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CAMPINAS
2015
i
iii
iv
v
RESUMO
Este estudo faz uma abordagem estética do filme “O fim e o princípio”, do cineasta
Eduardo Coutinho. A reflexão se dá em torno da questão do tempo e o tempo do
encontro com o outro ao entrecruzar memórias, imagens, palavras e sons do filme.
É uma interpretação do filme como criação estética do tempo e da memória, para
apreender e entrecruzar temas que emergem dele. A imagem-tempo explora o
tempo de forma direta no filme. A Metodologia utilizada é a análise alegórica que
apela à imaginação ao construir a ligação entre sentido e imagem, sem a
preocupação de estabelecer uma relação lógica. O filme como motivador do
pensamento, afirma a potência da arte como forma de pensar o mundo e
reinventar outras relações e sensibilidades com o outro. O estudo é entremeado
pelos conceitos teóricos de Deleuze, Aumont, Bazin, Martin, Tarkovski, Benjamin e
Xavier.
ABSTRACT
This study is an aesthetic approach to the film "The end and the beginning," the
filmmaker Eduardo Coutinho. The reflection revolves around the issue of time and
the meeting time with each other to intersect memories, images, words and sounds
of the film. It is an interpretation of the film as an aesthetic creation of time and
memory, to seize and interlacing themes that emerges from it. The time-image
explores the time directly in the film. The methodology used is the allegorical
analysis that appeals to the imagination when building the connection between
meaning and image, without the worry of Flores, a logical relationship. The film as
a motivator of thought says the power of art as a way of thinking about the world
and reinvent other relationships and sensitivities with each other. The study is
punctuated by theoretical concepts of Deleuze, Aumont, Bazin, Martin, Tarkovski,
Benjamin and Xavier.
vii
Sumário
APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 19
ANEXOS............................................................................................................................. 189
Transcrições das falas dos personagens nas entrevistas do filme "O fim e o princípio" (Eduardo
Coutinho, 2005) ........................................................................................................................ 189
ix
DEDICATÓRIA
xi
AGRADECIMENTOS
xiii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
xv
Figura 3.7 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.8 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.9 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.10 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.11 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.12 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.13 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.14 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.15 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.16 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.17 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.18 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.19 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.20 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.21 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.22 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.23 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.24 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.25 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.26 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.27 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.28 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.29 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.30 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.31 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.32 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.33 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.34 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.35 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.36 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.37 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.38 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.39 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 3.40 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
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Figura 3.41 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.1 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.2 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.3 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.4 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.5 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.6 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.7 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.8 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.9 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.10 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.11 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.12 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.13 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.14 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
Figura 4.15 – Foto-imagem do Filme “O fim e o princípio”, de Eduardo Coutinho.
xvii
APRESENTAÇÃO
Eis o desafio colocado por mim neste estudo: pensar o tempo a partir das
- mas aprofundar na sua estética para apreender, entrecruzar temas que emergem
19
entre os personagens e seu processo de rememoração e a concepção de tempo
apresento como a metodologia viável para captar o sentido que o filme tem para
filme, abolindo, ao mesmo tempo, o seu sentido primeiro e literal. Não se trata de
20
uma leitura do filme através da direção ou uma educação dos sentidos pela
alcançado. A alegoria não precisa estar expressa na linguagem, ela se dirige aos
olhos de quem observa, ela está expressa nas artes em geral: pintura, escultura,
revela um senso estético: a temporalização das imagens através dos planos fixos
introdução uma reflexão teórica breve sobre “as vicissitudes do tempo e a imagem
pelos pensamentos de Eduardo Coutinho e outros autores que discutem sua obra,
ora pelas imagens do filme, ora pelas narrativas do filme e memórias dos
21
personagens, ora por cenas ou objetos específicos. Nestes movimentos de
pesquisa, eu segui a alternativa que tem mais força para desenvolver a Tese: os
atenção maior não apenas aos corpos, mas à forma que o diretor, nos
uma análise não só a partir da ótica do diretor, mas de um encontro com sua
edição. É uma leitura que se mantém singular, mas aprofunda nos aspectos que
22
tempo de filmagem: o encontro com o diretor, o encontro com a câmera, com a
sobre o tempo da narrativa, sobre a busca por pessoas que possuem rigor e força
na fala, o foco na cultura oral, pode ter início a uma conversa breve com Benjamin.
sobre a profundidade de campo. Os dois movimentos são potentes, ainda que seja
pensá-lo como estética do filme. Trabalho, aqui, uma fabulação do tempo pela
próprio diretor, no processo de edição. Existe uma percepção e uma relação breve
23
com o pensamento do filósofo Walter Benjamin e o texto “O narrador” (o narrador
artesão).
com o tempo e como estes são situados como elemento alegórico do tempo e
pela memória e narrativa da personagem Tia Dôra, quando faço o nexo entre os
através da narrativa dos personagens, ou seja, traz a forma do diretor lidar com o
cavalo e a carroça.
A Tese se afirmou como foco na estética do tempo, por isso realizo uma
conversa teórica e discussão de como esta relação faz pensar certa noção de
24
temporalidade através das alegorias do tempo, considerando que o próprio filme
Coutinho.
25
INTRODUÇÃO: vicissitudes do tempo e a imagem cinematográfica
Nesse texto inicial, faço uma breve reflexão sobre o conceito de alegoria em
das coisas que se seguem”, para lembrar que o texto não pretende esgotar e nem
deste estudo.
1
O conceito segue a orientação de diversos dicionários da Língua Portuguesa: designação da
continuidade das coisas que se seguem; denominação atribuída à sequência de alterações ou
mudanças; a diversidade de coisas que se sucedem.
27
A temporalidade histórica do processo de significação é o fundamento da
possui outro significado que não o seu. Para Benjamin (1984), a alegoria cria
expressar uma ideia. Em seu desejo de conhecer, desconstrói o objeto e diz o que
outro significado.
época.
28
As figuras alegóricas da modernidade são concretizações da perda de
que será montado pelo alegorista numa época em que não tem mais meditação.
reencontra esse passado ou não. Na rememoração a vida não é descrita como ela
foi, mas como ela permanece na memória daquele que a viveu, não da forma
como ele viveu, mas como suas lembranças foram tecidas. Um tecido que
uma relação entre presente e passado que se desdobram numa tensão dialética
(como processo dialético) a única forma de petrificar a história e o tempo pela seu
sobre a imagm-tempo.
30
efemeridade. Portanto, a angústia e a incerteza do homem sobre a passagem do
do esquecimento.
uma tarefa comum e fácil. Ao realizar esta reflexão, fiz uma revisão bibliográfica
sobre sua obra, buscando os principais textos que abordam a questão do tempo.
de uma forma mais aprofundada, quando ele elabora a crítica da imagem fílmica,
aion e “duração” bergsoniana, ele considera que a memória não contém uma
versão única e linear dos fatos e possui um caráter múltiplo, caótico e difuso,
31
A leitura de memória em Deleuze é diferente de arquivo ou da perspectiva
de restituir algo. Não é possível refletir sobre a memória sem referir-se ao tempo.
tempo cronos).
que utiliza atos do agora para dizer sobre aspectos do passado ou ao contrário.
Vemos que o seu discurso se move por diversos planos temporais, sem
32
O conceito central de duração bergsoniano traz a memória enquanto
passado não segue o presente e o presente não precisa acontecer para constituir-
(veja figura 1) para ilustrar a concepção de tempo adotado neste estudo: o cone é
invertido e sua base é AB; o vértice S é o atual presente, mas não é um ponto,
imagem atual); toda a área do cone está composta pelo passado, em múltiplas
camadas: AB, A’B’, A’’B’’ etc., e estas camadas “são circuitos puramente virtuais
que contém todo o nosso passado tal como ele se conserva em si (as lembranças
puras)”.
33
Figura 1
maneira:
34
representa o seu limite comum, ou mais contraída dentre elas
(DELEUZE, 2007, p.122).
coexistem, produz o presente, o presente não para de passar, o passado, que não
atingiu o “tempo puro”, a memória por excelência e de fato, que não retém o
permanece na duração.
virtual, o que já foi mostrado durante o filme, além de conter a memória do mundo,
35
Nas imagens do chamado cinema clássico, se via a passagem dos
instantes que morriam enquanto passavam. Algumas partes desse instante eram
o presente que virá). A existência do antes e depois permite medir o tempo, com
e ação).
36
O tempo do cinema é o registro de um tempo que passou. Um filme é como
a memória: o que se vê ali já não existe mais. Por isso, é o registro da morte, mas
é o que ainda vive, é o do que era do que hoje é. Segundo Deleuze (2007), a
A imagem passa a ser mais que representação do real pensado e vivido pelo
forma do que muda, não muda e não passa. O cinema armazena a memória em
movimento, não só pelas imagens, mas pela memória em si que modifica seu
olhar sobre o passado, à medida que o tempo passa, embora acredite que os
O presente tem que passar para que o novo presente chegue, o que
significa que ele passa, ao mesmo tempo em que chega (o presente). Uma
mesmo tempo, senão o presente jamais passaria); então, “o passado não sucede
ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é
mesmo tempo, passa por todos os tipos de planos: o geral, o médio e o close.
2
Welles desenvolveu esse procedimento que aparece pela primeira vez no filme Cidadão Kane, na
década de 1940, que, ao por a câmera em um ângulo diagonal preciso, conseguia atravessar todos
esses níveis e mantê-los em foco. Ele acrescentou diferentes níveis de situação e de tempo em
uma única imagem.
38
Esse recurso é explorado para acrescentar níveis de situações e de tempo
diversos em uma única imagem. Com esta mudança, a filmagem não precisa mais
sonsignos e opsignos. Para Deleuze (2007, p.14-15), “esse novos signos remetem
limites.
valor relativo. Ela apenas indica polos entre os quais há passagens constantes.
Por isso são chamados de tempos mortos ou espaços vazios, que podem indicar
rara. Nesse caso, não existe mais a subordinação do tempo ao movimento, e sim
essência da imagem.
uma é o tempo, cada vez, sob estas ou aquelas condições daquilo que muda no
tempo. Assim, apesar de este tempo estar no passado, o ato da fruição também
realidade. A câmera funda uma consciência definida pelas relações mentais, e não
personagem.
40
1- “O FIM E O PRINCÍPIO” OU O FIM TRAZ O RECOMEÇO
Que coisa mais veloz, mais fugitiva, e mais instável que o tempo?
Tão instável que, nenhum poder, nem ainda o divino o pode
parar3.
Figura 1- 1
Vídeofilmes, com duração de 101 minutos. Este foi o último filme do cineasta que
seus filmes, embora ele utilize elementos novos que aperfeiçoa o seu método de
3
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões da primeira dominga do advento; obras completas, sermões.
Lisboa, Chardron, 1907, p. 11 (Apud NUNES, 1988, p. 24).
41
produção cinematográfica. Os outros filmes posteriores a este: Jogo de Cena
geográfico, sem pesquisa prévia (Princípio da surpresa total) com uma equipe
produção.
lançamento dos filmes “Edifício Master” (2002) e “Peões” (2004), revela o seu
A ideia anterior ao filme era fazer uma película no polo oposto aos grandes
centros urbanos, de preferência com pouco contato com a indústria cultural, onde
4
ARAUJO, Mauro Luciano Souza de. À procura do interior em O Fim e o Princípio: a subjetividade
em Eduardo Coutinho. CONFIBERCOM. www.academia.edu./1050777 - Acessado em janeiro de
2014.
42
a população não vive de televisão ligada e numa região onde houvesse um
processo rico de criatividade verbal, onde as pessoas têm histórias para contar.
comunidade onde estas características são muito fortes. Eduardo Coutinho, aos
setenta e dois anos de idade, retorna ao local, pelo ao menos na mesma Região
cineasta.
Figura 1- 2
interessante, pois “você vai para o Nordeste e não volta mais até acabar o filme”.
ideia central. O acaso, no filme, ocorre como ritual de efemeridade no discurso dos
e, ao misturar a sua criatividade ética de alteridade, que vai além do “cuidado com
o outro”, proporciona uma ação disparadora que fornece abertura para esse
“lavrador sedentário” de Walter Benjamin5: idosos que fabulam sobre suas vidas,
5
Walter Benjamin (1892-1940) Filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, escreveu peças para
rádio, além de artigos para diversos jornais e revistas literárias. Colaborou com a revista do
Instituto de Pesquisa Social (“Escola de Frankfurt”). Era alemão e filho de judeus, fugiu da
Alemanha em 1933, e viveu em Paris até a invasão nazista. Em 1940, fugiu ilegalmente para a
Espanha e, em Portbou (Catalunha) se suicidou para não ser capturado pela Gestapo. Ele deixou
44
camponeses desprovidos da cultura escrita, mas com uma rica comunicação oral,
contato com a televisão, telefone e Internet. Essa relação do oleiro (narrador) que
“pelo lado sensorial, narrar não é de forma alguma, apenas obra da voz [...].
mais velhas ainda transmitem suas experiências via oral. É uma comunidade rural
esses homens e mulheres velhos, donos de uma experiência vivida maturada pelo
Coutinho: o narrador ou narradora nata que tem uma boa articulação entre
extensa e brilhante obra literária e contribuiu significativamente para a teoria estética, para a
filosofia, para o pensamento político e para a história.
45
expresso em suas falas, mas alguns não fazem referência a ela, em nenhum
momento da entrevista.
moradores.
importante pensar, nesse filme, sobre o ponto de vista do seu autor, que também
volta a Região e Estado de origem do filme O cabra marcado para morrer, que foi
segundo ela, não teve um bom casamento, pois apanhou muito do marido
curas através da reza. Apesar da idade avançada, ainda gosta de beber umas
“biritas”. Sempre demonstra bom humor durante suas falas. Ela é entrevistada
filme. No entanto, ela não passa pelo processo de entrevistas. Ela é tecelã. As
suas imagens tecendo o fio, apresentam para mim, um sentido temporal no filme,
Senhor Assis – oitenta anos. É possível perceber que este personagem cria
fortes laços afetivos com o cineasta e sua equipe. Ele também é entrevistado duas
47
Rita e Zeca – Setenta e sessenta e três anos, respectivamente. Ela já
trabalhou muito na roça e gostava. Casou-se aos 26 com um rapaz mais novo
(diferença de oito anos). Ele aparenta ser um homem simples e fala calmamente.
na comunidade em que vive, pois foi, por muito tempo, o único que sabia ler e
idade; ela gosta muito de se arrumar, é vaidosa. Eles formam um casal divertido.
Maria Borges – No passado, foi uma parteira muito requisitada e fala com
muito orgulho da atividade que fazia e que, se precisar, ainda faz. Ela fala com
firmeza, e, seus gestos e falas são delicados. É viúva, relata com muito orgulho o
casamento feliz e se declara uma mulher vitoriosa e sem medo da morte. Ela se
de saúde, demonstrando certo desânimo para a entrevista. A sua voz soa meio
imagens temporais, para a câmera. Ele mora com suas duas irmãs: Lice e Lica.
Lice – É formada em Letras e Direito, mas não atua em nenhuma das duas
profissões. Sua fala não tem o sotaque da maioria dos habitantes daquela
48
comunidade. É uma cuidadora da família (dos irmãos mais velhos), borda e pinta
outro lugar. Suas respostas são sempre vagas, seu silêncio parece transportá-la
para outros lugares. Embora não tenha pronunciado uma palavra ao diretor, seus
análise.
Tia Dôra – Senhora com aparência delicada e muitas rugas no rosto. Com
voz firme, relata o sofrimento que passou para criar os filhos, sozinha, trabalhando
na roça. Ficou viúva muito cedo e nunca mais quis se casar. A sua fala denota que
demonstram as marcas do tempo. Mora com os dois filhos solteiros, que cuidam
dela.
sertão nordestino, por isso, talvez, seja um dos cidadãos de melhor condição
diferentes.
Neném Grande – Noventa anos. Sempre fez todo o serviço da roça até
mais de oitenta anos e se compara a um homem, por causa disso. Nunca casou
49
Zé de Souza – É um personagem surdo e com muita dificuldade de
comunicação por esse motivo. A entrevista ocorre por meio da linguagem escrita,
feita por Rosa. Este personagem também morre antes do retorno de Coutinho
processo de fabulação.
over6:
6
Segundo Ramos (2008), “definimos “voz over” como a voz sem corpo ou identidade que assere
fora-de-campo. O termo “locução” cobre de modo satisfatório o campo semântico da expressão
“voz over”” (p. 115). “A voz over ou a voz de Deus é uma voz que possui saber sobre o mundo,
enunciada, em geral, por meio de tonalidades grandiloqüentes” (p. 23).
50
Araçás é o campo de relato que mantém relações com o espaço da
Figura 1- 3
Figura 1- 4
51
Figura 1- 5
Este é o desenho do mapa relacional de Rosa (figuras 1.3 a 1.5): ela traça
os limites do sítio e os pontos que ligam as casas de cada morador com uma
bem a região e Coutinho trata-a, como mais um membro da equipe, além de seu
guia.
teve um papel muito importante. Na gravação, Vera assume que foi a “porta de
entrada” para o filme. No entanto, ela não tinha a relação de intimidade com os
52
relação de maior proximidade que Coutinho estabeleceu com Rosa. A memória se
imagino que Rosa possa ser comparada com o “ouvinte atento”, de “O narrador”,
de Benjamim, pela sua posição respeitosa e por ser respeitada diante dos
No filme, quando vejo Rosa chegando com a equipe nas casas dos
caminho, logo imagino o desenho do lugar feito por Rosa na folha de papel. É
pau... Cada imagem de itinerário vai revelando as linhas traçadas por Rosa no
Segundo Oliveira Filho (2008), esses tipos de mapas, comum até o século
seria possível ler no mapa a interação dos personagens, suas falas e suas
bendengo”, que quase não se vê mais (figuras 1.6 a 1.13). Mas poderia ser a cena
caminho rodeado de árvores entre uma casa e outra, do preparo das refeições na
Figura 1- 6
Figura 1- 7
55
Figura 1- 8
Figura 1- 9
56
Figura 1- 10
Figura 1- 11
Figura 1- 12
filme. É o momento em que o cenário fica sem nenhuma tensão. Mas não é
que aparenta não acontecer nada, do ponto de vista das falas, mas pode ser
filme (o anódino).
mas inverte a relação entre movimento e tempo. O tempo não resulta mais da
muda o sentido. As imagens adquirem novas relações com seus elementos óticos
e sonoros e o seu sentido não depende mais das sucessões cronológicas dos
movimento, o sentido.
falas.
7
Refere-se ao desenvolvimento técnico que se junta ao pensamento científico e proporciona o
avanço dos instrumentos e máquinas em geral utilizados na sociedade capitalista.
58
base é a experiência, vai perdendo os laços com a tradição, provocando, assim,
transformadas pelo cineasta em imagens, que resultam no filme, que pode ou não
imaginação muito mais criativa do que uma memória retrospectiva. À medida que
parece que o passado vai sendo recomposto através da história que cada um vai
mulheres velhos têm a palavra. O filme faz uma valorização da tradição oral. É um
concreto do cotidiano dos contadores, nos seus espaços e objetos, nos seus
real pela câmera, na produção do filme. Estas escolhas são os recursos fílmicos
59
utilizados pelo diretor para construir novas temporalidades e experiências
destaque.
chegada e apresentações.
com os mesmos.
60
Os personagens do filme podem ser descritos como aqueles tipos
marcantes que Coutinho busca que saibam contar bem sua história de vida
lapidar estes estilos, no processo de edição, pois eles são o núcleo central do
história e a experiência de vida e, em cada uma das falas, fica sinalizado a parte
final de um contínuo, a vida em seu tempo. Quando tudo parece começar, quando
da vida. Nessa fase da vida, o ser humano parece estar pronto, ele acredita que é
move as pessoas para a vida, o viver para conseguir comida, o viver para matar a
sede, o viver para fazer os filhos viverem, o viver para não ficar sozinho –, então, é
presente? O passado parece ser muito mais real e estável, mais resistente do que
interior do tempo. Para Tarkovski, quando uma pessoa volta ao passado, ela faz o
62
tempo retroceder por sua consciência. Diante de algum efeito, remontamos
uma parceira. Cada personagem tem uma opinião singular; sobre o grande amor
de sua vida ou o que não deu certo; sobre o amor perdido no meio do caminho;
A fala de D. Maria Borges pode revelar a ideia do amor que deu certo.
O que deu certo ou o que deu errado, não importa! Esse argumento é
escolheram viver sozinhos (que não casaram e não tiveram filhos), caso de
com sua história. É o conhecer sobre a vida que já foi experimentada. Por
parteira:
63
Maria Borges: - Começou assim... Uma vez uma mulher adoeceu.
Aí vieram me chamar. Eu não tinha nem essa atenção. Aí...
Vieram me chamar. Aí eu fui. Quando cheguei lá... a criança
nasceu, né? Aí ajeitei. Eu já tinha visto com eu mesmo.
Coutinho: - A Senhora ganhava bem para fazer o parto ou não?
Maria Borges: - Era o que eles pudessem me dar.
- Eu não tinha preço marcado, não. Tinha uns... Tinha uns que
pagavam bem mesmo... recompensava bem. E os outros eram
pobrezinhos... Não tinham nem com que enrolar a criança. O que
eu ia fazer? Quem sabe?... Deus é quem me dava. Pronto!...
Dispensava. Deus é quem me dava! Porque teve muitos... Muitos
mesmos. Muitos que não tinham nem... As mulheres não tinham
nem um paninho pra enrolar as crianças. Nenhuma roupinha. Nem
nada. Eram pobrezinhas. Se chegar um aqui e dissesse assim...
Olha é já já! Olha se eu não vou! Vou!
Coutinho: - Vai lá?
Maria Borges: - Ou! Jesus me ajuda... Deus me ajuda, eu vou!
Chego lá! O ano passado eu já fui. O ano passado vieram aqui...
Uma mulher tava de saída pra ir pra rua. Aí... Não dava mais
tempo em ganhar um neném na rua. Vieram me chamar. Cheguei
lá... foi ligerim. Pronto! Mas estou satisfeita! Que venci a batalha!
Hoje estou bem!
sociedade brasileira que ainda está por desvelar. São conhecimentos que podem
marcas do tempo em seus corpos, uma presença que faz o espectador contemplar
personagens.
64
O saber do homem comum sobre a natureza é produzido no
cotidiano, nas artes da vida em contato com os elementos
naturais, respirando, amando, refletindo... ...um saber ancestral,
tecido nos fios da memória transmitida de geração a geração, que
se perpetua na cultura dos homens pobres do sertão (NEVES
Apud MARTINS, 2006, p. 13).
O que mais poderá aparecer, que seja tão diferente, para alguém que já
viveu a esta altura da vida? Pois já se experimentou tantas coisas. Talvez nada
não ter se esgotado. Talvez essa impressão tão segura dos personagens seja
dada pela experiência de participar do filme, o que pode representar para esses
emergem do anonimato, ainda que eles, talvez, nunca tenham consciência disso.
65
Não que o corpo pense, mas, obstinado, teimoso, ele força a
pensar, e força a pensar aquilo que se furta ao pensamento, a
vida. A vida não será mais forçada a comparecer diante das
categorias do pensamento, o pensamento é que será lançado nas
categorias da vida. As categorias da vida são, precisamente, as
atitudes do corpo, suas posturas (DELEUZE, 2007, p. 227).
Uma das questões que me instiga nesse filme é a intensidade dada aos
impedir que o corpo se mova, elimina o fundo para dar presença. Uma imagem do
paredes desgastadas pelo tempo, vemos um corpo que é a ideia. O corpo tem
começo e fim expressivo, ele encerra em si uma ideia. Não se fala da ideia na
imagem, se fala com ela. Filma-se o corpo, mas o personagem não está ali. O
66
personagem é um elemento a ser lido, entendido. Mais rico será o personagem, se
o corpo que ali se apresenta ativar mais sentidos. A imagem do corpo se atualiza.
Figura 1- 13
enfrente, se Dora” (JORGE GUILLÉN Apud NUNES, 1988, p. 9). Esses homens e
mulheres velhos, com seus corpos insurretos das dificuldades que passaram pela
67
Figura 1- 14
vivido, mas que a câmera traduz de uma forma que pode, para mim, apresentar
beleza e encanto.
O seu corpo fala por meio das marcas, que são as provas do mundo vivido
por estas pessoas que já existem desde há três quartos de um século. Apesar da
idade, a luta pela vida continua. Quem será por eles? Parece que nada disso
importa mais. Até parece que o tempo não lhes dá mais possibilidade de fazerem
68
aqueles corpos frágeis, de “cabeças duras”, no sentido de carregar conhecimentos
A certeza do fim, não tão longe, para os homens e mulheres velhos é o que
sociedade, são o que já não é mais, a quem a sociedade já não reserva mais
aparência” (KIFFER, 2006, p. 213). Nesse caso, o cinema, por meio da câmera
esteve aí. O ser humano e tudo que está ao seu redor é que passa pelo tempo. A
tela preta sugere suspensão, momento no qual o expectador pode entrar com
suas leituras. As imagens (figuras 1.16 a 1.22) que encerram esse capítulo
69
representam esse tempo que continua esse todo aberto a que se refere Deleuze.
perde sua razão de ser. Ele não volta porque ele não foi. A existência (humana)
Figura 1- 15
70
Figura 1- 16
Figura 1- 17
Figura 1- 18
71
Figura 1- 19
Figura 1- 20
Figura 1- 21
72
2- A ESTÉTICA DO CINEASTA EDUARDO COUTINHO: UM NOVO
COMEÇO NO FIM
Figura 2- 1
documentário de entrevistas. Seu cinema é marcado por uma coesão, já que traz,
nesse filme, já foram abordados em outros estudos8, mas aqui faço uma releitura
8
BERNARDET, Cineastas e imagens do povo, 2008; ESCOREL, Objetivo subjetivo, Revista
CINEMAIS Especial, 2003; FERRAZ, Eduardo Coutinho, “O fim e o princípio na terra do fim do
mundo”, REVISTA RAIZ, 2011; LINS, O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e
vídeo, 2004; MOCARZEL, A palavra no documentário, Revista CINEMAIS Especial, 2003;
73
breve, por causa de suas relações intrínsecas com o foco de análise em questão:
o tempo.
singular apresenta suas fragilidades, então ele será objeto de seu filme. Valorizar
de vida é que o ajuda a produzir, porque já não acredita nas grandes palavras ou
paradigmas epistemológicos. Ele não quer ensinar ninguém com os seus filmes.
Afirma o autor que ele não é indiferente aos problemas que acontece no mundo,
mas que a sua questão é mais ética do que política, pois o seu objetivo é
MOURÃO, Ética e documentário, In: FURTADO (Org.), Imagem contemporânea: cinema, tv,
documentário, fotografia, videoarte, games, 2009 e outros.
74
conhecer as razões das pessoas, as suas próprias razões não interessam.
Eduardo Coutinho não tem a intenção de resolver a sociedade nos seus filmes,
e deslocamentos.
lealdade com as pessoas que ele filma, com quem ele conversa, e isso impede
que o filme cause prejuízo a essas pessoas, mas sem garantias de vantagens ou
que essas pessoas mudem suas vidas por causa do filme (COUTINHO,1998,
apud BRAGANÇA, 2008). Esse engajamento tem como objetivo tentar conhecer
75
A ética coutiniana se aprende na relação do diretor com o personagem,
imagem do país. Ele não quer tirar verdades da sociedade como um todo e impor
essa verdade aos sujeitos do filme (personagens). Se num filme há síntese (uma
parte do todo) de nação, ela não traz consigo um sentido totalizante de nação.
pequenos fatos do cotidiano dialogam com a história oficial, com a história do país.
história. Ele mostra e aguça, através dos marcos que vêm da vida privada, a
sempre nos damos conta. É no contato com o mundo, com o outro, que as ideias
76
vão tomando forma. Esses pensamentos confusos e sem lógica, que ainda não
Coutinho. Seus filmes não passam uma ideia generalizante, muito menos
filmar pessoas e a aplicação do seu princípio da “locação única9” faz com que
cotidiano”.
entrevistado conta sua experiência, emite uma mensagem que pode ser parte do
seu imaginário, como também pode ser uma verdade. Essas narrações
fabulações.
9
A delimitação de um espaço de filmagem: uma determinada comunidade rural do nordeste, uma
determinada favela, um determinado morro carioca, um único edifício em Copacabana (o mundo
cabe numa esquina, só é preciso escutar bem) (LINS, 2007).
77
O cineasta, quando se comunica com seus personagens, usa uma
linguagem coloquial, mas não finge que é um igual, em termos sociais, porque
(2004), é a forma como este se coloca, desejoso de ouvir o outro. É uma presença
10
FIGUEIRÔA, Alexandre, BEZERRA, Claudio e FECHINE, Yvana. O documentário como
encontro: entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho. REVISTA GALAXIA. São Paulo, 2003, p.
213.
78
O contato do entrevistador com o entrevistado se dá sempre, e pela
primeira vez, na frente da câmera. Em outros filmes, é a equipe que faz esse
primeiro contato. No caso do filme “O fim e o princípio”, o contato foi feito por
Rosa. Só no momento da filmagem que se sabe o que será dito pelo entrevistado.
É aí que ocorre a tensão do filme: uma pessoa demonstra que não vai render uma
situações de não-entrevista11.
2003, p. 72).
11
Processo que não é comum no cinema de documentário e presente na televisão, embora
Coutinho considere mal utilizado pelas produções televisas (BRAGANÇA, 2008, p. 68).
12
SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho. 2009. Tese
(Doutorado em Educação) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2009.
79
personagens não está acoplada a um antes e um depois, nem a uma interação
alguém sobre sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que
não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social. O que se quer
Eduardo Coutinho usa a entrevista como estilo e não como uma falsa
justificativa de dar a palavra ao outro. Ele faz o diferencial. Ele só entra em contato
contato com a pessoa antes, mas ele não). Então o trabalho de entrevista é mais
complexas que são mostradas. O que mais interessa para o autor é o diálogo, que
abre uma possibilidade de igualdade, temporária e utópica, mas que pode existir”
sua obra de arte atenua uma sensibilidade de existências. O seu olhar de empatia
interessa a figura pública para a qual todas as câmeras estão voltadas. O filme
a obra.
81
O documentário é um espaço de resistência contra uma visão
massificada e demagógica do povo brasileiro. E a palavra, ou
melhor, o discurso do “outro”, por mais que direcionado por um
entrevistador, é uma das poucas possibilidades de deixar que ele
se reinvente, ficcionalmente, por meio do próprio imaginário, como
já disse. E o cinema de Eduardo Coutinho é o ápice desse
comovente exercício de alteridade (MORCAZEL, 2003, p. 74).
Na maioria das vezes, a nossa percepção está presa pelas nossas próprias
vontades e somos impedidos de ver as coisas como elas são. Coutinho descobre
aprender junto com ele (no filme). O conjunto de sua obra cinematográfica é
marcado pela percepção do ser humano como sujeito de seu próprio destino.
porque o local escolhido para o filme “O fim e o princípio” tem menos penetração
expressão oral dos que vivem no sertão do Brasil é muito mais rica em termos de
vigor e a força de uma fala. Por isso, no seu cinema predomina a valoração da
oralidade.
momentos de acaso na produção dos seus filmes. Segundo Lins (2004, p. 12),
13
Referência ao filme “O fio da memória”, de Eduardo Coutinho. Brasil, 1991.
83
a alegorização do tempo vivido, da experiência daqueles homens e mulheres
cinematográfico.
Para Coutinho, há uma razão antropológica nos seus filmes, pois, ele trata
e como traduzi-lo), mas não é um deles. ”Eu não preciso traduzir o oral para o
“Filmo o que existe”. Mas não quer dizer que a realidade fala por
si, ou que ele não interfere no que filma. É uma prática que recusa
a acrescentar verdades, ideias, informações ou elementos
estéticos a cenas que já se bastam, que não precisa de mais nada
(LINS, 2004, p. 94).
microcosmo, acontece porque todos esses elementos são partes do mesmo todo.
seu lugar como cineasta e produtor do filme. Esta instabilidade pode representar o
seu poder manipulatório nas entrevistas e a articulação das imagens como forma
sujeito que filma impor um silêncio mais profundo que o anterior, quando quem
não tinha espaço para falar, agora tem sua própria fala apropriada e deslocada.
85
ambiguidades e os sentidos múltiplos na montagem. Por isso, as contradições não
justamente essa diversidade que “abre” os personagens uns aos outros, sem que
uma verdade final sobre eles seja estabelecida” (LINS, 2004, p. 47).
verdade. Para qualquer história existe muitas versões diferentes e ele tem a sua
cronologia da filmagem. Mas declara que, ao contar uma narrativa, o seu lado
86
privilegiar a ficção. Eu tento manter uma certa lógica de progressão do
sentido, há cenas que mais lembram cenas de um teatro, pois tudo o que
acontece é contínuo.
que o cinema seja manipulação. Para Coutinho, as histórias, no real, são tão ricas
87
que a ficção não dá conta de superá-las. Por isso, ele valoriza muito as lacunas
nos relatos de suas entrevistas. O seu interesse é fazer filmes sobre aquilo que
ele tenha paixão. Interessa-lhe explorar a relação entre os dois lados da câmera e
próprio do cinema, como, também, a análise ou crítica do filme como uma obra de
arte.
percebo no filme “O fim e o princípio” é o modo como ele imprime o tempo nas
imagens e nas falas dos personagens. Em torno dessa tessitura estética dada no
de Coutinho, por causa da prática atenta ao material oferecido pelo universo a ser
89
Coutinho filma em vídeo, pois, assim, tem condições de contar história de
Isso evita, também, ter que conversar com os personagens com antecedência ou
90
desenvolve sua fascinante personalidade diante da câmera. Explora uma espécie
corpo do sujeito no mundo é uma expressão de afeto pela face e pelos gestos.
Paraíba, com a filmagem de “Cabra marcado para morrer”. Coutinho era muito
jovem, na primeira parte desse filme, em 1964. Depois de vinte anos, sua carreira
quando Coutinho já está velho (72 anos), eis que ele se propõe a voltar ao início.
91
O filme “O Fim e o princípio” é um processo de rememoração do estilo
tempo.
busca pelo original e verdadeiro (ou pelas verdades de cada um). A busca intensa
pelo outro chegou ao fim. Nos últimos anos viveu intensamente essa busca, no
sentido de um novo recomeço pelos caminhos da memória, que não é real, mas
Eduardo de Oliveira Coutinho não está mais entre nós, faleceu aos oitenta
anos, em 02 de fevereiro de 2014, no Rio de Janeiro. Muitos dizem que sua obra
tudo aquilo que não tem começo e nem fim”. Nesse sentido, eu digo sobre o
92
Figura 2- 2
93
3- IMAGENS COMO COMPOSIÇÃO ALEGÓRICA DO TEMPO
significado dado no filme e como esse significado pode me levar à ideia de tempo.
tempo vivido.
procuro mostrar as variadas possibilidades que o cinema pode fazer com o tempo
14
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images.
Paris: Minuit, 2000, p. 10.
95
A análise alegórica é a metodologia que escolhi como viável para captar o
sentido que o filme tem para quem o analisa. Além de que a própria alegoria
37).
filme para o diretor, abolindo, ao mesmo tempo, o seu sentido primeiro e literal. A
linguagem, diz mais do que palavras; ela busca descobrir o sentido escondido sob
educação dos sentidos pela articulação do autor, mas por um olhar singular sobre
o filme que, pelos detalhes, guarda aproximações com o alegorista barroco 15 (que
15
Na leitura de Benjamin (Origem do drama barroco alemão), as experiências de perdas sentidas,
especialmente, em relação às crises religiosas da Reforma e da Contra Reforma, levam o homem
96
busca provar que a estética barroca é um desdobramento inevitável do
do século XVII a uma profunda melancolia. Esta crise desarticulou as bases sobre as quais se
assentava a própria vida cotidiana. O drama barroco alemão foi um novo modo de perceber o
mundo cheio de sofrimento, de história de ruínas e catástrofes. O olhar barroco permite entender
um mundo em fragmento e sem sentido. Esse é o mesmo olhar que pode ser lançado sobre o
mundo moderno para entendê-lo. Segundo Benjamin, o historiador materialista desempenharia
esse papel de lançar um olhar para o passado para resgatar os fragmentos esquecidos pela
historiografia tradicional e, assumir a história dos vencidos, uma narrativa descontínua,
fragmentada e fadada ao esquecimento. Esta reflexão resulta numa crítica a uma concepção do
tempo vazio e homogêneo (BENJAMIN, 1984).
97
mais belas obras envelhecem e se tornam alheias ao olhar humano. A alegoria
sabemos se existiu, algum dia, inteiro; o esboço apagado e mutável desse palácio
utilizada para significar alguma coisa que não está claramente explícita na mesma,
afirma que,
elemento constitutivo das obras de artes, quando ele valoriza a arte como forma
será alcançado, até porque não é esse o interesse do próprio diretor do filme. A
dirige aos olhos de quem observa, ela pode estar expressa nas artes em geral:
99
vida das coisas transitórias que passam no tempo. Ele abre pensamentos sobre o
mundo de memórias outras. O filme tem elementos alegóricos que anulam a falsa
tempo.
idéia nas imagens, nas cenas, nas falas. São vários os aspectos que indicam esta
personagens que tem uma dimensão temporal, as imagens da tecelã que remete
100
segundo os conhecidos blocos de influencia que parecem compor
a bagagem deleuziana (PELBART, 1998, p. XXIII).
Eduardo Coutinho.
Tanto Deleuze (2007) quanto Tarkovski (2010), com a sua obra “Esculpir o
cinematográfica.
enquanto arte se passa pela ideia de que ele é o tempo, registrado em suas
101
formas e manifestações reais. O tempo, uma vez registrado, pode ser conservado
pode ser feita o quanto desejasse repeti-lo e retornar a ele. Para Tarkovski (2010),
do trabalho de um diretor.
apresenta como imagens que aparecem para mim de forma contrária à tradicional
cinema estarem no presente pode ser uma afirmativa falsa, considerando que não
existe presente que não seja influenciado por um passado e por um futuro. O
102
cinema realiza a apreensão do passado e do futuro, que coexistem com a imagem
planos. Tudo o que muda está no tempo, mas o próprio tempo não muda.
narradores, o que, por sua vez, não depende do trabalho criativo do diretor. O
tempo presente está nas suas histórias, considerando a perspectiva de que não
há presente que não seja influenciado por um passado e por um futuro. Então,
16
Travellings ópticos - Um recente progresso técnico veio oferecer aos diretores um meio de
expressão ao mesmo tempo prático e vigoroso: trata-se das objetivas com focal variável (zoom,
pancinor), que permitem fazer os chamados travellings ópticos. Esses travellings são puramente
virtuais, não havendo deslocamento da câmera, é lógico estudá-los do ponto de vista da
profundidade de campo. [...] dá liberdade infinita ao realizador possibilitando efeitos sensacionais,
absolutamente irrealizáveis de outro modo. [...] o diretor não está mais pregado ao solo nem
restrito às possibilidades de uma grua, podendo agora buscar quase instantaneamente num plano
geral aquele detalhe que deseja mostrar em primeiro plano na tela (MARTIN, 2011, p. 194-195).
103
O repertório pessoal e coletivo (mitológico e histórico) daqueles homens e
relatos, em geral, são uma mistura de memória e imaginação. Mas a questão que
cinema clássico.
17
A obra de arte apresenta uma parte da história daqueles que são comumente esquecidos pela
historiografia tradicional.
104
Figura 3- 1
105
Figura 3- 2
homem velho) e juventude (a criança, o novo). Todos estes elementos são tecidos
do tempo, todos são interiores ao tempo, inclusive o ser humano, e não é o tempo
106
Para Deleuze (2007), - seguindo o raciocínio bergsoniano18, em que o
não para de mudar de natureza a cada instante -, esse todo chamado tempo não é
objetos e seres que aparecem nas imagens anteriores duram, enquanto são
tecidos no tempo.
Para Deleuze (2007), o ser humano tem uma ação diante de tipos de
imagens que é um reflexo automático, mas tem outros tipos de imagens que ele
intervalo entre a ação e a reação que ocorre a criação do novo. Esse processo
que acontece entre o receber e o agir se dá pela memória, pois é dela que
necessita-se para apreender o tempo que forma-o ou que tece-o. Para ele,
tempo) têm o poder de virtualizar constituindo o real, mas com uma dimensão
18
DELEUZE (1999).
19
DELEUZE (2007).
107
livre. Nesse sentido, a relação entre a imagem virtual20 e a imagem atual21 é que
produz significações que vão além do que está visível. A imagem-tempo (ou
que quiser.
A ficção é uma dimensão do mundo, pois mistura uma temporalidade vivida com o
passam a depender do tempo, a ação flutua no meio da situação, e não tem com
explora o passado.
20
A imagem virtual se remete ao passado, ao mundo imaginário, onírico e subjetivo.
21
A imagem atual se refere ao presente real e objetivo.
22
Deleuze denomina lençóis do passado, a instância por onde se busca os signos na memória
para constituir o presente. Essa instância funda a imagem-tempo.
108
Figura 3- 3
comporta a força do tempo. O tempo flui na imagem de uma forma que mostra a
109
Figura 3- 4
Esta imagem de Lica é um exemplo (figuras 3.3, 3.4 e 3.5) do que Deleuze
chama de opsigno. Esta imagem constrói uma situação ótica pura. O opsigno é
110
ou insuportáveis e vão além da capacidade de influência do observador (no caso,
afirma para Rosa que está “sem pontuação para a conversa”, e Zequinha Amador,
que demonstra estar muito fraco e diz que está adoentado e sem condições de
conversar, “... tem que ser uma conversa polida, né?...”, mas acaba cedendo num
outro momento, após Coutinho conversar com a sua irmã Lice. Nesses casos, há
observadora.
sentido de um signo. Então, estas imagens são como signos que trazem a estes
novos sentidos.
reconstituem enquanto signos que operam. Não representam apenas o real, mas
e sonsignos.
Figura 3- 5
112
Essa imagem cinematográfica é reflexão, a própria imagem é pensamento,
uma imagem que toma por objeto o pensamento e não relações simbólicas ou
ao cotidiano pelo cineasta. São as imagens ópticas e sonoras puras que daí extrai.
de Rosa; das cenas das árvores ou do ambiente externo das casas quando a
113
Figura 3- 6
Figura 3- 7
Figura 3- 8
114
Figura 3- 9
Figura 3- 10
115
Figura 3- 11
Figura 3- 12
Figura 3- 13
116
Figura 3- 14
Figura 3- 15
mais serem vistos sob o ponto de vista de uma ausência de tempo. [...] “Não seria
melhor aceitar, de uma vez por todas, a condição simples e essencial do cinema
117
como uma representação sucessiva de elementos visuais, e trabalhar a partir
Figura 3- 16
do ser humano23.
23
Os elementos de cada plano são postos em interação através de uma linha imaginaria em
diagonal. Quando as técnicas de filmagem plongées e contra-plongées formam contrações e os
travellings oblíquos laterais formam lençóis, o espaço e o tempo são delatados e comprimidos
118
O interesse particular do procedimento é, portanto, evidente: mas
seu interesse estético não é menor. Ao longo de um travelling
óptico (suponhamos um travelling para frente), o expectador não
tem a impressão (ao contrário do que se passa num travelling
comum) de percorrer com a câmera um espaço sólido e
indeformável; ele tem a impressão de que o espaço se comprime
(por achatamento dos planos uns contra os outros), tornando-se
com isso mais denso: de fato, a variação da focal modifica a
posição relativa dos planos do espaço entre si. A focal variável
acumula, assim, as vantagens estéticas da focal curta (grande
profundidade, possibilitando primeiríssimos planos num campo
totalmente nítido) e as da focal longa (achatamento dos planos
distantes, dando à imagem uma intensidade gramática e plástica
absolutamente inigualável). Além disso, por sua capacidade de
agir rápida e abruptamente, o travelling óptico tem um considerável
valor de impacto psicológico (MARTIN, 2011, p. 195).
imagem que faz a exploração das zonas virtuais do passado. É uma figura de
profundidade de campo.
importância, pois implica uma concepção de direção e até mesmo uma concepção
de cinema”,
120
rara intensidade estética e humana. Se houvesse necessidade de
justificar o prestígio da profundidade de campo, bastaria dizer que
ela corresponde à vocação dinâmica e exploradora do olhar
humano, que fixa e esquadrinha uma direção precisa (em virtude
da estreiteza de seu campo de nitidez) e em distancias muito
variadas (em virtude de seu poder de acomodação). No teatro, o
olhar percorre a cena para buscar seu centro de interesse: a
câmera, ao contrario, lança fachos de luz na profundidade do
mundo e das coisas (MARTIN, 2011, p. 186).
pelo fato de que a cena é vista, de certo modo, por seus olhos.
baseada, não nas mudanças de planos habituais, mas uma variação da distância
121
cineastas utilizam ao máximo a profundidade de campo e, sem coagir, tornam a
das pessoas contando histórias. As tomadas dos seus rostos pela câmera
122
A impressão é de que a mão de Lica irá encostar-se à lente da câmera e
não se encontra no mesmo plano que o seu rosto. O rosto de Nênem Grande não
parece estar no mesmo plano que a rede. Assim como a mão de Antônia, mesmo
estando desfocada, parece estar em plano diferente do seu rosto. É nesse sentido
visível.
memória são acionados por estas imagens e, numa articulação com a montagem,
Figura 3- 18
123
Figura 3- 19
Figura 3- 20
Figura 3- 21
124
Figura 3- 22
Figura 3- 23
Figura 3- 24
125
Figura 3- 25
Figura 3- 26
Figura 3- 27
126
Figura 3- 28
Figura 3- 29
tempos verbais: Ela tece, elas tecem. Ela tecia, elas teciam. Ela teceu, elas
teceram. Ela tecera, elas teceram. Ela tecerá, elas tecerão. Ela teceria, elas
teceriam. Que ela teça, que elas teçam. Se ela tecesse, se elas tecessem.
Quando ela tecer, quando elas tecerem. Se ela tem tecido, Se elas têm tecido.
Quando ela tinha tecido, quando elas tinham tecido. Ela terá tecido, elas terão
tecido. Ela teria tecido, elas teriam tecido. Ela tenha tecido, elas tenham tecido. Se
ela tivesse tecido, se elas tivessem tecido. Quando ela tiver tecido, quando elas
tiverem tecido. Ela ter tecido, elas terem tecido. Que ela teça, que elas teçam.
o ato de fabricar tecido, entrelaçando fios, linhas, palha, vime etc. É fabricar algo
Portanto, um tempo feminino, que é lento, relacionado com narrativas míticas que
moiras.
tudo o que faziam e que queriam fazer. Tecendo elas traziam a sua solidão e
estações, dia e noite, quente e frio, horas, dias e anos) eram os elementos que
distensão cada vez mais raro, segundo Benjamin (2012), o tédio que é o ponto
129
apresenta a figura do narrador de Benjamin. O narrador passava sua experiência
histórias vividas, troca experiência com o seu ouvinte. “Se a arte de narrar rareou,
Benjamin.
ontem, que veio de outrora, mas que está presente na contemporaneidade. Mulher
embora não se tenha nenhum ruído neste momento da filmagem. Essas imagens
É a imagem de uma anciã sábia que compartilha sua sabedoria, sua lição
a linha do tempo das gerações. Em seu corpo, em suas mãos, vê-se a lembrança
através das marcas de muitas vivências, que podem ser de dor ou de prazer.
130
A imagem de Zefinha, assim como das outras mulheres personagens do
missão da vida (de existir), é uma imagem de mulher que fecha um círculo, que
tece uma teia, que também é um fio que entrelaça a vida em círculo. É uma
imagem que pode apresentar ser o fio condutor ou o elo que mantém a família
unida e fortificada.
mitologia grega (As Moiras). Em muitas histórias mitológicas, o ato de tecer está
mesmo tempo, estimular o fio da vida a iniciar sua trajetória. O símbolo da Moira
131
As Moiras são identificadas com a ideia de vida e de morte, simbolizando o
destino humano, segundo suas funções: a fiandeira que segura o fuso e vai
puxando o fio da vida (Cloto), a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de quem
vai morrer (Láquesis) e a que corta o fio da vida (Átropos). Elas fiavam o destino
tecelã feita pelo cineasta nesse filme. O filme pode remeter ao imaginário do
edição do filme.
destino de seus filhos, pelas suas existências, incluindo o seu nascimento, a sua
A prática de tecer vivencia o fazer dos tecidos, dos pontos e nós que
numa certa altura da vida, percebem e expressam como cada nó foi forjado e,
também, como esses nós formaram outros nós e outros tecidos e outras redes.
O corpo, a mão unida ao fuso, o ato de fiar e o fio das imagens de Zefinha
longa duração de sua existência) e de tudo que vem depois. Eles representam
com seus polaques dependurados no pescoço sendo conduzidos pelos seus sons
modernidade capitalista”
vida daquela comunidade rural. Esse filme apresenta uma resistência aos
Walter Benjamim, queira falar através desse filme, dos restos, dos esquecidos,
arcaico, do velho.
134
Figura 3- 30
Figura 3- 31
135
Figura 3- 32
Figura 3- 33
136
Figura 3- 34
Figura 3- 35
Figura 3- 36
137
Figura 3- 37
Figura 3- 38
Figura 3- 39
138
Figura 3- 40
Figura 3- 41
139
aspecto sujo dos objetos, na parede das casas e das cercas, no tom amarelado e
fim e o princípio” pode apresentar uma expressão pura da estética do tempo, onde
tempo por vivência pessoal, por símbolos e imagens que expressam sinais de
uma idade avançada. Onde corrosão, desgaste natural da matéria são sinais ou
tenha levado o diretor a dar o título que deu ao filme, ou quem sabe, deixou em
aberto a possibilidade dos seus espectadores imaginarem outro título. Quem sabe
do século XX. O filme faz, no sentido inverso, pois, suas memórias são de tempos
personagem.
mulheres”.
Nesse soneto, Zequinha faz uma ode às mulheres. E o que perpassa cada
das mulheres no tempo, ele também expressa a sua passagem pelo tempo, e
chega ao tempo da sua única certeza de futuro: o dia da sua morte e o corpo
141
4- FABULAÇÕES, MEMÓRIA E TEMPO
Neste capítulo, faço uma reflexão sobre outro elemento alegórico que
a memória nesse mesmo filme, então não faz sentido eu ater-me a esta questão
através de três inserções diferentes: pela fabulação, pelas histórias contadas com
relação com a duração, o tempo) e pela presença de alguns objetos nas cenas
que chamam a atenção pelo seu significado cultural que insere a dimensão
24
1- BEZERRA, Claudio Roberto de Araújo. Documentário e performance: modos de a
personagem marcar presença no cinema de Eduardo Coutinho. Campinas, SP, 2009. Tese de
Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Multimeios (IA). Campinas, SP, 2009; 2-
COSTA, Bianca Elisa da. Dispositivos interacionais: um estudo sobre os documentários de
Eduardo Coutinho. São Leopoldo, RS, 2012. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do
Rio dos Sinos. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. São Leopoldo, RS,
2012; 3- MAGER, Juliana Muylaert. História, memória e testemunho: o método do
documentarista Eduardo Coutinho em Jogo de Cena (2007). Niterói, RJ, 2014. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em História. Niterói, RJ,
2014; 4- OLIVEIRA FILHO, Fernando H. de Meneses. Eduardo Coutinho: jogo de Memória uma
análise do filme o fim e o princípio. Rio de Janeiro: PUC, 2008. Dissertação de Mestrado. PUC
Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Orientadora: Angeluccia
Bernardes Habert. Rio de Janeiro, março de 2008; 5- RODRIGUES, Laécio Ricardo de Aquino. A
primazia da palavra e o refúgio da memória: o cinema de Eduardo Coutinho. Campinas, SP,
2012. Tese de Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Multimeios (IA). Campinas,
SP, 2012; 6- SCARELI, Giovana. Santo Forte: a entrevista no cinema de Eduardo Coutinho.
Campinas, SP, 2009. Tese de Doutorado. Unicamp. Programa de Pós-Graduação em Educação.
Orientadora: Cristina Bruzzo. Campinas, SP, 2009.
143
Os conteúdos dos relatos e as imagens enquadradas guardam ou
sejam moldados pelos significados do passado. Talvez, por isso muitos registros
das culturas orais das comunidades mais primitivas sejam feitas pela narrativa
simples e duradoura.
personagens.
estabeleceu, no seu projeto do filme, que queria ouvir histórias de vida. Nesse
sentido, percebo que revelou sua preocupação em saber como cada entrevistado
fazia o enfrentamento com a questão da finitude da vida. Por isso, entendo porque
está sempre presente na fala do diretor, nas entrevistas, a pergunta sobre o medo
ou não da morte. É assim que o diretor se mostra para mim. Então, imagino uma
144
condução para a questão das recordações e os enquadramentos às imagens-
lembranças.
dos personagens que ocorre o reencontro do elo entre a vida e a ficção. “O olhar
imaginário faz do real algo imaginário, ao mesmo tempo em que, por sua vez, se
torna real e torna a nos dar realidade” (DELEUZE, 2007, p. 18). As narrativas dos
personagens exercem uma função fabuladora que falsifica a memória, não tendo
e ficcional não está posta como sendo o procedimento de filmar de Coutinho, ele
no filme.
145
Eduardo Coutinho é um cineasta que ativa a função fabuladora, quando
importante. Ela facilita ver o encontro entre a arte e a vida (a religação da arte com
narrador um fabulador.
146
4.1- Chico Moisés: representando a representação da vida real – pura
fabulação
ficcionar o tempo todo. A função fabuladora não permite ver o passado, mas tem a
casou-se aos 25 anos e tem cinco filhos. Esteve na escola muito pouco, teve que
desistir para trabalhar na roça. O personagem Chico é o mais novo dos moradores
rugas no rosto passam a impressão de ter vivido muito mais que isso.
entrevistador.
147
Figura 4- 1
Figura 4- 2
Figura 4- 3
148
Figura 4- 4
plateia a atenção que ele pede. No caso, a plateia seria o entrevistador e/ou sua
Durante toda a sua fala, Chico expressa sua capacidade de dar impressão.
Chico Moisés: Ah! Mas será possível que peleja pra me pegar, e
nunca pega, e sempre eu vou continuando sempre... na mesma
linha.
Eduardo Coutinho: Por que será?
Chico Moisés: Eu sei. Porque o sabido é o senhor.
Eduardo Coutinho: Por quê?
Chico Moisés: Porque é.
Eduardo Coutinho: Por quê?
25
Leitura do personagem feita através da reflexão de “A representação do eu na vida cotidiana” de
GOFFMAN (1985).
149
Chico Moisés: Oh! Se eu fosse sabido, eu que andava...
filmando..., e faturando as pessoas. Né? Errei?
Eduardo Coutinho: Não. Mas eu vim procurar o senhor duas
vezes, porque o senhor é sabido também.
Chico Moisés: Eu sei... Acha que eu sou sabido?
Eduardo Coutinho: Acho.
Chico Moisés: Como? Só porque eu tô sendo filmado assim?
Porque...
Eduardo Coutinho: Não. Mesmo sem filmar, se conversasse com
o senhor, eu via que o senhor tinha umas ideias interessantes. O
senhor pensava..., o senhor...
Chico Moisés: Que pena! Né? E o que sei não disse. Só fiz
começar. [PAUSA] O senhor já entendeu tudo!
pretendidas por ele e que, de fato, as coisas são o que aparentam ser. Ele
aparece como um personagem que crê na sua impressão da realidade que tenta
pela sua ação corporal e sua forma de se expressar. Por exemplo, o seu gesto ao
querer mudar de posição diante da câmera, para ser filmado em outro ângulo. É
como se ele agisse dessa forma somente para dar determinada impressão
particular. Isso fica claro no final da entrevista, quando o cineasta admite ter ficado
151
parece que o entrevistador e a equipe (seu público, no caso), passam a imagem
Essa é uma leitura que também pode ser feita. O entrevistador pode estar
152
Chico Moisés: Eu acho que sim. Eu tenho até pena. Você me dá
alguma notícia por aí?
Eduardo Coutinho: O senhor sabe do mundo como a gente. O
que o senhor acha?
Chico Moisés: E quem é o mundo?
Eduardo Coutinho: Não sei.
Chico Moisés: Não somos nós? Não parece, né?
Eduardo Coutinho: O senhor se interessa pelo mundo assim?
Chico Moisés: Olha a sabedoria não vem só pela escrita. Só por
escrever. Isso já vem da mente. É dom! É! Gênio!
Eduardo Coutinho: Isso o que é?
Chico Moisés: É porque o gênio... Gênio é uma coisa interessante
e num tendo o gênio... É o quê? Como é que é? Cadê a forca do
olho? Cadê aquele reloginho pra funcionar? E tudo precisa, é o
gênio.
Eduardo Coutinho: Tudo?
Chico Moisés: Tudo. É que nem a circulação do sangue.
Eduardo Coutinho: Sem gênio,...
Chico Moisés: É. Tem que ter. É porque é que nem... Eu não
queria dizer mais. Porque senão eu vou longe.
Eduardo Coutinho: Vai longe! Vai!
Chico Moisés: Vou! Que eu quero dizer que... A pessoa sabe...
Mas, às vezes, não quer dar uma palavra que sabe de nada. Eu
faço isso. Às vezes perguntam... Não, nunca vi, não! Sei não! Ele
sabe? Sei nada... Um cara abestado. Digo. E lê? Eu digo: sei
nada. Tudo o que sabe não pode se dizer.
Chico deixa transparecer que parte da história que conta é fruto da sua
criada pela representação de Chico. O que não significa que Chico Moisés
quisesse iludir o cineasta por interesse pessoal. Mas ele pode querer enganar pelo
que ele conversa com Coutinho, ele desempenha este papel. É como se ele
153
Ao final da entrevista, o personagem resolve se distanciar da representação
que encenava. Ele se aceita, à medida que o entrevistador declara que gostou
vividas, constroem narrativas que podem ser vistas como o princípio fabulador de
suas próprias histórias. O que conduz a narrativa do filme são os depoimentos dos
produção das sensibilidades, essa temática se relaciona, por sua vez, com a
154
Figura 4- 5
Figura 4- 6
155
Figura 4- 7
Figura 4- 8
156
O ressentimento é o tema de reflexão apontado no processo de
e não esquecidos.
26
Pensando no filme como um "texto", um discurso, é possível pensar o filme como "dialógicos
porque resultam do embate de muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos de
polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o
diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir." (BARROS, 1994, p.6). A "voz" de Coutinho
se sobressai, enquanto filme, porque é ele quem detém todo material e edita, monta, produz da
forma como quer. No entanto, também é forte a "voz" dos personagens, porque não se sobrepõe a
elas uma outra "voz" especializada para explicar o que dizem, desqualificando suas histórias ou
teorias. Neste sentido, é possível pensar em polifonia[7], no trabalho de Eduardo Coutinho
(SCARELI, 2009). Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_963.pdf, Acessado em 26 dez. de
2014.
157
casa. A casa assim... Entrei e saí pro terreiro. Entrei pra cá! Ele
entrou-se, sentou-se.
- Eu vim aqui Dorinha foi preguntar ocê se ocê quer casar cumigo.
- Eu, meu filho? Quero não.
- Por quê? Porque a senhora pensa que se eu casá com a
senhora, eu vou maltratar suas fias? Vou dar em suas fias? Vou
botar as suas fia na roça?
Eu disse: “Não é isso não. Eu não quero casar nem com você e
nem com ninguém. Sobre a casamento, eu amarrei meu cocó. Só
desmanchando no dia do juízo”.
Rosa: Deu trabalho pra criar os filhos depois que ficou viúva?
Tia Dôra: Deu. Fui pra roça. Que nunca eu num tinha pai. A minha
mãe era veinha. Viúva também. Meus irmão era uns casado e os
outros já tinha murrido. Eu num tinha pur quem chamar. Eu num
tinha filho homem, num tinha irmão, num tinha pai, nem marido.
Não me assujeitei a ... a morrer de fome mais minhas fia não!
Graças a Deus não! Fui foi pra roça trabaiá. Levava a mais nova
no “quarto”... uma bacia grande que era deu levá roupa pro rio pra
lavá... cheia com panela, prato, lata de café... Passava um dia todo
na roça... trabaiando. Elas dibaixo do pé de pau, juazeiro. E eu
trabaiando em roda, do pé de pau, a panela no fogo, cozinhando.
Quando era de ora de almoço... de almoçar... ia almoçar... Ia
trabaiá... E elas aí. Quando o juazeiro já tava longe du trabaio, eu
me mudava pro outro pé de pau. E assim fiquei, eu criei elas. Num
foi criada pro causa de ciúmes ou de nada... De dificuldade, que
desanimei. Eu criei elas como eu fui criada.
- Contam a vocês que eu abandonei elas? Graças a Deus não!
desfeita. Mas não se trata de uma raiva expressa em minutos por um indivíduo. A
raiva pode ter efeito prolongado, de longo tempo, mas sua duração não faz parte
27
Apud Konstan, 2004, p. 61.
158
o ressentimento é cultivado e acalentado. Não se descreveria,
penso eu, uma breve explosão de raiva como ressentimento
(kONSTAN, 2004, p. 61).
É certo que o indivíduo não esquece os fatos dos quais foi ator ou vítima.
estratégia de apaziguamento.
Figura 4- 9
159
Figura 4- 10
Figura 4- 11
160
Figura 4- 12
Figura 4- 13
161
Figura 4- 14
Maria Borges, que declara ter sido muito feliz no casamento. Dona Mariquinha,
que diz que o casamento foi horrível ficou viúva e não se casou mais.
162
D. MARIQUINHA: Faz 45 anos que sou viúva.
Eduardo Coutinho: Como é que foi o casamento?
D. MARIQUINHA: O casamento foi muito hurrível!
Eduardo Coutinho: Muito...?
D. MARIQUINHA: O casamento foi horríve. (fala alto e brava)
Eduardo Coutinho: Por quê?
D. MARIQUINHA: - Porque ele era um cachaceiro e judiava com
eu.
Eduardo Coutinho: E durou quanto tempo o casamento?
D. MARIQUINHA: Aí! ... Uns 17 anos.
Eduardo Coutinho: Judiava?
D. MARIQUINHA: Judiava muito. Aí ele bebeu uma cachaça e foi...
Passou navalha e mataram ele!... (pausa longa)
Eduardo Coutinho: E quantos filhos a senhora teve com ele?
D. MARIQUINHA: Hein?
Eduardo Coutinho: Quantos filhos...?
D. MARIQUINHA: Quatorze.
Eduardo Coutinho: Quantos vingaram?
D. MARIQUINHA: Hein?
Eduardo Coutinho: Quantos criaram?
D. MARIQUINHA: Dois. E... E foi felicidade não ter se criado.
Eduardo Coutinho: Por quê?
D. MARIQUINHA: Num foi muito bem... Um que eu tenho que eu
criei tá em Porto Velho, Em Rondônia, Amazônia... Nesse mundo.
Só vejo ele de cinco em cinco anos.
O filme traz imagens de mulheres fortes, que passaram por toda sorte de
alcoólatras, ou criar os filhos sozinha, por ter enviuvado muito cedo. No caso
terem filhos.
163
No caso dos relatos de Tia Dôra, houve um deslocamento da representação
ir do ódio ao desprezo. Isso poderia explicar o desprezo que ela passou a ter pelo
“fardo que o passado faz pesar sobre o futuro”, mas não implica o esquecimento
tornaram viúvas ainda jovens, pode ter sido motivada não apenas pela vontade de
vontade de afirmar sua identidade e por uma reação de orgulho. Uma reação
diversas culturas.
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.
E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os
fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que
nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça
colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.
Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos
longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe
faltava.
Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava
na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que
entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.
28
Peço licença par citá-lo sem a devida adequação à norma da ABNT (NBR 10520).
165
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela
primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia
seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear
no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.
Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando
bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu
de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça
pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi,
durante algum tempo.
Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o
poder do tear, em nada mais pensou, a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
– Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram
dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e
pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para quê ter casa, se podemos ter
palácio? – perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra
com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos
e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo
para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e
entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre. – É para que ninguém saiba do tapete – ele
disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: – Faltam as estrebarias. E não se
esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.
Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o
palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar
sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando
com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre,
sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os
cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.
Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente
se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava
quando o marido estranhando a cama dura acordou, e, espantado, olhou em volta. Não
teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus
pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o
peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do
horizonte.
(Texto extraído de: COLASSANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento.
Rio de Janeiro: Global Editora, 2000).
166
4.3- Dimensão temporal dos objetos como alegoria
significado à narrativa. Elas estão ali presente, certamente, pela importância que o
Talvez coubesse aqui fazer uma reflexão mais profunda sobre a teoria da
“cultura material”, mas como pode desviar o foco da leitura, limitei-me a trabalhar
(1995).
alguns entrevistados, são objetos religiosos que fazem parte do seu cotidiano.
Eles estão ali em suas casas, ao fundo das imagens do entrevistado, às vezes
sala. O cavalo foi e ainda é um meio de condução muito valorizado pela sociedade
que não vive a modernidade. Ele marca uma narrativa pela “distância”, mas
Antônia a espera de Vigário que, segundo ela, não tem hora e nem dia pra chegar.
passagem do dia para a noite, das estações ou passagem para uma vida
próspera. Esse significado está relacionado com a própria vida rememorada por
masculino.
fiando deixa claro a relação do tempo com a temática do “tecer”, como já falamos
no capítulo três. Nesse caso, o objeto central que aparece com mais
é o objeto utilizado pela personagem mais velha do filme. Nas cenas de Zefinha
sentidos para as gerações femininas, às vezes, faz uso da “roca”. Por isso, ela
prole. Elas assumem os filhos e a própria viuvez para cuidar da sua existência. As
continuidade.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
qualquer realidade sofre uma alteração a partir do momento em que uma câmera
se coloca diante dela e que o esforço de filmá-la tal e qual é inteiramente em vão.
É um estilo próprio que surge da interação entre diretor com seu o seu
personagem.
são versões da verdade”. Ele diz que, no real, as histórias podem ser mais ricas
do que a ficção pode inventar. Por isso, o mais importante é explorar a relação
entre os dois lados da câmera e contar histórias. Do relato de uma pessoa, muito
é inventado, mas ela se projeta na representação de um papel que não viveu mas
que foi construído pela sua memória. Nesse caso o real e o imaginário se unem no
processo fabular.
As filmagens são feitas em espaço delimitado, mas o plano geral pode dizer
muito sobre o Brasil. É um cinema que aposta nas possibilidades de narração dos
171
Enquanto a câmera passeia pelas marcas dos rostos, as falas dos homens
cultura acadêmica.
comum. Ele verdadeiramente traduz em imagem algo vivo que se mistura com o
rural nordestino.
Araçás, São João do Rio do Peixe, Paraíba, Brasil). O filme “O fim e o principio” é
o encontro da câmera com a gente velha do sertão nordestino. Nos relatos dos
172
de saberes inúteis à modernidade tecnológica. Mesmo sendo marginalizada,
mulheres velhos) e nos seus relatos. O referido filme desafia quem o assiste a
A partir do momento que assisti a esse filme, notei algo diferente, que me
apreendido por um conceito, mas que faz parte da existência humana, foi
O trabalho não foi fácil, mas instigada pelo desafio que o professor Milton
saber, “Você estaria disposta a desenvolver uma pesquisa que ajude a você
mesma e não aos outros?”, eu disse sim. Ao finalizar esse estudo, estou apenas
recomeçando. Sinto que este estudo é apenas o fim (do Doutorado e tese) e o
Quando iniciei esta análise, percebi que o que me instigava não estava
para desvendar esse enigma pessoal. O próprio título do filme foi a motivação
tarefa, tive que trilhar quatro caminhos teóricos difíceis (em si mesmos e em
linguagem cinematográfica foi a mais difícil, pois não tinha nenhuma formação
174
Procurei identificar a relação estreita entre cinema, tempo e memória,
“virtuais”. As imagens atuais têm naturezas distintas, mas sua dimensão “virtual”
não se opõe ao real, tem realidade própria e latente, tanto na tela do cinema
espaço só pode existir como espaço digital, não como espaço concreto, comum
provoca a nossa imaginação para algo enigmático que está além do que é visto.
cena de algo que permita saber qual o seu sentido; torna indiscernível a diferença
de rememoração como passados. Tudo isso faz do filme uma fabulação sobre o
remonta este tempo, na edição. Coutinho adiciona elementos estéticos que dão a
Talvez uma forma de afirmar a potência da arte como forma de pensar o mundo e
ou seja, para Pelbart (1998), a essência da arte nos revela um tempo original,
176
eternidade não é o prolongamento da existência sem limites, mas o estado
experiência dialética sobre o seu eu, sobre o seu saber. E aí a memória opera um
perspectiva.
Acredito que esta análise parte de uma imaginação estética que delineia as
177
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em 26 dez. de 2014.
185
TESES E DISSERTAÇÕES
186
FILMOGRAFIA
187
ANEXOS
ROSA: Mariquinha! ... Ou!... Ou! Como é que tá? A benção Mariquinha?
D. MARIQUINHA: Hummm.
29
A entrevista começa aos 13 minutos de filme.
189
do sertão. E agente veio na casa da Senhora porque a Senhora é uma figura
importante na comunidade.
Eduardo Coutinho: Ah é?
D. MARIQUINHA: Deu! Toda vida! E tudo isso só vem pra minha casa.
190
D. MARIQUINHA: Heim?
D. MARIQUINHA: Muita!
D. MARIQUINHA: Bebo.
ROSA: É! É verdade!
D. MARIQUINHA: Hein?
D. MARIQUINHA: quatorze.
D. MARIQUINHA: Hein?
D. MARIQUINHA: Se lembra!
ROSA: telefona!
D. MARIQUINHA: É.
- Nós quando nasce, Jesus escreve nossos dias, de nois viver... E a hora
de nóis morrer.
- É como essas luz... Nós tudo alegre aqui, botando isso e aquilo e... (Uma
palma)... Fica no escuro. Aí acende esse lampião e não clareia não, uma luzinha
que... Ave Maria! Não presta não. Aí quando chega é uma alegria.
- Sim senhor! Esse homem é tão sério (aponta para Eduardo Coutinho).
Donde ele é? Heim? (muitas risadas a todos)
D. MARIQUINHA: Heim?
2) ASSIS (20:00)
Rosa: Opa!
Rosa: A bença!
Assis: Vamo entrar! Eu vou melhor num to muito bom nada minha filha véi
né.
Assis: Opa doutor como vai? Vamo entrar pra dentro senta menino busca
umas cadeira pros meninos. Vai buscar uma cadeira, vai Larissa!
Larissa: Uai! Eu num posso, num posso sair não, a menina ela, ela chora.
Assis: Sente menino pra cá, pobreza não pega em vocês não. Menina vá
vocês façam um café pra esse povo! Tem café e açúcar, num fique espiando pra
mim não. Eu quero o cabra saber se tem de comer ou café pra gente beber.
194
[pausa]
Assis: Senhor?
Assis: Eu digo porque o senhor vê. Que a gente desde pequeno que eu
zombei com a vida pra criar os filhos. Eu já tô véio, mas eu já vi coisa boa, e
tombém já vi ruim, né? E hoje já to no fim da vida, acabado. Entrei agora pra 80.
Fui criado sem mãe, sem pai. Sofri muito. Nunca apanhei, mas também nunca dei,
nunca ninguém deu neu, até hoje, nunca senti. Nunca briguei com a mulher,
nunca dei nela. Graças a Deus até hoje. Ela ainda tem uma coisinha de carne que
trouxe da casa dos pais.
Assis: Não sei! Não porque eu gostava de zelar ela quando eu era gente.
Hoje não! Já tô veio, acabado.
Assis: É. Gostava, né? Era minha esposa, né? O que ganhava. Eu num
bebia. Quando eu era solteiro, eu bebi muito, mas depois que casei, abandonei de
cachaça, num dá resultado.
195
Eduardo Coutinho: Namorar! Namorou muito?
Assis: Eu casei... Que ano foi menina que eu me casei? Não 57, casei em
57, 57, no dia 25 de dezembro de 57. 58 estava de teste, com seca fui trabalhar.
Que a vida é um sacrifício.
Assis: Mas homi! Pra vê... Mas homi, e muito e muito! Tá vendo, que eu
quebrei esses dedos, olha! Tá vendo, o animal caia com a carga, eu tinha que
levantar o saco e num me lembra que tinha quebrado. Pra ganhar o pão pra dá de
comer para os meus filhos, né? Quando eu vim reparar aqui já tinha sarado, tinha
emendado os ossos. Eu não ligo, eu não dou valor à riqueza. Que eu tenho um
sobrinho meu aqui em Marizope que é rico, pra mim é um esmoléu. Dou valor a
um pobre como eu, porque ele não olha pra mim. O recurso é dele lá e da família
dele. Não é meu. Agora, o pobre eu vou buscar ele lá na terra quente, inté agora
pra botar aqui dentro de casa e da água e comê pra nós comê.
Rita: Desde a idade de cinco ano, fui jogada nas roça trabalhando. Deixei
agora por que já tô véia, curta das vista e não é pussive. Mas eu achava bom,
196
achava bom, quando eu vejo até hoje, quando eu vejo caí chuva eu digo: “ai meu
Deus, ah meu Deus se Jesus renovasse minha idade pra eu trabalhar na roca!” É
tão bom! Ai, depois eu resolvi a casar. Rapazinho novinho, mais novo do que eu,
eu com 26 anos e ele com 18. Casamos graças a Deus, graças a Deus! Toda hora
eu digo: tá muito bom até hoje. Aonde eu moro, apareça quem é que diz Rita mais
Zequinha... É Rosa! Nunca Rita mais Zequinha “profiaram”, tão de inimigo um com
outro, felizmente eu não quero, eu... Mas antes eu quero morrer do que passar
meio dia de intriga com ele.
Zeca: Cuma é?
Rita: Não
Zeca: Não tem não! Tem não. Deu certo, deu certo, viu. Sempre achei que
ela, ela combinava com eu, né? É ai deu certo. Proque mais velho uma coisinha,
num tem nada não. Eu também já tô ficando veio, né?
Zeca: Sim.
Rita: sim.
Zeca: É, só na palavra.
Eduardo Coutinho: Me diga uma coisa, vocês tão moço ainda, mas hoje
vocês pensam em negócio de velhice, morrer ou não, nem pensa nisso?
198
Eduardo Coutinho: Pensa, às vezes, em envelhecer, morrer, essas coisas,
ou não pensa nisso?
Rita: No quê?
Rita: O importante, o que, eu digo é isso: será feito a hora que Deus quiser.
Zeca: É. Eu sei que é a hora que Deus quiser, mas eu penso em morrer.
Rita: Se for de pensar fica pior, fica muito pior se for pensar.
Zeca: Não! Tudo no mundo a gente tem que pensar, a gente tem que
pensar um pouco.
LEOCADIO (28:30)
Rosa: Acho que a porta da janela tá aberta. Se ele não tiver aqui pode ser
que ele esteja lá na vermelha.
Rosa: Lecádio! O senhor quer conversar com a gente hoje? Aquele pessoal
tá aqui.
Leocadio: hum?
Leocádio: Deixa pra outro dia. O senhor me dispensa pra outro dia?
Leocádio: Aonde botava, botaram o profeta Daniel, mas ele foi esperdiçado
pelos leões. Aí o rei Dario disse: “Daniel o que foi? Que houve? Que os leões não
te engoliu”? Ele disse: “Meu rei, meu senhor, a minha vida é eterna”, será assim.
Leocádio: A bíblia eu lia. Era o que gostava de ler. Era os jornais nos
tempo, no tempo da guerra, na época da guerra e a bíblia sagrada. Mas outra
coisa não, assim, um romance bonito.
Leocádio: Conheço.
200
Leocádio: Camões, eu tinha até um livro “santo Camões” e o soldado de
chumbo. Só era de poesia, um livro tão bonito, mas.
Leocádio: Não. Só gosto, gostava de ser solto, livre e solto. E pra onde eu
quisesse ir, ninguém dizia não. No tempo da minha infância, papai dizia assim,
papai não interrompia eu ir pra canto nenhum, ele não interrompia, mas se ele
dissesse assim: “se me ouvisse, lá não ia”! Pronto! Eu já tinha acabado com a
viagem.
Leocádio: Sete?
Leocádio: Essa as informação. Era dessa aí, e tinha delas que dava
informação. Umas boas informações.
Leocádio: ahm?
Leocádio: Não. Não lê mais não, não lê mais não. Hoje num tô vendo
nada, tô vendo essas letra maior, mais só o.
201
Eduardo Coutinho: Essa coisa de distância da lua, como é que o senhor
descobriu isso?
Leocádio: 87 mil léguas. Essa informação era dada pelo almanaque deles,
né?
Leocádio: Deve ser. Eu não! Isso daí eu não sei. Ah, é tanta palavra escrita
em vão.
Leocádio: O que quer dizer, palavra escrita em vão, é escrita só, igual
perdida, né?
Leocádio: A gente num pode falar palavra certa porque a gente não
conversa pra todo mundo ouvir que sabe o que é palavra certa. Então o jeito...
Leocádio: uhm?
202
Eduardo Coutinho: Aqui ninguém sabe não?
Leocádio: Não é todo mundo, que o senhor sabe que se alguns conhece,
outros não conhece, né?
Rosa: Oh de casa!
Vigario: Opa.
Rosa: Ta bom?
Rosa: Tem umas visitas diferentes hoje. O senhor não gosta de receber
visita?
Vigário: É porque minha mãe falava que eu era pra estudar pra padre, mas
ela morreu, ai fiquei com 5 anos, não conheci quase nada ela. Aí pro mode ela me
chamar desde pequeno, aí o povo ficaram chamando, ficaram chamando. Quando
chama um Geraldo eu olho se não tem outro né, pra responder.
Vigário: Lavoura.
204
Vigário: Um gadinho, uns animalzinhos, daqui pra li. Ainda, nesse setor
aqui anda a cavalo eu! Eu acho que nessas casas aí o senhor não viu nenhuma
cela pendurada. É difícil, né? Eu ainda ando a cavalo. Aqui tudo é moto, é carro,
bicicleta.
Vigário: Peitei com uma moça e ela disse que queria. Aí ninguém namorou
não. Foi chegar casar. Essa outra doida veio do Rio Grande tá com uns 3 ou 4
meses. Eu perguntei se ela queria cozinhar um feijão. Ela disse: “Eu fico”. Aí ficou.
Vigário: É. Ela pode num aumentar, mas é possível contar o mesmo tanto.
Eduardo Coutinho: Me diga aí essas duas? Foi boa as duas vezes, foi
bom?
Vigário: Foi. Passei 29 anos mais uma foi bom demais. Foi ruim quando ela
morreu.
Eduardo Coutinho: O senhor tem falta de não ter tido filho ou não? Ou não
liga?
205
quente, ou foi um pai ou foi um filho que matou um ao outro, aí a de viver nessa
rebolada é quase melhor sem nada né, Nunca tive raiva.
Vigário: Não sei o que é raiva, tem gente que tem raiva, tem num sei o que,
eu num sei que é raiva não.
Vigário: Não. Nem me mardiso. Porque tinha um velho ali. O pai dessa
veinha, ele dizia que onde tava o bem tava o mal, diz que os dois anda junto.
Quando o cabra tivesse no mal, o bem tava perto. Ele tinha esse dizer. Era
maneira certa. E ai ele... Eu acredito que é, né? Diz que os dois anda junto.
Vigário: Tem. Tem um santo ali, tem uns ali pra dentro. E porque uns, traça
comeu.
Eduardo Coutinho: Mas o senhor não faz devoção pra São Francisco,
assim não?
Vigário: Não. Nunca tem devoção com nenhum não. Eu creio em todinho,
né? Agora, que nem diz o padre Lévi, “só vale o da terra se o Deus o do céu
quiser” né? Zeca Amador, acho que o senhor passou lá, ele conta um caso que
um cabra vinha caindo de um pé de pau e fez uma promessa pro São Francisco
que no caminho topou um São Francisco, aí disse: “é São Francisco das Chaga
ou São Francisco de Assis?” aí o cabra disse: “é São Francisco das Chaga!” O
que falou com ele foi, com ele foi São Francisco de Assis. Aí deixou ele passar. E
ele cai e morreu da queda.
Antonia: Ou?
206
- Mas ela ta se tratando heim!
Vigário: Não. Ela sei não, né? Vai mandar fazer o ano, o plantamento
anda!
- Agora conta pra nós. A senhora tava ali há 10 minutos, daí a gente falou a
senhora ahn! Trocou o vestido também! Trocou o vestido também?
Antonia: O que?
Vigário: Pronto.
Antonia: Eu vim a passeio aqui com uma cunhada minha e aqui fiquei.
Antonia: Ontem interou quantos meses ontem? Foi quanto? Dia primeiro?
Antonia: Era.
Antonia: Era.
Vigário: Aí os cabra fica pensando: mas rapaz aquele burro naquele dia
não derrubou você? Trouxe você?
Eduardo Coutinho: Quando ele ficar mais velho assim do jeito que não
usa, o senhor vai fazer o que? Vai conservar ele?
Vigário: Não. Nunca abandonei aqui um bicho. Quando num presta mais
pro negócio, morre de velho dentro da roça, né? Não solto, nem nada.
208
Maria Borges: Eu era... Graças a Deus... Eu era muito cobiçada pra
negócio de namoro. Eu não fartava não... Todo rapaz às vezes chegava, se
encostava, pra palestra comigo. Dava uma palestrinha. Depois saía. Eu não
queria...
Eduardo Coutinho: Sr. João... Ficou com um rompeu com o outro. Tinha
os dois?
Maria Borges: Valeu à pena! Ele era pobre, mas era uma pessoa muito
bom pra mim. Nunca... Nunca bateu em mim! Nunca nóis andemo arengando, nóis
era muito bem unido. Muito bem casado, era... Isso é o que era. Senti muita farta
dele, quando ele morreu viu!
Maria Borges: Começou assim... Uma vez uma mulher adoeceu. Aí vieram
me chamar, eu não tinha nem essa atenção. Aí... Vieram me chamar, aí eu fui
quando cheguei lá... a criança nasceu, né? Aí ajeitei eu já tinha visto com eu
mesmo.
Maria Borges: Era o que eles pudessem me dar. Eu não tinha preço
marcado, não. Tinha uns... Tinha uns que pagavam bem mesmo... Recompensava
bem e os outros eram pobrezinhos... Não tinham nem com que enrolar a criança o
que eu ia fazer? Quem sabe?... Deus é quem me dava. Pronto!... Dispensava.
Deus é quem me dava! Porque teve muitos... Muitos mesmos. Muitos que não
tinham nem... As mulheres não tinham nem um paninho pra enrolar as crianças.
209
Nenhuma roupinha. Nem nada eram pobrezinhas. Se chegar um aqui e dissesse
assim... Olha é já já! Olha se eu não vou! Vou!
Maria Borges: Ou! Jesus me ajuda... Deus me ajuda, eu vou! Chego lá! O
ano passado eu já fui. O ano passado chegaram aqui... Uma mulher tava de saída
pra ir pra rua aí... Não dava mais tempo em ganhar um neném na rua vieram me
chamar cheguei lá... Foi ligerim. Pronto! Mas estou satisfeita! Que venci a batalha!
Hoje tô bem! Não to mais quebrar a cabeça com filho, casaram tudo. Vivo sim!
Tem uns netim aqui bem pertim.. E se to com eles aqui... Quando eu quero tar
aqui na cadeira eu tô, quando eu quero, boto o travesseiro ali no chão. A casa não
é... Só é atijolada, me deito... drumo é sono!! No chão, viu? Aí... Me levanto pra
alim assim... Faço um cafezinho e vu tumá aí... Vou fazer minha jantinha, de noite
chega... À noite vou me deitar e dormir. Tem uma televisão.
Maria Borges: Eu não tenho medo de morrer não. Tenho não sinhô! É no
dia que Deus quizer... No dia que Jesus determinar e disser assim: chegou minha
hora! Tô pronta! Eu posso me arreceitar com o doutor e ele disser assim: você não
tem jeito, você vai morrer amanhã! Eu não vou pensar não, vou imaginar não! Eu
vou rezar pra Deus e esperar a morte chegar.
Rosa: Oh de casa!
210
Eduardo Coutinho: Rosa vê se ele vem até a porta.
- Coutinho...
211
- É. Deve ser uma coisa polida. É se é uma coisa polida. Uma coisa mais ou
menos... Não dá. Por exemplo: Do plano que vocês têm. Não é um plano? Esse
negócio de cinegrafia, né? Filmaram um negocio assim, de cineasta, né? Vocês
são cineastas? São?
8) LICE (49:10)
Lice: Tá doente!
Eduardo Coutinho: Vamos conversar? A senhora senta ali onde tava, não
precisa fazer nada. A senhora fica ali.
Lice: Morava.
Eduardo Coutinho: Essa casa tem quantos? 100 anos por ai?
Lice: Éramos cinco, mas agora somos só três: ele e duas irmãs. Morreu já
uma irmã casada e um irmão.
212
Eduardo Coutinho: A senhora casou ou não?
Eduardo Coutinho: Mas quando era, quando era jovem assim namorou?
Lice: Não. Eu ainda estive noiva, ainda. Mas não deu certo. Acabou-se.
Mas graças a Deus, apenas a falta dos pais, porque a gente sempre, sem os pais,
mas a vida é assim mesmo.
Lice: heim?
Lice: Sempre.
Lice: Não. Ainda fiz curso de letras fiz de advogado direito, ainda botei um
escritoriozinho, mas num deu certo.
Lice: Foi, foi. Não, meu irmão foi vice-prefeito, agora papai foi vereador e
um tio meu prefeito, senhor Alexandre.
Eduardo Coutinho: Fazenda? A senhora faz isso pra passar o tempo? Por
que gosta ou?
213
Lice: É por que eu gosto, passa tempo. Pra mim mesmo, pra ganhar
dinheiro aqui mesmo, num vejo futuro, num tem futuro, por que às vezes a pessoa
pensa que a gente faz aquilo num dia, vai pedi um preço, ai num é, né?
Eduardo Coutinho: Tem alguma coisa aqui que a senhora fez pra mostrar
pra nós, aqui nessa sala?
9) LICA (52:00)
Rosa: É!
Lica: Sou.
Lica: Quero.
Rosa: Ela... Quando a senhora vê uma pessoa bonita o que, que a senhora
diz?
- Tá morando lá.
Lice: Ela tá com a vista meia turva assim, mas ainda da pra enxergar
alguma coisa.
Lica: Tenho.
Eduardo Coutinho: ah é?
Rosa: É. Quando a senhora era pequena que conheceu madrinha vó. Dedé
como que era? Era bom madrinha Lica?
Lica: Era.
Lice: Sim.
Rosa: É, né?
Lica: Novinha.
Zequinha Amador: “As mulheres” são títulos do soneto. “Elas são flores do
jardim da vida/ velhas moças, loiras ou morenas/ casadas, viúva, noiva ou
pervertida/ são os meus olhos quais gentis falenas/ a idosa é como a flor
emurchecida/ as moças, rosas rubras, sempre amenas/ desabrochando a aurora
enrubescida/ perfumadas iguais as açucenas/ mulher, raio de luz, felicidade/
menina, moça, ou no fim da idade/ hei de louva-la, seja ela qualquer/ que elas se
lembrem de levar/ no dia da minha morte, à minha tumba fria/ um cravo, uma
216
saudade, um mal me quer”. Autor: José Amador Ribeiro Dias, Araçás, São João
do Rio do Peixe, Paraíba, Brasil.
Tia Dôra: Graças ao Criador Divino foi. Só tive sossego e gosto na minha
vida, enquanto ele foi vivo. Que era muito trabalhador. Era... Era... Era trabalhador
e sério. De toda a importância.
Tia Dôra: Graças a Deus. Graças a Deus. Graças a Deus. Nunca... nunca
me deixou uma malquerência desse tamanho. E nem eu tamém deixei. Fiquei com
elas pra mim.
Tia Dôra: Quatro. O primeiro era homem. Morreu da atacação das presas.
Teve... nascendo as presas... mas, era um rapazão mesmo. Todo mundo se
admirava dele, daquele menino. Era gordo e grande como o mundo.
Tia Dôra: Quando as presas nasceu. Que nasce os dentes da... do anjo...
da criança. O derradeiro que nasce é as prezas. As prezas é que é mortal nas
crianças. É sim senhor! Nasceu... no ataque das... no nascimento das prezas deu
217
uma febre que não houve recurso para se baixar, não... Eu fazia que... que ele
mamava. Nada disso ele queria não, ele morreu com todo o couro... Quase perdo
o juízo. Quase perdo o juízo. Passava o dia todim... A casa aqui... eu passava o
dia era aqui debaixo dos pés de juazeiro que tinha... e espinheira... eu não podia
entrar dentro de casa não... Quase perdi o juízo. Depois dele foi que Jesus me
deu três fia mulher.
Tia Dôra: Não! Encontrei casamento, mas nunca quis não. Não. Meu
coração se trancou-se até o dia de juiz. Não sou pra casamento. Casamento não
me faltou. Eu fui quem nunca quis. Deus me defenda! Um dia chegou um... bles...
um abestaiado lá. No terreiro... Eu tava no terreiro: Bom dia Dorinha! Bom dia!
Meu Deus! Eu vi aquele homem lá... um desbandeirado. Aí eu fui pra casa. A casa
assim... Entrei e saí pro terreiro. Entrei pra cá! Ele entrou-se, sentou-se.
- Eu vim aqui Dorinha foi preguntar ocê se ocê quer casar cumigo.
- Por quê? Porque a senhora pensa que se eu casá com a senhora, eu vou
maltratar suas fias? Vou dar em suas fias? Vou botar as suas fia na roça?
Eu disse: “Não é isso não. Eu não quero casar nem com você e nem com
ninguém. Sobre a casamento, eu amarrei meu cocó. Só desmanchando no dia do
juízo”.
Rosa: Deu trabalho pra criar os filhos depois que ficou viúva?
Tia Dôra: Deu. Fui pra roça. Que nunca eu num tinha pai. A minha mãe era
veinha. Viúva também. Meus irmão era uns casado e os outros já tinha murrido.
Eu num tinha pur quem chamar. Eu num tinha filho homem, num tinha irmão, num
tinha pai, nem marido. Não me assujeitei a ... a morrer de fome mais minhas fia
não! Graças a Deus não! Fui foi pra roça trabaiá. Levava a mais nova no
“quarto”... uma bacia grande que era deu levá roupa pro rio pra lavá... cheia com
panela, prato, lata de café... Passava um dia todo na roça... trabaiando. Elas
dibaixo do pé de pau, juazeiro. E eu trabaiando em roda, do pé de pau, a panela
218
no fogo, cozinhando. Quando era de ora de almoço... de almoçar... ia almoçar... Ia
trabaiá... E elas aí. Quando o juazeiro já tava longe du trabaio, eu me mudava pro
outro pé de pau. E assim fiquei, eu criei elas. Num foi criada pro causa de ciúmes
ou de nada... De dificuldade, que desanimei. Eu criei elas como eu fui criada.
Eduardo Coutinho: Hoje a gente teve com uma parente da senhora, com a
tia Dôra.
Dona Vermelha: Madrinha Dôra, tia minha e irmã de mamãe. É tia minha e
irmã de mamãe.
Dona Vermelha: Ave, Ave Maria! A tia que eu tenho. Ave Maria é tia
comadre.
219
Eduardo Coutinho: E como é que a senhora faz pra fazer comida?
Dona Vermelha: É. Meus filhos. Ah! Se num tivesse aqueles dois filhos, eu
já, num sei não! Mas acho que eu já tinha morrido.
Dona Vermelha: Eu num quero que eles case não, porque enquanto eu for
viva, eles tá aqui mais eu.
Dona Vermelha: Minha filha, dizer dos antigos: “Mais vale só do que mal
acompanhado”. É.
Nato: Sinhôr?
Nato: Não, é porque a água precisa ..., olha o homem vai pra um banco de
colégio. Ele aprende muita coisa, mas as coisa matuta se aprende no campo.
Entendeu! Que vai convivendo vai vendo, vai ficando prático, vai conhecendo.
Eu... a água é o seguinte, a água o senhor passa, tem uma ave, indica onde tem
água, uma arvore. À noite, seis horas o senhor passeia em qualquer arto ou baixo,
se o cê onde tem água se for inteligente, se prestar a atenção, conviver, vindo
aqui o cabra cavar poço, poço amazônico, poço artesiano, acompanhar aqui as
fonte d água, a passagem da água. Entendeu?
220
Nato: É ai que eu to dizendo.
Nato: Eu sinto.
Nato: Não. É que sobe aquele calor, sinto aquele calor, aquela atmosfera
subindo.
Nato: Não. Não. Mas assino meu nome assinando bonito que é melhor.
Outro dia eu tava assinando um cheque avulso lá no banco. Eu digo meu amigo,
eu me casei foi preciso sentar o dedo. Quer coisa ruim a gente pegar um dedo pra
sentar em cima de um papel... Nunca é aprumado, como você mesmo chegar,
despontar a vontade de sentar aí mesmo. Aí, com isso eu me envergonhei e
aprendi uma coisinha... Pouquinha.
Nato: Heim?
Nato: Não. Eu já casei antes do padre correr voto. É. E num queria casar
não, porque num tinha condição. Imagina a gente fazer uma feira? Só era o que
eu imaginava.
Nato: Mandou buscar, meu pai mandou procurar foi buscar no Ceara disse
é pra ir buscar e é pra casar.
221
Eduardo Coutinho: Vocês fugiram?
Nato: Fugi. Não, eu só, que eu não queria casar. Tinha muita namorada e
num queria casar por que condição de, como é que eu ia fazer uma feira, eu tinha
imaginava como era casar era fazer uma feira pra sustentar a casa.
Nato: Fugi.
Nato: Não. Ela ficou aí e alargou, botou a boca no trombone aí, ó, naquele
tempo era ordem: é pra buscar.
Nato: A força. Meu pai dizia assim: “se um filho mexer com uma nega ele
casa!”.
Nato: Eu sou. É todo mundo é assim. Quem trabalha pra ter as coisa é
assim, todo mundo.
Nato: Não! Num da não, da não. É. Oia! O ter é uma preocupação grande.
O ter é uma preocupação grande. E se tiver ganância é o pior. Porque aí, esquece
de rezar. Aí o satâníco tá arrodiando, empurrando só pra frever. Mas quando se
reza...
Nato: Rezo.
Nato: ah eu!
Nato: Tô. Graças a Deus! Tenho casa na cidade. Tenho propriedade. Num
tenho nada hipotecado, num devo nada a ninguém. Tenho joia, tenho um troço...
Como e bebo. Como o que eu quero. Uso o que eu gosto. O quê que eu quero
mais?
223
Eduardo Coutinho: Quando cê tá...
Nato: É mamãe.
Nato: Não... É... Mas primeiro lugar é mãe, porque a mulher sempre... Olha!
Toda mulher é mulher, mas bom é mãe. Mãe num trai filho. Quantas dá... Eu
tenho aqui um filho. Olha aqui essa coisa mimosa! A mãe traiu o meu filho. Traiu o
meu filho.
Nato: A mãe traiu meu filho. Oh essa daí, essa menina é minha neta.
Nato: Traiu. Um paraíso divino, cidadão que até casa em Brasília tem.
Nato: É botou chifre. Chifrou. É. Por isso que eu digo é a razão de eu dizer
olha ai, sempre eu digo: só confie em mamãe.
Neném Grande: Eu num fumo muito não, eu fumo um, dois cigarros ou
três.
Neném Grande: Mocinha, mininota, moçona. Fiquei velha ai, com pouco
vim deixar de fazer as coisas. Já tava com mais de oitenta, oitenta e tantos.
Neném Grande: Não. Nunca casei, nunca quis casar. Nunca quis saber de
homem, nunca.
Neném Grande: Tô morando com essa menina que eu criei, com Bastiana.
225
Neném Grande: É que eu criei. É sobrinha minha e filha de criação.
Quando Bastiana casou-se, aí teve quatro filhos de sete meses. Os três filho que
nasceu, primeiro nascia e morria logo. Mas era assim no dito. Ai nasceu um, esse
levaram, batizaram. Aí eu fiz uma promessa, me apeguei em São Francisco. Se
eles nascesse e, aí passasse o batismo, todos era de chamar... Ela botou tudo de
Francisco. Teve 18 filhos.
Neném Grande: Mas eu num pedia pra se criar não, pedi pra só o batismo.
Se batizar... Por que o povo tem um dizer. É o povo que diz, nós num sabe do
céu: “os anjinho é no escuro todo dia pede pro mundo se acabe”. O povo é quem
diz, o povo é quem anda a dizer, o povo dana a dizer.
Neném Grande: Não. Esse anjo Serafim são esses meninos que nasce e
se, e num come nada no mundo, esses que é do anjo Serafim.
Neném Grande: É que nasce, morre e num comeu nada num bebeu, nem
comeu nada.
226
Neném Grande: Esse que é os anjo Serafim. É desses que num come.
Neném Grande: Sim. O povo diz que é. Uns disse se chora com sete dias
ou com sete meses ou com sete anos. Se chora, é pra pessoa ir batizar, conta o
povo. Eu nunca, nunca vi. Acho que é, se chora. Ali no cruzeiro, de Maria Borges,
tem muito menino enterrado. É. Quando o mundo se acabou na outra era, se
acabou com água. São, são, São Noé. Não. É São Noé, São Noé trabalhou cem
anos numa barquinha pra quando o mundo se acabar... O mundo se acabou com
água, disse quando fosse se acabar, se acabar com fogo.
Neném Grande: É. Nossa era que nós estamos se o mudo se acaba com
fogo, mas que num fica mais ninguém.
Neném Grande: Aí. Mas o senhor num tem, num crê em Deus pai? Que
Deus desce a terra pra ajudar os vivos e os mortos? Os mortos já morreram e os
vivos: é nós que morremos, é quem morrer naquele dia.
Neném Grande: Tem o julgamento, quem crê em Deus pai, tem que desce
a terra, pra julgar os vivos e os mortos.
Eduardo Coutinho: Mas quando vai ser esse fim de mundo, ninguém num
sabe?
Neném Grande: Agora inclusive, diz que foi aqueles que morreram aquele
dia, e os morto foi aqueles que já morreram. Aí se salva tudo. O povo diz: feliz
quem alcançar até o mundo se acabar.
Neném Grande: Eles. Salva todo mundo num fica ninguém perdido não.
227
Eduardo Coutinho: Mas os que estão no inferno também se salvam?
Neném Grande: O povo salva tudo num fica ninguém Deus salva tudo.
Rosa: E ai?
Eduardo Coutinho: O senhor não ouve bem? E ela trouxe mais coisas...
Zé de Souza: É. Num é bom não. Nem aqui a tarde, bota uma cadeira por
acolá, procurar as menina às vezes sai 12 horas, vem chegar ao escurecer, vai
pra casa dumas irmã que tem por acolá e eu passo a tarde todinha sentado,
olhando quem passa e, às vezes, conhecido, e eu não conheço. Porque minha
vista é pouca, num dá, passa, mas eu não sei quem é. E muitos passam pra lá e
228
pra cá, e eu passo a tarde todinha até escurecer. Aí ela entra, acaba de ajeitar o
de comer, ai vem me cutucar, já o escurecer, pra eu ir jantar.
Peão: Embora?
Zé de Souza: Vamos!
Chico Moisés: É... De todo jeito. É na minha terra mesmo. É na terra dos
outros.
Chico Moisés: Porque num foi bom. Num tive tempo pra nada. Só
trabalhar.
229
Eduardo Coutinho: Só trabalhar?
Chico Moisés: Estudei um pouco. Mas também depois, meu pai não quis
mais que fosse estudar..., só pra trabalhar na roça. Aí eu também... Eu tive raiva
não quis mais o estudo.
Chico Moisés: Por causa de doença e... Era terrível mesmo. Por essa
perrêa mesmo.
230
Chico Moisés: Cinco.
Eduardo Coutinho: Boa pergunta! Uma coisa que o senhor deseja ainda
na vida, pro senhor, pra família.
Chico Moisés: Ah, daí... Era muita coisa, né? E não veio nenhuma!
Chico Moisés: Sim, sim. Era mesmo saúde..., que não tem.
- Não é ruim uma condição assim?... Quente e frio! É uma pessoa que é
quente e frio.
Chico Moisés: Sim. Desse jeito... É quente e frio. Uma hora tá bem, outra
hora tá bom, Outra hora ta agitado. Outra hora ta quieto!... É... É isso aí que se
chama quente e frio. Uma hora bem agitado e a outra, relachado.
Chico Moisés: Não. É frio mesmo! Aí aprendi com Tomé. Foi aí donde eu
fiquei... Que também por aí eu exerci o mesmo. Fosse do jeito que Tomé fez...
São Tomé errou por uma parte.
Chico Moisés: Sim! Ele errou por uma parte. Porque andou mais Deus,
comeu com Deus e depois... Negou, né?
Chico Moisés: Sim! Aí... Dele dizer assim: só acredito se ver com olhos e
pegar com a mão. Se todos nós fosse assim..., não existia pecado. Ninguém
matava ninguém. Não existia maldade nenhuma. Porque o mundo tá coberto de
mentira hoje... Não tá?
Chico Moisés: Eu acho que sim. Eu tenho até pena. Você me dá alguma
notícia por aí?
Chico Moisés: Olha a sabedoria não vem só pela escrita. Só por escrever.
Isso já vem da mente. É dom! É! Gênio!
232
Chico Moisés: É porque o gênio... Gênio é uma coisa interessante e num
tendo o gênio... É o quê? Como é que é? Cadê a forca do olho? Cadê aquele
reloginho pra funcionar? E tudo precisa, é o gênio.
Chico Moisés: É. Tem que ter. É porque é que nem... Eu não queria dizer
mais. Porque senão eu vou longe.
Chico Moisés: Vou! Que eu quero dizer que... A pessoa sabe... Mas, às
vezes, não quer dar uma palavra que sabe de nada. Eu faço isso. Às vezes
perguntam... Não, nunca vi, não! Sei não! Ele sabe? Sei nada... Um cara
abestado. Digo. E lê? Eu digo: sei nada. Tudo o que sabe não pode se dizer.
Chico Moisés: É! Tudo é segredo. Agente tem muito segredo na vida. Não
tem? Olha! Parece uma brincadeira... Eu já fui no inferno... duas vezes. Mas em
sonho. Não vou dizer que foi pessoal não. Porque se tivesse sido pessoal, não
achava ruim não. Porque ainda contava mió, né?
Chico Moisés: O sonho não é bom não. Porque eu ia pra lá, e era por
dentro... de pau, pedra, toco, era espinho... Chega lá, quando pensa que não.
Chegava lá, quando entrava, cê via o chão, aquele cimento assim, mas sem... da
cor de cinza, né? Daquele jeito quando pisa, vem até o joelho... É fogo puro!
Chico Moisés: Não. Não tinha não. Esse devia ser o chefe, né?
Chico Moisés: É. Deve ser o chefe. Porque é veio. Né? De certo caiu o
chifre dele. Ficou velho demais.
Chico Moisés: Não. Mas não me quizeram não. Eu fui expulso de lá. Não
quizeram não.
Chico Moisés: Quem expulsou? O senhor queria saber? Só foi isso aqui ó!
E chamar por Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E quem quizer!!? Livra do
inferno.
Chico Moisés: Isso porque eu queria nenhuma palavra. Né? Não quero
falar não. Não era?
Chico Moisés: Eu pensei que sim. Eu acho que foi. Aí... E se eu chegasse
e eu começasse a conversar? E ia rolar o dia e a noite. E não. Mas uma coisa que
eu digo também: só disse o que aconteceu. O que não aconteceu, eu não disse
não. Agora... Entenda se quiser! Leve em conta se quiser! Aqui foi do mesmo jeito
234
da palavra de Tomé: Viu com os olhos e pegou com a mão. Pronto! E o resto não
importa. Felicidade pra você! Posso?
Nato: Foi eu, eu mesmo em 93, no ano de uma seca, quando o povo corre
tudo pra ir pra cidade atrás de emergência, pedir esmola, porque o sertanejo se
acostuma com esmola. Eu quase num paro porque é vu vu, que nem uma
lançadeira. Eu acho que quando eu cair, eu só queria que Jesus me matasse de
uma vez: páh puf! Pra num dá trabalho a ninguém, por que eu sou exigente, eu
sou agoniado, eu quero a coisa no tempo, na hora.
Nato: Agora.
Nato: Mas vocês já gosta né? Tem que ver aqui é sal pra gado. Aqui é sal
pro gado. Aqui é semente de jerimum, pra plantar. Aqui é uma lembrança da
minha mãe, uma saia que eu achei numa casa dela que caiu. Guardei isso aqui, a
lembrança, como se fosse ouro oh! Dez dias. Eu digo: mamãe, isso daqui é a
lembrança da senhora que eu vou guardar, vou guardar se for os ouro, eu guardei
direitinho, que ela me deu uns ourinho, mas aqui eu guardei como lembrança, que
ela precisa você ver. Agora aqui, pra você ver o retrato do candidato tá aqui.
Nato: Viu.
Nato: Pode ficar certo! Se eu tiver vivo, e se morrer reze um padre nosso,
porque disse que merece rezar quem morre. Vai tomar uísque agora?
236
Eduardo Coutinho: Dá pra abrir a porta?
Assis: É o boio, um boinho de tirar fogo. Pra trás era isso, num tinha
fósforo nem isqueiro, nada.
Eduardo Coutinho: Mas usava pra acender fogo ou só pra fumar? Pra
tudo?
Assis: Mas homi! É uma lembrança grande pra meus netinho. Quando eu
chegar morrer diz: “o vô boinho”, é uma sacolinha guardado já sabe, aonde eu
vou. Eu levei isso um dia pro banco, pro banco lá arranjei cartaz, o gerente do
banco fico comigo oh.
Equipe: Tchau! Ih! Espera ai, para tudo! Filma isso! Deixa, deixa vamos ver
o quê que ele vai falar.
Assis: Igualmente.
Assis: Aqui já deixaram foi dinheiro de comprar propriedade. Com três dias
o cabra veio e achou o dinheiro.
Assis: Se Jesus quiser! Felicidade grande meu povo! Felicidade pra vocês
grande, grande, grande, uma grande felicidade!
Antonia: Oi!
Antonia: tô bem.
Antonia: É.
Antonia: Eu gosto.
Antonia: O gado lá no serrote, tá bem perto de chegar, faz tempo que ele
foi. Ele tá bem pertinho de chegar.
Rosa: É?
Antonia: É.
Antonia: Não diz nada com eu não maltrata eu num maltrata nada.
239
Antonia: Eu não. Eu não. Eu já sabia que ele bebia no dia que eu me
apaixonei por ele. Ele tava bêbado. Ai pronto.
Vigário: Nosso senhor deu sessenta pro burro, de idade. Ele disse que
não, pra apanhar e pegar peso só bastava trinta, o resto dos trinta, ele deixava pro
homem.
Vigário: Ele deu ao burro essa idade, o burro agradeceu, só quis trinta, né?
Se for pra pegar peso, apanhar só bastava trinta anos. O cachorro era trinta
também, mas ele disse que pra roer osso e levar pancada, quatorze já tava bom
demais. Só quis quatorze.
Vigário: A idade deles disse que podia dá ao homem, o resto num queria
não.
Vigário: Acredito que não, né? Porque se for sofrendo é muito ano, né?
Leocádio: Positivo.
Leocádio: Hum?
Eduardo Coutinho: Não num acho. Eu num sei. É difícil saber essas
coisas.
Leocádio: Existe.
Eduardo Coutinho: Acho que seria bom né? Mas não sei né? Queria
saber.
Leocádio: Como?
Eduardo Coutinho: Ah é.
- Mas reza pra Deus... Purgatório... Mas reza, reza é quase uma poesia.
Leocádio: Reza.
Mariquinha: É bom.
Eduardo Coutinho: Tem crédito, né? O quê que quer dizer isso? Ahm?
Conta! E a birita? É a cachaça ou não? Ahm? Vai dormir seis da manhã ou não?
Mariquinha: É. Bebo uma lapada. Bom muito, muito. Eu bebo muito aí vai
se minha feira, e paga quem eu devo e venho embora.
Mariquinha: Ai pode ficar no fogo, ai vou comer, vou armar a minha rede, e
vou dormir. Pronto! Que foi que houve? Nadinha, num devo.
243
Eduardo Coutinho: Num gosta?
Mariquinha: Oi!
Mariquinha: Foi.
Mariquinha: Tá bom!
Mariquinha: Tá bom! Homi, é isso mesmo. Deus queira que nós ainda se
veja.
Mariquinha: Né não?
244
Rosa: Tua mãe tá aqui? Tá?
Eduardo Coutinho: Domingo. Daí pode ser que agente não se veja. E eu
gostei muito da conversa.
Chico Moisés: E todo tempo que... Se achou que gostou... Adonde tiver...
pode me chamar que eu to pronto. Também pra dizer a mesma coisa.
Chico Moisés: É.
245
Eduardo Coutinho: Tem que ter fé e se tratar!
Chico Moisés: Mas mesmo... Mas mesmo que eu fosse... Mas eu nunca
trabalhei. Eu nunca fiz isso. Pra que ora? É o senhor é quem ta dizendo.
Chico Moisés: Não. Mas eu fiz uma porque... porque eu to cansado. Sabe?
Chico Moisés: Ah! Mas será possível que peleja pra me pegar, e nunca
pega, e sempre eu vou continuando sempre... Na mesma linha.
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Eduardo Coutinho: Por quê?
Chico Moisés: Que pena! Né? E o que sei não disse. Só fiz começar.
[PAUSA] O senhor já entendeu tudo!
Chico Moisés: Entendeu! Quem foi o primeiro chegou aqui? Não foi o
senhor?
- Mas é bom, falar com uma pessoa sabida hein! Ele fica só... E se fosse...
E se fosse não... É mais que investigador, locutor, sabedoria, cientista e tudo. O
senhor é! Mas tudo é sabedoria que tem aqui. Tudo é sabedoria!
Chico Moisés: E tudo inteligente. Mas pegou esse matuto velho aqui...,
conversando esse tipo de coisa... Mas não sei se eu sei. Penso que sei. Será que
sei?
Chico Moisés: É.
247
Eduardo Coutinho: Certeza não tem mais... Né?
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