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1. Um problema de sintonia
“Eles não chegam lá”: o título da esclarecedora matéria de Marco Rodrigo Almeida na
capa da Ilustrada(Folha da S. Paulo, 03/01/2013) sintetizaum dado revelador do velho
problema da produção e do consumo literários brasileiros. Enquanto os livros de não-
ficção mais vendidos no país são predominantemente brasileiros, os de ficção são
estrangeiros: as ficções nacionais encalham. Por quê?
A primeira parte da resposta parece verdadeira, mas a segunda, por força da ironia,
acaba por ocultar as coisas. Os romancistas brasileiros escrevem, de fato, “para os
amigos”, mas não como motivo primário. Na verdade, eles não escrevem para o
público, que desprezam.
Esse desprezo pelo público se manifesta reiteradas vezes na matéria secundária à de
capa (“Ficção perdeu os leitores, diz o autor de ‘O Filho Eterno’”, p. 3). O que não se
compreende: pois as afirmações dos autores não são exatamente sofisticadas.
“O autor que se guia pelas tendências do mercado deixa de ser um artista para ser um
comerciante” (Marçal Aquino)
“O que é bom não vende muito. O pessoal não tem nível intelectual para consumir um
livro de maior qualidade” (Sérgio Sant’Anna)
“Nós perdemos o leitor depois dos anos 1970, quando a universidade passou a dominar
a literatura. Houve uma poetização da prosa, a narrativa clássica implodiu. […] Se
vender, ótimo. Mas ficar obcecado com isso pode envenenar o autor” (Cristovão Tezza)
O problema, em todo caso, estaria na defasagem entre o gosto médio do público por
uma literatura igualmente média e a insistência dos ficcionistas brasileiros em criar uma
literatura “sofisticada”. Isto geraria uma demanda sempre insatisfeita, de um lado, e
uma oferta sempre insatisfatória, de outro. Pois a literatura “sofisticada” satisfaria
apenas a demanda pessoal do próprio produtor, ignorando a demanda pública dos
consumidores. Se fosse verdade, tratar-se-ia de um clássico problema de oferta. Neste
caso, as próprias leis do mercado se encarregariam de solucioná-lo. Pois não é de se crer
que o Brasil só produza candidatos a gênio literário, e nunca escritores que desejam
simplesmente ficar ricos.
Prova disso é o mais rico escritor brasileiro – apesar de não se tratar, de fato, de um
escritor. Refiro-me a Paulo Coelho. Ele não é um escritor porque escrever não é juntar
palavras. Ou seja, juntar palavras não é suficiente. Por isso a lista telefônica não é
literatura. Nem é literatura o que ele produz, pois literatura é trato com a linguagem
verbal, de um lado, e trato da realidade pelo trato da linguagem verbal, de outro, e
Coelho não faz uma coisa nem outra (operando por ocultamento do ocultamento, ao
usar e abusar de clichês como se fossem obra sua, ou seja, por mera apropriação e
reutilização do usado, abusado e gasto). Em todo caso, de seu sucesso comercial se
concluiria que o gosto médio do público idem está de fato abaixo da média. Isto
deixaria qualquer tentativa verdadeiramente literária de se adequar a esse gosto fadada
ao fracasso. Mas também deixaria sem explicação outros fenômenos comerciais: de um
lado, livros complexos ou complicados como O nome da rosa, de Umberto Eco; de
outro, a verdadeira literatura média, mais do que robusta em lugares como EUA e
Europa.
O verdadeiro dilema aqui é shakespeariano: ter o público em pauta ao escrever, mas não
para simplesmente satisfazer de modo fácil o gosto desse público. Como a resposta-
padrão dos escritores brasileiros retira o público mágica e convenientemente da equação
(afinal, é um público que não serve para sua literatura), essa resposta-padrão nada
responde e nada pode responder.
Pesquisas indicam que o Brasil leitor é dez vezes menor do que o Brasil real, ou seja,
um país de 20 milhões de habitantes. Mas um país de 20 milhões de habitantes ainda é
meia Argentina, ou meia Espanha. Teríamos então, apesar de tudo, de ter um mercado
equivalente à metade do argentino ou do espanhol. Mas estamos a anos-luz disso. A
pequenez do público leitor brasileiro é, em todo caso, relativa. E não explica a falta de
uma produção literária brasileira que o supra. Mesmo porque, toda a discussão começa
pelo fato de esse público leitor se alimentar de livros importados.
Qual a principal característica desses livros? Ao contrário de Paulo Coelho, eles são
literatura – mas integrada ao entretenimento, que é entretenimento do público. Portanto,
o público faz parte da equação literária. A literatura média é, de fato, literatura de
entretenimento.
Shakespeare também era, em sua época, entretenimento. Balzac era igualmente, em seu
tempo, entretenimento. O problema é que hoje a literatura que prevê e, portanto,
entretém o público seria uma literatura inferior. Ou talvez não. Porque o público atual é
maior e mais diversificado: logo, não há apenas uma literatura de entretenimento, aquela
reconhecida por este nome.
Para que haja interesse dramático numa novela policial é necessário que exista, no
mínimo, além do imprescindível crime misterioso, uma coleção mais ou menos sortida
de suspeitos sem culpa formada, sobre os quais nenhuma acusação se poderia formular.
Em consequência, continuam soltos, atrapalhando o mais que podem a ação da polícia.
O detetive seguirá pistas falsas, embrulhar-se-á, cairá em armadilhas habilmente
urdidas. Até que, ao cabo de duzentas e cinquenta páginas, a ação se esgota, os recursos
do criminoso esgotam-se, as faculdades inventivas do autor também se esgotam, a
nervosa expectativa do leitor já se acha quase esgotada – e então o mistério é
esclarecido e o romance acaba.
Mas no Brasil as coisas não se passariam assim. Se o romancista não quisesse fazer obra
inteiramente falsa, sem qualquer possibilidade de convencer o leitor, deveria criar sua
hipótese dramática de acordo com o que de fato aconteceria no caso de um crime real: a
polícia começaria prendendo todos os suspeitos. Haveria, quando muito, uma trágica
descrição de espancamentos, interrogatórios, torturas físicas e notícias berrantes nos
jornais.
O que dá vida, interesse dramático e consistência à novela policial é um jogo sutil de
raciocínio e brilho mental, a luta surda e ágil travada entre o investigador e o criminoso.
Como se fosse uma dança, em que os dois se perseguem, se esquivam, se abraçam e se
confundem.
Vê-se, desde logo, em que impossibilidade esbarraria o romance policial no Brasil e em
outros países, nos quais os processos criminais não sejam orientados pelo maior
liberalismo, nos quais não se admita, no suspeito, um possível inocente, em vez de nele
se pressupor – como é de uso entre nós – um criminoso potencial. Não importam os
textos dos códigos de direito penal, porque o que interessa não é a aparência formal e
teórica das leis, mas, sobretudo, uma questão de aplicação prática das mesmas. […]
A novela policial só pode se desenvolver em países cujas instituições políticas e
jurídicas se baseiam em normas essencialmente democráticas, isto é, em que haja um
verdadeiro respeito pela pessoa humana. (Luís Martins, “Prefácio”, in Obras-primas do
conto policial, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1964, pp. 7-9)
O diagnóstico parece consistente demais para estar errado. Além disso, explica o
fenômeno que pretende explicar de modo suficiente. Então talvez estejamos condenados
a jamais ter uma literatura policial robusta. Ora, esta é outra explicação para as ficções
nacionais não venderem – além de explicar a dificuldade em explicar o problema. Pois
ela é normalmente ignorada. Com isso, não se discute o caso específico da linhagem de
Poe, virtualmente amputada da produção literária nacional. Acontece que essa linhagem
responde por boa parte dos livros mais vendáveis nos mercados centrais.
Recentemente, vários autores policiais suecos conquistaram seu mercado interno para,
em seguida, lançaram-se sobre o mercado mundial e, naturalmente, acabaram virando
filme. Ou filmes. No caso da trilogia Millenium, de Stieg Larsson, seu primeiro livro
teve uma versão cinematográfica sueca e outra inglesa. A inglesa é superior, tratando de
modo mais lento e consistente as várias camadas de circunstâncias que constroem a
história, acabando por envolver e revolver o negro passado pró-nazista de parte da elite
sueca, que se liga diretamente ao sadismo dos crimes contemporâneos de um de seus
descendentes. Portanto, o sadismo deixa de ser gratuito (mero chamariz de emoções
fáceis do leitor idem), tanto em termos literários quanto sociais (a lição de Balzac): não
se trata de um “simples psicopata”, no sentido de que sua psicopatia se autoexplica para
ser, então, “retratada” pelo autor em detalhadas cenas de sangue. Pois outra
característica importante das ficções de alguma qualidade é que elas, de um modo ou de
outro, mantêm a história na mira, não para fazer “romances históricos”, mas romances
robustos, inclusive policiais. Algo que os escritores brasileiros têm dificuldade de
manipular.
Mas se não tivemos, não temos e provavelmente não teremos uma literatura policial, o
peso da responsabilidade sobre os herdeiros tupiniquins de Balzac é ainda maior. Eles
podem continuar a ignorar soberbamente o público, e com isso deixar o mercado para
seus congêneres estrangeiros, enquanto modorram em seu “olímpico” isolamento
satisfeito por prêmios literários locais de prestígio duvidoso, ou tentar o caminho do
verdadeiro criador, que é o caminho difícil. E a dificuldade, aqui, não é criar pálidas
obras “sofisticadas” de estufa (na verdade, isso não é tão difícil: basta ter muito tempo,
muita paciência e algum talento), mas livros que os leitores queiram ler (caso contrário,
por que os leriam?).
6. Epílogo
Durante muitos anos, falou-se em certo “padrão Globo de qualidade”. Mas ele nunca
existiu. Apenas a ausência das TVs americanas e europeias, enquanto não chegaram
aqui as TVs a cabo, permitiu a manutenção desse mito provinciano. A Globo sempre foi
o que é, incapaz de ir além de novelas, BBBs, comédias do mais baixo nível e
“especiais” especialmente bregas de fim de ano. A TV de qualidade, assim como o
cinema de qualidade, tem de ser importada. O mesmo vale, afinal, para a ficção. Os
escritores de fato ignoram o público, mas não porque se dedicam a criar uma alta
literatura brasileira contemporânea (tão real quanto o “padrão Globo”), e sim porque são
incapazes de se profissionalizar, segundo padrões internacionais modernos.