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PANDARECO

Casé Lontra Marques


PRIMEIRA TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DO PANDARECO

Precisamos apenas de duas palavras para descrever o Pandareco: duas


palavras bem simples, mas difíceis de encontrar. Para conhecê-las, podemos
seguir três caminhos. Depois de andar um pouco, descobrimos que cada
caminho termina num pátio — não muito grande, para dizer a verdade — onde
há quatro portas (todas trancadas). Até hoje foi desvendada apenas uma
maneira de abri-las: responder a cinco perguntas. Ninguém vai perguntar o
nome do presidente do país (nem o que você estava pensando quando sentou,
por distração, em cima do pudim que havia sido deixado num banco pequeno,
mas razoavelmente confortável, em frente ao prédio de seus avós, enquanto o
carro estava sendo descarregado). Quer dizer, então, que as perguntas não
representarão nenhum problema — mas, quando alguma porta estiver aberta,
não poderemos entrar de uma vez: antes será necessário cumprir seis tarefas.
Cada tarefa exigirá sete dias de trabalho. Cada dia de trabalho, oito semanas
de preparação. Cada semana de preparação, nove meses de descanso. Sim,
ficaremos cansados. Por isso procuraremos outra forma de descrever o
Pandareco.

[2]
CARTA UM

Senhores pássaros, senhoras pássaras: eu também sei voar. Não, eu não


tenho asas — como as andorinhas, as pombas, as garças. Também não tenho
turbinas (como os aviões) nem hélices (como os ventiladores, não, como os
helicópteros). Já me perguntaram se eu voo:

a) com os pensamentos, principalmente quando pensamos sem prazo, sem


pressa, porque não precisamos concluir nenhuma prova;

b) com as pipas, os papagaios;

c) com as emoções, que nos levam às alturas, mesmo se estivermos descendo


uma ladeira de bicicleta, a toda velocidade;

d) com as palavras;

e) com as folhas de papel que fogem, de repente, quando a gente está


desenhando no chão na sala, de janela aberta.

“Não”, respondo: “eu voo”, acreditem, “com a realidade”. Às vezes voo também
com a imaginação. Mas isso eu não conto: temo que confundam com
assombração.

UM AVISO:

Eu também sei cantar.

OUTRO AVISO:

Mas eu canto um pouco mal.

[3]
AVISO FINAL:

Prefiro o canto dos sabiás.

[4]
SEGUNDA TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DO PANDARECO

Podemos descrever o Pandareco com um desenho. Desta vez será mais fácil:
“Nós sabemos desenhar”, dizemos. “Nós sabemos desenhar”, repetimos com
alguma convicção. Mas claro que não será um desenho qualquer. Precisamos
seguir algumas regras. Não, não teremos problemas. São apenas duas regras.

PRIMEIRA REGRA:

Temos liberdade para escolher todas as cores de que gostamos. Mas se nós
optarmos, por exemplo, pela cor azul, não poderemos simplesmente pegar, no
nosso estojo, um lápis azul. Primeiro será necessário esperar um belo dia de
sol. Depois, esticando bem o braço, molharemos pacientemente o dedo — tem
gente que prefere usar um pincel — direto no azul do céu.

OBSERVAÇÃO UM:

O mesmo vale para todas as outras cores.

OBSERVAÇÃO DOIS:

Dizem que a cor mais difícil de alcançar é aquela com que se colore o invisível.

[5]
SEGUNDA REGRA:

Certamente utilizaremos muitas linhas. No entanto, nem todas serão válidas:


há linhas que não dizem nada, mesmo quando não estão erradas. No nosso
desenho, não perderemos tempo com linhas caladas. Assim, se nós quisermos
riscar uma linha reta, precisaremos criar um risco em que seja possível
encontrar não apenas uma reta, mas pelo menos duas paisagens de diferentes
lugares, muitos animais, principalmente cachorros, gatos, elefantes, papagaios,
uma linda cidade, não apenas uma linda casa, talvez até uma pequena trilha de
formigas.

OBSERVAÇÃO UM:

O mesmo vale para as linhas curvas.

OBSERVAÇÃO DOIS:

Dizem que a linha mais difícil de desenhar é aquela com que se continua o
infinito.

[6]
DIRCURSO POR OCASIÃO DE UMA IMPORTANTE PREMIAÇÃO

Quando o Pandareco for receber um prêmio realmente importante, ele não irá
dizer apenas obrigado, Fulano, obrigado, Sicrano, nem irá somente chorar
(quer dizer: chorar muito, muito mesmo, ele não vai, apesar da emoção).
Sabemos que podem ocorrer diversos imprevistos — como, por exemplo,
gaguejar. Mas o discurso já está decorado. Pandareco dirá: “Agradeço, em
primeiro lugar, ao motorista do ônibus, senhor Dirceu Flores, grande amigo,
porque sem ele eu não estaria aqui onde estou agora. Em seguida, agradeço à
moça da lanchonete, senhorita Paulinha, sim, senhorita Paulinha, pois sem ela,
sabe, sem ela” — é, este é o discurso. O tempo que restar, bom, será dedicado
aos rios, não, aos mares de lágrimas.

[7]
COM UMA NOVA AMIGA (NA PRAIA)

Não precisamos nos esforçar para notar, nesta foto, o sol, bem aberto, brilhar
menos que o olhar do Pandareco. Não dá para identificar a praia. Mas, com
certeza, era o dia em que o Pandareco, sentado na areia, jurou ter visto uma
tartaruga piscar para ele lá do mar. Enquanto esperava a sua nova amiga
voltar, pediu — visivelmente contente — um picolé de doce de leite. Depois se
levantou para nadar. Quando escureceu, Pandareco já tinha se esquecido de
esperar. Dizem que as tartarugas são bastante tímidas. Mesmo assim,
Pandareco sabe que até hoje a sua amiga sorri sempre que ele se aproxima da
água.

[8]
CARTA DOIS

PRIMEIRA VERSÃO:

Peixes de todos os rios, de todos os mares, de todos os chafarizes — é a


primeira vez que escrevo essa palavra: um chafariz, dois chafarizes (da mesma
forma que com nariz: um nariz, dois narizes). Onde eu parei mesmo? Não está
bom, começarei de novo. Agora com mais atenção: evitarei me desviar do
assunto — assim que descobrir um assunto: peixes de todos os rios, de todos
os mares. Acho que partirei daí, com mais atenção: porque não quero. Não
quero o quê? Começarei de novo, depois de respirar, com calma, riscando o
que não der para apagar.

SEGUNDA VERSÃO:

Peixes de todos os rios, de todos os mares, de todos os chafarizes, de todos os


lagos, de todas as lagoas, de todos os aquários: não será nenhuma novidade
eu dizer que também sei nadar — nem que nado muito bem (apesar de não
fazer planos para ficar perdido numa ilha, nem para ser campeão de natação).
Talvez eu não tenha nenhuma novidade: talvez tenha somente algo importante
para contar. Na verdade, eu sou um pouco peixe. Posso explicar: eu tenho um
lado peixe. Na verdade, o meu lado peixe é muito maior que um lado. É isso:
muito, muito maior que um lado. Estou conseguindo explicar? Alguém poderia
me responder, apenas para ajudar. Então? Acho melhor escrever outra carta.
Terminará assim: peixes, todos nós — todos mesmo — temos um pouco de
Pandareco.

[9]
ESBOÇO PARA UMA OBRA-PRIMA

Quem passasse pela porta do Pandareco poderia vê-lo, a qualquer hora,


sentado na mesa da sala, em silêncio. Nesses dias, o Pandareco lutava com
uma ideia: pintar, no horizonte, uma passagem para um lugar em que o infinito
estivesse sempre à mão. Mas não sabia nem por onde começar. Poderia ser
por um horizonte na terra, sob o sol que transborda pelo deserto: poderia ser,
também, por um horizonte encharcado de mar. Acima de tudo, o importante era
que todos, neste lugar, pudessem comer — com muita manteiga — uma fatia
de infinito (até se lambuzar).

[10]
DEPOIMENTO DOS PAIS DA NAMORADA DO PANDARECO

Pandareco namora a Pipoquinha, nossa filha. Em vez de dizer: “Eu tenho uma
linda namorada” — ele diz: “Eu tenho uma maluquinha amada”. Sim, eles se
entendem. Nossa filha sabe que, na maior parte das vezes, as palavras do
Pandareco têm tanto sentido quanto a imensidão das flores, quanto o perfume
dos mares.

[11]
COM UM NOVO AMIGO (NA PRAÇA)

Nesta foto, bem, vemos Pandareco numa praça, debaixo de uma árvore,
abraçando um novo amigo. Não é um cão, não é um gato. Não é nem mesmo
um pássaro. É um menino — um menino embrulhado em pedaços de papelão.
Pandareco (antes de abraçar o novo amigo) disse: “Eu sonhei com alguém que
não podia sonhar”. O menino respondeu: “Engraçado, eu sempre sonho que
ainda irei sonhar”. Chovia. Neste dia, chovia. Pandareco de repente percebeu
que o amigo não tinha cama nem colchão, que o amigo dormia toda noite
naquela calçada — coberto apenas por um pouco de papelão. Pandareco não
conseguia encontrar o que dizer. Mas podia, podia abraçar. O menino
entendeu que agora tinha um amigo. Entendeu também que aquele dia
continuaria dentro de cada dia.

[12]
TERCEIRA TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DO PANDARECO

Nós podemos, somente pelo som, reconhecer, por exemplo, um gato, um


periquito, um leão, um esquilo. Talvez não seja possível reconhecer assim uma
girafa (para falar a verdade: quem conhece, afinal de contas, o som de uma
girafa?), mas podemos — com toda a certeza — não só reconhecer, mas
também descrever o Pandareco. Não encontraremos grandes problemas: o
Pandareco, durante o dia, produz muitos, muitos sons. Tanto que precisamos,
para evitar qualquer confusão, estabelecer um método, um caminho de
trabalho. Neste momento, tentaremos estudar os sons — são muitos, muitos os
sons — que o Pandareco produz ao cantar. Depois de uma tosse, o canto
começa. Da boca do Pandareco, conseguimos, com cuidado, escutar:

a) um miado agudo, mas descontraído, de gato na janela, acompanhando, com


o olhar, o movimento da rua;

b) um uivo longo, de lobo em noite de lua;

c) um ruído quase imperceptível de patinhas no assoalho, igual a uma marcha


de formigas atrás de uma lasca de chocolate que algum guloso, por distração,
deixou cair do canto dos lábios enquanto procurava mais um bombom na caixa
já vazia;

d) um apito de trem;

e) um outro apito — mas, agora, de chaleira;

f) um grito de mulher, mais ou menos assim: “Volte aqui, menino!”;

g) um miado grave, de gato exaltado, mas ainda na janela, olhando para o alto,
atento ao voo de uma libélula;

[13]
h) uma voz de menino, resmungando o seguinte: “Para que ganhar uma
bicicleta, se a gente nunca pode andar?”.

[14]
DEPOIMENTO DA PIPOCA SOBRE O PANDARECO

O Pandareco às vezes para — mas não para quieto. Sempre o vejo agitado,
agitado mesmo: tanto que inventa, a cada minuto, personagens que inventam
um mundo num minuto. Claro que eu também sou muito, muito, muito, muito
ocupada. Junto com o Pandareco, eu cuido do Balneário (meu lindo, lindo
cãozinho) e da Enseada (minha linda, linda gatinha). Depois — com algum
custo — ponho em ordem os personagens que inventam um mundo num
minuto. Meus pais não entendem como eu não fico cansada. Mas eu também
não entendo como eles conseguem viver num único mundo, apesar de
trabalharem todo dia, durante muitos, muitos, muitos minutos.

[15]
ELOGIO À CRIATIVIDADE

Seria bastante chato nascer com toda a criatividade que se pode ter, que se
pode encontrar, quer dizer, que se pode criar em qualquer lugar. Da mesma
forma, seria bastante chato não poder aprender, nem confundir, nem esquecer,
porque já se sabe tudo o que há para saber. Mas nada disso acontece — nada
disso, portanto, nos aborrece. Construímos a criatividade com prazer, não só
com esforço. A criatividade é uma casa que carregamos no bolso (uma casa
com asas). Aqueles que acreditam conhecer tudo não entendem uma questão:
o mundo todo muda para todo mundo com a velocidade do cão que vem comer
na nossa mão.

[16]
DIÁRIO DE VIAGEM

DIA 1

Ninguém pode dizer que eu não pedi. Que eu não tentei, que eu não insisti.
Podem dizer que eu não implorei, porque eu não imploro. Nem quando choro:
às vezes, choro — mas não imploro, não imploro mesmo. “Ouviu, Pandareco?”,
eu perguntei. “Ouviu, Pandareco?”, eu repeti. Depois, é. Depois desisti. Bom,
isso — “Depois desisti” — quer dizer: “Então saí na mesma hora com o
Pandareco debaixo do braço”. Levamos poucas malas.

DIA 2

Chequei cansada no quarto, desmoronando na cama. O funcionário do hotel


subiu com o Pandareco no colo. Não era muito tarde. Pensei em passear, mas
preferi dormir. “Pipoca”, o Pandareco chamava. “Pandareco”, eu respondia. Até
que quase, quase irritada, descobri que o Pandareco, também exausto, dormia
enquanto eu falava.

DIA 3

Gostei de sentir o sol lambendo o meu rosto. Não abri os olhos nem para
procurar o Pandareco. Eu estava no alto de uma pedra. Respirava sem medo,
sem pressa. Fingindo que não me preocupava com o paradeiro do Pandareco.
Quando decidi verificar, percebi que estava sozinha. O Pandareco brincava na
areia. Era uma praia pouco movimentada, uma praia que se esticava, por toda
a manhã, para o Pandareco brincar.

[17]
DIA 4

Conhecemos um homem que comia sopa de tartaruga. Fiquei apavorada —


mas precisei segurar o Pandareco. O homem, após um pulo de susto,
aproveitou para fugir, correndo de um jeito desengonçado, como se tivesse um
peso nas calças. Estava mais apavorado do que eu. Nunca vi o Pandareco
com tanta raiva. Sua carinha, no entanto, continuava linda — um pouco
vermelha, mas linda (parecia que tinha tomado um banho de tinta).

DIA 5

Ainda não consegui achar o Pandareco. Cansei de andar pela praia, de buscar
por todo o hotel. Amanhã voltaremos para casa. Ninguém pode dizer que eu
não avisei: desta vez — apenas desta vez — eu implorei. Mas o Pandareco
não queria nem lembrar. Podíamos pelo menos ter trazido mais malas. Podem
dizer que errei: eu sabia que o Pandareco não consegue parar de viajar.

[18]
UMA PERGUNTA

Por que o pássaro, quando passa, deixa um rastro demorado, da cor do seu
canto?

[19]
UMA RESPOSTA

No céu,
o
canto ecoa

— como
a manhã —

gota

a
gota.

[20]
DIÁRIO DE MIRAGEM

DIA 1

Caminhamos chutando bolhas de sabão, bolhas tão grandes quanto balões —


mas que não estouram (como bolas de borracha) nem atrapalham o nosso
caminho. Essas bolhas também têm um jeito de gotas de algodão.
Caminhamos às vezes com a língua à vista: esperamos a chuva de açúcar que
vem com a brisa. Pipoca disse: “Nunca cansarei de caminhar porque sempre
haverá novas bolhas para chutar”. Concordei durante um sorriso, um pouco
antes de tropeçar num imenso pirulito.

DIA 2

Pipoca diz que quer sair daqui. Mas, ao mesmo tempo, diz que quer ficar, que
quer curtir, que quer passear, que quer sumir. Entendo quando não entendo
(entendo porque não entendo): ela guarda, nos seus olhinhos, um pouco do
medo do perigo. “Calma, Pipoca”, comecei a falar. “Não tem nenhum risco”,
completei lembrando — sem saudades — do imenso pirulito bem no meu
caminho. Tive vontade de dizer: “Quero sair daqui”. Depois de tropeçar,
também tive vontade de fugir, de correr, de evaporar, de desaparecer, porque a
Pipoca, apontando para mim, não parava de rir.

DIA 3

Acreditamos que podíamos voar sobre o mar: bastava abrir os olhos, abrir bem
os olhos; bastava, além disso, abrir os braços — com aquela vontade de
abraçar uma nuvem — já quase saltando na direção da água. Se a gente
caísse (pois existia a possibilidade de cair), seria apenas uma forma divertida
de mergulhar. Não precisávamos mais do que acreditar. Sabíamos que não
precisávamos, mas escolhemos testar. Não, a água não estava gelada.

[21]
DIA 4

Tocamos a noite: ela estava realmente quente. O vento — um vento macio —


levava o nosso suor para o mar (que de vez em quando abria a boca sem
ninguém ver). Pipoca disse: “Gosto de sentir esse calor”. Seu rosto estava
pontilhado de vermelho. Pipoca continuou: “Meu rosto deve estar pontilhado de
vermelho”. Até que eu respondi: “Seu rosto”, parei para saborear, “tem gosto de
cereja”. Foi então que cocei o nariz. Tinha gosto de creme.

DIA 5

Pipoca não quer mais sair daqui. Nem eu quero fugir — não voltei a tropeçar,
depois do primeiro dia, em nenhum pirulito. Alguém vai perguntar: será que a
miragem tem que acabar? Não sei bem de quem, mas uma voz responderá: a
miragem recomeça a cada instante, sem tempo para terminar. Quando ouvir
isso, a Pipoca ficará preocupada. Mas não há razão para se preocupar com a
sua preocupação. Nessas situações, os seus olhinhos se enchem de um
espanto que, além de brilhar, estoura quando a gente assopra.

[22]
OUTRA PERGUNTA

Quem saberia dizer o nome do silêncio deitado da beira do lago?

[23]
OUTRA RESPOSTA

O silêncio constrói sua casa


na voz
de quem não o chama:

o silêncio — talvez por cansaço —

não
aceita nomes

(apenas espera
o
nosso abraço).

[24]
DEPOIMENTO DOS AMIGOS DO PANDARECO

Depois de responder perguntas que nós nem havíamos formulado, o


Pandareco, nosso amigo, diz que gosta de jogo, desde que o jogo seja como
um pássaro. Ele gosta, portanto, do jogo voando, com as asas abertas de um
canto a outro canto. Para o Pandareco, há regras: em vez de segui-las (muitas
vezes até de quebrá-las), nós devemos — jogo a jogo — transformá-las. Uma
regra pode ser, quando recriada, um copo de céu, um pedaço de mar, uma
gota de sal, um raio de ar. O Pandareco não sabe o que acontece com uma
regra que continua a ser somente regra, pois nunca encontrou uma que, após
conhecê-lo, permanecesse regrada.

[25]
TEORIA DO COPO SOBRE A MESA

Segundo as pesquisas do Pandareco, um copo sobre a mesa, não importa qual


seja a mesa, tende a admitir muitos tipos de existência. Seus estudos ainda
não terminaram, mas já foi possível determinar três tipos principais, detalhados,
a seguir, na ordem em que foram descobertos. No início, o Pandareco
descobriu uma existência profundamente solitária, caracterizada sobretudo por
se comportar de forma profundamente contrária a qualquer contato. Desse
modo, sempre que o Pandareco se aproximava, o copo, assustado, se afastava
— com medo de algum toque, de qualquer ameaça. Consequentemente, o
copo caía. Consequentemente, o copo se quebrava. Em vez de se culpar, o
Pandareco continuava intrigado — cientificamente intrigado.

Logo após, o Pandareco descobriu, além de uma existência profundamente


solitária, um casal de existências que em breve se mostraram profundamente
apaixonadas, caracterizadas por um ciúme sem limites. Desse modo, sempre
que o Pandareco se aproximava, o copo, irritado, se afastava — temendo que
alguém estragasse o seu relacionamento. Consequentemente, o copo caía.
Consequentemente, o copo se quebrava. O Pandareco, no entanto, não se
culpava: pelo contrário, continuava cientificamente intrigado — cada vez mais
cientificamente intrigado.

Por fim, o Pandareco descobriu um grupo de existências. Não, não era um


grupo. Era uma multidão. Uma multidão de existências profundamente
animadas, caracterizadas por um constante. Não, não era um constante. Era
um desesperado estado de festa. Desse modo, sempre que o Pandareco se
aproximava, o copo, agitado, se afastava — pois não queria que a diversão,
profundamente organizada, fosse prejudicada por uma movimentação não
autorizada, sob o risco de haver algum caos naquela confusão.
Consequentemente, o copo caía. Consequentemente, o copo se quebrava.
Sim, em incontáveis estilhaços. Entregue à sua ciência, Pandareco continua
intrigado — ainda mais intrigado do que sonha a nossa miopia.

[26]
QUARTA TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DO PANDARECO

Podemos descrever o Pandareco com um poema. Apesar do que muitos irão


imaginar, não será um poema sobre sentimentos, nem sobre sensações, nem
sobre pensamentos. Será um poema sobre um labirinto que não tem portas,
que não tem paredes. Um labirinto aberto para todos os lados, em que cada
passo conduz a uma palavra. Que conduz a um silêncio. Que conduz a um
infinito. Um labirinto pendurado nos lábios do nosso sorriso.

[27]
COVITE PARA O ANIVERSÁRIO DO BALNEÁRIO

Pandareco, espero você no dia do meu aniversário. Desculpe, ainda não sei o
que teremos para comer. Ontem, enquanto eu perseguia algo engraçado (a
Enseada diria, um pouco irritada, que era o meu próprio rabo), ouvi a Pipoca
falar com a Pirulita, nossa vizinha, que faria uma “festa surpresa” para mim —
ela falou bem baixinho, mas deu, sim, para ouvir. Também não sei qual será a
hora. Amanhã, no entanto, pretendo preparar outro convite. Até lá, sempre que
passar por uma padaria, pense, com imenso carinho, no meu presente.

[28]
PRIMEIRA MENSAGEM PARA O MEU PADEIRO PREFERIDO

Senhor Padeiro, eu prometi que desta vez seguiria um único assunto; por isso,
direi apenas que admiro a sua arte: uma arte feita para a gente pegar, partir,
comer, saborear. Às vezes, começo uma ideia, depois curvo para um lado,
curvo para o outro, até que, respeitando o limite de velocidade do pensamento,
acelero por um caminho ainda não explorado. Apesar do que os meus amigos
dizem, eu faço isso porque quero. Gosto de andar, quer dizer, de pensar, por
outros caminhos. Gosto, além disso, de andar, quer dizer, de pensar,
inventado, com prazer, outra forma de pensar, quer dizer, de andar. Não,
senhor Padeiro, eu não desejo te confundir, não, eu desejo te elogiar. Não, eu
desejo elogiar a sua arte, é, eu desejo pegar, partir, comer, saborear a sua
arte. Não, senhor Padeiro, eu não falei atrapalhar, não, eu falei saborear.

[29]
BILHETE DA ENSEADA PARA O PANDARECO

Pandareco, a Pipoca não para de me agarrar. Sim, eu sei que sou


estonteantemente irresistível — gostei disso, vou usar mais vezes:
estonteantemente irresistível. Mas eu, como qualquer linda, linda gatinha,
também preciso dormir e correr e dormir e saltar e dormir e comer e dormir e
dormir e dormir. Além de respirar. Por que você — que gosta tanto, tanto de
viajar — não a leva Pipoca para passear, não sei, pelo planeta? Apenas por
hoje, Pandareco. Não aguardo respostas — aguardo, no mínimo, atitudes.

[30]
POEMA PARA UM GRANDE CARTAZ

Sei que o dia acorda


na boca da Pipoca.

[31]
SEGUNDA MENSAGEM PARA O MEU PADEIRO PREFERIDO

Senhor Padeiro, eu admiro a sua arte. Não direi que é uma arte feita para a
gente pegar, partir, comer, saborear, porque alguém pode falar, quer dizer,
pode reclamar, quer dizer, pode gritar — gritar desvairadamente — como se eu
quisesse te atrapalhar. Depois de não dizer o que eu de fato prometi deixar de
contar, eu não irei te elogiar, não, eu não irei elogiar a sua arte. Às vezes,
acelero a velocidade do pensamento, respeitando, no entanto, o limite das
ideias que não tem limite nenhum. Gosto de te confundir, quer dizer, de te
elogiar, por outros caminhos. Gosto, além disso, de te elogiar, quer dizer, de te
confundir, como num redemoinho. Apesar do que os meus amigos dizem, eu
não faço isso porque quero, não, eu faço apenas porque não tem retorno. Não,
senhor Padeiro, eu não falei socorro, não, eu falei retorno.

[32]
PANDARECO POR PANDARECO

Eu gostaria de ter uma banda. Além de uma banda, eu gostaria também de ter
uma orquestra. Depois uma escola de música. Para resumir, eu gostaria que
nada fosse resumido. No entanto, ninguém — nem mesmo uma multidão de
ninguéns — tem tempo para tocar tudo o que há no mundo. Por isso, invento
alguns personagens: cada um tem, para começar, três bandas. São, portanto,
muitos personagens. Mas não digo que haja algum preferido. Nem o que toca
bula de xarope para gripe, nem o que toca, após anos de exercício, um
segundo de silêncio. Nem aquele que inventa personagens que inventam
personagens que possuem, cada um, três bandas, apenas para começar.

[33]
CARTA TRÊS

Pequenas formigas, minhas grandes amigas: muitas vezes repartimos o


mesmo doce. Somos parecidos nos prazeres. No entanto, há uma diferença:
eu preciso ir ao dentista. Nunca reclamo — mas, contra a minha vontade,
sempre chego um pouco atrasado. Tem dia em que os meus tênis estão
debaixo da cama. Tem dia em que os acho em cima do armário. Suspeito do
seguinte: será que os meus tênis se divertem enquanto eu durmo? Podiam,
neste caso, me convidar para as festas de sábado, menos se for, claro, para
dançar em cima do armário. Outra diferença: vocês não precisam usar
calçados. O que é um alívio. Mas se não fosse assim: será que os seus tênis
— como que por acaso — convidariam vocês para as festas de sábado?

[34]
POEMA PARA UM PEQUENO GRAFITE

Ponta de nariz:
Pipoca ri feliz.

[35]
ELOGIO AO PENSAMENTO

Quem deixa os brinquedos no lugar não sabe pensar. O pensamento acontece


como uma força: é uma energia física — semelhante à alegria — que percorre
todo o corpo. Pensar desorganiza para transformar. Aquele que diz: “Eu penso
isso, eu penso aquilo” — também poderia dizer: “Eu pego isso, atiro para um
lado, atiro para o outro, depois crio aquilo”.

[36]
CARTA QUATRO

Queridos rinocerontes: eu conheço pouco de vocês. Estou escrevendo para


aprender um pouco mais, pois, para mim, escrever é uma forma de conhecer.
Sei que as palavras estão vivas. Muitas delas são tão fortes quanto vocês:
algumas, podem acreditar, possuem bons chifres. Quer dizer, então, que os
rinocerontes — com toda a sua força, com todos os seus chifres — são como
as palavras? Não, não tenho medo. Ainda enviarei uma carta para as palavras.
Começará assim: eu conheço pouco de vocês. Estou escrevendo para
aprender muito mais, pois, como expliquei para os rinocerontes, escrever é
uma forma de conhecer, desde que se tome cuidado com os chifres.

[37]
PARA ESCREVER NA AGENDA DO VENTO

Enquanto houver vida, a luz continuará a dançar, todos os dias, pelos seus
cabelos, abraçando a brisa.

[38]
ELOGIO À IMAGINAÇÃO

Poucas pessoas sabem que a imaginação tem muitas mãos. Que a imaginação
está no céu (empoleirada no ombro de uma nuvem tão contente quanto uma
criança que descobre que vai ter um irmão), assim como está no chão
(passeando entre os tênis que se esquecem de passar com pressa). Dessa
forma, a imaginação descansa sem parar de inventar, pois tem mãos para
escrever, para desenhar, para colorir, para modelar. Tem mãos para fabricar
outras mãos: mãos que tocam, que cantam. Mãos que não podemos prender
por muito tempo, porque são importantes como a respiração: sempre em
movimento, chegam — num segundo — a ser parte do vento.

[39]
PARA ESCREVER NA AGENDA DA CHUVA

Não se esqueça de aparecer, pingando seus passos: a tarde te espera (como


uma flor) toda desperta.

[40]
ELOGIO À DISTRAÇÃO

Quem tenta estar sempre alerta perde o sabor da gota de sorvete que escorre
pelo canto da boca — uma gota que alcançamos com a língua
sossegadamente esticada, pois gostamos de lambuzar a cara. Mesmo
correndo o risco de ver alguém bater uma foto bem engraçada. Tem gente que
não come, não dorme, não brinca, não cai. Tem gente que não levanta. Por
que viver, por que viver sempre com aquele nervosismo, é, de final de
campeonato: quando se teme tanto perder? Quem tem medo de parar, parar
por nada, apenas parar, no banco do carro, na banca da praça — quem tem
medo de parar não sabe sentir, nem andar, nem sorrir, nem mergulhar: porque
precisa sempre correr. Correr contra o tempo. Correr contra a distração. Quem
tenta estar sempre alerta perde o sabor da gota de sorvete que escorre pelo
canto da boca — uma gota que alcançamos com a língua sossegadamente
esticada, pois gostamos de lambuzar a cara. Desejando que alguém bata uma
foto bem engraçada.

[41]
BATE-PAPO COM O PANDARECO

MEIO MUNDO:

Pandareco, onde você está?

PANDARECO:

Estou num momento do outro lado do nunca, entre três segundos.

MEIO MUNDO:

Desde quando?

PANDARECO:

Desde quatro agoras atrás.

MEIO MUNDO:

Você está esperando alguém?

PANDARECO:

Sim, um instante que sempre vem.

[42]
MEIO MUNDO:

O que vocês pretendem fazer?

PANDARECO:

Passear por um tempo aberto a toda hora.

MEIO MUNDO:

Posso passear com vocês?

PANDARECO:

Claro, tem espaço para todo mundo.

MEIO MUNDO:

Preciso levar alguma coisa?

PANDARECO:

Uma eternidade, pois vai chover muitos milênios a cada minuto.

[43]
MANUSCRITO ENCONTRADO NO BOLSO DO PANDARECO

Como todo caracol, Delícia é lento e carrega nas costas a própria casa.
Sempre assim: sem pressa. Delícia se apega a detalhes e sabe que o amor é
simples — gosta de dormir contando estrelas e de acordar desenhando
nuvens.

Não, Delícia não é de ficar vendo o tempo passar. Muito pelo contrário: seu
maior prazer é passar com o tempo. Demorando em cada canto. Pouco
preocupado com atalhos — mas com fome de lugares. E cheiros e vozes e
imagens.

Sempre que Delícia chega é uma festa. Ninguém precisa nem perceber — a
festa se espalha em silêncio. Fazendo cócegas na preguiça. Não há segredo:
festa é olhar com carinho. Sem se esconder. É cuidar de tudo o que se olha.
Calmamente.

Claro que Delícia tem muitos amigos. Além do sol e da terra, do mar e da lua.
Seus amigos: todos aqueles que aproveitam o sabor de sonhar. Mesmo sem
sono. Basta ter vento, bastante vento — dentro dos olhos. Para movimentar os
pensamentos.

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2007

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