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Miguel de Ávila Duarte

leite criôlo: da rede modernista nacional à


memória monumental do modernismo.
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em
Estudos Literários da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Teoria da Literatura.

Área de concentração: Teoria da


Literatura
Linha de pesquisa: Literaratura,
História e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Reinaldo
Martiniano Marques
Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2011
Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Reinaldo Martiniano Marques, a quem devo não apenas a inestimável
ajuda e incentivo que tornaram o presente trabalho possível, mas também a inspiração original do projeto
que nele resultou, derivada de uma matéria por ele ministrada na graduação.
Aos meus orientadores de iniciação científica – Prof. Luciano Cortez e Silva, do Departamento de
Letras da PUC-MG, e Profª. Eliana Regina de Freitas Dutra, do Deparatamento de História da
FAFICH/UFMG – que me guiaram nas primeiras incursões inquisitivas ao universo social, político e
cultural da intelctualidade brasileira dos anos 1920-1930.
À senhora Eunice Vivacqua (in memoriam) e à Profª Constância Lima Duarte, ligada ao Acervo de
Escritores Mineiros (AEM) da UFMG, que me franquearam, em diferentes momentos, o acesso ao
arquivo pessoal de Achilles Vivacqua, assim como à colega, então bolsista de iniciação científica, Juliana
Cristina de Carvalho, que me ajudou na consulta propriamente dita.
Ao Prof. Eduardo de Assis Duarte, a quem agradeço também a presença em minha banca, e ao
Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA) da Faculdade de Letras/UFMG, pelo interesse
que demonstraram na presente pesquisa, possibilitando-me apresentar, por diversas vezes, os resultados
parciais da minha pesquisa e ter o prazer de discuti-los com este grupo sério e dedicado de pesquisadores.
Dentre eles, devo destacar o então doutorando Adélcio de Sousa Cruz, a quem devo uma das conexões
mais interessantes do presente trabalho (ver p. 209).
Ao Prof. Eduardo Jardim de Moraes, a quem agradeço não apenas a presença em minha banca,
como também a gentileza de me enviar uma cópia de seu fundamental livro – infelizmente esgotado –
sobre a brasilidade modernista e me proporcionar a honra de uma troca de idéias sobre os assuntos aqui
tratados.
Ao meu grande amigo Cléber Cabral e ao Instituto Cultural Amílcar Martins, na pessoa de Amílcar
Martins Filho, pois com sua ajuda, o objeto do presente estudo poderá, enfim, se tornar disponível para
todos os interessados. Agradeço igualdade ao grande pesquisador Fernando Corrêa Dias, também
envolvido no projeto. À minha antiga admiração por ele como estudioso, soma-se agora a admiração
como pessoa.
Aos meus pais, Rodrigo e Myriam, que em todos os momentos me inspiraram, ajudaram, apoiaram
e confiaram em minha capacidade – não só no presente trabalho, mas em todos os âmbitos da minha
vida. À minha irmã, Nathalia, grande amiga e, recentemente, também colega pesquisadora. Ao meu avó,
Affonso, grande amigo, grande inspiração e ajuda insuperável no oficio de localizar os mais insólitos
livros e documentos.
À minha querida Viviane, companheira de todas as horas e de todos os trocadilhos, e aos meus
grandes amigos e amigas, pessoas que fazem a vida valer a pena, dentro e fora da Academia.
Ao programa de bolsas de mestrado do CNPq, garantia de que a presente pesquisa pudesse ser meu
único foco profissional.

2
Resumo
O presente trabalho investiga, sob ângulos variados, o periódico modernista

brasileiro leite criôlo, publicado em Belo Horizonte ao longo do ano de 1929 e dirigido

por João Dornas Filho, Aquiles Vivacqua e Guilhermino César. O relativo

esquecimento ao qual foi relegado é abordado a partir da noção de memória

monumental do modernismo. A sua inserção no meio modernista dos anos 1920,

descrito aqui como rede modernista nacional, é explorada tanto pela via da crítica

biográfica quanto pela comparação com a obras-chave do modernismo daquele

momento. Por fim, a face programática do periódico é relacionada com múltiplas

leituras das relações entre nacionalidade, raça, cultura e primitivismo presentes naquele

contexto, concebidas a partir do conceito clássico de transculturação narrativa.

Palavras-chave: leite criôlo, periódicos literários modernistas, transculturação

narrativa.

3
Abstract
This work studies, under multiple perspectives, the Brazilian modernist periodical

leite criôlo, published in Belo Horizonte throughout the year of 1929, edited by João

Dornas Filho, Aquiles Vivacqua and Guilhermino César. The relative forgetfulness to

which it was relegated is approached here through the notion of monumental memory.of

modernism. Its insertion in the modernist milieu in the 1920s, described here as national

modernist network, is explored not only through the bias of biographical criticism, but

also through the comparison with modernist major works from that moment. Finally,

the programmatic aspect of the periodical is related to multiple readings of the

relationships among nationality, race, culture and primitivism present in that context,

conceived from the viewpoint of the classic concept of narrative transculturation.

Key-Words: leite criôlo, modernist literary periodicals, narrative transculturation.

4
Índice

Introdução...................................................................................................................... 6
1. Grandeza e irrelevância: leite criôlo no quadro da memória monumental do
modernismo .................................................................................................................... 9
História monumental, memória monumental e processos de monumentalização...... 10
Camadas da memória monumental do modernismo .................................................. 17
2. Cavando um lugar de modernista: leite criôlo e a rede modernista nacional . 34
O consórcio do velho lirismo com a poesia moderna ................................................ 43
A revista que só tem estomago ................................................................................... 58
O grande atentado às boas letras............................................................................... 68
3. Não somente pela poesia: gêneros e temas em leite criôlo. ............................... 84
No Amazonas da poesia.............................................................................................. 86
A prosa salvadora....................................................................................................... 93
O processo de desnatar .............................................................................................. 96
O “criolismo” em exemplos ..................................................................................... 102
4. Antes de virar estrela: Sintomas e diagnósticos da cultura nacional na
Antropofagia, em Macunaíma, em Retrato do Brasil e em leite criôlo..................... 104
O provável evangelho da antropofagia .................................................................... 109
Macunaíma, anedotário folclórico de Retrato do Brasil .......................................... 117
Clichê do Brasil do visitador do Santo Ofício.......................................................... 128
O Retrato do Brasil de João Dornas Filho e companhia ......................................... 132
O chupim, Pai do Vira, é o criolismo ....................................................................... 138
Deglutindo o criolismo ............................................................................................. 142
5. Eugenia para a alma brasileira: pensamento racial, primitivismo e
transculturação narrativa nos anos 1920. ................................................................ 157
Transculturação narrativa e cidade letrada ............................................................ 165
Racialismo, eugenia, branqueamento e nacionalidade............................................ 172
Com a figura da mãe preta na cabeça ..................................................................... 184
O primitivismo entre a ignorância e a exata realização psíquica ........................... 199
Corra tempo ensanguentado .................................................................................... 207
Totalizando nossa maneira: Considerações finais ............................................... 212
Referências Bibliograficas ...................................................................................... 217

5
Introdução
O objeto do presente trabalho é o periódico modernista leite criôlo,1 sobre o qual

mesmo os estudiosos do modernismo brasileiro têm poucas informações. Pode-se dizer

inclusive que, até o presente momento, poucos pesquisadores chegaram a tomar

conhecimento do conteúdo ali publicado.

Decorre daí que a questão que se coloca é a mais básica: o que foi leite criôlo? A

resposta mais simples é que foi um periódico modernista, publicado em Belo Horizonte,

durante o ano de 1929, e dirigido por João Dornas Filho, Guilhermino César e Aquiles

Vivacqua. A primeira edição tomou a forma de tablóide, saído no dia 13 de maio,

comemorando a abolição da escravatura. As seguintes saíram como um suplemento

dominical do jornal Estado de Minas, ocupando entre metade e um quarto de página.

Nesse formato foram, ao todo, 18 edições, entre 2 de junho e 19 de setembro daquele

ano – numerados, no entanto, de I a XVI devido à repetição do cabeçalho nas edições

IX (28 de julho e 4 de agosto) e XIII (1º e 8 de setembro).

A mesma questão, desenvolvida com maior profundidade, será enfocada sob

diferentes perspectivas nos capítulos que se seguem. No primeiro, discutiremos

exatamente as razões que levaram leite criôlo à relativa obscuridade e qual seria o

possível interesse de revisitar a publicação. Para tanto, analisaremos brevemente o

vínculo entre valoração e memória no âmbito da literatura, que para os nossos

propósitos será explorado através da noção de memória monumental do modernismo.

1
Registramos o nome da publicação sempre em minúsculas, tal como aparece na documentação.
Seguindo a mesma lógica, a ortografia dos trechos citados a partir de fonte primária não será atualizada.
A opção pouco ortodoxa por transcrever os textos sem adequá-los à norma vigente se deve ao fato de que
as variações de ortografia são parte integrante da nossa documentação. Como mostra Tania de Luca
(1999, p. 247-249), as disputas e impasses entre defensores das ortografias etimológica e simplificada
acarretavam a ausência de qualquer norma oficial a respeito. Cada escritor, jornalista ou órgão de
imprensa podia assim adotar a ortografia que mais lhe agradasse. Tais opções muitas vezes se vinculavam
a posições intelectuais: adotar a ortografia simplificada significava, por exemplo, adotar uma perspectiva
nacionalista e antilusitana. Somada à experimentação da escrita modernista, tal situação leva a uma
enorme variação de grafias, inclusive na escrita de um mesmo autor. Optamos, assim, por não eliminar
esse traço significativo da documentação.

6
Serão também esboçadas as principais camadas da formação de tal memória e como

elas se relacionam com a exígua fortuna crítica de leite criôlo.

Os vínculos entre a publicação e o modernismo brasileiro como um todo, no

momento da circulação do periódico belorizontino, constituem o tema do segundo

capítulo. Ali será abordada a forma como os grupos de escritores modernistas

interagiam entre si e com o público em geral, através do que denominamos rede

modernista nacional. Narraremos, em seguida, a trajetória dos membros do grupo

“criolista” desde a sua adoção dos ideais modernistas até o fim da publicação.

O terceiro capítulo se propõe a inventariar o conteúdo da publicação, separado de

acordo com os gêneros textuais e temas ali presentes, com o propósito de suprir, pelo

menos em parte, a ausência de uma documentação ainda inacessível2.

As múltiplas relações de leite criôlo com três marcos do modernismo paulista, a

Antropofagia, Macunaíma e Retrato do Brasil, serão exploradas no quarto capítulo.

Pretendemos demonstrar, ali, como diversas das preocupações que atravessam o

periódico belorizontino também aparecem sob diversas formas no âmbito do

modernismo paulista.

No quinto capítulo, leite criôlo servirá de ponto de partida para a exploração de

todo um conjunto de questões envolvendo a relação entre poder, cultura e pensamento

racial no Brasil do entreguerras, através de um diálogo com a noção de transculturação

narrativa proposta por Angel Rama. Serão trabalhados o discurso “científico” sobre

raça e nação, as múltiplas apropriações de símbolos como a “mãe preta” e as tensões no

centro do projeto modernista primitivista.

2
O Instituto Cultural Amílcar Martins, com a nossa participação técnica, desenvolve um projeto que tem
por fim a publicação em livro de todo o conteúdo de leite criôlo.

7
Por fim, voltaremos, nas considerações finais, ao tema da relevância das questões

abordadas aqui na perspectiva da construção de uma relação do presente com o passado

da cultura brasileira, dentro da qual o modernismo ocupa um papel bastante destacado.

8
1. Grandeza e irrelevância: leite criôlo no quadro da memória
monumental do modernismo
O modernismo é o maior movimento que já se verificou
no Brasil no sentido de dar balanço do que é a sua
realidade, com orientação eminentemente crítica, de
modo a substituir o falso e o superado pelo autêntico e
atual.
- Francisco Iglesias (1972)

O suplemento literário Leite Criôlo [sic] guarda a marca


de uma linguagem jornalística bastante informal, e de
estilo paroquial. O periódico padece de maior relevância
intelectual, quer seja pelo cardápio de assuntos de que
dispõe, quer seja mesmo pelo tipo de argumentação que
privilegia.
- Helena Bomeny (1996)

Tratar de um tema como leite criôlo implica uma reflexão sobre como se

articulam, no âmbito da literatura, dimensões como a valoração cultural, o poder social

e a presença de certa representação do passado no presente das práticas culturais. Para

tal fim, trabalharemos com a noção, definida mais adiante, de memória monumental do

Modernismo. Interessa aqui, em especial, a pequena parcela que cabe a leite criôlo

dentro de tal memória.

Temos como epígrafe dois julgamentos de valor bastante enfáticos emitidos sobre

o Modernismo brasileiro em geral e sobre o nosso objeto específico. O historiador

Francisco Iglesias afirma a importância central do primeiro, a socióloga Helena Bomeny

a irrelevância do segundo. Tais juízos interessam não pela sua especificidade, mas pelo

seu caráter típico. Encontram-se reduplicados na existência de uma enorme e crescente

bibliografia sobre o movimento modernista e de um corpus exíguo, há décadas

estagnado, de comentários e análises de leite criôlo. Sobre o irrelevante, pouco precisa

ser dito.

Qual o interesse, então, de revisitar a publicação? Quais valores presidem a opção

por tal objeto literário “menor”? Há algo aí além do exercício acadêmico,

9
academicamente desvalorizado, de contribuir para uma completude inalcançável do

quadro da história da literatura brasileira?

História monumental, memória monumental e processos de


monumentalização
Para Leyla Perrone-Moisés (1998, p. 10), a escolha de um objeto de análise já

implica um julgamento do mesmo: ler é eleger. Dessa forma, a crítica literária, mesmo

omitindo juízos categóricos, estaria necessariamente envolvida na valoração dos seus

objetos. Partindo de tal premissa, a autora discute o valor dos usos possíveis da história

da literatura que, para ela, deve ter como objetivo otimizar a fruição das obras

(PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 22). Recorre, para tanto, às modalidades de história

descritas por Friederich Nietzsche, na Segunda consideração intempestiva, intitulada

Da utilidade e desvantagem da história para a vida. O que ele denomina história

antiquária (NIETZSCHE, 2003, p. 25-29), não aparece para Perrone-Moisés (1998, p.

22-23) como modelo possível, pois, ao conservar tudo sem privilégios, elimina

exatamente o juízo crítico que caracterizaria a história da literatura e teria pouco poder

estimulante para a produção e fruição do presente. O que Nietzsche (2003, p. 19-31)

denomina história crítica, a condenação do passado em nome do presente e do futuro,

também não se aplicaria, segundo a autora (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 24), à

literatura, por constituir juízo ético e não estético do passado. Resta então a história

monumental (NIETZSCHE, 2003, p.19-24), seleção altamente valorativa dos “cumes da

humanidade”, que, no caso da literatura, significaria uma história “em que só figuram as

grandes obras, deixando à sombra toda produção menor” (PERRONE-MOISÉS, 1998,

p. 23). Nota-se aí que a história da literatura, cujo uso a autora considera benéfico,

tomaria a forma de quadro canônico, seleção de obras valiosas sobre o ponto de vista do

presente da literatura. Tal coleção de “pontos luminosos”, retomando a imagem de Ezra

10
Pound (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 64), seria, no entanto, sempre transformável pela

via da recuperação de obras esquecidas que se tornariam relevantes em um novo quadro

da literatura do presente, seguindo o modelo de T. S. Eliot (1989) em Tradição e talento

individual.

Assim, eleger leite criôlo, publicação considerada secundária na história do

modernismo, como objeto de estudo tenderia a tomar a forma de um resgate, de uma

tentativa de transformar o cânone cujo objetivo último é inclusão de uma faceta nova no

monumento que se intitula Modernismo. Não é o que faremos aqui: a relativa exclusão

do cânone é um dado que, na verdade, é parte fundamental do nosso objeto. Para tanto,

a história de tipo monumental aplicada à literatura não pode constituir nosso método,

mas, sim, parte do nosso objeto. Nietzsche, no texto citado, já observava, sobre a

irmanação dos “cumes da humanidade”, implícita no projeto de uma história

monumental,

quanto da diversidade precisa ser desconsiderado aí para que a


comparação possa produzir aquele efeito fortalecedor, o quão
violentamente a individualidade do passado deve se encaixar em uma
forma universal e o quanto todos os ângulos e linhas acentuados
precisam ser destruídos em favor da concordância! (NIETZSCHE,
2003, p. 21)

O interesse da recusa ao jogo do juízo de valor literário, que possibilita colocar a

forma concreta de tais juízos como objeto, vincula-se à questão fundamental e

irrespondível que funda a teoria da literatura: o que é a literatura? Pergunta

irrespondível, na perspectiva adotada aqui, não por qualquer transcendência que a

coloque fora da esfera da compreensão humana, mas porque a definição do que seria

literatura é exatamente o objeto das lutas entre os literatos. “Literatura”, termo cujo

sentido corrente tem raízes recentes, significa coisas muito diferentes em diferentes

tempos e lugares. Longe de significarem a adesão a alguma espécie de “objetividade”

suspeita, a renúncia em participar do jogo da valoração literária e o desejo de tomar tal

11
jogo como objeto derivam aqui da objeção à visão da literatura e de sua história como

repetição do mesmo, cujo próprio passado precisa ser reduzido a uma reafirmação dos

valores presentes. Pois, como afirma Michel de Certeau (2002, p. 93), o passado é

exatamente o meio de representar uma diferença.

É pela possibilidade de representar uma diferença que o “menor”, o detalhe, o

aparentemente acessório e irrelevante são colocados no centro do projeto da genealogia

proposta por Michel Foucault (1999), partindo novamente de Nietzsche. Em contraste

com os “pontos luminosos” da história monumental, Foucault afirma que

A genealogia é cinza; ela é meticulosamente e pacientemente


documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados,
riscados, várias vezes reescritos. (...)
Ela deve construir (...) não a golpes de “grandes erros benfazejos”,
mas [a partir] de “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por
um método severo”. (...) A genealogia não se opõe à história como
a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do
cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-
histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela
se opõe à “pesquisa de origem” (FOUCAULT, 1999, p. 16).

Entre as “significações ideais e indefinidas teleologias” que caracterizariam a

“pesquisa de origem” encontram-se a suposta coincidência entre essência e começo –

que garantiriam a identidade para além da dispersão temporal – e a ilusão da alta origem

(FOUCAULT, 1999, p. 18). Como se vê, a genealogia foca exatamente na diversidade

que precisa ser descartada, de acordo com o Nietzsche da Segunda consideração

intempestiva, para que a história monumental possa exercer seu efeito fortalecedor.

Foucault já havia notado que, através da genealogia, Nietzsche retoma o sentido

histórico de forma não prevista naquela obra de juventude. O autor francês afirma,

acerca do intuito da genealogia de desestabilizar as identidades, que a “pesquisa de

origem” tenta fixar e remeter ao passado que

reconhece-se aqui o duplicador paródico daquilo que a segunda


[consideração] extemporânea [ou intempestiva, dependendo da
tradução] chamava de “história monumental”: história que se dava
por tarefa restituir os grandes cumes do devir, mantê-los em

12
presença perpétua, reencontrar as obras, as ações, as criações
segundo o monograma da sua essência íntima. Mas, em 1874 [data
da publicação de Da utilidade e desvantagens da história para a
vida], Nietzsche criticava essa história inteiramente devotada à
veneração por obstruir as intensidades atuais da vida e suas
criações. Trata-se, ao contrário, nos últimos textos de parodiá-la
para deixar claro que ela é apenas paródia. (FOUCAULT, 1999, p.
34)

A forma como nos apropriaremos da ideia de genealogia no presente trabalho –

que não possui a pretensão de ser estritamente nietzschiano ou foucaultiano – passa pelo

contraste dos dogmas inscritos na memória monumental do modernismo com os

pequenos achados do trabalho documental que, partindo da tentativa de compreender

leite criôlo, acabou se expandindo para pontos menos explorados do contexto histórico,

cultural e literário no qual o periódico estava envolvido. Tal memória monumental, cuja

trajetória esboçaremos ainda neste capítulo, será tensionada, nos capítulos seguintes, a

partir da sua justaposição a um amplo conjunto de pequenos registros – periódicos,

cartas, obras famosas e desconhecidas, historiografia de áreas tão alheias à literatura

estrito senso como a medicina e a política partidária etc. O confronto com a

documentação, pensado como a “fabricação de diferenças pertinentes” de que fala

Certeau (2002, p. 91), dá-se no sentido de questionar a relação pouco investigada da

intelectualidade brasileira do séc. XX e deste início de séc. XXI com aquele momento

de fundação situado nos anos 1920.

Falamos aqui de memória monumental e não – como Nietzsche, Perrone-Moisés e

Foucault – de história monumental. Ressaltamos assim que nos interessa

principalmente, nas palavras de Pierre Nora, “o que fica do passado no vivido dos

grupos ou o que os grupos fazem do passado” (apud LE GOFF, 1992, p. 472), ou seja, a

memória coletiva, e não apenas o trabalho especializado da pesquisa histórica. É certo

que, como o grupo em questão é a própria intelectualidade, trabalhos de tipo erudito –

incluindo os propriamente históricos – informam a construção de tal memória e é

13
através deles que é possível sondar sua trajetória. Mas as representações e os valores

que nos interessam são, por definição, mais difusos e inarticulados do que um conjunto

de textos críticos – eles se inscrevem no cotidiano e nos pormenores das práticas

culturais.

A opção por monumento, monumental e monumentalização se ampara não apenas

nas reflexões já mencionadas. A reflexão de Jacques Le Goff (1992) sobre as relações

entre monumento e documento na produção do conhecimento histórico informa de

maneira fundamental o presente trabalho. Além disso, podem-se observar certas

vantagens que tais noções trazem para a compreensão da relação entre valoração

cultural, o poder social e a presença de certa representação do passado no presente das

práticas culturais em contraposição à ideia mais corrente de cânone.

Como se sabe, a noção de “cânone literário” deriva da analogia entre a legislação

religiosa (lei canônica) que estabelece o conjunto dos textos considerados sagrados pelo

Cristianismo, opondo os textos propriamente bíblicos aos apócrifos, e o conjunto das

obras literárias consideradas especialmente valorosas (PAYNE, 1996 p. 91). Uma

primeira consequência de tal analogia é a referência à ideia de um quadro estabelecido

de valores, que tomaria a forma de currículos, antologias, histórias da literatura etc. O

problema é que, na maior parte dos contextos, o elenco de autores e obras que

formariam tal cânone constitui um dos principais móveis da luta propriamente literária

no interior da “república das letras” e, assim, cada currículo, antologia, história da

literatura e lista de autores constitui uma tomada de posição no interior do campo.

Como lembra o levantamento de José Maria Pozuelo Yvancos (2000, p. 28-29) sobre as

teorias do cânone, múltiplos quadros canônicos quase sempre coexistem

simultaneamente em um mesmo tempo e espaço. Pode-se concluir daí que o valor

literário se apresenta na sociedade quase sempre de maneira difusa, prática, só

14
emergindo a um estado explícito na forma de comparação entre autores, obras etc. que

constituem formas de classificação elas mesmas classificadas, a serem estudadas por

uma sociologia do gosto (Cf. BOURDIEU, 2007).

Outro problema consiste no fato de a lógica da noção de cânone se dar em termos

de inclusão/exclusão, o que a torna pouco manejável para a análise localizada da

valoração literária, exceto nos casos extremos das literaturas subalternas excluídas e dos

cumes da consagração artística. Fora da situação de ensino, que parece ser o paradigma

para as discussões sobre cânone (cf. BLOOM, 1995; BUTLER, 1990; KERMODE,

1990), parece estranho que um autor ou obra substitua necessariamente outro.

A noção de monumento, especialmente de monumentalização, traz certa vantagem

neste sentido. A constituição de obras e autores como objetos de comemoração, ou seja,

de memória socialmente valorizada é uma forma relativamente mensurável do prestígio

literário, especialmente se focarmos a frequência, a tipologia e os agentes destas formas

de trabalho social da memória. Basta lembrar que Jacques Le Goff (1992) vai definir a

matéria-prima de toda forma de história – partindo dos conceitos tradicionais de

monumento enquanto aquilo que os poderes de uma sociedade elegem para representá-

la no futuro e de documento como a ferramenta de trabalho do historiador – como

documento-monumento, considerando a dimensão epistemológica da memória

inseparável da sua dimensão política. É importante ressaltar que a noção de

monumentalização que se propõe aqui não implica uma medida “objetiva” de valor

literário, que continua necessariamente em disputa, mas sim uma medida da presença no

campo literário, do quão importante é a discussão do valor e do significado de certa obra

ou autor em determinado momento e lugar.

A ideia de monumento serve, assim, como uma forma de trabalhar com o cânone –

que se poderia definir de uma maneira útil como o passado reconhecido, portanto

15
presente e representado pelo campo literário – nas minúcias dos seus fragmentos (um

autor, uma obra), sem cair na lógica da inclusão/exclusão. Logo abre espaço para se

pensar o cânone através de uma topologia mais complexa do que o dentro e o fora dos

quadros canônicos.

Algumas das formas de comemoração mais importantes neste contexto de

monumentalização são, entre outras, o comentário, o estudo, a análise, mencionados

também em relação à noção de cânone no levantamento já citado de Pozuelo (2000, p.

33) como chave para a sobrevivência dos textos canônicos. Assim sendo, estudar o

Modernismo Brasileiro, por exemplo, implica estudar o monumento que seus

participantes e os herdeiros intelectuais destes erigiram para tal movimento – e, em

certo sentido, participar da sua comemoração. A porta de entrada para esse estudo é, no

mais das vezes, o cânone artístico e literário, os grandes nomes que surgiram com o

movimento. Ao estudar os futuros notáveis nas suas primeiras investidas no universo da

cultura, mesmo os trabalhos mais sérios tendem a reforçar implicitamente a magia do

momento da origem, da fundação mesma de um universo cultural que, apesar de tudo,

ainda é o nosso. Como vimos, Michel Foucault (1999) chama tal jogo de afirmação de

precedências de “pesquisa de origem”, o que segundo ele constituiria mesmo uma das

atribuições mais tradicionais da história: a afirmação da grandeza dos princípios (no

duplo sentido metafísico de fundamentos e de primeiros momentos), ou seja, dos

momentos de fundação.

Fala-se de cânone como uma coisa, como um determinado quadro de valores sobre

o qual se pode – e costuma-se – tomar posição contra ou a favor, como algo exterior à

pesquisa e sobre o qual é possível uma ação imediata: os cânones seriam, para o bem ou

para o mal, substituíveis. Chamar algo de monumento, por outro lado, é participar de

um juízo de valor, mas de um juízo de valor estranhamente impessoal: o monumento

16
comemora algo e pesquisar os monumentos, como nos trabalhos de colégio, implica

participar da comemoração. A remoção ou danificação dos monumentos, enfim, é um

ato de iconoclastia ou mesmo vandalismo.

Torna-se assim problemática a necessária separação entre o estudo analítico e

aquela produção simbólica – que Bourdieu (2005) denomina sarcasticamente

hagiografia – cujo objetivo é engrandecer e perpetuar o valor atribuído a este ou aquele

autor. Com Perrone-Moisés (1998), devemos lembrar que estudar um autor é,

implicitamente, colocá-lo em circulação, e também o estudo de autores considerados em

dado momento como “menores” acarreta uma intervenção no campo literário. Deste

modo, compreendendo que a liberdade de manobra da pesquisa, assim como seus

possíveis efeitos no campo em questão, passam pela compreensão do lugar do objeto de

pesquisa dentro de um determinado cânone. A inclusão do processo pelo qual os

produtos culturais se tornam canônicos ou caem no esquecimento no âmbito do estudo

desses mesmos produtos consiste em uma ferramenta contra a ingenuidade útil em

relação ao campo: a reflexividade é a única arma contra a tentação sempre recolocada

de escrever hagiografias puras ou panfletos meramente polêmicos.

Camadas da memória monumental do modernismo

De acordo com tais colocações, cabe aqui uma breve retrospectiva dos principais

momentos da trajetória da monumentalização do movimento modernista, das principais

camadas da sua sedimentação. Só nos será possível um esboço bastante generalizado

centrado nas figuras e nas obras de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que

parecem constituir o foco da memória monumental do modernismo enquanto

movimento propriamente dito. Tal esboço serve aqui à contextualização da discussão do

pequeno corpus da fortuna crítica de leite criôlo.

17
Em um artigo de 1940, Mário de Andrade (1972, p. 187) afirma que “é geralmente

aceito, e com razão, que o Modernismo, como estado de espírito dominante e criador,

durou pouco menos de dez anos, terminando em 1930 com as revoluções políticas e a

pacificação literária”. No segundo e quarto capítulos deste trabalho, focaremos alguns

pontos de tensão dentro do movimento modernista que explicam em parte a emergência

da “pacificação literária” mencionada por Mário, encerramento da chamada “fase

heróica” do modernismo. A tais fatores endógenos se somou o impacto da revolução

que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930 e iniciou um momento de intensa

movimentação política, inclusive entre os literatos. Segundo João Luiz Lafetá (2004), a

partir deste ponto o projeto literário de experimentação estética que caracterizaria os

anos 1920 seria, pelo menos em parte, substituído por um maior engajamento

ideológico da literatura, tanto à esquerda quanto a direita.

Típico desse período seria o prefácio agressivo com o qual Oswald de Andrade

(1996, p. 37-39) publicou em 1933 seu romance Serafim Ponte Grande, obra escrita “de

1929 para trás” e caracterizada exatamente pelo radicalismo da experimentação estética.

Ali um Oswald recém convertido ao comunismo afirma que – se em um primeiro

momento o “movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia

indicar um fenômeno avançado” – com as “cornetas da crise [econômica de 1929]”

ruíra “quase toda literatura brasileira ‘de vanguarda’, provinciana e suspeita, quando

não extremamente esgotada e reacionária”. A partir do levantamento de Kenneth

Jackson (1986), podemos constatar que a reação ao livro no meio literário foi ainda

mais reprovadora que a autocrítica do prefácio. O crítico comunista Aderbal Jurema

afirma que Oswald “não conseguiu ser um perfeito intelectual revolucionário, atulhado

do modernismo klaxon, antropofagismo & cia” (apud JACKSON, 1986, p. 30).

Previsivelmente Andrade Muricy, ligado ao modernismo católico da revista Festa,

18
considera a obra um “triunfo da pornografia”, escrito para “deliberadamente fazer

bobagem” (apud JACKSON, 1986, p. 30). Mas mesmo um modernista de primeira hora

como Manuel Bandeira vê ali uma “deformação diletante e feroz” que “não acrescenta

quase nada à obra do Andrade” (apud JACKSON, 1986, p. 28). Na ocasião do

lançamento da segunda edição de Macunaíma de Mário de Andrade, em 1937, Silviano

Santiago (1988) registra a mesma espécie de rejeição à estética que caracterizara o

modernismo dos anos 1920. Rubem Braga, por exemplo, “não poupa críticas ao livro,

embora resguarde-as no tocante ao autor” (SANTIAGO, 1988, p. 9). Em suma, como

coloca Lafetá (2004, p. 70), estabelecera-se “uma opinião bastante comum nos anos

1930: a suspeita de que o modernismo trazia consigo uma carga muito grande de

cacoetes, de ‘atitudes’ literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e

bem realizada”.

A situação desta primeira camada de reavaliações do modernismo dos anos 1920

é, no entanto, mais complexa. Lafetá (2004, p. 66) afirma também que a “opinião

unânime dos estudiosos do Modernismo é que o movimento atingiu, durante o decênio

de 1930, sua fase áurea de maturidade e equilíbrio”. Mesmo descontada a qualificação

de “unânime”, persiste a contradição com a afirmação de Mário de que o movimento

terminara junto com a década de 1920 e com os exemplos arrolados acima. O fato é que

os intelectuais que despontaram na “república das letras” brasileira por meio do que

descrevemos, no próximo capítulo, como rede nacional modernista continuaram

atuando intensamente na vida cultural e literária do país – ainda que, como nos versos

célebres de Drummond, não tenham mais desejado ser modernos. O repudio à blague da

“fase heróica” e ao seu maior praticante – Oswald de Andrade, isolado desde as

peripécias da segunda dentição da Revista de Antropofagia – combinava com as

posições sérias e respeitáveis que muitos dos modernistas de antevéspera ocupavam em

19
um quadro de construção institucional no âmbito da educação e da cultura. Ecoando tais

mudanças, no artigo já citado de 1940, Mário (1972, p. 188-189) defende que o

modernismo “formulou um nacionalismo descritivista que, si fêz bem ruim poesia,

sistematizou o estudo científico do povo nacional, na sociologia em geral, no folclore

em particular, na geografia contemporânea”. No artigo “Começo de crítica”, primeiro da

coluna “Vida literária” que Mário publica no jornal carioca Diário de Notícias a partir

de 1939, uma mistura de autocrítica e defesa entre resignada e irônica daquela que seria

considerada posteriormente a sua obra-prima, Macunaíma, contrasta com o orgulho

aberto de sua “obra de estudioso”.

Outra obra que me deu desgostos foi o Macunaíma. Sinto que tive
nas mãos o material de uma obra prima e o estraguei. Fazendo obra
sistematicamente de experimentação, jurei no princípio de minha
vida literária jamais não me queixar das incompreensões alheias.
Acho ridículos os incompreendidos. Mas, por uma vez só, me seja
permitido afirmar que esse livro foi, no geral, apreciado por uma
feridora incompreensão. Embora graciosa, porém não
complacentemente tratado, Macunaíma é uma sátira irritada, mas
por muitas partes feroz. Mas brasileiro não compreende sátira, em
vez, acha engraçado. Quando, depois de uma existência inútil,
Macunaíma desiste de ser gente, e a lembrança de ainda poder
construir como um Delmiro Gouvêa, prefere ir viver o brilho
“inútil” das estrelas, meus olhos se umedeceram. Mas o que ficou
na consciência geral foi um sussurro de imoralidade! Devo ter
muito errado esse meu livro, pois de outra forma, seria considerar a
grande maioria dos meus leitores, uns primários.
Em compensação, tiro grande conforto da minha obra de estudioso,
principalmente musical. Regida firmemente pelo princípio de
utilidade, tanto na parte de pesquisa como na parte crítica, sinto,
sei, tenho mil provas que ela foi mais fecunda que honesta
porventura... Não desonesta em particularidades ínfimas, mas
honesta no todo; porque há uma convicção grande, um
desprendimento principal regendo os meus pragmatismos.3

Tanto Mário quanto Oswald, nos seus textos de revisão do modernismo na

primeira metade dos anos 1940, se esforçam para diluir a oposição entre o

“experimentalismo diletante” dos anos 1920 e a “seriedade estudiosa e engajada” pós-

1930, através da noção de que a “fase heróica” teria preparado o momento posterior.

3
Diário de Notícias, 05/03/1939

20
Nas palavras de Mário (1972, p. 189), “a aurora continha já em si tôdas as promessas do

dia, mas ainda não era o dia”. No seu famoso balanço “O movimento modernista”, de

1942, Mário (1974, p. 231, 242) descreve o modernismo como “o prenunciador, o

preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional” e fala dos

três elementos que comporiam a sua herança: “o direito à pesquisa estética; a

atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência

criadora nacional”. Mário era naquele momento, malgrado o desprestígio endêmico da

“fase heróica”, um dos intelectuais mais respeitados do país e exercia uma influência

considerável no panorama literário nacional, inclusive através da sua ampla rede de

correspondência literária e intelectual. Por outro lado, Oswald de Andrade foi naquele

momento, nas palavras de Anderson Pires da Silva (2009, p. 71), “praticamente

declarado ‘morto em vida”. No entanto, também Oswald (2004, p. 167) no seu texto de

reavaliação do movimento, “O caminho percorrido”, de 1944, enfatiza o modernismo

dos anos 1920 como preparador do momento literário “sério e engajado” pós-1930: “de

22 para cá o escritor nacional não traiu o povo, antes o descobriu e exaltou”. A partir

deste momento Oswald assume para si a defesa do projeto modernista “heróico”,

especialmente depois da sua saída do Partido Comunista, em 1945, que coincide com a

sua retomada do tema da antropofagia. Mário (1974, p. 255), mais integrado ao

ambiente intelectual e literário dos anos 1940, defende o movimento principalmente

como um marco e afirma que os “modernistas da Semana de Arte Moderna” não devem

servir de “exemplo”, mas sim de “lição”, por não haverem se dedicado suficientemente

ao “milhoramento político-social do homem”.

Nessa primeira camada da memória monumental do modernismo, que vai da

“pacificação literária” dos anos 1930 e passa pelas reavaliações do movimento nos anos

1940, nota-se que o lugar desse no cânone nacional ainda é inseguro e se encontra em

21
disputa. É interessante, porém, observar o quanto este primeiro momento institui vários

dos topoi perenes na monumentalização do modernismo. Além da oposição-

continuidade entre as fases “destrutiva” dos anos 1920 e “construtiva” de 1930-1945,

aparecem aí os temas do modernismo como fundamentalmente paulista e centrado nos

chamados “primitivistas”, da analogia entre o movimento e a incipiente industrialização

de São Paulo, do paralelo entre modernismo e romantismo. Mais importante ainda é a

questão de uma “cultura verdadeiramente nacional”. Como mostram Eduardo Jardim de

Moraes (1978) e também Angela de Castro Gomes (1999), o modernismo não

“inventou” o nacionalismo brasileiro daquele momento. Mas, partindo das tradições

disponíveis, o modernismo transformou e incorporou a discussão do nacionalismo

cultural a ponto de se tornar referência obrigatória para tal questão aos olhos das

gerações intelectuais posteriores. Das múltiplas camadas de trabalho acumulado no

sentido da monumentalização do modernismo, essa primeira talvez seja a mais

importante: os próprios protagonistas – através da contínua participação no campo

intelectual brasileiro que caracterizou a maioria deles – constituíram nas décadas que se

seguiram ao “período propriamente modernista” a imagem e a memória da sua geração.

Estabeleceram, por exemplo, como marcos da sua história pessoal e da história

brasileira eventos hoje notórios, como a Semana de Arte Moderna de 1922 e a visita dos

modernistas de São Paulo a Minas Gerais em 1924.

Nesse contexto se enquadram duas primeiras releituras acerca de leite criôlo. A

primeira é um artigo de 1943 de um dos seus diretores, João Dornas Filho, publicado na

revista Vamos ler por ocasião da morte de outro dos diretores, Aquiles Vivacqua. Ali a

publicação é descrita da seguinte forma:

Eu, com Guilherimino César e ele [Vivacqua] nos idos dias de


1927 [na verdade, 1929] concorri com alguma tolice e muita
sinceridade para preparar o renascimento que se operou no Brasil
depois de 1930. Fazíamos, então, um jornal de leitura gratuita e
compulsória, porque o burguês o recebia pessoalmente e com certa

22
insolência da nossa parte, jornal chamado Leite Criôlo e que era
todo um programa contra a bacharelice e a favor da regeneração do
mulato, mal educado por causa do preconceito criado pelo
onanismo intelectual dos racistas, filhos naturais de Gobineau com
a macaquice nacional (apud BUENO, 1982, p. 102).

Vemos aí claramente as temáticas do modernismo da “fase heróica” como pouco

sério e pueril e também do seu sentido de preparação ao “renascimento” pós-1930.

Como veremos no quinto capítulo, a forma como João Dornas Filho descreve o

programa da publicação também mascara muito da ambiguidade do pensamento racial e

das posições políticas da publicação em 1929. O segundo texto, também de João Dornas

Filho, segue a mesma linha. Publicado originalmente no jornal Diário de Minas de

19/10/1952 e republicado em 1959 na Revista da Academia Mineira de Letras, como

parte das suas Notas para a história da literatura mineira, o texto originalmente

intitulado Para a história do modernismo brasileiro transcreve a famosa carta de Carlos

Drummond de Andrade a Oswald de Andrade na qual o poeta mineiro rompe com a

antropofagia e com seu diretor, analisada no próximo capítulo. No final da carta,

Drummond afirma que João Dornas Filho fundaria o “crioulismo”, deixando implícita a

adesão do escritor itaunense à antropofagia. O comentário de Dornas se segue à

transcrição da carta:

Quero explicar que o “crioulismo” a que se refere Drummond foi


um sarampo romântico de 1929, que Guilhermino César, Acchiles
Vivacqua e eu contraímos no ambiente carregado de indianismo
paulista. Seria a vacina africana contra a antropofagia que
ameaçava comer (e comeu) os próprios pagés que a criaram...
Fundamos então um jornal – o “Leite Crioulo”, que saiu
intencionalmente a 13 de maio e por ele pretendíamos combater o
romantismo paulista com o romantismo Bantu...
De tudo se conclui que o romantismo afro-brasileiro é anterior de
dez anos à Casa Grande e Senzala... (DORNAS FILHO, 1959, p.
88-89)

Temos aí novamente a figura da preparação dos desenvolvimentos intelectuais dos

anos 1930 – no caso, a obra Gilberto Freyre – somada agora à menção aos conflitos em

23
torno da segunda dentição da Revista de Antropofagia e à “pacificação literária” que

acabou por engolir os “pajés” da antropofagia.

Cabe também notar que o crítico anti-modernista Eduardo Frieiro (1941), em seu

livro A ilusão literária, publicado originalmente em 1932, usa a expressão “criolismo”,

explorada em vários sentidos no âmbito de leite criôlo, para designar a, segundo ele,

fracassada experiência modernista como um todo. Os significados envolvidos em tal

qualificação serão explorados no quinto capítulo. Agora cabe observar que nessa

primeira leva de monumentalização, o trabalho de memória dedicado a leite criôlo não

se distingue sobremaneira do dedicado ao movimento modernista em geral.

Ano da morte de Mário de Andrade, do encerramento da Segunda Guerra Mundial

e do fim do Estado Novo de Vargas, 1945 parece um momento razoável para marcar a

emergência de uma segunda camada de memória monumental do modernismo. Não que

as constantes rememorações e reavalizações do movimento por parte de intelectuais que

integraram suas hostes houvessem cessado nesse momento. Mas agora elas dividiam o

espaço na “república das letras” com uma nova geração de críticos especialmente

interessada tanto na herança quanto na valorização das obras modernistas. Desses o

mais emblemático seria Antônio Cândido, cuja intervenção implicava também um

primeiro momento da influência da crítica universitária no campo literário brasileiro.

Suas contribuições incluem a primeira tentativa de reavaliar a obra romanesca de


4
vanguarda de Oswald de Andrade, ignorando a má fama então atribuída ao autor, a

consolidação da imagem de Mário de Andrade como figura central do movimento e a

oposição entre uma linha modernista de nativismo superficial, que desencadearia no

Verde-amarelismo e daí no Integralismo, e outra “mais típica” marcada pelo humor e

4
Ironicamente Oswald responderia agressivamente à série de artigos em que Cândido tratava da sua obra.
Tal desentendimento, provocado pelo baixo apreço do crítico uspiano pela produção romanesca não-
vanguardista de Oswald, acabaria sendo superado e os dois acabaram se tornando amigos. Cf. SILVA,
2009, p. 101-104.

24
por uma crítica nacionalista mais profunda, exemplificada exatamente pelos Andrade e

escritores próximos a eles (cf. CÂNDIDO, 1967, p. 145-146).

Outro marco deste momento é a obra de Cavalcanti Proença (1974), Roteiro de

Macunaíma. Publicada originalmente em 1955, o livro servia como uma espécie de

compêndio erudito do romance-rapsódia de Mário de Andrade, cobrindo desta forma a

distância entre os “sussurros de imoralidade” que ainda pairavam sobre a obra e o

“trabalho de estudioso” de que se orgulhava seu autor. Anderson Pires da Silva (2009,

p. 89) aponta que, no mesmo contexto, começam a parecer trabalhos como História do

Modernismo (1958), de Mário da Silva Brito, e O modernismo, de Wilson Martins, que

contribuíram à interpretação do modernismo como “estilo de época” ou período da

história literária. Emblema da crescente hegemonia da memória monumental do

modernismo, tal concepção acabou por contribuir para que se ignorasse toda a produção

literária e intelectual daqueles que se opuseram ao movimento. A estratégia dos

modernistas de qualificar como insignificante a produção intelectual e literária dos que

se opuseram a eles – assim como aquela imediatamente anterior ao movimento,

concebível apenas por sua relação com esse através da denominação “pré-modernismo”

– acaba dessa forma por ser reduplicada por análises que tomam por objeto o

modernismo sem levar em conta aquilo em relação ao que o movimento se posiciona. É

fundamental ter em mente que nunca houve um “movimento passadista” e que, sem

compreender a especificidade das múltiplas oposições ao modernismo, não é possível

nem mesmo compreender a vitória que o modernismo lhes impôs em termos de

canonização. Um subproduto posterior de tal forma de pensar seria a concepção

expandida de modernismo que propõe Mônica Pimenta Velloso (2003, p. 353-360), que

incluiria uma geração anterior de escritores sediada no Rio de Janeiro e envolvida em

gêneros artísticos como o humor e a charge. Se, como essa autora e também Flora

25
Sussekind (1987) demonstram, a relação entre a intelectualidade brasileira e a sua

produção cultural com a modernidade técnica e social antecede em muito o movimento

modernista estrito senso, a extensão da denominação “modernista” a grupos que não se

definiam desta maneira não ajuda muito na compreensão das posições daqueles que nos

anos 1920 assim se definiam – em oposição à denominação considerada pejorativa de

“futuristas” – e chamavam pejorativamente seus adversários de “passadistas”.

Uma terceira camada distinguível no processo de formação da memória

monumental modernista começa a emergir na segunda metade dos anos 1950. Vincula-

se ao aparecimento no Brasil de diversos movimentos literários e artísticos que

começam a reivindicar os procedimentos estéticos das vanguardas. Para além das

múltiplas diferenças e oposições entre Concretismo, Neoconcretismo, Poesia-Processo,

Práxis, Tropicalismo e as manifestações um pouco mais difusas da poesia marginal dos

anos 1970, eles tiveram em comum o propósito de tomar o modernismo não apenas

como lição, mas também como exemplo. Para a memória monumental do modernismo,

um dos principais efeitos do que podemos chamar, seguindo Silviano Santiago (1988,

p.12), “a voga do experimentalismo estético” foi a reabilitação da obra de Oswald de

Andrade. Vários dos aspectos dessa que antes tinham sido interpretados como signos do

“malogro” do projeto modernista se tornam naquele momento focos de interesse de

artistas e escritores: o experimentalismo textual e o apagamento das fronteiras entre os

gêneros literários, valorizado principalmente pelo poetas concretos; a sua interpretação

agressiva e utópica das relações entre o Brasil e a modernidade, que se tornou o cavalo-

de-batalha do Tropicalismo; a irreverência, o humor e a iconoclastia, que depois se

espelhariam na chamada poesia marginal dos anos 1970.

Tal leitura tendia também a colocar a questão da relação entre a vanguarda

europeia e o modernismo brasileiro – título, aliás, da conhecida coletânea de manifestos

26
e textos correlatos compilada por Gilberto Mendonça Telles (2002), publicada

originalmente em 1972. Tal relação não aparecia mais nesse momento como a

comprovação de uma suposta pouca originalidade do movimento, crítica dirigida ao

movimento desde os anos 1920, mas como indício tanto de sua modernidade estética

quanto da recusa a uma postura nacionalista tacanha.

Outra consequência da súbita atualidade da produção da “fase heróica” do

modernismo, especialmente a partir dos anos 1960 foi o aparecimento de adaptações de

textos modernistas para os palcos e as telas. Duas das mais marcantes foram a primeira

encenação da peça de Oswald, O rei da vela, pelo Teatro Oficina dirigido por José

Celso Martinez em 1967, e o filme Macunaíma, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade

em 1969, ambos peças-chave da estética tropicalista (cf. SILVA, 2009, p. 134, 141-143;

SANTIAGO, 1988, p. 12-13). É interessante notar que o filme de Joaquim Pedro de

Andrade coloca a obra de Mário de Andrade sob a ótica oswaldiana da Tropicália,

intervindo assim na discussão que vem dos anos 1920 sobre as possíveis relações entre

Macunaíma e a Antropofagia, tema ao qual voltaremos no quarto capítulo.

No percurso da formação da memória monumental do modernismo o ano de 1972

constitui um marco. O cinquentenário da Semana de Arte Moderna de 1922 foi

comemorado em meio a um interesse por todas as manifestações do modernismo, com

inúmeras publicações e reedições. Tal processo incluiu até mesmo os periódicos

modernistas, faceta menos visada de uma literatura pensada principalmente através de

obras-livros, posto que o bibliófilo José Mindlin, em edição conjunta da sua empresa

Metal Leve com a editora Abril, publicou uma série de fac-símiles de publicações

modernistas incluindo Verde, Revista de Antropofagia e A Revista, incluindo

definitivamente os periódicos no cânone modernista. Pode-se dizer que neste momento

a importância, agora unânime, do movimento não está mais em disputa, mas sim o

27
significado a ele atribuído a partir das disputas literárias do momento. A interpretação

de Macunaíma, por exemplo, será um dos focos da disputa no âmbito da crítica

universitária entre a linha estruturalista, representada por Morfologia do Macunaíma, do

poeta concreto Haroldo de Campos (1973), e a linha uspiana da “literatura e sociedade”,

representada por O tupi e o alaúde, de Gilda de Mello e Souza (1979).

A partir de meados dos anos 1970, o processo de expansão e consolidação dos

programas universitários de pós-graduação, apontado por Silviano Santiago (1988, p.

12) como um dos fatores da consagração definitiva da obra modernista, acabou por

multiplicar e pulverizar a bibliografia sobre o movimento a ponto de impossibilitar a sua

apreensão conjunta e a análise por camadas que fizemos até aqui. Nos capítulos

seguintes faremos referência a dezenas de estudos, com a consciência plena de que

faremos omissões porventura importantes. Igualmente significativo para a situação atual

difusa da vitoriosa memória monumental do modernismo é o fato de que tal memória

extrapolou os limites da discussão intelectual e se infiltrou na cultura cotidiana – seja

por meio da cultura popular (o enredo baseado em Macunaíma defendido pela escola de

samba Portela em 1974 é neste ponto um exemplo poderoso), das instituições de ensino

(caso das leituras dos vestibulares e dos livros didáticos) e mesmo do marketing de

produtos “diferenciados” (quadros de Tarsila do Amaral nas embalagens de perfumes O

Boticário e de requeijões Nestlé, a invenção de Itabira como um destino de turismo

cultural).

O lugar de leite criôlo no interior da memória monumental do modernismo

começa a se tornar paradoxal – o irrelevante no quadro da grandeza – exatamente no

contexto da progressiva valorização da experiência modernista.

Um primeiro trabalho de cunho acadêmico que tem em leite criôlo um dos seus

objetos de análise é O Movimento Modernista em Minas, de Fernando Corrêa Dias

28
(1968), que continua sendo o texto fundamental para a interpretação histórica e social

do modernismo mineiro e pioneiro no Brasil do que atualmente se denomina sociologia

dos intelectuais. Baseado em ampla documentação primária, o autor tenta compreender

os denominadores sociais comuns da primeira geração de modernistas mineiros: jovens

da mesma geração que vão à capital para estudar, trabalhando como jornalistas e

funcionários públicos, frequentando os mesmos bares e livrarias. O estudo privilegia o

grupo mais antigo de modernistas mineiros que publicava A Revista (Drummond, João

Alphonsus, Abgar Renault e outros), mas cita também o grupo de leite criôlo.

A questão fundamental para a recepção do periódico “criolista”, no entanto, só

aparece como tal em uma nota que acompanha os três textos curtos da publicação que

aparecem no já mencionado Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro de Gilberto

Mendonça Telles

O jornal Leite criôlo, de Belo Horizonte, cujo primeiro número


saiu em 13 de maio de 1929, constitui dentro das aberturas do
modernismo uma das primeiras preocupações com o negro,
preocupação aliás que não fica muito clara, se contra ou a favor.
(TELLES, 2002, p. 368)

A ambiguidade do tratamento dado ao negro em leite criôlo, reconhecido ao

mesmo tempo como uma das primeiras preocupações do movimento com o tema,

contrasta com o topos firmemente assentado na memória monumental do modernismo

de que esse teria por marca a inclusão da herança negra no patrimônio da cultura e

identidade brasileiras (cf., por exemplo, SILVA, 2009, p. 153). O desconforto de tal

inadequação talvez ajude a explicar porque, excluída a inclusão de alguns textos na

terceira edição da coletânea de Telles em 1975, o periódico “criolista” quase não se

beneficiou do novo interesse pelos periódicos modernistas – entre eles alguns muito

semelhantes a leite criôlo, como a revista Verde de Cataguases.

O ciclo seguinte da fortuna crítica da publicação belorizontina – as obras O

modernismo em Belo Horizonte: Década de vinte, de Antônio Sérgio Bueno e Poesia

29
negra no modernismo brasileiro, de Benedita Gouveia Damasceno, datadas

respectivamente de 1982 e 1988 – é marcado exatamente pelo interesse em relação à

temática negra e ao pensamento racial. O trabalho de Bueno permanece como o estudo

mais aprofundado de leite criôlo que se encontra em forma de livro, dividindo o foco

com o periódico A Revista de 1925-1926; o de Damasceno apenas menciona a

publicação, baseando-se na análise de Bueno, mas invertendo as conclusões.

Apesar de romper o esquecimento ao qual foi relegado leite criôlo e reconhecer

sua importância, Bueno se deixa levar por certas características pitorescas da publicação

e acaba por exagerar nas tintas com as quais pinta a retórica e a poética desta, em

especial quando considera a contribuição dos diversos colaboradores como um discurso

único. Sem dúvida o racismo e o racialismo presente no tratamento da herança africana

no Brasil é fundamental no suplemento e de certa forma o distingue, mas é preciso

lembrar que leite criôlo foi, em muitos sentidos, um periódico modernista normal. Não

é possível estabelecer uma oposição entre ele e o resto do modernismo mineiro. Pode-se

pensar mesmo que o que para nós hoje é chocante constituía o discurso comum

naqueles tempos, leite criôlo se destacando simplesmente por falar, influenciado pela

Revista de Antropofagia, em tom aberto e escrachado. Não há por que pensar que

quando A Revista fala, de acordo com o bom tom que prevalece nela, em “humanizar o

Brasil” não possa estar dizendo o mesmo que leite criôlo, com seu linguajar direto,

chama de “higienizar o Brasil”.

Em perspectiva diametralmente oposta, para Benedita Gouveia Damasceno –

baseada apenas, como já dissemos, no livro de Bueno – a presença, constatada por

aquele pesquisador, de um discurso claramente racista em leite criôlo seria

desconcertante. Argumentando que a reprodução de “preconceitos e estereótipos era

decorrência da tradição cultural da época”, Damasceno afirma que o mesmo fenômeno

30
se verifica, por exemplo, na produção literária do poeta e militante da imprensa negra

paulista Lino Guedes (1988, p. 57-58). Voltaremos ao paralelo entre a imprensa negra

paulista e leite criôlo no nosso quinto capítulo.

O que se percebe aí, tanto em um trabalho quanto no outro, é a impossibilidade de

incluir no cânone do modernismo momentos nos quais são veiculados explicitamente

valores que não são mais os nossos. Existe uma mitologia do “bom modernismo” –

cujas figuras centrais seriam, entre outros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e

Carlos Drummond de Andrade – que estaria fundamentalmente separado do “mau

modernismo” – este ligado aos movimentos Verde-Amarelo, Anta e, posteriormente, ao

Integralismo – mitologia esta cuja expressão mais literal é o livro 1922, itinerário de

uma falsa vanguarda: os dissidentes, a semana e o integralismo de Antonio Arnoni

Prado (1983). Em muitos sentidos o projeto de leite criôlo é o de um antropofagismo

racialista, expressão que parece hoje ser, por si mesma, um disparate: o resgate da

antropofagia de Oswald a partir dos anos 1960 se deu, em parte, pela vinculação entre

vanguarda estética e vanguarda política, cultural, ética, sexual etc. que se pensava ser o

cerne de tal movimento.

Localizamos apenas duas contribuições mais recentes à fortuna crítica de leite

criôlo, ambas informadas pela leitura feita por Antônio Sérgio Bueno. O primeiro é o

livro Guardiães da razão, de Helena Bomeny (1994), do qual retiramos uma das

epígrafes deste capítulo e que para nós constitui o exemplo acabado, no âmbito

acadêmico, do abismo de monumentalização e legitimidade cultural que separa hoje o

periódico “criolista” do resto do modernismo.

Radicalizando a leitura de Bueno, Helena coloca como pólos opostos leite criôlo e

A Revista, vinculando o primeiro ao lado rural e atrasado de Minas Gerais e a segunda

ao lado urbano e progressista. Como pretendemos demonstrar na nossa análise da

31
inserção do suplemento na rede modernista nacional, não conseguimos entrever o

caráter paroquial que, para Helena Bomeny, caracterizaria o suplemento. Na verdade, o

caráter universalizante de A Revista, percebido como cosmopolitismo pela autora, talvez

caracterize mais certamente uma concessão ao passadismo provinciano do momento do

que uma visão modernista mais ambiciosa, já que parte importante dos colaboradores

locais são “passadistas” convictos, o que se pode afirmar não apenas pela leitura dos

textos, como pelo testemunho de Pedro Nava5 e pela recomendação dada por Mário de

Andrade em carta a Carlos Drummond: “Façam uma revista como A Revista, botem o

modernismo bonito de vocês com o passadismo dos outros. Misturem o mais possível”
6
(apud BUENO, 1982, p. 35.). O parnasianismo, inimigo preferencial eleito pelo

modernismo brasileiro, sempre defendeu a Beleza como um ideal transcendente e

universal. Por outro lado, a temática local e regional, que caracteriza muitos textos de

leite criôlo, não nos parece um indício de um “isolamento estético de província”, antes

uma vinculação a uma das tendências do nacionalismo modernista, tendência que, aliás,

se torna dominante na década seguinte com o romance social nordestino. Assim,

vincular a publicação de João Dornas Filho ao lado rural e “atrasado” de Minas Gerais e

a de Carlos Drummond de Andrade ao urbano e “progressista” é estabelecer uma

analogia selvagem entre as temáticas literárias predominantes nas duas publicações e a

sua origem social, expressa nos termos dualistas da sociologia de anteontem. Na

verdade, quase todos os colaboradores de ambas as revistas tinham sua origem nas

famílias importantes das pequenas cidades mineiras – por exemplo, Dornas vinha de

Itaúna e Drummond, como se sabe, de Itabira – transferindo-se para Belo Horizonte

5
“A Revista... fez questão de abrir suas colunas à colaboração conservadora de Magalhães Drummond,
Alberto Deodato, Iago Pimentel, Godofredo Rangel, Pereira da Silva, Wellington Brandão, Orozimbo
Nonato, Carlos Góis e Juscelino Barbosa” (apud BUENO, 1982, p. 36).
6
Carlos Drummond de Andrade também comenta, em texto de 1952, que a “conselho de Mário de
Andrade, também porque impossível fazer de outro modo, insinuávamos nela [em A Revista] a pimenta
modernista no chôcho trivial da literatura acadêmica da época” (apud DIAS, 1968, p. 20).

32
com o objetivo de estudar, ingressando também na carreira burocrática e no jogo

político estadual.

Um último ponto na fortuna crítica de leite criôlo seria sua inclusão no quadro dos

periódicos modernistas que aparecem na obra panorâmica Vanguardas Latino-

americanas: Polêmicas, manifestos e textos críticos de Jorge Schwartz. Ali a publicação

belorizontina aparece, como de praxe, como oposta a Klaxon e à Antropofagia e descrita

da seguinte forma:

Leite Criôlo é hoje considerada uma revista pioneira no contexto


do modernismo, ao tratar de forma exclusiva a temática negra,
embora seja imatura, para não dizer racista, a maneira como
discute tal questão. (SCHWARTZ, 1995, p. 248)

Como veremos, a temática negra não é a única abordada em leite criôlo. E

esperamos demonstrar ao longo dos próximos capítulos que leite criôlo, para além de

completar os quadros da história literária, pode ser uma porta de entrada interessante

para explorar alguns aspectos especialmente problemáticos do projeto modernista e da

sua memória monumental.

33
2.Cavando um lugar de modernista: leite criôlo e a rede
modernista nacional
Guilhermino é, entre os verdes de Cataguases, o de
coração mais suave. (...) Teria Guilhermino Cesar
mudado feitio como se muda de alfaiate? Parece que o
poeta esta se buscando, inquieto neste mundo que é o
Brasil. Esta se buscando ou se perdendo.

- Enquete com escritores mineiros, Diário de Minas,


7/4/1929.

Aderir:
erro perigoso

Eu nunca aderi:
sempre fui.

- “Versos do coletor estadoal de briquite’s”,


de Fidelis Florencio, leite criôlo Nº 2, 9/6/1929.

(...)

Bôa noite, Doutor... até a vista...


Vou “cavar” meu logar de “modernista”

- “Do Flirt, do Footing, da Semana”,


Semana Ilustrada, Nº 81. 2/3/1929.

Da duração estendida dos processos de sedimentação cultural de valores literários

passamos agora ao tempo medido das tomadas de posição que definem a política

literária. Mais especificamente, trata-se de mapear a interação do grupo de leite criôlo

com os outros grupos também envolvidos no que denominamos rede modernista

nacional.

Interessa-nos aqui a figura do escritor modernista. Tal ênfase no escritor – em

oposição ao autor, suposta instância da “intencionalidade” textual – se dá no sentido da

crítica biográfica proposta por Eneida Maria de Souza (2002). Segundo ela

Esta personagem [o escritor], construída tanto pelo escritor como


pelos leitores, desempenha vários papéis de acordo com as
imagens, as poses e as representações coletivas que cada época
propõe aos seus intérpretes de literatura. (SOUZA, 2002, p. 116)

34
Dessa forma trataremos aqui do que a autora denomina “protocolos de inserção

cultural na vida literária” e descreve como parte da construção canônica do escritor

(SOUZA, 2002, p. 112).

Propõe-se que no caso em questão tais protocolos de inserção na vida literária

passam pela forma como o grupo de leite criôlo se relaciona com o que chamamos rede

modernista nacional. Entendemos tal rede como o conjunto de relações estabelecidas

entre escritores e aspirantes a escritores de todo o país – e, em alguns casos, do exterior

– em torno da ideia da adesão ao modernismo. Trata-se de compreender o modernismo

dos anos 1920 como uma configuração social, em relação à qual se realiza a produção

cultural de diversos indivíduos e grupos espalhados pelo país. Integrada nacionalmente

por uma intensa troca de correspondências e publicações – cuja dramatização textual

eram os periódicos modernistas, reunindo contribuições de diversas origens – e

localmente em círculos de sociabilidade, tal configuração não se caracteriza por um

conjunto homogêneo de ideais artísticos, intelectuais e/ou políticos ou a adesão a um

programa explícito. Pelo contrário, durante todo o período a rede modernista esteve

cindida em grupos e facções cuja oposição e concorrência variavam da discordância

respeitosa à ruptura total, sendo que o fracionamento e a intensidade das disputas se


7
tornam mais intensos no final da década de 1920, culminando na segunda “dentição”

da Revista de Antropofagia. A afinidade eletiva que reunia os modernistas brasileiros –

luta contra o “passadismo”, ou seja, a cultura “velha”, acadêmica e estabelecida – era

vaga o bastante para abrigar as diversas tendências. Na verdade, o que caracteriza a rede

é que todas as publicações, todas as obras, tinham como interlocutor implícito a própria

rede. Positivamente tal interlocução se dava na forma de influência e “inspiração”,

assim como na de público leitor privilegiado, capaz de compreender o que era visto

7
A publicação modernista paulista Revista de Antropofagia denominou suas fases de dentições, em
alusão à metáfora do canibalismo presente desde o seu título.

35
pelos leitores em geral como absurdo, ultrajante e incompreensível. Constituía também

a única instância de reconhecimento considerada pelos modernistas como

verdadeiramente legítima. A interlocução se realizava também negativamente, por

exemplo, através das polêmicas que permitiam aos modernistas demarcar suas posições

dentro do movimento. A noção de rede nos parece interessante na medida em que

descreve um espaço intermediário entre o conceito abrangente de campo literário – tal

como definido por Pierre Bourdieu (2005, p. 243-311), ou seja, o conjunto de todos os

produtores de literatura que compõem a “República das Letras”, lugar das disputas

sobre a legitimidade em matéria de literatura, na medida em que ali produzam efeitos –

e o conceito mais palpável, porém mais restrito, de grupos de sociabilidade.

Tal definição da rede modernista padece, porém, de um defeito de ordem

linguística. As formas verbais que necessariamente devem ser utilizadas criam a

impressão de uma estrutura estática com regras predeterminadas, quando na verdade se

trata de, através da pesquisa, compreender o funcionamento dinâmico e, para os agentes,

imprevisível, de uma configuração altamente instável de curta duração. Entre o primeiro

momento de expansão do modernismo a partir de São Paulo e Rio de Janeiro em

meados dos anos 1920 e a transformação da rede modernista e do próprio modernismo

na virada da década se passam apenas alguns poucos anos. Depois desse período, cujo

marco final coincide com a Revolução de 1930, muitas características da difusão

original do movimento se alteram, um exemplo entre muitos seria o fato de que o

gênero literário de preferência do modernismo dos anos 1920, a poesia, perde espaço

para os “ensaios sobre os problemas brasileiros” e para o romance – em especial, e não

por coincidência, o romance de “caráter social”. Outro exemplo seria que neste

momento parte fundamental dos antigos modernistas ingressa na alta esfera do

funcionalismo público ou então em ativa militância dentro de partidos políticos, o que

36
acaba por eliminar o caráter relativamente descompromissado dos engajamentos

intelectuais da década anterior.

A expansão nacional da rede modernista a partir do eixo Rio–São Paulo – que, na

ausência de uma referência melhor para seu início, poderia ser datada do encontro do

grupo modernista paulista com suas futuras contrapartes mineiras em 1924 – é

contemporânea do processo pelo qual, segundo Eduardo Jardim de Moraes (1978),

ocorre a adoção por parte do modernismo de um ideário nacionalista.

Temos por hipótese que o nacionalismo literário, que se tornou então um dos

pontos fundamentais de movimento que inicialmente havia se definido em torno da

questão da introdução dos procedimentos estéticos das vanguardas europeias no país,

era um dos principais atrativos de toda uma nova geração de conversos ao modernismo,

cuja emergência na rede modernista nacional se dará em torno dos anos de 1925-1928.

Ao cabo deste processo, em 1929, a rede modernista abarcava núcleos em quase todos

os estados da federação e servia de aglutinadora de toda uma parcela da juventude de

elite – muitos do quais trocavam naquele momento suas bases nas cidades do interior

por uma temporada de estudos secundários e superiores nas capitais de seus respectivos

estados.

O grupo de modernistas de Belo Horizonte que iremos analisar aqui, responsável

pela publicação em 1929 de leite criôlo, constitui um destes núcleos de novos adeptos.

Dirigido por João Dornas Filho, Guilhermino César e Achilles Vivacqua, leite criôlo só

pode ser descrito como uma “revista” na mesma medida que a segunda “dentição” da

Revista de Antropofagia: ambas as publicações eram seções semanais de jornais diários

de perfil comercial – Estado de Minas, no caso da publicação mineira, e Diário de São

Paulo, no caso da publicação paulista. Apesar de, por um lado, leite criôlo ter tido a sua

primeira edição em forma de um tablóide, lançado em 13 de maio de 1929, não muito

37
diferente nas suas características editoriais de outras revistas modernistas – como Verde,

publicada pelo núcleo modernista de Cataguases de 1927 a 1929, e a primeira

“dentição” da Revista de Antropofagia, publicada pelos modernistas paulistas entre

meados de 1928 e começo de 1929 – por outro lado, a publicação belorizontina é

marcada pelo desejo, ainda que contraditório, de se comunicar com um público mais

amplo que o da rede modernista, de ir além da literatura estrito senso em nome dos

ideais nacionalistas, impulso expresso não apenas pela sua presença em um jornal de

grande circulação, mas também pela distribuição gratuita da única edição avulsa em

praça pública.

Tal interesse por uma aproximação do universo público, que antecipa a postura de

muitos membros da geração modernista a partir dos anos 1930, não deixa de ser, como

já dissemos, contraditória considerando-se que o conteúdo publicado em leite criôlo se

vinculava necessariamente às questões e às tomadas de posição colocadas no âmbito da

rede modernista nacional e, em especial, pelas várias revistas modernistas, que eram a

principal forma de manifestação do movimento, dado que muito pouco daquela

produção literária chegava ao formato de livro.

No Brasil, a publicação de revistas literárias remonta ao século XIX (DOYLE,

1976). No contexto, porém, da aparição das revistas literárias modernistas nos anos

1920, a literatura era principalmente veiculada em revistas ilustradas e de variedades,

disputando espaço com caricaturas, fotografias, textos humorísticos etc. O paradigma

deste tipo de publicação é a longeva revista carioca Fon-fon, fundada em 1907 e ainda

em circulação na década de 1920, à qual se somam inúmeras revistas na então capital do

Brasil como Careta, Don Quixote, Paratodos e várias outras (VELLOSO, 2003, p.

360). Também em outros locais foram publicadas revistas nos mesmos moldes e neste

38
capítulo trataremos de duas delas, publicadas em Belo Horizonte nos anos 1920 e em

estreita conexão com a trajetória do grupo que publicou leite criôlo.

Símbolos da relativa profissionalização dos literatos nas trincheiras da imprensa

que caracterizou as três primeiras décadas republicanas, as revistas de variedade, na

medida em que implicavam uma relativa submissão da produção literária ao gosto de

um público mais amplo, não satisfaziam o desejo dos escritores de produzir “literatura

pura” nos padrões vigentes então no campo literário francês, referência hegemônica em

termos de produção cultural naquele momento. Dessa forma, no mesmo período foram

publicadas várias revistas focadas principalmente em questões literárias, do conjunto

das quais se destaca o ciclo das revistas simbolistas na década de 1900 (DE LUCA,

1999, p. 58). O problema básico do ponto de vista editorial destas revistas – e a

principal razão pela qual deixavam, via de regra, de circular rapidamente – era o fato de

não se sustentarem economicamente: não conseguiam cativar o relativamente restrito

público leitor de então da mesma forma que as revistas de variedades, o que significava,

além de vendas baixas, pouco interesse dos anunciantes. Segundo Tania de Luca (1999,

p. 56-59), a primeira revista comercialmente bem sucedida a romper com o modelo das

“variedades” naquele contexto foi a Revista do Brasil, publicada em São Paulo a partir

de 1916, que poderia ser definida como uma revista de cultura, e na qual a literatura

estrito senso ocupava uma posição relativamente secundária.

Pode-se afirmar que neste quadro as publicações modernistas foram

empreendimentos quase sempre deficitários, posto que circulavam em uma conjuntura

na qual o “futurismo” era, para o público leitor mais amplo, sinônimo de absurdo e

ultraje. Assim, tais revistas, feitas muito mais de crença na literatura do que de tino

comercial, recorriam muitas vezes ao mecenato – é o caso da primeira “dentição” da

Revista de Antropofagia, e provavelmente da maior parte das publicações do

39
modernismo paulista –, à cotização entre os escritores – o caso da revista Festa do Rio

de Janeiro (Cf. GOMES, 1999) –, ou mesmo a publicação enquanto suplemento no

interior de um jornal de circulação garantida – o caso de leite criôlo e da segunda

“dentição” da Revista de Antropofagia, o que implicava no beneplácito das pessoas

responsáveis por tal órgão de imprensa.

A citada renúncia a atender as demandas da ampla maioria do público leitor

disponível é expressa na ideia corrente no período de que não existe público para a

literatura no Brasil, ou seja, não existe um público “à altura” da produção de vanguarda

veiculada pelos modernistas. Se o público tal como ele se apresenta deseja o formato

das revistas de variedade, a literatura “para mulheres” de Julio Dantas8 ou mesmo a

poesia parnasiana, ele deve ser ignorado até que se forme um novo público “à altura” da

produção modernista. É neste sentido que a rede nacional modernista é a referência de

público, o universo do leitor modelo, que se manifesta implicitamente nas publicações

modernistas. As próprias publicações encenam a rede, seus fios, seus nós: quem publica

o que onde, o que diz a resenha de fulano da obra de sicrano na revista X etc. Revistas

se resenham umas às outras, definem suas posições, suas afinidades, diferenças e

divergências. No terreno volátil da vanguarda literária é ali que se define, no calor da

hora, publicação a publicação, número a número, o quem-é-quem da província rebelde

da “República das Letras” brasileira. Concretamente, as revistas são distribuídas

nacionalmente através de redes de correspondência9 e seus exemplares ou recortes

8
Em leite criôlo foi publicado um texto ridicularizando este escritor português, autor de títulos como “O
Eterno Feminino”, “O que morreu de amor” e “O primeiro beijo”, que é descrito no texto como um
produtor de literatura “açucarada” para o público feminino. Cf. “Julio Dantas, o Brumel” de Oswaldo
Abrita em LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de julho de 1929.
9
Como comprovação podemos citar trechos da carta de Antônio de Alcântara Machado a Tristão de
Athayde, na qual ele diz que a função de Raul Bopp como secretário da primeira “dentição” da Revista de
Antropofagia “se limitava a enviar pelo correio 70% da tiragem” (apud SANTIAGO, 2003, p. 107); da
carta de Carlos Drummond de Andrade a Oswald de Andrade de maio de 1929 a respeito da segunda
“dentição” da Revista de Antropofagia – “estou ciente da revista, que leio sempre no ‘Diário de São
Paulo’ (a propósito: obrigado pela remessa do jornal, que só posso atribuir a V.)” (apud DORNAS
FILHO, 1959, p. 88.); e da carta de Ascenso Ferreira a Achilles Vivacqua, datada de 5 de dezembro de

40
deles10 são colecionados por membros dos múltiplos núcleos modernistas espalhados

pelo país.

A expansão máxima da rede modernista se dá até 1929 e tem por símbolo maior a

primeira “dentição” da Revista de Antropofagia que circulou entre meados de 1928 e

início de 1929. As desavenças que puseram fim à primeira fase da revista paulista e

presidiram o surgimento da sua segunda “dentição”, processo que será analisado neste

capítulo, marcam o começo da fragmentação e das transformações da rede, que se

recomporia sobre bases bastante diferentes na década seguinte. Paradoxalmente, é neste

momento que as articulações da rede quase chegam a ser nomeadas enquanto tal por

seus próprios integrantes: na segunda “dentição” da Revista de Antropofagia, os núcleos

modernistas espalhados pelo país que se correspondem com a publicação paulista são

denominados “clubes de antropofagia” e são descritos em artigos apropriadamente

denominados “Expansão Antropofágica”11 e “desde o Rio Grande até o Pará”12. Nestes

textos não se trata da geografia da rede modernista, mas da geografia de uma facção

desta, dado o conflito que a segunda encarnação da publicação antropofágica estabelece

com a maior parte dos escritores e tendências estabelecidos do modernismo de então.

Mas, como veremos em maior minúcia, tal facção não possui a solidez de que se arroga:

o grupo de leite criôlo, descrito na publicação paulista como “clube de antropofagia de

Minas Gerais”, não pode ser compreendido como uma filial da antropofagia, ele

1929, na qual aquele reclama com este que não tem recebido “o Estado de Minas, nem Leite Crioulo, nem
Montanha [revista modernista de Ubá], nem nada” e atribui tal fato à desorganização dos Correios – na
verdade, leite criôlo havia publicado sua última edição em 29 de setembro daquele ano (Carta de Ascenso
Ferreira a Achilles Vivacqua (5/12/1929). Série correspondência. Caixa 1 [Classificação provisória].
Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG). A remessa de publicações como a
segunda “dentição” da Revista de Antropofagia e leite criôlo, publicados em jornais comerciais de
circulação local, para integrantes da rede modernista nacional de outros estados demonstra a relativa
continuidade das formas de circulação em relação às revistas modernistas avulsas, nestes casos somada à
circulação normal daqueles diários.
10
Os arquivos pessoais de escritores modernistas, como aquele de Achilles Vivacqua depositado
atualmente no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, muitas vezes incluem este tipo de material nos
seus acervos.
11
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 10, 12 de junho de 1929.
12
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 13, 4 de julho de 1929.

41
constitui, na verdade, mais um núcleo relativamente independente no interior da rede

modernista, chegando em determinado ponto a romper com a publicação paulista.

A dimensão das tomadas de posição literárias explícitas – aquilo que poderia ser

denominado como “política literária” ou, para usar a expressão de Fernando Correa

Dias (1968, p. 93), trajetória exterior – será aqui o foco principal: as tomadas de posição

que se materializam estilística e tematicamente nos próprios textos publicados no

suplemento serão tratadas de maneira mais pormenorizada nos próximos capítulos. As

epígrafes acima – a primeira de um poema satírico modernista publicado em leite criôlo

e a segunda de uma crônica em versos publicada na revista de variedades Semana

Ilustrada, analisada mais adiante – servem de pontos de referência para as múltiplas

tomadas de posição que serão analisadas aqui. A fórmula “cavar um lugar”, no contexto

do trecho citado se referindo à proximidade de alguns modernistas mineiros com o

governo estadual, ressalta a dimensão do interesse presente nas tomadas de posição

analisadas. Já a expressão “aderir”, que no poema citado se refere à dignidade e à

abertura que implicaria assumir um novo ponto de vista no contexto da vida política,

conota a dimensão da crença, também fundamental para compreender a trajetória das

tomadas de posição. Associada a primeira à baixeza da mesquinhez e a segunda à

elevação dos ideais, ambas constituem implicitamente formas de julgar as tomadas de

posição – acusar as crenças do inimigo de serem nada mais que formas de mascarar seus

interesses é uma das mais clássicas estratégias discursivas presente em todas as formas

de política, incluída aí a luta política propriamente literária que se desenvolve no

interior da “república das letras”. Pretendemos, na presente análise, fugir à tentação

dupla do eufemismo idealizante e da denúncia reducionista, atentando à necessária e,

por vezes, tensa simbiose entre crenças e interesses.

42
Quanto à forma, nossa análise se estruturará em termos de narrativa, assinalando

que, no decorrer da exposição, a ordem estritamente cronológica da documentação cede

por vezes lugar à ordem lógica da argumentação. Tal opção pela narrativa se dá em

função da transitoriedade do objeto em questão: pensadas sincronicamente determinadas

tomadas de posição analisadas se tornam incompreensíveis. Acreditamos ser este o caso

da análise de Antônio Sérgio Bueno (1982, p. 167-177) das relações entre leite criôlo e

a Revista de Antropofagia – posto que este autor, ao tentar compreender como e porque

as duas publicações modernistas são referidas alternadamente como vinculadas ou como

opostas, acaba por não encontrar uma solução satisfatória devido ao caráter sincrônico

da sua análise. A seguir tentaremos propor uma resposta à mesma indagação básica a

partir da análise da trajetória das adesões e rupturas do grupo de escritores de leite

criôlo e de sua publicação no interior da rede modernista nacional.

O consórcio do velho lirismo com a poesia moderna

A análise da trajetória das tomadas de posição de qualquer grupo literário dentro

do movimento modernista nos anos 1920 precisa partir da tomada de posição que

constitui a própria adesão ao movimento. Ao contrário de outras “escolas literárias”

constituídas retrospectivamente a partir do trabalho da crítica literária, a pertença ao

modernismo enquanto movimento, na década de 1920, envolvia uma declaração desta

pertença. Implicava também a vinculação à rede modernista nacional através da troca de

correspondência com figuras centrais do movimento e, em especial, da publicação de

textos ou resenhas de seus trabalhos nos periódicos modernistas de maior prestígio. A

publicação de um periódico próprio possibilitava aos grupos novatos publicar trabalhos

dos escritores modernistas mais estabelecidos, cimentando a mútua vinculação literária,

além de possibilitar a publicação dos próprios trabalhos e dos de outros aspirantes a

escritor. Outro ponto a ser considerado é que muitos dos que aderiam ao modernismo já

43
haviam se lançado como escritores, através de poemas estilisticamente assimiláveis ao

parnasianismo e ao simbolismo ou então de trabalhos em outros gêneros que seriam

igualmente classificados como “passadistas” dentro da lógica modernista. Nessas

situações tornar-se modernista significava uma verdadeira “conversão”, implicava

construir uma nova persona literária por oposição à anterior: foi o caso de Jorge de

Lima, que havia sido coroado “príncipe dos poetas” de Alagoas graças à fama de seu
13
soneto “Acendedor de lampiões”, e também de dois dos diretores de leite criôlo, cuja

trajetória será analisada em detalhes mais adiante.

Mas é preciso lembrar que a descrição genérica das estratégias objetivamente

utilizadas pelos novatos que se lançavam como escritores no âmbito do modernismo dos

anos 1920 é uma reconstrução a posteriori. O que a análise revela na dimensão objetiva

da estratégia é vivido no âmbito subjetivo da crença. Se lançar como escritor constituía

uma aposta na qual, especialmente no meio volátil da “vanguarda”, as variáveis eram na

maioria das vezes desconhecidas: como saber, por exemplo, a qual das “figuras centrais

do movimento” pertencia o futuro do modernismo? Talvez em 1924 o grupo de Graça

Aranha pudesse parecer mais central e promissor do que o grupo paulista que seria

considerado em décadas posteriores quase como um sinônimo do movimento. Como

veremos adiante, leite criôlo se defrontou em 1929 com a necessidade de optar entre as

lideranças conflitantes de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, questão que marcou

profundamente o surgimento, a existência e o desaparecimento da publicação mineira.

Assim, cabe à descrição detalhada do caso em questão restituir a textura complexa dos

acontecimentos, necessariamente ausente das abstrações de caráter generalizante.

O grupo modernista vinculado a leite criôlo se caracteriza pela adesão

relativamente tardia ao movimento. Seus diretores, João Dornas Filho, Aquiles

13
Como lembravam sempre os críticos “passadistas” ao rejeitar sua conversão ao modernismo. Cf.
SANT´ANA, 1978, p. 32 e 53.

44
Vivacqua e Guilhermino César, constituíam um segundo núcleo de escritores

modernistas em Belo Horizonte. O primeiro – composto por Carlos Drummond de

Andrade, João Alphonsus, Emílio Moura, Martins de Almeida, Pedro Nava, Abgar

Renault e outros – havia sido responsável pela publicação das três edições de A Revista

em 1925-1926 e já estava em contato com os modernistas paulistas desde a viagem

destes a Minas Gerais em 1924. Como mostra Maria Zilda Cury (1998, p. 74-84),

alguns deles já se interessavam por literatura moderna antes desta data. O grupo de leite

criôlo, por sua vez, demoraria um pouco mais a aderir ao modernismo: tanto Vivacqua

quanto João Dornas publicaram escritos classificáveis como “passadistas” na imprensa

mineira antes da sua “conversão” definitiva. Para eles – assim como para o terceiro

diretor de leite criôlo, Guilhermino César, que era seis anos mais novo que Dornas e

cuja estréia literária já se deu no âmbito do modernismo14 – o ano chave para suas

atuações como “escritores modernos” parece ter sido, como mostraremos, 1927.

Como vários outros estudantes da Faculdade de Direito provenientes das famílias

importantes do interior, os diretores de leite criôlo complementavam sua renda

trabalhando no serviço público e na imprensa. Mas enquanto Drummond havia sido

colaborador, redator e, por fim, redator-chefe do jornal Diário de Minas, órgão

noticioso oficial do Partido Republicano Mineiro de publicação diária (WERNECK,

1992, p. 13-30), Vivacqua foi redator das revistas de variedades Cidade Vergel, em

1927, e Semana Ilustrada, de 1927 a 1929. Dornas também colaborou com a segunda

publicação, tornando-se um dos redatores a partir de 1929. Em ambas as revistas,

caricaturas, fotos, crônicas e artigos de todos os tipos refletiam a esfera de sociabilidade

das famílias importantes e dos estudantes universitários – naqueles tempos vindo

estritamente das camadas mais altas da sociedade. Uma das seções de Semana Ilustrada,

14
Dornas nasceu em 1902 na cidade de Itaúna, tinha, portanto, a mesma idade que Drummond, já
Guilhermino havia nascido em Cataguases no ano de 1908. Cf. DIAS, 1968, p. 12.

45
por exemplo, encenava o famoso “footing” da Praça da Liberdade na crônica em versos

semanal “Do Flirt, do Footing, da Semana”.

Na gama das “variedades” de Cidade Vergel e de Semana Ilustrada havia sempre

espaço para a literatura. Os próprios subtítulos destas publicações – “revista de artes e

letras” e “revista noticiosa, artística e literária”, respectivamente – talvez demonstrem a

importância da literatura e da arte como temas de conversação mundana no âmbito da

“boa sociedade” belorizontina de então. Mais certo é que a presença da literatura nessas

revistas se vinculava também às pretensões literárias dos homens de imprensa

responsáveis por sua publicação. O proprietário e diretor Delorizano de Morais e o

redator-chefe Romeu Avelar (pseudônimo de Luís de Araújo Morais, irmão de

Delorizano) de Semana Ilustrada, por exemplo, já haviam trabalhado juntos em uma

revista de feição mais estritamente literária de curta duração, Proteu, em 1920 (DIAS,

1968, p. 44; VIVACQUA, 1997, p. 38; LINHARES, 1995, p. 203).

De Cidade Vergel, revista que se propunha mensal, só conseguimos localizar as

edições de maio e de junho de 1927. Dentre os textos propriamente literários se

encontram vários poemas do grupo modernista de A Revista, incluindo Emílio Moura e

João Alphonsus. Semana Ilustrada parece ter sido um empreendimento mais viável

comercialmente15 e a linha literária dos textos ali publicados era, com raras exceções,

mais estritamente “passadista”. Surgida em 1927, alcançou em maio de 1929 sua edição

de número 91. Sua periodicidade semanal foi observada com uma regularidade que o

colecionador e memorialista da imprensa belorizontina Joaquim Nabuco Linhares

(1995, p. 248) considerou digna de nota para uma publicação do seu gênero na Belo

Horizonte de então.

15
Os exemplares de Semana Ilustrada são salpicados de anúncios, além disto, na página de expediente
estão relacionados os preços dos variados formatos de propaganda disponíveis aos anunciantes da revista.
Tais fatos talvez corroborem a hipótese de que a publicação possuía um grau de organização do ponto de
vista comercial incomum em face do amadorismo da imprensa belorizontina de então.

46
No que interessa à questão da adesão ao modernismo, o importante é que, ainda

em janeiro de 1928, João Dornas Filho publica um soneto, intitulado “A creação”, nas

páginas da Semana Ilustrada16. Publicar um soneto, forma fixa símbolo do

parnasianismo, significava, para os círculos modernistas de então, uma confissão

inapelável de “passadismo”. No entanto, na edição de junho do ano anterior da revista

Cidade Vergel aparece um poema moderno de Dornas, sem rimas e de métrica livre,

chamado “O moço que andava nos cavalinhos de pau”. Logo apareceria também nas

páginas da edição de janeiro de 1928 da revista modernista Verde de Cataguases outro

poema moderno seu. Intitulado “Meus oito annos”, o poema em verso livre justapunha

a temática da infância na cidadezinha do interior a trechos de cantigas e brincadeiras de

roda transcritos através de uma ortografia que mimetizava a oralidade (“– tatú tá no

munho?”), trabalhando assim temáticas e procedimentos poéticos bastante em voga

entre os modernistas de então. Temáticas e procedimentos que também farão sua

aparição em leite criôlo, como veremos no próximo capítulo.

Durante os anos de 1928 e 1929, João Dornas Filho continua a publicar textos

propriamente literários em meio às variedades de Semana Ilustrada. Trata-se, no

entanto, de contos sem maiores ousadias formais, cuja temática às vezes pode ser

indistintamente qualificada de regional ou de modernista-nacionalista. No âmbito da

prosa não havia neste momento uma contraposição tão rigorosa entre “passadismo” e

modernismo quanto na poesia. Mas, se em Semana Ilustrada nada se publicou da

produção poética mais caracteristicamente moderna de Dornas17, sua conversão ao

16
Recorte da Semana Ilustrada datado a caneta “Ano 1 Nº 32 Janeiro de 1928”. Série fortuna crítica.
Caixa2 (Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG
17
A revista Semana Ilustrada chegou a publicar alguns poemas modernos. Na edição de Nº 34 de 21 de
janeiro de 1928, por exemplo, apareceram sob a rubrica “Modernistas” os poemas “Os meus versos
impressionistas...” de Odilon Negrão e “O bailado da lua” de Evagrio Rodrigues. Mas ambos poderiam
ser definidos como “modernistas” apenas na medida em que não apresentam métrica fixa e rimas, aliás,
parcialmente presentes no segundo. Aspectos estilísticos do modernismo de então como, por exemplo, a
coloquialidade, a ortografia fonética, a justaposição de imagens e a temática nacional não aparecem

47
modernismo não passou despercebida nas páginas da revista. A crônica semanal em

versos “Do Flirt, do Footing, da Semana”, de 2 de março de 1929, tinha por um dos

temas o modernismo, o que poderia ser um indício do grau em que o movimento se

tornou tópico de conversação mundana. A parte referente ao modernismo e a João

Dornas é a seguinte:

(...)
E o João Dornas, rapaz intelligente
Abraçar essa asneira [o modernismo] de repente...

Preguiça de estudar e de saber


A syntaxe do nosso verbo Haver

O “Diário de Minas” é a parteira


Desse tal “movimento” de ... besteira

Um jornal do Governo-futurista!
De fato não ha mesmo quem resista

Agora vejo que o João tem razão:


Está chegando o tempo de eleição...

Bôa noite, Doutor... até a vista...


Vou “cavar” meu logar de “modernista”18

A sátira mobiliza, além de chavões anti-modernistas (“preguiça de estudar” etc.), o

aparente contra-senso de a publicação comprometida com a literatura moderna – ou,

como diriam, com o “futurismo” – em Belo Horizonte ser o jornal do PRM, eterno

partido do governo estadual no contexto da chamada “república velha”. Para a presente

análise, o importante é que o grupo de Carlos Drummond de Andrade, responsável pela

presença do modernismo no Diário de Minas, é considerado a “parteira” do movimento

no estado e a adesão de Dornas é considerada uma conversão repentina. A partir de tais

elementos é que a crônica argumenta, a título de piada, que a adesão de Dornas é um ato

político interesseiro, uma demonstração de fidelidade ao governo conveniente em

tempos de eleição, a ser jocosamente imitado pelo eu-lírico da sátira: uma brincadeira

nestes poemas e talvez tal fato seja um indício de que a produção poética mais ostensivamente modernista
não encontraria lugar na revista.
18
SEMANA ILUSTRADA, Nº 81. 2/3/1929

48
na qual sobressai uma ponta de ressentimento da parte dos escritores “passadistas” que

dividiam a redação de Semana Ilustrada com Dornas e Vivacqua quanto à posição

alcançada pelo jovem “futurista” Drummond19.

Em suma, pelo que podemos constatar a trajetória do escritor de Itaúna em direção

à “asneira” modernista pode ser qualificada como repentina. Da publicação do soneto

na Semana Ilustrada em 1928 até a menção de seu nome como líder da “parte boa” do

modernismo mineiro na segunda dentição da Revista de Antropofagia e da aparição de

leite criôlo – a publicação mais radicalmente modernista publicada na Belo Horizonte

dos anos 1920 –, em 1929, transcorrera pouco mais de um ano. Tal fato não passaria

despercebido pela imprensa no momento em que veio à luz a publicação dirigida por

Dornas, Aquiles Vivacqua e Guilhermino César. Uma crítica publicada no jornal Folha

da Noite, de 11 de maio de 1929, mencionava o escritor de Itaúna como “o João Dornas

Filho, dos contos passadistas, longos como os versos kilometricos de Murilo Araújo”,

estranhando que ele e os outros dois diretores estivessem envolvidos em uma

publicação “á maneira do desenfreado movimento anthropophagico de S. Paulo” e

concluía: “Tem sido um pá-rá-pá-pá dos demônios. Até parece carnaval” 20.

No mesmo artigo Vivacqua aparecia como

o auctor de “Serenidade”, que o Totó Alcantara [Antônio de


Alcântara Machado, modernista paulista, diretor da primeira
dentição da Revista de Antropofagia], o mercador ambulante de
“laranjas da china” literárias [referência ao livro de contos de
Alcântara, Laranja da China], não gostou por que era “o livro de
um principiante”.

Serenidade era o nome da plaqueta com seis poemas que Aquiles publicou,

provavelmente no começo do ano de 1928. Foi possível – através de cartas acusando o

recebimento da obra e resenhas guardadas pelo próprio autor – acompanhar a recepção

19
A postura política oportunista ou “adesista” será também alvo de sátiras publicadas em leite criôlo,
como veremos no próximo capítulo.
20
FOLHA DA NOITE, 11/5/1929.

49
do livro pela rede modernista nacional e por outros setores da crítica. As vinte e quatro

cartas agradecendo e/ou comentando o envio deste livro, encontradas no arquivo pessoal

de Achilles, demonstram a vontade do autor de se fazer presente através desta obra na

“república das letras” de então. Entre os destinatários encontram-se figuras expressivas

de várias vertentes do modernismo de então (Antônio de Alcântara Machado, Paulo

Prado, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira e outros), incluindo estrangeiros (Blaise

Cendrars, da França; Idelfonso Pereira Valdez, do Uruguai), assim como “passadistas”

(Plínio Motta, da Academia Mineira de Letras; Renato Travassos e Carlos Lomba que

se declaram avessos ao modernismo nas suas cartas). É interessante notar que, antes da

publicação de Serenidade, Vivacqua publicou, em ambas as revistas de variedades às

quais nos temos referido e também em outros veículos, vários contos e crônicas

passadistas dos quais são exemplos a prosa simbolista de “O Lindo Poema” 21 e o conto
22
“Dôr”, este último assinado com o pseudônimo Roberto Theodoro. Com o mesmo

pseudônimo assinou resenhas na seção “Bibliografia” de Cidade Vergel e também

nestes textos de crítica literária não transparecem maiores sinais de adesão modernista.

A única menção ao movimento se dá de maneira ambígua – como complemento na

descrição da “desvantagem intelectual do nosso meio artístico – onde se tem agitado a

corrente moderna que tanto preocupa a nova geração” – em uma resenha elogiosa de um

livro de poemas marcadamente “passadista” 23.

Neste contexto não é de se estranhar que Cyro dos Anjos, cuja adesão ao
24
modernismo também foi relativamente tardia (Cf. WERNECK, 1992, p. 79-80),

tenha escrito em uma resenha do livro publicada em Semana Ilustrada que “o autor de

Serenidade devia (...) ser advertido que seu espirito não se molda, muito bem, à nova

21
CIDADE VERGEL, Nº 2. Junho 1927.
22
SEMANA ILUSTRADA, Nº 29. 17/12/1927.
23
CIDADE VERGEL, Nº 2. Junho 1927.
24
Cyro dos Anjos publicaria depois textos modernistas em leite criôlo.

50
escola [literária] em o que está, aliás, de parabéns”. No entanto, o futuro autor de O

amanuense Belmiro registra a “influencia modernista da forma [versos livres]” no livro.

Mais interessante é a menção de que “Achilles Vivacqua ha tempos se entrincheirou na

phalange dos modernos e se permite, de quando em quando, as exquisitices de seus

companheiros de credo esthetico, umas imagens arriscadas e outros atrevimentos de


25
linguagem” .

Talvez esta última citação faça referência à convivência de Aquiles Vivacqua com

elementos do grupo modernista de A Revista no espaço de sociabilidade que veio a ser


26
denominado por alguns memorialistas como “Salão Vivacqua” . Ao contrário de

outros estudantes universitários na Belo Horizonte de então, Vivacqua morava com seus

pais, irmãos e irmãs: todos se mudaram de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo,

para a recente capital mineira esperando que os “afamados ares” desta cidade

melhorassem o quadro de tuberculose de Aquiles, quando este era ainda adolescente. A

residência familiar tornou-se então ponto de encontro dos amigos de Vivacqua –

estudantes, jornalistas e aspirantes a escritor – que compareciam aos saraus e

“assustados” nos quais se faziam presentes também as mais velhas dentre as irmãs do

escritor, momentos de sociabilidade que contrastavam em certa medida com os bares e

cafés que costumam ser invocados quando se fala dos estudantes-jornalistas-escritores

modernistas de Belo Horizonte. 27 Segundo a memorialista Eunice Vivacqua (1997, p.

30-42), os encontros eram frequentados tanto por modernistas do grupo de A Revista

(Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Pedro Nava, Milton Campos) quanto

25
SEMANA ILUSTRADA, Nº 37. 11/2/1928.
26
Pelo que podemos levantar não se tratava propriamente de um salão literário, como o que era mantido
por Olívia Penteado no mesmo período em São Paulo, mas um espaço no qual eram realizados saraus e
“assustados” (festas dançantes mais ou menos improvisadas) que foi apelidado de salão por seus
freqüentadores. Pode-se talvez arriscar que o salão artístico propriamente dito (organizado pela dona da
casa e tendo por convidados artistas de certo renome) está para tais saraus literários (organizado e
freqüentado por amigos do filho da casa) da mesma forma que a família Penteado (alta burguesia cafeeira
paulistana) está para a família Vivacqua (proprietários de armazém de secos e molhados de classe média
alta de origem capixaba residindo em Belo Horizonte). Cf. VIVACQUA, 1997, p. 42-43.
27
Cf, por exemplo, DIAS, 1968, p. 67-71 e WERNECK, 1992, p. 35-38.

51
pelo círculo “passadista” ligado à Semana Ilustrada (além dos irmãos responsáveis pela

publicação, Evagrio Rodrigues e Baptista Santiago), contavam também com a presença

dos outros futuros co-diretores de leite criôlo, João Dornas e Guilhermino César. A se

confiar na datação apresentada nas memórias da irmã de Aquiles, 1922-26, isto

implicaria que Vivacqua mantinha relações pessoais com a primeira geração de

modernistas mineiros já há algum tempo quando da conversão definitiva da sua persona

literária ao movimento (VIVAQUA, 1997, p. 36). 28

Mas se na sua própria casa Vivacqua conciliava modernismo e “passadismo” –

assim como nos versos de Serenidade conciliava, aparentemente, ambos os estilos

literários – as reações por parte da crítica ao seu livro variaram consideravelmente entre

os adeptos de tais “escolas literárias”. Os comentários produzidos pelos destinatários da

plaqueta qualificáveis como “passadistas” seguiam, em linhas gerais, o tom elogioso do

texto de Cyro dos Anjos ao qual já nos referimos. 29 Mas, como já prevenia uma resenha

publicada no jornal uruguaio El Heraldo de Goes, “‘Serenidade’ (...) es una tentativa de

consorcio del viejo lirismo con la poesia moderna, que tal vez no agrade a los

modernistas denámicos, auto-parlante aeroplánicos”. 30 E, de fato, figuras mais centrais

do modernismo brasileiro – que há muito já haviam abandonado a temática auto-falante-

aeroplânica, demasiado associada à pecha de “futurismo”, por um tratamento

“primitivista” e coloquial da temática nacionalista (Cf. MORAES, 1978, p. 49-105) –

parecem não ter se impressionado com o livro de Vivacqua. Blaise Cendras, Paulo

28
O principal problema desta datação – proposta não pela autora, mas pela filha de Baptista Santiago em
carta citada no livro – é remontar os encontros a um período anterior ao estabelecimento da primeira leva
de modernistas de Belo Horizonte, que data de não muito antes de 1924. Para nós, uma datação mais
verossímil seria algo como 1925-1927, o que, no entanto, não invalida nosso argumento apresentado no
corpo do texto.
29
Carta de Renato Travassos a Achilles Vivacqua (2/4/1928), Carta de Carlos Lomba a Achilles
Vivacqua (26/5/1928), Cartão de Plínio Motta a Achilles Vivacqua (sem data). Série correspondência.
Caixa 1 (Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG
30
Recorte do jornal El Heraldo de Goes, “Montevideo, Abril 27 de 1929”, colado no Álbum de Achilles
Vivacqua, P. 62. Série Álbum de Achilles Vivacqua. Caixa 1 (Classificação provisória). Fundo Achilles
Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG.

52
Prado e Manuel Bandeira enviaram para Vivacqua notas lacônicas agradecendo o envio
31
do livro, no caso dos dois últimos escritas sobre pequenos cartões de visita. Não

encontramos a crítica aparentemente demolidora de Antônio de Alcântara Machado

mencionada na resenha de leite criôlo aparecida no jornal Folha da Noite, já citada

anteriormente. Mas, em carta para Achilles datada de 8 de fevereiro de 1928, o escritor

paulista descreve Serenidade como a “tossidela que o orador dá antes de iniciar o

discurso” e complementa:

Você tossiu Serenidade. Ficou assim liberto de algumas tantas


antigualhas que lhe enfeiavam [sic] a poesia. Estou certo disso. E
estou porque conheço o seu excelente [poema] Samba. Para você
cantar Samba foi preciso primeiro pôr fora Serenidade. (...) Tenho
fé no poeta do [sic] Samba. 32

A recepção não muito favorável do livro nos meios mais estritamente modernistas

pode ser acompanhada também através da resenha razoavelmente simpática ao poeta

publicada na revista Verde de Cataguases pelo escritor Rosário Fusco. Vale a pena

transcrever na integra:

Os versos são do principio da vida literária do poeta e quasi que a


gente já conhecia todos.
Um punhado de críticos (?) [sic] escreveram sobre uma tal [sic] de
influências flagrantes de que se resente encharcado (dizem êles) o
livrinho Serenidade. Graças a Deus não entendo de crítica, nem
críticos – e não dou valor nenhum mesmo pra alguns deles. Porisso
[sic] é quêu [sic] acho que falar em influencias é bobagem.
Esplicar [sic] porquê seria cansar.
Achilles Vivacqua (Roberto Theodoro) é o mesmíssimo que
escreveu aqueles bonitissimos versos de Samba que esta revistinha
de vocês publicou no seu numero de estréa. Pra mim este
poeminho só marcou bem Achilles Vivacqua enchendo a gente de
confiança bastante pras suas coisas futuras.
Por emquanto já se pode falar que Serenidade é um livro de
POETA. Mais, [sic] acho que o Achilles não deseja não33.

31
Carta de Blaise Cendras a Achilles Vivacqua (25/2/1928), Cartão de Manuel Bandeira a Achilles
Vivacqua (1928), Cartão de Paulo Prado a Achilles Vivacqua (sem data). Série correspondência. Caixa 1
(Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG.
32
Carta de Antônio Alcântara Machado a Achilles Vivacqua (8/2/1928). Série correspondência. Caixa 1
(Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG.
33
VERDE Nº 5 Abril de 1928, p.9.

53
O texto, que utiliza os procedimentos estilísticos mais ousados em voga entre os

modernistas de então, começa justificando o livro por conter versos do “princípio da

vida literária”, implicando certo descrédito pela produção anterior de Vivacqua. Segue

um desmentido da pouca originalidade do livro que não afirma em nenhum momento,

porém, que o mesmo seja efetivamente original. O próximo parágrafo elogia um poema

– o mesmo citado na carta de Alcântara Machado – que não se encontra em Serenidade

e que justifica as esperanças depositadas no autor, deixando implícito que os versos

incluídos no livro talvez não as justificassem. Do trecho final, extremamente ambíguo,

poderia ser proposta talvez a seguinte interpretação. Dado que a expressão “é um

POETA” constitui um clichê dos elogios da crítica “passadista”, Fusco poderia estar

sugerindo que, para o próprio Vivacqua, mais valeria uma resenha esquiva e ambígua

partindo dos próprios modernistas do que elogios rasgados vindos do “inimigo”.

É preciso lembrar que a resenha de Rosário Fusco deve ser considerada simpática

ao poeta, em especial vindo do enfant terrible do modernismo de Cataguases, capaz de

escrever, por vezes, críticas extremamente cáusticas sobre figuras bastante centrais da
34
rede modernista nacional. A razão da relativa brandura de Fusco talvez resida na

amizade de Vivaqua com o terceiro dos diretores de leite criôlo, Guilhermino César.

Nascido em Cataguases e tendo participado desde o princípio do grupo de estudantes

interessados em literatura moderna que viria a publicar a revista Verde, Guilhermino

havia se mudado, em 1926, para Belo Horizonte com o fim de ingressar na Faculdade

de Direito (CESAR, 1978, p. s/n). É provável que naquele momento ele e Ascânio

Lopes, que residia na capital desde 1925, servissem de ponte entre o grupo da revista

Verde e os modernistas belorizontinos, tanto aqueles que haviam sido responsáveis pela

publicação de A Revista quanto aqueles recém-convertidos ao modernismo nos quais

34
Cf., por exemplo, os reparos enfáticos que Fusco, então um estudante de 17 anos de idade, põe nas suas
resenhas de modernistas importantes daquele momento como Sérgio Milliet (VERDE Nº 2 Outubro de
1927 P. 26) e Cassiano Ricardo (VERDE Nº 5 Abril de 1928, p.9).

54
temos focado nossa análise, Aquiles Vivacqua e João Dornas Filho. O fato é que o

primeiro poema de Vivacqua publicado em Verde – “Samba”, mencionado na resenha

de Fusco e na carta de Antônio de Alcântara Machado – saiu já na primeira edição da

revista moderna de Cataguases, que contou basicamente com colaborações dos

modernistas daquela pequena cidade da Zona da Mata e dos seus contrapartes da capital

do estado. A inesperada repercussão da publicação nos principais meios literários

modernos acabou por introduzir os estreantes de Verde, assim como os futuros diretores

de leite criôlo, naquilo que denominamos rede modernista nacional e, a partir do

segundo número, a revista pôde contar com a colaboração de alguns dos principais

nomes do movimento, àquela altura, sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo. E

“Samba”, publicado sob o pseudônimo Roberto Theodoro que Aquiles também usava

para a sua produção passadista, era um poema que não ficava a dever nada em termos

de “modernidade” à produção ali veiculada: os versos ousadamente aliterativos e

assonantes, centrados em palavras de origem africana, se encontravam recortados

irregularmente sobre o branco da página e tinham por temática o tipo de cultura original

e “primitiva”, no caso a dança dos “corpos pretos” da senzala, característico de certa

vertente do nacionalismo modernista35. Vivacqua publicaria mais três pequenos

“Poemas de Belo Horizonte” na edição seguinte de Verde36, série depois continuada em

leite criôlo.

Dos futuros diretores de leite criôlo, Guilhermino César foi o que mais publicou

nas seis edições da publicação de Cataguases. Foram ao todo quatro poemas, duas

resenhas e um pequeno conto37. Além disso, sua assinatura consta no manifesto da

35
O poema foi publicado novamente nas páginas de leite criôlo e será retomado nas análises do próximo
capítulo. Cf. VERDE Nº 1 Setembro de 1927, p. 26
36
VERDE Nº 2 Outobro de 1927, p.14
37
Poemas: “Noturno” (VERDE Nº1, 9/1927), “Crônica Quase Policial da Barroca” (VERDE
Nº4,12/1927), “Balada do Arco-Íris da Gente”, “Tio Santana”, (VERDE Nº5, 1/1928-4/1928). Resenhas:

55
revista: mesmo morando em Belo Horizonte ele fazia parte do grupo modernista de

Cataguases. Ao que tudo indica sua estreia literária já se fez em águas modernistas e –

quando publicou seu primeiro livro de poemas, Meia-Pataca, em conjunto com

Francisco Inácio Peixoto, no ano de 1928 – Guilhermino tinha apenas 20 anos de idade.

Em suma, aplicar-se-ia também a ele a desarticulada frase telegráfica com que se auto-

qualificou seu parceiro de livro, “nacido [sic] e criado dentro modernismo” 38.

No extremo oposto da trajetória de Guilhermino encontra-se o caso do colaborador

de leite criôlo Wellington Brandão. Não sendo um dos diretores, Brandão era, no

entanto, uma das vozes mais distintivas da publicação e só ficava a dever a eles no

número de textos publicados no suplemento, assinando em todos eles como Fidelis

Florêncio. Nascido em 1894, era 12 anos mais velho que Guilhermino e é descrito na

enquete literária realizada pelo Diário de Minas nos primeiros meses de 1929 – enquete

que será mais à frente analisada com maior detalhamento – como um advogado e

industrial que, residindo na cidade de Passos, “fez mais pelo modernismo do que muitos

vanguardistas das capitaes”. 39 Em 1927, ela já havia publicado quatro livros, sendo dois

de poemas parnasianos e simbolistas, um de “pensamentos e emoções” e um de

contos.40 Este último, datado de 1926, chegou a ser resenhado em Verde por Ascânio

Lopes e, descontado o estilo mais sóbrio de Ascânio, o julgamento emitido era bastante

semelhante ao de Rosário Fusco em relação a Serenidade: Bonecos de Pano de

Wellington Brandão. Não era um livro inteiramente desprovido de qualidades, no

entanto, as qualidades de seu autor deveriam ser avaliadas, assim como as de Vivacqua

“Baianinha e Outras Mulheres”, “Arraiada Mineira” (Nº 5, 1-4/1928). Conto: “Santinha da Encarnação”
(VERDE Nº1, 9/1927)
38
VERDE Nº 4 Dezembro de 1927, p. 13.
39
DIARIO DE MINAS, 14 de fevereiro de 1929.
40
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Usu%C3%A1rio:Lucasbrandaoarouca. Acesso 2 de abril de 2008.

56
na resenha de Fusco, por sua produção mais recente, em especial pelo “ingenuo

primitivismo dos ‘Cantos Municipais’”. 41

A menção ao “primitivismo” era especialmente importante neste contexto, dado

que desde a publicação do artigo “Tendências” de Tristão de Athayde (pseudônimo de

Alceu Amoroso Lima), a facção paulista do modernismo liderada por Mário de Andrade

e Oswald de Andrade vinha sendo denominada de “primitivista”. Uma outra tendência

que seria nomeada em artigo posterior, também de Tristão de Athaide, era a

“espiritualista”. Essa denominação se referia ao grupo carioca reunido em torno da

revista Festa, que cultivava um nacionalismo distinto daquele do grupo paulista, era

menos dado à iconoclastia e mantinha certa proximidade com o movimento de

renovação católica liderado por Jackson de Figueiredo (Cf. GOMES, 1999, p. 69-70).

Wellington Brandão, que antes havia publicado um texto “passadista” em prosa

simbolista nas páginas de A Revista42, estava publicando àquela altura na revista

carioca, pela qual os “verdes” não possuíam grande apreço43, uma novela intitulada

“Cabeça de Comarca”, distribuída ao longo de cinco números, além de outros textos

menores (apud DOYLE, 1977, p. 103-109). Ao se referir ao primitivismo dos “Cantos

Municipais” – série de poemas curtos de estilo irônico e humorístico de forte influência

oswaldiana que continuaria a ser publicada em leite criôlo44 – Ascânio opta por elogiar

apenas a faceta do escritor mais próxima da orientação do grupo de Verde, faceta que se

tornaria uma verdadeira persona literária ao se vincular, nas publicações posteriores, ao

pseudônimo Fidélis Florêncio.

41
VERDE Nº 3 Novembro de 1927, p. 25
42
“O Poema Maior” em A REVISTA Nº 2 Agosto de 1925, p. 34-35. Fontes e especialistas convergem
no sentido de entender A Revista como uma publicação na qual eram publicados também textos de
escritores “passadistas”. Quando mencionamos aqui o grupo desta revista nos referimos aos modernistas
já citados responsáveis pela sua publicação. Sobre “passadismo” e modernismo em A Revista cf. DIAS,
1968, p. 18-20 e BUENO, 1982, p. 35-73.
43
Cf. a resenha do lançamento do terceiro número de Festa em VERDE Nº 4 Dezembro de 1927, p. 13.
44
Na mesma edição em que aparece a resenha de Ascânio, foram publicados cinco poemas dos “Cantos
Municipais”. Cf. VERDE Nº 3 Novembro de 1927, p. 13.

57
A revista que só tem estomago
Temos por estabelecido, então, que as figuras-chave de leite criôlo haviam todas

chegado a um estilo de escrita modernista próxima dos “primitivos” paulistas e,

também, se inserido definitivamente na rede modernista nacional, através da publicação

de seus trabalhos, no período de 1927/1928. O próximo passo da análise da inserção dos

diretores de leite criôlo e da própria publicação na rede modernista nacional passa pela

publicação da chamada “primeira dentição” (primeira fase) da Revista de Antropofagia,

da qual foram publicadas dez edições entre maio de 1928 e fevereiro de 1929. Foi esta a

terceira revista literária do modernismo sediada em São Paulo: fora antecedida por

Klaxon (nove números entre maio de 1922 e janeiro de 1923) e Terra Rocha e outras

terras (sete números de janeiro a setembro de 1926). Aparentemente o nome da

publicação e sua viabilidade financeira se deveram a Oswald de Andrade – que publicou

no primeiro número da revista seu “Manifesto Antropófago”, mantendo a forma


45
lacônica e fragmentada do seu polêmico manifesto “Pau Brasil” e radicalizando suas

proposições – a direção e a gerência, porém, ficaram a cargo de Antônio de Alcântara


46
Machado e Raul Bopp, respectivamente. Na “primeira dentição” da revista a

“antropofagia” não era a ainda o ideário radical e razoavelmente bem definido que

talvez o manifesto já propusesse, mas que só ganharia sua feição característica na

“segunda dentição”, a cargo do próprio Oswald e de seus colaboradores mais próximos,

incluindo Bopp. Na fase dirigida por Alcântara Machado, a “antropofagia” era

principalmente uma metáfora recorrente à disposição das mais variadas intenções dos

colaboradores. Um exemplo é a “Nota insistente” do próprio Alcântara Machado que

45
Para as polêmicas envolvendo o primeiro manifesto de Oswald ver MORAES, 1978, p. 83-103.
46
Informações extraídas de uma carta de Antônio de Alcântara Machado a Alceu Amoroso Lima (Tristão
de Athayde), apud SANTIAGO, 2003 P. 105-109. Segundo a carta, Oswald viajou para a Europa logo
que após o aparecimento da primeira edição da Revista de Antropofagia. Esta seria, segundo Alcântara,
“intelectualmente (...) o produto do meu esforço e só do meu esforço”. E completava: “A função do Bopp
se limitava a enviar pelo correio 70% da tiragem”, apud SANTIAGO, 2003, p. 107.

58
fecha a primeira edição, na qual a metáfora do canibalismo se refere justamente às

pretensões “ecumênicas” da publicação e nega que o manifesto de Oswald seja o

manifesto da publicação:

Neste rabinho do seu primeiro numero a “Revista de


Antropofagia” faz questão de repetir o que ficou dito lá no
principio:
- Ella está acima de quaesquer grupos ou tendencias;
- Ella acceita todos os manifestos mas não bota manifesto;
- Ella acceita todas as criticas mas não faz critica;
- Ella é antropofaga como o avestruz é comilão;
- Ella nada tem que ver com os pontos de vista de que por acaso
seja vehiculo.
A “Revista de Antropologia” não tem orientação ou pensamento de
especie alguma: só tem estomago.47

E, de fato, a Revista de Antropofagia abrigou neste momento contribuições dos

mais variados colaboradores. Tirando o diretor e o gerente, não se pode falar

propriamente de um grupo específico da mesma maneira que nos referimos ao grupo de

Verde ou de A Revista. Publicaram ali modernistas de primeira hora e adesões tardias,

tanto de São Paulo como do Rio de Janeiro – incluídos o “verde-amarelo”48 Plínio

Salgado e o “espiritualista” Augusto Frederico Schimidt, dois dos alvos prediletos da

“segunda dentição” –, somados a elementos dos grupos mineiros de A Revista e de

Verde, além de um influxo considerável de modernistas nordestinos e de vozes esparsas

de núcleos modernistas do país inteiro.

Nesta publicação, que pode ser descrita como o auge da rede nacional modernista,

os futuros diretores de leite criôlo também publicaram seus poemas. De Aquiles

Vivacqua saíram os poemas “Indifferença”, dedicado a Oswald de Andrade e

transparecendo a sua influência tanto estilística (versos curtos justapostos, articulados

graficamente e sem pontuação) quanto temática (contrapondo as grandes cidades da

47
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 1, Maio de 1928, p. 8.
48
O “verde-amarelismo” era uma das correntes modernistas do momento. Pregava um nacionalismo um
pouco distinto do proposto por Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Cf. MORAES, 1978, p. 113-135.

59
modernidade à autenticidade da natureza brasileira), 49 e “Dança do Caboclo”, bastante

parecido com o poema “Samba” que Vivacqua publicara na revista Verde e já


50
comentado acima. Guilhermino César aparece também duas vezes na primeira
51
dentição da revista. São publicados ali seu poema “Deslumbramento” – dedicado a

Mário de Andrade, o poema em forma de cantiga tematiza a volúpia de uma “morena” –

e também uma resenha sobre seu livro conjunto com Francisco Inácio Peixoto, Meia-

Pataca, da autoria de Alcântara Machado. Nessa resenha o crítico literário paulista –

que, como já vimos, parece ter sido bastante impiedoso com o livro de estréia de

Vivacqua – se manifesta bastante favorável à produção de Guilhermino, lhe fazendo

somente umas poucas e brandas ressalvas52. João Dornas Filho, por sua vez, se fez

presente na publicação paulista com apenas um poema: “Retrato do Brasil” que –

através da menção implícita ao livro homônimo de Paulo Prado e da afirmação de um

nacionalismo crítico à “preguiçosa confiança” ufanista nas grandezas nacionais –

antecipa alguns dos principais temas e referências que se farão presentes em leite

criôlo.53

Grande parte dos futuros colaboradores de leite criôlo de fora de Belo Horizonte

também publicaram na primeira dentição da Revista de Antropofagia: Wellington

Brandão, da cidade mineira de Passos, sob o pseudônimo Fidelis Florêncio; Jorge

Fernandes e Luis da Câmara Cascudo, de Natal, Rio Grande do Norte; Marques

Rebello, Alberto Dezon e Walter Benevides, do Rio de Janeiro; Franklin Nascimento de

Fortaleza, Ceará; além de vários integrantes do grupo Verde de Cataguases. 54 O gerente

da primeira dentição da publicação paulista, Raul Bopp, também contribuiria depois em


49
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 3, Julho de 1928, p. 2.
50
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 10, Fevereiro de 1928, p. 5.
51
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 5, Setembro de 1928, p. 2.
52
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 10, Fevereiro de 1928, p. 4.
53
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 10, Fevereiro de 1929, p. 2.
54
Alguns dos nomes citados já estavam em contato epistolar com Achilles Vivacqua antes do
aparecimento de leite criôlo, como Marques Rebello e Franklin Nascimento, que haviam ambos recebido
cópias de “Serenidade”.

60
leite criôlo com poemas da série “Ai, seu Mé”, iniciada na Revista de Antropofagia,

sempre sob o pseudônimo Jacob Pim-Pim.

Para além do conjunto de colaboradores, a marca da “primeira dentição” da

Revista de Antropofagia também se faz presente em leite criôlo em termos temáticos e

procedimentos estilísticos. O exemplo mais claro de tal conexão se dá no caso da seção

“Brasiliana” da publicação paulista, cujo eco no suplemento belorizontino se intitulava

“raça”. Publicada em todas as edições dirigidas por Alcântara Machado da Revista de

Antropofagia, a seção “Brasiliana” era constituída por trechos citados, em geral a partir

da grande imprensa, contendo normalmente o que poderiam ser consideradas aporias ou

incoerências da vida brasileira. Aos trechos eram acrescentados títulos irônicos, em um

procedimento já utilizado por Oswald de Andrade em seu livro Pau Brasil em relação a

seleções de textos de crônicas coloniais, mas agora deslocado para o cotidiano e o

contemporâneo. A seção “raça” de leite criôlo era igualmente um pequeno noticiário

satírico composto de “pérolas” da incoerência nacional, embora o matiz ideológico e a

origem das citações fossem um pouco diferentes daquele da publicação paulista, como

veremos no próximo capítulo. A questão é que, incidentalmente, o primeiro fragmento

de “Brasiliana” no primeiro número da publicação antropófaga era intitulado “Raça”.

Outro momento da primeira dentição da Revista de Antropofagia que dificilmente

passaria em branco para o futuro grupo de leite criôlo seria a resenha de Antonio de

Alcântara Machado do livro Poemas e Essa negra Fulô do poeta alagoano Jorge de

Lima. Nela o poema “Essa negra fulô”, de grande repercussão nos meios modernistas

no ano de 1928, era entusiasticamente elogiado, algo extremamente incomum no âmbito

das resenhas de Alcântara Machado, em especial em se tratando de autor recém estreado

no modernismo e distante dos eixos principais do mesmo. 55 Talvez o reconhecimento

55
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 1, Maio de 1928, p. 4.

61
alcançado pelo poema de temática “negra” – no qual apareceriam temas depois

retomados em leite criôlo, como a escravidão, a sensualidade da negra e a punição física

através do açoite – tenha inspirado o grupo mineiro a conceber a temática “negra” como

uma resposta viável à temática indianista da Revista de Antropofagia. Como já vimos,

Aquiles Vivacqua já havia trabalhado com uma temática deste tipo em “Samba”.

Também Guilhermino César produzia poemas nessa linha, do que são exemplos os

poemas “Tio Santâna”, retratando um ex-escravo que “espantava a fraqueza / lembrando

direito / a fála do antigo feitor”, publicado na revista Verde56 e o já mencionado

“Deslumbramento”, publicado na própria Revista de Antropofagia. Por fim, na sua

resposta à já mencionada enquete literária realizada pelo Diário de Minas em 1929,

João Dornas Filho sintetiza o pano de fundo sobre o qual se dará a opção pela temática

“negra” em leite criôlo. Para ele,

A formula – tupy or not tupy that’s the question [trecho do


Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade] – exprime nada ou
quase nada. Porque não com o indianismo só, ou sem elle, que
chegaremos a totalizar nossa maneira. É com muita coisa mais.57

No mesmo texto ao enumerar as figuras que, na sua opinião, mais haviam feito no

âmbito do modernismo brasileiro, o nome de Jorge de Lima aparece logo em seguida ao

de algumas das figuras mais antigas e estabelecidas do movimento: Mário e Oswald,

Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida. A estes se soma apenas o nome do poeta

Ascenso Ferreira que, como Jorge de Lima, era um poeta nordestino, no caso

pernambucano, que em 1928 havia publicado um poema e uma carta aberta na Revista

de Antropofagia.58 Dornas deixa claro, porém, que os escritores citados “fizeram muito

mas não fizeram tudo”.

56
VERDE Nº5, 1/1928-4/1928.
57
DIARIO DE MINAS, 3 de fevereiro de 1929.
58
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 4, Agosto de 1928, p. 1 (“A sucessão de São Pedro”) e Nº 6,
Outubro de 1928, p. 5 (“Carta a Órris Barbosa”).

62
No entanto, o momento no qual Dornas antevê a possibilidade de “totalizar a

nossa maneira” e, implicitamente, a possibilidade de uma participação maior das

produções dele e de seus amigos na rede modernista é também o momento no qual as

tensões internas do movimento atingem seu ponto máximo. Em algum momento

anterior ao lançamento da segunda dentição da Revista de Antropofagia, em março de

1929, ocorre o rompimento definitivo entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Evento controverso e obscuro para o qual podem ter concorrido divergências tanto

estéticas e ideológicas (Eduardo Jardim de Moraes (1978, p. 91-92) menciona as

diferenças quanto à maneira de conceber a nacionalidade que haviam levado Mário a

rejeitar ainda em 1924 o “Manifesto Pau-Brasil” de Oswald, cujas concepções são

radicalizadas no “Manifesto Antropofágico”), como político-partidárias (Sérgio Miceli

(2001, p. 254) destaca as vinculações de Oswald com o Partido Republicano Paulista e

de Mário ao Partido Democrático, no contexto da campanha eleitoral mais disputada da

chamada “república velha”), somadas possivelmente a alguma desavença de caráter

pessoal, dificilmente documentável e irrelevante para a presente análise. Ainda na

primeira dentição da publicação paulista surgem indícios de algum desentendimento

entre os dois escritores – na primeira página da edição de número sete foi publicado em

letras garrafais o seguinte recado de Oswald, assinado com o nome do personagem

principal de seu romance Memórias sentimentais de João Miramar e intitulado “Saibam

quantos”: “Certifico a pedido verbal de pessoa interessada que o meu parente Mário de

Andrade é o peor critico do mundo mas o melhor poeta dos Estados Desunidos do

Brasil. De que dou esperança”.59

Mensagem cifrada que fora do seu contexto original parecer evocar desde uma

tentativa de retratação até uma intenção provocadora. Mas certamente indica algum

59
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 7, Novembro de 1928, p. 1.

63
abalo na relação entre os dois “Andrades” do modernismo. Mário, por sua vez,

publicaria no último número da “primeira dentição” da publicação paulista um texto

intitulado “Antropofagia?”. Nele descreve um momento em suas pesquisas folclórico-

etnográficas no qual seus informantes lhe insinuaram um caso real e contemporâneo de

canibalismo mágico-ritual.60 Talvez o texto possa ser compreendido como uma resposta

à concepção oswaldiana de brasilidade “primitivista” – implicando que o “primitivo”

real, concreto e contemporâneo poderia ser o lugar do cruel e do desumano,

possibilidade não contemplada nos ideais estetizantes, metafóricos e utópicos do

Manifesto Antropófago. Aqui estariam, assim, contrapostas as concepções de

brasilidade que Eduardo Jardim de Moraes descreve como demolidora e intuitiva, no

caso de Oswald, e construtiva e erudita, no de Mário de Andrade. 61

O fato é que, depois daquela última edição da primeira fase datada de fevereiro de

1929, ressurgiria nas páginas do Diário de São Paulo, em 17 de março do mesmo ano,

uma Revista de Antropofagia muito diferente da que fora publicada até então. Em carta

ao crítico Alceu Amoroso Lima – figura central do modernismo sob a alcunha de

Tristão de Athayde –, Antônio de Alcântara Machado, depois de dizer que antes dos

acontecimentos citados já se convencera que Oswald de Andrade “tinha tudo menos

caráter”, dá a sua versão para a transição entre as “dentições” da publicação modernista:

Bem. Em fevereiro deste ano [1929] segui para aí [Rio de Janeiro]


deixando dois números [da Revista de Antropofagia] prontos sendo
que um deles já na tipografia: o número de fevereiro que saiu. O de
março ficou a cargo (revisão) unicamente de um auxiliar do meu
escritório que para tanto se entenderia com [Raul] Bopp. Em
março o Rubens do Amaral procurou o Bopp para ambos irem ao
meu escritório pois o Rubens queria me propor a publicação da
revista no Diário de São Paulo. Eu me encontrava no Rio. Que faz
Bopp? Entende-se com o Oswald [de Andrade] e telefona para aí
propondo que eu acabasse com o Antropófago. Na Agência
Brasileira, na presença do Sérgio [Buarque de Holanda] e do
[Américo] Facó, eu concordei. No dia seguinte o Bopp comunica
ao Rubens que eu me desinteressava da revista mas que ele,

60
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 10, Fevereiro de 1929, p. 5.
61
MORAES, 1978, p. 91-94.

64
Oswald de Andrade e Osvaldo Costa se incumbiriam de sua
publicação no jornal.
Quando aí no Rio tive conhecimento da nova fase da [sic]
Antropófago fiquei surpreso mas pouco me incomodei. Percebi
logo que era uma safadeza e calei-me. O Rubens me conta a
história que o Mário [de Andrade], o Couto de Barros e o Paulo
Prado confirmaram. Aos três últimos o Oswald havia declarado
que eu autorizei a publicação da revista no Diário e concordara
com a minha saída e a indicação de um novo diretor, o
irresponsável mulato Geraldo Ferraz. (apud SANTIAGO, 2003, p.
107). 62

O ponto de vista de Oswald sobre os eventos descritos pode ser acompanhado

através de uma carta deste enviada a Carlos Drummond de Andrade, datada, segundo

Plínio Doyle, de “fins de março de 1929”:

(...) não houve transformação e sim ortodoxia. o Alcântara


[Machado] não entendeu o sentido do movimento. pensou que era
troça e publicou durante meses inutilidades amenas. evidentemente
errei em tê-lo convidado para dirigir a Revista. agora a coisa é
outra. estão à frente Bopp e Osvaldo Costa, cunhambebes
autênticos e leais. (apud DOYLE, 1976, p. 140)

O gosto expresso na carta pela “ortodoxia antropofágica” também faria sua

aparição na página antropófaga do Diário de São Paulo. A maior parte da publicação

era constituída de um conjunto de pequenos textos baseados em citações e aforismos

que explicitariam a nova filosofia antropofágica, desenvolvendo temas já presentes no

“Manifesto Antropofágico”, e relegando a publicação de poemas, tão característica da

primeira dentição, para o segundo plano. Dela constaria uma seção intitulada

“Moquem” – nome da grelha de origem indígena, aqui concebida em termos de

canibalismo – cuja função era provocar, criticar e ridicularizar figuras do modernismo

não afinadas com o ideal antropofágico. Função também cumprida por inúmeras notas

menores, nas quais o incomparável talento de Oswald para o trocadilho era utilizado

contra seus aliados modernistas de antevéspera.

62
No livro citado, a carta vem datada de 15 de maio de 1930, o que parece erro, posto que no texto há
referências de acontecimentos de 1929, como sendo “deste ano” (“Em fevereiro deste ano segui para aí
deixando dois números prontos sendo que um deles já na tipografia: o número de fevereiro que saiu”).
Em todo caso, a data publicada não invalida nossa linha de argumentação.

65
Tal tomada de posição – possivelmente inspirada no tipo de ação grupal no campo

artístico levado a cabo inicialmente pelos dadaístas e, posteriormente, pelos surrealistas

– levou, nas palavras de Aracy Amaral, a uma “torrente de rompimentos”: alguns dos

amigos e colaboradores mais próximos de Oswald romperam relações com ele. Além

dos já citados Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado, foi o caso de Yan de
63
Almeida Prado e de Paulo Prado. As relações com os outros grupos modernistas,

como o “espiritualista” da revista Festa e os verde-amarelistas, evoluiriam, então,

rapidamente de uma discordância cordial para uma animosidade declarada.

Das múltiplas reações à radicalização de Oswald de Andrade e de seus

companheiros de ideário antropofágico nos interessa aqui especialmente a de Alcântara

Machado, expressa no fim da carta já citada a Alceu Amoroso de Lima:

Ai está – meu querido Alceu – a razão pela qual é imprescindível


uma conjuração do silêncio em torno da nova fase oswaldiana.
Cabotino o que ele quer é ruído à sua volta, já está isolado. Não
convém tirá-lo da solidão. (apud SANTIAGO, 2003, p. 108)

O citado isolamento de Oswald e da nova dentição da Revista de Antropofagia, ao

qual Alcântara Machado propõe adicionar uma “conjuração do silêncio”, implica que na

segunda dentição do periódico paulista a contribuição dos modernistas de primeira hora

está descartada e a dos modernistas menos ilustres é muito bem vinda. Além das

próprias contribuições publicadas na revista – muitas das quais de autoria de

modernistas nordestinos que são, com poucas exceções (como Jorge de Lima), nomes

pouco relevantes da rede modernista naquele momento –, são sintomáticos os esforços

do grupo antropófago para conseguir a adesão daqueles que eram então considerados

líderes do movimento moderno em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade e

João Alphonsus. A carta já citada de Oswald a Drummond pede a este que “mande

coisas” para a Revista de Antropofagia e também que “diga aos [escritores do grupo da

63
Cf. AMARAL, 1975, p. 264-268.

66
revista Verde de] Cataguases que com eles contamos” (apud DOYLE, 1976, p. 142). Em

decorrência da negativa deste, outro “antropófago”, o escritor Clóvis Gusmão sediado

no Rio de Janeiro, escreve para Drummond e João Alphonsus carta datada de 23 de abril

de 1929. Citando a adesão do amigo comum de remetente e destinatários, Aníbal

Machado, Gusmão convoca os dois a abrir uma “seção mineira da antropofagia”:

Vocês fundem aí – com o auxílio do Aquiles Vivacqua e do João


Dornas Filho, o Clube de Antropofagia de Minas Gerais. Mas não
se esqueçam os dois rapazes que são meus amigos particulares. Já
escrevi a ambos dizendo-lhes que procurassem vocês. (apud
DOYLE, 1976, p. 142.)

Em carta a Oswald de Andrade datada de maio de 1929, Carlos Drummond de

Andrade – que a esta altura já se correspondia com Mário de Andrade há anos e o

considerava um amigo pessoal – define de uma vez por todas sua rejeição à

antropofagia invocando, para além da fidelidade ao amigo, também razões literárias

para tanto.

A antropofagia não é mais um movimento decente. Nem é uma


blague. Sinto muito, mas não posso aderir.
Num dos últimos números da Revista V. escreve que “os meninos
de Minas precisam de decidir, literatura será questão de amizade?”
etc. etc. Para mim toda a literatura do mundo não vale uma boa
amizade. Mas aqui não se trata de amizade, é pura literatura.
Quando apareceu a primeira dentição da Revista eu já implicara
com o título e lembro-me de ter escrito a respeito a alguém daí. E
só me senti à vontade para colaborar nela quando verifiquei que o
título não tinha nada com a direção liberal que davam à Revista
(...)
Quanto aos outros “meninos” de Minas, cada um decidirá por si. O
João Alfonsus concorda comigo e o João Dornas fundou o
criolismo, cujo órgão oficial sairá dia 13 deste. (apud DORNAS
FILHO, 1959, p. 88)

A partir destas últimas duas cartas podemos perceber como o aparecimento de

leite criôlo se vincula às tensões na rede modernista por ocasião do surgimento da

segunda dentição da Revista de Antropofagia. Cabe agora analisar como tais tensões se

apresentaram no período no qual a publicação mineira circulou.

67
O grande atentado às boas letras
A existência de leite criôlo enquanto periódico foi relativamente curta, o que não

distingue, aliás, essa publicação da maioria dos periódicos modernistas. Foram ao todo

18 edições semanais, aos domingos, no Estado de Minas, 64 no período entre 2 de junho

e 29 de setembro de 1929, e um tablóide no dia 13 de maio (comemorativo da abolição

da escravatura) do mesmo ano. Para termos de comparação pode-se citar que de A

Revista foram publicadas 3 edições (julho e agosto de 1925; janeiro de 1926) e que da

segunda dentição da Revista de Antropofagia – que tinha em comum com leite criôlo o

fato de consistir em uma página dentro de um jornal diário comercial, em oposição ao

formato avulso e mais estendido de A Revista – saíram 16 números entre 17/3/1929 e

1/8/1929.

Quando ao grau da sua inserção na rede modernista nacional cabe mencionar que a

publicação dirigida por Dornas, Vivacqua e Guilhermino César contou ao todo com 53

colaboradores, incluindo além de escritores mineiros contribuições de Rio, São Paulo,

Fortaleza, Januária, Curitiba, Vitória, Natal, Pará, Paraíba e Alagoas. Dentre os

escritores mineiros é maciça a presença do grupo da revista Verde, de Cataguases,

incluindo um dos editores, Guilhermino César, além de Rosário Fusco, Francisco Inácio

Peixoto, Oswaldo Abrita, Ascânio Lopes (publicações póstumas) e Fonte Bôa. Existe

entre essa revista e o suplemento certa continuidade: textos publicados na Verde são

republicados em leite criôlo,65 séries de poemas que começaram a ser publicadas na

64
Não conseguimos encontrar nenhuma informação que ajude a compreender porque o jornal Estado de
Minas publicou em suas páginas o suplemento modernista leite criôlo. O jornal havia sido fundado no ano
anterior e seria comprado pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand treze dias depois da
publicação da primeira edição do suplemento. A única conjuntura que nos foi possível é que existe uma
grande probabilidade de que algum ou talvez todos os diretores de leite criôlo trabalhassem no jornal. Cf.
MENDONÇA, 1987, p. 62-64.
65
O poema “Samba”, de Achilles Vivacqua foi publicado sob o pseudônimo Roberto Theodoro em Verde
N˚ 1, de Set/1927, e republicado com o nome do autor em leite criôlo III, de 16/6/1929. O texto de Yan
de Almeida Prado, “Arte e Artifício”, foi publicado em Verde N˚ 2, de Out/1927, e republicado em leite
criôlo XIII [15˚ suplemento], de 8/9/1929. De Ascânio Lopes foram republicados postumamente dois

68
revista têm a sua continuação no suplemento,66 as homenagens ao poeta do grupo de

Cataguases Ascânio Lopes, morto no início de 1929, são constantes na publicação de

Belo Horizonte. Em comparação com A Revista, nota-se a expansão do movimento

modernista entre 1925-26 e 1929: a publicação dirigida por Carlos Drummond de

Andrade que contou com contribuições de 27 autores, sendo todos eles mineiros, com

exceção da contribuição extensa de Mário de Andrade; da participação, com um poema

cada, de Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho; e da tradução

de um texto de Freud. É interessante notar a variedade de grupos modernistas

espalhados pelo país que estavam em contato com leite criôlo, em oposição à

vinculação única de A Revista com o eixo Rio-São Paulo, através do apadrinhamento de

Mário de Andrade. E, por outro lado, a ausência de figuras centrais do movimento

modernista na publicação de 1929, com a exceção de Raul Bopp – que, no entanto,

publicou apenas sob o pseudônimo Jacob Pim-Pim – e dos mineiros Drummond e João

Alphonsus, cujas relações complexas com o grupo de leite criôlo analisaremos a seguir.

Dentro da linha de análise da trajetória das tomadas de posição no interior da

“República das Letras”, pode-se observar que leite criôlo tem por interlocutores e

pontos de referência, por um lado, os principais escritores do grupo de A Revista que

continuavam em Belo Horizonte – os já citados Drummond e João Alphonsus – e, por

outro, o grupo da Revista de Antropofagia. Curiosamente os posicionamentos do grupo

de leite criôlo em relação a ambos os outros grupos não se fazem presentes na sua

própria publicação: o palco da interação explícita com o outro grupo mineiro seria a

imprensa belorizontina e, com o grupo paulista, a página que esse publicava no Diário

artigos: “A hora presente”, Verde N˚ 2 (Out/1927) e leite criôlo X [11˚ supl.] (11/8/1929); e “Paulo
Prado, Paulística e Várias Coisas”, Verde N˚ 4 (Dez/1927) e leite criôlo XIII [14˚ supl.] (1/9/1929).
66
As séries são “Poemas de Belo Horizonte”, de Achilles Vivacqua , iniciada sob o pseudônimo Roberto
Theodoro em Verde N˚ 2 (Out/1927) e continuada com o nome do autor em leite criôlo VIII (21/7/1929),
e “Cantos Municipais”, de Welligton Brandão, iniciada em Verde N˚ 3 (Nov/1927) e continuada, agora
com o pseudônimo Fidelis Florêncio, em leite criôlo I (2/6/1929), II (9/6/1929), V (30/6/1929) e X
(11/8/1929).

69
de São Paulo. Tentaremos demonstrar que esta tentativa de neutralizar o próprio

suplemento em relação à política literária modernista se dá no sentido de aderir à

antropofagia oswaldiana sem romper as relações com outros grupos modernistas. Além

disso, percebemos a intenção de evitar que leite criôlo se torne o que os “antropófagos”

paulistas gostariam que ela fosse, ou seja, uma subsidiária local da Revista de

Antropofagia.

Um primeiro foco da complexa relação entre Carlos Drummond de Andrade e

João Alphonsus e o grupo “criolista” é a já citada enquete com escritores mineiros,

realizada nos primeiros meses de 1929 no jornal Diário de Minas, cujo redator-chefe

naquele momento era o próprio Drummond.67 Na apresentação da referida enquete, a

iniciativa é filiada à tradição das enquetes literárias e delimitada às letras mineiras,

incluindo tanto os “novos escritores” como os “antigos valores”.68 Incidentalmente, nas

questões propostas a discussão sobre o significado do movimento modernista, então em

seu momento de tensão máxima, era quase onipresente:

I. Que pensa do estado atual da literatura no Brasil? II. Que pensa


do estado atual da literatura em Minas? III. Sua opinião sobre o
modernismo. IV. Qual a posição dos antigos valores no quadro
literário atual? V. Progredimos? Estacionamos? Regredimos?
(apud DIAS, 1968, p. 31)

As respostas dos escritores que pouco tempo depois lançariam leite criôlo deixam

transparecer um entusiasmo modernista e nacionalista que contrasta fortemente com as

declarações reticentes e desiludidas de João Alphonsus na mesma enquete. A distância

entre o grupo mais estabelecido de modernistas mineiros, tendo à frente Alphonsus e

Drummond, e o grupo que viria alguns meses depois constituir o “criolismo” já

começava a se delinear. Se, na introdução à resposta de João Dornas Filho, o texto –

67
A enquete já foi analisada por Fernando Correia Dias, mas em um sentido diferente do proposto aqui.
Interessava ao sociólogo mineiro a questão da dispersão do grupo modernista de Belo Horizonte que
publicou A Revista, grupo às vezes denominado a partir dos seus pontos de encontro, a Confeitaria Estrela
e a Livraria Alves. Cf. DIAS, 1968, p. 31-37.
68
DIARIO DE MINAS, 3 de fevereiro de 1929.

70
que, em última instância, era responsabilidade de Drummond, redator-chefe do jornal –

apresenta o escritor de Itaúna como um companheiro de viagem, nas introduções às

respostas de Aquiles Vivacqua e Guilhermino Cesar, são feitas ressalvas à posição dos

dois:

O senhor Achiles é bem moço ainda. Si por um lado, isso lhe


permite affirmar com convicção coisas que mais tarde não lhe
pareçam absolutamente certas, por outro lado lhe confere
autoridade o bastante para dizer outras tantas coisas que só os
moços comprehendem e que só elles sabem e podem dizer. 69

Guilhermino é, entre os verdes de Cataguases, o de coração mais


suave. (...) Teria Guilhermino Cesar mudado feitio como se muda
de alfaiate? Parece que o poeta esta se buscando, inquieto neste
mundo que é o Brasil. Esta se buscando ou se perdendo.70

Em relação à Revista de Antropofagia, a primeira interação publicada com o

grupo que logo publicaria leite criôlo seria um texto de Achilles Vivacqua intitulado “a

propósito do homem antropófago”. Publicado no sétimo número da segunda dentição da

publicação paulista, no dia primeiro de maio de 1929, o texto retrabalha alguns temas

do Manifesto Antropófago de Oswald, porém em uma chave de interpretação menos

surrealista e mais ostensivamente nacionalista. O índio é mencionado como a raça forte

que se juntou com duas raças decaídas, os negros e os portugueses, para a problemática

formação da nacionalidade brasileira, antecipando temas e ideias que se farão presentes

em leite criôlo.71

Dois números antes, aparecia na publicação paulista um texto intitulado “Os tres

sargentos”, assinado com o pseudônimo trocadilhesco Cabo Machado, no qual eram

atacados Antônio de Alcântara Machado, ao qual o referido pseudônimo aludia; Yan de

69
DIARIO DE MINAS, 14 de fevereiro de 1929. Encontramos dois anos distintos como sendo da data de
nascimento de Vivacqua: 1900, presente nas memórias da sua irmã (VIVACQUA, 1997, p. 135), tão
zelosa da sua lembrança, e 1905, citado por Fernando Correa Dias (1968, p. 12), que parece ter se
equivocado. De todo jeito, a invocação no trecho citado da juventude de Vivacqua para desautorizá-lo é
quase tão incisava caso ele seja três anos mais novo que Drummond – ou seja, nascido em 1905 – quanto
se a datação de 1900 estiver correta e ele for dois anos mais velho que o poeta de Itabira.
70
DIARIO DE MINAS, 7 de abril de 1929.
71
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 7, 1º de maio de 1929.

71
Almeida Prado, que havia publicado capítulos de sua obra “Os tres sargentos” na

primeira dentição da Revista de Antropofagia; e Mário de Andrade. O texto também

exigia uma definição por parte dos modernistas mineiros – “(...) os meninos de Minas

precisam se decidir. Literatura será questão de amizade?”. No mesmo texto Carlos

Drummond de Andrade é citado nominalmente como destinatário de uma carta em que

o rompimento com Alcântara Machado era justificado, provavelmente a carta de

Oswald citada acima. A resposta foi a também já citada carta de Drummond na qual já

se fala em “criolismo” e na publicação de seu “órgão oficial”. A geometria das tensões

que perpassariam a trajetória de leite criôlo estava então colocada.

Em 13 de maio de 1929, comemoração dos quarenta anos da abolição da

escravatura, seria publicado leite criôlo, um tablóide de oito páginas a ser distribuído

gratuitamente nas ruas de Belo Horizonte. Apesar de constar no cabeçalho como

“numero I” e “ano I”, nada no tablóide indicava que haveria periodicidade definida ou

mesmo sequência à sua publicação72 e uma matéria publicada pelo Diário de Minas em

maio de 1929, anunciando o seu futuro aparecimento, já anuncia a sua “publicação

irregular (tanto quanto possivel irregularissimo[sic])”. 73 Outro artigo não deixou passar

em branco certa opção de escrita presente no tablóide, se referindo ao fato de leite criôlo

se apresentar “as primeiras letras l e c minusculos – o que elles [os diretores] acham

uma cousa muito interessante”,74 solução gráfica inspirada provavelmente na segunda

dentição da Revista de Antropofagia. Dentre os textos predominavam os artigos (oito) –

em especial relativos ao ideário “criolista”, do qual trataremos nos próximos capítulos –

seguidos pelos poemas (sete) e trechos de prosa (três). Nesta primeira aparição de leite
72
Nos outros periódicos modernistas consultados é comum a referência ao que seria publicado nos
próximos números e também a oferta de assinaturas, apesar de serem, via de regra, empreendimentos
editoriais amadores, de periodicidade irregular e tendência a gerar prejuízos financeiros.
73
Recorte de jornal, anotado à mão “Diario de Minas, maio 929”. Série Fortuna Crítica. Caixa 1
(Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG.
74
Recorte de revista com artigo de Jairo Leão, anotado à mão “Vida Capixaba – Vitória, E. Santo”. Série
Fortuna Crítica. Caixa 1 (Classificação provisória). Fundo Achilles Vivacqua. Acervo de Escritores
Mineiros, UFMG.

72
criôlo a proporção de textos que mencionavam questões raciais, ligados assim mais

diretamente ao programa da publicação, foi expressivamente mais alto (61,9%) quando

comparado à totalidade dos textos da publicação modernista, que foi de 24,35%.

Com exceção daqueles publicados na Revista de Antropofagia, todos os artigos

que encontramos sobre o aparecimento do “órgão oficial do criolismo” expressam

reservas em relação à publicação. Os próprios companheiros de redação de Achilles

Vivacqua e João Dornas Filho na Semana Ilustrada escrevem em uma nota sobre leite

criôlo que “os espiritos modernos, não sabemos se pela inquietação ou pela incultura,

têm uma tendencia para o fútil e para a blague”.75 Mas pode-se especular que tais

críticas de caráter explicitamente passadista não incomodassem muito e até mesmo

divertissem os diretores da publicação modernista. Outro exemplo desta linha de

rejeição a leite criôlo, publicado no mesmo jornal que dali a dezoito dias estamparia a

publicação como suplemento literário, chega a ser um complemento perfeito à blague

modernista de Vivacqua, Dornas e Guilhermino:

Consumou-se o grande atentado ás boas letras – a policia, numa


atitude criminosa, cruzou os braços, e a cidade foi inundada pelo
“leite criôlo”.
Ao que nos consta, são oito páginas em bom papel, repletas de
cousas absurdas, sem nexo, sem sentido, inverossimeis.
(...)
Ainda bem que elles avisam nos prospectos de propaganda – não
leiam “leite criôlo”.
Sigamos este alvitre.
Formemos uma cruzada santa pela moralidade das nossas letras.76

Assinada por um certo Juvencio Bôaventura, nome que não encontramos em

nenhum outro ponto da nossa pesquisa, e publicado no Estado de Minas – que, assim,

após invocar uma “cruzada santa”, acaba por publicar leite criôlo – não seria impossível

que o artigo tivesse saído das próprias linhas “criolistas”, como parte do espetáculo de

lançamento do tablóide.
75
SEMANA ILUSTRADA, Nº 91. 13/5/1929.
76
ESTADO DE MINAS. 12 de maio de 1929. Nota-se que o artigo saiu um dia antes do “grande atentado
às boas letras” efetivamente “inundar as ruas”.

73
Outros artigos publicados na ocasião, no entanto, se ajustavam menos à ideia de

succès de scandale vanguardista. Como já vimos, o artigo publicado no jornal Folha da

Noite focava as fracas credenciais modernistas do grupo “criolista” e estranhava que

João Dornas Filho, “dos contos passadistas”, e Achilles Vivacqua, “o auctor de

‘Serenidade’, que o Totó Alcantara (...) não gostou”, estivessem envolvidos em um

movimento “á maneira do desenfreiado [sic] movimento antropophagico de S. Paulo”.77

Mas, sem dúvida, os ataques mais importantes sofridos pelo grupo de leite criôlo

vinham dos modernistas sediados no Diário de Minas, tão ou mesmo mais versados na

blague vanguardista que seus contrapartes que haviam produzido o tablóide. Um dos

artigos publicados no jornal do PRM se refere a leite criôlo como um jornal

comemorativo de datas nacionais – o artigo propõe sua publicação nos dias “21 de abril,

13 de maio, 15 de novembro ou qualquer outra data” –, comparando-o a uma banda de

música de cidade do interior. Além disso, menciona o movimento antropofágico como

sendo uma “revolta (...) contra escritores paulistas de mais fama”.78 Em outro artigo, a

crítica a leite criôlo vai além da blague polêmica, atacando alguns dos pontos fracos do

programa “criolista”:

Um dos collaboradores [refere-se a Newton Braga] chega


aconselhar o negro a ‘deixar suas dansas barbaras, seus cantos de
captiveiros, de saudade, de melancolia’. Ora, precisamente, o que o
negro nunca deve deixar, porque teria de adoptar, como aliás já
acontece, outras danças e outros cantos deploráveis, porque sem
sinceridade.
Querem também acabar com as crendices, como si isso fosse
herança do negro captivo deixada no Brasil e o branco europeu,
sem “criolismo”, não tenha as suas supertições. 79

E de fato os “criolistas” não conseguiram realizar uma síntese consistente da sua

posição primitivista e nativista – que significava, por exemplo, que muitos poemas

baseados em material folclórico considerado “tipicamente negro” fossem publicados no

77
FOLHA DA NOITE, 11/5/1929.
78
DIARIO DE MINAS, 12/5/1929.
79
DIARIO DE MINAS, 14/5/1929.

74
seu “órgão oficial” – e suas concepções sobre a “formação racial” brasileira e o

significado do “negro” na mesma, estas muito próximas das formulações do Retrato do

Brasil de Paulo Prado, questão que analisaremos no quarto e no quinto capítulos do

presente trabalho.

No entanto, a postura do grupo de leite criôlo frente ao grupo que havia

participado de A Revista era de conciliação: em entrevista ao jornal Correio Mineiro,

João Dornas afirma que “o Carlos Drummond e o João Alphonsus divergem de muita

coisa que pensamos. E estão aí firmes conosco, prestigiando o nosso jornal com

colaboração de primeiríssima. Deus nos livre se não estivessem” (apud. BUENO, 1982,

p. 104).

Da parte dos escritores citados – que contribuíram com um texto cada no tablóide

de 13 de maio, sendo que Drummond também publicou ali um poema sob pseudônimo e

publicaria um outro sob seu próprio nome na segunda edição de leite criôlo como

suplemento do jornal Estado de Minas – havia a percepção, expressa em um dos artigos

do Diário de Minas já citados, de que “os rapazes mineiros apparecem com intenção de

não brigar”. 80

Como já foi dito, dezoito dias depois do lançamento do tablóide, no dia 2 de junho

leite criôlo faria a sua segunda aparição, desta vez como suplemento literário do jornal

Estado de Minas. No novo formato, o “órgão oficial do criolismo” ocupava

normalmente um espaço que variava entre meia página e um quarto de página, nas

edições de domingo do jornal mineiro. Ele não esgotava o espaço do periódico

destinado à literatura: uma quantidade considerável de textos literários, em geral

passadistas, também era publicada no jornal. A ideia de estampar o título da publicação

modernista em minúsculas foi mantida e expandida para muitos dos títulos dos textos ali

80
DIARIO DE MINAS, 12/5/1929.

75
publicados. A ênfase quanto ao material publicado se afastou gradativamente das

concepções mais programáticas do “criolismo”, em favor da publicação de textos

estritamente literários, poemas em especial. A orientação do suplemento, no geral,

estava mais próxima, apesar das diferenças de formato, do ecumenismo modernista de

publicações como Verde e da primeira dentição da Revista de Antropofagia, do que da

estridência da segunda dentição desta última.

No entanto, os “antropófagos paulistas” logo colocariam o grupo de leite criôlo na

desconfortável posição de antípodas do grupo de modernistas mineiros fiel à orientação

de Mário de Andrade, posição que, como vimos, eles tentavam evitar. No décimo

número da segunda dentição da Revista de Antropofagia, sob a rubrica “Expansão

Antropofágica”, foi publicada uma nota intitulada “clube de antropofagia de minas

geraes” no qual aparecia um trecho de João Dornas Filho explicando o programa de

leite criôlo, seguido de um comentário da publicação:

Pura antropofagia! Isso é a prova que Minas não é só Cataguases


[sede da revista Verde e do grupo a ela associado]. E em Belo
Horizonte ninguem olha com simpatia os transbordamentos liricos
de Mário de Andrade pela meninada serelepe.81

Assim, a recusa em bloco do grupo de Verde em aderir à antropofagia era

contraposta à posição de leite criôlo, ignorando que Guilhermino César fazia parte deste

grupo, que contribuía com bastante frequência na publicação de Belo Horizonte. A nota

ignorava também que sem dúvida Mário de Andrade continuava figura central pelo

menos do cânone pessoal de João Dornas, como demonstra a sua resposta à enquete já

citada82. As próprias diferenças entre os ideários da “matriz” paulista e sua suposta

“filial” mineira – o fato de que à iconoclastia estetizada dos paulistas corresponde o

antibacharelismo “pé-no-chão” do grupo mineiro – não seriam acusadas em nenhum

momento pela Revista de Antropofagia.

81
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 10, 12 de junho de 1929.
82
DIARIO DE MINAS, 3 de fevereiro de 1929.

76
Não se pode, no entanto, considerar o grupo “criolista” como uma “vítima

inocente” do expansionismo antropofágico, a política ambígua de leite criôlo trazia

algumas vantagens para o grupo mineiro. Dentro de uma situação na qual a contribuição

dos modernistas de primeira hora na Revista de Antropofagia está descartada, se abre

uma possibilidade para os três diretores de leite criôlo aumentarem seu peso enquanto

escritores nacionalmente. No décimo primeiro número da publicação paulista, saíram,

lado a lado, a nota intitulada “Cartas na mesa: os andrades se dividem”, que transcrevia

a carta já citada na qual Drummond rompe em definitivo com a antropofagia, e a longa

entrevista com João Dornas, intitulada “a propósito do movimento criôlo”. Nela o

escritor afirma que na luta contra o bacharelismo, a ignorância e o pernosticismo – aos

quais denomina coletivamente “criolismo” – a “antropofagia, com o seu sentido de

brasilidade, vae á frente com o tacape e com os dentes, desbravando o caminho perigoso

que tem nos desorientado até aqui”. E continua afirmando a identidade entre os projetos

das publicações mineira e paulista:

Conosco pensam todos os novos de responsabilidade nas letras


mineiras de quem já recebemos as mais significativas adesões.
(...)
Concluindo. A finalidade do criolismo é mais ou menos a mesma
da antropofagia. É a mesma de todos os movimentos
nacionalizadores. Talvez o caminho é que tenha umas pequenas
variantes, que absolutamente não nos desviarão do fim desejado,
porque estamos bussolados de muita vontade de acertar.83

Como já afirmamos, essa espécie de afirmação não aparece nas páginas do

suplemento mineiro. A única menção que a esta altura se fazia à antropofagia se dá em

um artigo, na edição número VI de leite criôlo, do colaborador Newton Braga.

Intitulado “devore-se”, o artigo do conterrâneo de Achilles Vivacqua – Newton Braga

também era um natural de Cachoeiro do Itapemirim vivendo em Belo Horizonte –

vincula a publicação mineira à rede nacional de publicações modernistas, incluindo a

83
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 11, 19 de junho de 1929.

77
“antropofagia”, descrita como o batalhão de formigas que devorarão as “reliquias,

medalhões e antiguidades” do bacharelismo brasileiro.84 Uma matéria parecida, com um

panorama nacional dos vários “clubes de antropofagia”, havia sido publicada quase que

simultaneamente na Revista de Antropofagia. Nela leite criôlo é citado como “a parte

boa do modernismo mineiro”.85

João Alphonsus começa então a pressionar o grupo “criolista” para que se defina

como contrário à antropofagia. O escritor mineiro se fazia presente nas páginas do

Estado de Minas ao mesmo tempo em que o suplemento, publicando ali sua “Chronica

Literaria”, seção iniciada no dia 16 de junho do ano em questão. Tratava-se basicamente

de uma seção de resenhas, mas que eram escritas de maneira solta, permitindo ao autor

abordar o assunto que desejasse. No dia 28 de julho, incrustado na sua resenha do livro

Estudos (2ª série) de Tristão de Athayde, aparece um recado para o grupo de leite criôlo

no qual a trajetória da Revista de Antropofagia é narrada na perspectiva de Alphonsus,

com ênfase em certas conexões políticas que analisaremos em seguida:

1927. Tão longe. Depois delle aconteceram uma porção de coisas


deploraveis e o homem moderno do Brasil continua procurando.
Procurando o que? Sinto uma certa nausea em falar em coisas
deploraveis, do mesmo passo que sinto necessidade de esclarecer
essas coisas, não para mim, mas para os meus camaradas “leite-
criolistas” por exemplo, rapazes estimaveis mas que andaram
mettidos por querer no meio do “movimento antropophagico”.
(...)
Sob a direcção de Alcantara Machado, fundou-se em S. Paulo a
revista de antropophagia. Havia enthusiasmo, camaradagem. Mas o
sujeito endinheirado [Oswald de Andrade] não podia estar
satisfeito com a rabada (...). Apesar do ilustre presidente
Washington Luis achar uma graça damnada nelle, passear de braço
dado com elle. (...) Rodeou-se de rapazes que [ilegível] carecendo
de um [ilegível], ainda que de pau torto. Um incidente de coisinha
de revista serviu para o rompimento. Hoje os antropophagos
atacam rijamente os srs. Alcantara Machado, Mário de Andrade e
Tristão de Athayde, com mesquinharias. Convencidos de que

84
LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
85
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº13, 4 de julho de 1929.

78
podem destruir alguma coisa. Nos intervallos manifestam sua
incondicional adhesão á candidatura Julio Prestes.86

A menção a dois políticos importantes do período – o então presidente da

república, Washington Luís, e o presidente do estado de São Paulo e candidato do

Catete para a próxima eleição presidencial, Júlio Prestes – não é de maneira alguma

gratuita. Após tensões de diversas origens, o então presidente do estado de Minas

Gerais, Antônio Carlos, e o situacionismo mineiro, representado pelo Comitê Central do

PRM, se encontravam em conflito com o governo federal e com o situacionismo

paulista, vinculado ao Partido Republicano Paulista (PRP), no período que, como

mostra Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (2001, p. 330-349), era o mais intenso dos

processos sucessórios da chamada “República Velha”: as negociações pré-eleitorais

com vistas a definir o(s) candidato(s) à presidência. Minas, desde o início de 1929,

manifestava a sua recusa a aceitar a candidatura de Júlio Prestes, proposta defendida

pelo Catete, e ameaçava lançar uma chapa oposicionista, o que acabou ocorrendo com o

lançamento da Aliança Liberal, anunciada pelo Estado de Minas no dia 4 de agosto de

1929.

No aspecto que nos interessa aqui, o importante é que o governo Antônio Carlos,

embora baseado no tradicional esquema de poder do PRM, havia conquistado a simpatia

de parte da opinião pública urbana com medidas consideradas modernizadoras como a

fundação da universidade (UMG, que se tornaria posteriormente a UFMG) e a

instituição no estado do voto secreto. Se, por um lado, os jovens intelectuais que

orbitavam em torno da Faculdade de Direito dependiam das redes clientelistas do

situacionismo para conseguir seus cargos no serviço público e na imprensa, por outro,

tal fato não determinava a espécie de adesão entusiasmada que podemos observar tanto

no grupo de leite criôlo, quanto no grupo modernista que se opunha ao suplemento.

86
ESTADO DE MINAS, 28 de julho de 1929.

79
Drummond declarou, em carta pessoal destinada a Mário de Andrade datada de 9 de

agosto, ser “soldado vibrante da aliança liberal” (apud SANTIAGO, 2002, p. 354). Por

sua vez, leite criôlo publica, uma semana depois do lançamento da Aliança Liberal, um

manifesto de apoio ao presidente Antônio Carlos da autoria de João Dornas Filho

escrito em linguagem coloquial-modernista, destacando a afinidade entre os ideais do

suplemento e aqueles encarnados na candidatura oposicionista:

Por isso é que “leite criôlo” bate tropicalmente as palmas


aplaudindo a atitude do Sr. Antonio Carlos. E sem compromisso
nenhum porque nenhum de nós, isoladamente, deve nada ao
presidente de Minas. E nem em conjunto. O caboclo é porque é
macho mesmo e Minas em peso está com quem não deixe minas
fazer feio.
(...)
Ninguem estranhe “leite criôlo” entrar nessa dansa. Nos somos
antes de tudo e sobretudo brasileiros, a quem interessa desde modo
de assoar o nariz até o modo de governar a nação. Não é só
movimento literário não. É tambem político e social.87

Nota-se que a vinculação de Oswald de Andrade ao PRP – apontada na já citada

crônica literária de João Alphonsus em um contexto já conflituoso, porém anterior ao

lançamento da Aliança Liberal – pode ter incitado Dornas a declarar que não se devia

estranhar a tomada de posição de leite criôlo. A partir daquele número o suplemento

não publica mais artigos sobre o “criolismo” e perde, assim, o pouco de referência à

programática da segunda dentição da Revista de Antropofagia que havia na publicação.

Na, por assim dizer, política interna da “república das letras” os acontecimentos da

política nacional fortaleciam a posição de Drummond e João Alphonsus, dado que

várias das figuras com quem Oswald rompera eram ligadas ao Partido Democrático. Era

o caso de Paulo Prado, Antonio de Alcântara Machado e Mário de Andrade (Cf.

AMARAL, 1975, p. 265 e MICELI, 2001, p. 254). Segundo Sergio Miceli (2001, p.

91-92), o partido representava uma aliança de frações dissidentes da oligarquia

87
LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929. A numeração do suplemento encontra-se, ao final
da publicação de leite criôlo, dois números defasada devido à repetição errônea do cabeçalho nos
exemplares IX (28/7 e 4/8) e XIII (1/9 e 8/9).

80
perrepista com as demandas modernizadoras de segmentos urbanos como profissionais

liberais, intelectuais etc., o que talvez representasse uma vantagem, sob o ponto de vista

dos modernistas mineiros, em relação à estrutura mais conservadora do PRP, ao qual

Oswald de Andrade – apesar das suas posições radicais no campo literário – continuava

vinculado.

Na já citada carta de Antônio de Alcântara Machado a Alceu Amoroso Lima,

ainda em maio de 1929, o escritor paulista estranha a presença de Oswald de Andrade e

de sua Revista de Antropofagia nas páginas do Diário de São Paulo, filiado à rede dos

Diários Associados de Assis Chateaubriand, simpatizante do Partido Democrático (Cf.

VISCARDI, 2001, p. 343).

Em tudo isso o que há de estranho é a atitude do Diário de S.


Paulo e em consequência de O jornal. Ignora talvez o [Assis]
Chateaubriand que (...) o [Oswald de] Andrade vem servido das
salas para bajulações semanais ao benemérito Governo Paulista? E
o resto? Se ignora não devia ignorar. (apud SANTIAGO, 2003, p.
108)

Seja por tais injunções, seja por outras, a Revista de Antropofagia deixa de

circular, após um último número datado de primeiro de agosto. O suposto “clube de

antropofagia de Minas Gerais” continuaria publicando seu “órgão oficial”, embora,

como já foi dito, um pouco descaracterizado. Um mês e meio depois, no entanto, o

número XIV de leite criôlo seria apenas uma pequena coluna com um trecho de prosa e

dois poemas curtos. Na mesma página aparece a seção “Chronica literaria”, de João

Alphonsus, com um texto intitulado “De Negra Fulô a Freud”, no qual o escritor

mineiro se refere mais uma vez à antropofagia, agora como um fato passado, em uma

resenha cujo centro é o já mencionado poema “Negra Fulô” de Jorge de Lima:

A obrigatoriedade dos themas brasileiros na poesia nacional creou,


como era de esperar, uma falsa brasilidade de rethorica poetica, a
que poucos ou nenhum conseguiram [sic] escapar. (...) alguns
delles deram para antropophagos, e ficaram exasperados, porque
ninguem não notou que elles haviam mudado de rotulo, rapazinhos

81
imberbes ao lado de sujeitos maduros e beiçudos, num farrancho
divertido pelo menos.
Porém, como de todas as cousas más tem que resultar alguma coisa
boa (...) a verdade é que nem tudo está morto, e ha poetas já
treinados e outros incipientes, com os quaes é preciso contar toda a
vida, já porque tiveram o bom humor para desertar do farrancho
antropophagicamente piqueniquesco, já porque de qualquer modo
elles estão conduzindo a nossa poesia a bom caminho, apesar das
vicissitudes actuaes.
(...)
Pois bem só se lembraram elles do indio como alegoria para
quadros vivos construidos demais, e dos negros, para distillar
tristezas ou fazer cafuné [sic]. E só o Sr. Jorge de Lima, de
Alagoas, que tinha sido antes um emerito cultivador de sonetos, foi
capaz de vir a publico uma legitima e espontânea “Negra Fulô”,
que vale por si só mais que os longos poemas em que modernistas
anteriores versejaram episodicamente a história do Brasil.88

O artigo em tom triunfante enterra simbolicamente leite criôlo, evocando contra as

tentativas literárias do suplemento o poeta e o poema que, como foi visto, era uma

bastante provável inspiração das propostas estéticas do grupo “criolista”. A lição foi

entendida: o próximo número do suplemento marcaria a ruptura deste com a

antropofagia, neste momento isolada e sem publicação própria. A segunda menção

explícita da antropofagia nas páginas de leite criôlo consiste em um artigo do

modernista alagoano Valdemar Cavalcante intitulado “Anthropophagia” – que já havia

sido publicado no Jornal de Alagoas de 9 de maio de 1929 (cf. SANT´ANA, 1978, p.

123) – no qual Oswald é atacado devido “ao seu plano de botar Jesus Christo para fora

do territorio brasileiro” e desviar o modernismo de sua verdadeira batalha contra o

bacharelismo. No texto também aparece, incidentalmente, a figura de Jorge de Lima, ao

qual se refere ter sido nomeado, apesar das suas “convicções catholicas, agente de

antropophagia aqui em Alagoas”. 89

Aparece também neste suplemento um poema, intitulado “poema a um galo

conhecido meu”, de João Dornas Filho, no qual se parece aludir ao comportamento

mulherengo de Oswald – que naquele momento se separara da sua esposa Tarsila do

88
ESTADO DE MINAS, 15 de setembro de 1929.
89
LEITE CRIÔLO Nº XV (17a) de 22 de setembro de 1929.

82
Amaral, para ficar com a poetisa Pagu, que então tinha apenas 18 anos (Cf. AMARAL,

1975, p. 284-295) – concluindo que o “galo” por não possuir culpa não pode se queixar

“da faca e da panela”. 90

Após este rompimento com a antropofagia haveria apenas mais um número, aliás,

pequeno e atípico, de leite criôlo: terminara a aventura da publicação e de seu grupo na

rede modernista nacional – rede que, aliás, já não era mais a mesma e que funcionaria

de maneira bastante diversa a partir de 1930. Talvez seja válido citar aqui um poema,

chamado “Vai-vem da ladeira sem flores”, de Guilhermino César – único texto assinado

por um dos diretores de leite criôlo a sair no último número do suplemento – para

demonstrar o contraste do fim melancólico da publicação com o entusiasmo nacionalista

e modernista que levou à sua publicação:

Tudo sem vida


me levando a vida,
monotona

Caricia da descida.
Os anjos máus que me abraçaram
os anjos máus...
Monotona
Caricia da descida.91

90
LEITE CRIÔLO Nº XV (17a) de 22 de setembro de 1929.
91
LEITE CRIÔLO Nº XVI (18a) de 29 de setembro de 1929.

83
3. Não somente pela poesia: gêneros e temas em leite criôlo.
Está assim aberta a todas as oposições a REVISTA DE
ANTROPOFAGIA. E conta com sua colaboração
frequente. Uma única restrição: cousa curta.

- Carta circular da Revista de Antropofagia, anunciando o


seu aparecimento, assinada por Raul Bopp e Antônio de
Alcântara Machado, para Achilles Vivacqua (Sem data,
anterior a 10 de maio de 1928). Série correspondência.
Caixa 1 (Classificação provisória). Fundo Achilles
Vivacqua. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG.

A REVISTA DE ANTROPOFAGIA já tem para publicar


em seus próximos números nada mais nada menos do que
37 poesias: não possue um único trechinho de prosa.
Ela dirige aos novos do Brasil este radiograma
desesperado:
S.O.S. SOCORRO. ESTAMOS NAUFRAGANDO NO
AMAZONAS DA POESIA. MANDEM PROSA
SALVADORA

- “S.O.S.” de Antônio de Alcântara Machado e Raul Bopp


Revista de Antropofagia, Nº 2. Junho de 1928.

Estamos numa phase em que todo o espirito da nova e


velha intellectualidade, abandonando a prosa, volta-se
para a poesia. Atingimos o ultimo momento da
insinseridade. O traço principal da psychologia do nosso
povo, formado da influencia de tres elementos ethnicos,
não cria, como característica da nossa psyché, uma
individualidade literária marcada somente pela poesia.

- “Poetas” de Achilles Vivacqua, Semana Illustrada, Nº


85. 30/3/1929.

Depois de analisada a trajetória do grupo de leite criôlo e da própria publicação no

interior da rede modernista, pretendemos no presente capítulo analisar os textos ali

publicados com o intuito de compreender a lógica do seu projeto literário e intelectual.

Os diversos temas presentes no tablóide e nos suplementos serão enfocados a partir do

recorte dos gêneros literários ali presentes. Tal opção metodológica se dá com o

objetivo de aproximar a análise da lógica de produção literária: é preciso lembrar –

contra a tentação de buscar na publicação a espécie de discurso claro, coerente e

homogêneo que se poderia esperar de um texto teórico – que os diretores e

colaboradores de leite criôlo se pensam como literatos e concebem as pequenas

84
contribuições ad hoc que compõe o mosaico que é o “órgão oficial do criolismo” como

textos literários. O risco que se pretende evitar é o de conceber leite criôlo como uma

entidade dotada de uma retórica e de uma ideologia unitárias, limitação esta que

acreditamos se fez presente na análise de Antônio Sérgio Bueno.

As epígrafes citadas acima remetem a concepções relativas a gêneros literários

expressas no âmbito da rede modernista contemporânea a leite criôlo, exemplificando

como tais concepções se fazem presentes naquele momento. A primeira delas se refere à

limitação básica dos textos que aparecem em publicações como leite criôlo e a Revista

de Antropofagia, o tamanho. Invoca também o procedimento pelo qual se recrutam

colaboradores para publicações que, ao que parece, não pagavam pelos textos

publicados, ou seja, a ativação dos contatos no âmbito da rede modernista nacional. As

epígrafes seguintes se referem à posição da poesia como gênero literário predominante

no âmbito do modernismo de então e expressam também uma reação a este quadro.

Mas, enquanto a citação da primeira dentição da Revista de Antropofagia apenas

pretende restaurar o equilíbrio numérico entre poesia e prosa no interior daquela

publicação – dirigida naquele momento por um prosador convicto, Antônio de

Alcântara Machado –, a citação do futuro diretor de leite criôlo, invocando a hegemonia

do gênero poético como sintoma da insinceridade da intelectualidade de então para com

a “psychologia do nosso povo, formado da influencia de tres elementos ethnicos”,

levanta em torno de uma questão literária indagações sobre a cultura e a nacionalidade

que transcendem a literatura estrito senso. Parece assim sugerir o formato da segunda

dentição da Revista de Antropofagia, na qual os poemas cedem lugar a textos

programáticos e citações formando uma espécie de manifesto contínuo. No entanto, o

gênero poético permanece hegemônico no corpus publicado de leite criôlo, mesmo que

tensionado pela existência de um eixo temático para a publicação.

85
No intuito de mimetizar a tensão presente na publicação entre o conteúdo

programático, mais próximo à lógica do manifesto, e o aspecto relativamente mais

fragmentário e tematicamente disperso da produção literária que se dá no interior de

gêneros mais estabelecidos, à análise do corpus pelo recorte dos gêneros se seguirá, nos

próximos capítulos, uma exploração mais metódica da dimensão programática de leite

criôlo.

No Amazonas da poesia
Como já afirmamos, no conjunto do corpus de leite criôlo se mantém a

hegemonia dos versos característica das publicações modernistas dos anos 1920, sendo

que o volume das águas do “Amazonas da poesia” – para usarmos a metáfora de

Antônio de Alcântara Machado no trecho da Revista de Antropofagia que nos serve de

epígrafe – só não supera os outros gêneros textuais presentes na publicação em quatro

edições: o tablóide de 13 de maio, a primeira edição a sair no jornal Estado de Minas

em 2 de junho, a nona edição de 28 de julho e a décima primeira edição de 11 de agosto

(numerada erroneamente X devido à repetição do clichê da edição IX no cabeçalho do

suplemento publicado em 4 de agosto). Nos dois primeiros casos, o tablóide e a edição

de estréia no Estado de Minas, os artigos programáticos – no caso expondo a visão de

mundo “criolista” – característicos das edições de lançamento de periódicos tomam a

frente. A edição de 11 de agosto é incidentalmente a edição na qual é publicado o

manifesto de apoio ao lançamento da Aliança Liberal, já explorada no capítulo anterior.

Nota-se, portanto, que em apenas uma das edições cotidianas de leite criôlo outro

gênero textual supera a presença hegemônica do verso no suplemento.

Dentre os poemas publicados é possível perceber a associação constante entre

temas afeitos ao nacionalismo primitivista e as técnicas literárias características do

modernismo de então (verso livre, vocabulário coloquial, ausência de pontuação,

86
justaposições de toda espécie etc.), apesar da considerável variedade temática presente

no corpus poético analisado. A modernidade técnica e/ou social enquanto temática, tão

característica do modernismo paulista do começo dos anos 1920, se faz presente em

apenas um poema – “Metropole”, de A. Albuquerque, de Ubá (possivelmente

pertencente ao grupo da revista Montanha daquela cidade mineira) – e mesmo neste

poema a afirmação nacionalista se faz presente no verso final, “Estamos no Brasil!”.92

A variedade de temáticas, a grande maioria integradas nos eixos do nacionalismo e do

primitivismo, não se reflete na diversidade dos poemas individuais: diversos autores

repetem temas e/ou procedimentos literários de outros poemas publicados no próprio

leite criôlo, gerando séries relativamente coesas dentre o mosaico das contribuições. É

interessante ressaltar que tal redundância – que facilita, aliás, em muito a presente

análise – serviu na época de argumento para críticas, como aquelas de João Alphonsus

que analisamos no capítulo anterior.

Algumas destas séries de poemas se vinculam à temática geral de leite criôlo. O

poema “Samba”, de Achilles Vivacqua, que já havia saído no primeiro número da

revista Verde e no Diário de Minas,93 tem por ecos “Poesia criôla”, de Fonte Boa, do

grupo modernista de Cataguases, e “Dança de Salomé mulambo”, de José Guimarães

Alves. Todos eles encenam danças dos “corpos pretos” de “criôlas”, “morenas” e

“negras”, através de procedimentos formais que incluem a presença de vocábulos

vinculados à herança cultural africana no Brasil (“cabinda”, “iaiá”, “berimbau” etc.).

Também fazem sua aparição diversos tipos de trabalho textual de matriz sonora e/ou

visual como as aliterações e assonâncias reforçadas pelo recorte irregular dos versos em

“Samba”, as rimas acompanhadas de uma ortografia que remete à oralidade (“aruê,

aruá/ pra seu dia festejá”) evocando as cantigas folclóricas em “Poesia criôla”, as

92
LEITE CRIÔLO Nº IX (10º), 4 de agosto de 1929.
93
DIÁRIO DE MINAS, 1/2/1929.

87
repetições e refrões em “Dança de Salomé mulambo”. Estes são alguns dos poemas

publicados em leite criôlo que mais chamam a atenção para si no aspecto formal,

trazendo como substrato temático o tipo da mulata sensual, cuja proximidade com o

tema da luxúria como perdição está explícita na menção a Salomé – encarnação bíblica

da sensualidade maliciosa e dominadora de ampla circulação na literatura ocidental a

partir do séc. XIX (cf. DOTTIN, 1997, p. 805-811) – no título do poema de José

Guimarães Alves.94 Voltaremos à associação entre a herança africana no Brasil e a

sexualidade nos próximos capítulos.

A temática “negra” também aparece nas páginas da publicação mineira em

poemas de cunho mais narrativo, muitas vezes ambientados em um cenário rural

escravista ou pós-escravista. De uma certa vertente sado-erótica participam “mãe preta”

de Fidelis Florêncio (Wellington Brandão), analisado no quinto capítulo, e também o

poema “milú" de Jacob Pim-pim, pseudônimo do “antropófago” Raul Bopp, que narra o

estupro da “escrava mais nova” pelo feitor, tendo por cenário o “fundo da lavoura

grande” de uma fazenda dos tempos da escravidão. Já em “bichinha de casa...”, de Jorge

Fernandes, colaborador de Natal, aparecem ecos da trama do poema “Nega Fulô” de

Jorge de Lima, já comentado no capítulo anterior: o escritor do Rio Grande do Norte

descreve em seu poema uma “negrinha asseiada [sic]”, concluindo que a fala dela “até

se parece / com a fala da dona / da casa...”, insinuando a substituição, talvez apenas

sexual, da Sinhá pela “bichinha de casa”, substituição que aparece explicitamente nos

famosos versos do modernista alagoano. A erotização de “morenas dengosas” através

do recurso à insinuação também se faz presente em “cromo”, de Achilles Vivacqua.

94
“Samba”, de Achilles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº III, 16 de junho de 1929; “Poesia criôla”, de
Fonte Boa em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929; “Dança de Salomé mulambo”, de José
Guimarães Alves em LEITE CRIÔLO Nº VII, 4 de agosto de 1929. “Samba” e “Dança de Salomé
mulambo” já foram analisados e parcialmente transcritos por Antônio Sergio Bueno, cf. BUENO, 1982,
p. 144.

88
Neste poema soldados “cobiçando os frutos cheirosos / fazem sentinela” devido à

presença das tais “morenas” em uma venda localizada em frente ao quartel. 95

Além do viés erotizado, comum aos poemas mencionados até aqui, a temática

negra também faz sua aparição sobre outras formas em leite criôlo. No poema “13 de

maio”, de Francisco L. Martins Filho, se alude à abolição da escravidão, entendida

como dádiva da Princesa Isabel. Sobre outro ponto de vista e em claro diálogo com a

discussão sobre o “criolismo”, da qual nos ocuparemos a seguir, é construído o poema

“a correição”, de Ary Gonçalves, colaborador de Ubá e possivelmente integrante do

grupo da revista modernista Montanha, publicada naquela cidade mineira. Ali o autor

funde a imagem de uma correição de formigas carregando um grilo morto com um

cortejo de “negro congado” carregando a imagem de Cristo, fechando o poema da

seguinte maneira: “Deve ser procissão, / ou polícia procurando criminosos, / a

‘correição”. 96

Mas a temática “negra” é apenas um rio dentre os afluentes do “Amazonas da

poesia” e, apesar da sua importância para a publicação, é numericamente pouco

relevante dentro dela – oito poemas de um total de sessenta e nove. É necessário

compreender estes poemas dentro da lógica mais ampla das temáticas do nacionalismo

primitivista. O foco no catolicismo popular e tradicional, presente no citado “a

correição”, também se faz presente, de forma muito mais positiva, intimista e caseira,

nos poemas “Mez de Maria”, de Fidelis Florêncio (Wellington Brandão) – “Nossa

Senhora / ficou mais bonita / na voz de Ninita” –; “Balada da ternura”, de Oswaldo

Abrita, ligado à revista Verde – “As estrelas se abaixaram, meu Deus, / pra espiar a

minha dor”, e “armarinho”, de Guilhermino Cesar – “Tristeza moleirona dos sentidos /

95
“milú”, de Jacob Pim-Pim em LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929; “bichinha de casa...” em
LEITE CRIÔLO Nº XIII (14°), 1° de setembro de 1929; “cromo”, de Achilles Vivacqua em LEITE
CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
96
LEITE CRIÔLO Nº XI (12°), 18 de agosto de 1929.

89
deixou lugar pra Deus Nosso Senhor”. Estes poemas, os últimos dois remetendo mesmo

à forma da prece religiosa, exemplificam, aliás, a ausência do ardente anticlericalismo

da segunda dentição da Revista de Antropofagia nas páginas de leite criôlo. 97

Também as referências à música folclórica e popular não se esgotam nos poemas

de tema “negro”. Em “A canção do meu sapo”, de Francisco L. Martins Filho, e “Pedra

Menina”, de Fonte Boa,98 versos livres modernos servem de moldura para cantigas

transcritas em ortografia que visa recuperar características da fala popular, numa

repetição clara do procedimento já utilizado, entre outros, por João Dornas Filho em

poema seu publicado na revista Verde, como vimos no capítulo anterior.

Ainda nas vastas águas do primitivismo nacionalista, em leite criôlo foram

publicados desde representações poéticas da bandeira brasileira – “bandeira nacional”,

de Achilles Vivacqua, e “bandeira”, de Eneida, escritora paraense – até poemas de

temática regional nordestina – “Os ‘Baianos", de Fidelis Florêncio, e “Batalha”, de

Franklin Nascimento, colaborador de Fortaleza –, antecipando alguns motivos da voga

do romance nordestino da década seguinte, como a seca e a saga dos retirantes. 99 Vários

poemas trabalham com a descrição de paisagens interioranas – enfatizando ora os

aspectos naturais, ora os aspectos agro-pastoris de tais cenários –, levando às vezes o

poema em direção à fabula (“Nocturno”, de Rogerio Picanço) ou do registro numérico

pseudo-geográfico (“ca paraó”, de Valle Ferreira).100 Uma curiosa variação desta

97
“Mez de Maria” de Fidelis Florêncio em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929; “Balada da
ternura” de Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 25 de agosto de 1929; “armarinho” de
Guilhermino Cesar em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929.
98
“A canção do meu sapo” de Francisco L. Martins Filho em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929;
“Pedra Menina” de Fonte Bôa em LEITE CRIÔLO Nº III, 16 de junho de 1929.
99
“bandeira nacional” de Achilles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929;
“bandeira” de Eneida em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 7 de julho de 1929; “Os ‘Baianos" de Fidelis
Florêncio em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929; “Batalha” de Franklin Nascimento em LEITE
CRIÔLO Nº VII, 7 de julho de 1929.
100
“ca paraó” de Valle Ferreira em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929; “bucolica" de Odorico
Costa, de Uberaba, em LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de julho de 1929; “Minas” de Rosário Fusco, ligado
à revista Verde, em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929; “Bois de Carro” e “A Catita” de Fidelis
Florencio em LEITE CRIÔLO Nº X(11º), 11 de agosto de 1929; “Paraná” de Francisco L. Martins Filho
em LEITE CRIÔLO Nº XIII(14°), 1° de setembro de 1929.

90
categoria poderia ser denominada – tomando de empréstimo o título da série de poemas

de Achilles Vivacqua que começou a ser publicada na revista Verde e teve sua

continuação em leite criôlo – de poemas de Belo Horizonte. Neles a paisagem urbana da

capital mineira de então é descrita não no diapasão da metrópole moderna do progresso

e da técnica – o imaginário urbano que entusiasmara o modernismo paulista nos seus

primeiros momentos – mas na feição interiorana do seu ambiente, descrito em termos de

clima, de natureza e de hábitos tradicionais. Nos poemas da série citada de Vivacqua,

“paisagem n. 4” e “paisagem n. 5”, a “paisagem não tem graça” apesar do “morro

coberto de arvores bonitas”, no primeiro, e, no segundo, “no largo da egreja / o filho do

JUIZ-DE-PAZ / apascenta sete cabras magras...”. A mesma leitura da cidade, à qual

ainda era referida constantemente em termos de “cidade-jardim”, se faz presente nos

poemas “vistas de Bello Horizonte: Estrada de Ferro” de Valle Ferreira, que se refere à

“Estação sem prática da vida”, e “o sol na prosa” de Fonte Bôa, que tem por temática o

clima da capital. 101

A vertente mais humorística e satírica do modernismo se faz presente em poemas

como “Neurastenia Clerical”, “Reclame para o Grande Hotel”, “Versos do Coletor

Estadoal de Briquites” e “Orador de Mitingue”, assinados por Fidelis Florêncio – sátiras

religiosa, de costumes e políticas, respectivamente – e “o papagaio do palácio”, de


102
Jacob Pim-pim, também de vertente política. Alguns poemas trabalham a própria

temática sentimental com pitadas de coloquialidade e certa malícia. Em “Artistas

Bonitas de Cinema”, de Carlos Drummond de Andrade, e “lundu de Coolen Moore”, de

Luis da Câmara Cascudo, a interlocutora do eu-lírico é comparada a atrizes do cinema

101
“paisagem n. 4” e “paisagem n. 5” de Achilles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de julho de
1929; “vistas de Bello Horizonte: Estrada de Ferro” de Valle Ferreira em LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de
julho de 1929; “o sol na prosa” de Fonte Bôa em LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
102
“Neurastenia Clerical”, “Reclame para o Grande Hotel”, “Versos do Coletor Estadoal de Briquites” de
Fidelis Florêncio em LEITE CRIÔLO Nº II, 9 de junho de 1929; “o papagaio do palácio” de Jacob Pim-
pim em LEITE CRIÔLO Nº IX, 21 de julho de 1929.

91
internacional e, no fim, exaltada por ser “brasileirinha até debaixo d’água”, no primeiro,

e no segundo porque seus olhos não são “olhos de americana”. No poema de Câmara

Cascudo aparece um refrão – a interpelação “Meu bem” – também utilizado nos poemas

“Offerecimento”, de Francisco L. Martins, no qual a interlocução amorosa se dá com

uma tuberculosa, e “pra você...”, de João Dornas Filho, no qual é ressaltado o “sabor

brasileiro” do “cangote cheiroso, moreno, gostoso” da interlocutora. O refrão “Meu

bem” tem por equivalente “Mulher” no poema “Desejo Lyrico”, de João Alphonsus,

com resultados bastante parecidos. Neste poema o eu-lírico antecipa a resposta da sua

interlocutora nos seguintes termos: “Tu então dirás: tá bão”, em mais um exemplo da

preocupação de integrar o tema sentimental e amoroso com as formas coloquiais e as

alusões nativistas do modernismo. 103

Também aparecem no suplemento poemas nos quais a temática amorosa-

sentimental, das mais tradicionais para a feitura de versos, é tratada de maneira mais

convencional, em alguns deles são inclusive rimados de maneira não muito distante da
104
ortodoxa. É através de poemas deste tipo – secundário no corpus da publicação

mineira – que se dá a colaboração de duas das quatro mulheres cuja produção aparece

em leite criôlo: Carmem Corrêa de Mello e Mieta Santiago. A última delas, que chegou

a publicar dois poemas no suplemento, era também uma conhecida sufragete mineira,

sendo a primeira aluna da Faculdade de Direito e a primeira eleitora registrada do estado

de Minas Gerais, e publicava com certa regularidade, na imprensa de Belo Horizonte,

poemas de um modernismo mais discreto do que o que prevalecia na rede nacional

modernista de então. Tais presenças femininas provam, ao contrário, a esmagadora


103
“Artistas Bonitas de Cinema”, de Carlos Drummond de Andrade em LEITE CRIÔLO Nº II, 9 de
junho de 1929; “lundu de Coolen Moore”, de Luis da Câmara Cascudo em LEITE CRIÔLO Nº XI (12º),
28 de julho de 1929; “Offerecimento”, de Francisco L. Martins em LEITE CRIÔLO Nº III, 16 de junho
de 1929; “pra você...”, de João Dornas Filho em LEITE CRIÔLO Nº IX(10º), 4 de junho de 1929;
“Desejo Lyrico”, de João Alphonsus em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de julho de 1929.
104
“Canção do Só”, de José Guimarães Alves em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929; “Sonata de
noite e de dia”, de José Guimarães Alves em LEITE CRIÔLO Nº XIII (15º), 8 de setembro de 1929;
“inquietação”, de Rogerio Picanço em LEITE CRIÔLO Nº XIV(16º), 15 de setembro de 1929.

92
presença de escritores homens, não apenas em leite criôlo, mas no modernismo

brasileiro como um todo naquele momento. 105

Para encerrar este mapeamento dos afluentes principais do “Amazonas da poesia”

de leite criôlo, cabe lembrar que a articulação da diversidade dos poemas aqui

analisados – a qual se deve somar a diversidade daqueles vários que não integram as

séries que discutimos – não se dá fundamentalmente em torno do programa “criolista” e

sim das tendências e ressonâncias da rede modernista nacional no âmbito da produção

de versos. No entanto, o relativo isolamento da produção em versos das temáticas

centrais da publicação – símbolo do ecletismo modernista que leite criôlo herda da

revista Verde e da primeira dentição da Revista de Antropofagia – não se repete nos

outros gêneros literários. Nesses, o ideário “criolista” se faz presente de maneira mais

intensa e, em alguns momentos, tenciona os limites entre a prosa de ficção e o artigo

opinativo.

A prosa salvadora

Ilhada entre o mosaico dos poemas e o conteúdo programático dos artigos, a

prosa de ficção ocupa um lugar incerto na publicação mineira. No contexto de leite

criôlo, tal gênero de escrita dificilmente poderia ser qualificado de salvador no sentido

da epígrafe de Alcântara Machado: em termos de volume de textos a prosa de ficção

está longe de fazer frente ao “Amazonas da poesia” (foram publicados vinte e quatro

trechos de prosa contra um total de sessenta e nove poemas). Mas a prosa de ficção mais

característica da publicação pode ser qualificada de “salvadora” em outro sentido, posto

que se vincula de maneira muito explícita com os ideais de regeneração nacional

presentes nos textos programáticos do “orgão oficial do criolismo”.

105
“cae a chuva”, de Mieta Santiago, em LEITE CRIÔLO Nº VI, 7de julho de 1929; “caricia de roce que
és tu...”, de Mieta Santiago, em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929; “você já vinha comigo”, de
Carmem Corrêa de Mello, em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929. As outras escritoras são
Eneida, autora do já citado poema “bandeira”, e Thereza Marchetti, que publicou no suplemento um
poema de influência simbolista intitulado “Helio” (LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 25 de agosto de 1929).

93
Como traço geral, a prosa de ficção presente em leite criôlo tende a ser mais curta

e sintética do que o formato tradicional do conto.106 Talvez seja melhor descrever a

forma textual de prosa predominante na publicação como anedota, no sentido

dicionarizado de “relato sucinto de um fato jocoso ou curioso”.

São deste tipo vários textos publicados em leite criôlo que, através de enredos

emblemáticos, fazem o curto circuito entre o bacharelesco pedante e a ignorância

popular, tratados igualmente nos textos programáticos do suplemento como “criolismo”

e concebidos a partir da ideia de soberba, de pretensão excessiva. Em “apologó”, de

João Dornas Filho, conta-se a história de um flautista que fez fama tocando uma flauta

de taquara: decide, porém, trocá-la por uma de prata, acaba por não conseguir tocá-la e

se vê obrigado a se sujeitar a tocar bumbo na banda. Dornas sintetiza ao final do seu

texto a lição: “Conheço um povo que se sujeitasse a tocar flauta de tacoára, podia ao

menos ser considerado o maior flautista de tacoára do mundo”. A mesma ideia básica

se articula com o pensamento racial em “A propósito de uma aparição”, de Oswaldo

Abrita. Nesse texto um “nêgo” invade um salão passadista provocando escândalo, mas

devido a sua ignorância não pode ser ouvido. O texto finaliza com um arremate

paternalista: “o caso é que alguém já olhava ele com simpatia. Porém talvez ele inda não

fale amanhã.”107

A articulação entre pretensão desmedida e ignorância incapacitante se faz presente

também na pequena estória intitulada “O poeta obscuro ou o poema do amor

desiludido”, de Diderot Coelho Junior, na qual um “rapaz pobre” escreve um poema a

partir de alguns “pensamentos bonitos” que teve e se revolta por não o publicarem em

um jornal sem alterações, sendo repelido pela exclamação do responsável pela

106
Poucos são os textos inequivocamente qualificáveis como contos. Nominalmente, “O chapéo”, de Ary
Gonçalves, modernista de Ubá, em LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de julho de 1929; e “Tragedia”, de
Marques Rebello, modernista do Rio de Janeiro em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929.
107
“apologó”, de João Dornas Filho, LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929, “A propósito de uma
aparição”, de Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929.

94
publicação, “você já viu negro escrever coisa que preste?”. Acontece que o poema

continha erros crassos de português. 108 Este texto encena uma versão ficcional da figura

de Olavo Augusto Maia, “servente da Secretaria de Finanças e rouxinol nas horas

vagas”, adotado ironicamente pelo grupo de leite criôlo, que publicava seus poemas na

seção irônica “Raça”, da qual trataremos em seguida.

É interessante notar que, se o imaginário implícito nestes textos possui certo grau

de coerência, mantém-se na publicação uma margem importante de ambiguidade. Uma

questão interessante, que exploraremos no quinto capítulo, é o fato de que o tipo de

linguagem marcada por incorreções de ortografia e construção sintáticas estranhas, que

serve de motivo de escárnio em relação às pretensões dos “ignorantes”, é utilizado

também como recurso erudito e consciente para a feitura de poemas na vertente

modernista do nacionalismo primitivista. Também é digna de nota a variação de atitude

em relação a uma das referências implícitas mais significativas de leite criôlo, o livro

Retrato do Brasil, de Paulo Prado, explorada no próximo capítulo.

Além da prosa de ficção mais alinhada com as temáticas centrais do “órgão oficial

do criolismo”, aparecem, no corpus da publicação, vários outros trechos de prosa, em

geral também na linha que definimos como anedota. Alguns deles se comunicam com

séries de poemas, como os que trabalham com situações do cotidiano rural109 e

urbano.110

Também foi publicada uma série de poemas em prosa de Guilhermino Cesar, de teor

fortemente simbolista,111 aproximando-se por vezes dos textos, mencionados no

capítulo anterior, que Achilles Vivacqua publicava nas revistas de variedade antes da

108
LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929.
109
“ jóca estourado”, de Diterot Coelho Junior em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929
110
“História do homem que me queria pra irmão”, de Guilhermino Cesar em LEITE CRIÔLO Nº II, 9 de
junho de 1929.
111
“capitulo z”, “capitulo y” e “capitulo x” em LEITE CRIÔLO Nº XII (13°), 25 de agosto de 1929, Nº
XIII (14°), 1° de setembro de 1929, e Nº XIV (16º), 28 de setembro de 1929, respectivamente.

95
sua conversão definitiva ao modernismo primitivista. A publicação desta série

concentrada nas penúltimas edições de leite criôlo, quando cai drasticamente o número

de textos ligados ao eixo temático da publicação, pode significar uma tentativa de

trabalhar com formas literárias alheias ao primitivismo nacionalista, em um contexto no

qual os “brasileirismos” começavam a ser criticados, por exemplo, por João Alphonsus,

como já foi visto no capítulo anterior.

O processo de desnatar
Se, nos gêneros propriamente literários, as formulações do que leite criôlo

considera serem os males nacionais e também o que deveria ser feito para saná-los

aparecem como sombras – como moral da história, às vezes assinalada nos próprios

textos como tal – nos artigos programáticos tais questões se colocam de maneira mais

direta, ainda que conservando uma margem importante de ambiguidade, derivada

inclusive da utilização intensa de recursos literários como a metáfora. Como Antônio

Sérgio Bueno (1982) já assinalou e discutiu, o centro do programa da publicação é o

“criolismo”, designação que se refere simultaneamente ao próprio leite criôlo e ao que o

grupo responsável pela sua publicação considerava os grandes males nacionais. A

entrevista de João Dornas Filho, publicada na segunda “dentição” da Revista de

Antropofagia, explicita os dois sentidos de “criolismo” e também como “criolismo”,

enquanto movimento, pretende combater o “criolismo”, enquanto mácula do caráter

nacional:

Antes de mais nada é necessário contar o que seja “criôlismo”, no


nosso ponto de vista. É o divórcio do homem com a terra. É a
preguiça. É o optimismo exagerado e sem rumo. É o
pernosticismo. É a desorganização culminada no bacharel.
(...)
O criôlismo – como a antropofagia – é um movimento literário,
filosófico e religioso, mas sem estrangeirice.
(...)
Nelle combatermos pela lampeana e pelo ridículo, tudo o que
representa macaqueação e burrice, entravando o Brasil a caminhar.

96
Tudo o que representa saudosismo, fanatismo e preguiça. Tudo o
que tem infelicitado o paiz.112

Encontram-se aí condensados alguns dos pontos recorrentes do eixo programático

de leite criôlo: o nacionalismo exaltado, porém anti-ufanista; a identificação, na esteira

do Retrato do Brasil de Paulo Prado, das máculas do caráter nacional supostamente

derivadas da “herança africana”, a tristeza, a preguiça e o saudosismo, aos quais se deve

acrescentar a luxúria; o horror à burrice e à ignorância que se articulam, através da

crítica à pretensão e ao pernosticismo, com o anti-bacharelismo e a repulsa ao “lado

doutor” da nacionalidade; a opção pelo ridículo e pela sátira como estratégias

discursivas.

Nos textos programáticos publicados em leite criôlo, esses pontos serão

retomados e trabalhados de diversas maneiras. Artigos deste tipo se fizeram presentes

em especial no tablóide de 13 de maio, onde foram publicados seis artigos dedicados à

interpretação do “criolismo”, alguns dois quais são quase manifestos da publicação.

Aparecem na primeira página do tablóide os artigos “leite criôlo”, de Guilhermino

Cesar, que propõe desnatar (depurar) o “leite criôlo” (a mácula da herança africana na

formação racial brasileira), “Fóra o malandro”, de João Dornas Filho e “Convite”, de

Achilles Vivacqua. No texto de Dornas a “preguiça secular” que caracteriza o

“criolismo” é a comparada ao pássaro vira-bosta, que engana o tico-tico que é levado a

criar “a filhotada preta” daquela ave como se fosse a sua própria. O artigo termina com

um “fóra o malandro!”. No texto de Vivacqua, o repúdio à “herança danada do preto

sudoso [sic] da pátria”, descrita como “erro de uma aberração”, e ao português, culpado

por tal mácula, se justapõe a uma descrição sintética do processo histórico brasileiro,

bastante parecida com as que Oswald de Andrade incluía às vezes em seus manifestos e

também nos textos da segunda “dentição” da Revista de Antropofagia. O encerramento

112
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Segunda Dentição Nº 11, 19 de junho de 1929.

97
dramático do texto consiste, nesse caso, em um convite “a mudar de marca”, de superar

o “estigma que perdura no caracter da nacionalidade”.113

Ecos deste texto estão presentes em outros textos publicados no tablóide:

“Banzo”, de Diderô Coelho Junior, que também encena uma síntese histórica da

formação da nacionalidade, e em “Negro vamos dar um jeito nisso!”, de Newton Braga,

que também interpela o leitor – único texto que pressupõe explicitamente um negro

como interlocutor em toda a série documental de leite criôlo – no qual o negro é

convidado a largar da preguiça, estudar e trabalhar. 114 Um segundo texto de Vivacqua

publicado ali é o já citado “Defeza da alegria”, que menciona Galton e as ideias

eugênicas e propõe uma eugenia meio concreta meio metafórica do povo brasileiro,

enraizada na crença do branqueamento. 115

Quando da publicação de leite criôlo enquanto suplemento do jornal Estado de

Minas, apenas dois artigos trataram especificamente de “criolismo”, ambos na primeira

edição da página semanal. Se um deles, “Cromo”, de Achilles Vivacqua, retoma os

temas do “criolismo” tal qual aparecem no tablóide, no outro, “mexerica se conhece

pelo cheiro”, de Guilhermino Cesar, se esboça uma forma diferente de colocação da

problemática “criolista”. Nesse texto Guilhermino rebate críticas à ausência de um

programa explícito e claramente definido para leite criôlo, afirmando que isto implicaria

em uma atitude publicitária e pretensiosa, o que iria contra os ideais do grupo.116 A

partir daí o grupo se concentraria mais no “processo de desnatar” do que na definição do

“criolismo”, seja enquanto movimento, seja como mácula do caráter nacional. Mas se a

densa rede de metáforas que caracteriza o tablóide vai sendo aos poucos abandonada, o

113
“leite criôlo”, de Guilhermino Cesar, “Fóra o malandro” de João Dornas Filho e “Convite”, de
Achilles Vivacqua em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.1
114
“Banzo”, de Diderô Coelho Junior e “Negro vamos dar um jeito nisso!”, de Newton Braga em LEITE
CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 2 e 4, respectivamente.
115
“Defeza da Alegria” de Achiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 7
116
“Cromo” de Achilles Vivacqua e “mexerica se conhece pelo cheiro” de Guilhermino Cesar em LEITE
CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929.

98
eixo programático da publicação permanece latente, como a mexerica que se conhece

pelo cheiro, em artigos que tratam das mais diversas questões.

Em “o que nós precisamos”, de Carlos da Matta Machado, a crítica ao “otimismo

exagerado” dos brasileiros e ao ufanismo é expressa através da figura de um “garoto no

grupo escolar” ao qual deveriam ser ensinadas não as dimensões extraordinárias da

pátria ou o patriotismo ufanista do hino nacional, mas as duras realidades do “tiquinho

de gente” que vive ali, tem “bichinhos na barriga” e “sangue ruim” proveniente de uma

“mistura de portuguez, negro e indio que não tem dado nada que preste”. Ao “garoto”

deve se ensinar, por fim, que, sem seu trabalho e empenho, a nação acabaria “obrigada a

entregar isto [seu território, sua soberania] para os outros que estão trabalhando e tem

dinheiro...”. A mesma preocupação quanto à relação entre a educação e a nacionalidade

reaparece de forma mais concreta no artigo “Livros Didacticos”, de João Dornas Filho,

no qual o autor elogia a iniciativa do governo do estado de promover um concurso

premiando novos livros didáticos, mas reprova a obrigatoriedade de que os livros sejam

escritos por professores, o que traria, segundo Dornas, o perigo da reprodução do

bacharelismo e do pedantismo das obras já existentes. O autor também defende que

sejam estudadas nas escolas primárias biografias dos “grandes homens do passado”

nacional, desde que escritas “sem optimismo exagerado e admiração embasbacada”. 117

O apreço de Dornas pela biografia parece ter permanecido com ele depois do fim de

leite criôlo, posto que, na década de trinta, escreveu uma obra deste gênero sobre Silva

Jardim, publicada como parte da prestigiosa coleção Brasiliana, da Cia. Editora

Nacional.

Também vinculada com o combate ao criolismo é a crítica à “feição criôla” da

“sociabilidade em excesso” característica dos brasileiros, no artigo “o brasileiro e o

117
“o que nós precisamos” de Carlos da Matta Machado em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de
1929; “Livros Didacticos” de João Dornas Filho em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929.

99
homem que comprou o bonde da laite”, também da autoria de Dornas. A dita

“sociabilidade doentia” atrapalharia o brasileiro de se dedicar a atividades úteis e

também reforçaria sua credulidade. Artigos publicados no suplemento também se

voltam contra a imitação dos usos e costumes estrangeiros;118 denunciam a cegueira dos

políticos para a realidade nacional;119 professam sua fé no Brasil e no nacionalismo.120

Passando do “criolismo” enquanto ideário para o “criolismo” enquanto

movimento, podemos observar as múltiplas interações do grupo com a rede modernista

nacional através de artigos publicados no suplemento. São exemplos disso o artigo de

Newton Braga intitulado “devore-se”, citado no capítulo anterior, que desenha um mapa

dos periódicos modernistas publicados àquela altura em vários pontos do país; o texto

“movimento criôlo”, de Edison Magalhães, colaborador de Januária, que descreve a

publicação mineira como “obra meritória e de redenção” através de uma linguagem

marcadamente passadista e ilustra como em diferentes pontos do país a mensagem

modernista foi apropriada de maneiras e em ritmos muito variados; e a nota não

assinada publicada com o título “jornalsinho critico, humoristico e noticioso”, na qual se

trata com ironia o ingresso dos modernistas paulistas Guilherme de Almeida, Menotti

Del Picchia e Cassiano Ricardo, pertencentes ao grupo do verde-amarelismo, na

Academia Paulista de Letras, considerado uma traição aos ideais modernistas. 121 Este

último texto evidencia também o mais próximo a que o suplemento chegou da prática da

segunda “dentição” da Revista de Antropofagia de publicar textos atacando e

118
“façamos nossa a nossa casa” de Americo R. Netto em LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929; “si
isto é leite criôlo, eu sou leite criôlo” de Odorico Costa em LEITE CRIÔLO Nº IX (10º), 4 de agosto de
1929.
119
“o caso do burro e a carapuça” de Fonte Bôa, modernista de Cataguases, em LEITE CRIÔLO Nº VIII,
21 de julho de 1929.
120
“A hora presente” de Ascânio Lopes, modernista de Cataguases falecido no início de 1929, em LEITE
CRIÔLO Nº X (11°), 11 de agosto de 1929.
121
“devore-se”, de Newton Braga em LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929; “movimento criôlo”, de
Edison Magalhães em LEITE CRIÔLO Nº XI, 28 de julho de 1929; “jornalsinho critico, humoristico e
noticioso” em LEITE CRIÔLO Nº XII(13º), 25 de agosto de 1929.

100
satirizando escritores de outras tendências dentro do modernismo, excetuada a própria

ruptura com a antropofagia, analisada no capítulo anterior.

No entanto, a principal forma de interação de leite criôlo com a rede modernista

nacional se dá sob a forma de resenhas, com destaque para as que tratam de outras

revistas modernistas. Nesta categoria se enquadram artigos sobre as revistas Arco &

Flecha e Samba, da Bahia; Verde, de Cataguases, e Montanha, de Ubá, estas duas


122
últimas consideradas revistas irmãs de leite criôlo em uma das resenhas. Também

são resenhados no suplemento livros de poemas como os de Martins Mendes, do grupo

da revista Verde, e Carvalho Filho, ligado à revista Arco & Flecha. 123 No geral estas

resenhas se caracterizam pelo tom sóbrio e pela simpatia para com os seus objetos,

expressão da política conciliadora do grupo de leite criôlo em relação aos outros

núcleos modernistas.

Em maior ou menor medida, todos os artigos veiculados no “órgão oficial do

criolismo” utilizam recursos linguísticos próximos da escrita literária estrito senso, mas

na série “mixed pickles brasileiros”, de Albano de Moraes, as fronteiras de gênero

literário se encontram totalmente borradas. Composta de pequenas anedotas irônicas

sobre a vida e a história brasileiras, a seção comporta textos que se colocam a meio

caminho entre a nota jornalística e o tipo de poesia praticado naquele momento por

Oswald de Andrade. 124

122
“Paizagem”, de Gulhermino (Cesar) em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929; “pipia:
Samba”, de A. (Achilles Vivaqua) em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929; “Verde”, não
assinado, em LEITE CRIÔLO Nº III, 16 de junho de 1929; “Montanha”, de A. V. (Aquiles Vivaqua) em
LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929; “novidades literárias: Montanha”, de Oswaldo Abrita em
LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929.
123
“Um livro de poemas moderna [sic]”, de Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de
1929; “mais um 1 de Cataguases”, de J.D.F. (João Dornas Filho) em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de
agosto de 1929; “voses nóivas [sic] da Baia”, de Guilhermino Cesar em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11
de agosto de 1929.
124
“mixed pickles brasileiros”, “misced [sic] pickles brasileiros” e “misced [sic] picklees [sic] brasileiros”
em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929, Nº XI (12º), 18 de agosto de 1929 e Nº XII (13°), 25 de
agosto de 1929, respectivamente.

101
A ironia também é a marca de dois artigos estreitamente vinculados à seção

“raça”, da qual falaremos em seguida. “Os proveitos de um concurso de beleza...”, de

Oswaldo Abrita, é o único texto assinado por um colaborador de leite criôlo a aparecer

na seção citada. Trata-se de uma sátira aos concursos de miss, então em evidência em

todos os jornais. Já “Do pequeno escriptor Olavo Augusto Maia ao poeta Alberto

Agostini”, também de Oswaldo Abrita, não foi publicada naquela seção. Falava, no

entanto, dos principais autores nela publicados, os pretensos poetas Olavo Augusto

Maia e Alberto Agostini. 125

O “criolismo” em exemplos
Como já foi mencionado no capítulo anterior, a seção intitulada “raça”, constante

tanto do tablóide como de nove das dezoito edições do suplemento, era derivada da

seção intitulada “Brasiliana”, constante da primeira “dentição” da Revista de

Antropofagia. Em ambas eram dispostos textos ou trechos de textos de terceiros (não-

modernistas) a título de gozação. Como já havia observado Antonio Sérgio Bueno

(1982, p. 158-163), estas seções eram constituídas por “seleções do desvalioso”, como

vitrines do ridículo. Os enfoques, porém, variavam: enquanto na publicação paulista

eram focalizados mais os pedantismos dos “passadistas” e a presença “desagregadora”

dos imigrantes em São Paulo, em geral com textos originários da grande imprensa, na

mineira os textos tendiam a ser, além de expressões do passadismo bacharelesco,

demonstrações de “ignorância”, com a ênfase sendo posta em erros de português,

concordância em especial, em poemas de autores relacionáveis às discussões sobre o

“criolismo” que caracterizam essa publicação. Incidentalmente, o primeiro fragmento de

“Brasiliana” no primeiro número da primeira edição da publicação antropófaga era

125
“Os proveitos de um concurso de beleza...”, de Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº XVI (18º), 29
de setembro de 1929; “Do pequeno escriptor Olavo Augusto Maia ao poeta Alberto Agostini”, de
Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 11 de agosto de 1929.

102
intitulado ironicamente “Raça”. Trata-se da notícia de um batizado em São Paulo na

qual os nomes de todos os envolvidos evidenciam sua origem “turca”, menos o do

padre, cujo nome trai sua origem italiana. A mesma temática anti-imigração aparece em

leite criôlo na figura de Alberto Agostini, sapateiro de Cataguases de origem italiana,

que “luta com a dificuldade maior de desconhecer quasi por completo a lingua

portugueza” para escrever seus poemas passadistas, prontamente zombados pelos

escritores do suplemento. No já citado artigo “Do pequeno escriptor Olavo Augusto

Maia ao poeta Alberto Agostini” à figura do sapateiro é justaposta a figura do “servente

da Secretaria de Finanças e rouxinol nas horas vagas” Olavo Augusto Maia, que

analisaremos como mais profundidade no quinto capítulo.

103
4. Antes de virar estrela: Sintomas e diagnósticos da cultura
nacional na Antropofagia, em Macunaíma, em Retrato do Brasil
e em leite criôlo.
Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez
uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos
jogou pro alto fez encruzilhada e virou
Macunaíma com todo o estenderete dele,
galo galinha gaiola revólver relógio, numa
constelação nova.

- “Macunaíma” de Mário de Andrade (1977,


p. 221)

Com o objetivo de investigar a circulação e a variação de um certo imaginário da

nacionalidade no interior do que denominamos rede modernista nacional, trata-se aqui

de estabelecer relações no interior de um corpus bastante heterogêneo de conjuntos

textuais: Macunaíma, rapsódia de Mário de Andrade; Retrato do Brasil, ensaio de Paulo

Prado; a Revista de Antropofagia, em especial a fase identificada com Oswald de

Andrade e seus colaboradores mais próximos; e, por fim, leite criôlo.

À primeira vista, a análise comparativa pode parecer despropositada126: a recepção

destes objetos culturais ao longo do tempo acabou por impor um abismo entre eles. A

saga do “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade – cuja primeira edição de

tiragem reduzida e custeada pelo autor seria secundada somente nove anos depois – há

muito se tornou um clássico da literatura nacional, obra-prima inconteste, emblema do

modernismo e objeto de inúmeros estudos e releituras. Como vimos, sua presença na

126
O que não significa que seja inédita: apenas a relação de leite criôlo com os outros conjuntos textuais é
em grande parte nova. É necessário lembrar, no entanto, que Antônio Sérgio Bueno (1982, p. 119; 128;
165-177) já havia mencionado certo vínculo entre o criolismo e o “ensaio sobre a tristeza brasileira”,
apontado a presença do lema do “herói sem nenhum caráter” no tablóide e discutido as possíveis relações
da publicação com a Antropofagia. A relação entre Macunaíma e Antropofagia, como veremos, tem sido
um tópico relativamente constante de discussão. O vínculo entre Retrato do Brasil e Macunaíma tem sido
muitas vezes apontado, porém pouco explorado. Anderson Pires da Silva (2009, p.50-59), chega perto de
uma análise cruzada dos três conjuntos textuais paulistas, mas em sentido bastante diferente do
desenvolvido aqui.

104
cultura brasileira, para além do campo estritamente literário, se fez até sob a forma de

enredo de escola-de-samba, defendido pela Portela em 1974. (SANTIAGO, 1988).

Já a trajetória da recepção do “ensaio sobre a tristeza brasileira”, de Paulo Prado,

se dá em sentido inverso: de novembro de 1928 ao ano de 1931, o livro teve quadro

edições, sendo duas delas em 1929, lançando a moda dos “ensaios sobre o Brasil”.

Gerou também naquele momento um enorme debate através da imprensa e foi escolhido

pelo Departamento Nacional de Ensino para ser traduzido em projeto da Liga das

Nações. (CALIL, 1997). Hoje, no entanto, é considerado principalmente um exemplo

do que se convencionou chamar de “pensamento social brasileiro” da Primeira

República, não tendo atingido o status de clássico constantemente revisitado de

herdeiros seus, como Casa grande & senzala, também “best-seller” na ocasião do seu

lançamento, e Raízes do Brasil.

Os outros dois conjuntos textuais em questão trazem as marcas dos periódicos

literários: o caráter efêmero e imediato, a autoria coletiva, a textualidade fracionada.

Apesar disto, a Revista de Antropofagia – tanto na sua primeira fase de publicação

avulsa e relativamente conciliadora, quanto na seguinte no Diário de São Paulo e

marcada pelo radicalismo das propostas oswaldianas – acabou se tornando um foco de

memória cultural do modernismo, ainda que secundário em relação à obra literária em

livro de Oswald e ao seu Manifesto Antropófago. Neste processo foi fundamental a

reedição em fac-símile de 1975, publicada pelo bibliófilo José Mindlin, em edição

conjunta da sua empresa Metal Leve com a editora Abril, estabelecendo certa

perenidade e acessibilidade para este corpus até então raro e desconhecido. O mesmo

tratamento receberam, na sequência, outras publicações modernistas como Verde e A

Revista, mas não nosso quarto objeto de comparação, leite criôlo. Como vimos no

105
primeiro capítulo, nas últimas décadas o periódico tende a ser considerado apenas uma

estranha nota-de-rodapé da história do modernismo mineiro.

No momento de sua primeira circulação, porém, fazia todo sentido a apreensão

simultânea destes objetos. Todos foram publicados em um período de apenas um ano e

três meses127 e por pessoas e grupos solidamente integrados na rede modernista

nacional. Usando a imagem recorrente em Macunaíma dos seres terrenos que acabam

por se tornar estrelas, o que nos interessa aqui é buscar o intercâmbio que se dá antes da

ascensão destes conjuntos textuais ao firmamento da memória cultural, integrados nas

distintas constelações que tentamos esboçar até agora.

Não se trata de uma busca de fontes e origens, que teria por fim uma quimérica

fixação de sentidos únicos e “verdadeiros”, ignorando a polissemia e a produtividade

dos textos. O que pretendemos é, inversamente, mapear as re-apropriações e re-

significações de determinados temas, símbolos, imagens e procedimentos textuais,

identificando espaços de diálogo, aproximações e afastamentos.

Para tanto, não nos restringimos ao corpus estrito destes conjuntos textuais,

utilizando também o conjunto de para-textos (cartas, prefácios, resenhas etc.), assim

como interpretações posteriores. O que tentamos relacionar não são apenas obras

específicas, nem mesmo autores, mas posições no interior do campo literário. Isto se

torna necessário inclusive porque lidamos com conjuntos textuais de autoria múltipla e

embaralhada pela multiplicação de pseudônimos: no primeiro caso se enquadram ambos

os periódicos e, no segundo, especialmente a Revista de Antropofagia. No entanto,

nestas publicações são identificáveis, em meio ao mosaico das contribuições, núcleos


127
O primeiro número da Revista de Antropofagia, que inclui o Manifesto Antropófago, sai em maio de
1928, logo secundado por Macunaíma, em julho do mesmo ano que ainda veria, em novembro, o
lançamento do ensaio de Paulo Prado. O décimo e último número da primeira “dentição” da Revista de
Antropofagia data de fevereiro de 1929, a segunda “dentição” estréia no Diário de São Paulo dia 17 de
março do mesmo ano. Seriam 15 números da fase radical do periódico, o último datando de primeiro de
agosto. Desta forma a publicação paulista saiu durante algum tempo paralelamente a leite criôlo, cuja
primeira edição avulsa circulou dia 13 de maio, seguida de 18 edições do Estado de Minas entre 2 de
junho e 29 de setembro de 1929.

106
bastante homogêneos nas suas tomadas de posição literárias, identificados geralmente

com o grupo que dirige cada uma delas. Não pretendemos negligenciar as outras

posições que aparecem nestas publicações. No caso do periódico paulista, inclusive,

iremos trabalhar com as linhas não-ortodoxas do projeto antropófago. Mas, salvo

sinalização em contrário, quando mencionamos, por exemplo, a Revista de

Antropofagia, nos referimos aos colaboradores mais próximos às propostas

oswaldianas.

Estabelecida a visada diacrônica, não se elimina, porém, a heterogeneidade dos

conjuntos textuais propostos. Como comparar a prosa de ficção de Mário de Andrade ao

ensaismo histórico-político de Paulo Prado, tendo por pontos médios duas publicações

nas quais aparecem lado-a-lado textos programáticos, prosa de ficção e poemas?

Antes de mais nada, cabe ressaltar que a literatura estrito senso e as formas de

pensamento político e programático que aqui nos interessam não estavam naquele

momento tão distantes entre si. É preciso lembrar que, no momento posterior à primeira

investida cultural da geração modernista e anterior ao estabelecimento das

universidades, reina entre os jovens intelectuais a desconfiança em relação à produção

institucional do conhecimento e da ciência como um todo, expressões de um “anti-

bacharelismo” e de um “anti-positivismo” de múltiplas faces que caracterizam a

produção da geração modernista nos anos 1920-30. A ausência de especialização do

conhecimento, produto de um meio no qual os cursos superiores de Direito e Medicina

reinavam absolutos, resulta que os praticantes do gênero que hoje é chamado de

“pensamento social” poderiam se conceber e ser recebidos pelos seus leitores como

literatos e não como cientistas sociais. Exemplo desta situação é o fato de o estilo

literário de Retrato do Brasil ser frequentemente evocado então pelos autores que

discutem a validade do ensaio. A proximidade com a literatura estrito senso também se

107
reflete na multiplicação de procedimentos textuais caros à ficção e à poesia (metáforas,

imagens, refrões etc.) no ensaio de Paulo Prado e mais ainda nos textos programáticos

de leite criôlo e da Revista de Antropofagia, apesar do caráter explicitamente político de

muitas das afirmações.

Por outro lado, um dos aspectos da obra literária apreciada pela crítica no período

é a capacidade de um autor de “fixar um tipo”, como o Jeca Tatu de Monteiro Lobato,

cuja criação foi louvada por Oswald de Andrade em texto de 1923 (apud DE LUCA,

1999, p. 215). Sobre os “Poemas da Colonização”, seção do livro Pau Brasil do mesmo

Oswald, por exemplo, escreveria Drummond em 1925 que “fixam admiravelmente o

negro, o soldado, o capoeira” (apud BATISTA, 1972, p. 239). Mistura de criação

literária com observação pseudo-sociológica, o “fixar um tipo” exprime o lugar central

da literatura na compreensão da realidade social pela intelectualidade da época.

Obviamente as proximidades observadas não justificam o apagamento das

fronteiras entra os diferentes gêneros e formas textuais, que precisam ser observados nas

suas especificidades. É possível localizar no ensaio de Paulo Prado e na face

programática do periódico “criolista” os eixos do diagnóstico e da terapêutica

identificada por Benedito Nunes (1970, p. 25) na Antropofagia, ainda que com

conteúdos diferentes. Já em Macunaíma só se encontraria, segundo a metáfora também

médica de Mário de Andrade em um dos prefácios não publicados da rapsódia, um

“sintoma de cultura nacional” (apud BATISTA, 1972, p. 291). Sintoma este capaz de

compor diagnósticos muito diferentes, como veremos adiante.

Exposto o argumento de fundo, segue agora a análise combinatória dos elementos

propostos, começando pelos mais conhecidos e terminando pelas articulações destes

com leite criôlo.

108
O provável evangelho da antropofagia
Os possíveis vínculos entre o ideário oswaldiano da Antropofagia e a rapsódia de

Mário de Andrade têm sido explorados pela crítica em mais de uma ocasião, tanto no

sentido da confirmação (cf. CAMPOS, 1973, p. 3-16; SANTIAGO, 1988, p. 7-8;

SOUZA, 1999, p. 36) quanto da refutação (cf. PROENÇA, 1974, p. 35; SOUZA, 1979,

p. 97). Tal relação é também um dos focos do trabalho de Anderson Pires da Silva

(2009) sobre os cruzamentos e oposições entre as obras e as recepções de Mário e

Oswald.

Ainda em 1928, Alceu Amoroso Lima, conhecido então pelo pseudônimo Tristão

de Athayde, falou da tendência de enxergar Macunaíma sob a luz da Antropofagia

oswaldiana nos seguintes termos

Quando se anunciou Macunaíma acabava o xará Oswald de


publicar o seu Manifesto Antropófago em que pregava a
regeneração da literatura brasileira por um evangelho neo-
indianista. O que logo ocorreu é que o livro do Sr. Mário de
Andrade seria a primeira realização da nova escola indianista. Pois
bem, a primeira retificação que nos permitem os prefácios inéditos,
que tenho em mãos, é mostrar que Macunaíma é muito anterior ao
último manifesto do Sr. Oswald de Andrade (...). (apud
SANTIAGO, 1988, p. 7)

Como já haviam atentado Haroldo de Campos (1973) e Silviano Santiago (1988),

o argumento cronológico não implica em refutação da conexão com o pensamento e a

obra oswaldianos. Estes já se encaminhavam na direção de certos traços do ideário

antropofágico pelo menos desde o Manifesto Pau Brasil e das Memórias sentimentais

de João Miramar, ambos de 1924. O próprio Mário havia reconhecido a influência de

Oswald no capítulo “Carta pras Icamiabas” da rapsódia, em uma carta para Manuel

Bandeira de 1927 (apud CAMPOS, 1964, p. 13). Além disso, mesmo sabendo da

gênese autônoma e anterior de Macunaíma, Oswald de Andrade declara, em texto

publicado ainda na primeira “dentição” da Revista de Antropofagia, que o livro de

109
Mário era “puramente antropofágico”, exercendo assim a máxima da “posse contra a

propriedade”. 128

Mesmo a hostilidade estabelecida entre o grupo oswaldiano e Mário de Andrade,

na altura da publicação da segunda dentição da Revista de Antropofagia no primeiro

semestre de 1929, não se estendeu a Macunaíma. Em vários momentos o “órgão da

antropofagia brasileira de letras” ataca Mário salvaguardando sua rapsódia. Exemplifica

tal postura o artigo intitulado “Ortodoxia”, assinado com o pseudônimo Freuderico, no

qual, após um ataque ao autor da Paulicéia desvairada, se afirma que “salva-o

Macunaima. Provavel evangelho de que ele se nega a consciência. Porque?”. 129 Pouco

tempo depois, em outro artigo, os antropófagos reivindicam novamente a rapsódia para

si. 130

A marca da saga do “herói sem nenhum caráter” se faz presente na segunda

“dentição” da publicação paulista também de formas mais sutis. Tendo Oswald, no

artigo já citado da primeira “dentição”, declarado que Macunaíma era “a nossa

Odyssea”, 131 sendo secundado na mesma opinião em um artigo da segunda “dentição”

assinado com o pseudônimo Tamandaré, 132 é publicado na revista um trecho de prosa

ficcional intitulado “introito da odisséazinha” que emula várias das características

estilísticas mais marcantes do livro de Mário. 133 No texto não assinado “A anta morreu,

viva o tamanduá”, a vitória do totem da Antropofagia sobre o do verdeamarelismo é

descrita através de uma das imagens recorrentes da rapsódia: a anta vai descansar no

céu, “ao lado de Tupana, entre Papá e Piá”. E o que torna o Tamanduá valoroso é

128
“Schema ao Tristão de Athayde” Revista de Antropofagia, 1ª Dentição Nº 5, Setembro de 1928, P. 3.
129
“Ortodoxia” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 3.
130
“Moquém II – Hors d´ouvre” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 5.
131
“Schema ao Tristão de Athayde” Revista de Antropofagia, 1ª Dentição Nº 5, Setembro de 1928, P. 3.
132
“Moquém II – Hors d´ouvre” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 5.
133
“Introito da odisséazinha” por Pater (possivelmente pseudônimo de Júlio Paternostro, que publicou
vários outros textos no periódico) Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 10. Vale lembrar que a
“Entrada de Macunaíma” havia sido publicada no segundo número da 1ª dentição.

110
exatamente se alimentar de formigas, insetos onipresentes em Macunaíma e que
134
constituem um dos “males do Brasil” presentes no dístico do “Herói”.

No único momento em que a obra é utilizada para atacar Mário, parece prevalecer,

em relação às afinidades desta com os ideais antropófagos, a disposição de substituir a

política literária pela intriga literária. 135 Trata-se de um anúncio fictício do lançamento

de uma suposta segunda edição de Macunaíma, descrito como “lendas indígenas com

capa de Mário de Andrade”. 136 A menção ao caráter bricoleur da rapsódia, verdadeira

estética do plágio que seria defendida como tal pelo autor em texto de 1931137, é curiosa

– trata-se justamente de uma das características mais oswaldianas da obra.

Em Pau Brasil, livro de poemas de Oswald de Andrade de 1925, a seção intitulada

“História do Brasil” é inteiramente composta de trechos de cronistas e viajantes que

escreveram sobre o país entre os séculos XVI e XIX, recortados e intitulados pelo autor,

que assim justapõe apenas a sua “capa” ao material preexistente. Haroldo de Campos

(2000, p. 24-27), sempre atento às analogias da escrita de Oswald com as artes plásticas,

comparou o procedimento utilizado aos “ready made” de Marcel Duchamp. 138

Talvez uma das razões do fascínio de Oswald e de seus comparsas antropófagos

pela rapsódia de Mário fosse exatamente que esta trabalhava com o princípio

antropofágico da apropriação de uma forma em grande medida distinta da poesia Pau

Brasil: como pregava seu Manifesto, lhes interessaria exatamente o que não era deles.

134
“A anta morreu, viva o tamanduá” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 10.
135
“Não fazemos politica literaria. Intriga, sim!” em “Ortodoxia” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº
3.
136
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 10.
137
“A Raimundo Moraes” de Mário de em BATISTA, 1972, p. 295-297. Texto originalmente no jornal
Diário Nacional em 20 de setembro de 1931. Eneida Maria de Souza (1999, p. 32-49) tratou em
profundidade da questão da reapropriação dos materiais em Macunaíma a partir do artigo citado.
138
Não encontramos nenhuma menção ao artista francês entre os modernistas brasileiros de então. Não é
impossível que Oswald tivesse conhecimento de Duchamp, dado que chegou a confraternizar com os
surrealistas em Paris. O vínculo propriamente histórico entre a obra dos dois não necessita, no entanto,
desta conjectura: ambas se vinculam ao aparecimento da técnica da colagem no âmbito do cubismo de
antes da primeira guerra (cf. PERLOFF, 1993, p. 95-107; COTTINGTON, 1999, p. 69-76). Haroldo de
Campos (1964, p. 41-43) menciona e discute a influência do cubismo na escrita oswaldiana.

111
Na proposta oswaldiana eram o recorte e a recontextualização – a exposição da

literalidade da apropriação, análoga à colagem cubista e ao “ready made” duchampiano

– que caracterizavam o trabalho textual com o material alheio. Já na escrita de Mário o

material apropriado é continuamente entrelaçado e desenvolvido. Este tipo de

construção, como muito propriamente argumentou Gilda de Mello e Souza (1979, p. 15-

21), pode ser pensado em analogia a certos procedimentos musicais como a suite e a

variação, utilizados na tradição musical ocidental exatamente no sentido de introduzir

elementos populares em um contexto erudito. 139

No âmbito temático, a relação entre primitivismo e tecnologia era um ponto

presente tanto em Macunaíma quantos nos textos dos antropófagos. Umas das propostas

do Manifesto Antropófago era a simbiose da tecnologia mais avançada com a

mentalidade primitiva, não-catequizada e não-reprimida. A “fixação do progresso”

prescindiria da integração à civilização ocidental, “só a maquinaria” – “o necessário de

química, de mecânica, de economia e de balística”, como já dizia o Manifesto Pau-

Brasil – seria suficiente para integrar o “homem natural” no presente e no futuro da

humanidade.

O episódio do encontro de Macunaíma com as manifestações da “deusa Máquina”

(ANDRADE, 1977, p. 51-53), se dá em condições semelhantes: ele não se intimida pela

presença da tecnologia, incorporada de imediato à sua forma de pensar. O poder da

técnica que o impressiona não implica em uma submissão, mas na tentativa de sua

apropriação.

A sexualidade livre e exacerbada do “herói sem nenhum caráter” também parece,

a princípio, indicar uma convergência com o ideário da antropofagia. Um texto da

segunda dentição da Revista de Antropofagia, assinado pelo pseudônimo Japy-Mirim,

139
Denomina-se suíte a forma musical composta por um conjunto de danças estilizadas, ou seja,
compostas para serem ouvidas e não dançadas. Em música variação designa a técnica de composição que
consiste em transformar um trecho musical preexistente.

112
140
defende, “contra a moral convencional, moral nenhuma”. O Manifesto Antropófago

já declarava que a roupa atrapalharia a verdade e se colocava contra a “realidade social,

vestida e opressora”, assim como oposto à “Moral da Cegonha” (apud TELLES, 2005,

p. 353-360). No âmbito da ficção, cabe lembrar que em Serafim Ponte Grande –

romance-invenção de Oswald que, escrito de “1929 para trás”, seria lançado apenas em

1933 (ANDRADE, 1996) – a narrativa também se constrói em torno dos encontros

amorosos e sexuais da personagem-título e do seu duplo, Pinto Calçudo.

Neste ponto, no entanto, é preciso abordar a questão dos modos de possível

articulação entre uma narrativa ficcional e um conjunto de valores. Como vimos acima,

os antropófagos viram em Macunaíma um possível evangelho. Ou seja, uma história de

caráter exemplar, modelo.

O mesmo texto, porém, acusa Mário de recusar a consciência de tal evangelho. Tal

recusa poderia estar vinculada à caracterização diversa que o autor da rapsódia

propunha para a sua obra. Tanto em um dos prefácios não-publicados à obra (apud

BATISTA, 1972, p. 293) quanto em carta a Carlos Drummond de Andrade

(ANDRADE, 2002, p. 339), Macunaíma é definido como uma sátira. Assim, a questão

da imoralidade – termo que já define uma diferença em relação às propostas

antropófagas de uma amoralidade ou, talvez, de uma nova moralidade – na rapsódia de

Mário é delimitada da seguinte forma em um dos prefácios:

[Um] problema do livro que careço explicar é da imoralidade.


Palavra que seria falso concluir pela imoralidade e pela porcariada
mesmo que está aqui dentro, que me comprazo com isso. Quando
muito admito que concluam que me comprazo... com o brasileiro.
Uma coisa fácil de constatar é a constância da porcariada e da
imoralidade nas lendas de primitivos em geral e nos livros
religiosos. Não só aceitei como acentuei isso. Não vou me
desculpar falando que as flores do mal dão horror do mal não. Até
que despertam a curiosidade... Minha intenção aí foi verificar,
debicá-la numa caçoada complacente que a satiriza sem tomar um
pitium [cheiro] moralista. (...) E resta a circunstância da falta de

140
“Guerra” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 10.

113
caráter do herói. Falta no duplo sentido de indivíduo sem caráter
moral e sem característico. Está certo. Sem esse pessimismo eu não
seria amigo sincero dos meus patrícios. É a sátira dura do livro.
(apud BATISTA, 1972, p. 293).

Neste trecho notamos que, apesar da recusa ao moralismo e à dimensão didática

da obra, os pólos valorativos não são invertidos como na antropofagia. A falta de caráter

do brasileiro é um mal que precisa ser exposto. Cavacanti Proença (1974, p. 17) já

afirmava que “o que existe em Macunaíma é uma sátira à imoralidade”, invocando para

tal juízo que “o próprio herói termina vítima de seus ímpetos sexuais, e morre sem

glória”.

Trata-se talvez de uma interpretação por demais conservadora da obra.

Interessante, porém, no sentido que tenciona o aspecto da carnavalização, na acepção de

Bakhtin, que é comumente associado à rapsódia: o teórico russo afirma que o grotesco

perde seu caráter positivo, portanto seu sentido de inversão carnavalizante, quando

subordinado à função negativa de “ridicularizar, através do ponto de vista distorcido da

sátira e da condenação moral” (BAKHTIN, 1987, p. 55).

A sexualidade em Macunaíma possui, assim, para o Mário dos prefácios não-

publicados um significado bastante diferente daquele do Manifesto Antropófago e textos

correlatos. O próprio estilo da obra é defendido, no prefácio ainda não citado, nos

termos de não comprazer com a imoralidade:

Quanto a estilo, empreguei essa fala simples tão sonorizada música


mesmo por causa das repetições, que é costume nos livros
religiosos e dos cantos estagnados no rapsodismo popular. Foi pra
afastar de minha estrada essas gentes que compram livros
pornográficos por causa da pornografia. Ora se é certo que meu
livro possui além de sensualidade cheirando alguma pornografia e
mesmo coprolalia não haverá quem conteste no valor do brometo
[sedativo] de um estilo assim (apud BATISTA, 1972, p. 290).

O estilo poderia ser visto, então, como a roupa que ocultaria a verdade: verdade

esta que Oswald e os demais antropófagos estariam tão havidos a desnudar. Não é

114
possível, no entanto, desconsiderar um certo grau de ambivalência e mesmo ironia nos

trechos citados.

Mas os afastamentos possíveis entre a obra de Mário e os preceitos antropófagos

não param por aí. Eles podem ser identificados a partir dos próprios lemas do “Herói”: a

exclamação “Ai que preguiça” e o dístico “Muita saúva e pouca saúde os males do

Brasil são”.

Nos manifestos oswaldianos, a preguiça se faz presente fundamentalmente

enquanto resistência passiva à ocidentalização forçada. O Manifesto Antropófago afirma

sermos “preguiçosos no mapa-múndi do Brasil” e, por isso, não nos subordinamos às

gramáticas e a outros aparatos repressivos da civilização ocidental (apud TELLES,

2005, p. 353-360). Ainda no Manifesto Pau-Brasil, Oswald justapunha os avanços da

tecnologia – “obuses de elevadores, cubos de arranha-céus” – à “sábia preguiça solar”,

contribuição propriamente brasileira à arte de ser feliz.

Em Macunaíma, a preguiça vista também por Mário como uma característica do

brasileiro, é abordada sob um ângulo mais negativo. Constante empecilho para as metas

do “herói sem nenhum caráter”, sua preguiça acaba por determinar-lhe o fim

melancólico:

Tudo que fora a existência dele apesar de tanta brincadeira tanta


ilusão tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não foi sinão um se
deixar viver. (...) E ele não tinha coragem pra uma organização.
(ANDRADE, 1977, p. 219)

O dístico “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são” remete à ideia do

país como uma terra doente, devastado por pragas e epidemias. Tal concepção se liga,

como desenvolveremos abaixo, às representações higienistas dos problemas nacionais

que, segundo Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman (2000), transcenderam naquele

momento o debate propriamente médico. Como já foi assinalado por vários autores

(SOUZA, 1979, p. 57; SOUZA, 1999, p. 102-106), o dístico ecoava um discurso então

115
famoso do médico Miguel Pereira, que descrevia o país como um “grande hospital”, e

também a frase do viajante Saint-Hilaire sobre a praga da saúva, “ou o Brasil acaba com

a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

A visão do país como um corpo doente não aparece desta forma no ideário

antropofágico. Ali os “males da nacionalidade” tendem a ser vinculados aos males da

civilização europeia. A própria referência já citada às formigas de Macunaíma na

Revista de Antropofagia se dá no sentido da rejeição de qualquer negatividade original

brasileira: invoca-se contra a formiga o tamanduá, também da terra e mais

representativo dela.

Voltando ao paralelo entre Macunaíma e Serafim Ponte Grande, a forma como se

encerram tais narrativas talvez sintetize os afastamentos entre o projeto da rapsódia e o

da Antropofagia. Em ambos os textos, ao desaparecimento dos respectivos personagens-

título se seguem codas narrativas. No caso do romance-invenção de Oswald, a morte de

Serafim não se configura como trágica. Partido por um raio cômico e proverbial, o

personagem continua a perturbar a sociedade repressora do além-túmulo: na seção

intitulada “Errata”, o pintor responsável por fazer o retrato de Serafim para o asilo que

levaria seu nome acaba enlouquecido e internado nessa mesma instituição. A essa seção

segue-se uma segunda coda, “Os Antropófagos”, que narra a viagem contínua do duplo

de Serafim, Pinto Calçudo, em um navio no qual todas as formas de repressão social são

explicitamente rejeitadas. A narrativa se encerra, mas a aventura do desbunde

antropofágico segue indefinidamente. Desta forma, o romance não acaba como

consequência do encerramento do ciclo de vida de seu personagem homônimo, mas

pelo estabelecimento final da inconsequência da narrativa. Rompidos todos os tabus, da

116
sexualidade burguesa até a própria forma cultural livro, 141 resta o loop em fade out de

uma Idade de Ouro sem limites, sem culpa e sem mal – ou seja, como reza o Manifesto

Antropófago, “sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias”

(apud TELLES, 2005, p. 353-360).

O quadro que encerra o romance-rapsódia de Mário não poderia ser mais diverso.

Solitário e triste em sua terra agora desolada, Macunaíma – não tendo “coragem para

uma organização” – toma a melancólica decisão de “ir pro céu viver com a marvada [Ci,

seu amor primeiro e verdadeiro]” (ANDRADE, 1977, p. 219). “Acabou-se a história e

morreu a vitória”, nos informa a primeira frase da coda, aqui intitulada “Epílogo”. Tal

seção trata da forma como a história do “herói sem nenhum caráter” chega aos ouvidos

do narrador, por intermédio de um papagaio. Sendo o final melancólico do personagem

derivado da forma como sempre viveu, cabe apenas recontar a história de sua tribo

desaparecida. 142

Macunaíma, anedotário folclórico de Retrato do Brasil

Vimos acima a obsessão de Oswald de Andrade e seus seguidores por Macunaíma

e veremos em seguida sua condenação do Retrato do Brasil. Tais posicionamentos, no

entanto, não impediram Oswald de vincular da seguinte forma as duas obras, na sua

resenha do ensaio de Paulo Prado: Retrato do Brasil seria o “glossário histórico de

Macunaíma” (ANDRADE, 1997, p. 229).

Tentaremos aqui espelhar tal afirmação, propondo um esboço de leitura da

rapsódia de Mário de Andrade com um olhar inspirado no “ensaio sobre a tristeza

brasileira”. De que forma se poderia imaginar Macunaíma como anedotário folclórico

do Retrato do Brasil? Em primeiro lugar, deve ser explicitado que tal interpretação

141
Haroldo de Campos (1996, p. 5-10) fala de Serafim Ponte Grande como um “grande não-livro”, na
medida em que a própria distinção entre texto literário e convenções de edição é desafiada como parte do
jogo de transgressões que estrutura a obra.
142
Gilda de Mello e Souza (1979, p. 97) usa exatamente o final da rapsódia como argumento contra as
leituras “antropofagizantes” de Macunaíma.

117
implica uma saga do “herói sem nenhum caráter” pensada em termos muito mais

conservadores do que estamos acostumados. Tal possibilidade de leitura, por menos

atrativa que pareça ao leitor contemporâneo, é interessante para a compreensão do

ideário de leite criôlo e tentaremos demonstrar a sua plausibilidade, especialmente

quando referida àquele momento histórico. 143

Com se sabe, a rapsódia é dedicada a Paulo Prado. No primeiro dos prefácios não-

publicados de Macunaíma, Mário de Andrade relaciona da seguinte forma sua obra com

o “ensaio sobre a tristeza brasileira”, ainda inédito naquele momento:

uma pornografia desorganizada [presente em Macunaíma e na


literatura rapsódica e religiosa que o inspirou] é também da
quotidianidade nacional. Paulo Prado, espírito sutil a quem dedico
este livro, vai salientar isso numa obra de que aproveito-me
antecipadamente (apud BATISTA, 1972, p. 290).

Ecoando o prefácio, Cavalcanti Proença (1974, p. 15) afirma que o conteúdo

“imoral” do livro se vincula à conceituação da “luxúria como traço nacional” que teve

“sistematização das mais brilhantes no Retrato do Brasil, de Paulo Prado”. Eneida

Maria de Souza (1999, p. 105) salientou ainda, seguindo Haroldo de Campos, que os

lemas do “herói sem nenhum caráter” – a exclamação “Ai que preguiça” e o dístico

“Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são” – derivam em parte da seguinte

quadra popular citada em Retrato do Brasil:

São desgraças do Brasil:


Um patriotismo fofo,
Leis com parolas, preguiça,
Ferrugem, formiga e mofo.
(PRADO, 1997, p. 161)

Desenvolver o possível diálogo entre tais obras implica revisitar a afirmação de

Mário de Andrade de que Macunaíma seria um “sintoma da cultura nacional”, assim

como a identificação, por parte de Benedito Nunes (1970, p. 25), dos eixos do

143
As possíveis afinidades entre Macunaíma e Retrato do Brasil já haviam sido trabalhadas em sentido
semelhante por Thaís Chang Waldman (2009), em seção de sua dissertação intitulado justamente “O
glossário histórico de Macunaíma”.

118
diagnóstico e da terapêutica no discurso da antropofagia. A utilização de uma

terminologia provinda da medicina não nos parece acidental. Na verdade, a

medicalização dos “males do Brasil” é bem menor no âmbito da Antropofagia – restrita

no Manifesto Antropófago a uma única menção à “vacina antropofágica” – do que em

Retrato do Brasil.

No “ensaio sobre a tristeza brasileira” os diversos traços negativos que

caracterizariam o brasileiro são remetidos à doença. A luxúria, que intitula o primeiro

capítulo do livro, sendo o aspecto deste citado por Mário, é remetida à “anormalidade

patológica” (PRADO, 1997, p. 79), de forma que um dos efeitos dos excessos da “vida

sensual” é produzir “no organismo perturbações somáticas e psíquicas (...) que

facilmente toma aspectos patológicos” (PRADO, 1997, p. 139). No segundo capítulo,

“A cobiça”, os “buscadores de ouro” do séc. XVIII são “vítimas de uma espécie de

loucura, forma aguda e crônica de uma doença que é a paixão do jogo” (PRADO, 1997,

p. 117). Ao contrário dos anteriores, “A tristeza”, terceiro capítulo do ensaio, não

descreve um pecado capital, o que não exime a melancolia de um caráter patológico.

Resultado da luxúria e da cobiça, “a tristeza, pelo retardamento das funções vitais, traz o

enfraquecimento e altera a oxidação das células, produzindo nova agravação do mal

com o seu cortejo de agitações, lamúrias e convulsões” (PRADO, 1997, p. 142).

A oscilação constante entre a doença como enfermidade biológica concreta e a

doença como metáfora do mal talvez seja um reflexo do fato de Paulo Prado ser

formado em Direito e não em Medicina. Em carta para Blaise Cendrars de dezembro de

1926, período da elaboração de Retrato do Brasil, ele pede ao amigo que “procure

qualquer coisa sobre a Tristeza, ou melancolia, patologia, psicologia, sociologia” (apud

CALIL, 1997, p. 41).

119
O súbito interesse do bacharel fundador do Partido Democrático e mecenas do

Modernismo em especialidades médicas não é, no entanto, mera excentricidade. O

discurso do médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Miguel

Pereira, no qual afirma ser o Brasil um grande hospital – que como vimos é uma das

prováveis inspirações do dístico do “herói sem nenhum caráter” – costuma ser

considerado o ponto de partida para a chamada “campanha pelo saneamento”,

movimento médico-político de interpretação da nacionalidade que propunha certo

diagnóstico e certa terapêutica para os “males do Brasil”, a partir de uma compreensão

medicalizante do país (Cf. LIMA & HOCHMAN, 2000 e 2006; DE LUCA, 1999).

Segundo Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman (2006, p. 27-28), um dos atrativos

dessa perspectiva para os intelectuais brasileiros de então era a possibilidade de pensar a

nação de uma forma que escapava à alternativa paralisante entre uma visão fatalista – o

país estaria condenado à barbárie devido à sua composição “racial” – e outra

denominada então de ufanista ou romântica – que se comprazia em um culto

inconsequente das grandezas e belezas da pátria. O país seria viável, apesar de doente,

necessitando para a sua regeneração da intervenção do poder médico-científico.

A partir do final dos anos 1910 e através dos anos 1920, tal perspectiva inspirou

ações como a fundação da Liga Pró-saneamento do Brasil em 1918, a criação do

Departamento Nacional de Saúde Pública em 1919, a publicação de livros como

Saneamento do Brasil de Belisário Penna, de 1923, recebendo cobertura diária da

imprensa e impactando até mesmo o campo literário144 (LIMA & HOCHMAN, 2006).

Um dos veículos fundamentais do debate sanitarista e higienista de então era, como

mostra Tânia de Luca (1999, p. 202-235), a Revista do Brasil, dirigida por Monteiro

144
O exemplo mais famoso é o personagem-tipo Jeca Tatu de Monteiro Lobato que, inicialmente
ilustrando a noção de inferioridade racial, é redimido nos termos da campanha pelo saneamento,
transformação explorada por Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman (2000, p.321-323; 2006, p. 29-29)
e Tânia de Luca (1999, p. 202-215). A conturbada relação entre o autor de Urupês e o grupo modernista,
incluindo suas possíveis afinidades, foi estudada por Anderson Pires da Silva (2009, p. 21-28).

120
Lobato a partir de 1918 e, entre 1923 e 1925, por ele em parceria com o próprio Paulo

Prado. Resumindo: a metáfora da doença era não apenas atraente, mas também o centro

de toda uma linha de compreensão da nacionalidade.

Proposto por Mário de Andrade como “sintoma da cultura nacional”, Macunaíma

é atravessado pelo tema da doença. 145 Uma dessas patologias, o impaludismo (malária),

da qual o “herói sem nenhum caráter” não chega a se curar (ANDRADE, 1977, p. 195;

211), também é mencionada em Retrato do Brasil (PRADO, 1997, p. 161). Trata-se de

uma das moléstias mais invocadas pelo discurso sanitarista (LIMA & HOCHMAN,

2006, p. 31) – ao lado da opilação (amarelão, ancilostomíase) que explicaria a

indolência de Jeca Tatu na nova interpretação higienista que Monteiro Lobato daria

deste seu personagem (cf. DE LUCA, 1999, p. 219). Na rapsódia, o impaludismo acaba

por impossibilitar que Macunaíma construísse para ele próprio nem mesmo um pariri

(abrigo contra chuva feito de folhas). Ecoa assim a temática da improdutividade

resultante das chamadas “doenças da preguiça”, também cara ao discurso do sanitarismo

(LIMA & HOCHMAN, 2006, p. 31-32).

Como em Retrato do Brasil, a doença se vincula em alguns momentos de

Macunaíma com a temática que Mário de Andrade denomina de “imoralidade”,

equivalente da luxúria em Paulo Prado. À sexualidade exacerbada de Ci corresponde

seu “corpo chupado pelos vícios” (ANDRADE, 1977, p. 27), causa indireta da morte do

filho dela com o “herói sem nenhum caráter” 146 (ANDRADE, 1977, p. 31). No mesmo

sentido, a “primeira noite de amor paulista” de Macunaíma – eufemismo irônico para a

prostituição – fica marcada pela “boca cheia de sapinhos” (candidíase) (ANDRADE,

1977, p. 52).

145
Cavalcanti Proença (1974, p. 24) registra ao todo nove doenças espalhadas entre o quinto e o décimo
sétimo (penúltimo) capítulos da rapsódia.
146
Curiosamente, o episódio do filho é o único no qual Macunaíma acata as orientações dos sanitaristas,
dando “pro menino engolir no refresco o remedinho da lombriga”. O que, por sinal, acaba não garantido
sua sobrevivência. (ANDRADE, 1977, p. 31).

121
Uma aparente discrepância entre o discurso sanitarista e Macunaíma seria o lugar

reservado à medicina popular. Como afirmação do poder médico-científico ocidental, o

higienismo implicava na desvalorização sistemática dos saberes curativos locais. Dessa

forma Luís da Câmara Cascudo assinalava – em texto publicado na Revista do Brasil

em 1920 – o recurso aos “remédios populares” e a “ingênua crendice dos curandeiros”

como traços negativos do sertanejo que o aproximam da figura do Jeca Tatu147 (apud

DE LUCA, 1999, p. 203). Na rapsódia de Mário de Andrade, se recorre continuamente

aos remédios populares e feitiços para curar as diversas doenças que aparecem na

narrativa, sendo o próprio irmão do “herói”, Maanape, um feiticeiro. O que não se

costuma observar, no entanto, é que tais remédios e feitiços funcionam, via de regra,

apenas aparentemente. Quando Macunaíma contrai um “sarampão”, recorre ao

curandeiro Bento, que cura com “alma de índio e água de pote”, e “numa semana já

estava descascando” (ANDRADE, 1977, p. 145). Acontece que uma semana é

exatamente o tempo que as feridas de sarampo levam para descascar. Em outro

episódio, o “herói sem nenhum caráter” desenvolve uma erisipa (erisipela) tratada com

os remédios que “os vizinhos e conhecidos, todos esses Brasileiros aconselhavam”.

Depois de alguns dias sente-se melhor, vai à cidade, interage com a visão de um navio

na fonte do monumento a Carlos Gomes no parque do Anhangabaú, e acaba “sentado no

rebordo da fonte (...) com mais erisipa, mais, todo erisipelado” (ANDRADE, 1977, p.

157-159). Naquela época o único tratamento eficiente contra tal doença era um repouso

continuado, cuja interrupção antecipada poderia levar ao retorno da moléstia. Por fim,

147
É importante notar que naquele momento Câmara Cascudo ainda não havia publicado nenhum dos
trabalhos que o fizeram conhecido como folclorista e estudioso da cultura popular, todos publicados
depois de 1930. Antes deles chegou a publicar inclusive alguns poemas em publicações vinculadas à rede
modernista nacional, como a primeira dentição da Revista de Antropofagia (“Banzo” Revista de
Antropofagia, 1ª Dentição Nº 10, fevereiro de 1928, P. 1.) e leite criôlo (leite criôlo, Nº 11, 18 de agosto
de 1929).

122
Jiguê recorre a vários feitiços para se livrar da lepra (hanseníase), sem nenhum efeito

(ANDRADE, 1977, p.201). A hanseníase era então uma doença incurável. 148

Outro dos traços da ausência de caráter moral de Macunaíma compartilhados com

a imagem do brasileiro presente no “ensaio sobre a tristeza brasileira”, a cobiça, não

recebe no texto de Mário de Andrade um tratamento pelo viés patológico. Em Retrato

do Brasil, a cobiça que marcaria a formação da identidade brasileira, em especial

durante o ciclo do ouro no séc. XVIII, levaria a uma obsessão pelo enriquecimento fácil.

Seria, assim, oposta à laboriosidade produtiva, que caracterizaria a colonização norte-

americana, valorizadora do trabalho (PRADO, 1997, p. 91-132). Ainda na abertura de

Macunaíma se afirma que o “herói sem nenhum caráter” “vivia deitado mas si punha os

olhos em dinheiro, (...) dandava pra ganhar vintém” (ANDRADE, 1977, p. 9). Seu

amor pelo dinheiro, no entanto, era igualado pelo seu ódio ao trabalho, sintetizado na

exclamação “diabo leve quem trabalha!” (ANDRADE, 1977, p. 204). Dessa forma está

sempre atrás de formas milagrosas de enriquecimento, seja procurando algum tesouro

enterrado (ANDRADE, 1977, p. 88 e 149), seja comprando um micura (gambá) que

defecaria ouro (ANDRADE, 1977, p. 147-148). Todas essas tentativas fracassam e

quando o seu séquito de imperador do mato virgem se dissolve, o próprio Macunaíma

resume proverbialmente sua relação desastrada com a riqueza: “O mal ganho, diabo

leva...” (ANDRADE, 1977, p. 211).

Como já comentamos, a mistura macunaímica de cobiça e indolência acaba por

condenar o herói. Quando se desilude com sua terra natal deserta e desolada, pensa em

ir para a “cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia”, o que não faz por lhe

148
Com tais observações não pretendemos, obviamente, ler a rapsódia a partir de um regime de
verossimilhança dito realista. Macunaíma e os outros personagens passam por processos completamente
estranhos a tal regime narrativo, como ressuscitar, transpor em segundos distâncias geográficas imensas
através de trajetos ilógicos, etc. O que tentamos demonstrar é que a utilização de remédios e feitiços para
a cura de doenças biológicas concretas tende a dar errado em múltiplos pontos da narrativa, o que não
parece ser aleatório ou isento de significado.

123
faltar ânimo. (ANDRADE, 1977, p. 218-219). O projeto agroindustrial de Delmiro

Gouveia na cidade de Pedra, sertão de Alagoas, era considerado então um exemplo de

trabalho útil e dedicado no sentido de integrar econômica, cultural e socialmente os

“sertões” à civilização do litoral. Um exemplo disso é um artigo editado em 1918 na

publicação oficial da campanha pelo saneamento – a revista Saúde – que chama a

atenção para “a instalação de água, luz e esgotos, para as máquinas modernas da fábrica

de linhas, a utilização do potencial hidroelétrico da Cachoeira de Paulo Afonso e a

construção da vila operária” nesse empreendimento (LIMA & HOCHMAN, 2006, p.

32).

Sintetizando a questão da ausência de caráter de seu “herói”, Mário de Andrade

afirma o seguinte em um dos prefácios não-publicados de Macunaíma:

Depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa:


brasileiro não tem caráter. (...) E com a palavra caráter não
determino apenas uma realidade moral não em vez entendo a
entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos
costumes, na ação exterior, no sentimento, na língua, na História,
na andadura, tanto no bem como no mal.
O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização
própria nem consciência tradicional. (...) Desta falta de caráter
psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter
moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza (...), o desprezo à
cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas
famílias. (apud BATISTA, 1972, p. 289)

Desta forma as duas modalidades de caráter ausentes, segundo o autor, tanto no

brasileiro quanto em Macunaíma estão necessariamente vinculadas. A mesma linha de

pensamento se faz presente em vários artigos da Revista do Brasil nos anos 1920. Um

texto datado de 1922 opunha as características físicas e culturais estáveis das nações

europeias à “imperfeita homogeneidade da liga resultante” dos “cadinhos”

populacionais do continente americano, marcados pelas “deficiências quanto à

uniformidade e generalização das qualidades” (apud DE LUCA, 1999, p. 158). Outro,

de Julio Ribeiro e datado de 1923, afirmava que “todas as sociedades em formação,

124
enquanto não alcançarem equilíbrio e homogeneidade, contém em si perigos

explosivos” (apud DE LUCA, 1999, p. 176). Sérgio Buarque de Holanda havia sido

ainda mais bombástico em um artigo de 1920:

Tanto a reunião entre indivíduos de raças diversas como entre


civilizações opostas é sempre monstruosa, os seus produtos não o
podem ser menos. Só o desenvolvimento das qualidades naturais
de um povo pode torná-lo próspero e feliz... (apud DE LUCA,
1999, p. 192)

Nota-se, nos exemplos citados, que a ausência do que Mário de Andrade chama

de “entidade psíquica permanente” da nação brasileira tende a ser pensada, nas

discussões da Revista do Brasil, em termos raciais. Como veremos em seguida, o

mesmo ocorre no “ensaio sobre a tristeza brasileira”. A categoria raça era naquele

momento quase onipresente e ao mesmo tempo extremamente imprecisa, podendo

assumir indistintamente significados biológicos, culturais e identitários (cf. LIMA &

HOCHMAN, 2000, p. 8). O próprio pensamento sanitarista – que oferecia, através da

noção de patologia, uma alternativa curável à condenação do Brasil em termos de

determinismo étnico – se articulava com um pensamento de matriz racial. Prova disto

era que muitos membros da Liga Pró-saneamento eram também filiados à Sociedade

Eugênica de São Paulo149 (cf. STEPAN, 2005, p. 54-61; DE LUCA, 1999, p. 225).

Em Retrato do Brasil, Paulo Prado tratará, assim, dos males do que considera o

“corpo amorfo” do país (PRADO, 1997, p. 161), a começar pela mestiçagem, que o

autor considera fator de risco para doenças e vícios, a começar por uma “profunda

indolência” (PRADO, 1997, p. 193). É interessante notar, porém, que o autor repele

explicitamente a noção da desigualdade das raças (PRADO, 1997, p. 191) e, em outro

momento, considera que certos homens do início da colonização “moralmente já eram

mestiços” (PRADO, 1997, p. 88). Assim como as doenças poderiam ser vícios e

149
Eugenia era a especialidade médica dedicada à “melhoria genética da espécie humana”. Discutiremos
as relações desta forma de pensamento com o modernismo e, em especial, com leite criôlo no próximo
capítulo.

125
paixões, a mestiçagem poderia se dar em termos morais: doença e raça expressariam,

desta forma, tanto realidades biológicas como metáforas do mal.

Talvez um índice da distância do pensamento atual em relação ao “ensaio sobre a

tristeza brasileira” seja a passagem na qual o autor menciona que naquele momento era

quase um lugar-comum falar do Brasil como o resultado da mistura de três raças, de

acordo com a proposta de Martius para o estudo história do país em meados do séc. XIX

(PRADO, 1997, p. 195). Hoje se pode afirmar com tranquilidade que tal concepção é

muito mais do que um “quase lugar-comum”, é um dos mitos fundamentais da

nacionalidade, insistentemente repetido em qualquer discurso envolvendo o Brasil e os

brasileiros – graças, em parte, aos “ensaios sobre o Brasil” herdeiros de Retrato do

Brasil e de obras como Macunaíma. Na rapsódia de Mário de Andrade, tal

representação se faz presente a partir do banho na fonte encantada. Ela acaba por tornar

Macunaíma “branco louro de olhos azuizinhos”, ainda tem algum efeito sobre seu irmão

Jiguê, que consegue ficar da “cor de bronze novo”, mas não muda a cor da pele de

Maanape que continua “negro bem filho da tribo dos tapanhumas” (ANDRADE, 1977,

p. 48). Decorre daí que a maior parte do livro é protagonizada pelos três irmãos, cada

um de uma “raça”, ainda que se faça referência a uma certa hierarquia entre elas:

quando da transformação de Jiguê não em branco, mas em mestiço, o “herói sem

nenhum caráter” o consola afirmando que é melhor ser “fanhoso [do] que sem nariz”.

Os aspectos já mencionados encaminham a possibilidade de uma leitura de

Macunaíma como uma espécie de ficcionalização – anedotário folclórico – do ideário

do Retrato do Brasil. Cabe agora tensionar tal possibilidade.

Muito do percurso de leitura que seguimos já havia sido traçado em um texto de

Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman (2000), incidentalmente intitulado “Muita

saúva e pouca saúde os males do Brasil são”. No entanto, para estes pesquisadores a

126
rapsódia pode ser lida como uma “crítica na forma de sátira, à condenação do homem

brasileiro por sua miscigenação e indolência”, já que ali a “fábula da preguiça

alcança[ria] expressão positiva e heróica” (LIMA & HOCHMAN, 2000, p. 323-324).

Mesmo levando em conta que o “heroísmo” do “herói sem nenhum caráter” seja mais

ambivalente e irônico do que positivo, algo em Macunaíma escapa à ideia de sátira

moral –– que, como vimos, foi proposta pelo próprio Mário de Andrade nos prefácios

não publicados. Tomando de empréstimo uma afirmação de Eneida Maria de Souza

(1999, p. 183) sobre o pensamento de política cultural do modernista nos anos 1940,

podemos dizer que Macunaíma riria dessa postura de Mário. Ou seja, a dimensão de

carnavalização da narrativa acaba se impondo ao lado ou mesmo acima de uma suposta

intencionalidade satírica do autor. A caracterização da rapsódia como sátira moral

acaba por parecer tão inadequada quanto aquela que propõe a rapsódia como

“evangelho da antropofagia”. A própria possibilidade de leituras tão inteiramente

opostas da obra é em si um indício interessante.

Certa oscilação na definição do sentido da rapsódia percorre os próprios prefácios

não-publicados. No primeiro deles lemos que o que interessou o autor foi “trabalhar e

descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros” ao lado da advertência

de que “Macunaíma não é símbolo nem se tome os casos deles por enigmas ou fábulas”

(apud BATISTA, 1972, p. 289). A advertência reaparece no segundo dos prefácios. “Só

não quero é que tomem Macunaíma e outros personagens como símbolos”. Nele o

interesse expresso no primeiro prefácio aparece como feliz coincidência:

Agora: não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma
expressão de cultura nacional brasileira. Deus me Livre. É agora
depois dele feito que me parece descobrir nele um sintoma de
cultura nossa. (apud BATISTA, 1972, p. 292)

127
A simultânea afirmação e recusa do vínculo da rapsódia com a “entidade nacional

brasileira” talvez seja melhor compreendida a partir do trecho no qual Mário fala da sua

postura diante do passado e do futuro:

Nas épocas de transição social como a de agora é duro o


compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe
[sic]. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e por isso não
posso tirar dele uma fábula normativa. Por outro lado o jeito de
Jeremias me parece ineficiente. O presente é uma neblina vasta.
Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de
hesitação. Se trata de uma verdadeira impossibilidade, a pior de
todas, a de nem saber o nome das incógnitas. (apud BATISTA,
1972, p. 293)

À recusa a uma fábula normativa se somou, por fim, a recusa de tentar

influenciar, no próprio livro, a sua recepção. Publicando sua rapsódia sem prefácio

algum, o próprio autor acabou por desistir das tentativas de fixar seu sentido. Ao

incaracterístico do personagem, se soma assim o incaracterístico da obra. A

antropofagia, como vimos, nela veria seu provável evangelho. O grupo de leite criôlo,

como discutiremos mais adiante, veria em Macunaíma exatamente uma fábula

normativa, uma ilustração do ideário expresso no “ensaio sobre a tristeza brasileira” de

Paulo Prado. E desde então a obra tem sido revisitada inúmeras vezes, proporcionando

novos rendimentos de significação no mais diversos contextos. Não seria esta

exatamente a chave da sua permanência?

Clichê do Brasil do visitador do Santo Ofício


A relação do ideário antropófago com o “ensaio sobre a tristeza brasileira” pode

ser caracterizada de maneira bem mais inequívoca: Oswald de Andrade e demais

antropófagos declaram de forma reiterada e veemente sua condenação do livro de Paulo

Prado.

Em sua resenha de Retrato do Brasil de janeiro de 1929, Oswald rejeita nos

seguintes termos a visão do país ali expressa:

128
Não posso compreender que um homem à la page como é meu
grande amigo, escreva sobre o Brasil um livro pré-freudiano. A
luxúria brasileira não pode, no espírito luminoso de Paulo Prado,
ser julgada pela moral dos conventos inacianos. (ANDRADE,
1997, p. 229)
A mesma argumentação reaparece de maneira mais enfática em texto da segunda

dentição da Revista de Antropofagia, assinado com o pseudônimo Tamandaré, que

parece ter custado a grande amizade mencionada no trecho acima (cf. CALIL, 1997, p.

43):

A simplicidade a que ele se refere, cheio de horror, ao pecado


sexual e aos “vicios nefandos” do indio não é fingida é sincera, e
isso é que faz pena. Na epoca de Freud ele se fantasia de visitador
do Santo Oficio, toma da palmatória, abre o catecismo e préga
moral ao brasileiro da fuzarca, insistindo em meter na cabeça dele
o desespero do europeu pôdre de civilização.150

Em outra edição, Oswaldo Costa já havia denunciado que o “mal dos nossos

escritores é estudar o Brasil do ponto de vista, falso, da falsa cultura e da falsa moral do

Occidente”.151 Nos três textos mencionados, tal leitura da história nacional seria

decorrente da influência do historiador Capistrano de Abreu, mestre e protegido do

autor de Retrato do Brasil (cf. CALIL, 1997, p.9-10). Capistrano seria definido por

Costa no texto referido como um “bleuff no sr. Paulo Prado”. Sendo a condenação à

luxúria e a vinculação desta com a melancolia – que, sob o ponto de vista do ideário

antropófago, não caberia na definição do brasileiro – o centro da rejeição ao “ensaio

sobre a tristeza brasileira”, se contestava também a identificação da cobiça como

característica nacional. Segundo Tamandaré, Paulo Prado cairia na bobagem de afirmar

a inexistência do interesse econômico.152

Em suma, o grupo oswaldiano considerava falso o retrato da nacionalidade

impressa no “ensaio sobre a tristeza brasileira” – que, expandindo a metáfora do título,

diziam ter sido “tirado, naturalmente, com aquelas velhissimas machinas de apertar na

150
“Moguem I – Aperitivo” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4.
151
“Revisão Necessária” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 1.
152
“Moguem I – Aperitivo” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4.

129
borrachinha que usam os fotografos de mil quinhentos a dúzia do Jardim da Luz”.153

Mas, para além da imagem representada pelo “Brasil, cliché Paulo Prado”,154 um dos

aspectos do ensaio agradava bastante: a conclusão de que a regeneração do Brasil se

daria através da revolução. Tanto o artigo de Tamandaré na Revista de Antropofagia

quanto a resenha de Oswald insistem nesse ponto. O autor de Serafim Ponte Grande

afirma ali que as

conclusões entretanto de Paulo Prado me agradam (sic). (...) O


sentido da revolução mundial, do qual o Brasil no seu sono de
preguiça gostosa estava inteiramente alheio, vem agora dar a Paulo
Prado um lugar profético que o coloca em destaque entre os
pensadores da atualidade brasileira (ANDRADE, 1997, p. 229).
Mesmo aí o ideário antropofágico parece se distanciar dos pontos de vista

expressos no “ensaio sobre a tristeza brasileira”. No prefácio à quarta edição de Retrato

do Brasil, datado de 1931, Paulo Prado considerava confirmadas suas previsões

revolucionárias pela chamada “revolução de 30”, dizendo que no contexto da época

eram profecias fáceis (PRADO, 1997, p. 49). Dificilmente o golpe de estado que levou

Getúlio Vargas ao poder – por mais significativo que tenha sido para a política,

sociedade e cultura brasileiras – poderia ser descrito como a “revolução Caraíba”

defendida no Manifesto Antropófago. Essa seria “maior que a Revolução Francesa” e “a

unificação de todas as revoltas eficazes em direção ao homem” (apud TELLES, 2005, p.

354).

Mas se a reação do grupo da Revista de Antropofagia ao livro de Paulo Prado

terminaria por um ponto final à relação desse com Oswald de Andrade, é preciso

também lembrar da importância até aí do vínculo entre os dois. Paulo Prado havia

escrito em 1924 o prefácio do livro de poemas Pau Brasil (PRADO, 2000, p. 57-60) e

podem-se perceber mesmo em Retrato do Brasil pontos de contato com o pensamento

153
Ibidem.
154
Expressão cunhada no artigo “Livrografia” assinado com o pseudônimo Odjuavu Revista de
Antropofagia, 2ª Dentição Nº 2.

130
oswaldiano. A temática da falsidade de uma cultura de importação presente em Retrato

do Brasil (cf. PRADO, 1997, p. 203-205) é também um dos pontos centrais do

Manifesto da Poesia Pau Brasil publicado por Oswald em 1924. No “ensaio sobre a

tristeza brasileira” também se encontra glosado, documentando o capítulo “A Luxúria”,

o trecho da carta de Pero Vaz Caminha sobre as “vergonhas” das índias que havia sido

recortado para a feitura do poema “As meninas da gare” da seção “História do Brasil”

de Pau Brasil (Cf. PRADO, 1997, p. 72; ANDRADE, 2000, p. 69-70). Já o capítulo “A

Cobiça” se encerrava com uma sequência de frases substantivas repetidas

Ouro. Ouro. Ouro.


Cobiça. (PRADO, 1997, p. 129)

Que ecoa procedimento semelhante utilizado no Manifesto Antropófago:

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.


(apud TELLES, 2005, p. 355)

Pode-se conjeturar que por essas e outras afinidades temáticas, imagéticas e

formais, Oswald tenha afirmado que “Retrato do Brasil tem passagens lindas” de uma

“poesia bem nossa, bem antropofágica” (ANDRADE, 1997, p. 232). É neste contexto

que a resenha de Oswald volta à vinculação entre Macunaíma e Retrato do Brasil,

mencionada no início da seção anterior deste capítulo:

Os quadros da vida de luxo de senhores, escravos, negros e índios,


os séquitos, as procissões, os corpos nus sob a cambraia caseira,
tudo isso bem documentado, bem pintado, bem vivido, é um hino
que fura qualquer invólucro de falso pessimismo e a gente sente a
cada página o arrimo histórico de Macunaíma. (ANDRADE, 1997,
p. 232)

Nota-se aí que o problema de Oswald de Andrade com o Retrato do Brasil passa

mais pela distorção da imagem produzida pela “velhíssima máquina de apertar na

borrachinha” de Paulo Prado, danificada pelo moralismo cristão e pelo pessimismo, do

que pelo seu enquadramento. Em outras palavras, uma sexualidade alheia à moralidade

131
ocidental caracterizaria o brasileiro tanto para o ideário antropofágico quanto para Paulo

Prado. O que os diferenciava era principalmente o juízo associado a tal constatação.

O que encontramos aí também é um consenso de fundo a respeito da possibilidade

e da necessidade de definição de uma identidade do Brasileiro, que se daria através da

articulação de um discurso sobre a história e a formação deste e seria descrito a partir de

uma sensibilidade fundamentalmente literária. Tal consenso, que une os três conjuntos

textuais trabalhados até aqui, também se faz presente no nosso foco principal, leite

criôlo – que como veremos desenvolveu amplo diálogo com a antropofagia oswaldiana,

com a rapsódia de Mário de Andrade e com o ensaio de Paulo Prado.

O Retrato do Brasil de João Dornas Filho e companhia


A relação entre o grupo de leite criôlo e o “ensaio sobre a tristeza brasileira”

antecede mesmo o aparecimento da publicação. No último número da primeira dentição

da Revista de Antropofagia, João Dornas Filho publica um poema intitulado

incidentalmente “Retrato do Brasil”:

O que mais me admira no Brasil


não é o rio Amasonas [sic] – o maior do mundo!
E nem as florestas e as riquezas,
as maiores do mundo!
O que mais me admira no Brasil
é a preguiçosa confiança que nós temos
nessas coisas todas – as maiores do mundo!...155

Nestes versos, como já observou Antônio Sérgio Bueno (1982, p. 129), se

evidencia o anti-ufanismo que em seguida caracterizaria a publicação belo-horizontina,

assim como a sua vinculação à obra de Paulo Prado. No “ensaio sobre a tristeza

brasileira”, tal temática se faz presente de várias formas. Ali se fala da

hipertrofia do patriotismo indolente que se contenta em admirar as


belezas naturais, ‘as mais extraordinárias do mundo’, como se
fossem realizações do homem. (PRADO, 1997, p. 161)

155
Revista de Antropofagia, 1ª Dentição Nº 10, Fevereiro de 1929, p. 2.

132
Também é mencionado o traço “romântico” da nacionalidade que seria o “divórcio

entre a realidade e o artifício” (PRADO, 1997, p. 178) e cuja expressão política seria o

“liberalismo palavroso” (PRADO, 1997, p. 179), daí concluindo que em “tudo domina o

gosto do palavreado, das belas frases cantantes, dos discursos derramados” (PRADO,

1997, p. 203).

A publicação de Belo Horizonte ecoa com toda a força tal linha de pensamento.

No tablóide de 13 de maio, no alto da terceira página se encontra inclusive citada a frase


156
“Numa terra radiosa vive um povo triste” com a qual se inicia o “ensaio sobre a

tristeza brasileira” (Cf. PRADO, 1997, p. 53). Uma peculiaridade da publicação é que

nela os diversos “males da nacionalidade” – luxúria, cobiça, tristeza, preguiça,

ignorância, pedantismo, ufanismo – apontados por Paulo Prado se encontram quase

sempre vinculados, constituindo aquilo que os diretores da publicação definiam como

“criolismo”. 157

Não que em Retrato do Brasil tais “males” se encontrem explicitamente

dissociados. De certa forma a estrutura dos três primeiros capítulos se articula em torno

das três raças da proposta de Martius. “A luxúria” foca principalmente os indígenas e

sua relação com os colonizadores nos séc. XVI e XVII. A corrida do ouro do séc.

XVIII, protagonizada pelos colonos portugueses, é examinada no capítulo “A cobiça”.

Por fim, a herança africana, tratada a partir do período da escravidão negra no Brasil, é

o cerne do capítulo que responde ao subtítulo da obra, “A tristeza”. Uma associação

mais tópica e bastante próxima da definição de “criolismo” seria aquela entre “origem

crioula” e ignorância, que Paulo Prado faz em um trecho sobre o período colonial

(PRADO, 1997, p. 136), mas que na sua linha de raciocínio se vincula à criação “pelo

156
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.1.
157
Uma primeira definição de “criolismo” foi esboçada no capítulo anterior e o tema será explorado com
mais profundidade no capítulo seguinte.

133
decurso dos séculos de uma raça triste” (PRADO, 1997, p. 140). Em suma, segundo o

“ensaio sobre a tristeza brasileira”, o negro

perturbou e envenenou a formação da nacionalidade, não tanto pela


mescla de seu sangue como pelo relaxamento dos costumes e pela
dissolução do caráter social, de consequências ainda incalculáveis.
(PRADO, 1997, p. 150)

Nota-se aí novamente certa indistinção entre o biológico e o cultural. Tal linha de

pensamento presente em Retrato do Brasil, juntamente com outra que apresenta a

convicção de que pela miscigenação “o negro desaparece aos poucos” (PRADO, 1997,

p.192), ecoa no seguinte trecho do texto “Defeza (sic) da Alegria” de Aquiles Vivacqua,

publicado no tablóide de 13 de maio:

Eugenia para a alma brasileira. Eugenizar. Não o negro. Esse, por


si mesmo, se anula pela mestiçagem. Todo o Brasil, sim. Fazel-o
[sic] feliz. Obter selectivamente typos que melhore [sic] a nossa
raça. Como Backwell, criador inglês de gado. Mas ao envez [sic]
de obtermos, como ele, mais carne que osso, vamos conseguir mais
alegria que nostalgia...158

Os temas do branqueamento e sua relação com o pensamento eugênico serão


discutidos no próximo capítulo. O que interessa aqui é a convergência entre as visões da
influência do negro na formação da nacionalidade presentes na publicação belorizontina
e no “ensaio sobre a tristeza brasileira”. Convergência que se estende a questões
pontuais como a abolição da escravatura, considerada “romântica” por Paulo Prado
(1999, p. 207) e sobre a qual um trecho do texto citado de Vivacqua afirmava que os
negros deseducados, indolentes e baderneiros não estariam preparados para a
abolição.159
Em resumo, os principais temas e discussões de Retrato do Brasil aparecem de

maneira reiterada em leite criôlo: a tristeza160, a luxúria161, a cobiça162 e a preguiça163

158
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.7
159
Ibidem.
160
Cf. “leite criôlo”, de Guilhermino César, “Convite” e “Defesa da Alegria”, de Aquiles Vivacqua,
“Banzo”, de Diderot Coelho Junior em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.1, 2 e 7.
“Criôlo”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929. “nota ligeira”, de Garcia
Resende em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929. “misced picklees brasileiros”, de Albano
de Moraes em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 25 de agosto de 1929. Em Retrato do Brasil, cf. PRADO,
1999, p. 130-163.
161
Cf. “Caldo de Galinha”, de João Guimarães, “Defesa da Alegria”, de Aquiles Vivacqua em LEITE
CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 3 e 7. “Criôlo”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO

134
como características da nacionalidade, a desmedida entre a grandeza da terra e pequenez

do homem164, a concepção sanitarista do Brasil como “um grande hospital”165, a ideia

de que a colonização teria sido obra de degredados166, a presença definidora da tristeza

na cultura popular167. Como assinalado no capítulo anterior, tais temáticas se desdobram

não apenas em artigos, mas também em trechos curtos de prosa ficcional e em um ou

outro poema de cunho narrativo. Os textos que apresentam proximidade com as

temáticas do “ensaio sobre a tristeza brasileira” costumam ser assinados pelos próprios

diretores de leite criôlo ou de escritores mineiros de menor projeção na rede nacional

modernista a eles ligados (João Guimarães, Albano de Moraes, Diderot Coelho Junior).

As exceções ficam por conta de Garcia de Resende, modernista do Espírito Santo, que

publicou uma “nota ligeira”168 sobre a “figura da mãe preta”, e Raul Bopp, que publicou
169
sob o pseudônimo de Jacob Pim-pim um poema intitulado “Babalú”. Nele uma

morfética (portadora de hanseníase) se joga no tanque dos tubos de água filtrada, se

vingando assim da cidade que a desprezava – enredo próximo da noção sanitarista da

doença como envenenamento da comunidade.

Nº I, 2 de junho de 1929. “nota ligeira”, de Garcia Resende em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto
de 1929. Em Retrato do Brasil, cf. PRADO, 1999, p. 53-90 e 130-163.
162
Cf. “Convite” e “Defesa da Alegria”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de
maio de 1929, p.1 e 7. Em Retrato do Brasil, cf. PRADO, 1999, p. 91-129.
163
“Fóra o malandro”, de João Dornas Filho, “Caldo de Galinha”, de João Guimarães em LEITE
CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.1 e 3. “Criôlo”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº
I, 2 de junho de 1929. Em Retrato do Brasil, cf. PRADO, 1999, p. 131-132.
164
“leite criôlo”, de Guilhermino César, “Convite”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO (Tablóide),
13 de maio de 1929, p.1 “o que nós precisamos”, de Carlos Matta Machado em LEITE CRIÔLO Nº VII,
14 de julho de 1929. “apólogo”, de João Dornas Filho em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929.
Em Retrato do Brasil, cf. PRADO, 1999, p. 53, 161 e 183.
165
“o que nós precisamos”, de Carlos Matta Machado em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929.
“balalú”, de Jacob Pim-Pim em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929. “aqui estemos”, de João
Dornas Filho, em em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929. “misced picklees brasileiros”,
de Albano de Moraes, em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 25 de agosto de 1929. Sobre a relação entre o
sanitarismo e Retrato do Brasil, vide seção anterior deste capítulo.
166
“Criôlo”, de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929. Em Retrato do Brasil,
cf. PRADO, 1999, p. 67.
167
“O poeta obscuro ou o poema do amor desiludido”, de Diderot Coelho Junior em LEITE CRIÔLO Nº
V, 30 de junho de 1929. “nota ligeira”, de Garcia Resende em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto
de 1929. Em Retrato do Brasil, cf. PRADO, 1999, p. 144.
168
“nota ligeira” de Garcia Resende em LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929.
169
“balalú” de Jacob Pim-Pim em LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929

135
Os afastamentos entre o projeto criolista e Retrato do Brasil tendem a ser mais

pontuais. A rejeição às ideias do “ensaio sobre a tristeza brasileira” só aparece de

maneira contundente no conto de Cyro dos Anjos intitulado “Zé Prequeté andando

atôa”. 170 Dentro de estilo que ecoa fortemente Macunaíma, se narra ali que, depois de

nascido o personagem principal, a parteira lhe “tirou as maldades” da seguinte forma:

Misturou matruço com papaconha e fez elle beber para evacuar a


tristeza africana, que móra nas tripas e os doutores chamam
ankylosmiase [amarelão], a preguiça indígena, que mora no baço
[parte do corpo afetada pela doença de chagas] e a sensualidade
braba, que mora no Retrato do Brasil e é conversa fiada. 171

Nota-se que o autor mobiliza a argumentação típica do pensamento sanitarista

contra o esquema de pensamento racial presente em Retrato do Brasil. Tal oposição não

se encontra em mais nenhum texto da publicação belorizontina. Além disso, Cyro dos

Anjos não parece ter sido muito próximo dos diretores de leite criôlo, tendo publicado

ali apenas mais um texto.

Em outro texto, assinado pelo colaborador frequente Francisco L. Martins, aparece

uma solução para a tristeza brasileira que se distancia do ideário do “ensaio sobre a

tristeza brasileira” e ao mesmo tempo parece mais integrada no pensamento “criolista”.

Intitulado “Mais uma adhesão”, afirma que, mesmo sem saber, a srª. Olympia Vasquez

Garcia – proprietária do Palácio Club, famoso cabaret da zona boêmia da Belo

Horizonte do começo do séc. XX – aderiu à causa de leite criôlo. Narra-se ali os eventos

da noite que o levaram a tal conclusão:

Varias negras em [trajes] menores assaltam o salão.


Guinchos. Sapateados. Rebolar de quadris. Athmosphera brava de
baile de bagageira.
Delirio geral. Pasmei.
Depois, explodi. Babei e berrei de goso. Fazendo ciumes no
português de bigodes e olhos morteiros. Suando volupia.
Não havia duvida.

170
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.8
171
Ibidem.

136
Olympia importou meia dúzia de josephine bakers [sic] de fôrno e
fogão. Prova publica da adesão ao criôlismo. 172

De tal fato o texto retira um possível antídoto para a tristeza brasileira diagnóstica

por Paulo Prado:

A tristeza da raça não veio do leite chupado nos peitos bojudos das
negras?
Pra acabar com a dita tristeza Olympia applicou o similia similibus
curantur [princípio da homeopatia]. Ou, traduzindo pro brasileiro:
dentada de cão se cura com o pêllo do mesmo cão.
A tristeza vem do preto?
Botemos as pretas gingando os peitos molles e as vastas cadeiras.
Cantando canções com vozes infames. Infamérrimas.
Rindo pros homens com ou sem dentes.
E haverá uma bruta alegria.173

Em uma curiosa inversão, seria exatamente o gingado das negras, pensado em

termos claramente sexualizados, o remédio para a tristeza brasileira. Rejeita-se aí

indiretamente a associação moralista de Paulo Prado entre luxúria e tristeza, expressa no

“ensaio sobre a tristeza brasileira” através da fórmula “post coitum animal triste”

(PRADO, 1997, p. 141). Mais que isso, o texto explicita que a “volúpia” surge da parte

do próprio narrador, implicitamente branco, e assume uma postura de blague

possivelmente escandalosa, ao tratar de eventos e pessoas ligadas a um ambiente de

prostituição em um jornal diário de perfil comercial.

A dupla moral em relação a uma suposta sexualidade exacerbada característica do

brasileiro se estende também à produção propriamente literária publicada em leite

criôlo. Se por um lado, no conto “Caldo de galinha” de João Guimarães, a negra Cuba

do quilombo de Palmares acaba vítima de sua “voluptuosidade aberrada” 174, por outro,

o eu-lírico de poemas como “dança de Salomé mulambo”175, do mesmo autor, parece se

comprazer com os “corpos rolando” e com os “seios tremendo” que descreve.

172
LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929.
173
Ibidem.
174
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 3
175
LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929.

137
O chupim, Pai do Vira, é o criolismo
De forma simétrica à frase inicial de Retrato do Brasil, o dístico do “herói sem

nenhum caráter” (“Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são”), se encontra

citado no alto de uma das páginas do tablóide de 13 de maio. 176 Antônio Sérgio Bueno

(1982, p. 128) já havia notado que a tal presença na publicação se associa à temática

anti-ufanista – ao que se poderia acrescentar o vínculo com Retrato do Brasil, o

pensamento sanitarista, além, é claro, com o próprio Macunaíma, referência

fundamental do grupo criolista. Como já foi dito, a reapropriação mais característica de

leite criôlo da rapsódia de Mário de Andrade se dá no sentido de conceber a obra como

uma espécie de fábula normativa.

Um exemplo central de tal forma de reapropriação seria a menção implícita ao

trecho de Macunaíma no qual o “herói sem nenhum caráter”, meditando sobre a

“injustiça dos homens”, observa um chupim gordo e bem alimentado fingindo que era o

filhote de um tico-tico esquálido e esfomeado para que este o alimentasse. Ali

Macunaíma, que acaba de ser enganado ao comprar um micura (gambá) que defecaria

dinheiro, no “amargor imenso da injustiça do cupinzão”, acaba por interferir na situação

punindo com a morte, ironicamente, o tico-tico. Em seguida, o chupim começa a seguir

e pedir comida ao próprio “herói sem nenhum caráter” que revida lhe dando de comer

as fezes do micura que estão em seu bolso (ANDRADE, 1977, p. 150-151). O resultado

é que o chupim “foi engordando, engordando virou num pássaro preto bem grande e

voou pros matos gritando ‘Afinca! Afinca!’ É o Pai do Vira.” (ANDRADE, 1977, p.

151)

Como explica Cavalcanti Proença (1974, p. 191-192), trata-se de uma espécie de

“conto etimológico” que explica a denominação de Vira-bosta ao pássaro também

176
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 2.

138
conhecido como chupim. O trecho pode ser lido também como uma ilustração da

“gatunagem sem esperteza” que, segundo um dos prefácios de Macunaíma,

caracterizaria o brasileiro (apud BATISTA, 1972, p. 289).

É assim que a figura do vira-bosta aparece no texto “Fóra o malandro” de João

Dornas Filho, que vale a pena citar na íntegra:

A ornitologia tem um passaro que foi criado para nosso espelho.


Ou por nosso exemplo. É o virabósta.
O safardana põe os ovos no ninho do tico-tico, porque tem
preguiça de fazer o seu. É o tico-tico, brasileiro do bom, chóca os
ovos, e o que é pior, cria os criolinhos do patife, que tem até
preguiça de caçar alimentos, como o nome indica.
E a filhotada preta, de bico elástico e enorme, famintos como a
peste, não dão um instante de socego ao troxa do burro do tico-
tico.
Quando crescem, vão novamente botar no ninho do pacovio que
lhes cria a próle para novos tormentos.
Virabósta é o criolismo. É a preguiça secular do caracter brasileiro.
É a superstição que resôa oblonga e interminavel como urucungo
[berimbau] na alma encachaçada do Brasil.
Fóra o malandro! Fiáu!177

A rapsódia de Mário de Andrade de certa forma propõe um jogo de espelhos, no

qual Macunaíma, vítima do golpe do micura que defeca ouro, seria duplicado na figura

do tico-tico enganado pelo chupim. Dando sequência ao espelhamento, no texto de

Dornas Filho, o tico-tico aparece como “brasileiro do bom” e, no entanto, seu

explorador vira-bosta/chupim foi criado “para nosso espelho”. De tal forma, o “herói

sem nenhum caráter” poderia ser visto como ao mesmo tempo vítima e enganador, tico-

tico e chupim, dualidade já expressa na ideia da gatunagem sem esperteza do brasileiro.

Um outro eco do mesmo trecho de Macunaíma se faz notar no artigo “o brasileiro

e o homem que comprou o bonde da laite”, de João Dornas Filho, que critica a “feição

criola” da “sociabilidade em excesso”, fazendo menção desde o título a um caso, então

177
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 1.

139
de conhecimento geral, de um golpe ocorrido em Goiás178. Ali João Dornas Filho

duplica a condenação do tico-tico e não do chupim/vira-bosta por Macunaíma:

Si fosse juiz do julgamento do vigarista [que teria


fraudulentamente vendido um bonde que pertencia à companhia de
transporte e eletricidade Light] eu o absolveria. E comndenaria às
custas o bocó do goyano. Pra aprender.
Educação se faz assim.179

A temática da “gatunagem sem esperteza” tem, sem dúvida, certo peso em leite

criôlo, assim como em Macunaíma. 180 O anti-bacharelismo, porém, era um dos traços

fundamentais do ideário da publicação mineira e também se faz presente nas páginas da

rapsódia de Mário de Andrade. Um primeiro exemplo seria o breve encontro entre o

“herói sem nenhum caráter” e o bacharel de Cananéia, no qual em duas falas curtas

consegue introduzir tanto um português arcaizante quanto uma frase em francês

(ANDRADE, 1977, p. 39).

Mais significativo é o episódio no qual Macunaíma interrompe um discurso sobre

um “feriado novo inventado pros brasileiros descansarem mais”, intitulado dia do

Cruzeiro, para a ele contrapor sua própria cosmologia. O interessante ali é que o emissor

do discurso pedante e oficialesco é qualificado pelo narrador como um “mulato da

maior mulataria” (ANDRADE, 1977, p. 118). Tal definição se enquadra nos

estereótipos do negro tagarela e do negro pernóstico, que Antonio Sérgio Bueno (1982,

p. 134-135) identifica, não apenas em leite criôlo, mas também na tradição da literatura

brasileira.

É interessante notar a transformação deste trecho de Macunaíma na adaptação

cinematográfica de Joaquim Pedro, datada de 1969. Ali é o próprio “herói sem nenhum

caráter”, interpretado por Paulo José, que qualifica o emissor do discurso oficialesco

178
LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
179
Ibidem.
180
O tema do golpe aparece ainda em um terceiro texto de leite criôlo, “apontamentos” de Walter
Benevides, em LEITE CRIÔLO Nº IX (10º), 4 de agosto de 1929. No caso, seria o chamado “golpe do
baú”.

140
sobre o “dia do Cruzeiro” como “mulato da maior mulataria”. Tal afirmação é

imediatamente retrucada por Jiguê (“foi só ficar branco pra ficar racista...”), que no

filme é negro e não “cor de bronze”, sendo interpretado pelo ator e militante do

movimento negro Milton Gonçalves. Pode-se especular que a passagem da rapsódia de

Mário de Andrade ali referida já parecia então – no contexto do Tropicalismo e do

Black Power – como anacrônica. Destoava demais, talvez, da leitura eminentemente

antropofagizante e debochada da saga do “herói sem nenhum caráter” que interessava

aos artistas daquele momento.

Outros motivos de Macunaíma também aparecem nas páginas de leite criôlo. As

formigas que infestam a rapsódia de Mário de Andrade marcam presença na publicação

belorizontina. No texto “devore-se” de Newton Braga a rede nacional de publicações

modernistas é descrita como uma “correição” de formigas expulsando do Brasil os

“baratões” acadêmicos.181 No poema “a correição” de Ary Gonçalves, ligado à revista

Montanha de Ubá, o formigueiro em movimento é comparado primeiro a uma

procissão, depois ao “negro congado” e, por fim, pela via da analogia racial, com a

polícia procurando criminosos.182 Por sua vez, o conto “Caldo de galinha” de João

Guimarães, mencionado na seção anterior deste capítulo, tem por refrão “Oh! Preguiça

danada!”183 Na mesma linha o artigo “Defeza da Alegria” de Aquiles Vivacqua,184

também citado na seção anterior, afirma que o brasileiro desperta “até com preguiça de

falar”, ecoando a abertura de Macunaíma, na qual o “herói sem nenhum caráter” passa

seis anos sem falar nada que não seja seu característico refrão (ANDRADE, 1977, p. 9).

No mesmo texto, é mencionada a crendice popular relacionada à “morte de parente”, ali

181
LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
182
LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929.
183
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 3.
184
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 7.

141
prenunciada pelo derramamento de tinta na mesa e não por sonhar que caiu um dente,

como na rapsódia de Mário de Andrade (ANDRADE, 1977, p. 22).

Nota-se, pelo conjunto dos exemplos de reapropriação por parte de leite criôlo de

motivos da saga do “herói sem nenhum caráter”, que na publicação belorizontina há

uma forte tendência de tratar a rapsódia no registro da fábula normativa. Registro este

cujo caráter problemático foi discutido na seção sobre Retrato do Brasil e Macunaíma.

Mas, como discutido no capítulo anterior, a tendência à narrativa de tipo exemplar na

produção do grupo criolista vai além do seu diálogo com a rapsódia de Mário de

Andrade. Trata-se de um traço mais amplo da publicação, derivado da tentativa de

articular suas preocupações programáticas com a sociedade brasileira e a estética do

modernismo nacionalista.

Tensiona a relação típica entre leite criôlo e Macunaíma apenas o conto de Cyro

dos Anjos intitulado “Zé Prequeté andando atôa”185, que, como vimos, também destoa

da adesão às ideias de Retrato do Brasil. Provavelmente o texto da publicação

belorizontina mais referido à rapsódia de Mário de Andrade, o conto em questão toma

de empréstimo até mesmo seu personagem principal, Zé Prequeté, com o qual

Macunaíma interage rapidamente (Cf. ANDRADE, 1977, p. 148). Ali a trajetória do

personagem – que vai para a “fuzarca”, acorda de ressaca e falando um “nome ruim”,

mas sem tristeza – não parece implicar em nenhuma “fábula normativa”, se

aproximando mais da celebração antropofágica da “contribuição milionária de todos os

erros” e da alegria.

Deglutindo o criolismo

O mapeamento dos vínculos entre os conjuntos textuais aqui proposto se

configura, até agora, da seguinte forma: dentro da profusão de significados atribuíveis à

185
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p.8.

142
rapsódia de Mário de Andrade é possível identificar dois pólos, um ligado ao ideário

antropofágico, proposto por Oswald de Andrade e seus colaboradores mais próximos na

Revista de Antropofagia, e outro ligado ao pensamento expresso no “ensaio sobre a

tristeza brasileira” de Paulo Prado. Vimos também que a face programática de leite

criôlo se aproxima bastante da visão de nacionalidade veiculada em Retrato do Brasil e,

coerentemente, é através do enquadramento proposto por Paulo Prado que são ali

apropriados múltiplos motivos de Macunaíma.

Tal delineamento parece contradizer o segundo capítulo deste trabalho, no qual

demonstramos os vínculos, em termos de política literária, entre o grupo criolista e a

segunda dentição da Revista de Antropofagia. Como poderia ser associado à

antropofagia oswaldiana uma publicação que se inspira de maneira tão profunda em

Retrato do Brasil?

Antônio Sérgio Bueno (1982, p. 167-177) já havia tratado da questão da relação

entre esses periódicos. O autor menciona declarações posteriores afirmando tanto a

conexão quanto a oposição entre as publicações, mapeia algumas das suas interações e

compara algumas características de ambos. Sua conclusão, talvez um pouco vaga, é que

os “antropófagos” paulistas seriam o grupo de referência dos “criolistas” mineiros

(BUENO, 1982, p. 171).

No segundo capítulo deste trabalho foi formulada a hipótese de que os diretores de

leite criôlo teriam, em um primeiro momento, se aproximado cautelosamente do grupo

oswaldiano e, por fim, rompido com ele. Tanto a cautela como o rompimento

mencionados teriam, segundo argumentamos, relação com a proximidade com o grupo

mais estabelecido de modernistas de Belo Horizonte, centrado nas figuras de Carlos

Drummond de Andrade e de João Alphonsus. Terminada a relação com a antropofagia,

143
o projeto criolista perdia, em parte, seu sentido, o que pode ter precipitado o fim da

publicação.

Tanto a argumentação de Bueno quanto a hipótese colocada neste trabalho em

termos de política literária não respondem, no entanto, ao questionamento em relação à

possibilidade de convivência de programáticas a princípio tão diferentes.

Um primeiro caminho para entender a relação entre os ideários antropófago e

criolista passa pela análise da forma como a antropofagia e a questão indígena aparecem

nos textos do grupo belorizontino. O texto “a proposito do homem antropófago” de

Aquiles Vivacqua, publicado na Revista de Antropofagia duas semanas antes da

publicação do primeiro número de leite criôlo, trata de tais questões da seguinte forma:

Começamos a sentir a cizania no brasil [sic] desde quando se


pretendeu proibir a antropofagia. (...)
Nada pois mais justo do que enaltecermos o indio e o tomarmos
como sendo o legitimo tipo nacional. Negar-lhe o verdadeiro
padrão do brasileiro, só por julgar que o brasileiro é o individuo-
civilização que formou nossa historia e não o homem fisico
integrado na terra é, no entanto, erro que todo mundo comete. Essa
fusão irregular de elementos de duas raças degeneradas e uma forte
– o indio – não pode crear o tipo nacional. Para mim, o brasileiro
não é o fruto da amalgama dessa civilização aparente que se
desenvolveu na América: O indio forte, submetido pela força; o
africano animalizado; o europeu, amarello como açafrão,
transviado dos presidios. 186

A mesma linha de pensamento ecoa em outro texto, também de Aquiles

Vivacqua, publicado em leite criôlo:

Bem sabemos que na nossa physionomia se reflecte muito mais o


indio do que o negro. O que porêm do indio tomamos, de bom ou
de mau, veio da propria terra em que vivemos. Do negro não. Elle
era completamente estranho ao nosso meio. Veio pra nossa
formação como genero importado. Como o européu [sic]
extraviado dos presidios. E com esse mesmo européu cheio de
defeitos, gerou no Brasil, dentro de uma luxúria desenfreada e da
sede sensual do goso, a anestezia [sic] que ainda vive no
organismo da terra moça – a preguiça. 187

186
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 7.
187
“criôlo” LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929.

144
Observa-se aí a curiosa mistura entre alguns elementos da proposta antropofágica

com o grosso do pensamento de Retrato do Brasil: o índio antropófago seria a imagem

valorosa do Brasileiro do futuro, mas as interações deste com o português – sempre

referido na forma dos degredados do “ensaio sobre a tristeza brasileira” (Cf. PRADO,

1997, p. 67) – e com o negro africano teriam dado à construção histórica do Brasil o

caráter degenerado descrito por Paulo Prado. Mais estranho ainda é que tais ideias

tenham sido veiculadas no próprio “órgão da antropofagia brasileira de letras”.

Mas nisso os “criolistas” mineiros não estavam sozinhos. Um texto de Jaime

Adour da Câmara, também publicado na Revista de Antropofagia, menciona que

Portugal teria mandado para cá “como condenada” a “sobra da sua gente”. 188 Trata-se

de uma interpretação totalmente oposta àquela do Manifesto Antropófago, que igualava

o degredo com a rejeição da falsa civilização európeia. 189

À falta de ortodoxia antropofágica nos textos citados se vinculam ainda outras

tendências dentro do corpus publicado do periódico paulista. Um bom exemplo disto é a

postura religiosa conciliatória190 de alguns artigos que contrasta fortemente com o

anticlericalismo do manifesto e dos textos mais marcadamente oswaldianos da

publicação. Tal desvio torna, inclusive, mais fácil compreender certa corrente poética

presente em leite criôlo que se volta para uma releitura intimista do catolicismo popular

e tradicional. Também o fato de serem invocadas razões morais e religiosas, no

momento de rompimento da publicação mineira com a antropofagia, se torna mais

188
“História do Brasil” Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4.
189
“Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo (...).”
apud TELLES, 2005, p. 357.
190
Cf., por exemplo, “A pedidos” em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 3, assinada “um pae cristão
e quase antropófago” que reclama da proibição de meninos se vestirem de anjinho em procissões, e
“Algumas notas sobre o que já se tem escrito em torno da nova descida antropofagica da nossa literatura”
em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4, que afirma textualmente que “o problema religioso já
mereceu uma forma conciliatória”. Este último texto vem marcado como “remetido da sucursal do Rio
pra cá”.

145
claro: a princípio, a adesão ao movimento não parecia demasiadamente vinculado à

aceitação das implicações mais radicais do manifesto.

Em suma, parece que à defesa intransigente da ortodoxia antropofágica que o

grupo oswaldiano movia contra os modernistas que não aderiram ao movimento não

correspondia uma igual exigência daqueles que aderiam. Um bom exemplo disto seria o

primeiro artigo da Revista de Antropofagia que anuncia o aparecimento de leite criôlo

no qual, depois de citado o trecho abaixo de João Dornas Filho, se afirma que o projeto

da publicação mineira seria “pura antropofagia”:

Queremos é combater o caráter criôlo, até certo ponto estrangeiro


na nossa terra. A preguiça o optimismo exagerado, a
imprevidencia, a obliteração das nossas realidades e possibilidades,
a cultura e a religião importada. Queremos deglutir tudo isso, esse
criôlismo pernostico que resultou no bacharel. Nos bateremos por
tirar dos fenomenos locaes nossa civilização.191

Como se vê, o trecho se caracteriza pela apresentação sucinta do ideário

“criolista”, misturado com pontos do programa da antropofagia – incluindo um leve

anti-clericalismo – que não chegaram a se fazer presentes nas páginas de leite criôlo. A
192
entrevista de João Dornas Filhos, intitulada “a propósito do movimento criôlo”, e

publicada no número seguinte da Revista de Antropofagia, segue a mesma linha.

Acentua, porém, implicitamente a filiação da visão de mundo da publicação mineira ao

pensamento de Retrato do Brasil falando em “cobiça, sensualidade e cobardia” e

descrevendo da seguinte forma, o “quadro sombrio da nossa atualidade”:

Sub-raça inferior, pobre, analfabeta, doente, insignificante na


extensão territorial, de civilisação [sic] errada bruxuleando nas
trevas de uma tormentosa idade média.193

A diversidade de tendências no quadro da Revista de Antropofagia, entre as quais

é possível filiar o grupo “criolista”, muitas vezes implicava em reapropriações de

191
“Expansão antropofágica: clube de antropofagia de minas geraes” em Revista de Antropofagia, 2ª
Dentição Nº 10.
192
Revista de Antropofagia 2ª Dentição Nº 11
193
Ibidem.

146
aspectos do ideário antropófago que soam hoje bastante curiosas. Os desenvolvimentos

em torno da questão de uma “moral biológica” ilustram bem este ponto. Na primeira

edição da publicação paulista se propunha que

[t]odo nosso julgamento obedece ao criterio biológico. A


adjectivação antropofagica é apenas o desenvolvimento da
constatação do que é favoravel e do que é desfavoravel ao homem
biologicamente considerado. Ao que é favoravel chamaremos bom,
justo, hygienico, gostoso. Ao que é desfavoravel chamaremos
perigoso, besta, etc.194

O texto é assinado com o pseudônimo Freuderico e é no sentido do pensamento

freudiano que parece se conceber o homem biológico, igualado ao primitivo. Uma nota

posterior, intitulada “O direito antropofagico”, defende que tal concepção de

jurisprudência seria a de um “direito biológico, que admitte (sic) a lei emergindo da

terra, à semelhança das plantas”195.

É dentro deste contexto que Clóvis Gusmão, integrante do “clube de antropofagia

do rio de janeiro” 196, publica em leite criôlo o artigo “4 pedaços de tenupá oihó”197, no

qual trechos de mitos indígenas servem de exemplo para uma possível organização

jurídica antropofágica. Os trechos abaixo apontam a direção a qual Gusmão desenvolve

o conceito antropofágico da “moral biológica”:

Moral biológica. Mastigadasinha [sic] no estômago do mato, entre


correntes de tradições eugênicas culminadas no dever da vingança.
(...)
Claro que a moral despida de preconceitos estereis. Mas dentro de
um fundamento esato [sic] de eugenia. A sabedoria dos feiticeiros
escorando apenas a grandeza da tribu [sic]. Sem violentar os
domínios do instinto198

194
2ª Revista de Antropofagia Dentição Nº 1
195
2ª Revista de Antropofagia Dentição Nº 13
196
Cf. “Expansão antropofágica: clube de antropofagia do rio de janeiro” em Revista de Antropofagia, 2ª
Dentição Nº 10.
197
LEITE CRIÔLO Nº VII, 21 de julho de 1929.
198
Ibidem.

147
Tem se aí o protótipo inusitado de uma eugenia antropofágica, que ecoa de certa

forma a “eugenia da alma brasileira” proposta por leite criôlo, questão que iremos

desenvolver no próximo capítulo.

A própria metáfora da antropofagia, cuja complexidade foi analisada por Benedito

Nunes (1970, p. 25-34), aparece em toda uma faixa de textos reduzida à devoração das

“pragas” do bacharelismo e do passadismo. É o caso do texto já citado de Aquiles

Vivacqua, “a proposito do homem antropófago”, no qual se menciona a “degludição dos

ídolos falsos que vivem no nosso aparelho intelectual”,199 mas também de um artigo de

Renato Soldon da “tribo cearense de antropofagia”, associação que segundo o autor

“deglutirá brevemente o passadismo abatinado e missangueiro da gleba dirigida pelo

Zépeixoto (sic)”. 200 Cabe lembrar que a única apropriação explícita em leite criôlo da

metáfora antropofágica se dá nesse sentido. Trata-se já referido texto “devore-se” de

Newton Braga que descreve a rede nacional de publicações modernistas como uma

correição de formiga às quais se ordena “dê...vô...rar!(sic)” os “baratões” acadêmicos.201

Mesmo o texto que marca a ruptura da publicação mineira com a antropofagia, do

modernista alagoano Valdemar Cavalcanti de Alagoas, 202 se queixa que o movimento,

segundo o texto levado a outros caminhos pelo plano de Oswald de “botar Jesus Christo

para fora do territorio brasileiro”, havia deixado de lado seu potencial de “comer a mão

direita de certos intellectuaes”.

Em consonância com tal interpretação do significado do movimento

antropofágico, tão em sintonia com o programa de leite criôlo, se observam em vários

textos da publicação paulista traços do anti-bacherelismo difuso da época. O artigo

“Moquem III – Entradas”, assinado Tamandaré, pseudônimo de Oswaldo Costa, gira em

199
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 7.
200
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 12.
201
LEITE CRIÔLO Nº VI, 7 de julho de 1929.
202
LEITE CRIÔLO Nº XV (17º), 22 de agosto de 1929.

148
torno da constatação de que o “Literato brasileiro é um ignorantão”.203 Outro texto,

assinado pelo pseudônimo Freuderico, ataca Mennoti Del Picchia e tem por título
204
“Analfabetismo letrado” . Álvaro Moreira, integrante do “clube de antropofagia do

rio de janeiro”,205 sintetiza a crítica em duas frases substantivas: “Literatura. Burrice.”206

O reiterado desprezo que pode ser observado, no âmbito da Revista de

Antropofagia, em relação à figura do literato se desdobra na rejeição do “meramente

literário”. Oswaldo Costa, sob o pseudônimo Tamandaré, desqualifica o “ensaio sobre a

tristeza brasileira” com a frase substantiva “Tudo literatura”. 207 O mesmo Tamandaré

afirma, em outro texto, que o erro do modernismo até ali era sua “preocupação estética

exclusiva”. 208 No mesmo sentido, Aquiles Vivacqua, no texto da publicação paulista já

referido, afirma que

[a]tingimos o ultimo momento da insinceridade. Porque o traço


principal da psicologia do nosso povo, não tem como
caracteristica, uma individualidade exclusivamente literária,
artística, inexpressiva, marcada tão-sómente pela psyche dos
intrusos. 209

Tal passagem ecoa outra do mesmo autor, comentada no capítulo anterior,

ampliando sua abrangência:

Estamos numa phase em que todo o espirito da nova e velha


intellectualidade, abandonando a prosa, volta-se para a poesia.
Atingimos o ultimo momento da insinseridade. O traço principal
da psychologia do nosso povo, formado da influencia de tres
elementos ethnicos, não cria, como característica da nossa psyché,
uma individualidade literária marcada somente pela poesia. 210

203
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 6.
204
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 12.
205
Cf. “Expansão antropofágica: clube de antropofagia do rio de janeiro” em Revista de Antropofagia, 2ª
Dentição Nº 10.
206
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 5.
207
“Moquém I – Aperitivo” em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4.
208
“Moquém II – Hors D’oeuvre” em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 5.
209
“a proposito do homem antropófago” em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 7.
210
“Poetas” Semana Illustrada, Nº85. 30 de março de 1929.

149
No mesmo sentido, um texto publicado em leite criôlo propõe, como solução para

a “ausência de leitores” frequentemente mencionada pelos modernistas, que se

esqueçam as letras e que seja escrita uma outra literatura, a do trabalho. 211

Observa-se nos exemplos citados uma relação paradoxal com a literatura e com o

literário. Se por um lado tanto a Revista de Antropofagia quanto leite criôlo pretendem

estender sua atuação para além do estritamente literário, tratando de questões políticas e

culturais mais amplas,212 por outro, a própria formação eminentemente literária dos

escritores envolvidos os leva a continuar a multiplicação de metáforas e a fixação de

tipos literários. Mas a ideia de que a interpretação do Brasil –, interpretação que os

intelectuais da geração modernistas sentiam como a sua missão específica – podendo se

desenvolver fora da produção estritamente literária daria frutos, como se sabe, na

década seguinte, quando muitos dos escritores que estrearam como poetas ou críticos no

âmbito da rede nacional modernista se tornariam estudiosos da história e da cultura

nacionais, entre eles João Dornas Filho, Luís da Câmara Cascudo e Sérgio Buarque de

Holanda.

Outro traço comum da Revista de Antropofagia e de leite criôlo que também

anuncia transformações no meio intelectual e literário de então é a afirmação

constantemente reiterada de uma certa distância em relação ao Modernismo. Na

publicação paulista se afirma em certo ponto que o movimento teria produzido de valor
213
apenas Macunaíma e cederia agora à “descida antropofágica”. Em outro, se critica o

“comadrismo” que caracterizaria o Modernismo.214 A publicação mineira ecoa

211
“variações sentimentais sobre um problema frio”, de Fidelis Florêncio (Wellington Brandão), em
LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de julho de 1929.
212
Segundo a entrevista de João Dornas Filho no “órgão da antropofagia brasileira de letras”, “o
criôlismo – como a antropofágico – é um movimento literario, filosófico e religioso”. Cf. “a propósito do
movimento criôlo” em Revista de Antropofagia 2ª Dentição Nº 11.
213
“Moquém I – Aperitivo”, de Tamandaré (Oswaldo Costa) em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº
4.
214
“Moquém II – Hors D’oeuvre”, de Tamandaré (Oswaldo Costa) em Revista de Antropofagia, 2ª
Dentição Nº 5.

150
fortemente tal linha de raciocínio, apesar de não atacar diretamente nenhuma figura da

rede modernista nacional. Em uma resenha da publicação modernista baiana Arco &

Flecha, Guilhermino César condena o movimento afirmando que “a camaradagem (...)


215
tem sido uma falta das magras revistas no Brasil”. Já uma resenha da revista

Montanha coloca que “[n]ão é mais occasião (sic) de discutir modernismo. De discutir
216
em vez de agir.” Em outros textos, também tratando de publicações da rede

modernista nacional, uma certa saturação com as temáticas privilegiadas pelo

nacionalismo modernista pode ser observada. Em um deles se critica a “procura [de um]
217
sentimento postiço de indianismo de gabinete”. Talvez tal argumentação ecoe a
218
recusa antropófaga ao “guarani de Alencar dansando (sic) valsa”. Mas em “Voses

(sic) nóivas (sic) da baia”, de Guilhermino César219 – sobre a poesia de um integrante do

grupo de Arco & Flecha – aparece uma desqualificação bem mais ampla das temáticas

do nacionalismo modernista. Ali se elogia o poeta por indicar “até cogitações poeticas

longe da febre olhemos o Brasil”. Constata-se aí tendência similar àquela expressa por

João Alphonsus em um dos textos, analisados no segundo capítulo, em que ataca leite

criôlo e a antropofagia:

A obrigatoriedade de themas brasileiros na poesia nacional creou,


como era de se esperar, uma falsa brasilidade de rethorica poetica a
que poucos ou nenhuns [sic] consiguiram escapar. 220

Nota-se que, dentro de todo o espectro de um modernismo agora rachado em

tendências opostas, existia a ideia que de alguma forma o movimento estava esgotado.

Mas a formação da rede modernista nacional coincidindo com a adoção de uma retórica

nacionalista – e de um estilo poético a ela vinculado – pelo movimento ainda era uma

215
“Paizagem” em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 2
216
“novidades literárias: Montanha” de Oswaldo Abrita em LEITE CRIÔLO Nº IX, 28 de julho de 1929.
217
“Montanha” de Aquiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929.
218
Cf. “Uma adesão que não nos interessa” de Porominare (pseudônimo) em Revista de Antropofagia, 2ª
Dentição Nº 10.
219
LEITE CRIÔLO Nº IX (10º), 11 de agosto de 1929.
220
“De Negra Fulô a Freud” em ESTADO DE MINAS, 15 de setembro de 1929.

151
força no campo literário. Essa trajetória embasava, inclusive, a admiração dos jovens

escritores por Oswald de Andrade. A poética teorizada em seu Manifesto Pau Brasil e

demonstrada no livro de poemas correspondente era, além de ainda muito citada nas

publicações da rede modernista, 221 o modelo de inúmeros poetas. Às vezes de forma

bastante direta, como se observa da comparação do poema de Pau Brasil, “vício na

fala”, com um poema publicado em leite criôlo, “Pedra menina”, de Fonte Boa:

Para dizerem milho dizem mio


Para melhor mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
(ANDRADE, 2000, p. 80)

Pedra menina
Ou!
Pedra morena
Ou!
Vamo pra riba
Ou!
Pra agradá sinhá
Ou!
Pra agradá sinhô
Ou!
Pedra menina
Ou!...

E a essa cantiga embaladora


Os homens suarentos
vão construindo, construindo222

Observa-se logo uma lógica construtiva similar. A repetição variada na primeira

parte de ambos os poemas foca uma forma cultural alheia à normatividade erudita

ocidental, os “vícios na fala”, no caso de Oswald, uma cantiga, no caso de Fonte Boa.

Se segue justaposta, nos dois casos, uma observação sobre a presença simultânea do ato

221
“variações sentimentais sobre um problema frio”, de Fidelis Florêncio (Wellington Brandão), em
LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de julho de 1929, menciona o conceito de poesia de exportação; em “Zé Prequeté
andando atôa...”, de Cyro dos Anjos, em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 8, do qual
tratamos nas seções anteriores deste capítulo, o personagem principal aparece derrubando tudo que não
fosse “páo brasil (sic) e outros páos patricios”; em “Antropofagia”, de Clóvis de Gusmão em Revista de
Antropofagia, 2ª Dentição Nº 4, aparece a exclamação que definiria “uma arte toda nossa”: “Pau Brasil!”
222
LEITE CRIÔLO Nº III, 16 de junho de 1929.

152
literal de construir à expressão de uma “construção” cultural de caráter popular descrita

nos versos anteriores. Tanto temática como formalmente, os textos se apresentam como

bastante semelhantes.

Nosso foco nesta seção tem sido as possíveis convergências e afinidades

programáticas e textuais entre leite criôlo e Revista de Antropofagia, enfatizando a

presença de uma linha não ortodoxa no âmbito do “órgão da antropofagia brasileira de

letras”. Como já mencionados, o intuito era investigar a possibilidade da convivência de

programáticas tão diferentes em duas publicações que se mantiveram coligadas durante

um período de tempo não desprezível, em especial se considerarmos a volatilidade das

tomadas de posição no interior da rede nacional modernista daquele momento. Mas é

importante retomar as diferenças programáticas entre o grupo paulista e o mineiro. Estas

aparecem em especial nas dimensões mais explicitamente políticas dos respectivos

programas, incluindo o pensamento racial.

A dimensão de política que interessa neste caso seria a dos valores políticos, para

além das questões eleitorais, que exploramos no segundo capítulo, e mesmo das

ideologias explícitas. É importante enfatizar este ponto, dada a convenção difusa que o

conservadorismo cultural e político no âmbito do modernismo seria exclusividade da

vertente verde-amarelista, de cujas hostes sairiam nos anos 1930 expoentes do

Integralismo e da ditadura estado-novista. O modernismo conservador tenderia, assim,

ao fascismo e o progressista, ao socialismo. Mas em leite criôlo, cuja dimensão

programática pode ser qualificada sem reserva como politicamente conservadora, se

fazem presentes condenações ao fascismo, 223 cuja ascensão ao poder na Itália se dera

em 1922, que ecoam rejeição semelhante na Revista de Antropofagia. 224

223
Em entrevista sobre leite criôlo no jornal Correio de Minas em julho de 1929, João Dornas Filho faz
blague afirmando a sua vontade de “matar Mussolini” (apud BUENO, 1982, p. 101); já o texto “Segundo
Congresso das Estancias Hydro Mineraes”, de Francisco L. Martins, em LEITE CRIÔLO Nº XII (13º), 25

153
As diferenças se dão em um nível mais profundo. Como temos desenvolvido aqui,

percebe-se no pensamento “criolista” uma tendência a desqualificar a figura do

brasileiro, síntese dos “males da nacionalidade”, como ignorante, pretensioso,

preguiçoso e doente. A solução para tal estado de coisas, questão a ser desenvolvida no

próximo capítulo, seria a ação de uma elite técnica e intelectual capacitada para tanto,

tendo a população como foco passivo das mudanças.

A tal perspectiva – de potencial autoritário evidente – correspondia, na

antropofagia, uma autêntica, ainda que idealizada, crença no potencial dos brasileiros.

Restabelecendo a tensão entre nacional e estrangeiro em termos classistas, se afirmava

na Revista de Antropofagia que “no Brasil ha a distinguir a elite, européa, do povo,

brasileiro” 225 e se denunciava um “desdêm (sic) civilizado pelo Brasil”. 226 A rejeição à

visão elitista dos “males do Brasil” pela antropofagia pode ser sintetizada no seguinte

texto não assinado, que apareceu na seção de tipo editorial “de antropofagia” no último

número da publicação paulista:

A falta de carater que certos pessimistas observam no Brasil não é


no povo que se nota, é numa certa elite. Na elite romântica,
saudosista, que ainda crê na retorica, nos principios de Aristoteles
e nos bons sentimentos portuguezes, que não tem olhos para ver a
nossa realidade, na elite submissa ao Ocidente, na elite que
perpetua a bambachada do governador geral roubando no
confessionario o ouro de nossas minas.227

Postura semelhante se dava em termos de pensamento racial. Uma citação do

marxista russo Plekhanov intitulada “as raças”, publicada na Revista de Antropofagia,

de agosto de 1929, ironiza um orador que fala de Mussolini como um expoente do pensamento
democrático.
224
“somos contra os fascistas de qualquer especie e contra os bolchevistas tambem de qualquer especie”
afirma Freuderico em “de antropofagia”, Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 1; o mesmo Freuderico
ataca Mennoti Del Picchia chamando-o de poeta fascista, “Analfabetismo letrado” em Revista de
Antropofagia, 2ª Dentição Nº 12.
225
“de antropofagia” por Japy-Mirim em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 2.
226
“Moquém V – Cafezinho” por Tamandaré (Oswaldo Costa) em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição
Nº 8.
227
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 15.

154
afirmava, nos termos ambíguos do neo-lamarquismo que discutiremos no capítulo

seguinte, que a

posse de um certo fundo de civilização (...) nada tem haver de


comum com a raça em si. Mas uma vez que um certo estado de
civilização é atingido, exerce incontestavelmente influencia sobre
as qualidades fysicas psyquicas da raça.228

Mais até que a relativamente precoce distinção entre raça e civilização

(preferiríamos talvez atualmente a palavra cultura), contrasta com o pensamento racial

expresso no ideário “criolista” uma série de textos do “órgão da antropofagia brasileira

de letras” que enfatiza a figura do negro como vítima de preconceito e protagonista da

própria história. A citação de um dito popular racista é intitulada como “preconceito”.229

No poema “Si eu fosse um poeta negro” de Julio Paternostro, o eu-lírico – cujo caráter

hipotético e desvinculado das figuras tanto do autor, como do escritor, é explicitado no

título – se posiciona em relação à noção da disponibilidade sexual da mulher negra:

[O amor na minha terra]


é igual à raiva
que eu tenho dos brancos
que mexem com meu bem
quando passa na calçada 230

Também a história do Brasil é revista sob o mesmo prisma. No artigo “Porque me

ufano de meu paiz” são justapostos trechos do historiador português Oliveira Lima e do

brasileiro Oliveira Vianna. Segue no texto a conclusão de que, apesar de justificar

racialmente a escravidão, Lima consegue admirar a experiência “social da republica de

Palmares”, enquanto Vianna se limita a considerar os quilombolas um perigo para a

civilização. 231

Um último e mais significativo documento da diferença, no que toca ao

pensamento racial, entres os grupos paulista e mineiro, seria uma pequena nota

228
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 9.
229
“Negro em festa de branco é o primeiro que chga e o derradeiro que come” no texto “da sucursal
(clube de antropofagia no rio de janeiro) – sabença nacional”, Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 3.
230
Assinado com pseudônimo Pater em Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 12.
231
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 9.

155
respondendo a um ataque à Revista de Antropofagia estampado em um jornal da colônia

italiana. Afirmava-se ali, em italiano, que o conteúdo da revista não era digno de

brasileiros e sim de etíopes. O artigo responde que os “brasileiros não se envergonham

do sangue africano nas suas veias”. O mais importante, porém, é o título, “A pedidos –

com o centro cívico palmares”. 232 Trata-se em todo o escopo do presente trabalho da

única referência explícita no interior da rede nacional modernista à crescente atuação

dos movimentos negros brasileiros – citando, no caso, o Centro Cívico Palmares,

fundado em 1926 com o programa de “elevação política, moral e cultural” do negro

(DOMINGUES, 2007, p. 148).

Percorridas múltiplas trilhas – desde pormenores textuais a concepções políticas

amplas – que aproximam e contrapõe três marcos do modernismo paulista a leite criôlo,

trataremos no capítulo seguinte das articulações entre pensamento racial e

transculturação narrativa no âmbito da publicação “criolista”, incluindo seus vínculos

profundos com a rede modernista nacional.

232
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 7.

156
5. Eugenia para a alma brasileira: pensamento racial,
primitivismo e transculturação narrativa nos anos 1920.
Eugenia. Galton teve idéa. Ahi está uma cousa bôa para
corregir a incuria da nacionalidade. Eugenia, pois, para
ela. Não sei se o momento já é oportuno. Pouco importa.
Servirá pelo menos para despertar o caracter nacional,
aquietado ainda numa organização hereditaria, após
viver à sombra do negro. Borrão tapando nossa cara de
gente. Civilizada até. Como dizem por ahi. (...)
Presentemente o que nos interessa é entrar em conflito
com a nostalgia. Eugenia para a alma brasileira.
Eugenizar. Não o negro. Esse, por si mesmo, se anula
pela mestiçagem. Todo Brasil, sim. Fazel-o [sic] feliz.
Obter selectivamente typos que melhore[m] a raça. Como
Backwell, criador inglez de gado. Mas ao envez de
obtermos, como ele, mais carne que osso, vamos
conseguir mais alegria que nostalgia.

– “Defeza da alegria”, de Aquilles Vivacqua, LEITE


CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 7.

Tratamos até aqui de leite criôlo no âmbito do modernismo brasileiro. Detectamos

sua inscrição reduzida no que denominamos memória monumental do modernismo.

Vimos como tal forma de inscrição contradiz aparentemente seu alto grau de inserção

na rede modernista nacional do final dos 1920. Abordamos também – no mesmo sentido

de afirmar a publicação como relativamente típica do modernismo de então – a

dispersão de temas e gêneros em leite criôlo. Identificamos, assim, como o núcleo

programático da publicação não se sobrepõe às principais tendências modernistas do

momento. Partindo, em seguida, exatamente do núcleo programático “criolista”, foram

trabalhados os múltiplos espaços de diálogo entre a publicação belorizontina e três

marcos do modernismo paulista do final dos anos 1920: a antropofagia oswaldiana,

Macunaíma e Retrato do Brasil. Desta forma, o quase esquecido leite criolô se prestou

a leituras talvez pouco usuais de alguns dos principais momentos da experiência

modernista brasileira e, em especial, das possíveis relações entre eles.

É necessário agora ir além da moldura, de certa forma confortável, do

modernismo. Poderia leite criôlo servir para ampliar a compreensão das relações entre

157
poder, cultura e “raça” em um momento constantemente reafirmado como fundador de

certa compreensão da nacionalidade brasileira? Talvez o melhor argumento em favor

deste tipo de exploração, que aqui se fará apenas em forma de esboço, seja que a

publicação belorizontina produz um discurso articulado sobre a “raça negra” dentro de

um quadro histórico no qual esperamos que se fale – de uma forma bastante específica,

por sinal – de “cultura negra”. O mais escandaloso da retórica “criolista” é o fato que

esta não constitui escândalo algum no quadro do modernismo primitivista, ao qual

vimos que leite criôlo era intensamente vinculado.233 O que significaria tal fato, posto

que o nacionalismo primitivista dos modernistas tende a ser pensado como uma

contraparte literária do culturalismo de ensaístas dos anos 1930, especialmente da

tradição sintetizada em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda?

Neste capítulo pretende-se investigar tal questão em relação ao conceito clássico

de transculturação narrativa. Como se sabe, Angel Rama chegou a sua formulação a

partir do conceito de transculturação formulado pelo antropólogo cubano Fernando

Ortíz (RAMA, 2008b, p. 39). Tal associação é em si interessante na medida em que

remete o conceito ao próprio contexto do culturalismo do entre-guerras,234 através do

qual a produção literária do modernismo nacionalista brasileiro costuma ser enfocada.235

Mas, como argumenta Alberto Moreiras (2001, p. 222), a fundamental formulação do

grande crítico uruguaio carece de distinguir a transculturação enquanto dado histórico-

antropológico, constatável nas sociedades latino-americanas, do projeto estético,

cultural e político de uma literatura programaticamente transculturada. Rama não chega

a afirmar que as narrativas seriam transculturadas devido ao fato de que as sociedades

233
Ronaldo Vainfas (2002, p. 18) já havia notado de maneira semelhante que o racialismo de Paulo
Prado em Retrato do Brasil não gerara polêmica alguma na época.
234
O próprio Rama (2008b, p. 77) traça implicitamente o paralelo, muitas vezes apontado, entre Ortíz e
Gilberto Freyre.
235
Macunaíma, para Rama (2008b, p. 138-139), seria inclusive um dos exemplos-chave de
transculturação narrativa. Além disso, o autor afirma que o Brasil teria se mostrado um campo
especialmente fértil para esse tipo de experiência literária.

158
também o seriam. Mas, nas articulações que propõe, tal hipótese aparece quase como

um pressuposto. Rama mesmo providenciou fortes argumentos contra tal leitura.

Primeiramente através da análise de certo localismo “de fachada”, indigenismo e/ou

regionalismo, que insistiria sub-repticiamente na distância do narrador e do escritor em

relação a seu tema (RAMA, 2008b, p. 16, 48), o que implicaria certa opacidade entre a

sociedade e a escrita transculturadas. Mais relevante ainda é a sua conceituação da

cidade letrada (RAMA, 1985) enquanto forma típica de articulação entre escritura,

cidade e poder na América Latina – que acarretaria o fato de que a relação com a leitura,

a escrita e, especialmente, com a literatura tenha permanecido privilégio de um grupo

social extremamente reduzido (sem dúvida no contexto que nos interessa e, de certa

forma, até hoje). Cabe discutir, então, a oscilação entre a dimensão descritiva e a

propositiva da transculturação narrativa de Angel Rama em relação a oscilações

semelhantes em noções-chave como “cultura” e “povo’.

Parte do interesse do conceito de transculturação reside no fato de, ao contrário de

proposições semelhantes como “mestiçagem cultural”, se omitir nele o desconfortável

vínculo com uma das noções fundamentais dos discursos brasileiro e latino-americano

da primeira metade do séc. XX: a ideia de “raça(s)”. Nosso interesse aqui é exatamente,

porém, focar nas relações complexas entre as noções de “raça” e de cultura invocadas

no contexto em questão. Apesar de trabalhado pontualmente de forma bastante

satisfatória, o processo de transformação pelo qual passa o pensamento racial brasileiro

a partir do final dos anos 1910 até a década de 1940, tendo possivelmente como pontos

críticos as décadas de 1920 e 1930 – comumente descrito como sendo o do

aparecimento das noções de “democracia racial” e “nação mestiça” – ainda permanece

em muitos pontos obscuro e mal compreendido. Uma primeira distinção necessária

consiste em reiterar que o foco da presente análise é o pensamento racial, posto que

159
existe uma certa tendência a ignorar a importante diferenciação entre racismo e

racialismo proposta por Tzvetan Todorov. O autor búlgaro distingue o racismo

enquanto comportamento, ou seja, enquanto prática social, do racialismo enquanto

ideologia, no sentido de doutrina referente às supostas “raças” humanas. Segundo ele o

“racista comum não é um teórico, não é capaz de justificar seu comportamento por

argumentos ‘científicos’” (TODOROV, 1993, p. 107-112). Portanto para o estudo da

cultura da prática racista no Brasil, as infames “piadas de preto” que infelizmente a

maior parte dos brasileiros ouviu em um ou outro momento de sua vida são mais

importantes que os textos de Gobineau, por mais que estes textos tenham tido ampla

aceitação nos círculos da elite brasileira da segunda metade do séc. XIX ao começo do

XX. É óbvio que o racialismo pode legitimar e realimentar o racismo, mas a

deslegitimação das concepções raciais não implica automaticamente a eliminação, nem

mesmo o combate às práticas racistas. Temos por hipótese, inclusive, que o

desaparecimento gradativo das formas mais explícitas de racialismo não eliminou

muitos dos seus pressupostos, não se articulando em um primeiro momento com as

correntes denunciadoras do racismo na sociedade brasileira. Trataremos aqui

rapidamente do pensamento científico brasileiro sobre raças e miscigenação – em

especial nos âmbitos da eugenia, do sanitarismo e da antropologia – e das suas

repercussões no discurso mais amplo sobre a nacionalidade, incluindo aí leite criôlo e

outros produtos da rede modernista nacional. Sobre esta questão é necessário

desconstruir dois mitos: o de que o racialismo brasileiro seria mera cópia do europeu e o

de que tal forma de reflexão sobre a nacionalidade seria apenas um resíduo do

pensamento do século XIX. Contra tais tendências cabe a investigação de como “raça” e

cultura, branqueamento e miscigenação, se confundem e se diferenciam nas discussões

da intelectualidade brasileira de então.

160
Em um terceiro momento, iremos trabalhar com as disputas simbólicas em torno

do “tipo” (personagem-emblema) da Mãe Preta. Tais disputas colocam em cena tanto as

produções da rede modernista nacional, leite criôlo em especial, quanto as pequenas

publicações, as quais tem sido denominadas conjuntamente como imprensa negra

paulista (Cf. FERREIRA, 1986). Ambos os polos eram naquele momento mediados

pela presença continuada do “tipo” da Mãe Preta na grande imprensa carioca e paulista,

através das propostas de construção de monumentos em sua homenagem. 236 A imprensa

negra constitui um contraponto bastante útil às formulações “criolistas” a respeito de

“raça” e nacionalidade. Trata-se de uma das raras formulações discursivas registradas

nos anos 1920 nas quais se denuncia explicitamente o racismo brasileiro e, ao mesmo

tempo, se mobiliza de forma própria um repertório simbólico bastante próximo do

periódico modernista mineiro – caso não apenas da figura da Mãe Preta, mas também

da abolição da escravidão. Os periódicos negros também são documentos privilegiados

das tensões e dificuldades que marcam a emergência de formas de transculturação

propositiva, seja em termos de narrativa ou de outras formas de crítica cultural.

Preocupados com o que denominam de “elevação social e cultural do negro”, os jornais

negros, assim como as associações negras com as quais muitas vezes se vinculam,

procuram reiteradamente uma respeitabilidade que vislumbram tanto na aproximação de

uma retórica que seria considerada – no âmbito da rede modernista nacional –

“passadista”, quanto no distanciamento de formas culturais consideradas tipicamente

negras, objetos privilegiados do primitivismo modernista. Ou seja, a corajosa e isolada

resistência às perspectivas do branqueamento biológico se associa à aceitação de um

branqueamento cultural. Tais estratégias culturais são claramente decorrentes de uma

ordem simbólica quase inteiramente hostil às reivindicações anti-racistas. Além disso, a

236
Curiosamente não encontramos nos jornais mineiros do período menções a tais propostas ou propostas
análogas.

161
raridade do acesso ao letramento e à escola no Brasil de então implicava que muitos dos

jornalistas da imprensa negra eram autodidatas. Tudo isto significa que estes

improváveis intelectuais negros das primeiras décadas do séc. XX se adequavam à

perfeição na caricatura do “criolismo” veiculada no periódico modernista mineiro. Tal

aproximação é interessante na medida em que coloca o encastelamento conservador na

alta cultura de temática “primitiva” do grupo de leite criôlo em relação à emergência de

outros atores culturais que não se enquadram na sua concepção narcisista de como

deveria ser o intelectual brasileiro.

É necessário então voltar a uma questão especificamente literária: como o

primitivismo modernista reintroduz o caráter distinto de objeto artístico “elevado” a

partir de referentes e linguagem “primitivos”? Em outras palavras, como a apropriação

poética do erro gramatical incluída enquanto liberdade poética no texto modernista se

diferencia da incompetência e ignorância linguísticas, cujo espaço em leite criôlo seria a

seção “Raça”? Para enfrentarmos tal ponto cabe voltar ao conceito de primitivo e às

manifestações do primitivismo no âmbito das vanguardas europeias das primeiras

décadas do século vinte. A partir daí, pretendemos mostrar como a posição ambígua do

artista erudito “primitivista” se apresentava de modo especialmente desconfortável em

um país com quase nenhuma tradição intelectual reconhecida internacionalmente e

como os modernistas brasileiros trataram essa questão.

Como amostra final da complexidade das relações entre poder, cultura e raça,

entre transculturação no sentido antropológico e no sentido propositivo, de que a análise

de leite criôlo quase que obriga a tomar conhecimento, trataremos de um caso sui

generis de transculturação narrativa que aparece nas páginas do periódico belorizontino

à revelia das suas preocupações programáticas.

162
Enumerados assim os focos propostos podem parecer demasiadamente dispersos.

Por isso talvez valha a pena recorrer a dois casos exemplares, que não envolvem

diretamente o grupo “criolista”, de como questões estéticas, científicas e políticas se

entrecruzam no contexto enfocado. Ambos envolvem a rejeição de monumentos pelas

próprias pessoas que os propõe.

No primeiro capítulo desenvolvemos a ideia de monumento como metáfora crítica

capaz de articular a valoração cultural, o poder social e a presença de certa

representação do passado no presente das práticas culturais. O período histórico aqui

enfocado tem, no entanto, um grande interesse na construção de monumentos no sentido

mais literal e convencional do termo: estátuas erigidas em espaço público representando

símbolos ou figuras considerados importantes. 237

Jerry Dávila (2006, p. 47-52) descreve como, em 1938 – nove anos após a publicação de

leite criôlo e cinco depois da de Casa Grande & Senzala –, Gustavo Capanema,

ministro de educação e saúde do governo Vargas, se via insatisfeito com o projeto da

estátua do “Homem Brasileiro” por ele encomendada ao escultor Celso Antônio. A

escultura era destinada à moderníssima sede do ministério projetada por Le Corbusier,

Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. O próprio Capanema havia feito parte do primeiro

grupo de modernistas de Belo Horizonte, tendo levado Carlos Drummond de Andrade

para o ministério na função de chefe de gabinete e colaborado ali ocasionalmente com

os principais representantes da concepção modernista de nacionalidade, incluindo Mário

de Andrade. O projeto de Celso Antônio não destoava muito da representação típica do

“brasileiro” na arte moderna daquele momento, “um caboclo, um homem das matas, de

237
É curioso que, apesar de atualmente se trabalhar de maneira intensiva a monumentalização de obras e
artistas, os monumentos físicos e, em especial, as estátuas estejam aparentemente fora de moda. Melhor
demonstração disto são exatamente as estátuas que são feitas atualmente de escritores. Eliminando o
pedestal e colocando os escritores em atitudes relaxadas – em geral em frações do espaço urbano
diretamente ligadas à sua biografia e/ou à sua obra – tais estátuas monumentalizam o espaço ao seu redor,
não sendo elas próprias o foco da monumentalização.

163
raça mestiça”, retratado sintomaticamente com uma barriga protuberante (indício de

amarelão?) (DÁVILA, 2006, p. 49). Capanema rejeitou tal conceito, pois desejava que

fosse retratado o homem brasileiro do futuro, “o melhor exemplar da raça”. E levou a

questão de como seria fisicamente o brasileiro que emergiria da transformação nacional

empreendida pelo Estado Novo para um grupo de antropólogos e intelectuais. Todos

eles – não apenas defensores claros da “arianização”, como Oliveira Vianna, mas

também representantes da concepção de Franz Boas de que não haveria desigualdade

fundamental entre raças, como Edgar Roquette Pinto – previam que o brasileiro ideal do

futuro seria branco, nada devendo a “tipos raciais” que mais cedo ou mais tarde

desapareceriam. O monumento acabaria não sendo construído. Nota-se aí como uma

obra de arte investida da função de representar positivamente a nacionalidade do futuro

não poderia se valer de uma forma/temática considerada legítima para a representação

do presente e do passado da nação – basta lembrar que o ministério de Capanema foi um

dos maiores compradores do modernismo nacionalista de Cândido Portinari. Mais

curioso ainda é que a questão seja remetida a uma solução “científica” e que a opinião

dos especialistas se enquadre tão consensualmente no âmbito do branqueamento

biológico em um momento no qual as formas de pensamento culturalistas são

amplamente influentes.

Já nas memórias do militante da imprensa negra José Correia Leite, que nos anos

1920 publicava em São Paulo o periódico Clarim D’Alvorada, o monumento em

questão era o da Mãe Preta (LEITE, 1989, p. 40, 97-99). Como veremos mais adiante,

Correia Leite se apropriou, em 1928, da movimentação na imprensa carioca em favor de

tal monumento, para lançar a proposta de instituir o dia 28 de fevereiro (data da Lei do

Ventre-livre) como dia da Mãe Preta e reivindicar este “tipo” como um símbolo da luta

contra as injustiças raciais. Para ele, “na realidade, o monumento seria em homenagem à

164
raça negra simbolizada na figura da Mãe Preta. A imagem dela ficaria no pedestal e em

volta vinham figuras do processo de luta e trabalho do negro na formação do Brasil”

(LEITE, 1989, p. 40). A proposta chegou a transitar nos meios oficiais, mas acabou

sendo soterrada no contexto da Revolução de 1930. Vinte e cinco anos depois foi

construído um monumento à Mãe Preta no Largo do Paissandu, prontamente rejeitado

por Correia Leite. Incomodava o militante não apenas que a parte relativa à luta e ao

trabalho do negro tenha ficado de fora, mas também que

para realizar [a escultura] escolheram um escultor modernista e


fizeram aquilo que está lá. Até hoje eu sou contra aquilo. Se fosse
uma branca não permitiriam que um artista fizesse uma figura
deformada como aquela. Por que não fizeram como um José
Bonifácio que tem ali na Praça Ramos, o Anchieta, da Praça da Sé,
todos os outros monumentos com traços bonitos? Por que fazer
uma negra descomunal (...)? (LEITE, 1989, p. 99)
Encontra-se evidenciado aí não apenas o gosto claramente “passadista” de Correia

Leite, mas também um questionamento do modernismo primitivista como a forma

apropriada de representar negros, mas não brancos, no espaço público.

Transculturação narrativa e cidade letrada

Para Angel Rama (2008b, p. 17-18), a emergência das formas de escrita literária

descritas na chave da transculturação narrativa238 responde a uma questão que ronda as

literaturas latino-americanas desde os processos de independência do séc. XIX: qual

seria seu lugar e sua importância no interior da “literatura ocidental”, modelo único de

cultura legítima para os intelectuais criollos239 de então? Para o crítico uruguaio, a

resposta a tal questão seria dada ainda no âmbito do romantismo – a literatura latino-

americana (pensada naquele momento mais em termos nacionais que continentais) seria

238
Usaremos sempre aqui a expressão transculturação narrativa, tal como Rama, independente de
tratarmos de prosa ou verso. Para o que nos interessa neste capítulo, parece ser menos importante a
caracterização de gêneros literários específicos do que a definição de uma forma de escrita literária estrito
senso remetida à ideia de transculturação.
239
Usamos aqui criollo no sentido usual da América espanhola, ou seja, branco nascido na América
Latina e, por extensão, a classe dominante latino-americana no período pós-independência. Na tradição de
vários estudos comparativos sobre a América Latina, incluindo Rama (2008b) e Benedict Anderson
(2008), aplicamos aqui o termo também ao Brasil. Nota-se a dessemelhança total desse com o termo
crioulo, designação por vezes pejorativa do negro, presente no português brasileiro.

165
original por ser representativa da originalidade (diferença em relação ao modelo

europeu) inscrita na própria realidade do continente. Nota-se aí uma relação ambígua

com a normatividade cultural-literária europeia. O desejo de a ela se integrar implica

focar no que para ela é diferença. Em outras palavras – na famosa formulação que

Mário de Andrade fez da questão, partindo de Graça Aranha (Cf. MORAES, 1978) – só

é possível ser universal sendo nacional.

No entanto, ainda na visão de Rama, uma escrita verdadeiramente transculturada

apareceria apenas em um momento posterior, em meados do séc. XX. O elemento que

faltaria para o seu aparecimento seria a possibilidade de uma visada antropológica

renovada, em um primeiro momento a partir de estudos como o de Lévy-Bruhl sobre a

“mentalidade primitiva” (RAMA, 2008b, p. 59), fonte importante do primitivismo

vanguardista que discutiremos adiante. O crescente questionamento da lógica racional

ocidental, no interior da própria intelectualidade europeia ou europeizada, teria como

contrapartida textual a remoção da distância do narrador regionalista ou indigenista da

língua e da visão de mundo dos seus personagens no âmbito da transculturação narrativa

(RAMA, 2008b, p. 48 e 54). Mas como veremos adiante, tal paralelo forma

literária/posição político-cultural não se apresenta desta forma não apenas em leite

criôlo como, possivelmente, na maior parte das obras concebidas no âmbito da rede

modernista nacional.

De acordo com Cornejo Polar (1996), o conceito de transculturação, trazido para a

compreensão das narrativas por Rama a partir do seu emprego pelo antropólogo

Fernando Ortiz, representaria um tentativa de afinar epistemologicamente a noção de

mestiçagem cultural – vaga, intuitiva e, no entanto, extremamente atraente para os

intelectuais latino-americanos do século XX. Para o crítico peruano, ambos teriam em

comum descreverem inicialmente fenômenos extraliterários, seja a mistura das “raças”

166
característica da chamada América Latina, seja a interação de saberes culturais dos

povos nativos da América, dos conquistadores europeus e das nações africanas

escravizadas. Daí segue que as narrativas, incluindo a literatura, seriam transculturadas

porque a realidade social também se apresenta como transculturada.

Tal formulação coloca certas dificuldades para além da questão clássica da

possibilidade e da forma de vinculação entre literatura e sociedade: como já foi dito, a

emergência de uma literatura culta declarada e profundamente transculturada – cujo

paradigma para Rama seria a obra de José María Arguedas – data de meados do séc.

XX, em um momento no qual a transculturação da vida cotidiana, das formas de

trabalho, de devoção, etc., datava já de séculos na maior parte da América Latina. Por

que a literatura, na sua definição europeia tradicional, seria um dos últimos recantos da

cultura a se impregnar pelas misturas e interações dos saberes, crenças, etc.?

Outro ponto a ser considerado sobre o paradigma da transculturação é a espécie de

telos homogeneizante que de certa forma está implícito neste conceito. Partir-se-ia de

uma cultura autóctone em interação com uma cultura conquistadora e o seu duplo

contemporâneo, a infindável modernização. Ao cabo do processo de transculturação

chegar-se-ia, enfim, a uma nova cultura orgânica e homogênea, dissipando assim a

sombra de uma “inautenticidade” cultural que durante tanto tempo assustou a

intelectualidade latino-americana. No entanto, mesmo se excluindo a questão mais

profunda da existência ou não de culturas inteiramente orgânicas e homogêneas, o que

se constata em todo o continente depois de mais de um século de modernizações é uma

diversidade cada vez maior. No sentido de recuperar o conceito de transculturação das

conotações homogeneizantes já mencionadas, tem se recorrido ao conceito de Cornejo

Polar de heterogeneidade cultural. Tal conceito enfatiza que, apesar ou mesmo por

causa dos processos de transculturação, operariam simultaneamente múltiplos circuitos

167
culturais nas sociedades latino-americanas, constatação à qual Angel Rama (2008a)

também chegaria em seu texto “Sistema literário e sistema social na América

Hispânica”. Assim, Raúl Bueno (1996) defende que a transculturação seria um processo

contínuo, enquanto a heterogeneidade seria um produto dinâmico, ambos derivados das

realidades sociais, culturais e literárias latino-americanas. Desenvolvendo a relação

entre os dois conceitos, talvez seja possível afirmar que os processos transculturadores

são eles mesmos heterogêneos, que a interação entre determinados elementos culturais

pode se dar muitas vezes e de forma sempre diferenciada.

Mas, como já foi colocado, apesar das infinitas possibilidades de transculturação

narrativa que a complexa e conflituosa realidade latino-americana propicia, a cultura

culta permaneceu por muito tempo – e em muitos sentidos, ainda permanece – alheia a

tal multiplicidade. Neste ponto é fundamental o outro grande conceito de Angel Rama

(1985), o de cidade letrada. Com ele o crítico uruguaio almeja dar conta da relação

duradoura entre escritura, cidade e poder no continente. Partindo da forma como se

articulou no período colonial uma casta de intelectuais a serviço das coroas ibéricas, ele

descreve como a diminuta república das letras latino-americana conseguiu perpetuar,

apesar de transformações profundas como as independências e as modernizações-

laicizações da virada do século XX, o domínio das letras enquanto um privilégio e,

desta forma, seu poder. Articulam-se, assim, os problemas da cultura e da

transculturação com as questões da política e do poder. Ou seja, a heterogeneidade

precisa ser pensada não apenas na dimensão louvável da diversidade, mas também na

deplorável da desigualdade social, tanto econômica como educacional, que também

caracteriza as sociedades latino-americanas.

A forma de transculturação predominante no periódico leite criôlo e na rede

nacional modernista se encontra fortemente enraizada na cidade letrada. Trata-se do

168
esforço dos jovens escritores brasileiros de elite240 que se denominam modernistas nos

anos 1920 no intuito de produzir uma “literatura verdadeiramente nacional”. A

transculturação aqui se daria pela suposta reabilitação da cultura popular – em especial,

dos elementos desta mais distantes da tradição europeia – através da inserção de certos

traços culturais (referências ao folclore, à dicção e à sintaxe coloquial, a personagens-

tipo com características populares, etc.) em uma produção literária escrita de

característica culta e moderna. Teria, portanto, como público, como no caso

paradigmático de Arguedas analisado por Rama (2008b), a parte da sociedade mais

distante destes mesmos traços culturais, posto que majoritariamente letrada, urbana,

sofisticada e identificada com os valores europeus. Dessa forma, é crítico perguntar o

que significa “valorizar a cultura popular”: quem a valoriza e como aparece o valor

novo implícito em tal expressão?

Para tanto é preciso repassar rapidamente a trajetória de noções como cultura,

povo e primitivo, caracterizadas por indefinições que são fundamentais para os usos

sociais, portanto políticos, destes termos. Como Terry Eagleton (2001) já havia

observado para a palavra “cultura”, nota-se nestes casos um jogo permanente entre

significações normativas/prescritivas e significações descritivas (e mesmo pejorativas).

Assim temos, a cultura como qualidade dos cultivados e a cultura no sentido

antropológico do termo; o Povo, cuja autenticidade e dignidade funda a ideia de Nação,

e o povinho, a arraia-miúda que não sabe permanecer no seu respectivo lugar; o

primitivo enquanto atrasado e também como original, autêntico.

240
A discussão conceitual do termo elite transcende o escopo do presente trabalho. Com tal termo
pretendemos aqui enfatizar que a posição dos membros da rede nacional modernista na estratificação
social do Brasil de então é homogeneamente elevada. Atesta-o a quase universalidade do ensino superior
entre os quadros modernistas, em um momento em que tal grau de educação formal encontrava-se ao
alcance de uma parcela percentualmente inexpressiva da população brasileira. É claro que, para além da
estratificação educacional e da relativamente correlata posição econômica, a posição social dos
modernistas variava bastante: diferenciando, por exemplo, os “primos pobres” das grandes famílias
tradicionais – como Mário de Andrade – e os herdeiros de posições políticas e econômicas importantes –
caso de Oswald de Andrade. Cf. MICELI, 2001, p. 102-120.

169
A trajetória das significações do termo cultura, que seguimos também a partir de

Eagleton, demonstra a importância e a utilidade do seu caráter ambíguo. Partindo da

concepção clássica e humanista de cultura enquanto característica do homem cultivado,

o conceito sofre uma transformação importante no âmbito do Iluminismo francês do

séc. XVIII, quando passa a ser aplicado em termos coletivos e a ser dotado de um

sentido próximo de outra ideia cara àquela configuração social, o de civilização. O

momento decisivo se dá, porém, no âmbito do pensamento pré-romântico alemão,

quando não apenas os costumes e as formas de vida consideradas refinadas, a partir de

um modelo único de civilização universal, mas principalmente os costumes e as formas

de vida específicas de um povo ou nação passam a definir o sentido de cultura. Ora, o

grande expoente deste momento de subversão é justamente Herder que, segundo a

leitura de Pascale Casanova (2002), é um dos principais responsáveis pela criação de

uma nova forma de legitimidade literária a partir da vinculação de uma literatura a um

“povo”. Originalmente uma forma de subverter a hegemonia dos franceses em termos

de literatura e língua, aquilo que Casanova denomina de Revolução Herderiana se

tornaria um modelo de “acumulação primitiva de capital literário” de uma língua/nação

produzido a partir da diferença para com os modelos literários hegemônicos. Seria

caracterizado por gestos como a produção de um corpus literário legítimo através das

transposições escritas de contos, lendas, canções, etc. orais. Tal modelo foi – junto com

todo o aparato conceitual do nacionalismo, segundo Benedict Anderson (2008) –

passível de ser reproduzido e adaptado das mais diferentes formas nos mais diversos

lugares. Para os fins do presente trabalho, o importante é que a própria virada que

possibilita uma noção descritiva de cultura surge de uma tentativa de subversão dos

valores da cultura, de uma cisão geográfica da legitimidade no âmbito do campo

intelectual e, principalmente, através de uma primeira “valorização da cultura popular”.

170
Também é importante lembrar que a nova significação de cultura não substitui a

anterior, mas a ela se funde e se mistura: o conceito tão caro ao pensamento alemão de

Bildung (formação), por exemplo, implica cultivo individual de uma relação profunda

com a “cultura autêntica de um povo”.

A própria ideia de “cultura popular” era inconcebível a partir de uma concepção

aristocrática da cultura, dado que a civilização dos costumes, que definiria a pessoa

cultivada, se dá justamente em oposição às formas de vida rústicas, ou seja, em

oposição ao camponês e à “arraia-miúda”. Segundo Norbert Elias (1994), a oposição

mesma entre cultura e civilização na tradição de pensamento alemã se estabeleceria na

confrontação da intelectualidade burguesa dos pequenos estados dinásticos de fala

alemã com a aristocracia afrancesada à qual se subordinavam.

Nesse mesmo momento histórico o termo “povo” passa por profundas

transformações, posto que emerge com a Revolução Francesa a ideia de soberania

popular. Soma-se, assim, aos significados tradicionais da palavra povo – ou seja, “os

habitantes de um lugar”, assim como “aqueles que não são nobres” – um novo, ligado

ao conceito de Nação. O Povo seria a instância legitimadora última do Estado, processo

fundamental na transformação dos estados dinásticos em estados nacionais. Ao caráter

implicitamente anti-aristocrático do termo, a tradição socialista do séc. XIX somou uma

definição mais explicitamente classista do termo, pensando as “classes populares” em

oposição à burguesia etc. A ampla margem de ambivalência que a noção possui hoje já

foi assinalada por Bourdieu (2004, p. 181), que chama também a atenção para como no

campo político costuma-se “jogar com todas as ambiguidades da palavra ‘povo’

(‘classes populares’, proletariado ou nação, Volk)”. Cabe lembrar que a legitimação do

termo não implica necessariamente um desaparecimento das suas conotações negativas

e talvez para cada definição de “Povo” exista também uma de “povinho”. Para os

171
conservadores europeus do Oitocentos o camponês, reservatório dos valores

tradicionais, se opõe às “classes perigosas” urbanas. O “brasileiro que não desiste

nunca” é também o “brasileiro que não sabe votar”. E mesmo a tradição marxista possui

sua figuração do “povinho”, o lumpemproletariado.

No caso brasileiro, o modernismo não foi o primeiro movimento literário a

enfrentar a “tarefa” de afirmar a originalidade cultural a partir da representatividade

local, sendo antecedido pelo romantismo nacionalista de Gonçalves Dias e José de

Alencar. No entanto, o modernismo transformou e incorporou a discussão do

nacionalismo cultural de forma a se tornar referência para toda a produção cultural

brasileira posterior. Uma das razões disso, que discutiremos mais adiante, é exatamente

a importação da nova forma vanguardista de conceber o “primitivo”, que possibilitava

uma espécie de transculturação de cima para baixo. Ou seja, poder-se-ia enfim produzir

uma alta cultura local que escapasse à sombra da “inautenticidade” e do epigonismo,

justamente pela incorporação dos traços “primitivos” antes desprezados. Se, para os

primitivistas europeus, a almejada autenticidade do “primitivo” implicava longas

viagens ou visitas a museus etnológicos, para seus análogos brasileiros e latino-

americanos implicava apenas olhar a seu redor. O “povo” continuava, no entanto, na

função de objeto passivo da ação estética da “cidade letrada”. Posição esta análoga,

aliás, ao lugar reservado à maior parte da população nas ações científicas e políticas da

elite brasileira de então.

Racialismo, eugenia, branqueamento e nacionalidade

Um dos literatos mais importantes da geração anterior ao modernismo, Olavo

Bilac, via de maneira pessimista a perspectiva de afirmação de originalidade literária

pelo caminho da representatividade local. Afirmava o poeta parnasiano em 1908:

“Somos uma raça em formação, na qual lutam pela supremacia diversos elementos

172
étnicos. Não pode haver uma literatura original sem que a raça esteja formada” (apud

SKIDMORE, 1976, p. 114). Como vimos no capítulo anterior, vinte anos depois Mário

de Andrade escreveria sua obra-prima partindo exatamente da “ausência de caráter” do

brasileiro – o que implica tanto uma transformação conceitual impressionante, quanto

uma permanência também notável. Aqui nos interessa especialmente o fato de que as

esferas da cultura e da raça se encontram não apenas não-dissociadas, mas

enfaticamente vinculadas por uma relação causal. A afirmação de Bilac não é de todo

inesperada no momento histórico do ápice do racialismo brasileiro. Mas, como afirma

Lourdes Martinez-Echazábal (2006), os fenômenos irmãos da culturalização da raça e

da racialização da cultura se fazem presentes também no contexto do culturalismo dos

anos 1930. O próprio Fernando Ortíz defende que, nos escritos de José Martí, “raça quer

expressar cultura” (apud MARTINEZ-ECHAZÁBAL, 2006, p. 111). No mesmo

sentido, o antropólogo brasileiro Arthur Ramos fala que, se “substituirmos os termos

raça por cultura” na obra de Nina Rodrigues (médico que estudou as comunidades

negras baianas da virada do século XX sob a perspectiva das “patologias da raça”), “as

suas concepções adquirem completa e perfeita atualidade” (apud MARTINEZ-

ECHAZÁBAL, 2006, p. 111). Seguindo ainda Marinez-Echazábal, a possibilidade de

tradução direta entre cultura e raça parece deslocada dentro do discurso de dois

antropólogos de uma geração cuja contribuição fundamental teria sido a distinção entre

os dois termos. Mas, como mostra Jerry Dávila (2006), Ramos considerava certos

aspectos da cultura afro-brasileira patológicos. Em um texto de 1934, o antropólogo

brasileiro afirmava que, “destruindo o preconceito da nossa inferioridade étnica, não

devemos esquecer, contudo, o lado sociológico, de culturas atrasadas dificultando a obra

da nossa educação” (apud DÁVILA, 2006, p. 75). A “raça”, entendida agora como

cultura e não como biologia, seria ainda a marca e a razão da inferioridade. Ou seja, a

173
“etnicidade” definida em termos culturais e religiosos seria marcada ainda, como

argumenta Stuart Hall (2003, p. 67), pela sombra da concepção desacreditada de raça

biológica.

Neste quadro é fundamental repassar alguns aspectos do pensamento racialista

brasileiro do começo do século XX. Em primeiro lugar, a concepção difusa de que tais

formas de reflexão sobre a nacionalidade seriam apenas uma herança residual do séc.

XIX. Sem dúvida, a centena de anos que gerou a obra de Agassiz, Gobineau, Renan,

Taine, Le bon, entre outros (cf. DE LUCA, 1999, p. 133-156; TODOROV, 1993;

SKIDMORE, 1976, p. 44-47, 65-69), foi obcecada pela ideia da desigualdade humana

descrita em termos raciais. Mas a primeira metade do século XX não ficou atrás em

termos de pensamento racialista. Um bom exemplo disto é a especialidade científica

mencionada no título e na epígrafe deste capítulo, a eugenia. Como afirma Aquilles

Vivacqua no trecho citado, “[Francis] Galton teve [a] idéa”. 241 O cientista inglês, primo

de Charles Darwin, inventou o termo em 1883, a partir da palavra grega para “bem

nascido”, ainda que o cerne das suas ideias date de sua obra de 1869, Hereditary

Genius, lançada apenas cinco anos após A origem das espécies de Darwin. A sua

proposta de reprodução humana seletiva, com vias ao melhoramento da espécie e

eliminação dos indesejáveis, ganhou força com a teoria da continuidade do “plasma

germinativo” do biólogo alemão August Weismann, nos anos 1890, e a redescoberta das

leis de Gregor Mendel sobre hereditariedade nas plantas, em 1900. Ambas as

descobertas tendiam a refutar as noções lamarckianas de que influências mesológicas

poderiam ser transmitidas hereditariamente e, portanto, reforçar a ideia de que o

melhoramento do ser humano só seria possível através da seleção “racial” apropriada.

(STEPAN, 2005, p. 9, 30-32). Segundo Nancy Stepan (2005, p 15), o desenvolvimento

241
“Defeza da Alegria” em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 7.

174
sistemático da eugenia na América Latina se dá a partir da Primeira Guerra Mundial. A

pesquisadora afirma que

a fundação da primeira sociedade brasileira de eugenia no início de


1918 [Sociedade Eugênica de São Paulo], apenas dez anos depois
da equivalente britânica e seis anos após a francesa, indica quão
afinados estavam os cientistas da região com os desenvolvimentos
europeus. (STEPAN, 2005, p. 45)
Stepan também ressalta que é fundamental entender que a eugenia da primeira

metade do século passado não pode ser reduzida ao seu significado mais extremo e

absurdo, os crimes contra a humanidade cometidos em nome da ciência na Alemanha

nazista. Naquele momento a eugenia, apesar de sofrer algumas críticas, era considerada

um ramo legítimo da ciência e tinha seguidores distribuídos pelas principais nações

europeias, Estados Unidos e também em vários países da América Latina. Tal quadro

explica em parte o porquê de, segundo Giralda Seyferth (2006, p. 48), a discussão sobre

imigração no Brasil se encontrar mais racializada nas primeiras décadas da República

do que durante as últimas décadas do Império. A questão “racial” havia se tornado uma

das chaves para a compreensão da nacionalidade.

Outra ideia corrente que é preciso refutar é a de que o racialismo brasileiro e

latino-americano seria mero artigo de importação intelectual, sem rendimento próprio.

Tal noção se encaixa como uma luva na ideia – profundamente inscrita na memória

monumental do modernismo – de que, antes da intervenção da geração modernista e de

seus seguidores ensaístas no âmbito do culturalismo dos anos 1930, a intelectualidade

brasileira, com poucas exceções, se limitaria à imitação inautêntica de modelos

europeus. Curiosamente, porém, o pensamento racialista e eugênico latino-americano se

apresenta como altamente original. Ainda segundo Stepan:

A eugenia brasileira exemplificava uma importante variante do


movimento mundial que permeava toda a América Latina, mas que
raramente é incluída nos relatos sobre eugenia. Esta variante era
fundamentalmente não mendeliana, uma visão que tanto era
resultado como produzia valores particulares. (STEPAN, 2005,
p.76)

175
A autora afirma que a ampla adoção de critérios neo-lamarckianos no pensamento

racial brasileiro e latino-americano não se daria por uma ausência de cientificidade dos

seus proponentes, mas por uma série de fatores culturais. Entre eles o vínculo científico

privilegiado com a França, onde a nova síntese Darwin-Weismman-Mendel em voga

nos países anglo-saxões sofria resistência da tradição neo-lamarckista local. Outro fator

era político,

o neo-lamarckismo também aparecia, com frequência, matizado de


expectativas otimistas de que reformas do ambiente social
resultassem em melhoramento permanente, ideia afinada com a
tradição ambientalista-sanitarista que se tornara moda na região.
(STEPAN, 2005, p. 82)
O materialismo explícito da visão darwinista também era um inconveniente em

um país de tradição católica e com uma intelectualidade de formação mais literária que

científica: o neo-lamarckismo deixava muito mais espaço para o livre-arbítrio e a

vontade reformadora. Curiosamente, no entanto, tais diferenças não implicaram a

rejeição às teses da eugenia, mas a sua acomodação ao pensamento lamarckista:

Não raro, a base neo-lamarckiana dos eugenistas latino-americanos


ocultava-se, até deles próprios, por trás de constantes referências a
Galton como o “pai” da eugenia, e pela ausência de qualquer
menção direta a Lamarck. (...) O estilo eclético de boa parte das
obras sobre eugenia e o uso indiscriminado das fontes (...) indicam
que muito poucos médicos viam qualquer incompatibilidade entre
o neo-lamarckismo e outros tipos de hereditaridade (STEPAN,
2005, p. 90).
Se tais distinções não eram claras nem mesmo para os médicos envolvidos no

movimento eugênico, para literatos como Achilles Vivacqua seriam ainda mais

obscuras. Assim temos que, no trecho citado em epígrafe, após a menção obrigatória a

Galton, se proponha uma “eugenia da alma” – desvinculada, portanto, de conotações

puramente materialistas. Como vimos no capítulo anterior, “raça”, assim como doença,

eram para os literatos de então tanto um dado concreto biológico como uma metáfora

dos “males da nacionalidade”. Quando em leite criôlo se fala do “negro” nunca se sabe

176
se se trata de um tipo biológico, cultural, histórico, social ou literário. Assim, o artigo

“criolo”, também de Vivacqua, afirma que

[o] negro physicamente é o que menos nos interessa. Não o


combatemos sob esse ponto. Seria deshumano. Queremos é apagar
o que ele poz no caracter da nacionalidade: a alma encachaçada
que ainda perdura para nosso grande tormento. Alma que (...) criou
pra nosso organismo social, politico e religioso grande atrazo e de
cujo reflexo precisamos nos libertar. 242

Incidentalmente, o ensaísta mexicano José de Vasconcelos, criador da ideia de

“raça cósmica”, rejeita na mesma época a “eugenia fisiológica” em nome de uma

“eugenia espiritual”, uma “eugenia misteriosa de estética e gosto” (apud STEPAN,

2005, p. 161). Em suma, para a intelectualidade latino-americana de então falar da

nacionalidade era falar da “raça” – ainda que para literatos como Vasconcelos e os

diretores de leite criôlo, “raça” significasse mais uma forma de descrever a “alma” da

nação do que uma realidade puramente biológica.

A hegemonia do neo-lamarckismo no âmbito da eugenia e também do racialismo

em sentido mais amplo no Brasil possivelmente se vincule, mais até que com os fatores

já mencionados, com a fé das elites brasileiras daquele momento no branqueamento da

população. Segundo Thomas Skidmore, tais elites

tomavam de empréstimo a teoria racista [racialismo] da Europa e,


em seguida, descartavam duas das suas principais presunções: o
caráter inato [inalterável] das diferenças raciais e a degeneração
dos sangues mestiços – a fim de formular sua própria solução do
“problema negro”. (SKIDMORE, 1976, p 94)

Em primeiro lugar, seguindo Petrônio José Rodrigues (2002, p. 565-566), é

preciso diferenciar a ideia de um branqueamento biológico da população brasileira do

“branqueamento cultural”, ou seja, da coerção social para que negros, mestiços e

mesmo brancos abandonem práticas culturais percebidas como negras e, portanto,

242
LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929. A menção à “alma encachaçada” não é fortuita: o álcool é
um dos “venenos raciais” que, segundo a eugenia neo-lamarckista, poderia produzir degenerações
hereditárias. Cf. STEPAN, 2005, p. 99.

177
“primitivas”, tema que trataremos na próxima seção deste capítulo. Nas palavras de

Giralda Seyferth, na sua acepção biológica

o branqueamento da raça era visualizado como um processo


seletivo de miscigenação que, dentro de um certo tempo (...),
produziria uma população de fenótipo branco. Portanto, em termos
gerais, o Brasil teria uma raça, ou um tipo ou, ainda, um povo (o
conceito empregado não importa) nacional. Em suma, a
característica que faltava para definir a nação (SEYFERTH, 2006,
p. 49).

Tratava-se, desta forma, do que, segundo Stepan (2005, p. 152, 165), se

denominava “miscigenação construtiva”. Ou seja, uma leitura da questão racial que, se

rompia, por um lado, com o dogma racialista ortodoxo de que a mestiçagem implicava

em degeneração, por outro, reafirmava a hierarquia das raças ao propor que as “raças

superiores” absorveriam as “inferiores”. O processo da “miscigenação construtiva” era

concebido, de acordo com Stepan, nos seguintes termos:

Os poucos negros e índios puros remanescentes estavam


desaparecendo, argumentavam os pensadores sociais, porque a
seleção, tanto natural quanto social, trabalhava contra os tipos
inferiores e porque as altas taxas de mortalidade e a baixa
reprodução entre eles diminuíam sua participação na população.
Enquanto isso, os imigrantes brancos eram vistos como meio
próprio para aumentar rapidamente a proporção de brancos, ao
passo que os cruzamentos entre mulatos e brancos favoreciam um
contínuo branqueamento em virtude da superioridade biológica dos
brancos e do fato dos mulatos preferirem parceiros mais brancos
que eles mesmos. (STEPAN, 2005, p. 166)

O extraordinário esforço de atração de mão-de-obra imigrante branca para o

Brasil desde meados do século XIX até 1930 pode não ter sido concebido em termos de

eugenia científica – ainda indisponível, por exemplo, para abolicionistas como Joaquim

Nabuco que, no entanto, concebia o fim da escravidão como um primeiro passo na

direção de um Brasil mais branco (Cf. SKIDMORE, 1976, p. 37 e 40). Mas certamente

representou uma política racial de décadas, tendo por fim branquear a população

brasileira. O caráter semi-oficial do branqueamento é demonstrado pela introdução ao

censo de 1920, encomendada a Oliveira Vianna, na qual se oferecia “prova empírica da

178
ascensão do Brasil para a branquitude” (SKIDMORE, 1976, p. 220). Tal obra,

republicada depois como o livro Evolução do povo brasileiro, seria inclusive citada em

leite criôlo. 243 Mais impressionante é que também a introdução ao censo de 1940, desta

vez a cargo do educador escola-novista Fernando de Azevedo, ainda mencionasse o

progresso do branqueamento no país:

A admitir-se que continuem negros e índios a desaparecer, tanto


nas diluições sucessivas de sangue branco como pelo processo
constante de seleção biológica e social e desde que não seja
estancada a imigração, sobretudo de origem mediterrânea, o
homem branco não só terá, no Brasil, o seu maior campo de
experiência e de cultura nos trópicos, mas poderá recolher à velha
Europa – cidadela da raça branca –, antes que passe a outras mãos,
o facho da civilização ocidental a que os brasileiros emprestarão
uma luz nova e intensa – a da atmosfera da sua própria civilização.
(apud SKIDMORE, 1976, p. 228).

Vimos que, para Achilles Vivacqua, o negro “por si mesmo se anula pela
244
mestiçagem” e que, para Paulo Prado, “o negro desaparece aos poucos” (PRADO,

1999, p.192). No mesmo sentido, Eduardo de Assis Duarte (2005, p. 122) interpreta a

passagem de Macunaíma, comentada no capítulo anterior, na qual o “herói sem nenhum

caráter” “lava” o “pretume” da sua pele como uma encenação do branqueamento. O

desaparecimento “natural” ou “voluntário” do negro era parte fundamental do projeto

branqueador não apenas nas suas representações literárias. De acordo com Theodore

Roosevelt, ex-presidente dos EUA que, em visita ao Brasil em 1913-1914, tinha ficado

impressionado com a perspectiva local sobre a questão racial, “no Brasil (...) o ideal

principal é o do desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio

negro, gradualmente absorvido pela raça branca” (apud SKIDMORE, 1976, p. 85).

243
A frase citada no alto do tablóide de 13 de maio, em espaço análogo ao do dístico de Macunaíma e da
frase de abertura de Retrato do Brasil, era “Neste paiz, ao contrario dos outros, a agricultura se inicia
tendo por base a grande propriedade”. Não se referia, portanto, a nenhuma questão de caráter racial, mas
sua presença indica familiaridade com as ideias de Oliveira Vianna, dentre as quais o racialismo tinha
lugar fundamental.
244
Defeza da Alegria” em LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 7.

179
A perspectiva racialista “otimista” do branqueamento neo-lamarckista parece ter

preponderado no quadro da intelectualidade brasileira dos anos 1910 e 1920, ainda que

houvesse a consciência de outras leituras possíveis da questão. O discurso sanitarista a

respeito dos “males do país”, aparentemente uma alternativa à discussão em termos de

raça, parece ter, em um primeiro momento, se acomodado bem com a perspectiva

branqueadora. Várias figuras-chave do movimento sanitarista também eram envolvidas

com a eugenia. Olegário de Moura, vice-presidente da Sociedade Eugênica de São

Paulo, chegou a afirmar que “sanear é eugenizar” (apud STEPAN, 2005, p. 97).

No entanto, à altura do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia – realizado em 1929 e,

desta forma, estritamente contemporâneo de leite criôlo –, alguns cientistas brasileiros

começaram a adotar uma visão evolutiva estritamente mendeliana. O significado de tal

mudança para a compreensão da “questão racial” brasileira variou enormemente. Para

Renato Kehl, um dos maiores responsáveis pela difusão do ideário eugênico no país

desde a década de 1910, a adoção do mendelianismo implicou a rejeição da associação

entre eugenia e sanitarismo, o distanciamento em relação à ideia da miscigenação racial

construtiva, a ênfase nos perigos da mestiçagem, na defesa da esterilização de

degenerados e criminosos e, por fim, em um grande interesse pelos eugenistas alemães

voltados para a “higiene racial” (STEPAN, 2005, p. 104-105,168-169). Já para Octávio

Domingues, especialista em Zootecnia e crítico de Kehl que insistia na diferença entre

heranças biológicas e sociais, o mendelianismo implicava apenas uma retradução

científica da lógica do branqueamento. Segundo Stepan, tal forma de pensar se revelava

em seu uso da genética mendeliana para argumentar, com base nas


leis de Mendel que governavam a hereditariedade da cor da pele e
nas proporções raciais do Brasil (ele acreditava que os brancos
eram em maior número que os negros), que, pela contínua
miscigenação racial, os brasileiros, com o tempo, tornar-se-iam
naturalmente mais claros de pele. (STEPAN, 2005, p. 170)

180
Mais importante foi a posição do então diretor do Museu Nacional, Edgar

Roquette-Pinto, que presidiu o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Adepto convicto do

mendelianismo e da distinção estrita entre sanitarismo e eugenia (Cf. STEPAN, 2005,

p.102-102), ele havia afirmado, já em 1927, que o “problema nacional não é transformar

os mestiços em gente branca. O (...) problema é a educação dos que aí se acham, claros

ou escuros” (apud SKIDMORE, 1976, p. 206). Sua rejeição do ideário do

branqueamento biológico significava a adoção de uma curiosa perspectiva eugênica

desracializada. Segundo Stepan:

Desligando-se da ideologia do branqueamento, [Roquette-Pinto]


afirmou que a meta da eugenia não era branquear, mas educar
todas as pessoas brancas e negras, a respeito da importância da
hereditariedade, de modo que os indivíduos de mentalidade
eugênica (...) participassem voluntariamente na “purificação” da
raça humana. (STEPAN, 2005, p. 171).

Em um trecho famoso da introdução de Casa Grande & Senzala, obra publicada

originalmente em 1933, Giberto Freyre descreve a repulsa que sentira ao ver o aspecto

de marinheiros brasileiros “mulatos e cafusos” em Nova York, para, logo em seguida,

se lamentar de ter atribuído seu aspecto de “caricaturas de homens” à mistura racial.

Segundo ele,

faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto


aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram
simplesmente mulatos e cafusos os indivíduos que eu julgava
representarem o Brasil, mas cafusos e mulatos doentes (FREYRE,
1958, p. XXXI).

Freyre remete aqui à autoridade científica de Roquette-Pinto para contrapor a

visão racialista ortodoxa da miscigenação como degeneração à visão sanitarista do

Brasil como um grande hospital, ignorando o meio-termo da ideologia do

branqueamento.

A publicação de Casa Grande & Senzala costuma ser definida como o ponto no

qual o pensamento social brasileiro sairia da análise racial para a análise cultural. Não

181
mais se pensaria em termos de raças, mas em termos de culturas. No entanto, muitos

estudos vêm nuançando a radicalidade de tal afirmação. Maria Lúcia Garcia Palhares-

Burke (2005, p. 21-25; 261-327) mostra em sua biografia intelectual do sociólogo

pernambucano que, não apenas Freyre não havia ainda chegado às ideias mais

características de Casa Grande & Senzala até a segunda metade dos anos 1920, como se

encontrava fascinado com várias das teorias eugênicas e racialistas em voga nos Estados

Unidos, mesmo depois de frequentar o célebre curso do pioneiro da antropologia

cultural, Franz Boas, na Columbia University. O curso de sociologia ministrado por

Freyre em 1928 incluía explicitamente a propaganda da eugenia (apud DÁVILA, 2006,

p. 65-66). Ricardo Benzaquen de Araújo (1994, p. 31-41) mostra que, mesmo nas suas

obras clássicas dos anos 1930, o autor trabalha com a ideia de que existiam raças, mas

que elas eram mutáveis pelo meio e pela cultura, ou seja, apesar da influência do

mendeliano Roquette-Pinto, persiste na obra de Freyre uma concepção neo-lamarckista

de raça. Já Anadelia Romo (2007), analisando os trabalhos apresentados ao 1º

Congresso Afro-Brasileiro, organizado por Gilberto Freyre em 1934, mostra que esse e

outros participantes do evento, se já começavam a utilizar o conceito de raça separado

do de cultura, ainda concebem a presença negra no Brasil muitas vezes de modo

biologizante e/ou monolítico. De certa forma, o “elogio da mestiçagem” herda a função

da “miscigenação construtiva” branqueadora no sentido de estabelecer um tipo nacional

homogêneo. Mais importante é o fato de que, abolida a hierarquia das raças, permanece

a hierarquia das culturas. Roquette-Pinto, por exemplo, criticando Euclides da Cunha,

afirmava que o autor de Os sertões “considerou inferior gente que só era atrasada;

incapazes homens que só eram ignorantes” (apud SKIDMORE, 1976, p. 207).

Quando não concebemos as ideias da geração modernista como uma fundação

ahistórica e sim como vinculadas a um determinado momento e a um determinado

182
espaço social, tais permanências não são nem um pouco surpreendentes, também não

retiram o caráter de novidade do ideário da formação racial surgido nas décadas de

1920-1930. Convém lembrar que o racialismo que alimentou por décadas a imaginação

das elites brasileiras não desapareceria, sem deixar rastros, com algum passe de mágica.

Muito menos com um passe de ciência: não é possível concluir que o sucesso

editorial de Casa Grande & Senzala245, que acabou por simbolizar a mudança de

paradigma aqui analisada, seja consequência apenas de sua base científica

extraordinariamente atualizada e aprofundada para uma publicação brasileira da época.

No prefácio à segunda edição (datado de 1934, publicado em 1936), o autor insiste em

“observar que este ensaio pretende ser menos obra convencionalmente literária que

esforço de pesquisa e tentativa de interpretação nova de determinado grupo de fatos da

formação social brasileira” (FREYRE, 1958, v.1, p. LXV). É provável que tal ênfase

no caráter “científico” da obra se devesse à quase ausência de diferenciação entre

literatura e ciências sociais no campo intelectual brasileiro daquele momento,

simbolizada pela proeminência do gênero ensaístico.

Assim, a ideia de João Dornas Filho, mencionada no primeiro capítulo, de que

leite criôlo seria um precursor de Casa Grande & Senzala se torna menos absurda (cf.

DORNAS FILHO, 1959, p. 89). A definição comum de “romantismo afro-brasileiro”,

atribuída pelo diretor da publicação belorizontina a ambos os corpora textuais de

“temática negra”, demonstra o grau de indiferenciação entre literatura e pensamento

social nas concepções da época. Nossa hipótese é a de que ambas as publicações fazem

parte de um grande arco de interesse pela compreensão da nação e de seus problemas,

implicando uma reavaliação – científica, política e literária – da formação racial da

245
O livro foi originalmente publicado por uma pequena editora pouco estruturada, a Editora Schmidt, e
teve três edições entre 1933 e 1938.

183
população brasileira e, em especial, do significado da presença negra na formação da

nacionalidade.

Com a figura da mãe preta na cabeça


É nesse sentido que devemos compreender a presença dos principais símbolos

que articulam o eixo temático de leite criôlo: a “mãe preta”, implícita no título da

publicação, e a abolição da escravatura, sublinhada pela data do lançamento da primeira

edição da revista mineira – o tablóide de 13 de maio –, ambos os símbolos presentes

também em vários textos publicados ao longo das 19 edições do “órgão oficial do

criolismo”. Em capítulos anteriores mencionamos a presença da temática “negra” no

âmbito da rede modernista nacional, ao que devemos acrescentar que a discussão sobre

o negro e a nacionalidade se dava naquele momento das mais diversas formas e através

dos mais diversos espaços, desde o debate erudito – num arco que vai das discussões

presentes na Revista do Brasil no final da década de 1910 e começo da década de 1920

(cf. DE LUCA, 1999, p. 131-177) até a Primeira Conferência Eugênica Brasileira de

1929 e a publicação de Casa Grande & Senzala em 1933 – até o teatro de revista e

outras formas de cultura de massa urbanas (cf. GOMES, 2001, p. 53-83).

Assim como as discussões sobre eugenia (cf. STEPAN, 2005, p. 57), o “tipo” da

“mãe preta” se fazia presente no cotidiano da imprensa diária de então. O exemplo mais

expressivo seria a campanha pela construção de um monumento à Mãe Preta, lançada

no Rio de Janeiro em 1926 por Cândido de Campos, proprietário do jornal A Notícia,

mas logo encampada, por exemplo, pela Companhia Negra de Revistas e pela imprensa

negra militante de São Paulo (cf. SIEGEL, 2007; GOMES, 2001, p. 73).

O “tipo” da “mãe preta” – personagem-emblema representando a ama-de-leite


negra do período escravista ou mesmo posterior – é típico de um momento no qual se
espera que a literatura “fixe” os traços de personagens-modelo socialmente relevantes.
Segundo Rafaela de Andrade Deiab (2006, p. 54-55), tal “tipo” começa a ser

184
amplamente empregado na literatura brasileira no âmbito da lírica abolicionista da
década de 1880. Se nesse primeiro contexto a evocação da Mãe Preta serve à denúncia
da escravidão, logo a figura da ama-de-leite negra se torna uma das chaves da
interpretação da escravatura no Brasil como amena (cf. DEIAB, 2006, p. 46). O caráter
bondoso, resignado e afetivo do sacrifício da personagem em prol do seu quase filho,
que é ao mesmo tempo seu senhor, constitui um dos seus traços característicos.
Retratada normalmente com as tintas de um sentimentalismo piedoso, por vezes
temperado de exotismo, o “tipo” da Mãe Preta é fundamentalmente um veículo das
representações de brancos sobre negros. Dessa forma sua presença no repertório
simbólico das entidades negras pode causar espanto, pois, nas palavras de Tiago de
Melo Gomes,
hoje em dia, tal símbolo remete diretamente a Gilberto Freyre,
portanto à ideia de uma ideologia branca. Mas, no contexto da
década de 1920, esta figura assume outra conotação: tanto no Rio
de Janeiro como em São Paulo, grupos negros lutavam para
conseguir erigir monumentos em homenagem à Mãe Preta.
(GOMES, 2001, p. 73)

Como mostra Micol Siegel (2007), tal reapropriação da figura da ama-de-leite do


período escravista pelos grupos negros significou uma ressignificação da personagem.
Para Cândido de Campos e muitos outros jornalistas, intelectuais e políticos brancos, a
“memória [da Mãe Preta] era enaltecida por ter conhecido o seu ‘lugar’ e nele
permanecido” (SIEGEL, 2007, p. 317), representando uma influência negra restrita ao
passado que deveria ser superada pelo branqueamento. Mas para alguns grupos negros,
significava contrariamente uma possibilidade de “proclamar (...) a centralidade da cor
negra e dos seus símbolos, pessoas e cultura a ela associadas na sociedade brasileira” e,
a partir daí, “reinvidicar a plena cidadania e a extensão dos direitos aos afro-brasileiros”
(SIEGEL, 2007, p. 318).
A própria virada ideológica, ou seja, a passagem de uma orientação editorial do

tipo mundana – veículo para notícias sociais das entidades de negros que organizavam

bailes e outros eventos – para uma de militância e protesto, ocorrida no jornal Clarim

D`Alvorada, é descrita por seu idealizador, José Correia Leite (1992, p. 40-41), como

sendo um número especial, em 1928, propondo o 28 de setembro (data da Lei do Ventre

Livre) como dia da Mãe Preta e apoiando a construção do monumento. Tal proposta

185
acabou ecoando também em alguns órgãos da grande imprensa paulista, um feito

notável para uma publicação pequena e precária como o jornal de Correia Leite.

De uma forma ou de outra, a campanha pelo monumento à Mãe Preta repercute

neste momento até mesmo no âmbito relativamente ensimesmado da rede modernista

nacional. Um editorial intitulado “Concurso de lactantes”, da autoria de Antônio de

Alcântara Machado e estampado na primeira página da Revista de Antropofagia de

novembro de 1928, trata o tema da seguinte forma:

Estão tratando de erguer não sei onde (mas sempre aqui no Brasil)
um monumento à mãe preta. Os denodados que para isso
trabalham querem confessadamente prestar homenagem de
gratidão às amas molhadas e sêcas mas sobretudo molhadas da
linda côr do urubu. E atravez delas à raça escrava.
Eu acho isso muito bonito e comovente porêm perigoso.
Marmorizada ou bronzeada a preta, as mulatas e as brancas
protestarão na certa. E será preciso erguer outros monumentos. Um
para cada côr. Depois um para cada nacionalidade. A homenagem
provocará uma competição de raças, de origens, até de tipos de
leite. Por fim os fabricantes de leite condensado tambêm
reclamarão a sua estátua e com toda a justiça. E haverá o diabo
quando o governo holandês exigir uma para as vacas suas súbditas.
Eu não estou ofendendo. Eu estou prevenindo.246

Mesmo investindo com sarcasmo contra o suposto perigo separatista de uma

medida tão inócua e compatível com uma interpretação paternalista da questão racial

como o monumento à Mãe Preta – denúncia de separatismo que parece ser uma

constante da intelectualidade brasileira quando confrontada com movimentos negros e

suas mais diversas demandas –, o texto de Alcântara Machado demonstra que a figura

da “mãe preta” e as diversas e contraditórias questões que tal símbolo evocava estavam

no ar naquele momento. Assim, quando o colaborador capixaba de leite criôlo, Garcia

de Resende, abria um texto publicado no “órgão oficial do criolismo”, ao qual

246
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 7, Novembro de 1928, p. 1 Talvez a explosão de
heterogeneidade que Alcântara Machado vê como a consequência inevitável do monumento proposto
possa ser compreendida a partir das discussões sobre a “falta de homogeneidade do povo brasileiro”.
Vale a pena ressaltar que a oposição do autor ao monumento talvez esteja relacionada com a sua posição
partidária. Como membro do Partido Democrático, de oposição, ele poderia estar se opondo mais a uma
iniciativa apoiada pelo PRP do que a um ideário cultural mais amplo.

186
retornaremos a seguir, afirmando que teria passado “todo o dia de hontem com a figura

da Mãe Preta na cabeça”, ele se referia a um símbolo de fato muito presente naquele

contexto. 247

O citado editorial da primeira dentição da Revista de Antropofagia – da autoria do

mesmo Alcântara Machado que, como vimos no segundo capítulo, elogiara

vigorosamente o poema “Essa negra fulô” de Jorge de Lima, qualificado pelo crítico

paulista de “canção e história da escravidão sem querer ser”248 – serve também de

exemplo de como a presença da temática “negra” na produção e no debate cultural

naquele momento se dá de maneira complexa, carregada de ambiguidades e

contradições. Dessa forma, a polissemia inerente a símbolos como a “mãe preta” e

abolição da escravatura se distende ao máximo em significações por vezes totalmente

opostas.

Uma comparação entre os usos da figura da “mãe preta” em leite criôlo e na

chamada imprensa negra paulista sua contemporânea ilustra bem a variação dos

significados dos símbolos que focamos aqui. No texto “Mãe Preta” do jornal

Progresso,249 editado pelo poeta e militante paulista Lino Guedes, o tema da Mãe Preta

é enfocado em termos de usurpação e opressão branca: “Mães abandonando seus filhos,

pelos dos senhores, [que] quando grandes, pagavam esta dedicação, a chicote.

Desgraçadas, victimas, do deshumano servilismo!”.

A mesma temática recebe um tratamento bem diferente nas páginas modernistas

de leite criôlo. No artigo já citado “nota ligeira”, Garcia de Resende, colaborador do

Espírito Santo, evoca a memória da Mãe Preta, mais especificamente da sua mãe preta –

“chamava-se ‘Chicó’”, escreve ele –, mas antes fala da fazenda de seu avô. Metade do

texto consiste na descrição nostálgica daquela propriedade, metade na evocação

247
LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929.
248
REVISTA DE ANTROPOFAGIA Nº 1, Maio de 1928, p. 4.
249
PROGRESSO, 19 de Agosto de 1928, apud LEITE 1992, p. 87.

187
genérica da influência da Mãe Preta na nossa “formação sentimental”. Em certo ponto

aparece a interrogação retórica: “Quem não se lembra da sua Mãe Preta?” (grifo

nosso)250 Por certo não os filhos de mães negras. É interessante notar o uso do pronome

possessivo, seguido da justaposição entre a descrição da propriedade rural e das

características da Mãe Preta, que só se particulariza pelo nome próprio. 251

No artigo intitulado leite criôlo estampado na primeira página do tablóide de 13 de

maio, Guilhermino Cesar, iniciava com uma afirmativa que serve de resposta antecipada

àquela falsa questão: “Nós todos mamamos naquêles peitos fartos de vida e estragados

de sensibilidade”. E expõe o que, na sua opinião, deve ser feito com o leite da Mãe

Preta, metáfora para a herança africana na formação nacional:

De uma feita um sujeito chamado [Charles] Richet gritou na


França que o negro só presta pra duas coisas no mundo: “fabricar”
uréa e gaz carbono. Ao brasileiro ele deu mais que isso. E é
justamente esse mais do que isso que nós não queremos dele.
(...)
Arranjemos um processo de desnatar. A manteiga gostosa é a fala
dêles que nós queremos bem. Queremos bem como se fosse o
presente meio forçado do seu trabalho. Mas nem todo desptismo
[sic] de presente se bota na sala pra goso das visitas. Alguns vão
pro fundo da mala.
Bemquerer a todos tem sido a enorme falta nossa. (grifo nosso)252

Nesta fala se nota a relação mais do que ambígua de leite criôlo com a dimensão
afro-descendente da nação brasileira. A associação do leite com o excremento, tendo
por termo médio o negro, já foi analisada por Antônio Sérgio Bueno (1982, p. 120-121)
e parece derivar das discussões médicas do final do séc. XIX sobre os perigos do leite
das amas negras (cf. DEIAB, 2006, p. 8-12). Transformada como aqui em metáfora, a
ideia da contaminação através do leite da “mãe preta” aparece também em Casa Grande
& Senzala. No trabalho do sociólogo pernambucano, no entanto, a contaminação
biológica e cultural era recíproca entre a ama-de-leite e o “sinhozinho”, possuindo
aspectos positivos (apud DEIAB, 2006, p. 10). Já o eufemismo irônico “meio forçado”,
que adjetiva o suposto presente que seria o trabalho do negro, introduz uma das facetas

250
LEITE CRIÔLO Nº X (11º), 11 de agosto de 1929.
251
O mesmo tipo de referência a uma lembrança coletiva e transferível da “mãe preta” aparece em um
livro infantil de 1930, Contos da Mãe Preta, de Odorico Costa, analisado por Deiab (2006, p. 148-149).
252
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de julho de 1929.

188
de leite criôlo, uma espécie de sadismo que permeia as referências à escravidão. Muitos
dos textos enfatizam a brutalidade da escravidão, não no registro da indignação ou
mesmo da piedade, mas com certa malícia. Esse ponto diferencia inclusive o grupo
“criolista” da corrente principal das representações literárias da Mãe Preta. No poema
“mãe preta”, de Fidelis Florêncio, pseudônimo do colaborador assíduo Wellington
Brandão, o eu lírico é um sinhozinho mimado que ordena que sua “mãe preta” faça isto
e aquilo. Entre as ordens surgem referências nostálgicas, sado-eróticas ao tronco,
terminando em uma exaltação condescendente e irônica da Mãe Preta:
(...)
Mãe Preta, caiu um cisco no meu leite,
E porque não há mais tronco,
Si houvesse, Mãe Preta,
era hora de você ver
(...)
Nada de cantigas de congado.
Conte-me a historia daquelle sinhô
que te cortou de rabo de tatu.
Chega sinhô!
Não chega não, negra atôa!
e lépo e lépo e lépo!
E tu pelada no tronco
como um morcego de maminha.
Mãe Preta: como se chamava
Esse sinhô tão bravo?
Eta, mãe preta.
Serafina do Congo e Jesuis,
Ninguém póde com você! 253

Ao quase-sadismo malicioso, exemplificado pelo poema de Florêncio, se associa

um tom impositivo, um contínuo chamado à ordem. No texto já citado de Guilhermino

César chama atenção a afirmativa “bemquerer a todos tem sido a enorme falta nossa”. A

publicação modernista mineira A Revista, dirigida por Carlos Drummond de Andrade e

Martins de Almeida – cujo grupo se encontrava em 1929, como vimos no segundo

capítulo, oposto ao dos diretores de leite criôlo, mas que possui grandes afinidades com

este – afirma no seu primeiro editorial que “no Brasil ninguém quer obedecer. Há mil

253
LEITE CRIÔLO Nº VIII, 21 de julho de 1929. No quadro das representações do “tipo” Mãe Preta
analisadas por Deiab (2006, p. 89; 107) aparecem, em um mesmo conto de Olavo Bilac, tanto a figura do
sinhozinho travesso que abusa da criada quanto a cena desta exibindo as cicatrizes dos castigos de
outrora. No entanto, no conto de Bilac tais elementos se articulam com o sentimentalismo piedoso
predominante nas interpretações literárias da “mãe preta”.

189
pastores para uma só ovelha”.254 É nesta chave que se pode compreender que o

tradicional paternalismo no tratamento das questões raciais no Brasil constitui exceção

em leite criôlo: a regra é um tratamento ríspido, de choque. O porquê deste método está

explícito em um trecho da resposta de João Dornas Filho à enquête do Diário de Minas,

já analisada sob outros aspectos no segundo capítulo:

Eu lembro que quando era garoto, mamava em bicos de borracha.


Na vespera de entrar pra escola a velha me obrigou a deixal-o. Foi
o maior bagaço que fiz na vida. Quebrei espelhos, louça, vaso de
folhagens, o diabo. Por causa do habito, que só se arrefeceu com
uma tremenda surra de chinelos.
E assim todos nós. E pra tudo que precisamos reformar. O prefeito
[Pereira] Passos e o sábio Oswaldo Cruz que lhes contem em
sessão espírita.255

O trecho associa implicitamente o infantil e o primitivo: uma típica “birra” de

criança é vinculada à resistência ao “choque de civilização” imposto por Pereira Passos

e Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro da virada do século XX. Tal resistência, cujo ápice

foi a “revolta da vacina” de 1904, tem sido compreendida atualmente como uma reação

à forma autoritária e à concepção elitista das reformas e campanhas efetuadas – não

houve a preocupação nem de esclarecer nem de levar em conta os interesses da maior

parte da população, ou seja, de reconhecer sua cidadania (cf. CARVALHO, 1987). Mas,

no período em questão, a violenta e vitoriosa repressão à revolta costumava ser

interpretada como uma vitória da ciência e da civilização sobre a massa heterogênea de

“primitivos” que constituía o povo (mais “povinho” que “Povo”) brasileiro e, assim,

Oswald Cruz se tornou mesmo um dos heróis culturais da elite (STEPAN, 2005, p. 51;

SKIDMORE, 1976, p. 151).

A mesma perspectiva transparece no tratamento do outro símbolo comum a leite

criôlo e à militância negra sua contemporânea, a abolição da escravatura. Como no caso

da “mãe preta” é preciso ressaltar que – se, a partir dos anos 1970, a simbologia da luta

254
A REVISTA No. 1, 1925, p. 12-13.
255
DIARIO DE MINAS, 3 de fevereiro de 1929.

190
anti-racista sofre grandes transformações no contexto do surgimento de uma nova leva

de movimentos negros, levando à instituição de 20 de novembro (data da morte de

Zumbi dos Palmares) como Dia da Consciência Negra – no período aqui enfocado todas

as entidades de militância negra, incluindo as de imprensa, comemoravam o 13 de maio,

data da abolição. Mas a figura emblemática desta comemoração não era a Princesa

Isabel. Como observa George Reid Andrews, “no final da década de 1920, as

comemorações [de 13 de maio] na capital do estado incluíam um desfile dos

representantes de várias organizações negras, do centro da cidade até o túmulo do

abolicionista negro Luís Gama” (ANDREWS, 1998, p. 332-333). A abolição era, pois,

percebida como um processo no qual os negros ou, pelo menos, alguns “grandes

patrícios” – para emular a linguagem daqueles jornais – seriam sujeitos históricos

fundamentais.

Já na abordagem de leite criôlo da abolição da escravatura a população negra não

é tornada objeto do processo apenas no sentido tradicional – ou seja, através do culto

paternalista à bondade da Princesa Isabel –, mas também em um sentido mais perverso:

sua liberdade se torna um dos problemas do Brasil. Não é que faltem as representações

do primeiro tipo. Em “13 de maio”,256 poema de Francisco L. Martins Filho, a descrição

de uma moça branca que brinca com “o pretinho” no colo da “preta gorda” sentada ao

seu lado em banco de praça é associada implicitamente à Princesa Isabel. Mas o texto

mais impressionante é o já mencionado “Defeza da Alegria”, de Achiles Vivacqua, 257

que afirma:

Reivindicação de direitos ao preto. Não nego que foi justo. Porem


fora do tempo. Faltava-lhe educação. Não conhecia necessidades.
Para vida livre. Mas cahio no mangue assim mesmo. Queria gosar.
Fuzarca. E com toda autonomia. Sem policia de costumes. E poz
em nossos dias todas as paixões licenciosas.

256
LEITE CRIÔLO Tablóide, 13 de Maio de 1929.
257
“Defeza da Alegria”, de Achiles Vivacqua em LEITE CRIÔLO (Tablóide) 13 de maio de 1929, p. 7.

191
Podemos comparar esta interpretação da abolição e de suas consequências com

outra publicada naquele mesmo 13 de maio de 1929, esta agora da autoria de José

Correia Leite do jornal negro Clarim D’Alvorada.

[Os remanescentes dos escravos] Ficaram libertos, porém, sem pão


e sem lar, embrutecidos pelos martírios do maldito regime.
Tiveram também de enfrentar as correntes imigratórias que sempre
foram bem remuneradas e amparadas por todas as leis do nosso
país. Do negro ninguém cuidou, ele que fora a verdadeira máquina
de trabalho para a construção dos alicerces do progresso que hoje
assistimos (...). (apud LEITE, 1992, p. 226)

Não apenas o discurso da imprensa negra é um quase completo contraponto ao

pensamento “criolista”: os lugares sociais dos quais partem também são completamente

diferentes. Obviamente as pequenas publicações que se identificam como “negras” (das

“classes de cor” etc.) contrastam com a perspectiva inegavelmente branca de leite

criôlo. 258 Mas mesmo o amplo trânsito do grupo “criolista” pela grande imprensa – na

qual, aliás, foi estampada sua publicação – contrasta fortemente com a trajetória dos

jornalistas da imprensa negra, para os quais o acesso a grande imprensa era, em grande

parte, negado. 259 A imprensa negra surgiu com publicações mundanas, veículos para

notícias sociais das entidades de negros que organizavam bailes e outros eventos,

transformando-se aos poucos em veículo de militância (FERRARA, 1986, p. 97). É

interessante observar que a Semana Ilustrada, revista na qual dois dos diretores de leite

criôlo colaboravam, cumpre mais ou menos a mesma função. A grande diferença é o

público. Os periódicos negros paulistas se dirigiam àqueles que Andrews (2002)

258
Isto se dá apesar de João Dornas Filho ser identificado como mulato (cf. BUENO, 1982, p. 115-116).
O ponto de vista eminentemente branco que ele assume é virtualmente indiscernível daqueles de Achilles
Vivacqua e Guilhermino César. Muitos outros intelectuais da elite brasileira adeptos das teorias racialistas
são descritos como mulatos ou mestiços, inclusive o já mencionado ideólogo da “arianização” Oliveira
Vianna (cf. SKIDMORE, 1976, p. 219). Para Skidmore (1976), o próprio interesse de Vianna pela
questão étnica poderia partir deste fato, o que poderia também ser o caso de Dornas. O fato de ambos
assumirem uma postura racialista tão ostensiva exprime o desejo da elite intelectual brasileira daquele
momento de se identificar como inteiramente branca e a distância entre tal desejo e a realidade.
259
José Correia Leite relata, por exemplo, a alegria de conseguir que um artigo louvando Júlio de
Mesquita (fundador do jornal Estado de São Paulo) por ocasião da sua morte, fosse reproduzido neste
veículo, depois de haver aparecido no jornal negro Clarim d’Alvorada. (LEITE, 1992, p. 79). Nesse
momento leite criôlo sai no Estado de Minas, com controle quase total do que seria editado.

192
descreveu com o eufemismo “elite negra”: uma sub-classe-média que, exercendo

profissões como chofer, cozinheiro, contínuo, tinha possibilidade de certas “regalias”

como frequentar bailes e ser alfabetizada (Cf. CORREIA, 1992, p. 45). Semana

ilustrada, por outro lado, reflete a sociabilidade das famílias importantes e dos

estudantes universitários, naqueles tempos vindos estritamente das camadas mais altas

da sociedade. Encenava, por exemplo, o famoso “footing” – racialmente segregado, por

sinal – da Praça da Liberdade na crônica em versos semanal “Do Flirt, do Footing, da

Semana”.

Outro índice da distância social entre o grupo “criolista” e os jornalistas da

imprensa negra era a relação de ambos com a educação formal. Enquanto os jovens

modernistas de Belo Horizonte cursavam o ensino superior (maior grau de escolaridade

possível no Brasil de então), muitos dos militantes da imprensa negra, como José

Correia Leite (1992, p. 55), eram autodidatas que não tinham tido a oportunidade de

completar nem mesmo o ensino primário. O “tribuno popular” Vicente Ferreira – que

Correia Leite descreve como um teórico da causa negra – sabia ler, mas não escrever.

Era, no entanto, um orador de grande eloquência, presumivelmente ao estilo

“passadista”, reproduzido de forma impressa em artigos ditados para terceiros

(FERRARA, 1987, p. 84-85; LEITE, 1992, p. 64).

Figuras como essas se encaixavam à perfeição na definição pejorativa de

“criolismo”, tal como definida pelos diretores de leite criôlo: negros sem nenhuma

espécie de educação formal cometendo a hubris de discutir questões tão complexas

como as relações raciais no país, ainda por cima por meio de uma linguagem ornada e

eloquentemente passadista, aprendida de ouvido. 260 É bem provável que os modernistas

260
A contínua denúncia em leite criôlo do pedantismo e do pernosticismo, que caracterizariam a
tendência nacional ao “bacharelismo”, é particularmente interessante: no contexto de uma primeira
desvalorização dos títulos do ensino superior no Brasil (Cf. MICELI, 2001, p. 115-120), leite criôlo –

193
belorizontinos e os jornalistas negros paulistas jamais tenham sabido da existência um

do outro, apesar de estarem mergulhados nos mesmos símbolos, questões e discussões.

Mas a interação de Vicente Ferreira, lembrada no livro de memórias de Correia Leite,

com uma figura próxima ao modernismo primitivista demonstra algumas das tensões

latentes entre as duas posições:

Um pouco antes da revolução de 30, fundaram aqui em São Paulo


o Partido Democrático. Eu me lembro que, na Praça Patriarca,
havia um comício desse partido. Naquele tempo, dentre os clubes
carnavalescos, havia os Finianos, os Democráticos, o Tenente do
Diabo etc. Então [Vicente Ferreira], depois de pedir a palavra,
entrou fazendo pilheria:
- Eu não sou nem democrático, nem finiano. Eu sou
republicano!261
E fez um discurso em nome da raça negra e foi aplaudido por um
lado, vaiado por outro. E teve um momento que ele falou em
filosofia e um irmão de Mário de Andrade, chamado Morais
Andrade, deu um aparte muito maldoso:
- Cala boca, negro! Você não entende nada de filosofia.
Ao que ele respondeu
-Espera aí que eu já vou te contar. (...)
Terminou de falar e deu uma aula de filosofia. (...) O Vicente
Ferreira não perdia conferência. Então ele estava por dentro da
filosofia positivista adotada. Quando ele terminou de falar, o
Morais Andrade foi abraçá-lo e faz uma festa com ele (LEITE,
1992, p. 65-66).

A anedota termina bem, mas, apesar da reconciliação final, fica claro que o lugar

apropriado para um negro não é, naquele momento, discursar sobre filosofia. O caso

ecoa o trecho, comentado no capítulo anterior, de Macunaíma, no qual o “herói sem

nenhum caráter” interrompe o discurso pedante e oficialesco do “mulato da maior

mulataria” (ANDRADE, 1977, p. 117-118). Assemelha-se também à prosa curta “A

propósito de uma aparição”, de Oswaldo Abrita, publicada em leite criôlo, na qual um

“nêgo” invade um salão passadista provocando escândalo, mas, devido a sua ignorância,

não pode ser ouvido.

dirigido por três bacharelandos em direito – rejeita a cultura superficial dos que dependem das
demonstrações de erudição para se impor.
261
Correia Leite (1992, p. 64-65) conta que Vicente Ferreira tornara-se partidário do situacionismo
perrepista depois de ter percebido que era tratado de maneira preconceituosa até mesmo pelos comunistas.
Podemos especular que provavelmente o PRP não era menos preconceituoso, mas significava mais
palanques para alguém que vivia de discursar.

194
Correia Leite (1992, p. 44) lembra que naquele contexto havia uma série de

“negros que ficaram figuras típicas no meio dos estudantes”. Os universitários

estabeleciam com tais “figuras-típicas” uma relação baseada em uma mistura ambígua

de afetividade condescendente e blague zombeteira, servindo de público para os

discursos e as posturas de orador incompatíveis com grau de escolaridade e posição

social de tais pessoas. Encenavam de certa forma a distância instransponível, construída

pela sociedade de então, entre aqueles que teriam acesso à cultura dominante e legítima

e aqueles condenados a uma imitação caricatural impotente de tal cultura. Da mesma

forma que, nas representações da Mãe Preta, esta era tratada quase como se fosse da

família (DEIAB, 2006, p. 92), as “figuras típicas” poderiam ser tratadas quase como se

fossem verdadeiros intelectuais. Nestes “como se” escondem-se, obviamente, distâncias

sociais incalculáveis, fronteiras extremamente rígidas. Como veremos adiante, leite

criôlo também estabeleceu uma relação, entre ambígua e perversa, com uma destas

“figuras típicas”, o “pequeno poeta” Olavo Augusto Maia.

Por menos que os militantes da imprensa negra fossem levados a sério pelos

intelectuais estabelecidos de então, a originalidade de sua postura é atualmente inegável.

Em um momento no qual quase todos os espaços de discussão intelectual estavam

impregnados da ideia da inferioridade biológica e/ou cultural da “raça negra” e,

contraditoriamente, se propagava aos quatros ventos a ideia de que no Brasil não havia

preconceito de cor, 262 ousava-se na imprensa negra denunciar o continuado racismo da

262
Na sua obra O abolicionismo, publicada em 1883 e, portanto, anterior à abolição, Joaquim Nabuco já
afirmava que “a cor, no Brasil, não é, como nos Estados Unidos, um preconceito social contra cuja
obstinação pouco pode o caráter, o talento e o mérito de quem incorre nele” (apud SKIDMORE, 1976, p.
39). Em 1926, em sua carta de apoio ao monumento da Mãe Preta, o então presidente eleito Washington
Luís, afirmava de maneira semelhante que “entre nós, não há superstições de raças, preconceitos de cores,
ou exclusivismos de origem” (apud SIEGEL, 2007, p. 324). A ideia da inexistência do preconceito era tão
arraigada que, em 1908, Monteiro Lobato havia se queixado exatamente de tal ausência: “Como consertar
essa gente? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente
vingança! Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue
europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito social. Temos também
aqui nossa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio, não existe” (apud SKIDMORE,

195
sociedade brasileira e inclusive o racialismo culto dos pensadores sociais do momento.

A transformação conceitual aí subentendida não é de forma alguma decorrência

automática desses militantes se identificarem como negros: como mostra Petrônio José

Domingues (2002, p. 580, 584-588), na própria imprensa negra, ainda que

principalmente em publicações menos politizadas, apareciam indícios de uma aceitação

tácita do branqueamento seja estético (anúncios de cosméticos variados para clarear a

pele), seja biológico (contos encenando o desejo de envolvimento romântico

exclusivamente com pessoas brancas), e até mesmo a aceitação explícita da ideia do

desaparecimento gradual dos negros pela via do branqueamento. Mas alguns militantes,

como José Correia Leite em 1928, chegam a denunciar o fato dos negros serem

considerados pelos “altos sociólogos descendentes de raça inferior” (apud FERRARA,

1986, p. 129). Arlindo Veiga dos Santos – futuro presidente da Frente Negra Brasileira

dos anos 1930 – invoca inclusive de maneira bastante original a retórica sanitarista,

juntamente com seu bordão, no seguinte trecho

Miguel Pereira e Belisario Penna affirmaram que é o Brasil um


vasto hospital. E nós não tememos affirmar que esse vasto hospital
deriva da doença mais grave, que é o preconceito de raça e de cor,
enfim a dor da mentalidade dos nossos dirigentes, deixando que
pereça toda uma Gente que é preciso ser substituída, porque é
mestiça, porque é negra e deverá ser branca, custe o que custar,
mesmo à custa do esfacelamento do Brasil, pela vaza do aryanismo
internacional immigrado (apud LEITE, 1992, p. 84).

Numa curiosa inversão, a pior doença que afligiria o Brasil não seria uma

daquelas que, segundo Freyre, faria dos “mulatos e cafusos” brasileiros “caricaturas de

homens”, mas sim a do preconceito que acometia as elites dirigentes brancas e as levava

a patrocinar uma imigração de caráter branqueador. O discurso nacionalista em voga

1976, p. 199). É interressante que tal convicção anteceda e ultrapasse a emergência da nova linguagem
racial culturalista do “país mestiço”. Assim, quando Gilberto Freyre, Artur Ramos, Roquette-Pinto e
outros intelectuais publicaram seu “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o racismo” em 1935, eles
se voltavam contra “a transplantação de ideias racistas e, sobretudo, dos seus corolários políticos e
sociais” para o Brasil (apud SKIDMORE, 1976, p. 225). A ideia de que já existissem aqui formas
autóctones de preconceito racial não ocorria para estes intelectuais, amparados como estavam por uma
longa tradição de negação da existência de tais preconceitos.

196
naquele momento é invocado contra as correntes migratórias que, segundo esse

argumento, correm o risco de “desnacionalizar” o país. Em suma, formas hegemônicas

do discurso intelectual de então – a Mãe Preta, o sanitarismo, o nacionalismo – são

ressignificadas pelos militantes da imprensa negra, rompendo as barreiras de uma ordem

simbólica hostil no intuito de servirem a sua causa.

O impacto de tal ordem simbólica está, no entanto, também profundamente

inscrito no ideário dessas publicações. Como antídoto ao estereótipo da “alma

encachaçada”, lançavam-se ali campanhas contra o consumo de álcool no meio negro

(cf. DOMINGUES, 2002, p. 576; FAGUNDES & GOMES, 2007, p. 76; FERRARA,

1986, p. 101). Contra a associação da mulher negra com a luxúria e a licenciosidade,

propunha-se a vigília moralista do seu comportamento (cf. SIEGEL, 2007, p. 321). Em

oposição ao confinamento do negro à esfera do “bárbaro” e do “primitivo”, invocava-se

continuamente a necessidade da educação e também das boas maneiras (cf.

FAGUNDES & GOMES, 2007, p. 74; FERRARA, 1986, p. 123).

Tentava-se assim demonstrar que os negros brasileiros eram – segundo textos de

José Correia Leite de 1924 e 1929, respectivamente – “dignos de usar o nome de

homens civilizados” (apud FERRARA, 1986, p. 110) e capazes de “acompanhar o

progresso dentro do progresso” (LEITE, 1992, p. 225), afastando a suposta “nostalgia

da África” a eles atribuída pelo discurso corrente. Isso significava, no mais das vezes,
263
uma rejeição do vínculo com a África “bárbara” e com as formas culturais a ela

associadas. Recusar o branqueamento biológico, a afirmação da inferioridade racial e a

263
Como argumenta Miriam Nicolau Ferrara (1986, p. 203), a imprensa negra paulista de então via a
África de uma perspectiva de identificação com O ocidente. Assim, no jornal Progresso descreve, em
1929, a África com tintas exóticas: “(...) os seus homens disformes pelos exercícios necessários, as preces
aos deuses do culto bárbaro, transformam o continente em centro da curiosidade dos naturalistas, que
procuram raridades para seus museus” (apud FERRARA, 1986, p. 166). Ali também se louva a ascensão
de Ras Tafari, futuro imperador Haile Salassie I, ao trono da Etiópia, então o único país independente da
áfrica negra, pela possibilidade deste “implantar o espirito moderno sobre as correntes básicas da tradição
ethyopica” (apud FERRARA, 1986, p. 180).

197
perspectiva do desaparecimento do negro, implicou, para esses grupos negros, aceitar e

incentivar um branqueamento cultural.

É nesse sentido que se deve entender a rejeição às práticas transculturadas que se

tornavam, naquele mesmo momento, matéria-prima preferencial do primitivismo

modernista. A legalização dos cultos das religiões afro-brasileiras, que só se deu em São

Paulo no ano de 1943, não fazia parte das reivindicações da imprensa negra. Nas suas

memórias José Correia Leite lembra que a militância de então “até achava que [a prática

das religiões afro-brasileiras], de certo modo, era um atraso para a concretização de

qualquer coisa positiva de cunho social para o negro” (LEITE, 1992, p. 141). Da mesma

maneira, o jornal O Patrocínio afirmava, em 1930, que ao fazer samba

o negro ainda conserva a dança característica de rythmos grotescos


e barbaros, que nos foram transmitidos pelos africanos ao som dos
“batuques”, “quigengues” e “pandeiros”, instrumentos de
sonoridades insípidas, mas bem rythmadas, que os fazem pular,
voltear, numa sensualidade selvagem, verdadeiramente africana.
(apud DOMINGUES, 2002, p. 578)

Vemos aí a mesma associação das danças e formas musicais afro-brasileiras com

uma “sensualidade selvagem” que se faz presente em tantos poemas do primitivismo

modernista. Sensualidade selvagem que evoca tanto a sexualidade livre exaltada por

Oswald de Andrade quanto a luxúria que Paulo Prado caracteriza como sendo um dos

males do Brasil. Tais considerações tornam interessante um caso vago evocado

brevemente nas memórias de José Correia Leite (1982, p. 118). Ele menciona certo

Clube de Arte Moderna264 no qual “negras bonitas” desfilavam “até em trajes menores”.

Há aqui um claro paralelo com o texto, analisado no capítulo anterior, de Francisco L.

Martins, que fala das “josephine bakers de fôrno e fogão” rebolando no cabaret da

264
Uma hipótese é que se tratasse do “Clube dos artistas modernos”. Fundado em 1932, por Flávio de
Carvalho, Antônio Gomide, Carlos Prado e Di Cavalcanti, durou apenas até 1933.

198
Olympia. 265 Resumindo: nos termos condenatórios de Correia Leite (1982, p. 118), “os

intelectuais gostavam dessas esculhambações”.

O primitivismo entre a ignorância e a exata realização psíquica


Em seu livro A ilusão literária, cuja primeira edição data de 1932, Eduardo Frieiro

– importante crítico literário e professor, que na polarização cultural dos anos vinte

integrara a hoste dos “passadistas” – ridiculariza o movimento modernista via de regra

através de chistes racialmente carregados:

Ainda há pouco os moços da ‘escola da brasilidade’ timbravam de


atacar o idioma nas raízes mais fundas da sintaxe, como que
empenhados em descê-los à categoria de dialeto africano.
(FRIEIRO, 1941, p. 70)
Por mais diferenciada que a queiramos, a língua nacional é
essencialmente a portuguesa e não o nheengatú [nome alternativo
para a língua geral tupi-guarani; em tupi ‘língua boa’] ou o
quimbundo [língua dos quimbundos, população banto de Angola].
Quando muito, e no pior dos casos será um dialeto afro-lusitano.
Aqueles que escrevem portuguesmente mal, supondo que escrevem
brasileiramente bem, são vítimas de uma ilusão, pois escrevem
unicamente preto. (FRIEIRO, 1941, p. 58)

Para além destas e outras referências no corpo do texto, um dos capítulos do livro

que ataca o modernismo chama-se “Crioulismo Literário”, se referindo desta forma

quase que diretamente a leite criôlo (FRIEIRO, 1941, p. 59). A princípio, a

argumentação de Frieiro – que além de anti-modernista era simpatizante dos regimes de

extrema direita que surgiam então na Europa – parece implicar que o modernismo

brasileiro se definiria por sua opção inequívoca pela reabilitação da cultura popular e,

em especial, dos elementos desta mais distantes da tradição europeia. Em outras

palavras, confirmaria a ideia muito difundida de que tal movimento fundaria uma noção

de nacionalidade mestiça, abertamente anti-racista, baseada na defesa da cultura e –

quem sabe? – das reivindicações populares. A exploração feita neste capítulo das

diversas formas como se articulam poder, cultura e “raça” no Brasil das primeiras

265
LEITE CRIÔLO Nº VII, 14 de julho de 1929.

199
décadas do século XX nos obriga a formular, ainda que de forma frágil, uma hipótese

alternativa.

O termo chave para tal questão é “primitivo”. Como mostra Gill Perry (1998), ele

se vincula principalmente ao neocolonialismo europeu do século XIX. Partindo de uma

noção evolucionista de história, o termo carrega consigo a justificação “pedagógica” e

“civilizadora” do colonialismo, os povos não-europeus seriam atrasados em relação a

estes e, portanto, necessitavam da tutela das nações europeias. Por outro lado, a noção

também se adaptava bem ao pensamento racialista. Implicava, em suma, o “outro” do

Ocidente, a natureza à qual se oporiam tanto a civilização, quanto a cultura. Esse

“outro” seria concebido em termos incidentalmente femininos, ainda segundo Perry

(1998, p. 8), como “animalesca, infantil, selvagem, primitiva e lasciva”. Como mostra

Carlos Monsiváis (2000), tal concepção também se interiorizou no âmbito da cidade

letrada latino-americana, fazendo sua aparição em textos tanto críticos como literários

do período que vai das independências até as primeiras décadas do século XX.

Reforçava-se assim a diferença entre a cidade letrada e o vulgo. Enquanto não existisse

um “Povo” “digno deste nome” que pudesse responder pela república, estava justificada

a tutela das elites e da cidade letrada sobre os “primitivos” – tutela da qual a ditadura

positivista mexicana é o caso mais extremado.

As supostas características do “primitivo” eram, no entanto, extremamente

atraentes para parte da vanguarda artística e literária europeia que, seguindo os passos

das revoluções simbólicas operadas no campo francês por Flaubert, Baudelaire, Manet,

os impressionistas, etc (cf. BOURDIEU, 2005), se definiam como contrários ao

establishment burguês. Radicalizando o culto romântico à autenticidade, alguns artistas

começaram a buscar a “verdade” da experiência para além dos limites da nação. De uma

maneira extremamente tensa e ambígua, o “auto-exílio” de Gauguin no Taiti e a coleção

200
de máscaras “negras” de Picasso – e, logicamente, a forma como tais referências se

fazem presentes nas respectivas obras – implicam uma recusa muito profunda dos

valores médios da sociedade europeia de então e, contraditoriamente, uma participação

implícita na iniciativa imperialista daqueles mesmos países. Como lembram Hal Foster

(1985, p. 52) e Els Lagrou (2008, p. 218), os objetos de além mar que a avant-garde

europeia propunha então como obras de arte eram, antes de tudo, troféus de guerra do

imperialismo, ainda que racionalizados enquanto evidência etnográfica do caráter

“pouco evoluído” das populações submetidas. Ao associar – na obra que definiu a

entrada das artes plásticas no século XX, Les Demoselles d’Avignon – a imagem das

máscaras “negras” com uma cena de bordel, Picasso transgredia violentamente o gosto

médio do público europeu e ao mesmo tempo reforçava o vínculo já profundamente

assentado no imaginário ocidental entre África, selvageria e lascívia (cf. FOSTER,

1985, p. 45; GINZBURG, 2002, p. 122-123,126).

A forma como a questão do primitivo se apresentou aos escritores que se

definiram como modernistas, no Brasil dos anos 1920, era ainda mais tensa e ambígua.

Ao contrário dos primitivistas europeus, os brasileiros propunham o primitivo como

forma de representatividade local capaz de embasar uma estética nacionalista. Mas a

própria trajetória do Brasil enquanto nação soberana dificultava tal tarefa. Benedict

Anderson classifica os estados-nação, formados nas Américas entre o final do séc.

XVIII e meados do séc. XIX, como “pioneiros criollos” dado prescindirem do modelo

herderiano de nação que marcaria a emergência dos estados-nacionais europeus.

Chegando à independência através de movimentos liderados pela classe dominante local

identificada “racial”, linguística e culturalmente com a metrópole e povoados por

populações mestiças e/ou nativas analfabetas e consideradas primitivas, estes países

teriam dificuldades de adotar plenamente o padrão herderiano de “cultura nacional”.

201
A intenção de construir para o povo – no duplo significado de “direcionado ao

povo” e de “em nome deste” – uma representação da “cultura popular” como o foco de

uma identidade nacional comportava dificuldades consideráveis. A posição social

privilegiada dos escritores modernistas enquanto membros da cidade letrada, logo

possuidores de um capital cultural elevado (ensino superior, familiaridade com a

literatura, etc.), em uma configuração social no qual mesmo saber ler e escrever é uma

raridade, implica uma dificuldade de identificação com o “povinho”, definido como

ignorante e sobre o qual ainda não está dissipada a pecha da inferioridade racial. Daí

que, em carta para Mário de Andrade de dezembro de 1924, Carlos Drummond de

Andrade defenda sua recusa, depois superada, em aderir ao nacionalismo modernista

nos seguintes termos:

Estou com o Oswald [de Andrade] num ponto: a suprema


expressão de brasilidade é a estupidez. E se nós quisermos ser
brasileiros de fato, sejamos burros, bárbaros, primitivos não
façamos pesquisas psicológicas; não viajemos em Joyce, Conrad,
Cendrars, Proust, Jacob e outros ilustríssimos estrangeiros... Ah!
Se o obrigassem a isto, meu velho... você preferia suicidar-se. (Só
não concordo com o Oswald-realizador, que nos saiu dono de uma
“dicção eminentemente artística e personalíssima”.) (apud
SANTIAGO, 2002, p. 79-80).

Nota-se aí a resistência de um jovem escritor, já entusiasta da literatura moderna e

do “futurismo paulista”, às ideias nacionalistas da corrente literária que havia sido

batizada de “primitivista” por Alceu Amoroso de Lima. O comentário escrito-à-mão do

autor de Macunaíma na margem do trecho citado da carta de Drummond ajuda a

compreender a noção de primitivismo que o anima:

Minha arte, se assim você quiser, tem uma função prática e eivada
dum interesse vital e pra ele se dirige. Nisto sou bem primitivo.
Tem primitivismo e primitivismo. Tem o que vem da ignorância e
é condenável. Tem o que vem da exata realização psíquica e é
admirável. Tem o que vem da consciência duma época e duma
necessidade social e humana. É intelectual, não abandona a crítica
e a erudição. E só aparentemente se afasta delas. Este é louvável e
necessário. (apud SANTIAGO, 2002)

202
Mário de Andrade sente aí a necessidade de afirmar, talvez apenas para si mesmo,

que seu primitivismo não significa deixar de ser erudito, não significa tornar-se

verdadeiramente primitivo (no mau sentido da palavra). É interessante que a hesitação

frente à possibilidade do primitivismo desqualificar o primitivista como intelectual,

presente tanto no trecho citado de Drummond quanto no de Mário, aparentemente não

se coloca para os artistas primitivistas europeus. Max Ernst, por exemplo, podia se

identificar plenamente com o que entendia ser o “xamanismo” (cf. LAGROU, 2008, p.

228-229) sem correr o risco de ser confundido com um “nativo”. A identificação básica

dos modernistas brasileiros adeptos do primitivismo com a cultura ocidental, seu

complexo de inferioridade em relação à legitimidade cultural erudita europeia e,

principalmente, a distância social entre eles e as massas populares que consideravam

“primitivas” implicavam que seu projeto nacionalista, por mais otimista e radical que se

mostrasse, se encontrava perpassado de tensões e ambiguidades. Dessa forma, cabe

discordar de Antônio Cândido (1967, p. 142) quando este afirma que o “hábito em que

estávamos do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos, da poesia folclórica, nos

predispunha a aceitar e assimilar processos artísticos [primitivistas] que na Europa

representavam ruptura profunda com o meio social e as tradições espirituais”. Ao

mesmo tempo em que Mário de Andrade (1977, p. 73-83) descreve em Macunaíma uma

“macumba” – colocando como “macumbeiros” modernistas primitivistas brasileiros

como Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira e Raul Bopp, além do europeu Blaise

Cendrars –, a prática das religiões afro-brasileiras continuava sendo em São Paulo caso

de polícia, constituindo talvez aquilo que, como vimos acima, Arthur Ramos

denominaria, ainda em 1934, “culturas atrasadas dificultando a obra da nossa educação”

(apud DÁVILA, 2006, p. 75).

203
As mesmas contradições aparecem, como seria de esperar em um movimento

centrado na experimentação textual, no nível da linguagem literária. A tentativa de

transpor para a poesia ou a prosa as inúmeras diferenças sintáticas, fonéticas, semânticas

etc. que distinguiam a língua falada no Brasil dos manuais de língua portuguesa

implicava lidar com o fato de que nos usos correntes da língua escrita tais diferenças

seriam percebidas como erros, ou seja, sinais socialmente reconhecidos da “ignorância”

do seu autor. Como diria o anti-modernista Frieiro (1941, p. 58), no trecho citado acima,

corria-se o risco de, na tentativa de se escrever “brasileiramente bem”, se escrever

“portuguesmente mal” e “unicamente preto” (nota-se aí a confluência entre preconceitos

sociais, linguísticos e raciais). Em resposta a este tipo de crítica, Mário de Andrade

afirmaria, em um texto dos anos 1930:

Está claro que nenhuma destas minhas ousadias justifica a


ignorância. O escritor é o indivíduo que se expressa pela
linguagem alfabética, isto é, a linguagem culta. É preciso, pois que
ele conheça preliminarmente essa linguagem que lhe vai servir de
instrumento de expressão. É quase lapalissada afirmar que só tem
direito de errar quem conhece o certo. Só então o erro deixa de o
ser, para se tornar um ir além das convenções tornadas inúteis
pelas exigências de uma nova expressão (apud PROENÇA, 1974,
p. 61).

Nesse trecho Mário se sente na obrigação de explicitar o que considera um

truísmo: somente ao escritor que conhece seu métier é facultada a licença poética de

utilizar esteticamente formas linguísticas “erradas”, ser primitivista sem se tornar, no

mau sentido, um primitivo. Como todas as licenças, a poética seria dispensada apenas

àqueles que possuíssem a autoridade/competência apropriada.

Para Angel Rama (2008b, p. 61) a identificação do romance regionalista latino-

americano com as estruturas mentais burguesas europeias se reduplicava textualmente

na diferença entre a linguagem culta do narrador e a popular do personagem. Para ele,

ambos os traços estariam ausentes na transculturação narrativa propriamente dita. No

quadro do modernismo primitivista, porém, a ausência de uma moldura textual erudita

204
não significa necessariamente uma identificação com as estruturas mentais “primitivas”.

Extrapolando o raciocínio do autor de Macunaíma, é possível afirmar que, ainda que

textualmente idênticos, os “erros” estilizados dos intelectuais primitivistas constituem

uma linguagem inteiramente diferente dos erros de português que assinalam socialmente

a “ignorância”. As aspas entre as quais o discurso popular aparece no poema e na prosa

modernista não se apresentam no texto e sim na posição do escritor e mesmo da rede

modernista como um todo na sociedade brasileira de então.

Tal forma de pensamento pode ser notada de maneira bastante explícita no corpus

de leite criôlo. Ali uma linguagem marcada por incorreções de ortografia e construções

sintáticas estranhas à norma culta aparece tanto como motivo de escárnio em relação às

pretensões dos “ignorantes” quanto como recurso erudito e consciente para a feitura de

poemas na vertente modernista do nacionalismo primitivista. Endossando a utilização

de tal linguagem aparece na publicação um texto de Guilhermino César relativo à

discussão sobre a existência ou não de uma língua nacional brasileira. Depois de

mencionar as posições favoráveis de Mário de Andrade, Roquette-Pinto e Júlio Ribeiro,

comenta ali que a própria existência da discussão produz um

alegrão de quantos fazem leite criôlo. Porquê estamos contentes


com a fala sem lei, nem rei, contrariando as linhas que brotam
longe. Pra nos agoniar e nos prender o pensamento tumultuoso. 266

Já na seção “raça”, acumulam-se exemplos da “incapacidade” de seguir as leis e

os reis – assimilada aqui não à iconoclastia do “pensamento tumultuoso”, mas aos

“males do Brasil” sintetizados no “criolismo”. Dos vários textos publicados destacam-se

exatamente os versos primitivos no mau sentido, dentre eles três da autoria do “pequeno

escritor” Olavo Augusto Maia. Na verdade, todo o projeto programático de leite criôlo

se deu em termos próximos da já citada aprovação irônica de Drummond do conceito

266
“Pingente”, em LEITE CRIÔLO Nº I, 2 de junho de 1929.

205
oswaldiano de brasilidade: a blague vanguardista-primitivista seria o antídoto da

estupidez nacional.

A distinção que vemos trabalhando entre o primitivismo culto e a ignorância

“primitiva” se diferencia bastante de um dos gritos de guerra do Manifesto da Poesia

Pau-Brasil, que proclama a “contribuição milionária de todos os erros”. Temos por

hipótese que o grau que alcança a iconoclastia primitivista de Oswald – nos manifestos,

assim como na segunda dentição da Revista de Antropofagia – tem relativamente

poucos ecos dentro do modernismo brasileiro daquele momento. Ironicamente, a

radicalidade primitivista do autor de Serafim Ponte Grande parece mais próxima do

entusiasmo das vanguardas europeias, como o do Surrealismo, com o “primitivo” do

que da maior parte dos modernistas brasileiros com a nacionalidade. Um dos traços em

comum dos ideários oswaldiano e surrealista é o que Hal Foster denominou “fantasia

primitivista”, ou seja, a fantasia “de que o outro, normalmente considerado de cor, tem

um acesso especial a processos psíquicos e sociais primários aos quais o sujeito branco

teria o acesso bloqueado” (apud LAGROU, 2008, p. 224) – ainda que Oswald, de

maneira até surpreendente, jamais coloque a questão em termos propriamente raciais.

A proximidade com os surrealistas se mostra igualmente no interesse pelo

antropólogo francês Lévy-Bruhl, cujos estudos sobre a “mentalidade primitiva” são

mencionados no Manifesto Antropófago. Tais estudos postulavam que o pensamento

“primitivo” era pré-lógico – característica que o assemelhava ao inconsciente freudiano,

outra pedra de toque dos ideários surrealista e antropofágico – e, na época, suas

pesquisas eram invocadas dentro de um discurso que aproximava a mente “primitiva”

da infantil (cf. GERKEN, 2000). Como já observou Raúl Antelo (1991), o tema da

criança e, em especial, o enxergar o mundo com um olhar infantil é fundamental na

poesia de Oswald, em especial no Primeiro caderno de poesia e em Pau Brasil. No

206
seguinte trecho da seção “de antropofagia”, espécie de editorial da segunda dentição da

Revista de Antropofagia, assinada com o pseudônimo Freuderico, os temas da criança e

do primitivo aparecem vinculados:

Nós acreditaríamos num progresso humano se a creança nascesse


alfabetisada. Mas emquanto ella [não] aparecer no mundo, como
nesses ultimos quarenta seculos de cronica conhecida, nasce
naturalmente na edade da pedra. E ahi ficaria, primitiva e
nhambiquara [nação indígena do norte do Mato Grosso], se não a
deformassem imediatamente. Não há motivos para se ter saudades
das edades líticas. Todos os dias nascem milhões de homens
prehistoricos.267

Vemos aí o “primitivo” e a criança, tabus-tótens do outro do ocidente

“civilizado”, reivindicados ao projeto utópico da Antropofagia. Ambos, no entanto, são

pensados como seres de natureza – pontos iniciais de uma hierarquia evolucionista,

ainda que invertida. Tal associação, corrente na época, não costumava ter uma

interpretação tão generosa quanto a oswaldiana. Um bom exemplo disso se faz presente

no curricum vitae de Arthur Ramos de 1945, dezesseis anos depois da publicação de

leite criôlo, no qual ele expressa sua

preferência pelo estudo do comportamento humano, especialmente


em certas condições deficitárias de atuação: a criança, o primitivo,
as minorias étnicas, o alienado e o neurótico (apud DÁVILA,
2006, p. 74).

Remetidos ao anormal e ao infantil, compreende-se como os traços culturais

herdeiros da África “primitiva” pareciam pouco atraentes para os militantes da

cidadania negra, no exato momento em que para intelectuais identificados com a

branquitude tais traços pareciam matéria-prima valiosa para a afirmação literária da

representatividade local ou mesmo de um desafio utópico ao Ocidente repressor.

Corra tempo ensanguentado


Tal como o temos analisado, leite criôlo representa a tragédia e a miséria de certa

vertente do que poderia ser descrito como a transculturação narrativa “clássica”, ou seja,

267
Revista de Antropofagia, 2ª Dentição Nº 1.

207
da reapropriação de traços culturais tradicionais por um discurso culto e moderno.

Cabem, no entanto, certas ressalvas. Sem dúvida trata-se de uma transculturação

superficial – o conhecimento das tradições populares transculturais por parte dos

escritores de leite criôlo é tão raso quanto aquele dos escritores indigenistas anteriores a

Arguedas, duramente criticados por Rama (2008b). E mesmo estes se articulam a partir

de princípios políticos e ideológicos bem mais generosos do que os que animam o grupo

da publicação belorizontina.

Apesar disso, certos traços mais gerais da transculturação narrativa que

denominamos “clássica” têm sido alvo de críticas. Para Friedhelm Schmidt (1996), a

ênfase de Rama na reconciliação do tradicional e do moderno na literatura culta ignora a

heterogeneidade dos circuitos culturais latino-americanos. Na mesma linha de crítica,

Moreiras (2001) afirma que o próprio suicídio que Arguedas inscreveu como palavra

final de seu último romance atesta como as contradições culturais de uma posição como

a dele não poderiam ser tão facilmente reconciliadas através de uma transculturação

narrativa bem sucedida. Partimos, porém, aqui do pressuposto de que tal conceito é

muito mais interessante do que sua redução aos projetos nacionais cultos de autonomia

e modernidade literárias. Se de fato as realidades latino-americanas se apresentam de

fora a fora como heterogêneas e transculturantes, muitas formas de transculturação

narrativa são necessariamente possíveis, inclusive fora das muralhas da cidade letrada.

Uma segunda forma de transculturação narrativa aparece em leite criôlo.

Poderíamos defini-la como torta ou picaresca, passando-se assim da tragédia da

transculturação para a comédia da mesma.

Como já mencionado, uma das estrelas da seção “raça” de leite criôlo é o

“servente da Secretaria de Finanças e rouxinol nas horas vagas” Olavo Augusto Maia,

“figura típica” ironicamente adotada pelos estudantes que dirigem a publicação. Um

208
artigo de Oswaldo Abrita traça o seu perfil: 268 negro, pretenso escritor de ortografia e

concordância irregulares, subalterno hierárquico dos membros do grupo modernista

(todos eles possuem cargos intermediários no funcionalismo público), ele representa a

própria imagem do povinho pretensioso e condizentemente será um dos alvos de

escárnio prediletos de leite criôlo. Além deste artigo, são publicados três poemas de

Olavo Augusto Maia e a pequena estória que encena sua condição, “O poeta obscuro ou
269
o poema do amor desiludido” . Em todas estas alusões os inúmeros erros de

português do “pequeno escritor” são a “evidência” que permite ao grupo mineiro

formular todo o seu preconceito racista e classista nos termos da exigência de uma

competência linguística. Talvez a maior crueldade do grupo para com seu “amigo” seja

a publicação do texto que se segue — creditado ao “pequeno escriptor Olavo Augusto

Malha — servente da Secretaria das Finanças”, sendo a alteração do nome do autor,

segundo o artigo já citado, uma hipercorreção dele próprio — no tablóide comemorativo

da abolição da escravatura, enfatizando seus erros pela falta absoluta de revisão textual:

Poema

É a hora chegada
Dum grande oniversitario
Que gramou a liberdade
Da monarquia chamada.

A, quem deve de agradecer


E a princeza Alizabett
Que com o seu bom coração
livrou da escravidão

Que sairam os seus monarka


Todos danado da vida,
de perder os braços negro
Que sustentava nos degredo.

Treze de maio chamado


Pelas bouca dos fazendeiro
Viva a liberdade querida

268
“Do pequeno escriptor Olavo Augusto Maia ao poeta Alberto Agostini”, em LEITE CRIÔLO Nº XII
(13º), 11 de agosto de 1929.
269
Por Diderot Coelho Junior, em LEITE CRIÔLO Nº V, 30 de junho de 1929.

209
Que nunca mais nos escraviza;

Cento e nove annos decorrido,


Que o plêcto acham livre
Desta peste emflorida
Que ninguém mais faz cair na lida.

Corra tempo malvado


Corra tempo emsanguentado
Blancos das mãos desgraçadas
Que muitos pobres matarão marrados270

Vale à pena focar um pouco no poema. Trata-se de um texto que quase pede que

um professor o corrija e atribua uma nota, provavelmente não muito boa, dado o grau de

relação desconfortável com a escrita – e talvez com o conjunto da cultura erudita – que

nele transparece. Embora o sentido dos versos esteja pouco claro, não se pode deixar de

ver na menção ao “grande oniversitario” um certo fascínio do “pequeno escritor” pelos

próprios alunos da faculdade de direito que são ao mesmo tempo seus superiores

hierárquicos e seus cínicos editores. O poema, porém, constitui mais que um objeto

indefeso do ressentimento elitista dos modernistas de leite criôlo, como demonstra a

seguinte comparação de algumas de suas estrofes com trechos de cantos de congado,

recolhidos por Edimilson Pereira no ritual dos Arturos:

Que sairam os seus monarka


Todos danado da vida,
de perder os braços negro
Que sustentava nos degredo.

Treze de maio chamado


Pelas bouca dos fazendeiro
Viva a liberdade querida
Que nunca mais nos escraviza;
(Olavo Augusto Maia)

No dia 13 de maio
Fazendero todo chorô
Chorô, chorô
Cativeiro de nego acabo
(apud PEREIRA, 2000, p. 64) 271

270
LEITE CRIÔLO (Tablóide), 13 de maio de 1929, p. 4.
271
Devo a comparação entre o poema publicado em leite criôlo e o canto de congado à erudição e à
sensibilidade do pesquisador Adélcio de Sousa Cruz, que me chamou a atenção para suas similaridades

210
Contra toda a probabilidade, o “pequeno escritor” pode ter sido também uma

espécie curiosa de transculturador narrativo, reformulando a memória coletiva expressa

em cantos de congado através do que naqueles tempos ainda era um relativo privilégio:

saber ler e escrever, ainda que mal. E nem mesmo a menção à “princeza Alizabett

[provavelmente confundida com a Princesa Isabel] / Que com o seu bom coração /

livrou da escravidão” consegue atenuar a força apocalíptica da profecia que encerra o

poema, um verdadeiro grito de vingança contra um passado e um presente violentos e

injustos:

Corra tempo malvado


Corra tempo emsanguentado
Blancos das mãos desgraçadas
Que muitos pobres matarão marrados

durante uma apresentação da minha pesquisa sob os auspícios do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da
Alteridade (NEIA) da Faculdade de Letras/UFMG.

211
Totalizando nossa maneira: Considerações finais
A formula – tupy or not tupy that’s the question [trecho
do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade] –
exprime nada ou quase nada. Porque não é com o
indianismo só, ou sem elle, que chegaremos a totalizar
nossa maneira. É com muita coisa mais.

- João Dornas Filho, enquete com escritores mineiros,


Diário de Minas, 3/2/1929.

Passaram-se mais de oito décadas desde a publicação de leite criôlo. Ao contrário

do que desejavam os racialistas das primeiras décadas do século XX, os negros do

Brasil não desapareceram. A herança cultural africana tem sido, na verdade, cada vez

mais valorizada por brasileiros de todas as cores. A palavra “primitivo” não faz mais

parte do vocabulário dos antropólogos e da maioria dos intelectuais. O mito da “raça”

como conceito biológico foi inteiramente desacreditado pela ciência.

Jovens interessados em discutir e transformar a realidade do país buscariam agora

os cursos universitários de ciências humanas ou os partidos e movimentos políticos, não

a publicação de um periódico literário. Mesmo no âmbito – tão caracteristicamente

contemporâneo – do que chamamos cultura, a preocupação com os destinos do Brasil

tende a aparecer mais nas letras de música e nas telas dos cinemas do que nos poemas.

A literatura frequenta também cada vez menos as páginas dos jornais, e as polêmicas

literárias já não possuem a mesma dimensão na esfera pública. Parafraseando o mais

famoso dos modernistas mineiros, podemos dizer que leite criôlo é apenas uma coleção

de documentos escondida em algum arquivo.

“Mas como dói!” Parte da dor pode ser atribuída à mera visão de exemplos

explícitos da tendência odiosa de imputar características morais negativas a pessoas

devido ao seu fenótipo e à sua descendência. Poderíamos, no entanto, nos alegrar pelo

fato de tais palavras estarem confinadas no passado. Voltando ao Nietzsche (2003, p.

212
25-29) da Segunda consideração intempestiva, estaríamos assim praticando a história

crítica, condenando o passado em nome do presente.

No entanto, leite criôlo dói. Talvez exatamente por se associar com algo que não

está inteiramente morto e encerrado. Como vimos no primeiro capítulo, o modernismo é

um ponto de referência muito forte para a intelectualidade brasileira, o que talvez seja

decorrente da leitura poderosa que o movimento produziu sobre as relações entre o

universal e o local, entre a cultura erudita e a cultura popular e entre as “raças” que se

fundiriam para produzir a nacionalidade. É cômodo acreditar que os modernistas

resolveram tais questões de maneira definitiva e que podemos simplesmente acatar suas

conclusões. Mas – como no caso do racismo brasileiro que “não existe” e está por toda

parte – algo parece estar fora de lugar.

O recurso ao que denominamos, no primeiro capítulo, de memória monumental do

modernismo, no âmbito de uma discussão política contemporânea, talvez ilustre esse

ponto. Na Revista Brasileira de Ciências Sociais de junho de 2005, encontra-se

publicado um artigo de Yvonne Maggie, antropóloga e professora titular da UFRJ, cujo

título é uma pergunta: “Mário de Andrade ainda vive?”. Nesse texto, a autora afirma

que a discussão sobre cotas raciais sabota o ideal modernista de um Brasil híbrido e

levanta o perigo da divisão da nação em brancos e negros. “Que não se acuse Mário de

Andrade de racista!”, afirma a autora, pontuando exclamativamente sua defesa de quem

ela considera, exatamente nesses termos, “um herói fundador”.

É curioso, no entanto, que, na sua descrição da suposta gênese do ideal de um

Brasil híbrido, essa autora recorra ao trecho de um dos prefácios não-publicados de

Macunaíma no qual Mário de Andrade afirma que seu “herói”, assim como a entidade

nacional brasileira, não possui caráter, especificando que entende caráter “não apenas

[como] uma realidade moral” (apud BATISTA, 1972, p. 293). Como em tantas outras

213
análises, a discussão sobre o incaracterístico do “herói sem nenhum caráter” e, por

extensão, do brasileiro desvia o olhar de Maggie da ausência de caráter enquanto

“realidade moral”. Essa última qualificação encaixa perfeitamente na condenação do

“povinho”, repetida à exaustão em leite criôlo e traço fundamental também do Retrato

do Brasil de Paulo Prado. Visto dessa forma, como argumentamos no quarto capítulo, o

romance-rapsódia de Mário de Andrade se presta a uma leitura extremamente

conservadora. Leitura que ecoa na atual utilização pejorativa, por parte da blogosfera

política de direita, do termo “macunaímas” para designar a população brasileira pobre –

a quem tais blogueiros não perdoam a eleição e a reeleição de um ex-operário para a

presidência da república.

Esperamos que o leitor tenha observado que no presente trabalho não se pretende

acusar nem Mário de Andrade, nem ninguém, de racista. Nem mesmo as mais odiosas

manifestações da crença na desigualdade humana de base racial com as quais

trabalhamos – e, honra seja feita, nenhuma delas saiu da pena do autor de Macunaíma –

foram pensadas aqui em termos de acusação. Pelo contrário, foram sempre remetidas a

seus respectivos contextos históricos. Espalhar acusações de racismo sobre os

intelectuais que tomamos por objeto seria como acusar os gregos da Antiguidade de

pedofilia, um enorme anacronismo. O que também não significa transigir hoje com

qualquer dessas práticas, corretamente qualificadas como crimes, pelo fato de, em

outros contextos, terem sido comuns e aceitas. Como afirma Michel de Certeau (2002,

p. 93), o passado é exatamente o meio de representar uma diferença.

Contra o maniqueísmo – contra a narrativa simplificada de uma luta clara e

vitoriosa do “bem” contra o “mal” que permeia a memória monumental modernista – é

que se volta o presente trabalho. Esforçamo-nos no sentido de que os personagens e

ações aqui descritos, partindo sempre da articulação conceitual do máximo possível de

214
fontes primárias relevantes, possuíssem certa complexidade e certa profundidade, que

suas dúvidas e ambiguidades fossem colocadas sempre em primeiro plano.

A nomeação e a descrição sumária do consideramos ser a memória monumental

do modernismo não significa também uma separação radical entre o presente trabalho e

o já tradicional campo dos estudos sobre tal movimento. Como lembra Foucault (1999,

p. 15-16), a genealogia também produz monumentos, ainda que sejam “monumentos

ciclópicos”. Devemos lembrar que existem inúmeros trabalhos, vários deles aqui

citados, que lêem criticamente a trajetória da geração modernista, ainda que a leitura

linear e monolítica do movimento tenha se demonstrado surpreendentemente perene.

Seguindo a sugestão de Michel de Certeau (2002, p. 71-72), adotou-se aqui a primeira

pessoa do plural precisamente como signo do fato de que o discurso histórico, para além

das pretensões subjetivas ou das generalidades edificantes, parte sempre de um lugar, de

um “sujeito plural”. Somos tributários, assim, não apenas do diálogo com um amplo

espectro de estudos e de um trabalho de orientação, mas também de todo um esforço,

muitas vezes anônimo, de arquivamento e catalogação. Sem a documentação daí

proveniente seria impossível a minúcia que poderia justificar o caráter incisivo de

algumas das nossas afirmações, ainda que ao custo de tornar o presente texto talvez

demasiadamente longo e enfadonho. Novamente Foucault (1999, p. 15): a genealogia é

cinza.

Respondendo à pergunta que intitula o texto de Yvonne Maggie citado acima,

Mário de Andrade morreu no dia 25/2/1945, deixando uma obra que inspirou, inspira e

ainda inspirará por muito tempo. Mas a quem vive hoje diz respeito verdadeiramente o

presente, não o passado. Julgar, mitificar, transformar em bandeira o passado é fácil,

entendê-lo na sua complexidade exige trabalho e reflexão. Afirmamos acima que leite

criôlo dói: constitui assim um sintoma, que tentamos analisar sobre diversos aspectos

215
nos capítulos anteriores. Um possível diagnóstico se encontra além do escopo das

nossas possibilidades. Dessa forma, cabe encerrar, não totalizando nossa maneira, mas

reivindicando as palavras do autor de Macunaíma:

Nas épocas de transição social como a de agora é duro o


compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe
[sic]. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e por isso não
posso tirar dele uma fábula normativa. (apud BATISTA, 1972, p.
293)

216
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