitos políticos previstos no ordenamento constitucional brasileiro.

2. 1 DIREITO AO SUFRÁGIO.

O direito ao sufrágio é o direito que se externa através do voto para escolher pessoas que irão repre-
sentar o Estado nas funções estatais, mediante o sistema representativo do regime democrático. (SOUZA,
2015, p. 4)

Esse voto se caracteriza por ser obrigatório somente para os indivíduos que possuem entre 18 e 70
anos de idade, personalíssimo, ou seja, só pode ser exercido pelo próprio indivíduo que detém esse direito,
pessoalmente; liberdade, pois o indivíduo poderá votar no candidato que acreditar que exercerá o manda-
to da melhor maneira possível; sigilosidade, onde o voto deverá ser exercido de forma secreta. O voto será
exercido pessoalmente e de forma direta. É garantida a periodicidade, ou seja, o candidato não poderá, caso
seja eleito, permanecer no poder por mais de que o tempo que foi determinado pela Constituição Federal de
1988, caso não seja reeleito, observado o limite de reeleições consecutivas.

2.2 ELEGIBILIDADE.

A elegibilidade diz respeito ao Direito Político de ser votado (NETO, 2006, p. 5). É a capacidade elei-
toral passiva que diz respeito à possibilidade que o cidadão tem de concorrer a determinado mandato político,
por meio de uma eleição popular, desde que preencha os requisitos necessários, exigidos pela Constituição
brasileira, para a candidatura5. Esses requisitos são a idade mínima para preencher o cargo, a capacidade
eleitoral ativa, a nacionalidade brasileira ou condição de português equiparado, o pleno gozo dos direitos
políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária, sem a qual o
indivíduo não poderá se candidatar.

5  BRASIL. Constituição Federal. Art. 14. [...] §3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasilei-
ra; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação
partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos
para Governador e Vice Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual
ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.

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Direito(s) em debate.

2.3 PLEBISCITO E REFERENDO.

São consultas ao povo para decidir sobre matéria de importância para a nação em relação a assuntos
de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. O referendo permite aos cidadãos confirmarem ou
não ato legislativo ou administrativo; o plebiscito, por sua vez, é a convocação com anterioridade para que o
povo aprove ou denegue o ato legislativo ou administrativo (RIBEIRO, 2007, p. 8).

2.4 INICIATIVA POPULAR DE LEI.

A iniciativa popular diz respeito ao direito assegurado a um conjunto de cidadãos de iniciar o processo
legislativo, o qual se desenvolve num órgão estatal, que é o Parlamento. (BENEVIDES, 1998, p. 33). Está
prevista no art. 61, § 2°, da CF/88. Ela só poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de
um projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por
cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles; ou seja, cada Estado
participante, deve ter, no mínimo, 0,3% do eleitorado nacional na apresentação do projeto de lei.

2.5 DIREITOS POLÍTICOS PASSIVOS.

Os direitos políticos negativos são as previsões constitucionais que restringem a participação do ci-
dadão nos órgãos governamentais. A restrição pode se dar pela inelegibilidade e/ou perda e a suspensão dos
direitos políticos. (MORAES, 2014, p. 248).

3. ESTRANGEIROS PODERIAM EXERCER DIREITOS POLÍTICOS?

A ligação entre Estado e nação implica na formação de um laço entre nacionalidade e cidadania.
(REIS, 2006, p. 155).

A cidadania é concedida em função da nacionalidade. Ou seja, somente aquele que for brasileiro nato
ou naturalizado terá acesso à cidadania.

Atualmente, a cidadania está diretamente ligada aos direitos políticos, de forma que, para adquirir os
direitos políticos, o indivíduo precisa ser cidadão brasileiro (nato/naturalizado).

O ideal revolucionário da cidadania, o qual absorve a ideia de nacionalidade, serviu de inspiração


para a criação de legislações de nacionalidade de vários países, de forma que criou a concepção da ligação da
soberania e da cidadania à nacionalidade.

É comum as doutrinas defenderem que os estrangeiros, no Brasil, não têm direitos políticos e nem
devem passar a ter, por diversos motivos, dentre eles, que os direitos políticos são os direitos que diferenciam
os cidadãos dos demais (estrangeiros legais e ilegais), pois, os direitos políticos, são considerados, de certa
forma, um privilégio por serem cidadãos. O exercício desses está diretamente ligado à cidadania, na qual se
perpetua a soberania.

Desde o período pós-guerra, vêm ocorrendo profundas alterações no mundo, que está sofrendo gran-
des alterações nos modelos de sociedade e nação. Há um século, os países da Europa começaram a recrutar,
em grande número, trabalhadores estrangeiros para que conseguissem atender a demanda de seus mercados
industriais. Esperava-se que esse fluxo de migração fosse temporário, porém ele perdura até os dias de hoje,
e passou a ser visto em diversos países do mundo. Com isso, formam-se novos modelos de sociedade, e se
faz importante o reconhecimento da existência de uma comunidade de direitos e deveres mais abrangente,
à qual pertenceriam todos aqueles que não são reconhecidos como cidadãos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Atualmente, com o aumento dos fenômenos migratórios em todos os países ocidentais, deve ser feita
uma reconsideração a alguns temas do constitucionalismo moderno, entre os quais o conceito de cidadania.
Esse sofreu, nos últimos tempos, grandes influências, passando a ter um significado amplo. O conceito de
cidadania passou a ser compreendido como cidadania em sentido substancial, considerando o conjunto de
direitos e deveres da pessoa, e não do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p.271). Com isso surge o que
se denomina de cidadania pós-nacional.

Sobre o fenômeno das imigrações:

Uma série de estudos recentes aponta para uma modificação nas relações
entre nacionalidade/cidadania e soberania/imigração. O fortalecimento de
um regime internacional de direitos humanos, segundo essas novas pesqui-
sas, tem obrigado os Estados a redefinirem suas fronteiras, tanto a interna,
como a externa, em função da universalidade dos direitos individuais. Esse
processo possuiria duas características: de um lado, os Estados estariam ven-
do sua soberania enfraquecida frente ao indivíduo, de outro, os laços que
ligam os direitos de cidadania à nacionalidade estariam se tornando mais
fracos. O Estado, portanto, não poderia definir quem poderia ou não entrar
em seu território, e isso seria atribuído ao indivíduo em nome da dignidade
inerente da pessoa humana. (REIS, 2006, p. 157).

Com os processos de globalização e a desregulamentação dos mercados financeiros, resultada pelo


processo de globalização, bem como a difusão da comunicação mundial (através dos meios telemáticos),
busca-se meios mais avançados na relação do cidadão com o Estado, muito embora interfira no conceito de
soberania, a partir do momento em que se sujeita a um sistema de valores. Como fruto desses processos, a
distinção entre “cidadãos” e “estrangeiros” tende a relativizar-se, uma vez que as regras dos ordenamentos
estatais acabam perdendo sua força, logo não têm o mesmo controle de que no passado. (ROSSI; DAL MON-
TE, 2014, p. 272).

Os estrangeiros possuem os mesmos deveres que os demais cidadãos, no Brasil. São cada vez mais
importantes na sociedade. Mas não usufruem dos mesmos direitos que os demais cidadãos residentes no
Brasil.

Há uma desproporção, uma vez que, em um país democrático uma parte da população cada vez mais
crescente não possa gozar dos direitos políticos, que são direitos extremamente importantes, pois dizem res-
peito à participação da vida pública de onde se vive. É de fundamental importância a inclusão do estrangeiro
no sistema, levando em conta as particularidades de cada um desses.

Para analisar o caso dos estrangeiros no Brasil com relação à aquisição dos direitos políticos, esse
artigo se baseia, também, numa doutrina italiana, que se mostra muito semelhante à condição brasileira,
com relação aos estrangeiros, e tem a mesma perspectiva. Lá, há muito tempo, as migrações são constantes,
então, pode-se dizer que é um dos lugares que têm a maior experiência nesse fenômeno.

Para Emanuele Rossi, os estrangeiros devem ter equiparação com os cidadãos, por meio da dignidade
humana:

Assumindo-se como verdadeiro que, no enredo constitucional das liberdades,


a “dignidade humana” deve ser considerada como valor que qualifica todas
as liberdades constitucionais (indicando-lhes o propósito e o ponto de desem-
barque), a sua tutela deve ser estendida, então, aos sujeitos que, privados do
vínculo jurídico de cidadania, colocam-se, de qualquer modo, em posição de
igualdade em relação aos próprios cidadãos (ROSSI; DAL MONTE, 2015, p.
273).

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Direito(s) em debate.

Segundo ele, deve-se conferir aos estrangeiros a posição constitucional em nosso ordenamento consi-
derando-se a prevalência de pessoa em relação ao do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p. 275).

Com relação aos estrangeiros regularmente residentes no território nacional da Itália, Francesca
Biondi afirma que a avaliação do princípio da não discriminação do estrangeiro da fruição das prestações de
natureza social tem contribuído para aproximar a condição do estrangeiro regularmente residente no terri-
tório àquela do cidadão. (ROSSI; DAL MONTE, 2014, p. 283).

Com isso, já existem doutrinadores e políticos que defendam a concessão dos direitos políticos ao es-
trangeiro. Se trata de um assunto de debates muito calorosos, chegando a ser, inclusive, assunto de algumas
PECs.

No Brasil, foram realizados os seguintes projetos de emenda constitucional visando o reconhecimento


de direitos políticos aos estrangeiros:

1. A PEC 401/2005, do Senador Orlando Fantazzini;

2. A PEC 14/2007, do Senador Álvaro Dias;

3. A PEC 88/2007, do Senador Sérgio Zambriani;

4. A PEC 119/2011, do Deputado Roberto Freire.

A PEC 401/2005 visava garantir o direito ao sufrágio (compreendido o direito de alistar-se como elei-
tor) para os estrangeiros que residem no Brasil há mais de cinco anos e que estão legalmente regularizados6.

A PEC 14/2007 foi proposta tendo por finalidade a participação dos estrangeiros nas eleições munici-
pais, somente essa exceção, em relação ao §2° do art. 14, CF, e a concorrência para o cargo de vereador, sem
que fosse necessária a nacionalidade brasileira7.

A PEC 88/2007 tinha por finalidade a participação, nas eleições, do estrangeiro residente há mais de
cinco anos, no Brasil, e que tivesse mais de dezesseis anos de idade. Essa proposta de emenda é semelhante
à PEC 401/2005, só diferindo o requisito mínimo de idade para alistar-se como eleitor8.

A PEC 119/2011 visa garantir o direito facultativo ao estrangeiro de alistar-se como eleitor, desde que
resida no País há mais de cinco anos, e de se candidatar às eleições municipais, desde que resida no País há,
no mínimo, dez anos9.

Atualmente, as PECS (Projetos de Emenda à Constituição) n° 14/2007, n° 88/2007 e n° 119/2011


ainda se encontram em tramitação, portanto, por enquanto, em nada mudou o cenário brasileiro em relação
aos direitos políticos dos estrangeiros.

É perceptível que, o Brasil e diversos países,dentre eles os europeus, visam à garantia dos direitos po-
líticos ao estrangeiro, pois é uma tendência da globalização cada vez mais necessária. Os direitos políticos não
foram concedidos, até o presente momento, porque os países ainda estão ligados à concepção da soberania,
no que diz respeito aos seus cidadãos. Os direitos políticos, para eles, se tratam de uma forma de perpetuação
da soberania. Mas é preciso realizar uma adaptação dessa concepção, pois a diversidade está cada vez mais
presente nas populações. Por ser uma tendência da globalização, estrangeiros procuram a melhoria de vida
em outros países, não somente no sentido de visar excelentes condições financeiras, mas, em alguns casos,
para garantirem a sua segurança, a inviolabilidade a seus direitos fundamentais, etc. E, portanto, já que re-

6  BRASIL. PEC 401 de 31 de maio 2005. Altera a redação do § 2° do art. 14 da Constituição Federal.
7  BRASIL. PEC 14 de 06 março de 2007. Dá nova redação aos §§ 1º, 2º e 3º do art. 14 da Constituição Federal, para facultar
a participação do estrangeiro domiciliado no Brasil em eleições municipais.
8  BRASIL. PEC 88 de 04 de outubro de 2007. Dá nova redação ao § 2º do art. 14 da Constituição Federal, de modo a permitir
o alistamento eleitoral de estrangeiros residentes no Brasil.
9  BRASIL. PEC 119 de 06 de dezembro de 2011. Altera ao art. 14 da Constituição Federal, para facultar a participação de
estrangeiro domiciliado no Brasil nas eleições municipais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sidem no País, estão diretamente ligados a um município, do qual é necessário participarem da vida política,
visando à melhoria de suas condições, como estrangeiro, e de suas condições como um indivíduo igual aos
demais que residem naquele município.

É fundamental que seja assegurado ao estrangeiro, o direito ao voto no âmbito municipal, o direito ao
referendo e à iniciativa popular (visto que, se houver qualquer irregularidade, deve ser o pedido arquivado,
nos casos dos pedidos que são dotados de inconstitucionalidade ou que entram em contradição com a sobera-
nia da nação brasileira), e o direito de se eleger para vereador do município no qual reside, com a finalidade
de promover a melhoria desse e visando a expansão e a garantia de seus direitos enquanto estrangeiro.

O direito que não pode ser concedido aos estrangeiros é o de participação na votação de chefes do
Poder Executivo (Prefeito, Governador e Presidente da República), pois esses cargos dizem respeito às es-
tratégias de regiões e, principalmente, do país, ao qual não se pode ter qualquer tipo de defesa de interesses
advindos de outras nacionalidades. O voto no Poder Legislativo é suficiente para que eles possam recorrer à
melhoria de suas condições.

Os parlamentares salientam que é importante recordar que o Brasil é um país formado por uma di-
versidade de imigrantes de diversos continentes, sendo essa uma nação multicultural, e que sempre acolheu
os estrangeiros. A constituição cidadã repele qualquer tipo de preconceito e discriminação, inclusive no que
diz respeito à nacionalidade, então é importante que se dê um fim a essa discriminação negativa, concedendo
alguns direitos políticos fundamentais à pessoa humana.

Diversos países já manifestaram iniciativas apreciáveis no que diz respeito ao reconhecimento de


direitos políticos ao estrangeiro, inclusive países que têm as mais diferentes tendências políticas. E, por
consequência, o nosso Estado de Direito Democrático não pode permanecer em contradição com esses,
principalmente porque é um país em que há uma grande diversidade quanto à sua formação populacional.
Mas, o fundamento principal é de que as correntes migratórias se fazem cada vez mais presentes, portanto é
necessário dar direito a esses, direito ao voto, que é inerente à pessoa humana, por se tratar de busca de sua
melhoria e o direito de buscar a garantia de seus direitos.

Alguns países já adotaram a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros, são eles: Argentina,
Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela, até mesmo o continente europeu.

A Argentina não concede de maneira total o direito ao sufrágio aos estrangeiros. Só concede de ma-
neira total os direitos civis dos cidadãos.10 Mas foi a partir da lei 25.871, no seu art. 11, que permitiu o direito
ao sufrágio aos estrangeiros, com exceção das eleições a nível nacional, onde se elege o presidente, o vice-
-presidente e os legisladores.

Por sua vez, a Bolívia concedeu o direito ao voto nas eleições municipais aos estrangeiros, segundo o
inciso II, do artigo 27, da Constituição da Bolívia11.

Já no Chile, é prevista em sua Constituição, no seu artigo 14, a concessão do direito político de sufrá-
gio, nos casos e na forma que a lei determinar, aos estrangeiros residentes no Chile por mais de cinco anos e
que preencham os requisitos estabelecidos no incido primeiro do artigo 13 da Constituição12.

Em relação ao mesmo assunto, podemos observar na Colômbia que os direitos políticos são reserva-
dos aos nacionais. Porém, a lei pode conceder a estrangeiros que vivem na Colômbia o direito de votar em
eleições e consultas populares municipais ou distritais.

Também podemos observar no Equador que, de acordo com o artigo 63 da Constituição equatoriana,
os estrangeiros podem ter direito ao voto, se residirem no mínimo 05 anos no país13. O Equador não restrin-
giu qualquer tipo de eleição, ou seja, permitiu o voto para todas as eleições, seja local, regional ou nacional.

10  ARGENTINA. Constitución. Constitución de La Nacion Argentina: promulgada em 22 de agosto de 1994.


11  BOLÍVIA. Constitución. Constitución Politica del Estado: promulgada em 27 de novembro de 2007.
12  CHILE. Constitución. Constitución Política de La República de Chile: promulgada em 11 de setembro de 1980.
13  ECUADOR. Constitución. Constitución Del Ecuador: promulgado em 28 de setembro de 2008.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O Paraguai concede aos estrangeiros os mesmos direitos dos cidadãos, somente no que diz respeito às
eleições municipais, porém essa concessão se dá somente aos estrangeiros que possuem residência definitiva
no país14.

Em relação ao Peru, a Constituição não se posiciona sobre o tema. Porém, a Lei de Eleições Munici-
pais, de n° 26.864, em seu artigo 7°, assegura o direito ao voto aos estrangeiros maiores de 18 anos e residen-
tes no país por mais de 02 anos contínuos antes da eleição, mas não concede esse direito para os municípios
da fronteira. Ao estrangeiro é garantido o direito de votar e ser votado nas eleições municipais para prefeito e
vereadores das províncias e dos distritos.

Já no Uruguai, segundo o artigo 78 da Constituição uruguaia, é permitido que qualquer estrangeiro,


de bom comportamento, que possui uma família dentro da República, que tenha algum capital ou bens no
país, ou que professa alguma ciência, da arte ou da indústria, e que seja residente habitual há pelo menos
quinze anos, possa votar, sem que seja necessária a obtenção da cidadania legal15.

Na Venezuela, o artigo 64 da Constituição venezuelana afirma que os estrangeiros possuem direito ao


voto nas eleições municipais e estaduais, desde que sejam maiores de 18 anos e residam há, no mínimo, 10
anos no país, observados os limites da lei16.

É importante destacar que, na Europa, de acordo com o Tratado de Maastricht, a União Européia ofe-
rece direitos políticos ao estrangeiro europeu em qualquer dos Estados participantes da organização. Além
do direito ao voto, a União Europeia concedeu o direito de ser eleito a qualquer cidadão residente de um dos
Estados-membros com moradia fixa, nas eleições autárquicas e nas eleições para o parlamento europeu do
Estado em que residir. Para isso, deverá cumprir os requisitos exigidos a uma candidatura.

CONCLUSÃO

Nesse artigo, duas questões fundamentam a importância da concessão dos direitos políticos aos es-
trangeiros: a primeira delas é a de que a migração é um fenômeno cada vez mais presente no mundo, logo,
há, cada vez mais, a presença dos estrangeiros em diversas sociedades; já a segunda questão é que a partir
dos direitos políticos é que os estrangeiros podem lutar pela garantia de seus direitos enquanto pessoas, e não
cidadãos.

Portanto, a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros se mostra cada vez mais necessária e se
trata de uma tendência que deverá ocorrer nos próximos anos. O Brasil é um país em que ocorreram diversos
fenômenos migratórios, ao longo de sua história, sendo, portanto, de fundamental importância a concessão
dos direitos políticos aos estrangeiros.

A concessão de direitos políticos aos estrangeiros se trata de uma tendência, no que diz respeito aos
países. Esperava-se que as migrações ocorressem de forma temporária, todavia, nos dias atuais, ocorre em
número maior e com uma maior facilidade. Principalmente porque os países estão em constante relação, por
conta dos mercados, na contemporaneidade, que se dão em proporção mundial. Na Europa, esse fenômeno
ocorre com mais frequência, por isso é que já se deu a concessão dos direitos políticos aos cidadãos europeus,
e com relação à concessão aos cidadãos não europeus, alguns países não chegaram a conceder, porém os
debates são calorosos e ocorrem com bastante frequência.

Na América do Sul, a maioria dos países já concederam os direitos políticos aos estrangeiros. Como
foi demonstrada, a Argentina, a Bolívia, o Chile, a Colômbia, o Equador, o Paraguai, o Peru, o Uruguai e a
Venezuela já realizaram a concessão dos direitos políticos aos estrangeiros, em suas particularidades e em
seus diferentes requisitos. Uns entenderam que a concessão deveria ser realizada em âmbito municipal, já o
Equador concedeu em âmbito nacional.

14  PARAGUAY. Constitución. Constitución de La Republica del Paraguay: promulgada em 20 de junho de 1992.
15  URUGUAY. Constitución. Constitución de La Republica del Uruguay: promulgada em 1967.
16  VENEZUELA. Constitución. Constitución de La Republica de Venezuela: promulgada em 15 de dezembro de 1999.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

No Brasil, esse fenômeno se trata de uma forte tendência para os próximos anos. Visto que, a con-
cessão desses já ocorreu em grande parte da América do Sul, e, principalmente, porque o Brasil é um país
formado por diversos povos, de diferentes culturas. E, já houvequatro projetos de Emenda Constitucional
nesse sentido, visando à concessão dos direitos políticos aos estrangeiros.

Considerando-se que as sociedades, receptoras de imigrantes, são caracterizadas cada vez mais pela
pluralidade, é evidente que a concepção de nação também se diversificará. A luta para que isso possa vir a
acontecer acontece na sociedade, logo possui diversos entendimentos divergentes. A pluralidade de enten-
dimentos sobre essa questão reflete diretamente na elaboração das legislações referentes à concessão dos
direitos políticos aos estrangeiros. Por isso é que os países têm entendimento diverso sobre essa questão. Po-
rém, independentemente disso, a concessão dos direitos políticos se faz necessária para que os estrangeiros
possam lutar pela garantia de seus direitos na sociedade em que vivem.

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deral, para facultar a participação do estrangeiro domiciliado no Brasil em eleições municipais.

BRASIL. PEC 88 de 04 de outubro de 2007. Dá nova redação ao § 2º do art. 14 da Constituição Federal,


de modo a permitir o alistamento eleitoral de estrangeiros residentes no Brasil.

BRASIL. PEC 119 de 06 de dezembro de 2011. Altera ao art. 14 da Constituição Federal, para facultar
a participação de estrangeiro domiciliado no Brasil nas eleições municipais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O


PRINCÍPIO DA LIBERDADE

Silvana Vieira da Silva


Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP. Especialista
em Advocacia Trabalhista pela Universidade Anhanguera – UNIDERP.

SUMÁRIO: 1. Família constitucionalizada; 2. A simultaneidade na seara da conjugalidade; 2.1. Po-


liamor: uma relação de família; 2.2. Família eudemonista; 3. O princípio da liberdade e a família
poliamorista; Conclusão; Referências.

1. FAMÍLIA CONSTITUCIONALIZADA

Embora outras Constituições brasileiras tenham dispositivos acerca da família, apenas na Cons-
tituição Federal de 1988 foi que ela ganhou proteção do Estado, tendo em vista que os dispositivos anteriores
que tratavam da citada entidade eram de cunho preconceituoso e excluíam as famílias que não estivessem
no modelo conservador que a lei impunha: um núcleo familiar só era considerado legítimo se fosse formado
através do casamento, sendo esse vínculo matrimonial indissolúvel. Não eram considerados filhos legítimos
os que nascessem fora da relação matrimonial, bem como os filhos adotivos perdiam os direitos após a morte
de seus adotantes. Vista dessa maneira, a conjuntura familiar era influenciada visivelmente pela Igreja, já
que o Direito Canônico também influenciou o Código Civil de 1916 e qualquer modelo de família que não
seguisse essas regras era jogado à margem da sociedade e não dispunha de nenhuma proteção do Estado
(GAGLIANO & FILHO, 2013).

Até então a família era matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental e biológica. As leis
civis vigentes eram influenciadas pelo Código Napoleônico, imperando assim o liberalismo patrimonialista.
Esse Código era tido como o Código do homem privado, de modo que o sujeito deveria desempenhar papéis
estabelecidos pelo Estado, e, assim, os direitos pessoais acabavam se confundindo com os direitos patrimo-
niais e todos os institutos eram observados do mesmo modo, inclusive a família. Esse modelo de codificação
prezava pelo individualismo e liberalismo jurídico, ao passo que a sociedade foi se transformando esse modelo
não mais se adequava a ela. Surgiram cada vez mais leis específicas e estatutos especiais que regulavam as
relações sociais e econômicas, revogando ou complementando o Código Civil, fazendo com que o Direito
Privado fosse cada vez mais descentralizado e o Estado intervisse nas relações sociais e familiares. A família
foi ganhando gradativamente proteção do Estado (FERRARINI, 2012).

A quebra de paradigmas que a Constituição Federal de 1.988 trouxe ao Direito Brasileiro é inegável,
na seara familiar os ganhos foram imensos. Desde que a atual Constituição entrou em vigência, o Estado
passou a considerar a família como base da sociedade, garantindo-lhe tutela jurisdicional, característica pe-
culiar do Estado Social que intervém na seara privada não como forma de impor obrigações aos cidadãos,
mas como forma de ação protetiva.

Agora a família ganha novos contornos e não fica submetida a apenas um modelo, como antes era
imposto pela legislação. O artigo 226 exemplifica três modelos de família, que são o casamento civil ou reli-
gioso com efeitos civis, a união estável e a família monoparental. Se antes a família que não viesse do enlace
matrimonial era marginalizada, agora ganha espaço jurídico, sendo considerada como legítima e detentora de

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

direitos, ganhando autonomia para desfazer a qualquer tempo o vínculo conjugal. A mulher ganhou espaço
e respeito, sendo considerada como sujeito ativo na relação familiar, não sendo mais obrigada à submissão
masculina e merecendo proteção estatal e reconhecimento igualitário perante a sociedade.

A valorização do ser humano passa a ser o centro da proteção jurídica. É de fundamental importância
a leitura dos direitos da família a partir dos princípios constitucionais, de modo que seja concedido proteção
individual a cada membro que a compõe, devendo o núcleo familiar existir em função dos seus componentes
(MALUF, 2010).

Assim observa Gama (2003, p. 520):

A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições


sociais que cumprem o seu papel maior. A dignidade da pessoa humana, colo-
cada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado
para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional di-
rigida ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, inde-
pendentemente da sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonaliza-
ção das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante
entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o
amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal
e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, demo-
cráticos e humanistas.

A família, até a Constituição da 1988, era representada por um texto legal no qual prevalecia o li-
beralismo, individualismo e o patrimonialismo. Com a repersonalização do Direito de Família através da
Constituição Federal, essa entidade é representada legalmente por um texto que defende a afetividade, so-
lidariedade e cooperação, visando assim o desenvolvimento pessoal dos membros de cada grupo familiar. A
família pautada na afetividade e bem estar de seus componentes ganhou o nome de eudemonista, quebrando
as regras da família codificada, que pouco se importava com as reais necessidades do seio familiar. Essa fa-
mília característica da Carta Magna não se enquadra em um modelo tipificado pelo Estado, podendo ganhar
a formatação que melhor aprouver a cada grupo, não se enquadrando em apenas um modelo, ela passa a ser
plural, diversificada (FERRARINI, 2012).

A partir da constitucionalização do Direito Civil, descortinou-se um novo modelo de Direito de Famí-


lia, que tenta acompanhar em passos largos as quebras de paradigmas da própria sociedade. Como é impos-
sível legislar antes que novas situações apareçam, é de fundamental importância analisar tais fatos a partir
de uma ótica constitucionalizada, uma vez que na Carta magna encontramos princípios basilares para uma
efetiva aplicação das normas jurídicas.

2. A SIMULTANEIDADE NA SEARA DA CONJUGALIDADE.

Embora o Brasil seja um país laico, sofreu forte influência do catolicismo e do Direito Canônico em
seu ordenamento jurídico, principalmente na parte do Direito de Família, de modo que a maior parte da
sociedade sempre encarou a monogamia como o modelo ideal para ordenar as relações familiares em nosso
país. Tal concepção sempre refletiu na legislação que trata da família, sendo assim os modelos familiares que
fogem a esta regra terminam por encontrar problemas quanto à proteção estatal.

Tal problemática explica-se em breve estudo histórico da família no Ocidente, onde as relações fami-
liares eram baseadas no modelo monogâmico. O Brasil oficialmente adotou este modelo fundado nos moldes
patriarcais, modelo em que preza pelo autoritarismo masculino, onde todos em sua casa são submissos ao
homem, inclusive a esposa que é considerada inferior ao seu parceiro e deve obediência ao mesmo. Com
essa submissão feminina, a mulher era obrigada a aguentar todas as atitudes de seu esposo, inclusive o fato

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

dele ter várias amantes. Mesmo sendo algo que sempre foi notório em nossa sociedade, o Judiciário sempre
ignorou e o Legislador nunca tratou expressamente essas relações como família.

Embora o legislador nunca tenha declarado em nosso ordenamento que as relações conjugais si-
multâneas sejam uma espécie de família, não quer dizer que elas não sejam reconhecidas judicialmente. À
priori, analisando no texto da lei, estas relações estão expressamente taxadas em nosso atual Código Civil: “As
relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” (CC 1727).

A partir desse artigo percebe-se que essas relações são reconhecidas pelo Estado. Porém, por ser o
Brasil ainda muito conservador, não são moralmente aprovadas, sendo, então, marginalizadas e, dessa ma-
neira, tratadas na sua grande maioria da mesma forma, sem que sejam analisadas em suas particularidades.

Neste sentido descreve Ferrarini (2012, p. 89): “No imaginário social ainda prepondera a ideia de
que as relações paralelas ao casamento se caracterizam pelo triângulo amoroso formado pelo mito, no qual a
esposa é santificada, o marido é vitimizado e, “a outra”, por conseguinte, satanizada”.

Embora a sociedade tente vendar os olhos para não admitir que esse tipo de relação exista, não im-
pede que esta situação de fato se configure. Não é de hoje que esse modelo de família está inserido na socie-
dade. A inércia do Direito em regular este tipo de relação, ou apenas condená-lo, foi responsável por graves
injustiças ao longo da história. Até a vigência do Código Civil de 1916, por exemplo, o filho gerado fora dos
vínculos matrimoniais reconhecidos pelo Direito não tinha direito ao sobrenome paterno e tampouco ne-
nhum direito presente ou futuro sobre o patrimônio de seu genitor. Com esta visão, a punição para a violação
de um modelo familiar que não era defendido pela sociedade e pelo ordenamento recaia tão somente para
a mulher que não era casada com o pai de seus filhos, a chamada concubina, e para a prole oriunda dessa
relação, deixando completamente impune o violador da regra, qual seja o chefe da família.

A evolução dos princípios norteadores do nosso ordenamento, principalmente na seara da família,


permitiu a derrocada desta regra e garantiu ao filho de relações extraconjugais os mesmos direitos que o
filho oriundo do casamento. No entanto, as injustiças, no que tange ao direito das mulheres que partilharam
sua vida com um companheiro que possui outra relação, permanece inalterado. Mais uma vez, enfatizamos
que fechar as portas da tutela jurisdicional às situações de fato não altera a sua existência no plano real. O
resultado disto é a criação de situações de insegurança jurídica e a perpetuação dos resquícios do modelo
patrimonialista e machista da sociedade que o Direito ainda mantém em determinados posicionamentos. No
tocante a isto, o infiel permanece impune e a mulher arca sozinha com as consequências da violação de uma
obrigação alheia a ela. Visto que as obrigações advindas do casamento são pessoais, o dever de mantê-las é
de quem contraiu o matrimônio. Enquanto a legislação não supera esta questão, a jurisprudência tem se an-
tecipado a ela a partir dos princípios norteadores do direito, dando arcabouço jurídico ao que a lei ainda não
prevê.

Diante da possibilidade de relações simultâneas, existe o poliamor. Corrente defendida – e a qual nos
filiamos – na obra dos Doutrinadores Gagliano & Filho (2013).

O poliamor admite a possibilidade de uma composição conjugal com vários núcleos, em que todos os
seus membros sejam conhecedores de tal fato e o aceitem, diferentemente das demais correntes em que na
família simultânea existe pelo menos um dos partícipes sendo enganado ou não concorde com essa realidade,
porém a aceita por questões culturais e sociológicas impostas pela nossa sociedade. O dever de fidelidade é
flexível quando há mútua aceitação.

2.1 POLIAMOR: UMA RELAÇÃO DE FAMÍLIA.

O poliamor é um movimento que surgiu nos Estados Unidos na década de oitenta, quebrando os
paradigmas que o amor romântico revestido da monogamia impõe a sociedade. A felicidade para este tipo
de relacionamento não consiste na união de apenas duas pessoas, porém não existe traição, uma vez que

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

todas as partes envolvidas são cientes e aceitam esse tipo de relação. Assim, o poliamorismo não se prende a
dogmas religiosos, tampouco a convicções impostas pela sociedade, mas procura satisfazer as necessidades
pessoais de todos os envolvidos.

Os adeptos desse movimento acreditam que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e
que não é obrigatório que se encontre em apenas um parceiro todos os requisitos que venham a preencher
as necessidades de um relacionamento amoroso, pois cada ser humano traz consigo limitações, ao passo que
não existe uma pessoa perfeita que contenha todas as qualidades que a outra nela procura. É válido ressaltar
que o poliamor não faz apologia a relações promíscuas, já que tem que existir um comprometimento real
entre as partes, transparência e honestidade na relação (MEIRELES).

A psicóloga e consultora Meireles define o poliamor como:

Amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, essa é a proposta poliamorista,


relação que se baseia na total liberdade afetiva, sexual e maquiagem social.
Amor sem limites, amor com pleno arbítrio entre os pares, ofertando ao in-
divíduo todo direito de viver afetivamente e sexualmente múltiplas relações.

Na esfera jurídica, o poliamor não é citado no Código Civil, tampouco na Constituição Federal, o que
não vem a constituir crime ou algo imoral a prática de tal relação. Na própria Carta Magna não é estabelecido
um modelo de família. Não existindo um conceito formal sobre tal entidade, não há como condenar qualquer
tipo de relação que venha constituir família, claro que sendo respeitados os requisitos necessários para isso,
sendo uma relação pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família.

2.2 FAMÍLIA EUDEMONISTA.

A família atual tem aspectos totalmente diferentes da família da antiguidade, ela evolui, e tal evolução
trouxe benefícios para todos que fazem parte dela. De cara nova, esta entidade não tem mais seus membros
como meros coadjuvantes, cada um dos que a compõe podem ser protagonistas de suas próprias histórias.
Ainda citando Ferrarini (2012, p. 78):

Ao invés de meros expectadores ou representantes de papéis sociais, as pes-


soas começaram a se entender como indivíduos, e não como peças de uma
engrenagem familiar. Apropriaram-se de seus desejos e fizeram a sua própria
história. Formaram a sua própria família, com seu jeito e seus valores.

Percebe-se assim, que o eudemonismo traz uma nova roupagem a família, e esta torna-se um meio
para a felicidade dos membros que a compõem.

Neste sentido Ruzyk (2005, p. 24) conceitua tal termo:

O eudemonismo é doutrina que enfatiza o sentido da busca, pelo sujeito, de


sua felicidade.
A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da
proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito.

A família eudemonista vem a ser a ponte para os casais que vivem o poliamorismo, uma vez que visa
proteger a dignidade da pessoa humana e os laços de afetividade.

Com um olhar diferente, lançado sobre os vários institutos que a família pode ser, o olhar eudemonista
vê além das convenções sociais, e interesses patrimoniais, este olhar tem por escopo observar às necessidades
individuais de cada um, assim, as diferenças religiosas, socioculturais podem ser respeitadas de forma ampla.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

De modo que, com um olhar afetuoso, pode-se entender as necessidades que cada um traz consigo,
sem um julgamento antecipado, pois, como já foi dito, a família é reflexo da sociedade, e a sociedade muda
em passos gigantescos, ao passo que, os casais que vivem o poliamor. Não são uma realidade de agora, exis-
tindo a muito tempo, porém estão a margem da sociedade, e não encontrando um espaço, tendem a seguir
como se fossem criminosas, onde todos os envolvidos acabam sofrendo sanções por tal opção.

Enquanto, que esses casais, e seus frutos (filhos), não querem nada mais que ter o seu lugar ao sol,
eles querem ser reconhecidos como forma de família, nem certa, nem errada, mas é a forma deles, e em tal
peculiaridade querem encontrar a realização pessoal.

A família eudemonista, vem, portanto, trazer um conceito de famílias que não são fundamentadas
em convenções sociais, e sim, na realização pessoal de cada um que compõe esta entidade, sendo assim, um
núcleo que vise garantir os direitos individuais que cada um possui.

3. O PRINCÍPIO DA LIBERDADE E A FAMÍLIA POLIAMORISTA

Diante da grande celeuma que gira em torno do significado de liberdade, não iremos tratar neste arti-
go das questões filosóficas que cercam o tema, no entanto achamos importante iniciarmos o presente tópico
com um conceito sobre o assunto em questão, e comungamos da ideia de Bobbio (1996, p.96) do que seja
liberdade: “A situação em que um sujeito de direito tem a possibilidade de orientar sua vontade em direção a
um objetivo, de tomar decisões, sem ver-se determinado pela vontade dos outros”.

O princípio da liberdade que foi consagrado através da Carta Magna, trouxe mudanças e progressos
significativos para o nosso ordenamento jurídico, refletindo em toda a coletividade. Sendo tal princípio uma
das colunas de sustentação do Estado Democrático Brasileiro, influenciou diretamente na vida da sociedade
e no seio de suas famílias.

Antes da Carta Magna era impossível aos que compunham uma família escolher a sua formatação
diferente dos moldes tradicionais, sem que tal instituição não fosse marginalizada, já que era previsto pelo
Estado uma única forma de celebrar família, sendo esta advinda do casamento, patriarcal e patrimonialista,
não podendo a família adequar-se aos seus membros.

Lôbo (2011, p. 69) conceitua este princípio como:

O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia


de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou
restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisi-
ção e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar;
à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos;
à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pes-
soas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física,
mental e moral.

Com o advento da Constituição Federal de 1.988, o princípio da liberdade ganha espaço, tornando-se
um dos componentes essenciais para o bom andamento do Direito de Família, de modo que cabe apenas aos
membros da família escolherem a formatação do modelo no qual querem conviver, sendo estes os únicos
responsáveis por seu arquétipo. É o que pode ser observado no § 7º da Constituição Federal:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade


responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse
direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Se outrora era o Estado quem delimitava o modelo de família a ser seguido, após a promulgação da
Constituição, cabe ao Estado apenas proteger as entidades familiares e seus membros, devendo este assegu-
rar o bem-estar de todos. Este princípio apanha a família como um todo, tanto aos seus membros, de modo
particular, quanto na esfera da entidade. De modo que cabe aos que compõem o núcleo familiar decidir o que
melhor se aplica a tal arranjo.

Portanto, a autonomia privada torna-se fundamental para as novas estruturas familiares que possibi-
lita a Carta Magna de 1988, através dessa autonomia, a família contemporânea é encarada de modo diverso
da família tradicional, importando assim, a felicidade de todos que a compõe. E como já foi visto, essa nova
família é denominada eudemonista.

O princípio da liberdade é que traz possibilidades de novos arranjos familiares, sem esta autonomia
dada a família através do citado princípio seria impossível que as pessoas pudessem escolher quem amar,
como conduzir sua vida afetiva, quais os enlaces necessários para a felicidade familiar.

Assim leciona Lôbo (2011, p. 70):

O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou


extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e rein-
venção. Tendo a família se desligado de suas funções tradicionais, não faz
sentido que ao Estado interesse regular deveres que restringem profunda-
mente a liberdade, a intimidade e a vida privada das pessoas, quando não
repercutem no interesse geral.

Ainda sobre a não intervenção do Estado sobre os modelos familiares, nos instrui Sarmento
(2005, p. 169):

Não cabe ao Estado, a qualquer seita religiosa ou instituição comunitária, à


coletividade ou mesmo à Constituição estabelecer os fins que cada pessoa
humana deve perseguir, os valores e crenças que deve professar, o modo
como deve orientar sua vida, os caminhos que deve trilhar. Compete a cada
homem ou mulher determinar os rumos de sua existência, de acordo com
suas preferências subjetivas e mundividências, respeitando as escolhas feitas
por seus semelhantes. Essa é uma ideia central ao Humanismo e ao Direito
Moderno.

Percebe-se então, que o Estado não deve interferir no modelo escolhido pela família. Sendo
assim, a família constituída a partir do poliamor deverá ser reconhecida como legitima perante a sociedade e
ao Ordenamento Jurídico Pátrio, não cabendo ao Estado estigmatizar o modelo adotado, uma vez que a sua
intervenção sobre a família deverá ser a mínima possível e tal interferência deve-se dar exclusivamente com
o propósito de proteger os interesses dessa entidade e não de lhes impor regras de convivência familiar.

Assim nos mostra Pereira (2006, p. 157):

O Estado abandonou a sua figura de protetor-repressor, para assumir postura


de Estado protetor-provedor-assistencialista, cuja tônica não é de uma total
ingerência, mas, em algumas vezes, até mesmo de substituição à eventual
lacuna deixada pela própria família como, por exemplo, no que concerne à
educação e saúde dos filhos (cf. art. 227 da Constituição Federal). A inter-
venção do estado deve apenas e tão somente ter o condão de tutelar a família
e dar-lhes garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que
seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afe-
tivo. Essa tendência vem-se acentuando cada vez mais e tem como marco
histórico a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU
em 10 de dezembro de 1948, quando estabeleceu em seu art. 16:3 A família

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da


sociedade e do Estado.

A aplicação do princípio da liberdade é de extrema importância na família contemporânea, podendo


ser baseada ou não no poliamorismo. Uma vez que cabe ao Estado proteger a família e não lhes impor regras
de formatação, é necessário para o bem da entidade familiar – independente de qual seja sua espécie – o
mínimo de intervenção estatal possível, apenas para garantir-lhes direitos. Se tal intervenção for para cercear
direitos de composição familiarista, corre-se o risco de reduzir a família a mera instituição servidora do Es-
tado e não dar notoriedade ao verdadeiro significado que ela exige, o de ser formadora de cidadãos para a so-
ciedade, cidadãos estes que tem o direito de conduzir suas vidas pessoais da melhor forma que lhes aprouver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade de encontrar soluções jurídicas à luz dos princípios constitucionais para as querelas
envolvendo o direito de família no que tange às famílias poliamoristas no âmbito do judiciário, motivou o
presente trabalho. A evolução do pensamento da sociedade nas últimas décadas, com a recorrente quebra
de paradigmas sociais, criou as condições para que as relações familiares que se encontram fora da proteção
jurídica pudessem provocar o Judiciário para apreciação das suas contendas e reivindicar os seus direitos
constitucionalmente garantidos. A omissão do legislador infraconstitucional em salvaguardar sob o manto da
proteção jurídica os indivíduos que não se inserem no modelo tradicional de família acabou por transferir a
responsabilidade de dar respostas às contendas oriundas desta lacuna legislativa para o poder judiciário. Isto
ocorre porque em respeito ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que determina que a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, e que nos termos do artigo 126 do
CPC, o juiz não poderá se eximir de despachar ou sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei, cria-se
um cenário no qual os magistrados tem a obrigação de dar respostas aos casos concretos que chegam ao Ju-
diciário em número cada vez mais crescente, fazendo com que hoje a discussão sobre o tema seja feita muito
mais dentro dos tribunais do que no Congresso Nacional.

A Constituição Federal de 1988 é considerada uma das mais avançadas do mundo no que tange à
salvaguarda de direitos sociais e individuais, tornando o Estado garantidor de direitos aos cidadãos. Neste
contexto os princípios têm papel fundamental na garantia dos direitos constitucionalmente elencados, ser-
vindo de guia, de norte, de ponto de orientação da conduta e intervenção do Estado por meio de seus poderes
constituídos para com os indivíduos sob sua proteção. Dentre os princípios, os da Dignidade da Pessoa Huma-
na, da Igualdade e da Liberdade, possuem vital relevância para o trato do tema apresentado neste trabalho,
visto que o respeito a eles deságua na obrigação constitucional do Estado de proteger individualmente cada
cidadão.

Com isso, é preciso analisar as famílias e o Direito de Família de forma constitucionalizada, para que
sejam observadas as peculiaridades que cada grupo familiar traz consigo, bem como as mudanças que essa
entidade vem sofrendo ao longo de sua existência, em que pese, mudanças cada vez mais constantes. Faz-se
mister superar os preconceitos e a visão conservadora que envolve a família, visto que o modelo tradicional,
qual seja, o definido em lei, atualmente não supre as necessidades de todos os modelos existentes em nossa
sociedade. A sociedade moderna, menos presa aos padrões pré-estabelecidos e baseada em uma busca mais
subjetiva da felicidade em suas relações afetivas, tem encontrado expressão no seio dos núcleos familiares
designados como eudemonistas, que tem por base o afeto na construção das relações familiares.

O poliamor é baseado no eudemonismo, essencialmente nos laços de afetividade. Esse modelo de


família vem ganhando proporções cada vez maiores em nossa sociedade, e não é o fato dela não ser reconhe-
cida legalmente que deixará de existir.

É mister então, que o Estado brasileiro seja protecionista e não intervencionista, já que cabe a cada
família escolher o modelo que melhor lhe aprouver, devendo ser a família uma instituição social, para a
realização pessoal de cada um de seus membros, e não uma instituição jurídica a dispor do Estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Por todo o exposto, concluímos que a família baseada no poliamor é digna de respeito e direitos como
todas as outras, não cabendo julgamentos de certo ou errado, nem analisar a entidade em questão, com vi-
sões dogmáticas. Devendo ser observados os princípios constitucionais para uma melhor aplicação da norma
nos casos concretos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL:


ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Synara Veras de Araújo


Mestre em Direito e Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de
Pernambuco-UNICAP, Especialista em Advocacia Geral pela UNICID, Professora de Direito
da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central de Pernambuco-FACHUSC

SUMÁRIO: 1 Notas iniciais; 2. A formação pedagógica do professor de Direito e o ambiente edu-


cacional jurídico; 3. A liberdade de cátedra e o Projeto de Lei nº 1.411/2015; Considerações finais;
Referências.

1. NOTAS INICIAIS

Este trabalho fará uma reflexão sobre a criminalização do direito à liberdade de Cátedra no Brasil
partindo num primeiro momento da formação pedagógica do professor de Direito, para depois analisar o Pro-
jeto de Lei nº 1.411/2015 do legislador Rogério Marinho do PSDB/RN à luz da Constituição Federal de 1988.

Sobre a metodologia empregada, em princípio trata-se de uma abordagem subjetiva do mundo social
jurídico ao realizar uma análise qualitativa dos dados por revisar algumas referências textuais sobre a questão.
Apresenta também uma abordagem de cunho etnográfico devido observação-participante da pesquisadora.

Analisar o Projeto de Lei nº 1.411/2015 do legislador Rogério Marinho do PSDB/RN é importante,


primeiro por ser um tema pouco publicado, apesar de fundamental para o meio acadêmico. E segundo,
porque é relevante refletir sobre a liberdade de cátedra no Brasil, pois como afirma Márcia Tiburi (2015, p.
123): “o coronelismo intelectual segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas,
tanto quanto na dos ignorantes que se deparam apenas por titulação ou falta dela”. Sendo assim, professores
e leigos acabam sem consciência do próprio processo de autocrítica e autocriação, resultado da repetição
de idéias alheias como aqueles parafraseiam algum filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo
exegético.

2. A FORMAÇÃO PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE DIREITO E O AMBIENTE EDUCACIONAL


JURÍDICO.

Como ultrapassar o papel limitado do professor “comentarista” de códigos? O que fazer diante de um
ensino do Direito positivado transmitido aos alunos de forma dogmática, acrítica e desvinculada da realidade
histórico-social? Mesmo reconhecendo que a dogmática jurídica é indispensável para o ensino do Direito,
não cabe mais a “arrogância” da racionalidade normativa “penso, logo existo”, é preciso abrir caminho para
o “sinto, logo convivo”1, pois a formação jurídica não deve se resumir ao estudo sistemático de códigos e leis,
afinal o direito se comunica com outros fenômenos presentes nas relações sociais.

1  Manifestação de Pablo Lucas Verdú em O sentimento constitucional citado por Carmela Grüne que afirma “a operatividade
do sentimento constitucional serão mais efetivas quando o Estado de Direito aparecer como Estado de cultura (Grune, 2012, p.82).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Ezilda (MELO, 2015) refletindo sobre os campos transdisciplinares de compreensão do Direito, des-
tacando a Arte como recurso estético e hermenêutico de interpretações jurídicas, observa que a interpreta-
ção jurídica e a interpretação artística não são distintas:

Os campos transdisciplinares de compreensão do Direito alargam a compre-


ensão educacional mais ampla na formação de juristas que não devem ficar
presos na caverna platônica do conhecimento para aprovação em provas da
OAB ou em exames concursais para cargos rentáveis. Muito mais do que
essa motivação, estudar Direito tem uma importância na construção de uma
sociedade que confie que, por trás de cada processo, quem for julgar é um
homem dotado de corpo e alma, que terá em suas mãos as dores e os infortú-
nios de quem almeja uma decisão urgente e não perdida nas teias eletrônicas
de processos infindáveis. A interpretação jurídica e a interpretação artística
não são distintas.

“Às vezes, para se entender um assunto complexo, precisa-se dar a volta nos sentidos, utilizar a cria-
tividade e as percepções, para que se vivencie cotidianamente a cultura jurídica deliberativa”, como entende
GRUNE (2012), essa é uma realidade que está emergindo no ensino jurídico como possibilidade educativa,
pois relacionar técnicas de outras áreas como cinema, música, pintura, teatro, literatura, ciências cognitivas,
psicanálise e micropolítica, é uma possibilidade capaz de potencializar o Direito, principalmente em seu as-
pecto social.

O reconhecimento jurídico do samba, como sustenta GRUNE (2012), visto como parte integrante da
identidade democrática brasileira ratifica um caminho, infelizmente ainda contrario as formas tradicionais
de ensino, mas, sobretudo urgente e necessário, por promover debates acerca de um novo repertório para as
práticas educativas no âmbito jurídico.

Há práticas educativas em Direito que se relacionam a acontecimentos relevantes do ponto de vista


social, como por exemplo, o movimento dos Direitos Urbanos, movimento composto por pessoas que se orga-
nizaram com o propósito de produzir, conforme suas habilidades, trabalhos integrados em prol de um modelo
de cidade mais democrático e humano.

Dentre os trabalhos produzidos pelo movimento Ocupe Estelita, há vídeos denominados Cinema de
Urgência (OCUPE ESTELITA, 2015) que podem muito bem serem exibidos em sala de aula para esclarecer
e aprofundar debates acerca dos direitos humanos, já que muitas vezes os estudantes de Direito conhecem
apenas uma versão dos fatos que assimilaram via mídia majoritária comercial.

Programas como o da TVU/UFPE Opinião Pernambuco proporcionam diálogos entre academia e


sociedade, como foi em 20/12/2014 com os ativistas envolvidos na Brigada Audiovisual Ocupe Estelita. A
“Brigada” foi constituída por cineastas pernambucanos contemporâneos como Luís Henrique Leal, Marcelo
Pedroso, Pedro Severien e Ernesto de Carvalho, que promoveram uma produção audiovisual sem fins lucra-
tivos, com o propósito de conscientizar a sociedade sobre ingerência do capital imobiliário na política urbana.

Esse tipo de produção audiovisual, ao se difundir pela internet, festivais de cinema eventos científi-
cos e culturais, criou novas imagens contestatórias sobre os espaços em disputa na cidade do Recife, sendo
fundamental estudar este tipo de cinema (BARBOSA; QUEIROZ, 2015, p. 16):

Neste sentido, compreendemos que é factível estudar este tipo de cinema no


âmbito das ciências humanas enquanto artefato artístico, pois este permite a
compreensão nas relações do homem quando representante de uma cultura,
sociedade, natureza. A relação ciência-arte percorra por caminhos próximos
quando se busca entender ou exprimir sentidos, símbolos e metamorfoses
nas relações entre o homem e os espaços.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Refletindo sobre a formação pedagógica do professor de Direito e o ambiente educacional jurídico no


qual está inserido, a formação profissional dos mestrandos e dos doutorandos tem ido além do “professar”?
Existe um contexto adequado para o surgimento de educadores jurídicos? Vejamos o que acontece (ALMEI-
DA, 2015):

De fato, não existem hoje no Brasil cursos capazes de formar adequadamente


o professor das ciências jurídicas. Até mesmo muito do que se escreve sobre
o assunto é direcionado à formação do professor das séries iniciais (do en-
sino fundamental e médio). À formação do professor do curso superior são
reservadas poucas horas de ensino da metodologia e didática no âmbito dos
cursos de mestrado e doutorado; em geral não mais que quatro ou cinco cré-
ditos num universo em torno de trinta e cinco ou quarenta, a depender do
programa. Assim, os cursos de mestrado e doutorado, a que devem possuir
pelo menos 1/3 do corpo docente da universidade, segundo exigência do art.
52, II da LDB, têm conduzido muito mais à formação científica, específica
daquela área de conhecimento, do que à capacitação do profissional para
atuar em sala de aula.

O país que tem mais cursos jurídicos no mundo será o mais justo? Ou seria o contrário? No Brasil os
conflitos são tantos, a violência é constante, tanto que a crença no Direito como solução para todos os males
sociais não surpreende. Num contexto maior, levando em consideração o campo jurídico brasileiro e os pro-
fissionais do corpo docente, o que se tem é uma disputa por poder, um conflito entre os profissionais-docentes
e docentes profissionais (CARVALHO, 2012, p. 53):

No caso do campo jurídico brasileiro, a expansão do ensino jurídico, especial-


mente a partir dos anos 1960 e 70, e a expansão da pós-graduação, a partir
de meados dos anos 1970, foram, como já foi dito, os motores de um gradu-
al processo de diferenciação de um campo acadêmico ou, mais especifica-
mente, docente, no interior do campo jurídico, como um espaço de domínio
dos agentes investidos de titulação acadêmica formal e dedicação quase que
exclusiva à docência (os docentes profissionais), em oposição aos práticos
do direito (os profissionais-docentes) – profissionais em sentido estrito, que
dominavam (e ainda domina no estado atual o campo jurídico) a docência no
ensino jurídico, em um contexto no qual os capitais profissionais adquiridos
na prática forense são mais valorizados do que o título acadêmico forma de
pós-graduação.

O tumulto gerado no campo jurídico brasileiro tem ocorrido em primeiro lugar pela demanda de do-
centes titulados surgida com a expansão acelerada do ensino jurídico e na ausência de vagas suficientes para
formar mestres de doutores. Em segundo lugar, no fato que os agentes que antes atuavam no ensino jurídico
com base na experiência profissional, agora atravessam um momento de transição que tem como primazia
o conhecimento acadêmico adquirido pelos docentes nos programas de pós-graduação (CARVALHO, 2012,
p. 55):

(...) os títulos acadêmicos e a experiência docente acabam se convertendo em


recursos de poder simbólico, mobilizados para fins diversos de sua finalidade
institucional declarada, ou seja, a produção de docentes e pesquisadores;
ao invés disso, a posse desses recursos acaba sendo convertida em capitais
simbólicos nas estratégias de ascensão nas carreiras jurídicas “práticas” e de
destacamento dos agentes da elite em um campo pressionado pela massifica-
ção do ensino jurídico e das profissões jurídicas.

No ambiente do ensino jurídico as aulas ainda permanecem centradas no professor, raras são as
práticas alinhadas aos saberes pedagógicos progressistas, muitas inspiradas nas palavras de Paulo Freire em
Pedagogia da Autonomia: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produ-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ção e construção” (FREIRE, 1996, p. 22-23). Os sujeitos, mesmo diferentes, não devem ser tratados como se
um fosse objeto do outro, “não há docência sem discência”, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”.

Somos o país de maior número de cursos de Direito no mundo, mas isso não nos fez ainda os mais
justos, o que nos leva à crítica e a recusa ao “ensino bancário” (FREIRE, 1996, p. 25), que é aquele onde o
educando a ele submetido está fadado a fenecer por causa da “transferência”, onde o conhecimento é posto
dentro do “autoritarismo e erro epistemológico do bancarismo”. Este ensino apartado do gosto pela curiosida-
de e “rebeldia” do educando, que não estimula sua capacidade de arriscar-se, leva a constatação dos efeitos
negativos do “falso ensinar”, daí os professores tentam se convencer que ensinam (sem muito sucesso) e os
alunos que aprendem.

“Leis e mulheres foram feitas para serem violadas” frase dita em sala de aula por um professor de
Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Fábio Azambuja, é um exemplo
do quanto é necessário valorizar os saberes necessários ao educador, dentre os elencados por Paulo Freire,
um bem pertinente ao caso: “ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo”, os professores de
Direito em grande parte ainda ignora que “pensar certo é agir certo” (FREIRE, 1996, p. 34) e seja em sala de
aula, nos corredores ou entre colegas, reproduzem preconceitos e discriminações com as conhecidas “piadas
politicamente incorretas”, o que poderiam ser classificadas como “incoerentes e desrespeitadoras dos direitos
humanos”.

O professor citado no parágrafo anterior foi denunciado por alunas de Direito e ex-alunas a vice-rei-
tora do curso, pois esta não seria a primeira vez que ele teria “incitado a violência contra a mulher” e que
em outros momentos o professor proferiu comentários de teor machista, como “moedas na mão, calcinha no
chão” (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2015). Foi aberta uma sindicância na Instituição, enquanto isso, o aluno
que compartilhou a frase do professor tem sido ameaçado por outros alunos próximos, segundo ele, “estou
sendo hostilizado por quem é amigo do professor, as pessoas levaram isso para o lado pessoal”, afirmando
ainda que não citou o autor da frase quando postou na rede social e que publicou apenas as palavras ditas
pelo professor.

“Se o direito fosse fácil, seria periguete”, o conhecido bordão de Lênio Streck (ao menos no meio
jurídico) repercute negativamente, ainda mais quando dito por quem é uma das grandes referências quando
assunto é ensino jurídico no Brasil. Recentemente o professor respondeu as críticas (STRECK, 2015):

Recebi algumas reclamações de parte do público jurídico-feminino, no sen-


tido de eu ter comparado o “direito facilitado ou simplificado ou coisa-que-
-valha” a uma “mulher fácil”, o que teria sido altamente ofensivo para as
mulheres, uma vez que eu teria imposto (sic) um julgamento sobre a sexua-
lidade que não cabia na reflexão, o que faria com que artifício argumentativo
da crítica perdesse sua validade integralmente.

“Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” (FREIRE,
1996, p. 35), o novo não pode ser negado, o que foi feito pelo professor Lênio ao reconhecer a crítica, pois
o seu bordão não se alia ao “pensar certo, fazer certo”, como podemos observar na conceituação de Paulo
Freire, sobre o “saber necessário à prática educativa” e não “professada” de Paulo Freire (1996, p. 38):

A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, ofere-
cer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das
coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensar
certo é, exercendo como ser humano à irrecusável prática de inteligir, desa-
fiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua
compreensão do que vê sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não
seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade.
O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O momento é fundamental para reflexão crítica sobre a prática pedagógica no ensino do Direito. No
caso, quando um professor de Direito utiliza um termo que reproduz o machismo cotidiano é um problema,
pois guarda relação com o machismo e a sociedade patriarcal. A utilização do termo “periguetismo” nesse
contexto é discriminatória e representa o machismo presente na academia jurídica, pois é evidente que a
palavra é carregada de sentido e que utilizá-la para homens e mulheres não é a mesma coisa.

“Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças,
contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência” (FREIRE, 1996, p. 40), conhe-
cimento fundamental para quem propõe educar, ainda mais em Direito. Por isso os quadros de formação
dos educadores em direito deveriam priorizar o empenho de formação permanente, reinventando-se e não
incorporando a atividade docente como um “bico”, como “advogados que também dão aula”, pois “há que se
ter investimento na formação profissional do docente, tanto sobre os conteúdos específicos do direito quanto
sobre os demais saberes que o permitam pensar e ensinar o direito de maneira crítica” (CARVALHO, 2012,
p. 99).

O ensino “verticalizado” marca a realidade acadêmica no Brasil, encontra-se precipuamente voltado


para a formação de quadros técnicos e de uma elite burocrática, por isso o ensino do direito está mergulhado
numa crise que o coloca apático diante da realidade social, da necessidade de construir saídas às demandas
reais da população. E para superar essa grave crise algumas tentativas são oferecidas, como expõe Adelina de
Oliveira Novaes (CARVALHO, 2012, p. 113):

Qualquer tentativa de romper com o modelo tradicional de ensino jurídico,


com vistas à superação dessa crise passa, necessariamente, por duas refle-
xões básicas. A primeira refere-se à redefinição do papel de todos os envolvi-
dos no processo de ensino-aprendizagem. A segunda passa pelo desafio (que
se coloca a esses atores com papéis redefinidos) de problematizar os conte-
údos dogmáticos diante da tomada de consciência sobre a existência de um
senso comum próprio a uma determinada realidade social.

É necessário então destruir a barreira do processo ensino-aprendizagem fundado no método vertical


de ensino tradicional, deve-se buscar recomposição e composição de novos espaços de integração social, re-
conectando o direito com a sociedade, transformando o ensino do Direito ao permitir que ele se comunique
com outras disciplinas, o que é denominado por Morin (2007) como a “religação de saberes necessários à
educação do futuro”.

“Para o ensino do Direito alcançar seus objetivos conservadores, Eça de Queiróz tinha e tem razão, a
‘decoreba’ da ‘sebenta’ ainda é a melhor forma de ensinar”, como lembra Dani Rudnicki (CARVALHO, 2012,
p. 120), afinal quem nunca se deparou com um professor de Direito (não educador obviamente) que se en-
quadra em uma das seguintes situações:

Não se deve discutir se o aborto é ou não crime, mas aplicar a lei penal; não
se deve discutir se a herança é ou não uma forma justa de adquirir patrimô-
nio, mas sim saber quem herda quanto; não se deve discutir o que é uma
família ou como acontece a adoção, mas aplicar os textos legais que se coa-
dunam às formas tradicionais.

Para Dani Rudnick, não basta refletir sobre o dito “fracasso dos modelos de ensino”, mas é ne-
cessário pensar sobre a sociedade brasileira e a organização do campo jurídico no país, como por exemplo, as
Faculdades de Direito que se dividem entre “os cursos para a elite, cursos para classe média e cursos 199,90”
(CARVALHO, 2012, p. 122-123). Dentre os primeiros, o curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas, para
a elite, já demonstra a diferença com relação ao horário que é integral durante os seis primeiros semestres,
além da mensalidade de mais de dois salários mínimos. A classe C, a maior parte dos egressos no país, luta
no máximo por uma melhor remuneração, um concurso para ser Oficial de Justiça, uma vaga na Polícia ou
trabalhar como técnico ou analista em um Tribunal.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Percebe-se que mesmo ingressando no ensino superior, ao estudante não haverá possibilidades de
acesso a todas as carreiras, talvez nem naquela “modestamente” almejada (medidos pelos baixos números de
aprovação na prova da OAB) nos cargos superiores da advocacia empresarial, que exigem conhecimentos em
economia, administração, línguas estrangeiras e até mesmo de cinema, literatura, dentre outros.

E qual seria a função do professor de Direito neste contexto? Permanecer como mais uma engre-
nagem do sistema, preocupando-se apenas com o carro do ano, a viagem para Europa, lecionar conforme o
programa da disciplina? Será limitar-se a viver a vida com medo de demissão ou redução de carga horária?
Ou ao contrário, a sua função será se tornar um “jurista marginal” (Warat), aquele que vive em contato com
o Direito, mas que consegue ir além dos esforços comuns?

Para Elizete Lazone Alves, “o professor de Direito deve ser o protagonista e articulador de sua própria
história de transformação e valorização, a mudança de pensamento e postura é o primeiro passo”. Ela afirma
que dentre as capacidades e habilidades necessárias ao professor de Direito, é fundamental o conhecimento
técnico específico, a análise crítica, o conhecimento didático-pedagógico e a alteridade. A tecnicidade deve
ser aliada a formação humanística (CARVALHO, 2012, p.195-196):

A história mostra que o “humano” inerente ao ser foi desprestigiado por uma
cultura do “ter” e isso foi levado para dentro das Universidades refletindo na
formação profissional exageradamente tecnicista. O resgate de uma cultura
mais humanista demonstra que a perda ocasionada por esse período de mio-
pia educacional, efetivamente, refletiu no papel do jurista na sociedade.

Muitas reformas curriculares foram realizadas ditando as regras de inclusão ou exclusão da formação
humanística nos cursos jurídicos brasileiros. Hoje a Resolução CNE/CES Nº 9, de 29 de setembro de 2004,
que institui as diretrizes para os cursos de graduação em Direito, enfatiza que os cursos devem assegurar o
seguinte:

(...) sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise,


domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação,
interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma
postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para
a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência
do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.

A Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI (UNESCO, 1998) estabelece que
devem ser preservados os valores humanísticos na educação superior com o objetivo de “educar e formar
pessoas altamente qualificadas, cidadãs e cidadãos responsáveis” (art. 1º), consolidando assim os direitos
humanos, o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz em contexto de justiça, promovendo conhe-
cimentos por meio da pesquisa nas ciências sociais e humanas, a atividade criativa nas artes.

Mas em geral os professores de direito permanecem transmitindo os conteúdos como aprenderam


por não terem aprendido a ensinar, a educar (lembrando Paulo Freire). A postura comum dos docentes é as-
sumir a condição de detentor absoluto do conhecimento, o que muitas vezes o deixa fechado às indagações e
curiosidades dos alunos, desconsiderando que o professor não é “um profissional do direito”, mas “um profis-
sional da educação”. A dificuldade está na falta de formação pedagógica do professor de Direito, afinal basta
fazer o exercício de procurar nas livrarias obras sobre a formação de professores de Direito para se constatar
a desvalorização do tema.

Adriana de Lacerda Rocha, em pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, ao usar a técnica da obser-
vação-participante indireta (com registro ou coleta de dados realizados em diário de campo), afirma na obra
Representações do Professor de Direito (CARVALHO, 2012, p. 178) que:

De modo geral, o professor mantém-se centrado em sua própria figura, o que


gera desinteresse para tentar a auto e hétero compreensão, reforçando, as-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO


AMERICANO

Renata Santa Cruz Coelho


Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da Capes.
Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada
em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. renatasantacruzcoelho@
hotmail.com

Caroline Alves Montenegro


Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco –
Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo
Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela
Universidade de Pisa/Itália. cacamontenegro@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do Neoconstitucionalismo ao Novo Constitucionalismo Latino Ameri-


cano; 2. O novo constitucionalismo latino-americano e as exigências das minorias; Considerações
finais; Referências.

INTRODUÇÃO

O novo constitucionalismo latino-americano propõe a fundação de um novo Estado, o Estado plurina-


cional, em que conceitos como pluralismo, legitimidade e participação popular assumem um novo significado
para possibilitar a inclusão de todas as classes sociais no Estado.

Estamos diante de Constituições que, por um lado, são originais e próprias de cada país, na medida
em que tentam solucionar os problemas de cada uma das sociedades onde foram implantadas. Mas, por outro
lado, estamos diante de denominadores comuns óbvios, principalmente no campo da participação, da econo-
mia e de uma vigência efetiva dos direitos para todos.

A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma re-
sultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da
sociedade. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se
legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas. Assim, toda
sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas tradições, costumes e práticas que orde-
nam a tramitação do poder. Ora, não é possível reduzir-se toda e qualquer constituição ao mero formalismo
normativo ou ao reflexo hierárquico de um ordenamento jurídico estatal. (Wolkmer, 1989, p. 13-14).

Para Rubén Martínez Dalmau (2008), o novo constitucionalismo latino-americano é um constitucio-


nalismo “sin padres”, onde ninguém, salvo o povo, pode se sentir progenitor da constituição, pela genuína di-
nâmica participativa e legitimadora que acompanha os processos constituintes. E deve ser uma Constituição
que não tenha medo de regular as principais funções do Estado: a melhor distribuição da riqueza, a busca
por igualdade de oportunidades, a integração das classes marginalizadas.

O autor ressalta que uma Constituição que esteja à altura do novo constitucionalismo deveria, em
primeiro lugar, se basear na participação do povo, que é o que lhe dá legitimidade. Isso significa que a ela-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

boração da proposta de Constituição deve ser redigida por uma Assembleia Constituinte eleita, e para isso
deve ser principalmente participativa na hora de receber propostas e incorporá-las no texto constitucional.
(Dalmau, 2008).

Em resumo, uma Constituição que busque o “sumak kamaña” como diz a Constituição boliviana:
o “viver bem” da população. As Constituições outorgam um poder claro à sociedade civil organizada, por
exemplo na eleição de determinadas autoridades, sobre as quais já não é o presidente da República quem
decide, ou a luta contra a corrupção. O que se faz é recompor a distribuição do poder público, fortalecendo a
organização popular, ainda que isso implique uns mandatos mais longos para outros cargos.

A construção política do Estado e de seus aparatos jurídicos, antes um privilégio do setor social abas-
tado e imposto ao povo, no atual momento inverte o percurso e brota do seio popular. A constituição deixa de
nascer no âmbito exclusivista das minorias hegemônicas para atender ao chamado de outra forma de poder,
multifacetado, diversificado e plural.

Assim, cabe destaque ao protagonismo popular, durante e depois do processo constituinte, conforma-
do na mobilização social para formação do poder constituinte permanente, diferentemente do constituciona-
lismo tradicional em que o poder constituído se afasta da participação do povo. Resta destacar na Constitui-
ção Boliviana, quanto à amplitude, artigos extensos para fazer a demarcação do profundo alcance jurídico e
mesmo político que a positivação constitucional proporciona.

Torna-se frequente, no texto constitucional boliviano, a expressão “nações” e “povos indígenas origi-
nários campesinos” com tratamento do direito indígena, como por exemplo: garantia de propriedade exclusi-
va da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades indígenas; equivalência entre a justiça indígena
e a justiça comum; cotas para parlamentares oriundos de povos indígenas. Essas questões positivam os valo-
res propostos pelo novo constitucionalismo: pluralidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade
da Constituição e da ordem jurídica.

Ademais, o fator da complexidade, tanto de técnica quanto de linguagem, encontra-se justificada


na busca de articular diferentes instituições, desde a abordagem da questão plurinacional, como o tribunal
plurinacional boliviano e também as eleições para órgãos do governo como os juízes (Consejo de la Magistra-
tura Bolívia), até mesmo a cosmovisão ameríndia da pachamama (mãe terra), sumac kawsay (vida plena) e
sumac kamaña (bem viver). Vale destacar a retirada do latim como língua jurídica e, na linguagem popular, o
destronar do “juridiquês” para maior acessibilidade. Exemplo disso é a troca de termos como “habeas corpus
e habeas data” por “acción de libertad e acción de protección de privacidad”, palavras simples e de acesso
popular, fortalecendo a democracia e o verdadeiro Estado Plurinacional, que compreende a possibilidade de
um Estado plural, constituído por uma diversidade de culturas, etnias e comunidades e que se ajuste à rea-
lidade social, buscando resolver as desigualdades.

Neste contexto, são lançados novos olhares sobre os temas acima mencionados, com o intuito, não
de esgotar a temática, mas de proporcionar debates acerca de um direito diferenciado e de uma proposta
constitucionalista inovadora, com traços peculiares latino-americanos.

1. DO NEOCONSTITUCIONALISMO AO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO.

O neoconstitucionalismo deve ser compreendido por meio da identificação do marco histórico, teó-
rico e filosófico. Como marco histórico identifica-se os movimentos constitucionais da Europa pós 2ª Guerra
Mundial, assim como reconhece-se como marcos significativos as constituições, alemã de 1949 e italiana
de 1947, e a criação dos tribunais constitucionais nesses países, nos anos de 1951 e 1956, respectivamente.
Aponta-se ainda, a importância dos processos de redemocratização da Espanha e Portugal para a construção
e fortalecimento do neoconstitucionalismo. (Barroso, 2007).

As três características fundamentais para a caracterização do neoconstitucionalismo são: a) o reco-


nhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; c) o desenvolvi-
mento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. (Barroso, 2007).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O termo neoconstitucionalismo tem variadas conceituações e a despeito de afirmar a existência de


diversos significados, Ávila (2009) ressalta que:

“As características principais desse movimento podem ser apontadas na exis-


tência de: número maior de princípios nos textos legais; uso preferencial do
método de ponderação, no lugar da simples subsunção; justiça particular
(individual, levando em consideração as peculiaridades do caso concreto);
fortalecimento do Poder Judiciário; e aplicação da Constituição em todas as
situações, em detrimento da lei”. (Ávila, 2009, p. 2).

Assim, o neoconstitucionalismo é um movimento jurídico-político filosófico que modifica a concepção


e interpretação do Direito, ao introduzir conteúdos axiológicos e ao atribuir força normativa à Constituição,
reposicionando-a como principal elemento na ordem jurídica. Seria, portanto, uma ruptura com o consti-
tucionalismo liberal de previsão meramente formal de direitos. É tentativa de garantia material de direitos
fundamentais para todos.1

Entretanto, este movimento não se iniciou ao mesmo tempo em todo mundo. Decorreu de um longo
processo histórico de conquista e consolidação dos direitos fundamentais e também da institucionalização do
Estado Democrático de Direito em cada um dos países. Assim, tem-se que apenas em 1976 pode florescer
em Portugal, em 1978, na Espanha e apenas em 1988, no Brasil, com a constituição cidadã.

O que se buscou com o neoconstitucionalismo foi a aproximação do direito com a ética, eis que du-
rante certo período histórico e jusfilosófico, ambos andaram dissociados. Para isso foram introduzidos con-
ceitos como razoabilidade, senso comum, interesse público, dignidade, justiça, liberdade, proporcionalidade
e uma série de princípios, que são cláusulas gerais as quais permitem a aferição da legitimação do conteúdo
da norma no caso concreto. Evolui-se para uma nova forma de relacionamento entre o direito e a moral.
(Cambi, 2007).

Para Streck (2009), o neoconstitucionalismo é paradigmático e ruptural. Não há sentido em tratá-


-lo como continuidade, uma vez que seu “motivo de luta” é “outro”. É apontado como um movimento que
promove uma ruptura do paradigma do Estado “liberal-individualista e formal-burguês”. Para o autor, o ne-
oconstitucionalismo é:

(...). Uma técnica ou engenharia do poder que procura dar resposta a movi-
mentos históricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitu-
cionalismo liberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo) (Streck,
2009, p. 8).

O novo constitucionalismo latino-americano surgiu das reivindicações sociais históricas. Este mo-
vimento neoconstitucional culminou na promulgação das constituições do Equador (2008) e da Bolívia
(2009). O autor Rúben Martínez Dalmau (2008) destaca a dificuldade de explicar as razões pelas quais esse
movimento tenha ocorrido na América Latina, principalmente pelo fato de que as experiências constituintes
realizadas por esse movimento são poucas, ainda que significativas. Contudo, tal fato não impede a análise
das principais características do novo constitucionalismo.

Cumpre destacar, pois, que no novo constitucionalismo, o poder constituinte originário volta a ser
exercido como nos primórdios, com a efetiva manifestação da vontade popular, compreendido em toda a sua
pluralidade de composição, e não como exercido nas últimas transições políticas na América Latina, em que
a participação popular era relegada a uma fraca e imprecisa representação.

1  Com a derrota dos regimes totalitários nazi-fascistas, verificou-se a necessidade de criarem catálogos de direitos e garantias
fundamentais para a defesa do cidadão frente aos abusos que poderiam vir a ser cometidos pelo Estado ou por quaisquer detentores
do poder em quaisquer de suas manifestações (político, econômico, intelectual etc) bem como mecanismos efetivos de controle da
Constituição (jurisdição constitucional).

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O novo constitucionalismo levou à implantação do Estado plurinacional na Bolívia e Equador. Boa-


ventura de Souza Santos (2011) vai além, ensinando que o conceito de plurinacionalidade, do qual derivam
a interculturalidade e pós-colonialidade, está presente em vários países, como Canadá, Suíça e Bélgica. Des-
taca-se, pois, a existência de dois conceitos de nação: o primeiro, liberal, em que há identificação entre nação
e Estado, unificando-se os conceitos, uma nação, um Estado; o segundo conceito, desenvolvido pelos índios,
está ligado à autodeterminação.2

Após a breve identificação dos elementos e características do neoconstitucionalismo, passaremos à


análise do novo constitucionalismo latino-americano, identificando suas principais características.

2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E AS EXIGÊNCIAS DAS MINORIAS.

Dalmau (2008) afirma que “o novo constitucionalismo latino-americano é uma evolução do “antigo”
constitucionalismo latino-americano e que surgiu para atender à necessidade de alteração jurídico-política
vivida pela América Latina atualmente”. O autor lembra ainda que:

La evolución constitucional responde al problema de la necesidad. Los gran-


des cambios constitucionales se relacionan directamente con las necesidades
de la sociedad, con sus circunstancias culturales, y con el grado de percepción
que estas sociedades posean sobre las posibilidades del cambio de sus condi-
ciones de vida que, en general, en América Latina no cumplen con las expec-
tativas esperadas en los tiempos que transcurren. Algunas sociedades latino-
americanas, al calor de procesos sociales de reivindicación y protesta que han
tenido lugar en tiempos recientes, han sentido con fuerza esa necesidad que
se ha traducido en lo que podría conocerse como una nueva independencia,
doscientos años después de la política. Independencia que esta vez no alcan-
za sólo a las élites de cada país, sino que sus sujetos son, principalmente, los
pueblos. Dalmau (2008. p. 23).

O novo constitucionalismo latino-americano promove as exigências das minorias ao dar uma ressigni-
ficação de conceitos como legitimidade e participação popular, direitos fundamentais da população, de modo
a incorporar as reivindicações das parcelas historicamente excluídas do processo decisório, notadamente a
população indígena. A título exemplificativo veja-se o artigo 8º da Constituição Boliviana de 2009, em que se
consagra como princípio ético-moral o “Sumak kamaña” ou o “Sumak kawsay”, “viver bem” em quéchua,
língua nativa dos índios. Vejamos o artigo na íntegra:

Art. 8º El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la so-


ciedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas menti-
roso ni seas ladrón), suma kamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa),
teko kavi (vida buena), ivimaraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida
noble) (Constituição da Bolívia, 2009).

O conceito de plurinacionalidade obriga à refundação do Estado moderno, pois o Estado plurinacio-


nal deve congregar diferentes conceitos de nação dentro do mesmo Estado. No mesmo sentido, Alves (2012)
ressalta que:

2  Surge um novo constitucionalismo pautado no resgate dos povos que se tornaram invisíveis à cultura eurocêntrica hegemônica
e na ressignificação da democracia a partir do respeito à diversidade. Representa uma tentativa de ruptura com o paradigma
moderno dominante com uma preocupação com os diferentes grupos sociais e seus interesses. Não se trata mais de uniformizar
as diferenças, e sim absorvê-las pelo Estado. É uma construção do Estado de baixo para cima, em que as diversidades culturais
passam a ser respeitadas e ter a possibilidade de participar de um diálogo democrático.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O Estado plurinacional condensa as principais propostas do novo constitucio-


nalismo, sendo uma resposta à ideia uniformizadora instituída pelo Estado
nacional, em que o Estado e a Constituição são a representação de uma
única nação, um único direito, sem diversidade de interesses, cultura e sem
levar em conta a pluralidade existente na composição do povo (Alves, 2012,
p. 142).

O novo constitucionalismo latino-americano é fruto de reivindicações sociais de parcelas historica-


mente excluídas do processo decisório nesses países, notadamente a população indígena, e observa-se na
Constituição da Bolívia (2009), que há tratamento do direito indígena em 80 dos 411 artigos. Ressaltemos os
seguintes direitos: cotas para parlamentares que sejam oriundos dos povos indígenas; garantia de proprieda-
de exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais pelas comunidades indígenas; equivalência entre a justiça
indígena e a justiça comum. Todas essas alterações positivam os valores propostos pelo novo constituciona-
lismo: pluralidade, inclusão, participação efetiva e maior legitimidade da Constituição e da ordem jurídica.

É oportuna a lição do professor José Luiz Quadros de Magalhães (2008) ao afirmar que:

“(...) A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado


constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper
com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrá-
tico representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não
uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente”.
(Magalhães, 2008, p. 208).

O Estado plurinacional reconhece, pois, a democracia participativa como base da democracia re-
presentativa e garante a existência de formas de constituição dos diversos grupos sociais existentes. Em sua
natureza, a formulação teórica do Pluralismo designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas
formas de ação prática e da diversidade de campos sociais ou culturais com particularidade própria, ou seja,
envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si. O
paradigma para a implantação do Estado plurinacional é justamente o novo constitucionalismo latino-ameri-
cano surgido nos países historicamente dominados, sem tradição constitucional e com uma grande parte da
população sem direito a representantes efetivos. É uma resposta plural, uma tentativa de efetivar respeito e
garantia de pluralidade, participação popular e democracia.

Sendo assim, as constituições de países como Colômbia, Bolívia e Equador já incorporaram o plu-
ralismo jurídico e o direito de aplicação da justiça indígena paralela à juridicidade estatal, reconhecendo a
manifestação periférica de outro modelo de justiça e de legalidade, diferente daquele implantado e aplicado
pelo Estado Moderno.3

Deste modo, é preciso reconhecer que o pluralismo jurídico é um dos fundamentos que podem contri-
buir para que a interculturalidade seja na prática observada. Esse pluralismo deve ser reconhecido enquanto
conceito dinâmico que reconhece o valor da diversidade e da emancipação. Em sua natureza, a formulação
teórica do pluralismo designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e
da diversidade de campos sociais ou culturais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de
fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si, buscando o reconhecimento
das exigências das minorias.

3  As Constituições outorgam um poder claro à sociedade civil organizada, por exemplo na eleição de determinadas autoridades,
sobre as quais já não é o presidente da República quem decide, ou a luta contra a corrupção. O que se faz é recompor a distribuição
do poder público, fortalecendo a organização popular, ainda que isso implique uns mandatos mais longos para outros cargos. A
construção política do Estado e de seus aparatos jurídicos, antes um privilégio do setor social abastado e imposto ao povo, no
atual momento inverte o percurso e brota do seio popular. A constituição deixa de nascer no âmbito exclusivista das minorias
hegemônicas para atender ao chamado de outra forma de poder, multifacetado, diversificado e plural.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O Estado do novo constitucionalismo latino-americano é plurinacional, reconhece a pluralidade so-


cial e jurídica, respeitando e garantindo os direitos de todas as camadas da sociedade. Portanto, a proposta é
uma nova independência e a criação de um Estado plural, participativo e efetivamente democrático.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, o constitucionalismo, em sua visão liberal, tinha como objetivo central e único, a pro-
teção do cidadão e garantia dos direitos essenciais. Ocorre que houve uma mudança de paradigma e o ideal
democrático teve de associar-se ao constitucionalismo. Assim, mesmo com a existência de normas com a
previsão de direitos sociais e limitação do poder estatal, nada impediu que os mesmos fossem violados. 

Deste modo, foi proposta a introdução de fundamentos valorativos no texto constitucional. Nascia
então o neoconstitucionalismo, com o objetivo de impregnar a ordem jurídica de conteúdos axiológicos, prin-
cípios e ideais de justiça.4

O novo constitucionalismo latino-americano surge como um movimento social, jurídico-político vol-


tado à ressignificação do exercício do poder constituinte, da legitimidade, da participação popular e do pró-
prio conceito de Estado. Como já foi dito, o Estado do novo constitucionalismo latino-americano é o Estado
plurinacional, que reconhece a pluralidade social e jurídica, respeitando e assegurando os direitos de todas
as camadas sociais.5

A democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são construídas por
maiorias, mas, sempre, por todos. A constituição não precisa mais ter um papel de reação a mudanças não
autorizadas. Não há necessidade de mecanismos contramajoritários, uma vez que não há mais a vitória da
maioria como fator de decisão. Dessa forma, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como con-
sensos construídos e reconstruídos permanentemente.

No novo constitucionalismo latino-americano observa-se o avanço quanto à concepção de direitos,


de sujeitos e de institucionalidades diferenciadas. O princípio do “sumak kawsay” ou “buen vivir”, fundado
nas concepções dos povos originários aponta um direcionamento oposto aos conhecimentos lançados pelo
pensamento moderno.

Dar titularidade à natureza, “pachamama”, encarando-a como sujeito de direito, capaz de atuar den-
tro de uma esfera jurídica, quebra as lições tidas pelo racionalismo moderno de dissociação entre sujeito e
objeto, ou seja, entre ser humano e natureza, especialmente o olhar antropocêntrico que paira sobre a epis-
temologia hegemônica ocidental.

O reconhecimento de sujeitos coletivos também marca esse movimento constitucionalista, reclaman-


do ao Estado modificações estruturais capazes de compreender novos instrumentos de garantia destes direi-
tos, não apenas como um somatório de individualidades, mas como coletividades complexas e pluriculturais.

A lógica do Estado Moderno perde sua validade diante de realidades sociais diversas. Surge a necessi-
dade de se relativizar o conceito de nação e o conceito de Estado, buscando a inclusão de povos e subjetivida-
des políticas que sempre foram negadas pela lógica legalista e formalista. O novo constitucionalismo se pauta
no resgate dos povos que se tornaram invisíveis à cultura hegemônica e na ressignificação da democracia a
partir do respeito à diversidade. O direito é visto como instrumento de emancipação e transformação.

4  Apresenta-se com uma proposta de uma nova independência e a criação de um Estado participativo e efetivamente democrático,
como mecanismo de se ver garantido o parágrafo único, do artigo 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
5  Não se quer afirmar aqui, que o neoconstitucionalismo acabou ou foi superado. O que aqui se desenvolve é que em alguns
países latino-americanos, onde se originou o novo constitucionalismo, é a criação ou reconhecimento pela ordem jurídica de
direitos existentes no seio social, de formas mais efetivas de participação popular e da construção de um Estado que reconheça a
pluralidade e peculiaridade de seu povo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Pretendeu-se, portanto, neste artigo buscar discussões que ampliassem a visão sobre o novo constitu-
cionalismo latino-americano que é fruto de reivindicações sociais históricas, como agente transformador do
Estado e da relação entre o Estado e seus povos.

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STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo, e o problema da discricionariedade dos juizes.


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WOLKMER, Antônio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1989.

574
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sim, a imagem autoritária que desconsidera a “pedagogia centrada no aluno”.


Devido às múltiplas funções, não lhe resta tempo para se dedicar a algum
tipo de reflexão sobre a sua condição docente.

Isso não é novidade, na América Latina a partir da segunda metade da década de 1970, a discussão
sobre sinais de crise no ensino jurídico associada ao paradigma dominante do Direito, a dogmática jurídica,
foi identificada. Lucas Pizzolatto Konzen (CARVALHO, 2012, p. 159-171), ao dissertar sobre o discurso pe-
dagógico nas faculdades de Direito da América Latina, esclarece que a educação superior sempre cumpriu
um papel de regular o pensável e impensável na sociedade, veiculado por um discurso regulador, qual seria o
motivo? Na tentativa de responder a pergunta Lucas Pizzolatto analisa as três formas de representar a rela-
ção ensino/aprendizagem: “pedagogia diretiva”, “pedagogia não diretiva” e a “pedagogia relacional”.

A primeira forma, “diretiva”, é o modelo tradicional: sala em formato retangular, professor localizado
num tablado, relações aluno-professor verticais, professor protagonista e ao aluno cabe copiar e decorar o que
o docente fala. A segunda forma de ensino/aprendizagem, “não diretiva”, apresenta um contraste com o mo-
delo anterior, o aluno é quem direciona a ação ou inação do professor, que neste caso é apenas um facilitador
que interfere minimamente nas discussões, o docente renuncia a intervenção no processo de aprendizagem.
O modelo “não diretivo” é sustentado por uma visão ideológica “parecida com aquela que suporta a liberdade
de mercado baseada na meritocracia” (CARVALHO, 2012, p. 168).

A terceira forma de ensino-aprendizagem é o “relacional”, modelo relacionado a obra de Paulo Freire,


que pode ser desenvolvido numa sala tradicional na forma, mas o conteúdo é escolhido desde que represente
um significado para os alunos, que passam a explorar o material e a partir daí problematizar o tema estudado.
Neste modelo o professor constrói conhecimento quando reconhece que o aluno só aprende alguma coisa se
agir, docente e discente determinam-se mutuamente.

É raro no ensino jurídico o desenvolvimento de estratégias pedagógicas construtivistas (forma de


ensino-aprendizagem “relacional” que na América Latina se inspira na teoria de Paulo Freire), o que ainda
prevalece é a dogmática jurídica como paradigma hegemônico na ciência do direito, o que significa dizer que
legislação, doutrina e jurisprudência são os conhecimentos trabalhados, outros saberes são marginalizados:
ética, filosofia, história, fundamentos econômicos, sociais e políticos.

Esta perspectiva de ensino-aprendizagem majoritária (diretiva, não-diretiva) é menos atenta a reali-


dade social, o que representa um ensino descomprometido e “apolítico”, dos “debates ideológicos”, reforçan-
do o discurso reacionário na academia, justamente o contrário do saber necessário para educar conforme
Paulo Freire (1996, p.98): “desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por excelên-
cia, é aquele que treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo
fosse ou pudesse ser uma maneira neutra”. É assim que vem caminhando o “sentido comum teórico dos
juristas” (expressão de criada por Warat há mais de trinta anos).

3. A LIBERDADE DE CÁTEDRA E O PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015

A liberdade de cátedra é protegida constitucionalmente pela Constituição Federal de 1988 através do


artigo 226 e só foi objeto de criminalização em tempos ditatoriais no Brasil, que hoje tem vivenciado o retorno
de posturas políticas retrógadas com o surgimento “neofundamentalista” sobre a questão da verdade, sobre-
tudo, para além das questões religiosas (TIBURI, p. 74, 2015):

Em todos os campos da vida em que a verdade possa estar em jogo, quem se


posiciona como seu guardião corre o risco de ser neofundamentalista. Assim,
podemos dizer que há fundamentalistas religiosos e ateus, há fundamentalis-
tas na vida acadêmica, na moral, nas ciências e até no futebol. Diremos que
é neofundamentalista aquele que não se importa “verdadeiramente” com a
verdade. Seria uma espécie de “neossofista”, se ele usasse argumentos. Mas

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

o neofundamentalista cultua a mais bruta ignorância, a que despreza o co-


nhecimento.

Como em qualquer espaço social, também na academia não existe neutralidade, mas o compromisso
com a verdade e a imparcialidade científicas. O fato é que os educadores são conhecedores dos processos
pelos os quais as forças conservadoras atuam, de como a democracia (e aqui o modelo que conhecemos
representativa) pode ser facilmente suplantada pela cruzada dos ricos contra os pobres, reproduzindo a de-
sigualdade (TIBURI, p. 151, 2015):

Certas classes sociais baixas e até médias tem uma alta carga horária de
trabalho e estudo. No Brasil há uma imensa população de trabalhadores que
estuda em universidades precárias esperando que, por esforços desmedidos,
possam superar suas condições sociais e econômicas em meio a toda sorte de
adversidades.

A justificativa do legislador para o Projeto de Lei nº 1.411/2015 seria necessidade de barrar um


suposto “complô gramsciano” dos governos petistas, que pretenderiam conquistar as mentes das novas ge-
rações e “transformá-las em soldados de seus projetos de poder”. Esta visão tem levado a fenômenos como
as manifestações contra o educador Paulo Freire nos comícios anti-Dilma, a favor da “intervenção militar
constitucional” e do impeachment. Nesse ponto é possível recordar do que disse Althusser sobre os Aparelhos
Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, 1985):

Em outras palavras, a escola (mas também outras instituições do Estado,


como a Igreja e outros aparelhos como o Exército) ensina o ‘know-how’ mas
sob a forma de assegurar a submissão à ideologia dominante ou o domínio
de sua ‘prática’. Todos os agentes da produção, da exploração e da repressão,
sem falar dos ‘profissionais da ideologia’ (Marx) devem de uma forma ou
de outra estar ‘imbuídos’ desta ideologia para desempenhar ‘conscensiosa-
mente’ suas tarefas, seja a de explorados (os operários), seja de exploradores
(capitalistas), seja de auxiliares na exploração (os quadros), seja de grandes
sacerdotes da ideologia dominante (seus ‘funcionários’) etc

Os defensores do Projeto de Lei nº 1.411/2015 buscam fundamentos ideológicos em Olavo de Carva-


lho para chegar à defesa de uma educação sem ideologia, aqui a teoria de Althusser se aplica, mesmo que “as
avessas”, já que de certo modo os defensores do Projeto de Lei nº 1.411/2015 são conscientes da importância
dos docentes na formação intelectual dos estudantes, como é ainda nos cursos de Direito, onde se impõe
muitas vezes um currículo embasado exclusivamente na Lei, na segurança, na propriedade privada.

Longe de uma visão constitucional emancipatória (próxima da alteridade), os que defendem a crimi-
nalização da liberdade de cátedra tem como objetivo ostensivo “impedir que estudantes sofram perseguição
por discordar de seus professores”, o que seria desnecessário uma lei criminalizadora para tal, já que o pró-
prio docente tem que respeitar as liberdades presentes na Carta Magna, a legislação em vigor e códigos de
ética das instituições educacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há muito o que acrescentar nestas linhas finais, mas apenas destacar após esta reflexão, que os
defensores do Projeto de Lei nº 1.411/2015 buscam fundamentos ideológicos para acabar com a ideologia
(caindo os mesmos em contradição) para não permitir a liberdade cátedra de se expressar politicamente,
almejando com isso um ensino descomprometido e “apolítico”, distante dos “debates ideológicos”, reforçando
o discurso reacionário e com ele apenas uma visão sobre “a verdade” em uma postura “neofundamentalista”.
Estes fatos são o bastante para rejeitarmos o referido projeto, pois o mesmo é contrário a uma educação de-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mocrática e emancipatória, contrário ao que o Brasil tanto necessita que é respeitar a Constituição Federal
de 1988 e abandonar as práticas de perseguição política (resquícios dos períodos ditatoriais).

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Lois. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. de Valter JoséEvangelista e Maria Lau-
ra Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

ALMEIDA, Elizangela Santos de. Estado da arte da má-formação didático-pedagógica e humanísti-


ca dos professores como fator deteminante da crise do ensino jurídico.Jus Navigandi. Disponível
em: http://jus.com.br/artigos/22346/estado-da-arte-da-ma-formacao-didatico-pedagogica-e-humanistica-dos-professo-
res-como-fator-deteminante-da-crise-do-ensino-juridico#ixzz3XJp3v53s Acesso em: 14/04/2015.

BARBOSA, David Tavares; QUEIROZ, Pietro Renato Felix de. Um novo recife em cena: paisagem, po-
lítica e direito à cidade no cine-ativismo pernambucano. Disponível em: http://www.simpurb2013.
com.br/wp-content/uploads/2013/11/GT11-1327-David.pdf Acesso em: 03/07/2015.

CARVALHO, Evandro Menezes de (organizador) et al. Representações do professor de direito. Curitiba:


CVR, 2012

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra, 1996.

GRÜNE, Carmela. Samba no pé Direito na cabeça.Carmela Grüne (organizadora). São Paulo: Saraiva,
2012.

MELO, Ezilda. A emoção e o Direito. Disponível em:http://emporiododireito.com.br/a-emocao-e-o-direito-


-parte-2-por-ezilda-melo/Acesso em: 05/07/2015.

OCUPE ESTELITA. Cinema de Urgência na TVU. Disponível em: http://www.ocupeestelita.com.br/cine-


ma-de-urgencia-na-tvu Acesso em: 26/04/2015

PRAGMATISMO POLÍTICO. Leis e mulheres foram feitas para serem violadas. Disponível em:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/04/leis-e-mulheres-foram-feitas-para-serem-violadas.html Acesso em:
27/04/2015.

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasi-
leiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

STRECK, Lênio. As palavras e as coisas na terra dos fugitivos. Disponível em: http://www.conjur.com.
br/2014-mar-20/senso-incomum-palavras-coisas-terra-fugitivos Acesso em: 27/08/2015.

UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: visão e ação. Paris, 1998.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

“O ONTEM É HOJE”:
SOBRE A TUTELA DOS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTE NA OBRA CINEMATOGRÁFICA TATUAGEM

Synara Veras de Araújo


Mestre em Direito e Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de
Pernambuco-UNICAP, Especialista em Advocacia Geral pela UNICID, Professora de Direito
da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central de Pernambuco-FACHUSC

SUMÁRIO: 1. Direito e Cinema: possibilidades a partir do campo Direito e Arte; 2. Do filme Tatua-
gem e os direitos à liberdade presentes na obra de Hilton Lacerda; Considerações finais; Referências.

1. DIREITO E CINEMA: POSSIBILIDADES A PARTIR DO CAMPO DIREITO E ARTE.

Não são poucos os temas jurídicos apreendidos pelas artes, a título de exemplos temos: a lei, os
julgamentos, as penas, os tribunais, os magistrados, os advogados, os tratados, as instituições, os legisladores
e a justiça, tema central do mundo do Direito. Constatando-se que a arte e o direito sempre mantiveram
uma relação próxima, não seriam incomum nem tão pouco recente os argumentos e saberes jurídicos que
buscariam compreender o direito presente nas narrativas artísticas.

Como explica Marcílio Franca no livro A cegueira da justiça: diálogo iconográfico entre Arte e Direi-
to (2011), no período moderno o senso comum baseado apenas na razão humana distanciou a arte do direito,
sendo este afastamento proporcionado pelo positivismo jurídico que fez com que o senso comum difundisse
a ideia de que a ciência jurídica seria “uma ciência da lógica da interpretação cartesiana de textos racionais
e objetivos, em que não haveria lugar para as incertezas semânticas, a emocionalidade e até certa irraciona-
lidade da arte e da estética” (FRANCA FILHO, 2011, p. 18).

Os estudos sobre Direito e Cinema pertencem ao campo de pesquisa Direito e Arte. O trabalho que Carmela
Grune, editora do Jornal Estado de Direito e Exceção também se integra ao Campo Direito e Arte através das obras:
Samba no pé Direito na cabeça (GRÜNE, 2012) e Participação cidadã na gestão pública: a experiência da Escola
de Samba de Mangueira (GRÜNE, 2012). Reflexões sobre o Direito, a partir do Cinema Brasileiro, serão publicadas,
em breve, por Carmela. Por enquanto, é possível conhecer o seu trabalho a partir da abordagem do Direito presente no
Samba no livro Participação cidadã na gestão pública: a experiência da Escola de Samba de Mangueira, onde exalta
o significativo papel do samba como fio condutor pedagógico do ensino do Direito.

Estabelecendo também pontos de contato entre o Direito e a Arte, José Calvo Gonzales (2013) chega a propor
um novo paradigma jurídico denominado Direito Curvo, sustentando que as teorias jurídicas sobre os direitos são tão
frágeis quanto teias de aranha. A demonstração desta fragilidade se desenvolve ao percorrer as aspirações geométricas
dos juristas, impulsionadas pelo racionalismo cartesiano, ao relacionar a teoria pura do direito e a ordem figurativa do
cubismo; ao abordar as ondulações sofridas pelo direito a partir das concepções “flexível, dúctil, frágil e solúvel”, que
segundo ele pode ser interpretado da seguinte forma (GONZALES, 2013, p. 30):

(...) como uma contradictio in terminis, geométrica e também semantica-


mente. Todavia, penso que não seja nem uma coisa nem outra. Em primeiro
lugar, porque, se imaginarmos um círculo cujo raio de curvatura seja infini-
to, perceberíamos uma linha reta; portanto, Direito retilíneo não necessaria-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

mente impugna Direito curvo. Em primeiro lugar, porque Direito Curvo é um


paradoxo; quer dizer, cubismo aplicado à linguagem, eis que transcende a
oposição entre conceitos antiéticos e auto excludentes, integrando-os em um
mesmo plano, de maneira que, dinamicamente, ambos se compõem e se des-
compõem, não sendo mais possível uma compreensão estática e separada.

Desta maneira o Direito Curvo “não abandona a forma em seu estado puro”, mas surge em meio ao “equívoco
da purificação jurídica do kelseanismo, a partir da hipertrofia ocorrida no formalismo conceitual”, apresentando uma
característica geométrica particular, constituída de dois elementos que a define: a circularidade jurídica e a descentra-
lização dos lugares clássicos de imputação jurídico-normativa (GONZALES, 2013, p. 30-37). Acerca da circularidade
jurídica, interessante as seguintes considerações:

A circularidade aparece nitidamente no novo modo de relação entre as fontes do Direito interno e do Direito
internacional. Abandonam-se não apenas as antigas concepções relativas à teoria monista kelseniana – ainda que par-
cialmente modificada no que diz respeito ao vértice ou à base estrutural da Normpyramide – como também a dualista.
As relações, agora, conduzem-se através de um esquema desenhado mediante feedback. Isto vem ocorrendo no âmbito
jurídico europeu no tocante à família, a partir da significativa mudança da jurisprudência do Tribunal Europeu de Di-
reitos Humanos que, em matéria relativa à proteção familiar, vinha excluindo de sua noção tradicional as uniões entre
pessoas do mesmo sexo. Todavia, considerando os acontecimentos verificados nos últimos anos aliados à crescente
tendência introduzida pelas legislações internas, o Tribunal entendeu que o conceito de “vida familiar” deve equiparar
tais relações àquelas decorrentes da união de pessoas de sexo diferente.

Sobre a “descentralização dos lugares clássicos de imputação jurídica-normativa”, o doutrinador observa que
diariamente “a prática jurídica” representa a “curvatura da linha divisória do espaço entre as categorias jurídicas de
Direito público e Direito privado” (GONZALES, 2013, p. 38-39), a título de exemplo, as inúmeras relações entre Di-
reito administrativo e Direito privado quando nos deparamos com o Direito ambiental, Direito urbanístico, que adotam
direito de natureza pública e privada.

José Calvo foi Conferencista do I Colóquio Internacional de Direito e Literatura, realizado na Faculdade Meri-
dional, em Passo Fundo e sua obra sobre o tema teve início na década de 90 (Séc. XX). É reconhecido internacionalmen-
te pela contribuição de seus estudos jusliterários, Lênio Streck afirma que os belos textos de Calvo remetem ao debate
entre as diversas concepções de Direito, onde se percebe a “curvatura do Direito”, Direito que passou de instrumento de
opressão para instrumento de emancipação social (GONZALES, 2013, p. 61).

Literatura e Direito também é tema das atividades extensivas do curso de Direito da UNICAP através do grupo
de estudo orientado por Andrea Campos e Rosa Maria Freitas. Andrea Campos vem elaborando sua tese sobre a rela-
ção entre Direito, Literatura e Psicanálise, é reconhecida pelas atividades promovidas na UNICAP, as mais recentes:
Champanhe Filosófico, onde há o diálogo com diversos temas utilizando textos literários como base; Grupo Flor de
Mandacaru, que promoveu a palestra com o prof. Carlos Newton Jr sobre o tema Ariano o Direito (UNICAP, 2015).

Andrea ao descrever a relação existente entre Freud e o Direito, afirma que o último está “tatuado na obra de
Freud mais do que se tem apreciado” (CAMPOS, 2015):

No Mal-Estar da Civilização (2008), Freud traz o discurso jurídico como pres-


suposto da existência das civilizações e em O Futuro de uma Ilusão (1997)
deixa claro que a civilização apenas foi possível em decorrência do controle
do homem sobre a natureza e do estabelecimento de regras coercitivas de
convivência. Tudo isso não sem resistência, não sem hostilidade, pois que
leva ao refreamento e encarceramento dos instintos, criando-se uma nova
esfera mental: o superego. 

Rosa Maria Freitas desenvolveu com alunas do curso de Direito da UNICAP, componentes do Grupo
Flor de Mandacaru: Direito, Literatura e Cidadania,o cordel Ode à Constituição, onde recita (FREITAS,
2014):

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Já que a força da lei não vem dos lírios


E a injustiça é quem bate à nossa porta
De que vale uma lei, se a letra é morta,
E não escuta o clamor de mil martírios
Pra quem diz que as reformas são delírios,
De discurso acadêmico indiferente,
Feche o código de lei e ouça a gente,
Que padece com o grito sufocado
Relembremos as lutas do passado,
Mas façamos reforma no presente!

As lutas do passado continuam presentes na contemporaneidade, as reformas necessárias citadas no cordel


estão na pauta dos debates acadêmicos e a poesia foi até utilizada em Contestação e Decisão judicial recentemente
(EMPÓRIO DO DIREITO, 2015):

Muitas vezes a poesia, a literatura e a criatividade são utilizadas no processo. Alguns com mau humor
respondem pela retirada, enquanto outros levam adiante a proposta. Foi o caso do Juiz Zacarias Leonardo, do
Tribunal de Justiça de Tocantins.

(...) A disputa judicial de cobrança de seguro, entre um motociclista residen-


te em Palmas que se acidentou no município de Pugmil e sofreu invalidez
permanente e uma companhia de seguros paulista gerou a produção de uma
petição e uma decisão em forma de poesia em processo que tramita na 4ª
Vara Cível de Palmas.

Após a seguradora ajuizar uma ação conhecida como exceção de competência, defendendo que a ação de co-
brança ajuizada pelo motociclista não poderia tramitar na Comarca de Palmas e, sim, na de Paraíso, que abrange Pugmil,
o advogado da vítima contestou a seguradora em versos. Vale ressaltar que em uma única estrofe com 18 versos livres
(e quatro referências a doutrinas e leis que embasavam sua petição), o advogado defendeu a opção legal do motociclista
em cobrar o seguro em Palmas, cidade onde reside, e pediu ao juiz que rejeitasse a ação da seguradora.

Direito e Literatura já possui uma rede, já com relação à produção de estudos sobre Cinema e Di-
reito, é um campo em formação, segundo a lista de trabalhos a respeito (EMPÓRIO DO DIREITO, 2015), a
maioria dostrabalhos dissertativos e monográficos vieram dos estudos realizados na Faculdade Nacional de
Direito - FND/UFRJ,especificamente na linha de pesquisa Sociedade, Direitos Humanos e Arte, na qual o grupo
Direito e Cinema, sob a orientação de Juliana Magalhães, realiza pesquisas que conduzem às reflexões sobre
os desafios que os Direitos Humanos encontram e enfrentam no contexto multicultural contemporâneo.

O esgotamento dos paradigmas Jurispositivistas resultou nas chamadas Teorias Jurídicas Con-
temporâneas, que representam um conjunto de perspectivas críticas diferenciadas do Positivismo e da centra-
lidade da norma jurídica na Teoria do Direito. O que se entendia por Teoria do Direito é hoje modificada e
compreendida como um esforço teórico-metodológico convergente entre aspectos lógicos e hermenêuticos;
institucionais (positivistas); sistemas, retóricos; e teóricos-argumentativos (MATOS, 2012, p. 233).

É nesse contexto que surgem aproximações entre teorias do direito e estudos culturais, como
os que são orientados por Juliana Magalhães na FND (UFRJ), que reveem a concepção tradicional normati-
vista e abrem espaço para outras formas simbólicas de manifestação do direito. O grupo de Direito e Arte da
FND partilha das mesmas idéias de Shulamit Almog e Ely Aharonson para os quais a justiça é um conceito
abstrato e a única forma de ver a justiça seria através de uma imagem, justamente por isso o cinema pode ser
considerado hoje o principal capital simbólico audiovisual, construindo sentidos e formatos de justiça. Aqui
o direito seria compreendido como “sistema de representações, que teriam como objetivo convencer a socie-
dade de que o sistema jurídico detém controle exclusivo sobre os sentidos do conceito de justiça” (MATOS,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

2012, p. 233). Então estratégias performáticas, tais como as narrativas, retóricas e rituais, representariam a
realização da justiça e a legitimidade do sistema normativo que dependeria da proximidade entre realidade e
representação.

Apesar de se contar apenas “nos dedos de uma das mãos”, os trabalhos monográficos e dissertativos
publicados que abordam expressamente Direito e Cinema, felizmente tem sido crescente a produção de arti-
gos, muitos deles podem ser encontrados nos anais do CONPEDI (PUBLICA DIREITO, 2015), da ABRASD
(2014), eventos que vem considerando a possibilidade de estudos do direito a partir do cinema.

O trabalho dissertativo Renato de Oliveira Martinez (UFSC) traça um panorama geral sobre as experiências
desenvolvidas no Brasil sob o rótulo “Direito e Cinema”, ao realizar o levantamento de publicações (livros, trabalhos
acadêmicos e artigos científicos), atividades acadêmicas (disciplinas, grupos de pesquisa, projetos de extensão) e even-
tos (seminários, mostras de filmes) que de uma forma ou outra se debruçam sobre o intercâmbio Direito-Cinema. O
autor procura diminuir a lacuna a respeito de material sobre tema “Direito e Cinema” quando faz um levantamento sobre
os trabalhos publicados nos últimos dez anos (EMPÓRIO DO DIREITO, 2015).

Em outros países o meio acadêmico vem produzindo estudos sobre “Cinema e Direito” há mais tempo, trazem
uma proposta nova e criativa para compreensão do fenômeno jurídico a partir da investigação sobre as diversas formas
de como o Direito é representado nos filmes. Trata-se de uma radicalização das ideias de interdisciplinaridade e da pró-
pria concepção de Direito como expressão cultural (EMPÓRIO DO DIREITO, 2015).

Neste sentido outra possibilidade exploratória da temática Direito e Cinema o catedrático de


Filosofia do Direito da Universidade de León, Espanha, o Dr. Juan Antônio García Amado. É dele um dos pri-
meiros escritos correlacionando Direito e Cinema de forma mais profunda através da obra A lista de Schindler:
sobre os abismos que o Direito dificilmente alcança. Sendo apresentado no lançamento até como um parâmetro
metodológico para aqueles que pretendiam ingressar no que um dia Warat chamou de “cinesofia”.

Ao abordar o tema Nazismo e as suas aberrações, Amado optou por não contemplar minucio-
samente as cenas do filme, mas por arrancar as perguntas relevantes, de como reagiu o Direito, dentro e
fora da Alemanha, quando o regime nazista terminou; como respondeu o Direito Internacional aos crimes
de Nazismo; como se encaixaram as categorias e normas do Direito Penal; e, por fim, se houve compensação
aos milhões de prisioneiros que, com seu trabalho escravo, renderam ao Estado Alemão e às empresas alemãs
grandes benefícios (AMADO, 2009, p. 13).

O “recorte” feito por Amado consistiu em analisar o filme A lista de Schindler sob a ótica da teoria
social, passando depois para a história real dos fatos narrados, perguntando, ao final, qual seria a capacidade
de reação do Direito de reação aos fenômenos dessa magnitude. A conclusão do autor é pela imagem de um
abismo que o Direito dificilmente alcança, como quando expõe o argumento dos defensores da ausência de
legitimidade do Tribunal de Nuremberg afirmando que por mais repulsivo e imoral que tivessem sido os atos
nazistas, seria necessário que tais atos estivessem prescritos em norma legal anterior, pois “a condenação
moral não pode traduzir-se em condenação penal” (AMADO, 2009, p. 50)

O autor ao comparar o Tribunal Penal Internacional com o Tribunal de Nuremberg destaca


as dificuldades encontradas pelo Direito, aponta para isto a diferença mais importante, onde o Tribunal
de Nuremberg foi uma tentativa desesperada de se fazer justiça a crimes “aborrecíveis” e o Tribunal Penal
Internacional, embora apresente legitimação e competência atribuídas pelo Direito Internacional, seria ne-
cessário um longo tempo e ratificação por parte dos Estados reconhecendo a competência do Tribunal Penal
Internacional.

Também da Espanha algumas reflexões sobre o ensino do Direito, a partir do Cinema, acon-
tecem e são registradas em Anais de Congressos como o que abordou asTransformaciones en la docência y el
aprendizaje del Derecho, traduzindo, as “transformações na docência e aprendizagem do Direito (AÑÓN,
2013) na Parte VII: La enseñanza del Derecho a través del Cine y la Literatura, ou seja, o ensino do Direito através
do Cinema e da Literatura.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Javier de Lucas, em sua publicação nos Anais do quinto Congresso Nacional de Docência em Ciências
Jurídicas (Valencia-Espanha) afirma que a linguagem do cinema é um instrumento de primeira ordem para transmitir
as tensões do Direito, os paradoxos, as diferentes versões da verdade, o drama que suporta os agentes de Direito1, e que
esta relação entre Cinema e Direito já conta com uma obra pioneira que teve início com o sociólogo italiano de Direito
Vincenzo Tomeo,e suaII giudice sullo shermo: Magistratura e polizia nel cinema italiano (1987). Destaca também o
grupo de Edimburgo coordenado pelo professor Robson, cuja obra mais conhecida é Film and the Law: The Cinema of
Justiça. Na Web há ainda endereços consagrados segundo Javier de Lucas (AÑÓN, 2013, p. 657):

webs consagradas a esta relación: por ejemplo, Droit et Cinema: www.


droit-justicecinema.fr. Más específica, sobre cine y criminalidad organiza-
da, puede consultarse la web http://www.youtube.com/watch?v=Pf54TC-
v-U_g&feature=share

Javier de Lucas organiza a Coleção Cine y Derecho, pela Editora Tirant lo Blanch (www.tirant.com/
editorial/colecciones/cine-y-derecho), considerada a mais completa da Espanha, segundo Mario Ruiz Sans
(AÑON, 2013, p. 691).

Mario Ruiz Sans (AÑON, 2013, p. 691) também elenca os pontos positivos e negativos da utilização
do cinema no ensino jurídico. Para ele uma das virtudes do ensino do Direito a partir do Cinema é por ser
este um meio de comunicação excepcional, pois é difícil encontrar um estudante que não goste de cinema,
portanto os professores deveriam aproveitar este interesse dos discentes. Além disso, a necessidade de o pro-
fessor ficar atento para a escolha do filme fará com que obtenha um alto grau de aceitação e solidariedade
por parte dos alunos.Por exemplo, filmes que ofereçam uma reflexão sobre a realidade do tipo documental,
como também o de ficção, podem construir uma semântica de acordo com o mundo real.

Para evitar alguns “erros” na escolha dos filmes, Mario Ruiz Sans (AÑON, 2013, p. 692) recomenda
ao professor procurar se informar através de materiais disponíveis sobre cinema e direito, através de artigos,
livros e sites, para fazer assim uma melhor escolha e encaminhamento. Cita no âmbito espanhol a Coleção
de Cinema e Direito (já mencionada por outros pesquisadores), sendo pertinente para este trabalho a suges-
tão Cine y derechos humanos, da Anistia Internacional de Catalunya (www.amnistiacatalunya.org/edu/pelis), que
incluem fragmentos de filmes por artigo da Declaração de Direitos Humanos através de uma seleção filmes,
muitos deles sequer presentes no circuito comercial.

Mario também indica (ANON, 2013, p. 692) a Colección de Materiales Didácticos sobre Derecho y Cine,
da revista on-line ProyectoDeCine (www.proyectodecine.wordpress.com), fruto de trabalhos de uma rede de
professores para a elaboração de materiais didáticos para o ensino do Direito. Na página há uma série de ma-
teriais que podem ser consultados integralmente. Algo semelhante acontece com Projeto Cine Jurídico em
Salgueiro/PE que compartilha no Facebook (https://www.facebook.com/CineJuridico?fref=ts) como também
no Blog (http://cinejustica.blogspot.com.br/) textos acadêmicos, projetos, grupos de estudo, vídeos, filmes,
entre outros textos relacionados ao estudo do Direito.

Mario (ANON, 2013, p. 693) sugere ainda uma “pauta de atuação” para os professores para
que não pensem que “tudo vale” ao realizar uma atividade com cinema:

1. A estrutura da sessão cinematográfica se divide em 3 partes: exposição


geral do tema do filme; a projeção do filme sem interrupções ou comen-
tários durante a exibição; debate aberto;
2. No caso de haver várias sessões, devem-se divulgar as datas, o lugar da
projeção, ficha técnica, material complementar;
3. Insistir para o aluno ler e trabalhar o material complementar sobre o
filme;

1  “el lenguaje del cine es un instrumento de primer orden para transmitir cuanto está en el núcleo del Derecho, de sus tensio-
nes, de sus paradojas, de su grandeza y también de su miseria. Lo muestra la relatividad de la verdad que persigue el Derecho: la
dificultad de las diferentes versiones de la verdad y del drama que supone la relativa renuncia a la verdad por parte de los agentes
del Derecho” (AÑÓN, 2013, p. 654)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

4. As projeções devem ter continuidade narrativa e não serem “mutiladas”,


pois isso romperia com o ritmo natural do filme;
5. A projeção não deve ser interrompida para expressar algum conceito,
nem para explicar o que está sendo exibido;
6. Evitar filmes dublados, para não perder a intensidade dos diálogos dos
personagens, por ser a dublagem um elemento artificial e invasor;
7. Procurar exibir num espaço físico adequado, com bom equipamento de
som e projeção, evitar más reproduções em DVD;
8. Deve-se incluir ao menos um filme “mudo”, o silêncio fala por si mesmo
e o cinema sem palavras cria essa necessidade de falar;
9. Na programação incluir pelo menos um filme periférico, alternativo;
10. É importante formular um questionário ao final das sessões para saber a opinião
dos alunos;

São sugestões importantes que ajudarão a muitos docentes que trabalham com Cinema e Direito no
ensino jurídico. Mario (ANON, 2013, p. 695) conclui que a intersecção entre Direito e Cinema através da
Arte existe sem dúvida, uma proposta que desafia o sistema universitário “décimo nono” (séc. XIX) e introduz
inovação docente nas aulas que se utilizam deste ensino. Para ele “temos que imaginar e sentir o jurídico
para além de seus limites e estereótipos e aproveitar a abertura acadêmica para o mundo, a vida em toda a
sua extensão”.

Carlos Tormo Camallonga (ANON, 2013, p. 725) afirma que é inquestionável a crise da lei positiva como única
configuradora do ordenamento jurídico atual, um ordenamento que exige cada vez mais trabalho interpretativo e dife-
renciado. Carlos Tormo conta que na sua experiência como docente lecionando História do Direito e as Instituições (no
curso de Direito da Universidade de Valência), no estudo sobre os Direitos Indígenas, utiliza como referência o filme
También la lluvia, no Brasil conhecido como Conflito das águas, por coincidência utilizado no trabalho desta professo-
ra, publicado nos Anais da ABRASD sob o título Do pensamento abissal e da contribuição teórica latino-americana de
Bartolomé de Las Casas no filme “Conflito das águas” (ABRASD, 2014, p. 57):

“Conflito das águas” utiliza-se da metalinguagem, já que se trata de um fil-


me que fala sobre si mesmo e tem como enredo o fazer cinema. A história
sobre o “descobrimento” da América é dirigida por “Sebastián”, que conta
com a ajuda de “Costa”, um cético e pragmático produtor que deseja filmar
o mito de Colombo, apresentando-o como um homem ambicioso e repressor.
Ao produtor “Costa” importa filmar com orçamento modesto, o que é possí-
vel observar nos diálogos iniciais do filme entre diretor e produtor, quando
o segundo (“Costa”) comemora os baixos custos da produção na Bolívia por
causa da grande população indígena que trabalha inclusive por comida, o
primeiro (“Sebastián”) enfrenta a tensão entre se envolver com a denúncia
popular ou executar a ficção cinematográfica (colocando em risco a própria
sobrevivência).

Carlos Tormo ao apresentar os resultados da aprendizagem a partir do cinema (lecionando no curso


de Direito na Universidade de Valencia) reconhece (como tantos outros professores) que estamos diante de
“grandes expectativas, pequenos resultados”2 (ANÕN, 2013, p. 734), pois apesar do interesse dos alunos em
ver os filmes, o alvoroço deles não é tão grande na aula que antecede a exibição do filme e nem na atividade
escrita posterior a exibição. Segundo ele é raro o aluno que lê a bibliografia recomendada e que o professor
deve insistir.

A maioria dos alunos de Carlos Tormo não participa do debate sobre o filme (apesar do reconheci-
mento da atividade ser inovadora), o resultado das exposições escritas dos alunos também não apresenta

2  “Los resultados, por lo tanto, no serán los que en un principio desearía el profesor, y mucho menos si se siente especialmente
implicado e ilusionado en lo que llamamos innovación docente.” (AÑON, 2013, p. 734).

583
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

grandes resultados, mas para um “descanso de consciência”, o professor afirma que não parece ser um pro-
blema da disciplina que trabalha com cinema, mas de qualquer outra, pois nós docentes em muitas ocasiões
situamos os estudantes em um nível conceitual inalcançável, sem levar em consideração que pode haver a
falta de hábito com a metodologia ou até mesmo desinteresse.

Há também como experiência docente no curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas – FGV, a
disciplina eletiva intitulada Direito no Cinema, ministrada por Gabriel Lacerda, que buscar lançar um olhar
jurídico sobre as relações sociais e estimular os alunos a perceberem o que há de Direito no mundo. Gabriel
relata suas experiências didáticas na obra O direito no cinema: relato de uma experiência didática no campo do
direito (LACERDA, 2007) e Nazismo, Cinema e Direito (LACERDA, 2012).

As obras mais conhecidas de Gabriel Lacerda são:O Direito no Cinema: uma experiência didática
no campo do Direitoe Nazismo, Cinema e Direito. As referidas obras surgiram das experiências acadêmicas
como professor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas- FGV do Rio de Janeiro.

Lacerda afirma que a atividade envolvendo o Direito e o Cinema partiu de alguns questiona-
mentos relacionados à utilização do cinema como ferramenta didática no curso de Direito. E que, inicial-
mente, a atividade acadêmica envolvendo Cinema e Direito foi realizada como uma atividade extensiva,
eletiva, oferecida aos alunos do primeiro período do curso, desenvolvida em sessões com duração de três
horas e meia, sendo em semanas alternadas, onde os alunos participantes receberiam ao final o conceito de
aproveitamento ou não (2007, p. 13-14).

Lacerda (2007, p. 13-14) revela que ao escolher os filmes levou em consideração o período ao
qual fazia parte o público-alvo, no caso o primeiro período do curso de Direito, onde o nível de conhecimento
jurídico ainda era muito pouco, acrescentando ainda o fato de que as atividades fariam parte de uma carga
horária extracurricular de um curso integral e que a turma já seria submetida a uma carga de leitura subs-
tancial, bem maior que aquela que estavam habituados em sua vida escolar anterior.

A atividade Direito e Cinema foi apresentada sem a exigência de leituras prévias, apenas se
deveria assistir a um número razoável de filmes, participar dos debates e apresentar dois trabalhos escritos.
Ficou a atividade assim representada como um momento de reflexão, com obras relacionadas ao direito, mas
produzidas como fonte de entretenimento.

Depois de ter assistido uma centena de filmes, Lacerda destacou e optou pelo gênero conheci-
do como filme de advogado, que consiste em obras que tem o direito ou a advocacia como centro da trama e
não com os grandes conceitos e temas jurídicos. Para ele tais filmes poderiam levantar debates relacionados
ao exercício da advocacia como profissão com a mediação de um advogado experiente, uma atividade forma-
tiva com características de entretenimento (LACERDA, 2007, p.15-16).

A atividade desenvolvida na FGV-RJ, embora eletiva, seguiu um padrão: distribuição de mate-


rial escrito com a recapitulação do enredo do filme, frases de destaque, cenas de relevo e propostas de refle-
xão complementar. Para enriquecer o debate foram acrescidos textos de leis, decisões, fatos relacionados às
histórias reais (quando o filme era baseado em casos ocorridos na sociedade).

Os objetivos (LACERDA, 2007, p.16) da atividade Direito e Cinema na FGV consistiram em:

(...) sensibilizar os alunos para uma atitude diante da realidade; ajudar os


alunos a perceber qual o papel social da profissão que estão começando a
aprender; transmitir, compreender e fixar uma certa dose de informação bá-
sica sobre temas jurídicos; exercitar capacidade de expressão, poder de sínte-
se e habilidade de argumentação; pensar.

Dentre os objetivos o último, pensar, talvez seja o primordial, afinal, refletir sobre o significado
de ser advogado, o porquê da escolha daquela faculdade e não outra, daquela profissão e não outra. Uma

584
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

atividade como esta não poderia ser menos considerada pelos alunos, como realmente não foi, os alunos de
Direito e Cinema I migraram na totalidade para Direito e Cinema II.

A ideia adotada por Lacerda o levou a constatação que sim, é possível e produtivo utilizar o
cinema como ferramenta didática em uma faculdade de direito. A exposição intensa ao direito e às institui-
ções jurídicas a partir do cinema trouxe o mérito de gerar material para que outras experiências semelhantes
pudessem ser desenvolvidas, aperfeiçoando assim o ensino jurídico no Brasil.

Outro trabalho didático com Cinema e Direito foi desenvolvido na Universidade Federal de Goiás por
João Gonçalves Neto, no âmbito do mestrado em direito agrário, na crença de que o cinema poderia con-
tribuir de alguma maneira com o processo educacional. O trabalho publicado posteriormente baseou-se na
escolha de filmes não reconhecidos como de arte ou óbvios de tribunais, mas títulos de alcance comercial que
permitiram fácil apelo ao público (GONÇALVES NETO, 2013, p. 8-9).

Este trabalho foi projeto pedagógico e de pesquisa denominado Kenosis – Núcleo de pesquisa e
ação em Direito e arte do mestrado em direito agrário da UFG - Universidade Federal de Goiás. Semelhante
às outras propostas acadêmicas que utilizam a arte, especialmente o cinema, busca explorar os aspectos pro-
blemáticos da vida (KENOSIS, 2015).

No prefácio da obra “O Direito a partir do cinema” o professor João provoca: “alguma coisa de
muito estranha anda acontecendo no mundo para que o cinema comercial seja, cada vez mais, um veículo de
crítica social e vazão das angústias políticas de massas inteiras por toda parte” (GONÇALVES NETO, 2013, p.
07) e prossegue lembrando que filmes são exibidos em todos os lugares, de igrejas a empresas, “para reforçar
as crenas nos deuses ou nos mercados”.

Levanta duas hipóteses, mas não se apropria de nenhuma delas. A primeira justificaria o uso
cada vez mais comum do cinema em todos os lugares porque cinema teria encontrado uma fórmula “magis-
tral”, a indústria do cinema teria reunido a boa arte com o mercado de massas. A segunda hipótese seria por-
que a impotência política é tão grande que reduziu as reações e a própria vida a entusiasmos para “sujeitos
imersos numa confortável escuridão”.

Mas como foi dito, o professor não se prende a nenhuma das duas hipóteses, prefere um ter-
ceiro caminho (GONÇALVES NETO, 2013, p. 07), o de utilizar as obras cinematográficas como documentos
artísticos e estéticos para remeter a uma realidade cuja linguagem é usualmente desinteressante. Assim
aplica a análise do filme com o intuito de explorar aspectos problemáticos da vida cultural, política, jurídica
e moral, com fins didáticos e especulativos.

É neste sentido que o trabalho foi organizado e publicado numa obra com textos desenvolvidos
no interior do projeto pedagógico (KENOSIS, 2015) e de pesquisa que se apropria da arte e, especialmente,
do cinema para pensar a cultura e o direito. Os títulos dos filmes não foram necessariamente “cults”, nem
tão conhecidos como filmes de tribunal.

2. DO FILME TATUAGEM E OS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTES NA OBRA DE HILTON LACERDA.

Realizar um estudo sobre a tutela dos direitos à liberdade através de uma obra cinematográfica como
Tatuagem do diretor pernambucano Hilton Lacerda é trazer uma prática nova e criativa para compreensão
do fenômeno jurídico. Tratar da humanização de um soldado (num contexto ditatorial) que foi treinado para
executar ordens sem contestá-las, perceber a existência da possibilidade de outro Brasil, mais democrático e
livre, estas são as impressões que Tatuagem imprime desde o princípio.

O dilema de “Fininha”, escolher entre ser livre ou ser instrumento da repressão militar, o dilema de
perceber que pessoas taxadas como subversivas como Clécio, são na verdade grandes defensoras dos direitos
as liberdades: de expressão, de comunicação, de crença religiosa, de identidade e orientação sexual. A difícil

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

tarefa de escolher qual caminho seguir, integrar a última resistência cultural e abandonar o exército ou re-
primir violentamente o grupo de teatro Chão de Estrelas.

A história foi ambientada em 1978, apesar dos mais de 35 anos passados, o período do slogan extre-
mista “Brasil, ame-o ou deixe-o” ainda se faz presente, basta observar a reação dos que assistem ao filme,
como os alunos que participaram da sessão no Cine Jurídico (cineclube do curso de Direito de Salgueiro-PE):
a reação confirmou a hipótese de que muitos não conheciam este período histórico para além dos fatos na-
cionais e poucos se apercebera dos direitos retirados do grupo de Teatro Chão de Estrelas.

Na obra de Hilton Lacerda é possível constatar a hipocrisia existente por trás da ditadura, como por
exemplo, as manifestações homofóbicas de um tenente que veladamente assediava o soldado “Fininha”, a
relação os mesmos soldados que perseguiam “Fininha” havia uma prática de perversão, pois o próprio “Fini-
nha” permitiu que os colegas que o reprimiam fizessem em seu peito uma tatuagem. Tatuagem aqui marca
não só a pele de “Fininha”, mas a sua identidade numa sociedade ditatorial extremamente heteronormativa
e excludente.

A questão da liberdade como escolha, os afetos existentes independentemente da condição humana


em que se encontram as personagens, como o fato da pluralidade do conceito de família (existente no núcleo
Clécio - um ator gay, Deusa- uma mãe solteira; e o filho de ambos), a irreverente representação da democra-
cia, o sexo e a arte como libertação, o direito à resistência do grupo de teatro Chão de Estrelas.

Um passado ainda presente, pois ainda repercute na sociedade brasileira o pensamento conservador,
excludente e totalitário, que segue no mundo real (nas passeatas pedindo intervenção militar) ou virtual (o
discurso do ódio disseminado nas redes sociais) em sentido contrário ao que determina a Constituição Fede-
ral em seu art. 5º, incisos VI, VIII, IX, XLIII.

O filme é atual porque no Brasil de 2015 assistimos a aprovação por uma comissão parlamentar (for-
mada basicamente por políticos que em função da crença religiosa que professam) do Projeto de Lei 6.583
que define a família apenas como núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher, sob
argumentos como “o afeto não é critério constitutivo de família e sim o que a natureza prescreve” (Deputado
Evandro Gussi-PV/SP). Um conceito de família retrógrado ante as decisões do STJ (REsp 1183378/RS) do
STF (ADPF 132/RJ, ADIN 4277) e do CNJ (Res 175/2013) que consagraram a união homoafetiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível trabalhar com Cinema e Direito no ensino jurídico, como também promover a intersecção
entre Direito e Cinema e introduzir inovação docente nas aulas, nas atividades extensivas e nas atividades
de pesquisa. É preciso imaginar e sentir o jurídico para além dos limites e estereótipos, aproveitar a abertura
acadêmica para o mundo das artes (campo Direito e Arte) como possibilidade de construção de novos saberes
necessários a complexa realidade social brasileira.

O filme Tatuagem com seu Chão de Estrelas é contraponto a uma realidade vivida no Brasil de ontem
(1978) e de hoje (2015) e apresenta vários exemplos de como um Estado ditatorial pode violar o direito à
liberdade de expressão, o direito à liberdade artística, o direito à liberdade de consciência e o direito à liber-
dade de pensamento.

REFERÊNCIAS

ABRASD. Anais do V Congresso. 2014

AMADO, Juan Antonio Garcia. A lista de Schindler: sobre os abismos que o Direito dificilmente
alcança. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

586
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

VENTURA, Deisy; CETRA, Ortiz Raísa. O Brasil e o sistema interamericano de direitos humanos: de Maria
da Penha a Belo Monte. In: FILHO, José Calos Moreira da Silva; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Justiça de
transição nas Américas: olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de efetivação. Belo
Horizonte: Forum, 2013.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

ESTUDO IDEOLÓGICO SOBRE O MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO


DO NOVO CPC

Steel Vasconcellos
Especialista em direito civil e empresarial pela UFPE. Especialista em Filosofia e Teoria
do Direito pela PUC-Minas Gerais. Mestrando em Direito pela Universidade Católica de
Pernambuco na linha de pesquisa Processo e Hermenêutica.

SUMÁRIO: 1. Da superação positivista ao neopositivismo; 2. Modelo cooperativo; 3. Paradigma e


ideologia; Referências.

1. DA SUPERAÇÃO POSITIVISTA AO NEOPOSITIVISMO.

Para compreender o neoprocessualismo é necessário compreender as críticas do positivismo, e con-


cluir que da superação positivista vem a tona a fase neoprocessual.

A teoria pura do Direito de Hans Kelsen, sem dúvidas, foi um marco para toda a ciência jurídica.
Indubitavelmente, Kelsen inaugura um debate de uma nova proposta para o Direito; separando de todos os
elementos estranhos da ciência jurídica, libertando-a com a finalidade de ser uma ciência consciente de sua
especificação, como consta na sua nota da primeira edição:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídi-


ca pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os
elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especi-
ficidade porque consciente da legalidade específica de seu objeto. (...) elevar
a Jurisprudência (...) à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do
espírito. (...) aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de
toda ciência: objetividade e exatidão (KELSEN, 2003, p. 08) 1

A teoria da norma jurídica de Hans Kelsen – pode ser inserida na seguinte perspectiva metodológi-
ca: separar, distinguir o ser do dever ser. Enquanto que no mundo dos fatos humanos, naturais; há o ser. O
Direito não se compromete com questões do ser se uma mãe abandona o filho, desse fato, o que significa na
moral, na psicologia, nas relações sociais. A ciência jurídica se compromete com o dever ser (KELSEN, 2003.
p, 131); com a conduta em que o sujeito deve obedecer. Comparando assim a ciência jurídica a uma ciência
matemática – pela necessidade de se separar da moral, por ter um método próprio.

Visto que o direito para Kelsen é denominado como ordem normativa da conduta humana. Um sis-
tema de normas que serve para determinar um comportamento humano. A forma como o método jurídico
se adéqua para fundamentar sua existência é através do escalonamento de norma superior A validade é
compreender a norma fundamental, para o autor, o direito é uma ordem normativa que regula a conduta dos
indivíduos. O direito é a existência de conjunto de normas escalonadas. “Uma ciência jurídica positivista
apenas pode constatar que esta norma é pressuposta como norma fundamental - no sentido que acabamos de
patentear - na fundamentação da validade objetiva das normas jurídicas” (Kelsen, 2003. p, 141). Em outras

1  KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Prefácio)

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

palavras A norma que legitima o fundamento de existência de uma constituição; fundamento de objetividade
de um fundamento jurídico.
Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se
pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas. A esta norma se encontram sujeitos
tanto a autoridade dotada de poder legislativo como os indivíduos que devem obediência às normas por
ela fixadas. (KELSEN, 2003. p, 136)

Enquanto que para o juspositivismo; o Direito é fundamentado na validade. No jusnaturalismo, o direito é fundamen-
tado pela ideia abstrata de clamação à justiça; sem forma predeterminada. Já para o realismo o Direito é fundamentado na eficácia.
(BOBBIO, 2001, p. 48)

As normas constituem uma unidade – unidade normativa faz um sistema – dentro de todo sistema, há antinomias
jurídicas – E se há antinomias jurídicas questiona-se se o sistema possui lacunas. Critérios para solucionar antinomias jurídicas:
Cronológico, hierárquico e espacial. Lei posterior derroga anterior; Lei superior derroga inferior e Lei especial derroga geral.

Bobbio, reduz o positivismo do ser e dever ser como expressão de força e não de justiça.
Aqueles que temem que com a norma fundamental, […], se realiza a redução do direito à força se preocu-
pam não tanto com o Direito, mas com a justiça. A norma fundamental está na base do Direito como ele
é (o Direito positivo), não do Direito como deveria ser (o Direito justo). Ele autoriza aqueles que detêm
o poder a exercer a força, mas não diz que o uso da força seja justa só pelo fato de ser vontade de poder
originário. Ela dá uma legitimação jurídica, não moral do poder (BOBBIO, 1995, p. 67).

Bobbio faz uma crítica deveras pertinente ao positivismo jurídico. Ao questionar se a ciência jurídica é construtiva
ou dedutiva. O autor recorda que a dogmática do direito consiste na elaboração de conceitos jurídicos fundamentais, extraídos da
base do próprio ordenamento jurídico e, enquanto tais, não sujeitos a revisão ou discussão (BOBBIO, 1995, p, 220). Pois a deso-
bediência, o não cumprimento da conduta significa um ato ilícito. Ou seja, até que ponto essa engenharia social do positivismo é
compatível com a democracia, ou até mesmo com a participação efetiva do sujeito de direito na sociedade?

[…] Se pelo contrário, existe um único ordenamento normativo, o problema da obediência não se coloca:
o homem se encontra num estado de total sujeição a tal ordenamento e nada pode fazer senão obedecer
ou, não obedecendo, cometer um ato ilícito e portanto punível.(BOBBIO, 1995, p. 226)

A importância prática é fundamental, essencial para compreender a natureza teórica, por conseguinte, a real finali-
dade da teoria. Logo o positivismo, com um rigor matemático tão preciso na conduta do comportamento humano, no dever-ser: O
fundamento de obediência às leis positivistas são divididas em três: a) fundamento racional do poder: este que nasce de uma valo-
ração racional feita pelos homens que reconhecem necessário tal obediência; b) fundamento tradicional do poder: fundado, então
na força do costume e de tradições históricas; c) fundamento carismático do poder: o poder cabe a um homem dotado de poder,
como é o caso de um regime fascista, apesar da autocracia, pode usar o positivismo como instrumento.(BOBBIO, 1995, p. 229)

Considerando, então a importância prática da teoria, Bobbio, aborda, finalmente três formas de enxergar o positivismo
jurídico mediante a crítica à teoria positivista. Dos três aspectos do juspositivismo, Bobbio conclui: (BOBBIO, 1995, p, 234)

• O juspositivismo como método:

A aplicação do método conduz a resultados teóricos diversos: num juízo de conveniência, pois a metodologia
serve tão somente para chegar a um resultado, no caso que se queira.

• O juspositivismo como teoria:

Na teoria é baseado em juízo de verdade ou falsidade; considerando que a teoria descreve a realidade, contudo tal
descrição da realidade é pertinente a vontade de quem detém a funcionalidade do juspositivismo.

• O juspositivismo como ideologia:

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Eis a observação mais interessante de Bobbio, pois a ideologia não descreve a realidade, mas procura influir nesta e
portanto. Ao compreender o fato; o ser. O juspositivismo trabalha no dever ser, para finalmente influenciar e modificar a realidade
ao interesse da preterida engenharia social.

Considerando que os regimes totalitários da segunda guerra utilizaram o positivismo jurídico, segundo Ferraz Júnior,
a exigência, na época do nazismo, de que as normas fossem interpretadas, em última análise, de acordo com a vontade do Fuhrer
era fiihresprinzip (FERRAZ JÚNIOR. 2008, p. 243)

O termo alemão Gleichschaltung foi o termo usado pelos nazistas para descrever a necessidade de todas
as instituições em geral [e] de todos os indivíduos em particular se ajustarem ao Fuhrer (ao princípio do
Fuhrer), ou seja, a assunção da palavra de Adoulf Hittler como uma palavra dotada de imediato valor
de lei. Esse termo de descrever, literalmente a experiência de se colocar na frequência de uma máquina
de se equiparar a sua dinâmica de funcionamento, enfim, deve se ajustar totalmente.(BOBBIO, 1995,
p. 236)

Pelas considerações de Tércio Ferraz Júnior e Bobbio. O Direito do III reicht, tinha como controle de legalidade e
constitucionalidade o princípio do fuhrer, ou seja a vontade de um indivíduo. Toda racionalidade era formal; para construir, elabo-
rar e fazer funcionar um sistema, no caso; o próprio direito positivo.

A partir da caracterização do direito positivo, no seu auge, kelseniano; puro, formal e preocupado com a validade.
Começa daí, então a crítica ao positivismo, em seguida um novo fenômeno trabalha em cima de sua crítica: o neopositivismo.

Para Cambi (2011, p. 84) o neopositivismo é entendido como uma nova forma de abordagem tanto na aplicação
quanto na interpretação, utilizando bases do positivismo. As características do positivismo supramencionadas, são superadas pelo
neopositivismo. Reafirmando assim algumas características referente ao neopositivismo dos quais são:

• Superação do legalismo

O positivismo não pode ser superado por meio da renúncia ao direito positivo ou à positividade do direito. Porém a
positividade do direito não se confunde com o legalismo.(CAMBI, 2011, p. 85) A norma resulta do conteúdo de interpretação dos
textos e das inúmeras relações que mantém entre si. A interpretação é uma concretização normativa. Tal qual o neopositivismo a
compreende.

• Constituição, normatividade, valores e sistema jurídico idealismo :

A constituição no neopositivismo, não é apartado do sistema; seus valores influenciam todo o ordenamento jurídico.
O neoconstitucionalismo é um fenômeno no qual recai a onipresença constitucional frente a todos os dispositivos jurídicos do
ordenamento. Para tanto; regras e princípios compoem tal estrutura legislativa; alcançando um caráter axiológico na norma; pro-
piciando ao legislador entre em contato e sintonia com os valores da norma; para não repetir a máxima de que o positivismo deve
se afastar da moral. (CAMBI, 2011, p. 88)

• Distinção entre princípios e regras

Uma característica marcante para o neoconstitucionalismo: pois através dessa distinção, de métodos diferentes, é
possível alcançar valores constitucionais. As regras se esgotam em si mesmas. A forma da norma interagir com o ordenamento
jurídico é através da subsunção. Diferente dos princípios que é pela via da ponderação: onde há uma metodologia mais flexível.
(CAMBI, 2011, p. 95)

• Método concretista das normas jurídicas2

Trata-se de um fenômeno relacional, no qual o ato hermenêutico implica a compreensão jurídica e fática do dever e
do ser. Enfim, ser e dever se representam respectivamente. Os juízos fáticos e de valor, utilizados pelo sujeito cognoscente para a
compreensão da realidade. (CAMBI, 2011, p. 109)

• Superação do formalismo jurídico (e processual)

2  Ibidem. p, 109

590
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A reinterpretação das normas à luz dos valores e dos princípios que constituem a base axiológica do ordenamento
jurídico. O direito se distanciou da moral, assim como se distanciou da realidade, pelo excesso de formalismo. O formalismo fez
do Direito como um sistema de relações formais e não uma prática social. (CAMBI, 2011, p. 115)

Por fim, a reação ao positivismo jurídico e suas mazelas; veio com o neoconstitucionalismo (a onipresença cons-
titucional), neoprocessualismo (aproximar a jurisdição a realidade social) e o neopositivismo (um sistema positivo que admite
valores).

O neoprocessualismo é uma superação ao apego excessivo da forma. O processo passa a se transformar o que ele
sempre deveria ter sido: um instrumento e não uma formalidade vazia, oca. A efetivação do neoprocessualismo é através da cons-
titucionalização do direito processual, por isso que os fenômenos do: neoconstitucionalismo, neopositivismo e neoprocessualismo
andam de mãos atadas por conseguinte possuírem o mesmo fim: “todo instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se
legitima, em função dos fins a que se destina” (DINAMARCO. 2002, p. 206)’

1. MODELO COOPERATIVO
A confirmação do novo código de processo civil, não só recai nos fenômenos da constitucionalização do direito, como
a superação do positivismo e o neoprocessualismo. A insistência da efetivação das garantias processuais faz com que seja reinter-
pretado inclusive a índole da democracia. Passando de democracia formal para substancial:

Assim, a democracia formal ou política disciplina as formas de decisão que asseguram a expressão da
vontade da maioria. Já a democracia substancial se preocupa com o conteúdo ou o significado e, portan-
to, com a validade e a legitimidade destas decisões, isto é, se elas correspondem aos direitos fundamen-
tais ou aos princípios axiológicos neles estabelecidos. A democracia substancial não questiona quem
decide ou como se decide, mas o que se decide. Impõe a quem decide a proibição de decidir contra os
direitos fundamentais ou a não efetivação de tais direitos. Logo, quando se refere a direitos fundamen-
tais, se subtrai da maioria ou do mercado a liberdade de decidir (CAMBI, 2011, p. 30)

Cabe ressaltar que há dois modelos estruturantes do processo: modelo inquisitorial e modelo adversarial. A distinção
dos dois modelos se dá pela identificação do protagonismo processual. No modelo adversarial, o autor e réu – ambos se compor-
tam numa disputa processual, competindo vantagens em todas as fases do processo: introdutória, instrutória, decisória e recursal:

A “dispositividade” e a “inquisitividade” podem manifestar-se em relação a vários temas: a) instaura-


ção do processo; b) produção de provas; c) delimitação do objeto litigioso (questão discutida no proces-
so); d) análise de questões de fato e de direito; e) recursos etc3

Já no modelo inquisitorial o juiz passa a ser o protagonista por centralizar as decisões condicionando a participação
das partes processuais. Nota-se que no modelo adversarial, o juiz é praticamente neutro; imparcial. Já no modelo inquisitorial, o
juiz permanece pró-ativo.

A divisão do “trabalho” processual é tema clássico e dos mais importantes. Como afirma Barbosa Morei-
ra, “falar dos poderes do juiz importa enfrentar problema central de política jurídica, a cujo respeito todo
o sistema processual é chamado a definir-se: o problema da ‘divisão de trabalho’ entre o órgão judicial
e as partes. (…) Aceita a premissa de que ao titular do direito, em princípio, toca livremente resolver se
ele deve ou não ser defendido em juízo, daí não se extrairá, sem manifesto salto lógico, que lhe assista
idêntica liberdade de influir na maneira por que, uma vez submetida a lide ao órgão estatal, deva este
atuar com o fim de estabelecer a norma jurídica concreta aplicável à espécie. Se cabe ver no litígio uma
como enfermidade social, a cuja cura se ordena o processo, antes parece lícito raciocinar analogicamente
a partir do fato de que o enfermo, no sentido físico da palavra, livre embora de resolver se vai ou não in-
ternar-se em hospital, tem de sujeitar-se, desde que opte pela internação, às disposições do regulamento:
não pode impor a seu bel-prazer horários de refeições e de visitas, nem será razoável que se lhe permita

3  DIDIER JÚNIOR, Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo. In: Revista de Processo - Re-
Pro. Ano 36, n. 198, agosto/2011. p. 208 – Artigo com referências ao modelo cooperativo processual do referido autor.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

controlar a atividade do médico no uso dos meios de investigação indispensáveis ao diagnóstico, ou na


prescrição dos remédios adequados4

Didier adverte que não há um modelo inteiramente aplicável no processo, na verdade é prudente afirmar em predo-
minância. Dito isto, nada impede que um rito seja adversarial outro rito seja inquisitório. Ainda sobre os modelos, há um debate
associando os modelos estruturais à ideologia. O modelo adversarial/dispositivo está para regimes não-autoritários; liberais. Assim
como o modelo inquisitorial está para regimes intervencionistas. Tal consideração condiz com a realidade jurídica, principalmente
se for associar à índole jurídica do Estado de Direito de cada país.. Refere-se, portanto ao common law e civil law. Este está para
um juiz interventor, já aquele está mais associado a um juiz neutro – estimulando a competição processual.

Diante da dicotomia dos dois modelos processuais, eis que surge o terceiro oriundo de uma sistematização de princí-
pios como: boa-fé processual, contraditório e devido processo legal. É lançado o modelo cooperativo. O novo código de processo
civil, com suas inovações legislativas, confirma uma nova era dogmática para o Direito.

Já o processo como cooperativo parte da ideia de que:


O estado tem como dever primordial propiciar condições para organização de uma sociedade livre, justa
e solidária, fundado que está na dignidade da pessoa humana. Indivíduo, sociedade civil e Estado acabam
por ocupar assim posições coordenadas. O direito a ser concretizado é um direito que conta com a juris
prudentia, nada obstante concebido abstratamente como scientia juris5.

O modelo cooperativo se equilibra num ponto comum entre o modo de processo isonômico e no modo de processo
assimétrico. O juiz ao conduzir o processo é isonômico devido a relação de paridade entre o indivíduo e o poder político. O magis-
trado deve ser assimétrico nas decisões proporcionando o diálogo nas questões processuais pertinente à matéria da causa6.

O modelo cooperativo exige um permanente diálogo. Parte-se da premissa de que quanto maior for a comunicação,
maior é a resignação. Ou seja, maior contato com a conformidade do mérito da causa de pedir.

Difícil é dissociar o modo cooperativo do formalismo-valorativo de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:

O fim último no processo já não é mais apenas a realização do direito material, mas a concretização
da justiça material, segundo as peculiaridades do caso. A lógica é argumentativa, problemática, da ra-
cionalidade prática. O juiz, mais do que ativo, deve ser cooperativo, como exigido de um modelo de
democracia participativa e a nova lógica de cidadania processual. O juiz também é um agente político
do Estado, portador do poder deste e expressão da democracia indireta praticada nos Estados ocidentais
contemporâneos. O excesso de formalismo conduziria por outro lado à exaltação de prescrições formais
como fim em si mesmo, de modo incompatível com as finalidades sociais do processo moderno. (OLI-
VEIRA, 2010, p. 23)

A abordagem cooperativa do magistrado deve ser entendida em proporcionar as partes participarem ativamente do
processo, atribuindo às partes a mesma medida de poderes, faculdades e ônus (OLIVEIRA, 2010, p. 30) em outras palavras: a
distribuição de poderes também faz parte da cooperação.

Ainda sobre a prestação jurisdicional, o modo cooperativo pode ser contemplado com um caráter dialético em função
da cooperação recíproca das partes. De tal forma que a cooperação é classificada em7:

Dever de esclarecimento: em plena atividade jurisdicional, principalmente na fase instrutória é comum a existência
sobre os fatos: “se o magistrado estiver em dúvida sobre o preenchimento de um requisito processual de validade, deverá provi-

4  DIDIER JR, 2007, p. 208. apud MOREIRA, 1989, p. 45-46. - Menção e crítica às considerações de Barbosa Moreira.
5  MITIDIERO, Daniel. Bases para a Construção de um Processo Civil Cooperativo: O Direito Processual Civil no Marco Teórico do
Formalismo Valorativo. 2007. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=000642773&loc=2008&l=fff90792c6 702178
Acesso em 07/fev/2009. p. 73 – Encontrado na dissertação do referido autor.
6  Ibidem, p. 53 – Sobre a assimetria das decisões.
7  GRASSI DE GOUVEIA, Lucio. Cognição Processual Civil: Atividade Dialética e Cooperação Intersubjetiva na Busca da Verdade
Real. In: Fredie Didier Jr. (Org.). Leituras Complementares de Processo Civil. 2007, p, 188 – trata-se das principais características do modelo
processual cooperativo.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

denciar esclarecimento da parte envolvida, e não determinar imediatamente a consequência prevista em lei para esse ilícito proces-
sual8”. O juiz como personagem ativo e participativo deve fazer o possível para preencher a dúvida que eventualmente pode surgir.
A ausência de dúvida sobre os fatos possibilita o encaminhamento do processo mais célere, na medida em que as partes se nivelam
na propriedade de instrução do processo. Fatos não esclarecidos não se confundem com o ônus da prova.

Dever de consulta: também vinculado ao contraditório substancial, para evitar qualquer decisão surpresa, a aplicação
efetiva do contraditório: “Não pode o órgão jurisdicional decidir com base em questão de fato ou de direito, ainda que possa ser
conhecida exofficio9”. Para cada decisão, as partes devem ser informadas e devem se manifestar a respeito da decisão. A consulta
permite que o processo flua de forma mais dinâmica por conseguinte as partes devidamente informadas, podem prosseguir sem
qualquer contrariedade de informações.

Dever de prevenção: Uma vez informadas, esclarecidas ou instruídas. A prevenção é no sentido de identificar algum
equívoco de alguma das partes, podendo assim ser corrigido na medida do possível: “tem um âmbito mais amplo: vale generica-
mente para todas as situações em que o êxito da ação a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do
processo10”. Cabe ao magistrado indicar a providência adequada para sanar qualquer vício. Ao evitar a permanência de lacuna, o
processo possui maior possibilidade em alcançar o mérito.

Dever de auxílio: neste presente dever, o juiz deve utilizar a razoabilidade e conveniência ao remover as dificuldades
ao exercício de direitos ou ao ônus da prova e também aos deveres processuais. Tal dever de auxílio é vinculado à cumprimento do
ônus da prova. Caso, uma das partes não conseguir obter uma das provas, é lícito ao magistrado oferecer um ofício para qualquer
autarquia com a função de obter a prova.

A cooperação faz parte da força principiológica, porque sua existência é fundamentada em três princípios: boa-fé,
contraditório e ao dever de informar. Tal característica vinculada aos princípios consagra a cooperação como um fruto do neopro-
cessualismo, fenômeno atual – não mais uma promessa ou suposição doutrinária.

2. PARADIGMA E IDEOLOGIA
Sem mais delongas, paradigma significa ponto de partida, ponto de referência - uma matriz filosófica da qual é deter-
minante para todos os conceitos que do paradigma se deriva. Para Thomas Kuhn o paradigma é: “aquilo que os membros de uma
comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em pessoas que partilham um paradigma” (KUHN,
1978, p. 219). Quando uma diversidade de fenômenos pesquisado estiverem sistematicamente correlacionados - o paradigma serve
para a atribuir a devida verificação científica acerca do objeto de estudo.

O real interesse do presente estudo acerca do conceito de paradigma é de como a ideologia pode influenciar o ponto
de partida de um estudo científico ou uma premissa básica de uma área de conhecimento. Dito isto, o que dizer do juspositivismo?
Este ordenamento jurídico do qual consagrou o famoso paradigma racionalista caracterizado por uma tentativa de neutralizar va-
lores via expressão normativa. A finalidade era formatar um direito desprendido da história (inclusive desprendimento cultural) e
avalorativo - sem conceber qualquer compromisso social com a realidade jurídica e a humanidade. (OVÍDIO, 2004. p, 302)

Como visto no segundo tópico, uma das mazelas do positivismo jurídico foi o descompromisso com a realidade devi-
do à demasiadas formalidades legais:11

As revoluções científicas ocorrem esporadicamente quando um determinado paradigma deixa de ofe-

8  Ibidem, p. 213 – Sobre o esclarecimento no modelo cooperativo.


9  Ibidem, p. 215 – Trata-se sobre o a característica sobre consulta do modelo processual cooperativo
10  Ibidem, p. 216 – Abordagem acerca da característica da prevenção do modelo processual cooperativo
11  OVÍDIO, A Baptista da Silva. Processo e ideologia. Rio de Janeiro: Forense. 2004, p. 31: “Faz parte deste pressuposto ideológico a
exigência, religiosamente observada pelos juristas que se prezem, de que não manchem com exemplos concretos a exposição dos resultados de
sua pesquisa; ou a defesa de seus pontos de vista. O máximo que se lhes permite é que, quando se mostre indispensável a utilização de casos
concretos que possam auxiliar na compreensão do que eles expõem, as hipóteses concretas sejam descritas, por exemplo, como uma compra e
venda entre Tício e Caio, ou um contrato de locação ajustado entre Semprônio e Caio. (...) há cento e cinquenta anos, ao jurista que esteja a fazer
‘ciência’, é-lhe vedado sequer pronunciar a palavra vida. A distância entre a realidade e a construção conceitual deve ser intransigentemente
observada.”

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

recer solução para um número apreciável de problemas, provocados pelas novas condições históricas
e pelo próprio desenvolvimento da ciência. A quebra de um determinado paradigma e sua substituição
por outro é que ele denomina “revolução científica”. Vê-se, portanto que para Thomas Kuhn - esta é a
consequência de maior relevo da sua teoria -, a ciência, qualquer que ela seja, estará necessariamente
comprometida com um determinado paradigma. As verdades científicas são, segundo ele, produtos his-
tóricos obtidos pelos trabalho de uma ou de várias gerações, a partir, porém de certas premissas que lhe
servem de suporte o que, enquanto paradigmas, não são questionados pelos cientistas.

O direito, portanto, seria meramente um conceito dando as costas para a realidade social. “Um conceito que não con-
segue ir ao fórum porque a metodologia jurídica separou-se do ‘fato’ (OVÍDIO, 2004. p, 84)

Ainda na linha de raciocínio de Ovídio Baptista: se a pesquisa científica não questiona o paradigma – as inovações
legislativas a exemplo do novo código de processo civil – especificamente: o modelo de cooperação processual ainda estaria con-
substanciado pelo paradigma racionalista do positivismo? Ou seria uma transgressão deste12, a partir de uma quebra do referido
modelo paradigmático?

Para Lenio Streck, atualmente, o país presencia uma crise hermenêutica. O paradigma apontado por Streck especifica-
mente é o paradigma liberal-individualista responsável pela desfuncionalidade dos direitos fundamentais da Constituição Federal
mediante paradoxos do próprio modelo de interpretação adotado pelos tribunais: “O Direito representado pelo Estado Democrá-
tico de Direito - desse (velho/defasado) Direito, produto de um modelo liberal individualista-normativista de produção de direito
(STRECK, 2004. p, 33)”

Para Streck o ponto de partida não é especificamente o excesso racional paradigmático da tentativa de geometrização
social aplicada pela “matemática jurídica”.(STRECK, 2004. p, 33). A causa para a crise hermenêutica para Streck é delimitado por:

a) o modo com que a profissão jurídica e aprestação de seus serviços são organização;
b) a localização de papéis entre as várias posições no campo jurídico (praticantes, aplicadores da lei,
guardões da doutrina, acadêmicos, etc);
c) o modo com que o campo produz o habitus, incluindo variações na educação e a importância das
vantagens sociais;
d) as modalidades para a articulação da doutrina preponderante e os modos com que estas incidem em
relações entre jogadores e posições;
e) a relação entre regulamentação e proteção;
g) o modo dominante da legitimação

A forma pela qual o direito aborda um conflito é essencial para apontar a causa da crise hermenêutica. Em outras
palavras, o Direito material está delimitadamente preparado, munido de soluções para os conflitos interindividuais. Já a tutela pro-
cessual não está condicionada a ser instrumento do direito material pois permanece o paradigma de conflitos interindividuais onde
na verdade deveriam ser tidos como transindividuais. E o que facilita para continuar mantendo essa paradigma é:
O excessivo individualismo e o formalismo na visão de mundo: esse individualismo se traduz pela con-
vicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos
da comunidade; como o que importa é o mercado, o espaço onde as relações sociais e econômica são
travadas, o individualismo tende a transbordar em atonismo: a magistratura é treinada para lidar com as
diferentes formas de ação mas não consegue ter um entendimento preciso das estruturas socieconômicas
onde elas são travadas. Já o formalismo decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos buro-
cratizados e impessoais, justificados em normas da certeza jurídica e da “segurança do processo”. Não
preparada técnica e doutrinariamente para compreender os aspectos substantivos dos pleitos e ela subme-
tidos, ele enfrenta dificuldades para interpretar os novos conceitos dos textos legais típicos da sociedade
industrial, principalmente os que estabelecem direitos coletivos protegem os direitos difusos e dispen-
sam tratamento preferencial aos segmentos economicamente desfavorecidos (STRECK, 2004, p.36).

12  Ibidem, p. 33: “Tanto no desenvolvimento político, como no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso que pode levar
à crise, é um pré-requisito para a revolução”

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A forma como a ideologia se perpetua na dogmática jurídica é através da neutralização, ou naturalização. Por isso,
como supracitado por Ovídio Baptista; o não questionamento do confronto ao paradigma racionalista, por si, já confirma a tese
de que pode-se modificar várias legislações, mas se o ponto de partida continuar o mesmo não sobressairá qualquer modificação
substancial.

A neutralização é um processo pelo qual os valores parecem perder suas características intersubjetivas na
medida em que dão a impressão de valer independentemente de situações e contextos. Essa neutraliza-
ção se obtém através da ideologia. A ideologia é um termo equívoco, significando ora falsa consciência,
ora tomada de posição – filosófica, política, pessoal, etc. - ora instrumento de análise crítica – teoria da
ideologia – ora instrumento de justificação – programa de ação. Em nossa concepção, funcionalizamos o
conceito. Admiti-lo como um conceito axiológico, isso é, a linguagem ideológica é também valorativa.
Só que enquanto os valores em geral constituem critério de avaliação de ações, a valoração ideológica
tem, por objeto imediato os próprios valores, como uma qualidade pragmática diferente; enquanto os va-
lores são expressões abertas, reflexivas e instáveis, a valoração ideológica é rígida e limitada (FERRAZ
JÚNIOR, Tércio Sampaio, 2015, p. 182)

A atuação da ideológica no discurso dogmático é encontrada nos próprios valores que dos dogmas se perfazem. A
ideologia presta a função organizacional dos valores, permitindo uma sistematização notável, a formação de hierarquia, o que em
última análise significa a possibilidade de acumular interesses e de sua efetivação (ZIZEK, 1996, p. 183). A ideologia, inclusive
é o calibrador legítimo da interpretação. Se houver dúvida em uma determinada proposição, certamente, prevalecerá aquela em
que a ideologia indica.

Podemos, enfim fazer um esqueleto didático para esclarecer o funcionamento do direito – paradigma e ideologia.

Direito

Paradigma – ponto de partida científica

Ideologia

Ainda o referido sobre ideologia: a ideia não necessita ser falsa – quanto a seu conteúdo positivo, ela pode ser “ver-
dadeira”, muito preciosa, pois o que realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se
relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu próprio processo de emancipação (ZIZEK, 1996, p. 15).

A identificação da ideologia não está no desvendamento da verdade do discurso, texto ou comportamento ideológico,
muito menos no seu ocultamento. A identificação se dá ao verificar contradições e suas consequências sistemáticas que in-
fluenciam na realidade (ZIZEK, 1996. p, 209).

Pode ser praticada uma técnica referente a identificação da ideologia na realidade social. Não existe ideologia, no
fundo. O que há é crença ideológica. E desta crença ideológica é possível identificar o venire contra factum proprium. Ou seja, a
contradição fática de quem pratica um ato incompatível com aquilo que é pregado.

Foi dito anteriormente sobre os modelos estruturais do processo: inquisitorial e adversarial. Estas estruturas coinci-
dem com o comportamento do juiz – inquisitorial está para o juiz interventor e é associado ao civil law. Já o modelo adversarial é
associado com o juiz imparcial, antagonista ao processo, também associado com o common law. Os dois modelos estruturais do
processo podem ser identificados por ideologia: socialismo e capitalismo respectivamente.

Então qual seria a ideologia operando do modelo cooperativo? Para responder tal indagação, cria-se uma hipótese: a
pós-ideologica.

A resposta consiste na fundamentação teórica de Slavoj Zizek. Há uma dificuldade metodológica em atribuir um con-
ceito sobre o pós-ideológico. Por conseguinte o autor não aborda de maneira objetiva com a finalidade em delimitar tal conceito.
Na verdade, em várias obras, chegou a mencionar tal conceito mas não de forma concentrada. Parte-se portanto da interpretação

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

sistemática do que o autor reproduziu em outras diversas obras.


It is clear, therefore, that confronted with such cynical reason, the traditional critique of ideology no
longer works. We can no longer subject the ideological text to ‘symptomatic reading’, confronting it with
its blank spots, with what it must repress to organize itself, to preserve its consistency — cynical reason
takes this distance into account in advance. Is then the only issue left to us to affirm that, with the reign
of cynical reason, we find ourselves in the so-called post-ideological world? Even Adorno came to this
conclusion, starting from the premiss that ideology is, strictly speaking, only a system which makes a
claim to the truth — that is, which is not simply a lie but a lie experienced as truth, a lie which pretends
to be taken seriously. Totalitarian ideology no longer has this pretension. It is no longer meant, even by
its authors, to be taken seriously — its status is just that of a means of manipulation, purely external and
instrumental; its rule is secured not by its truthvalue but by simple extra-ideological violence and promi-
se of gain. It is here, at this point, that the distinction between symptom and fantasy must be introduced in
order to show how the idea that we live in a post-ideological society proceeds a little too quickly: cynical
reason, with all its ironic detachment, leaves untouched the fundamental level of ideological fantasy, the
level on which ideology structures the social reality itself.13

Zizek remete que a sociedade vigente hoje é a do cinismo, pois as pessoas já não acreditam mais nas verdades ideo-
lógicas. Além dos fundamentos que sustentam a ideologia, descreditam ainda menos nas promessas ideológicas. A queda do muro
de Berlim foi determinante para tal descrença? Talvez, se houver uma abordagem histórico-panorâmica tão somente do século XX.
Se o saber é determinante para a configurar a época pós-ideológica, basta compreender como foi utilizado o conhecimento para
meios políticos.

O melhor exemplo da era pós-ideológica é a reação ao cinismo daqueles que exercem o poder: é a guerra do Iraque,
ou invasão do Iraque14. O discurso para a guerra era de que havia armas de destruição em massa. O contexto era influenciado pelo
clima beligerante devido ao atentado de 11 de Setembro – dia da ruína das torres gêmeas15. Todavia, o verdadeiro pretexto era tão
somente o lucro baseado em toda indústria petrolífera que o país invadido oferecia. Nota-se que diante de vários discursos das
autoridades americanas, todos eles demonstravam preocupação com a liberdade e democracia no Iraque:16”[...] Acreditamos que o
povo iraquiano merece e é capaz de contar com a liberdade humana. E quando o ditador tiver caído, esse povo poderá estabelecer
um exemplo, para todo o Oriente Médio, de uma nação vigorosa, pacífica e soberana[...]”

A identificação da razão cínica, o desprendimento irônico e a ponderação: (não é verdade que hoje, nessa nossa
resignada era pós-ideológica que não admite Absolutos, os únicos candidatos a Absoluto são os atos radicalmente maus17?”) na
identificação do pretexto supostamente ideológico marcam o conceito de pós-ideologismo:
Na época pós-ideológica não há espaço para fórmulas de como devemos viver para alcançar a paz mun-
dial ou a melhor forma de democracia. o ceticismo se confunde E o mesmo não se aplica ao desprezo
pós-moderno pelas grandes causas ideológicas – pela noção de que, em nossa era pós-ideológica, em vez
de tentar mudar o mundo, deveríamos reinventar a nós mesmos, todo o nosso universo, engajados em
novas formas (sexuais, espirituais, estéticas…) (ZIZEK, 2011, p. 104)
A psicanálise, segundo Zizek (2011, p. 159) complementa a desmascaramento do cinismo daquele que detém poder, daquele que utiliza o direito como pretexto para praticar repressão e manter o status

13  ZIZEK, Slavoj. The sublime object of Ideology. London: Verso. 1989, p. 28-30: “Fica claro, portanto, que, confrontada com essa razão
cínica, a crítica tradicional da ideologia não funciona mais. Já não podemos submeter o texto ideológico a uma “leitura sintomal”, confrontan-
do-o com suas lacunas, com o que ele tem de reprimir para se organizar, para preservar sua coerência — a razão cínica leva antecipadamente
em conta essa distância. Nesse caso, será que a única saída que nos resta é afirmar que, com o império da razão cínica, achamo-nos no chamado
mundo pós-ideológico? Até Adorno chegou a essa conclusão, partindo da premissa de que a ideologia, estritamente falando, é apenas um siste-
ma que reivindica a verdade — ou seja, que não é simplesmente uma mentira, mas uma mentira vivenciada como uma verdade, uma mentira que
pretende ser levada a sério. A ideologia totalitária não tem essa pretensão. Não pretende, nem mesmo por seus autores, ser levada a sério — seu
status é apenas o de um meio de manipulação, puramente externo e instrumental; sua dominação é assegurada, não por seu valor de verdade,
mas pela simples violência extra-ideológica e pela promessa do lucro. É aqui, neste ponto, que a distinção entre sintoma e fantasia deve ser
introduzida a fim de mostrar como a idéia de que vivemos em uma sociedade pós - ideológica prossegue um pouco rápido demais : a
razão cínica , com todas os seus distanciamento da ironia, folhas intocadas o nível fundamental da fantasia ideológica , o nível em que
as estruturas ideologia da própria realidade social.” (tradução livre)
14  Guerra do Iraque. Em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Iraque>. Acessado em 16/08/2015
15  Ataques de 11 de Setembro. Em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataques_de_11_de_setembro_de_2001>. Acessado em 16/08/2015
16  Discurso Transcrito por George W Bush datado em18/03/2003. Em: <http://noticias.uol.com.br/uol/2003/03/18/ult261u1461.jhtm>
“[...]Quando fazemos cumprir as exigências justas do mundo, também honramos os mais profundos compromissos do nosso país. Ao contrário
de Saddam Hussein, acreditamos que o povo iraquiano merece e é capaz de contar com a liberdade humana. E quando o ditador tiver caído, esse
povo poderá estabelecer um exemplo, para todo o Oriente Médio, de uma nação vigorosa, pacífica e soberana.[...]”
17  ZIZEK, SLAVOJ. Bem vindo ao deserto do real. Londres: Verso. 2011, p. 159. Referência à crítica sobre a ausência de relatividade
de qualquer ideologia. Só há credibilidade na ideologia, aquela que não se contradisser e principalmente for absoluta – não contiver qualquer
natureza de exceção.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O DISCURSO DO ÓDIO FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES MINORITÁRIAS COMO


HIPOTÉSE DE COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Tieta Tenório de Andrade Bitu


Bacharel em Direito, UNICAP; Pós-graduada em Direito Constitucional, Faculdade
Damásio de Jesus; Advogada.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Caracterização da liberdade de expressão e da dignidade da pessoa hu-


mana no contexto democrático; 2. O princípio da maioria frente à necessidade de reconhecimento
dos direitos das minorias; 3. Discurso do ódio: a aparência controvertida da liberdade de expressão;
4. Hipótese de colisão entre os direitos fundamentais envolvidos no surgimento do discursos do ódio
e o princípio da proporcionalidade; Considerações finais; Referências.

INTRODUÇÃO

Trabalhando o papel da liberdade de expressão quando forte elemento na construção da efetiva de-
mocracia, busca-se desenvolver um conceito de minoria demonstrando sua atuação na luta pela igualdade e
conquista da liberdade. Questiona-se acerca da efetivação do princípio da maioria, regra maior da democra-
cia, frente à marginalização da minoria e da necessidade de se por em prática novas perspectivas de direitos
a fim de atender as latentes exigências democráticas.

Ao observar o vertiginoso aumento das manifestações envolvendo grupos minoritários, por outro lado,
fica clara a resistência de parcela da sociedade, que persiste em discriminar esses grupos sociais utilizando-se
do discurso de conteúdo ofensivo, de tom racista e preconceituoso. Assim, verifica-se o desenvolvimento do
discurso do ódio e suas consequentes implicações no mundo jurídico.

Demonstra-se, por fim, a necessidade, na atualidade, cada vez mais, latente de atuação do Estado no
sentido de inibir os discursos que extrapolam o exercício da liberdade expressão. E a existência de conflitos
entre direitos fundamentais; apresentando-se como possível solução a colisão dos direitos fundamentais en-
volvidos nesse contexto o princípio da proporcionalidade.

1. CARACTERIZAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA


NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO.

Já é sabido que a democracia só se concretiza quando são os indivíduos livres para transmitir e
divulgar seus pensamentos, ideias, sentimentos e opiniões, exercendo sua participação na construção do
direito de forma ativa, através do discurso, e focando sempre a manutenção da dignidade humana.

Defende-se, então, que essas ideias, pensamentos, opiniões, pontos de vista e convicções devem se
enfrentar no mesmo plano. Ou seja, tudo o que se compreende de forma contrária também deve ser exposto,
mesmo que seja repudiado, ou que pareça chocante para um grupo social.1

1  KARAM, 2009, p. 5.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A liberdade de expressão, no sistema democrático, é aquela que alimenta a necessidade de existir


com um robusto fluxo de ideias. A garantia da liberdade é condição imprescindível ao desenvolvimento da
natureza humana, tal como à integridade e à dignidade do indivíduo.

A liberdade de expressão resulta numa interação em sociedade pautada pela convicção. Essa liberda-
de transforma-se em veículo relevante para a propagação das ideias necessárias à construção de novos refe-
renciais. Possibilitando a formação da identidade de grupo, intercâmbio de opiniões e experiências, e, ainda,
a exposição de suas reivindicações.

Assim, reafirma-se que a manutenção da democracia decorre do exercício da liberdade de expressão


e do respeito às pluralidades, diferenças e divergências.

Todos tem a necessidade de expressar sua forma de compreender o mundo e seus elementos, de con-
vencer os demais sobre a importância das suas concepções e através delas buscar sempre agir diretamente
na sociedade. Ela então é essencial ao desenvolvimento do ser humano. “E como manifestação do raciocínio
humano, expressão da razão, deve esse direito de se manifestar permanecer livre de qualquer castigo ou
ameaça”.2 Assim, a princípio, interpreta-se como absurda qualquer intervenção Estatal no sentindo de supri-
mir discursos com base em uma opinião.

Importante lembrar que de forma bastante louvável a Constituição de 1988 protege a liberdade em
suas mais variadas formas e garante a liberdade de expressão proibindo expressamente a censura e a licença,
conforme, exposto nos arts. 5º, IX e 220, §2º, este último veda toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística.

Ainda, no seu preâmbulo, assegura o valor de uma sociedade plural e sem preconceitos, acolhendo,
assim, dentro de todo o contexto de proteção do direito à igualdade, uma sociedade complexa formada por
indivíduos portadores dos mais diversos valores e concepções.

Porém, ao tomar por base uma sociedade complexa e plural é de suma importância está alerta para a
possibilidade do cometimento de excessos e para violação de outros direitos igualmente assegurados.

Assim, tendo como maior objetivo da liberdade de expressão o desenvolvimento livre de discursos que
expressam valores dos cidadãos e que, na maioria das vezes, os homens possuem opiniões divergentes, tor-
na-se válido fazer referência ao pluralismo. Este trás consigo a ideia do reconhecimento dos indivíduos como
seres independentes e capazes de demonstrar suas opiniões mesmo que contrárias dos demais.

Sabendo-se, então, que uma sociedade democrática é aquela em que há consideração e respeito mú-
tuos, e não em que indivíduos dividem-se em superiores e inferiores. Afirma-se que ideias preconceituosas
não contribuem para o debate democrático. Nem a liberdade de expressão assegura o direito à incitação ao
preconceito ou à inferiorização.

No contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da digni-
dade humana não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão.

Contudo, frisa-se, que a necessidade de limitação não pode ser entendida, apenas através dos olhos
do totalitarismo e da censura sem razão. Não se busca aqui defender o contrário da livre circulação das
ideias, mas alertar para o perigo do discurso totalmente livre.

Como já foi possível se percebe um dos objetivos do exercício da liberdade de expressão é a formação
de um debate de ideias, porém esse exercício pode ter efeitos indesejados. E no conjunto desses efeitos ma-
léficos alguns indivíduos são fatalmente prejudicados.

Portanto, é por esses motivos que os abusos do exercício da liberdade de expressão devem ser evita-
dos. Os seus efeitos, pois, não podem extrapolar o razoável. Na verdade, o que se deve ter com clareza é que
a proteção dos direitos humanos não significa a conquista da liberdade sem limites, mas sim, que o respeito

2  MEYER-PFLUG, 2009, pg. 68.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

pelo outro deve ser norma que rege, de forma inquestionável, a aplicação política dos direitos. Deve-se se
interiorizar nos sistemas democráticos que: “(...) os direitos do homem representam as regras do jogo míni-
mas que devem ser respeitadas pelos governos e pelos governados para que uma vida digna desse nome seja
possível”.3

Assim, deverá ser exercido o direito à liberdade de expressão até o limite que não seja o indivíduo, ou
grupo de indivíduos atingidos quanto a sua reputação, sua honra sem que existam atitudes desrespeitosas e
capazes de ferir a dignidade.

Oportuno, então, é dizer que no Direito contemporâneo o princípio da dignidade da pessoa humana
esta inserido num contexto que se refere a uma condição que é essencialmente a própria condição humana.
É o conceito que concretiza a ideia do homem como ser fim e não meio; é condição que não pode ser men-
surada e é valor insubstituível.

Posto como fundamento da própria organização política do Estado Democrático de Direito na Cons-
tituição de 88, o princípio da dignidade da pessoa humana, hoje, no seu significado engloba o respeito à inte-
gridade e à inviolabilidade do homem não apenas tomados nos atributos da sua dimensão física, mas também,
na sua dimensão existencial que contem o caráter da humanidade numa projeção sociopolítica.

Como fundamento do Estado Democrático quer significar, pois, que este existe para o homem,
para assegurar condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins. A
dignidade é um elemento essencial ao sistema jurídico normativo uma vez que sua institucionalização busca
proteger o homem a fim de que ele possa garantir eficácia e respeito a sua condição de humano. Portanto,
deve-se vincular e obrigar todas as ações privadas e, principalmente, de políticas públicas.

Nesse contexto, se afirma que é a materialização do sentimento de justiça que introduz no povo a
busca pela realização social e pessoal. E para fazer frente às novas demandas, especialmente aquelas ligadas
à etnia, ao gênero e às discriminações, devem ser formuladas políticas públicas de inclusão. Hoje, para o
Estado contemporâneo, a liberdade de expressão deve caminhar juntamente com a defesa da dignidade dos
segmentos minoritários.

Dessa forma deve-se refletir acerca do controle no exercício dessa liberdade concebendo-a, inclusive,
como um direito fundamental de defesa, pois é meio protetor de manifestações da maioria e da minoria.

O exercício da liberdade sem limites dá a uma maioria, muitas vezes homogênea, espaço para expor
seu discurso repugnante, exteriorizando pré-conceitos e gerando, quase sempre, um efeito silenciador por
parte daqueles grupos minoritários que, muitas vezes, perdem seu direito de se expressar, não concretizam
a dignidade humana diante de uma fala que amedronta.

2. O PRINCÍPIO DA MAIORIA FRENTE À NECESSIDADE DE RECONHECIMENTO DOS DIREITOS


DAS MINORIAS.

Logo de início, e tomando por base o conteúdo já apresentado não se pode afirmar que todas as de-
cisões Estatais embasadas na opinião daquele grupo majoritário são de fato justas e atendem, sem nenhuma
restrição, o reclame de todo um povo.

Quando é crescente a adesão em defesa da liberdade e, consequentemente, da igualdade se dá quase


que involuntariamente oportunidade àqueles que sempre tiveram à margem, que pouco ou nunca puderam
com tranquilidade e segurança jurídica se mostrar, expor suas ideias e lutar por novas conquistas.

Antes, os que integravam determinados grupos sociais agiam de forma bastante discreta e silenciosa
pareciam não ter tanto espaço para divulgar suas ideias e se intimidavam com as represálias da própria so-
ciedade.

3  HAARSCHER, 1997, p 14.

600
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Hoje, a situação mudou. E os diversos grupos que lutam contra as barreiras, enfrentam a resistência
que encontram no caminho. Estimulados pelos movimentos sociais que alcançaram algum sucesso buscam
os novos integrantes dos grupos atingirem suas conquistas e se afirmar para sociedade.

É importante lembrar que numa democracia, de fato, todos devem estar protegidos pela lei da mesma
forma e com acesso aos mesmos direitos. É inadmissível criar castas ou cidadãos de segunda categoria em
função de questões de foro íntimo, pessoal, sexual, social, cultural, religioso ou de qualquer outra ordem.

Assim, deve-se observar que as maiorias podem decidir de acordo com o que consideram mais abran-
gente limitando-se, muitas vezes, a invocar a sua moralidade particular que por vezes não abrange a con-
cepção total da sociedade. E dessa forma, ao se visualizar aqueles que estão à parte, torna-se primordial, se
definir o que nos dias atuais pode ser chamado de minoria.

A princípio, passa a palavra “minoria” um sentido de inferioridade, de uma voz, que fala, que se ex-
pressa em pequeno número, logo, contrária à palavra “maioria”. Algo que se expressa em grande número.
Fazendo muitas vezes referência direta a uma ideia dominante. As minorias, contudo, são setores de uma
sociedade, ou fração desta, que se encontra comprometida com a defesa e a divulgação de uma luta assumida
pelos integrantes daquele setor que nem sempre serão minorias em termos numéricos.

Os integrantes das minorias sempre vão defender uma posição e sua luta terá um comprometi-
mento social. São grupos movidos pelo impulso transformador. São os atores das turbulências, dos conflitos
socais que desejam quase sempre uma transformação na identidade e como consequência uma mudança na
relação de poder.

Como já foi dito é a liberdade de expressão o elemento de defesa da minoria, pois na medida em que
é permitido seu exercício se assegura a pluralidade de ideias e opiniões, significando, sem dúvidas, uma al-
ternativa para cada indivíduo ou grupo de indivíduo se mostrar.

Nesse sentido, defende-se que são as minorias principalmente um dispositivo simbólico com uma
intencionalidade ético-política dentro da luta contra hegemônica.4 Pode-se dizer que reúnem esses grupos:

elementos da política emancipatória, em sua luta por minimizar ou elimi-


nar a exploração e a desigualdade, e da política-vida, na busca de afirmar a
liberdade de escolha de um estilo de vida. E, dessa forma, vão ampliando,
junto com outros movimentos sociais, as noções de cidadania, esfera pública,
representação política e democracia. 5

Temos, então, como alguns exemplos de minorias, os negros, os índios, os homossexuais, as mulhe-
res, os judeus, os portadores de necessidades especiais, refugiados e etc.

Alerta-se, pois que não podemos defender como minoria qualquer grupo social. É necessário identi-
ficar algumas características para melhor definir esse grupo. Com base no texto de Muniz Sodré6 e de forma
simplificada consideramos como marcas específicas da minoria: I- o fato de ser um grupo vulnerável tendo
em vista não ser institucionalizado pelas regras jurídicas vigentes, II- a aparência de um movimento que
renasce a todo tempo, que se sustenta com o surgimento dos novos estados, como exemplo, podemos citar a
luta constante dos negros por maior reconhecimento, III- a luta contra- hegemônica e IV- uso das estratégias
discursivas e das ações demonstrativas, exemplificadas em: passeatas, campanhas pela internet, gestos sim-
bólicos, manifestos e outros.

Contudo, diz-se contra hegemônica aquela força que se posiciona na situação de enfrentamento. É
aquela que busca agir contra, intervir com capacidade de modificar alterar uma dada estrutura social re-
percutindo, claro, nos diversos setores. Inclusive, na conquista por ações afirmativas voltadas ao objetivo de

4  SODRÉ, 2013, p.1-2.


5  BARBALHO, 2013, p.1-13.
6  SODRÉ, 2013, p.1-2.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

remediar desigualdades históricas entre grupos étnicos e sociais, com o intuito de promover a justiça social,
representando, assim, um ponto de inflexão do próprio valor da igualdade.

Diante desse tema, deve-se refletir sobre até que ponto, em sociedades pluralistas, a manutenção do
poder da maioria não significa a perpetuação de tais desigualdades.

Tradicionalmente, a legitimidade da democracia remete à regra da maioria, ao respeito à vontade des-


se grupo. Contudo, atualmente, vem-se reconhecendo a necessidade de assegurar os interesses dos grupos
minoritários.

A regra da maioria foi instituída como um mecanismo lógico de solução dos


conflitos políticos, compatível com sociedades bastante homogêneas, egres-
sas da Idade Média, para as quais a proteção das minorias ainda não havia se
mostrado relevante. 7

Ressalta-se, portanto, que é latente nas sociedades pós-modernas, onde as minorias, cada vez mais,
atuam de forma organizada, a disputa em favor dessas e o papel opressor causado pelo Estado ao usar da
regra da maioria de forma excessiva, sem dar oportunidade para as minorias atuarem.

Por fim, é possível se aferir que é dever de uma sociedade plural e democrática discutir a proteção à
liberdade de expressão, como primordial valor democrático, sempre, na busca por maior proteção das mino-
rias.

3. DISCURSO DO ÓDIO: A APARÊNCIA CONTROVERTIDA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

De uma maneira simples é possível se afirmar que este discurso é a manifestação de ideias que in-
citam o preconceito e a discriminação social, racial ou religiosa. De forma mais completa afirma Winfried
Brugger que:

De acordo com a maioria das definições, o discurso do ódio refere-se a pala-


vras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua
raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacida-
de de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas. 8

Acrescenta-se ainda que o discurso do ódio desenvolve-se mediante ação de desprezo e de insulto.
Gerando uma marginalização e até uma subordinação. Atingindo, na sua grande maioria, grupos que pos-
suem aspectos similares com relação à cultura, concepções religiosas, padrões éticos e morais ou, até se en-
contram na mesma condição social e econômica. Por exemplo: negros, homossexuais, judeus, nordestinos,
ciganos, refugiados, entre outros.

Afirma-se, também, que esse discurso tem como foco central a desvalorização do outro. E utilizando
de expressão de ódio tem o fim de atingir a dignidade das pessoas, sempre diminuindo sua autoestima. Na
grande maioria das vezes, cria obstáculo para que grupos minoritários não participem ativamente da vida
social, ficando isentos dos debates públicos. Os comandos dos discursos acabam ferindo o princípio da dig-
nidade da pessoa humana e a própria liberdade de expressão, pois suas atitudes vão de encontro à conduta
respeitosa com relação ao outro.

Infelizmente, o discurso do ódio inviabiliza a troca de concepções, pois provoca como dito uma reação
violenta ou silenciosa. Comprometendo a continuidade de qualquer discussão.

Ao considerar o discurso do ódio como uma ação que se concretiza no âmbito da liberdade de ex-
pressão, chega-se ao grande desafio da sociedade e do Estado contemporâneo que é: a busca pelo equilíbrio

7  APPIO, 2008, p. 37.


8  BRUGGER, 2007, p.117-136.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

no exercício da liberdade de expressão sem que sua maior efetivação possa gerar intolerância ou prejuízos
irreparáveis para igualdade e para dignidade da pessoa humana.

Sabe-se que o debate racional é o melhor caminho para tomada de decisões. E nesse caso para se
alcançar um resultado positivo é necessário um respeito mínimo ao próximo e a predisposição a ouvir os
argumentos defendidos pelo outro. Ressalta-se, então, que dentro de um contexto de sociedade plural e
multicultural deve se primar pelo exercício da tolerância, para garantia da isonomia e para preservação da
dignidade humana.

No entanto, para aceitar o estranho ou o diferente deve-se, antes de tudo, se desprender da ideia da
existência de uma verdade absoluta e incontestável. É importante compreender que a crença na verdade
absoluta é uma forma de não aceitar as possibilidades de discussão limitando a liberdade de expressão.

O discurso do ódio tende a inviabilizar o caráter comunicativo da liberdade de expressão não podendo
ser aceito, quer pelo desrespeito aos direitos do ofendido, quer porque busca a sua exclusão do exercício da
cidadania, comprometendo a própria democracia. Tornando a sociedade como um todo mais frágil, pois o
discurso intolerância é elemento desagregador que impede uma participação igualitária e saudável no pro-
cesso democrático.

Assim, importante lembrar que numa sociedade democrática o maior desafio é a concretizar a iso-
nomia e o respeito ao pluralismo e ao livre-arbítrio. “Lembra-se que a regra da maioria pode facilmente se
converter em ditadura das maiorias e que as minorias por ausência de força política seriam reféns da intole-
rância das massas.” 9

Na realidade os homens são por sua natureza genética, cultura e histórica diferentes, para se atingir
a sociedade de iguais e a tão desejada paz social deve-se no lugar de fomentar os elementos antagônicos do
povo reconhecer no outro o elemento comum.

Mas não é apenas isso. É preciso o conhecimento e o reconhecimento das diferenças, é preciso am-
pliar a possibilidade de interação entre as pessoas para eliminar os elementos antagônicos causadores da
intolerância, das atitudes discriminatórias e da exclusão injustificada.

Esses danos, portanto, são graves e devem ser levados em consideração pelo Estado. O Estado deve se
legitimar na opinião pública e no debate plural, em um campo onde seja aberta a toda discussão, assegurando
o direito a opiniões adversas.

É dever do Estado à promoção de valores democráticos, que colaboram para inclusão das minorias
diretamente atingidas nesse debate, à garantia de uma vida digna e a possibilidade de publicamente defender,
expor suas ideias.

(…) a atuação do Estado deve ser no sentido de dotar o grupo minoritário de melho-
res condições para expor suas ideias e argumentos e assim poder participar efetiva-
mente do debate público e fazer uso de sua liberdade para expor pensamentos, ideias
e opiniões em igualdade de condições com os demais. 10

Ressalta-se que na busca por essa solução deve-se sempre ter em foco o fato de hoje se viver numa
sociedade que possui a regra da maioria como principal pilar. E que aspira a mesma à concretização do plu-
ralismo como um dos principais objetivos para se chegar a tão desejada igualdade.

Assim, é possível se afirmar que este tema alcança princípios e regras consagradores de direitos e um
conjunto de preceitos já estabelecidos na Constituição e que claramente existirá entre eles conflitos.

Então, desde logo, se percebe que os casos devem ser analisados de forma criteriosa e isolados para
se verificar o contexto e a capacidade nociva. Como se verá diante, é analisando as peculiaridades dos casos

9  APPIO, 2008, p. 41.


10  MEYER-PFLUG, 2009, pg. 231.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

específicos que de fato se reconhece a complexidade do tema. Dessa forma, por se tratar de situações concre-
tas envolvendo colisão de direitos fundamentais, a busca por solução, também, é lançada ao Poder Judiciário.

Lembra-se, por fim, que jurisdição constitucional é instituição legítima para proteger os elementos
constitucionais essenciais e que este tem a missão de preservar um espaço intangível da individualidade
humana.11

4. HIPÓTESE DE COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENVOLVIDOS NO SURGIMENTO


DO DISCUROS DO ÓDIO E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

Assim, no contexto de luta por reconhecimento, envolvendo o caso do discurso do ódio e das minorias,
surgem conflitos de direitos fundamentais. E dentro dessa possibilidade torna-se necessário uma intervenção
do Estado-Juiz, como forma de proteção ao cidadão e de controle dos abusos que podem ser cometidos, in-
clusive por parte do próprio Estado quando administrador.

Importante é compreender que os direitos humanos fundamentados na Constituição não são meras
enunciações de princípios. São, sim, positivação de direitos a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir
sua tutela perante o Poder Judiciário.12 Sem esquecer que terá sempre o Estado de buscar a sua efetivação.

Partindo de uma visão crítica com relação aos efeitos gerados pelo discurso do ódio que de forma,
muitas vezes, direta e violenta atinge um grupo específico degradando-o com o objetivo de inferiorizar os que
são através dele representados; é imprescindível iniciar citando como princípio constitucional a ser preser-
vado o princípio da dignidade humana. A dignidade é valor intrínseco à pessoa humana que deve afastar e
mitigar tudo aquilo que puder reduzir, discriminar e negar a condição de pessoa.

A busca pelo respeito ao homem surge com o objetivo de facilitar o desenvolvimento e manutenção
das formas particulares de existência, que abrangem não apenas a dignidade da pessoal individualmente,
mas também, de um povo, de um grupo social, cultural, religioso e ético.

É possível se afirma que além da liberdade de expressão, da pluralidade e da dignidade existem outros
direitos que se ligam diretamente com as ideias dos grupos minoritários e dos que agem reprimindo essas
ações com uso de discursos agressivos e que intimidam.

São esses direitos fundamentais que entrarão em rota de colisão quando se tem como pano de fundo
as diversas opiniões e discursos que envolvem, principalmente, o tema liberdade de expressão. E que depen-
dendo da forma como são utilizados, ressaltam os argumentos dos grupos aqui contrapostos.

Como exemplo cita-se, os contidos no art. 5º inciso X da Constituição Federal. Nele expressamente
diz serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, e ainda garante que caso não seja
cumprida a inviolabilidade estará assegurado o direito a indenização pelo dano moral ou material.

Não se pode divulgar ideias, textos ou imagens estáticas (foto) ou dinâmicas (vídeos) indiscriminada-
mente, utilizando como argumento a liberdade de expressão, de comunicação, a liberdade religiosa e o direito
a informação, pois estes se dessa forma utilizados ferem diretamente os direitos contidos no art. 5º, inciso X.

A compreensão da intimidade como elemento de caráter subjetivo que reflete a relação do indivíduo
consigo mesmo e a exclusão do conhecimento de outros daquilo que só se refere a ele. Junto com a defini-
ção de vida privada como elemento possuidor de um caráter mais objetivo que envolve as características da
intimidade num espaço em que o indivíduo se relaciona com outros e onde cabe, exclusivamente, ao seu
controle a escolha de compartilhar ou não o que a ele se refere.

Soma-se ainda, para completar esse circulo de direitos que fornecem grande força negativa ao dis-
curso quando veiculado como algo que discrimina e inferioriza, o conceito de honra. Este abrange a defesa

11  APPIO, 2008, p. 41.


12  ESLAVO, 2009, p. 61-83.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

de valores ou qualidades morais da pessoa humana, e traz à tona valores imaterias que compõe o homem
colaborando para uma perspectiva não apenas material da vida, mas também, abordando a reputação, ava-
liação realizada pelo meio social da exteriorização de um comportamento, e o valor que a pessoa realiza de
sua própria dignidade moral.

Em contraposição a esse grupo de direitos e em defesa da absoluta liberação da expressão, fala-se da


liberdade constitucionalmente garantida, caput. do art. 5º, e que segundo Gilmar Mendes pode ser conceitua
como: “perspectiva da pessoa humana como ser em busca da auto realização, responsável pela escolha dos
meios aptos para realizar suas potencialidades”13, a liberdade é ainda forma de pensamento que trata do livre
conteúdo intelectual e supõe o contato do indivíduo com seus semelhantes.14

Reafirma-se então que a liberdade de expressão, exposta no art. 5º, inciso IX, e já trabalhada, é uma
forma de externar pensamentos, ideias e opiniões que normalmente estão carregados de juízo de valor e
crenças.

Cita-se ainda, como forte elemento da discussão, o direito à informação. Este é considerado impor-
tante, pois se trata de um direito coletivo. É o mesmo identificado na Constituição no art. 220 quando expõe
que manifestar pensamento, criação, expressão informação sob qualquer forma, processo ou veículo não
sofrerá restrição quando seguir o disposto no texto constitucional.

Complementa-se que o exercício de todos os direitos trazidos à tona durante o texto é garantido pela
constituição, mas nem todos têm exposto de forma especifica até que ponto é legitimo ou não o seu exercício.

Logo, sabe-se que o mútuo exercício de direitos pode ensejar uma série de conflitos entre os direitos
constitucionalmente protegidos, o que faz necessário para solucionar a situação analisar pressupostos fáticos
e jurídicos que envolvem a colisão entre direitos fundamentais.

Com o intuito de facilitar a exposição do presente tópico esclarece-se que os direitos fundamentais
possuem a característica de princípio jurídico e não de regra.

Os princípios, pois possuem aplicação bem distinta. Não há uma determinação taxativa, eles car-
regam uma maior generalidade sendo assim mais abstratos. Para utilizá-los, deve-se ter uma analise mais
profunda do caso concreto buscando sempre relacionar o valor expresso no princípio e a hipótese fática com
a qual esse se relaciona.

São os princípios “normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão alta quanto pos-
sível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de
otimização”. 15 Sua forma de aplicação é até mais complexa, pois se faz necessário um julgamento prévio de
peso e valor.

Afirma-se que quando atingida uma conclusão diante do caso concreto não podem eles ser declara-
dos inválidos ou hierarquicamente superiores; entre os princípios não há hierarquia. Percebe-se, então, que
no conflito existente entre determinados princípios um não anulará o outro, mais sim, prevalecerá sobre
o outro de acordo com a situação fática. É nesse momento em que se encontra o real objeto do trabalho:
uma situação fática que necessita de uma solução jurídica, porém com os mesmos e mais de um direito
fundamental podendo ser aplicado.

Robert Alexy defende que: “princípios e ponderação são lados do mesmo objeto” 16 sendo contextos
inseparáveis e considerando-se a colisão dos direitos fundamentais colisão entre princípios sempre que se
tratar desse conflito deverá se buscar a solução através da ponderação.

13  BRANCO, 2008, p. 359.


14  SILVA, 2009, p. 241.
15  ALEXY, 2007. p. 64.
16  Idem, 2007. p 64.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Quando se fala dos limites impostos ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e consequente
colisão, torna-se primordial falar da ponderação como resposta, ou como melhor forma até agora encontrada,
para solucionar esse conflito.

Como bem declara Paulo Bonavides a aplicação mais proveitosa e potencial desse princípio é aquela
que o torna instrumento de interpretação sempre que ocorre antagonismo entre princípios fundamentais e
daí o surgimento de uma “solução conciliatória”.17

A ocorrência do antagonismo entre princípios, direitos fundamentais, e a necessária restrição deles,


como dito anteriormente, é o resultado da crescente expansão do âmbito de proteção desses direitos e, ao
mesmo tempo, da possibilidade de intervenção Estatal que só será solucionada com a utilização da regra da
proporcionalidade resultando na concretização máxima de um direito e na restrição de outro.

A ideia de ponderação será alcançada depois de percorrido um caminho e quando se falar do prin-
cípio da proporcionalidade em sentido estrito. Servirá esse princípio para o momento de analise final onde
se observará a possibilidade de existência de um direito que se adéque ao objetivo perseguido e que seja ne-
cessário, mas que não fira, não restrinja de forma muito intensa outro ou vários direitos. Porém, antes desse
devem ser analisados dois outros subprincípios, ou elementos parciais chamados princípio da adequação e
princípio da necessidade ou exigibilidade.

O problema da colisão dos direitos fundamentais é, sem dúvida, enfrentado com certa frequência
nas ordens dos tribunais. Já o do discurso do ódio não se revela tão comum. Dessa forma, como propósito
de esclarecer o exposto nos tópicos anteriores apresenta-se, agora, de maneira simples e direita, dois casos
concretos envolvendo conflito de direitos fundamentais e as diferentes perspectivas e respostas apresentadas
como solução: 4.1 - O “Caso Siegfried Ellwanger”- Julgamento do Supremo Tribunal, o chamado caso
Siegfried Ellwanger, trata-se do HC 82.424 do Rio Grande do Sul. O paciente Sr. Ellwanger, na qualidade de
escritor e sócio de uma empresa “Revista Editora Ltda.” dedicou-se a publicação de livros antissemitas que
basicamente tratava da negativa da existência do Holocausto. Denunciado pelo Ministério Público, foi absol-
vido em primeira instância, nesse momento o órgão julgador demonstrou posições que privilegiam a liberda-
de de expressão, entendendo que não havia crime de discriminação contra a comunidade judaica. Porém, foi
condenado em segunda instância a dois anos de reclusão por crime de racismo, apologia a ideias preconcei-
tuosas e discriminatórias contra judeus. A Suprema Corte brasileira, na decisão final, se posiciona no sentido
de impor limites a liberdade expressão como forma de proteger a manifestação dos grupos minoritários, para
legitimar as decisões em suas democracias. Entendeu prevalecerem, no caso concreto, a dignidade da pessoa
humana, o pluralismo político, o repúdio ao racismo e a imprescritibilidade, sendo restringida a liberdade de
expressão. 4.2- O “Caso Brandemburg vs. Ohio”. O caso18 é apresentado a Suprema Corte norte-ameri-
ca, no ano de 1969. Brandemburg líder da Ku Klux Klan organizava e promovia encontros no Estado de Ohio,
quando decidiu convidar um repórter, que transmitiu ao público, pela televisão, imagens do evento. Nelas
viam-se pessoas encapuzadas, queimando cruzes e proferindo palavras de ordem contra negros e judeus.
Usa da palavra para insultar diretamente negros e judeus e ainda para ameaçar as autoridades americanas
caso continuasse a prejudicar sua raça. Após denuncia, foi o líder condenado pelo Estado de Ohio por fazer
apologia ao crime, incitar a violência e utilizar métodos de terrorismo como meio de empreender reforma
política e industrial. No entanto, quando apresentado o caso a Suprema Corte essa decisão foi revertida. A
Suprema Corte estadunidense decide, simplesmente considerando inconstitucional a lei do Estado de Ohio.
A Corte constatou que um o governo não tem o poder de invadir o espaço da crença. Para o referido Tribunal
se não há incitação ou promoção da ação ilegal, não é cabível qualquer proibição à de liberdade de expressão
e de imprensa. Percebe-se aqui a nítida tendência de proteção da liberdade de expressão, sem dúvida, para
jurisprudência Norte Americana esse é um direito que quando contraposto frente a outros direitos ganha
maior peso e relevância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

17  BONAVIDES, 2008. p 425.


18  SARMENTO, 2006, p. 213.

606
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Após toda exposição se observa que o discurso do ódio coloca em teste a defesa do exercício irrestrito
da liberdade de expressão e afirma, na medida em que é exercido, sua capacidade de prevalecer de forma
negativa em face de outros princípios fundamentais. O conflito apresentado no contexto de discurso do ódio,
de forma ampla, suscita uma questão muito complexa. Um choque entre a dignidade da pessoa humana e o
direito a liberdade de expressão, não restando dúvida, que se trata de uma difícil tarefa solucioná-lo. Pois, en-
contrar a medida adequada para combatê-lo e, ainda, preservar o mútuo desenvolvimento dos direitos funda-
mentais, a sobrevivência da democracia e a garantia da construção de uma sociedade plural não é tarefa fácil.

Frisa-se que, estam esses direitos diretamente ligados ao reconhecimento e afirmação das singula-
ridades e à busca pelo rompimento das tradições englobadoras e universalizantes. Enfim, questiona-se se
a vontade da maioria é realmente uma técnica adequada para algumas decisões sociais. E afirma-se que o
majoritarismo avalia as preferências de um grupo de cidadãos deixando sempre outros a margem.

Entende-se como essencial o papel do Judiciário que analisando o caso concreto irá utilizar do prin-
cípio da proporcionalidade na tentativa de encontrar a melhor solução para o conflito. Defende-se aqui, que
através da utilização desse princípio poderá o Poder Judiciário, na solução de um caso concreto, respeitar
o pluralismo e realizar a efetiva proteção judicial das minorias frente a constante supremacia da opinião da
maioria. A apresentação do caso concreto ao judiciário é uma possibilidade de assegurar um resultado equi-
librado e um tratamento justo diante de uma posição dominante que marginaliza.

Contudo, ressalta-se, mais uma vez, que estabelecer condições adequadas para garantir o exercício
da liberdade de expressão não é tarefa fácil, pois para determinar os limites ao seu exercício faz necessário a
analise dos princípios e valores estruturais da sociedade. Para alcançar o mais alto grau de concretização de
um direito sem negar a existência daquele que a este se contrapõe é preciso ampliar os limites da discussão
pública. E, não esquecer que, também é tarefa do Estado fornecer meios que aprimoram os elementos bases
para construção de um debate equilibrado.

Tem-se que compreender que se vive em sociedades multiculturais e complexas em que as mani-
festações racistas, segregacionistas, nacionalistas e xenófobos representam graves ameaças à liberdade e à
igualdade. Por fim, se afirma que manifestações de ideias que incitam o preconceito e a discriminação social,
racial, religiosa e de gênero devem ser largamente combatidas. Não há dúvidas que ao Poder Judiciário, guar-
dião da Constituição e dos direitos fundamentais, é dado o grande desafio de conciliar a proteção dos direitos
fundamentais e da democracia. E que a ideia do princípio da proporcionalidade é uma técnica de interpreta-
ção constitucional que oferece a possibilidade de harmonização dos direitos na apreciação do caso concreto.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS


HUMANOS (SIDH)

Valdênia Brito Monteiro


Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, doutoranda
pela Universidade de Buenos Aires (UBA), professora e coordenadora do Curso de
Especialização em Direitos Humanos da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
e professora da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO).

Bárbara Raquel da Silva Fonseca


Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP.

SUMÁRIO: 1. Aspectos históricos do Genocídio Indígena no Brasil; 2. A Constituição de 1988 e o


Direito Internacional no Tocante aos Povos Indígenas; 3. Ativismo Jurídico; 4. Importância do Siste-
ma Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) nos Conflitos Indígenas; Conclusão; Referências.

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO GENOCÍDIO INDÍGENA NO BRASIL.

Ao longo de cinco séculos, os povos indígenas, no continente americano, têm resistido à violência e à
opressão na luta pelo direito aos seus territórios tradicionais, em atenção ao direito à vida digna. A consolida-
ção social do território foi marcada pelo extermínio e a barbárie do colonizador europeu. Estima-se, quando
da invasão portuguesa no Brasil, que havia 6 milhões de habitantes. Atualmente, a população é aproximada-
mente de 800 mil, um contingente que representa cerca de 0,4% da população brasileira, segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010).

Na América Latina, a região abriga 10% do número de indígenas do mundo, calcula-se que a popu-
lação deste grupo oscila entre 8 a 12%, o que equivale entre 30 e 50 milhões de pessoas. A perda da territo-
rialidade dos povos indígenas no continente representa um extenso processo histórico de desapropriação. O
direito ao território, compreende o espaço que se caracteriza pelo uso, gozo e manejo dos recursos naturais
e também o controle dos processos de ordem política, econômica, social e cultural, com o fim de assegurar a
reprodução e continuidade material e cultural do grupo.

Durante a conquista pelos portugueses, as terras indígenas foram usurpadas violentamente pelos
conquistadores, extintas muitas etnias, destruídas culturas e submetidas à escravidão de milhares de pesso-
as. Os povos indígenas perderam muito de suas propriedades para latifundiários, sendo impossibilitados de
viverem nas suas terras tradicionais de subsistência. As causas das tensões, fruto dos processos de resgate de
seus territórios, foram aprofundando as desigualdades sociais. Havia, por parte dos portugueses, o interesse
de normatizar as questões relacionadas entre índios e não índios e de explorar a mão de obra barata.

Em 1822, com a proclamação da independência do Brasil, houve a necessidade de uma política


indigenista, mas pouca coisa mudou. A primeira Constituição de 1824, nem sequer menciona a existência
dos índios no território brasileiro. Em 1845, a única norma indigenista geral do governo imperial era o Re-
gulamento das Missões, representando mais um documento administrativo que um plano político. Esse re-
gulamento, buscou oferecer às populações indígenas, uma certa proteção às suas terras e riquezas. A Lei de

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Direito(s) em debate.

Terras de 1850, apresentou uma nova compreensão da propriedade da terra, acessível apenas pela compra
e pela aquisição do título de propriedade e não mais pela posse. Os indígenas foram expropriados de suas
terras, as quais foram ocupadas paulatinamente por colonos e pelas frentes pioneiras extrativas e agropasto-
ris. Os antigos direitos, raramente beneficiavam aos índios.

A Constituição de 1891 da Republicana, também ignorou o índio não lhe reconhecendo qualquer di-
reito. Nos primeiros anos do século XX, o Estado brasileiro deu continuidade às percepções preconceituosas
e massacres. Em 1906, através da Lei nº 1606, o Ministério da Agricultura ficou responsável pela política
indigenista, o que representou uma verdadeira política de integração do índio à sociedade e à destruição de
sua própria cultura.

A Constituição de 1934 reconheceu o direito desses povos sobre seus territórios, asseverando, em seu
art. 129, que seria “respeitada posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localiza-
dos, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. As Constituições de 1937, 1946 e 1967 não inovaram o or-
denamento jurídico em matéria indigenista e nem fizeram qualquer menção ao direito à cultura, à dignidade
dos povos indígenas, entre outros direitos. No âmbito infraconstitucional, em 1973, no governo Médicis é
elaborado o Estatuto do Índio, sob o modelo assimilacionista, as quais compreendiam o índio como categoria
social transitória a ser incorporada à comunidade nacional. Só a partir da Constituição de 1988 que se aban-
dona as perspectivas assimilacionistas, Mas, os povos originários sobreviventes, resistiram e resistem até hoje
a um projeto de assimilação forçada, fragmentação, exploração e ao genocídio.

Zaffaroni (2006, p. 4), ao prefaciar o livro de Juan Manoel Salgado sobre a Convenção 169 sobre Po-
vos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), expressa:

Los sobrevivientes del genocidio nunca fueron reparados, su propiedad ori-


ginaria nunca fue devuelta. Pero el genocidio es imprescriptible, y esto no
puede entenderse sólo limitado a la materia penal, sino también a la civil (…)
Y lo cierto es que si bien los muertos están muertos, son muchos sus descen-
dientes que hasta hoy sufren las consecuencias del genocidio cometido hace
siglos, sin que hayan sido objeto de reparación alguna.1

O mantimento da violência e do medo na construção histórica brasileira, sempre foi pautado pela
submissão de grupos e pelo alto grau de seletividade. O medo, sempre foi um instrumento de conservação da
violência estrutural na formação social excludente. Todos esses cinco séculos foram marcados pela tensão
na formação social autoritária, que sempre buscou resolver os conflitos através de mecanismos coercitivos do
Estado; de um projeto de assimilação cultural e da supressão da diversidade cultural dos povos originários.

Chauí (2009) ao realizar uma crítica sobre a nossa sociedade autoritária -na qual não se instala a
dimensão pública e coletiva da lei -, apresenta como são percebidas as classes populares, como classes peri-
gosas que não são caso de política e sim de polícia. Sobre os indígenas expressa: os índios, em fase final de
extermínio, são considerados irresponsáveis (incapazes de cidadania), preguiçosos ( mal adaptáveis ao mer-
cado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados, ou então, “civilizados” (entregues à sanha
do mercado de compra e venda da mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque são “irresponsáveis”).

Os massacres, a violência e a negação dos direitos indígenas presentes no Estado brasileiro, quer no
século XX quer no XXI, apresentam, na prática, um quadro sistemático de desrespeito para com os aboríge-
nes, culminando na destruição física e cultural desses povos.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo vinculado à Conferência Nacio-
nal dos Bispos do Brasil (CNBB), os conflitos pela terra, desde os anos 70, representam um verdadeiro exter-
mínio praticado por fazendeiros contra os Guarani Kaiowá. De acordo com o relatório sobre a violência a qual

1  Os sobreviventes do genocídio nunca foram reparados, sua propriedade originária nunca foi devolvida. Porém, o genocídio é
imprescritível e este não pode ser compreendido só na área penal, mas também a civil (...)E o certo é que se bem os mortos estão
mortos, mas muitos seus descendentes até hoje sofrem as consequências do genocídio cometido há séculos, sem que tenham sido
objeto de reparação alguma. Tradução livre.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

atinge os povos indígenas, somente entre 2003 e 2011 foram assassinados 503 índios, dos quais 273 são do povo
Guarani Kaiowá.

Não se pode olvidar que a violência não é uma disfunção do sistema, e sim, representa uma política
declarada de administração dos conflitos ante a violência sistêmica praticada pelos donos da terra, historica-
mente importante na construção da elite brasileira. Apesar do descaso com estes povos, os mesmos não têm
deixado silenciar frente ás violações de direitos.

2. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O DIREITO INTERNACIONAL NO TOCANTE AOS POVOS


INDÍGENAS.

A Constituição de 1988, no seu Capítulo VIII, reconhece como permanentes os direitos originais
inerentes aos povos indígenas por sua condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras,
substituindo o paradigma da assimilação natural” antes vigente. Trouxe o fim do sistema tutelar e o reconhe-
cimento dos grupos indígenas como parcelas da população dotadas de culturas e organizações próprias. No
seu Capítulo VIII, “DOS ÍNDIOS”, dispõe a Constituição de 1988:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, lín-
guas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tra-
dicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.

Percebe-se uma clara recusa da aplicação do termo “povos indígenas”, substituído no texto da Cons-
tituição pelas terminologias “populações indígenas” (Art. 22, XIV e 129, V), “grupos indígenas” (Art. 231,
§5º), “culturas indígenas” (Art. 215, §1º), “comunidades indígenas” (Art. 210, §2º), ‘etnias’ (Art. 242 §1º).
No conjunto de dispositivos do texto constitucional, é visível um modelo jurídico-institucional do indigenis-
mo brasileiro. Apesar de momentos distintos do indigenismo internacional, os conteúdos dos documentos
influenciaram a delimitação do texto brasileiro, destacando a Convenção sobre o Instituto Indigenista Inte-
ramericano(1949), promulgada por meio do Decreto nº 36.098/54; a Convenção nº 107 sobre populações
indígenas e tribais, da Organização Internacional do Trabalho, promulgada através do Decreto nº 58.824/66;
a Convenção nº 169 sobre povos tribais, da Organização Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto
nº 5.501/2004 e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas de 2007, aprovada pela Assembleia
da Organização das nações Unidas (ONU), promulgada pelo Decreto n° 6177/2007. O marco das Declara-
ções e Convenções representam um emergente direito internacional dos povos indígenas.

Destaca-se a pressão dos movimentos indígenas, a quase totalidade dos países latino-americanos, nas
novas Constituições para o reconhecimento do caráter pluriétnico e multicultural dos Estados. Em alguns
casos, concedendo direitos específicos aos indígenas ou afrodescendentes.

No caso da Convenção 169, é o instrumento que trata especificamente dos direitos dos povos indíge-
nas e tribais no mundo, reconhece o direito de autonomia e controle de suas próprias instituições, formas de
vida e desenvolvimento econômico, propriedade da terra e de recursos naturais, tratamento penal e assédio
sexual, entre outros temas. A Convenção resulta de uma orientação à Convenção 107, que deve ser interpre-
tada com base nos princípios dos direitos humanos internacionais, os quais reconhece os direitos coletivos
dos povos indígenas e a necessidade que tais direitos sejam garantidos.

A Convenção 169 é um grande instrumento de interpretação do compromisso estabelecido no artigo


231, § 3º, que obriga o Congresso Nacional a ouvir as comunidades indígenas afetadas nos processos de au-
torização para aproveitamento dos recursos hídricos e minerais em suas terras.

A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, reconhece os povos indígenas como nações
preexistentes aos Estados nacionais e outorgando legitimidade para exigir de cada governo a efetivação dos
seus direitos. É um assunto que se tem transformado em pauta a política sobre questões de territórios, identi-

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

dade, reconhecimento da diversidade. Ao mesmo tempo reconhece uma nova categoria de sujeitos de direito,
considerados agora coletivamente.

No caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) da Organização dos Estados Ame-
ricanos (OEA), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil em 1992) e a De-
claração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, são os principais instrumentos vigentes, embora
nenhum desses instrumentos faça menção específica aos povos indígenas e seus direitos. Tratam dos direitos
humanos de maneira geral, o que serve à proteção dos povos indígenas e seu direito à terra.

Como observa Sieder (2002), a importância dos tratados apresentam três pontos importantes : (a)
o desenvolvimento do Direito Internacional, caracterizando os direitos indígenas como parte específica dos
Direitos Humanos; (b) a emergência de movimentos indígenas que atuam, nacional e internacionalmente,
cada vez mais como grupos de interesse dentro da sociedade civil e nos espaços públicos democráticos, pres-
sionando por uma nova leva de direitos coletivos; e (c) os processos recentes de reformas constitucionais em
vários países, reconhecendo - pelo menos em princípio - o caráter multiétnico de suas sociedades.

Apesar da Constituição Federal garantir aos povos indígenas a posse das terras tradicionalmente ocu-
padas por eles, os conflitos indígenas têm aumentado. A demarcação tem sido lenta e há grande resistência
dos setores econômicos dominantes, além da violência declarada, ferindo o Direito Constitucional das comu-
nidades indígenas a ter suas terras tradicionais.

As causas geradoras dos grandes conflitos têm a ver com o modelo de desenvolvimento econômico do
país, que trata a terra como uma das fontes de poder econômico, torna a demarcação das terras indígenas
alvo constante de ataques por determinados setores da sociedade. A terra já ocupada pelos índios é almejada
pelo interesse de latifundiários, extrativistas, mineradores ou mesmo por grandes empreendimentos como
construções de hidroelétricas, como no caso de Belo Monte, empreendimento que faz parte do Complexo
Hidrelétrico do Rio Xingu, que atingirá cerca de 10 (dez) povos indígenas, como os Juruna de Paguiçamba,
Assurini do Xingu, os Araweté, os Parakanã, os kuruia, os Kayapó, entre outros. Sem falar nas terras reivin-
dicadas pelos povos indígenas e que não estão em sua posse.

Os povos indígenas, assolados pelo empreendimento do Complexo Hidrelétrico, já tinham suas terras
reconhecidas pelo Estado brasileiro, a ordem de remoção desses povos de seus respectivos territórios confi-
gura, tanto no plano nacional quanto no internacional, clara violação de direitos humanos.

3. ATIVISMO JURÍDICO

As Organizações Não Governamentais (ONG’s), são os atores importantes do ativismo jurídico na luta
contra as violações de direitos humanos. De acordo com Santos (2007), o ativismo jurídico transnacional
pode ser compreendido com um tipo de militância que tem como foco ações legais engajadas, impetradas por
organizações da sociedade civil perante as cortes internacionais ou instituições quase judiciais contra seus
Estados membros (litigância).

Esses organismos são responsáveis pela quase totalidade das petições enviadas à Comissão Interame-
ricana de Direitos Humanos(CIDH), o que as torna instrumento de ação e pressão dos movimentos sociais,
que ao se organizar e se estruturar em redes de proteção, dão a sustentabilidade às ações de defesa dos di-
reitos das minorias, contra a pobreza e a exclusão, ou seja, com atuação centrada na litigância transnacional,
para além do direito interno, como estratégia de responsabilização dos Estados Membros do Sistema Intera-
mericano de Direitos Humanos, quando aqueles cometem violações dos direitos.

Santos (2007), sobre a importância do ativismo jurídico das ONGs, expõe que elas não simplesmente
tentam remediar abusos individuais, mas também de (re)politizar ou(re)legalizar a política de direitos hu-
manos, ao provocar as cortes internacionais ou sistemas quase judiciais desses direitos humanos e levá-los a
agirem diante das arenas jurídicas e políticas nacionais e locais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Apesar das diferenças entre as esferas domésticas e internacional, esses entes formam verdadeiras
cadeias de proteção de direitos humanos com alcance para além das fronteiras onde seus agentes exercem
seu trabalho. O ativismo transnacional funciona aqui como verdadeiro termômetro de verificação da eficácia
e, principalmente, a efetividade das medidas adotadas no ambiente doméstico para aplicação das normas ius
cogens de direitos humanos, acordadas no Direito Internacional dos Direitos Humanos, traduzidas no Brasil
na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, e na competência da
Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhecida pelo Estado brasileiro, enfatizando
assim a dimensão transnacional das alianças formadas por esses órgãos e ONGs, como já dito antes, atores
principais nas ações e movimentos em defesa dos direitos humanos.

Tanto no caso Belo Monte, como do Povo indígena Xucuru, do Povo Yanomami foram as ONGs gran-
des responsáveis pelas denúncias junto à CIDH na defesa dos direitos desses povos. O ativismo transnacional
desses organismos culmina em ações que funcionam como verdadeiros paradigmas a serem seguidos para
proteção dos direitos dos povos indígenas e de todas as minorias vulneráveis a reiteradas violações de direitos
humanos cometidas pelo Estado brasileiro.

Vale ressaltar, porém, que embora as denúncias sejam a partir de um caso individualizado, em
princípio se está litigando na busca de um interesse particular, mas a intenção das ONGs ao peticionarem
junto à CIDH é que as soluções que são dadas caso a caso, tenham como objetivo primordial criar prece-
dentes que tragam impacto na política públicas e na legislação interna. A estratégia é que o caso concreto
transforme-se em fortalecimento e empoderamento dos sujeitos de direitos, na busca por uma verdadeira
mudança social.

O ativismo jurídico transnacional não visa beneficiar, exclusivamente, a vítima ou mesmo remediar a
agressão sofrida, para além disso, tem o escopo de implantar o reconhecimento dos direitos humanos como
um direito inerente a todos os outros, bem como implantar novas políticas para o efetivo exercício desses
direitos, envolvendo jurisdição situada além das nossas fronteiras. Nesse entorno, a SIDH é muito mais ins-
trumento de promoção de mudança social e garantia de direitos.

O ativismo jurídico tem papel fundamental no sentido problematizar sobre a importância da compati-
bilidade das leis nacionais e das convenções. Como expressa Piovesan (2012) de encorajar avanços no plano
de proteção e de prevenir retrocessos no regime de proteção de direitos.

4. IMPORTÂNCIA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) NOS CONFLITOS


INDÍGENAS.

O SIDH2 tem tido um papel importante na proteção dos direitos humanos, na região. Quanto à pro-
teção indígena ao direito da terra, percebe-se a reafirmação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
e de sua jurisprudência, consequentemente abrangente a todos os países que ratificaram Convenção Ame-
ricana de Direitos Humanos. Estados como Nicarágua, Belize e Paraguai adequaram suas legislações sobre
direitos indígenas e influenciaram as Cortes nacionais a adotarem um posicionamento respeitando territórios
ocupados por povos culturalmente distintos.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem sido um importante ferramenta de tutela desses
direitos na América Latina, apesar de sua modesta força política para se sobrepor aos interesses soberanos
dos Estados que a compõem.

A resolução de conflitos, pela via jurisdicional doméstica, nem sempre se apresenta satisfatória para
os povos indígenas, outros mecanismos têm sido utilizados, a exemplo, o (SIDH). Este se caracteriza como

2  O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ambas pertencentes a Organização dos Estados Americanos. O Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto, basicamente, pelos seguintes instrumentos normativos: Carta da
OEA, 1948; Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948; Declaração de San Tiago, 1959; Protocolo de
Buenos Aires, 1967; Pacto de San José da Costa Rica, 1969; Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e
Protocolo de San Salvador, 1988; Protocolo de Cartagena das Índias, 1985; e Protocolo de Washington, 1992.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

um sistema de subsidiariedade de jurisdições entre a jurisdição nacional e a jurisdição regional de direitos


humanos, como alternativa viável para proteção de direitos. Vem sendo demandados por agentes nacionais
ou ativistas na defesa de interesses de grupos, com a finalidade de implementar mudanças no âmbito domés-
tico que, individualmente, não teria condições de lutar.

Como diz Bernades (2011), o SIDH funciona como esfera pública transnacional para assuntos que
não encontram espaço na agenda política nacional e que possam ser tematizados nesses espaços transna-
cionais. Argumenta o autor (2011), que o SIDH tem dois papéis importantes: um de cunho político e outro
de cunho jurídico. O primeiro, proporciona as bases institucionais para a construção de uma esfera pública3
transnacional que pode contribuir para a ampliação da democracia. O segundo, de âmbito jurídico, que re-
presenta um desafio para o Brasil, que é a efetividade das decisões dos seus órgãos pelos Estados. No Brasil,
há resistência da comunidade jurídica nacional de incorporar o Direito Internacional dos Direitos Humanos
na sua rotina. Referimo-nos aqui tanto à implementação das decisões contra o Brasil emitidas por órgãos
internacionais quanto, e principalmente, ao chamado “controle de convencionalidade”4.

No caso da concessão de Medidas Cautelares (MC) 382/105, em consonância com o estabelecido no


artigo 25 do Regulamento da Comissão, em favor dos membros das Comunidades Indígenas da Bacia do Rio
Xingu, Pará, Brasil6, por violações de direitos humanos por parte do Brasil na construção da usina hidrelétrica
de Belo Monte, em Altamira, no Pará alegando que a vida e integridade pessoal dos beneficiários estariam
em risco pelo impacto da construção da usina, só foi possível a MC devido ao esgotamento e à ineficácia das
medidas solicitadas ao Brasil com o objetivo de impedir a construção da Usina Hidrelétrica. Assim, tornou-se
necessário recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com o intuito de impedir a concreti-
zação das possíveis violações de direitos humanos. A SIDH avaliou a MC 382/10 com base na informação
enviada pelo Estado e pelos peticionários, solicitou ao Estado:

1.Adoção de medidas para proteger a vida, a saúde e integridade pessoal dos membros das comunida-
des indígenas em situação de isolamento voluntário da bacia do Xingu, e da integridade cultural de mencio-
nadas comunidades, que incluam ações efetivas de implementação e execução das medidas jurídico-formais
já existentes;

2. Adoção do desenho e implementação efetivo dos planos e programas especificamente requeridos


pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) no Parecer Técnico 21/09, recém enunciados;

3. Garantia de rápida finalização dos processos de regularização das terras ancestrais dos povos indí-
genas na bacia do Xingu que estão pendentes;

4. Adoção de medidas efetivas para a proteção de mencionados territórios ancestrais ante apropriação
ilegítima e ocupação por não- indígenas, e frente a exploração ou o deterioramento de seus recursos naturais.

A denúncia contra Belo Monte tem sido objeto de definição de diretrizes para obras em todo o conti-
nente, como a construção de estradas na Bolívia, os conflitos entre mineradoras e comunidades no interior
da Colômbia e disputas entre populações Maias e empresas que realizam obras no setor de energia elétrica
na Guatemala. O que se percebe é que o debate provocado, a partir da utilização do Sistema In-
ternacional de Direitos Humanos, traz à tona uma série de discussões como, articulação entre

3  Bernades (2011) expressa que a esfera pública como loci não-estatais de deliberação, onde são possíveis a formação coletiva da
vontade, a justificação de decisões previamente acertadas, e o forjamento de novas identidades. Essa vontade política discursivamente
formada pode influenciar os processos formais de tomada de decisão do Estado, contribuindo para políticas públicas mais benéficas
a grupos sociais mais vulneráveis.
4  A expressão controle de convencionalidade surgiu em um voto do concorrente do juiz Sergio Garcia Ramirez no caso Miriam
Mack Cheng versus Guatemala, decidido em 2003.
5  A Medida Cautelar foi solicitada pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira (COIAB). Prelazia do Xingu, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Sociedade Paraense de Direitos
Humanos (SDDH) e Justiça Global à SIDH.
6  Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil: Arara da Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna do “Kilómetro 17”; Xikrin de
Trincheira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé
Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca.

615
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

o direito interno e o direito internacional, controle de convencionalidade, o papel do sujeito de


direitos na consolidação da democracia, entre outras.

O caso Belo Monte, segundo o Secretário Icaza (2013) da SIDH, representa uma nova agenda de
direitos humanos para a América Latina no que diz respeito às tensões envolvendo obras de infraestrutura,
comunidades locais e a defesa do ambiente. Trata-se de um debate sobre o modelo de desenvolvimento. Em
toda a América Latina, os megaprojetos de petróleo, de mineração, as construções de estradas estão gerando
muitas tensões. Mas, o efeito Belo Monte aumentou o número de denúncias contra o país. Em 2012, o Brasil
sofreu 96 denúncias e chegou a ser o terceiro com mais demandas. O México é o primeiro da lista, seguido de
Colômbia, Chile, Peru e Argentina. Nesses países, aumentaram as denúncias. Não é o problema do caso em
si, mas o que representa em termos de agenda de desenvolvimento. Os Estados, as comunidades indígenas e
os projetos de desenvolvimento, todos têm que ver como vão tratar desse tema.

No que diz respeito à jurisprudência da Corte sobre indígena, esta tem realizado uma interpretação
evolutiva da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que tem servido de parâmetro para vários países
da região: reconhecimento de direitos territoriais em Nicarágua, Paraguai e Suriname; indígenas privadas
de liberdade em Honduras; massacres e execuções sumárias de indígenas na Guatemala e Colômbia entre
outros.

No caso brasileiro o grande desafio é construir uma cultura em que os juízes e Cortes brasileiras
levem em consideração os Tratados de Direitos Humanos e a Jurisprudência das Cortes internacionais de
Direitos Humanos.

Segundo Piovesan (2012, p.87), é escassa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que im-
plementa a jurisprudência da Corte Interamericana, destacando-se, até novembro de 2009, apenas e tão
somente dois casos: a) um relativo ao direito do estrangeiro detido de ser informado sobre a assistência con-
sultar como parte do devido processo legal criminal, com base na Opinião Consultiva da Corte Interameri-
cana n. 16 de 199937; e b) outro caso relativo ao fim da exigência de diploma para a profissão de jornalista,
com fundamento no direito à informação e na liberdade de expressão, à luz da Opinião Consultiva da Corte
Interamericana n. 5 de 1985.

Como bem expressa Piovesan (2012), o Sistema Regional Interamericano simboliza a consolidação
de um “constitucionalismo regional”, que objetiva salvaguardar direitos humanos fundamentais no plano in-
teramericano. A Convenção Americana, como um verdadeiro “código interamericano de direitos humanos”.

Por fim, no caso específico dos conflitos indígenas, o ativismo jurídico na esfera internacional torna
propícia a construção de uma agenda de direitos humanos sobre desenvolvimento, autodeterminação, reco-
nhecimento indígena e meio ambiente, controle de convencionalidade e principalmente, o aprofundamento
sobre em qual projeto de sociedade acreditamos.

CONCLUSÃO

O reconhecimento, na Constituição de 1988, dos direitos originários inerentes aos povos indígenas
não tem sido suficiente para evitar graves violações, até porque a proteção dos direitos não se dá pelo simples
reconhecimento formal.

Os conflitos realizados por setores econômicos dominantes, morosidade governamental na condução


de procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas, a omissão do poder público e a políti-
ca de desenvolvimento do governo têm contribuído para ações de violência. Apesar de todos os conflitos, os
povos originários não têm silenciado. Pelo contrário, vêm resistindo e travando uma intensa luta na busca da
implementação do Direito Constitucional das comunidades indígenas a ter suas terras tradicionais.

O ativismo jurídico transnacional realizado por atores ligados a Organizações Não Governamentais -
ONGs tem tido relevante papel na luta por igualdade de direitos de grupos vulneráveis e por problematizar a
importância de compatibilidade das leis nacionais e internacionais de direitos humanos.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O ativismo jurídico na esfera internacional torna propícia a construção de uma agenda de


direitos humanos sobre desenvolvimento, autodeterminação, reconhecimento indígena e meio ambiente,
controle de convencionalidade e principalmente, o aprofundamento sobre em qual projeto de sociedade acre-
ditamos.

No caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos-SIDH, vale salientar a sua importância


como ferramenta de garantia de direitos humanos, apesar de sua modesta força política.

A denúncia de Belo Monte é exemplo da modesta reversão das graves violações direitos humanos, em
nível interno. No entanto, o caso tem sido objeto de definição de diretrizes para obras em todo o continente,
a exemplo da construção de estradas na Bolívia e dos conflitos entre mineradoras e comunidades no interior
da Colômbia. A luta pela efetivação dos direitos humanos tem dimensões transnacionais.

O Sistema Interamericano vem cumprido um relevante papel no sentido de fortalecer protagonismos


a favor das vítimas, chamar atenção para as violações de direitos humanos e reforçar as lutas sociais, na bus-
ca da construção da cultura de direitos humanos e consolidação do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

ICAZA, Emilio. Belo Monte pode gerar jurisprudência na OEA: depoimento [28 de outubro de 2013].
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BERNADES, Marcia Nina. Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública
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SALGADO, Juan Manuel. El convenio 169 de la OIT: comentado y anotado/Juan Manuel Salgado;
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SIEDER, Rachel. Multiculturalism in Latin America: indigenous rights, diversityand democracy.


Inglaterra: Palgrave/ILAS, 2000.

617
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

quo. Por isso, é difícil acreditar em fundamentos ideológicos ou nos ideais proclamados que prometem a cura, pacificação ou solução social – cabendo ao pós-ideológico encarar a realidade de forma pragmática.

Diante da fundamentação teórica supramencionada, o conceito de pós-ideologia pode ser configurado em: superação ideológica baseada no reconhecimento do cinismo político das fundamentações e

promessas supostamente ideológicas. Uma nova perspectiva pragmática ao enfrentamento dos obstáculos reais considerando todas as condições de resolução do problema.

Portanto, pode-se associar o modelo cooperativo com a pós-ideologia? É possível na medida em que o modelo cooperativo surge em um momento neopositivista, ou seja, superação dos paradigmas

racionalistas do século XIX, contrapondo-se a qualquer tipo de geometrização social e um contato maior com a realidade.

O modelo cooperativo não significa dar mais atribuições ao magistrado para fins de discricionariedade. O modelo clama por maior diálogo entre as partes, destarte o juiz não se torna o protagonista, muito

menos o interventor. O magistrado serve na contribuição da instrumentalidade do processo. Ou seja, efetivar a tutela jurisdicional no escopo do cumprimento do direito material.

O momento dogmático atual se inclina na tendência pós-ideológica quando se concentra no problema da efetivação – não se apoiando em qualquer promessa jus ideológica; especificamente na temática

processual em busca de resultados práticos: “o processo não é um jogo, em que o mais capaz sai vencedor, mas um instrumento de justiça, com o qual se pretende encontrar o verdadeiro titular de um direito”.(BEDAQUE,

1997, p. 74)

REFERÊNCIAS

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo, 2a ed., Malheiros, São Paulo, 1997,

BOBBIO, Norberto. A Teoria da norma jurídica. São Paulo: EDIPRO, 2001.

_________________. O positivismo jurídico; lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.

EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma Introdução. São Paulo: Boitempo, 1997.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2 ed. São Paulo: Atlas. 2008

_______________. A função social da dogmática jurídica. São Paulo: Atlas. 2015

GRASSI DE GOUVEIA, Lucio. Cognição Processual Civil: Atividade Dialética e Cooperação Intersubjetiva
na Busca da Verdade Real. In: Fredie Didier Jr. (Org.). Leituras Complementares de Processo Civil. 2007, p, 188

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003

KUHN, Thomas. Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

OVÍDIO, A Baptista da Silva. Processo e ideologia. Rio de Janeiro: Forense. 2004

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Di-
reito. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O


COMBATE DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS

Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso


Doutora em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Diplomada em
Estudos Avançados (DEA) pela mesma Universidade e especialista em Relações
Internacionais na era da Globalização pela Universidade Católica de Pernambuco
(Brasil). Professora da Universidade Católica de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa
“Direitos Fundamentais: Instrumentos de concretização”. Integra, em nível de pós-
doutoramento, programa de pesquisa em ciências sociais, crianças e adolescentes na
América Latina da rede CLACSO (Centro Latino Americano de Ciências Sociais) / CINDE
(Centro Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano. Centro cooperador da
UNESCO).

Luize Ivila Santos da Rocha


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

Larissa Gabrielle Silva de Andrade


Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco

SUMÁRIO: Introdução; 1. Definições importantes e Aspectos gerais do Tráfico Humano para fins
de Exploração Sexual; 2. Migração Clandestina ou Tráfico de Migrantes; 3. A inaplicabilidade dos
direitos fundamentais e seus efeitos para as condições de existência do tráfico Humano; Conclusão;
Referências.

INTRODUÇÃO

Sabe-se que a Organização das Nações Unidas ao publicar a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão almejava a proteção dos direitos voltados a garantia da dignidade da pessoa humana. Direitos
que, por sua vez, são ameaçados pelas organizações criminosas que efetuam cada vez mais a prática de cri-
mes bárbaros contra os seres humanos, como é exemplo, o crime de Tráfico de pessoas.

O referido tema surge como um amplo assunto a ser discutido, uma vez que além de ferir inúmeros
direitos fundamentais, engloba temas como a migração, a exploração de terceira pessoa, o cárcere e, ainda,
a linha tênue existente entre o proveito e o exercício da prostituição. 

1. DEFINIÇÕES IMPORTANTES E ASPECTOS GERAIS DO TRÁFICO HUMANO PARA FINS DE


EXPLORAÇÃO SEXUAL.

Inicialmente, faz-se necessário realizar alguns comentários sobre o fenômeno da Migração e sobre os
crimes de Tráfico de Pessoas e Tráfico de Migrantes ou como também é chamado de Migração clandestina.

Neste sentido, é mister lembrar que o homem sempre migrou, seja por motivos ideológicos, políticos,
religiosos, geográficos. Enfim, ele sempre migrou em busca do novo. Na atualidade, vivencia-se uma mi-
gração fundamentada no poder econômico, haja vista a separação das economias em centrais e periféricas
gerando, por sua vez, um cenário mundial caótico.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Ora, resulta obvio que com o mundo dividido em ricos e pobres, bem como fundamentado em ideias
garantistas de capital e mercadoria sugira o deslocamento daqueles em condição de vulnerabilidade àqueles
Estados desenvolvidos e, por isso, com melhores condições de trabalho. Neste sentido, veja-se as palavras de
Kurz

A migração não é nada novo na história da modernização, mas, sim, há um


erro na avaliação ao dizer que as pessoas migram livremente em busca de
melhores condições. É um processo coativo. Os pobres são livres para vender
sua mão de obra, porém fazem isto porque não têm condições para contro-
lar sua existência. A transformação da sociedade capitalista numa situação
mundial produziu na sociedade de exclusão. O ser humano participa de um
sistema no qual vende abstratamente sua mão de obra e integra uma en-
grenagem (montada) para produzir acumulação infinita de capital... (KURZ
Apud: MARINUCCI; MILESI, 2011, p. 14).

Importante dizer que o fenômeno demográfico da migração consiste no deslocamento de pessoas pelo
espaço geográfico, sejam eles permanentes ou temporários. Os movimentos migratórios podem se diferenciar
segundo vários aspectos, dentre eles, o tempo de duração e o espaço de deslocamento.

Já no que se refere a migração para a prática do crime de tráfico humano, cumpre destacar que esta –
a migração - pode ser legal ou ilegal, ou seja, na primeira hipótese referente a migração legal o sujeito, vítima
do tráfico humano atravessa a fronteira de sua cidade, estado, região e até país por vontade própria - muitas
vezes ludibriado por propostas de emprego ou de ganhos que não se cumprem - e, somente, quando de sua
chegada ao destino final é submetido a toda e qualquer sorte.

Já na segunda hipótese, o indivíduo traficado está submetido a condição de travessia em ilegalidade,


pois que não desejou atravessar, foi submetido em razão da força ou da coação a tal travessia para posterior
exploração no destino final.

2. MIGRAÇÃO CLANDESTINA OU TRÁFICO DE MIGRANTES.

Ultrapassado esse primeiro momento, faz-se necessário compreender alguns conceitos como é exem-
plo a ideia da Migração Clandestina ou, como também é chamada, Trafico de Migrantes. Tal conceito resulta
importante porque é comum confundir o referido fenômeno com o Tráfico de Seres Humanos.

Neste sentido, as autoras consideram interessante traçar um paralelo entre o tráfico humano e a mi-
gração clandestina, pois que naquele – ou seja, no tráfico de seres humanos o indivíduo é enganado, forcado,
coagido de alguma forma a submeter-se a tal situação de ilegalidade, já na migração clandestina o indivíduo
sabe, busca e muitas vezes até paga para que terceiro lhe atravesse pela fronteira dos Estados. (É, por exem-
plo, o caso da fronteira Mexico e EUA).

É em outras palavras afirmar que enquanto no tráfico de pessoas o consentimento da vítima é obtido
por coação, força, violência de maneira geral, na migração clandestina a vítima sabe da ação criminosa e per-
mite que ela ocorra. No entanto, faz-se necessário lembrar que pessoas em condição de migração clandestina
possam converter-se em vítimas da violação de direitos humanos. Porém, note-se que tais circunstâncias são
consequencias e não causas da migração clandestina. (VILLALBA, 2003, p. 25).

É importante destacar que de acordo com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
contra o Crime organizado Transnacional, relativo ao combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre,
Marítima e Aérea a definição de tráfico de migrantes seria:

à promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício


financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num
Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Já a definição de tráfico de pessoas é estabelecida internacionalmente no artigo 3º, “a”, do Protocolo


Adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção,
Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças , da Organização das Naçoes
Unidas, de 15 de novembro de 2000, (mais conhecido como Protocolo de Palermo), que dispõe:

a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a


transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ame-
aça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao enga-
no, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma
pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A explora-
ção incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras
formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou
práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. “

Essa norma é considerada um modelo que serve como base para a confecções das normas incrimina-
doras na legislação interna dos países.

No Brasil temos a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que acolhe a definição do
Protocolo Adicional, conforme artigo 2º do Decreto Presidencial 5.948, de 26 de outubro de 2006:

Art. 2º Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão “tráfico de pessoas”


conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição
do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que a define como
o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimen-
to de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação
de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra
para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou
serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão
ou a remoção de órgãos.
(...)
§ 4º
A intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do transporte,
da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de
exploração também configura tráfico de pessoas.
(...)
§ 7º
O consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração do trá-
fico de pessoas.”.

Essa Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é voltada para três eixos prevenção,
repressão, atendimento e proteção às vítimas. Posteriormente à essa política, foi promulgado o I Plano Nacio-
nal de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - Decreto 6.347, de 8 de janeiro de 2008, com validade entre os
anos de 2008 e 2010. Atualmente está em vigor o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,
aprovado pela Portaria Interministerial 634, de 25 de fevereiro de 2013, do Ministério da Justiça, Secretaria
de Direitos Humanos e Secretaria de Política para as Mulheres, com objetivos aprovados pelo Decreto 7.901,
com vigência de 2013 a 2016.

Nessa perspectiva, analisando as definições de tráfico humano pode-se perceber que o tráfico de pes-
soas possui três elementos principais: ação, meio e fim, quais sejam, a primeira delas refere-se a ação, onde

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

se observa o recrutamento, transporte, transferência, alojamento e acolhimento. Em seguida, o meio que,


por sua vez, está fundamentado no uso da ameaça, força ou outras formas de coação, rapto, fraude, engano,
abuso de autoridade, abuso de uma situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos
ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de ex-
ploração). Por fim, a finalidade que de maneira genérica se considera a ideia de exploração e de maneira
específica, a exploração sexual, do trabalho e do corpo enquanto comercio de órgãos.

É importante destacar que para a configuração desse crime é preciso à combinação de, pelo menos,
um dos itens de cada elemento que foi mencionado anteriormente. Outro ponto de fundamental importância
é que não é necessária que a exploração se consume para a caracterização do tráfico humano, basta a
intenção de explorar o traficado.

Entre as finalidades do tráfico humano a exploração sexual é sem dúvida a que mais ocorre na Amé-
rica Latina e no mundo. A prova dessa tendência, pode ser demostrada no relatório de abordagem mundial
feito pela UNODC em 2014 que constatou que a exploração sexual era a finalidade do tráfico humano mais
ocorrente na América Latina, cerca de 54%. É importante destacar os dados de outras localidades que com-
provam que a exploração preponderante no mundo é a sexual, Europa 66%, África e Oriente Médio 53%,
Ásia Leste, Sul da Ásia e Pacífico 26%. Outra fonte que confirma a grande ocorrência do Tráfico para fins de
exploração sexual é o Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, que verificou o período de 2005 a 2011,
e constatou que a maior incidência do tráfico internacional de brasileiros é para fins de exploração sexual.

Tendo em vista tudo que foi dito até agora, é possível afirmar que o combate ao tráfico de pessoas
fundamentado no objetivo primordial de impedir que as pessoas - vítimas desse crime - sejam equiparadas
a seres irracionais e a coisas garantindo, assim, o instituto do Direitos Humanos e os direitos fundamentais
faz-se mais do que urgente.

2. A INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SEUS EFEITOS PARA AS CONDIÇÕES


DE EXISTÊNCIA DO TRÁFICO HUMANO.

É fato que os direitos fundamentais e humanos devem ser positivados pelo Estado. No entanto, cum-
pre destacar que mesmo positivados sua persecução encontra barreiras diversas de social, político e econômi-
co que terminam por gerar a inaplicabilidade do direito constitucional, promovendo, por consequência, uma
prática abusiva de crimes contra a humanidade.

Se não é assim, note-se que o tráfico humano, tema do trabalho em comento, é um dos exemplos
mais clássicos de crime contra a humanidade e, pelo menos no Brasil, segundo a Secretaria Nacional de Jus-
tiça, só em 2014 o referido crime registrou 355 casos, quase cem casos a mais que no ano anterior. Estima-se
que mais da metade dos indivíduos traficados tenham servido aos fins de exploração sexual.

Ora, depois do todo exposto, sabe-se que o tráfico de seres humanos submete o individuo a uma
condição díspar a de ser humano, através do cárcere, coação, tortura psicológica, livre exploração do corpo
(seja para venda de órgãos ou para a prostituição), dentre outras práticas absurdas, o tráfico humano fere o
direito a vida, liberdade, saúde, segurança, dignidade sexual e principalmente o principio constitucional da
dignidade da pessoa humana, principio supremo da carta maior e que rege todos os direitos fundamentais.

Como um crime que fere direitos inerentes à condição humana e que ocorre em todo o mundo, atin-
gindo as mais variadas nações, o Tráfico Humano deve ser analisado pela ótica constitucional e ser enfrenta-
do com práticas nas quais estejam todas as nações interligadas afim de combate-lo.

Neste sentido, a conduta do Estado para o combate a esta problemática, deve ir muito além das já
conhecidas sansões, pois que estas apenas atuam em um momento posterior, ou seja, de repressão propria-
mente dita. Faz-se necessário atuar de maneira preventiva no intuito de evitar que o mesmo sequer aconteça.

Assim, cumpre, então, perguntar: como estabelecer medidas preventivas de combate ao tráfico? Ora,
sabe-se que referida prática, quase sempre está fundamentada na falta de informação das vítimas e de suas

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

famílias. Por isso, a mobilização social no sentido de criação de políticas públicas capazes de promover co-
nhecimento através da informação planejada e estratégica faz-se mais que urgente nos diferentes Estados,
principalmente, naqueles considerados periféricos.

E quando se fala em informação planejada e estratégica pensa-se em processos de informação que


vão desde a educação para a migração consciente até a compreensão de como se realiza o tráfico humano,
pois o cidadão que deseje migrar por motivos econômicos pode perseguir seu anseio, mas informado do pro-
cesso migratório legal e dos meios como se realizam o tráfico humano, evitando ou, pelo menos, dificultando,
assim, a prática do referido fenômeno.

Desta forma o Estado responde – através do Direito constitucional – para a garantia efetiva da dig-
nidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais dos seus cidadãos, pois ao mesmo tempo em
que promove o acesso à educação e a informação, atuando de modo preventivo, gera a desestruturação ou,
ainda, desarticulação das redes de promoção e ajuda ao tráfico humano.

Atualmente, no cenário mundial a Convenção de Palermo, já citada neste trabalho, é considerada


atualmente o instituto mais abrangente no combate à criminalidade organizada, uma vez que, prevê medidas
técnicas especializadas de investigação, controle e combate à criminalidade organizada.

Referido Protocolo incentiva, desta maneira, a cooperação e a assistência entre os Estados, visando
desarticular o crime organizado, pois sugere que os Estados membros devam criar mecanismos de denúncia
e serviços de assistência às vitimas, para que estas sejam tratadas de fato como vítima de abusos graves.

No Brasil o Decreto nº 5.948 de 2006 criou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pesso-
as (PNETP), que define o compromisso de combate, no âmbito nacional, por meio da participação do Estado
e da sociedade civil.

CONCLUSÃO

Os direitos humanos e fundamentais, como enfatizado em todo o curso do trabalho, tratam-se de


direitos essenciais à vida humana, é apenas através da garantia deles que pode-se reverter de fato a situação
dos países com altos índices de tráfico humano. 

A mobilidade social na ajuda às investigações, ao combate e a divulgação de informações que possam
ajudar na prevenção do tráfico, é também um importante suporte do Estado para evitar essas práticas brutais. 

É através do vínculo entre Estado e cidadãos, na garantia da aplicação constitucional e de práticas


alternativas de combate, que deve-se buscar a recuperação das vítimas e a erradicação do tráfico humano. 

REFERÊNCIAS

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623
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624
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS


DROGAS

Victor de Goes Cavalcanti Pena


Graduando em Direito – Universidade Católica de Pernambuco. Email: victor_goess@
hotmail.com

Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes


Graduando em Direito – Universidade Católica de Pernambuco. Email:
danyellerolimlopes@gmail.com

SUMÁRIO: Introdução; Desenvolvimento; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

A guerra às drogas é travada ferozmente no atual cenário brasileiro, esta é justificada por argumen-
tos contraditórios, como a “questão da saúde pública” e pelo argumento da proteção dos cidadãos contra o
grande “mal” do país, as drogas ilícitas. Hoje, esta política proibicionista, propagadora da guerra às drogas,
é o campo mais fértil para a ampliação crescente do poder punitivo, que representa perigo aos direitos fun-
damentais (KARAM, 2002).

Diferentemente do que a grande mídia passa os traficantes não possuem as características dos gran-
des mafiosos italianos, e não exercem aquele papel por uma questão de escolha. É a falta desta que os leva
a esse “estilo” de vida. O mercado da droga ilícita é compartilhado em sua maioria, por pessoas negras e
moradores das periferias. Marca de uma historia opressora e escravista, a pele continua a sofrer por erros do
passado. A vida nas favelas não é fácil, não se possui muitas oportunidades, desde a infância, e muitas vezes
a única forma encontrada pelos jovens, que se veem sem condições, é o trafico de drogas ilícitas.

A prisão dos pequenos traficantes é o que movimenta o cárcere brasileiro, no caso atual, paralisa. Os
presos são aqueles que avisam quando os policiais estão vindo, que apenas entregam o pacote com a droga,
que levam mensagens, que se movimentam dentro da favela e observam. São pegos sem armas e levados para
o cárcere, lugar que se tornará uma escola para aqueles que adentram (ZACCONE, 2007).

O presente trabalho pretende demonstrar que a guerra às drogas, se valendo do pressuposto de prote-
ção à saúde pública, serve na realidade para criminalizar um determinado grupo na sociedade e que mesmo
com toda a repressão e violência praticada por aparelhos estatais, o consumo de drogas não tem diminuído.
Para realização de tal objetivo faz-se necessária a revisão bibliográfica sobre o tema para melhor fundamen-
tação e critica acerca da temática abordada.

DESENVOLVIMENTO

Inicialmente, faz-se mister entender que a guerra as drogas pode ser entendida como uma política
amplamente difundida no mundo, inaugurada por assim dizer nos Estados Unidos e que teve enorme eco na
América Latina e em especial, no Brasil.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O marco dessa política se deu com o presidente americano Richard Nixon, na década de 70, anun-
ciando que uma das grandes batalhas dos Estados Unidos seria contra o uso de drogas. Utilizando-se que uso
de substâncias ilícitas corrompia o indivíduo e ainda afetava a produtividade, tão valorada em um sistema
neoliberal.

Percebe-se que a política proibicionista – o qual demoniza a droga e prega a imagem do traficante
como o grande inimigo da sociedade, que põe em risco “as pessoas de bem” – trata na verdade de uma ne-
cessidade pós-moderna de criar novos inimigos e fantasmas, de promover uma nova caça às bruxas. Assim,
de certo modo, busca atender a uma parcela da população que constantemente demanda maior repressão e
intervenção do sistema penal nas mais diversas áreas da vida social, acreditando que desta maneira alcança-
rá a almejada segurança e haverá, de fato, controle da criminalidade. (BOITEUX, 2006)

O movimento proibicionista ganha enorme força e respaldo de movimentos como o de lei e ordem:
ideologia de defesa social que clama por medidas mais enérgicas e punitivas de um Direito Penal. Este que
deveria ser visto como ultima ratio, se tornou o primeiro modo de resolver os problemas da sociedade, basea-
do no argumento de que a proteção da saúde pública é alcançada a partir da punição do máximo de pessoas
que usam e traficam as drogas ilícitas. Premissa, esta, bastante criticada tendo em vista que a autolesão, ação
não tipificada pelo Código Penal Brasileiro, é a única consequência para os usuários, sem prejudicar a saúde
pública.

A não diminuição do uso e da venda de entorpecentes gera a ineficiência da proposta do proibicionis-


mo, visto que tais ações pouco se alteraram depois do implemento de tal política. O argumento da proteção
à saúde pública acaba por se tornar falho, assim como a política, pois não há qualquer tipo de preocupação
real com a saúde do usuário, com uma possível política de redução de danos, com a oferta de trabalho para
aqueles que foram pegos pelo tráfico sejam absorvidas no mercado de trabalho, tampouco preocupação com
as possíveis motivações que levaram estas pessoas a praticarem tal conduta.

Nota-se na realidade, a superlotação de cadeias pela apreensão de muitas pessoas com pequenas
quantidades de drogas. Houve um verdadeiro encarceramento em massa. Também é assaz perceptível que a
partir do momento que os entorpecentes passam para a ilegalidade, é impossível o controle sobre as drogas
e sua qualidade, bem como se houver algum tipo de adulteração na produção acarretando, por conseguinte,
um maior risco para a saúde do usuário que desconhecerá a procedência do que está consumindo. A situa-
ção exposta mostra mais uma vez, como a saúde publica não está de fato sendo o centro da preocupação do
modelo proibicionista.

Outro dado que comprova como essa política repressora, que crê no Direito Penal onipresente e ex-
tremamente punitivista é falha, é que com a criminalização da venda, por exemplo, o usuário terá de entrar
no mundo da ilegalidade para conseguir a droga, o que gera na prática uma verdadeira indústria do crime,
todo um sistema que é extremamente lucrativo e pautado na ilegalidade promotor de uma cadeia de corrup-
ção.

No atual cenário brasileiro, o tráfico de entorpecentes caracteriza um “estado de guerra”. Esta é


travada entre as forças de segurança e os famigerados traficantes, que são em sua maioria pessoas de pele
negra, pobres e moradores de periferia, ou seja, os marginalizados socialmente. Estes acabam por se tornar
bodes expiatórios de uma rede maior do que as pequenas ações que fazem quando pegos. (BOITEUX, 2006)

No Brasil o maior número de prisões é por tráfico de drogas, entretanto, os presos não são os “grandes
empreiteiros da droga”, e sim aqueles pequenos traficantes, que possuem as funções menores, como entre-
gar a droga ao comprador, avisar quando os policiais estão entrando na favela ou passar mensagens. Afere-se
que as ações policiais geralmente não alcançam o núcleo do tráfico, mas os bodes expiatórios, que alimentam
a demanda pública por punições para o fim da guerra contra as drogas. Mesmo com o grande número de
prisões que ocorrem decorrente do ato, o número de drogas circulando nas cidades só cresce assim como o
de usuários.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Nessas prisões dos pequenos traficantes vemos a prevalência de uma cor de pele, esta seria a negra.
A descriminalização da pele surgiu com a vinda dos escravos negros, transportados em péssimas condições
de vida pelos navios negreiros, para o Brasil. O interesse econômico era o único objetivo almejado pelos co-
lonizadores, que pouco se importavam com o choque cultural do povo que fora retirado a força do seu o país
de origem e que se viam obrigados a trabalhar em proveito daqueles que os haviam colonizado. Assim, a mão
de obra escrava era simplesmente uma peça lucrativa no mercado que deveria ser dominada a todo custo, já
que o poder sobre a carne prevalecia. Mesmo depois de lutas e sacrifícios, aqueles que antes eram escravos
não conseguiram ascender de vida, tornando-se meros trabalhadores braçais, visto que a marginalização da
cor ficará impregnada socialmente.

Essa marginalização seguiu o social brasileiro até os dias mais recentes, quando as favelas foram se
expandindo e seus moradores, em sua maioria, negros e com trabalhos pequenos foram tomando postos so-
ciais mais notáveis e por muitas vezes dentro das casas da classe média, como empregadas domésticas e mo-
toristas. Mas nem sempre há oportunidade para essas pessoas, que já marginalizadas pelo lugar onde moram,
e pela cor da pele, sofrem com a falta de aberturas sociais para seu crescimento, e acabam por serem taxadas
como perigosas, por apenas residir em um local que possui índices de criminalidade. (ZACCONE, 2004)

Não adotaremos uma política de vitimização, mas procuraremos olhar para a realidade brasileira, de
maneira que possamos ver como essas pessoas acabam seguindo para o tráfico. Com a falta de oportunida-
des presente, aqueles que não podem ou não querem seguir uma carreira de estudos, para ter a chance de
possuir um diploma, acabam por procurar empregos dentro da própria favela para sustento próprio e ajuda
domestica, já que o emprego de apenas uma pessoa da casa não pode sustentar integralmente a todos. Esses
empregos passam de entregador, a caixa de mercado ou padaria, de faxineiro, a motoboy, até que desaguam
no tráfico.

Muitos escolhem seguir esse caminho, por achar mais fácil e que terão a chance de fazer fortuna com
esse ato. Outros são levados a entrar na rede do tráfico por necessidade, e uma vez dentro desta fica difícil de
sair. Essas pessoas que vão formar a leva dos pequenos traficantes e que vão receber toda a carga de punição
esperada pela sociedade, que em sua maioria são negros, continuam a protagonizar uma história de dor e
sofrimento de sua cor, que acaba sendo vista como perigosa.

É introduzida dentro do senso comum a ideia de que todo morador da favela é um traficante em
potencial, ou que estes são perigosos e representam um risco ao patrimônio, que é a grande preocupação da
sociedade brasileira atual. A pergunta feita seria: será mesmo que esses moradores de periferias, margina-
lizados por sua condição social, em sua grande parte, negros e com subempregos oferecidos como “grande
chance” seriam o perigo do social? Seriam eles os grandes disseminadores do mal que é a droga ilícita?

O tráfico de entorpecentes é, sem dúvidas, um perigo social, devido à vasta gama de práticas ilícitas
que dele decorrem. Entretanto, não devemos centralizar a culpa naqueles indivíduos, que possuem peque-
nos papeis no tráfico, por possuírem o estereótipo do traficante brasileiro. Estes acabam por ser o lado mais
frágil, uma vez que idealizam o tráfico como uma boa oportunidade para “fazer dinheiro” e não podem ser
o grande alvo social por toda uma parcela da sociedade que decide se utilizar dessas drogas ilícitas que são
condenadas e nem sempre são tão perigosas quanto as lícitas vendidas em farmácias, que podem gerar mais
vício e perigo para o corpo quanto às outras. (ZACCONE, 2004)

Os indivíduos procuram constantemente os culpados, e demandam punições que serão equiparadas


as dos crimes hediondos. Então fazem o pensamento do sistema punitivo se voltar para o lugar que se tornou
o local de venda de drogas, as favelas. Esses ambientes se tornam estados de exceções, ou seja, dentro daque-
le espaço o ordenamento não se faz presente, e atitudes como o assassinato podem acontecer sem problemas,
pois é isso que é demandado pelo social que não se encontra ali. As ações policiais nas favelas só confirmam
cada vez mais essa situação de exceção em que se encontram, com as batidas policiais e embates com trafi-
cantes, vemos que foi estabelecida uma situação de caos, de pura guerra, e aqueles moradores da localidade
são esquecidos e quando atingidos são vistos apenas como meros efeitos colaterais.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Criou-se uma visão social de que o traficante é o monstro da sociedade, ele possui cor, possui rosto(s)
e possui uma “casa” (as favelas). Logo a função das forças policiais é eliminar essa ameaça constante a saúde
pública que nos cerca. O que não é observado é como a situação atual tornou-se seletiva. Como anuir com o
alto número de prisões vendo que não há uma mudança na criminalidade do país? A sociedade demanda de
uma classe social, que tem a cor negra como majoritária, respostas por atitudes que são consideradas peque-
nas perante a rede do tráfico.

Com esse estereótipo criado sobre a imagem dos traficantes o sistema visa suas punições nessas pes-
soas, que como já dito, exercem muitas vezes, papeis menores no tráfico. Sentimos a necessidade de expres-
sar a incongruência que estas punições possuem, pois, como podemos estabelecer punições, respaldadas em
lei, e ver que na grande parte dos presos pelo tráfico as condições sociais e a cor da pele são as mesmas? Não
há uma buscar por um sistema mais igual, tudo que se procura é saciar a demanda social por punições, o que
acaba inflando o cárcere e este não exerce a sua função principal, que seria a reintegração social.

A seletividade nas prisões acaba por gerar uma homogeneidade nos presídios, ou seja, com o maior
número de presos sendo de pele negra e pobres, os presídios se tornam um local o qual irá haver a predomi-
nância da cor e da condição social. Já marginalizados fora daquele território punitivo, os indivíduos que são
presos acabam por perder chances que ainda poderiam vir, já que agora vão possuir o tabu de ser um ex-pre-
sidiário. Como já dito, o atual sistema prisional por sua superlotação e má organização acaba por perder a sua
principal característica que seria a ressocialização do indivíduo na sociedade, o que termina por intensificar
o processo de exclusão para com aqueles já marginalizados socialmente.

Esses “excluídos” tomaram o rótulo de disfuncionais, jogados em subempregos ainda piores, com
um salário muito pequeno para sustentar a família e a si mesmo, correndo o risco diariamente de passar ne-
cessidades, quando já não passam. Assim, mesmo depois de terem passado por prisões por conta do tráfico,
vão recorrer a este novamente para poder prover para si e sua família, com isso aumentam os números de
reincidentes nos presídios brasileiros.

CONCLUSÃO

Em vista do exposto no artigo, observamos que a política proibicionista em relação as drogas, não é o
meio mais efetivo de combate ao tráfico que ocorre no Brasil. Tal política apenas busca métodos de gerir um
problema maior que buscas e apreensões dentro das favelas brasileiras, assim acarreta em um alto índice de
encarceramento e uma não diminuição da criminalidade.

O proibicionismo brasileiro, em desacordo com a proposta inicial, acaba por selecionar os membros da
sociedade que iria punir, pois nem todos aqueles que exercem funções na rede do tráfico podem ser alcan-
çados. Para saciar a demanda social, o poder policial recai sobre aqueles mais marginalizados pela condição
social, e que em sua maioria possuem a pele negra. Estes sofrem por representarem disfunções sociais e
acabam por tornarem-se bodes expiatórios, ou seja, serão usados como sacrifício para satisfazer a demanda
por segurança de parcela da população que possui poder suficiente para exigir. Essa seletividade põe em ris-
co todo o sistema punitivo, já que não haverá punições justas se tudo que é visado é o encarceramento. Não
podemos adotar uma medida extrema de punições, pois iremos prevalecer nas condições atuais do sistema
carcerário, ou seja, superlotado e falho. Além de todas essas prisões não resolverem, não há uma preocu-
pação com investigações sobre a rede completa do tráfico, prende-se os pequenos traficantes, que logo são
substituídos, e os “chefes” continuam com seu sistema de distribuição, que muitas vezes envolve policiais.

A guerra ao tráfico, mais precisamente ao traficante, de forma seletiva continuará a existir se não
houver uma mudança nas políticas de combate. Não deve haver uma preocupação apenas com o pequeno
traficante que é preso e logo substituído, e, na maioria dos casos, volta aos delitos quando solto, mas deve-se
preocupar com a rede do tráfico, quem a controla, quem pode mandar e desmandar, esses que devem ser in-
vestigados para que o combate ao tráfico funcione corretamente. O mais efetivo para o estado seria a adoção
de políticas de controle de drogas pela sua legalização, se o estado legalizasse as drogas mais recorrentes no
tráfico, poderia controlar o montante vendido dos produtos e diminuir os índices de criminalidade no Brasil,

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

já que as drogas seriam assunto estatal, mas essa conclusão ainda se encontra distante no país, devido às
visões preconceituosas e amedrontadas quanto às drogas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MO NO SISTEMA PENAL E NA SOCIEDADE. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2006 (Capí-
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CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático da lei
11.343/06. São Paulo Saraiva, 2013 (PARTE I - pgs. 53-162)  

KARAM, Maria Lucia. Revisitando a sociologia das drogas. ANDRADE, Vera Regina P. de. Verso e reverso do
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RAMOS, Silva; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do


Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005

ZACONNE, Orlando. Sistema penal e seletividade punitiva no tráfico de drogas ilícitas. Rio de Janeiro: Re-
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629
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE


CONVENCIONALIDADE

Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão


Graduando do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Thiago Oliveira Moreira


Graduando do curso de Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

SUMÁRIO: Introdução; 1. A discussão normativa acerca do fenômeno migratório; 2. A compatibili-


dade do direito interno ao direito internacional; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO

O mundo na atualidade vive sob os efeitos de um processo de globalização, do qual inúmeros efeitos
advêm, seja de forma positiva ou negativa. Dentre estes, presencia-se nos dias de hoje uma intensificação do
fenômeno migratório.

É evidente que ao longo dos anos, concomitantemente ao desenvolvimento desta conjuntura delineada
de uma sociedade de riscos compartilhados, aumentou-se a exclusão social e surgimento de grupos vulnerá-
veis, como o são os migrantes, gerando efeitos de desrespeito aos Direitos Humanos e princípios internacio-
nais instituídos, como o da livre-circulação, colocando em embate as legislações internas de caráter restritivo
em detrimento dos tratados e convenções internacionais acerca do tema.

Com o cenário deixado por essas mudanças globais se constata verdadeiro momento de crise e com-
plexidade para o direito interno estatal, que não se mostra capaz de regular e efetivar o controle das relações
sociais de forma benéfica à todas as partes somente por meio de soluções locais, não acompanhando o cami-
nhar da humanidade. Trata-se e um quadro de ocorrência mundial, devendo os Estados de forma conjugada
dispor sobre o tema.

Assim, o Direito Internacional é o único meio capaz de combater esses problemas através da correta
e efetiva aplicação e compatibilização das normas internas com as tratativas internacionais concernentes ao
tema, observando o vetor incondicional dos direitos humanos, seguindo os parâmetros normativos dos trata-
dos, convenções e decisões compostos no âmbito do Sistema de Proteção dos Direitos Humanos.

Dessa forma, para tratar do tema e pensar acerca de mecanismos viáveis de solução, ao se tratar do
papel de proteção do Direito Internacional e seus instrumentos apresentados, vê-se como principal entrave
à consecução do objetivo, o Direito Interno brasileiro concernente ao tema das migrações. Com efeito, será
delineado o arcabouço jurídico nacional ao redor do arcaico Estatuto do Estrangeiro, Lei nº 6.815/80, que
demonstra a forma como o Brasil encara o fenômeno na atualidade, ou seja, de forma retrógrada, seletiva, e
com prejuízo aos direitos internacionalmente concebidos.

Trata-se, então, de abordar o fenômeno migratório em atenção à regulamentação brasileira sobre o


tema e sua compatibilidade com o arcabouço jurídico instituído pelo Direito Internacional.

630
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Diante do que se expôs, indaga-se: O ordenamento jurídico interno brasileiro que trata do assunto das
migrações é compatível com os tratados e convenções internacionais ratificadas pelo país e com as decisões
no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dando efetividade aos direitos humanos dos
migrantes?

Assim, será demonstrada a condição de incompatibilidade do ordenamento brasileiro hodierno con-


cernente às migrações, e a necessidade de sua adaptação ao Direito Internacional, apresentando verdadeiro
dever de convencionalidade das futuras e presentes disposições.

Dessa forma, vê-se como objetivo demonstrar a situação dos direitos humanos dos migrantes em um
contexto de mundo globalizado, dispondo sobre a possibilidade do tratamento do tema de forma iluminada
pela doutrina dos direitos humanos, compatibilizando o direito interno brasileiro ao internacional.

Abordar-se-á a discussão normativa do fenômeno migratório através da regulamentação na ordem


internacional e interna brasileira; tratando ainda das perspectivas futuras quanto a legislação interna em vias
de desenvolvimento de uma nova Lei de Migrações, em substituição ao anacrônico Estatuto do Estrangeiro,
possuindo esta nova regulamentação um dever de convencionalidade no tocante aos tratados e convenções
internacionais da área, conforme será visto por meio da doutrina esposada.

1. A DISCUSSÃO NORMATIVA ACERCA DO FENÔMENO MIGRATÓRIO.

Deve-se agora analisar o aparato legal que permeia o tratamento da questão migratória, partindo des-
de noções históricas do regramento deste fenômeno. A Constituição Federal, como se sabe, está norteada por
princípios e valores fundamentados no respeito à dignidade humana, à cidadania e à prevalência dos direitos
humanos nas relações internacionais.

Já estas afirmações constitucionais, somadas aos dizeres dos tratados internacionais que também pri-
vilegiam os direitos humanos, seriam suficientes para se considerar inválida, em muitos aspectos, a vigente
lei de Estrangeiros – Lei 6815/80.

Ao longo do desenvolvimento legislativo brasileiro, as diretrizes da sua política variaram em momen-


tos históricos diferentes. Verificou-se que as grandes mudanças da regulação das migrações no país foram
causadas, sobretudo, por fatores políticos e econômicos e que em nenhum momento houve predominância
para os direitos humanos.

Para início das disposições normativas, parte-se do pressuposto maior em abrangência do Direito
Internacional, que deve iluminar a ordem jurídica interna. No que toca à proteção internacional dos direitos
dos povos migrantes, não obstante reconheça-se claramente as restrições impostas pela legislação nacional,
são vários os instrumentos internacionais de que o Brasil é parte que lidam da matéria, recomendando tra-
tamento em igualdade da proteção dos indivíduos.

Com efeito, a OIT se ocupou de questões migratórias, estabelecendo duas Convenções Internacio-
nais, a nº 19 e a nº 97, anteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), nas quais o Brasil é
parte ratificante. Já em 1975 retomou ao tema, com a Convenção 143, que têm como objetivo ainda ressaltar
a diminuição da “relatividade” da situação do trabalhador migrante no país de destino, onde geralmente lhe
são negados direitos sob o argumento de ordem pública, proteção dos interesses de nacionais ou segurança
nacional, como no Estatuto do Estrangeiro1.

Já no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) diretamente, para a proteção e promoção
dos direitos humanos dos migrantes, só em 1990 foi aprovada a Convenção Internacional sobre a proteção
dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias na Assembleia Geral. Tal
diploma internacional determina que os migrantes tenham seus direitos respeitados, independentemente

1  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA,
Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos
e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015.

631
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

da sua situação, seja ele legal ou ilegal (art. 7), e que tenham acesso à Justiça para resolução de problemas
como o de retirada compulsória (art., 22, 4), protegendo ainda inúmeros outros direitos de ordem política,
econômica, social e cultural.

A Declaração Universal de 1948 informa que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os


membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz no mundo (...) e que os estados-membros se comprometem a promover em cooperação com as Nações
Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais”.

Já o Pacto de São José refere que os direitos de uma pessoa não decorrem de sua nacionalidade ou
não àquele país, mas do só fato de sua condição humana, razão porque se tem uma proteção internacional,
de natureza convencional complementar da que oferece o direito interno constitucional dos estados ameri-
canos.

No que tange ao âmbito nacional, cabe trazer à discussão alguns aspectos históricos que perfazem o
percurso brasileiro de formação da regulamentação do fenômeno migratório no país, delineando também as
conjunturas que moldaram tal normatização.

No Brasil o marco inicial do tratamento legal da imigração pode ser tido com a promulgação do De-
creto de 25 de Novembro de 18082, regulamentando a concessão de sesmarias aos estrangeiros residentes,
objetivando a atração de povos europeus3.

Já com a Lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850 4, a chamada Lei de Terras, definiu-se a forma de
acesso à terra pública através da compra, articulando o direcionamento dos migrantes ao povoamento terri-
torial, por meio da concessão de lotes voltados à exploração agrícola 5, configurando já nessa época, através
de medidas restritivas, um caráter eminentemente seletivo de migrantes destinados a locais estratégicos.

Com a chegada da República com a Constituição de 18916 foram criadas formas de aquisição da na-
cionalidade brasileira, atribuindo aos brasileiros naturalizados os direitos de cidadão nato, dentre os quais a
alistabilidade e elegibilidade eleitorais, diminuindo o caráter restritivo de tratamento ao migrante documen-
tado e regularizado. Tem-se ainda que a legislação da época tinha o objetivo de classificação dos migrantes,
dividindo-os em grupos aptos ou não ao trabalho na plantação de café bem como à colonização do espaço.

O período entre as duas grandes guerras, configura um momento no qual as legislações de todo o
Globo caracterizam-se por aspectos restritivos, o que foi acompanhado por uma queda brusca do comércio
internacional e fechamento de fronteiras. Eram políticas migratórias caracterizadas por barreiras à imigra-
ção de estrangeiros que considerados indesejáveis e pela utilização da prática da expulsão através de atos
normativos.

Nesse período, acompanhando a depressão da década de 1930, instaurava-se no Brasil uma ordem
peculiar de governo, era a ascenção de Getúlio Vargas ao poder. Neste contexto, o que mais se destaca e im-
porta a esta pesquisa abordar é a chamada Lei de Cotas.

2  BRASIL. Decreto de 25 de Novembro de 1808. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/


dim251808.htm>. Acesso em: 02/11/2015.
3  SEYFERTH, Giralda. Imigração e Nacionalismo: O discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil. In Migrações In-
ternacionais: Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001, p.138.
4  BRASIL. A Lei de Terras, 1850. Disponível em <http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/novoconteudo/acervo/catalogo/
leis_terras.pdf>. Acesso em: 23/10/2015.
5  SEYFERTH, Giralda. Imigração e Nacionalismo: O discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil. In Migrações In-
ternacionais: Contribuições para Políticas. CNPD. Brasília: 2001, p.138.
6  BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro de 1891. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em 25 out. 2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Durante a entrada do Estado-Novo, em 1937, o governo intervinha impositivamente, por meio de


propostas de inserção nacional dos estrangeiros baseadas em seus projetos nacionalistas, com aspectos clara-
mente seletivos e restricionistas7.

Durante o período de Guerra-Fria foi desenvolvida a teoria da Doutrina da Segurança Nacional. Nes-
ta toada, o Governo da Ditadura Militar brasileira institucionalizou a ideia da Segurança Nacional no que se
refere ao fenômeno migratório no Brasil, quando em 1980 foi editada a Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980,
sob a promessa de que o governo iria alterá-la nos meses seguintes, já que havia sido parcamente discutida8.
Entrava em vigor o Estatuto do Estrangeiro, ainda vigente até os dias de hoje, da mesma forma em que foi
publicado, e eivado de todas as críticas e anacronismos.

Esta Lei, regulamentada pelo Decreto nº 86.715/81, versa de forma direta sobre os direitos e deveres
dos migrantes em solo brasileiro, não se restringindo a disposições pontuais acerca da matéria. De início,
já se deixa clara a preponderância do interesse e vontades do poder nacional (mesmo que não se dê a real
valoração destes conceitos) em detrimento dos seres humanos imigrantes, quando no art. 1º se diz que “em
tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil
e dele sair, resguardados os interesses nacionais”.

Condiciona-se a existência e eficácia dos direitos conferidos à segurança nacional e aos objetivos so-
ciais, econômicos e políticos do Brasil, em detrimento dos direitos humanos e das disposições protetivas em
âmbito internacional.

Demonstrando mais uma vez o caráter excludente e seletivo da regulamentação das migrações de
que se falou também no capítulo I desta pesquisa, o art. 16º, parágrafo único do Estatuto enuncia que com
a imigração se objetiva fornecer a diversos setores econômicos um aporte de mão de obra especializada, vi-
sando o aumento de produtividade, bem como assimilação de tecnologias e captação de recursos financeiros
para os determinados setores.

Assim, notadamente o Estatuto do Estrangeiro dificulta o processo de migração legal para o território
brasileiro. Quanto à entrada de mão-de-obra não especializada se vê a possibilidade tão-somente se superada
a barreira burocrática a se transpor, tornando o objetivo de trabalhadores não especializados de alta impro-
babilidade9.

Além dos aspectos ressaltados, também chama a atenção a restrição à liberdade de locomoção impos-
ta pela Lei 6.815/80, como afronta ao princípio da livre locomoção, não sendo compatível com o que estabele-
ce o art.5º, XV do texto constitucional, assim como os princípios e atos internacionais. Nesse sentido, tem-se
que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assegura a liberdade de movimento e residência “dentro
das fronteiras de cada Estado” (artigo 13, parágrafo I).

Sob o manto da proteção ao trabalhador nacional, o Estatuto do Estrangeiro estabelece ainda uma
série de restrições aos direitos laborais dos migrantes.

Contudo, a despeito do que a normativa interna dispõe, o migrante goza de direitos trabalhistas tan-
to quanto um nacional, entendimento reiterado na Opinião Consultiva 18/03 da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em resposta à requisição do Governo mexicano em maio de 2002, deixando claro que o
trabalhador migrante em situação regular ou irregular, a partir do momento que se encontra nos polos de

7  KOIFMAN, Fábio. O Imigrante Ideal: O Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945) Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro: 2012.p. 30.
8  CARVALHO RAMOS, André de. Direitos dos estrangeiros no Brasil: a imigração, direito de ingresso e os direitos dos estrange-
iros em situação irregular. In: Igualdade, diferença e direitos humanos. Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2008. P.729.
9  BARALDI, Camila. Cidadania, migrações e integração regional – notas sobre o Brasil, o Mercosul e a União Europeia.
3º Encontro Nacional da ABRI – Governança Global e Novos Atores n. 1 v. 1 (2011) ISSN 2236-7381. Disponível em: <http://
educarparaomundo.files.wordpress.com/2011/07/baraldi-abri-2011.pdf.>. Acesso em: 09, out. 2015.

633
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

uma relação de trabalho, passa a ser detentor de direitos trabalhistas de per si, tendo em vista o princípio da
igualdade e não discriminação como pedras de toque do direito internacional dos direitos humanos10.

O Estatuto peca novamente ao negar aos “estrangeiros” os direitos políticos, pois através da participa-
ção política, se exerce direitos inerentes ao regime democrático, caracterizando tal inserção como um “fator
importante de coesão social”11. Neste cenário, salienta-se que o Brasil é o único da América do Sul que não
confere o direito ao voto aos migrantes dentro do país em nenhum nível da administração pública12.

Além disso, este diploma legal proíbe ao estrangeiro exercer atividade de natureza política; organizar, criar ou
manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difu-
são, exclusivamente entre compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem;
organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar (art. 107); ser representante
de sindicato ou associação profissional, ou de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada (art. 106);
possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar; ou ainda prestar
assistência religiosa a estabelecimentos de internação coletiva (art. 106).

Ademais, da análise de seus dispositivos também se verifica que é permitido ao Ministro da Justiça, sempre que
considerar conveniente aos interesses nacionais, impedir a realização, por estrangeiros, de conferências, congressos e
exibições artísticas ou folclóricas (art. 110); expulsar o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança
nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimen-
to o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais; entregar-se à vadiagem ou à mendicância; ou desrespeitar
proibição especialmente prevista em lei para estrangeiro (art. 65).

Resta claro, então que o Estatuto do Estrangeiro é permeado por dispositivos anacrônicos no que
toca aos direitos humanos. Está-se frente a um instrumento legal apartado da Constituição de 198813 e dos
tratados internacionais e decisões, o que representa a negação de toda a evolução internacional na matéria, e
demonstra a necessidade de se percorrer o caminho de um verdadeiro Controle de Convencionalidade deste
diploma, o que se fará em capítulo específico14.

Nesse contexto, defende-se a expansão da titularidade de direitos aos migrantes, adequando-se a le-
gislação ordinária não só à Carta Maior, mas também ao que foi pactuado e decidido em âmbito internacional,
visto que está claro o conflito entre a Constituição Federal, Tratados Internacionais e a vigente lei disciplina-
dora da situação dos migrantes no Brasil, sendo necessária uma disposição tratando da migração como fato
social, consentâneo aos direitos humanos, enxergando o migrante não como um estrangeiro, mas como um
cidadão detentor de direitos e deveres para com a formação étnica, cultural e econômica nacional 15.

Diante das críticas ao Estatuto, foi no sentido de mudar o paradigma legislativo nacional, adequan-
do-o à lógica dos Direitos Humanos que o Ministério da Justiça propôs a adoção da nova Lei de migrações
destinada a romper com a lógica instituída na ditadura, fato que não está se verificando por inteiro.

A proposta, assim como o paradigma atual, ainda privilegia os interesses nacionais (estatal) em detri-
mento dos direitos humanos dos migrantes, subvertendo o dever de convencionalidade que se confere à nova

10  ANDENA, Emerson Alves. Transformações da Legislação Imigratória Brasileira: Os (des)caminhos rumo aos direitos
humanos. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
11  BRASIL. Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Centro de Direitos Humanos e Cidadania
do Imigrante (CDHIC). São Paulo: 2011. p.27.
12  BRASIL. Informe sobre a legislação migratória e a realidade dos imigrantes. Centro de Direitos Humanos e Cidadania
do Imigrante (CDHIC). São Paulo: 2011. p.65.
13  FARENA, Marilza N. F. C. Algumas notas sobre direitos humanos e migrantes. JURA GENTIUM Rivista di filosofia del
diritto internazionale e della politica globale: 2008. Disponível em: <http://www.juragentium.org/topics/migrant/pt/ferretti.htm>.
Acesso em: 10/10/2015.
14  ANDENA, Emerson Alves. Transformações da Legislação Imigratória Brasileira: Os (des)caminhos rumo aos direitos
humanos. 2013. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
15  MILESI, Rosita. Por uma nova Lei de Migração: a Perspectiva dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://educarpa-
raomundo.files.wordpress.com/2010/06/milesi-rosita-por-uma-nova-lei-de-migracao.pdf>. Acesso em: 08/10/2015.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

lei das migrações, o que continua criando um grande número de migrantes em situação irregular e sujeitos
a condições precárias de vida, e causando violação a direitos16.

Com efeito, resta ainda atender aos direitos políticos dos migrantes. A inclusão social dos migrantes
só será efetiva quando a cidadania brasileira for acessível a todos que aqui vivem e trabalham, podendo in-
fluenciar pela escolha dos líderes e representantes de seus interesses.

Deve-se ainda desfazer a confusão entre as situações que configuram o refúgio e a migração, e que
transforma ajuda humanitária em política de migração, pontual. Presenciou-se recentemente momentos
de crises, geradas por fluxos de migrantes internacionais, como os haitianos, por exemplo, que, pela falta
de legislação ou políticas adequadas, viram-se diante de violações aos direitos humanos e desgaste para os
governos envolvidos, evidenciando às dificuldades que deveriam ser enfrentadas na análise da questão mi-
gratória17.  

A mudança de paradigma em direção à uma nova Lei de migrações passa a considerar oficialmente o
fenômeno como tema de direitos humanos, encorajando a regularização da migração irregular, deixando ao
indivíduo nesta condição como menos vulnerável, com maiores possibilidades de inclusão social. Enquanto a
Lei nº 6.815 tratava de estrangeiros, a Nova lei deve trazer a conceituação do migrante de uma forma geral.

Desta forma, cabe tratar em seguida acerca da compatibilidade do ordenamento vigente com o ar-
cabouço internacional dos Direitos Humanos dos Migrantes exposto anteriormente, enunciando ainda a
necessidade legal convencional que os futuros dispositivos possuem.

3. A COMPATIBILIDADE DO DIREITO INTERNO AO DIREITO INTERNACIONAL.

A análise de qualquer ato normativo ou disposição legislativa sob a luz dos direitos humanos requer,
sobretudo, a investigação acerca da observância à base constitucional, bem como dos instrumentos interna-
cionais aos quais o Estado brasileiro pactuou.

Com efeito, ao se falar de adequação de leis infraconstitucionais aos ditames dos direitos humanos,
entende-se, por tradição arraigada ao pensamento jurídico brasileiro, estar se falando do controle de consti-
tucionalidade. Salienta-se, porém, que ao se defender que os tratados de direitos humanos no Brasil são tidos
materialmente como constitucionais, mesmo que não aprovados no quórum especial mencionado, a compa-
tibilidade das leis com esses tratados também deve ser feita ao se considerar a validade de normas no ordena-
mento jurídico brasileiro, atividade esta que deve ser exercida por meio do Controle de Convencionalidade18.

Portanto, faz-se imprescindível, no contexto aqui tratado de efetivação dos direitos dos migrantes
frente à ineficácia das normas internas arcaicas que tratam do tema, que se efetive o limite vertical material
consistente no controle de convencionalidade dessas leis diante dos tratados internacionais e decisões de
Cortes internacionais, que afirmará a incompatibilidade do direito interno, significando que a norma domés-
tica deve se adequar a ordem jurídica internacional, ou seja, não violando os preceitos de Direito Internacio-
nal que obrigam o país ao cumprimento destes instrumentos.

O uso do Controle de Convencionalidade se insere no sentido de “adaptar ou conformar os atos ou


leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano
internacional com reflexos práticos no plano de seu direito interno”19.

16  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA,
Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos
e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015.
17  BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Migrações internacionais no contexto da proteção dos direitos humanos. In: RAMINA,
Larissa; FRIEDRICH, Tatyana Scheila (Org.). Coleção Direito Internacional Multifacetado: Aspectos econômicos, políticos
e sociais. 7 v. Curitiba: Juruá, 2015.
18  MOURA, Luiza Diamantino. Tratados internacionais de direitos humanos e o controle de convencionalidade no
direito brasileiro. Espaço Jurídico, Chapecó, v. 15, n. 1, p.75-102, Jan-Jun, 2014. Semestral.
19  MAZZUOLI, V. de O. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, ano 98, v. 889, p.
105-147, nov. 2009.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Como exemplo dessa condição anacrônica de desrespeito se tem o Estatuto do Estrangeiro, apartado
da irradiação do tratamento internacional, contrariando a condição de vetor constitucional que os dizeres
afeitos ao princípio da dignidade da pessoa humana exercem.

O Estatuto possui diversos artigos que não deveriam mais ser aplicados após a promulgação da Cons-
tituição Federal de 1988, pois são incompatíveis com ela. Por exemplo, as restrições ao acesso à educação e
ao desenvolvimento do trabalho.

De início, entende-se como inconvencional de forma clara a seletividade da migração instituída a


partir do art. 16 do Estatuto, quando do tratamento da concessão do visto permanente, estabelecendo requi-
sitos rechaçados no âmbito dos tratados mencionados, que pregam a igualdade entre os migrantes, seja de
condições ou de direitos.

Vê-se da leitura de tal norma que se estabelece uma extensa lista de condições burocráticas para
que o migrate esteja em observância completa às exigências, em privilégio do que se defende no art. 2º
do Estatuto, “à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, socioeconômicos e
culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional”, entre outros pontos preocupantes.

Então, o desafio principal reside em substituir a abordagem dada pelo Estatuto do Estrangeiro para
um debate margeado pelas normas internacionais e decisões que promovem a proteção das migrações no
âmbito do Sistema Interamericano, fundamentado na proteção e na dignidade humana do migrante. Afir-
ma-se então, que a nova lei das migrações possui verdadeiro dever de convencionalidade para que possa
instaurar novo momento na regulamentação das questões migratórias.

Diante disso, é certo que a questão migratória merece espaço relevante no debate jurídico e jurispru-
dencial nacional, principalmente, sendo necessária a adequação da regulamentação e políticas de migração
nacionais às diretrizes internacionais. Tal movimento pode ser desenvolvido pelo funcionamento do Controle
de Convencionalidade e consequente declaração de inconvencionalidade de dispositivos do Estatuto do Es-
trangeiro, com a consequente promulgação de uma nova Lei das Migrações, instituindo uma nova política
migratória no Brasil, devendo o país ainda ratificar os dispositivos internacionais existentes e ainda não rati-
ficados na matéria, como é o caso da Convenção da ONU de 1990 e a Convenção 143 da OIT20, ou até mes-
mo como se viu no caso exposto com o afastamento do Estatuto no que ele não for cabível, principalmente
através da utilização das iluminações dos Direitos Humanos dos Migrantes.

CONCLUSÃO

Os movimentos migratórios configuram um dos fenômenos mais antigos do mundo, podendo se afir-
mar que a história do homem é ditada a partir de sua mobilidade ao longo dos tempos. Observou-se nessa
pesquisa que, ainda que muitos países tenham solidificado suas economias baseados no trabalho imigrante,
hoje, o mundo não mais vê estes fluxos humanos como propulsores econômicos, e sim como verdadeiras
ameaças e problemas.

Viu-se durante a discussão aqui procedida que o fenômeno das migrações internacionais aponta para
a necessidade de se repensar o mundo não com base na competitividade econômica e o fechamento das
fronteiras, mas, sim, na cidadania universal, na solidariedade e nas ações humanitárias, visando promover e
proteger os direitos desse grupo vulnerável, associando-os também ao benefício dos Estados. Entendeu-se,
portanto, que é preciso se proceder em função da inclusão e aceitação do migrante ao território e seio da
comunidade em suas atividades econômicas, políticas, sociais e culturais.

Conforme visto, os movimentos migratórios precedem, inclusive, a atual conjuntura globalizada mun-
dial, diante do que se discutiu até que ponto as migrações de hoje são ou não influenciadas ou fundamen-
tadas pela globalização. Perante tal confrontação, afirmou-se que existem razões para se acreditar que os

20  SÜSSEKIND, Arnaldo Lopes. Direito internacional do trabalho. 3. ed. São Paulo: Ed. LTr, 2000, p. 363.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

fluxos migratórios tomaram tal dimensão na contemporaneidade à consequência do desenvolvimento global


do sistema mundial que se opera de modo seletivo, relativo e excludente.

Tem-se um paradoxo marcante desta sociedade que é o fato de o mundo se globalizar e se abrir para
a livre circulação do capital, mercadorias e fatores de produção (incluindo mão de obra, mas a desejada), e se
fechar para aqueles indivíduos para os quais o ato de migrar foi imposto por condições sociais, políticas, eco-
nômicas ou de outra natureza, transformando os indesejados em irregulares ou marginalizados de direitos,
em prejuízos a esses grupos de pessoas, que se tornam vulneráveis às mudanças consubstanciadas.

Portanto, viu-se que a temática dos Direitos Humanos no cenário globalizado é permeada por con-
cepções contraditórias e violações constantes. Há uma verdadeira vedação a fluxos não desejáveis de pessoas
na pobreza, em busca de novas condições, e uma abertura àqueles que podem diretamente contribuir para
a economia da nação receptora, como se observou claramente na orientação do Estatuto do Estrangeiro bra-
sileiro.

Além disso, confirmou-se que, se visto com base nos direitos humanos bem como na preponderância
da ideia de família universal e cidadão cosmopolita, pode-se aportar importantes contribuições para os países
de chegada, de ordens econômica, cultural, laboral, etc.

Finda a discussão sócio-jurídica deste fato social, analisou-se o aparato legal internacional e nacional
que permeiam o tratamento da questão migratória, partindo desde noções históricas do regramento deste
fenômeno no Brasil, e suas influências, até a regulamentação atual.

Verificou-se então, que fatores políticos e econômicos são de grande relevância para as mudanças da
regulação das migrações no Brasil ao longo dos anos e em nenhum momento foram privilegiados os direitos
humanos. Somente na atualidade, com uma proposta de alteração da política migratória nacional, pode-se
pela primeira vez instaurar um marco regulatório no qual os direitos humanos dos migrantes poderão ser
respeitados, ou pelo menos regulamentados, caso aprovada as propostas em trâmite no Congresso Nacional.

Porém, diante das mudanças e formatos que as discussões congressistas tomaram, efetuando altera-
ções aos projetos de lei, entendeu-se que se estará em muitos aspectos mantendo anacronismos e erros do
vigente Estatuto do Estrangeiro, devendo-se avaliar melhor as proposições da Política Nacional elaborada no
âmbito do CNIg.

Para o tratamento das disposições normativas internacionais destacaram-se como paradigma, a De-
claração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seguida da qual se sucedem outros instrumentos
internacionais como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o Pacto de São José da Costa Rica
(1992), a Declaração Universal de Viena (1993), Convenções da Organização Internacional do Trabalho e a
Convenção para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares (1990).

Restando ao término dessa discussão a ideia de que para o ordenamento jurídico brasileiro se afinar
às disposições internacionais resta o grande passo de compatibilização da norma interna à internacional,
devendo ainda o país ratificar os documentos ainda não ratificados como a Convenção de ONU de 1990 e a
Convenção 143 da OIT, paradigmas de excelência no tratamento da causa, por abarcarem principalmente a
questão dos migrantes irregulares, negligenciados nas demais.

Findo o tratamento específico da legislação internacional e pátria concernente ao fenômeno migra-


tório, e observadas as peculiaridades existentes no relacionamento entre elas, chegou-se ao momento de
investigar a compatibilidade destas de modo técnico, a partir da análise pautada pelo Controle de Conven-
cionalidade.

Nesse sentido, afirmou-se que ao se analisar a compatibilidade vertical das normas no ordenamento
jurídico, não há mais a presença única da Constituição Federal como paradigma de adequação por meio do
Controle de Constitucionalidade. Deve-se efetuar a compatibilização normativa com os Tratados Internacio-
nais e decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos como novo parâmetro do chamado Controle
de Convencionalidade das normas estatais. Confirmou-se então a existência de uma dupla compatibilidade

637
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

vertical das normas do direito interno, qual seja: tanto com a Constituição, como com os tratados internacio-
nais.

Findo o tratamento geral e conceitual do Controle de Convencionalidade, discutiu-se o assunto en-


fatizando e afirmando uma necessidade de mudança paradigmática da legislação brasileira concernente
ao tema das migrações, atentando de forma mais delimitada para a inconvencionalidade de disposições do
Estatuto do Estrangeiro, posto que apartado da iluminação procedida pelo ordenamento voltado aos direitos
humanos instituído no cenário internacional pelos tratados e decisões debatidos.

Portanto, viu-se que o desafio principal reside em substituir a abordagem dada pelo Estatuto do Es-
trangeiro para um debate margeado pelas normas internacionais e decisões que promovem a proteção das
migrações no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, fundamentado na proteção e na
dignidade humana do migrante. Afirmou-se por fim, que a nova lei das migrações possui verdadeiro dever de
convencionalidade para que possa instaurar uma nova situação no tratamento do assunto.

Confirmou-se então as hipóteses levantadas para a problemática inicial, pois demonstrou-se a exis-
tência de uma globalização seletiva e excludente, que atua por meio dos interesses do Estado brasileiro
representado por meio de sua legislação específica sobre as migrações, que não se mostra adequada ao que
se estabeleceu internacionalmente, devendo tais normas superiores serem tomadas como parâmetro do
Controle de Convencionalidade, por meio do qual se confirma a inconvencionalidade de algumas normas do
Estatuto do Estrangeiro, bem como prega o dever de convencionalidade da legislação que virá sobre o tema,
clamando por uma necessidade de adequação ao momento vivido.

REFERÊNCIAS

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA:


UM DEBATE POSSÍVEL?

Wictor Hugo Alves da Silva


Acadêmico do 7ª período do curso de Direito do Centro Universitário Mauricio de Nassau
– UNINASSAU – Recife PE – E-mail: wictoralves@hotmail.com

SUMÁRIO: Introdução; 1. Presunção de inocência; 2. Considerações sobre processo penal; 3. O uso


equivocado da prisão preventiva; 3.1. A exceção que virou regra no Brasil; 3.1.1. Aplicação das Pre-
ventivas em Pernambuco; 3.2. A problemática temporal das preventivas; Conclusões; Referências.

INTRODUÇÃO

A prisão preventiva é o principio da presunção de inocência são dois institutos que parecem ser tão
antagônicos, porém como eles se relacionam no nosso sistema processual penal?

Antes de tudo, o presente trabalho não te por pretensão esgotar toda discussão acerca do tema,
mas sim levantar a discussão sobre algo grave que acontece no nosso sistema criminal. Um olhar atento
ao nosso sistema carcerário revela dados alarmantes, o numero elevado de presos preventivos no sistema
carcerário de Pernambuco. Isso nos leva a questionamento, se no código processo penal de 1940, que foi re-
cepcionado pela nossa constituição, a regra é a liberdade do individuo até que se tenha uma sentença penal
condenatória transitada em julgado, por que um número tão elevado de presos provisórios?

O sistema processual criminal brasileiro traz o instituto da prisão preventiva como uma medi-
da excepcional, e elenca quatro motivos taxativos para sua decretação: para garantir a instrução criminal,
garantir a aplicação da lei penal, garantia da ordem econômica e garantia da ordem pública. Este último é o
que merece a nossa atenção por ser um termo muito amplo, entrengando ao magistrado poderes demasiados
para privar a liberdade do indivíduo, não se podem esquecer que no processo penal o operador do direito que
lida com esta liberdade deve preservar esta ao máximo.

Como se pretendente demonstrar, por vezes a prisão preventiva vem “mascarando” o que na verdade
se trata de uma antecipação de pena, o que terminantemente proibido no sistema criminal brasileiro, isto
ficará nítido quando forem analisados quais argumentos os magistrados vêm utilizando para decretar ou
manter estas prisões.

O objetivo desse artigo e problematizar a relação tensa que existe entre os dois institutos, e observar
como os operadores do direito vêm de posicionando perante esta tensão, em específico o Tribunal de Justiça
de Pernambuco.

Para alcançar esse objetivo propomos uma revisão literária para observar o que a doutrina brasileira
vem pesando sobre o tema e como esta vem se posicionando. Além disso, de forma complementar propõe-se
uma analise quantitativa de dados, analisando as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco
nos anos de 2011 e 2012. E importante relatar que os dados a serem utilizados fazem parte de uma pesquisa
maior do CNJ que se encontra em andamento.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

1. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O estado evocou para si a tarefa de dirimir os conflitos, aplicando a lei ao caso concreto, pois e o único
que tem o poder de impor suas decisões, então por consequência evocou também para si o Direito de Punir,
tirando do particular o direito a “vingança privada”. É dever do estado proteger o conjunto social e segurança
da coletividade é também deve do estado resguardar as garantias fundamentais que são inerentes individuo.

O instituto da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro vem disposto da constitui-


ção federal, como uma garantia fundamental. Esse instituto é observado na sua forma mais rudimentar no
direito romano, porém durante a idade média, pode-se dizer que ele foi deixado lado, como diz Aury Lopes na
idade media o que regia era uma presunção de culpabilidade. Em 1789 a Declaração dos Diretos do Homem
e do Cidadão trouxe o instituto da presunção de inocência. Sobe as idéias iluministas e da revolução francesa
que trouxeram um olhar diferente sobre o homem, trazendo a garantia de sua liberdade perante um estado
absolutista e autoritário. Mais adiante o Pacto de São José da Costa Rica, que também traz o mesmo instituto,
e deste pacto o Brasil e signatário.

A presunção de inocência é uma característica do estado democrático de direito, no Brasil, a presun-


ção de inocência vêm na constituição federal. Nossa Carta Magna de 1988 e fruto de um momento onde o
país saía de um período de regimes totalitários, e tentando se consolidar com uma democracia. Esse insti-
tuto está expresso no rol das clausulas pétreas, ou seja, não pode sofre alterações com tendência a aboli-lo.

Art. 5.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes.(EC nº 45/2004)
LVII- ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal con-
denatória.

Esse instituto vem de forma muito clara na constituição, pode-se dizer que mais que um princípio, é
uma garantia, a doutrina diferencia muito bem o que seria princípio e garantia, porém não se faz necessária
fazer tal distinção, pois não é objetivo desse trabalho e isso não acarretará maiores prejuízos para compre-
ensão deste trabalho. Essa garantia deve ser entendida como um dever de tratamento do estado perante o
individuo. Como explica Aury Lopes (2014, p.218)

A presunção de inocência deve(ria) ser um princípio de maior relevância,


principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado.
Isso obriga o juiz não só a manter uma posição “negativa” (não consideran-
do culpado), mas sim uma postura positiva (tratando-o efetivamente como
inocente.

Por ser uma garantia fundamental deve ser respeitado mesmo que isso signifique a que um
possível culpado fique em liberdade. Dito isto fica claro que esse instituto vem para limitar o poder punitivo
do estado, evitando possíveis arbitrariedades.

Ante essa exposição do princípio pode-se extrair uma conclusão lógica, no Estado Democrático
Brasileiro a regra liberdade do indivíduo. Aqui começa a nossa problemática, essa regra não é absoluta, pois
nosso código de processo penal nos traz a figura das prisões cautelares, que limitam a liberdade do individuo
antes do antes do transito em julgado de sentença penal condenatória, que contraia aparentemente a idéia
da presunção de inocência.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE PROCESSO PENAL.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Antes de discorrer sobre as prisões provisórias, em específico a prisão preventiva, e importante fazer
algumas breves considerações sobre o processo penal.

O processo penal vem como um viabilizador do direito penal, desta forma como limitador da Jus Pu-
niendi que o estado e o titular, Aury Lopes Jr. (2014, p.41) se filia a uma postura onde o processo penal deve
ser visto como um instrumento de efetivação garantias constitucionais. Desta forma deve percorrer em sua
normalidade para que se atinjam suas finalidades.

O processo penal funciona como um verdadeiro sismógrafo da constituição de um Estado. Nesse


sentido complementa Aury Lopes Jr. (2014, p.42) que uma constituição autoritária vai corresponder a um
processo penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Ele vai alem dizendo que no caso se uma
constituição garantista como a nossa, deve corresponder a um processo democrático.

Dito isto e preciso fazer uma pequena observação, o nosso código de processo penal é da década de
40, onde o Brasil vivia um regime autoritário, porém foi recepcionado por nossa constituição que é da década
de 80, onde o país saia de um regime autoritário e voltada a um regime democrático. Apesar de sofre varias
alterações ao longo dos anos e algumas significativas, como as dos anos de 2008 e 2011, infelizmente o espí-
rito do nosso código continua o mesmo, inquisitivo.

O processo penal é meio para realização do Direito penal e este deve correr dentro da normalidade
esperada para que a finalidade seja alcançada. Uma das finalidades do Direito Processo Penal e a realização
do Direito penal que promove a pacificação social através da pena, quando for necessário.

O processo deve se pautar essencialmente pelo princípio do devido processo legal, preservando assim,
os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, como a presunção de inocência até o transito em julgado
da sentença, dentre outros direitos.

Para que o processo penal conclua sua finalidade e para que seu curso percorra na normalidade, em
obediência ao principio da razoável duração do processo, exitem as figuras das prisões cautelares que são: 1)
prisão em flagrante, que está disposto do art. 302 do CPP; 2) Prisão preventiva, que está disposto no art. 311
do CPP; 3) Prisão temporária, disposto na lei n. 7.960/89.

3. O USO EQIVOCADO DA PRISÃO PREVENTIVA.

O presente trabalho tem por objetivo fazer uma analise dessa medida cautelar em especifico, a prisão
preventiva. Como já mencionado, as prisões chamadas cautelares, tem por objetivo que o processo transcorra
na sua normalidade e cumpra sua função. Entretanto a decretação da prisão preventiva, como das outras
cautelares, deve obedecer a determinados princípios, “são os princípios que permitiram a coexistência de
uma prisão sem sentença condenatória transitada em julgado com garantia de presunção de inocência”
(LOPES JR., 2014, p. 809). Um princípio que merece toda nossa atenção e o da excepcionalidade, que está
disposto no art. 282, §6 do CPP “ A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substi-
tuição por outra medida cautelar (art. 319)”.

“O dispositivo é importante e consagra a prisão preventiva como último instrumento a ser utilizado,
enfatizando a necessidade de análise sobre a adequação e suficiência das demais medidas” (LOPES JR.,
2014, p. 809). Tal pensamento só vem reafirmar aquilo que a própria constituição federal vem traz como ga-
rantia fundamental, a presunção de inocência, onde teoricamente a liberdade é a regra do indivíduo. Porém
ao se confrontar com a realidade processual penal no Brasil, fica claro que tal princípio vem sendo deixado de
lado. Basta observar o alto número de presos provisórios no Brasil. Segundo um dos últimos levantamentos
do CNJ, em 2014, a população carcerária do Brasil e de 711.463 presos, desses presos 41% são provisórios,
em alguns estados como Pernambuco esse percentual chega a 50%. Esses dados só comprovam a realidade,
que as prisões cautelares tem deixado, há muito tempo, de ser exceção para virar regra no sistema processual
penal, servindo como meio de defesa social.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

O que por vezes ocorre é que por causa do clamor social o magistrado decide manter ou decretar uma
preventiva, como forma de acalmar o meio social, pois se tem a falsa idéia no meio social, que se o indivi-
duo esta preso este esta “respondendo pelos seus atos”. Para o homem comum que não faz parte do mundo
jurídico, não importa se é uma prisão provisória, prisão em flagrante, preventiva ou decorrente de sentença
condenatória, o que importa e que individuo está segregado. Como explica CRUZ ( 2011, p. 15);

Esses detalhes técnico-jurídicos não apenas são incompreensíveis à popula-


ção, como também lhe são irrelevantes. O que vale para o homem do povo é
a visão do autor de um crime sendo privado de sua liberdade logo em seguida
ao fato, o que, de algum modo já lhe soa como punição.

Esse discurso se incorporado pelo judiciário acaba legitimando uma lógica do sofrimento, onde prisão
e sinônimo de punição. Onde a punição só é eficaz quando o indivíduo sente na pele a responsabilização
pelos seus atos, ou seja, quando há privação de liberdade. Mas e preciso fazer um alerta, “Quem lida com a
liberdade humana jamais pode trata-lá como um assunto cotidiano” (CRUZ, 2011, p. 17).

A prisão preventiva é um instrumento eminentemente processual e não acautelador, pacifica-


dor social ou de defesa social, como vem sendo utilizado no discurso dos magistrados, essas são das funções
da pena que compete ao direito material (Direito penal). As cautelares sevem ao processo penal, para que
este cumpra sua função corretamente.

O diploma legal, no art. 312, na parte final, já traz requisitos básicos para que a prisão preventi-
va possa ser decretada, o primeiro e a existência de um fato punível e a existência indícios de autoria. “Unido
a esse fato, é necessário verificar a situação de perigo criada pelo acusado”. (VASCONCELOS, 2010, p. 141).
Como por exemplo, que o réu intimide testemunhas, altere as provas, risco de fuga, etc., comprometendo
assim que o processo siga na sua normalidade. Para decretação da prisão preventiva não é exigido um juízo
de certeza, e sim apenas um juízo de probabilidade.

Mas então o que seria o juízo de probabilidade? Segundo Fernanda Bestetti Vasconcelos: O juízo de
probabilidade diz respeito a situação na qual é verificado o predomínio de razões positivas para que seja de-
cretada a prisão cautelar do acusado. Além disso, não podem existir causas da exclusão da ilicitude (como
legitima defesa, por exemplo). (VASCONCELOS, 2010, p. 143).

Porém apenas a presença dos requisitos não é suficiente para se decretar a uma preventiva. O nosso
código de processo penal traz apenas quatro motivos que autorizam a decretação ou manutenção da prisão
preventiva, são eles: Garantia da instrução criminal, garantia da aplicação da lei penal, garantia da ordem
econômica e garantia da ordem pública.

Na garantia da instrução criminal se aplica aos casos onde o acusado, tenta atrapalhar o processo,
intimidando testemunhas, alterando provas, etc., ou seja, se utiliza de meios para atrapalhar a o processo
para que este se perdure, para que talvez seja beneficiado com a prescrição. A garantia da aplicação da lei pe-
nal, o medo reside no fato de existirem evidências concretas, de que se permanecer em liberdade o acusado
pode fugir a qualquer momento. Na garantia da ordem econômica, que foi uma alteração recente no nosso
código, se aplica com mais facilidade nas apurações de crimes financeiros, o receio reside onde, se o acusado
permanecer em liberdade este vai continuar a praticar crimes, dificultar as investigações etc. Na garantia da
ordem pública, aqui reside o tema central deste trabalho, pois diferente dos outros motivos esses é um termo
muito vago, afinal o que “Garantia da Ordem Pública”? Para isso não a resposta no nosso código de processo
penal, e doutrina também não chegou a um consenso, tão pouco a jurisprudência. Esse termo vago e essa
incerteza no mundo jurídico no tocante a este motivo entregam muito poder aos magistrados, para decidir
sobre a liberdade de um individuo, que algo tão precioso.

Não tem por objetivo esse trabalho, fazer uma analise na situação carcerária do país, tão pouco do
Estado de Pernambuco, mas é preciso fazer essa observação, é notório que o sistema carcerário do Estado de
Pernambuco se encontra em situação deplorável e foi recentemente classificado como um dos piores do país.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É para esse sistema que o preso preventivo é levado. Ilusão demais acreditar que nesse sistema exista
à separação entre os preventivos e condenados. É preciso lembra que a prisão “despersonaliza e dessocializa
o indivíduo, que se isola do mundo externo, passando a conviver em outro grupo social, formado por pessoas
portadoras de rancor e ódio, de angustia, de melancolia e tantos outros sentimentos presentes em que se vê
privando de sua liberdade” (CRUZ, 2011, p. 17) - estamos levando para esse ambiente um indivíduo que seu
futuro está cercado de incertezas, que não sabe por quanto tempo ira permanecer preso, tendo como funda-
mento um termo vago como a garantia da ordem pública.

3.1 A EXCEÇÃO QUE VIROU REGRA NO BRASIL.

Atualmente no Brasil vem crescendo muito o número de prisões preventivas, “sendo utilizadas como
medidas de proteção e defesa social, sendo colocado em segundo plano o juízo de necessidade da medida e
considerando o de conveniência” (VASCONECELOS, 2010, p. 141). Para reforçar esse discurso e necessário
trazer dados quantitativos.

Durante o 2º Encontro Nacional do Judiciário em 2009, organizado pelo CNJ, foram apresentados
alarmantes sobre a situação do sistema carcerário brasileiro, onde 42,7% dos presos no sistema carcerário
eram de presos provisórios. Utilizando um recorte, nos estados, foi possível ver que em Pernambuco chegava
a 56,7 % o número dos presos provisórios.

Em 2010 durante o 3º Encontro Nacional do Judiciário em 2010 os dados foram atualizados,


e foram divulgadas novas informações sobre os presos preventivos no Brasil. Os dados eram 44% dos presos
eram provisórios, enquanto em Pernambuco esse número chegava a 59%, um número alarmante.

Em 2014 o CNJ divulgou um estudo intitulado: Novo Diagnóstico de Pessoas presas no Brasil,
onde trazia dados mais recentes, porém ainda preocupantes, onde 41% dos presos no Brasil eram provisórios.
Em Pernambuco chegou a 50%, em comparação com os anos anteriores esse e menor, porém continua alto.

Gráfico 1 - Comparativo de presos provisórios no Brasil nos anos 2009, 2010 e 2014.

Fonte: Conselho Nacional de justiça, Encontros Nacioais do Judícario.

Os dados nacionais acima citados, só reforçam o argumento que no judiciário brasileiro considera
a prisão cautelar como regra e não como exceção, para dar força a esse discurso se utiliza de argumentos
vagos, porém com forte repercussão social, como defesa social, que repetindo não é função das cautelares,
que servem unicamente ao processo. A defesa social e uma das funções da pena. Então e necessário fazer
um questionamento, como esse discurso acautelador e de defesa social próprio da pena que os magistrados
usam para decretar ou matem a prisão preventiva não estariam eles antecipando á pena, o que é proibido no
nosso sistema?

Segundo dados divulgados pelo CNJ em Pernambuco os dados são mais alarmantes, pois o número
de presos provisórios já chegou a alarmantes 59% como mostra o gráfico abaixo.

Gráfico 2 - Percentual de presos provisórios em Pernambuco nos decorrer dos anos 2009, 2010
e 2014.

Fonte: Conselho Nacional de justiça.

Os números são mais que alarmantes, será necessário lembrar que esses presos ainda respondem
processos, é por isso pode ser absolvido, receber pena diversa da prisão, ocorrer à prescrição, etc. Quem está

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

preso cautelarmente sofre por demasiado com a incerteza de seu futuro, por não saber até que momento
ficará preso, se essa prisão vai durar dias, messes ou anos. É se ele, o individuo, for absolvido, ou se condena-
do receber pena que não enseje prisão? O tempo que ele permaneceu preso num ambiente completamente
inóspito, não será devolvido, por isso que a liberdade deve ser a regra no nosso sistema, como diz Ferrajoli,
a presunção de inocência deve ser respeitada mesmo que para isso se pague o preso de inocência de um
possível culpado.

Em 2015 o Ministério divulgou os seguintes dados, utilizando dados Do INFOPEN:

Gráfico 3 – Percentual de presos no Brasil.

Fonte: Ministério da Justiça – INFOPEN – Junho/2014.

Ainda segundo o levantamento nacional de informações penitenciárias - INFOPEN - junho de 2014,


ficou constatado que em Pernambuco 59% dos presos não possuem condenação. Deste percentual 62% estão
presos por mais de 90 dias. São dados que mais uma vez assuntam.

Estes dados nos levam a mais um questionamento, qual e o real motivo que os magistrados estão
utilizando para se tenta essa política de prisão?

3.1.1 APLICAÇÃO DAS PREVENTIVAS EM PERNAMBUCO.

Em levantamento de dados, realizado para uma pesquisa mais ampla sobre prisões preventivas em
Pernambuco, a qual busca analisar o impacto da Lei 12.403/11 no padrão de encarceramento provisório no
estado, foi verificado que os magistrados ao decretar ou manter prisão preventiva em sede de recurso ou Ha-
beas Corpus, vinham repetidamente se utilizando do motivo Garantia da Ordem Pública, e nem sempre os
casos eram assemelhado. Pelo motivo da pesquisa se em encontrar em progresso, tem se apenas dados par-
ciais, mas com tais dados é possível já chegar a algumas conclusões. Foram do total de 306 acórdãos, desde
universo foi feito o recorte de 46 acórdãos.

Gráfico 4 - Crime * Resultado Crosstabulation


Count
Resultado
Prisão Prisão Prisão
mantida revogada decretada
Crimes contra a 17 2 1
vida
Estelionato 2 0 0 2
Roubo e/ou ex- 6 0 0 6
torção
Tráfico de drogas 4 0 0 4
Porte/posse de 1 2 0 3
arma de fogo (lei 10826)
Concurso de cri- 7 1 0 8
mes
Outros 2 1 0 3
Total 39 6 1
Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização
e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”
Nota: Foram usados dados parciais, que é fruto de uma pesquisa mais ampla sobre prisões preventivas em Pernambuco, a qual busca
analisar o impacto da Lei 12.403/11 no padrão de encarceramento provisório no estado.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

Conforme se observa na tabela acima, em 39 dos 46 casos analisados, houve a manutenção da prisão
preventiva.

Por vezes ao manter as decisões ou decretar as prisões os magistrados se utilizam de uma lógica per-
versa, que ao manter o indivíduo preso o meio social está seguro, pois este segregado não voltara a delinqüir.
Porém em analise dos referidos acórdãos fica facilmente constatado que essa lógica da prisão baseada na
periculosidade do indivíduo além de não ser a função da preventiva, não faz sentido, pois muitos indivíduos
sequer possuem antecedentes criminais, como fica claro no quadro abaixo.

Gráfico 5 - Primariedade e antecedentes

Fre- Va l i d Cumu-
quency Percent lative Percent
Primário (a) 5 10,9 10,9
Primário (a) e por- 20 43,5 54,3
tador (a) de bons antece-
dentes
Primário (a) e por- 7 15,2 69,6
tador (a) de maus antece-
dentes
Portador(a) de 1 2,2 71,7
maus antecedentes e sem
informações sobre prima-
riedade
Não informado 13 28,3 100,0
Total 46 100,0
Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de
políticas públicas de racionalização do poder punitivo”

Por tanto no que toca à vida criminal pregressa do paciente ou recorrente, observa-se que o paciente
e primário em 34 dos 46 casos, isto é, em 69% dos casos. A primariedade é referida em conjunto aos bons
antecedentes (ausência de qualquer procedimento criminal em aberto) em 20 processos. Sendo assim, boa
parte dos presos provisórios não possuem condenação prévia.

Ainda em analise dos referidos acórdãos, quando verificados quais aos principais fundamentos utiliza-
dos, o da garantia da ordem pública aparece em 30, dos 40 acórdãos analisados em que se manteve a prisão,
isto é, em 75% dos processos se fez uso dessa justificativa. A garantia da aplicação da lei penal aparece em 14
dos acórdãos e o da garantia da instrução probatória, em 10 deles. Esses fundamentos podem aparecer em
conjunto, não sendo raras às vezes em que se aplicam cumulativamente.

Como se observa, o fundamento mais frequente é, sem dúvidas, aquele relativo à ordem pública.
Trata-se, como já afirmado neste artigo, do fundamento com maior amplitude semântica, servindo às mais
diversas pretensões decisórias.

Quando passamos à análise daquilo que significa ofensa à ordem pública, verificamos que a referência
à gravidade concreta ou abstrata do delito é o principal indicativo para se concluir que o demandante apre-
senta risco à ordem pública, aparecendo essa justificativa em mais de 50% dos casos. Também é frequente se
remeter ao risco de reiteração da prática delitiva, embora tenhamos afirmado que na maioria dos casos o réu
não possua condenação prévia, não se sabendo como afirmar que eles são, em si, um risco à ordem pública.

3.2 A PROBLEMÁTICA TEMPORAL DAS PREVENTIVAS.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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Como pode ser verificado anteriormente, as prisões em sua maioria estão baseadas na garantia da
ordem pública, que já é um termo vago é que ta um liberdade de interpretação enorme para o juiz que asso-
ciado com uma fundamentação que se diz pela defesa social ou para acautelar o meio social, acaba por legi-
timar essa lógica do sofrimento, onde a prisão e solução para tudo. Esse problema e agravado, pois o Código
de Processo Penal não traz um prazo específico de duração para as preventivas. O limite que o nosso código
é muito vago e aberto e não traz um limite temporal, apenas se limita a dizer que a prisão perdura enquanto
persistirem os motivos que ensejaram a sua decretação.

Gráfico 6 - Tempo da prisão até o julgamento pelo Tribunal

Fre- Va l i d Cumulative
quency Percent Percent
19 41,3 41,3
0 - 1 8 0 9 19,6 60,9
dias
181 a 365 7 15,2 76,1
dias
365 a 545 4 8,7 84,8
dias
Mais de 7 15,2 100,0
546 dias
Total 46 100,0
Fonte: banco de dados próprio elaborado com informações do banco de dados da pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de
políticas públicas de racionalização do poder punitivo”

Em apenas 19 dos 46 casos havia informação acerca da data da prisão do paciente ou recorrente, de
modo que nem sempre é possível calcular há quanto tempo a pessoa está presa quando demanda a liberdade
provisória ao tribunal. Dentre esses 19 casos em que consta a informação, se observa que o paciente ou re-
corrente estava preso a mais de 180 dias na maioria dos casos, isto é, que estavam aguardando o andamento
do processo presos há pelo menos mais de seis meses. Ainda, não é pequeno o número de pessoas presas há
mais de um ano, totalizando 11 dos 19 casos, isto é, mais do que a metade dos demandantes.

Esse dado lança um necessário olhar sobre o tempo da prisão preventiva no Brasil, como já foi dito
a normativa processual penal não prevê prazo fixo, deixando ao livre entendimento do julgador a análise do
excesso ou não do prazo. A jurisprudência já tentou chegar num consenso, chegando ao de 81 dias, mais tal
entendimento não veio a prosperar na pratica jurídica diária. Porém, é pouquíssimo razoável imaginar que
um cidadão presumido inocente possa passar mais de um ano presa preventivamente, sem que haja qualquer
desfecho em sua situação processual. Decisão desse tipo que privam o individua de sua liberdade, mas que
são completamente cercadas de incertezas sobre a sua duração, por vezes mascara uma verdadeira anteci-
pação de pena, que como se sabe é inaceitável num estado democrático de direito.

CONCLUSÕES

Numa leitura sistemática do código de processo penal fica evidente que na teoria a regra do sistema
penal brasileiro é a liberdade. Mas quando vamos à realidade prática, fica evidenciado que a regra é a prisão.
Para legitimar essa lógica do sofrimento onde prisão e punição são sinônimos. Como pode ser visto o judiciá-
rio usa argumentos que não são próprios das cautelares e sim da pena, para justificar uma prisão preventiva.
Com isso de forma indireta estariam os magistrados antecipando pena, o que já se sabe ser inadmissível no
processo penal brasileiro.

Não é admissível que a prisão preventiva que é um instituto processual seja desviada de sua função
de servir o processo e seja utilizado como uma forma de antecipação de pena, ainda que de forma indireta.

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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.

É sim possível a coexistência dos institutos da prisão preventiva e presunção de inocência, pois de
certa forma, eles não necessários para o equilíbrio do sistema penal. O principio da Presunção de inocência,
que e um dos norteadores do processo penal, vem para garantir que a liberdade do indivíduo seja mantida
durante todo processo, até que exista uma sentença com transito um julgado. O grande problema reside nos
termos vagos e imprecisos que entregam muito poder nas mãos do judiciário, que por vezes se excede e ao
invés de limitar o poder punitivo acaba por cometer injustiças.

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