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LIVROS HISTÓRICOS AT

Livros Históricos AT

SUMÁRIO

Introdução 02
Capítulo I — Introdução aos Livros Históricos 02
Capítulo II — Introdução ao Livro de Josué 04
Capítulo III — Introdução ao Livro de Juízes 06
Capítulo IV — Introdução ao Livro de Rute 08
Capítulo V — Introdução aos Dois Livros de Samuel 09
Capítulo VI — Introdução aos Dois Livros de Reis 14
Capítulo VII — Introdução aos Dois Livros de Crônicas 19
Capítulo VIII — Introdução aos Livros de Esdras e Neemias 24
Capítulo IX — Introdução ao Livro de Tobias 29
Capítulo X — Introdução ao Livro de Judite 33
Capítulo XI — Introdução ao Livro de Ester 37
Capítulo XII — Introdução aos Dois Livros de Macabeus 38

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Conclusão 43

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Livros Históricos AT
INTRODUÇÃO

Estudaremos neste módulo os livros históricos do Antigo Testamento. São doze os livros
históricos do AT, se considerarmos o catálogo aceito universalmente pelo judaísmo e cristianismo
protestante: Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias e Ester. São
dezesseis, se levarmos em conta o conjunto aceito pela Igreja Católica: os doze canônicos acrescidos dos
quatro históricos apócrifos (o catolicismo os intitula deuterocanônicos): Judite, Tobias e 1 e 2 Macabeus.
Apresentaremos uma visão geral destes livros e, em seguida, uma síntese de cada um.

Capítulo I
INTRODUÇÃO AOS LIVROS HISTÓRICOS

Entre os vários gêneros literários da Bíblia, a história, por sua extensão, ocupa o primeiro lugar. O fato é
confirmado pelas fontes de que logo falaremos. E comparando, sob esse aspecto, a Bíblia com a literatura
dos demais povos do Oriente antigo, notaremos o lugar preeminente e singular que cabe aos Livros
Sagrados. A abundante literatura histórica que os egípcios e os assírio-babilônios, os dois povos mais

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poderosos e evoluídos da Antigüidade, nos transmitiram, consiste quase toda em documentos, tais como as
inscrições dos soberanos, onde se narram com intenção e estilo laudatórios, as façanhas dos mesmos. Mais
tarde, entre os babilônicos, surge o gênero, menos oficial e mais literário, da crônica que registra, ano por
ano, os acontecimentos mais importantes. Nenhum povo, porém, nos legou, como os israelitas, uma série de
escritos que, reunidos, formam como que uma história nacional desde as origens até os tempos do
cristianismo; tampouco quadros históricos de períodos particulares comparáveis aos dos Juízes e de Samuel.
Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros históricos grande parte do Pentateuco,
assinaladamente o Gênesis; estas partes, porém, devido à sua estreita relação com a legislação mosaica,
formam um só corpo com o nome de lei.
Os escritos históricos da Bíblia propriamente ditos Livros históricos, pela matéria e pelos caracteres
internos, são divididos em três categorias:
1° Josué, Juízes, Rute, Samuel e Reis relatam a história do povo de Israel desde a conquista da Palestina
até o exílio na Babilônia (586 a.C.);
2° as Crônicas e Esdras/Neemias retomam essa mesma história sob pontos de vista particulares desde o
reino de Davi (as idades precedentes, desde as origens do homem, estão, como que resumidas, no princípio
1Crôn 1-9 em tábuas genealógicas) até à formação da sociedade judaica depois do retorno do exílio (cerca de
430 a.C.);
3° os livros de Tobias, Judite e Ester ilustram alguns episódios notáveis dos últimos séculos (VII-V
a.C.), nos dois livros dos Macabeus narra-se a resistência dos judeus contra o jugo dos selêucidas e a
reconquista da soberania política (séc. II a.C.).
A série dos livros históricos Josué-Reis, considerados como grupo autônomo, os hebreus chamam-nos
"Profetas anteriores," formando com os "Profetas posteriores" (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze menores)
a segunda classe ("os Profetas") da sua Bíblia tripartida. Os livros históricos contidos na série Crônicas–
Macabeus recebem apreciações diversas dos hebreus. A maioria deles admitem no seu cânone as Crônicas,
Esdras–Neemias e Ester, mas colocam-nos, com os restantes Livros Sagrados, na terceira classe dos
"Escritos."
Essa divisão é antiga (atesta-a já S. Jerônimo no "Prólogo Galeato" ou prefácio a sua tradução de
Samuel e Reis), não, porém, primitiva. Nos manuscritos da antiquíssima tradução grega dos LXX, e nas
listas (cânones) das igrejas ou escritores cristãos, os livros das Crônicas e, com diferença de ordem, os
outros, são anexados aos precedentes Reis com o título comum de "histórias." Os dois dos Macabeus nas
Bíblias latinas apareciam habitualmente no fim do Antigo Testamento, mas a conveniência da matéria e
razões práticas persuadem-nos, seguindo, além disso, o exemplo de tradutores modernos católicos, a não
separá-los do grupo dos outros livros de caráter narrativo, e o leitor os encontrará, quase em ordem
cronológica, depois de Judite.
Quase todos os livros históricos da Bíblia indicam, ainda que parcamente, uma ou mais fontes escritas
donde tiraram o material e às quais remetem o leitor para maiores e mais amplas informações (Núm. 21:14 o
livro das batalhas do Senhor; ib., 27 os poetas). Tornam-se mais freqüentes nos livros seguintes,
especialmente nos Reis e Crônicas. Desde os primeiros tempos da monarquia (2Sam 8:16), entre outros

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oficiais do rei encontramos um "monitor" ou "chanceler" encarregado de registrar os acontecimentos do
reino (cf. 1Rs 11:41). Daí o encontrarem-se freqüentemente alusões a tais memórias dos reis de Judá e de
Israel desde 1Rs 14:19-29 até 2Rs 24:5. O autor das Crônicas cita escritos de vários profetas: Samuel, Natã,
Gade (1 Crôn 29:29), Ala, Ado (2 Crôn 9:29), Semeia, Jeú, Hozai (ib.,12:15; 20:34;33:19). O primeiro deles
provavelmente é o livro canônico de Samuel; os outros se perderam, excetuando-se, talvez, alguma parte
incorporada aos livros canônicos dos Reis.
Comparando-se as passagens paralelas dos livros das Crônicas e dos Reis — quer os Reis tenham
servido de fonte ao redator das Crônicas ou quer ambos haurissem duma fonte comum — observamos que a
fonte geralmente é transcrita literalmente conforme os hábitos da historiografia semítica, numa época que
não conhecia os direitos de propriedade literária. Nesse caso, o autor sagrado, apropriando-se das palavras da
fonte, torna-as expressão do seu próprio pensamento e, através do carisma da inspiração divina, que não se
opõe ao uso de fontes profanas, imprime-lhe o selo da sua infalibilidade.
Pode acontecer que o autor sagrado julgue útil citar um documento como notícia interessante deixando,
porém, quanto à exatidão dos fatos, a responsabilidade pela afirmação ao autor primitivo. Isto pode-se
sempre admitir no caso de citação explicita, isto é, com a expressa designação da fonte, como nas cartas
citadas em Esdras 4,7-16; 1 Mac 12:5-23; 2 Mac 11:16-38. Não havendo indicação da fonte, e, portanto,
quando a citação é implícita, requer-se maior circunspecção.
Para apreciar devidamente os livros históricos do Antigo Testamento é mister levar em conta a

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finalidade dos autores sagrados, bem como o espírito que os animava ao escreverem seus livros. Os
escritores bíblicos não pretendem escrever história propriamente dita, nem narrar para satisfazer a sede de
saber. Eles querem evidenciar a mão de Deus no dirigir a sociedade humana segundo as altas finalidades de
sua Providência, especialmente de acordo com a religião e com a salvação do gênero humano. A sua
historiografia é religiosa e não profana. Daí a escolha, sensível de modo especial, nos livros dos Reis e das
Crônicas, de poucos fatos dentre a enorme quantidade de acontecimentos que, mesmo limitando-se à
Palestina, decorreram nos largos tempos abrangidos pela sua narrativa; enquanto se atribui um papel
importante aos profetas, ministros e porta-vozes de Deus, junto do seu povo, Segue-se que não devemos
esperar dos hagiógrafos um quadro completo da sociedade israelita da época. Apesar disso oferecem sempre
excelente material para a reconstrução da história profana, completando os dados transmitidos pelos
documentos extra-bíblicos, principalmente as inscrições cuneiformes dos reis assírios e babilônicos, onde se
registram muitos fatos e personagens dos livros dos Reis.

Capítulo II
INTRODUÇÃO AO LIVRO DE JOSUÉ
(Canônico)

Seguindo-se ao Pentateuco, o livro de Josué inicia a narrativa de uma etapa — e não a menor — da
história de Israel. Conforme a tradição judaica, ele faz parte do grupo dos "Profetas anteriores" (Josué,
Juízes, Samuel e Reis).

Estrutura. O Livro de Josué pode facilmente ser dividido em duas partes, seguidas de três conclusões
(caps. 22, 23 e 24):
1. A conquista da terra prometida (1–12). Após um capítulo de introdução (1), Josué envia espiões a
Jericó eles são acolhidos com hospitalidade por Raabe. Os israelitas atravessam o Jordão à altura de Jericó e
acampam em Gilgal (3–4), onde se efetua uma circuncisão e uma primeira celebração da Páscoa em terra
canaanita (5). Na Palestina central, a conquista principia com a tomada de Jericó (6), depois com a de Ai (8),
no decorrer da qual é descoberto o pecado de Acã (7). A seguir, Josué faz uma aliança com os gibeonitas (9),
e isto provoca uma coalizão dirigida pelo rei de Jerusalém contra Israel, resultando na batalha de Gibeon
(10). Na Palestina do norte, Israel tem de enfrentar uma nova coalizão dirigida pelo rei de Hasor, cuja cidade
foi incendiada pelos israelitas (11). No cap. 12, um quadro recapitula a lista das cidades conquistadas.
2. A repartição territorial entre as doze tribos (13–19), à qual se podem juntar as enumerações das
cidades de refúgio (20) e das cidades levíticas (21).

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Livros Históricos AT
3. Conclusões: as tribos transjordanianas que participaram da conquista (1,12-16) são remetidas por
Josué para seu patrimônio além do Jordão (22,1-6). Nesta primeira conclusão, enxerta-se o episódio da
construção de um altar por estas tribos, ocasião de um pacto solene entre as doze tribos (22,7-34).
O cap. 23 constitui o testamento de Josué , sucessor de Moisés .
O cap. 24 nos apresenta, em aparente paralelismo com o precedente, a aliança firmada por Josué em
Siquém.
Deste rápido resumo depreende-se que um só personagem domina o conjunto das narrativas: Josué, filho
de Nun, pertencente à tribo de Efraim (Nm 13,8.16). O seu nome é, por si só, todo um programa. Josué
significa: "O Senhor salva". Narra uma tradição bíblica que Moisés lhe mudou o nome de Hoshea (Oséias)
para Iehoshua (Josué) (Nm 13,16), definindo-lhe um novo destino.
Outras personagens bíblicas também receberam este nome que, na época do Novo Testamento, resultou
em "Jesus" para os judeus de língua grega (cf. Hb 4,8). Para os primeiros cristãos, isto facilitaria a
aproximação entre a atividade de Jesus como salvador e a de Josué como condutor do povo rumo à terra do
repouso.
No Pentateuco, Josué vive à sombra de Moisés: com ele sobe à montanha de Deus, segundo Ex 24,13;
vela pela Tenda do Encontro (Ex 33,11); por vezes, desempenha um papel militar de destaque (Ex 17,8-16).
Ao saber que não atravessaria o Jordão para conduzir o povo à Terra Prometida, Moisés confiou esta missão
a Josué (Nm 27,18-23; Dt 31,7-8).

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O Livro de Josué não pode ser lido como um registro que referisse ponto por ponto as etapas da
conquista e instalação de Israel em Canaã. Sem dúvida, a crítica moderna cada vez mais reconhece o valor
das tradições em que ele se funda. Mas, entre os acontecimentos que ele refere (fim do século XIII) e a data
da redação final do livro, medeiam vários séculos. Por outro lado, a imagem — que este documento propõe
— de uma conquista total de Canaã pelo conjunto da liga das tribos não resiste à crítica histórica. Canaã só
foi efetivamente conquistada no tempo de Davi (século X). Antes disso, como o próprio livro repetidas vezes
sugere, os canaanitas, ao invés de serem todos exterminados, mantiveram-se nas planícies e não raro houve
coexistência entre eles e os israelitas (cf. 15,63; 16,10; 17,12.18). Por ocasião da morte de Josué, somos
informados de que um amplo território ainda ficava por conquistar, embora já houvesse sido repartido pelas
tribos (13–23).
Nesta narrativa, Josué conduz todo o povo, entidade maldefinida no livro, mas que de fato representa os
guerreiros de algumas tribos que participaram da saída do Egito. Todavia, bem mais que ao aspecto militar
— que não deixa de ter importância —, deve-se ser sensível à dimensão cultual e à apresentação litúrgica dos
materiais. A travessia do Jordão (3–4) com a presença da Arca, réplica da travessia do mar dos Juncos,
constitui uma entrada processional na Terra Prometida. Em Js 5, a menção à circuncisão seguida da primeira
Páscoa celebrada com os produtos da região representa uma seqüência eminentemente litúrgica.
A conquista é apresentada como obra de "todo Israel" (cf. 10,28-39). A menção reiterada às tribos
transjordanianas frisa o propósito de manter a unidade do povo numa época em que ela estava em perigo (cf.
1,12-16; 12,1-6; 13,8-32; 22,1-6).
Paralelamente, exprime-se uma preocupação muito viva com a fidelidade de Israel ao seu Deus, que a
convivência com as demais nações pode comprometer a todo momento; pois a Aliança supõe um
compromisso incondicional. Só nesta perspectiva é que se torna compreensível a insistência no extermínio
dos povos que habitam Canaã e na necessidade de votá-los ao interdito (6,17.21; 11,12.14).
Mais positivamente, o interesse dos redatores tem em mira a terra que Deus prometeu aos antepassados
do povo. Por isso, a segunda parte do livro (13–19), muito menos influenciada pelo trabalho de edição
deuteronomista, comporta uma demarcação de fronteiras e listas de cidades para cada uma das doze tribos de
Israel. Temos aí documentos muito preciosos sobre a divisão tradicional da terra entre os membros da liga
israelita. Alguns deles podem remontar ao período que precede a realeza de Davi, mas não se podem excluir
complementos mais tardios, em função da respectiva evolução da situação em Judá e Israel durante o período
monárquico.
Em certos capítulos, o papel do sacerdote Eleazar ou do seu filho Finéias chega a suplantar o de Josué
(14,1; 19,51; 21,1; 22,13.30.32), e a maioria desses relatos está vinculada ao santuário de Siló.
Se levarmos em conta esse extenso trabalho redacional, teremos uma noção mais exata daquilo que, do
ponto de vista histórico, se deve esperar do Livro de Josué. Não há dúvida de que a apresentação da
conquista sob a guia exclusiva de Josué procede de uma sistematização que não nos deve impedir de
perceber a complexidade dos fatos. Por exemplo, nada se diz da conquista de Betel, que entretanto é referida
em Jz 1,22-26. A tomada de Siquém não aparece em nenhum relato, sinal provável de que houve uma
instalação pacífica, por um acordo com os habitantes desta cidade. A conquista de Hebron e Debir é atribuída

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Livros Históricos AT
a Josué (Js 10,36-39), ao passo que ficamos sabendo em outro lugar que o verdadeiro conquistador de
Hebron foi Calebe, e o de Debir, Otniel (15,13-14; 15,17 e Jz 1,11-13).
Para restabelecer a verdade histórica deste período, freqüentemente se invocou o testemunho da
arqueologia. De fato, as escavações empreendidas em cidades antigas não raro atestam violentas destruições,
ocorridas na passagem da Idade do Bronze Recente — que termina por volta de 1200 — para a Idade do
Ferro. Já que a entrada dos israelitas em Canaã é datada por volta de 1230, houve a tentação de atribuir a eles
essas destruições. Mas não se podem descartar, por um lado, rivalidades entre as cidades-estados canaanitas,
por outro, a presença nesta época de invasores de outra origem. O argumento arqueológico perde então sua
força. Todavia, uma cidade como Hasor, cuja destruição é situada pelos arqueólogos no fim do século XIII,
pode efetivamente ter sido incendiada pelos israelitas, conforme atesta Js 11,10-11. Não se pode deixar de
admitir que o texto bíblico nem sempre dá resposta às perguntas que nós lhe fazemos.
Muito mais do que Josué, a personagem central do livro é a Terra Prometida. O que era objeto da
promessa no Pentateuco encontra aqui cumprimento. Por isso, houve quem chegasse a falar de um
Hexateuco, acrescentando Josué ao Pentateuco. A Terra é o lugar da fidelidade de Deus para com seu povo e
do povo para com seu Deus. Penhor da aliança entre Deus e Israel, ela não é um símbolo inanimado, mas um
convite vivo e insistente ao homem de assumir a realidade criada para santificá-la. A ocupação de Canaã e
sua divisão cadastral entre os filhos de Israel cumprem a promessa patriarcal renovada por Deus a Moisés.
Não devemos nos deter ante a aridez das enumerações topográficas, mas partilhar a alegria do redator que

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pormenoriza a herança dada por Deus às tribos.
O Livro de Josué afirma que a Terra é simultaneamente dom e constante objeto de conquista. Há nisto
uma nunca resolvida tensão entre o presente e o futuro, constitutiva da existência do povo de Deus.1

Capítulo III
INTRODUÇÃO AO LIVRO DE JUÍZES
(Canônico)

Dando continuidade ao livro de Josué e pertencendo, como ele, ao grupo dos "Primeiros Profetas"
[noutro critério de classificação], o livro dos Juízes nos dá um resumo da vida das tribos durante um dos
períodos mais obscuros da história do povo de Israel, aquele que se segue à conquista e precede o
aparecimento da instituição da monarquia.
O plano do livro. O plano do livro se descobre facilmente. Uma primeira introdução (cap. 1) apresenta a
instalação das tribos em Canaã com seus sucessos e fracassos. A situação das tribos, cuja ação não parece
concertada, é a de uma existência ameaçada pela presença das cidades cananéias no território designado para
cada tribo. Essa situação, que está em contradição com a promessa de Deus, recebe uma primeira explicação
(2,1-5). Após essa exposição preliminar, que nos remete ao período da conquista, abre-se o período dos
Juízes propriamente dito (2,6–16,31), introduzido por um prólogo que dá o sentido religioso dessa etapa da
história das tribos (2,6–3,6). Ao passo que a época de Josué era de fidelidade, a dos Juízes nos é apresentada
como a da infidelidade. Em seguida, dá-se uma história fragmentária das ações dos Juízes, que são doze, mas
cujas notícias são de amplidão variada: Otoniel (3,7-11), Eúde (3,12-30), Sangar (3,31), Deborá e Baraque
(4–5), Gideão e Abimeleque (6,1–9,57), Tola (10,1-2), Jair (10,3-5), Jefté (10,6–12,7), Iibsan (12,8–10),
Elon (12,11-12), Abdon (12,13-15), Sansão (13,1–16,31).
A compilação termina com dois apêndices que mostram a anarquia reinante em Israel antes da
instauração da monarquia. Um narra a migração dos danitas e as origens do santuário de Dã (17–18), o outro
narra o crime cometido pelos habitantes de Guibeá e a guerra empreendida pelas tribos contra Benjamim,
que se recusava a punir os culpados (19–21).
Juízes e salvadores. Os personagens apresentadas por este livro são genericamente chamados "Juízes",
mas convém examinar a abrangência desse título. No plural, designando aqueles que Deus escolheu para
salvar seu povo, o termo aparece, neste livro, apenas em 2,16-18; mas se este emprego é raro no texto, a
designação do período pré-monárquico como "tempo dos Juízes" é conhecida pela tradição bíblica (2 Sm
7,11; 2Rs 23,22; Rt 1,1). No entanto, se o título "juiz" está praticamente ausente das narrativas, encontra-se
com freqüência o verbo "julgar" para descrever a ação dos heróis do livro (3,10; 4,4; 10,1-5; 12,7.8-15;

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Nota introdutória da TEB.
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15,20; 16,31). Observar-se-á todavia que este verbo se encontra mais freqüentemente nas informações que
enquadram as narrativas, o que pode indicar um emprego redacional. Mesmo neste caso, o verbo não adquire
simplesmente o sentido de "fazer justiça", mas de "comandar, governar". A esse respeito, o uso português do
verbo "julgar" não deixa perceber essa acepção, porque a língua hebraica concorda com as línguas vizinhas
para designar por este verbo uma verdadeira função de autoridade. Para citar apenas um exemplo, o termo
"juiz" nos textos de Mári designa altos funcionários dotados de amplos poderes.
Se alguns personagens julgaram Israel, não é certo que todos aqueles cujos grandes feitos são reportados
tenham tido essa função, porque um outro verbo qualifica a ação daqueles que chamamos os Juízes: "salvar"
(3,31; 6,15; 10,1). Nessa perspectiva, Otniel e Ehud são qualificados como "salvadores" (3,9.15). Mais
geralmente Deus é aquele que salva seu povo pela escolha de um homem que realiza concretamente a
salvação (3,9; 6,36-37; 7,7; 10,13). Encontramo-nos, então, diante de uma dualidade de expressões que
remete muito provavelmente a uma dualidade de perspectivas, que a leitura do livro dos Juízes deixa
entrever.
Mesmo que não se tenha certeza quanto à composição do livro, podem-se descobrir tradições ou ciclos
de relatos que tiveram uma existência anterior e independente. Assim as notícias sobre os Juízes menores
(10,1-5; 12,8-15) devem provir de uma lista antiga que não fornecia mais que informações sucintas. Aliás, a
história de Jefté, que separa em duas essa lista, permite averiguar como foi possível passar da personagem do
juiz à do salvador, pois Jefté foi um e outro. Os relatos sobre os outros Juízes se apoiam sobre tradições

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antigas que foram ampliadas, completadas e fundidas. Esses relatos foram reunidos em uma coletânea que
poderia ser chamada de "livro dos salvadores"? É uma hipótese que ainda exige verificação, mas que não
deixa de ser provável.
O quadro teológico. Mas além dessas tradições e dessas coletâneas, o livro dos Juízes oferece um
quadro teológico que chama a atenção, porque fornece o ensinamento religioso dos acontecimentos
relatados. Essa perspectiva teológica encontra-se particularmente no prólogo (2,6–3,6), no início do capítulo
6 (vv. 7-10) e na introdução à história de Jefté (10,6-16).
Ela se caracteriza por uma série de fórmulas estereotipadas: os filhos de Israel fizeram o que é mau aos
olhos do Senhor (2,11; 3,7.12; 4,1; 6,1; 10,6; 13,1), fórmula que pode ser esclarecida por outra: eles
abandonaram o Senhor e serviram a Baal e às Astarotes (2,11.13; 3,7; 10,6). A conseqüência dessa
infidelidade é então indicada: O Senhor os entregou às mãos de tal ou tal inimigo (2,14; 3,8; 4,2; 6,1; 10,7).
A seguir, vem a fórmula, os filhos de Israel clamaram ao Senhor (3,9.15; 4,3; 6,6; 10,10). À súplica de seu
povo, o Senhor responde suscitando Juízes (2,16) ou um salvador (3,9.15). Enfim, na conclusão dos relatos,
aparecem outras fórmulas: o inimigo foi humilhado sob a mão de Israel (3,30; 8,28, cf. 4,23-24) ou ainda: a
terra esteve em repouso durante tantos anos (3,11.30; 5,31; 8,28).
Dessas fórmulas se depreende uma lógica religiosa de quatro termos: o pecado acarreta o castigo, mas o
arrependimento do povo conduz ao envio de um salvador. Encontramo-nos assim em face de uma teologia da
história que posteriormente foi adicionada a esses relatos e que se aplica a todo Israel.
Os apêndices do livro (17–21), que recolhem igualmente tradições antigas, foram acrescentados durante
ou após o Exílio, pois fazem uso de um vocabulário que se encontra nos escritos sacerdotais. Mais difícil é
situar a época em que foi acrescentada a introdução de Jz, que contém informações antigas, bastante
marcadas pela tendência de fazer a apologia da tribo de Judá.
O livro dos Juízes e a história. Malgrado todas as incertezas que pairam sobre a redação do livro dos
Juízes, ele continua a ser para o historiador a única fonte de informações sobre o período que vai da morte de
Josué à instauração da monarquia, mas sua utilização suscita numerosos problemas. Os relatos permitem
fazer uma idéia do período dos Juízes; oferecem-nos um quadro da história de certas tribos em que nada nos
autoriza a afirmar uma unidade política, nem mesmo sob a forma de uma liga de doze tribos. Trata-se de
histórias de grupos que revelam afinidades ou hostilidades entre certas tribos, de relatos de combates para
conservar o território já adquirido, mas tudo isso é fragmentário e se nos oferece sem o cuidado de uma
ordem cronológica.
Com efeito, o livro dos Juízes não contém nenhuma data; apenas a duração de cada judicatura é indicada,
mas se forem somados os números fornecidos para cada juiz, obtém-se uma duração de 410 anos, o que não
é compatível com os outros dados cronológicos da história de Israel . A maior parte dos números provém dos
redatores, e, se é certo que cada um tem sua própria lógica, é quase impossível restabelecê-la e compreendê-
la. Aliás, o uso freqüente do número 40, que indica o tempo de vida ativa de um indivíduo, manifesta o
caráter aproximativo dos dados do livro dos Juízes. Na verdade, a cronologia do período dos Juízes deve ser
obtida considerando tanto os inícios do período da realeza como a data da entrada em Canaã . Com efeito, o

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Livros Históricos AT
conjunto das tradições relatadas deve situar-se entre 1200 e 1020 a.C., sendo esta segunda data a do
estabelecimento da monarquia.
Um livro da fé de Israel. Documento instigante e difícil para o historiador, o livro dos Juízes é antes de
tudo uma obra suscitada pela fé de Israel. Desde os mais antigos textos que o compõem, tal como o Cântico
de Débora (Jz 5), descobre-se esta convicção: o Deus de Israel é aquele que sustenta seu povo nas horas
difíceis. Essa experiência teologal foi estendida a todo Israel, e o quadro teológico do livro ainda reforçou a
intuição original, insistindo na fraqueza de Israel e na paciência de Deus, que, incansavelmente, envia
homens para libertar as tribos da opressão.
É certo que os heróis do livro dos Juízes estão enraizados num tempo em que os costumes eram rudes e
as idéias morais não correspondiam às nossas. A astúcia de um Eúde, o assassinato de Sísera por Jael, o
sacrifício da filha de Jefté, os amores de Sansão podem nos chocar, mas, através desses relatos, que não
procuram edulcorar a realidade, é necessário aprender a descobrir a ação de Deus, que conduz um povo
dando-lhe chefes animados pelo Espírito (3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 14,6.19; 15,14). Esses homens
prefiguravam o rei que devia receber o Espírito do Senhor para dirigir o povo com justiça, e o próprio rei era
o presságio do Messias, sobre quem repousaria o Espírito de múltiplos dons (Is 11,2).2

Capítulo IV

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INTRODUÇÃO AO LIVRO DE RUTE
(Canônico)

O livro de Rute, cujo nome se deve à principal heroína do relato, narra a história de uma família de
Belém que emigrou para a terra de Moabe. Lá chegando, Elimeleque, esposo de Noemi, morre, assim como
seus dois filhos, Mahlon e Kilion, que haviam desposado duas moabitas, Rute e Orfa. Ao cabo de dez anos,
Noemi retorna a Belém, acompanhada de Rute, enquanto Orfa volta para junto de seu povo. Rute vai
recolher espigas no campo de Boaz, que a acolhe com benevolência. Noemi, sabendo que Bôaz tem sobre
Rute um direito de resgate, aconselha a nora a incitar Boaz a desposá-la. Ele acede ao pedido e, após a
desistência de um resgatador mais próximo, toma Rute por mulher. Ela lhe dá um filho: Obede, pai de Jessé,
pai de Davi.
Na Bíblia hebraica, a história de Rute se situa entre os "Ketubim" ou Escritos. A Bíblia grega e a Bíblia
latina inserem-na depois dos Juízes, certamente por causa da indicação cronológica que está no primeiro
versículo.
A data do texto ainda é bastante discutida. Para uma data pré-exílica, levantaram-se várias razões. Os
costumes jurídicos aduzidos no livro (direito de resgate, matrimônio levirático; cf. nota a 4,5) refletiriam
uma legislação anterior ao Deuteronômio. O estilo do livro se aproximaria da prosa clássica do AT. O estudo
dos nomes próprios sugeriria uma origem antiga. Entretanto, uma data pós-exílica parece preferível. O autor
considera muito distanciada a época dos Juízes. Deve explicar um velho costume caído em desuso. Algumas
particularidades lingüísticas sugerem uma época tardia. A teologia do livro (universalismo, concepção da
retribuição e sentido do sofrimento) pode ser melhor entendida num clima pós-exílico. A época de Esdras e
de Neemias conviria muito bem ao relato, favorável à causa dos matrimônios com estrangeiras, contra as
reformas rigorosas de Esd 9 e Ne 13.
Mas o livro de Rute não é uma polêmica. O autor evoca o exemplo da avó de Davi, uma estrangeira,
modelo de piedade que, por um casamento levirático providencialmente conduzido pelo Senhor, introduziu-
se legalmente numa família israelita e, ainda por cima, davídica. 1Sm 22,3-4 aponta os vínculos entre Davi e
Moabe.
Com exceção da genealogia, 4,18-22, que se reencontra em 1Cr 2,5-15 e que parece ser uma adição, a
unidade literária do livro revela-se sem falha. O relato se desenvolve em perfeita harmonia: quatro quadros
(1,6-18; 2,1-17; 3,1-15; 4,1-12) precedidos de uma introdução (1,1-5), seguidos de uma conclusão (4,13-17),
com intermédios que servem de transições (1,19-22; 2,18-23; 3,16-18). Paralelismos numerosos, passagens
ritmadas, assonâncias e aliterações atravessam todo o livro, tornando-o uma obra-prima da literatura.
Acrescentemos ainda trocadilhos contidos nos nomes próprios: Elimeleque (Meu-Deus-é-rei), Noemi (Minha
Graciosa) contrastam singularmente com Mahlon (Doença) e Kilion (Fragilidade), cujos nomes anunciam
morte próxima. Orfa poderia evocar a "nuca", que se vira ao partir, e simbolizar a defecção, enquanto Rute,
provavelmente aparentada a "amiga", ou mais certamente a "reconfortada", anuncia a afeição ou o

2
Nota introdutória da TEB.
7
Livros Históricos AT
reconforto. O nome de Boaz (Força-nele) engendra a esperança, o de Mara (Amarga) traduz a miséria.
Quanto a Obede, significa "servidor", "servo" (subentendido: de um deus particular; aqui: do Senhor). A
mudança de Noemi para Mara em 1,20 sugere claramente que o autor dá a estes nomes próprios um valor
simbólico.
O livro de Rute faz parte dos cinco Rolos lidos nas principais festas judaicas. Ele é utilizado para a festa
de Pentecostes. Será que foi escolhido para tal por situar-se no começo da colheita da cevada? Ou mais
profundamente porque, se a festa judaica de Pentecostes celebra o dom da Lei a Israel, o livro de Rute
estende este dom às nações pagãs, e a genealogia final chega a fazer de uma estrangeira a antepassada de
Davi e, em conseqüência, do futuro Messias? Seria difícil dizê-lo com exatidão. A tradição rabínica viu em
Rute o modelo da prosélita, e a expressão "vir sob as asas do Senhor" (cf. 2,12) veio designar a conversão ao
judaísmo.
Rute figura na genealogia de Jesus, segundo o evangelho de Mateus 1,5. Este último traço enfatiza o
universalismo e o messianismo do nosso relato.3

Capítulo V
INTRODUÇÃO AOS DOIS LIVROS DE SAMUEL
(Canônicos)

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O título dos livros. A divisão de Samuel em dois livros é muito recente. Uma nota massorética a 1Sm
28,24 indica que o "centro do livro" se encontrava neste lugar. Os tradutores gregos devem ter copiado a
tradução em dois rolos, que intitularam 1º e 2º livro dos Reinados. Tal divisão, seguida pela Vulgata (que os
chamava 1º e 2º livro dos Reis), se impôs às bíblias hebraicas a partir dos séculos XV/XVI.
A comparação do texto hebraico com o da versão grega revela algumas divergências. É pouco provável
que os Setenta tenham agido por conta própria nas adições e omissões constatáveis no texto grego. Os
escassos vestígios já publicados do texto hebraico encontrado em Qumran mostram um texto às vezes mais
próximo daquele que parece ter servido de base à Septuaginta. Por outro lado, a antiguidade destas
testemunhas não basta para provar que estejam fornecendo o "texto autêntico". A versão grega, ou antes, seu
substrato hebraico, pode ter procurado eliminar algumas duplicatas ou contradições e representa
provavelmente uma recensão menos espinhosa que a transmitida pelos massoretas. As duas recensões
deviam ainda coexistir no início da era cristã.
O título Samuel reflete uma antiga tradição rabínica que dava o profeta Samuel por autor destes livros
(Baba Batra 14b). Rabinos posteriores, tomando ao pé da letra 1Cr 29,29-30, supuseram que a obra de
Samuel, depois de sua morte, fora continuada pelos profetas Natã e Gade (Baba Batra 15a).
Percebe-se particularmente que os caps. 21–24 de 2Sm interrompem uma narrativa relativamente
homogênea quanto ao estilo e argumento, relatando as vicissitudes internas do reino de Davi e conduzindo à
ascensão de Salomão. Os dois primeiros capítulos de 1Rs pertencem a esse conjunto antigo, cuja unidade foi
rompida pela inserção de 2Sm 21–24. Esta inserção é comparável à de Jz 17–21, constituída de apêndices
que interrompem a série de histórias de juízes-salvadores que 1Sm parece continuar.
O conteúdo dos livros. Na sua disposição atual, as diversas partes dos livros de Samuel parecem
encadeadas segundo uma ordem cronológica, desconsiderados os "Suplementos" de 2Sm 21–24. A primeira
parte (1Sm 1–7) narra a carreira de Samuel desde seu nascimento e vocação profética, até o momento em que
se tornou um grande juiz, salvador de Israel. O ambiente é o das guerras contra os filisteus, das quais se
retêm sobretudo os episódios referentes ao destino da arca de Siló.
Quando Samuel envelhece, o povo, sob a pressão do perigo externo, vem pedir-lhe um rei. Esta
iniciativa provoca objeções do profeta, defensor da teocracia. Não obstante, ele acede ao desejo dos anciãos
de Israel e confere a investidura a Saul. Instalado o rei, Samuel se retira. A discussão em torno à realeza e os
relatos da ascensão de Saul ocupam os capítulos 8–12 de 1Sm, constituindo a 2ª parte deste livro.
A 3ª parte (1Sm 13–15) focaliza as guerras de Saul contra os filisteus e os amalequitas. Estas guerras
são vitoriosas, mas já se acumulam sombras sobre o rei: ele se torna culpado de dois atos de desobediência à
vontade divina, e Samuel lhe revela sua destituição, anunciando-lhe, em termos explícitos, que Davi o vai
substituir.
A carreira de Davi, desde sua apresentação a Saul até o momento de sua sagração como rei, é narrada no
conjunto complexo que se chama "história da ascensão" de Davi (1Sm 16–2Sm 5). Sagrado, ainda criança,
por Samuel, Davi entra para o serviço de Saul e se distingue pela vitória gloriosa sobre um gigante filisteu.

3
Nota introdutória da TEB.
8
Livros Históricos AT
Torna-se grande chefe de guerra e conquista a afeição de todos, particularmente de Jônatas, o filho de Saul.
Mas ele inspira a Saul um ciúme mórbido, que tenta por várias vezes, sem êxito, desembaraçar-se de seu
rival. Davi deve fugir e, perseguido por Saul, começa uma vida errante que o conduz a pôr-se a serviço dos
filisteus, sem contudo empunhar armas contra seu próprio povo. Quando Saul e Jônatas tombam diante dos
filisteus na batalha de Guilboa, David continua a luta contra os sucessores de Saul e anda de vitória em
vitória, enquanto a casa de Saul vai enfraquecendo.
A 5ª parte (2Sm 6–8) é a dobradiça do díptico que constitui a história de Davi nos livros de Samuel. A
instalação da arca de Siló em Jerusalém consagra a cidade conquistada por Davi como capital de seu reinado,
e a profecia de Natã estabelece em favor da dinastia davídica o princípio de hereditariedade monárquica. A
notícia do cap. 8 lembra que o fundador da monarquia de Jerusalém foi também o conquistador de um
verdadeiro império.
O segundo painel do díptico é representado pelos caps. 9–20 de 2Sm (aos quais convém acrescentar 1Rs
1–2). É a relação dos acontecimentos que deságuam na entronização de Salomão. Muito espaço ocupa o
relato do nascimento de Salomão e as circunstâncias que o acompanham. Depois relata-se como foram
eliminados da sucessão os filhos de Davi que poderiam representar obstáculo ao destino de Salomão: Amon,
Absalão (e Adonias).
Introduzidos por ocasião de uma pausa no relato da "sucessão de Davi", os apêndices de 2Sm 21–24
agrupam, em torno a duas composições líricas e notícias referentes a diversas pessoas, as relações de duas

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catástrofes naturais e de seu esconjuro, relatos que não conseguiram lugar nos capítulos precedentes, a
despeito de seu significado histórico e religioso.
Os livros de Samuel e a história de Israel. Os livros de Samuel abrangem um longo período da
história israelita, sendo possível determinar-lhe ao menos o termo final. Levam-nos até a velhice de Davi,
alguns anos, ao que parece, antes de ascensão de Salomão em 970 a.C. Não é tão fácil situar na história os
episódios iniciais, mergulhados na mesma indefinição cronológica que as histórias dos Juízes. Desta época
remota, subsistem em Samuel tradições contendo elementos com incontestável sabor de autenticidade: as
informações a respeito da dominação filistéia, particularmente o monopólio do ferro conservado pelos
filisteus (1Sm 13,19-21), os relatos de guerras, ricos em indicações topográficas precisas e verificáveis (1Sm
13; 17; 31), os das peregrinações de Davi fugitivo. A tensão entre "Israel" e "Judá", que se percebe nas
histórias dos conflitos entre Davi e a casa de Saul e da rebelião de Absalão, é um dado de valor sólido.
Malgrado a ausência de fontes externas, não podemos desmerecer o que nos ensina 2Sm 8 sobre as guerras
de Davi: somente a constituição de um Império davídico, bem no começo do 1º milênio, quando tanto o
Egito como a Assíria estão na defensiva, pode explicar a prosperidade do reinado de Salomão , tendo Israel
então acesso ao Mediterrâneo e ao Mar Vermelho. As notícias sobre os funcionários de Davi (2Sm 8,15-18;
20,23-26) e o recenseamento de que fala 2Sm 24 atestam uma vontade decidida de organizar o território e
marcam uma mudança significativa em relação ao tempo de Saul, cujo aparato de defesa não passava de um
embrião de exército permanente. Em compensação, não se devem perguntar a Samuel informações seguras
quanto ao início da realeza. O perigo filisteu certamente pode explicar a iniciativa dos anciãos que vêm pedir
um rei a Samuel, mas, quando e onde aconteceu isso? A tradição de 1Sm 11, mostrando em Saul o vencedor
dos amonitas e o salvador de Iabesh de Guilead, tem para si as melhores garantias, segundo o estudo interno;
mas será historicamente compatível com os outros relatos de sua entronização? Saul foi coroado em Ramá,
em Mispá, em Gilgal ou, sucessivamente, nestes diversos lugares? A cronologia do reino de Saul continua
totalmente desconhecida. A notícia de 1Sm 13,1 indica que dela não se tem lembrança.
Elementos de uma compilação. Os livros de Samuel não são uma crônica que acompanhe os
acontecimentos passo a passo. São uma obra literária que reúne materiais heterogêneos, às vezes muito
antigos. Reúne tradições orais que devem remontar aos próprios dias de Saul e Davi, mas cujo estado
original já não se distingue com clareza por trás da forma escrita, páginas escritas provavelmente no reinado
de Salomão e complementações introduzidas depois da ruína do Estado em 587, quando os livros de Samuel
receberam seu lugar na obra atribuída à escola histórica chamada "deuteronomista" (Josué–Juízes–Samuel–
Reis), tão facilmente reconhecível por sua fraseologia e estilo.
Há certo consenso quanto a ver na "história da sucessão de Davi" (2Sm 9–20 + 1Rs 1–2) um relato
relativamente homogêneo. O relato da revolta de Absalão, rico em observações precisas, como registradas ao
vivo, deve ser obra de uma testemunha dos acontecimentos e não pode ter sido publicado muito tempo
depois. Constitui o núcleo da "história da sucessão", e recebeu como prefácio a história do nascimento de
Salomão (2Sm 9–12) e como conclusão, a do fracasso de Adonias (1Rs 1–12); de modo que estes capítulos
poderiam chamar-se também a "história da ascensão de Salomão". Não obstante a objetividade de tom,
percebe-se nitidamente a tendência do autor.

9
Livros Históricos AT
A composição do conjunto precedente (1Sm 16–2Sm 5), à qual se podem acrescentar elementos antigos
da profecia de Natã (2Sm 7) e a história da arca (2Sm 6), é bem mais difícil de ser rastreada. Se a história da
ascensão ou do advento ao trono de David é melhor estruturada do que geralmente se acredita (vê-se que
narradores e redatores procuraram construir simetrias), a presença de duplicatas chama a atenção: a entrada
de David no serviço de Saul , o atentado malogrado de Saul contra Davi, a intervenção de Jônatas a favor de
Davi, a aproximação de Davi aos filisteus , a denúncia da gente de Zif, o episódio em que Davi poupa Saul ,
tudo isso é narrado duas vezes. Por isso, vários exegetas acreditaram que estes capítulos continuavam os
"documentos" constitutivos do Pentateuco. Contudo, parece antes que na maioria dos casos estamos diante
de tradições diferentes (já fixadas, quer oralmente, quer por escrito), que os narradores e redatores decidiram
conservar e que tentaram organizar balizando sua coleção por fórmulas de moldura e sublinhando por
palavras-chave os temas dominantes de cada parte. Apesar destas duplicatas, a história da ascensão de Davi
apresenta tanta afinidade com a da sucessão que se é inclinado a pensar que os autores pertenciam ao mesmo
ambiente: escribas da corte de Jerusalém, selecionando e codificando tradições orais já elogiosas ao rei. O
processo de idealização de Davi, nitidamente perceptível nesta parte, prolonga-se a uma etapa ulterior da
redação: 1Sm 16, narrando a unção de Davi por Samuel, serve evidentemente para pôr o segundo rei no
mesmo nível que o primeiro e encontra-se intimamente ligado ao cap. 15, de incontestável caráter
secundário.
Os capítulos consagrados às guerras de Saul são uma compilação. Encontram-se aí tradições antigas

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sobre as guerras do tempo de Saul contra os filisteus e das quais o verdadeiro herói é Jônatas, o amigo de
Davi. A tendência é claramente hostil a Saul (1Sm 13–14). A narrativa da campanha contra Amaleque (1Sm
15) é introduzido talvez para marcar a falência da realeza de Saul, culpado por infringir um mandamento
divino. A destituição de Saul é a introdução necessária da história de Davi, que a segue de imediato.
A parte de 1Sm onde são tratadas as origens da realeza (8–12) não tem uma história menos complexa
atrás de si. Também aí encontram-se compilados elementos de origem diversa. Alguns são antigos, apesar de
retoques secundários. Assim a história das jumentas, certamente adaptação de uma lenda benjaminita (9–
10,16), uma tradição acerca da escolha do rei por sorteio, em Mispá (10,17-27), a narração do cap. 11, onde
Saul aparece favoravelmente, sob os traços de um juiz carismático vitorioso sobre o inimigo amonita. O cap.
8 expõe desde o início o problema teológico levantado pela própria instituição da monarquia. Condena o
desejo do povo que pede um rei, embora indique também que o Senhor acaba consentindo. Hoje tende-se a
ver nos "costumes do rei", contra os quais Samuel adverte seus compatriotas, a lembrança de práticas
características dos reis "como as nações os possuíam" por volta do fim do 2º milênio, antes do que uma
condenação antecipada de práticas iníquas dos reis de Israel. A base do cap. 8 seria então mais antiga do que
se acreditou durante longo tempo. O sermão de despedida de Samuel no cap. 12 em toda esta parte não
aparece um juízo acerca de Saul. Ele é simplesmente apresentado, e de diversas maneiras, como eleito do
Senhor. Parece haver aqui maior interesse pela instituição monárquica do que pelo primeiro detentor da
dignidade real.
A primeira parte do livro (1Sm 1–7) é dominada pela figura de Samuel. É apresentado como espécie de
tipo ideal do homem religioso; ele é, ao mesmo tempo, associado ao santuário e investido com uma missão
profética. Procura-se também mostrar nele o verdadeiro salvador de sua época (talvez com uma ponta
polêmica contra Saul, cf. 1,27-28). Insiste-se na eleição de Samuel, para evidenciar naquele que consagrou
os reis o agente credenciado por Deus. Outros elementos dos caps. 1–7 tomam sentido quando se levam em
consideração as preocupações principais do conjunto dos livros de Samuel: as aventuras da arca são relatadas
com tantos detalhes, porque contribuem para glorificar o móvel sagrado do qual Davi fez o "paládio" de sua
capital; o anúncio do "sacerdote fiel", em 2,27-36, serve para a glória de uma instituição da era salomônica, o
sacerdócio sadoquita; a antítese elevação/queda (lembrada de modo lapidar em 2,7) domina a história de
Samuel, oposto a Eli e seus filhos, mas também a de David oposto a Saul e sua casa. A lenda de Samuel não
carece de nexos com o que se segue a ela. Pode-se atribuir a um doutrinário regalista a compilação de
tradições antigas que constitui os capítulos 1–6. No cap. 7, o autor faz nele a conclusão da história dos
Juízes.
Lições acerca da realeza. A descoberta das tendências político-religiosas dos narradores e escritores
permite formular algumas hipóteses quanto à composição dos livros de Samuel. Com efeito, mais que um
longo capítulo da história antiga de Israel, estes livros são um ensinamento do qual convém perceber os
pontos principais.
O tema dominante é o da realeza. Não se procura encobrir a ambigüidade de sua instituição. Israel tem
por rei o Senhor. O que representa então um soberano humano? O problema é resolvido em favor da
instituição monárquica, já que, afinal, o Senhor e seu intermediário, Samuel, presidem à designação de Saul.

10
Livros Históricos AT
Se, contudo, a iniciativa do povo é condenada sem cerimônia, talvez seja para significar que a realeza de um
homem, por direito, não procede da vontade humana e sim, da autoridade divina, e que a monarquia israelita
não é nem democrática, nem autocrática, mas permanece subordinada à teocracia. Talvez procure-se sugerir
que Saul pessoalmente tenha sofrido por ter sido "pedido" (o sentido de seu nome em hebraico). O nimbo
legendário que envolve a figura de Samuel realça a supremacia do homem religioso mediador da vontade
divina. Insiste-se na natureza religiosa das faltas que provocam a queda de Saul, para indicar que o rei não
deve invadir um domínio que não é seu. A isso associa-se o interesse dos livros de Samuel pelos objetos,
práticas e pessoas do culto (particularmente quanto à arca, intocável segundo 2Sm 6,7, e quanto ao altar de
Jerusalém, 2Sm 24).
O rei por excelência é Davi. Ele é fortemente idealizado, sobretudo na história de seus inícios, pelos
relatos de suas façanhas, da afeição que ele inspira, de sua magnanimidade e modéstia, embora não se
esconda que sua carreira foi a de um soldado que teve sorte. Não falta a observação da submissão que este rei
ideal demonstra em relação ao Senhor e suas instâncias e o seu cuidado em consultar a vontade divina.
Assim, ele aceita a reprimenda do profeta Natã, em conseqüência de seu pecado de adultério, o que mostra
que, em Israel, o rei não está acima da lei. Mas, à diferença de Saul, Davi não é punido na sua descendência;
ele recebe a segurança de ver reinar no seu lugar um de seus filhos. Este filho é Salomão, cujo advento se vê
preparado pelo amor que Deus lhe tem desde o nascimento. Nossos livros são portanto uma apologia da
dinastia judaíta. Segundo a profecia de Natã (2Sm 7), cujo teor essencial não foi modificado pela redação

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deuteronomista, a casa de Davi deve ocupar para sempre o trono de Jerusalém, pouco importa quais sejam as
faltas pessoais dos que exercem nela a monarquia.
Esta idéia religiosa expressa provavelmente num tempo em que a monarquia judaíta se considerava
segura de um longo porvir, teve uma sorte extraordinária, que valeu aos livros de Samuel seu lugar na
história da salvação. Virá um dia em que os reis se terão culpabilizado de tantas faltas que a própria realeza
parecerá condenada; o veredicto definitivo será pronunciado sobre ela em 587. Não obstante, não se deixará
de acreditar na garantia eterna concedida por Deus à casa de Davi, e esperar-se-á com confiança o advento de
um filho de Davi digno das promessas feitas ao seu antepassado. Trata-se do Messias, por um lado, rei ideal
mas, por outro, descendente carnal daquele que o Senhor tinha eleito por volta do ano 1000 antes de nossa
era.4

Capítulo VI
INTRODUÇÃO AOS DOIS LIVROS DE REIS
(Canônicos)

Os livros dos Reis cobrem um longo período da história de Israel. Os acontecimentos mais
antigos, os últimos dias de Davi (1Rs 1,1–2,10), remontam a 972 a.C. aproximadamente, ao passo que a
reabilitação do rei Jeoiaquim (2Rs 25,27-30) data de 561 a.C. Ora, como o indica a lista dos livros
bíblicos, os Livros dos Reis fazem parte dos Profetas Anteriores. Isto deve alertar o leitor para o fato
de que, conquanto esses livros sejam ricos em dados históricos, não devem ser considerados
primordialmente como livros históricos. Por seu conteúdo podem, de preferência, ser definidos como
uma reflexão teológica sobre um período da história de Israel em que este povo era governado por
reis.
Conteúdo dos Livros dos Reis
A) Fim do reinado de Davi e reinado de Salomão (1Rs 1–11)
Davi e a shunamita — Pretensões de Adonias à realeza — Reação do partido de Salomão e sua sagração
em Guihon: 1Rs 1,1-40
Fracasso da conspiração de Adonias: 1Rs 1,41-53
Recomendações de Davi a Salomão : 1Rs 2,1-11
Sorte reservada a Adonias, a seus dois principais cúmplices e a Shimeí: 1Rs 2,12-46
Aparição do Senhor a Salomão — Julgamento de Salomão : 1Rs 3
Os grandes do reino — Administração de Salomão — Sabedoria de Salomão : 1Rs 4,1–5,14
Aliança com Hirão, rei de Tiro, e preparativos para a construção do Templo: 1Rs 5,15-32

4
Nota introdutória da TEB.
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Livros Históricos AT
Construção do Templo e dos edifícios reais — Fabricação dos objetos de metal destinados ao Templo:
1Rs 6–7
Transferência da arca e dedicação do Templo — Nova aparição do Senhor a Salomão: 1Rs 8,1–9,9
Atividades diversas de Salomão: 1Rs 9,10-28
Visita da rainha de Sabá — Riquezas de Salomão: 1Rs 10
Pecado de Salomão — Revoltas no exterior — Anúncio do cisma a Jeroboão pelo profeta Ahiá: 1Rs 11
B) Do cisma ao fim do reino de Israel (1Rs 12–2Rs 17)
Cisma político e religioso — Jeroboão, rei de Israel : 1Rs 12
Profecia contra Betel: 1Rs 13
Ahiá anuncia a morte do filho de Jeroboão: 1Rs 14,1-20
Roboão, Abiâm e Asá, reis de Judá : 1Rs 14, 21–15,24
Nadabe, Baeshá, Elá, Zimri, Omri e Acabe, reis de Israel: 1Rs 15,25–16,34
Ciclo de Elias — A grande seca: Elias no Karit, depois em Sarepta; ressurreição do filho da viúva; o
sacrifício do Carmelo; Elias no Horebe 1Rs 17-19
Duas campanhas de Arâm contra Israel; cerco de Samaria e campanha em Afeq; intervenção de um
profeta: 1Rs 20
Ciclo de Elias (continuação) — A vinha de Nabot : 1Rs 21
Campanha de Acab e de Josafá contra Arâm; intervenção de Miquéias; morte de Acabe: 1Rs 22,1-40

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Josafá, rei de Judá: 1Rs 22,41-51
Acazias, rei de Israel: 1Rs 22,52-54
Ciclo de Elias (fim) — A morte de Acazias — Ascensão do profeta; Eliseu, o herdeiro do espírito de
Elias: 2Rs 1–2
Jorão, rei de Israel: 2Rs 3,1-3
Ciclo de Eliseu — Expedição contra Moabe — Alguns milagres: o milagre do óleo; ressurreição do
filho da shunamita; saneamento da sopa envenenada; multiplicação dos pães; cura do leproso Naaman; o
ferro que flutua; um destacamento arameu afetado de cegueira — Segundo cerco de Samaria pelos arameus
— Os bens da shunamita — Escolha de Hazael como rei de Aram: 2Rs 3,4–8,15
Jorão e Acazias, reis de Judá : 2Rs 8,16-29
Ciclo de Eliseu (continuação): unção real sobre Jéu. Proclamação de sua realeza sobre Israel : 2Rs 9,1-
13
Jéu, rei de Israel — A repressão ao baalismo: assassinato de Jorão, de Acazias e de Jezabel;
exterminação da família real de Israel e dos irmãos de Acazias; exterminação de todos os servos de Baal:
2Rs 9,14–10,36
Reino de Atalia em Judá — O sacerdote Joiada escolhe Joás para rei de Judá : 2Rs 11
Restauração do Templo — Ameaça dos arameus a Jerusalém : 2Rs 12
Joacaz e Joás , reis de Israel : 2Rs 13,1-13
Ciclo de Eliseu (fim): morte do profeta, seguida de dois milagres: 2Rs 13,14-25
Amasias, rei de Judá : 2Rs 14,1-22
Jeroboão II, rei de Israel : 2Rs 14,23-29
Azarias, rei de Judá : 2Rs 15,1-7
Zacarias, Shalum, Menahêm, Peqahiá e Péqah, reis de Israel : 2Rs 15,8-31
Jotão e Acaz, reis de Judá — Coalizão siro-efraimita; apelo à Assíria: 2Rs 16
Oséias, último rei de Israel — Tomada de Samaria e deportação — Reflexões sobre a causa da ruína do
reino de Israel — Deportação de populações estrangeiras para Samariasincretismo religioso: 2Rs 17
C) Do fim do reino de Israel ao fim do reino de Judá (2Rs 18–25).
Ezequias, rei de Judá — Invasão assíria e intervenção de Isaías : 2Rs 18–19
Cura de Ezequias e embaixada babilônica; intervenções de Isaías : 2Rs 20
Manassés e Amon, reis de Judá : 2Rs 21
Josias, rei de Judá — Descoberta do livro da Lei — Reforma em Judá e em Israel : 2Rs 22,1–23,30
Joacaz, Joaquim, Ioiakin, reis de Judá — Primeira deportação: 2Rs 23,31–24,17
Sedecias, último rei de Judá — Ruína de Jerusalém e deportação: 2Rs 24,18–25,21
Godolias, governador de Judá; seu assassinato; parte da população foge para o Egito : 2Rs 25,22-26
Jeoiaquim é agraciado: 2Rs 25,27-30
Origem dos Livros dos Reis. Os Livros dos Reis, atualmente, nos são apresentados sob a forma de dois
livros bem distintos. Na realidade, porém, nos manuscritos da Bíblia hebraica constituem uma única obra. A
divisão em dois livros deve ser atribuída a escritores gregos do século III a.C. Esta divisão, que

12
Livros Históricos AT
paulatinamente acabou por prevalecer, cortou em dois — e de modo pouco hábil — o reino de Acazias
(iniciado em 1Rs 22,52-54 e terminado em 2Rs 1), bem como o "ciclo de Elias" (iniciado em 1Rs 17 e
terminado em 2Rs 1).
Considerados em si mesmos, os Livros dos Reis não constituem uma unidade fechada, vale dizer, não
foram concebidos independentemente de outros livros bíblicos. Já se emitiu a hipótese de que,
primitivamente, fizessem parte de um conjunto histórico abrangendo os livros de Josué (talvez até mesmo o
Deuteronômio), dos Juízes, de Samuel e dos Reis. Poder-se-ia até identificar um sinal dessa possibilidade no
fato de 1Rs 1,1–2,11 ser a continuação imediata de 2Sm, que relatava o reino de Davi. Tal unidade é
pressuposta para explicar a ulterior separação entre os dois livros (Sm e Rs).
A análise dos Livros dos Reis acima apresentada permite avaliar a diversidade de conteúdo desses
livros, bem como as diferenciações entre os elementos que os compõem. O próprio autor menciona a
utilização de elementos anteriores e cita algumas fontes às quais recorreu. Tal formação indica que a obra
não nasceu de uma só feita, mas foi executada em diversas etapas. De fato, 1Rs 11,41; 14,19.29 etc. falam
respectivamente de um livro dos "Atos de Salomão", de "Anais dos reis de Israel" e de "Anais dos reis de
Judá", que serviram de ponto de partida para a redação do texto que atualmente possuímos.
Mas os trechos que se referem a esses Atos ou a esses Anais representam tão-somente uma parte de
nossos livros. O autor, para sua obra, serviu-se ainda de outras fontes: parece, por exemplo, que teve
conhecimento de arquivos provenientes do Templo (cf. 1Rs 4,1-6.7-19; 5,7-8). Em que proporções essas

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outras informações se constituíam em textos já escritos, ou será que provinham de meras tradições orais? A
história da rainha de Shebá (1Rs 10,1-13) origina-se de uma tradição à parte. Os relatos concernentes ao rei
Acab advêm de duas procedências muito diferentes: de um lado há textos que o condenam com o maior
rigor, do outro, há textos que o mostram como um rei valoroso (1Rs 22,9.35). O que nos foi relatado sobre o
rei Josias (2Rs 22,1–23,30) provém talvez em parte de outra fonte que não os Anais oficiais.
Ao lado dos relatos concernentes aos reis, há outras passagens mais peculiarmente dedicadas aos
profetas e que constituem reminiscências conservadas por seus discípulos. Tais relatos foram anexados aos
que se referem aos reis, de um lado, porque pertencem à mesma época e, de outro, porque narram as
intervenções desses profetas junto aos reis. Assim compreendida, a obra contém os três grandes "ciclos" ou
seqüências de relatos sobre os profetas Elias, Eliseu e Isaías , sem falar de trechos mais abreviados sobre
Ahiá, Miquéias, filho de Iimla, ou a respeito de algum profeta que tenha permanecido no anonimato (1Rs 13;
2Rs 21,10-15).
Como foi possível reunir em um todo esses diferentes elementos? Aborda-se aqui um dos problemas
mais difíceis da obra. É evidente que o autor que escreveu 2Rs 25,27-30 não é o mesmo que, falando na
condição de contemporâneo dos acontecimentos relatados, descreveu a arca do Templo em 1Rs 8,7, ou
narrou os fatos de 1Rs 9,21: deveria ter vivido mais de quatrocentos anos! A quem atribuir, então, a
composição de Reis? Aventam-se várias hipóteses; a que aqui se propõe reúne a aprovação de grande
número de exegetas.
Com os livros de Josué (alguns sábios incluiriam até mesmo o Deuteronômio), dos Juízes e de Samuel,
os Livros dos Reis constituiriam uma só e mesma obra.
Um primeiro redator teria composto os capítulos que abrangem de 1Rs 12 a 2Rs 20. Para essa
elaboração, ter-se-ia baseado, de um lado, em uma cronologia dos reis de Judá e de Israel, e de outro lado,
em textos de que faziam parte, em todo caso, os Atos de Salomão e os Anais dos Reis de Judá e de Israel.
Provavelmente, utilizou também elementos da tradição oral, sem falar do que lhe tenha sido possível
descrever como testemunha, pois ele parece ter presenciado a ruína de Jerusalém em 587 a.C. Pensou-se até
que esse autor fosse um sacerdote que teria escrito por volta de 580 a.C. na própria Palestina.
Ainda na própria Palestina, uma geração mais tarde, em 550 a.C. aproximadamente, e antes do regresso
dos exilados de Babilônia, um segundo redator teria retomado o trabalho de seu antecessor, completando-o
com outros relatos e tradições de que dispunha. Assim, as lembranças que encontrara sobre David e a história
de sua sucessão (as passagens de 2Sm que têm sua seqüência em 1Rs 1,1–2,11) e textos sobre o cerco de
Jerusalém (2Rs 18–19, paralelos a Is 36–39). Em sua obra teria também introduzido o que a tradição narrava
sobre a visita da rainha de Shebá. Em vista da importância que os profetas e a Lei de Moisés desempenham
em sua obra (que abrange de Js a 2Rs), chegou-se a pensar que esse segundo redator fosse oriundo do âmbito
dos profetas e que, talvez, ele pessoalmente fosse um discípulo do profeta Jeremias.
Finalmente, por volta do final do século VI a.C., alguns acréscimos menores teriam sido incorporados
ao livro, por escribas provenientes do âmbito dos levitas.
A cronologia dos Livros dos Reis. A cronologia dos Livros dos Reis apresenta problemas intrincados.
Só foi possível determiná-la, partindo-se de uns raros pontos de referência que estabeleciam um contato

13
Livros Históricos AT
seguro entre a História de Israel e a do Oriente Próximo. Alguns textos egípcios, os Anais e os documentos
provenientes dos reis da Assiro-Babilônia foram especialmente valiosos para indicar com precisão a data de
alguns acontecimentos.
Excetuando-se esses pontos fixos, os dados fornecidos pelos Livros dos Reis são muitas vezes difíceis
de interpretar. Em primeiro lugar, as datas dos reinados de Judá são contadas com base nos reinados dos reis
de Israel, e vice-versa, o que acarreta sempre certo número de imprecisões. Além disso, alguns erros de
copistas (intervenções ou confusões de números) introduziram aqui e ali certa desordem cronológica. Mais
ainda, se sabemos com precisão que Salomão (1Rs 1) e Jotão (2Rs 15,5) foram um e outro co-regentes de
seus pais, podemos admitir que também tenham existido outros casos de co-regência, provocando assim
certas defasagens de difícil avaliação, quando se trata de fixar uma escala cronológica para os diferentes
reinos.
Descobriu-se, enfim, que não existe, para os Livros dos Reis, apenas uma ordem cronológica, mas
diversos sistemas cronológicos, que se atropelam uns aos outros e cujas origens remontam às próprias fontes
desses livros. Obtêm-se, assim, três resultados diferentes, conforme o critério adotado: para determinado
período, somam-se ou os dados bíblicos concernentes aos reinos de Judá, ou ao reino de Israel, ou os dados
fornecidos pelos sincronismos. Por exemplo, para o período que se estende do cisma até o término do reino
de Acabe (933-853), isto é, 80 anos de cronologia tal como a reconstituímos, o total dos reinos é de 84 anos
para Judá, de 78 anos para o reino do Norte e, para os dados conseguidos pelos sincronismos, de 75 anos.

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A cronologia aqui utilizada tenta levar em conta as mais recentes descobertas arqueológicas.
Teologia dos Livros dos Reis. Estes livros são, primordialmente, uma reflexão teológica sobre a
história do povo e de seus reis. A história como tal é às vezes tratada de maneira muito sucinta: por exemplo,
o reinado de Omri, um dos grandes reis de Israel, é narrado com extrema superficialidade (1Rs 16,23-26); o
cerco de Samaria, que se estendeu por três anos, e o desmoronamento do reino do Norte são resumidos em
poucos versículos (2Rs 17,3-6; 18,9-12).
A) A realeza. A obra contém toda uma teologia da realeza. Um verdadeiro rei é aquele que guarda os
preceitos do Senhor… anda em seus caminhos, observa suas leis, seus mandamentos, suas normas e
exigências, conforme está escrito na Lei de Moisés (1Rs 2,3). A função real consiste em governar o povo
com sabedoria e justiça, inclusive em "servi-lo" (1Rs 12,7), pois esse povo é propriedade de Deus (cf. 1Rs
3,8-9). A fidelidade ao Senhor e a dedicação em celebrar-lhe corretamente o culto em Jerusalém constituem
exigências imperiosas, e para cada reinado é feita uma rápida avaliação a esse respeito. Ora, raros são os reis
que recebem aprovação! Em sua grande maioria são julgados severamente. Trinta e quatro vezes ressoa o
refrão: Ele fez o mal aos olhos do Senhor. E não faltarão exemplos. Múltiplas são, com efeito, as
infidelidades ao Senhor: cultos idólatras, construção de templos e altares dedicados a falsos deuses, consulta
a deuses estrangeiros, opressões e violências de toda sorte contra o povo, perseguições aos profetas do
Senhor, guerras empreendidas sem a aprovação de Deus, sacrifícios de crianças.
Uma das grandes acusações que o autor lança contra os reis (principalmente contra os do reino do
Norte), é a de terem levado Israel a pecar, isto é, de o terem arrastado às celebrações contrárias à Lei.
Conquanto alguns reis se tenham arrependido e se tenham considerado perdoados, o quadro é tão sombrio
que a ruína dos dois reinos de Israel e, depois, de Judá é vista como a conseqüência justa e necessária dos
pecados cometidos pelos reis e dos que eles induziram seus súditos a cometer.
B) Davi e sua dinastia. Acima da série dos reis de Judá paira a figura do fundador da dinastia, Davi,
chamado por vezes o "servo" de Deus (p. ex., 1Rs 3,6; 8,24; 11,13). Sua fidelidade ao Senhor, sua piedade
— idealizada — vão servir de parâmetro para que se avalie o procedimento de seus sucessores. Assim é que
Salomão caminha segundo as prescrições de Davi, seu pai (1Rs 3,3) ou que Asa fez o que é reto aos olhos do
Senhor, como Davi, seu pai (1Rs 15,11). Ou que Josias seguiu exatamente o caminho de seu pai Davi (2Rs
22,2). Em 13,2, dir-se-á explicitamente que é na condição de filho de Davi que esse Josias porá termo à
impiedade de Israel. Mas tal certificado de conformidade a Davi é conferido muito parcimoniosamente; o
profeta Ahiá, ao contrário, especifica que Jeroboão não foi como Davi (1Rs 14,8).
Para o autor dos Reis, a desobediência dos sucessores de Davi foi a causa direta tanto do cisma entre os
reinos de Israel e de Judá (1Rs 11,9-11), como da ruína deste último (cf. 2Rs 23,26s). Todavia, apesar da
ameaça contida em 1Rs 2,4: se teus filhos procederem bem… jamais algum dos teus descendentes deixará de
ocupar o trono de Israel (cf. 2Sm 7,12-16), esse autor vê perpetuar-se a promessa do Senhor à dinastia
davídica. Deus conserva "uma lâmpada" (um príncipe da dinastia) em Jerusalém "por causa de Davi" e da
promessa que lhe fizera (1Rs 15,11; 2Rs 8,19).

14
Livros Históricos AT
Enfim, os Livros dos Reis terminam com uma mensagem de esperança: o último descendente da
dinastia davídica, apesar de deportado para a Caldéia, vê sua situação transformar-se. O rei de Babilônia
manda-o "trocar suas vestes de prisioneiro" e concede-lhe a graça de comer todos os dias à mesa real.
C) Jerusalém e o Templo. Profundamente imbuídos do pensamento deuteronomista, os Livros dos Reis
atribuem importância considerável a Jerusalém e ao culto celebrado no Templo. Acima de tudo, Jerusalém é
a cidade "escolhida" por Deus (1Rs 8,12). Em seguida, é a cidade do Templo, e 1Rs 8,15-19 recorda que esse
Templo tem como origem o desejo de Davi de construir uma Casa "para o nome do Senhor" (cf. 2Sm 7,1-
16). A importância do santuário é claramente definida na oração de Salomão (1Rs 8,23-53), por ocasião da
dedicação do Templo: este é na verdade o lugar do "encontro" (cf. a Tenda do Encontro, Ex 33,7) de Israel
com seu Deus em todas as circunstâncias da vida nacional. Também o relato da reforma de Josias (2Rs 22–
23) é dominado pelo Templo: no Templo se encontra o rolo da Lei, é em primeiro lugar o Templo que é
purificado, e é o Templo que, doravante, deverá centralizar toda a vida sacrifical de Israel. Essa reforma
marcou a tal ponto o autor bíblico que ele mencionará como que se desculpando a antiga prática de oferecer
sacrifícios fora de Jerusalém (1Rs 3,2; 22,44; 2Rs 12,4; 14,4; 15,4.35), conquanto, historicamente falando, o
fato fosse perfeitamente legítimo (cf. Elias no Carmelo, 1Rs 18).
Graças à importância central atribuída ao Templo, os sacerdotes desempenhavam uma função
preponderante na celebração do culto. Segundo a reforma de Josias, somente aos sacerdotes, e
especificamente os de origem levítica, será reservado o direito de oferecer sacrifícios. 1Rs 8,1-6 já evoca o

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papel que desempenharam por ocasião da dedicação do Templo de Salomão. Enfim, aos sacerdotes é
atribuída a preservação da dinastia davídica no momento em que Atalia tentava extingui-la (2Rs 11). O autor
chega a enfatizar que Joás fez o que é reto aos olhos do Senhor porque o sacerdote Joiada o educara (2Rs
12,3). E já fora um sacerdote que ungira Salomão (1Rs 1,39).
Em face da ordenação rigorosa de um culto centralizado em Jerusalém e dirigido por sacerdotes levitas,
o autor dos Livros dos Reis manifesta total desaprovação à iniciativa tomada por Jeroboão de organizar o
culto em outros santuários, como em Dan e em Betel. Seria esse o "pecado de Jeroboão" ou o "caminho de
Jeroboão" (expressões que se repetem umas vinte vezes) e que ele condena radicalmente, como vinte vezes
ainda acusará o mesmo rei de ter "levado Israel a pecar", e seus sucessores, de o terem imitado. Para o autor,
a desobediência à ordem de não oferecer sacrifícios senão em Jerusalém é tão grave que bastaria tão-somente
essa inobservância para acarretar um julgamento global de condenação para o reinado de um rei, mesmo que
este, em outras situações, houvesse testemunhado sua fidelidade ao Senhor, derrubando os altares de Baal
(cf. 2Rs 3,1-3). Tais práticas cismáticas serão deploradas ainda após a ruína de Samaria (2Rs 17,32).
D) O profetismo. Nos Livros dos Reis, lugar de destaque é reservado aos profetas e às suas
intervenções, quer em atos, quer em palavras. Não apenas Elias e Eliseu deram origem a tradições muito
extensas, mas também outros profetas se vêem revestidos de grande autoridade: Natan, Shemaiá, Ahiá,
Miquéias, Isaías, a profetisa Hulda. Ao lado dos milagres que lhes são atribuídos (principalmente a Elias e a
Eliseu), a ação política que desenvolvem é considerada essencial. Assim, é Natan quem induz Davi a
escolher Salomão como seu sucessor (1Rs 1,11-17), é Elias quem recebe a missão de ungir Hazael como rei
de Arâm e Jéu como rei de Israel (1Rs 19,15s.; cf. 2Rs 9,1-3; 8,11-13). São os profetas que destroem reis e
dinastias, pronunciando sobre os mesmos oráculos mortais: assim procedeu Ahiá com Jeroboão (1Rs 14,10-
11), Elias com Acab (1Rs 21,21-24). Em outra passagem, Isaías prediz a vitória do rei da Babilônia (2Rs
20,14-19). Em outras circunstâncias, porém, são eles que anunciam a vitória dos reis de Israel sobre seus
inimigos (Eliseu: 2Rs 7,1; 13,17-19; Isaías: 2Rs 19), ou que intervêm por ocasião das operações militares
(um profeta anônimo: 1Rs 20,13-14; Miquéias: 1Rs 22,19-28; Eliseu : 2Rs 3,9-19; 6,8–7,20). No relato da
ruptura entre Israel e Judá, aparece um profeta com o objetivo de impedir uma guerra civil (Shemaiá: 1Rs
12,22-24). Enfim, Elias intervém junto a Acabe para acusá-lo de ter violado — e de que maneira — o direito
ancestral de propriedade (1Rs 21,3-17s.).
Em todas essas situações, os profetas falam em nome do Senhor, proclamando seus apelos à obediência
e suas promessas de proteção. É evidente a intenção que os move: fazer respeitar a Lei e o direito em Israel,
como é possível observar ainda no papel que desempenha a profetisa Hulda por ocasião da descoberta do
texto legislativo que irá acarretar a reforma de Josias (2Rs 22,14-20). Os profetas também atuam tanto no
terreno religioso como no da moral ou da política, pois tudo deve ser submetido ao único "rei" de Israel (Is
6,5; 44,6; Zc 14,16).5

5
Nota introdutória da TEB.
15
Livros Históricos AT
Capítulo VII
INTRODUÇÃO AOS DOIS LIVROS DE CRÔNICAS
(Canônicos)

Os dois livros das Crônicas trazem, na Bíblia hebraica, um título que se poderia traduzir por Palavras
(ou Atos) dos dias, isto é: livro dos atos diários referentes a uma história ou ainda, segundo São Jerônimo:
Crônica de toda a história divina, nome que se perpetuaria sob a forma de livros das Crônicas. Segundo a
tradução grega, o nome, longamente conservado na tradição da Igreja, foi: Paralipômenos, palavra grega que
significa: coisas deixadas de lado, ou ainda: coisas transmitidas à parte, termo aplicável ao conteúdo destes
livros, considerados como complementos aos livros de Samuel e dos Reis. Com efeito, veremos que os
relatos dos livros das Crônicas retomam em grande parte os relatos dos livros de Samuel e dos Reis, com
outros elementos complementares, numa perspectiva histórica e teológica diferente.
A divisão em dois livros é artificial, visto que não existe corte entre eles. Em sua origem, constituem um
único livro, da mesma forma que os dois livros de Esdras e de Neemias. Aliás, este conjunto Crônicas-
Esdras-Neemias forma um todo, como mostram os últimos versículos das Crônicas (2Cr 36,22-23),
reproduzidos textualmente nos primeiros versículos de Esdras (1,1-3). Em conseqüência de circunstâncias
desconhecidas, o lugar desses livros foi modificado no cânon da Bíblia hebraica, no qual as Crônicas são os
últimos da coletânea, depois de Esdras-Neemias, quando na realidade deveriam precedê-los. É possível que

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os livros das Crônicas tenham sido recebidos no cânon judaico depois de Esdras-Neemias, porque repetiam
Samuel-Reis. A ordem lógica foi restabelecida nas versões antigas e com freqüência também nas traduções
modernas.
Plano. Os livros das Crônicas constituem um vasto panorama histórico que remonta à criação da
humanidade e que se prolonga até o séc. V a.C., depois da volta do exílio da Babilônia. É a mais longa
seqüência historiográfica da Bíblia, dado que o relato histórico contido nos livros que vão do Deuteronômio
ao final dos livros dos Reis (freqüentemente chamado: história deuteronomista) só cobre o período cujo
ponto de partida é a conquista de Canaã, e o ponto de chegada, o exílio de Babilônia.
O conteúdo desta história é dividido em quatro seções:
1) 1Cr 1–9: listas genealógicas desde Adão até David, passando pelas 12 tribos de Israel. Algumas
destas listas se prolongam até depois da época de Davi.
2) 1Cr 10–29; reinado de Davi, desde a morte de Saul até a morte de Davi.
3) 2Cr 1–9: reinado de Salomão.
4) 2Cr 10–36: história do reino de Judá, desde a morte de Salomão até o exílio da Babilônia. Pouco
antes da época do retorno a Jerusalém. A continuação deste relato, referente ao retorno e à restauração do
judaísmo depois do Exílio, encontra-se nos livros de Esdras e Neemias.
Autor e data. Geralmente atribui-se o conjunto Crônicas-Esdras-Neemias a um mesmo autor, cujo
nome é desconhecido e que é chamado o Cronista. A opinião que vê nesses livros a obra de vários autores
não é seguida, e as diferenças que aparecem na composição das várias partes desta obra explicam-se
naturalmente pela maneira como o autor utiliza os elementos diversificados que lhe serviram de fontes.
A data da redação final da obra é delimitada pelos acontecimentos que aí se narram. A atividade de
Esdras e Neemias situa-se essencialmente no séc. V, e talvez no começo do séc. IV a.C. (ver a Introdução
aos livros de Esdras e Neemias). Por isso não é possível fazer a redação remontar a uma época anterior a
meados do séc. IV, ou seja, 350-330 a.C.
Por outro lado, não parece que se possa descer a uma época muito posterior da história do judaísmo,
como seja o período em que os judeus conheceram as provas da perseguição e da guerra, sob os Macabeus,
no século II a.C. Parece mais indicado situar a obra do Cronista no período relativamente calmo e tranqüilo
que precede o tempo das provações, ou seja, entre 330 e 250 a.C. Ainda que existam algumas adições
redacionais de data ulterior à obra do Cronista, parece difícil atribuir ao conjunto dos livros uma data mais
recente do que 200 a.C., embora nenhum indício preciso permita chegar com certeza a uma conclusão mais
satisfatória.
Composição e método de redação. Se ignoramos o autor das Crônicas e a data precisa da conclusão de
sua obra, conhecemos bem a maneira pela qual ele realizou seu trabalho de redação e de composição
literária. Este é o único livro do Antigo Testamento que mostra claramente a maneira pela qual foi composto.
Na realidade, o autor não redigiu um relato que lhe tivesse sido inspirado por seus conhecimentos da
história antiga do seu povo. Ele reproduz fielmente certo número de documentos que tem diante de si,
reordenando-os às vezes em função do objetivo de sua obra e modificando-os de acordo com outros
documentos que conhece ou de acordo com a idéia que tinha da história e de seu significado. Além disso,

16
Livros Históricos AT
toma o cuidado — o que era raro em sua época — de citar suas fontes, dando-nos assim informações
preciosas, ainda que incompletas e por vezes difíceis de precisar.
Ele menciona:
— o livro dos reis de Judá e de Israel (2Cr 16,11)
— o livro dos reis de Israel e de Judá (2Cr 27,7)
— o livro dos reis de Israel (1Cr 9,1)
— os atos dos reis de Israel (2Cr 33,18)
— o comentário (ou midrash) ao livro dos Reis (2Cr 24,27)
— os anais do rei David (1Cr 27,24)
— as palavras (ou atos) do vidente Samuel (1Cr 29,29), do profeta Natã (1Cr 29,29), do vidente Gade
(1Cr 29,29), do profeta Shemaiá e do vidente Idô (2Cr 12,15), de Jéu, filho de Hanani (2Cr 20,34), de Hozai
(2Cr 33,19)
— a profecia de Ahiá de Siló (2Cr 9,29)
— a visão do vidente Iedô (2Cr 9,29), do profeta Isaías, filho de Amôs (2Cr 32,32).
— o comentário ou midrash do profeta Idô (2Cr 13,22)
— um documento escrito do profeta Isaías, filho de Amós (2Cr 26,22).
É provável que vários destes títulos designem documentos idênticos, com algumas variantes na
formulação de seus títulos. Apesar da variedade de opiniões dos comentadores, é possível identificar pelo

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menos três grupos de documentos de que o Cronista se serviu; antes de mais nada, os livros de Samuel e dos
Reis, dos quais às vezes reproduz textualmente relatos inteiros; em seguida, outro documento histórico, hoje
perdido, que continha elementos que o Cronista utilizou para completar os livros anteriores (talvez seja
aquele designado com o termo midrash ou comentário ao livro dos Reis); por fim, um grupo de documentos
que contêm diversas tradições proféticas, que o Cronista menciona de maneira pouco precisa, e que provêm
ou dos livros de Samuel e dos Reis (tradições sobre Samuel), ou dos livros proféticos (Isaías), ou de outras
fontes que hoje desconhecemos.
A todos estes materiais, que constituem o essencial dos relatos, é mister acrescentar outros elementos
utilizados pelo Cronista sem indicação de origem e sem referências precisas. Em geral, são textos que
provêm de outros livros do Antigo Testamento, que o autor conhecia muito bem e aos quais freqüentemente
se reportava. Suas listas genealógicas são tiradas, em grande parte, dos dados da mesma natureza fornecidos
pelo Gênesis, Êxodo, Números, Josué, Rute. Há capítulos que reproduzem total ou parcialmente textos
litúrgicos tirados do Saltério (1Cr cita os Salmos 105; 96; 106).
Levando em consideração a contribuição pessoal do Cronista a sua obra, pois não se trata de simples
compilação de documentos anteriores, e admitindo, como é possível, que algumas adições mais tardias
tenham sido juntadas à obra já acabada, constata-se que os livros das Crônicas representam, na literatura
bíblica, a única obra em que se pode analisar tão de perto a composição e o método de redação.
Que método? Sem entrar em detalhes dos relatos, mas estabelecendo uma comparação geral entre os
livros de Samuel e Reis e os livros das Crônicas, é possível explicitar alguns princípios diretores seguidos
pelo Cronista na composição da obra. Em primeiro lugar, ele procedeu por eliminação, conservando de suas
fontes apenas o que queria narrar, de acordo com a idéia que fazia de sua obra. A história do reinado de
David e de sua dinastia foi para ele a verdadeira história do povo de Deus e de seus destinos.
Conseqüentemente, tudo o que se referia à história do reino de Israel depois do cisma não lhe interessava;
relegou ao silêncio toda esta parte e só narrou a história do reino de Judá e de sua capital, Jerusalém. De
modo análogo, deixou de lado certo número de acontecimentos e fatos que não lhe pareciam muito
importantes para evidenciar a glória dos reinados de David e de Salomão, ou que lhes fossem desfavoráveis
(o adultério de Davi, a revolta de Absalão, o luxo e a idolatria do fim do reinado de Salomão). Tal método
explica, em parte, as lacunas que não se pode deixar de constatar nesta obra histórica (não se alude ao exílio
de Babilônia; períodos bastante longos da história entre o Exílio e a restauração de Esdras e Neemias — mais
de um século — não são mencionados).
Vem a seguir a tarefa de adaptação que o Cronista levou a cabo, utilizando materiais que lhe serviam de
fontes. Em razão quer de sua falta de interesse pela cronologia exata, quer das opiniões teológicas que o
guiaram em seu relato, apresentou os fatos como o faria uma testemunha que os apresentasse à luz de sua
própria personalidade e de sua época.
As desgraças dos reis e dos povos são sempre explicadas por uma desobediência a Deus; pelo contrário,
as bênçãos concedidas por Deus são sempre fruto do zelo e da fidelidade dos personagens com relação ao
Templo e ao culto. As modificações de ordem cronológica são sempre difíceis de explicar, mas parecem
obedecer a razões mais teológicas do que históricas (particularmente nos livros de Esdras e Neemias). Pode-

17
Livros Históricos AT
se falar das Crônicas, como às vezes se faz, como escritos "tendenciosos"? Isto equivaleria a fazer um
julgamento pejorativo e injusto do autor, que se preocupou mais em apresentar uma "teologia da história" do
que em fazer uma exposição histórica objetiva e completa. Sua obra é menos a de um historiador, em sentido
moderno, e mais a de um crente ou teólogo que vê na história o testemunho da ação permanente de Deus e a
imagem, certamente ainda imperfeita, mas real, do Reino de Deus.
Por fim, o método de composição comporta um trabalho destinado a completar os dados fornecidos
pelas fontes principais, isto é, os livros de Samuel e dos Reis. Graças a outros documentos, a tradições
escritas, ou mesmo orais, o Cronista dá detalhes complementares sobre certos aspectos da história do povo
que não se encontram nos outros livros do cânon bíblico e que, desta forma, são muito preciosos para um
melhor conhecimento desta história. Mesmo se algumas passagens de seu texto exprimem suas reflexões
pessoais e sua concepção das coisas, o mesmo não se pode dizer de numerosos pormenores que não podem
ser obra de sua imaginação criadora, mas que ele encontrou em fontes que não mais conhecemos.
Além disso, podemos saber como ele tratava suas fontes, comparando as passagens de sua obra com
seus paralelos em Samuel-Reis. Embora certos retoques teológicos ou literários sejam perceptíveis aqui e ali,
as variantes geralmente são de ordem acidental: o Cronista conheceu o texto hebraico de Samuel-Reis num
estado mais antigo que nosso texto atual, e tanto Samuel-Reis como as Crônicas sofreram inevitáveis falhas
de copistas. A comparação desses textos em seu estado presente nos dá preciosas informações sobre os
acidentes de transmissão possíveis nos outros livros da Bíblia. Ela nos mostra, ao mesmo tempo, que o

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Cronista geralmente copiava de suas fontes com grande fidelidade. Mas orientava o conjunto do relato por
meio de hábeis incisões ou por judiciosos empréstimos a outras fontes complementares.
Em última análise, o método de composição literária do Cronista está estreitamente ligado à sua
concepção da história e às suas convicções teológicas que expomos a seguir.
Teologia do autor das Crônicas. A análise do conteúdo dos dois livros das Crônicas permite explicitar
e sublinhar os aspectos teológicos mais importantes desta obra, ainda que não se possa pretender conhecer a
teologia do Cronista em sua totalidade.
Há uma evidência que se impõe logo de saída: a importância e o lugar central da história da realeza
davídica. Tudo o que antecedeu a história de Davi é reduzido a um conjunto de listas genealógicas que
retrocedem até Adão (caps. 1–9), e a ligação com Davi se faz apenas por um breve capítulo (cap. 10) sobre a
morte de Saul, cuja realeza foi rejeitada por Deus em benefício da de Davi. Todo o fim do primeiro livro é
consagrado a esta (caps. 11–29). Mas, se comparam estes relatos com outros paralelos dos livros de Samuel e
dos Reis, não se pode deixar de constatar as diferenças. Tudo o que se refere à infância, à juventude e aos
anos da vida errante de Davi em conflito com Saul é deixado de lado, da mesma forma que seus sete anos e
meio de reinado sobre Judá em Hebron, enquanto as outras tribos de Israel conheciam o reinado
movimentado de um filho de Saul, Ishbôshet. Além disso, todos os acontecimentos familiares referentes à
corte do rei, o comportamento do próprio rei no caso de Bateseba, mulher de Urias, as rivalidades de seus
filhos por causa de sua sucessão, a revolta de Absalão, em resumo, tudo aquilo que dá aos caps. 9–23 de 2Sm
o caráter vivo e realista de um relato sobre a vida de uma corte real oriental não se encontra nas Crônicas.
Sem dúvida, a figura do rei Davi continua muito humana, mas idealizada. Tudo contribui para mostrar nele o
rei segundo a vontade de Deus, o rei que permanecerá à testa de uma dinastia sem fim, sobretudo o rei que
consagrou sua vida a fazer de Jerusalém uma capital e uma Cidade Santa e a preparar, até nos mínimos
detalhes, a construção do Templo e a organização do culto, que doravante será ali celebrado. Às vezes,
chegou-se a estabelecer uma espécie de paralelo entre a figura de Moisés na tradição "sacerdotal" do
Pentateuco e a de Davi nas Crônicas. Com efeito, há certa semelhança entre estes dois homens que são
apresentados — em épocas muito diferentes — como chefes e legisladores do povo, em nome de Deus.
Na seqüência dos relatos, o rei Salomão aparece como uma figura idealizada, a exemplo de
Davi. A seu respeito, nada se conserva de desfavorável, nem a eliminação brutal de seus rivais no início
de seu reinado, nem o luxo, a idolatria e a vida dissoluta da corte real no fim de seu reinado. Salomão é
o rei que construiu o Templo seguindo as indicações e os preparativos minuciosos de seu pai, Davi. A
dedicação do Templo assume uma solenidade e amplidão que não se encontra no livro dos Reis.
O Templo e o culto estão no centro das preocupações do Cronista, e pode-se até perguntar se o principal
objetivo de sua obra não é precisamente o de apresentar uma história do Templo de Jerusalém, a Cidade
Santa, e do culto que aí deve ser celebrado. Nas genealogias do início, as listas referentes a Judá e Benjamim
são as mais desenvolvidas; é que são as da família de Davi e do território de Jerusalém . A história dos
sucessores de Davi e Salomão está centrada no Templo, e os desenvolvimentos mais importantes são os que
se referem aos reis cuja maior preocupação foi a de restaurar o Templo ou reformar o culto: Asa (2Cr 14–
16), Josafá (caps. 17–20), e sobretudo Ezequias (caps. 29–32) e Josias (caps. 34–35). Logo depois da volta

18
Livros Históricos AT
do Exílio, encontra-se a mesma preocupação que aparece nos livros de Esdras e Neemias: restauração do
altar sobre as ruínas do Templo (Esd 3), reconstrução do Templo (Esd 4–6), da Cidade Santa (Ne 1–4) e
restauração do culto (Ne 8–9).
Da mesma forma, o Cronista cerca de especial predileção os ministros do culto, todos membros da tribo
de Levi, sejam eles sacerdotes, descendentes de Aarão, sejam levitas, descendentes de outros clãs da mesma
tribo. Enquanto todo o Pentateuco mencionava os sacerdotes 27 vezes, registram-se 53 vezes para Esdras-
Neemias e de 76 vezes para as Crônicas. Aplicando o que se estabelece em Lv 1,5 e em Nm 10,8, são os
sacerdotes os encarregados de fazer soar as trombetas (1Cr 15,24; 2Cr 13,12) e de verter sobre o altar o
sangue das vítimas imoladas (2Cr 30,16). Mas os levitas não são simples empregados subalternos:
transportam a arca, são porteiros e guardiães do Templo, desempenham as funções de cantores e músicos;
em certas circunstâncias, chegam a participar, juntamente com os sacerdotes, da preparação (não da
oferenda) dos sacrifícios (2Cr 29,34; 30,16-17).
As cerimônias exprimem, nos relatos que as expõem, acentos de alegria, louvor e reconhecimento, e isto
faz supor que o próprio Cronista pode ter sido um levita ou tenha querido restabelecer suas funções às vezes
depreciadas.
Outra hipótese a considerar: o autor das Crônicas teria querido, com sua obra, enfatizar a legitimidade
exclusiva do Templo e do culto em Jerusalém diante das tentativas feitas por alguns de estabelecer outros
santuários e justificar outras cerimônias cultuais no passado, mas também na época do Cronista. Seu relato

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teria uma perspectiva polêmica, particularmente contra os samaritanos ou os que estiveram na origem deste
cisma, cuja data exata é ignorada. Assim se explicaria o silêncio sistemático do Cronista sobre toda a história
do reino de Israel depois do cisma que se seguiu à morte de Salomão. Só o reino de Judá, com a dinastia
davídica era legítimo; e os soberanos do reino do Norte, com Samaria, sua capital, e suas cerimônias cultuais
contaminados pelo culto dos baalim, eram cismáticos, que não podiam pretender representar o verdadeiro
povo de Deus. Por estas mesmas razões se explicariam também os conflitos, no tempo de Esdras e Neemias,
com o "povo da terra", que queria ajudar na reconstrução de Jerusalém e que foi impedido pelos
descendentes dos exilados, os quais se consideravam os verdadeiros representantes do povo de Deus (Esd 4;
Ne 2,19-20; 4; 6).
Estes diferentes aspectos da obra do Cronista conduzem, do ponto de vista teológico, a uma visão
sintética que bem pode ser expressa pelo termo teocracia. Para o autor, a história do povo de Deus, na
comunidade judaica em que ele vive, é como que a imagem ideal do reino teocrático estabelecido por Deus,
à testa do qual foi posto Davi. Na realidade, Deus é o único rei verdadeiro, e Davi assenta-se no trono de
Deus. Através da realidade terrestre da história passada, o Cronista descreve o reino de Deus tal como podia
ser representado na sua época: o culto no Templo único de Jerusalém, a Cidade Santa, exprimia a fidelidade,
o júbilo, o louvor do povo a seu Rei, sobretudo graças aos sacerdotes e aos levitas; a obediência à Lei de
Deus era a primeira obrigação do povo na vida diária; a relação constante entre Deus e seu povo traduz-se
por uma noção de retribuição levada ao grau mais absoluto. A justiça de Deus quer que toda fidelidade —
sobretudo da parte dos reis no trono de Jerusalém — receba sua bênção, mas também que toda falta e toda
desobediência, particularmente no que se refere ao Templo e ao culto, acarretem a punição divina. Doutrina
tão rigorosa aparece ao longo de toda a história dos reis, sucessores de Davi , e enquanto os livros dos Reis
nada dizem dos motivos da felicidade ou desgraça do povo, os livros das Crônicas se esforçam por dar uma
justificação teológica segundo sua noção de justiça retributiva de Deus . Se Manassés gozou de um longo
reinado, apesar das suas faltas, é porque se arrependeu e porque, voltando a Deus, purificou dos seus ídolos o
Templo (2Cr 33). Se, pelo contrário, Josias, apesar de sua grande fidelidade, encontrou uma morte
prematura, é porque se opusera à vontade de Deus por ocasião da passagem dos exércitos egípcios que iam
combater na Assíria (2Cr 35).
Ao contrário da literatura apocalíptica, que projeta para o futuro uma imagem da realidade terrestre para
anunciar o que será o reino de Deus, a obra do Cronista idealiza o passado para mostrar o que deve ser a vida
do povo no presente. Assim a realeza teocrática da época de Davi deve lembrar constantemente aos judeus
contemporâneos do autor o que devem ser a celebração de seu culto, a obediência à Lei de Deus e a
esperança na justa retribuição divina.
Talvez seja por causa dessa perspectiva teológica voltada preferentemente para o passado que a obra do
Cronista não está apoiada numa esperança messiânica explicitamente formulada. As perspectivas de futuro
não prendem muito sua atenção. Meditando sobre a história passada, o Cronista parece querer fornecer ao
presente uma lição de fidelidade a Deus, à sua Lei e ao seu Culto.

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Livros Históricos AT
Capítulo VIII
INTRODUÇÃO AOS LIVROS DE ESDRAS E NEEMIAS
(Canônicos)

Os livros de Esdras e de Neemias constituíam, na origem, um único livro. Pertencem ao período


subseqüente ao retorno dos judeus do cativeiro babilônico, período que se prolongou durante mais de um
século. A atividade dos dois personagens principais, Esdras e Neemias, não é mencionada em nenhum outro
livro do Antigo Testamento hebraico. Sem os dois livros que levam os nomes deles, seria muito difícil, senão
impossível, conhecer os eventos que marcaram a restauração do judaísmo após a provação do Exílio .
Conteúdo dos livros. Distinguem-se com facilidade as diversas partes destes dois livros:
O livro de Esdras conta inicialmente (caps. 1–6) a volta dos primeiros cativos autorizados a retornar a
Jerusalém por permissão de Ciro, rei dos persas, que acabava de conquistar a Babilônia . Esses primeiros
repatriados restabeleceram o altar sobre as ruínas do Templo de Jerusalém , antes de reconstruir o próprio
santuário , e apesar de graves dificuldades advindas dos dirigentes regionais e dos adversários do judaísmo .
O Templo só foi inteiramente reconstruído vários anos depois, na época dos profetas Ageu e Zacarias , sob o
reinado de Dario (5,1-2).
Segundo os capítulos 7–10, após um intervalo de várias dezenas de anos, Esdras , sacerdote e escriba,
encarregado de uma missão oficial pelo rei da Pérsia, Artaxerxes, chega a Jerusalém , onde se aflige por ver

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um estado de coisas bem pouco fiel à tradição judaica, em especial por causa dos numerosos casamentos
entre judeus e pagãos. Empreende uma reforma radical neste ponto e, respaldado pelo povo, manda os
estrangeiros para fora das fronteiras da terra judaica, provavelmente bastante restrita naquela época.
No início do livro de Neemias (caps. 1–7) o relato explica de que maneira Neemias, alto funcionário do
rei Artaxerxes, entristecido com as notícias recebidas de seus compatriotas de Jerusalém , obtém do rei a
autorização para inspecionar a capital judaica e empreender a reconstrução da mesma, começando pela
muralha. Esta será reconstruída em cinqüenta e dois dias, graças ao zelo de Neemias, obrigado ao mesmo
tempo a lutar contra inimigos e a estimular a coragem e a disciplina de todos os habitantes.
Nos capítulos 8–9, Esdras volta ao primeiro plano dos acontecimentos e restaura o culto e a celebração
das festas em conformidade com a Lei de Moisés , que trouxera de Babilônia .
Após diversos trechos relatando compromissos do povo, listas e a festa de inauguração da muralha, o
livro termina com uma série de reformas efetuadas por Neemias em Jerusalém por ocasião de uma segunda
estada, mais ou menos doze anos mais tarde (caps. 10–13).
Eis, portanto, como se apresenta o plano dos dois livros:
Esdras
1: O edito de Ciro.
2: Lista dos deportados repatriados.
3: Restabelecimento do culto.
4,1-5: Obstrução por parte dos inimigos de Judá .
4,6-24: Troca de correspondência durante o reinado de Xerxes e Artaxerxes.
5,1–6,18: Construção da Casa de Deus .
6,19-22: A Páscoa .
7,1-10: O escriba Esdras .
7,11-28: A carta de Artaxerxes.
8,1-14: Os companheiros de Esdras .
8,15-36: Viagem de Esdras a Jerusalém .
9: Oração de humilhação de Esdras .
10,1-17: Despedida das mulheres estrangeiras.
10,18-44: Lista dos culpados.
Neemias
1: Oração de Neemias.
2: Viagem de Neemias a Jerusalém .
3,1-32: Restauração dos muros de Jerusalém .
3,33–4,17: Obstáculos e dificuldades.
5: Injustiças sociais. Intervenção de Neemias.
6: Término da reconstrução das muralhas.
7: Recenseamento dos israelitas.
8: Leitura pública da Lei.

20
Livros Históricos AT
9: Oração de confissão dos pecados.
10: Resoluções diversas.
11: Repartição dos habitantes de Jerusalém .
12: Sacerdotes e levitas.
13: Reformas diversas, realizadas por Neemias.
A história literária dos dois livros é bastante complexa. As antigas traduções gregas do Antigo
Testamento abrangem, além de uma tradução dos dois livros reunidos em um só, um outro livro de Esdras ,
bem diferente destes últimos e com muita freqüência designado sob o termo: Esdras grego, ou então 1 Esdras
(sendo que 2 Esdras designa a tradução dos dois livros hebraicos de Esdras-Neemias). O Esdras grego
contém certas passagens das Crônicas e de Esdras , mas também relatos apócrifos (os três jovens pajens de
Dario etc.). Quanto à tradição latina: ela conhece 4 livros de Esdras , sendo que o 1º corresponde ao livro
bíblico de Esdras , o 2º ao livro de Neemias, o 3º ao Esdras grego, e o 4º é um apocalipse tardio atribuído a
Esdras , mas que já não tem mais nada em comum com os dois livros do Antigo Testamento . A maior parte
das edições modernas da Bíblia contém apenas os dois livros de Esdras e de Neemias, e deixam de lado o
Esdras grego (1 ou 3Esd) e o Apocalipse de Esdras (4Esd), que nunca fizeram parte do cânon judaico.
Problemas literários. Não há indicação quanto ao autor destes dois livros, mas é comum admitir-se que
foi um e mesmo autor que redigiu e compôs a vasta síntese histórica dos dois livros das Crônicas, seguidos
dos livros de Esdras e de Neemias. Um dos indícios mais significativos é a identidade entre os últimos

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versículos de 2 Crônicas (36,22-23) e os primeiros versículos de Esdras (1,1-3), o que demonstra a
continuidade do relato. No entanto, os métodos de composição diferem sensivelmente.
Para os livros de Esdras e Neemias, o autor utilizou como fontes diversos documentos antigos, que
reproduziu e sistematizou entre si de modo a articulá-los e incorporá-los no mesmo conjunto. Assim, é
possível descobrir:
a) documentos oficiais em hebraico (listas, estatísticas, etc., tais como Esd 2 e Ne 7; 10,3-30; 11,3-36;
12,1-26) e em aramaico (correspondência diplomática, decretos oficiais, Esd 4,9–6,18; 7,11-26);
b) memórias de Esdras (Esd 7–10) contendo trechos redigidos na primeira pessoa, como Esd 7,27–9,15,
e trechos na terceira pessoa, como Esd 7,1-10; 10; Ne 8–9;
c) memórias de Neemias (Ne 1–7; 10; 12,27–13,31).
A utilização desses diversos documentos explica também a dualidade de idioma constatada no livro de
Esdras, já que certos trechos foram conservados em aramaico (Esd 4,8–6,18 e 7,12-26), ao passo que o
restante está em hebraico. Esta particularidade encontra-se também no livro de Daniel (2,4–7,28).
Contudo, a redação dos dois livros a partir dessas fontes levanta alguns problemas de solução nada fácil.
É o que ocorre com a lista dos judeus que voltaram do cativeiro, a qual figura ao mesmo tempo no cap. 2 de
Esdras e no cap. 7 de Neemias, isto é, em duas situações históricas bem diversas. No primeiro caso (Esd 2),
esta lista aplica-se às primeiras caravanas de deportados retornados a Jerusalém em decorrência do edito de
Ciro em 538, totalizando mais de 50.000 pessoas. No segundo caso (Ne 7), trata-se de uma enumeração feita
na época de Neemias, após a reconstrução das muralhas de Jerusalém pelo ano de 445, ou seja, cerca de um
século mais tarde. É provável que esta lista, reproduzida nesses dois contextos, não represente com exatidão
nem a situação no início do retorno, nem a da época de Neemias, mas uma época intermediária, que poderia
ser a de Zorobabel e de Josué, que aliás figuram encabeçando a lista. Pode-se pensar em um recenseamento
do povo que regressou a Jerusalém desde uns vinte anos antes, no mínimo, após a reconstrução do segundo
Templo (520-515).
Quanto à data da redação dos dois livros, é difícil precisá-la, uma vez que é necessário levar em conta o
conjunto da obra de Crônicas-Esdras-Neemias. A julgar pelo conteúdo histórico desta obra, pelas idéias
religiosas nela expressas e pelo ambiente do qual parece provir o autor, o período de acabamento da sua
vasta obra historiográfica poderia situar-se entre o final do séc. IV e meados do séc. III a.C. Este período
corresponderia apenas à redação final dos livros, já que as fontes literárias utilizadas remontam certamente a
épocas bem anteriores.
Problemas históricos. A análise dos livros Esdras-Neemias levanta problemas relativos aos próprios
eventos históricos. Dentre estes destacam-se dois, que têm originado hipóteses diversas, das quais nenhuma
se impõe como solução certa e definitiva.
O primeiro problema refere-se à interrupção da reconstrução do Templo de Jerusalém (Esd 4). Segundo
o texto, esta interrupção foi ordenada pelo rei persa Artaxerxes (465-424) em conseqüência das queixas de
habitantes da região que se opunham aos judeus (Esd 4,6-24). Ocorre que a cronologia torna tal
acontecimento impossível. Com efeito, a construção do Templo foi terminada no 6º ano do reinado de Dario,
isto é, por volta de 515 (Esd 6,15), após ter sido retomada no segundo ano do mesmo reinado, em 520 (Esd

21
Livros Históricos AT
4,24; Ag 1,15). A passagem Esd 4,6-23 refere-se a acontecimentos da época de Artaxerxes, ou seja, no
mínimo 50 ou 60 anos mais tarde. A hipótese mais provável para resolver este problema consiste em ver,
nesta última passagem, documentos relativos à interrupção de outros trabalhos, diferentes dos de
reconstrução do Templo: talvez uma tentativa de reconstrução das muralhas da cidade na época de
Artaxerxes, o que aliás explicaria bastante bem a ulterior iniciativa de Neemias para retomar esses trabalhos
e levá-los a bom termo, sempre sob o reinado de Artaxerxes (Ne 1–4 e 6). O próprio conteúdo da
correspondência diplomática de Esd 4,6-23 fala explicitamente de uma reconstrução da cidade e das
muralhas, e não do Templo (vv. 12.13.16). Como explicar que este documento tenha sido inserido no meio
do relato referente ao Templo em uma época bem anterior? Não o sabemos. Como se tratasse de trabalhos
interrompidos por ordem de um rei da Pérsia, talvez tenha havido confusão, no momento da redação do livro,
entre os trabalhos do Templo, na época de Dario, e os da muralha, na época de Artaxerxes.
Mais complexo é o segundo problema: o da cronologia da atividade de Esdras e de Neemias em
Jerusalém . A ordem cronológica atual do relato fala da chegada de Esdras no 7º ano de Artaxerxes (Esd 7,7)
e da sua atividade reformadora (Esd 8–10), e em seguida, da chegada de Neemias no 20º ano de Artaxerxes
(Ne 2,1) e da sua atividade em prol da reconstrução das muralhas (Ne 1–7). A seguir vê-se Esdras reaparecer
— quando não se fizera mais menção a ele em Ne 1–7 — para a leitura solene da Lei (Ne 8–9); e por fim,
Neemias exerce sua atividade sozinho, no decurso de outra estada em Jerusalém no 32º ano de Artaxerxes
(Ne 13,6). Tem-se, pois, a impressão de que Esdras e Neemias exerceram sua atividade em Jerusalém

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simultaneamente, mas independentemente um do outro, ignorando-se quase totalmente, o que parece
surpreendente, dado que os dois receberam uma missão oficial do rei Artaxerxes (Esd 7,11; Ne 2,7-8). Têm-
se buscado diversas explicações para resolver esta dificuldade: pensou-se que Esdras ficou por pouco tempo
em Jerusalém e voltou ao rei da Pérsia enquanto Neemias estava em Jerusalém. Mas neste caso seria preciso
supor uma verdadeira dança alternada dos dois, pois em Ne 8–9 Esdras está novamente em Jerusalém , e
Neemias teria então partido novamente para junto do rei , antes de voltar a Jerusalém cerca de doze anos
mais tarde (Ne 13,6). Pretendeu-se resolver a questão situando Esdras quando da segunda vinda de Neemias
a Jerusalém (o que explicaria a presença simultânea dos dois, segundo Ne 8,9), mas neste caso é preciso
modificar a data indicada em Esd 7,8: não se trataria mais do 7º ano de Artaxerxes, mas do 27º ou do 37º ano
desse rei (ou seja, pelo ano de 438 ou 428).
Finalmente, tem-se proposto — e esta hipótese é quiçá a mais plausível — considerar toda a atividade
de Neemias como anterior à de Esdras : Ne 1–7 e 10–13 relatariam esta atividade de reconstrutor e de
reformador. Mais tarde, em uma época que poderia ser o 7º ano do rei Artaxerxes II (e não de Artaxerxes I),
por volta de 398-397, Esdras teria chegado a Jerusalém (Esd 7,7). Teria então realizado suas reformas (Esd
7–10) e restaurado o culto em seqüência à leitura solene da Lei (Ne 8–9). Esta hipótese, porém, não
soluciona todas as dificuldades e não explica a presença de Neemias no momento da leitura da Lei (Ne 8,9).
É verdade que este último dado poderia provir do redator final, que apresentou como contemporâneas as
atividades de Esdras e de Neemias. O redator não teria levado em conta as datas respectivas das estadas e das
reformas efetuadas pelos dois. O que queria era sobretudo dar a prioridade ao sacerdote-escriba Esdras em
relação ao leigo Neemias. Esta razão teológica teria desorganizado a cronologia real dos acontecimentos.
Mas estamos apenas diante de uma hipótese; o problema ainda não encontrou solução plenamente
satisfatória.
Perspectivas religiosas. Os livros de Esdras e de Neemias certamente não pertencem à categoria
daqueles que se volta a reler freqüentemente. Muitos leitores da Bíblia pouco os conhecem e acreditam
encontrar neles nada mais do que alguns documentos úteis para a história bíblica, porém destituídos de maior
interesse para os dias de hoje. Esta opinião não é exata e estriba-se num preconceito. Sem dúvida, estes dois
livros não são comparáveis a outros cujo conteúdo religioso é muito mais rico , como ocorre com os Salmos,
Jó ou os Profetas. Mas revelaria desconhecê-los quem deixasse de enfatizar sua importância religiosa e seu
valor permanente no conjunto dos livros bíblicos, tão ricos e tão variados. Em uma orquestra, os
instrumentos não desempenham todos o mesmo papel, nem têm a mesma sonoridade. No entanto, são todos
necessários para se poder ouvir a sinfonia na sua plenitude.
Esses dois livros não apresentam uma exposição teológica propriamente dita, mas nos eventos bem
concretos que relatam é possível descobrir as idéias mestras que guiaram os seus heróis.
Os três centros de preocupação claramente evidenciados nesses textos são: o Templo, a cidade de
Jerusalém , a comunidade do povo de Deus .
A reconstrução do Templo é a primeira tarefa do povo que retorna do cativeiro. Aliás, o próprio objetivo
da volta do Exílio é a reconstrução do santuário , já ordenada, segundo Esd 1,2, pelo rei Ciro em seu edito. A
Casa de Deus é o sinal real e material da presença de Deus no meio do seu povo. É também o lugar em que

22
Livros Históricos AT
se pode celebrar o culto; daí a importância de tudo o que concerne ao sacerdócio (2,36-39), aos levitas e a
todo o pessoal ligado ao lugar santo (2,40-63), assim como de tudo o que diz respeito aos objetos cultuais, às
oferendas (1,9-11; 2,68-69) e sobretudo ao altar, que é o primeiro a ser restabelecido para nele se oferecerem
os sacrifícios, antes da própria edificação do novo Templo (3,1-7). Se ocorre um atraso na reconstrução do
Templo, é sobretudo em razão da hostilidade dos adversários que procuram impedir os judeus de
restabelecerem sua influência (cap. 4), ao passo que nada se diz, nestes dois livros, da negligência, da
indiferença e do desânimo dos próprios judeus nesta tarefa — como o atesta, porém, a profecia de Ageu (Ag
1,2-5). Pelo contrário, em Esd 6, a alegria explode por ocasião da Dedicação do Templo terminado, o qual é
a obra de Deus mais que dos homens (v. 22).
A presença do Templo é inseparável da cidade mesma; aliás, a preocupação por Jerusalém , cidade santa
no presente e no futuro, faz parte dos objetivos que levaram Neemias a pedir a autorização do rei Artaxerxes
para vir à capital judaica a fim de restaurá-la e restituir-lhe a importância que lhe cabe. Esta preocupação por
Jerusalém explica o zelo patriótico e religioso que ele demonstrou na reconstrução das muralhas em ruínas,
com o concurso de toda a população (Ne 2–6). Para ele, tratava-se de uma missão profundamente religiosa,
que Deus lhe havia confiado e que cumpriu, a despeito das dificuldades e das lutas, com a certeza de que
Deus estava com ele e combatia em favor do seu povo. As medidas que Neemias adotou a seguir, com o fim
de repovoar a cidade por muitos trocada pelo campo (Ne 11), ou com o fim de fazer respeitar o sábado (Ne
13,15-22), mostram que, para ele, Jerusalém devia voltar a assumir seu papel de cidade santa. Tratava-se do

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prolongamento de toda a história passada, interrompida pela ruína e pelo cativeiro.
Todavia, o Templo e a cidade só têm significado real em função do povo que vive neste lugar e que
constitui a comunidade do povo de Deus . Pois bem, esta comunidade, sacudida pelo Exílio , precisa ser
restaurada sobre o seu verdadeiro fundamento, que é a obediência à Lei de Deus . É sobretudo aqui que
aparece a importância da obra de Esdras e de Neemias. O povo judeu não desfruta mais da sua independência
nacional; só tem razão de ser porque é uma comunidade religiosa que reata a tradição antiga com as
exigências da situação presente. Tal obra de restauração precisava manifestar-se em setores diversos.
Primeiramente no do culto: a leitura solene da Lei de Moisés , trazida por Esdras (Ne 8) e explicada ao povo
antes da festa dos Tabernáculos, fornece os elementos principais daquilo que será mais tarde o serviço da
sinagoga . A Lei é o fundamento da vida do judaísmo , e permanecerá tal através dos séculos.
A obediência à Lei de Deus explica também as medidas muitas vezes severas ordenadas por Esdras e
Neemias para reconduzir o povo à observância das festas, dos sábados, das obrigações referentes às ofertas e
aos dízimos destinados ao culto e aos sacerdotes (Ne 10; 12; 13,1-22), e também para reagir contra os
casamentos com pagãos (Esd 10; Ne 13,23-29). É ainda por fidelidade à Lei que Neemias, com suas palavras
e exemplo pessoal, soube equacionar o problema de ordem social, que dividia a população em conseqüência
das diferenças de renda e da escandalosa desigualdade de condição social (Ne 5).
E no entanto, apesar dessas exigências, não nos deparamos na religião de Esdras e de Neemias com um
legalismo tacanho que desfiguraria as perspectivas da verdadeira religião, como ocorre com freqüência neste
campo. A Lei é sempre a do Deus vivo, que fala e age, e para o qual o povo pode voltar-se através de um
culto sincero e de uma oração espontânea. A cada instante vemos Esdras e Neemias dirigirem-se a Deus para
pedir seu conselho, sua ajuda, sua proteção, ou para exprimir-lhe seu reconhecimento cheio de alegria (Esd
3,11; 6,21-22; 7,27-28; Ne 1,4-11; 4,4-5; 5,19 etc.). As duas grandes orações conservadas em Esd 9 e Ne 9
encerram com probabilidade elementos litúrgicos em uso no culto judaico (arrependimento, confissão dos
pecados, imploração do perdão de Deus , rememoração da história do povo no passado e de suas
infidelidades, ato de confiança no Deus de Israel, etc.). Esses textos revelam quanto a pregação dos profetas
anteriores ao Exílio havia finalmente produzido seus frutos e conduzido o povo a esses sentimentos de
humilhação e de fé no Deus que perdoa.
Importa notar ainda um aspecto — secundário decerto, mas não sem valor — da vida religiosa dos
judeus dessa época em Jerusalém : é a polêmica contra uma concepção excessivamente frouxa e liberal da
vida religiosa, que acaba por admitir envolvimentos com o paganismo. Mostram-no as medidas contra os
casamentos com pagãos, mas também a recusa formal de toda colaboração com habitantes locais que se
oferecem para trabalhar na reconstrução das muralhas (Ne 2,19-20; 4; 6 etc.), mas que na realidade são
inimigos dos judeus. Percebe-se aqui o prelúdio da oposição entre judeus e samaritanos, cujo cisma se
operará em época posterior (sem dúvida por volta de 328).
Os livros de Esdras e de Neemias põem em relevo sobretudo a personalidade desses dois homens tão
diferentes, e no entanto animados do mesmo desejo de trabalhar na restauração do seu povo e da vida
religiosa: Esdras , sacerdote e escriba, erudito no campo da Lei, inspirador da renovação do culto, rigorista
no tocante aos comprometimentos com os povos pagãos, e Neemias, leigo enérgico e de coragem indomável,

23
Livros Históricos AT
a pregar pelo exemplo através do seu desinteresse, homem de oração e de fé. E no entanto, por maior que
seja o valor desses dois homens, sua personalidade nunca é priorizada em relação à sua obra. Cumprem a
missão que Deus lhes confiou, e afora esta missão nada mais sabemos a respeito da vida deles, a respeito do
término da sua atividade e da sua morte. A pessoa deles apaga-se por trás da ação, deixando na sombra o que
aconteceu antes e depois do ministério que exerceram. Este é também um traço característico da vida
religiosa do judaísmo de sua época.6

Capítulo IX
INTRODUÇÃO AO LIVRO DE TOBIAS
(Apócrifo)

O livro de Tobias é uma das jóias da literatura judaica. Romance popular que se inspira na tradição da
sabedoria do mundo pagão circundante, obra de edificação alimentada pelos escritos bíblicos, ele dá
testemunho, por sua riqueza, da vitalidade humana e religiosa do judaísmo nos séculos posteriores ao Exílio.
Conteúdo do livro. Duas famílias judaicas aparentadas viram-se deportadas em Nínive e Ecbátana
respectivamente, onde hoje se situam o Iraque e o Irã. Ambas, sem culpa alguma de sua parte — pois
mantiveram-se numa fidelidade escrupulosa à Lei — caíram no infortúnio. Tobias, chefe da primeira, perde
uma situação confortável e, ademais, fica cego, numa ocasião em que acabara de sepultar, com risco da

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própria vida, o cadáver de um compatriota desconhecido. Sara, filha única da outra família, é possuída por
um demônio que, já por sete vezes, fizera fracassar suas tentativas de casamento, matando os pretendentes na
noite de núpcias. Deus ouve a prece tanto de um como da outra e resolve curá-los por intermédio do anjo
Rafael, cujo nome significa exatamente "Deus cura". Tobias, que ainda ignora a decisão de Deus e quer
assegurar o futuro de seu filho Tobias, resolve enviá-lo a cobrar certa quantia que depositara outrora na
Média. Como viático, confia-lhe os princípios da sabedoria ancestral. Sucede que Rafael, assumindo
aparência humana, é contratado como guia da expedição. Ele acompanhará Tobias numa viagem arriscada,
que leva o jovem a desposar e salvar Sara, sua parente. Ao regressar, sempre graças aos conselhos de Rafael,
cura o seu velho pai. As duas famílias tornam à felicidade. Rafael revela o seu segredo e desaparece. A
narrativa termina em ação de graças e perspectivas da salvação vindoura.
Romance popular. À primeira vista, a narrativa dá a impressão de ser rigorosamente histórica, pela
abundância de pormenores acerca do tempo, dos lugares, das pessoas e dos grandes episódios da história
comum da Assíria e de Israel entre 734 e 612 a.C. (1; 14). Conta-se que Tobias e sua família foram
deportados com a tribo de Neftali (1,1-2). Conforme 2Rs 15,29, isto aconteceu por volta de 733, quando o rei
da Assíria apoderou-se do norte do reino de Israel para punir a revolta do rei Péqah. Mas esta exatidão
aparente não nos deve iludir. Bom número de dados não resiste à verificação crítica. Evidentemente, o autor
só conhece de longe os reis de que fala (1,2 nota; 1,15 nota) e não viajou pelas regiões que descreve (5,6
nota). Seu intento, ao situar a narrativa neste ambiente já longínquo e venerável dos séculos VIII e VII, é
unicamente conferir-lhe verossimilhança e autoridade.
De fato, é um narrador atraído pelo pitoresco e pelos pormenores ricamente reproduzidos. Ao escutar
Tobias que chama à razão a esposa debulhada em lágrimas depois da partida do filho (5,17-23), ao ver o cão
partir e voltar com seu jovem amo (6,1; 11,4), a criada entrar em plena noite, de candeia na mão, no aposento
dos jovens esposos (8,11-14), ao deparar com os temores dos velhos pais ante a prolongada ausência do filho
(10,1-7), não há quem não reviva a experiência familiar. Os fatos encadeiam-se com arte e se imbricam sem
atritos. Tudo acontece na hora certa, e isto confere ao conjunto um feitio de conto: mal Tobias sai à procura
de um companheiro, eis que Rafael se lhe apresenta (5,4); na tarde da primeira etapa da viagem, são-lhe
fornecidos os remédios necessários, graças à captura do grande peixe (6,1-5). Sente-se no narrador o prazer
de contar e adivinha-se que a seus ouvintes sobra tempo para escutá-lo.
Nas fontes do livro de Tobias: a tradição sapiencial. Explicitamente, o autor do livro de Tobias refere-
se à História de Aicar (Ahikar), o Sábio, ou Sabedoria de Aicar, obra literária muito conhecida no mundo
antigo e até entre os gregos, pois Esopo inspirou-se nela para suas fábulas. Coincidência? Foi na colônia
judaica de Elefantina, no Egito , que se descobriu a mais antiga versão desta obra, datada do século V a.C.
Aicar (Ahikar, gr. Akhiakharos) é provavelmente um personagem histórico, ministro dos reis da Assíria,
Senaquerib e depois Asaradon (1,22; cf. 2,1.10), um tanto enfeitado pela lenda. Como não tivesse filhos,
adotou, para suceder-lhe na corte, o sobrinho Nadan. Formou-o na sabedoria por meio de uma série de
advertências em forma de máximas. Mas Nadan, depois de associado ao pai adotivo (11,19), desprezou a

6
Nota introdutória da TEB.
24
Livros Históricos AT
sabedoria recebida e, com suas calúnias, levou seu benfeitor ao suplício. Aicar, que por sua sabedoria
granjeara amigos, foi escolhido pelo carrasco. Finalmente reabilitado, dirigiu ao sobrinho uma série de
censuras em forma de parábolas e mandou lançá-lo à cadeia, onde morreu (14,10).
No livro de Tobias, este famoso Aicar figura em pessoa como sobrinho de Tobias (1,22). É uma forma
de fazer reverter ao tio e a seu povo o prestígio indiscutível do sobrinho. Ademais, a própria estrutura da
história de Tobias parece calcada na da Sabedoria de Aicar. Como Aicar, Tobias gozou do favor, depois do
desvalimento do rei da Assíria (1,13-20); como ele, dirige ao filho duas séries de máximas (4,3-19; 14,8-11),
algumas das quais aparentemente tiradas do próprio Aicar (4,10. 15.17.19); mas, em vez da traição de
Nadan, o jovem Tobias mostra-se fiel à sabedoria que lhe foi ministrada. Seria talvez este um meio de
sugerir que a sabedoria ensinada pelo velho Tobias supera a do sábio Aicar? Seja como for, isto define o
gênero literário do nosso livro: romance popular, sem dúvida, mas com pretensão didática e sapiencial.
Ensinamento para os judeus da Dispersão. Por meio da história de Tobias e Tobias, deportados
típicos, o autor quer fornecer a seus irmãos isolados em meio às nações um ensinamento religioso.
A providência de Deus e os anjos. O que está em questão aqui não é tanto a realidade, ao que parece
evidente (3,17), da solicitude de Deus para com seus fiéis em aflição, mas é sobretudo a maneira de exercê-la
em meio às provações, valendo-se do que parece ser uma sucessão de casualidades em função de um
desígnio preestabelecido, dum segredo que só no fim será revelado. A resposta celeste a Tobias e Sara (3,16-
17) por uma parte, a revelação de Rafael (12,11-15) por outra, constituem os dois pólos da narrativa.

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Os executores dos desígnios de Deus são os anjos. O livro de Tobias é testemunha do progresso desta
crença durante o Exílio, especialmente sob a influência persa, quando os anjos são multiplicados, nomeados,
encarregados de funções específicas. Em nenhuma outra parte do Antigo Testamento eles são vistos com um
aspecto tão humano, como que para não impor a ação divina à liberdade do homem.
Normas de procedimento. Os conselhos dados por Tobias a seu filho (4,21; 14,8-11) são uma das chaves
do livro. Os preceitos tomados da Sabedoria de Aicar mesclam-se às prescrições da sabedoria superior que é
a Lei de Moisés. O seu conteúdo é revelador. Encontram-se aqui todos os princípios que facultam ao judeu
exilado em terra estranha manter a própria identidade e permanecer o justo a quem Deus socorre. Quase não
se vê prescrição desse testamento espiritual (4,3 nota; 14,3 nota) de Tobias que não venha ilustrado
concretamente por alguma ação dos protagonistas da narrativa.
A família e o casamento. A família é a célula insubstituível na qual se transmite a herança espiritual da
nação (1,8; 4,19; 14,3.8-9). Donde a insistência em todas as virtudes que lhe podem favorecer a coesão,
muito especialmente o respeito aos pais (1,8; 3,10.15; 4,3-4; 6,15; 14,12-13). Momento decisivo da vida de
uma família é o casamento. Nele se realiza a transição de uma geração à outra, dele depende o futuro. É
grande o risco de os deportados se deixarem assimilar às nações pela dinâmica dos casamentos mistos. Por
isso compreende-se por que o casamento ocupa o centro dos conselhos de Tobias ao filho (4,12-13), assim
como ocupa o centro do próprio livro (6–8) que é, afinal, a história de um casamento conforme à vontade de
Deus .
As boas obras. O que a família há de transmitir de uma geração à outra é a fidelidade a Deus e a seus
mandamentos. A fidelidade a Deus é o principal (1,12; 2,2, 4,5; 14,8-9), mas ela deve traduzir-se nos fatos,
numa observância minuciosa, escrupulosa da Lei, revista pela tradição oral (1,8 nota). Nisto já se pressente o
que haverá de melhor no zelo dos fariseus (1,8 nota; 3,15 nota). O afastamento do Templo e do seu culto leva
a insistir nos deveres pessoais e privados para com Deus e o próximo. O próximo, no livro de Tobias, limita-
se ainda à sua família e a seus irmãos de raça (1,3.16.17; 2,2 etc.). Nenhum irmão judeu deve carecer dos
serviços que se prestam numa verdadeira família: assistência (1,17; 2,2.10; 4,16), justa retribuição (4,14;
5,3.7.10.15; 12,1), sepultura (1,17-18; 2,3-8). Mas a esmola e a oração têm a primazia sobre todas as demais
obrigações.
A esmola (1,16; 4,7-8.16; 14,8-9), meio de coesão da comunidade, também é penhor da benevolência de
Deus. Para quem a pratica, ela constitui um tesouro, uma expiação, um sacrifício agradável a Deus (4,9-11;
14,8-11). A oração é o recurso normal do justo que se fiou inteiramente na fidelidade de Deus. Ela não é
concebida como uma série de práticas formalistas, mas como uma disposição constante de acolhida de Deus
(4,19). Formulada nas mais diversas circunstâncias de desespero (3,1-6.11-15), de inquietude (8,5-8) e de
alegria (8,15-17; 11,14), esta oração consiste em bendizer a Deus (3,11 nota), em dar graças porque ele é
justo, todas as suas obras são justas e todos os seus caminhos são fidelidade e verdade (3,2).
A evocação da vida dos patriarcas… O ambiente do livro de Tobias é patriarcal: é no decorrer de uma
viagem que Tobias encontra uma esposa, como outrora Isaac e Jacó. Tobias parece perdido para seus pais,
como José foi dado por desaparecido para Jacó. Assim como as mulheres dos patriarcas, embora por motivos

25
Livros Históricos AT
diferentes, Sara parece destinada a não ter filhos. Tobias é visitado por um anjo em forma humana, como
Abraão em Mamrê.
A analogia não se restringe às situações, ela chega à própria formulação da narrativa. Pormenores
aparentemente anódinos são extraídos quase ao pé da letra do Gênesis: o encontro (7,3-4 e Gn 29,4-6); o
amor nascente (6,19 e Gn 24,67); a conclusão do casamento (7,12-13 e Gn 33.50-51); etc.
A errância dos patriarcas tem sua continuidade na dos deportados (cf. 4,12). A providência de Deus,
invisível e discreta, vela sobre o mais insignificante judeu como velara pelos seus ancestrais, provendo aos
encontros, dando continuidade, mediante libertações e casamentos, à transmissão da Promessa de uma
geração à outra, até que chegue finalmente o dia da volta à "terra de Abraão" (14,7).
… à luz dos profetas. Tobias relê o seu destino pessoal e o dos seus irmãos deportados à luz dos profetas.
Atrás dele, fazendo eco à profecia de Natã, está a fervorosa recordação de Jerusalém e do seu rei (1,4; cf.
5,14). As desventuras que padece em solidariedade com seus irmãos são o cumprimento do castigo
anunciado por Amós a Israel pecador (2,6). O porvir mantém-se momentaneamente fechado, o que provoca a
tentação de atribuir à cegueira de Tobias um sentido simbólico. E eis que, por meio de Tobias, o filho que lhe
daria continuidade à raça, Deus torna a abrir seus olhos, os do corpo e os do espírito, já que, feito ele mesmo
profeta, convida a nação inteira à conversão e anuncia-lhe a salvação prometida pelos profetas (13). Quando
se cumprirem às profecias de Naum acerca da ruína de Nínive, o Templo será reconstruído provisoriamente,
à espera de que se hajam completado os tempos: então todos voltarão à pátria, Jerusalém será reconstruída

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com um esplendor deslumbrante, visão de luz cujo tom recorda Is 60–62. Tornar-se-á então o centro das
nações (13,10-18; 14,3-7).
Ante esse pano de fundo patriarcal e profético, a fidelidade cotidiana à sabedoria de Moisés e dos antigos
adquire novo sentido: preparar a volta à terra de Abraão pelo mesmo caminho que propiciara aos ancestrais
nela entrarem.
Texto e língua original. O texto do livro de Tobias só chegou até nós em traduções e sob três formas
assaz diferentes:
1. Uma forma extensa, à qual chamaremos texto longo, conservada por um manuscrito grego do século
IV, o Sinaiticus, e reproduzido com bastante fidelidade pela antiga versão latina anterior à Vulgata de São
Jerônimo. Esse texto longo tem uma tonalidade semítica, por vezes um pouco abundante, mas é muito
colorido e coerente. Os fragmentos de Tobias descobertos em Qumran (um em hebraico e quatro em
aramaico) confirmam-no o mais das vezes. Isto gera a tendência a considerá-lo como o mais próximo ao
original perdido. É este que seguimos para a tradução.
2. Uma forma breve, à qual chamaremos texto curto, representada pela maioria dos manuscritos gregos.
Ao que parece, é uma revisão da precedente, destinada a apresentar em grego mais correto um texto
abreviado, mais claro, escoimado de pormenores secundários. Esse texto é usado nas Igrejas gregas e em
certas traduções modernas; por este motivo, apontaremos todos os casos em que ele se desvia do texto longo,
fornecendo um elemento novo de certa importância. Servir-nos-á também para preencher duas lacunas
evidentes do texto longo, nos capítulos 4 e 13.
3. Finalmente, uma última forma merece ser assinalada, pois é esta que toda a tradição da Igreja latina
conheceu a partir do século V e que os católicos ainda empregam na liturgia . É a Vulgata latina, tradução
efetuada por São Jerônimo, seguindo um original aramaico , trabalho apressado que nos fornece
informações, tanto sobre a personalidade ascética do tradutor e seu conceito de casamento , como sobre os
matizes do texto original.
No que tange à língua original, o estudo dos semitismos do texto longo poderia dar preferência ao
aramaico, mas nem por isso fica descartada a hipótese de um original hebraico.
Data. As idéias religiosas do livro, o seu recurso aos profetas tardios situam-no sem sombra de dúvida
depois do Exílio. A observação das numerosas analogias com o Sirácida, escrito cerca de 190, da fé e do
ideal de piedade que já prenunciam os fariseus pode dar visos de probabilidade a uma data situada por volta
de 200 a.C.7

Capítulo X
INTRODUÇÃO AO LIVRO DE JUDITE
(Apócrifo)

7
Nota introdutória da TEB.
26
Livros Históricos AT
O livro de Judite , como os de Tobias e de Ester, é uma narrativa centrada em torno de um personagem
principal e contando com riqueza de detalhes a salvação concedida por Deus ao termo de uma situação
crítica. Trata-se aqui do cerco de pequena cidade da Palestina , Betúlia, cuja posição comanda o acesso ao
resto do país e a Jerusalém . Uma piedosa viúva sai da cidade , dirige-se ao acampamento inimigo, excita por
sua beleza a paixão do comandante-em-chefe, Holofernes, e aproveita da embriaguez do general após um
banquete para cortar-lhe a cabeça: ela provoca a derrota dos atacantes.
Historicidade do relato. A narrativa apresenta numerosas dificuldades históricas. Nabucodonosor, rei
da Babilônia segundo a história, aparece aqui como rei de Nínive, cidade vencida em 612 pelos exércitos
coligados de seu pai, Nabopolassar, e dos medos. Ele, vencedor e destruidor de Jerusalém, envia suas tropas,
segundo o livro de Judite, para uma expedição na qual elas são derrotadas e massacradas pelos israelitas,
recentemente retornados do cativeiro (Jt 4,3; 5,19). Entretanto, segundo a história, é justamente
Nabucodonosor quem deportou os habitantes de Jerusalém. O general que comanda as tropas de invasão,
Holofernes, e seu eunuco Bagoas trazem nomes persas que se encontram em textos não-bíblicos, referentes a
uma campanha de Artaxerxes III (359-338). O livro de Josué menciona uma cidade de Betul (19,4) no
território da tribo de Simeão, tribo à qual pertencia Judite (8,1; 9,2). Mas a Betúlia do livro de Judite
localiza-se na Samaria, perto de Dotaim e da planície de Esdrelon (ou de Jezreel); está construída sobre um
pico escarpado, acima de fontes que jorram no vale. Não se conhece sítio correspondente a esse nome e a
essa situação. Este fato não é isolado. Ao longo da narrativa encontram-se, ao lado de nomes bem

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conhecidos como Nínive, Damasco, Tiro, Jerusalém, nomes de lugares mais ou menos resistentes à
identificação geográfica, apesar dos esforços dos exegetas. Ragau, perto da qual se trava uma batalha na
planície (1,5), é provavelmente a deformação de Rages na Média, a nordeste de Ecbátana. Rages é
mencionada em Tobias (4,1; 5,6), identificando-se hoje com Rai. Mas nem sempre se tem uma solução desse
gênero.
Essas dificuldades e outras levam a reconhecer no relato não uma narrativa histórica, mas uma
composição livre que visa ilustrar um ensinamento. Entretanto é muito provável que um fato real esteja na
origem da tradição narrativa, porque seria difícil inventar um episódio no qual uma mulher desempenha um
papel ainda mais notável por sua iniciativa que o da rainha Ester , de fato dirigida por seu tio Mardoqueu.
Por outro lado, o relato de Judite encontra-se em textos judaicos (midrashim) bastante numerosos (uma
dúzia), ligados à festa da Hanuká. Esses textos comemoram a dedicação do Templo em 164 a.C., três anos
após a profanação de Antíoco. A façanha situa-se em Jerusalém , sitiada pelos gregos de Antioquia, os
selêucidas; a heroína é muitas vezes anônima.
Enfim, dois cronistas bizantinos, João Malalas e Jorge Kedrenos, este copiando aquele, relatam o
acontecimento de forma bastante diversa. Sob o rei persa Dario, Jerusalém está sitiada. Uma mulher,
chamada Judite, dirige-se ao acampamento inimigo, fingindo querer trair o seu povo. Ela obtém de
Holofernes, seduzido por sua beleza, a permissão de ficar com ele numa tenda isolada, e aproveita para matá-
lo enquanto ele dorme com ela. Judite volta sem dificuldade a Jerusalém, e a cabeça decepada é espetada
numa lança no alto das muralhas. Esta apresentação faz supor que a heroína cedeu à paixão do chefe inimigo,
ao passo que os midrashim judaicos lhe atribuem somente promessas para o futuro e a narrativa bíblica,
ainda mais reservada, fá-la pronunciar palavras vagas (12,14), que podem ser tanto uma resposta cortês, que
em nada compromete, como um eufemismo discreto.
A variedade dessas formas do relato e a existência de uma festa comemorativa, segundo a Vulgata e
vários midrashim, são mais um indício de que um fato real se encontra na origem da tradição narrativa.
Situa-se o fato provavelmente sob a dominação persa, pois é então que é mais fácil encontrar um longo
período de paz, em decorrência da façanha de Judite. Não temos mais, porém, os meios de precisar a data
exata, as circunstâncias e a dimensão do fato do qual decorre nossa história.
O gênero literário. O gênero literário do livro de Judite não corresponde exatamente às nossas
categorias modernas. Não se trata de história, como acabamos de ver. Também não se trata de romance
histórico, onde os acontecimentos imaginados tomam lugar num quadro histórico cuidadosamente
respeitado; nem de história romanceada, onde a imaginação preenche o silêncio das fontes no que toca aos
fatos secundários. A narrativa é um midrash, no qual um núcleo que pode ser real é tratado com muita
liberdade, amplificado por novos episódios fictícios, fecundado por alusões a textos bíblicos. O autor
inspirou-se em diferentes acontecimentos da história de Israel: a astúcia de Tamar (Gn 38), o assassinato de
Eglon por Eúde (Jz 3,12-30), o de Sisera por Jael (Jz 4-5), o combate de Davi e de Golias (1Sm 17), a
intervenção de Abigail junto a Davi (1Sm 25), e muitos outros casos. Há portanto um bosquejo de fatos
(muito provavelmente reais), sobre o qual são bordados livremente desenvolvimentos tirados das Escrituras
anteriores, visando a um ensinamento que é o objetivo final.

27
Livros Históricos AT
Pode-se falar de parábola, mas é preciso indicar que o ponto de partida é uma narrativa preexistente e
não o desejo de fornecer uma ilustração pedagógica a uma doutrina. Por outro lado, os ensinamentos do livro
são múltiplos e não limitados a um ponto preciso.
Tem-se falado de apocalipse, mas a aproximação permanece longínqua. Há por certo algum exagero das
circunstâncias, mas nada dos monstros fantásticos imaginados por Daniel, pelo Apocalipse e pelas produções
não-canônicas do tipo, como o 4º livro de Esdras. O desfecho de Judite (16,25) conduz a um longo período
de paz e não às catástrofes do fim dos tempos.
Autor e data. O autor primitivo é desconhecido. Provavelmente escreveu numa língua semítica. Ao
final do séc. II a.C., ou mais tarde ainda, o adaptador grego utiliza a versão dos Setenta e a reproduz
textualmente, mesmo onde ela difere do texto hebraico. Assim, Jt 6,2 = Is 28,1; Jt 8,16 = Nm 23,19; Jt 9,7 e
16,2 = Ex 15,2; Jt 10,4 = Gn 38,14; Jt 10,4 = Is 3,20; Jt 14,18 = 1Sm 13,3; Jt 16,12 = 1Sm 20,30. Este
redator grego trabalhou sobre um texto semítico, provavelmente hebraico, ora traduzindo-o literalmente,
como o demonstram várias expressões que refletem fielmente o estilo hebraico, ora adaptando-o livremente,
como o testemunham as diferenças com a Vulgata (cf. infra).
Quanto ao protótipo semítico, poderia ter recebido sua forma definitiva na época da insurreição dos
Macabeus contra a perseguição grega. As pretensões de Nabucodonosor de ser reconhecido como único
Deus de toda a terra (Jt 3,8; 6,2) são comparáveis às atribuídas por Daniel (11,36-37) ao rei ímpio (Antíoco
Epífanes). O narrador, provavelmente explorando um relato mais antigo, teria querido encorajar seus

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compatriotas ameaçados em sua religião, sua Lei e seu Templo, relembrando-lhes pelos exemplos do
passado que o Deus de Israel não abandona os seus, mesmo nos perigos mais extremos, e que ele sabe
frustrar os empreendimentos de seus inimigos, se os seus fiéis não o abandonam entregando-se à idolatria. O
nome de Judite (a Judia) seria o símbolo da nação chamada à resistência contra o perseguidor estrangeiro.
Textos. O texto básico é o grego, derivado da tradução livre ou do cotejo com um texto semítico. Pode-
se repartir os manuscritos que o conservaram em várias famílias, três, quatro ou até cinco, segundo os
autores que trataram da questão. A presente tradução segue no conjunto a família mais autorizada, a dos
grandes manuscritos unciais que datam do séc. IV ou do séc. V, editados por A. Rahlfs, Septuaginta; mas
leva em conta, para alguns casos, também outras testemunhas textuais.
As versões latinas antigas, feitas a partir do grego, repartem-se em ao menos seis famílias, muito
diferentes umas das outras, e supõem uma recensão bem aprofundada, quando não um novo trabalho de
tradução. Elas podem supor um texto grego distanciado do que possuímos. Edição completa ainda não existe;
está sendo preparada.
As versões siríacas aproximam-se da forma textual representada pelas antigas versões latinas.
A Vulgata, ou nova tradução elaborada por São Jerônimo (cerca do ano 400), foi executada com base
num texto aramaico. Ele mesmo confessa que foi um trabalho muito rápido, utilizando as versões latinas
antecedentes, suprimindo ou modificando o que não correspondia ao aramaico. O texto é notavelmente mais
curto que o grego. Entretanto, como contém algumas passagens sem equivalente no grego ou uma seqüência
dos episódios menos bem encadeada, não se pode duvidar de que São Jerônimo tenha efetivamente seguido
um modelo aramaico, que se perdeu.
Enfim, há três textos hebraicos, distintos das traduções em hebraico que se apresentam como tais, e que
se sucederam depois do século XVI. Esses textos mais antigos, editados ou reeditados recentemente por A.-
M. Dubarle, seguem a Vulgata versículo a versículo . Mas dela divergem no vocabulário, assim como
divergem entre si. Sua existência cria um problema: até agora não se conseguiu demonstrar que eles fossem
simplesmente uma versão muito livre da Vulgata.
Canonicidade. Os rabinos judeus não admitiram o livro de Judite na coletânea oficial dos escritos
sagrados. Por essa razão a Igreja antiga hesitou quanto a este e outros livros na mesma situação, hesitações
sobretudo de estudiosos conhecedores do cânon judaico. Mas havia um uso difundido de Jt, atestado por
numerosas citações nos escritores cristãos, mesmo naqueles que teoricamente contestavam sua inspiração.
Uma lista dos livros canônicos atribuída ao bispo de Roma Inocêncio I, em 405, inclui Judite e todos os
livros ulteriormente mantidos no cânon pelos concílios de Florença (1442), de Trento (1546), e do Vaticano I
(1870).
Os reformadores do séc. XVI voltaram, quanto ao Antigo Testamento, ao cânon judaico mais restrito. E
os biblistas protestantes designam de "apócrifos" os livros que não estão nele incluídos, mesmo se gozando
de certo crédito. São os que os autores católicos chamam desde a Contra-Reforma de "deuterocanônicos".
O Novo Testamento não cita Judite. Há contudo semelhanças de pensamentos e de expressão que
convidam a supor que o livro era conhecido da primeira geração cristã. Assim, Jt 1,11 e Lc 20,11; Jt 8,6 e Lc

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Livros Históricos AT
2,27; 1Tm 5,5; Jt 8,14 e 1Cor 2,11; Jt 8,25 e Tg 1,2; Jt 13,18 e Lc 1,42; Jt 13,19 e Mt 26,13. Mas o paralelo
mais surpreendente só se encontra na Vulgata: Jt 8,24-25 e 1Cor 10,9-10.
Alcance religioso. O livro evidentemente se destina, primeiro, a encorajar os judeus num período em
que se encontram ameaçados por um perigo proveniente do mundo pagão. Não é só a existência nacional que
está em perigo, mas o culto ao verdadeiro Deus.
O livro contém muitos elementos que são patrimônio comum de toda a Bíblia, mas também certos
pontos de vista mais originais que não devem ser encobertos pelo caráter dramático dos acontecimentos e
que carecem de esclarecimento.
Deus é transcendente ao homem. Seus desígnios são cheios de misericórdia para com os homens, mas
insondáveis. E não se pode prever com certeza a duração ou a extensão das provas às quais ele submete os
seus (8,14). Os sacrifícios que se lhe oferecem são totalmente desproporcionados em relação à sua majestade
(16,16). A Providência age através das causas segundas: não há nenhum milagre ou feito extraordinário na
narrativa: tudo resulta das paixões humanas da ambição, da sensualidade ou do medo em uns e, pelo
contrário, da fé e da coragem em Judite.
É uma mulher que é aqui a personagem principal e a artífice de salvação para todo o povo. Ela é a única
a não perder a cabeça em meio à aflição geral. Por sua sabedoria, ela reanima os homens que são os líderes
oficiais de Betúlia. Sem a ajuda deles, concebe e executa sua empresa audaciosa. Depois de sua façanha, leva
uma vida cujo valor não depende das funções de esposa e de mãe. Há nisso um feminismo que ultrapassa

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nitidamente a medida daquilo que se encontra em outros passos do Antigo Testamento.
A astúcia de Judite não é prova de virtude, mas também não é uma conduta de moralidade inferior, que
se deveria escusar como relevando da imperfeição da antiga aliança antes da vinda do Cristo. A comparação
com diferentes exemplos de astúcia contidos nos livros narrativos da Bíblia, sugerida por numerosos detalhes
do relato, confere vantagem a Judite. Esta, numa guerra de legítima defesa, mata o chefe inimigo que
perpetra uma agressão ao mesmo tempo contra o povo e contra seu culto por uma questão de prestígio ferido.
Iael, para citar apenas o paralelo mais óbvio, mata Siserá, que não a ameaçava diretamente, quando o clã de
seu marido estava em paz com Jabim, rei de Hasor e chefe de Sisera (Jz 4,17-22).
Judite não procura seduzir Holofernes. Seguramente, ela não tem nenhuma ilusão sobre suas qualidades,
das quais tira proveito. Mas comporta-se com reserva e dignidade. É a paixão do pagão que o entrega à
mercê de uma mulher forte e pura, disposta a enfrentar uma situação de risco, graças a uma vida de oração e
de austeridade que lhe assegura o socorro de Deus e o autodomínio.
Não há no livro de Judite um traço sequer de uma concepção rigorista da Lei mosaica, nem mesmo do
zelo escrupuloso de Daniel e seus companheiros pela pureza dos alimentos (Dn 1,8-16). Os jejuns da piedosa
viúva são espontânea manifestação de luto e de penitência, não a observação de um preceito, e ela os
interrompe nos dias de festa (8,6). Seu discurso a Holofernes não exprime uma tese que o autor quereria
inculcar; ele se destina a burlar o inimigo, fazendo-o crer que os habitantes de Betúlia são adversários
desprezíveis, obcecados por escrúpulos insensatos. Na realidade, o livro mostra certa indiferença em relação
aos detalhes da Lei. A heroína, que não tem filhos (cf. 16,24), não se preocupou em contrair um casamento
levirático, segundo as prescrições do Deuteronômio (25,5-10). Aquior, um amonita, é acolhido na
comunidade de Israel (Jt 14,10), apesar da interdição da Lei (Dt 23,4; cf. Ne 13,1-3). Esta característica
manifesta um estado de espírito aberto, mais preocupado em assegurar a todos os homens o acesso ao
verdadeiro Deus que em proteger o povo escolhido por uma cerca de observâncias. Pode-se ter uma
compreensão maleável da Lei e estar pronto a adaptar suas disposições secundárias, em vez de nela enxergar
um absoluto intangível em todas as suas partes.
O sofrimento, dilema permanente para os autores inspirados, não é necessariamente e sempre um
castigo, retaliação dos pecados do povo ou dos indivíduos. Mas é também uma prova que Deus impõe aos
seus para lhes sondar os corações e uma dura lição, que visa instruí-los (Jt 8,25-27). No caso presente, Judite
confia, pois o povo não está sendo culpado de idolatria como o foi no passado (8,18-20). A tribulação dos
sitiados não é uma prova da cólera divina, mas um convite a virtude mais alta, ao sacrifício pela salvação de
todos e pela preservação da cidade santa (8,21-24). É a escolha de Judite (13,20). É preciso acolher o
sofrimento com gratidão, como um sinal da solicitude divina (8,25).
Os grandes soberanos são muitas vezes levados por um espírito de orgulho que os leva à deificação. As
pretensões de Nabucodonosor a ser reconhecido como único deus por todos os povos (Jt 3,8) ultrapassam as
dos reis históricos, Alexandre e seus sucessores, ou mesmo do fictício Dario de Daniel (Dn 6,8). O autor se
inspira em Is 14,13-14, Ez 28, e no rei ímpio de Dn 11,36.
A tradução. A tradução segue ordinariamente o texto grego da edição de A. Rahlfs, segundo os três
manuscritos mais importantes. Às vezes afasta-se dele, o que é assinalado em nota.

29
Livros Históricos AT
O estilo não primou pela elegância; antes buscou uma fidelidade bastante material ao texto. Se é normal
traduzir um bom hebraico para um bom português, pareceu justo traduzir uma versão grega bem servil por
uma versão portuguesa igualmente próxima do modelo: repetir os mesmos vocábulos quando são repetidos,
variá-los quando são variados, conservar a justaposição de pequenas frases não formando períodos, sem
contudo chegar a reproduzir todos os "e" do grego, o que teria sido intolerável.8

Capítulo XI

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE ESTER


(Canônico)
É provável que desde o séc. V a.C. (cf. 2 Mac 15-27), os hebreus tenham celebrado a festa chamada
"purim," em memória da eliminação do perigo de exílio decretado contra os seus antepassados durante a
dominação persa. O livro de Ester narra os fatos que deram origem a essa festa, mostrando a providência
especial usada por Deus com o seu povo eleito, naquela ocasião tão crítica.

Duas redações nos chegaram deste livro: a hebraica e a grega dos LXX, com a única diferença, entre si,

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de que a grega, além da versão fiel do hebraico, contém mais seis seções, que, tomadas em conjunto, igualam
a dois terços do livro hebraico.

O rei da Pérsia, sob o qual se desenrolam esses acontecimentos, é chamado Ahasveros no texto hebraico
(donde "Assuero" na Vulgata), transcrição imperfeita do nome persa Hsarjarsa, que os gregos transcreveram
como Xerxes. A versão grega, ao invés, traz constantemente "Artaxerxes" no livro inteiro. Daqui as
divergências em torno da pessoa do rei assim denominado. Hoje, a opinião mais comum e provável sustenta
que seja Xérxes I, o qual reinou de 485 a 465 a.C. e é conhecido sobretudo por sua campanha infeliz contra a
Grécia. Não perdeu, porém, a sua boa probabilidade a opinião dos antigos, assinaladamente de Eusébio e S.
Jerônimo, de que se trata, ao invés, de Artaxerxes II, chamado o Mnemon (405-365 a.C.), que antes de subir
ao trono tinha o nome de Arsu (V. PLUTARCO, Vida de Artaxerxes, I), forma abreviada ou carinhosa de
Hsajarsu. O caráter efeminado de ambos os monarcas, como no-lo dão a conhecer os escritores profanos,
condiz admiravelmente com o que se reflete no livro de Ester.

Ambos entregues aos prazeres, ambos dominados pela influência de cortesãos e de mulheres, as histórias dos
seus reinados são tecidas de intrigas, de amores ilícitos e também de, crueldades. Sobre Xerxes veja-se
HERÓDOTO, Histórias, IX, 108-110. A respeito de Artaxerxes II, Plutarco, na Vida do mesmo, carrega as
tintas sobre a sua moleza e volubilidade e afirma que no seu gineceu sustentava tantas mulheres quantos
eram os dias do ano (24:3; 27:1-3; cf. Est 2:1-4). Esta é já uma das provas da verdade histórica do livro.
Outras são: o conhecimento exato dos costumes persas, a descrição precisa do palácio real em Susa,
confirmada por escavações recentes, a narração cheia de vida, colorido e particularizada, a ausência de todo
anacronismo, a reiterada referência aos anais oficiais do reino (2:23; 6:10); o próprio fato da celebração da
festa dos purim, desde tempos imemoriais, como foi dito acima, fato que, sem dúvida, deve sua origem a
algum evento extraordinário na vida da nação hebraica; e não se tem provas para indicar outro qualquer, a
não ser exatamente o que vem narrado neste livro.

Pode-se ter como provável que, sobre um fundo comum, oral ou escrito, foram inicialmente redigidas: a
narração hebraica atual e uma redação grega mais ampla; feita depois a tradução grega da narração hebraica,
passou ela a ser adotada, inserindo-se as seções excedentes da redação grega, isto é, as seções
deuterocanônicas. Assim chegou-se a atual versão grega, ao que parece, por obra do Lisímaco.

No que tange ao gênero literário, já S. Jerônimo notava grande diferença entre as duas redações, hebraica
e grega, diferença que tem suas raízes profundas nos costumes estilísticos das respectivas literaturas.

Mas, seja qual for o modo de pensar em torno disso, nenhuma das duas composições do livro de Ester
tem por finalidade única recordar a origem da festa de purim, e sim também, e mesmo preponderantemente,
mostrar os cuidados que Deus teve por seu povo naquele terrível transe da sua história sob a dominação
persa; e bastaria isso, sem dúvida, para levar-nos a apreciá-lo altamente.

8
Nota introdutória da TEB.
30
Livros Históricos AT
Costuma-se lamentar sobre o livro o nacionalismo acanhado dos protagonistas hebreus e a sua dureza
para com os adversários. Decerto, os seus sentimentos e atos estão assaz afastados da abertura de coração e
mansidão do espírito cristão. Mas, cumpre julgar os homens pelo seu tempo. Em todas as épocas, até nos
tempos modernos, acontecem casos de crueldades incompreensíveis.

Capítulo XII
INTRODUÇÃO AOS DOIS LIVROS DE MACABEUS
(Apócrifos)

Se é certo que os dois livros dos Macabeus não fazem parte dos livros canônicos, tendo sido
considerados como apócrifos por S. Jerônimo e mais tarde pelos protestantes, não o é menos que foram
citados e estimados pelos Padres e aparecem nas listas canônicas desde o fim do século IV, embora só no
Concílio de Trento o debate tenha se encerrado para os católicos. Lutero deplorava que 1Mc não fosse
canônico. Os dois livros dos Macabeus são os únicos que nos informam sobre a história do povo eleito na
época helenística, ainda que abrangendo só meio século, desde o fim do reino de Seleuco IV, em 176, até o

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advento de João Hircano, em 134. A Judéia é então vassala dos selêucidas, cujo império, com Antioquia por
capital, se estende do Mediterrâneo aos altiplanos do Irã, mas rapidamente se debilita, acossado pelos
romanos e partos e minado pelas competições dinásticas.
O tema dos dois livros é parecido: graças ao socorro divino, Judas e seus irmãos reconquistam a
autonomia nacional e a liberdade de culto que Antíoco IV Epífanes (175-164) tentara aniquilar. Mas os dois
relatos são independentes e não abrangem exatamente o mesmo período. Ambos nos foram transmitidos em
grego, língua original do segundo.
Embora 1 e 2Mc datem os acontecimentos segundo o calendário luni-solar dos selêucidas, 1Mc segue
geralmente o cômputo outonal, conforme a era macedoniana de Antíoco , iniciando-se em 7 de outubro
(juliano) de 312 a.C., ao passo que 2Mc segue o cômputo vernal, em que a era se aferia pelo 1º de nisan (3 de
abril, juliano, de 311 a.C.). Tal cômputo praticava-se na Babilônia e igualmente no Templo de Jerusalém. A
incepção vernal vale também para 1Mc 1,54; 2,70; 4,52; 9,3 e 54; 10,21; 13,41 e 51; 14,27; 16,14: trata-se do
Templo ou da história judaica interna.
No Codex Sinaiticus figura só o texto de 1Mc. O de 1 e 2Mc encontra-se no Alexandrinus e em
numerosos minúsculos, parte dos quais representa a elegante recensão feita por volta de 300 por Luciano, um
sacerdote de Antioquia. Ela freqüentemente concorda com a Vetus Latina, registrando um texto melhor que o
dos outros manuscritos. O historiador Josefo parafraseou 1Mc nas suas Antiguidades Judaicas (XII-XIII), e
seu texto nos ajuda às vezes a restabelecer o nosso. Josefo não conheceu 2Mc.

O primeiro livro dos Macabeus


Conteúdo. 1Mc é uma trilogia que narra as façanhas de Judas e seus irmãos Jônatan e Simão. Este
último é o fundador da dinastia judaica dos Hasmoneus. Após uma introdução sobre Alexandre Magno e
seus sucessores e sobre a tentativa de Epífanes de impor à Judéia os costumes e cultos helênicos (1Mc 1),
assistimos à revolta do sacerdote Matatias e seus filhos (cap. 2).
O terceiro, Judas, impõe-se como chefe e dirige a campanha durante seis anos, de 166 a 160 (3,1–9,22).
Primeiro contra Lísias, governador de Transeufratênia, enquanto Epífanes guerreia na Pérsia (3,1–4,35). Em
seguida, vem o relato da Purificação do Templo profanado por Epífanes, bem como o das expedições contra
algumas povoações das redondezas (4,36–5), relato que se deveria seguir ao da morte de Epífanes (6,1-17).
Sobre este ponto, a ordem correta é a de 2Mc (9: morte de Epífanes; 10: purificação do Templo), tampouco
isenta de confusões (p. ex., as cartas do cap. 11). A segunda campanha de Lísias, sob Antíoco V, filho de
Epífanes, termina a favor de Judas (6,18-63), mas Demétrio I, filho de Seleuco IV, suplanta seu sobrinho
Antíoco V e substitui Lísias por Báquides; por instigação do sumo sacerdote Alcimo e vão no encalço dos
seguidores de Judas, mas este obtém uma brilhante vitória sobre Nicanor, a quem o rei nomeara estratego da
Judéia (cap. 7). Nesse dia (28 de março de 160), dá-se a morte de Nicanor, com a qual se encerra 2Mc, mas
1Mc, após um curioso elogio dos romanos (cap. 8), conta-nos o retorno em poder de Báquides e a gloriosa
morte de Judas em combate desigual (9,1-22).

31
Livros Históricos AT
A segunda seção põe em cena Jônatan (160-143; 9,23–12,53), que soube tirar proveito das lutas que
opunham Demétrio I e seu filho Demétrio II a Alexandre Balas, neto (?) de Epífanes, depois a Trifão. Este
último governa a princípio em nome do jovem filho de Alexandre, Antíoco VI, depois em seu próprio nome.
Jônatan, que Alexandre nomeara sumo sacerdote em 152, aliou-se a Trifão, mas este último o capturou à
traição.
Simão o sucede, mas não logra impedir que Trifão execute seu irmão antes de retornar à Síria (fins de
143; 13,23-24). Abstração feita desse luto, a terceira seção consagrada a Simão, sumo sacerdote e etnarca, é
uma história feliz (143-134, caps. 13–16). Ele fortifica as cidades da Judéia, toma Jope, Gazara, a Cidadela
de Jerusalém (junho de 141; 13,51). Em maio de 142, reatara relações com Demétrio II, que confirmou a
carta concedida em 145 (13,35 e 11,30). Em 139, Antíoco VII, irmão de Demétrio II aprisionado pelos
árabes, agiu da mesma forma (15,1), mas, uma vez desembaraçado de Trifão, volta-se contra Simão (15,25-
41). Já demasiadamente idoso, confia este o comando ao seu filho João (Hircano), qqe derrota Cendebeu,
preposto por Antíoco VII ao Litoral (16,1-10). Pouco depois, Simão é assassinado pelo seu genro Ptolomeu,
mas João Hircano desfaz as tramas deste último e toma o poder (16,11-24). Simão renovara a aliança com
Esparta e Roma (14,16-24 e 15,15-24) e mantinha boas relações com os reinos e cidades de todo o
Mediterrâneo oriental (15,22-23).
Data e características literárias e religiosas. O autor termina a sua obra remetendo o leitor aos Anais
do Pontificado para o resto dos feitos e empreendimentos de João Hircano, o que sugere a utilização desta

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fonte após a morte de Hircano, em 104. Mas o autor de 1Mc não dá a impressão de estar longe dos fatos, e é
por volta de 100 que ele deve ter escrito, antes da investida de Roma, cujo elogio (cap. 8) seria insólito após
63 a.C.
O autor, um judeu da Palestina, imita o estilo dos antigos livros históricos e o texto grego reflete um
original semítico, quase certamente hebraico. O renascimento da língua sagrada na época hasmonéia está
bem atestado pela literatura de Qumran, onde o aramaico é relegado ao gênero popular dos midrashim e dos
Testamentos. O modo de encarar a história atesta o mesmo conservantismo, centrado na nação judaica. O
profetismo está fechado e as perspectivas escatológicas e messiânicas ausentes (nessa época elas apenas
subsistem na literatura popular e apocalíptica). Enquanto o autor de 2Mc se interessa antes de tudo pelo
Templo, 1Mc manifesta uma preocupação constante com a Lei, que não dissocia da Aliança. É observando a
Lei e rejeitando, mesmo ao preço da vida, os costumes pagãos, que os judeus desfrutarão os benefícios da
Aliança; e ainda que, por uma questão de respeito, Deus não seja nomeado, é evidentemente do "Céu" que
vem a vitória. Partidário dos hasmoneus, o autor de 1Mc parece alheio às querelas que opunham os fariseus
aos saduceus e ao poder. Refere-se em termos elogiosos à seita dos hassideus, mas não alude à dos essênios
que dela se originou. Ora, no dizer de Josefo, fariseus, saduceus e essênios já existiam no tempo de Jônatas.
Essa piedade sem fanatismo faz do autor de 1Mc autêntica testemunha dos valores permanentes da antiga
Aliança.

O segundo Livro dos Macabeus


O autor. O segundo livro dos Macabeus não é continuação de 1Mc, porque a narrativa começa antes do
advento de Antíoco IV e termina antes da morte de Judas . Mas os acontecimentos que precedem a entrada
em cena de Judas são muito mais desenvolvidos em 2Mc. Representa ele o resumo de uma obra em cinco
tomos compostos pouco tempo depois dos acontecimentos relatados, pouco depois de 160 a.C., por Jasão de
Cirene, escritor da diáspora da Cirenaica, bem documentado sobre Jerusalém, a administração selêucida, os
funcionários do governo e seus títulos. De sólida formação helenística, mas judeu ardoroso, Jasão menciona
Deus em toda oportunidade, sobretudo por ocasião das orações antes e após os combates, e lança as mais
violentas invectivas contra os inimigos de sua religião.
O abreviador anônimo, desconhecido como, aliás, o próprio Jasão, levou a cabo o seu resumo mediante
o emprego simultâneo de duas técnicas. Pratica primeiramente, na história apresentada por Jasão, cortes que
ele costura por meio de breves relatos acrescentados e, em segundo lugar, "comprime" o fluxo da dicção
histórica aplicando, ao que ele conserva dos acontecimentos narrados por Jasão e de sua interpretação, os
processos de abreviação oferecidos pela sintaxe grega, com a qual se mostra perfeitamente familiarizado. O
caráter fundamental da obra de Jasão, profundamente religiosa quanto ao teor, patética quanto ao estilo, não
foi sequer tocado pela técnica da abreviação, a tal ponto que a custo se distingue o que pertence a Jasão do
que é da mão do abreviador. É comum falar, no singular, do "autor" do segundo livro dos Macabeus. É
também ao abreviador, provavelmente, que se deve a tradução, do aramaico ou do hebraico, das duas
primeiras das sete cartas incorporadas ao texto. Serve-se ele dessas duas cartas, postas no começo de 2Mc,

32
Livros Históricos AT
para preconizar a celebração da Dedicação do Templo, que constitui o centro da sua narrativa (10,1-8). A
data da carta mais recente corresponde a 124 a.C. e nosso livro é, portanto, ligeiramente posterior.
Concepção da história. Como outrora Heródoto, para quem a história era o restabelecimento
diacrônico do equilíbrio do mundo pela divindade, o autor encara a história sob o ângulo de uma teologia
finalista. Todos os acontecimentos são por ele interpretados como efeitos da vontade de Deus , e não apenas
o castigo dos perseguidores e dos traidores e as derrotas dos inimigos ímpios, como também os que repõem
os judeus no caminho reto. As vitórias de Judas são para ele o sinal do retorno da benevolência divina,
merecida pelos sofrimentos dos mártires. Da pregação que acompanha a narrativa dos acontecimentos
emerge um ensinamento em parte tributário da tradição judaica, em parte novo.
A criação. Uma das questões que separam a cosmologia e a teologia semíticas das cosmologias gregas é
a da criação. O pensamento grego é dominado, sob esse aspecto, pela lei da conservação. O princípio "ex
nihilo nihil fit" (do nada nada vem), pelo qual Lucrécio formulou, tardiamente, essa lei, determina os
sistemas do mundo desde Tales até os estóicos, inclusive entre os pensadores que admitem, como os
atomistas, a existência do nada e do vazio. O pensamento cosmogônico dos judeus, anterior a 2Mc, parece
postular a criação "ex ni-hilo" do mundo por Deus . Essa criação comporta uma primeira ação, "bereshit"
(Gn 1,1), que chama à existência, a partir do nada absoluto, o caos do "tohu wa bohu", e uma segunda ação,
que consiste em organizar esse caos primordial pelos imperativos tais como o yehi ôr (que a luz seja feita)
(Gn 1,2). Atêm-se, o mais das vezes, os autores do AT a esta segunda fase da criação, a da organização de

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um caos anteriormente criado. O livro da Sabedoria, embora posterior a 2Mc, faz ainda o mundo ser criado
por Deus de certa "matéria informe" (11,17-18), sem mencionar a criação primeira desse caos inicial.
Fazendo dizer ` mãe dos sete mártires que Deus fez o céu , a terra e tudo o que neles há, do nada (2Mc 7,28),
e remontando assim à tradição de Gn 1,1, o autor de 2Mc confere à questão fundamental da criação uma
precisão que anuncia o NT, cf. Cl 1,15ss.; Jo 1,3.
A ressurreição dos justos. A escatologia do autor de 2Mc desenvolve a do livro de Daniel . Achega-se
mais à dos fariseus que ensinam a ressurreição, corpo e alma, dos justos que da escatologia da Sabedoria, a
qual, tendo sofrido influências platônicas, afirma somente a eterna felicidade da alma dos justos. Quanto ao
ancião Eleazar, parece ater-se a uma perspectiva saducéia (6,23), mas não exclui o futuro castigo do pecador
(6,26).
A intercessão. O segundo livro dos Macabeus marca outro desenvolvimento teológico: a eficácia da
oração e do sacrifício para expiar os pecados dos mortos (2Mc 12,40-45) e reciprocamente a intercessão dos
justos falecidos, como Onias e Jeremias, em favor dos viventes (2Mc 15,11-16), doutrina que será retomada
por Fílon de Alexandria no seu De exsecrationibus, em que os patriarcas são nomeados entre os
intercessores. Para os autores do Novo Testamento, Jesus é o único mediador, Hb 7,25 (cf. entretanto Ap
5,8). As Igrejas da Reforma recusar-se-ão a ir além, remetendo a Deus a sorte dos defuntos. Na história do
cristianismo oriental e ocidental, o recurso aos santos desempenhou papel importante. É aprovado pelo
Concílio de Trento, que sublinha ao mesmo tempo que toda graça passa por Cristo . Da mesma forma as
orações em favor dos defuntos. De sua parte estima Lutero que a opinião de Judas, referida em 2Mc 12,44,
não estabelece lei. Recordemos que para os protestantes 1 e 2Mc não são canônicos.
A segunda carta festival. Certas partes de 2Mc mostram a intenção de agrupar os acontecimentos ao
redor do santuário de Jerusalém. Sob este aspecto, a segunda carta liminar (1,10–2,18) é particularmente
importante. Redigida, sem dúvida, por um sacerdote contemporâneo de Judas, versado nos velhos escritos, e
dirigida ao sábio Aristóbulo da comunidade judaica do Egito , visa ao objetivo prático de convidar, em nome
de Judas e dos judeus palestinianos, os correligionários do Egito a celebrarem em união com eles a
purificação do Templo, e de determinar com precisão as modalidades da celebração dessa festa, fixada em 25
de kislev 148 (15 de dezembro de 164 a.C.). Como rito geral, propõe o autor da carta o da festa das Tendas,
1,18, que Salomão adotara por ocasião da dedicação do primeiro Templo, 2,12 cf. 1Rs 8,65 e 2Cr 7. Mas
para dar à dedicação do mês de kyslev um acento particularmente solene e reatar os laços com uma tradição
antiga, em parte esquecida, quer ele que a purificação se faça por meio do fogo sagrado. Justifica o emprego
do fogo com grande reforço de erudição, citando, segundo os apócrifos de Neemias e Jeremias, o exemplo
desses profetas, o de Neemias (2,13 e 1,18-36) por ocasião de sua pretensa dedicação do altar do segundo
Templo, o de Jeremias (2,1) quando dá aos deportados ordem de levarem consigo o fogo sagrado.
O martírio e culto dos sete irmãos . O patético do estilo dessa narrativa traduz o comovido interesse
de Jasão e do abreviador. Mas o acontecimento, inegavelmente histórico (cf. 1Mc 1,62-63), do suplício dessa
família tornara-se objeto de uma tradição popular antes de encontrar lugar em 2Mc, com certos sinais
característicos das lendas oralmente transmitidas, como o número sete, a presença do rei, a insistência na
crueldade dos suplícios. Todos esses elementos se reencontram em 2Mc. Não dá o autor nenhuma indicação

33
Livros Históricos AT
precisa sobre o lugar do martírio e o nome dos sete irmãos. O mesmo silêncio, sobre estas questões, de 1Mac
e de Josefo. Pode-se dizer que, conforme o segundo livro dos Macabeus, o lugar do suplício parece ser na
Judéia, cf. 2Mc 6,8-11. Esse é também, um século e meio após o abreviador, o parecer do autor de 4Mc,
onde o rei decide a perseguição em Jerusalém, cf. 4Mc 4,23; 5,1; 8,1. A essa localização do martírio na
Judéia a chamada tradição antioquena opôs a localização em Antioquia, que se manteve por muito tempo na
lenda dos sete irmãos e de Eleazar. A localização em Antioquia provém de uma dedução dos livros bíblicos:
do fato de Epífanes achar-se em Antioquia no momento da perseguição religiosa na Judéia concluiu-se que
os mártires haviam sido transferidos a Antioquia para o suplício.
Essa tradição antioquena aparece pela primeira vez por volta de 390, quando João Crisóstomo pronuncia
na própria Antioquia as suas homilias sobre os mártires, assinalando-lhes as relíquias em um santuário dos
arredores da cidade (cf. PG 50, cap. 617, 623; 63, cap. 530). Pouco depois, Agostinho evoca em um dos seus
sermãos "a basílica dos santos Macabeus em Antioquia… edificada pelos cristãos". No século VI, João
Malalas de Antioquia, autor de uma Cronografia, depois de contar a sedição judaica de Jasão e sua repressão
por Antíoco IV (cf. 2Mc 5,5ss.), acrescenta que Antíoco levou Eleazar e os macabeus para Antioquia e aí os
supliciou a pequena distância da cidade. Mais além na sua crônica, refere que um certo Judas obteve do rei
Demétrio os restos mortais dos Macabeus e os sepultou em Antioquia, no lugar denominado Querateon (cf.
PL 97, cap. 321 e 324). Segundo um guia árabe de Antioquia, do século X, a basílica mencionada por
Agostinho, antiga sinagoga transformada em igreja pelos habitantes de Antioquia após a sua conversão ao

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cristianismo, suspendia-se nos flancos do monte Silpius, sobre uma cripta que continha os sepulcros de Esras
(Eleazar), dos sete irmãos e de sua mãe, santa Asmunit, nome derivado da forma Asamônaia, a hasmonéia,
correspondente a Macchabaea, nome latino da mãe dos sete irmãos.
De Antioquia, o culto dos mártires passa para o Ocidente. Já no século IV, nasceu na Gália uma
paráfrase latina de 4Mc sob o título Passio SS. Macchabaeorum, que teve uma larga difusão. Suas relíquias
foram transportadas para Milão e Colônia, igrejas lhes foram dedicadas em Roma, Lião e Viena, e fixou-se a
sua festa no dia 1º de agosto. Os Padres da Igreja, que viam neles uma antecipação dos cristãos consagraram-
lhe numerosas homilias.

CONCLUSÃO

―Entre os vários gêneros literários da Bíblia, a história, por sua extensão, ocupa o primeiro lugar. Esse
fato já prova quanto a história fosse cultivada pelo antigo povo de Israel.‖9
O fato de esses livros serem chamados históricos não significa que os outros livros da Bíblia são lenda,
fábula ou mito. Não; todo relato bíblico aconteceu no tempo e no espaço e é veraz, verossímil e digno de
confiança. Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros históricos grande parte do Pentateuco,
assinaladamente Gênesis; estas partes, porém, devido à sua estreita relação com a legislação mosaica,
formam um só corpo como o nome de Lei ou Torá. Na verdade, ―livro histórico‖ é apenas uma designação
didática para indicar que a maior parte do livro trata de uma exposição cronológica dos fatos.

BIBLIOGRAFIA

DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Edições Vida Nova, 1981.
ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. 3 vols. São Paulo: Vida Nova,
1990.
MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1984.
RYRIE, A Bíblia Anotada. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1991.
SHEDD, Russel (ed.). Bíblia Shedd. São Paulo: Edições Vida Nova, 1998.
SOARES, Pe. Matos. Biblia Sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.
DAVIS, John, Dicionário da Bíblia. São Paulo: JUERP, s/d.
TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA. São Paulo: Edições Loyola

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Nota Introdutória aos Livros Históricos, da Bíblia Sagrada, Matos Soares.
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