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Dos Deveres

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_.jf.

Martin:; Fonte:;
DOS DEVERES
Cícero

Tradução
ANGÉLICA CHIAPETA
Revisão da tradução
GilSON CESAR CARDOSO DE SOUZA

Martins Fontes
São Paulo 1999
indice

Titu/Q wl.ginol· DE OFFICIIS.


Copy1 ight C Liwt>ria Martins Fonr<S Editora Uda.,
S/io Paulo, 1999, para a p>~stnf< <dição.

l' edição
julho de 1999

TraduçAo do latim
ANGÉLICA CHlllf'ETA
Introdução ................. ........ ,.................................... VII
Jll.e>isã<> da tradoçln Cronologia .............................................................. XXXV"
Gilso" Cesar CaFdoM de Sou'a
Tn.duçlo dn aparato crftlco Sumário das doutrinas das escolas belenfsticas... XLI
Gilson Cesar Cardoso de Sou•a
RevloOo gnlifica
Bibliografia ... ........................... . XLV
Sa1!dra R<gi"" de SO"-"<' Sinopse .................................................................... . UII
Ana Maria de OtiW!ira Me,,U,s Barbrua
Produçio gdir"'a
Ge~"fJidaAlvos DOS DEVERES
Fntolltoo
Studio3 De><m'<'Mrn<moEdito>-ial {6957-7653)
Livro 1... 3
Dados lnlemaciooais do ~"" Puhli<açio (C!P) Livro 11.
(Cãmara Br""lleira do Liv111, SP, B""'il)
79
Clcero, Ma= Túlio
Livro III ............................................. .. 127
Dos devere> 1 Cícero o (mtdu;lio do latim Angólica Chi>pota ~
r<v!.IOlo da !raduç~ Gilson Cósar Cardoso àc Souza]. -Silo Paulo :
MortillS Fomes, 199-9. - (Clássico>) Notas biográficas......................... . 185
Titulo <niginal: De officik
Edi<;lo bilín~ne: fra:m:l!•·lllim.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1074-2
L Filo•o!ia antigo 1. Titulo. n. Série.

99-2850 CDD-180
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Introdução

O autor

!Vlarço Túlio Cícero nasceu em 106 a.C. e era, assim,


exatamente da mesma idade de Pompeu e um pouco mais
velho do que César, o Ditador. Membros da última geração
da República Romana, os três sofreram morte violenta na
década de 40, quando a própria república agonizava com
a guen"a civil. ;>ompeu dissera em público que, sem o ser-
viço prestado por Cícero à sua pãtria como cônsul, não te-
ria havido uma Roma para testemunhar seu terceirO triunfo
(De off., 1.78); César escreveu sobre a contribuição de Cíce-
ro para as Letras Latinas: "Ganhaste !curas maiores do que
a coroa triunfal, pois faç2.nha maior é ter estendido as fron-
teiras do gênio romano que as do império de Roma" (Plí-
nio, Hist. nat., \111.117). E eles eram os dois maiores gene-
rais num Estado que admirava, acima de tudo, a vitória e a
conquista militar. Que feitos de política e ·eloqüência teriam
merecido tal louvor, tal lisonja?
Diferentemente de seus contemporâneos, Ocero era
um "homem novo", o primeiro da sua família a ocupar um
cargo público. Veio de Arpino, província que gozava da ci-
dadania romana desde 188 a.C. e, aré então, só produzira
um grande general e homem público, Caio Mãrio, que sal-
vara Roma ameaçada por urna invasão bárbara vinda do

vrr
- - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Introdução _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

1
Norte, na década do nascimento de Cícero. 0s Ckeros eram ~cu pnmeiro cargo público, o de questor ou oficial de fi-
aristocratas locais, proprietários de terras, com tempo para :l~::-:ças. na Sicília. Seis anos mais tarde, acusou o cúpido
o lazer, educados e envolvidos na política local. O avô de ~ç\·emador Verres, em defesa da ilha (11.50). Voltou para
Ckero atraiu a atenção em Roma pelo seu empenho conser- :J.SS'.:.mir o cargo de edil, no qual promoveu os esperados
vador, opondo-se ã introdução do voto secreto em Arpino. t:-Spetáculos públicos, mas com pouco gasto; apesar dessa
Seu pai, doente e, assim, limitado às pesquisas eruditas, obs- n~oC,eração, diz-nos ele, superou outros candidatos e ele-
tinava-se no entanto em dar a seus dois fllhos, Marco e Quin- gcc:.-se para dois altos cargos, com a idade mínima exigida
to, o mais novo e menos talentoso, as oportunidades neces- di. 59). Tomou-se, assim, pretor com 40 anos de idade e
sárias para entrar na vida pública romana. Levou-os a Roma ·:ô'lsul com 43. Foi um feito notável para um homem de
onde, na casa do grande orador Lúdo Licírtio Crasso, foram suas origens.
confiados aos melhores professores de retórica. O consulado de 63 a.C., no qual ofuscou completa-
No mesmo período, Cícero teve seu primeiro contato mente seu colega, foi o ápice de sua carreira. Não deseja-
com o direito e a filosofia, encontrando, entre outros, o es- va comandar exé::citos nem governar uma província do im-
tóico Diódoto, que mais tarde iria viver e morrer em sua ;:oério, embora, alguns anos mais tarde, quando mandado
casa, e Filon de Larissa, o diretor da Academia de Platão para a Cilícia, tenha executado conscienciosamente seus
em Atenas, que fugiu para Roma em 88 a.C. por ocasião da deveres administrativos, judiciais e até militares, enquanto
invasão do rei Mitridates do Ponto. Cícero foi então para a trabalhava para conseguir seu pronto retorno a Roma. As
Grécia em 79-77 para continuar seus estudos de retórica e pretensiosas alusões a seu consulado, que adornam todo o
filosofia. Quando disse, no De officiis, que a filosofia não livro do De officiis (1.77; II.84; 111.3), dão apenas uma páli-
foi apenas um grande interesse de juventude (11.4), mas a da idéia da importância que Cícero atribuía a ele. Cele-
fonte de suas realizações na vida ?ública (1.155), pensava brou-o em grego e latim, em prosa e verso, "não sem cau-
na importância dessa disciplina na formação de um orador. sa, mas sem fim", como Sêneca mais tarde observou. De
Diódoto ensinou-lhe dialética; os peripatéticos, que desen- fato, a conspiração de Catilina, que o próprio Cícero pro-
volveram a teoria da retórica, ensinavam a argumentar em Yocou ao frustrar tanto as propostas radicais de perdão de
defesa dos dois lados de uma causa; os acadêmicos ensina- dívidas quanto as ambições eleitorais do patrício Catilina,
vam a refutar todo e qualquer argumento. Esses últimos fo- e que ele desmascarou e impediu, certamente teria signifi-
ram os mais importantes para Cicero. Durante suas viagens, cado derramamento de sangue e revolta social. Cícero foi
ouviu dois filósofos carismáticos. Antioco de Ascalão e Po- míope ao ignorar queixas genuínas em Roma e na Itália,
sidônio, o polimata, mas permaneceu essencialmente fiel m.as não mostrou falta de coragem ao enfrentar as conse-
aos primeiros ensinamentos céticos de Fílon, rejeitando a qüências.
possibilidade de um conhecimento certo e afirmando seu Sua pror..ta ação, que incluiu a execução de cidadãos
direito de adotar a posição que lhe parecesse, em cada oca- romanos sem julgamento, provocou repulsa em alguns se-
sião, mais persuasiva (11.7; 111.20; cf. 1.2; 1.6). tores, e Pompeu, embora pronto a louvá-lo, nada fez para
Cícero fez sua estréia nos tribunais durante a ditadura impedir que o tribuno Públio Clódio o exilasse em 58. Em
de Süa (11.51). Depois de retomar a Roma, foi eleito para retrospectiva, viu sea sofrimento como o de um patriota

Vlll IX
- - - - - - - - - Dosd!WI!res _ _ _ _ _ _ _ __ ----------Introdução----------

mártir (11.58), embora Pompeu conseguisse seu regresso no C:cero elevara a oratória romana à altura da melhor orató-
ano seguinte. ri3. grega. Quanto à filosofia em latim, porém, as tentativas
Havia, na verdade, a sensação de que a mudança de :i:cham sido poucas.
fortuna de Cícero estava ligada à de Roma, pois a aliança Entre 46 e 44 a.C., Ckero não só aumentou ·o número
politica de Pompeu, César e Crasso, formada em 60, não de seus trabalhos sobre retórica como criou algo parecido
apenas restringia a influência de homens como Cícero, mas ;"l uma enciclopédia da filosofia helenística, cobrindo epis-
também submetia ã coerção militar as instit..üções da Repú- temologia nas Academica, ética no De finibus e filosofia
blica Romana - as assembléias populares que elegiam e r:8.tural no De natura deorum. Nesses diálogos, sente-se o
legislavam, os magistrados que as integravam e o Senado, sopro de uma Academia Cética, pois neles os porta-vozes
composto de ex-magistrados, que provi2. o único elemento d:-.s maiores escolas filosóficas apresentam seus pontos de
de continuidade da orientação política. \·ista e são submetidos a uma crítica minuciosa. Cícero, po-
Cícero confidenciou certa vez ao irmão que seu consu- rém, usou da licença que sua seita lhe concedia e produ-
lado fora a realização do sonho platônico do governante filó- ziu, sobre assuntOs específicos, mais obras dogmáticas, das
sofo (Qjr., I.I.29). Agora, impedido de auxiliar Roma como quais o De offictis é a última.
homem público, contentou-se em instruí-la na retórica e na
filosofia política, escrevendo diálogos inspirados nas obras-
primas literárias de Platão. Depois de seu governo e subse- O contexto político do De officiis
qüente envolvimento na guerra civil ao lado de Pompeu,
Cícero foi perdoado por César, então ditador, e retomou sua O grande evento que lança sombra sobre o De officiis
atividade literária. Com a derrota da causa republicana, sen- é o assassinato de César nos idos de março de 44 a.C. Cí-
tiu que a atividade política independente e, portanto, hon- cero esforça-se não apenas para justificar o feito, repetidas
rosa, estava encerrada para ele (De qff, 11.2). vezes, como tiraniddio (IL23-8; III.19; III.32; 111.82-5),
Cícero voltou-se para a filosofia em parte porque ela como nunca perde oportunidade de acusar César, nominal
proporcionava distração e consolo, que se tornaram parti- ou anonimamente, por suas ambições ilegítimas, sua dema-
cularmente necessários depois da morte de sua amada fi- gogia, sua rapacidade em relação aos proprietários (1.43;
lha l'úlia, em fevereiro de 45. Era também um uso hones- II.20; II.83-4; III.36) e o tratamento severo que deu aos ini-
to de seu lazer para o bem público (De off., I1.4-6) e um migos e súditos de Roma (1.35; II.28; III.49). Embora as car-
desafio que poderia honrar a ele e a Roma. O desafio era in- tas particulares de Cícero mostrem que ele, às vezes, adota-
corporar à alta cultura latina mais uma criação grega, pro- va uma visão mais realista a respeito dos problemas que
vavelmente a mais difícil de todas, uma vez que os roma- César enfrentava e dos objetivos que alimentava, elas tam-
nos, por sua visão do mundo e por sua língua, ofereciam bém mostmm que o tempo todo, antes, durante e depois
resistência ao pensamento abstrato. Os romanos reconhe- da ditatura, Cícero acreditava que César cobiçava o poder
ceram desde o princípio a superioridade da cultura grega tirânico (e.g. Att., X.l.3; X.4.2; X.8.6) e estava inclinado a me-
e já haViam tido algum sucesso ao criar uma literatura ba- didas sociais e econômicas revolucionárias. Também des-
seada nas formas e na métrica poética gregas. O próprio confiava da propalada clemência de César.

X XI
------------~---Drudeoo~----------------- - - - - - - - - - - - Introduçilo _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

A tragédia foi que, na visão de Cícero e seus amigos, dÇ5:lpontamento com sua condição presente. De medo si-
os idos de março não restauraram a república. Os "libertado- ::r.Jar, no De officiis, Cícero sustenta, por um lado, que não
res" não acharam necessário dar nenhum passo a mais ou o:-xiste absolutamente res publica (1.35; 11.3) ou refere-se ã
sequer convocar o Senado como Gcero aconselhara. Ten- '~"!:'5 publica como perdida, decaída, derrotada ou assassina-
do Antônio assumido a f.mção de cônsul, foi declarada a .::12 (II.29; Il.45; III.4; 111.83); por outro, exorta seu filho
anistia e abolido o cargo de ditador - mas as medidas do ~~arco a seguir seus próprios passos (II.44; III.6; cf. 1.4); en-
ditador morto foram mantidas e os planos dele, implemen- :;:na-o a obter sucesso em um sistema político republicano,
tados. Os dois principais tiranicidas, Bruto e Cássio, assu- on-de a glória militar, a eloqüência forense, o conhecimento
miram o cargo de pretor mas estavam, na verdade, com j;,::1dico e a liberalidade política poderiam tomar Um ho-
medo de permanecer em Roma. Então, em abril, chegou ã n:.:':::n merecedor de fama, influência e poder (Lll6; II.45-51;
Itália o sobrinho-neto de César, Otaviano. um fonnidável ILSS-60); e considera um dever daqueles que são talhados
rival para Antônio porque contava com ~s simpatias dos para a vida pública suportar os trabalhos e os riscos políti-
veteranos e adeptos do ex-ditador. Antônio, arrastado a me- cos envolvidos (1.71). Quando encontramos, no De officiis,
didas mais e mais extremas de autopreservação, tornou-se quei.xas a respeito do fim da eloqüência e da jurisprudência
aos olhos de Cícero o real inimigo que os tiranicidas deve- :JI.65-7), combinadas com afirmações sobre a importância
riam ter eliminado juntamente com César e cujos assassi- de ensinar ambas (II.47; II.49; II.65 fin.), lembramo-nos do
nos, de igual modo, mereceriam louvor e glória. Brutu.s, escrito sob a ditadura, no qual Cícero expressou uma
O modo pelo qual Cícero expressa sua incerteza e an- triste resignação ante a morte da eloqüência (21-2) e da
siedade quanto ao destino da República Romana no De j:.rrisprudência Cl57), embora concluísse esperando o resta-
officiis apresenta um padrão já reconhecível em suas cartas belecimento da res publica e exortando Bruto a redobrar
e outras obras do período. Cícero pensou, naquele momen- esforços para distinguir-se na oratória (332).
to e depois, que a paz comprada com concessões a César Essas contradições não são nem sinais de irracionalid.a-
em 49 tinha deixado a república viva, embora debilitada de em Cícero nem, simplesmente, o resultado da hipérbole
(L35; cf.. Fam., VI.1.6); mesmo durante a guerra civil, acre- retórica. ~o De officiis, como no Brntus(l57), elas refletem
ditou que uma paz temporária sob os auspícios de César o fato de Cícero considerar temporária e transitória a situa-
vitorioso preservaria a república, que fora abalada, mas ain- ção política presente; ele fala de "interrupção" - para não
da se mostrava suficientemente forte para renascer (Fam., dizer destruição- da eloqüência (11.67) e refere-se ostensi-
XV.lS.l; IX.6.3; VI.10.5). Logo após os idos de março, ele ,-amente ao periodo da ditadura de César nos seguintes ter-
afirmaria ter acreditado sempre que o período de governo t:.10S: "A liberdade devolve a mordida mais violentamente
por um único homem era meramente uma fase em um quando suspensa do que quando imperturbada" (11.24). Em
cido de constituições, como descrito na República de Pla- -±6, soube que havia um vilão, César, que deveria ser remo-
tão (Diu., 11.6-7). Contudo, durante a guerra entre Pompeu ·ddo; logo após a remoção dele, acusou certos homens, An-
e César, durante a ditadura e, na verdade, mesmo antes, ele cônio e seus seguidores, de retomarem a política e os con-
declarou que a república estava perdida (e.g. Att., IX5'.2; :'iscos de César (11,23; II.28), sua autocrática e agressiva
IX.7.J..; Fam., VI.21.1)- um modo exagerado de expressar forma de governo UI.22-3; 11.65; IE.l) e o mau tratamento

XII XIII
_____________________ Introdução _____________________
--------~Dos deveres---------

dispensado aos súditos de Roma QII.49). Estavam decidi- reforçado os alicerces da república (Fam., XII.25.2). Ape-
dos a destruir Roma, como outros o haviam tentado outro- sar dos momentos de desespero, não fraquejou novamente
ra (1.57). Mas aqueles haviam falhado e o mesmo ocorreria e teve a coragem de executar sua malconcebida política de
com estes. Embora Cícero ocasionalmente reflita sobre o derrotar A...1tônio a todo custo. O homem que escolheu
motivo de os homens sujeitarem-se por medo e ganância para a tarefa era mais competente e mais perigoso: Augus-
ao poder de outrem (IT.22), ou sobre um modo de vida em to. Mas mesmo Augusto, fundador do Principado, precisou
que o patronato exercido pelas classes dominantes levaria depois levar em conta o assassinato de César e a crença
à procura dos favores dos poderosos (11.67), continuou a passional na república, pela qual Cícero e outros haviam
olhar como norma a situação na qual pessoas como ele morrido, e revestiu sua autocracia com esses trajes desbo-
próprio e seu filho são os alvos e não os autores de lison- tados.
jas (L91), exceto quando tentam fazer-se demagogos (II.63). Os pressupostos políticos do De o.fficiis não são, entre-
Para ele, a república era uma força muito vital para extin- tanto, irrealistas, pois aquele era um tempo de genuina am-
guir-se tão rapidamente. bigüidade política e a preocupação da obra com a dificul-
A complexidade da situação política, como Cícero a dade da decisão moral acompanha de perto a correspon-
apresenta no De officiis, iguala a complexidade de sua pró- dente ambigüidade moral que os indivíduos enfrentavam.
pria posição, como a retrata em suas cartas. Em abril de 44 Até seu amigo e confidente Ático, mais cauteloso e menos
a.C., antes de Otaviano chegar à Itália, Cícero percebeu volúvel que ele, vacilou em suas posições políticas; mudou
que não havia mais lugar para si na política (Att., XIV.6.2). de ooinião sobre o caminho que Cícero devia tomar e pe-
Mesmo antes dos idos de março, planejara ir à Grécia para diu-lhe conselho a propósito de sua própria conduta (Att.,
supervisionar a educação de seu filho; mais tarde J?'..ldou XVI.7.3; XVI.13.4). Como em 49, as cartas pessoais de Cíce-
de decisão, pensando que talvez pudesse assessorar Bruto. ro mostram-no agora empregando, em suas deliberações,
Teve momentos de esperança como na ocasião em que seu os mesmos conceitos de que tratara no De officiis. "hones-
genro Dolabela reprimiu manifestações favoráveis a César tum", "decon>tm", "tu1pe", "utile", "incorntn.Odum", "officium".
(Att., XIV, 19.1). Mas em julho, depois de esperar acompa- Rejeita a solução epicurista de permanecer fora da política,
nhar Bruto e assim fazer de sua viagem uma aventura peri- mas não encontra um modo de participar (Att., XV.2.4). Ele
gosa e patriótica (Att., X\11.44.4), finalmente partiu sozinho. e Ático procuram consolo no tema da morte como refúgio,
Regressou Jogo, impedido por ventos contrários e quando discutido nas Tusculanae disputationes (Att., XV.2.4). Cícero
t:..m compromisso entre Antônio e os "libertadores" parecia examinava a conveniência do suicídio, a solução de Catão,
iminente (Att., XVI.7; Fam., X.l.l). No último dia de agos- no seu próprio. caso (Att., XV.20.2). E quando escreve a
to entrou triunfalmente em Roma (Fam., XII. 253) e, dois Ático em agosto de 44 sobre a firmeza de propósito (con.s-
dias depois, pronunciou no Senado o primeiro de seus ata- rantia, que para ele é um importante conceito estóico) -
ques contra Antônio, As orações filípicas, que lhe acabaram "Nos numerosos escritos sobre o assunto, nenhum filósofo
acarretando a proscrição e a morte. Da quarta oração, pro- jamais comparou a alteração de plano à falta de firmeza"
nunciada em 20 de dezembro de 44, Cícero escreveu de- (XVI.7.3) -, lembramo-nos do que ele disse no De o.fficiis
pois que ela havia despertado a esperança de liberdade e I.112 relativamente à conduta de Catão e outros na guerra

XIV XV
----------------------~de~r~---------------------- ______________________ lnffodução----------------------

civil, ou em !.120 sobre o modo correto de efetuar uma mu- e, sob a atenta supervisão deste, os dois rapazes estudaram
dança necessária de carreici. com um tutor. Agora, como revela a Ático, sente que uma
visita a Atenas "muito faria para incentivar Marco" (Att.,
XIV.13.4). Não resta dúvida, pois, de que as palavras de
A composiçilo do De officlis Cícero no De o.fficiis sobre a relevância desse escrito para o
filho são verdadeiras. No entanto, ao conservar suas cren-
Os nexos entre a correspondência remanescente de ças céticas, ele se representa utilizando a doçura da razão
Cícero e o De officiis também revelam com exatidão por mais para persuadir uma pessoa independente, capaz de
que, quando e como Cícero resolveu-se a escrever a obra. opiniões próprias C.2; III.33; 111.121), do que para pressio-
Nos quatro primeiros capítulos, pelo menos, bem como nar um jovem comum, embora dócil, que seu primo mais
na introdução do Livro III (5-6), ele explica sua escolha do velho considera tímido (Att., XIII.37.2).
'(c assunto e seu modo de encarar a educação do filho de 21 Mesmo o formato da obra reflete algo da relação ver-
anos, a quem o ensaio é dirigido. Cartas a Ático deixam cla- dadeira. A circunstância de o jovem Marco estar estudando
ro que Cícero de fato planejou a obra para o jovem Marco: com o filósofo peripatético Crapito, enquanto Cícero se
"Estou endereçando o livro a Marco. De pai para ftlho, que abebera nos estóicos, deveria sugerir o formato do diálogo,
tema haveria melhor?" (Att., XV.l3a.2; cf. XV1II.li.4). Marco, com o fllho defendendo a posição peripatética contra o
segundo filho de Cícero e único varão, esteve em Atenas pai. Mas Cícero insistia sempre em adequar os papéis aos
por um ano estudando oratória e filosofia, havendo muitos interlocutores, não obstante a liberdade permitida pelas
testemunhos, nas cartas da preocupação do pai com o pro- convenções do diálogo literário. Na pequena obra sobre
:t gresso de sua educação. Escreve a Ático sobre as bem redi- oratória escrita pouco antes, Partitiones oratorlae, permi-
gidas cartas do filho (Att., XIV.7.2, XV.l6.1; cf. Quint. tiu-se a Marco interrogar como um garoto de escola; no De
1.7.34), bombardeia seus professores com pedidos de infor- officiis, Cícero trata-o como um estudante dotado de idéias
mações (Att., XIV.l6.3; XIV.l8.4) e mostra-se francamente ;xóprias, mas deixa claro que ele ainda não estava tão pre-
persuadido pelos amigos e pelo próprio Marco de que ;:>arado para discutir filosofia com o pai quanto para ouvi-
pode esperar dele grandes coisas (Fam., XII.l6.2; X\11.25). lo (III.l21).
Tudo isso está bem de acordo com o que Cícero diz no De A inspiração literária para essa "orientação e conse-
officiis: Marco serã capaz de praticar seu latim lendo as dia- lho", que o jovem Marco deve conservar juntamente com
tribes filosóficas de Cícero (I.l; 1.2); ele deve satisfazer as seus apontamen~os das aulas de Cratipo (1.4; Iii.121), é,- de
expectativas criadas por sua educação e sua ascendência fato, o gênero "caroa a um filho". Cícero cita vários exem-
ilustre an.6). plos, incluindo mensagens de instrução e reprovação do
No último capítulo, Cicero esclarece que o De offtciis é rei Filipe a Alexandre (11.48; 11.53) e uma carta de adver-
o substituto para uma visita ao fllho, a qual teria feito se tência de Catão, o Antigo, a seu filho (1.37). O tom de orien-
motivos políticos não o impedissem. Sete anos antes, em tação pessoal, encorajador mas firme, é constante: bem no
51 a.C., Marco (então com 14 anos) e seu primo mais ve- meio de um argumento, o jovem Marco recebe a lição de
lho, Quinto, partiram com Cícero para a província da Cilícia que os feitos civis são melhores que os militares. Tais feitos

XVI XVII
- - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - - - I n t r o d u ç ã o _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

são ilustrados por uma parcela da autobiografia paterna, provavelmente o De gloria, obra perdida que, como o pró-
complementada por uma despudorada gabolice (1.77-8). prio De officiis, combinava a chamada instrução política e
No aspecto filosófico, a importância para o destinatário se moral, sobrepondo-se quarto ao assunto à última obra,
faz clara na deferência para com suas inclinações peripaté- como Cícero declara expressamente (11.31). Sem dúvida,
ticas (e.g. 1.2; 1.89; II.56-57; 111.33). Cícero prefere exortá-lo Cícero acreditava que esse ensinamento ftlosófico deveria
em termos estóicos porque isso estabelece um padrão mais ter efeito benéfico, particularmente nos jovens.
elevado (III.20). Parece natural, pois, não só que Santo Ambrósio, ao
O De officiis não é, entretanto, nem um trato geral dis- escrever uma obra de aconselhamento moral para jovens
farçado de colóquio pessoal (como o Panfleto sobre a can- sacerdotes que considera seus ftlhos, haja tomado o De
didatura a um cargo), notoriamente endereçado a Cícero offíciis de Cícero como modelo apropriado, mas também
por seu irmão Quinto, nem uma peça de aconselhamento que Maquiavel, na composição do Príncipe(um manual de
pessoal disfarçada de ensaio geral (como a carta sobre a aconselhamento político para os politicamente ambicio-
arte de governar uma província, destinada a Quinto por Cí- sos), considerasse a mesma obra como um rival merecedor
cero, Qfr. I.l). É um trabalho feito ao mesmo tempo para de ataques (caps. 16-18). Pois, como veremos novamente,
I\1arco e para outros, especialmente os jovens romanos da os jovens que Cícero leva em conta de modo especial são
classe governante. Em outra obm filosófica do período, aqueles cuja posição na sociedade os autoriza, e na visão
Cícero acalenta a esperança de estar ajudando a instruir a dele obriga, a tentar a carreira política.
juventude de Roma (Dív. !1.4-5) e, no De officiis, freqüente- É possível datar a composição do De officiis com ra-
n:ente esclarece que tem em mente aqueles que precisam zoável precisão. i'\o começo do Livro I, tomamos conheci-
decidir sobre seu próprio modo de vida, e aprender a partir mento de que Marco já está em Atenas há um ano. Cícero
da advertência e exemplo de um homem mais velho (e.g. escreve depois de !.. 12 de abril de 44 a.C., pois uma carta
!.E7; 1.121; 1.147; II.44-51). É importante considerar aqui a sobre o assunto gmve da pensão anual do filho t,_"az a data
crença romana no respeito à idade, na imitação de um feito em que findot.J o primeiro ano letivo de Marco (Att.,
ancestral (II.44) e na aprendizagem prãtica da vida pi:blica XV.l5.4). Exatamente no fecho da obra, Cícero alude à sua
(H.46). Assim, Cícero pensa não só no filho como em ho- fracassada viagem a Atenas para visitar o filho, e as cartas
mens do tipo de seu genro Dolabela (cf. Att., XIV.17a) e seu mostram que embarcara para a Gréci:o, em 17 de julho (Att.,
sobrinho Quinto, sem dúvida mais talentoso que Marco XVI.6.2; XV17.2). Finalmente, as cartas nos permitem datar
(Att., VI.1.12; X.2.3; X.12a.4), mas facilmente manipulável a situação de Cícero, descrita em 111.1 como uma contínua
em política, primeiro por César e depois por Antônio (Att., mudança de vila para vila em vi~de do medo à violência
X.7.3; XIV.17.3). Apenas alguns meses antes de Cícero com- dos inimigos, de meados de outubro a 9 de dezembro,
por o De officiis, escreveu sobre seu sobrinho a Ático: "Tão depois de seus primeiros discursos contra Antônio (Fam.,
completa foi a mudança produzida nele por certos escritos XII.23.4; Att., 13a.2; Fam., XI.5.1). A confirmação vem de
meus que trago de memória, e por constantes conversas e duas cartas a Ático sobre o próprio De officiis. A primeira
aco:cLSelhamentos, que sua postum política no futuro talvez CAtt., XV.13a.2), escrita da vila de Cícero em Putéolos (ou
seja aquela que desejamos" (Att., XIV.5.2). Os "escritos" são talvez Cumas) por volta de 28 de outubro, fornece o assun-

XVIII XIX
_________________ nwM~----------------- -------------------Introdução----------

to de sua obra em grego e promete que "haverá trabalho chefe da escola estóica de Atenas por volta de 129 a.C. Seu
para justificar minha ausência"; a segunda, enviada domes- ~atado, escrito cerca de trinta anos antes de sua morte (111.9),
mo lugar em 5 de novembro (XVI.H.4), revela que ele se portanto em 140/39, já tinha quase um século, mas Cícero
valeu de uma obra do filósofo Panécio, sobre aquele mes- ainda o preferiu a outro mais tardio e mais amplo, de He-
mo assunto, para redigir e completar os dois primeiros li- catão, discípulo de Panécio (III.63; 111.89). Cícero podia es-
vros do ensaio. Portanto, os livros I e II foram terminados perar que seu amigo Ático e seus leitores em geral tivessem
entre 28 de outubro e 5 de novembro de 44. ouvido falar dele, a julgar pelo modo abrupto com que se
Na segunda carta, Cícero confidencia a Ático que sus- refere ao tratado, mas talvez não que co11.I.1.ecessem sua
pendeu a composição da obra enq"J.anto aguarda material estrutura a fundo (Att., XVI.2.4); (OjJ., 1.7). Dois séculos
ftlosófico grego que, segundo espera, ajudá-lo-á no tópico mais tarde, ainda era lido e admirado (Gélio, NA, XIII.28),
desenvolvido no Livro III. Vm dos trabalhos solicitados por mas infelizmente não chegou até nós, e o pouco que dele
Cícero chegou finalmente em meados de novembro (Att., sabemos vem do próprio tratado de Cícero.
XVI.l4.4). Ele volto·c~ a Roma em 9 de novembro e logo se Panécio aparentemente versou o assunto com mais
envolveu na política. Mesmo se aceitarmos que Cícero co- minúcia do que Cícero, o qual condensou os três livros de
meçou a escrever antes de outubro, burilou os livros I e H seu modelo em dois (III.7; 11.16). Além disso, o tratado de
enquanto esperava pelo novo material e fez revisões de- Panécio ficou inacabado. Cícero devia sabê-lo desde o iní-
pois de regressar a Roma, não poderemos f..lgir à conclu- cio, pois, ao explicar a Ático sua necessidade de material
são de que o De officiis foi elaborado rapidamente, consi- para o Livro III, informa que já havia solicitado uma obra,
derando-se sua extensão e complexidade. 'C'm certo des- sobre o assunto, de Posidônio, discípulo preferido de Pané-
cuido :u estrutura e no argumento, a tendência ã repetição cio, e pedido a um filósofo estóico contemporâneo um re-
e, ocasionalmente, ã irrelevância podem estar ligados a esse sumo, ao que parece da mesma obra (Att., XVI.2.44).
fato. Alguns estudiosos, entretanto, têm ido além e sugeri- Esse defeito da obra de Panécio, para Cícero, seria so-
do que, em tempo tão curto, Cícero não poderia ter feito brepujado pelos méritos que a recomendavam a leitores
mais que transcrever suas fontes gregas. gregos e rorr..anos. Panécio tinha estilo mais agradãvel que
No De officiis, Cícero usou de sua licença de cético aca- muitos dos estóicos (De Jin., IV.79) e desejava dar conse-
dêmico para adotar os argumentos que considerou, naque- lhos práticos a homens bons, mas não sábios (Fin., IV.23;
le momento e sobre aquele assunto, os mais convincentes. Sêneca, Ep., II.6.5). Escrevendo para o público culto em ge-
Esses argumentos eram os da Stoa (III.20). Recorrendo aos ral, como nessa obra, foi feliz ao empregar conceitos mo-
escritos estóicos, diz ele, preservou o direito de exercer seu rais como "bom" e "virtuoso" no sentido comum e não nas
tirocínio e sua capacidade crítica: não estava meramente tra- acepções mais restritas e elevadas dos estóicos QI.35). Tam-
duzindo-os ou expondo-os. A obra que Cícero seguiu de bém não se interessava pela vertente cínica do estoicismo,
perto foi o famoso tratado Sobre o dever (Feri toa kathékon- que ridicularizava os eufemismos e instituições convencio-
tos), de ?anécio, o aristocrata ródio que viveu de aproxima- nais (1.128; I.148).
damente 180 a 109 a.C., visitou Roma, foi professor e cola- Ao menos para Cícero, havia ainda outras característi-
borador intelectual de Cip!.âo Africano Emiliano e tomou-se cas atraentes. Panécio, embora fosse um estóico ortodoxo,

XX XXI
----------Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - - I n t r o d u ç ã o _ _ _ _ _ _ _ _ __

sofreu a influência de Platão e Aristóteles (Deftn., IV.79), e ·:-=~o por sua honestidade ao reconhecer o que deve a fon-
Cícero pretendia em sua obra minimizar as divergências -:ts gregas, compara o papel de Panécio no De qfficiisao de
entre a Stoa, sua própria Academia, e o ensinamento peri- Platão no De re publica, em que apenas um tipo mais gené-
patético, que seu filho estava absorvendo . .AJ.ém disso, Pa- rico de inspiração está envolvido. Além disso, Cícero sem
nécio apresentava como "modelo vivo~ (11.76; cf. 1.90) O- J:wida esperava que os leitores aceitassem sua declaração
pião Emiliano, um dos heróis de Cícero ( Off., IJI.l-4) e o ".Je estar recorrendo a Panécio de um modo seletivo e críti-
principal interlocutor no De re publica, em que sua oposição c:o. pois sente que é necessário dizer-lhes ãs vezes, quando
a Tibério Graco, um dos vilões do De officiis (1.76; I.l09; J.presenta uma visão controversa, que se apóia em Panécio
:ii.43; II.SO), é celebrada. Mais importantes, porém, que os :~I.51; 11.60). De fato, a terminologia filosófica similar nas
pontos de vista de Panécio eram os interesses que ele par- su2s cartas do período, assim como alusões a suas obras
tilhava com Cícero. Panécio esmiuçou os deveres dos polí- :'i1ais recentes sobre os principias da ética (I.6; III.120), a
ticos, homens que pleiteavam nos tribunais (ll.Sl) e dota- giória (II.31), a velhice (1.151) e a amizade (II.3l), sugerem
vam edifícios públicos (E.60). Antecipou Cícero ao discutir q·~te muito do pensamento do De officiis precede o tempo
exaustivamente os meios de conseguir reputação e apoio ~eal de composição. Em qualquer caso, quando considera-
polftico negligenciando vantagens mais comumente admiti- mos como a obra está marcada pelos eventos contemporâ-
das, como a saúde e a riqueza (II.86; cf. 11.16). Também su- r'.eos e como reflete de perto os pontos de vista de Cícero
gestiva é a resposta de Ático à proposta de Cícero de tradu- em outras passagens, somos levados a concluir que o tra-
zir a palavra grega para "dever" como "o.fficium", pergun- l:lalho de ?anécio foi por demais digerido e remanejado
tando-lhe se ela se aplicaria à vida pública tanto quanto à por Cícero para que separemos agora as contribuições dos
esfera privada (Att., XVI.14.3). Ático pôde responder ape- dois autores. Em um trabalho anterior, Cícero dissera que,
nas com base no que sabia da obra de Panécio, pois não em geral, não traduzia simplesmente os pontos de vista dos
havia lido uma palavra da de Cícero. filósofos gregos, mas acrescentava seu próprio julgamento
Quanto ao material de Posidônio que Cícero solicitou, e sua disposição pessoal dos tópicos (Fin., 1.5-6). A deper..-
revelou-se escasso e desapontador (III.8). Embora fosse útil, dência específica em relação ã sua fonte, que ele reconhe-
como ele esperava, para tratar dos deveres em circunstân- ce aqui, pode referir-se à decisão de adotar e acompanhar
cias particulares, relevantes para o Livro III, Cícero declara- de perto a estrutura do tra~ado de Panédo, que menciona
se insatisfeito com todo o material que reuniu para a obra, .freqüentemente (e.g., I.9-::0; 11.9; 11.88; 111.7 ss.; III.33-4).
razão pela qual se voltou para suas próprias fontes (III.34). :VIesmo nesse aspecto, Cícero acrescentou dois tópicos
Estudiosos têm, no entanto, afirmado a dependência suplementares aos três que Panécio trabalhou.
de Cicero em relação a Posidônio. Mais: até com respeito
aos livros I e II, nos quais estamos em chão fume, seria difícil
saber ouâo tributário eíe é. De um lado, :nais freqüente e Temas e perspectivas
formal~ente que em qualquer outro de seus escritos filosó-
ficos, Cícero admite seu débito para com uma obra especí- Os livros do De offtcits tratam, cada qual, de um dos
fica; de outro, Plínio, o Velho (HNpref. 22-3), elogiando Cí- três tipos seguintes de deliberação que governam a condu-

XXII XXIII
--------------------D~d~~S-------------------- ---------------------Introdução----------------------

ta humana: a honestidade ou seu contrário; o útil ou seu sçm argumentar que os princípios morais acadêmicos e pe-
contrário e como resolver choques aparentes entre os dois ripatéticos gerariam preceitos similares (1.6) e seriam com-
termos antitéticos. Os dois tópicos suplementares (como p-atíveis com a formula para resolver conflitos aparentes
escolher entre dois caminhos honestos de ação e entre dois <ni.20); e ames censura do que refuta a doutrina epicurista
caminhos úteis) formam as conclusões dos livros I e li res- do prazer CI.S; 111.39; UI.117-20). já que nem os princípios
pectivamente (ver Sinopse). 7-,f:sicos da ética são examinados, a fortiori não pode haver
O leitor moderno pode ficar chocado no começo pela :Jm tratamento dos fundamentos metafísicos da ética, aos
i.cJ.clusão, de fato a proeminência, de "útil" e "oportuno" em qusis todas essas escolas dão tamanho valor.
um debate sobre a conduta ética. Esse enfoque não é ex- O De oificiis trata, ao contrário, da ética prática, que
clusivo de Cícero, mas deriva de uma caracteristica essen- s.conselha com base na "regra". No Livro I, o "honesto" é
cial do pensamento ético grego e romano. Todas as escolas dh·idido em quatro virtudes principais, às quais nossos offir
dogmáticas da filosofia grega afirmavam que o propósito da cfa, definidos como ações para as quais se pode encontrar
vida é a eudaimonia do indivíduo, palavra traduzida usual- dma justificativa convincente, estão ligados (1.15; 1.8; cf.
mente como "felicidade" ou "bem-estar", e que a chave LJ.Ol). Essas ações podem ser executadas pelo "homeo
para essa condição abençoada é fornecida pela natureza jom'· (na expressão vulgar), embora, quando o sábio as
(inclusive a natureza humana). As escolas ofereciam dife- executa, o entendimento subjacente à escolha e a consis-
rentes visões sobre o que fosse a eudaímonia e, portanto, tência dos atos dê a elas um valor moral mais elevado
sobre a finalidade da vida prescrita pela natureza (ver Sa- OIL14). Cícero pensa primeiramente naqueles que desejam
mário). Mas mesmo para aquelas que patrocinavam a virtu- iazer progresso moral e que não buscarão as vantagens
de, tal busca não se opunha ao cultivo do auto-interesse pessoais em detrimento do honesto quando realmente en-
propriamente entendido nem estava dele separada, pois, tenderem o que é honesto e vantajoso nas ocasiões especi-
ao ocupar-se da finalidade natura~ o homem realiza sua ficas (III.l7-19). Ele não se ilude com a possibilidade de
natureza e alcança a ventura. Os leitores de Cícero não se apresentar um código de comportamento completo para
sarpreenderiam, assim, ao vê-lo enfocar a questão do com- ::ada ocasião. O que ensina é como tomar decisões morais,
portamento considerando primeiro o honesto, depois o como analisar diferentes caminhos possíveis de ação: nós
útil, e esperando que as respostas concordassem em geral, deveríamos ser, diz, "bons calculadores dos nossos deve-
apesar da existência de áreas nas quais as duas parecem res'' (L59}
estar'em conflito. O que deu a essa obra notável sobre ética prática um
üm modo de compreender a perspectiva particular do !ugar destacado na história do pensamento político, entre-
De oificiis é considerar o que Cícero omite. A obra não é canto, é sua ênfase na moralidade social e política. Embora,
uma discussão da natureza da ética ou dos princípios pri- 7la apresentação, Cícero afirme que os preceitos sobre o
meiros da moralidade, que Cícero tentara no De finibus dever aplicam-se à vida como um todo, o que lhe interessa
0.7; III.20). Ele recorre à doutrina estóica da identidade do é o comportamento dos homens em sociedade, apresenta-
honesto e do útil, a que dá o nome de "regra" OII.Sl), e Co como a condição natural e melhor da vida humana
compara-a aos postulados da geometria (lll.33); estabelece Tll; 1.157-60; 11.12-15). No Uvro I Cícero insiste nc.uito, na

XXV
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dosdweres _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----------Introdução---------~

breve discussão da primeira virtude, a sabedoria, em que o -.::-..1 a estrangeiros ilustres (II.64; cf. 1.149); a liberalidade de
amor ao aprendizado não nos deve isolar da vida ativa. A Címon para com todos os habitantes de seu distrito não
virtude por ele considerada soberana é a segunda, a justiça, ce;n um paralelo romano. Só vagamente Cicero alude às
que governa o comportamento social (111.28). ·."antagens de favorecer o pobre com mostras de generosi-
A extensa discussão devotada à justiça, entretanto, re- ·.:b:de (!.49; U.62-3; 11.69-70). Certamente, algumas das rela-
vela que Cícero não está igualmente preocupado com todas ções de obrigações mútuas que ele descreve deveriam ser
as obrigações sociais de todos os homens. Embora mencio- <:!ais desiguais na realidade do que na teoria, mas Cícero,
ne o nosso dever para com a humanidade em geral U.S0- ao apresentar um ideal de conduta, respeita a igualdade
3), declarando mais tarde que a formula que proíbe a al- reórica: dessas relações.
guém ter proveito em prejuízo de outrem aplica-se aí (III.30; Como o tratamento do patronato e da hospitalidade ·já
111.42), também deixa claro que nenhum sacrifício material sugere, Cícero é seletivo com respeito tanto aos sujeitos
é requerido nesse nível (1.51-2). Ao discutir os diferentes quanto aos objetos da obrigação. Está primeiramente inte-
graus de companheirismo e a correspondente ordem de ressado naqueles que tomam ou aspiram a tomar parte,
prioridades das nossas obrigações (1.53-9), Cicero examina com alguma razão, na vida pública. Isso explica em parte a
as obrigações familiares, as amizades, os deveres para com l.onga passagem sobre o comportamento justo dos Estados
os vizinhos, os cidadãos e os indivíduos de mesma raça e em guerra 0.34-40), que será seguida por argumentos so-
língua, priorizando o auxílio prático aos compatriotas e, bre a inconveniência de fundar impérios pelo medo e a es-
depois, aos pais. Entre as relações normalmente incluídas poliação (H.26-9), bem como Sobre a verdadeira utilidade
nas discussões romanas de tais prioridades (e.g. Gélio NA da conduta clemente e honrosa dos Estados em relação aos
V.l3), a hospitalidade (hospitium) e a guarda (tutela) mere- 3eus inimigos, súditos e cidadãos (III.86-8). Também expli-
cem apenas breve menção (1.139; II.64; IIl.61; 111.70); o ca por que, no tratamento da terceira virtude (coragem ou
clientelismo é tido como uma relação tão humilhante pelos magnanimidade), todos, com exceção de um dos vinte e
membros de qualquer classe social que eles prefeririam crês capítulos (1.69-91) reservados às façanhas grandes e
morrer a depender de um patronato ou ser chamados clien- úteis, examinam as atividades civis e militares da vida pú-
tes CII.69). A omissão das duas últimas relações, a guarda e blica, incluindo o exercício de cargos (72-85). Isso é mostra-
o clientelismo, é sintomática da falta geral de interesse de do como o mellior cenário para alardear desprezo pela ad-
Ckero pelas obrigações para com pessoas consideradas so- versidade e perigo, apesar de a ambição dever sempre ser
cialmente inferiores. Embora afirme que temos obrigações mantida dentro dos limites ditados pela justiça (86-7).
até mesmo para com os inferiores, isto é, os escravos, nada Quando Cícero passa à quarta virtude (1.93-152), mos-
ouvimos sobre os deveres em relação aos clientes (laços tra-se novamente interessado em seus pares, embora, fina-
que poderiam estar enfraquecidos no ocaso da república) lizando, mencione que os estrangeiros, os não-cidadãos re-
nem sobre os vínculos entre patrão e ex-escravo. Ouvimos sidentes e os cidadãos têm geralmente deveres particulares,
falar tão-somente do patrocínio dos súditos de Roma e das e alude a profissões honrosas para as ordens mais baixas
cidades italianas (11.50; cf. 11.27; m.74); e a única hospitali- J.151} O âmago da discussão é a noção de decorum, con-
dade que interessa a Ckero é a dispensada na esfera públi- \·eniência, a qual ordena que escolhamos uma forma de

XXV1 XXV11
- - - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ --------------------ffliTvd~ãO--------------------

vida apropriada aos nossos talentos individuais e à nossa _55-64) dá ensejo a um debate sobre os entretenimentos e
posição material e sociaL Cícero freqüentemente abde aos edifícios públicos, principais formas da generosidade aris-
que têm ancestrais ilustres para imitar (I.116), e seus exem- ·::xrática no mundo antigo. O outro aspecto é a Hberalida-
plos são tirados dos líderes civis e militares do passado. - -; ie na prestação de serviços e, aqui, boa parte da argu.men-
Espera que mesmo os membros idosos da classe governan- r::ção (72-85) trata do que os ocupantes de cargos podem
te sirvam a República (1.123). A ênfase no sucesso vai de ~azer para todos ou para certos grupos da coletividade.
par com a observância de normas sociais que não devem -:'\lo deturparíamos seriamente o De offtciis se o descrevês-
ser afrontadas (1.199; 1.148). A pormenorizada discussão de -~·.emos como um manual, endereçado a membros da classe
Cícero sobre a conduta social, incluindo a aparência exter- goYernante, que versa sobre os deveres para com seus
na da pessoa (1.130-1) e sua casa (1.138-40), além da arte ptres na vida privada e para com seus concidadãos na vida
da conversação civilizada (1.132-7), é claramente ajustada pjblica.
ao comportamento aristocrático, e parte de seu aconselha- O terceiro livro trata do tópico que Posidõnio conside-
mento, por exemplo, sobre a absoluta inconveniência da r::Ju o mais importante em toda a filosofia (8). Cícero, pri-
nudez (1.129), está rigorosamente restrita à sociedade ro- oeiro, reconstrói as linhas do argumento perdido de Pané-
mana. Talvez o conhecimento que tinha da ruptura provo- cio, adotando como formula para resolver os conflitos apa-
cada pelas reviravoltas sociais de seu tempo o haja levado r-entes entre o honesto e o útil a noção, já implícita na dis-
a codificar os costumes que pretendia preservar. De qual- cussão de justiça no Livro I (21, 42), de que é contrário à
quer modo, o ensinamento ético torna-se indissociável das .natureza assegurar um benefício a um em detrimento de
lições de traquejo social, particularmente úteis àqueles que omro. Segue, então, seu próprio desenvolvL."11.ento, mos-
não nasceram necessariament~ para ele, mas ambicionam ::::ando-o compatível com as premissas tanto estóicas quan-
alcançá-lo. ~o peripatéticas. A palavra ''formula" é tirada do direito ci-
Quando Cícero compara as obrigações das diferentes d romano, que também fornece a acero alguns de seus
virtudes (1.152-61), sente novamente a dificuldade de enfa- :11ais interessantes casos processuais. Estes tornariam a
tizar nosso dever para com a sociedade, pois as exigências :)bra mais acessível aos leitores romanos, a maioria dos quais
de cada uma das três virtudes são comparadas às da justiça, de-,-eria ter recebido o tradicional adestramento jurídico para
não umas às outras. 3 v-ida pública sem ter enfrentado as dificuldades da filoso-
A ênfase prossegtJ.e no Livro 11, no qual o amparo dos fia grega. Mas o material do direito não está confma.do à
amigos é logo identificado como a coisa mais útil e benéfi- Justração. Qcero encontrou uma analogia no pensamento
ca que um indivíduo possa ter (H.ll-19). Mas apenas um legal romano para a casuística ou análise dos casos morais
capítulo (30) é devotado à amizade, o tipo de amparo ao praticado em alto nível pelas escolas filosóficas (IIL91). A
alcance tanto dos homens de destaque quanto dos homens ~ascinação que a categoria dos deveres, em dadas circuns-
comuns. É para os homens de destaque que Qcero oferece :âncias (e.g. excepcionais), despertava nos estóicos (1.31;
conselhos sobre o modo de alcançar a glória por meio da :!11.32; EI.92-6) é característica de seu interesse. Nela acero
boa vontade, da fé, da honra (31-51), e preceitos referentes ac-hou justificativa para o tiranicídio e, em particular, para o
à liberalidade (52-85). O aspecto financeiro da liberalidade 2ssassinato de César por homens que haviam sido seus ami-

XXVIII XXIX
;'~.i. ·'··---------------.ln~dução---------------------

-'.· '

gos. Pois, se a formula proíbe indivíduos e Estados de se be- __ '.'h:.c::·.·:::::: i':-om" (70) e suas relações com a mais sublime
neficiarem à custa de outros, não proíbe porém cidadãos res- · ··~<-:lfi,:.r.::c~·:Oo filosófica (77).
ponsáveis pela pãtria, amigos e humanidade em geral de .Ess:: conhecimento dos recentes progressos no campo
ferir aquele que prejudica sua comunidade e, por um com-
portamento sub-humano, coloca-se à margem da sociedade
;:
~·.
;';;''',':l~ combina facilmente com a igualmente forte con-
de Cícero de que o tradicional código aristocrático
dos homens (III.32; cf. III.19). ·'O• ,>·::···"de comportamento exemplificava as normas enun-
O direito e a jurisprudência romanos são relevantes pelos filósofos gregos, pois ele partilhava a visão
para o Livro III em um nível ainda mais profundo que o :::cóonai dos seus contemporâneos de que viviam em
técnico, pois têm conexão óbvia com a justiça, à qUal aqui, 5::-':::r ~Jade de declínio moml (1II.ll1-112; cf. 1!.65-6) e
novamente, é dada prioridade por ser uma virtude social. .;:;_::··,c~iam retomar ao mos maiornm ("o costume dos ante-
Embora Cícero alegue estar tratando do aparente conflito ·-.: .::·.!:.'>~ ..l-~:o{'). Assim, Cícero faz ingentes esforços para mos-
entre o útil e cada uma das quatro divisões do ~onesto . ·. :_::"~? ·~'.iê' as guerras por meio das quais Roma conquistou
(111.96), os conflitos que ocupam a maior parte do livro são .~:,.·. :.:npério foram empreendidas apenas como derradeiro
os que ocorrem entre a justiça e o interesse próprio, que se t:::·>-~t5,) em prol da paz (L35; 1.38; 11.26-7; cf. 111.46) e que
faz passar por sabedoria ou "sensatez" (40-96). Mesmo o · ·prrxedimentos ancestrais para declamção de guerm
conflito com a coragem (95-115) envolve a discussão da .~cavam o conceito filosófico de uma luta justa. Cícero
justiça de se manter o juramento (102-110; 111-l15; cf. 139); ·.y:;,,,:le;oL< desde o início usar como clímax do Livro III, por-
o COrLflito com a temperança (116-120) transforma-se em um . de toda a obra, o extenso exemplo de Marco Atílio
ataque aos epicuristas, nos quais Cícero condena particu- .;;,i·gc,'o um patriota-mãr::ir de meados do século III a.C.
larmente a adoção das virtudes como meios para o prazer
::\\1.11.4). Seu relato de como Régulo se sacrificou
porque, em sua visão, a justiça não pode ser encarada des~
· ,;:·:..:-.;,. proteger os interesses romanos, mantendo a palavra
se modo. O ataque à "sensatez" aparente leva Cícero a tra~
~·::.6;, :w inimigo, termina com um tributo à seriedade com
tar dos problemas da fraude e da boa-fé, campo em que o di~
·~,,.~' ns antigos romanos observavam os juramentos (111-
reito romano fez enorme progresso nesse mesmo períodd
·c..o; · Os ancestrais romanos, assim, praticariam por instinto
graças aos editos dos pretores, que criaram novos tipos d::;
ação legaL Ckero descreve a tarefa da filosofia como a de ele- ·. ;~•:.~ :::ts gregos se contentavam em pregar.
var a conduta humana até o padrão estabelecido pela lei na- Essa já fora a mensagem das obras de filosofia política
tural, mas também pensa que os códigos legais humanos de- ;~~<':' Ccero escrevera na década anterior, o De re publica

veriam aspirar a tal padrão (69-78). Um homem como Quintd ;,~·>:e apenas parcialmente preservada) e o inacabado De
Múcio Cévola, o pontífice, que criou para si um padrão de :e;tZn1s. O De re publica é uma réplica romana à República
honestidade mais elevado do que o requerido pela lei vigen- ,;.;;: ?:atào, apresentando como ideal, não uma construção
te, também trabalhou, como juiz, para aprimorar os códigos >::·.::-Ka. mas o Estado romano ancestral, visto como a ma-
jurídicos (III.62; III.70). Ainda quando Cícero estava vivo, ·-:-:-i·J.!izaçào da teoria grega e restaurado em sua primitiva
ações legais oferecendo proteção contra a "fraude maliciosa'\ "<:,.diçào idealizada. O De legibus apresenta uma ossatura
(dolum malum, "mau dolo") foram formuladas (60-1). Cícero ·.~-;- c:ódigo jurídico para sustentar o Estado ideal. Fundado
também faz grandes reflexões em torno da noção legal de :·d ;:eoria do direito natural derivada da filosofia grega, o

XXX XJO(]
____________________ Dm~Wn%--------------------
- - - - - - - - - - - - - - - Introdução--------------------

código é similar em muitas partes ã lei existente ou aos •'·•< .,, .,.,, ;;ua exigência de guerras justas e tratamento igualitário
costumes romanos, exceto por certas inovações claramente .)·jo;-:J; -os súditos de Roma?
inspiradas pela própria experiência política de Cícero. No . , ~!esmo que não tenha logrado êxito, Cícero ao menos
De re publica, ele deixa claro que apenas a classe gover- ... __::~::oc1 :nanusear as ferramentas da filosofia grega, não ape-
nante, educada para um elevado padrão de conduta, pode . ::;-,.:;s para analisar e aprimorar os padrões romanos, mas
devolver a saúde ã república: os males que ameaçam esse · ~:::;-.;-;o.~ém para viver e agir racionalmente. Até sua crença
processo são o imperialismo impiedoso e a demagogia au- ·. ~<:-:.::ária no caráter sagrado da propriedade privada, cuja
tcpromovida (cf. O.ff, 11.60), os mesmos que, na obra pos- _;-:-;e:$en-ação apresenta aqui como o principal objetivo da
terior, são apresentados como responsáveis pela situação ;;.:>d.,;;dade organizada (11.73), baseia-se em uma visão da
precária da república. No De legibus, o direito natural, ou -· :":.c.ruoeza humana fundamentalmente social (1.158), em uma
ius gentium, é o padrão ao qual o ius civile romano pode e :2oci.a de como a sociedade se desenvolve (1.11-12; 1.54) e
deve conformar-se; como no De officiis, o princípio de não .em urna concepção de como a lei humana, que protege
auferir beneficios em prejuízo alheio (111.23), particular- ::1s instituições (1.21; 1.51), está relacionada com o direito
mente por fraude e astúcia (III.68-72), princípio que integra r~:-.:ural QII.68-9; 111.72). Nesse sentido, o De officiis trans-
o ius gentium, aparece permeando os procedimentos legais - ..:en.de suas limitações - alusões contemporâneas, precon-
romanos, graças ao postulado da "boa-fé". Juntas, essas três c.eitos romanos, tendências políticas. Sociedades diferentes,
obras apresentam a fórmula de Cícero para a regeneração da ~m momentos distintos, encontraram nele não só um repo-
classe governante de Roma, uma fusão dos preceitos da fi- <;<itório de experiência política como também um exemplo do
losofia grega .com os valores tradicionais dos grandes esta- s:gudo discernimento que as crises políticas p::>dem suscitar
distas romanos do passado. e-m um estadista realmente instruído.
Ao longo do De officiis, a orientação política de Cícero
torna-se evidente. Já notamos como sua visão de César e
Antônio segue de perto, aqui, a de suas cartas pessoais. Ou-
tros inimigos, inclusive Clódio e Crasso, são apresentados
como exemplos morais negativos 01.58; 1.25; 1.109; 111.73;
!11.75). A ins-istência de Cícero na concordia ordinum. ("har-
monia das diferentes classes") e a manutenção do crédito
S.nanceiro, sobretudo durante seu consulado, são defendi-
das (11.84). A mesma falta de imaginação com que ele en-
i~
' frentou, na qualidade de político, os problemas econôrrJ-
cos e sociais de seu tempo, revela-se aqui na alternativa
que oferece aos programas populares para a distrib~ição
de terras e o perdão de dívidas (11.72-4; 11.78-84). Em 1ugar
·''··
dos esquemas propostos por seus adversários para a redis-
tribuição das riquezas existentes, sugere a tomada de novos
bens por meio do imperialismo (11.85). Como conciliar isso

XXXII XXXIII
Cronologia

:·J<) 2..C. Nascimento de Cícero, em 3 de janeiro


:\'ascimento de Pompeu
:C+ C. Mário, cônsul II, triunfa sobre Jugmta
:Ji3-l C. Mário, cônsul III-V, derrota os cirnbros e teutões
:,~.;) C. Mário, cônsul VI. Nascimento de Júlio César
9~ L Lidnio Crasso e Q. Múcio Cévola, cônsules, aprovam a
lei Iicínia Múcia. Ressentimento dos aliados italianos
)l-88 O assassinato do reformador M. Uvio Druso leva ã Guer-
ra Social entre Roma e seus aliados italianos, que são ven-
cidos, mas obtêm a cidadania romana
Serve na Guerra Social sob as ordens do pai de
Pompeu
Est-uda Direito com Q. Múcio Cévola (áugure)
::;~ L. Sila marcha sobre Roma e em seguida parte para o
Oriente a flm de combater Mitridates. O reformador P. Sul-
pício é assassinado
Ouve Fílon de larissa em Roma. Estuda oratória
:><-- Mário toma Roma. Posidônio em Roma, como embaixador
Estuda Direito com M. Múcio Cévola (pontífice)
:>5 Morte de Mário
De inventione (escrita após 91)
"3-1 Sila volta a Roma, ordena proscrições e toma-se ditador
S:: Sila cônsul
Defende Sexto Róscio, sua primeira causa pública
-:;.g Sila recolhe-se à vida privada. Morre

XXXV
_____________ DruM~---------------

Viage:ns e estudos na Grécia e na Ásia: ouve Antíoco Crasso vai à Síria lutar contra os partas. Pompeu gover-
de Ascalão, Posidônio, Zenão e Fedro (os dois últi- na a Espanha da Itália, por meio de legados
mos, epicuristas) Q. Cícero serve sob César, na Gália (54-52)
75-4 Questor em Lilibeu, na Sicília De re publica (iniciada)
73-1 Revolta dos escravos liderada por Espártaco De:rota e morte de Crasso
70 Primeiro consulado de Pompeu e Crasso Eleito áugure no lugar de M. Crasso
Acusa Verres por extorsão na Sicília Pompeu eleito cônsul único depois do assassinato de P.
69 Edil: promove jogos Clódic e outras violências
67 Pompeu livra o Mediterrâneo dos pi...-atas Pri.r':leiras tentativas no Senado de chamar César da Gália
66 Pompeu recebe o comando contra Mitridates ~ntes que expire seu comando
Pretor. Discursa em favor do comando de Pompeu Parte para governar a Cilícia, chegando a 31 de julho
65 Nascimento de seu filho Marco. Seu irmão Quinto Quinto serve sob suas ordens
torna -se edil De re publica (publicada)
63 Desmascarada a conspiração de Catilina De legibus (iniciada)
Cônsul com C. Antônio. Executa os conspiradores Deixa a Cilída (30 de julho) e chega ã Itália (24 de
sem julgamento novembro)
62 Pompeu volta a Roma em dezembro Em janeiro, César atravessa o Rubicão em direção à Itália,
Quinto Cícero é pretor nomeando-se ditador
61 Pompeu triunfa sobre Mitridates Empreende esforços de paz, embora tenha recebido
Testemunha contra P. Clódio, acusado de sacrilégio um comando de Pompeu
Quinto Cícero governa a Ásia (61-58) Em março, Pompeu deixa a Itália e ruma para o Oriente
60 Pompeu, César e Crasso formam o primeiro triunvi~to Em junho, deixa a Itália para juntar-se a Pompeu
59 C. Júlio César, cônsul, governa com mãe forte Em agosto, Pompeu é vencido por César em Farsália
58 César inicia a conquista. da Gália Volta à ltália e espera pelo perdão de César, em Bn.L'l-
Injunções de P. Clódio provocam o eXtlio de Cícero dísio
em março Em setembro, Pompeu é assassinado no Egito
57 Pompeu encarregado da distribuição de cereais por cin- César toma Cleópatra rainha do Egito
co anos Em julho, perdoado por César juntamente com Quin-
Q. Cícero serve sob as ordens de Pompeu (57-6) to e seu sobrinho QJinto Jr.
Chamado do exílio, Cícero volta a Roma e:n se- Em setembro, César retoma e assume o governo. Parte
tembro para combater os republicanos na África
56 Renovação do primeiro triunviratc em Luca Em abril, César vence os republicanos na África, em Tapso:
Cícero, por cautela, cessa de se opor aos triúnviros suicídio de Gatão
55 Pompeu e Crasso cônsules: ambos recebem comandos de Divorcia-se de Terência
cinco anos. O comando de César na Gália é prorrogado Pronuncia, no Senado, o Pro Marcello, agradecendo
De oratore César por sua clemência

XXXVl XXXVII
_________________ Drudeoo~---------------

Casa-se com Publília Topica


Elogio de Gatão (perdido) Laelius de amicitia
Brutus De officiis
Paradoxa stoicorum Em abril, depois da batalha de Mutina, ambos os cônsu-
Grato r les morrem
Partítiones oratorlae Divulga a Quinta-Décima quarta Filípica
Em novembro, César deixa Roma para combater, na Es- Em agosto, Otaviano assume o consulado
panha, os republicanos liderados pelo filho de Pompeu Em novembro, o triunvirato de Antônio, Lépido e
45 Em janeiro, Túli.a tem um filho, mas morre em feve- Otaviano implanta a lei Titia
reiro Decretadas proscrições: Cícero na lista
Em março, César vence os republicanos na Espanha, em Em 9 de dezembro, é assassinado
Munda _\" E. Algumas datas são aproximadas. Foram Omi-
Em abril, o jovem Marco começa seus estudos em tidas algumas obras menores, dificeis de datar.
Atenas
Consolação a si mesmo (perdido)
Hot1ensius (exortação à filosofia)
Academtca
De.finibus
Tusculanae e De natura deorum (iniciadas)
44 César nomeado ditador perpétuo. Recusa a oferta de
urna coroa, das mãos de Antônio. É assassinado em 15
de !llarço
Antônio assume os poderes consulares
Em abril, Otaviano (depois Augusto) viaja para a Itãlia
Em abril-junho, visita suas casas de campo na Itália
Em julho, o Senado atribui prov'mcias a Bruto e Cássio
Em 17 de julho, parte para a Grécia, mas volta rapi-
damente
Em 31 de agosto regressa a Roma
Em 2 de setembro, pronuncia a Primeira Filípica,
discurso contra Antônio
Em outubro-dezembro, visita suas vilas na Itália
Escreve a Segunda Filípica
De divinatione (terminada)
De jato
De gloria (perdida)

XXXVIII XXXIX
Sumário das doutrinas das
escolas belenfsticas

_.:;,._, breves considerações que se seguem foram escritas


;_;.:::1 ponto de vista assumidamente ciceroniano e com
,, ,C,·,,é;;.o e~pecial nas doutrinas éticas. Cícero percebia a dife-
,:-ç;:.:;-;_< crítica entre as escolas na resposta que cada uma dava
: "Qual é a fmalidade da vida?" (ver especial-
o De finibus V.16-23).
':rs estóicos sustentavam que a finalidade da vida era a
; ir ,~. _:.,. virtude seria o único bem, e viver bem significa-
•·iver virtuosamente. O vício, ao contrário, era o único
Ji "'z'. \""':l.ntagens exteriores como saúde, riqueza e semelhan-
;;,~o eram bens, mas apenas "coisas preferíveis"; doença,
., ·. ··::/.;:1:::·:-eza e mesmo a morte não eram males, mas "coisas não-
Ç"C:'d';eis''. Estóicos não-ortodoxos como Aríston e Erilo
:::ór.itiam sequer isso. Daí a premissa de Cícero ao lon~
-~ú Li-.-ro IH: nada é bom, exceto aquilo que é honesto.
".. , ,,., .. c;.;.n:-as palavras, a única coisa que nos beneficia é a vir-
So::nente o homem virtuoso e sábio é de fato feliz, e
-.i :.:;;.wisquer que sejam suas circunstâncias externas.
·.-:; homem sábio vive de acordo com a natureza, a sua
.:'-.~J:-~.1 natureza humana e à natureza universal, que é di-
.,,,,,~:: c providencial. Para os primeiros estóicos, vivia-se vir-
.?:·.::::_..,;2_;:-,eme pela escolha sábia e serena das "coisas confor-
:;_ aarureza", como descreviam as "coisas prefe!lveis". O
·":'''""-~'" sábio era comparado a um bom arqueiro mirando

XLI
- - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __ -----Sumário [:ias doutrinas das escolas helenfsticas - - - - -

o alvo; acertar o alvo não importava, e sim mirar bem, isto ·. ·:<m-se a criticar as de outras escolas, particdarmente a dos
é, escolher. Em outras palavras, virtude e felicidade depen- -~cs~óicos. O próprio mestre de Cícero, Fllon, professava um
diam não de alcançar as coisas preferíveis, mas do modo ~e:.i.cismo atenuado: ninguém seria capaz de obter um co-
de vê-las. r;.hecimento certo, devendo acatar provisoriamente a visão
Panécio chamou de "úteis" ou "benéficas'" as coisas r, ..lo::. examinados os argumentos, lhe parecesse. a mais con-
qce os primeiros estóicos chamaram de "preferíveis". Ele '-':CJ.cente.
discutiu o virtuoso e o benéfico em separado: pensava que O discípulo de Fílon, Antíoco, discordou do ceticismo
nós podíamos perguntar independentemente, de cada ação, :io :nestre. Afirmou que a Primeira Academia era realmen-
se ela era "virtuosa" e "ber..éfica". A seu ver, a virtude não ·:'õ' dogmática, designando a escola que ele próprio fundou
consistia mais em mirar bem as coisas preferíveis. Virtudes -"-'i.tiga Academia e os herdeiros de Arcesilau, Nova Aca-
e benefícios, em uma primeira observação pelo menos, po- .:~e~~a. Na prática, parece ter sido muito influenciado pelos
deriam ser especificados sem referência mútua. Entretanto, i:"SWICOS.
Panécio ainda acreditava que nada era, no final, bom e be- Aos olhos de Cícero, a ética da Antiga Academia e a
néfico a menos que fosse virtuoso; assim, levantadas as ~:ica dos peripatéticos (aristotélicos) eram praticamente a
duas questões a respeito da mesma ação, as respostas se- · ·- :::1.esma: ambas afirmavam ser a virtude o sumo bem. em-
riam as mesmas. Se uma ação parece ao mesmo tempo be- . ·>:xa os bens exteriores também fossem de valor real, Posto
néfica e desonesta, uma aparência deve ser enganosa. Po- - ço;_.:e menor. Se, para os estóicos, nada que não fosse hones-
de me parecer honesto herdar um grande patrimônio ou >_; poderia ser útil 011.20), os acadêmicos e os peripatéticos

vencer uma eleição, mas isso de fato só ocorre se eu o con- ;;~·ei:avam como útil, portanto boa, mesmo uma coisa des-
seguir sem agir desonestamente. '-i.nculada da honestidade e da virtude. Assim, se um ato
Os epicuristas encaravam o prazer como a finalidade ·:..'tsonesto enriquecia urna pessoa, Panécio considerava essa
da vida e afirmavam que a virtude deveria ser valorizada na -:<,ueza útil apenas na aparência, porque o ato era deso-
medida em que o promovia. Os deuses, acreditavam eles, :~esto: os peripatéticos diriam que era realmente útil e boa,
não têm nenhum interesse ou envolvimento nos assuntos ::.":.'.S que seus beneficios eram superados de longe pela
humanos. O homem sábio de Epicuro desprezava a vida ,_ ;:·>::::<:ersidade do ato.
pública, exceto nas emergências.
A Academia que Platão fundou em Atenas subsistiu ali
pelo menos até Fílon de Larissa fugir para Roma, tentando
escapar à invasão de Mitridates do ?onto, em 88 a.C. De
início, seus adeptos interpretavam o ensinamento de Platão
positiva e dogmaticamente. Já sob a direção de Arcesilau
(meados do século III), os acadêmicos enveredavam por
um caminho cético. Interpretando os escritos de Platão
como textos abertos e instigantes, mas de modo algum dog-
máticos, não cultivavam nenhuma doutrina positiva·.limita-

XLII XUII
Bibliografia

Obras antigas

Há muitas informações sobre a vida e o meio intelec-


::ual de Cícero em suas obras e nas de autores gregos e lati-
rws posteriores, todas disponíveis em tradução inglesa.

Obras de Cícero

As Cartas a Ático e Cartas a seus amigos estão disponí-


veis numa excelente tradução de D. R Shackleton Bailey pa-
ra a Penguin C!assical Series, que também traz volumes de
discursos selecionados e um volume de excertos de obras
filosóficas chamado On tbe Good Life. A Loeb Classical l.i-
brary editou todos os discursos e obras filosóficas de Cícero
com a tradução e o texto latino em face*. Uma nova série
de traduções das obras filosóficas acompanhadas do texto
em latim, notas e introdução, publicada pela editora Aris and
Phillips, foi iniciada com o excelente TusculanDisputations I,

• A Editora Belles Lenres, Paris, publica série equiv:ilente em sua Collection


des Universités, série Latine. Todos os discursos e demais obras de Cícero fo-
ram publicados nessa série em edições bilíngües latim-francês. (Nota do Edi-
:or brasileiro.)

XLV
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Bibliografia----------

aos cuidados de A. E. Douglas. Muito útil também a tradução :.tsgim como na edição da Clarendon Ancient History Series,
anotada de De re publica, em On the Commonwealth, Sabi- O.xford, ·1989, com substanciais comentários de N. Horsfall.
ne and Smith, Ohio, 1929. Uma introdução e comentário do
Livro I de Das leis estã disponível em Cícero de kgibus I, ed.
por~-- Rudd e T. Wiedemann, Bristol, 1987. Obras modernas
Ao estudar o De officiis, o leitor achará particularmente
interessante·. as cartas de Cícero de seus últimos anos de A segunda edição do Oxford ClassicalDictionary(l970)
vida; os discursos Em defesa de Sestio (Pro Sestio) e as Filí- :.raz urna breve introdução sobre a maioria dos tópicos con-
picas (especialmente I e 11); suas primeiras obra.s de filoso- cernentes à Grécia e à Roma antigas.
fia política, De re publica (preservada parcialmente) e De
legíbus (inacabada); as obras de fllosofia moral Sobre os fins
das boas e más coisas (De finibus bonorum et malorum) e, Biografia
em menor extensão, Gatão, o Velho: da virtude CCato Maior
de senectute) e Lélio: da amizade (Laelius de amicitia). Os D. L. Stockson, Cícero, a Political Biography, Oxford,
Paradoxos dos estóicos (Paradoxa stoicorum), em que Cíce- 1971, é um relato legível de sua carreira e do contexto polí-
ro submete as mais extremas doutrinas estóicas ao tratamento :ico desta; D. R. Shackleton Bailey, Cicero, Londres, 1971, uti-
retórico, e os livros sobre epistemologia acadêmica parcial- liza c profundo conhecimento que o autor tem das cartas de
mente preservados, Academica, em que defende sua verten- Cícero para evocar sua personalidade; E. D. Rawson, Cícero:
te cética da filosofia acadêmica, também são interessantes. A Portrait, Londres, 1975 (reimpressão em brochura, Bris-
tol, 1983), é um relate simpático, completado com uma con-
sideração sobre a contribuição intelectual de Cícero.
Outras obras antigas
Diferentes aspectos da vida e da obra de Cícero são
cobertos por ensaies, entre eles A. E. Douglas, "Cicerc the
A biografia de Cícero por Plutarco também está dispo-
Philosopher", em Cicero, editado por T. A. Dorey, Londres,
nível num volume da Penguin, Plutarch: the Fall ofthe Roman
1965. A Introdução (pp. 1-28) emJ. S. Reid, TbeAcademica
Republic, e na edição de]. L. Moles para a Aris and Phillips,
1988. O volume da Penguin sobre Salústio traz um relato da of Cícero, Cambridge, 1885, abrangendo Cícero e a filoso-
conspiração catilinária, que Cícero enfrentou em seu consu- fia, ainda merece ser lida. Ver também P. L. Schmidt, "Cice-
lado, feita por um contemporâneo mais moço de Cícero. O ro's Place in Roman Philosophy: a Study cf his Prefaces",
poema epicuriano de Lucrédo Da natureza das coisas (De · Classicaljourna/74, 1979, pp. 115-27.]. Glucker, "Cicero's
rerum natura), também editado pela Penguin, ilumina o Philoscphical Aff1Hations", The Question of ''Ecleticism ": Studies
meio intelectual de Cícero, enquanto é muito instrutiva, no in !ater Greek Philosophy, ed. por J. M. Dillon e A. A. Long,
que concerne à vida de Cícero e à sociedade em que viveu, Berkeley, 1988, é um exame válido da adesão de Cícero ã
a biografia de seu amigo íntimo, Ático, que devemos a Cor- Acad~mia cética em diferentes períodos de sua vida, mas sua
nélio Nepo, traduzida no volume da Loeb que contém Floro, tese não nos convence.

XLVI XLVII
---------Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ __ ---------Bibllognifiti---------

N. Wood, Cicero:s- Social and Political Thougbt, Califórnia, bridge, 1987, traz os textos básicos traduzidos com úteis co~
1988, visa a discutir o pensamento político de Cícero como mentários filosóficos. J. Glucker, Antiochus and the Later
um todo, em seu contexto histórico, mas tanto o tratamento Academy, Góttingen, 1978, é um relato detalhadíssimo e eru-
da história como a análise dos textos ciceronianos são tão dito das vicissitudes das escolas filosóficas como instituições,
simplificados que chegam a ser enganosos. e da Academia em particular, nos tempos de Cícero e pos-
A. E. Douglas, Cicero, Greece and Rome New Surveys in :crionnente. Ensaios sobre algumas das fllosofias e dos Hló-
the Classics, nll 2, Oxford, 1968 (com um adendo, 1978), traz .sofos influentes em Roma na Última República podem ser
um breve panorama crítico dos estudos ciceronianos. encontrados em Philosophia Togata, Oxford, 1989, ed. por
.:vt Griffin e]. Barnes.
Contexto intelectual
Contexto político
Um balanço substancial dos estudos sobre a época de
Cícero, abrangendo os dominios da filosofia, do direito, da Além das biografias de C1cero já citadas, que inevitavel-
historiografia e da arqueologia, pode ser encontrado em E.
mente descrevem em detalhe os principais acontecimentos
D. Rawson, Intellectual Life in the Late Roman Republic, Lon-
políticos do período, há vários relatos breves da história do
dres, 1985, obra erud.itíssima que não trata diretamente de Cí-
fim da República romana, como P. A. Brunt, Social Conflits
cero mas de seus contemporâneos. A segunda edição da
in tbe Roman Republic, Londres, 1971, e M. H. Crawford, The
Cambridge Ancient History, vol. IX, contém um capítulo "In-
tellectual Developments in the Late Republic" (um breve pa- RomanRepublic, Londres, 1978, e análises mais detalhadas em
norama que inclui Cícero) por M. Griffin. C. Wirszubski, Li- :.r. Gelzer, Caesar, Politictan and Statesman, Oxford, 1968, e
bertas as a Political Idea at R o me, Cambridge, 1960, discute E. S. Gruen, Tbe Last Generation ofthe Roman Republic, Ber-
alguns dos conceitos-chaves do pensamento político roma- keley, 1974. A segunda edição da Cambridge Ancient History,
no: ver também D. C. Earl, The Moral and Political Tradi- >:oi. IX, que trata do fim da República, também merece con-
tion of Rome, Londres, 1967, caps. 1 e 2.]. D. Minyard, Lu- sulta. A obra clássica sobre a queda da República é R. Syme,
cretius and the Late Republic, Mnemosyne Supplement 90, The Roman Revolution, Oxford, 1939, que trata dos aconte-
Leiden, 1985, compara os diferentes usos dos conceitos polí- cimentos da época em que De officiis estava sendo escrito
ticos e sociais feitos por Cícero e alguns de seus contempo- com um detalhamento fascinante.
râneos numa forma muito simplificada mas sugestiva. As instituições políticas, legais e sociais da República ro-
As doutrlnas filosóficas em curso na época são claramente mana são descritas em H. F. jolowicz e B. Nicholas, His-
resumidas em]. Bames, "Hellenistic Philosophy and Science", torical Introduction to Roman Law, 3ª ed., Cambridge, 1972;
O:xford History ofthe Cla.ssical World, Oxford, 1986, pp. 365 s., C. Nicolet, The World of the Citizen in Republican Rome, Lon-
e mais extensamente explicadas em A. A. Long, Hellenistic dres, 1980; e]. Crook, LawandLifeojRome, Londres, 1977,
Philosophy, Londres, 1974. O volume I do livro fonte de A. em que o uso do direito para pôr a nu os costumes sociais
A. Longe D. N. Sedley, Tbe Hellenistic Philosophers, Cam- romanos é de grande valia para a leitura de De officits.

XLVIII XLIX
--------Bibliografia--------

O modo de funcionamento da política romana e seu con- ::io destinatário e do "problema fome" pode ser encontrada no
texto social são analisados de formas diferentes e conflitan- >'dume I de M. Testard, Cicéron Les Devoirs, Paris, 1965.
tes em L. R. Taylor, Party Politics in the Age ofCaesar, Ber-
keley, 1949; M. Gelzer, Tbe Roman Nobility, Oxford, 1969;
G. E. M. deSte. Croix, Tbe Class Strnggle in tbeAncient Greek Aspectos específicos
Wor!d, Londres, 1981, pp. 327-72 (sobre Roma) e P. A. Brunt,
Tbe Fal! ojtbe Roman Republic and Related Essays, Oxford, Boa parte do trabalho relativo a De o.fficiis voltou-se para
1988. " recuperação das idéias ftlosóficas de Panédo, fonte con-
O imperialismo romano no período final da República fessa de Cícero para a maior parte dos Livros I e 11 (cf. In-·
é examinado em relação com a política e a economia de "·odução, pp. XIX-XXI), ou para separar os elementos cicero-
Roma em E. Badian, Roman Imperlalism in the Late Repu- nianos das concepções de Panédo e outras possíveis fontes.
b!ic, Oxford, 1968, e Publicans and Sinners, Oxford, 1972, Entre alguns estudos recentes a esse respeito: A. Dyck, "Notes
e em K. Hopkins, Conquerors and Slaves, éambridge, 1978, on Composition, Text, and Sources of Cicero's De OfficiiS',
caps. 1 e 2. Hermes 112, 1984, pp. 215 s.; P. A. Brunt, "Aspects of the So-
ciêJ Thought o f Dio Chrysostom and the Stoics", Procee-
dings oj tbe Cambridge Pbilological Society 1973, pp. 8 s.
De offlciis (contém uma preciosa análise de O.ff., I, 150 s. nas pp. 26 s.);
_I. L. Ferrary, Philbéllenismeetimpérialisme, Paris, 1988, pp.
Visão geral 395-424 e 589-602; C. Gill, "Personhood and Personality: The
Four-Personae Theory in Cicero, De O.fficiis 1", Oxford Stu-
Uma introdução geral pode ser encontrada na útil edi- ,ifes ínAncient Philosophy6, 1988, pp. 169 s.
ção latina de H. Holden, M. Tutli Ciceronis De O.fficiis Libri Uma reação à idéia de que Cícero não passava de um
Tres, que foi várias vezes republicado. A introdução nas ver- mero transcritor vem produzindo estudos que se concentram
sões anteriores a 1866 é superior, mas as notas são mais pro- n:J.s idéias e métodos próprios de Cícero. No que concerne
veitosas nas versões posteriores a essa data (muito embora a De o.fficiis, a introdução de Testard supracitada já reflete tal
muitas delas digam respeito a problemas de uso do latim). 3.titude. Ver também]. Annas, "Cicero on Stoic Moral Philo-
Uma breve introdução, particularmente proveitosa no que sophy and Priva te Property", Philosophia Toga ta, ed. por
concerne à influência posterior da obra, acompanha a tradu- ;-,r. Griifin e]. Barnes, Oxford, 1989; E. M. Atkins, The Vit1ues
ção com notas de]. Higginbotham, Cícero on Moral Obli- of Cicero S De Officiis (tese de doutorado em Cambridge não
gation, Calífórnia, 1967; outra tradução anotada, particular- publicada, 1989); '"Domina et Regina Virtutum': Justice and
mente útil no que concerne aos exemplos históricos de Cí- Soei etas in De OfficiiS', Phronesis.
cero, é a de H. G. Edinger, Cícero De Officiis/OnDuties, Nova As estreitas relações entre De o.fficiis e outras obras de
York, 1974. Uma discussão muito inteligente do escopo da Cícero, notadamente as Filípicas, são bem tratadas por P.
obra, das circunstâncias da sua composição, da importância :•IacKendrick, The Philosophical Books of Cícero, Londres,

L 11
_________________ nru~~-----------------

1989, pp. 249 s., que também traz uma visão equilibrada da Sinopse
contribuição de Cícero à filosofia.
Certos conceitos e atitudes-chave, encontrados em De
o.fficiis e em outras obras de Cícero, foram proveitosamen-
te analisadas em seu contexto romano. Sobre o imperialismo,
ver P. A. Brunt, "Laus imperü: Conceptions of Empire Preva-
lent in Cicero's Day", em lmperialism in the Ancient World,
ed. por P. Garnsey e C. R. Whittaker, Cambridge, 1978, e E.
S. Gruen, Tbe Hellenistic World and the Coming ofRome, Ca-
lifórnia, 1984, vol. I, caps. 5-10. Sobre a propriedade privada
ver;: M. Carter, "Cicero: Politics and Philosophy", Cicero and
Ver,gil, ed. por]. R C. Martyn, A1nsterdam, 1972. Sobre a ami- Uvrol
zade, ver P. A. Brunt, '"Amicitia' in the Late Roman Republic",
1-6 INTRODUÇÃOo DEDICATÓRIA A MARCO
Proceedings ofthe Cambridge Philological Society 11, 1965,
1-4 Propósito da fllosofia latina
pp. 1-20, revisado como cap. 7 de TbeFall oftheRomanRe-
public and Related Essays, Oxford, 1988. Sobre o offtcium 4-6 O tópico dos deveres: o valor da visão
(dever), ver Brunt, "Cicero's Officium in the Civil War", jour- estóica
nal ofRoman Studies 76, 1986, pp. 12 s. Sobre a glória, F. A.
--10 ESCOPO DA DISCUSSÃO
Sullivan, "Cicero and Gloria", Transactions oftbeAmerican
Philologica!Association72, 1941, pp. 382 seg. Sobre o otium 7-8 Questões sobre o dever
(lazer),]. P. V. D. Balsdon, "Autorictas, Dignitas, Otiuni', Clas- 9-10 Cinco tipos de deliberação sobre os
sical Quarlerly 1960, pp. 43 s. deveres

11-17 HONESTIDADE E NAnJREZA HUMANA


11-14 Raízes das quatro virtudes
15-17 Relações mútuas das quatro virtudes

18-151 AS QUATRO VIRTUDES


18-19 Sabedoria
10-60 Virtude social
20-41 justiça
20-3 justiça negativa: justiça positiva e ma-
nutenção da fé
23-9 Formas correspondentes da injustiça
positiva e negativa

UI UII
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Sinopse _ _ _ _ _ _ _ _ __
_ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e s - - - - - - - - -

29-33 Dificuldades na determinação da justi- (126-40); ânimo (131-2); conversação


ça: parcialidade (29-30); circunstâncias (132-7); casa
Gl-2); exemplo legal 141 Sumário das quatro virtudes
33-41 Justiça para o malfeitor (33); para o 142-4 Método
inimigo (34-40); para o humilde 145-7 Descoberta de faltas
41 Injustiça por força e fraude 148-9 Rejeição do cinismo e respeito pela so-
42-50 Liberalidade ciedade
42 Os três problemas da liberalidade 150-1 -Decoro ao ganhar a vida
43 (i) Evitar a injustiça
44 (ii) Manter-se pelos próprios meios 152-160 COMPARAÇÃO DAS VIRTUDES
44-59 (iü) Dar de acordo com a condição: 152 Necessidade da comparação
conduta (46); benevolência para 153-9 justiça vs. sabedoria 053-8); grandeza
conosco (47); serviços prestados a de ânimo (157); moderação
nós (48-9); graus de amizade 160 A posição dos deveres em relação à
60 Necessidade de experiência justiça
161 Conclusão
61-92 Grandeza de ânimo
61-5 A visão popular da glória; ambição e Uvro TI
justiça
66-9 O desprezo pelas coisas externas 1-8 INTRODUÇÃO
69-91 Prática das coisas grandiosas e úteis 1 Delimitação do assunto
na vida pública: política vs. lazer (69- 2-6 Apologia do "homem bom": o valor
73); ações civis vs. militares (74--85); da filosofia
advertência aos homens públicos 7-8 Apologia do erudito: o mé!odo aca.dê-
92 Prática das coisas úteis na vida privada mico

93-151 Decoro e virtudes correlatas 9-87 AQUISIÇÃO DE COISAS ÚTEIS


93 O conjunto das virtudes 9-22 O útil e as virtudes·
94-8 Decoro geral e específico 9-10 Relação do útil e do honesto
99 Vergonha e justiça 11-20 Nada é mais útil que a ajuda humana
100-21 As quatro regras: a natureza do ho- 21-2 Po: que os homens ajudam-se mutua-
mem (100-6); cuidados pessoais (107- mente
14); fortuna e circunstância (115); es-
colha de uma carreira 23-85 Obtenção de ajuda e estima de outros
122-25 Decoro e condição social 23-9 A inutilidade do medo
126-40 Categorias do decoro: aparência física 30-51 A conquista da glória

LIV LV
------------------Dm~~------------------ __________________ Stnopse ------------------

30-1 Amizade e glória 35~9 o· logro da utilidade aparente: a histó-


32-8 Meios para a glória: benevolência (32); ria de Giges
manter e consolidar a fé (33-4); honra
(36-8) 40-120 UTILIDADE APARENTE E VIRTUDES
38-43 Justiça e glória verdadeira
40-9 Justiça
44-51 Conselho ao jovem para conquistar 40~2 vs. utilidade própria aparente
glória
43-6 vs. utilidade dos amigos aparente
52-64 Liberalidade financeira <i6-9 vs. utilidade da cidade aparente
52-5 Advertências
56-60 Extravagâncias: construções e entrete- 50-96 Justiça e sabedoria ilusória
nimentos públicos 50-74 A justiça e a lei
61-4 Liberalidade: doação a particulares 75-8 "O homem bom~
65-85 liberalidade nos préstimos 79-88 Tentação do poder para os indivíduos
65-71 Aos indiVíduos (79-85) e para as cidades
72-85 À comunidade em geral 89-92 Mais problemas filosóficos e jurídicos
92-6 Problemas de promessas e depósitos
86-87 Aquisição de saúde e dinheiro
97-115 Grandeza de espirlto
89-90 COMPARAÇÃO DAS COISAS ÚTEIS 116-120 A quarta virtude: critica ao hedonismo

Livrom 121 CONCLUSÃO


1-6 INTRODUÇÃO
1-4 O lazer de Cícero comparado ao de
Cipiào
5-6 Exortação a Marco
7-39 O CONFLITO APARENTE ENTRE
O ÚTIL E O HONESTO
7-18 justificativa do plano de Panécio
13-17 Digressão sobre a noção popular de
bem
19-28 A solidariedade natural promove a
"regra de procedimento"
29-32 Aplicação da "regra de proceàimento"
a p:-oblemas particulares
33-4 Independência de Cícero ao tratar este
tópico

LVII
Dos deveres
Livro I

I.l. Hâ um ano, Marco, meu fLlho, ouves os ensina-


mentos de Cratipo, e isso em Atenas! Deves, pois, estar am-
plamente informado dos preceitos e doutrinas filosóficas
em razão do elevado prestígio de teu mestre e da cidade -
um pode endquecer-te com sua ciência, a outra com seus
exemplos1 • Não obstante, como pessoalmente sen:pre asso-
ciei para meu proveito os estudos gregos aos latinos - e
não s6 em filosofia, mas também no exercido da oratória-,
julgo que o mesmo deves fazer, para alcançar igual proficiên-
cia em ambos os discursos 2 •
E nisso, parece-me, pude ser de grande valia para nos-
sos homens, de sorte que não apenas os que igno:am as
letras gregas, mas até os que nelas são instruídos julgam ter
obtido inúmeros aperfeiçoamentos na arte de aprender' e
julgar'. 2. Por isso, tu aprenderás, certamente, com o princi-

1. Para Cratipo (e todas as personagens nomeadas), ver "Notas Bio-


gráficas". Cf. DefintbusV.2-6 para os exemplos de grandes homens, indusive
filósofos, que tinham monumentos em Atenas.
2. Apesar da hostilidade inicial aos mestres de retórica grega, esse estu-
do podia, no inkio do século I d.C., ser considerado trndicional com relação
ao novo ensino em latim. Cf. Brutus, 310.
3. Alguns editores substituem dtscendum (aprender) por dicendum
(discursar).
4. Em I1.2-9, Cícero se dirige novamente a esses dois grupos. Ele já
havia tratado da aversão ao aprendizado da filosofia em latim nas Academica

3
pe dos fiiósofos de nossa é ca pode ser admitido nesse número, a não ser talvez
sejares - devendo desejar a~ ~ e por quanto tempo o de-
Todavia, lendo os nossos escr~o~ te _aborre_ças do assunto.
D<err<étno Falério, polemista sutil, orador nada veemente,
porém agradável: como podes perceber, um discipulo de
dos peripatéricos po· ' nao mmto distanciados
- - 1s uns e outros qu Teofrasto. No que nos diz respeito, decidam os outros se
cos e platônicos~ a . eremos ser socráti-
-, respetto do próprio . ~d nos houvemos bem em cada um dos gêneros, pois a verda-
garãs teu tirocínio C c . con,eu o empre-
. com e1e!to, nada proíbo) " d de é que seguimos ambos. 4. Penso sem dúvida que Pla-
du21rãs, graças ã leitura dei . .._ ecerto pro-
rado. Nem dese'aria ~ ~ e_s, um discurso latino muito apu- tão, caso desejasse cultivar o discurso forense, tê-lo-ia feito
sido dito e t J , e obvto, que se considerasse ter isso de modo grave e copioso; e Demóstenes, se tencionasse
tos a erudi ~~of~o a~~gante, porqu~nto, concedendo a mui- alardear o que aprendera de Platão, fá-lo-ia de forma bri-
lhante e ataviada. Digo o mesmo de Aristóteles e Isócrates,
do orador ~ falar ~e ~ca, se para ~ assumo as qualidades
. ~rma conveniente, clara e elegante _ cada um dos quais, deliciado com seus próprios estudos,
pa~ece-me que o retvmdico como que por direito '"Ó ti 0 ' desdenhou os do outrd.
pots nesse. esforço consumi toda a minha vida. p. p ' n. Mas, como tivesse decidido escrever-te algo neste
3. Ass1m, exorto-te acima de tud momento, e muitas coisas depois, quis começar de preferên-
leias dedicadamente não apenas os %:esud~ícero, a que cia por aquilo que fosse mais conveniente ã tua idade e à
també 1' tscursos mas
m o_s rvros que escrevi a respeito da filosofia <lue já minha aptidão9• Pois, embora tenham sido discutidos acura-
quase se ;gualam a eles". Naqueles, com efeito hâ . . da e abundantemente, na filosofia, diversos assuntos não só
mas tambem deve ser cultivado este gênero de dt''scu vtgorl' graves como úteis, parecem muito amplos aqueles que, a
mo e co n t'd - " ·
1 O'. veJO mesmo que a nenh d rso ca- propósito dos deveres, foram transmitidos e prescritos por
cedeu trabalhar e' cultivar ao mesmo t~:::poos gregos su- ela. De fato, parcela alguma da vida, quer nos negócios pú-
g ênero , a orat6 na· f '
.orense e a argumem açao
, um e outro
- serena. Nin- blicos, quer nos privados, quer nos forenses, quer nos do-
mésticos, quer nos da esfera estritamente pessoal pode pres-
cLrldir do dever. E não só no cultivá-lo reside toda honestida-
e no Definíbus. Mantendo sua postura ad" . d 10
"Sumário" p XUII) Cíce . ac emlca, e tendência cêtica (ver de da vida como, no negligenciá-lo, toda torpeza •
to encoraJa seu filho e Jeito al
suas própria~ escol?as morais 0 _2 , 1. 9 , Il.S, III.lS, III.3~~ em ger a fazerem
' · •
5. Por certo, esse debate é comum aos filósofos. Quem
5· Ver Sumáno das doutrinas das escolas hei • · , há, com efeito, que ouse dizer-se filósofo quando não exa-
Biográficas" ("Sócrates·· e "Platão") Cf III erusucas , p. XLI, e "Notas
6 o · · .2 0 e pp. XLII-XLIII.
livros, ~ • ;~ ~~:~:;~c~~~~~o :su:~-:a_ra l7 obras filosóficas, divididas em 41
8. A emulação com os gregos foi um motivo importante da invenção
em fase de composição). Ver]. cra..:f?o:· ;lg~m;s das quais estavam ainda ciceroniana de uma obra f!losófica em latil:n. Cícero enfatiza a retórica foren·
publisbed Omtton.s, Gottíngen ' · u tus Cícero.- the Lost and Un- se na medida em que esta gozava de mais prest1gio que as outras duas, a deli-
desculpãvel dada a impression~nte '~d ·. exagero de C!cero talvez seja
1984 12 0
sóficas. rapl ez com que elaborou suas obras filo- berativa e a demonstrativa. A seu ver, requeria habilidade nos três nlveis de
e!ocução.
7· Par-.a a ampla concepção ciceroniana da 0 . 9. Sobre a adequabilidade do De offtciis a seu destínatârio, ver "Introdu-
oratório, ver De oratore r 4 e IH E ratóna e do adestramento
. · ·70· m Brutu.s 120-121 op6 1 ~ .
qua d a à fllosofia ao estilo adequado ~ e a e ocu~~o ade-
ção", pp. XVI-XVIll.
.. f ' 10. Para o contraste entre o objetivo geral da ética prática, aqui sugeri·
. d " orat 6 na orense A P";~ · •
nza a como o gênero méd"o da . · •uuelra e caracte- do, e o tratamento bastante seletlvo apresentado no De o.fftciis, ver "Introdu-
6
clar.a capaz de trab.Uhar os " ' ' ?rat ndooml O~tor91-6, onde Ocero ~e de-
1

~ mve1s e e ocuçao {100-5). ção", pp. XXV-XXIX.

4 5
---------------Dru~------------~- ----------------- Ltwol-----------------

mina nenhum preceito do dever? Hã, porém, certas disci- a aproximar-se da descoberta do dever13 . Neste momento e
plinas que pervertem inteiramente o dever, dados os limi- nesta questão seguimos, pois, preferencialmente os estói-
tes que propõem para os bens e os males 11 • Pois quem ins- cos, não como intérpretes, mas, conforme costumamos,
titui o sumo bem de modo tal que nada tenha em comUm tirando de suas fontes e segundo o nosso tirocínio e arbítrio
com a virtude, aquilatando-o pe!as suas conveniências e aquilo que nos aprouver10 •
não pela honestidade, esse, se permanece coerente consi- 7. Parece conveniente então, já que toda uma argu-
go mesmo e não se deixa entrementes vencer pela própria mentação sobre o dever está por vir, definir antes o que
natureza, não poderã cultivar nem a amizade, nem a justiça seja esse dever - o que me espanta ter sido esquecido por
nem a iiberalidade. Sem dúvida, de modo algum serã forte Panécio. Com efeito, todo ensinamento amparado pela
aquele que julga a dor o sumo bem, ou temperante aqu~le razão deve começar pela defmição, para entender-se de que
que, como sumo bem, entroniza o prazer. se trata e sobre o que se argumentará15 .
6. Embora isso seja tão evidente que não necessita ar- m. Toda investigação a respeito do dever é de dois ti-
gumentação, todavia foi por nós discutido em outro lugar'l. pos. Um envolve o limite dos bens, o outro os preceitos
Tais disciplinas, portanto, a serem concordes consigo mes- pelos quais o seu uso para a vida passa ser conft.rrnado em
mas, não poderão aflrmar coisa alguma a respeito do dever. todas as partes. Exemplos do primeiro tipo dessa divisão:
Nem, sobre o dever, se tirarão preceitos sólidos, estávei~ e se todos os deveres são perfeitos, qual dever é maior que
condizentes com a natureza, exceto daquelas para as quais outro e coisas assim. Embora os deveres dos quais se mos-
apenas a honestidade deve ser buscada por si mesma ou tram os preceitos se refiram ao limite dos bens, isso fica
daquelas que sustentam que cumpre buscá-la acima de tu- menos evidente quando parecem considerar a instrução da
do. Semelhante prescrição é própria dos estóicos, dos aca- vida comum. São os que nós examinaremos nestes livros 16•
dêmicos, dos peripatéticos, porquanto, já hã tempos, foram 8. Há também outra divisão do dever. Pois fala-se tan~
rejeitadas as concepções de Ariston, Pirro e Erilo, que toda- to de um dever médio quanto de um dever perfeito. Cha-
via teriam o direito de argumentar a propósito do dever ,se
houvessem deixado alguma escolha dos assuntos, de modo
13. Esses três fllósofos, por diversas razões, achavam que as coisas exte-
riores eram indiferentes; nenhuma condição exterior (riqueza, pobreza, saúde,
doença etc.) era preferlvel a outra. Por isso, segundo Cicero, eles não viam ra-
11. Qcero considera o debate ético entJ:e as escolas de filosofia sobretu- zão para preferir um determinado ato (ver também "Sumário", p. XLD.
do como um debate sobre os objetivos e finalidade da vida. Por exemplo, IJe 14. Qcero insiste nessa independência levando em conta dois aspectos:
ftnibus V.15-23. Ver "Sumário'', p. XLI. como sua própria filosofia lhe permite adotar a instância que lhe pare~ mais
12. Principalmente em De.ftnibus, Uvro II, onde Qcero se atribui opa- convincente (ver II.7-8, Ill.20), ele preferiu seguir os estóicos nessa ocasião e
pel de critico da ética epicurista proposta por seu amigo Mãnlio Torquato. Cf. sobre esse assunto. Em segundo lugar, não está apenas traduzindo ou expon-
ill-39 e 116-19, com nota 136 em 118. Os membros dessa seita foram os primei- do as autoridades estóicas, mas utilizando-as seletiva e criticamente (ver "In-
ros a escrever filosofia em latim, e suas obras, que Qcero considerava toscas, trodução', pp. XX s.).
parecem ter gozado de alguma popularidade. Em 5, ele alude ao fato de mui- 15. Cf. I.101; Deftnibuslii.58.
tos de seus contemporâneos que professavam o epicurismo terem, ainda as- 16. Qcero distingue aqui entre questões teóricas sobre a finalidade da
sim, entrado para a vida pública e praticado as virtudes tradicionais, como o vida e o conceito de dever, por um lado, e questões prã.ticas sobre como
próprio Torquato. escolher e cumprir os deveres, por outro.

6 7
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro! _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
- - - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

memos correto ao dever perfeito, sugiro eu, já que os gre- plice deve ser dividido em cinco partes. Primeiro, portanto,
gos o chamam katórthoma, e ao dever comum, katbékon 17• cumpre dissertar a respeitei do honesto, porém duplamen-
E tais coisas definem de modo a classificar de dever perfei- te; em seguida, a respeito da razão útil; depois, a respeito
to o que é correto; quanto ao dever médio, dizem ser da comparação entre ambos 19 •
aquele cuja motivação póde ser apresentada como uma ra- IV. H. A principio, foi atribuído pela natureza<l'l a todo
zão prováveJl~. tipo de seres animados que se protejam a si mesmos, sua
9. Tríplice é portanto, como parece a Panécio, a deli- vida e seu corpo, evitando as coisas aparentemente noci-
beração para a tomada de decisão. É que não se sabe se o vas, e procurando e preparando aquelas que são necessá-
objeto da deliberação é honesto ou torpe; pensando nisso, rias para viver - como ~limemo, abrigo e semelhantes. É
muitas vezes, os ânimos se dividem em opiniões contrãrias. comum aos seres animados o apetite da união com a fina-
Então, ou examinam ou perguntam se aquilo sobre que deli- lidade de procriar e certos cuidados para com aqueles que
beram conduz ou não à comodidade e prazer da vida, à pos- foram procriados. Isso, porém, difere muito no homem e
sibilidade e abundância de bens, às riquezas, ao poder, com no animal, pois este se sente motivado apenas pelo que
os quais possam governar a si mesmos e aos seus; toda essa está próximo e presente; acomoda-se, percebendo muito
deliberação repousa no plano da utilidade. Existe um ter- pouco o passado e o futuro. O homem, por outro lado, sen-
ceiro tipo de dúvida quando aquilo que parece útil como que do partícipe da razão e por ela discernindo as conseqüên-
se choca com o honesto. Com efeito, se a utilidade chama pa- cias, vê as causas e não ignora os progressos e os antece~
ra um lado e a honestidade para outro, o ânimo se divide e dentes; compara semelhanças, liga-as, une as coisas futuras
gera incerteza de pensamento. às presentes, percebe facilmente o curso da vida e prepara
10. Nessa divisão, embora preterir algo ao dividir seja o necessário para passá-la.
um vicio bastante grave, duas coisas foram deixadas de
12. A própria natureza, pela força da razão, concilia o
lado. De fato, não se costuma indagar apenas se uma coisa
homem com o homem no caminho de uma comunid2.de
é honesta ou útil, mas também, de dois propósitos hones-
de língua e de vida; antes de tudo, engendra nele um certo
tos, qual será o mais útil. Assim, o plano que para ele é trl-
amor singular para com aqueles que foram procriados e
impele-o a freqüentar reuniões e celebrações. Por esse mo-
17. !.:ma leitura alternativa seria: "quanto ao comum, chamam dever" tivo, esforce-se o homem para preparar o que seja necessá~
Os deveres "médios" (latim media, grego mesa) são assim chamados porque
tanto os sábios quanto os homens comuns os praticam igualmente (por isso
Cícero às vezes os chama "deveres comuns"). No entanto, apenas o sábio, 19. Os três tópicos de Panêdo se remetem, cada qual, a um dos três li-
que possui plenamente todas as virtudes, pode realizar uma ação correta, vros do De officiis. Os dois tópicos suplementares são tratados ao final do
ação que por si mesrrul, independentemente de suas conseqüências, é perfei- Livro I (152-61) e do Livro Il (88-9). Ver "Introdução", pp. XXlli-XXIX.
ta e completa (Fin. IIl.32). Seu dever "completo", no dizer de C!cero (III.14), 20. )los capírulos seguintes, Cícero descreve as bases naturais das qua-
"tem todos os números" Em De finibus III-58-9, Cícero explica diferenten\.en- tro virtudes cardeais: justiça 02), sabedoria, magnanimidade (13) e modera-
te o termo '·médio". ção (14), que fornecerão a estrutura do Livro I como um todo. Cícero começa
18. Clcero pode optar pelO termo latino probabile (''provável'') para tra- pelos impulsos natU!"<li~ que o homem compartilha com os outros animais e
duzir o equivalente grego a "razoável" (ju~tificado) porque ele sugere a visão depois mostra como a posse da razão lhe dá, além disso, impulsos que po-
acadêrrúca cétia~ segundo a qual o que é probabile pode servir de base à ação. dem se transformar nas quatro virtudes. Cf. Il.ll.

8 9
_________________ Dwd~~----------------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Livro 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

rio ao cultivo, à alimentação, não apenas para si mesmo, Marco, meu filho, e como que sua face, "a qual, se discer-
mas para a esposa, os ftlhos e os outros entes queridos, a nida pelos olhos, excitaria", como diz Platão, "admiráveis
quem deva protegerZ1 • Tal preocupação também excita os amores da sabedoria" 22 • Mas tudo que é honesto nasce de
ânimos e os faz maiores para o cumprimento da tarefa. uma de quatro partes. Com efeito, consiste ou no discerni-
13. Antes de tudo, é próprio do homem a busca e a mento e na apreensão do verdadeiro, ou na manutenção da
investigação do verdadeiro. Assim, quando estamos afastados sociedade dos homens, e, atribuindo-se a cada um o que é
dos negócios e preocupações urgentes, sempre desejamos seu, na fé dos contratos, ou na grandeza e resistência do
descobrir alguma coisa, ouvir, aprender; desse modo, obte- ânimo elevado e invencível, ou na ordem e medida de
mos o conhecimento das realidades ocultas ou admiráveis, todas as coisas feitas e ditas, nas quais se encontram a mo-
necessárias ao viver feliz. Daí se conclui que o verdadeiro, déstia e a temperança.
simples e sincero é muito conveniente à natureza do homem. Embora essas quatro partes estejam ligadas e implica-
A esse desejo de encontrar o verdadeiro está ligadq um cer- das entre si'\ todavia, de cada uma nascem certos tipos de
to apetite de superioridade, de sorte que o ânimo bem for- deveres, como daquela que foi descrita primeiramente, on-
mado pela natureza só aceita obedecer ao que aconselha, de colocamos a sabedoria e a prudência"\ surgem a inda-
ensina ou comanda justa e legitimamente, tendo em vista a gação e a invenção do verdadeiro, função própria dessa
utilidade. Provêm disso a grandeza de ânimo e o desprezo virtude.
das frivolidades humanas. 16. Quando se examina cuidadosamente o que hã de
14. Nem é pequena aquela força da natureza e da mais verda,deiro em cada coisa, aquele que pode acurada e
razão, porque só esse animal sente o que é a ordem, o que rapidamente descobrir e explícar a razão disso costuma ser
convém, que medida há nos ditos e feitos. Assim, mesmo tido, com justiça, como muito prudente e muito sábio. Eis
das coisas que são percebidas pela aparência, nerümm ou- por que a essa virtude está sujeita a verdade, como matéria
tro animal percebe a beleza, a graça, a conveniência ·das de seu estudo e comoetência.
partes. A natwreza e a razão, transferindo tal semelhança 17. Às três virtudes restantes cabem as obrigações de
dos olhos para o ânimo, consideram que a beleza, a cons- preparar e conservar os meios graças aos quais se mantém
tância e a ordem devem ser ainda mais preservadas, cui- a vida ativa, de modo que não só se salvaguarde a socieda-
dam para que não se faça nada indecorosa e efeminada- de dos homens como sobressaiam a excelência e a magna-
mente, e, enfim, para que em todas as ações e opiniões nimidade, tanto no aumento e aquisição de bens, para nós
coisa alguma se faça ou pense de libidinoso. e para os outros, quanto no desprezo dessas mesmas coi-
De tudo isso se compõe e se produz aquilo que procu-
sas. A ordem, a constância, a moderação e o que a isso se
ramos, o honesto, o qual, embora não seja nobilitado, ain-
da assim é honesto ~ e dele dizemos verdadeiramente que
é por natureza louvável, mesmo que ninguém o louve. 22. Fedro 250d.
V.l5. Por certo distingues a beleza intrínseca do honesto, 23. Ver II.35.
24. A sabedoria,e a prudência, aqui examinadas juntas, são separadas
em 1.153 (ver nota 132), embora suas esferas distintas sejam sugeridas ao final
21. Ver 1.158 e nota 137. de 1.19.

10 11
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ l(lffOJ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

assemelha consistem naquele gênero de dever para o qual entretanto, muitas vezes podemos nos afastar, propiciando-
se exige empenho e não apeaas a agitação da mente. De nos assim diversas oportunidades de estudo. Nesse caso a
fato, manteremos a honestidade e o decoro se atribuirmos agitação da mente, que nunca repousa, mantém-nos ocu-
ordem e medida ãquilo que fizermos. pados com a aprendizagem, mesmo sem esforço de nossa
VI.l8. Dos quatro pomos nos quais dividimos a natu- parte. Todo pensamento e movimento de ânimo se volta-
reza e a força do honesto, aquele que consiste na aprendi- rão então para a tomada de decisões com respeito às exi-
zagem do verdadeiro é o primeiro a tocar a natureza huma- gências honestas e pertinentes do bem viver ou aos esfor-
na. Sem dúvida, somos todos arrebatados pela ânsia de co- ços exigidos pela instrução.
nhecimento, campo em que julgamos belo mostrar-nos ex- Assim, pois, discorremos sobre a primeira fonte do de-
celentes; ao contrário, dizemos que é mau e torpe afastar- ver. VIL20o Quanto às três restantes, bem amplo é o princi-
se dele, errar, ignorar, ser ludibriado. pio segundo o qual a sociedade dos homens e a comunida-
Nesse gênero de atividade, ao mesmo tempo natural e de da vida se agrupam. Tal princípio se divide em duas
honesto, dois vícios devem ser evitados. O primeiro é to- partes: a justiça, em que o esplendor da virtude atinge o
mar as coisas desconhecidas por conhecidas e concordar ponto máximo e a parür da qual os homens são chamados
com elas sem reflexão. Quem pretender fugir a semelhante bons'6, e, vinculada a ela, a benevolência, que também
vício (e todos devemos pretendê-lo) reservará tempo e de- pode ser chamada bondade ou liberalidade.
dicação à consideração dos fatos. 19. O outro vício consis- O primeiro ditame da justiça é ninguém prejudicar a
te em aplicar esforço excessivo a coisas obscuras e difíceis, outro, a não ser quando provocado por um ato injusto;
ou mesmo desnecessárias ~. 2
depois, utilizar as coisas comuns em prol das coisas co-
Debelados esses vícios, louvar-se-á com justiça o em- muns e as coisas privadas em beneficio próprio27 • 21o Ora,
penho que, por meio do conhecimento, for atribuído às mlda é privado por natureza, mas por ocupação antiga,
coisas honestas e merecedoras de cuidados. Assim, na as-
como se deu com aqueles que chegaram outr::>ra a lugares
trologia, ouvimos falar de Caio Sulpício; na geometria, nós desertos ou tomaram terras pela força das armas, quando
mesmos conhecemos Sexto Pompeu, na dialética há vários e
não em virtude de lei, convenção, condição e partilha, dai
no direito civil há muitos mais, artes todas que versam sobre
resultando que Arpino seja dita dos arpinates e Túsculo,
a investigação do verdadeiro. Todavia, ser por elas afastado
do cumprimento das obrigações é contrário ao dever. Em
verdade, todo o louvor da virtude cifra-se na ação, da qual, 26. Sobre a importância atribuída à justiça, ver "IntrOdução'' pp. XXVI ss.
A observação segundo a qual os homens são chamados "bons" por serem jus-
tos reflete não apenas noçOes morais comuns (11.38, Ill-75-6) como ainda o
25. Dos dois vícios mencionados, o primeiro reflete o profundo desgos- uso da expressão vir bonus no direüo romano (por exemplo, Digesto XIX.2.24,
to de Cícero pelo dogmatismo, que tornou a tradição acadêmica cêtica muito cláusula "satisfaçào segundo o julgamento de um homem bom'' em um con-
atraente para ele (ver "Sumário", p. XLIJD. O segundo reflete as prioridades trato, a que Cícero também alude em 1!170 e 77).
romanas, que também levaram Cícero a justificar seus escritos filosóficos em 27. A justiça em sentido estrito (a primeira pane da segunda virtude de
termos de su~t invob.mtolria exclusão da vida pública e de sua esperança de Cicero) possui um aspecto negativo (não prejudicar ninguém sem provoca-
ajudar os concidadãos de ou1111 maneira (]I.2; cf. Acad U.6; D!v. Il.6). Ver ção, 21) e outro positivo (auxiliar o próximo, 22, d. 131). Eles correspondem
também 1.71. respectivamente às formas positiva e negativa da injustiça em !.23.

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- - - - - - - - - - - Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----------Livro!'~---------

dos tusculanos' 8 • O mesmo se aplica às propriedades priva~ as mãos contra o companheiro; e quem não se defende nem
das. Assim, como das coisas que por natureza eram comuns se opõe, quando pode, à injustiça, tanto está em falta quan-
uma parte tocou a cada qual, conserve ele o que lhe cou- to se abandonasse os parentes, os amigos ou a pátria32 •
be; se alguém lançar mão desse patrimônio, violarão direi- 24. As injustiças praticadas com a finalidade de preju-
to da sociedade humana. dicar são, muitas vezes, motivadas pelo medo, pois o ho-
22. Mas porque, como escreveu admiravelmente Pla- mem que cogita no dano alheio receia que, a menos que o
tão29, não nascemos apenas para nós, e a pãtria reivindica inflija, ele próprio o sofra. E a maior parte agride para pro-
parte de nosso nascimento e os amigos outra; e, como que- mover a injustiça, buscando alcançar aquilo que cobiça -
rem os estóicos, todas as coisas geradas na terra o foram vício em que é patente a avareza. vm:.25. As riquezas são al-
para uso dos homens, a fim de que entre si se ajudassem, mejadas tanto para os usos necessários da vida quanto para
nisso devemos tomar a natureza por guia: dividimos ao a satisfação dos desejos. Nos homens magnânimos, a ânsia
meio as utilidades comuns pela troca de favores, dando e de dinheiro aspira ao poder e à possibilidade de gratificar;
recebendo; e, ora pelas artes, ora pelo trabalho, ora pela assim, não faz muito, Marco Crasso negava que qualquer
competência, unamos a sociedade dos homens entre os riqueza fosse bastante para ele, pois pretendia ser o primei-
homens.;o. 23. O fundamento da justiça é a fé, ou seja, a ro na república e não podia alimentar um exército com re-
verdade e a constância em palavras e acordos. Assim, em- cursos próprios3'. Também os aparatos magníficos e o cul-
bora isso possa parecer muito grosseiro a aiguns, ousemos tivo da vida com elegância e fartura causam deleite; para
imitar os estóicos, que dedicadamente investigaram a ori- tais coisas, a cupidez é infinita. Não se censure, porém, o
gem das palavras, e acreditemos na "fé" (/ides), assim cha- aumento dos bens familiares quando a ninguém prejudi-
mada porque "faz" (fzat) o que foi dito'1 • cam; apenas se evite a injustiça·14 •
Há dois gêneros de injustiça: o daqueles que a produ- 26. Muitas pessoas se deixam arrastar a um ponto tal
zem e o daqueies que, podendo, não repelem a injustiça que esquecem a justiça, quando cedem ao desejo de co-
praticada por outrem. Pois quem ataca injustamente al- mandos, honras, glórias. Bem disse Ênio:
guém, atiçado pela ira ou outra perturbação, parece dirigir
Nenhuma sociedade é inviolável,
Nem há fé na monarquia.
28. Cícero utiliw como exemplos sua cidade natal e Túsculo, onde pos-
suia uma vila.
29. Carta IX 358a. 32. Na descrição da injustiça positiva (tratada em 24-7), devemos suprir
.30. Em 21-2, C!cero tentou recondliar a sociabilidade natural do homem, a ausência de provacaçao notada em 20. A injustiça negativa é examinada
que constitui a raiz da segunda virtude, com a noção de propriedade priva· em 28-9.
da, que sempre defende (especialmente em II.73, II.78). Em !.51, a lei da comu- 33. Essa observação famosa pode ser autobiográfica: em 71 a.C., Crasso
nidade fornece os critérios para distinguir o que é comum do que é privado. esmagou a revolta dos escravos liderada por Espártaco. numa época em que
31. O interesse dos estóicos pela etimologia prendia-se à crença em que ru'io estava investido de comando regular e o tesouro pública se achava es-
a língua se baseava na natureza e não na convenção. A derivação de palavras gotada.
tambêm estava em grande voga na Roma desse período e figura com desta- 34. Primeiro esboço do que será a "regra de comportamento" em II!.l9-
que nos fragmentos de Sobre a língua latina, de Varrão, escrita p:>r essa 21: ninguém pode se beneficiar à custa de outrem, pois isso violaria os laços
época e dedicada em parte a Cícero. naturais entre os homens.

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- - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __
---------------------Liwul--------------------

Pois em tudo o que é dessa natureza, não podendo muitas dos pela dedicação exclusiva ao aprendizado, desertam
ser excelentes, quase sempre eclode tão grande contenda aqueles que dependem de seu amparo. Entendem então
que se torna difícil preservar a "sociedade inviolável". Isso que não hão de trabalhar pela vida pública, a não ser coa-
mostrou há pouco a temeridade de César, o qual perverteu gidos06. Mais eqüitativo, porém, seria fazê-lo por vontade
todos os direitos divinos e humanos em virtude de um prin- própria: o ato correto é justo sob condição de ser voluntá-
cipado que ele próprio se atribuíra por um erro de opinião. rio. 29. Há ainda aqueles que, votados aos negócios fami-
E há aqui uma coisa molesta: em ânimos superiores e talen- liares ou por ódio aos homens, alegam cuidar apenas do
tos brilhantes, a maior pane do tempo estão presentes an- que lhes diz respeito, a fim de não parecerem cometer in-
seios de honra, comando, poder e glória·". Por isso devemos justiça contra alguém. Esses renunciam a um tipo de injus-
cuidar para que nada, nesse âmbito, se faça com erro. tiça e incorrem em outro. Fogem à vida social porque a ela
27. Em toda injustiça, interessa muitíssimo qual destas nada consignam de seu zelo, nada de seu trabalho, nada
duas circunstâncias ocorre: se a injustiça se dá por alguma de sua dedicação.
perturbação do ânimo, freqüentemente passageira, ou de Estabelecemos assim os deis tipos de injustiça, acres-
propósito e caso pensado. Menos grave, com efeito, é o que centando as causas de um e outro e mostrando em que con-
acontece em conseqüência de um movimento repentino do siste a justiça; podemos agora julgar facilmente qual é o
que o fruto da meditação e do preparo. Mas sem dúvida já dever em cada circunstância, a não ser que amemos a nós
discorremos o suficiente sobre a prática da injustiça. mesmos em vão. 30. É, com efeito, difícil o cuidado para
IX.28. Costumam ser muitas as causas de os homens com as coisas alheias, embora aqu"ele terenciano Cremes
renunciarem à defesa e ao dever. É que, ou não desejam julgasse que "nada de humano me é estranho" 31 . Todavia,
provocar inimizades e dar-se a trabalhos e despesas, ou, dado que percebemos e sentimos as circunstâncias que
paralisados por negligência, preguiça, inércia, ocupações e nos tocam, sejam elas prósperas ou adversas, de um modo
estudos, consentem no abandono daqueles a quem deve- mais agudo do que as que envolvem os nossos semelhan-
riam proteger. Assim, convém não nos contentarmos com o tes - as quais vemos como que a distância -, também
que diz Platão dos filósofos: alegando dedicar-se à busca julgamos diferentemente umas e outras. Por isso, bom pre-
da verdade e desprezar aquilo que a maioria dos homens ceito é aquele que interdiz a realização de um ato do qual
procura apaixonadamente, chegando a lutar entre si para não se sabe se é eqüitativo ou iníquo. De fato, a eqüida-
alcançá-lo, só por causa disso são justos! Cultivam, pois, ou- de brilha por si mesma e a dúvida implica uma intenção in-
tro gênero de justiça. Tentando não prejudicar o injustiça- justa.
do, incidem em nova forma de injustiça, porquanto, movi- X.31. Mas sucedem com freqüência casos em que
ações aparentemente dignas de um homem justo - a quem
chamamos de homem bom - transformam-se em seu con-
35. Sobre o esforço de Cícero para justificar o recente assassinato de
César, ver "Introdução'·, pp. XI, XVI. Cícero muitas vezes gabou em público a
cap~cidade intelectual e militar de César, e. apesar de suas graves diferenças 36. Para as opiniões de Pla~o, ver Repúb#ca, especialmente VI 48Sb-
pollticas. lulvia entre os dois gr-.mde respeito. César dedicara mesmo um tra- 87a, Vil 520c-21b, VII 540d-e, 1347c, VII 519-c, 539e-40b.
tado lingüístico a Cícero.
37. O atormentador de si mesmo 77.

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- - - - - - - - - D o s deveres•--------- - - - - - - - - - - Ltvrol'----------

trário, como devolver um depósito a um furioso ou cum- 33. Ofensas hã que, pela maior parte, o direito pretó-
prir uma determinada promessa . .Algumas ações pertinen- rio e algumas leis se encarregam de absolver. Muitas vezes,
tes à verdade e à fé, é justo às vezes evitá-las e não realizã- também, injustiças são cometidas por calúnia e interpreta-
lasl". Convém recorrer aos fundamentos da justiça que pro- ção demasiado astuciosa e maligna do direito. Daí o dito
pus no começo: primeiro, a ninguém prejudicar, depois, "Sumo direito, suma injustiça" ter-se tornado um provérbio
servir à utilidade comum. Considerando-se que tais coisas jã muito repisado na conversação comum. Inúmeras faltas
'•o-'
mudam conforme a ocasião, o dever também muda e nem desse tipo são perpetradas mesmo nos assuntos públicos. É
sempre é o mesmo. 32. Pode acontecer, com efeito, que o caso daquele que, havendo sido combinadas com o ini-
uma promessa ou pacto se torne inútil ao beneficiário ou a migo tréguas de trinta dias, associava os campos durante a
quem prometeu. Se, como lemos na fábula. Netuno não noite, porque o acordo falava em dias e não em noites. Nem
houvesse cumprido o que prometera a Tese~, este não te- sequer se pode provar se o nosso Fãbio Labeão ou alguém
ria sido privado do filho Eipólito - pois dos três desejos, mais (com efeito, nada sei além do que ouvi), escolhido
segundo o relato, foi com o terceiro que ele exigiu coleri- pelo Senado como ãrbitro das fronteiras nolanas e napoli-
camente a morte do rapaz. Atendido, mergulhou em pesa- tanas, ao chegar ao local instou separadamente com uns e
do luto. :"fão devem, assim, ser mantidas promessas que se outros ·para que não fizessem nada pcir ambição ou cupi-
revelam inúteis a quem se destinam; e, se mais te prejudi- dez, mas preferissem recuar a avançar. Como as duas par-
carem que favorecerem aquele a quem as fizeste, fica sa- tes concordassem, ficou abandonado no meio um trato de
bendo que não é contrãrio ao dever antepor o bem maior terreno. Assim, fixou as fronteiras deles como eles próprios
ao menor. Quando te houveres constituído em advogado as haviam fixado e atribuiu ao povo romano o que restou
de alguém numa causa premente e, nesse ínterim, teu filho de permeio. Ora, isso é ·ludibriar e não julgar! Evite-se,
contrair moléstia grave, não ofenderás o dever deixando de pois, semelhante solércia em todas as questões.
cumprir o que prometeste; e aquele a quem o prometeste, XI.34. Temos deveres até para com aqueles de quem
sofremos injustiça. Existe, decerto, uma medida para retri-
esse sim fugiria ao dever se se queixasse de abandono.
buir e castigar; e ignoro se ao indivíduo que se mostrou
Quem insistiria em apegar-se a compromissos assumidos
injusto basta arrepender-se. Melhor será que ele não volte
sob coação, medo ou dolo? 39
a delinqüir e outros se revelem mais tardas na injustiça. Na
república, os direitos de guerra devem ser preservados
38. Sobre o problema da manutenção das promessas, ver também m.92-5. acima de tudo. Pois, assim como hã dois tipos de conflito-
39. Sobre promessas e depósitos, cf. !11.92-5. Cícero encontra uma ana- um por discussão, o outro por violência-, e sendo aquele
logia para a categoria dos ·'direitos em circunstâncias particu;ares" {p. 76, nota
138) no pensamento jurldico romano ("Introdução", p. XXX) quanto a acordos próprio dos homens e este dos animais, recorramos ao últi-
feitos so~ coer~ào ou fraude. O direito civil, em Roma, compreendia leis como mo quando não for lícito recorrer ao primeiro. 35. Eis por
as das Doze Tabuas ou as aprovadas posteriormente, e o ius praetorlum, as que as guerras devem ser empreendidas pela causa da paz,
formulae ("regras de procedimento") apresentadas pelos sucessivos pretores a fim de que se viva com justiça. Alcançada a vitória, pou-
urbanos Cmag1strados anua1s) em seus editos, graças aos quais ocorreram im-
portantes progressos legais no final da república (cf. p. 134, nota 20 e IIL60-1 pem-se aqueles que não foram cruéis e desumanos duran-
com notas). te as hostilidades. Assim se comportaram nossos antepassa-

18 19
___________ Livro!'------------
-----------Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - -

dos, que acolheram na cidade até os tusculanos, équos, Segundo ele, a guerra só é justa quando levada a efeito po::'
volscos, sabinos e hémicos, mas destruíram completamen- reclamação ou mediante anúncio e declaração prévia41 • O
te Cartago e Numância. Eu preferiria que não houvessem geneml Popílio, em cujas fileiras militava o filho de Catào
arrasado Corinto, mas é que sem dúvida tinham algo a ga- como recruta, ocupava uma província. Parecendo-lhe, po-
nhar, talvez a vantagem da posição, que um dia poderia in- rém, conveniente licenciar uma legião, dispensou também
duzir os habitantes a move: guerra novamente•~. o filho de Catão, que nela servia. Mas como o rapaz conti-
Em verdade, minha opinião é que se deve aconselhar
nuasse no exército por amor aos combates, Catào escreveu
sempre a paz e mantê-la sem traições. Se me dessem ouvi- a Popílio solicitando-lhe que, caso aceitasse a permanência
do filho, obrigasse-o a um segundo juramento militar, por-
dos teriamos, quando não a melhor, pelo menos algum go-
que, anulado o primeiro, não mais tinha o direito de en-
verno republicano, que agora não existe4'. Delibera de um
frentar o inimigo. A tal ponto chegava a observância das
modo sobre aqueles que venceste pela força, de outro sobre
regras quando se movia uma guerra! 37. Há uma carta de
os que, depostas as armas, apelam para a fé do comandan- Catão, o Velho, a Marco, seu filho, na qual afirma ter ouvi-
te: estes devem ser acolhidos mesmo que o aríete haja per- do dizer que ele fora dispensado pelo cônsul, quando em
cutido a muralha". Nesse ponto os nossos antepassados cul- serviço na lvíacedônia durante a guerra contra Perseu. Acon~
tivaram de tal forma a justiça que os vitoriosos a quem cida- selha-o, assim, a que tome cuidado para não entrar em com-
des ou naçOes se confiavam tornavam-se seus patronos. bate, pois nega ter direito de arrostar o inimigo aquele que
36. Com efeito, a eqüidade na guerra foi prescrita em não é soldado"'.
termos sacramentais -pelo direito fecial do povo romano. XII. Lembro também que o homem que era, por de-
signação própria, "inimigo" costumava ser chamado "foras-
40. Em 34--40, Cícero tenta justific~r a prática ancestral romana com teiro", mitigando-se assim a tristeza dessa condição com
idéias tllosóficas. remontando a PlatUo (Le~; I 628d) e Aristóteles (Política uma palavra doce. De fato, quem hoje designamos "estran~
1333a35), q;~mo ã finalidade correta da guen-a. Menciona primeiro alguns geiro" recebia de nossos antepassados o epiteto de "inimi-
povos da ltal!a conqu:stados por Roma e mais tarde admitidos à cidadania
romana, no~ séculos IV e IIl a.C. (d. li .75 para a guerra itálica em sua própria
go". Rezam as Doze Tábuas: "Um dia convencionado com
época). Cartago e Corinto foram destmídas em 146 a.C., Numincia em 133 o estrangeiro" e, no mesmo tom, "Contra o estrangeiro,
a.C. Desaprovando a rui:1a de Corinto (condenada em III.46), Ckero f.tz uma
tentativa sofística de enquadrá-la na regra segundo a qual as guerras só de-
vem ser empreendidas para garantir a paz quando a diplomacia for inaplicá- 43. Segundo a antiga prática romana, os fetiales entregavam um ultima-
vel: ele relutava em admitir que o imperialismo de "nossos ancestntis'' em tão to ao inimigo exigindo compensação pela aiegacil opressão. ='!ão sendo aten-
impiedoso quanto o de sua própria época (cf. Il.26--7). didos, pronunciava-se uma ameaça de guerra, depois formalmente declarada
.41. Cícero t;:ntara primeiro evitar a guerra civil entre César e Pompeu, e pela assembléia romana. O "ou" de Cícero é ineXl.lto: ele entende que as três
depo1s Interrompe-la. Para a visão de Clcero da situaç:lo da república ver "In- condições devam ser aplicadas (d. Rep. ll!.23 e 25).
trodução", pp. XII-XV ss. ' 44. A semelhança dos dois incidentes, bem como uma certa inépcia no
~2. Aqui, Clcero exige um comportamento mais generoso do que o texto latino, sugerem que ''O general Popí!io... se movia uma guerra:" é uma
prescnto pela prática tradicional romana, talvez porque César. em sua Guerra interpolação tardia. A menos que o mesmo incidente tenh.a sobrevindo ao jo-
saulesa II.32, mencione a riglda aplicação da regra segundo a qual somente vem Marco Catào duas vezes, o que é implausível, um dos dois epL~ódios
os inimigos que se rendessem ames de o aríete percutir as muralhas deviam deve ser falso. Popllio Lenas foi cônsul em 172 a.C.; o cônsul no comando
ser poupados. cont!"J Perseu em 168 a.C. era Errúlio Paulo.

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- - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ ---------"~1---------

autoridade eterna". Que poderia ser mais elegante que cha- Não busco ouro para mim nem para mim darás uma paga.
mar aquele com quem guerreias por um nome tão brando? Nem mercadejando a guerra, mas combatendo
Mas a própria antiguidade tornou esse nome mais duro: Pela espada, e não pelo ouro, decidimos nossa vida.
perdeu-se o sentido de "forasteiro" e permaneceu o de Se a Fortuna quer que vós reineis, ou eu, o que ela trouxer
Experimentemos pela virtude. E recebei junto este dito:
"aquele que empunha armas contra nós"•~.
Daqueles aos quais a sorte da guerra poupou o valor,
38. Mesmo que se combata pelo domínio é, na guerra,
Desses é certo que preservarei a liberdade.
se procure a glória, cumpre absolutamente preservar as Deles vos faço presente, de acordo com a vontade dos
causas que, há pouco, eu disse serem as mais justas nessas deuses supremos.
circunstâncias~ • Entretanto, as guerras em que se disputa a
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glória do domínio devem ser menos cruéis. Por exemplo, Sentença de rei, sem dúvida, e digna da raça dos Eá-
quando entramos em atrito na vida civil, fazemo-lo de um cidas!'9
modo se se trata de um inimigo, mas de outro se se trata de xm.39. Se alguns, movidos pelas circunstâncias, pro-
um concorrente - contra o segundo lutamos pela honra e meterem algo ao inimigo, mantenham a palavra dada. As-
a dignidade, contra o primeiro, pela vida e a reputação. As- sim fez Régulo na Prirmiira Guerra Púnica. Aprisionado pe-
sim, combatemos os celtiberos e os cimbros como a inimi-
los cartagineses e enviado a Roma para trocar prisioneiros,
gos'7, pois então estava em jogo quem sobreviveria e não
jurou que voltaria; ao chegar, não indicou aqueles que se-
quem dominaria; contra os latinos, sabinos, samnitas, carta-
riam devolvidos e, embora o tentassem reter amigos e pa-
gineses e Pirro, no entanto, lutou-se pelo domínio. Os car-
rentes, preferiu entregar-se ao suplício a falsear a fé empe-
tagineses romperam os pactos. Aníbal foi cruel, os restantes
nhada com seus captoresj0 •
mais justos48 . A Piao devemos aqueles famosos versos so-
40. Na Segunda Guerra Púnica, depois da batalha de
bre os prisioneiros a serem devolvidos:
Canas, os dez homens que Aníbal mandou a Roma, obriga-
dos por juramento a regressar se não obtivessem a libera-
45. A mesma observação a respeito da mudança de sentido de hostis foi ção dos prisioneiros, a todos eles, enquanto vivessem, os
feita pelo contemporâneo de Cícero, Varrão, em Sobre a língua latina V.3. censores inscreveram nas contas públicas, sem excetuar
46. Cícero alude novamente à justa causa para a guerra, em (35 (ver
nota 40). Ele distingue as guerras por domínio imperial e glória das guerras aquele que se revelou culpado de fraude no juramento.
pela sobrevivência de Roma, exigindo que as primeiras sejam menos impie-
dosas. No entanto, mesmo elas são vistas aqui como úteis à paz, pois defen-
demo império das potências rivais; d., entretanto, II.85, nota 96. 201 (Guerra Anibãlica) e 149-146. Já então Cartago, embora novamente prós-
47. A guerra celtibérica de 153 a.C. até a queda de Numãncia, em 133 pera, mal podia ser considerada um sério rival do império: por isso, Cícero
a.C., pode ser considerada uma guerra pela sobrevivência apenas na medida alega sua perfidia e crueldade para justificar a destruição da cidade.
em que o envolvimento romano na Espanha remontava ao século UI a.C., 49. Os versos são do Livro VI do poema épico Anais, de Ênio: o rei
quando Cartago a utilizou como base de invasão da Itália. Os cimbros, em Pirro do Epiro, que se di;;o:ia descendente do fLlho de Aquiles, neto de Éaco,
113-101 a.C., ameaçaram as fronteiras setentrionais da Itália e foram finalmen- fala aos emissãrios romanos em 280 a.C. Estes lhe ofereceram uma grande
te derrOtados por Dtio M:irio. soma para reaver os prisioneiros de guerra romanos, mas ele os entregou sem
48. Das guerras pelo império, as da conquista da Itália foram travadas resgate. Ver também lll.86.
do século V ao Ili a.C., sendo que as dos samnitas terminaram em 272. As 50. A história da captura de Régulo ·em 255 a.C. é desenvolvida em
guerras contra Cartago se deram em 264-241 (Primeira Guerra Púnica), 218- ITI.99-III.

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- - - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro I - - - - - - - - - -

Com efeito, tendo saído do acampamento com a permissão Basta quanto à justiça. XIV.42- Falaremos em seguida,
de Aníbal, voltou pouco depois, afirmando haver esqueci- conforme o proposto, sobre a beneficência e a liberalida-
do não sei o quê; em seguida, partiu novamente, julgando- de. Nada é sem dúvida mais coerente com a natureza hu-
se assim desobrigado do juramento. Desobrigava-se em pa- mana, mas ainda assim exige inúmeras precauções. Cuide-
lavras, não de fato. Ora, em se tratando de fé, considere-se se primeiro para que a benignidade não prejudique aque-
c que for sentido, não o que for dito. les em favor dos quais pareçamos agir bondosamente, nem
Grande exemplo de justiça em relação ao inimigo nos aos outros; em seguida, que o benefício não ultrapasse as
foi oferecido por nossos antepassados quando um desertor possibilidades, dando-se também a cada um segundo o seu
de Pirro prometeu ao Senado que ministraria veneno ao rei merecimento5J. Eis aí o fundamento da justiça, à qual todas
e o mataria. O Senado e o cônsul Caio Fabrício entregaram- essas questões se referem. Em verdade, quem prejudica
no a Pirro. Desaprovaram a morte criminosa mesmo de um aqueles que finge querer beneficiar deve ser considerado
inimigo que, além de poderoso, lhes vinha dar combate não um benfeitor, nem um liberal, mas um lisonjeador per-
por iniciativa própria'1 • 41. Mas creio já ter falado o sufi- nicioso; e quem prejudica uns para ser liberal com outros
ciente sobre os deveres da guerra. comete injustiça tanto quanto se convertesse em sua pro-
Lembremos que se deve observar a justiça até em rela-
priedade os bens alheios.
ção aos humildes. É ínfima a condição e a fortuna dos es-
43. Por certo, muitos há que cobiçam esplendor e gló-
cravos, e mal não faz quem prescreve que deles se utilize
ria, que tiram a estes o que concedem àqueles e julgam
como de mercenários, exigindo trabalho, mas fornecendo
o que é justo52 • que parecerão benéficos a seus amigos se os eruiquecerem
Como, porém, a injustiça se pratica de dois modos, isto por um meio qualquer. Isso se afasta tanto do dever que
é, por violência ou por fraude, esta parece própria da rapo- nada pode ser mais contrário a ele. Tratemos, pois, de em-
sa, aquela do leão. t)ma e outra são sem dúvida alheias ao pregar uma liberalidade que seja útil aos amigos e não pre-
homem, mas a fraude é mais odiosa. E de todas as formas judique a ninguém. Eis por que a transferência de dons le-
de injustiça, nenhuma hã mais criminosa do que a pratica- gítimos para estranhos, como os de Lúcio Sila e Caio César,
da por aqueles que, enganando ao máximo, fazem-se pas- não hã de parecer liberal: nada serã liberal se não for ao
sar por homens de bem. mesmo tempo justo54 •
44. Outra medida de precaução é zelar para que o be-
neficio não seja maior que as possibilidades, pois os que
51. Muitos manuscritos omitem a totalidade de 40, que narra dois episó-
dios da.hi~ória romana tratados mais longamente por Clcero em Ul.113-14 e 86.
52. Os estóicos, os juristas romanos e outros sustentavam que não exis- 53. A definição estóica de justiça era "dar a cada um o que lhe ê devi-
tiam escravos por natureza, apenas por acaso. Segundo Sêneca (Dos benrr;fi- do". Cf. 1.59.
cfos lll.22), Crisipo chamava os escravos de ·'empregados pennanentes·· e o 54. Ver p. 14, nota 30. Cícero condena a redistribuição da propriedade
estóico romano Rutilio Rufo comprava dos seus os peixes que pescavam, tal como injusta e, por fim, inadequada. Em II.27 e 83, como nas contempot1-
qual o faria de homens livres. Por outro lado, os empregos remunerados emm neas Filípicas QI.108, V.l7), Cícero considera iglJalmente odiosas as proscri-
vistos geralmente como impróprios paro homens .livres (!.150, nota 128), en- ções de Sila e a venda, promovida por César. da propriedade dos mortos da
quanto a lei romana permitia ao senhor castigar, vender ou matar seus escra- guerra civil, ignorando a cme!dade de Sila, cuja causa julgava honrosa {II.27).
vos impunemente. e a clemência de César.

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querem ser mais generosos do que a situação o permite já quem mais sejamos estimados. Julguemos a benevolência,
erram nisto: são injustos para com o próximo. De fato, trans- porém, não segundo o costume dos adolescentes, com cer-
ferem a estranhos o que melhor seria conservar, havendo to ardor pela afeição, e sim por sua estabilidade e constân-
em tal liberalidade, o mais das vezes, a ânsia de extorquir e cia. Considerando-se os méritos, no entanto, cuide-se para
obter ilegalmente bens que se possam em seguida prodiga- que o favor não seja procurado, mas retribuído: não há, em
lizar. E vêem-se mesmo homens não tào generosos por na- verdade, dever mais necessário que pagar um favor. 48. Se
tureza quanto atiçados pelo desejo de glória, ávidos por se- Hesíodo manda retribuir em maior medida, se possível,
rem tidos como benfeitores, agirem aparentemente mais aquilo que houvermos recebido 57 , que faremos quando de-
por ostentação que por boa vontade. Ora, essa simulação safiados por um benefício não solicitado? Imitaremos acaso
está mais próxima da vaidade que da liberalidade e da ho- os campos férteis, que entregam mais do que auferem? E se
nestidade. não hesitamos em favorecer aqueles que esperamos nos
45. A terceira precaução consiste em fazer, na benefi- sejam úteis, como agiremos em relação àqueles que já o
cência, urna seleção de merecimento, examinando-se os foram? Pois há dois tipos de liberalidade: a primeira toma a
costumes daquele a quem se deseja beneficiar, sua disposi- iniciativa do benefício, a segunda a paga; tomar ou não
ção para conosco, o que com ele temos em comum nas re- essa iniciativa depende de nós, mas deixar de pagar não é
lações e na vida, os serviços que antes nos prestou''. Bom próprio do homem honesto, desde que o faça sem cometer
serã que todas essas razões se apresentem juntas, caso con- injustiça.
trário terão mais peso causas diversas e maiores. 49. Porém, os benefícios recebidos devem ser diferen-
XV.46. Como, porém, vive-se não com seres perfeitos ciados e não há dúvida de que se deve mais a um benfei-
e plenamente sábios, mas com aqueles entre os quais já tor maior. Todavia, pondere-se em primeiro lugar a quem,
seria muito bom se existissem simulacros de virtudes.~, pen- com que intenção e com quanto esforço alguém praticou
so que não se deve negligenciar homem algum em que um benefício. Muitos, com efeito, os praticam por temeri-
surjam indícios de retidão. Devemos respeitar qualquer um dade, sem discernimento ou medida, talvez incitados con-
que seja ornado por qualidades doces como a modéstia e a tra todos por certo ímpeto repentino, como um vento; tais
temperança, ou a justiça de que já tanto se falou. Pois um benefícios não devem ser considerados tão grandes quan-
ânimo forte e grandioso, em uma criatura não-perfeita nem to os que se originam do tirocínio, da reflexão e da cons-
sábia, parece muitas vezes excessivo; as outras virtudes, no
entanto, costumam dotar de preferência o homem bom. tância.
Entretanto, ao praticar um beneficio ou retribuir um
Basta isso quanto aos costumes.
favor, sendo .todas as outras coisas iguais, convém princi-
47. Quanto à benevolência de alguém para conosco, o
palmente ao dever que se socorra quem mais necessita.
primeiro dever é atribuirmos quinhão maior àquele por
Ora, a maioria faz o contrário: serve aquele que menos ne-
cessita e de quem mais espera. XVI. 50. Muito bem se pre-
55. Cícero discute a conduta do receptor potencial de beneficios em 46; servará a sociedade e a união dos homens se nos mostrar-
sua disposição em relação a nós em 47; ~eus serviços merecedores de nossa
gratidão em 48-9 e o grau de sua amizade para cono:s<:o em 50 s.s.
56. Cf. III.13-16. 57. Os trabalhos e os dlcls 349-51.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro/ _ _ _ _ _ _ _ _ __
---------Dos deveres---------

mos mais benignos para com aqueles que nos forem mais muns, úteis a quem as recebe sem ser molestas a quem as
próximos. dá. Por isso, devemos não só utilizar essas coisas como en-
Parece, contudo, que devemos antes investigar quais tregar parte delas ao usufruto comum. Todavia, como os
princípios da natureza são próprios da comunidade e da recursos de cada um são limitados e a multidão dos neces-
sociedade humana. E o primeiro é o que notamos no con- sitados é infinita, a liberalidade para com o vulgo deve
certo universal do gênero humano. Seu vínculo é a razão e ater-se à ressalva de Ênio: "Em nada briíhe menos para
a palavra que, ensinando, aprendendo, comunicando, dis~ ele." Desse modo, não faltarão bens com que nos mostrar-
cutindó e julgando conciliam entre si os homens e agru- mos liberais para com os nossos ~. 1

pam-nos em uma comunidade natural. De que estamos XVII. 53. Inúmeros são os graus da sociedade humana.
mais distanciados que da natureza das feras, nas quais com Separando-se, com efeito, daquela sociedade infinita, o
freqüência dizemos haver coragem - como nos cavalos, homem fica mais próximo do mesmo povo, da mesma
nos leões -, mas não justiça, eqüidade ou bondade? Elas, nação e da mesma língua, pela qual, principalmente, os
com efeito, são desprovidas de razão e linguagem. seres humanos se agrupam. Fica mesmo mais próximo da
51. Evidentemente, na mais ampla sociedade facultada mesma cidade, pois muitas coisas sào comuns aos cidadãos:
aos homens, aquela em que todos convivem com todos, o fórum, os templos, os pórticos, as ruas, as leis, os direi-
devemos respeitar a comunidade dos bens que a natureza tos, os tribunais, os sufrágios- além, é claro, dos costumes,
engendrou para uso geral; assim, o que foi regulamentado das amizades e dos contratos que lavram entre si. Mas a·
pelas leis e pelo direito civil seja mantido conformemente a coligação mais restrita é a da sociedade dos parentes: par-
essas mesmas normas;", mas o resto obedeça ao provérbio tindo-se da imensa comunidade do gênero humano, é a
grego: "Entre amigos, tudo é comum." Ora, parecem co- esse núcleo estreito e limitado que se chega. 54. Dado
muns a todos os homens as coisas do tipo que Ênio definiu que, por natureza, os animais sentem o desejo de procriar,
mediante um exemplo extensível a vãrios: a primeira sociedade é a do casal e depois a dos filhos;
vêm em seguida a moradia e os bens comuns. Temos aí o
O homem que, afavelmente, mostra o caminho ao errante princípio da cidade e como que a orlgem das comunidades
Faz como que se lhe acendesse o lume com o seu: politicas. Seguem-se os laços entre irmãos, primos e sobri-
Em nada brilha menos para ele depois que acendeu o do nhos que já nâo podem ser mantidos numa única casa e se
outro.
retiram para outras, como para colônias. Depois os casa-
mentos e as afinidades, dos quais surgem mais parentes: tal
Só esse exemplo para mostrar que devemos conceder,
propagação e multiplicação é a origem das comunidades
mesmo a um desconhecido, tudo aquilo que pudermos dar
políticas. Os vínculos de sangue prendem os homens pela
sem prejuízo. 52. Não vetar água corrente; permitir que ou-
tros acendam fogo no nosso; ajudar com bons conselhos e
deliberação daquele que o desejar: essas são coisas co- 59. A restrição de nossas obrigações para com a humanidade em geral-
não prejudicar nossos próprios interesses - é compensada pela restrição de
nossa busca desses interesses 0.25; III.21 ss.} não prejudicar a ninguém, como
58. Cf. p. 14. nota 30. esclarece Ckero em Ill.42.

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- - - - - - - - f u d , _ _ _ _ _ _ _ __ ---------Livro I - - - - - - - - -

benevolência e pela caridade. 55. Grande coisa é, com ligados pelos mais importantes beneficios; depois, os filhos
efeito, possuir os mesmos monumentos ancestrais celebrar e o lar que confia em nós e não encontra outro refúgio;
os mesmos cultos, ter sepulcros comuns. ' enfim, os parentes com quem nos entendemos bem e às
Mas nenhuma sociedade é mais excelente, nenhuma vezes temos até uma fortuna. comum. Assim, os recursos
mais sólida do que quando os homens bons, semelhantes necessários à existência devem-se principalmente àqueles
em costumes, se ligam pela amizade. Com efeito, a hones- que antes mencionei; mas a vida e o alimento comum, os
tidade de que falamos nos comove e nos torna amigos da- conselhos, as conversas, as exortações, as consolações,·mui-
quele em quem parece existir. 56. Apesar de toda virtude tas vezes até as repreensões importam sobretudo nas ami-
atrair e nos fazer estimar a pessoa que a ostenta, a justiça e zades, sendo bastante grata a amizade que a semelhança
a liberalidade conseguem-no mais que todas. Nada é mais de costumes promoveu61 •
amável e mais sociável do que a semelhança dos bons cos- XVTII.59. No cumprimento de todos esses deveres
tumes, nos quais lobrigamos idênticos esforços, desejos será preciso determinar o que é mais necessário a cada um,
idênticos; sucede então que a pessoa seja igualmente ama- bem como o que cada um pode ou não conseguir sem o
da por outra e por si mesma, dando-se aquilo que Pitágo- nosso concurso. Portanto, os graus de necessidade não se-
ras deseja na amizade: que de muitos se faça um só. Gran- rão os mesmos que os das circunstâncias. Há obrigações
de também é a comunidade que se baseia nos benefícios devidas mais a uns que a outros: por exemplo, na colheita
dados e recebidos; sendo esses não só múltiplos, mas ain- dos frutos, ajudarás teu vizinho de preferência a um irmão
da agradáveis aos que os praticam, os homens permane- ou amigo. Mas, em caso de conflito judicial, defenderás um
cem unidos em estreita sociedade. parente ou amigo de preferência ao vizinho 62 •
57. Examinando os fatos com a razão e o coração, de Tais coisas e outras semelhantes devem então ser ava-
todos os vínculos sociais nenhum é mais caro do que aque- liadas sempre que se trata de cumprir uma obrigação, e ne-
le que nos prende à república. Os pais são caros, caros são las convém adquirir hábito e prática para que sejamos bons
os ftlhos, parentes e amigos: mas só a pátria reuniu as afei- calculadores dos deveres e, adicionando ou subtraindo,
ções de todos. Portanto, que homem bom hesitaria em afron- obtenhamos o montante do resto, com base no qual deci-
tar a morte se isso aproveitasse à pátria? Que haverá de diremos quanto deve tocar a cada um. 60. Mas como nem
mais detestável do que a monstruosidade dos que dilace-
ram a pátria com toda a casta de crimes, e estão ou estiveram
61. Ao considerar o grau de amiZade para conosco (ver I.45), Cícero pri-
empenhados em destruí-la até o fim~ 0 meiramente delimita nossas obrigações para com a humanidade em geral (51-2)
58. A fazer-se um confronto e uma comparação para e depois (57-8) para com aqueles a quem devemos amparo material- primeiro
saber a quem devemos o maior número de préstimos, em a pãtria, em seguida os pais e fin.alinente, em ordem de contigüidade, os que
nos são próximos pelo sangue ou o casamento. Observa ainda que as relações
primeiro lugar virão a pátria e os pais, pois a eles estamos sociais devem-se primeiramente à amizade baseada na semelhança de conduta.
Ver 1.160, nota 139.
62. Mesmo no contexto jurídico, Cícero niio menciona as relações carac-
60. Uma das muitas alusões de C!cero a Antônio e seus seguidores, con- teristicamente romanas de guarda (tutela), clientela (clientela) e hospitalidade
siderados destruidores da repóblica, aqui identilk-.ol.da com "pátria". Ver "Intro- (hospitum), que tradicionalmente tinham mais direito ao amparo legal que os
dução", pp. XI s.s. laços de sangue, exceto no ca.'lO dos pais ("Introdução", pp. XXV-XXVl!).

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- - - - - - - - - - - D o s tkveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

os médicos, nem os comediantes, nem os oradores. ainda co Marcelo e muitos mais, sem contar o próprio povo roma-
q~e conheçam os preceitos de sua arte, consegue~ algo no, que se ergueu pela grandeza de ânimo. É notório o atra-
.d1gno de louvor sem o exercício e a prática, também a tivo da glória militar, pois vemos até as estátuas freqüente-
magnitude deste assunto requer prática e exercício, embo- mente ornamentadas com apetrechos de guerra,;.;.
ra os ditames da observância do dever possam ser transmi- XIX.62. A elevação de alma que se percebe nos peri-
tidos, como nós próprios estamos fazendo agora. Das gos e trabalhos, quando se afasta da justiça e propugna,
questões referentes ao direito da sociedade humana e do não pela manutenção do bem comum, mas por sua própria
oodo de conduzir-se honestamente, fonte do dever apro- comodidade, é viciosa. Isso nem é próprio da virtude. como
priado, já falamos o bastante. trai uma ferocidade que repele todos os sentimentos huma-
61. Entenda-se que, embora tenhamos proposto aua- nos. Os estóicos definem muito bem a coragem ao afirmar
tro pontos com base nos quais é possível preservar a -ho- ser ela a virtude que luta pela eqüidade. Não merece, pois,
nestidade e o dever, bem mais brilhante parece aquilo que louvor quem haja alcançado fama de bravura por meios in-
se faz com ânimo grandioso, elevado e alheio às coisas hu- sidiosos e fraudulentos: nada que desdiz da justiça pode ser
manas. É o que sucede com as injúrias, sobretudo quando honesto, 63. É notável, por· isso, o dito de Platão: "Não
se diz algo assim: apenas o conhecimento divorciado da justiça deve ser cha-
mado 'astúcia' em vez de 'sabedoria' como até mesmo o
Vós, rapazes, tendes um coração feminino, ânimo disposto ao perigo, se atiçado pela cupidez e não
Ao passo que aquela jovem tem um coração de homem, pelo bem comum, merece o nome de 'astúcia' antes que o
de 'coragem'."!>:~ Assim, desejamos ser homens corajosos e
OU: ao mesmo tempo magnânimos, bons e simples, amigos da
verdade e minimamente falazes - qualidades pelas quais
Salmácida, colheste espólios sem suor nem sangue'"'· sobretudo se louva a justiça.
64. É odioso que dessa elevação e grandeza de alma
Mas nos louvores dos feitos praticados com ânimo ga- nasçam facilmente a pertinácia e a paixão desmedida pela
lhardo, corajosa e excelentemente, ignoro se podemos nos primazia. Segundo Platão, todos os atos dos lacedem6nios
exceder. De um lado, tornaram-se campo de batalh2. para os
oradores Maratona, Salamina, Platéias Termópilas Leuctras64 • 65. Tradicionalmente, as estátuas de cidadãos em Roma mostravam-nos
de outro, nosso Codes, os Décios, Cn~u e Públio Cipião, Mar~ em trajes civis. A de César, ostentando couraça e erigida em seu fórum (Plínio,
Histó1ia -natural XXXIV.18), foi a primeira do tipo em Roma, exceto pela de
Horãcio Cocles, do século I a.C., em am1adura (Dionísio de Halicamasso
63. Salmáçis ê uma nascente na Cãria cujas águas eram consideradas V.25). Cícero talvez aluda a estãtuas eqüestres, que se popularizaram quando
enervantes (Ovídio, M!i!tamorfoses N.285 ss). Ambos os versos são de autores Sila, Pompeu e César foram assim representados. Estátuas eqüestres douradas
desconhecidos. de Marco Emllio Lépido e Lúcio Antônio foram erigidas na época da redação
64. Em Maratona (490 a.C.), Salamina (480) e Platêias (479), os gregos de De ojficiis (Filípicas V.50, VI.12).
obtiveram notáveis vitórias contra os persas: nas Termópilas (480), os esparta- 66. Men<ixeno 246c. Os comentadores ampliam a citação até "coragem'·.
nos foram den·otados pelos persas, e em Leuctras (471), pelos tebanos. Os ora- O espírito da segunda sentença não se afasta de Platão, mas se Cícero o está
dores freqüentemente utilizavam esses episódios como exemplos históricos. citando, trata-se de uma citação muito livre.

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---------Dos d e v e r e s - - - - - - - - - ----------------~---Li~ol---------------------

eram inflamados pelo desejo de vencer 67 ; com efeito, quan~ mem admirar ou perseguir. Não deve ceder a ninguém, a
to mais o homem se destaca pela magnanimidade, mais nenhuma tribdação, nem sequer ã Fortuna70 • A outra con-
aspira a ser o primeiro ou mesmo o único 6s. É difícil, quan- siste em praticar, mesmo com o ânimo afetado do modo
do se deseja superar a todos, preservar a eqüidade, que é a que mencionei acima, ações grandiosas e sobretudo úteis,
essência da justiça. Resulta daí que as pessoas não supor- como também, veementemente, tarefas árduas, trabalhosas
tem ser vencidas, quer se trate de uma discussão, quer de um e arriscadas que interessem à vida.
direito público e legítimo. Quase sempre tais homens agem 67. Dessas duas características, todo esplendor, toda
na república como corruptores e facciosos, consegui11do as grandeza, acrescento mesmo toda utilidade residem na se-
maiores riquezas imagináveis e mostrando-se antes superio- gunda; mas o princípio e a causa geradora dos grandes ho-
res pela violência que iguais pela justiça. Entretanto, o que é mens residem na primeira. Nisso se acha aquilo que torna
mais difícil é o mais notável: em momento algum devemos os ânimos excelentes e desdenhosos das coisas humanas.
nos apartar da justiça. Para tanto, duas atitudes se exigem: que julgues bom so-
65. Considerem-se, pois, corajosos e magnânimos não mente o que é honesto e estejas livre de tribulações. É que
os que praticam, mas os que repelem a injustiça. A verda- julgar insignificantes e despreziveis as coisas que à maioria
deira e sábia grandeza de alma julga honesto aquilo que a parecem notáveis e portentosas - e isso com segurança e
natureza persegue de perto e que reside, não na glória, firmeza de propósito - deve ser considerado apanágio do
mas nos atos: ela prefere ser a parecer a primeira. Sem dú- ânimo corajoso e forte. Também é prova de galhardia e
vida, aquele que depende do erro da multidão ignorante constância suportar, sem renunciar à dignidade do sábio,
não deve ser contado :QO número dos grandes homens. os problemas aparentemente dificeis que, muitos e vários,
Quem tem ânimo forte pode se: facilmente induzido a .Prá- são encontrados na vida e na sorte dos homens.
ticas injustas pelo anseio de glória. Eis aí um ponto melin- 68. Não convém àquele que o medo não abate ser
droso, pois não é fácil encontrar alguém que, pelas faça- abatido pela cobiça, nem àquele que se mostrou invicto no
nhas come.tidas e os perigos arrostados, não aspire à fama trabalho ser develado pela volúpia. Fujamos, pois, igual-
em recompensa de seus feitos 6Y. mente dessas paixões, como da sede de dinheiro. Nada,
:XX.66. Uma alma corajosa e grande distingue-se prin- com efeito, condiz mais com uma alma acanhada do que
cipalmente por duas características. Uma delas é o despre- amar as riquezas; nada é mais honesto e grandioso dO
zo dos bens exteriores, quando tenha sido persuadida de que desprezar o diiL.1.eiro quando não o temos ou, se o
que nada, a não ser o honesto e decoroso, convém ao ho- temos, destiná-lo à beneficência e à liberalidade. Evite-se a
ânsia de glória, como declarei acima, pois ela compromete
67.láquete 182e. a liberdade pela qual todos os homens magnânimos devem
68. A alusão à autocracia de César é bastante clara, especialmente nas esforçar-se. Quanto ao poder, melhor é não ambicioná-lo,·
acusações de demagogia e rapacidade ("Introdução", p. XI). Cícero, entretanto,
também deplora a ambição de Pompeu (II!.82), e César queixava-se de que
este não podia tolerar um igual (Gurm-a civiii.4.4). 70. Os estóicos sustentavam que a felicidade podia ser alcançada pela
69. Cícero havia escrito recentemente o tratado Da glória (II.31). a. independência das circunstâncias exteriores, graças ã compreensão de que
Il.43 para a distinção entre glória verdadeira e glória falsa. somente a virtude era de fato boa. alêm de estar sob nosso controle.

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às vezes recusã-lo e outras, mesmo, renunciar a ele. 69. Es- nidade política e à realização de grandes tarefas, sem dúvi-
tejamos livres, por um lado, das perturbações de ânimo, da da sua existência é mais frutífera para o gênero humano,
cobiça e do medo; por outro, das inquietações, da volúpia como também mais propícia à fama e à grandeza.
espiritual e da cólera, para que em nós se instaurem a sere- 71. Por isso, talvez devamos perdoar aqueles que não
nidade e a firmeza de alma que trazem tanto a constância se dedicam à república mas, com excelente engenho, en-
quanto a dignidade-~. tregam-se ao estudo, e aqueles que, impedidos por mã saú-
Muitos há e houve que, buscando a serenidade de de ou outra causa grave qualquer, se afastam dos negócios
que falo, retiraram-se dos negócios públicos e refugiaram- públicos deixando a outros o poder e a honra de aclrninis-
se no ócio. Cito entre eles os nobilíssimos filósofos' 1 - de trá-los'•. Contudo, não merecem elogios e sim censuras os
longe, os primeiros - e alguns homens severos e graves que,,alegando desprezar o que a maioria cobiça, isto é, car-
que não puderam suportar os costumes nem do povo nem gos e magistraturas, não apresentam nenhuma justificativa
dos dignitários, a isso preferindo viver no campo e fruir para isso. Será difícil, porém, não aprovar seu julgamento
seu patrimônio''· 70. Esses acalentaram o mesmo propósi- quando repelem a glória e a tomam por nada; o que pare-
to que os reis: não carecer de nada, não obedecer a nin- cem recear, entretanto, são os trabalhos e as penas, ou
guém e gozar de completa liberdade, isto é, viver como mesmo certa ignomínia e infãmia por motivo das ofensas e
se queira. repulsas. Hã, com efeito, aqueles que se revelam inconse-
XXI. Semelhante atitude é própria tanto dos que cobi- qüentes consigo próprios nas coisas opostas: desdenham
çam o poder quanto dos que, como eu disse, se entregam francamente a volúpia e fraquejam na dor; riem-se da gló-
ria e cedem à infâmia, sem jamais mostrar constância seja
ao ócio; uns se julgam capazes de alcançar essa tranqüili-
dade se possuírem riquezas, outros se se contentarem não no que for.
só com o seu, mas com o seu pouco. :\"ào desprezemos a
72. Confiem-se magistraturas e cargos àqueles a quem
a natureza proveu de meios de ação e que não vacilam,
decisão de nenhum deles, mas reconheçamos que a vida
pois só assim pode ser governada a cidade e manifestada a
dos ociosos é mais fácil, mais segura e menos molesta aos
grandeza de ânimo. Os que se dedicam à vida pública, não
outros. Quanto aos que se adaptaram ao serviço da comu-
menos que os filósofos~ ou até mais~, devem perseguir a
magnificência e o desprezo das coisas humanas, como in-
71. Os estóicos desejavam livrar-se das paixões, duas das quais, o dese- sisto sempre, além da serenidade e da firmeza de ânimo,
jo e o medo, envolviam a aceitação de falsas noções quanto ao bem e ao mal
caso preflra.m viver com gravidade e constância e não ator-
futuros; as outras duas, o prazer e a dor, falsas noções quanto ao bem e ao
mal presentes. A cólera em uma subdivisão do desejo (Tusc:. disp.IV.21). mentados. 73. Isso é mais fácil para os filósofos, porquan-
72. Platão, em Rept.iblic:a 516d-517e, afirmou que os filósofos, após vis- to muitas circunstâncias reguladas pela Fortuna não são im-
lumbrarem a verdade, não mais quereriam regressar às meias-verdades da vida portantes na vida deles; com efeito, necessitam de pouco e,
política, que devia ser repudiada. Os fundadores da Stoa, Zenão, Cleantes e
Crisipo, não participaram da vida pública, mas defendiam essa participação. quando sobrevém a adversidade, sucumbem sem grande
Panécio, embora pertencente à cla.-.se governante de Rodes, poderia justificar
sua abstenção C..'Om seus notórios dotes intelectuais, como em 1.71.
73. Cfcero talvez pense em seu amigo Ático (Nepos, Atticus 6.1-2). 74. Aqui, Cícero é mais condescendente que em 1.19.

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_________________ Dos~~-----------------
- - - - - - - - - - - - L i v r o ! _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

prejuízo. De sorte que, não sem motivo, os que governam do, instituído justamente por Sólon76 • 76. É lícito dizer o
a república e não os indiferentes é que experimentam for- mesmo de Pausânias e Lisandro, cujas ações não devem
tes paixões e empreendem as maiores façanhas. Cumpre ser comparadas ãs leis e ã disciplina de Licurgo, mesmo
que busquem, portanto, não só a magnanimidade como o nas coisas menores, mas ainda assim dilataram o poder
alívio das inquietações. dos lacedemônios. Além disso, em virtude precisamente
O homem disposto a uma tarefa precisa considerar dessas leis, puderam dispor de exércitos mais disciplina-
dos e mais fortes. A mim, em criança77 , não me parecia que
não apenas se ela é honesta, mas também se está capacita-
Marco Escauro Íicasse a dever nada a Caio Mário, nem,
do a executá-la. Não se desencoraje por preguiça nem con- quando já me dedicava ã vida pública, Quinto Cátulo a
fie demais por cupidez, mas, em todos os empreendimen- Cneu Pompeu. As armas contam pouco exteriormente
tos, prepare-se deligentemente. quando, interiormente, não há sabedoria. Nem o Africano,
XXII.74. Embora a maioria julgue os assuntos da guer- homem e general de excepcionais qualidades, ao destruir
":i ra mais importantes que os da cidade, essa opinião tem de Numância foi mais útil à república do que, na mesma
ser contestada. Muitos, na verdade, vão à guerra movidos época, Públio Nasica, um simples particular, quando deu
pelo anseio de glória, o que costuma suceder às almas for- cabo de Tibério Graco. Esse feito não se resLringe ã esfera
tes e engenhosas, principalmente quando se revelam profi- civil, atingindo também a militar porque foi executado
cientes na arte militar e apaixonadas pelos feitos guerrei- pela violência e ã mão armada; mas cumpriu-se por deli-
ros. No entanto, se quisermos julgar com propriedade, mui- beração da cidade e sem a interferência do exército. 77.
tas foram as empresas civis mais grandiosas e gloriosas que Acho excelente este dito pelo qual sei que os ímprobos e
as militares';· invejosos me atacam:
75. Embora por direito se louve Temístocles e seu no-
;,
__
me resplandeça mais que o de Sólon; embora Salamina Cedam as armas ã toga, conceda-se o louro ao louvor".
seja citada como vitória notável, anteposta à decisão de
Sólon que instituiu pela primeira vez os areopagitas, este
não deve ser julgado menos preclaro do que aquele. Te- 76. Clcero parece aceitar a tradição segundo a qual Sólon teria sido o
primeiro a estabelecer o Areópago, o que Plutarco diz ter lido em "muitos
místocles, com efeito, foi útil uma vez à cidade, Sólon escritores" (Vida de Sólon 19). Plutarco e Aristóteles, no entanto, sustentam
sempre o será: graças às suas medidas são preservadas as que o Areópago já existia e que Sólon criou um novo conselho em 400 a.C. A
leis dos atenienses e as instituições dos antepassados. Te- presente versão, talvez base:ada em uma confusão entre os dois conselhos
místocles não poderia dizer que ajudou o Areópago; mas ajusta-se ã obsetvação de Cícero de que os acontecimentos civis são a bas~
dos militares, pois foi o Areópago que contribuiu para as despesas navais
este, com toda verdade, poderia dizer que ajudou Temlsto- quando da vitória ateniense em Salamina.
cles. É que a guerra se fez por deliberação daquele sena- 77. Cícero indica a época (final do século 11 a.C.) em que essa compara-
ção foi feita, bem como o lugar, pois ambos os homens foram importantes para
sua cidade natal, Arpino. Mário nasceu ali e Escauro, que se interessou pela
75. O próprio Cícero aspirava a um triunfo (p. 40, nota 79), embora sou- cidade, congratulou-se com o avô de Cícero por sua oposição ao voto secreto.
besse que jamais igualaria seus ilustres contemporâneos. Toda a discussão da 78. O verso "Cedant armae togae, concedJ'Jt laurea laudl"' é extraído do
vida pública, de 69 em diante, leva a 78, onde Cicero insta o ftlho a seguir-lhe Livro 1II do poema de Clcero De remporibus meis. Desde a época de sua com-
as pegadas. Cf. ll.45 para a vocação militar do jovem Clcero. posição, em 60 a.C., tem sido ridicularizado por sua assonância e afetação. Na

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Em verdade, deixando outros de parte, quando prestá- De fato, graças ao conselho deles, muitas vezes as guerras
vamos serviço à república, acaso as armas não cederam à ou não são empreendidas ou logo se encerram, sendo mes-
toga? Nem houve jat11..aiS na história da república perigo mais mo, não raro, declaradas: deu-se isso com a Terceira Guerra
grave, nem ócio maior. Mas por nosso conselho e diligência, Púnica, na qual prevaleceu o. aviso de Marco Catào mesmo
prontamente arrancadas das mãos de cidadãos audacíssimos, depois de ele ter morrido 81 • 80. Eis por que devemos recor-
as armas cairam. Ora, que feitos igualmente gra.."'ldiosos algu- rer mais ã razão ao decidir do que ã coragem ao combater,
ma vez ocorreram na guerra? Que triunfo se pode a este cuidando, entretanto, de fazê-lo menos pela fuga ao combate
comparar!"! 78. É lícito, Marco, meu filho, glorificar-me dian- do que pelo cálculo da utilidade. Ademais, faça-se a guerra
te dê ti, a quem tocam não só a herança dessa glória como a unicamente eo prol da paz.
imitação desses feitos. E quem me louva é um homem certa- É próprio do ânimo corajoso e constante não se deixar
mente cumulado de honrarias militares, Cneu Pompeu: mui- perturbar pelas dificuldades nem abalar-se, mas, como se
tos não ouviram qua..'1dO disse que, sem meu serviço à re- diz, valer-se da presença de espírito e da razão.
pública, não obteria um terceiro triunfo por falta de onde 81. Isso concerne ã alma; mas eis o que concerne a
triunfar?'~" Assim, não são inferiores às façanhas da guerra os um grande engenho: alcançar as coisas futuras por meio do
empreendimentos da paz, nos quais se costuma empenhar pensamento e, com larga antecedência, vislumbrar o que
até mais esforços e traballios. acontecerá em um ou outro sentido, o que será necessário
XX1I1.79o Er.:~. suma, aquela honestidade que procura- fazer quando algo sobrevier e não ter de dizer algum dia:
mos em um ânimo elevado e grandioso é engendrada pe- "Não pensei nisso." Essas são obras de um ânimo elevado,
las energias da alma e não do corpo. Todavia, o corpo deve fiado na prudência e no tirocínio. Lançar-se tememriamen-
ser exercitado e preparado de tal forma que obedeça à de- te ã batalha e ir às mãos com o inimigo é comportamento
liberação da razão para executar tarefas e suportar tmba- desumano, semelhante ao das feras; mas, quando as cir-
L1.os. Om, essa honestidade que buscamos está toda. no cui- cunstâncias o exigem, deve-se arrostar o adversário, ante-
dado da alma e do pensamento. Nisso, não menos utilida- pondo a morte à servidão e à desonra. XXIVo82. Cumpre
de têm aqueles que, togados, estão encarregados dos assuntos ponderar muito a respeito das cidades que mereçam ser
públicos do que aqueles que, armados, conduzem a guerm. destruídas e saqueadas, para nada se fazer precipitada ou
cruelmente.
É próprio do homem magnânimo, quando a situação
ocasião, Qçero defendeu-o contra as chàcotas de Antônio (Pilípicas ll.20). Ver
·'Introdução"', pp. X, XV, XIX. está confusa, punir os culpados, proteger a multidão, man-
79. O triunfo era constituído por grande desfile de soldados, cativos e ter sempre a retidão e a atitude honesta. De fato, como há,
despojos, conduzido pelo comandame vitorioso em tmjes magrírl'icos. Cícero segundo dissemos acima, os que aos assuntos da paz ante-
moveu céus e terr~s para obter um, após ser saudado como "lmperator"' (pre-
liminar necessária) por seus soldados quando de sua vitória na Cillcia, em 51.
põem os da guerra, assim encontrarãs muitos para os quais
80. ~os el!:emp!os gregos de 75-6, Sólon e Licurgo estabeleceram as ins-
tituições necessárias muito antes de Temístodes, Pausânias e Lisandro conse-
guirem seus êxitos militares. Os exemplos romanos sào pares de contempo&- 81. Até sua morte, em 149 a.C., Catol:o, o Antigo, encerrava cada discur-
neos nos quais o homem de discurso supera o general. Os dois temas apare- so no Senado com a frase "Cartago deve ser destru!da" Ela se concretizou
cem juntos na comparação de Pompeu e Cicero em 78. em 146.

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________________ Do,~---------------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - Livro! _________________

as deliberações arriscadas e predpites parecem não só mais Um único homem, contemporizando, restabeleceu a situação,
notáveis, mas mais necessãrias. 83. Nunca, em absoluto, de- Pois não antepunha a glória ã salvação.
vemos fu.gir a um perigo, para não parecermos covardes e Por isso, e mais que nunca, brilha hoje a glória desse herói 6'.
timoratos; todavia, evitemos a exposição ímotivada aos ris-
cos, pois nada pode ser mais tolo do que isso. Ao encarar Tal tipo de erro deve ser evitado também nos assuntos da
os perigos, imitemos o costume dos médicos, que curam cidade. Há, com efeito, os que por medo da inveja não ousam
suavemente as moléstias menos graves e, para as mais sé- comunicar seus pensamentos, por mais excelentes que
rias, prescrevem remédios resolutos e arriscados. Pois, na sejam.
calmaria, desejar a violência da tempestade é próprio do XXV.85. Portanto, os que estiverem encarregados dos
demente e dela defender-se por quaisquer meios é próprio assuntos públicos observem dois preceitos de Platão. Man-
do sábio -sobretudo se adquirires maiores bens com a si- da o primeiro que protejam o interesse dos cidadãos de
tuação acalmada do que rriales com a situação duvidosa. modo tal que, façam o que façam, sempre levem em conta
Ora, as ações são arriscadas, em parte, para aqueles que as esse interesse, esquecidos do seu próprio. Pelo segundo,
empreendem, e em parte, para a república. ocupem-se com todo o corpo da república e nunca, ao
84. Do mesmo modo, uns são chamaàos a pór em proteger uma parte, esqueçam as outras8l. Como na tutela,
risco a própria vida, outros, a glória e o favor dos concida- a república deve ser gerida tendo em ntira a utilidade dos
dãos. Devemos, pois, estar prontos a correr antes riscos administrados e não dos administradores84 • Já os que deli-
pessoais que riscos comuns e a combater com mais empe- beram para uma parcela dos cidadãos e negligenciam outra
nho pela hon:a e a glória que por quaisquer outros interes- introduzem na cidade algo muito pernicioso, a sedição e a
ses. Muitos houve prontos a empenhar, em favor da pátria, discórdia. Sucede então que alguns pareçam simpáticos ao
não só o diOJ.1.eiro como também a vida; mas de forma al- povo, outros aos patrícios, pouquíssimos a todos~. 86. En-
guma estavam dispostos a sacrificar a mínima parcela de
glória, nem mesmo quando a república o exigia. Assim Ca- 82. Anais, Livro XII.
ligrátides, embora houvesse coma..1.dado brilhantemente os 83. Ver República I 342e. V 465d...6c, VII 519e, IV 420b.
lacedemónios na guerra do Peloponeso, comprometeu tudo 84. "Administração"', ''Procuratid' e "tutela", "tute!d'. Termos do direito
ch•il pa.rn relações na vida particular baseadas na fé (jides). TuteUJ é a relação
ao desobedecer à deliberação daqueles que queriam remo- de guarda para com pessoa legalmente incapaz de administrar seus próprios
ver a frota das Argi.tlusas e evitar o confronto com os ate- negócios, notadamente mulheres e menores; procuratio é a supervisão dos
nienses. A eles replicou que, perdida aquela esquadra, po- interesses de outro homem, teoricamente sem remuneração, como fez Ático
deriam construir outra, mas não fugir sem desonra. E com para Clcero e outros amigos (Nepos, Ático 15-3).
85. O contraste é entre dois tipos de polltica, não dois partidos. Popu-
efeito essa derrota em nada abalou os lacedemónios, ao lares era aplicado usualmente a indivíduos que se diziam representantes dos
contrário da de Cle6mbroto que, receoso da inveja, bateu- interesses do povo, em oposição ao Senado e ãs ordens superiores de um
se temerariamente com Epaminondas e p6s·a perder a for- ~o~ geral: eles exaltavam a sober:ania das assembléias populares e a impor-
tanaa do tribunato da plebe, advogando reformas sociais e econômicas em
tuna~ de Esparta. Melhor se houve Quinto Máximo, do qual
benefício dos pobres. Os opt1mates favoreciam os interesses dos optimi, ou
diz E...'"lio: "melhores" (sua própria expressão lisonjeira), e defendiam a autoridade do
Senado, condenando a distribuição da riqueza e da propriedade. Cicero gos-

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\"·.
----------------------~sdewr~---------------------- ------------LilffOI------------

tre os atenienses, isso fez surgir grandes disputas; na nossa vável, nada é mais digno de um homem preclaro do que a
república, não só rebeliões, mas também ruinosas guerras brandura e a demência. Em verdade, nos povos livres e sob
dvis1'6: coisas que um cidadão grave, corajoso e digno de o regime da igualdade dos direitos, cumpre exercer a docili-
precedência nos negócios públicos evitará e odiarã. Este, dade e a elevação de alma, como se diz, a f1m de evitar, se
por outro lado, entregar-se-á de corpo e alma à república, nos irritarmos, o mau humor inútil e detestável contra os
não apetecerá riquezas e, deliberando para todos, a todos importunos que nos aborrecem e os indiscretos que nos
protegerá. Jamais, com acusações falsas, atrairá o ódio e a solicitam. Mas não aprovemos a rnansuetude e a clemência
bveja sobre inocentes e de tal modo se apegará à justiç:<~ e em detrimento da necessária severidade pela causa d.a repú-
à honestidade que, observando-as, será inflexível e preferi- blica, sem a qilal não se consegue administrá-la. Repreensões
rá a morte a renunciar aos ditames que mencionei. e castigos, no entanto, devem estar isentos de ultrajes, não le-
87. Misérrimos são, em suma, a ambição e o desejo de vando em conta o interesse do que pune ou admoesta mas
honras, a que brilhantemente também se refere Platão: o bem da república. 89. Cuide-se também para que o casti-
"Aqueles que competem pela acL'Uinistração da república go não seja maior que a culpa e que, por motivos idênticos,
agem como marinheiros que disputassem o controle do uns o recebam enquanto outros nem mesmo sejam citados.
barco." E prescreve ainda: "Consideremos adversários os Ao punir, evite-se sobretudo a ira: aquele que, colérico, apli-
que empunham armas contra nós, não os que, a seu modo, ca o castigo nunca mantém a mediania entre o muito e o
desejam proteger a república.""' Assim, foi sem violência a pouco, a qual, muito con-etamente, compraz os peripatéticos,
disputa entre Públio Africano e Quinto Metele8". visto que estes ja.rnais gabariam a irascibilidade e a diriam pro-
88. Não devem sequer ser ouvidos os que julgam con- veitosamente doada pela natureza. Em tudo a cólera tem de
veniente encarniçar-se contra o inimigo e cuidam que isso é ser repudiada"', sendo de desejar que os responsáveis pela
próprio de um ânimo galhardo e superior. Nada é mais !ou- república imitem as leis ~ que tendem a punir não por raiva,
mas por eqüidade~'".
tava de julgar-se um promotor da harn"lonia entre as três ordem, mas sua sim-
XXVI.90. Também nos negócios prósperos e que cor-
patia pelo Senado e sua defesa da propriedade pnvada rotulam-no como op- rem segundo a nossa vontade evitemos a soberba, o des-
tlmate, embora moderado.
86. Cícero refere-se aos conflitos políticos em Atenas, entre oligarcas e
democratas, no final do século V a.C. Em Roma, pensa nos conflitos de seu 89. Aristóteles descrevia as viltudes como estados intermediários entre
próprio tempo, que envolveram até exércitos, entre M~rio e Sila e depois dois extremos. Assim, a brandura seria o intermediário entre a irasdbiUdade e
entre César e Pompeu. O conflito entre os tiranícidas, de um lado, e Antônio a apatia; o homem brando pode encolerizar-se em determinadas ocasiões e
e Otávio, de outro, estava por vir. em um grau apropriado (i.""tica a Nic6maco rv.S). Clcero segue aqui os estói-
87. Cícero explora, de forma um tanto livre, a famosa analogia do navio cos ao afirrnar que o homem sábio deve estar livre d~~> paixões (p. 48, nota 93),
em Reptlblica VI 488. Não se sabe onde encontrou a segunch! parte do conse- mas, em respeito ao atual mestre do filho, registra a visão peripatétíca (ver
lho de Platão. ""Introdução", p. XVII[) segundo a qual a cólera apropriada é útil (Tusculanae
88. Em Laelius de amicitia 77, de Clcero, Lélio aftrma que Cipião Emilia- dtsputationes rv.43). Cicero também usa o padrão do 'meio-termo'" em sua
no se desentendeu com Quinto Metelo Macedônico sem acrimônia, mas no discussão do decoro-(1.130, !.140) e ch! liberalidade política (11.59, !1.60).
De re public:a 1.31 chama Metelo de líder dos "difamadores e inimigos" de 90. O próprio Aristóteles compara o império da lei com o império ó
Cipiào. razão desapaixonach! em Polftíca IJI.16 e Retórica 1.1.7.

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- - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - L i v r o I-------~-

dém e a arrogância. É próprio da leviandade suportar imo- Hares, sem os aumentar a todo custo nem excluir de seu
deradamente tanto as coisas adversas quanto as favoráveis. gozo os parentes: ao contrário, partilharam-nos com os ami-
Digna de destaque é a regularidade na vida, com mesmo gos e, em casos de necessidade, com a república. O patri-
rosto e mesma atitude, conforme ouvimos dizer de Sócra- mônio adquirido sem ganhos torpes ou odiosos torna-se
tes e também de Caio Lélio. Vejo mesmo que o rei Filipe da depois útil ao maior número possível de pessoas, desde
Macedônia, superado pelo filho em feitos e glórias, supe- que dignas. Pode então ser aumentado pela razão, diligên-
rou-o em mansuetude e humanidade: assim, um foi sempre cia e parcimônia, contanto que o proprietário não ceda às
grande e o outro, muitas vezes, vilíssimo. Parecem precei- paixões e ao luxo, mas ã liberalidade e ã benevolência9'.
tuar corretamente os que nos aconselham a agir com tanto ~ada mais justo que aquele que respeita tais preceitos
maior humildade quanto mais alto estivermos. Conta Pané- viva com grandeza, dignidade e orgulho, ao mesmo tempo
cio que o Africano, seu discípulo e amigo, costumava dizer: que com simplicidade, lealdade e boa vontade em relação
"Assim como confiamos aos domadores os cavalos asselva- aos homens.
jados pelas freqüentes lutas e combates, a fim de que no- :x:xvn.93. Resta falar daquela parte da honestidade em
los devolvam mansos, os homens sem freio e excessiva- que distinguimos a discrição e como que certos ornatos da
mente autoconfiantes em função da prosperidade deveriam existência: a temperança, a modéstia, o pleno dominio das
ser entregues, por assLm dizer, à domesticação da razão e tribulações da alma e o senso de medida em todas as coi-
da doutrina, a fim de descobrirem a fragilidade das coisas sas9!.. Esse conceito engloba aquilo que em latim chamamos
humanas e a inconstância da Fortuna." de decorum e em grego, prépon. Seu significado é tal que
91. Nas situ.ações prósperas é que devemos dar ouvi- não podemos di.ssociã-lo da honestidade, pois o que con-
fios aos conselhos dos amigos, respeitando-lhes a autorida- vém é honesto e o que é honesto convém; contudo, é mais
de mais que antes. Em idênticas circunstâncias, porém, evi- fácil entender que e~licar a diferença entre o honesto e o
temos escutar os lisonjeadores e não consintamos em ser decoroso. 94. Com efeito, o honesto, como tal, precede o
adulados, pois nisso é muito fãcil nos enganarem. Com efei-
to, sempre nos julgamos merecedores de tais elogios. Nas-
cem dai erros inumeráveis, quando os homens, inflados de 91. Cícero talvez se refira a seu amigo ~tico, que tinha grande interesse
por política e, segundo seu biógrafo Nepos (Atico 2.4-6), era altamente escn\-
ilusões, caem vergonhosamente no ridículo e cometem os puloso na aquisição e uso da riqueza.
maiores desatinos. 92. O que essas virtudes aparentémente disparatadas, aqui agrupadas,
Mas basta quanto ao assunto. têm em comum é: primeiro, o limite e a adequação ao contexto, e segundo, a
preocupação com a aparência e com as atitudes que ~o ofendam o próximo.
92. Espera-se que os grandes feitos, próprios de um Assim, o impulso deve obedecer ao limite estabelecido pela razão a ~nn de
ânimo elevado, sejam obra dos que dirigem a república, q>.:e as paixões sejam contidas (102); o senso de vergonha deve respe1tar as
pois seus atos têm maior alcance e envolvem ~s _interesses ~onvenções sociais (99, 128, 148); a vida da pessoa tem de adequar-se a seu
'·papel" (107, 115); e o comportamento tem de adequar-se à idade e ã condi-
de muttos. Inúmeros foram os homens magnammos que, c\l.o clVi\ (."'l."l"l-5). M paix<:>o:<~ e><ces&i.'l"" .?.Lo "r!.0\.6t'<M e o~~ \.1.Cl"l)·, entte-
mesmo no ócio intentando empresas grandiosas, mantive- tanto é preciso regular também certos aspectos do cotidiano como ane~tas
ram-se nos limi~es de sua atuação _e, a meio camin..'lo ~ntr~ e co~versas (103-4, 132-6), porte e traje (128-31) e moradia (138-40), co1sas
os filósofos e os estadistas, se delettaram com os bens .. rum- que estão sempre ã vista do público.

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---------Dos d e v e r e s - - - - - - - - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro I - - - - - - - - - -

decoroso. Assim, não apenas na parte da honestidade que decoro é a qualidade que combina com a excelência do ser
examinamos aqui, mas também nas três anteriores mostra-se humano naquilo em que sua natureza difere da dos outros
aquilo que é decoroso. Convém usar da razão e da lingua- entes animados. Quanto ao decoro particular, dependente
gem com prudência, agir refletidamente e, em tudo, deter- do geral, definem-no como aquilo que está de tal modo con-
minar e proteger o que é verdadeiro; ao contrário, equivo- forme à natureza que nele aparecem a moderação e a tem-
car-se, errar, falhar e deixar-se induzir a enganos é tão incon- perança, com certo ar distintivo da condição livre.
veniente quanto delirar e perder a cabeça. Todas as coisas XXVIII.97. Podemos estimar que tais coisas sejam as-
justas são decorosas; as injustas, como as torpes, são indeco- sim entendidas com base no decoro observado pelos poe-
rosas. O caso da coragem é semelhante: parece decoroso e tas, assunto já tantas vezes diScutido em outros lugares9;.
próprio do ser humano tudo aquilo que se faz com ânímo Dizemos que os poetas respeitam as conveniências quando
viril e altanado; o contrário disso é torpe e indecoroso. as palavras e ações são dignas de cada personagem. Se
95. Assim, o decoro de que falo convém à honestida- Éaco ou Minas dissesse:
de, e de tal forma que o discernimos sem recorrer a racio-
cínios tortuosos, pois é evidente. Reconhecemos algo de Que me odeiem, contanto que me temam,
decoroso em toda virtude, algo que podemos isolar desta
antes pelo pensamento que pela realidade. Assim como o ou
encanto e a beleza do corpo são inseparáveis da saúde,
assim o decoro a que nos referimos acha-se todo confundi- O próprio pai é sepulcro dos filhos,
do com a virtude, embora fXJSSamos distingui-lo com o
pensamento e o raciocínid'. essas falas pareceriam indecorosas, pois para nós Éaco e
Minas foram homens justos. Entretanto, se Atreu as profe-
96. Sua definição é dupla. Concebemos, efetivamente,
risse, suscitaria aplausos, porquanto o discurso seria digno
um certo decoro geral em todas as formas de honestidade e
da personagem. Os poetas, porém, avaliam o que convém
outro, dele dependente, relativo a um elemento individ~ai
do honesto9«. Co!ltuma-se definir o primeiro nestes termos: o a cada um segundo a personagem, ao passo que a nós a
própria natureza impôs uma personagem dotada de alta
dignidade e superior ao resto dos seres vivos .
. 93. O decoro é encontrado particularmente no quarto gntpo de vilntdes 98. Por isso os poetas, na enorme variedade de perso-
relativas ao que é apropriado e à maneira com que nos apresentamos aos olho~ nagens, determinarão o que melhor se ajusta até mesmo
dos outros, Entretanto, ress~Iv~ Cicero, todo comportamento virtuoso é de fato
decoroso; quem considera um ato justo, considera-o também decoroso. assim aos viciosos. Em nós, por outro lado, como nos foram da-
como não se pode considerar um corpo ~ão sem considerá-lo ao meSlno tempo das parcelas de constância, moderação, temperança, discri-
belo. A virtude, em geral, ê decoros;\ porque se revela adequada a um homem ção; e como a própria natureza nos ensina a não negligen-
C%) e gnmjeia aprovação quando outros a reconhecem como taL ciar o tratamento reservado aos semelhantes, sucede mani-
94. Os manuscritos trazem ··elementos individuais''; emretanto, Cícero
A

esm opondo claramente o decoro da honestid~de como um todo (isto é. das


festar-se não só o decoro pertinente a toda a honestidade,
quatro VIrtudes JUntas) ao decoro especial do quano gntpo de vinudes.
Ig.ualmente em 96, onde os manuscritos trazem ·'em cad<t pa1te da virrude" ,.
le1tura proposta ê "em uma pane da virtude". ' 95. A noção do que é adequado era comum nos tratados de poesia e re-
tórica. Cícero discute-a brevemente em Or. 70-4.

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--------------------~de~~-------------------- --------------------Li~ I--------------------
que é bastante evidente, mas também o que se observa em meridade e negligência; nada convém fazer sem justificati-
cada um dos tipos de virtude96 • Assim como a beleza do cor- va aceitável. Eis, mal e mal, a caracterização do dever.
po impressiona os olhos peJa· correta disposição dos mem- 102. Que os apetites se curvem à razão e não a ultra-
bros e nos deleita quando todas as partes se harmonizam passem, não a abandonem por preguiça ou indolência, se-
com graça, assim o decoro que brilha na vida acarreta a jam serenos e livres de tribulações. Com isso brilharão to~
aprovação do nosso círculo, se há constância e moderação das as formas de constância e moderação. Pois os apetites
nas palavras e ações. que se desgarram e como que exultam na busca de satisfa-
99. Cumpre, pois, respeitar os homens, tanto os me- ção ou na contenção não são suficientemente refreados
lhores quanto os outros. Desdenhar o que cada um pensa pela razão e, sem dúvida, rompem os limites e a medida.
,de si mesmo é próprio do arrogante e do completamente Com efeito, abandonam e repelem a obediência, e não ou-
dissoluto. Há uma diferença entre justiça e respeito quando vem a razão à qual estão sujeitos por natureza. Perturbam
se raciocina a propósito dos seres humanos. A fin.ilidade não só a alma como o corpo. Podemos facilmente discer-
da justiça é não agredir os semelhantes; a do respeito, não nir os traços das pessoas que se encolerizam, alimentam
ofendê-los: e nisso reside principalmente a diferença entre paixões ou medos, entregam-se aos extremos da volúpia:
a força e o decoro. Pelo exposto, julgo ter feito compreen-
em todas se transtornam a fisionomia, a voz, os gestos e as
der o que seja o decoro.
atitudes 911 •
100. O dever daí oriundo segue primeiramente a via
103. Disso se depreende, para voltarmos à idéia do
que leva a conveniência e à preservação da natureza, da
dever, que precisamos sopear e aquietar os apetites, e esti-
qual, se a tomarmos por guia, nunca nos extraviaremos,
mas adotaremos ao mesmo tempo o partido que é natural- mular a reflexão e a diligência para nada fazermos de forma
mente o da argúcia e da inteligência, adequado ã comuni- temerária, fortuita, inconsiderada e leviana. Em verdade, não
dade humana e caracterizado pela energia e a coragem. fomos gerados pela natureza de modo tal que pareçamos
Entretanto, é nessa parte ora em discussão que assume im- afeitos aos jogos e pândegas, mas sim à severidade e aos com-
portância a força do decoro: se conformes ã natureza, de- promissos mais graves. É lícito nos entregarmos aos diver-
vem ser aprovados não só os movimentos do corpo, mas timentos, mas como ao sono e ao repouso depois de cum-
muito mais os da alma. 101. Dupla é, com efeito, a força pridas as tarefas respeitáveis e sérias. Quanto à natureza do
das almas e da natureza: parte dela reside no apetite (em divertimento, não há de ser desenfreada e incontida, mas re~
grego, hormé), que sacode o homem de um lado para ou-
tro; outra, na razão, que aponta e esclarece o que deve ser
feito e o que deve ser evitado. Portanto, a razão manda e o mente ou experimentar paixões (ver p. 36. nota 71) é produto de um erro de
julgamento sobre o que é desejável, o impulso segue imediatamente o julga-
apetite obedece97 • XXIX. Toda ação deve ser isenta de te- mento da razão e a virtude é tema de conhecimento, niio de dorn1nio dos
impulsos.
98. Aqui, o contraste entre alma e corpo, como em I.lOO, não é entre
96. Ver p. 48, nota 94. peru;amemo e ação (que, como resultado do impulso. foi tratada relativamen-
97. Cicero emprega a terminologia estóica, embora os estóicos ortodo- te ã alma em I.lül-102), mas entre a conduta CaçOes e paixões) dos homens e
xos, diferentemente de Platão e Aristóteles, não dividissem a alma em partes sua aparência ff~ica (gestos, expressOes). Cf. I.126, onde "feito e pahv;n"
potencialmente conflitantes (cf. T!tSc. disp. IV.l0-11). Para eles, agir incorreta- opóem-se a "movimento e estado corporal".

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- - - - - - - - - - D o s d e ! J f l r e s _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro f _ _ _ _ _ _ _ _ __

catada e de bom gosto. Pois, assim como às crianças não minando ou agindo pelo deleite de ver e ouvir. Além disso,
damos licença total nos folguedos, mas apenas aquela que o individuo um tanto propenso aos prazeres, não sendo do
não as afaste das ações honestas, assim, mesmo em nossas tipo dos animais - com efeito, alguns hã que são homens
diversões deverá brilhar uma fagulha de probidade. não de fato, mas só de nome - e mostrando-se um pouco
104. São dois os tipos ele diversões: a ignóbil, petulan- mais ereto que eles, pode esconder e dissimular esses ape-
te, vergonhosa e obscena; a elegante, urbana, inteligente e tites por pudor, ainda que sejam intensos.
graciosa. Desta estão repletos não só o nosso Plauto e a 106. Disso se depreende que o prazer do corpo não
antiga comédia dos áticos, mas também os livros da filoso- condiz suficientemente com a superioridade do ser huma-
fia socrática"". Muitas de suas tiradas, que se 'denominam no, melhor sendo desdenhã-lo e repeli-lo. Mas se alguém
apophthégmata' 00 , são verdadeiramente espirituosas, como dá valor ao prazer, pelo menos observe diligentemente cer-
as recolhidas pelo velho Catão. Nada mais fácil, portanto, ta medida ao fruí-lo. Assim, o alimento e os cuidados do
que distinguir a diversão recatada da dissoluta. Uma, se corpo almejem a saúde e a robustez, não o gozo. Se quiser-
;_:. mos saber o que é a dignidade e a excelência na natureza,
praticada no momento certo e com espírito calmo, é digna
do mais sério -dos humanos 101 ; a outra, uma vez que a obs- entendamos que é torpe ceder à luxúria e viver no luxo e
cenidade das palavras reveste a torpeza das coisas, sequer languidez - e que é honesto viver com parcimônia, conti-
é aceitãvel no homem livre. Também nas brincadeiras con- nência, austeridade e frugalidade.
servemos alguma medida, para não tratar tudo com levian- 107. Compreendamos ainda que a natureza nos atri-
dade e, espicaçados pelo prazer, não coe1eter torpezas. O buiu duas personagensw·\ Uma delas nos é comum a todos,
:; . nosso Campo 102 e os exercícios de caça fornecem exemplos pois todos somos partícipes da razão e da superioridade
em relação aos animais, da qual provêm o ·honesto e o de-
honestos de divertimentos.
coroso e que nos leva a estudar o método de conhecer o
XXX.105. t pertinente a toda investigação do dever dever. A outra é atribuída pessoalmente a cada um de
ter em mira o quanto a natl.lreza do homem ultrapassa a nós 1"'. Assim como, nos corpos, há notórias diferenças- al-
dos animais domésticos e das feras. Nada sentem os ani- guns se destacam pela velocidade na corrida, outros pelo
mais a não ser o prazer, para o qual são arrastados com o vigor na luta, havendo mesmo em certas fisionomias laivos
máximo ímpeto; o espírito do homem, ao contrário, é nu- de dignidade e em outras, encanto-, assim as almas se ca-
trido pelo aprendizado e o pensamento, estã sempre exa- racterizam por distinções ainda mais acentuadas. 108, Ob-
servava-se em Lúcio Crasso e em Lúcio Filipo muita elegân-
99. Clcero p~rece aludir a Platão, Xenofonte e Ésqcünes. em cujas obras
cia, maior ainda, e mais estudada, em Caio César, ftlho de
percebemos a ironia socrática (cf. Bmtus 292).
100. Coletânea de anedotas e ditos por Calão, o Antigo (d. D€ orutore
!1.271). 103. A palavra traduzida como '·personagem", persona, é tomada do tea-
101. "O mais sério" é acrescentado para preencher uma lacuna óbvia. tro (cf. 1.97), onde pode significar máscara, papel ou o próprio ator.
102. A área a noroeste do centro de Roma e a leste do Tibre, utilizada 104. O anseio dos estóicos de viver de acordo com a natureza, isto é.
,, como C<~mpo de exercícios mesmo depois das vastas construções empreendi- re-.tlizur a natureza do homem, é aqui ampliado para acomodar os traços ~
das no período augustiniano (Estr.i.bão, Geografia V.3.8). talentos individuais de cada um.

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--------------------D~~wros ____________________ - - - - - - - - - - - - - - - - - - Livro] ________________

Lúcio; notava-se uma gravidade toda própria em Marco Es- mais velhos que também Públio Cipião Nasica era desse
cauro e no adolescente Marco Druso; em Caio Lélio, exube- tipo, ao contrário do pai, aquele que vingou as tentativas per-
rante jovialidade, mas em seu amigo Cipião, ambição mais versas de Tibério Graco, o qual não mostrava nenhuma afa-
intensa e um caráter mais melancólico. Entre os gregos co- bilidade de trato e por isso se tornou grande e famoso 108 •
nhecemos Sócrates - doce, espirituoso, bom conversador e, Há muitas outras diferenças de natureza e costumes que,
em tudo o que dizia, esquivo -, que os concidadãos chama- no entanto, não devem ser inteiramente censuradas.
vam de Éiron 101 • Jã Pitágoras e Pérides alcançaram suprema XXXI.110. Cada um deve conservar, não suas carac-
autoridade sem sorrir. Dos púnicos, sabemos que Aníbal foi terísticas viciosas, mas as que lhe são próprias, para assim
astucioso; dos nossos generais, que Quinto Máximo simu- mais facilmente ostentar o decoro que buscamos. Em
lava destramente, calava, ocultava, armava emboscadas, nenhum ponto lutemos contra a natureza que a todos nos
adiantava-se aos projetos do inimigo. Nesse tipo, não há é comum, mas, respeitada esta, sigamos a nossa; desse mo-
para os gregos quem supere Temístocles e Jasão Fereu, mas do, ainda que haja empresas mais consideráveis e melho-
em primeiríssimo lugar colocam o solerte e habilidoso Só- res, mediremos nossas inclinações pela regra de nossa pró-
lon, o qual, para ter vida mais segura e melhor servir à re-
pria natureza. Em nada, com efeito, aproveita opor-se ã na-
pública, chegou ao ponto de fingir insanidade106 •
tureza, nem cobiçar o inacessível. Assim, mais ainda so-
109. Há outros muito diferentes desses, simples e fran-
cos, que julgam nada dever ser feito às ocultas, nada com bressai o decoro, uma vez que tudo é indecoroso quando
artimanhas, pois são cultores da verdade e inimigos da Minerva está contrariada, como dizem, isto é, quandó a
fraude; e outros que a tudo se sujeitam e servem a qual- natureza se opõe e contrapõe.
quer um, contanto que obtenham o que desejam: assim 111. A ser alguma coisa, o decoro certamente nada
eram Sila e Marco Crasso. )iesse número, segundo a tradi- mais é que a uniformidade na vida em geral e em cada uma
ção, contava-se o astucioso e paciente Lisandro, o lacede- das ações praticadas, uniformidaGe que não preservarás se,
mônio, mas não Calicrátides, que comandou a esquadra imitando a natureza alheia, esqueceres a tua. Assim como
em substituição a Usandro. Sabemos que a pessoa hábil na devemos usar a linguagem que conhecemos para não cair,
conversação, por mais poderosa que seja, tenta aparentar por bom motivo, no ricliculo - como alguns que recheiam
ser apenas uma entre muitas, como sucedia aos Cátulos, pai seus discursos de palavras gregas' 09 - , assim nos atos e na
e filho, e igualmente a Quinto Múcio e a Mânciaw'. Ouvi dos vida não devemos ostentar nenhuma discrepância.
112. A diferença de naturezas tem tamanha força que,
105. Palavra grega da qual provém "ironia".
algumas vezes, a pessoa deve decretar a morte de si pró-
106. Sólon, para evitar as conseqüências de uma lei ateniense que proi- pria; mas outra, nas mesmas condições, não o deve. Esteve
bia advogar a retomada da luta contra Mégara, na qual Atenas fora derrotada,
fingiu loucura e recitou versos nos quais preconizava a reconquista da ilha de
Salamina. 108. Os manuscritos incluem a seguir uma referência a "Xenócrates, o
107. A correçilo textual mais óbvia sugere inserir aqui um "e" antes de mais severo dos filósofos"; todavia, é obscura e os editores a eliminam.
"Mãncia" ("e Mância"), fazendo com que Cícero se refira nessa passagem, 109. Embora Cícero ãs vezes forneça os equivalentes gregos a tem1os
como em De oratore 11.274, ao humor de Hélvio Mância. Veja "Kota Biográfica", técnicos em suas obra.s filosóficas, jamais, exceto em cartas aos íntimos, rrJs-
em M:ãncia. tura palavras gregas a seu latim.

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- - - - - - - - - - - D o s drweres; _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - - LtvroJC _ _ _ _ _ _ _ _ __

porventura Marco Catào em uma situação e os que se en- gesto, Melanipa e Clitemnestra; lembro-me de que Rupílio
tregaram a César na África em outra? Talvez, se se matas- sempre interpretava Antíopa e Esopo, não muitas vezes, o
sem, fá-lo-iam por vício, porque a vida deles fora suave e Ajax" 1• Pois então o ator perceberá tudo isso no palco e o sá-
seus costumes, mais tolerantes. A Catão, como a natureza bio nada perceberá na vida?
atribuísse uma inacreditável gravidade e ele próprio a ro- Apliquemo-nos, pois, de preferência às atividades em
bustecesse por uma perpétua constância, sempre se afer- que formos mais aptos; mas se um dia a necessidade nos
rando à decisão proposta e aceita, melhor foi morrer do impelir para aquelas que não se coadunam com nosso en-
que contemplar o rosto do tirano 1H'. genho, observemos todo o cuidado, ponderação e diligên-
113. Muitos sofrimentos padeceu Ulisses naquele errar cia a flm de executá-las decorosamente ou, ao menos, nà.o
contínuo, quando se escravizou a mulheres - caso Circe e indecorosamente. Devemos nos esforçar não tanto para
Calipso possam ser chamadas de mulheres-, sem que dei- conseguir os bens que não nos são dados, mas para evitar
xasse, em todas as conversas, de querer ser amável e agra- os vícios.
dável para com todos. Mesmo em casa suportou afrontas XXXII.115. Às duas personagens que mencionei jun-
até de .escravos e escravas, a fim de conseguir um dia o ta-se uma terceiia, imposta pelo acaso ou as circunstâncias.
que almejava. Mas de Ajax sabemos que preferiria arrostar E também uma quarta, que adaptamos a nós mesmos por
a morte a tolerar tais ofensas. Isso considerado, cumpre decisão própria. As circunstâncias regem o poder, os co-
avaliar o que a cada um de nós pertence e moderá-lo, mas mandos, a notoriedade, os cargos, as riquezas, os bens e
não desejar experimentar até que ponto nos convêm os ta- seus contrários: mas de nossa vontade depende a persona-
lentos alheios: o que mais nos convém é o que mais se gem que queremos interpretar. Desse modo, alguns se apli-
cam ã filosofia, outros ao direito civil, outros à eloqüência,
destaca em nossa natureza.
e, no caso das virtudes, este prefere sobressair em uma,
114. Que cada um conheça, portanto, o próprio enge-
aquele em outra.
nho e mostre-se juiz severo de suas qualidades e vícios, do
116. Quanto aos homens cujos antepassados se nota-
contrário os atores de teatro parecerão ter mais prudência
bilizaram por algum título de glória, esforçam-se na maio-
que nós. Eles, com efeito, escolhem não as fábulas melhores,
ria por conquistar o mesmo tipo de louvor. Assim Quinto
mas as mais apropriadas a seu talento. Aqueles que confiam
Múcio, filho de Públio, no direito civil; o Africano, filho de
na voz preferem Os epígonos e Medo; aqueles que confiam no
Paulo, na arte militar. Alguns, ao louvor herdado, acrescen-
tam o seu próprio, como esse mesmo Africano enriqueceu
110. O suic1di.o, em termos estóico~. era um q{fíctum ex N:mpore. isto é. com a eloqüência o prestígio guerreiro. Fez o mesmo Ti-
um dever imposto por cenas circunstâncias (ver 1.31-2), pois o dever pessoal
em preservar a vida de acordo com os instintos naturais. O próprio Catilo per-
cebeu que o que fazia não ew adequado a seus camaradas na mesma Sltua- 111. Silo todos nomes c.\e tragédias perdidas sobre temas gregos, escritas
ção externa de derrota pal"J Césn em Utica (Plutarco. Gatão, o jovem 65-4: por autores romanos. Os Epígonos e:r-Jm os descendentes e vingadores dos
66.4). mas que, como aceitar o percli!o seria desonroso para ele, a mo1te lhe sete chefes que tombaram diante de Tebas. Medo era filho de Medéia, resga-
gar.tntiri.1 Hliberdade moral. A morte de Catào fez Clcero sentir a necessidade tado 00 morte pela mãe. Melanipa foí libertada por dois filhos havidos do
de justificar-se por permanecer vivo (Fam. IX.l8.2; IV, 13.2). e esse mal-estar deus :"'etuno. Clitemnestra era esposa de Agamenão. Antiopa foi salva das
se reflete na ênfase com que fornece esse exemplo. mãos da esposa do amante por seus filhos.

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- - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __ ----------Livro!'----------

móteo, filho de Cônon, que, embora não inferior ao pai no XXXDI.U9. São raros aqueles que, excelentes pela fi-
mérito das armas, a essa glória juntou a fama da doutrina e nura de engenho ou dotados de preclara erudição e doutri-
do engenho. na, quando não por uma e outra coisa, tiveram tempo de
Não raro sucede que certos homens, renunciando à imi- deliberar sobre o caminho que convinha seguir. Nessa deli-
tação .dos antepassados, alimentem um desígnio pessoal: beração, todo projeto deve ser apreciado segundo a natu-
nisso se aplicam sobretudo aqueles que, nascidos de pais reza de cada um. Pois, como buscamos o que convém em
obscuros, propõem-se grandiosas realizações. todas as ações respeitando a natureza com a qual nasce-
117. Tudo isso devemos abarcar com a alma e o pen- mos -e isso jã foi dito antes -, ao determinar os rumos d2.
samento, quando procuramos o que nos convém. Em pri- existência temos de mostrar mais zelo, para que a vida in-
meiro lugar, determinemos o que desejamos ser, que tipo teira sejãmos coerentes, sem claudicar no cumprimento das
de pessoa e que estilo de vida pretendemos levar. Essa é a obrigações.
mais difícil das deliberações. No início da adolescência, 120. Como a natureza tem maior peso nessa escolha,
quando o juízo é muito fraco, cada qual estabelece para si vindo em seguida a Fortuna, levemos em conta uma e ou-
o tipo de vida, que mais aprecia; desse modo, compromete-
tra na determinação do modo de vida, mas sempre privile-
se com um gênero de vida e carreira antes de poder deci-
giando a natureza113 . Ela é tanto mais firme e constante
dir qual é o melhor. 118. Diz Pródico, como lemos em
Xenofonte 111 , que Hércules, ao entrar na puberdade- fase quanto, algumas vezes, a Fortuna parece lutar como mortal
dada pela natureza para escolhermos o rumo a tomar -, contra a natureza imortal. Seja, pois, constante aquele que
partiu para lugares solitários e aí vislumbrou dois caminhos, decidir viver segundo sua natureza não-viciosa; é o melhor,
um do prazer, o outro da virtude, hesitando muito tempo a menos que eventualmente descubra que falhou na esco-
sobre qual deles escolher. lha. Se isso acontecer (o que é possível), modifique então
Isso pôde acontecer a Hércules, nascido da semente seus costumes e princípios. Tal mudança, permitindo-o as
de Júpiter, mas não acontece da mesma forma a nós, que circunstâncias, ocorrerá de modo fácil e apropriado, do
imitamos aos outros o que parece melhor a cada um e contrário convém executá-la gradual e lentamente. Assim
somos atraídos por suas façanhas e princípios. A maioria, os sábios julgam mais acertado desfazer aos poucos, e não
imbuída dos preceitos dos pais, segue-lhes os hábitos e de súbito, as amizades menos agradáveis e apreciadas. 121.
costumes; outros são levados pelas opiniões da massa e Se mudarmos o gênero de vida, deveremos por todos os
anseiam sobretudo por aquilo que parece belo à maior modos fazer com que a mudança pareça conseqüência de
parte; outros ainda, por sorte ou generosidade de sua natu- uma decisão acertada.
reza, trilham um caminho de vida correto, sem o aconse- Dissemos antes que os antepassados devem ser imita-
lhamento dos pais. dos, porém, em primeiro lugar, excluam-se disso os seus
vícios; em segundo, o caso em que a natureza não permita
112. A história é conrnda nas Recordaç6es de Sócrates IL1.21-34, onde a
escolha é oferecida por duas mulheres, uma de aparência voluptuosa, que lhe 113. Isto é, a segunda personagem (nosso temperamento e talentos
aponta uma estrada"f~cil, a outra, modesta e bela, que lhe indica uma estrada naturais); em menor medida, a terceira (circunstâncias sociais proporcionadas
mais dificil, a qual ele escolhe. pela fortuna) deve determinar a quarta (nosso modo de vida).

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos deveres-----------

a imitação de alguns exemplos. Assim o filho do primeiro 124. Não é fora de propósito falar aqui a respeito dos
Africano, que adotou o filho de Paulo Enúlio, não pôde, em deveres dos magistrados, dos particulares, dos cidadãos e
virtude da debilidade de sua saúde, ser tão semelhante ao dos estrangeiros. Do magistrado, a função é apresentar-se
pai quanto aquele o fora ao seu. Portanto, caso não esteja como representante da cidade, defender a honra e a de-
à altura de defender causas, atrair c povo com preleções cência desta, salvaguardar as leis, definir os direitos e lem-
ou guerrear, realize o indivíduo o que puder, praticando a brar-se de que tudo isso está confiado à sua boa-fé.
justiça, a fé, a liberalidade, a modéstia, a temperança, pois ~ O simples particular viverá com seus concidadãos em
assim não se reclamará dele o que não tem. A melhor he- igualdade e paridade de direito: não se submeterá, não se
rança deixada aos filhos pelos pais, mais útil que o patri- aviltará nem se exaltará, mas desejará na república a paz e
mônio, é a glória da virtude e dos feitos; desonrá-la deve a honestidade. Este é, com efeito, aquele que julgamos e
ser considerado impiedade e vício. dizemos ser um bom cidadão. 125. O dever dos estrangei-
XXXIV.122. Como os mesmos deveres não sào atribuí- ros residentes e de passagem é não ir além de seus negó-
dos a idades diferentes, mas uns cabem aos jovens e outros cios, não se meter com os dos outros e mostrar-se o mínimo
aos velhos, discorramos um pouco também sobre essa dis- possível curioso a respeito dos assuntos da república alheia.
tinção. É próprio dos adolescentes reverenciar os anciãos e Assim, de um modo geral, os deveres serão determina-
entre eles escolher os melhores, os mais renomados, em dos quando se procurar o que é conveniente e adequado
cujos conselhos e autoridade se apóiem: a ignorância da às personagens, às circunstâncias, às idades 114 . Ora, nada
idade que começa deve ser regulada e dirigida pela pru- mais conveniente que manter a constância na execução
dência dos velhos. Tal idade tem de ser protegida e exerci- dos atos e na tomada de decis6es.
tada principalmente no trabalho e na submissão tanto da XXXV.126. Distingue-se o decoro nas ações, palavras,
alma quanto do corpo, para que se mostrem vigorosos nas e até nos gestos e atitudes do corpo. Reside em três coisas:
práticas militares e civis. Evite1:.1 a intemperança mesmo na beleza, na ordem e na adequação do comportamento -
quando afrouxarem o ânimo para entregar-se aos diverti- o que é difícil exprimir, bastando, porém, que se entenda.
mentos e tenham sempre presente o pudor, o que mais fá- Nas três, reside também o desejo de sermos aprovados por
cil será se, em semelhantes circunstâncias, aceitarem o con- aqueles junto aos quais vivemos. Estendamo-nos um pouco
curso dos mais velhos. mais sobre esse tema.
123. Aos velhos, por outro lado, devem ser poupados A princípio, parece que a própria natureza teve em
os trabalhos do corpo, mas aumentados os da alma. Sejam grande conta o nosso corpo. Evidenciou-lhe os traços e
encarregados não só de auxiliar o mais possível a juventu-
de, como também a república, pelo conselho e pela pru-
dência. Que a velhice evite sobretudo entregar-se à langui- 114. A classificação dos deveres em 107 ss. talvez combine novas noções
dez e à preguiça. Embora o luxo seja torpe para qualquer de Panécio sobre as personagens (107-21) que detem1inam o eslilo de vida
çomo um todo, nos termos da qua1ta virtude. com antigos ensinamentos
idade, é ignóbil para a velhice- e, se a ele acrescentar-se a estóicos que atribuem vários deveres ao homem de acordo com os seus diver-
intemperança dos desejos, o mal será duplo, porque então sos papéis sociais na família e na sociedade (Sêneca, Carta 94), nos termos da
a velhice a si própria se desonra e torna r:1ais impudentes virtude da justiça. "Idades" refere-se a 122-3; "circunstâncias", a 124-5 e "Pa-
os desmandos dos jovens. péis'', a 107-21 ou 124-5.

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- - - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro f _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

tudo o mais que, na figura humana, pudesse ostentar uma atores e comediantes se concede que tais atitudes, dissolu-
aparência agradável. Quanto ãs partes do corpo que foram tas para nós, sejam apropriadas. ~a realidade, os atores
destinadas às necessidades naturais, por seu aspecto e for- costumam respeitar tanto a antiga disciplina que nenhum
ma repulsivos, ela se escondeu e encobriu. 127. O pudor aparece em cena sem, no mínimo, um tapa-sexo: receiam
dos homens imitou essa diligentíssima disposição da natu- que, se por acidente ficarem expostas certas partes do cor-
reza. Com efeito, o que a natureza ocultou, todos os de po, sejam considerados indecentes. Pelo nosso costume, os
mente sã afastam dos olhos e esforçam-se para que cumpra filhos púberes não se banham com os pais, nem os genros
sua função o mais discretamente possível. A função desses com os sogros. Conserve-se, pois, esse gênero de pudor,
órgãos é necessária; mas nem aos órgãos nem à função tais tanto mais que a própria natureza o prescreve 116 .
pessoas chamam pelo nome, uma vez que o que não é XXXVI.130. Existem dois tipos de beleza, em um dos
torpe fazer, ainda que somente às ocultas, é obsceno no- quais há encanto e no outro, dignidade. Consideremos fe-
mear. Assim, nem a prática pública nem a indecência das minino o encanto e masculina, a dignidade. Logo, evite-
palavras estão isentas de petulância. mos no corpo todo ornamento indigno do homem e, nos
128. ;;rão devem ser ouvidos os cínicos 11s nem alguns gestos e no movimento, quaisquer impropriedades seme-
estóicos que foram quase dnicos, os quais criticam e zom- lhantes. Pois muitas vezes até os movimentos na pales-
bam porque dizemos vergonhosas, em palavras, as coisas tram são extremamente desagradáveis e alguns gestos dos
que por si mesmas não são torpes, mas chamamos pelo atores revelam-se inconvenientes; em um e outro caso,
nome .aquelas que são torpes por si mesr!las. Assaltar, frau- apreciamos apenas o que é correto e simples. A dignida-
dar, cometer adultério são atos vergonhosos em si, mas
de da aparência deve ser preservada graças à boa colora-
mencionados de modo não-obsceno; procriar filhos é ho-
ção da pele, que por sua vez depende dos exercícios físi-
nesto em si, mas obsceno pelo nome. Muitas outras ques-
cos. Além disso, cultive-se uma higiene sem exageros ou
tões desse tipo são discutidas por eles contrariamente ao
requintes, suficiente apenas para evitar uma negligência
pudor. Quanto a nós, sigamos a natureza e fujamos de tudo
muito tosca e pouco civilizada. A mesma regra se aplica
que repugne à aprovação dos olhos e ouvidos; e sejamos
ao vestuário, no qual, como em tudo, o meio-termo é o
decorosos na atitude, no andar, no sentar, no comer, no ros-
melhor.
to, nos olhos, nos gestos.
129. Evitemos nisso duas coisas, acima de tudo: ser
efeminados ou lânguidos e rudes ou grosseiros. Sequer aos 116. A proibição referida aqui como romana (cf. Plutarco, Gatão, o An-
tigo 20), como também a visão contr:íria da nudez em 127, provavelmente
não derivam do grego Panêcio. Não se explica como a observânda das con-
115. Os dnicos rejeitavam as convenções sociais. A palavra vem do vençàes sociais, básicas para a noção de "decoro" 0.99 e 148), e a adoção da
termo grego para "cão" e aplicou-se a eles devido a seus hábitos impudicos. natureza por guia podem ser reconciliadas, dados os diferentes (não raro con-
Zenão, fundador da Stoa, era discípulo do cínico Crates, dizendo-se que sua flitantes) costumes sociais dos vários povos.
Repilbtlca fora escrita ·'com rabo de cão' porque declarava serem antinaturais 117. Palavra grega que significa "local de exercícios". Ali se ensinavam
várias convenções sociais. Numa carta divertida a seu amigo Papírio Peto os movimentoo corretoo e as técnicas para as várias atividades fisicas. Cícero
(Fam. IX.22), acero atribui a tese de que se deve falar sem rodeioo a Zenão, distingue entre os gestos apropriadoo na palestra e no teatro, e os que con-
advogando, ao contrário, a modéstia de Platão e da Academia. vém adotar na vida cotidiana.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - - L i v r o ! · _ _ _ _ _ _ _ _ __

131. Cuidemos para não imprimir lentidão excessiva ao induzisse a pensar fossem eles dotados de fino gosto lite-
caminhar, que nos faz parecer andores de desfile, nem atro- rário, apesar de serem literatos - pois também outros o
pelos que causam sofreguidão, alteram a fisionomia e con- eram119 • Tinham, porém, a reputação de falar um excelente
traem os traços, indícios certos de falta de controle. latim:- o timbre era doce, o tom não se elevava nem arrefe-
Mas, muito mais, cuidemos para que os movimentos cia, não havia obscuridade ou afetação, e a voz saía sem
da alma não se afastem da natureza. Isso conseguiremos se esforço, nem débil nem cantante. O discurso de Lúcio Cras-
evitarmos as tribulações e o desânimo, mantendo-nos aten- so era mais fecundo e não menos elegante, mas nem por
tos às conveniências. 132. Os movimentos da alma são de isso empanou a reputação de bem falar dos Cátulos. Já Cé-
dois tipos: os do pensamento e os do desejo. Ao pensamen- sar, irmão do pai de Cátulo, a tal ponto superou os demais
to incumbe principalmente a busca da verdade, enquanto em humor e graça que mesmo na oratória judiciária triun-
o desejo impele à ação. Façamos, pois, de modo a aplicar fava da eloqüência dos adversários empregando um tom
o pensamento nas melhores coisas possíveis e a tornar o coloquial.
desejo obediente à razão 11 ~. Assim, se verdadeiramente buscarmos as conveniên-
XXXVIl Grande é a força da palavra, também de dois cias em tudo, devemos nos entregar com afinco à tarefa.
tipos: a palavra da eloqüência e a palavra da conversação. 134. Portanto, na conversação, em que os socráticos' 20
Use-se da eloqüência nos debates dos tribunais, das assem- se mostram superiores a todos, sejamos afáveis e em nada
bléias, do Senado: da conversação nas reuniões ' discus- obstinados, porém cheios de encanto. Nem, como se fosse
. ' uma propriedade nossa, dela excluamos os outros mas per-
sões, encontros de amigos, devendo inclusive acompanhar
os banquetes. Os preceitos da eloqüência são do domínio mitamos que participem como em tudo o mais. E~ pri~ei­
dos oradores, mas não existem regras para a conversação, ro lugar, saibamos do que se vai falar: se de assuntos sérios
embora eu não veja por que não devam existir: encontra- ou jocosos, pois então convirá nos mostrarmos graves ou
mos mestres sempre que haja ah.:.nos sequiosos de apren- brincalhões. Acima de tudo, evitemos trair algum defeito
der, mas nenhum que se dedique a esse est<Jdo, todo ele de caráter, o que ocorre principalmente quando falamos
nas mãos de discu.rsadores 1_ No entanto, como temos pre- demasiadamente dos ausentes para denegri-los ou ridicula-
ceitos relativos a palavras e frases, estes devem valer para a rizá-los com comentários maliciosos, duros e ofensivos.
convers;ação. 135. A maior parte das conversas gira em torno de assun-
133. Possuímos, por outro lado, a voz como veículo tos privados, públicos e culturais, como os estudos e o
da fala e, em seu emprego, seguimos dois princípios: que ensino das artes. Assim, quando a conversa começar a afas-
seja clara e que seja agradável. Essas duas qualidades, sem tar-se deles, esforcemo-nos para trazê-la de volta, mas ade-
dúvida, são dadas pela natureza, mas o exercício aperfei-
çoa a primeira e a imitação dos que falam com concisão e 119. Trocadilho intraduzivel. "Fino gosto literário" traduz tudicto llttera-
suavidade aprimora a segunda. Nada havia nos Cátulos que turm e "literatos", litterarlt. Ka fra.se seguinte, "tom"' glosa Utterae.
120. Ver p. 52, nota 99. O Sócrates de Platão é recomendado no De ora·
tore Il.270 como um guia para a conversação refinada. É o estilo que Cícero
118. Ver p. 50, nota 97. tenta adotar em seus diilogos filosóficos (I.3).

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ __'_ --------------------Liwof ____________________

quando-a ao tema: nem sempre, com efeito, fruímos os mes- vras sobre como deve ser a casa de um homem honrado e
mos assuntos, o tempo todo e da r::tesma maneira. Saiba- estimado. O objetivo da casa é sua utilidade, à qual con-
mos também até onde a conversa agrada, pois assim como vém acomodar o projeto de construção, sem descurar do
houve uma razão para iniciá-la haverá uma medida para conforto e da dignidade. Cneu Otávio, o primeiro da famí-
encerrá-la. XXXVIll.136. Mas como, com toda justiça, se lia a tonar-se cônsul, hauriu prestígio, pelo que soubemos,
prescreve que evitemos excessivos da alma que não se da brilhante e portentosa residência que erigiu no Palatino:
curvam à razão, assim a conversa deve ficar isenta de exa- visitada pela ·multidão, essa residência teria assegurado o
gerações desse tipo: nela não despontem a cólera, a cupi- consulado a seu dono, homem novo' 22 • Demolindo-a, Es-
dez, a preguiça, a indolência e coisas semelhantes. Mostre- cauro acrescentou dependêndas à construção. De sorte que
mos também, àqueles com quem conversamos, respeito e aquele foi o primeiro a introduzir o consulado em sua ca-
afeição. sa, ao passo que este, f..lho de varão ilustre e afamado, trou-
Algumas vezes até as repreensões se tornam necessá- xe para a sua residência ampliada não só a repulsa como
rias; devemos então empregar, talvez, um tom de voz mais também a ignomínia e a calamidade. 139. Portanto, a dig-
firme e palavras mais incisivas - para, em suma, parecer nidade seja realçada pela casa, mas não devida inteiramen-
que estamos irados! Entretanto, como nos L-atamentos que te a ela; nem vá a casa dignificar o dono, mas o dono a ca-
utilizam o ferro e o fogo, a isso só raramente e a contragosto sa. Como em tudo o mais, cumpre levar em conta não ape-
chegaremos, e somente por necessidade, quando nenhum nas a própria proporção, mas também a dos outros. Na
out:o remédio for encontrado. Mesmo assim, fique longe a casa de um homem ilustre, por exemplo, onde são recebi-
cólera, sob o império da qual nada se faz com justiça e dos não apenas inúmeros hóspedes, como ainda uma mul-
reflexão. 137. Em grande medida, é lícito aplicar urna tidão de cidadãos, deve haver grande preocupação com o
repreensão moderada, porém fume, a fim de parecermos espaço. Por outro lado, uma casa vasta pode tornar-se de-
severos e decididos a evitar os ultrajes. Deve~os também sonrosa para o dono se nela reina a solidão e se o proprie-
mostrar que a própria aspereza da censura atende ao inte- tário anterior era muito freqüentado. :\"ada mais desagradá-
resse do censurado. Convém, mesmo nas discussões entre vel do que ouvir os transeuntes murmurarem:
inimigos, manter a gravidade e banir a ira, ainda que ouça-
mos impropérios indignos de nós, pois tudo aquilo que se 6 casa antiga, quão disparatado
É o dono que te domina!
faz desatinadamente não pode ser feito com constância,
nem aprovado pelos presentes. Também é desagradável
Nos tempos que correm, em verdade é lícito que mui-
gabar-se, sobretudo de feitos t:lentirosos, e em meio às
tos digam isso 123 .
zombarias imitar o Soldado fanfarrãâ 11 •
XXXIX.138. Dado que investigamos todas as áreas-
pelo menos é o que tencionamos-, digamos algumas pala- 122. "Homem novo" era o termo técnico para aquele que, sem pertencer
a uma fa.milia senatorial, alcançava o consulado, como o próprio Cfcero. Depois
de seu consulado em 63, Cfcero realmente adquiriu-urna casa no Palatino.
121. Personagem favorita na comédia grega e romana. e titulo de uma 123. Exemplo famoso foi a compra, por Antônio, da casa do finado Pom-
peça do: Plauto. peu, igualmente ironizada na Segunda Filípica (104).

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- - - - - - - - - - - D o s d e w r e s _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----------LivroI - - - - - - - - - -

140. Tomemos cuidado, sobretudo quando nós pró- também moderação, definamos esta palavra, segundo o cri-
<; p:dos construímos, para não ultrapassar as medidas na des- tério dos estóicos, como a capacidade de colocar em seus
pesa e na magnificência; já hâ, apenas no exemplo, muito devidos lugares as coisas que dizemos e fazemos. Assim, o
mal. De fato, a maioria imita com empenho, principalmen- sentido das palavras "ordem" e "colocação" parece ser o mes-
te nesse ponto, as ações dos grandes homens. De Lúculo, mo, pois os gregos definem a ordem como a instalação das
personagem conceituadíssima, quem imitaria a virtude? A coisas r.os lugares próprios e convenientes, afirmando que
magnificência de sua casa de campo, porém, quantos não o lugar da ação é a oportunidade do momento: e o momento
imitaram? Nisso, sem dúvida, deve-se observar certa medi- oportuno, em grego, diz-se eukairia e em latim, occasio. Su-
da e preferir o meio-termo - que convém aplicar também cede então que a moderação, interpretada tal como expli-
aos costumes e modo de vida12'. quei, seja o conhecimento da oportunidade dos momentos
Mas basta quanto a esse assunto. certos para agir.
141. Em toda ação a ser empreendida, três princípios 143. A mesma definição pode ser aplicada à prudên-
devem ser levados em conta: primeiro, que o apetite obe- cia, à qual nos referimos no início; aqui, porém, inquirimos
deça à razão, pois nada é mais apropriado à constância nos a respeito da moderação, temperança e virtudes semelhan-
deveres; em seguida, que se avalie a importância da tarefa tes. As questões relativas à prudência foram examinadas
a executar, para não termos nem maior nem menor preo- em seu lug&r; e as referentes a essas virtudes, sobre as quais
cupação e trabalho; finalmente, que se observe a medida já muito falamos e que implicam a reverência e a aprova-
em tudo aquilo que diga respeito à aparência exterior e à ção daqueles com quem convivemos, serão tratadas agora.
dignidade. Ora, a melhor medida é nos atermos às conve- 144. Imprimamos, pois, ordem às nessas ações para
niências de que falamos e não ir além. Desses três princ~­ que, como num discurso coerente, todos os fatos da vida
pios, porém, o mais importante é a sujeição do apetite à sejam adequados e concordes entre si. 1\'ada mais desagra-
razão. dável e deslocado do que introduzir na conversação séria
XL.142. Falemos agora da ordem das coisas e da opor- ditos levianos, dignos de uma pândega. Bem falou Péricles
tunidade das circunstâncias. Esse conhecimento diz respei- quando, pretor, tinha o poeta Sófocles por colegau". Reuni-
to àquilo que os gregos chamam de eutaxia, mas não ao dos para cumprir um dever comum, passou casualmente
que entendemos por "moderação'' 121 . Cada palavra implica o um rapaz bonito e Sôfocles atalhou: "Que belo moço,
elemento "moderado", ao passo que eutaxía implica ma- Pérides!" "Sim", respondeu Péricles, "mas convém que o
nutenção da ordem. Portanto, para que a denominemos pretor tenha não apenas as mãos, mas também os olhos
abstinentes, Sófocles." Contudo, se o poeta houvesse dito
aquilo mesmo em uma prova de atletas, a repreensão não
124. Ver I.89, nota 89.
125. Aqui, o iatim é confuso e ambíguo. Alguns t<ddutores supõem que
seria justa. Tamanha é a importância do lugar e do momen-
para Cícero o termo grego eutaxfa rem dois sentidos. "moderação" e ·'ordem", to que se alguém, na iminência de pleitear uma causa,
ambos tr-.a.duzívds por modesl:!'ci ("moder.açào"J. Como não parece haver evi-
dêm:ia de que eutaxfa signifique modersçào, talvez Cícero pense em outra
palavra grega, provavelmente mehiotes, que çoxresponde a modesria. Em 126. Cícero emprega o termo latino praetor, que os gregos traduziam por
outras passagens moclestia foi traduzida por "modéstia'' e não "modemção" strategós("general"). O fato se passa em 440 a.C.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ !Josdrweres _ _ _ _ _ _ _ __
----------Livro!'----------

meditar a sós enquanto caminha ou passeia, ou concentrar- que cada um diz, mas ainda para o que cada um pensa e
se em qualquer outra questão, não serã admoestado; mas por que pensa assim. Tal como os pintores, os escultores e
se fizer a mesma coisa num banquete, parecerá grosseiro poetas insistem em que sua obra seja examinada pelo pú-
por ignorar a conveniência do momento. blico: se algo for criticado por muitos, corrigem o trabalho
145. Os comportamentos que destoam da civilidade, e perguntam, a si mesmos e aos outros, o que nele estava
como cantar no fórum ou cometer outra extravagância do errado. E assim, pelo julgamento alheio, muitas coisas de-
gênero, são por demais notórios e não exigem advertências. vem ser feitas, desfeitas, alteradas e corrigidas por nós.
e preceitos; ao contrário, devemos evitár justamente as in- 148. Para o que se faz de acordo com o costume e as
frações menores, que costumam passar despercebidas a instituições civis não há nada a prescrever. Esses usos, na
muitos. Assim como, no toque da lira ou da flauta, a míni- verdade, já são preceitos e ninguém deve ser induzido ao
ma dissonância é percebida pelo conhecedor, assim na erro de supor que seja lícito para nós o que Sócrates ou
vida cuidemos para que nada destoe casualmente - e com Aristipo fizeram ou disseram contra o costume e o hábito
mais empenho ainda, de vez que a harmonia das ações civil: gozavam dessa licença em virtude de seus dotes gran-
é mais importante que a dos sons. XU.146. Portanto, des e cUvinos. Na verdade, toda opinião dos cínicos deve
como no toque da lira o ouvido dos mósicos percebe até ser lançada fora porque é inimiga do pudor, sem o qual
as falhas minirnas, assim nós, se quisermos ser sérios, dili- nada pode ser correto, nada pode ser honesto127 •
gentes e atentos aos vicias, procuremos o mais das vezes 149. Aqueles cujas vidas foram examinadas nos atos
compreender as coisas grandes a partir das pequenas. honestos e grandiosos, que cultivam bons sentimentos para
com a república, que tiveram ou têm méritos, que foram
Segundo o modo de olhar, a distensão ou a contração dos
agraciados com honras e comandos, devemos respeitá-los
supercílios, a tristeza, a jovialidade, o riso, a fala, o silêncio, e reverenciá-los. Respeitemos também a velhice, cedamos
a alacridade ou a contenção da voz, julgaremos facilmente aos detentores de cargos, façamos distinção entre o cida-
o que, nisso, se faz convenientemente e o que destoa do dão e o estrangeiro e, com relação a este, consideremos se
dever e da natureza. Em semelhantes questões, não é ina- veio a titulo privado ou oficial. Enfim, para não tratar de
dequado julgar o valor de cada uma delas nos outros para, cada caso específico, cultivemos, protejamos e preserve-
se algo não lhes convier, nós próprios o evitarmos: não sei mos a paz e a unidade do gênero humano.
como, mas é um fato que cUscemirnos o erro mais facil- XLTI.150. Quanto às ocupações e ganhos, dispomos
mente nos outros que em nós mesmos. Assim, sem dificul- dos seguintes preceitos128 para avaliar quais devam ser
dade corrigem-se os clisdpulos se os oestres lhes imitam
os vícios a fim de reformá-los.
147. Na verdade, não é despropositado recorrer, nos 127. Ver p. 62, nota 115, e p. 63, nota 116.
128. Como supõe P. A. Brunt ("Bibliografia", p. XLlffi, Cícero talvez evo-
casos duvidosos, aos homens doutos ou que aprenderam que aqui não apenas as tradições romanas, liDIS também as gregas, que in-
com a experiência, perguntando-lhes sua opinião a respei- fluenciaram Panécio. A inclusão de prescrições para pessoas de classes infe-
to de cada tipo de dever. A maior parte dos doutos, com riores sugere que o relato volve a uma discussão mais geral sobre como
efeito, costuma inclinar-se para aquilo a que a natureza os ganhar a vida, como a encontrada em Das vidas, de Crisipo, ao passo que a
ênfase numa vida de lazer e independência lembra as idéias-padrão do8 gre-
conduz. Nessas questões, atentemos não somente para o gos, compartilhadas por Platão e Aristóteles.

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- - - - - - - - - - L i v r o I---------~
~~~~~~~~~~-Dos deveres-~~~~~~~~~~

nada supera o cultivo das terras 132 , nada é mais profícuo,


considerados dignos de homens livres 12'J e quais são sórdi-
nada é mais agradável, nada é mais digno de um homem
dos. Em primeiro lugar, desaprovamos os ganhos que sus-
citam ódio nos homens, como os dos recebedores de im- livre. Como discorremos longamente sobre isso no Gatão
postos e dos usurários. São ignóbeis e sórdidas as remune- Maior, ali encontrarás material pertinente ao assunto 1''·
rações de todos os trabalhadores pagos pelo esforço e não XIm.152. De que modo sejam deduzidos os deveres
pela habilidade. Com efeito, neles, o próprio salário é o a partir das divisões próprias da honestidade, julgamos tê-
penhor da servidão. Devem ser tidos como vis os que com- lo exposto satisfatoriamente. Entretanto, podem surgir às
pram dos mercadores para vender em seguida: nada ga- vezes polêmicas e comparações para saber-se qual de dois
nham a não ser se mentirem de algLlffi modo, e nada é atos honestos é o mais honesto 1 .+~, ponto que Panécio dei-
mais torpe que a fraude. Todos os operários praticam uma xou de lado. Pois, embora toda honestidade se origine de
arte abjeta: não haver engenho algum na oficina, sendo quatro partes, das quais uma é o pensamento, outra a co-
ainda mais reprováveis as funções que se põem a serviço munidade, a terceira a magnanimidade e a quarta a mode-
dos prazeres: ração, não raro, no exame do dever, é necessário comparã-
la entre si.
Peixeiros, carniceiros, cozinheiros, salsicheiros, pescadores, '·.:.::': 153. Parecem então mais concordes com a natureza os
deveres deduzidos a partir da comunidade do que os de-
como diz Terêndo 1j(J; acrescenta à lista, se te agmdar, perfu- duzidos a partir do pensamento. E isso se confirma pelo se-
mistas, dançarinos e profissionais dos espetáculos. guinte raciocínio: se ao sábio tocar uma vida tal que, com
151. Em contrapartida, os ofícios mais úteis e que exi- abundância de todos os bens, ele próprio, em sumo ócio,
gem mais prudência - como a medicina, a arquitetura, o contemple e examine tudo o que for digno de reflexão, se
ensino dos conhecimentos nobres - são honestos para estiver ::ão solitário que não possa avistar um homem, pre-
aqueles a cuja classe social convêm1J1 • O comércio, se redu- ferirá renunciar à existência. -
zido, será considerado sórdido, mas não se censurará intei- A primeira de todas as virtudes é a sabedoria, que oS
ramente o de grandes proporções, que traz mercadorias de gregos chamam sophia- pois por "prudência", que em gre-
~odas as partes e a muitos serve sem lográ-los; mesmo que, go se diz phrónesis, entendemos outra coisa, ou seja, o
saciados de ganhos ou contentes, como tantas vezes acon-
tece, ::ais homens se transfiram do mar para o porto e do 132. Ocero ffi!o pensa no pequeno agricultor, mas no grande fazendeiro
porto para. os campos, ainda assim parece justo louvá-los. como ele próprio, destinatário dos escritos de Catão, o Antigo (ver nota 133).
Mas de .todas as coisas das quais se tira algum benefício, Para ele, cavar e arar eram ocupações ign6beis (Fin. 1.3). A posse da terra goza-
va do mais elevado status social num mundo sem leis falimentares ou seguro so-
cial; assim, a terra era normalmente a única forma de investimento seguro.
133. No Cato Maior de senectute, escrito anteriormente nesse mesmo
129. Ver p. 24, nota 52. ano, o principal interlocutor celebra os prazeres da agricultura em 5·1-60, alu-
130. Eunuco 257. dindo ao seu próprio tratado sobre o assunto.
131. Impróprios para as classes superiores. principal preocupação de Cí"
134. justiça e sabedoria são comparadas em 153-8 e 160; justiça é magna-
cero ("Introdução". pp. XVIII, XXVJI-XXV!II), Como o assunto é o modo de ga-
nimidade, em 157; justiça e temperança, em 159 (Ver "introdução", pp. X'>üV.
nhar dinheiro e não a eS<:olha de ·um oficio, trata-se aqui de um ensino pago
XXViii).
(não do tipo praticado por Panécio ou Cícero).

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------------------~ Livro 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
----------------Do>~----------------

conhecimento daquilo que se deve procurar ou evitar. Mas XLIV. Aqueles cujos esforços e toda a vida foram con-
a sabedoria que afirmo ser a primeira é o conhecimento sagrados à ciência das coisas não se recusaram, entretanto,
das coisas divinas e humanas, incluindo-se aí a socialidade a favorecer o aumento das utilidades e comodidades dos
e a camaradagem cios deuses e dos homens entre si. Ora, homens, pois a muitos instruíram a fim de que se tomassem
se isso for da máxima importância, como de fato é, então cidadãos melhores e mais úteis às suas repúblicas. O pita-
se faz necessário que o dever deduzido a partir da comuni- gótico Lísis educou o tebano Epaminondas, Platão instruiu
o siracusano Dion, e muitos outros mestres fizeram o mes-
dade seja também o maior. Com efeito, a concepção e a
mo; nós próprios, se algo doamos à república, fomos ins-
contemplação da natureza ficariam mutiladas e incomple-
truídos e preparados por homens doutos 1.%. 156. Mas não
tas se não motivassem nenhuma ação. Vemos essa ação, só os vivos e contemporâneos instruem e educam os que
principalmente, na proteção das comunidades dos homens: querem aprender: isso se clã também depois da morte, gra-
diz respeito à sociedade do gênero humano, devendo, por- ças às lembranças de seus escritos. Com efeito, eles não
tanto, ser anteposta ao pensamentom. descuraram de ponto algum relativo ãs leis, aos costumes,
154. lsso, os melhores homens ostentam e pensam. à organização da república, e de tal modo que parecem ter
Quem seria tão ávido no perquirir e conhecer a natureza dedicado seu ócio ao nosso negócio. Assim aqueles ho-
das coisas a ponto de, estando a examinar os objetos mais mens, entregues aos estudos da doutrina e da sabedoria,
dignos de conhecimento, subitamente informado de um consagraram sua inteligência e prudência sobretu.do ao in-
perigo para a pátria, a qual pudesse auxiliar e socorrer, não teresse dos homens. Também por esse motivo, falar copio-
deixar de lado todas aquelas reflexões, ainda que se julgas- samente, embora com prudência, é melhor do que pensar
se capaz de contar as estrelas ou medir o tamanho do mun- argutamente, mas sem eloqüência, pois então o pensamen-
do? O mesmo faria se se tratasse de um negócio ou perigo to fica mergulhado em si próprio; a eloqüência, porém,
que envolvesse seus pais ou amigos. 155. Conclui-se daí atinge aqueles com os quais vivemos em comunidade.
157. Assim como os enxames de abelhas não se agru-
que, antes dos esforços e deveres do corJlecimento, vêm
pam para produzir favos, mas produzem favos porque
os deveres da justiça: eles dizem respeito aos interesses dos esses agrupamentos são naturais, assim, e até em maior
homens e nada aos homens pode ser mais caro. medida, os homens agrupados pela natureza esmeram-se
em agir e pensar. Portanto, a não ser que aquela virtude
que resulta da proteção dos homens, isto é, da sociedade
135. )la tradução, o sujeito da frase que começa com "Ora, se isso for"
não é "sabedoria", mas "sociabilidade e camaradagem". Parece ser a única do gênero humano, promova o conhecimento das coisas,
maneira de achar aqui um racioctnio lnteli.givel (ver a edição de Miller Loeb esse conhecimento parecerá solitário e árido. (Da mesma
para uma tentativa de dar sentido à tradução convencional). Outro problema forma a grandeza de ânimo, isolada da companhia e do tra-
é que Clcero dá ã sabedoria e não à justiça o primado das virtudes (ver p. 11, to humanos, será bárbara e desumana.) Desse modo, a as-
nota 24). Seu objetivo t:alvez seja subordinar a investigação pura à investigação
prática. A sabedoria é superior por ser bãsica e orientadora; inclui a com-
sociação e a comunidade dos homens vencem a dedicação
preensão da comunidade cósmica, pré-requisito para a ação, Mas, se essa é a à ciência.
parte mais importante da sabedoria, os deveres daí decorrentes ~o também
os mais importantes. Portanto, a parte mais valiosa da sabedoria é a que apre-
senta conseqüências práticas (cf. I.IS-19). 136. Ver "lntroduç[o", p. VIII e 11.4, not:a 4.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e S - - - - - - - - - - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro] _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

158. E não é verdadeiro o que dizem alguns: que, por nem, em verdade, a república quererá que alguém os prati-
causa da necessidade da vida, a natureza, desejando que que, pois felizmente não ocorrem circunstâncias em que é
não pudéssemos conseguir e produzir algumas coisas sem do interesse da república o sábio comportar-se desse modo.
o concurso dos outros, haveria por isso instituído a comu- 160. Por isso, na escolha dos deveres, sobressaia o
nidade e a sociedade dos homens 1 ~7 . Se as coisas que dizem tipo de dever para com a sociedade dos homens. E a ação
respeito à alimentação e ao cultivo, como que por um to- refletida resulte da ponderação e da prudência, daí se se-
que divino, como se diz, nos fossem fornecidas, então o guindo que agir refletidamente é melhor que pensar pru-
homem de grande engenho, abandonando todos os negó- dentemente.
cios, colocar-se-ia de corpo e alma no estudo e na ciência. Isso é tão notório que, na busca do dever, não é difícil
Ora, não é assim: a fim de evitar a solidão, ele procuraria perceber qual deve ser preferido a outro. l\a própria comu-
um companheiro de estudo, em seguida desejaria ensinar, nidade há gradações de deveres, que permite saber que os
aprender, ouvir, falar. Logo, todo dever que promova a união primeiros são para com os deuses imor-1.2is, os segundos
dos homens e pJ;"Oteja a sociedade será anteposto ao que para com a pátria, os terceiros para com os pais, e assim
protege e promove o conhecimento e a ciência. sucessivamente1.19 .
XLV.159. Talvez devamos examinar também se a co- 161. A partir desse breve exame pode-se perceber que
munidade, que é sobretudo conforme à natureza, deva ser os homens costumam ter dúvidas não apenas quanto ao
sempre anteposta à moderação e à modéstia. Não nos pa- que seja honesto ou torpe, mas também quanto a qual de
rece. Certos atos são tào vis ou tão vergonhosos que o sá- dois propósitos honestos será o mais honesto. Esse ponto,
bio não os praticaria nem mesmo para salvar a pátria. Posi- como já dissemos, foi deixado de lado por Panécio. Mas
dônio coligiu muitos exemplos assim, alguns tão asquero- agora passemos ao que resta.
sos e obscenos que parece torpe até pronundá-los'.l'J. Por-
tanto, o sábio não praticará tais ações em prol ela república-

137. Ckero não nega que a vida social facilita a satisfaç-ão das próprias
necessidades {cf.l.1:2, Il.12-15.l1.73). Apenas rejeita a idéia de que os homens
formam sociedades para satisfazer a essas necessidades. Essa noç;io (Platào, 139. Os graus do dever fornecidos aqui diferem de 53-8 porque induen:.:
República Il.369b e Aristóteles, Polfttca !.2) foi teoricamente corroborada pe- os deuses e omitem uma menção específica à hulllilnidade em geral. Em 53,
los epkuristas, tendo sido tratada havia pouco por Lucrécio (De natura re- Cícero registra os graus do companheirismo em ordem lógica, começando
rum, V.1005 ss). Para os estóicos, o homem era sociável por natureza. pelo mais amplo (hulllilnldade) e terminando pelo mais restrito (casamento);
138. Cícero talvez aluda aqui (de memória ou mediante inserção poste- em 54, inverte a ordem para explicar a origem dos Estados. Os graus do de-
rior) ã obra de Posíd6nlo que encomendar.! para ajudá-lo no Uvro I!l: ela ver, em 58, não seguem nem a ordem lógica nem a histórica, pois refletem
continha um exame dos direitos em circunstâncias particulares (ver '·Introdu- beneficios recebidos e nossa conseqüente dependência (58): em 52 e 58, fica
ção", pp. XXII-XXIIú. Posidónlo deve ter estudado ali se algumas ações, usual- bem claro que a pátria vem antes e a humanidade depois. Aquí, os deuses
mente vergonhosas, poderiam justificar-se qll<tndo fossem úteis ao país ou à prevalecem sobre a pátria, mas eles, embora fonte dos maiores bene':'ícios
humanidade em geral (cf. IIL19, 30, 40, 90, 93, 95). IJI.90 fornece um argu- (Il.Z), não podem ser pagos com "recursos necessários à existência'' (581 e
mento que justificaria a visão as..~umida aqu~ isto é, os interesses a longo pra- sim com a piedade (!1.:2) e a observância das leís sociais por eles prescritas
zo do país nà.o são servidos quando os cidadãos agem dessa maneira. (III.28).

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Livro 11

1.1. Como os deveres decorrem da honestidade, Mar-


co, meu filho, e de todo tipo de virtude, julgo ter explicado
suficientemente no livro anterior. Resta-me examinar os ti-
pos de deveres que dizem respeito à manutenção da vida e
à provisão das coisas que os homens utilizam, aos recursos
e às riquezas. Eu já disse que se procura ou o que é útil ou
inútil, ou, entre as coisas úteis, a que é mais útil ou que é
útil acima de tudo. Delas falarei depois que houver discor-
rido um pouco sobre meus propósitos e julgamentos.
2. Com efeito, embora nossos livros tenham suscitado
em muitos não só o gosto da leitura, mas também o da es-
crita, às vezes, todavia, temo que para alguns homens bons
o nome de filosofia seja desagradável e que eles se admi-
rem por eu devotar a ela tanto trabalho e tanto tempo 1 • Eu,
no entanto, enquanto a administração pública era conduzi-
da por aqueles aos quais se entregara, a ela dedicava todas
as !ninhas preocupações e pensamentos. Mas, depois que
tudo passou a ser dominado por um s&,já não havendo lu-
gar algum para a deliberação e a autoridade e, por fim, quan-

1. Cícero faz a apologia dos ·'homens bons" em 2-6 e dos "doutos" em


7-8. Ver 1.1, nota 4. Entre os dotados de talento para escreuer; o mais notável
foi Marco Terêncio Varrão, o maior erodito da época.
2. Uma das muitas alusões à ditadura de César (ver "Introdução", p. }(]).

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______________________ nusd~~---------------------- - - - - - - - - - - - - L i v r o / f _ _ _ _ _ _ _ _ ___

do perdi os companheiros que me auxiliavam na proteção sa é a philosophía, se quisermos traduzir a palavra, senão a
da república - grandes homens -, não cedi à angústia a dedicação à sabedoria1• E a sabedoria é, como a definiram
que teria sido lançado se lhe não resistisse nem, muito me- os fliósofos antigos, o conhecimento das coisas divinas e hu-
nos, a prazeres indignos de um homem douto. manas, e das causas pelas quais essas coisas são conserva-
3. Quisera que a república se mantivesse no mesmo es- das. Quem vitupera seu estudo, sinceramente não sei o
tado em que havia começado, sem cair nas mãos de ho- que julgaria digno de ser louvado.
mens ávidos não tanto de mudanças quanto de destruições!l 6. Pois, se alguém procura uma distração momentânea
Sim, pois, como costumávamos fazer quando ela existia, para o espírito e um descanso das preocupações, o que se
daríamos prioridade à execução da obm e não ao escrevê- comparará aos estudos daqueles que infatigavelmente in-
la; em seguida registraríamos as nossas próprias ações e vestigam tudo quanto favoreça e valorize o viver bem e
não o que agora registramos. Porém, como a república a feliz? Se, por outro lado, tenta um método para obter cons-
que se voltavam todos os meus cuidados, preocupações tância na virtude, ou recorre a essa arte ou não terá nenhu-
e trabalho desapareceu, evidentemente cessaram também ma outra com a qual consiga obtê-la. Afirmar que não há
aquelas atividades literárias do foro e do Senado. uma arte das coisas muito grandes quando nenhuma das
4. E como, acostumado a esses estudos desde o início muito pequenas existe sem ela é próprio de homens que
da vida, meu ânimo nada mais pudesse executar, julguei falam inconsideradamente e erram naquilo que mais im-
muito honesto poder evitar tais incômodos se me refugias-'· porta. E se existe uma disciplina da virtude, onde a irás
se na filosofia. Se, adolescente, reservei a ela boa parte de buscar se te afastares deste tipo de aprendizado? Porém,
meu tempo a fim de aprendê-la•, depois que comecei a ocu- quando exortamos à fl.losofia, em geral o fazemos mais acu-
par cargos públicos e me entreguei totalmente à vida públi- radamente, como em outro livro nossd. Aqui, apenas ex-
ca restou-me para a filosofia somente o tempo que me dei- plicamos por que, privados das tarefas da república, entre-
xava o cuidado dos amigos e da política. Esse tempo era gamo-nos de preferência a esse estudo7 •
todo consumido em ler, pois não havia ócio para escrever. 7. Doutos e eruditos perguntam-me se estou a agir
nos. Assim, em meio aos maiores males, parece que com constância suficiente, eu que, embora sustente que nada
isto conseguimos de bom: poder confiar às letras fatos não pode ser conhecido, insisto todavia em dissertar sobre tais
suficientemente conhecidos por nossos concidadãos, mas temas e, neste momento mesmo, investigo os preceitos do
muito dignos de sê-lo. Pelos deuses, o que é mais desejável dever. Gostaria que conhecessem a fundo meu pensamen-
que a sabedoria, o que é mais elevado, o que é melhor to. Não sou, com efeito, daqueles cujo ânimo é arrastado
para o homem, o que é mais digno do homem? Assim, aque-
les que a procuram são chamados filósofos, nem outra cai-
5. Grego philosophía, de phflos (amigo ou amante) e sophía (sab~doria).
6. O Hortensfus, hoje perdido. Seu impacto em Santo Agostinho é inten-
samente descrito nas Confissõr?S lll.4.
3. Cícero se refere a Ant6nio e seus seguidores, que implementaram as 7. Cícero sustenta, por exemplo em L19, 1.28, 1.70-3, que os :1omens
politicas de César após sua morte. talhados para a vida pública têm a obrigação de participar dela e, em 1.121.
4. Cícero começou a estudar filosofia antes de completar vinte anos (v'er que devemos ser vistos a fim de ter uma boa razão para mudar nosso modo
·'Introduç:ào", p. VIID. Cf. 1155 para o valor da filosofia para os estadistas. de vida: daí sua apologia (ver p. 12, nota 25).

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- - - - - - - - - - - LtvroJJ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
---------------Dru~---------------

pelo erro e nunca têm o que seguir. Que seria esse pensa- rando a honestidade da utilidade, estabeleceu que pode ser
mento, ou antes, que seria a vida sem a razão não só de re- honesto algo que não é útil e útil o que pode não ser ho-
fletir, mas também de viver? Se os outros dizem que algu- nesto. Que flagelo maior assolaria a vida dos homens?
mas coisas são certas e outras incertas, digo, discordando 10. Entretanto, filósofos de suma autoridade distin-
deles, que algumas são prováveis e outras não. 8. Que me guem pelo pensamento, severa, cuidadosa e honestamen-
impede, pois, de aceitar as coisas que me parecem prová- te, esses dois gêneros confundidos' 1. O que é justo, julgam
veis, rejeitar as que não o são, desaprovar e, evitando a ar- que também é útil; do mesmo modo, o que é honesto é
rogância de afirmar, fugir da temeridade, que tanto se afas- justo. Segue-se que qualquer coisa que seja honesta é igual-
ta ·cta sabedoria? Muito ao contrário, nós discutimos tudo mente útil. Aqueles, porém, que examinam descuidosa-
porque achamos que mesmo o provável não se evidencia- mente, admirando muitas vezes homens solertes e manho-
ria sem o confronto entre os dois partidos das questões es- sos, tomam a malícia por sabedoria. Deve-se tirã-los de se-
tudadas. Mas isso já examinamos em nossas Acadêmicas, melhante erro e voltar sua opinião para esta esperança: ob-
julgo eu, com suficiente diligência~. ter as coisas desejadas por meio de deliberações honestas e
E por tua causa, meu Cfcero, embora te estejas forman- ações justas, não por meio de fraudes e ardis.
do numa ftlosofla muito antiga e nobre, tendo como autori- 11. Ora, as coisas que importam à preservação da vida
dade Cratipo (que se parece bastante com aqueles que en- dos homens são, em parte, seres inanimados (como o ou-
gendraram essas doutrinas preclaras), não desejei que per- ro, a prata, os frutos da terra e outros desse tipo); e, em
manecessem ignoradas idéias tão semelliantes às vossas. parte, seres animados, com seus próprios ímpetos e apeti-
Mas passemos agora ao que foi anunciado. tes. Destes os há privados de razão e outros que fazem uso
m.9. A.ssim, propostas cinco ffiZÕes para a busca do dela. Privados de razão são os cavalos, os bois, outros ani-
dever'" - das quais duas dizem respeito à conveniência e à mais de porte e as abelhas, por cujo trabalho algo se pro-
honestidade, duas, às comodidades da vida, às riquezas, duz para a manutenção e a vida humana. Dos que fazem
aos recursos e às capacidades, e a quinta, à escolha a fâ.zer uso da razão Qá dois tipos: os deuses e os homens12 . A pie-
quando tais coisas pareçam lutar entre si-, dou por encer- dade e o culto propiciarão os deuses; mas depois dos deu-
rada a parte relativa à honestidade, a qual, decerto, é a que ses os homens é que são mais úteis aos homens.
desejo conheças melhor. Trataremos agora daquilo que, 12. Idêntica divisão há entre as coisas que" prejudicam
mais propriamente, se chama o útil. Um costume equivoca- e embaraçam. Mas, como se julga que os deuses não nos
do distorceu a tal ponto o sentido dessa palavra que, sepa- prejudicam, deixemo-los de lado e consideremos que os

8. Ver p. 7, nota 13. Aqui, o alvo de Cicero são os pirronistas (ver "Notas 11. Os manuscritos trazem "esses três gêneros confundidos" ou "esses
Biográficas", "Pirro'"). três gêneros confundidos em espécie". Holden explica que os três gêneros
9. Ocero se orgulhava desse diãlogo eminentemente técnico sobre a são: o honesto, o útil, e o honesto e útil. Mas Ocero fala de apenas dois, o
teoria do conhecimento, do qual temos apenas o primeiro livro da segunda honesto e o útil·. melhor, pois, corrlglr para ·'dois".
edição e o segundo da primeira. 12. O argumento segue a "escada da natureza". As plantas são "L"lanima-
10. Em 1.9-10. das" por não terem poder de locomoção (d. I.ll).

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'

- - - - - - - - - - L i v r o / f _ _ _ _ _ _ _ _ __
--------~--Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - -

graríamos apascentá-las, domesticá-las, nutri-las e colher


homens é que opõem os maiores obstáculos uns aos ou-
delas os proveitos oportunos. E aqueles mesmos homens
tros. De fato, mesmo os seres que classificamos de inani-
mados foram, pela maioria, produzidos pelo trabalho hu- exterminaram os animais daninhos, capturando os que nos
mano; não os teríamos se a mão e a arte não interviessem podiam ser de alguma valia.
nem os utilizaríamos sem a gestão dos homens 1'. O cuida- 15. Por que enumeraria eu a profusão das artes sem as
do da saúde, a navegação, a cultura do campo, a colheita, quais, de modo algum, seria possível a vida? Com efeito,
a conservação dos cereais e demais frutos jamais seriam quem assistiria os doentes, que distração haveria para os
possíveis sem o empenho humano. 13. Decerto não exoor- saudáveis, que Sl.).bsistência ou modo de vida se tão varia-
taríamos o que produzimos em abundância nem imp;rta- das artes não fossem praticadas por nós? Graças a elas, a
riamos o de que necessitamos se não cumpríssemos nossas vida dos homens se distanciou imensamente da mera sub-
funções. Pela mesma razão, não se extrairiam da terra as sistência e modo de viver dos animais. Certamente, sem a
pedras, necessárias ao nosso uso, nem união dos homens, as cidades não seriam edificadas e ha-
bitadas. A partir daí foram instituídas as leis e os costumes;
o ferro, o bronze, o ouro, a prata, profundamente ocultados, depois, a equânime distribuição do direito e a correta disci-
plina do viver, bens alcançados pela calma e a reverência
seriam trazidos à luz sem o trabalho e a mão do homem. dos ânimos. Eis, pois, que a vida se tornou mais segura fa-
IV. Os tetos que repelem a força do frio e diminuem os in- zendo com que nós, dando e recebendo, permutando fun-
cômodos do calor, de onde o gênero humano os tiraria de ções e comodidades, de nada carecêssemos.
início e depois buscaria seu abrigo caso cedessem ao im- V.16. Insistimos neste ponto mais que o necessário. A
pacto das tempestades, do movimento da terra ou do enve- quem, com efeito, não são notórios os aspectos persisten-
lhecimento, a não ser que a vida em comum lhes ensinas- temente lembrados por Panécio'": que nenhum chefe. na
se a pedir uns aos outros esse tipo de ajuda? 14. Acrescen- guerra, ou dignitário, na cidade, poderia empreender gran-
tem-se os aquedutos, os desvios dos rios, a irrigação dos des e salutares feitos sem o concurso dos outros homens?
campos, os diques que se opõem às ondas, os portos artifi- Ele nos aponta Temístocles, Péricles, Ciro, Agesilau e Ale-
ciais: que poderíamos ter sem o trabalho humano? xandre, os quais, a seu ver, nada teriam realizado sozinhos
Disso e de muito mais se conclui que os proveitos e - em suma, invoca em uma questão indubitável testemu-
usos extraídos dos seres inanimados de modo algum esta- nhos desnecessários. Mas, assim como obtemos grandes
riam a nosso alcance sem a atividade do homem. Enfim, vantagens do acordo e consenso dos homens, não há peste
que utilidade teriam os animais sem a ajuda do homem? detestável que não nasça do homem para o homem. Há
Pois sem dúvida os primeiros a descobrir que uso podería- um livro, A respeito da destruição dos homens, de Dicearco.
mos fazer de cada fera foram homens: sem esforço não lo-
14. Ver ·'Introdução'", p. XXI, para a condensação do livro de Panédo feila
por Cícero. Aulo Gélio (Noites áticas 13.28) preserva uma passagem da obr~
13. Ver p. 76, nota 137. Que pode haver abuso das artes da civilização,
de Panécio que é representada apenas por uma breve menção no De (!1/kl:s
levando ao luxo e à inquietação sociaL era frequentemente denunciado na
1.81.
Antiguidade. Lucrécio tratara há pouco disso no De natura rerum V.l106 ss.

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notável e eloqüente peripatético, que, após coligir todas as aproveitamos seu sopro favorável obtemos os êxitos alme-
outras causas - inundações, epidemias, devastações, até jados; quando ela sopra em sentido contrário, afligimo-nos.
mesmo o tropel de uma manada de animais selvagens, ca- PortantO a Fortuna, por si só, tem em seu poder todo o cor-
lamidades por cuja violência ensina que algumas raças hu- tejo restante das desgraças, que são mais raras: primeiro, as
manas foram dizimadas-, mostra por .comparação que nú- provenientes dos seres inanimados, procelas, tempesta-
mero bem maior de homens pereceu pela violê;nda de seus des, naufrágios, ruínas, incêndios; depois, as provenientes
semelhantes, isto é, em guerras e sedições. dos animais, picadas, mordeduras, ataques. Essas coisas,
17. Não havendo dúvida de que os homens em muito como dissemos, são porém mais raras. 20. Ora, a destrui-
se ajudam e se embaraçam, afirmo que é próprio da virtu- ção de exércitos - como a de três há pouco 16 e a de muitos
de conciliar os ânimos e uni-los no interesse coletivo. As- outras vezes-, a derrota de comandantes- como, recente-
sim, relegue-se às artes servis o que, nos seres inanimados mente, a de um homem eminente e excepcional' 7 - , além
e no trato dos animais selvage!l.S, é útil ã vida dos homens. da inveja da multidão e, por causa dela, os banimentos, ca-
Quanto aos esforços para multiplicar nossos bens, são pro- lamidades e fugas de cidadãos de mérito 1a; e, ao contrário,
movidos e estimulados pela sapiência de cidadãos eminen- as coisas favoráveis - honras, comandos, vitórias-, embo-
tes, motivados pela virtude. ra sejam fatos fortuitos, sem os recursos e empenho dos
18. De fato, toda virtude reside quase sempre em três homens não poderiam ser produzidas em nenhum dos dois
coisas: uma consiste em examinar o que, em determinada sentidos.
eventualidade, é verdadeiro e sincero, o que é próprio de Assim, entendido isso, deve-se examinar de que modo
cada um, o que é conseqüente, de onde provém cada coi- podemos excitar e aliciar os esforços dos homens em prol
sa, qual é a causa de determinado evento; outra, em coibir de nossas necessidades. Se o presente discurso se tornar
os movimentos desordenados da alma, que os gregos cha- muito longo, seja comparado à importância do tema e tal-
mam páthe, e os apetites, que chamam honnái, tornando- vez até pareça excessivamente breve.
os dóceis à razão15 ; a terceira, em tratar respeitosa e habil- 21. De sorte que todas as coisas que os homens atri-
mente aqueles com os quais nos congregamos, por cujos buem a alguém para engrandecê-lo e honrá-lo, fazem-no
esforços tenhamos com fartura e abundância aquilo que a por benevolência (quando, por algum motivo, gostam de-
natureza reclama, para assim afastarmos o que é incômodo le), por honra (se admiram sua virtude e o consideram
e castigarmos os que tentam nos prejudicar, na medida em digno da maior prosperidade), por terem fé nele e cuida-
que o permitam a humanidade e a eqüidade. rem que delibera acertadamente a respeito de seus negó-
VI.19. De que modo conseguiremos invocar e conser- cios, por temerem seu poder ou, ao contrário, dele espera-
var o zelo dos homens, falaremos depois; antes, umas pou-
cas palavras devem ser ditas.
16. Os três exêrcitos são o de Pompeu em Farsália (9 de agosto de 48),
Quem ignora a grande influência da Fortuna em um ou o de seu filho mais velho em Munda, Espanha (6 de abril de 46) e o de Mete! o
outro sentido, na prosperidade e na adversidade? Quando Cipião em Tapso, África (17 de março de 45), todos derrotados por Cêsar.
17. Pompeu (ver "Notas Biográficas").
18. Qcero pode ter em mente seu próprio e:lálio de dezoito meses. em
15. Ver 1.101, nota 97. 58"7 a.C.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro li _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

rem benefícios (como quando os reis ou os membros do Nenhum poder consegue impedir o ódio de muitos: se
partido popularw propõem algumas larguezas), ou, final- antes isso era ignorado, há pouco ficou conhecido". Sem
mente, por serem levados a isso em troca de recompensa dúvida, a morte violenta de nosso tirano - que a cidade,
ou pagamentolG (o que, em verdade, é motivo muito sórdi- oprimida pelas armas, suportou, parecendo pronta a obe-
do e ignóbil tanto para aqueles que são suas vítimas quan- decer mais ainda à força do morto - mostra não só quanto
to para aqueles que a ele tentam recorrer). 22. Em verda- o ódio dos homens pode destruir, mas também que são se-
de, tudo vai pelo piÓr quando o que deve ser obtido pela melhantes os desígnios de outros tiranos, dos quais nem
virtude é tentado pelo dinheiro. Dado, porém, que algumas um só escapou de tal morte. O medo é mau guardião da
vezes esse expediente é necessãrio, diremos de que modo vida longa; a benevolência permanece fiel até a eternidade.
ele deve ser utilizado depois que falarmos das coisas que 24. Por outro lado, aqueles que comandam homens
se acham mais próximas da virtude. oprimidos devem mostrar-se bastante severos, como o se-
Os honestos se submetem ao comando e ao poder nhor para com o escravo, se de outra forma não puderem
alheio por diversos motivos. De fato, a isso são induzidos contê-los2·1 . Mas os que, numa cidade livre, tudo perpetram
pela benevolência, pelo montante dos beneficios, pela emi- para serem temidos, não encontram parelha em sua loucu-
nência da dignidade, pela esperança de utilidade futura, ra. Mesmo que as leis sejam sufocadas pelo poder de um
pelo medo da coação, pelo aceno de larguezas e promes- indivíduo e a liberdade se tome timorata, muitas vezes elas
sas, enJim, como tantas vezes se dá em nossa república, acabam ressurgindo por julgamentos silenciosos ou vota-
pelo atrativo do pagamento". ção para um cargo público. E as mordidas de uma. liberda-
VII.23. :'\ada é mais eficaz para a proteção e a manu-
de sufocada são mais violentas que as de uma liberdade
tenção dos recursos do que ser estimado; nada é mais dis-
conservada. Assim, não só para a segurança mas, em geral,
tante disso que ser temido. Com muito brilhantismo disse
também para o poder e os recursos, lembremos que o me-
Ênio:
do deve ser afastado e o bem-querer, mantido. Desse mo-
A quem temem, odeiam; daquele a quem se odeia, busca-se
do facilmente conseguiremos o que desejamos, não só nos
a perda. as;untos privados, como ainda na atividade pública. Cum-
pre que os que desejam intimidar temam, eles próprios,
aqueles por quem anseiam ser temidos.
19. Ver pp. 43-4, nota 85. Sobre a demagogia dos reis. ver 11.53 e 80.
Cícero condena essas distribuições, politicamente motivadas, em 1.42-3, ll.72-3. 22. Ver "Introduç-Jo", p. XI, para referências sobre o assassinato de César././
II.78-85. Implicitamente, Qcero nega a famosa demência de César, que ele próprió
20. A boa vontade é discutida em 32. a honra em 36-8, a fé em 33-4, o gabara em Pro Mareei/o. _ .
medo em 23-9. as dü>tribuições e prêmios em 52-85. Os seis fatores reapare- 23. A passagem parece contradizer I.41 (ver nota JZ), refletm~o, ao con-
cem, de modo mais sinistro, em 22, como motivos para prestar não apenas trário, a visão peripatética segundo a qual existem escravos ~aturaiS que pre-
apoio, mas também submissão <lO domínio politico não-republicano. cisam ser controlados à força e não governados por consentnnento, como os
, ·.· Zl. Ver "Introdução", pp. Xl-Xlli, sobre os atos de César como ditador,
bem como os apelos de Antônio e Otávio aos veteranos de César e outros
cidadãos. No entanto, em contraste com o exame dessa visão em De re publi-
ca lll-37-8, Cícero afirma aqui que a força deve ser usada apenas quando
benefidários de suas liberalidades. nrxessária e limita sua comparação aos governantes de Estados livres.

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25. Como? Pensemos por um momento nos terrores VIII. Em tal assunto, recordo os fatos estrangeiros de
que oprimiam o famoso Dionísio, o Velho, o qual, receoso preferência aos nossos. Todavia, quando o império do povo
das navalhas dos barbeirOs, queimava sua barba com car- romano se mantinha graças aos benefícios e não às injusti-
vão em brasa. O quê? Com que ânimo achamos ter vivido ças, fazia-se a guerra ou em favor dos aliados ou para con-
Alexandre de Feres? Este, segundo lemos, embora amasse servar esse império; os desfechos das guerras eram clemen-
muito a esposa Tebe, vindo do banquete para o quarto, tes ou necessários2f; o Senado se fazia porto e refúgio dos
para junto dela, mandava que um bárbaro - na verdade, reis, do povo e das nações; e nossos magistrados e coman-
pelo que está escrito, tatuado em diversas partes do corpo, dantes empenhavam-se em tirar o maior louvor disto ape-
conforme o costume trácio - o antecedesse de espada er- nas: da defesa das províncias, da proteção dos aliados com
guida e mandava à frente alguns guardas para que sondas- eqüidade e fé. 27. Aquilo, portanto, poderia ser chamado
sem os armários da mulher a ver se não ocultavam um pu- mais verdadeiramente de patrocínio27 do orbe da terra do
nhal no meio das roupas. Infeliz daquele que considera um que de império.
bárbaro e tatuado mais fiel do que a esposa! E não se enga- Antes já havíamos afrouxado ligeiramente esse costu-
nava: por ela mesma foi assassinado, devido a uma suspei- me e essa disciplina, mas, depois da vitória de Sila, perde-
ta de concubinato. mo-los por completo. Tudo deixou de parecer desfavorável
Sem dúvida, nenhuma força de comando é tanta que, aos aliados quando, na própria cidade, reinava tamanha
sob a opressão do medo, dure por muito tempo. 26. Disso cruekbde. Com aquele homem, uma vitória desonesta se-
é testemunha Faláris, considerado mais cruel que qualquer guiu-se a uma causa honesta; ousou dizer que quando, fin-
cada a lança no fórum•~, leiloava os bens de homens bons,
outro e que não sucumbiu ã traição- como esse Alexandre
ricos e cidadãos, não vendia nada além do que lhe perten-
de Feres de que acabei de falar- nem por mão de uns pou-
cia. Veio depois aquele que, numa causa ímpia e numa
cos- como o nosso tirano•• -, mas contra o qual se encar- vitória ainda pior, não confiscou os bens dos particulares,
niçou toda a massa dos habitantes de Agrigento. Mas quê! mas reuniu todas as províncias e regiões por um mesmo di-
Os macedônios não abandonaram Demétrio e se passaram reito de calamidade. 28. Assim, abaladas e destruídas as na-
para o lado de Pirro? Mas quê! Acaso, repentinamente, quase ções estrangeiras- como exemplo de nosso perdido dorn1-
todos os aliados não desertaram os lacedemônios, que co-
mandavam injustamente, e mostraram-se espectadores ocio-
sos da calamidade de Leuctras?15 26. Ver p. 22, nota 46. O carâter defensivo das guerras imperialistas é res-
saltado por sua ligação com as guerras em defesa dos aliados de Roma. To-
davia, C!cero sabe muito bem que Roma às vezes expandiu o império prote-
gendo aliados por ela escolhidos (Rep. III.35).
24. Júlio César. evidentemente. Havia mais de sessenta conspiradores na 27. Em latim, patrocinium, substantivo abstrato para as relações entre
trama de assassinato. Sabemos os nomes de dezesseis, incluindo Bruto e patrono e cliente, ou ex-escravo, aqui empregado metaforicamente para as
Císsio. relações entre Estado e súdiw.
25. Os tebanos, sob o comando de Epaminondas, derrotara..'ll Esparta 28. Referência ãs proscrições mediante as quais Sila colocava seus inir!li-
em 371 a.C., libertando os arcádios e os messênios que haviam suportado gos fora da lei, durante a guerra civil, e confiscava suas propriedades para dá-
uma longa sujeição, trabalhando como esc::avos (hilotas) eF.l suas próprias las a seus sequazes ou vendê-las. O leilão se fazia ã volta de uma lança finca-
terras. Ver p. 118, nota 84. da no solo.

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nio -, vimos Massília ser arrastada no cortejo 2 ~ e ele triunfar que preferimos ser temidos a ser amados 32 • Ora, se tais coi-
daquela cidade sem a qual nunca os nossos comandantes sas aconteceram ao povo romano, quando comandava injus-
teriam vencido nas guerras transalpinas. Eu lembraria ainda tamente, que pensarão os particulares? Sendo evidente que
muitos outros crimes contra os aliados se o Sol houvesse a força da benevolência é grande e a do medo, fraca, agora
. visto jamais um homem mais indigno do que esse. Portan-
to, é com justiça que somos castigados. Se não deixásse-
discutiremos por que meios podemos facilmente conquis-
tar, com honra e fé, aquele amor a que aspiramos.
mos impunes os crimes de muitos, nunca tamanha licença 30- Mas dele não necessitamos todos igualmente, pois
seria concedida a um só - que a uns poucos distribuiu a depende do propósito da vida de cada um a questão de
herança de seus bens particulares, mas a de sua cupidez, a saber se é preciso ser benquisto por muitos ou basta sê-lo
numerosos ímprobos·'". por poucos. Assim, com cetteza a primeira e maior neces-
29. Sem dúvida, nunca faltarão causa e semente de sidade é esta: ter a afeição fiel dos amigos e daqueles que
guerras civis enquanto homens arruinados recordarem e nos admiram. Isso, com efeito, é tão notório que não dife-
desejarem aquela lança cruenta. Como Públio Sila, que a re muito entre os homens eminentes e os mediocres; e uns
agitou sob o ditador seu parente e, depois de trinta anos, e outros devem adquirir igualmente essa afeição. 31. Talvez
empunhou outra ainda mais criminosa; já o que fora escri- nem todos precisem, da mesma forma, de honra, glória e
ba durante aquela ditadura, esse se tomou questor urba- benevolência dos cidadãos; mas tais bens ajudam bastante
no"D'. at se deve coneIU!r
' que, propostos semelhantes prê- aqueles que deles dispõem a adquirir tanto amizades quan-
mios, as guerras civis sempre existirão. Eis que apenas as to outros bens,'.
muralhas àa cidade estão de pé e firmes, mas já temem os IX. Mas falamos da amizade em outro livro, que se in-
últimos crimes daquele homem; quanto ã república, nós titula Lélio; falemos agora da glória, embora sobre esse
sem dúvida a perdemos totalmente. E ficamos sujeitos a tema haja também dois livros nossos, pois na cor:.dução
esses flagelos- devemos, com efeito, voltar ao tema- por- das grandes empresas ela costuma ajudar bastante'~. Lma
·'·'
glória elevada e perfeita depende de três c:::ndições: se a
multidão nos quer bem, se tem fé em nós e se, com admi-
29. Masailia, atual Marselha, era uma colônia grega que se tornara aliada
de Roma muito antes de a Gália transformar-se em proVÍncia. Foi tomada por
ração, julga-nos dignos de alguma honra. E essas condi-
César durante a guerra civil porque favorecem a causa de Pompeu. Maquetes ções- pam falar simples e brevemente-, os motivos pelos
das cidades capturadas eram exibidas no triunfo {ver p. 40, nota 79). Cf. Átti- quais surgem em cada um são quase os mesmos que as fa-
cus xrv. 14-6 para a reação de C!o~ro na época. zem surgir na multidão. Há, porém, uma outra maneira de
30. O principal dos três herdeiros era Orãvio, seu sobrinho {mais tarde,
imperador Augusto). Os "herdeiros de sua cupidez" são provavelm.ente An-
tônio e seus amigos.
31. Ver !.43, nota 54. Públio Cornélio Sila presidiu a venda da~ proprieda- súditos (cf. 11.75), ele sustenta que esse desgoverno encorajou a m:í conduta
des confiscadas em 82 a.C. e 46 a.C. O '·outro" é Cornélio Sila, um ex-escravo na pátria, o que resultou na guerra civil e na ruína da república.
do ditador que o serviu como secretário e aicançou a quesrura (cargo sobre- 33. A boa vontade, a fé e a honra vio ser discutidas como meios de
tudo financeiro e primeiro degrau da magistratura consular) sob César. Cf. Fi- obtençào de glória, que só é relevante para "homens destac-.tdos''. Cícero faz
lípicas n.64 sobre a venda da propriedade de Pompeu.
uma pausa para mencionar a forma de apoio, por parte dos companheiros.
32. Uma vez que C!cero não p'ode realmente alegar que o desgoverno que wdos os homens podem alcançar: a amizade.
de Roma, como o de Esparta, arrebatou-lhe o controle ou a aliança de seus 34. O be gloria, escrito antes do Lf;!el·ius nesse mesmo ano, perdeu-oe.

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se aproximar da multidão para influir como que em todos


os ânimos' 5 • isso, em conjunto com o entendimento, a justiça terã o po-
der que se queira para consolidar a fé nos homens; sem a
~2. Vejamos a primeira das três condições a que me
F....ien, os preceitos relativos à benevolência. Esta deriva, em prudência, poderã muito; mas sem a justiça, a prudência
ver~ade, ~rincip~~ent~ dos benefícios. Em segundo lugar,
não terã força alguma.
da mtençao benefica, amda que não haja meios de realizá- X.35. Mas ninguém se admire de que, embora conste
la. O amor da multidão é fortemente provoca-do pela fama em todos os filósofos (eu mesmo muitas vezes o expus) que
e pela reputação de liberalidade, benevolência, justiça, fé e quem possui uma virtude possui todas, eu agora as separe
todas aquelas virtudes associadas à serenidade e à brandu- assim, como se alguém que não é justo pudesse ao mesmo
ra de costumes. E o que chamamos de honestidade e deco- tempo ser prudent&7 • Uma coisa é a exatidão quando a pró-
ro, assim como por si só nos agrada, por sua natureza e be- pria verdade é delimitada na discussão, bem outra quando
leza comove e, principalmente, ilumina os ânimos de to- o discurso se acomoda à opinião comum. Por isso, à manei-
áos, graças às virtudes que evoquei. Por isso, somos natu- ra do vulgo, dizemos aqui que alguns são corajosos, outros
ralmer;tte levados a amar aqueles nos quais supomos haver são bons, outros prudentes; com efeito, deve-se proferir o
tais qualidades. Eis as mais fortes motivações do amor; pode discurso com palavras populares e comuns ao falar a res-
haver outras, de menor peso. peito da opinião popular, o que também fez Panécicf8 .
33. A fé, para que a mereçamos, pode ser suscitada Mas voltemos ao tema proposto.
P.Or d~as razões: se se considera que alcançamos a prudên- 36. Havia, pois, entre as três condições relativas à gló-
~la e, JUntamente com ela, a justiça. Pois temos fé nos que- ria, uma terceira graças à qual, com a admiração dos ho-
JUlgamos mais sãbios que nós e naqueles que acreditamos mens, fôssemos julgados dignos de honra. Os homens co-
capazes de antever as coisas futuras e, no momento crítico, mumente admiram todas as coisas que julgam grandes e
resolver os problemas tomando a decisão oportuna. Com superiores à sua própria expectativa, em particular se notam
efeito, os homens crêem ser essa a verdadeira e útil prudên- em alguém'certas qualidades inesperadas. Então exaltam e
cia. E nos homens justos e fiéis, isto é, nos bons-'6) a fé é elogiam calorosamente as pessoas nas quais julgam perce-
tanta q~e ~ão hã lugar para suspeitas de fraude ou injusti- ber virtudes excelentes e singulares, mas desdenham e des-
ça. Ass1m, JUlgamos ace~ado confiar a eles nossa salvação, prezam aquelas em quem acham não haver nem virtude,
nossos bens e nossos fllhos. 34. Dessas duas qualidades,
en:ão, a justiça é a que tem mais poder para suscitar a fé,
po1s, embora ela, sem a prudência, tenha bastante autori- 37. Fin. V.66·, Thsc. IIL14; Acad. L38. Cicero levanta a questão ao exa-
minar a justiça e o bom senso (o aspecto prático da sabedoria, LI 53) porque
~de, a prudência, sen: a justiça, é impotente para gerar a Carnêades atacara a idéia de que a virtude, especialmente a justiça, ê compa-
fe. De fato, quanto ma1s a pessoa é solerte e ardilosa mais tível com a sabedoria. Cícero tratou o problema, particularmente com respei-
detestada é quando lhe falta a reputação de probidad~. Por to aos Estados, no De re publica III.32 ss.; no tocante aos indiVÍduos, ver
adiante, III.40-97, especialmente 50-78, 89-92.
38. Os estóicos eram acusados de violar o uso comum, como em seus
35. Cf. 44-51 sobre como divulgar nossas qualidades. famosos paradoxos, e por sua idéia de que as vantagens exteriores não eram
36. Ver I.20, nota 26. "bens". Cícero elogia Panécio por fazer concessões ã lingua e às noçàes co-
muns em De .fintbus IV-79.

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nem coragem, nem energia. Entretanto, não desprezam a a admiração, porque desprezam e negligenciam aqueles
todos: não desprezam os que consideram ímprobos, male- atrativos para os quais a maioria, inflamada pela avidez. é
dicentes, falazes e propensos a injustiças, apenas pensam arrastada.
mal deles. Por isso, como dissemos, desdenham os que, se- 39. Em minha opinião toda regra, todo gênero de vida
gundo a expressão corrente, não são úteis "para si nem para exigem o auxílio dos homens, em primeiro lugar para que
o semelhante", nos quais não há nenhum préstimo, nenhu- tenhas com quem travar conversas familiares, o que é difí-
ma dedicação, nenhuma preocupação. cil, a não ser que ostentes um semblante de homem bom.
37. Tratam com admiração os que, a seu ver, ultrapas- Logo, mesmo para o solitário e para aquele que leva a vida
sam os demais em virtude e estão isentos da desonra ou no campo, a reputação de justiça é necessária, e tanto
dos vícios a que outros não consegt1em resistir facilmente. mais quanto, se não a tiverem, serão considerados injus-
Pois as volúpias, senhoras brandíssimas, desviam da vittu- tos e, sem nenhuma proteção à mão, sofrerão inúmeras
de a maior parte da alma e, quando as faces da dor se apro- injustiças.
ximam, quase todos se aterrorizam além da medida. A vi- 40. Também para aqueles que vendem, compram,
da, a morte, a riqueza e a pobreza sacodem fortemente os contratam, alugam e estão de alguma forma envolvidos em
homens. Aqueles que, com ânimo galhardo e excelso, des- negócios, a justiça é necessária à execução de suas tarefas.
denham essas coisas, sejam de que tipo forem, e a todos Sua força é tamanha que nem mesmo os maledicentes e
atraem qc.ando algum propósito amplo e honesto se lhes criminosos podem passar sem alguma parcela de justiça.
apresenta, quem não admirará o esplendor e a beleza da Pois quem furta ou tira alguma coisa de seus comparsas,
virtude deles? XI.38. Logo, esse ânimo elevado causa pro- esse em verdade não encontra lugar sequer no latrocínio.
funda admiF.a.ção, e mais ainda a justiça, virtude com base O chamado "chefe dos píratas", a não ser que distribua o
na qual os homens são considerados bons. P2.ra a multi- butim igualmente, é assassinado pelos companheiros e
dão, ela parece algo prodigioso, e não sem motivo. De fa- aba~donado; bem se diz, então, que há leis até entre os
to, não pode ser justo quem teme a morte, a dor, o exílio e
ladrões, que eles observam e cumprem411 • Assim, pela eqüi-
a pobreza, ou que antepõe seus cohtrários à eqüldade. Aci-
dade na divisão do butim, Bardúlio, ladrão ilírio, segundo
ma de tudo, será admirado o homem que não se deixa do-
conta Teopompo, amealhou grandes riquezas; e muito maio-
minar pelo dir.Jleiro, pois dele se pensa c;ue passou por uma
prova de fogo·19 . res obteve o lusitano Viriato, a quem até nossos exércitos e
comandantes cederam, e ao qual Caio Lélio, cognorninado
Assim, a justiça realiza todas as três condições que fo-
ram propostas para a glória: tanto a benevolência (porque o Sábio, quando pretor arruinou e esmagou, reprimindo-
deseja ser útil a muitos) quanto, pelo mesmo motivo, a fé e
40. Latro (bandido) é utilizado para um amplo espectro de pessoas que
ameaçam a ordem social pela violência, mas não são consideradas aimlnosas
39. Sobre o "homem bom", ver p. 13, not"<~ 26. A alusão ao fogo se refere perante a lei nem inimigas legítimas ãs quais se deve mover guerra. Aqui.
ao teste do ouro. pois acreditav.t-se que apenas esse metal era incombustível Cícero menciona os piratas como exemplo principal devido ao grau de pre:uí-
(Plínio, HNXXXIII.59) e que sua qualidade podia ser avali.ada pela observa- zo que causam e ã importância das operações contra eles em sua própn:\
ção do tempo que levava para ficar incandescente. época: neste mesmo ano o problema ressurgiu (Ãr. X\1!.1.3).

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)-' - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - - LivroiJ _ _ _ _ _ _ _ _ __

lhe de tal forma a ferocidade que deixou aos outros uma da reputação de justiça. E acrescento que, se também fos-
guerra fácil de terminar'1• sem considerados prudentes, na opinião dos homens nada
Se a força da justiça é tanta que consolida e multipli- haveria que estes julgassem não poder alcançar de sua
ca os recursos até dos ladrões, quão grande a considera- autoridade.
·.. i remos no quadro das leis e julgamentos de uma república Assim, a justiça deve ser cultivada e preservada de qual-
constituída? quer modo, tanto por si mesma (pois, de outra forma, não
XII.41. Para mim, na verdade, não foi apenas entre os seria justiça), quanto para aumentar a honra e a glória. Tal
medos, como diz Heródotd 2 , mas também entre nossos an- como existe um método não apenas para ganha::: dinheiro,
tepassados que homens de bons costumes parecem ter sido mas também para aplicá-lo a fim de que baste às despesas
constituídos reis em beneficio da justiça. Quando a multi- contínuas - não só as necessárias como as devidas às libe-
dão era oprimida pelos poderosos, refugiava-se junto a al- ralidades-, assim a glória deve ser conquistada e emprega-
guém que se sobressaísse pela virtude; esse homem, livran- da com método.
do os mais pobres da injustiça graças ao estabelecimento 43. Contudo, Sócrates dizia brilhantemente44 que o ca-
da igualdade, agrupava grandes e pequenos sob um mes- minho mais próximo e curto para a glória é ser o que se
mo direito. E o motivo que constituiu o direito foi o mesmo deseja parecer. Pois, se cuidam alguns obter gló:cia estável
que constituiu os reis. 42. De fato, sempre se procurou a com simulações e ostentação vã, não só com palavras, mas
igualdade perante o direito, que do contrário não seria di- também com fisionomia fingida, erram cabalmente. A ver-
reito. Se obtinham isso de um único homem, bom e justo, dadeira glória deita raízes e até as espalha, mas os engodos
ficavam satisfeitos. Porém, como isso só raramente aconte- caem rapidamente como flores miúdas; o que é simulado
ce, foram criadas leis que falassem a todos sempre numa não pode ser duradouro. Muitos são os testemunhos disso,
única e mesma voz 43 • em ambos os sentidos, mas, por brevidade, contentar-nos-
Logo, é evidente, costumavam ser escolhidos para co- emas com uma única família. Tibério Graco, filho de
mandar aqueles que, aos olhos da multidão, tivessem sóli- Públio, será louvado enquanto a memória dos feitos roma-
nos subsistir. Mas seus filhos, vivos, não eram estimados
41. Os romanos muitas vezes consideravam bandidos certos grupos na- pelos homens bons; e, mortos, conservam-se por direito no
tivos de suas províncias, que os governadores não conseguiam controlar (d. número daqueles que foram executados justamente. Assim,
Cícero em carta ao irmão, QFr. 1.1.28). Como Bardúlio e Viriato, esses bandi- quem desejar alcançar a verdadeira glória da justiça cum-
dos eram ãs vezes guerrilheiros inimigos de Roma. Após as vitórias de Lélio,
Viriato continuou a impor derrotas aos romanos, até ser assassinado à traiçao.
pra os deveres da justiça. Quais sejam estes, ficou dito no
42. Heródoto 0.96) conta que Deiócides, célebre por suas decisões jus- livro anterior.
tas, foi feito rei pelos medos porque descobriram que, quando ele deixava de XIU.44. Devemos ensinar alguns preceitos para que
julgar, o crime e a anarquia aumentavam.
facilmente pareçamos o que somos, embora melhor fosse
43. Esse relato su.mário da ascensao e queda da monarquia romana
adapta a história de Roma a um relato geral da evolução pol1tica tal como a sermos o que desejamos parecer. Se alguém (como julgo
imaginava Posidônio (Sêneca, Carta 90.5). Como mostra o Livro li do De re
publica de Cícero, os romanos realmente acreditavam que as leis funcionavam
sob os reis, alguns dos quais foram grandes legisladores. 44. Xenofonte, Mem., II.39.

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-----------Dosder;eres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ L/woJJ _ _ _ _ _ _ _ _ __

ser o teu caso, meu Cícero), desde tenra idade, goza o be- os parentes e da benevolência para com os nossos. Facil-
nefício da celebridade e do bom nome recebido do pai, ou •
mente e da melhor maneira, reconhecem-se os adolescen-
,,. o tem por acaso e fortuna, todos os olhares se voltam para tes qu~ se aproximam dos homens famosos, sábios e aten-
ele, examinam o que faz, de que modo vive; como se esti- tos aos interesses da república; se convivem por muito
vesse sob a mais intensa luz, nenhuma palavra ou ato des- tempo com eles, convencem o povo de que serão seme-
se homem passam despercebidos. 45. Aqueles que, de ori- lhantes àqueles que eles próprios escolheram para imitar.
gem humilde, vivem os primeiros anos na obscuridade, de- 47. A casa de Públio Múcio recomendou a adolescência de
vem assim que se tornam jovens tentar realizar grandes Públio Rutílio à fama de integridade e conhecimento do
coisas e nelas se empenhar com esforços adequados; e isso direito. Lúcio Crasso, quando jovem, não obteve elogios de
farão com ânimo tanto mais flrme quanto, nessa idade, tal empréstimo, mas ele mesmo os gerou para si graças àque-
comportamento não desperta inveja e é mesmo favorecido. la acusação nobre e gloriosa; e, na idade em que os ho-
Ponanto, ao adolescente, a primeira recomendação para a mens destacados costumam ser mimoseados com elogios,
glória é que alcance consideração graças a algum feito mili- como se diz de Demóstenes, Lúcio Crasso anunciou que já
tar, campo em que muitos de nossos antepassados se so- realizara integralmente no fórum o que pudera exercitar
bressaíram. Sim, pois quase sempre estavam em guerra. E com mérito em sua própria casa•~>.
tua geração vive em meio a um conflito no qual um dos par- XIV.48. Embora a regra do discurso tenha duas for-
tidos cometeu crimes em demasia e o outro teve pouquís- mas sendo uma delas a conversação e a outra o debate,
sima sorte. Nesse conflito, porém, quando Pompeu te colo- não' há dúvida de que o debate é mais importante para a
cou à frente de uma ala, conseguiste - cavalgando, arre- obtenção da glória: é ele, com efeito, que chamamos elo-
messando o dardo, suportando todos os trabalhos militares qüência. Todavia, é difícil avaliar quanto a co11esia e a afa-
- alto louvor, vindo tanto de um homem eminente quanto bilidade da conversação conciliam os ânimos. Restam-nos
das fL!eiras do exército·-;. Infelizmente, tua glória ruiu ao cartas de Filipe a Alexandre, de Antípatro a Cassandro, de
mesmo tempo que a república. Mas este discurso não foi Antígono ao filho - três homens prudentissimos, segundo a
composto a teu respeito e sim de um ponto de vista geral; tradição -, nas quais lhes preceituam que aliciem a bene-
por isso, vamos ao que ainda resta. volência do povo com palavras amáveis e acalmem os sol-
46. Assim como, nos outros domínios, os trabalhos do dados convidando-os brandamente para uma conversa. En-
espírito são mais valiosos que os do corpo, aquilo que bus- tretanto, debater em público freqüentemente provoca uma
camos com o engenho e a razão é mais grato que aquilo glória geral. Grande é, de fato, a admiração por aquele que
que buscamos com as forças. Portanto, a primeira recomen- fala copiosa e sabiamente; os ouvintes julgam que ele com-
dação vem da modéstia, em seguida da piedade para com preende e sabe mais que os restantes. E se há no discurso

46. Lúcio Licfnio Crasso, modelo romano de orador para Ocero, como
45. Cícero quase llceita aqui o que deplora em I.74 e 11.46, isto é, que a
Demóstenes era seu modelo grego, tinha apenas vinte e um anos quando
glória militar contava muito em Roma. O jovem Cícero, com a idade de 16-17
acusou P·aplrio Carbiio (cf. Ü.49) e o levou ao suiódio. C1cero defende·.1 su~,
anos, serviu sob as ordens de Pompeu em 49-8, durante a guerra civil contra
.... ~--··· ...._Cksar. primeira causa pública em 80 a.C., com vinte e seis anos, preferindo não se
aprofundar na matéria (Brurus 311).
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______________________ Düsd~ros ______________________ - - - - - - - - - LivroJJ _ _ _ _ _ _ _ __

gravidade de .ti'Jstura com modéstia, nada será mais admi~ de elevado nascimento, filho daquele que foi um dos pri-
rável, principalmente quando tais qualidades se encontram meiros peritos no direito civil.
num adolescente. SI. Deve-se guardar diligentemente também este pre-
49. Embora haja muitos tipos de causas que requerem ceito do dever: nunca intentar contra um inocente uma
eloqüência e muitos adolescentes em nossa república te- ação capital''8 • Com efeito, de modo algum isso pode acon-
nham conseguido louvor discursando perante juízes, o povo tecer sen'l. crime. Haverá algo mais desumano que desviar a
e o Senado, a admiração é maior nos processos jurídicos. eloqüência, dada pela natureza para a salvação e a conser-
Sua regra é dupla, pois consta de acusação e defesa. Ape- vação dos homens, para a ruína e o dano dos bons? Toda-
sar de a defesa ser mais louvável, também a acusação tem via, da mesma forma que isso deve ser evitado, não se deve
sido aprovada. Há pouco referi-me a Crasso; o mesmo fez ter escrúpulos em defender, às vezes, um culpado, contan-
o adolescente Marco Antônio. A acusação também tornou to que não seja um homem abominável e ímpio; a multi-
famosa a eloqüência de Públio Sulpício, quando chamou a dão o deseja, o costume o suporta e, até, a humanidade o
juízo Caio ~orbano, cidadão sedicioso e inútil. pede. É tarefa do juiz, nas causas49 , procurar sempre a ver-
50. M:as não se deve fazer isso muitas vezes, a não ser dade; é tarefa do advogado defender o verossímil, ainda
a bem da comunidade, como esses de quem falei, ou por que menos verdadeiro - o que eu não ousaria escrever ao
motivo de vingança, como os dois Lúculos, e de proteção, tratar de filosofia, a não ser que agradasse ao mais grave
como nós mesmos em favor dos sicilianos e Júlio em favof dos estóicos, Panécio. Mas a glória e o favor são gerados
dos sardas, contra Albúcio47 . Conhece-se mesmo a diligên- sobretudo pelas defesas, que serão maiores quando ajuda-
cia de Lúcio Fúfio ao atacar Mânio Aquilio. Acusemos, por- rem alguém aparentemente opri.1li.do ou perseguido por
tanto, uma só vez ou raramente. Se houver quem o faça com um homem de recursos. Isso eu mesmo fiz muitas vezes, e,
mais freqüência, dedique essa tarefa ao interesse da repú- quando adolescente, discursei em favor de Sexto Róscio
blica, pois muitas vezes não é repreensível vingar-se dos Amerino contra o todo-poderoso Lúcio Sila; essa obra, como
inimigos d€la; todavia, haja nisso medida. Com--efeito, pa- sabes, estã disponível' 0 .
rece próprio de um homem duro - ou antes, dificilmente
próprio de um homem - pôr em perigo muitas cabeças. É 48. Aqui, a expressil:o de Cicero (literalmente: "nunca indiciar um inocen-
perigoso para si mesmo e desgastante para a reputação ex- te em proçesso capital") refere-se ã ameaça ao caputde um homem, seu status
por-se à pecha de acusador. Isso aconteceu a Marco Bruto, de cidadão. Em seu tempo, os rêus das classes superiores nil:o eram mantidos
na prisão antes ou depois da sentença, sendo em geral condenados ao exílio.
49. O termo não se aplica apeflil.S àqueles que presidem a julgamentos,
47. A acusação era o caminho de escolha para quem se iniciaVl! como panicularmente civis, mas, no direito criminal da época de C!cero, também
orador. Crasso tinha vinte e um anos (ver p. 101, nota 46), Públio Sulpício, vinte; aos membros do júri.
não se sabe a data do primeiro discurso de Marco Antônio. Cicero, que come- 50. Embora criticasse posteriormente seu estilo exuberante, Clcero che-
çou com wrut defesa, achou necessário desculpar-se quando acusou Verres gou a publicar Pro Roscio Amerino, seu primeiro discurso num tribunal, pro-
com a idade de trinta e seis. Carbão, vitima de Crasso e Sulpído, era visto nunci3do em 80 a.C. Aqui, exagera os risoos que correu, pois, embora Sila
como "insano" pelos optímates, os Lúculos procuraVl!m vingar o pai: Cícero e fosse cônsul, provavelmente já não era mais ditador; além disso, apesar de
Caio Júlio César Estrabão defendiam os interesses das províncias que havi2m Plutarco em Cícero 3, a viagem que Cicero empreendeu ao exterior em 79-80
governado. não foi motivada pelo medo (Brutus 312-14).

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XV.52. Expostos os deveres dos adolescentes, úteis para com freqüência, homens idôneos devem presentear os ne-
se alcançar a glória, devemos tratar em seguida da benefi- cessitados com parte de seus bens familiares, mas de modo
cência e da liberalidade. A razão delas é dupla, pois faz-se diligente e moderado. Muitos, ao distribuir, arruínam o pa-
algo pelos necessitados por meio de serviços ou de dinhei- trimônio. E o que será mais tolo que cuidar para fazer de
ro. Esta última liberalidade é mais fácil, sobretudo para o boa vontade o que não se poderá fazer por muito tempo?
rico, mas a outra é mais elegante, mais brilhante, mais digna As pilhagens seguem-se às distribuições: quando, à força
de um homem corajoso. Com efeito, embora haja em cada de dar, começam a necessitar, as mãos surrupiam. Assim,
uma a vontade liberal de gratificar, uma tira do cofre, a ou- quando os benefícios são feitos para comprar a benevolên-
tra da virhJde; e a largueza que se pratica à custa dos bens cia, não se ganha tanto o zelo daqueles aos quais se deu
familiares exaure a própria fonte da benignidade. Assim, a quanto o ódio daqueles aos quais se tirou 11 • 55. Por isso, os
benignidade é tolhida pela benignidade, de sorte que, bens familiares nem podem ser preservados de modo que
'
' quanto mais numerosos forem aqueles em quem a empre- a benignidade não apareça nem malbaratados com todos.
gares, menos o serão aqueles em quem deixarás de fazê-lo. Tenha-se aí medida, avaliada segundo os recursos disponí-
53. Todavia, os que se mostram generosos nos serviços veis. Devemos lembrar sobretudo o que disseram tantas
prestados, isto é, por virtude e dedicação, logo de início vezes os nossos antepassados e jã ganhou a condição de
disporão de auxiliares para fazer o bem, tanto mais nume- provérbio: "A largueza não tem fundo." Com efeito, quem
rosos quanto maior for o número daqueles a quem houve- serã comedido quando o mesmo é aquilo que uns juntaram
rem beneficiado; depois, pelo hábito da beneficência, esta- e outros procuram?
rão mais preparados e como que mais exercitados para aju- XVI. Há dois tipos de largueza: uma a dos pródigos,
da: a muitos. outra a dos liberais. Os pródigos gastam dinheiro em ban-
Numa famosa carta, ?ilipe acusa o filho Alexandre de quetes, distribuição de carne, espetáculos de gladiadores e
ter aliciado a benevolência cios macedônios co:n larguezas. jogos, além de todo o aparato das caçadas circenses, coisas
"Que motivo infeliz", diz ele, "te arrastou a essa esperança, pelas quais deixarão uma recordação breve ou nula. 56. Os
para que julgasses que te seriam fiéis os que corrompeste liberais são os que salvam, com seus próprios bens, as víti-
com dinheiro? Acaso fazes isso para que os macedônios te- mas dos ladrões, assumem as dívidas dos amigos, ajudam
nham em ti não só um rei, mas também um servidor e pro- no dote das filhas deles, levam socorro a quem necessita
vedor?" Bem disse "servidor e provedor", pois isso é vergo- adquirir ou aumentar seu patrimônio12 .
nhoso para um rei. Melhor ainda quando declarou que a
largueza é uma "devassidão": de fato, aquele que a recebe 51. O exemplo de Alexandre, que se tomaria rei. obscurece a questão,
se torna pior e mais ansioso para recebê-la sempre. 54. Is- que trata da liberalidade à cmta de recursos próprios. Ora, Clcero pens·<~ em
homens como César e Sila, os quais se valiam de sua posição política para
so disse ele ao filho, mas julguemo-lo Ur.l preceito para to- aumentar a fortuna pessoal e, assim, comprar apoio. Ma~~ adiante, em 72-85,
dos. Por isso, não se duvida que a benignidade feita de tra- ele discute a liberalidade, em caráter oficial, à custa do dinheiro público.
balho e dedicação seja mais honesta, mais notória e talvez 52. Cícero distingue a extrav-<~gância, isto é, os gastos com divertimentos
mais útil a um maior número. públicos destinados a agradar à multidll.o (56-60). da liberalidade, i8to é, os
gastos para ajudar pe~oas (61-4). Kote-se que o resgate pago a bandidos. em
Algumas vezes, todavia, convém fazer distribuições, e ger-JI piratas nessa época (p. 97, nota 40), surge como ocorrência coc·.~.m
tal tipo de benignidade não deve ser totalmente repudiado; (igualmente em II.63Y Quando jovem, Júlio César foi capturado por )ÚUtas .

. ·, _.

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Assim, admiro-me do que veio à mente de Teofrasto esplendor no cargo de edil'6• Assim, também Públio Crasso,
no livro que escreveu a respeito das riquezas, no qual há que era rico tanto pelo riome quanto pelos bens, desempe-
muitas coisas brilhantemente ditas, mas este absurdo: insis- nhou essa função oferecendo grandes espetáculos; pouco
te demasiado no elogio da magnificência e da preparação depois, Lúcio Crasso cumpriu uma edilidade magnificentís-
dos divertimentos populares, e julga a possibilidade de fa- sima com Quinto Múcio, o mais moderado de todos os ho-
zer tais despesas a vantagem de ser rico! A mim me parece mens; mais tarde, Caio Cláudio, filho de Ápio, e muitos ou-
bem maior e certo c fruto da liberalidade de que apresen- tros como os Lúculos, Hortênsia e Silano; e, :10 meu consu-
tei alguns exemplos. Quão mais grave e acertadamente nos lado, Públio lêntulo venceu a todos os predecessores. Este
adverte Aristóteles para que não ::;.dr'niremos as efusões de foi imitado por Escauro. Porém, os mais magnificentes fo-
dinheiro feitas para manipular a multidão! 5; "Aqueles que ram os espetáculos de Pompeu em seu segundo consula-
estão sob assédio", diz ele, "se comprassem por uma mina 54 do>7. Em todos eles, percebes o que me agrada.
um sextário de água, isso nos pareceria sem dúvida incrível XVIT.58. Deve-se, porém, evitar a suspeita de avare-
e todos se espantariam; mas, se prestarmos atenção, dare- za. A Mamerco, homem riquíssimo, o não-desempenho da
mos razão aos necessitados. Nos esbanjamentos exagera~ edilidade impediu o consulado. Se o povo o quer, os ho-
dos e gastos infindos nada nos admira muito, especialmen- mens bons devem fazê-lo, se não por vontade própria, ao
te quando não se auxilia um necessitado nem se aumenta menos por aprovação, segundo suas possibilidades- como
sua dignidade; e mesmo aquele deleite da multidão dura nós próprios fizemos - e quando alguma coisa -maior ou
pouco, pois vem de gente fútil em quem a lembrança do mais útil for obtida graças às distribuições populares. Os
prazer morre com a saciedade." 57. E conclui, com muita almoços de Orestes nos passeios públicos, sob o nome de
propriedade: "Isso é grato às crianças, às mulherzinhas, aos décimas, valeram-lhe grande honra. E de Marco Seio acaso
servos, aos homens livres muito semelhantes a servos>>; mas, se disse que, viciosamente, tenha dado ao povo um módio
em um homem grave, ninguém que pondere com acerto por um asse em meio a grande escassez? Na verdade se li-
pode achar apropriado semelhante comportamento, embo- vrou de uma renhida e persistente Lrtveja com despesas
ra ele ocorra com freqüência." nem torpes, visto que era edil, nem excessivasS!I. Mas, há
Contudo, sei que em nossa cidade, já nos bons tempos,
esperava-se que os melhores homens se superassem em
56. Os edis se encarregavam do cotidiano da cidade ~ ruas, mercados,
santuários ~ e do controle de incêndios. Também exerciam alguma autorida-
53. O livro de Teofrasto, Sobre as 1iquezas, perdeu-se. Em II.6o outro de judiciária e organizavam os jogoS e festivais públicos (ludl). Havia uma
peripatético, Demétrio de Falera, é citado. e toda a discuss~o de 56-60, cf. 65, verba pública para isso, mas aqueles que estivessem no cargo podiam gastar
com sua ênfase no caminho da mediania, tem matiz peripatético (ver "Introdu- sornas adicionais. Além disso, promoviam diversões, particularmente comba-
ção", pp. XVI-XVIII). tes de gladiadores, às suas próprias custas.
54. Urna mina, para dar uma idéia de seu valor no século-V, era a quan- 57. Cônsul pela segunda vez em 55 a.C., Pompeu construiu o primeiro
tia que os jurados atenienses recebiam do Estado para cobrir sua subsistência teatro permanente de pedra em Roma (cf. II.6o) e ofereceu jogos faustosos.
por duzentos dias. )lote-se que n~o foram jogos oficiais, pois Pompeu não era ent~o edil.
55. Aristóteles achava que havia escravos por ru~tureza, mas não afirma- 58. O asse era a menor moeda de bronze utilizada em Roma. O preço
va que a condiç~o social real coincidia sempre com as distinçàes ID!turais (Po- estabelecido por Seio era baixo: quando a venda de trigo subsidiado pelo
lítica I.1254a14-1255b16). Portanto, haveria homens livres de car;l.ter servil. governo (ver p. 115, nota 7tJ, interrompida por Slla em 81 a.C., foi retomada em

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pouco, com grande honra para nosso Milão, aconteceu que, vas por causa de Pompeu, mas os muito doutos são contrá-
comprando gladiadores pela causa da república, a qual de- rios a semelhantes empreendimentos, ~orno o próprio Pa-
pendia de nossa segurança, ele sufocou todos os crimes e nécio a quem muito sigo (não traduzo) e Demétrio Falério.
furores de Públio Clódio59 • Então, o motivo da distribuição que censura Péricles, o primeiro homem da Grécia, porqu~
é a necessidade ou a utilidade. empenhou tanto dinheiro nos fan1osos Propileus<~;. Mas
59. E também nessas coisas é ótima a regra da media- sobre esse tipo de gastos se discutiu minuciosamente nos
:H:
nia6n. De fato, Lúcio Filipe, filho de Quinto, homem dé agu- livros que escrevi Da republica 6'.
do engenho e ainda por cima famoso, costumava vanglo- . Assim, todo motivo para tais larguezas é vicioso pelo
riar-se de ter obtido as maiores distinções sem fazer nenhu- ttpo e necessário pelas circunstâncias, devendo entao ser
ma distribuição. O mesmo diziam Cota e Curião. A nós tam- acomodado às próprias possibilidades e moderado pela
bém é lícito nos vangloriar de algum modd1 , pois, em vista mediania.
da multiplicidade de honras que conseguimos em nosso xvm.61. Às larguezas geradas. pela liberalidade, não
ano, com unanimidade de votos - o que não aconteceu a devemos ficar apegados do mesmo modo em circunstân-
nenhum daqueles que há pouco mencionei -, o gasto da cias diferentes 61 • Um é o caso daquele que é premido por
edilidade foi eXJgUo 62 • urna calamidade e outro o daquele que procum coisas me-
60. Os melhores gastos são com muralhas, estaleiros, lhores, sem que nada lhe seja contrário. 62. A benignidade
portos, aquedutos e todas as obras de utilidade pública. deverá privilegiar aqueles que estão sujeitos à calamidade,
Embora o que é dado no momento, cómo que na mão, seja a não ser que, por acaso, sejam merecedores dessa mesma
mais agradável, posteriormente aquelas coisas o são mais. calamidade. Todavia, em relação àqueles qt1e desejam ser
Teatros, pórticos, templos novos, desaprovo-os com reser- auxiliados, não para evitar a aflição, mas para ascender a
um posto mais elevado, de nenhum modo devemos ficar
totalmente surdos a eles, mas aplicar julgamento e diligên-
73, seu preço um ano depois chegou provavelmente a 6 1/3 asses por medi-
da. O desabastecimento era provocado pela pil·ataria ou a guerra. "Visto que
-~~- ·, cia para discernir os idôneos. Disse brilhantemente Ênio:
era edil"' alude à suspeita que tais distribuições desperrzvam quando feitas por
alguém que m1o estava em posiçào oficial. Coisas bem-feitas, malcolocadas, julgo malfeitas.
')9. Milão, recorrendo à violência como trib>.mo (não edil) em 57 a.C.,
contra seu velho inimigo Clódio, que exilara Cícero, teria agido em prol do
Estado, acp.l.i identificado com a pessoa de Cícero. Por irn.plicaçào, ele desa-
prova os portentosos jogos que Milão ofereceu mais tarde, em 55-4. 63. A entrada do P~rtenon, na Acrópole de Atenas, constn.1ícla na dêca·
60. Ver p. 45. nota 89. da de 440 a.C .. foi realmente criticada na época, mas porque nela se aplicou
61. A declaração de Cícero não envolve seu fracasso na tentativa de al- o tributo que Atenas recolheu dos aliados com o propósito declarado de mú-
cançar o con.~ulado, fracasso que também Cota experimentou. As "maiores tua proteção contra os pe1·sas.
distinções" são a pretura e o consulado. Talvez Cícero queira dizer que os ou- 64. A passagem, provavelmente do quinto livro, se perdeu.
tros três não ofereceram jogos, presumivelmente porque nunca foram edis, 65. Em 1.42, Cícero apresenta, do ponto de vista da honestidade, três
ao pac;so que ele os ofereceu (cf. Verr. V.36). principio.~ para a liberalidade. Introduz os mesmos três princípios qllando a
62. Qcero foi eleito pretor e cônsul, pela Assembléia Cenn1riata, com a '-·''
'j, disL""Ute do ponto de vista da utilidade: o ato de dar não pode prejudinl:" nin·
menor idade possível segundo a lei de Sila, e pela unanimidade das centúrias guém (1164, !1.68, Jl. 73, li. 78-9), nào deve exceder os meios de cada um (I!. 55.
que votaram quando ele alcançou a maioridade e foi dechtrado eleito. ll.64) e deve estar de acordo com a condição do receptor CII.61-3, II.69-71)

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- - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ __
---------------------LÍ~Oll---------------------

63. E o que foi feito para um homem bom e agradeci- de liberalidade. Com efeito, poder usar a liberalidade com
cio gera frutos tanto nele quanto nos demais. De fato, se segurança, sem se despojar do patrimônio, é a maior vanta-
isenta de exageros, a liberalidade é muito apreciada e por gem do dinheiro.
isso a maioria a louva veementemente, pois a bondade de Corretamente, também a hospitalidade foi elogiada por
um grande homem é o refúgio comum de todos. Deve~se, Teofrasto, pois é.muito decoroso, segundo me parece, abrir
pois, trabalhar para que com tais beneficios atendamos ao as casas de homens ilustres a homens ilustres, e também
maior número possível, dos quais a memória passe aos fi- um ornamento para a república que estrangeiros, graças a
lhos e descendentes, impedindo-se assim que também eles esse tipo de liberalidade, não passem privações entre nós.
sejam ingratos. Com efeito, todos odeiam aquele que não E é aL."1da mais útil, para aqueles que desejam honestamen-
se lembra de um benefício e julgam mesmo que tal injusti- te obter recursos e favor, :ecorrer a hóspedes escolhidos
ça, por desencorajar a liberalidade, é feita contra si próprios; entre os povos estrangeiros. Na verdade, Teofrasto escreve
aquele que a comete é inimigo comum dos pequenos. que Cúnon, em Atenas, hospedou todos os seus compatrio-
É útil também à nação redimir da escravidão os cativos tas da Lácia; dispôs e instruiu seus caseiros a que tudo
e enriquecer os mais pobres; e que isso costumava ser prati- aprestassem para qualquer deles que se dirigisse ã sua casa
cado por nossa ordem, vemo-lo abundantemente registrado de campo67 •
no discurso de Crasso66 • Logo, antepon..>-10 o costume da be-
XIX.65. Os benefícios produzidos por um serviço e
não por largueza são prestados muitas vezes a toda a na-
nignidade à largueza dos espetáculos; aquele é próprio de ção, outras aos particulares. Pois dar apoio em justiça, au-
homens graves e eminentes, esta, por assim dizer, de adula- xiliar por meio de deliberação e ser útil ao maior número
dores da multidão que afagam a futilidade com o prazer. possível graças a esse tipo de conhecimento vale muito
64, Ao dar, convirá ser generoso; ao exigir, não ser para ampliar a influência e o prestígio. Assim, entre as di-
acerbo. No trato de todos os negócios - compra, venda, lo- versas características notãveis de nossos antepassados, o
cação, questões de limites -, mostrar-se eqüitável, flexível, que de melhor eles estabeleceram foi terem sempre em
pronto a ceder parte do direito próprio, mas com antipatia grande honra o conhecimento e a interpretação do direito
aos processos tanto quanto for lícito - e não sei se até um civil. Antes da confusão dos tempos que correm, os princi-
pouco mais do que for lícito. De fato, não apenas é liberal pais cidadãos preservavam esse saber; agora, como todas
ceder um pouco em relação aos nossos direitos como, mui- as honras, como todos os graus de dignidade, também foi
tas vezes, é vantajoso. Deve-se manter o controle dos bens destruído o esplendor de tal conhecimento, fato tanto mais
familiares, os quais por certo seria vergonhoso dilapidar, indigno quanto ocorreu estando ainda vivo aquele que a
mas de tal forma que se afaste a suspeita de avareza e falta todos os predecessores, a quem igualava em dignidade,
vencia facilmente em sabet'8 • Esse serviço, portanto, é
66. O discurso mencionado foi proferido por Lúcio Licinio Crasso em 106
a.C., em apoio do projeto de Servílio Cépio de abolir o monopólio eqüestre 67. Sobre Teofrasto, cf. 11.56. Os demos ("distritos") eram divisOes da5
dos júris, depois que muitos senadores eminentes foram condenados em 110 dez tribos de Atenas.
a.C. diante do tribunal Mamiliano. Crasso teria afirmado que, pelos seus setvi- 68. Suipíclo Rufo, c6nsul em 51 a.C .• amigo e correspondente de Cícero.
ços ao Estado, os senadores mereciam melhores oportunidades na justiça. é aqui elogiado anonimamente porque ainda vivia. Foi não apenas advogado

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- - - - - - - - D o ' " " " " ' ; _ _ _ _ _ _ __ -----------Livro li-----------

grato a muitos e conveniente para aliciar os homens com 68. Não é necessário aconselhá-los- pois é evidente-
beneficios. a cuidar para não ofender a uns quando desejam ajudar a
66. Contígua a essa arte está a mais grave, mais agradá- outros. Muitas vezes, lesam aqueles a quem não devem ou
vel e mais imponente capacidade de discursa~. O que, com aqueles a quem não convém. Se são imprudentes, é por
efeito, é preferível à eloqüência, dada a admiração dos que negligência; se são ignorantes, é por temeridade. Deves até
ouvem, a esperança dos indefesos ou a gratidão dos que desculpas àqueles que ofendes sem querer, e quantas fo-
são defendidos? Assim, também a ela foi dado pelos nossos rem .necessárias, para que fique claro que não poderias ter
antepassados o primado da dignidade entre as atividades ci- agido de outro modo e que irás reparar tudo com outros
vis. Do homem eloqüente, que trabalha por escolha própria trabalhos e bons ofícios.
-segundo os costumes pátrios'~-, defende de bom grado e XX.69. Mas, embora ao ajudar os homens seja comum
gratuitamente as causas de muitos, os beneficios e patrocí- observar-lhes os hábitos ou a fortuna, na verdade, costu-
ma-se dizer ao vulgo que na dispensa de benefícios consi-
nios têm grande repercussão.
deram-se os hábitos e não a fortuna dos favorecidos. Bela
67. O assunto, também neste ponto, me aconselharia a
arenga, mas quem realmente haverá que, ao executar um
deplorar a interrupção, para não dizer a morte da eloqüên-
trabalho, não anteponha ã causa de um homem pobre e
cia, se com isso não parecesse lamentar algo que diz res-
bom o favor de um personagem afortunado e poderoso?
peito a mim mesmo. iodavia, desaparecidos tais oradores,
Sim, de quem a remuneração vier mais fácil e rápida, a
vemos que em poucos há esperança, em menor número
esse nossa vontade está como que mais propensa. Deve-
capacidade e em muitos audácia!
mos, porém, investigar qual seja a natureza das coisas.
Embora nem todos possam - na verdade, são raros -
Certamente aquele pobre, sendo bom, mesmo que não
ser peritos no direito ou eloqüentes, é lícito ainda assim
possa devolver o favor, pode ser grato. Bem disse alguém:
mostrar-se útil a muitos, solicitar beneficios, propiciar juízes
"O dinheiro, quem ficou com ele não o devolveu, quem o
e magistrados, zelar pela causa alheia, interrogar juriscon- devolveu não ficou com ele; c favor, quem o tiver devolvi-
sultos ou defensores. Os que isso fazem alcançam reconhe- do ficará com ele, quem ficar com ele o devolverá." Aque-
cimento e sua diligência se torna amplamente conhecida. les, porém, que se julgam ricos, honrados e felizes não
querem obrigar-se por um benefício. Pelo contrário, acham
e mestre de leis como escreveu bastante. acrescentando novas qualidades ló- até que eles mesmos é que prestaram um favor quando,
gicas e sistemáticas ã discussão jurídica graças il. sua proficiência em dialética embora muito hajam recebido, suspeitam que se espera
(Brutus 152-3). Em Pm Murena, Cícero ridicularizou sua preocupação com as algo deles em troca; e para eles é uma verdadeira morte re-
minúcias legais, mas retratou-se mais tarde. Ver "Introdução", pp. XII-XIV.
69. Sendo a or-.atória forense a mais importante na política. os estadistas
correr a um patrocínio ou ser chamado de clierite71 • 70. Aque-
de Roma precisavam entender de leis. Aprendiam ouvindo os pareceres juri-
dicO.'l dos maiores advogados, como Cícero fez com Quinto Múcio Cévola, o
áugure. 71. Embora as antigas relações formais e heredit:l.rias de cfíentela (gra-
70. Embora a Lei Cmcia de 204 proibisse aos advogados receber hono- ~-asàs quais os homens pobres e de baixa condição eram protegidos pelos
rários ou presentes, havia inúmeras formas de pagamento indireto. Cícero poderosos em trocrt de detenninados serviços) possam ter se afrouxado ao
recebeu uma bibliote<:a em testamento e, de outra feita, um grande emprésti- fmal da república, o fato de ser esta a única alusão de Cícero ao dier.teiismo
mo para comprar uma casa. mostra sua falta de interesse por contatos com pessoas socialmente inferiores

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----------LivroU----------

!e homem fraco, no entanto, quando algum serviço lhe te- XXI. 72. Como se falou dos benefícios referentes aos
nha sido prestado, julga que o mereceu por si e não por sua particulares, deve-se discutir agora aqueles que dizem res-
fortuna; não apenas àquele de quem mereceu, mas tam- peito a todos em geral e também à nação. Ora, entre os be-
bém àqueles de quem espera- pois necessita de muitos-, nefícios, há aqueles que interessam aos cidadãos tomados
esforça-se por parecer agradecido sem aumentar seus pró- em conjunto e aqueles que atingem os particulares isolada-
prios préstimos por palavras, se acaso beneficia alguém, mas mente - e est.es são os mais apreciados. Se poSsivel, traba-
até minimizando-os. Note-se que, se defenderes um homem lhemos por ambas as coisas e não menos pelo que seja ade-
opulento e afortunado, apenas nele ou talvez em seus fi- quado aos particulares, mas de tal forma que isso se revele
lhos permanece a lembrança do favor; se, pelo contrário,
útil ou não prejudique a república. Assim, a grande distri-
defenderes um pobre, mas honesto, todos os homens pro-
buição de cereais de Caio Graco exauriu o erário, a mode-
bos e humildes,- que constituem a grande maioria da popu-
lação, verão nisso um auxílio para eles próprios. rada de Marco Otávio foi aceitável pela república e neces-
71. Por isso, julgo melhor prestar um benefíció aos sária à plebe-l, logo, salutar para uma e outra.
bons do que aos afortunados. Deve-se tentar sobretudo 73. Em primeiro lugar, aquele que administrar os as-
ajudar todo tipo de pessoa; mas, em caso de conflito, certa- suntos públicos deverá conservar o que pertence a cada um
mente convém aplicar o dito de Terrústocles que, consulta- e não promover, por ação pública, a redução dos bens dos
do sobre a qual dos dois daria sua filha, a·um homem bom particulares. Mui perniciosamente se houve Filipe no tribu-
e pobre ou a um menos probo e rico, replicou: "Eu prefiro nato quando apresentou a lei agrária - cuja rejeição tolerou
u:.n homem sem fortuna a uma fortuna sem homem." Mas facilmente nisso se mostrando bastante moderado -, ao
os costumes foram corrompidos e depravados pela admira- proferir ta~to demagogias quanto este desaceno: "Nào há na
ção das riquezas; a nós, porém, que importa o montante da cidade dois mil homens que possuam alguma coisa."'·'
riqueza alheia? Talvez ajude àquele que a possui. Isso nem
Discurso fatal, que alude ã igualdade dos homens. E haverá
sempre, mas admitamos que sim. É sem dúvida mais útil,
flagelo maior? Pois justamente por esse motivo, para que
mas será mais honesto? Se for também um homem bom,
que as riquezas não o impeçam de ser auxiliado, apenas
não o ajudem a sê-lo; que o julguemos não pelo que ele 72. Em 123 a.C., Caio Gmco introduziu uma lei que permitia a todo
tem, mas pelo que ele é. ddadào do sexo masculino, de nascimento livre, receber mensalmente cinco
Último preceito com relação ã prestação de benefícios medidas de trigo (menos que as necessidades de uma família) pelo preço
subsidiado de 6,5 asses por medida. Isso, juntamente com o estabelecimento
e serviços: não lutes contra a eqüidade nem a favor da in-
de armazéns do Estado, visava a diminuir as dificuldades causadas pela flu-
justiÇa. O alicerce da recomendação e da fama pública é a jus- tuaç:io de preços por meio do suprimento. Em data desconhecida. Otávio al-
tiça, sem a qual nada pode ser louvável. terou a disposiçào, aumentando o preço ou diminuindo o número dos bene-
ficiários, ou ambas as coisas (cf. 11.58). Nos tempos de Cícero, a doa~'io esta-
va liberada.
(ver "Introdução", pp. XXV-XXVID. E mesmo aqtli ele se refere apenas ao GlSO 73. Sobre os poptdares, ver p. 43, nota 85. Quinto Márcio Filipo. mais rarde
marginal de relaçoes formalmente iguaL~, mas defacro desiguais, onde o eufe- arquiconservador. fez esse dL"Curso, provavelmente para conquistar populanda-
mismo pm-a citens ew amicus (amigo). A persistência de $emelhante atitude é de, em 104 ~1 .C. Grande parte da população italiana ainda não goz~!VU da dcb-
demonstrada por Sêneca em !À! benc:{kiis 2.23. clania, mas ~t de Roma deverill ser de aprOl'::imadamente 500 mil pessoas.

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- - - - - - - - - - - D o s deveres _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----------Livro l i - - - - - - - - - -

conservassem seus bens, é que as repúblicas e as cidades manos começassem a aceitar gratificaç6es! Não os deLxaria
foram constituídas. Embora por natureza os homens se con- dominar por muito tempo." Teria de esperar muitos séculos,
greguem sob o comando de um chefe, procuram o amparo com efeito, pois somente há pouco esse mal invadiu a re-
das cidades na esperança de custodiar seu patrimônio:". pública"". Considerando que havia tanto vigor em Pôncio,
74. Convém igualmente, o que muitas vezes acontecia muito me alegro por ele ter vivido naquela época. Não se
entre nossos antepassados por causa da penúria do erário passaram ainda cento e dez anos desde que Lúcio Pisão
e da assiduidade das guerras, trabalhar para que não se ins- apresentou sua lei sobre extorsão; antes, não havia nenhu-
titua um imposto; e, para tanto, é preciso prever tudo com ma. Mas depois houve tantas leis, cada vez mais rigorosas,
antecedência7'. Mas se surgir tal necessidade em uma re-
tantos acusados, tantos condenados'\ uma tal guerra na Itá-
pública (prefiro dizer isso a pressagiá-lo para a nossa, pois
lia provocada pelo medo dos julgamentos, tais pilhagens e
não dlscuto a respeito dela e sim de todas), será imperioso
fazer com que os cidadãos entendam que devem ceder à saques de aliados, ao arrepio das leis e dos tribunais7<J, que
emergência se desej~rem ser salvos. Os que administrarem foi à fraqueza alheia e não ao nosso valor que devemos nos-
-~·
' os assuntos públicos deverão cuidar para que haja nela so poderio~ . 0

abundância de bens imprescindíveis. Não é o caso de dis- :xm.76. Panécio louva o Africano por ter sido desin-
cutir como se deve e se costuma adquiri-los, uma vez que teressados). E por que não louvá-lo? Nele, porém, havia
se trata de algo evidente-(,. Esse ponto apenas precisou ser
aflorado. 77. Incidente das CJUéL~ GuerraS Samnitas do século!\' e COlll.<;ÇO do lll.
75. O principal, em toda administração do negócio e Cícero p~rece atribuir à origem do mal~~ data de 149 a.C. (ver nota 78 ab:\L>;ü).
da função pública, é que mesmo a menor suspeita de cupi- menos de 150 anos após a captura de P6ncio em 291 a.C. lsso se ap:·oxima de
dez- seja afastada. "Ah", disse Caio Pôncio Sarnnita, "se a uma data tmdicional para o dedínio moral romano, isto é, após a destn.üçào
de Cartago em 146, embora muitos o situem antes.
Fortuna me fizesse nascer naqueles tempos em que os ro- 78. Cento e dez anos antes de 44 a.C. é um cálculo arredondado pam
149 a.C., data ilil Lei Calpúrnia d!i! ropetundts, a primeira de uma série de dis-
po8ições contra '.! extorsão dos povos subjUR".Jdo~ por Roma e (talvez) cida-
74. Ver 1.158, notu 137. dãos. Originalmente, a pena 5<: limttav<J. à devolução do dinheiro, mas depois
75. O imposto sobre propriedade (tiibutum), recolhido pelos cidadãos. fon1m acrescentadas multas e outras sançóes. A última dessas leis, :1provada
foi abolido em 167 a.C., depois que a conquL>ta da !VIacedélni<l permitiu a por Júlio César em 59, tinha mal~ de cem cláusulas.
Ronl<l. e à ltália sustentarem-se sem o conL-urso dos súditos de Roma CII.76}. 79. A causa imediata da guerm de 90-88. pela qual os ali;ldos italianos
Como n<lo houve outro imposto que o substituísse, e me~mo as t<~xas indire- de Roma obtivo::ram ~~ cidadania. foi o fracasso do tribuno livio Dn1so em
tas fossem encaradas com desaprovação, os comandantes vitoriosos tinham legislar em seu favor. A opos1çào feita a ele foi em pane provocada por seu
certa obrigação de g-Jstar seus butin.~ em obras públicas, e os ricos, de distri- projeto de abolir a imunidade da ordem eqúestre às al-usa~Ues de extorsão.
buir larguezas. D~tí a atlrmaçào implaus!vd de Cícero de que a Guerra Itálica teria sido cau-
76. M~s em 85 hã uma indicação de como fazer isso. B;tS!Camente, o sada pelo medo dos julgamentos.
dinheirO deveria vir de fora, como no caso de Árato de Sidii.o (81 ). O plano 80- V<:r p. 92, nota 32. Os maus-trato~ infligidos aos povos S'-lbjugados
dos Gracos de utilizar o legado do rei Átalo de Pérgamo pm-a financiar se>.• sufocamm sua boa vontade e destruínlm a fibra moml de Roma. Assim. se-
programa fundi5rio pode rer sido parecido, mas Cícero jamais <!provaria tal pro- !<1-mdo Cícero, Roma teria perdido seu império não foss<: a fraqueza d;lqudes
granl.;\ nem o tksafio ao poder senatorial represen~Jdo por sua utiíiz;1çào da le- povo5 e, possivelmente, dos impérios rivais.
gislação popular para garantir o legado. tll. Ver 1.90 e ·'Jntroduçào'", pp. XXI-XXII.

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Livro/li

1.1. Sobre Públio Cipião, Marco, meu fllho, aquele que


tem sido chamado o primeiro Africano, Catão, que foi qua-
se seu contemporâneo, escreveu que costumava dizer que
nunca estava menos ocioso do que no ócio nem menos
sozinho do que na solidão 1 • Magníficas palavras, por certo,
e dignas de um homem grande e douto! Por elas se fica
sabendo que tanto no ócio pensava nos negócios quanto,
na solidão, falava consigo mesmo e nem sempre precisava
da conversa alheia. Assim, estimulavam-no duas coisas que
a outros costumam trazer abatimento: o ócio e a solidão.
Gostaria de dizer o mesmo, mas, se é verdade que não
posso alcançar pela imitação tamanha superioridade de ca-
rãter, pela vontade ao menos me aproximo disso. Pois,
afastado da vida pública e do fórum por armas ímpias e
pela violência, busquei o ócio e, deixando Roma pelos meus
domínios, encontro-me freqüentemente sozinho'. 2. Não se

1. Ver p. 52, nota 100. Em 1.4, Cícero joga com a oposição, em latim, dos
termos negotium (negócio) e otium (ócio). Este último tem aqui três senti-
dos: inteJValos de lazer (como os de Cipião), ausência total de atividade pú-
blica (como a imposta a Cícero) e estabilidade politica (o "descanso da cida-
de'' de 3).
2. Cicero mudou-se de uma de suas vilas para outra, por questão de se-
gurança, prtrneiro entre 7 de abril e o final de agosto de 44, çorque sua aber-
ta aprovação ao assassinato de Cêsar lhe granjeara a cólera dos adeptos do

127
----------Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - __________ Livro!II----------

pode, porém, comparar semelhante ócio ao do Africano, entregamo-nos zelosamente ao oficio de escrever. De sorte
nem a minha solidão ã del.e. O Africano, com efeito, dei- que em IXJUquíssimo tempo publicamos mais obras do que
xando a carreira pública após prestar belíssimos serviços, na época em que a república estava de pé;.
ocasionalmente repousava e, longe das aglomerações e do ll.5. Toda a filosofia, meu caro Cicero, é fecunda e fru-
contato dos homens, recolhia-se à solidão como a um por- tífera, nela não há parte inculta ou abandonada. Entretanto,
to. ]á o meu ócio se deve à falta de negócios e não ao dese- nenhum de seus domínios é mais rico e produtivo que o
jo de repousar. É que, extinto o Senado e suprimidos os tri- dos deveres, dos quais decorrem os preceitos para uma
bunais, que faríamos de honroso na cúria ou no fórurn?J vida coerente e honesta. Eis por que, embora dos lábios de
3. A,ssim eu, que vivi outrora em meio à maior afluê:J.- nosso amigo Cratipo, o primeiro dos fllósofos atuais, ouças
cia e sob os olhares de meus concidadãos, hoje me escon- sem cessar, creio-o eu, estes ensinamentos, ainda assim cui-
do tanto quanto posso e estou o mais das vezes solitário, do ser vantajoso que eles te alcancem de todos os lados e
para evitar a sanha dos .criminosos que enchem todos os que teus ouvidos, se possível, nada mais escutem. 6. Quer-
lugares. Isto, porém, aprendi dos doutos: não convém ape- se isso para todos aqueles que pretendem ingressar numa
r::.as, entre os males, escolher os menores, mas extrair o que vida honesta, mas para ti talvez mais. Trazes contigo, com
possa haver de bom dos próprios males. Por isso, fruo o efeito, imensa esperança de imitar meus atos, grande espe-
meu ócio - não, é claro, aquele a que deveria dedicar-se rança de alcançar as magistraturas que alcancei e alguma
quem deu repouso ã cidade -, pois suporto uma solidão esperança, quem sabe, de igualar meu nome. Tens sobre
imposta pela necessidade e não pela vontade. os ombros, por outro lado, uma imensa responsabilidade:
4. A meu ver, contudo, o Africano merecia elogio maior. Atenas e Cratipo. Indo até eles em busca das belas artes,
Não subsiste nenhum monumento de seu gênio que ele seria vergonhosíssimo regressar de mãos vazias, desonran-
haja confiado às leti"""dS, ne:J.huma obra de seu ócio, nenhu- do a fama da cidade e do meStre. Assim, tudo o que pl..ide-
ma tarefa de sua solidào. Disso podemos depree.!1der que res fazer em espírito, tudo o que puderes obter com esfor-
aquele homem, por causa da agitaç2.o de sua mente e das ços - se é esforço e não prazer a instrução -, faze-o para
pesquisas que reahzava em pensamento, nunca esteve ocio- vencer e não parecer que, tendo eu tudo posto à tua dispo-
so nem isolado ~Tós, porém, que não possuímos tamanha
4
• sição, faltaste a ti mesmo.
força para vencer a solidão com a especulação silenciosa, Mas isso basta, pois muito e freqüentemente tenho es-
crito para te encorajarfi. Voltemos agora à parte que resta da
ditador, e depois entre meados de outt1bro e 9 de dezembm, apó$ atacar An-
divisão proposta. 7. Foi, pois, Panécio quem, sem contro-
télnio mt Primeira Fl/ípica, a 2 de ~etembro. vérsia possível, dissertou com mais acuidade sobre os de-
3. Sobre essas expressões exager-adas, ver "Introdução"', pp. XII-Xlll.
Antônio cercou o Senado com uma guarda arrru:tda, para impedir tumultos, e
os tribunais n:l.o funcionavam normalmente desde que Bruto e Ci\ssio, dois 5. Para a torrente de obras teóricas escritas a p-<~ltir de 46 a.C., ver "Datas
dos pretores, estawm forn. Principais'", pp. XXXVIII-XXXIX, e tambêm p. 4, notu 6.
4. Afetação de modéstia. Em I.156, Cfcero cla~:amerue toma o partido da 6. V~r "Introdução", pp. XVI-XVIII. e ")Jot"dS Biográficas"', ··TúJio Cícero".
atividade intelectual. que favorece os outros, em detrimento do estudo solitá- O jovem Cícero. escrevendo ao seu estimado ex-escrnvo Tiro, f,da das expres-
rio. Aliiàs, nem sempre as vilas eram solitárias. sôe5 de "boa vontade" do p~i para com ele.

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veres; por isso, fazendo as devidas correções, nós o esta- pintor se atreveu a terminar, na Vênus de Cós. a pa1te que
mos seguindo de preferência. Ele se referiu a três tipos de Apeles deixara inacabada, pois a beleza do rosto tirava a
problemas que os homens costumam examinar quando esperança de reproduzi-la no corpo. Assim também nin-
deliberam a propósito dos deveres. O primeiro, ao hesita- guém continuou o que Panécio omitiu e não completou,
rem quanto a saber se determinada instância é honesta ou em razão do valor superior do que escrevera.
torpe; o segundo, se é útil ou inútil; o terceiro, como distin- ID.ll. Não se pode, pois, duvidar do tirocínio de Pa-
guir o belo e o útil quando o que parece belo entra em nécio. Pode-se, isto sim, discutir se agiu acertadamente ou
conflito com o que parece útil. Sobre os dois primeiros ti- não ao acrescentar essa terceira parte ã determinação do
pos de problemas ele discorreu em três livros, prometendo dever. Pois, quer o honesto seja o único bem, segundo pre-
desobrigar-se em seguida do terceiro, mas sem cumprir a ceituam os estóicos, quer seja o sumo bem, como parece
promessa7 • 8. Disso muito me admiro porque um discípulo aos vossos peripatéticos, sem que todas as outras coisas
de Panécio, Posidênio, escreveu aue ele viveu ainda trinta acumuladas tenham o mesmo pesow, não se deve duvidar
anos depois de publicar aquelas ~bras. E também me es- de que, ãs vezes, a utilidade pode lutar contra a honestida-
panta o fato de Posidônio ter tratado com tanta brevidade de. Assím, aprendemos que Sócrates costumava execrar
esse mesmo ponto, principalmente porque confessou que, aqueles que, por primeiro, haviam separado em pensa-
em toda a filosofia, nenhum outro era tão necessário". mento essas realidades agrupadas pela natureza. Decerto
9. Discordo, porém, daqueles que afirmam que Pané- concordaram com ele os estóicos, pois pensavam que tudo
cio não omitiu esse assunto, mas deixou-o deliberadamen- o que é honesto é útil e não há nada de útil que não seja
te de parte, não devendo absolutamente escrever a respei- honesto.
to porque jamais a utilidade pode lutar contra a honestida- 12. Se, pois, Panécio fosse tal que dissesse ser necessá-
de". Ora, nesse caso, não se sabe se o terceiro tipo da divi- rio praticar a virtude a pretexto de que ela é fonte de utili-
são de Panécio devia ser tratado ou omitido não restando dade, como aqueles que fazem do prazer ou da ausência de
porém, dúvida de que ele o levantou, mas ~ deixou de la~ dor. a medida de seus desejos das coisas11 , ser-lhe-ia possí-
do. Quem, com efeito, e1aborou um plano de três partes e vel afirmar que algumas vezes a utilidade entra em conflito
examinou duas, tem necessariamente a terceira pela frente. com a honestidade. No entanto, como julga que o único
Além disso, o terceiro e último livro escrito prometia falar bem é aquilo que é honesto, e que o acesso às coisas que a
do assunto. 10. Acrescente-se a isso o testemur.ho seguro isso se opõem por certa aparência de utilidade não melho-
de Posidónio, o qual, em carta, escreveu que Públio Rutílio ra a vida, nem sua falta a piora, não quis introduzir uma dis-
Rufo, discípulo de Panécio, costumava dizer que nenhum cussão para comparar o que parece útil com o que de fato
é honesto. 13. Com efeito, o que os estóicos chamam de

7. Cf. 1.9. Clcero cobriu os dois tópicos dos três livros de Panécio nos
Linos I e ll. 10, Ver "Sumãrio", pp. XUI-XLIIL
8. Ver "Introdução", pp. XX-XXI. 11. Cícero alude a Al:istipo e Epicuro, para os quais a finalidade da vid:J.
9. Para a visão dos estóicos, e em particular de Panécio, sobre a relação era o prazer, e a]er6nimo de Rodes, para o qual essa f1nalid:i.de era a a>.t~ên­
entre Q honesto e o útil, ver "Sumário", pp. XLI-XUL cia de dor (cf. IIL116).

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sumo bem - viver de acordo com a natureza - tem, em mi- IV. Portanto os deveres que examinamos nestes livros
nha opinião, este significado: estar sempre de acordo com a são, dizem os estóicos, como que coisas honestas secundá-
virtude e acolher tudo o mais que seja conforme à natureza, rias, próprias não apenas dos sábios, mas de todo o gêne-
desde que não se oponha à virtude 12 • Sendo assim, pensam ro humano. 16. Assim, atraem todos aqueles que possuem
alguns que com justiça essa comparação não foi introduzida uma índole virtuosa. E de fato, quando celebramos os dois
e que nada do tipo havia a prescrever. Décios e os dois Cipiões como homens corajosos, ou quan-
Mas decerto a honestidade, em sentido próprio e ver- do dizemos justos Fabrício ou Aristides''', não pedimos a
dadeiro, só se encontra nos sábios e nunca pode ser sepa- eles exemplos de coragem e justiça próprios de um sábio.
rada da virtude. Naqueles em que a sabedoria não é perfei- Nenhum deles é sábio no sentido que queremos emprestar
ta, nem perfeito o honesto, pode ainda haver semelhanças ao termo''; também não o foram Marco Catão e Caio Lélio,
de honestidade. 14. De fato, os deveres sobre os quais dis- que não obstante goza.r<l!ll a reputaç-d.o e o nome de sábios,
16
corremos nestes livros são chamados "médios" pelos estói- nem mesmo os sete : mas todos, pela prática dos deveres
cos: são deveres comuns, evidentes, que muitos cultivam médios, tinham certas semelhanças com os sábios.
por bondade de caráter e progresso nos estudos. Quanto 17. Por isso, não é lícito comparar o verdadeiramente
ao dever que os mesmos autores denominam ''direito", esse honesto com o útil que se lhe opõe; nem comparar o que
é perfeito e absoluto, ou, como dizem, "Tem todos os nú- em geral chamamos honesto, cultivado por aqueles que
meros" e só se encontra no sábio'l. 15. Mas, quando um desejam ser tidos por homens de bem, com o interesse. A
ato comporta os deveres médios. parece o cúmulo da per- honestidade que nosso entendimento alcança deve ser tào
feição porque o vulgo não nota geralmente o que se afasta preservada e protegida por nós quan:o, pelos sbics. a
da perfeição e, até onde nota, _pensa que nada foi omitido. honestidade própria e verdadeiramente dita. De nenhun:a
O mesmo costuma acontecer com os poemas, as pintums e outra forma se conservará o progresso que porvemur~
muitos outros objetos: os leigos se deleitam e elogiarri obras houver sido feito no rumo da virtude 17 •
que o não merecem porque, creio eu, nelas talvez se- en- Mas tudo isso diz respeito àqueles que, pela observân-
contre algo de bom, próprio a seduzir pessoas ignorantes cia dos deveres, são considerados bons. 18. Quanto aos
que, ao mesmo tempo, mostram-se incapazes de perceber que tudo avaliam pelo proveito e as vantagens, e não lhes
os defeitos das coisas. Mas, devidamente instruídas pelos atribuem menor peso que à honestidade, esses costumam,
conhecedores, renunciam logo a seu primeiro julgamento.

14. A expressão "ou Aristides" pode ser uma interpolação, já que Cícero
12. Essa interpretação da obediência à natureza não é compatível com a parece estar dando apenas exemplos romanos.
visão estóica origin~l segundo a qual viver virtl.JOS~lmeme significa escolher ~s 15. Cf. !.46, 11.35.
coisas de acordo com a runure:w. X os tem;os de~a vis<lo, a virtl.Jde e as coi- 16. Os sete sflbios d·,l Gréci·~, Bias, Quílon, Cleóbulo, Pít:aco, Periandro,
sas concordes com a natureza não podem ser definidas independentemente. Sólon e Tales.
Entretanto. desenvolvünemos n~ visão estóiC".l da viltude e da utilidade torna- 17. Apesar de não aceitarem graus de virtude ou vício, nem patamares
rmn possíveL par.1 Cícero e talvez p~ra Panêcio ames dele, a interpretação intermediários entre eles, os estóicos acreditavam no progresso mOraL A prá-
dada aqui (ver '·Sumiria·, p. XUTJ. tica dos deveres médios poderia habilitar a pessoa de disposição virtuos:; ,;
13. Cf. !.8, nota 17. aperfeiçoar-se,

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_______________ Dw~--------------- _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Livro D I - - - - - - - - - - -

ao deliberar, comparar o honesto com o que julgam útilJR_ taremos do dever se a empregarmos na comparação das
Não se dá o mesmo com os homens bons. Assim, estimo coisas. 20. Essa regra, por outro lado, se conformará ao sis-
que Panécio, quando afirmava que costumamos hesitar nes- tema e aos ensinamentos dos estóicos, e nós a seguimos
sa comparação, queria dizer isto mesmo: ·"costumamos", o nestes livros pelo seguinte motivo: embora os antigos aca-
que não implica termos também a obrigação. Com efeito, é dêmicos e os vossos peripatéticos - que outrora nada mais
muito torpe não só estimar mais o que pareça útil do que o eràm que acadêmicos - prefiram o honesto ao aparente-
que pareça honesto, como ainda comparar essas ·coisas en- mente útil, aqueles para quem tudo o que é honesto pare-
tre si e hesitar er.tre ambas. ce também útil, nada havendo de útil que não seja hones-
Que é então que ãs vezes tende a suscita: dúvidas e to, tratam tais assuntos com mais veemência que aqueles
parece merecer consideração? Creio que se trata, quando para quem pode haver um honesto que não seja útil e um
sobrevém a hesitação, de saber qual a natureza daquilo útil que não seja honesto 2l. Quanto a nós, nossa Academia
que se examina. 19. Acontece freqüentemente, em virtude nos dá enorme liberdade: o que quer que ocorra de mais
das circunstâncias, que o que costumamos considerar torpe provável, isso por direito podemos defender". Mas volte-
a maior parte do tempo deixa de parecê-lo de súbito. De- mos à regra.
mos um exemplo vigoroso: haverá crime maior que matar, V.21. Portanto, tirar de alguém alguma coisa e aumen-
não apenas um homem, mas um homem amigo? .Mas, em tar a própria comodidade com o incômodo alheio é mais
conseqüência, será culpado o que assassinou um tirano, contrário à natureza que a morte, a pobreza_. a dor e todos
embora seu antigo? Certamente assim não _~:>ensa o povo ro- os outros males que podem afetar o corpo ou o patrimô-
mano, que julga esta a mais bela das ações preclaras. Nes- nio. Pois, para começar, isso suprime a vida em comum e a
se caso, terá a utilidade suplantado a honestidade? Ao con- sociedade. Se, com efeito, cada qual despojar Ol: prejudicar
trário, a honestidade seguiu-se ã utilidade' 9• o outro em benefício próprio, inevitavelmente se romperá
Assim, para julga.rmos com acerto se alguma vez aqui- a sociedade do gênero humano, que é a mais conforme à
lo que dizemos honesto parece lutar com aquilo que dize- natureza. 22. Se um membro imaginasse robustecer-se à
mos útil, uma regra deve ser estabelecida20 • Jamais nos afas- custa das forças do membro vizinho, o enfraquecimento e
a morte de todo o corpo seriam inevitáveis; assim também,
18. Esses homens reaparecem em IU.26 e 37. se cada um de nós quiser apossar-se dos bens alheios e
19. O tiranicfdio é o exemplo favorito de Cícero para um dever em cir- arrancar o que puder dos semelhantes, a ruína da socieda-
cunstil:ncias especiais (cf. III.32). Alude claramente ao assassinato de César,
de e da comunidade humana se seguirá fatalmente. Que
pois muitos dos envolvidos seriam seus "amigos íntimos". Cícero exagera a
unanimidade do povo romano. cada qual prefira adquirir para si a adquirir para outrem os
20. O termo formula, traduzido por "regra", é tirado do dlreito romano. bens necessários ã vida, admite-o a natureza; o que ela não
Nas causas civis o pretor {ou outro magistrado), após ouvir a.s partes, apresen-
ta a questão concreta a ser estabelecida pelo juiz e a decisão legal decorrente
dos fatos. Cf, a doutrina retórica do status quaestíonum. De modo similar, a . 21. Ver "Sumário", pp. XLII-XUII. A comparação das visões estóica e
formula diz que os fatos devem ser determinados antes que se possa tomar peripatética reaparece em III.35. Quer o honesto seja o bem único (estóica)
urna decisão correta sobre o modo de agir, quando estã envolvida a utilidade ou o maior (peripatética), sempre será útil.
<lparente. 22. Cf. p. 7, not:J. 14.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - - - - - - c - - - - - - L i v r o l f f _ _ _ _ _ _ _ _ __

admite é que aumentemos, com os despojos alheios, nos- dância de riquezas, com força e beleza excepcionais. Por
sas propriedades, nossas riquezas, nosso poder. isso os melhores e mais destacados engenhos preferem, de
23. Ora, por certo isso não se dá apenas por força da longe, o primeiro gênero de vida ao segundo. Daí resulta
natureza, isto é, pelo direito das gentes, mas também em que o homem obediente à natureza não pode prejudicar o
virtude das leis dos povos, que sustentam a coisa pública homem.
em cada cidade23 • Elas preceituam igualmente que não é lí- 26. Ademais, aquele que prejudica o semelhante para
cito prejudicar os outros em benefício próprio. Zis, de fato, alcançar vantagens, ou crê que nada empreende contra a
o que desejam e almejam as leis: que a comunidade dos ci- natureza, ou acha que deve evitar a morte, a pobreza, a
dadãos permaneça incólume e que quem as infringir seja dor, a própria perda de ftlhos, parentes e amigos de prefe-
punido com a morte, o exílio, a prisão ou a multa. !'tas nis- rência a cometer injustiça contra outro homem. Se julga
so a própria razão natural, que é a lei divina e humana, nada fazer contra a natureza, prejudicando o próximo, para
mostra-se bem mais eficaz. Quem tencionar se submeter a que discutir com quem rouba ao homem sua humanidade?
ela - e a ela se submeterão todos quantos quiserem viver Se, porém, considera que tal ação deva ser evitada, mas que
segundo a natureza - não tentará jamais cobiçar o bem a morte, a pobreza e a dor são bem piores, seu erro consis-
alheio e tomar para si o que houver surrupiado de outro. te em julgar um vício do corpo ou da fortuna mais grave
24. De fato, a elevação e grandeza de alma, como também que um vício da alma.
a cortesia, a justiça e a generosidade, são muito ma~ c_on- VI. Portanto, deve haver em todos o propósito único
formes à natureza que o prazer, a vida ou a riqueza. E pró- de fazer com que o interesse de cada um coincida com o
prio do ânimo grande e elevado desprezar tais coisas e tê- interesse geral; pois se alguém o reservar só para sL prm-o-
las por nada em comparação com o bem comum. Mas tirar carã a dissolução do consórcio humano. 27. ~\lér:-1 disso, se
de outro com o fim de beneficiar-se é mais contrãrio à na- a natureza prescreve que um homem deva levar em coma
tureza que a morte, a dor e males semelhantes. os interesses de outro, quem quer que seja este (pela s:m-
25. Da mesma forma, tentar salvar ou auxiliar as na- ples razão de ser um homem), segue-se naturalmente que
ções (se tal fosse possível), assumir os maiores trabalhos e o interesse de todos é o interesse comum. A ser assim, es-
penas (à imitação daquele Hércules que a opinião dos ho- tamos todos agrupados sob uma única lei da natureza, e
mens, em lembrança de seus benefícios, instalou no conse- essa lei da natureza, certamente, nos proíbe prejudicar os
lho dos seres celestes) revela-se mais de acordo com a na- outros. A primeira proposJção é verdadeira; em conseqüên-
tureza que viver na solidão - não apenas sem incómodos, cia, também a última o é.
mas também em meio aos mais doces prazeres, com abun- 28. Dizem alguns, absurdamente, que nada arrebata-
rão aos pais e irmãos, mas que outra é a regra para com o
23. o "direito dos povos" é uma lei natural (e mmbém divina) que ~e resto dos cidadãos. Esses não aceitam nenhum direito, não
aplica u todos os homens e constitui o padrão s·ugerido às leis humanas pela reconhecem nenhuma sociedade visando ao bem comum.
razão providencial que governa o mundo. Em !Il.68-70, Ckero o opOe ao
direito civil. Outra é a distinção feita pelos juristas romanos no Digesto l.l3-4,
Tal pensamento destrói todo vínculo social na cidade. Aque-
onde o "direito dos povos" nào é ordenado pela natureza, mas se origimt éa les que preceituam o dever de levar em conta os cidadãos.
p!"ática comum dos homens. mas não os estrangeiros, rompem o vínculo social cor.n:n~

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do gênero humano e, suprimido este, desaparecem de todo é injusta. 31. Assim, a própria lei da natureza- que preser-
a beneficência, a generosidade, a bondade e a justiça; e va e engloba os interesses dos homens - decide correta-
quem as faz desaparecer há de ser julgado ímpio perante mente a transferência dos bens necessários à vida, das mãos
os deuses imortais. Com efeito, abalam a sociedade estabe- do homem indolente e inútil, para as do homem sábio,
lecida, cujo liame mais forte é a idéia de que mais contraria bom e corajoso, o qual, se morrer, em muito compromete-
a natureza o homem que rapina o homem em beneficio rá o interesse geral. Fará isso -de modo tal que a boa opi-
próprio do que aquele que suporta todos os danos 2' , exte- nião de si próprio e o cuidado com sua pessoa não consti-
riores, do corpo ou da própria alma. Isso é estranho à jus- tuam motivo de lesar a justiça. Assim, sempre cumprirá o
tiça. Em verdade, essa única virtude é senhora e rainha de dever consultando o interesse dos homens e, o que insisto
todas as demaisl5. em lembrar, a sociedade humana.
29. Dirá talvez alguém: "Mas acaso o sá!::>io, prestes a 32. O julgamento de Faláris é muito fácil. Para nós, ne-
morrer de fome, não roubaria seu alimento de um homem nhuma associação com tiranos outra coisa pode ser senão
inútil?" De modo algum: minha vida não me é mais útil que uma oposição extrema; e não contraria a natureza·espoliar,
uma disposição de alma pela qual não devo, em proveito se possível, aquele que convém assassinar, pois toda essa
próprio, lesar ninguém. "Mas quê? Dm homem de bem, raça funesta e ímpia deve ser banida da comunidade hu-
para não sucumbir ao frio, não despojaria de suas roupas mana. Assim como alguns membros precisam ser amputa-
Faláris, tirano cruel e desumano, se o pudesse?" dos quando começam a ficar privados de sangue e, de
Tais coisas são facílimas de julgar'6• certa forma, de vida, ou quando passam a prejudicar outras
30. Com efeito, se tiras algo de um homem absoluta- partes do corpo, assim também essa se!Yageria e monstJUO-
me:J.te inútil com vistas à tua comodidade, ages de modo sidade de fera com traços humanos devem ser exürpadas
desumano e contra a lei da natureza; mas se és tal que, do corpo comum da humanidade. A esse tipo pertencem
permanecendo vivo, podes contribuir em muito para o todas as questões nas quais se busca o dever em função
bem da comunidade política e da sociedade dos homens, das circunstâncias•'.
não mereces censura quando surrupias seja lá o que for. VII.33. Desse modo, cuido eu, teria Panécio investiga-
Não sendo esse o caso, cada um tem de suportar seus ma- do o assunto se não b.ouvesse renunciado ao projeto por
les em vez de deitar mão aos bens alheios. Portanto, a algum acaso ou outra preocupaçào18 . Quanto a esses pro-
doença, a pobreza e outras calamidades desse tipo não con- blem2.s há, nos livros anteriores, inúmeros preceitos graças
trariam mais a natureza que o roubo e a cupidez. Ao con-
trário, a renúncia ao interesse coletivo desdiz da natureza e
27. Cícero explica agora o que afw:nou em lll.l9: não é desonesto ma-
tar um tirano. Observe-se, como em III.22, a metáfora do corpo aplicada à
24. Cf. IIL42, nota 36. sociedade.
25. Aqui, o texto está corrompido: os manuscritos trazem "isso é estra- 28. O elemento repetitivo a seguir deve-se ao f.ato de Cícero esboçar.
nho à justiça". Trata-se de uma emenda simples, que propicia uma sentença em 20-32, o que Panécio poderia ter dito (talvez (.'Offi a ajuda de Posid6nio.
inteligível, se não perfeitamente lógica. ver p. 76, nota 138) em termos estóicos e, em seguida, empreender se1.' prô-
26. Cícero mostra agora como aplicar a "regra de procedimento" par.1 prio desenvolvimento do assunto, que se espera igualmente compativel cor.1 :a
solucionar casos. visão peripatética.

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- - - - - - - - - - Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ÜI,YOJJJ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

aos quais podemos discernir o que deve ser evitado por


causa ~a t?rpeza e o que não precisa sê-lo, uma vez que c' Vlll:~5. Qu~ndo, então, se apresenta alguma aparên-
n~o é mtetramente torpe'". Mas agora estamos, por assim
la de utilrdade, e inevitãvel que nos comovamos ~oda .
S •'d ,J. Via,
d1zer, colocando o telhado numa obra começada, e todavia . e e:n. segul a atentarmos bem e percebermos a to
quase terminada. Por isso, assim como os geômetras não lmphcrta naquilo que parecia útil ~ , d rpeza
.. , nao everemos pór d
Parte a Utltdade
1 e sim compreender e
peza, não haverá utilidade. Pois se n;~:·éo~:s ~~~=_to~
costumam demonstrar tudo, mas solicitar alguns postula-
dos a fim de desenvolver mais facilmente aquilo que dese-
jam explicar, assim eu também te peço, meu Cícero, que ~~~r~za qu: a _toJ_Peza - a nar'ureza, com efeito, ape~~ce
. qu_: _e dlre1to, conveniente e constante, rejeitando
me concedas, se possível, que nada afora o honesto deve se:u_s contranos -, e se nada combina melhor com ela que a
ser buscado por si mesmo. Contudo, caso C:ratipo o não utilidade, decerto a utilidade e a torpeza não podem convi-
permita, concede-me ao menos que o honesto deve ser ver no.mesmo objeto. De igual modo, se nascemos para a
procurado por si mesmo acima de tudo. Uma ou outra coi- honestidade e devemos, ou proctJrã-la exclusivamente
sa me basta: or-<~. uma, ora outra me parece mais provável, (como queria Zenão), ou ao menos considerá-la superior
porém tudo o mais improvável. em toda a sua extensão, ãs demais coisas (segundo 0 pare~
34. Para começar, cumpre defender Panécio por não cer de Aristóteles), então o que for honesto será o único ou
ter podido afirmar- nem lhe era lícito- que o útil às vezes o sumo bem. Ora, seguramente, o que é bom é útil; por-
entra em conflito com o honesto, e sim o que parece útil. tanto, o que for honesto também o será.
Por certo, nada qLte não seja ao mesmo tempo honesto 36. É, pois, um erro dos homens ímprobos, logo que
pode ser útil; nada do que não seja ao mesmo tempo útil po- apreendem algo que lhes parece útil, separá-lo imediata-
de ser honesto. Sustenta ainda que nenhum flagelo maior mente do honesto. Nascem daí os assassinatos, os em,ene-
invadiu a vida humana que a opinião daqueles que disso- namentos, os falsos testemunhos, os hutos, as malversa-
ciaram essas realidades. Assim, não para que anteponha- ções, as pilhagens e os saques de aliados e ciç1adãos; nasce
mos as coisas úteis às honesras, mas para que as julguemos ?aí ~Il_1bém ~ anseio de riquezas desmedidas, de poder
com ace1to quando ocorrerem, é que introduziu o que mace1tavel e fmalmente, até nas cidades livres, de tirania-
parece ser, mas não é, uma oposição. Completaremos, pois, que é o que de mais hediondo e vergonhoso se pode con-
esta parte sem nenhuma ajuda, mas, como se diz, tendo ceber. 7ais pessoas, em virtude de juízos falaciosos, lobri-
Marte a nosso favor. Com efeito, nada sobre o assunto foi g~m as vantagens materiais, mas não antevêem o castigo -

exposto, depois de Panécio, que realmente me satisfaça _nao digo das leis, que muitas vezes eles ludibriam -, mas
nas obras que caíram em minhas mãos 30 • da própria torpeza, que é mais severa. 37. Seja, pois, bani-
do de nosso meio esse gênero de deliberação, que não
passa de crime e impiedade: ele é próprio de gente que se
29. A formul~ção d~ regula (corno é chamad:l em JI!.Sl), isto é, tudo que pergunta se seguirá o que vê ser honesto ou, consciente-
é honesto é útil e rudo que é desonesto não é útil. mostra-iH~ compatível com
mente, se enxovalhará com um crime. É que, no próprio
os principias estóicos e petipatéticos. No final de 33. Cícero prefere. e ~"lll 34
atriblli a Panécio. a ·regm· estóica oegundo a qualllilda existe de útil entre o ato de hesitar, já existe a falta, ainda que não se chegue ao
hones<:o e o desonesto, forrnul:u;:i!o retomada maL~ adiante (cf. lU.78. 85. 110!. ato. Por isso, não devemos absolutamente delibemr a res-
30. Cf. UJ.89-92. Ver ·Jmroduçào'', pp. XX-XXII. peito de assuntos em que a própria deliberação é torpe.

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- - - - - - - - D&d~~ - - - - - - - - ----------LivroU!--------~-

Cumpre, além disso, afastar da deliberação toda espe- se este realmente sustentasse que o fato acontecera ou
rança e idéia de dissimular e ocultar. Com efeito, se é que pudesse acontecer! Eis o significado do anel e da história:
demos alguns passos em filosofia, devemos estar suficien- acaso farias qualquer coisa para obter riqueza, poder e amor
temente convencidos de que, se pudéssemos escapar a to- se ninguém o soubesse ou sequer o suspeitasse, se tudo
dos os homens e a todos os deuses, ainda assim bom seria permanecesse para sempre ignorado dos deuses e dos ho-
nada fazer de cúpido, injusto, libidinoso ou intemperante. mens? Afirmam eles que isso não é possível, embora o
IX.38. Daí Platão nos mostrar aquele Giges 31 que, após a seja·1'. Mas o que pergunto é: se fosse possível aquilo que
terra se abrir em conseqüência de violentas chuvas, desceu aflrmam não sê-lo, que fariam? Eles, porém, se defendem
pela cratera e - conta a lenda - avistou ali um cavalo de teimosamente. Alegam que não é possível e a isso se ape-
bronze com aberturas nos flancos. Entrou e deu com o ca- gam, sem perceber a força do mito. Com efeito, quando
dáver de um homem avantajado,_ que trazia no dedo um perguntamos o que fariam caso pudessem dissimular, não per-
anel de ouro. Arrancou-o, colocou-o no seu próprio - era guntamos se poderiam dissimular, mas aplicamos uma es-
pastor do rei - e dirigiu-se à assembléia dos pastores. Lá, pécie de tortura; se responderem que, garantida a irnpuni-
toda vez que girava a pedra do anel para a palma da mão, dad·e, fariam o que lhes fosse vantajoso, confessarão que
todos deixavam de vê-lo, mas ele continuava vendo a to~ são criminosos e, se protestarem que não o fariam, reco-
dos. Voltava a ser visível quando repunha o a11el no lugar. nhecerão que é necessário evitar todos os atos torpes por si
Valendo-se dessa propriedade do objeto, desonrou a rai- mesmos.
nha e, com a ajuda dela, assassinou o rei seu senhor, supri- Mas voltemos agora ao nosso assunto. X.40. Freqüen-
mindo também os que julgava seus opositores, sem que temente acontecem casos que perturbam os ânimos devido
ninguém o visse no momento em que perpetrava tais cri- à aparência de utilidade. Isso sucede quando deliberamos,
mes. Assim, inesperadamente, viu-se sagrado rei da Lidia não sobre a conveniência de abandonar a honestidade em
graças ao anel. virtude da importância da utilidade - o que seria obYia-
Se um sábio lançasse mão desse anel, não acharia líci- mente perverso-, mas sobre a possibilidade de fazer o que
to fazer coisa alguma que não faria sem ele. De fato, as parece útil sem com isso cometer torpeza. Quando Bruto
pessoas de bem buscam as coisas honestas, não as ocultas. arrebatava o comando a seu colega Colatino, poderia pare-
39. Sobre esse ponto alguns filósofos 3l -não de todo mal- cer que o fazia injustamente: este, com efeito, fora o sócio
intencionados, mas insuficientemente.argutos- dizem tra- e ajudante dos desígnios de Bruto por ocasião da expulsão
tar-se de uma lenda forjada e arquitetada por Platão, como dos reis. Os homens eminentes, no entanto, adotaram a
• política de suprimir os parentes do Soberbo, o nome dos

31. República II.359 (para Giges, ver ":\lotas Biográficas'").


32. Os epicuristas aceitavam a virtude apenas como um meio para obter 33. Holden, entre outros editores, emenda "embora o seja" par~ 'evi-
o prazer e evitar a dor (118). A conduta justa seria necessária porque o medo dentemente não poderia ser" (lendo nequaquam por quariUjUam), evitando
de ser descoberto sobrepujaria qualquer prazer derivado da injustiça. O discl- assim atribuir a Cícero uma rejeiçâo explícita da Providência Divina Entre-
pulo de Epicuro, Colotes, atacou Platão por usar mitos na argumentação ftlo- tanto, a atitude de Cícero não ê tão inequívoca. Alêm disso, como acadêm~co,
s6fica. Ctcero mostra-se aqui impaciente com a mesma relutância epicurista pode estar apenas aceitando uma premissa epicurista (a rejeição da Pra,·idtn-
em analisar um caso hipotético. cia) para refutar uma proposição epicurista.

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Tarqüínios e a lembrança da monarquia. O ato benéfico, a justiça poderias dar-lhes quanto atribuir-lhes o que n?:o e
saber, o zelo pelos interesses da pãtria era conseqüente- justo. Entretanto, para todas essas coisas existe um precei-
mente honroso, devendo por isso ter sido agradável ao to breve e fãcil. De fato, aquilo que parece útil - honras.
próprio Colatíno. Assim, a utilidade teve valor por causa da riquezas, prazeres e semelhantes - nunca deve ser preferi-
honestidade, sem a qual sequer seria utilidade·". do à amizade. O homem bem, adernais, por causa de u1r.
41. Não se dá o mesmo, porém, com aquele rei que amigo, não agírã contra a república, um juramento e a boa-
fundou a cidade: a aparência de utilidade é que atiçou seu fé, nem mesmo se tiver de ser juiz do próprio amigo. Em
ânimo. Parecendo-lhe mais útil reinar sozinho que com ou- verdade, depõe a máscara de amigo quando coloca a de
tro, deu cabo do irmão. Ignorou ao mesmo tempo a pieda- juiz. Concederá à amizade preferir que a causa do amigo
de familiar e a humanidade para obter aquilo que parecia seja justa e, nos limites da lei, deixar-lhe-á tempo para fazer
útil sem sê-lo; por causa de urna muralha, ostentou um falso sua defesa. 44. Mas quando, sob juramento, proferir a sen-
ar de honestidade que não era nem "provável" nem apro- tença, lembre-se de que toma a divindade por testemunha,
priada. Errou, portanto (que Quirino ou Rômulo me permi- isto é, a meu ver sua própria razão, que é o que de mais
tam dizer isso)l'. 42. Todavia, não devemos negligenciar divino a divindade deu ao homem:~ 7 • Herdamos de nossos
nossos interesses para tratar dos de outros quando nós mes- antepassados o costume preclaro, se o conservamos, de
mos tivermos necessidade de tais recursos. Que cada qual nos dirigir ao juiz nos seguintes termos: "Faze o que pude-
preserve seus interesses desde que não prejudique ninguém. res, desde que salvaguardes a boa-fé." 3" Essa solicitação diz
Entre muitas coisas, diz Crisipo com propriedade: respeito àquelas coisas que, conforme dissemos há pouco,
pode o juiz honestamente conceder ao amigo. Pois, se de-
Quem corre no estádio deve esforçar-se ao máximo para vesse fazer tudo quanto quisessem os amigos, tais vínculos
vencer, mas de modo algum denubará ou empurrará seus não seriam amizades, mas conjuras!
concorrentes. Assim também, na vida, não é injusto que cada 45. Mas falo das amizades comuns·1~, pois entre ho-
um persiga aquilo de que necessita, sem ter contudo o direi- mens sábios e perfeitos não existe nada semelhante. Conta-
to de arrebatá-lo a outrem.,. se que os pitagóricos Dâmon e Fíntias tinham tal ligação
entre si que, quando o tirano Dionísio fixou o dia da exe-
43. Sobretudo nas amizades é que os deveres se com- cução para um deles, e o condenado solicitou alguns dias
plicam, pois contrariam o direito tanto negar-lhes o que com de liberdade para despedir-se dos parentes, o outro se
apresentou como fiador de seu comparecimento: se o pri-
34. Cícero príoriz~ as obrigaçOes para com a pãtria (d. I.57). Servir aos meiro não voltasse, o segundo pereceria. Mas, ten:J.o o con-
interesses da pátria é, para ele, uma ação honesm em si mesma. Note-se,
entretanto, que alude aos verdadeiros interesses da p<ttria (cf. I.159, IIL90), a
qual, por seu turno. nilo pode honestamente exigir ações em desacordo com 37. Cícero interpreta o juramento religioso convencional de acordo C..J:',1
a justiça (cf. m.46-9, 86-8). u visão estóica segundo a qual a "Razão" divina, imanente no unive~so. ~stf.
35. Cicero condena-o como homem (Rômulo) e como deus (Quirino). presente nos seres humanos como "razao"
36. Cri<tipo defenderia a "regra de procedimento" (19-21), e temos de 38. Frase tradicional com que os litigante.<> num~ açào c!YiL :w ,;~ ::.· ..._-
aceitar os limites de nossas obrigJçôes para com o próximo (1.52, nota 59, e girem ao juiz, se referem a seu juramento de defender as leis.
IIJ.28). 39. Este termo latino communis é traduzido por "com-.mç ::-:" !::. :-,-- ~~

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dosdeve!-es - - - - - - - - - -

denado reaparecido no dia marcado, o tirano, admirado de de prosperidade: nenhum sinal de medo, nenhuma propos-
tamanha fidelidade, Wplorou que ambos o acolhessem ta de paz! 43 Tamanha é a força da honestidade que faz desa-
como terceiro em sua amizade. 46. Quando, pois, na ami- parecer a aparência de utilidade. 48. Não podendo de forma
zade, comparamos o que parece útil com o que é honesto, alguma deter o ímpeto dos persas e decidindo que, abando-
seja negligenciada a aparência de utilidade e valorize-se a nada a cidade e deixadas as mulheres e crianças em Tre-
honestidade. Mas quando nos for pedido o que não é ho- zena, subiriam aos navios para defender com a frota a liber-
nesto, prefira-se a religião e a boa-fé ã amizade. Assim alcan- dade da Grécia, os atenienses lapidaram um tal Cirsilo, que
çaremos o discernimento do dever, que tanto buscamos. os aconselhava a permanecer na cidade e receber Xerxes 44 • E
XI. Mas, devido à aparência de utilidade, freqüente- ele parecia apegar-se à utilidade - que não existia no caso,
mente erramos nos assuntos públicos, como ocorreu aos pois se lhe opunha a honestidade.
nossos quando da destruição de Corinto"". Com mais dure- 49. Temístocles, depois da vitória naquela guerra com
za ainda agiram os atenienses, que decidiram amputar os po- os persas, declarou na assembléia ter um projeto capaz de
legares dos eginetas, poderosos por sua frota. Isso lhes pa- salvar a república, mas que não era oportuno divulgar. Pe-
receu útil, pois de fato a proximidade de Egina do Pireu era diu que o povo designasse alguém a quem ele o pudesse
uma ameaça excessiva•:. Mas nada de cruel é útil: a cruel- comunicar, sendo então escolhido Aristides. Temístocles
dade é o maior inimigo da natureza humana, que devemos confiou-lhe que se poderia deitar fogo secretamente à frota
seguir. 47. Também agem mal os que interdizem aos es- espartana, estacionada perto de Giteu, operação que arrui-
trangeiros a permanência nas cidades e os exterminam, co- naria de vez o poderio da Lacedem6nia. Ouvindo isso. Aris-
mo Peno entre nossos antepassados e Pãpio recentemente. tides voltou à assembléia, que se achava em grande expec-
Na realidade, é justo proibir que o não-cidadão ocupe o lu- tativa, e disse que o projeto de Temístocles era muito útil,
gar do cidadão, segundo a lei criada pelos sapientíssimos mas inteiramente desonesto. Assim os atenienses. julgando
cônsules Crasso e Cévola; entretanto, é absolutamente desu- que a sugestão não era honesta, concluíram que também
mano proibir aos estrangeiros a permanência numa cidade'l. não poderia ser útil e, com base na autoridade de Aristides,
São notáveis os casos em que desprezamos a aparên- repudiaram a proposta sem sequer tomar conhecimento
cia de utilidade pública em favor da honestidade. Nossa dela. Fizeram melhor que nós, que isentamos os piratas de
república ofereceu disso inúmeros exemplos, sobretudo impostos e tributamos nossos aliados'\ XIL Conclua-se,
p~r ocasião da Segunda Guerra Púnica. Após o desastre de
Canas, ela mostrou mais grandeza de alma que nos tempos
43. O Senado agradeceu ao cônsul sobrevivente de 216 a.C., Terêncio
Varriio, por n<l:o desesperar da república.
40. Cf. 1.35, noto~ 40. 44. A estratégia de evacuação de Temístodes levou ã vitória grega em
41. Egina, o "cisco do Pireu", é uma grande ilha ao largo da costa da Salamina, em 480 a.C. Cma inscrição de Trezena registra o episódio.
Ática, fronteira ao porto de Atenas. Os eginetas parecem ter sido expulsos da 45. Cf. Plutarco, Temístocks 20. Os atenienses recusaram-se a prejudicar
ilha em 431 a.C., mas esse episódio não ê registrado pelas fontes mais antigas seus aliados na Guerra Pérsica para assegurar sua supremacia. Os romanos
e confiáveis. ' impuserlUII tributos a seus aliados injustamente (como explicado em 11'"'). ov
42. Para essas medidas de 126, 65 e 95 a.C., ver os nomes de seus auto- passo que permitiram a Pompeu instalar na Cillcia, livres de impostos. os ~ú·e.­
res nas "Notas Biográficas". tas vencidos.

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pois, que o torpe nunca é útil, ainda que obtenhamos o 52. Os motivos de A.ntípatro baseiam-se no ponto de
que parece sê-lo. Com efeito, chega a ser calamitoso o pró- vista contrário: "Que dizes? Deves considerar o bem dos
prio fato de considerar útil o que é torpe. homens e servir ã sociedade humana. Nasceste com essa
50. Mas acontece com freqüência, como dissemos an- lei e possuis os princípios da natureza, a que deves obede-
tes46, que em certos casos a utilidade pareça opor-se à ho- cer, que deves seguir, segundo. os quais teu interesse é o
nestidade. Então devemos prestar atenção para saber se interesse geral e o interesse geral é teu interesse. E dissi-
se opõe absolutamente ou se pode aliar~se à honestidade. mulas dos homens o que se lhes oferece de vantajoso e
A esse gênero pertencem as seguintes questões: se um abundante?"
homem de bem trouxe de Alexandria para Rodes uma Talvez Diógenes respondesse assim: "Uma coisa é dis-
grande quantidade de trigo, estando Rodes imersa na fo- simular, outra calar. Neste momento eu não dissimulo nada
me, na penúria e na máxima carência de alimentos, caso se não te digo qual é a natureza dos deuses, qual o limite
saiba que muitos outros mercadores também deixaram do bem;8 , coisas que te aproveitariam mais, uma vez co-
Alexandria e veja em caminho navios carregados de trigo nhecidas, que o baixo preço do cereal. É que nem tudo o
dirigindo-se para Rodes, comunicará o fato aos ródi.os ou, que te é útil ouvir me é necessário dizer."
preferindo o silêncio, venderá seu produto o mais caro 53. "Pelo contrãrio, é necessário se em verdade te lem-
possível? Estamos imaginando um sábio, um homem de brares de que existe entre os homens um vínculo social
bem47 ; nossa investigação refere-se à delibetação e ao de- natural."
bate de consciência de alguém que não irã dissimular a "Eu me lembro", dirá ele, '·mas acaso teu vínculo social
verdade aos ródios, se julgar isso torpe, mas que duvida é tal que nada pertence a ninguém? Pois. se ;:;ssim for não
que o seja. deveremos vender nada e sim doar."~"
51. Em questões desse tipo, uma é a opinião de Dió- XIn. Já vês que em todo esse debate não se diz: ":\ies-
genes de Babilônia, estóico de suma autoridade, e outra a mo que seja torpe eu o farei, pois é vantajoso."' Diz-se. isso
de Antípatro, seu discípulo, homem de imensa penetração. sim, que é vantajoso sem ser torpe e, de outro lado, que
Para A.ntípatro, tudo deve ser revelado, a fim de que o com- por ser torpe não se deve fazê-lo.
prador nada ignore daquilo que saiba o vendedor. Para 54. Venda um homem bom sua casa por causa de cer-
Diógenes o vendedor deve, nos limites do direito, expor os tos defeitos que ele conhece, mas que os outros ignoram:
defeitos da mercadoria e em tudo o mais evitar a trapaça; seja ela insalubre mas passe por salubre, que não se saiba
mas, porque vende, querer vender o melhor possível: "Eu
que em todos os quartos aparecem serpentes, que seja mal-
trouxe a minha mercadoria, eu a expus, eu não a vendo construída, ameace ruína, mas ninguém além do dono sai-
mais caro que os outros e talvez até mais barato quando te-
nho muito estoque. A quem prejudico?"
48. Isto é, a rnLtureza dos deuses supremos. Ver p. 6, nota 11.
49. Para a distinçào entre propriedade comum e propriedade pri...-·,x'ca.
46. Cf. 11I.40. , ver I.21, I .51, IT.73 ·ss., lll.42. O problema é: até que ponto as \~m:.~~-;:Ce~
47. Cf. III.l7, onde o sábio é oposto ao homem bom. Para o vir bonus comerciais que protegem interesses pessoais são. na prática, comp~.\h-eis -.·c:n
de moral comum e direito romano, ver p. 13, nota 26. a atimde de não lucrar à custa de outrem (ver p. 154, nota '59)

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ba disso. Pergunto: se o vendedor não o disse aos compra- freqüentemente parece se produzir entre as coisas úteis e
dores e vendeu a propriedade mais caro do que imaginava, as coisas honestas. Cumpre decidir a respeito: não foi para
terã agido desonesta e injustamente? perguntar que as expusemos, mas para explicar.
"Decerto", replicaria Antípatro. 55. "Não será o mesmo 57. Não me parece, pois, que nem o negociante de
que não ensinar o caminho ao desgarrado- o que, em Ate- trigo da ilha de Rodes nem o vendedor da casa deveriam
nas, merece a execração pública 5°- permitir que o compra- dissimular a verdade aos compradores. De fato, nem tudo
dor sofra e, por erro, seja vítima de uma enorme fraude? É o que calas dissimulas; porém, dissimulas quando preten-
pior ainda que não ensinar o caminho, é induzir conscien- des, em vantagem própria, que aqueles a quem importa sa-
temente o outro em erro." ber ignorem o que tu sabes52 . Ora, quem não percebe qual
Diógenes, porém, diria: "Mas acaso ele te obrigou a é a natureza desse modo de dissimular e de que tipo de
comprar se nem sequer te encorajou? Colocou à venda o home!l1 se trata? Não se trata, efetivamente, do homem
que não lhe agradava, tu compraste o que querias. Se aque- direito, franco, nobre, justo, honrado, mas do homem ma-
les que anunciam 'Casa de campo em bom estado e bem- nhoso, sorrateiro, falaz, enganador, matreiro, tratante. Não
construída' não são considerados fraudadores mesmo que serão inúteis tantos nomes de vícios e outros mais?
a tal casa não esteja em bom estado nem seja bem-cons- XIV.58. Se, pois, é necessário vituperar os que cala-
truída, menos ainda o serão aqueles que não gabaram sua ram, que dizer daqueles que recorreram à linguagem da
propriedade. Onde cabe ao comprador julgar, onde a falã- mentira? Caio Cânio, cavaleiro romano 53 , personagem não
cia do vendedor? Se é verdade que as palavras ditas nada sem encantos e bastante letrado, estando em Siracusa para
garantem, irão garantir as que não o foram? 51 Haverã algo descansar e não para negociar (como ele mesmo dizi.a).
mais tolo da parte do vendedor que revelar os defeitos do afirmava querer adquirir alguns jardins onde pudesse rece-
objeto que deseja vender? Haverã algo mais estúpido que o ber os amigos e fugir dos maçadores. Tendo a notícia se es-
pregoeiro gritar por ordem do vendedor: 'Vendo uma casa palhado, um certo Pítio, banqueiro em Siracusa, declarou
imunda'?" que seus jardins não estavam à venda, mas que Cânio po-
56. Em conseqüência, nos casos duvidosos, por um deria usá-los como se fossem seus e convidou-o a jantar ali
lado se defende a honestidade, por outro se fala da utili- no dia seguinte. Aceito o convite, Pítio, que como banquei-
dade de tal modo que não só é honesto fazer o que parece
útil, mas chega a ser torpe não o fazer. Tal é o conflito que
52. Aqui Cícero, utilizando convenientemente uma linguagem empolada
em seu papel de juiz, aplica a regra de procedimento (III.21) para solucionar
50. A proibição incluia também o não-fornecimento de bens necessãrios a disputa: Antípatro e Diógenes não conseguem fazer uma distinção crucial
ã vida, como o fogo e a água. Ver 1.51, onde estes constituem exemplos de entre casos onde o silêncio é mantido deliberadarnente para lucrar à custa de
coisas que se pode dar ã humanidade sem prejuízo pessoal. Assim, o parnle- outrem e ca.sos diferentes. Segundo Cícero, os prJmeiros, e apenas eles, en-
lo atribuído a Antípatro é questionável. volvem omissão. Ele concorda com Antlpatro quanto à maneira de agir. mas
51. Diógenes aparece aludindo, anacronicameme, a uma provisão da lei nem sempre quanto às razões.
romana (Digesto XVTII. 1.43) por meio da qual o vendedor não é responsável 53. A palavra latina designa a ordem imediatamente inferior à sen~to·
pelas informações que fornece no ato de vender, desde que as qualidades rial. Exigia-se de seus membros o nascimento livre e uma renda de 400 n::.i
referidas possam ser avaliada<J pelo comprador (cf. !II.68). sestércios.

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---------Dos deveres---------

ro gozava do favor de todas as classes, mandou chamar coisa e fazer outra." Dizia-o de modo brilhante, sem dúvi-
pescadores e pediu-lhes que pescassem no dia seguinte da, como seria de esperar de um perito. Portanto, Pítio e
diante de seus jardins, dando-lhes instruções sobre o que todos os que fingem uma coisa e fazem outra são pérfidos,
deles desejava. ímprobos, maliciosos. Em conseqüência, nenhum de seus
Na hora marcada apareceu Cânio para jantar: festim atos pode ser útil, pois são todos conspurcados pelos ví-
suntuoso aprestado por Pítio, multidão de barcos ã vista, cios. XV.61. Se, pois, a definição de Aquílio é verdadeira,
cada pescador vindo com seu pescado atirã-lo aos pés de cumpre banir de toda vida a simulação e a dissimulação.
Pítio. 59. Então, Cãnio: "Que é isso, Pítio? Tantós peixes, Assim, quer para comprar nas melhores condições, quer
tantos barcos?" E Pítio: "Por que o espanto? É aqui que se para vender, o homem de bem não simulará nem dissimu-
encontram todos os tipos de peixes de Siracusa. Eis aí a
lará nada.
água doce, os pescadores não podem passar sem esta casa Além disso, essa fraude fora condenada pelas leis: por
exemplo, no caso da tutela pelas Doze Tábuas, do defrau-
de campo." Inflamado de cobiça, Cânio insistiu com Pítio
damento de adolescentes pela lei Pletória e, sem lei especí-
para que vendesse a propriedade. Este, de início, colocou
fica, pelos tribunais quando se acrescenta a fórmula "De
dificuldades. Quanto queria por ela? Conseguiu-o. O ho-
boa-fé" 16 . Nos outros julgamentos as seguintes palavras bri-
mem cobiçoso e rico pagou o que Pítio desejava e ainda lham ainda mais: no arbítrio do dote da esposa, "O melhor
comprou-lhe os móveis. Escreveu os nomes' 4 , concluiu o é o mais eqüitativo"; na hipoteca, "Agir bem como entre
negócio. No dia seguinte, Cânio convida os amigos, chega homens de bem" 1'. Pois quê! Num caso em que '·o melhor
ele próprio bem cedo ... e não avista um remo sequer! In- é o mais eqüitativo" haverá alguma parcela de fraude'
daga do vizinho mais próximo se por acaso seria aquele Quando se diz "agir bem como entre homens de bem".
um dia de festa para os pescadores, dos quais não via ne- algo poderá ser feito de forma dolosa ou maliciosa? O mau
nhum. "Não que eu saiba", responde o interpelado, "mas dolo reside na simulação, como sustentou Aquíiio. Por-
eles não costumam pescar aqui. Eu mesmo me admirei do tanto, é preciso proscrever de todos os contratos a mentira:
que aconteceu ontem." o vendedor não apresentará outro comprador, o compra~
60. Cânio irrita-se, mas o que poderia fazer? Com efei-
to, meu colega e amigo Caio Aquílio ainda não publicara
56. As Doze Tábuas eram Uln código do século V a.C., ainda estudado
suas fórmulas sobre o mau dolo'1• Quando lhe perguntavam no tempo de Cícero. A Lei Pletória de 192 a.C. transformou em crime a frau-
o que era precisamente o mau dolo, respondia: "Fingir uma de cometida contra menores. As formas de julgamento não fundamentadas
em e~-ratutos são as que seguem o proc..-edimento formular (ver p. 134, nota 20).
Asformulae podiam conter a provisão de que a transação se fizesse de boa-fê
54. Ass1m agindo, Pítio passa tecnicamente de um contrato de "hoa-fê" (ver Ill.70).
(feito por consenso oral) para um contrato de ·'estrita justiça". 1\ieste último, 57. C!cero passa a outros casos contemplados pelo procedimento for-
emprega-se o princfpio do caveat ernptor. Pítio jã não te~U nenhuma obriga- mular, que envolviam a noção geral e não continham a frase "fraude mal:cio-
ção de revelar as desvantagens de sua propriedade. sa". Petições de restituição de dare em caso de dissolução de casamento e1';u;l
55. Malafides. literalmente ·'má-fé"', ê o oposto de bona }Ides, '·boa-fé'" apresentadas a árbitros que podiam conceder uma soma diferente da rc;cb.-
Aqullio propôs jormulae (p. 18, nota 39. e p. 134, not'J 20) para atender às exi- mada. Casos de hipoteca (jtd11Cia) diziam respeito a propriedades ;<Een:!Ü~~
gências de restituiçào no caso de fraudes em transações comerciais. sob condição de restauraçào.

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________ Do>-~-------- - - - - - - - - - - L i v r o ! J f _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

dor não apresentará quem avalie por menos que o primei- que o homem de bem é aquele que beneficia a quantos
ro; um e outro, se se encontrarem para negociar, só falarão possa, sem prejudicar ninguém, decerto não encontramos
uma vez. facilmente semelhante homem. Portanto, nunca é útil frau-
62. Quinto Cévola, filho de Públio, pediu que o ven- dar porque fraudar é sempre torpe, e, porque sempre é
dedor fixasse de uma vez por todas o valor de certas terras honesto ser homem de bem, sempre é útil sê-lo.
que ele queria comprar. O ·vendedor o fez; Quinto decla- XVI.65. Quanto ã legislação referente aos imóveis,
rou que as avaliava em mais e acrescentou cem mil sestér- nosso direito civil prescreve que o vendedor declare os de-
cios. Ninguém nega que foi ato de homem de bem, mas feitos, por ele conhecidos, da coisa que vende. Se, com
não de sábio: com efeito, seria o mesmo que vender por efeito, pelas Doze Tábuas, bastava responder pelos defei-
menos do que podia. Eis o perigo: considerar que uns são tos verbalmente declaradosM, impondo-se reparação dupla
honestos e outros sábios'"'. De onde as palavras de Ênio: àquele que os houvesse negado, os jurisconsultos estabele-
"~ada saberia o sábio se não soubesse ser útil a si mesmo." ceram uma pena até para o silêncio{;'. Qualquer que seja o
Muito bem dito, se houvesse acordo entre mim e Ênio so- defeito de um imóvel, segundo eles, o vendedor prestará
bre o significado de "ser útil". contas caso o conheça e o cale. 66. Devendo os áugures
63. Vejo nos livros que escreveu sobre o dever para tomar os auspícios na cidadela, ordenaram a Tibério Cláu-
Quinto Tuberão que Hecatão de Rodes, discípulo de Pané- dio Centumalo que demolisse sua casa do monte Céiio.
cio, afirmou ser próprio do sábio zelar pelo patrimônio sem cuja altura atrapalhava a observação dos pássaros"'. Cláudio
ofender os costumes, as leis e as instituições. Não é apenas pô-la à venda e Públio Calpúrnio Lanário comprou-a. 0;:.
para nós que desejamos ser ricos, mas também para os fi- áugures deram a este último a mesma ordem. C::;,lpúrnio
lhos, os parentes, os amigos e, acima de tudo, a comunida- demoliu-a e logo depois ficou sabendo que Cláudio pusera
de política - pois os recursos e meios dos particulares são a casa à venda após ser intimado pelos áugures. Citou-o
a riqueza da cidade. A esse Hecatão o mencionado gesto perante o árbitro reclamando "tudo o que lhe devia dar e
de Cévola de modo algum agradaria; mas ele nega peremp- fazer em virtude da boa-fé".
toriamente que perpetraria o iHcito em vantagem própria19 • Marco Catão, pai do nosso Catão, pronunciou a sen-
I\jão convém atribuir-lhe nem grande mérito nem grande tença (pois, como os outros homens devem seu nome ao
recoru'lecimento. pai, este, que engendrou tamanha luz, deve o seu ao filho);
64. Mas, sendo verdade que tanto a simulação quantó esse juiz, então, decidiu que, como o vendedor tinha co-
a dissimulação constituem mau dolo, pouquíssimos são os nhecimento da situação e não a declarou, devia pagar o
negócios em que ele não apareça. E se também é verdade
60. Pelo comprador.
58. Contrapõem o "homem bom" (ver p. 13, nota 26) ao "sãbio", não no 61. Isto é, por meio de açàes baseadas na boa-fé, segundo o procedi-
sentido filosófico, mas de "saber humano". Ver p. 95, nota 37. mento formular.
59. Hecatão assume a mesma posição de Diógenes (50--5). Cícero, de 62. Os ãugures observavam o vôo das aves que se alçavam da cidad<:::la
ar..-ordo com sua "regra de procedimento" (21), prefere o exemplo de CévOla, do monte Capitolino. A casa, situada no monte Célio, poderia ob:;tru:r-ih<:::> ~
que se recusou a fazer fomma à custa de outrem. visão.

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prejuízo ao comprador. 67. Em conseqüência, decretou que que ninguém os persiga. Não se dá o mesmo quando anun-
a boa-fé exigia do vendedor dar conhecimento ao compra- cias a venda de uma casa, instalas uma tabuleta como uma
dor do defeito conhecido. Portanto, se julgou com justiça, armadilha, vendes a propriedade por causa de seus defei-
foi injustamente que o negociante de trigo e o vendedor da tos e permites que algum tolo se deixe apanhar?
casa se calaram. 69. Embora eu constate que semelhante embuste não
Entretanto, a legislação civil não pode abarcar todos os é considerado torpe em virtude da perversão dos costu-
silêncios desse tipo; mas aqueles que são por ela atingidos mes, nem é coibido pela lei ou o direito civil61 , creio que a
recebem tratamento diligente. Marco Mário Gratidiano, pa- lei da natureza o proíbe. Com efeito, existe uma sociedade
rente nosso, vendera a Caio Sérgio Orata uma casa que lhe -já se disse isso rhuitas vezes, mas convém repeti-lo outras
comprara poucos anos antes. Ela servia"5 , mas Mário não muitas - bastante ampla, a sociedade de todos os homens;
declarou isso no contrato. O caso foi levado a julgamento. uma mais restrita, a dos que integram a mesma família, e,
Crasso defendia Orata, Antônio defendia Gratidiano. Crasso por fim, uma ainda menor, a dos que são da mesma cida-
alegava o direito; o vendedor devia responder pelo defeito c:J::eM. Quiseram, pois, nossos antepassados que existisse,
que omitira conscientemente. Antônio insistia na eqüidade: por um lado, o direito dos povos, por outro, o direito civil.
já que o defeito não era ignorado de Sérgio, que vendem O direito civil não precisa ser necessariamente o direito
antes a casa, não houvera necessidade de dizer coisa algu- dos povos, mas o direito dos povos precisa ser necessaria-
ma e Sérgio não fora enganado, pois conhecia a situação mente o direito civil. Nós, porém. não dispomos de ne-
jurídica daquilo que adquirira. nhum modelo sólido e expresso do verdadeiro direito e da
68. Para que tudo isso? Para que compreendas que os autêntica justiça, utilizamos apenas uma sombra de ima-
astutos não agradavam a nossos ancestrais 64 . xvn. Entre- gens. Se ao menos seguíssemos estasl De fmo. elas oroce-
tanto, as leis tolhem as astúcias de um modo e os filósofos dem dos melhores exemplos da natureza e da veràa2.e··.
de outro: as primeiras, até onde puderem reter com mão 70. Quão valiosas são as palavras: ··Para que eu ni\o
forte; os segundos, enquanto conseguirem dissuadir pela seja enganado nem apanhado por causa de ti ou de minha
razão e a inteligência. A razão, em conseqüência, exige que confiança em til" E como são de ouro as seguintes: '·Agir
nada façamos astuciosamente, nada fingidamente, nada fa- bem entre homens de bem e sem fraude!""' Mas quem são
laciosamente. Não será insidioso montar urna armadilha os homens de bem e o que é agir bem, eis a grande ques-
mesmo quando não se tem intenção de acioná-la ou usá-la? tão. Quinto Cévola, pontifice máximo, sustentava que há
Os animais selvagens costumam ser apanhados nelas ainda maior força nos julgamentos em que se acrescenta a ex-

63. Isto é, alguém que não o proprietário tinha certo direito à proprie- 65. 'ver p. 150, nota 50. Trata-se do direito formular do pretor (p. 153.
dade. Ver "Notas Biográficas", "Sérgio Orata". nota 56).
64. Ver "Introdução", pp. XXIX-XXXI. Esse caso, em que a eqüidade esta- 66. Cf, I.S0-8.
va realmente do lado do defensor, cujo silencio foi legalmente explorado pelo 67. A lei de cada Estado poderia ser mais detalhada que o direito do•
acusador apesar de não tencionar enganar, conduz ao argumento de Cicero IXJVOS (~direito natural, p. 136, nota 23), ma~ deveria obedecer aos precei\N
segundo o qual o direito civil é um instrumento imperfeito pam amparar a básicos deste último.
moralidade. 68. Cláusulas de contratos que dependiam da eqüidade pm-:1 ·.-igo~·,u·.

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- - - - - - - - - - - Dos deveres----------- - - - - - - - - - - Livrolll·-----------

pressão "de boa-fé" e achava que essa alusão era bem am- tiva da impunidade e do desconhecimento geral, seriam ca-
pla, pois se aplica às tutelas, associações, hipotecas, man- pazes de abster-se da injustiça!
datos, compras, vendas, aluguéis, pelo que se mantém a XVIII.73. Arrisquemo-nos, se queres, tomando por
sociedade da vida. Nesses casos, é próprio do grande juiz exemplo justamente aqueles casos em que os homens co-
determinar as contas a prestar por cada um, principalmen- muns talvez não julguem errar. Aqui não falaremos de as-
te quando estão em jogo muitas decisões contrárias69 • sas.:;inos, envenenadores, falsificadores, ladrões ou con-
71. Por isso, devem ser tolhidas a astúcia e aquela ma- cussionários, os quais devem ser castigados não com pala-
lícia que se faz passar por prudência, embora dela se dis- vras ou argumentações filosóficas, mas com correntes e
tancie e dela difira consideravelmente. Com efeito, a pru- prisões. Examinaremos, antes, os atos dos chamados ho-
dência reside no discernimento dos bens e dos males, ao mens de bem.
passo que a malícia, a ser verdade que todas as torpezas Certos indivíduos trouxeram da Grécia para Roma um
são más, antepõe os males aos bens. testamento falso de Lúcio Minúcia Basilo, homem de pos-
Não é apenas no caso dos imóveis que o direito civil, ses, e, para mais facilmente lograrem êxito, inscreveram
decorrente da natureza, pune a malícia e a falácia, mas tam- como herdeiros juntamente com eles Marco Crasso e Quin-
bém na venda de escravos proscreve toda fraude. Aquele to Hortênsia, que eram os personagens mais poderosos da
que ·devia estar ciente de sua saúde, de sua fuga, de seus época. Estes suspeitaram que o testamento era falso, mas,
roubos responde por isso segundo o édito dos edis 7~. Já ou- como não se julgavam culpados de nada, aceitaram a mo-
tra é a questão das heranças 71 • 72. Daí se depreende que, desta propina do crime alheio. Mas como? Então basta isso
como a natureza é fonte do direito, o direito está de acor- para que pareçam não ter delinqüido? De minha parte não
do com a natureza e ninguém deve agir de modo a tirar o creio, embora a um eu tenha amado enquanto viveu e ao
proveito da desgraça alheia. Não se encontra, na vida, fla- outro não odeie depois que morreu 73 • 74. Basilo quis que 0
gelo maior que a simulação de inteligência na malícia 72 , de filho de sua irmã, Marco Sátrio, tomasse seu nome e fê-lo
onde procedem situações inumeráveis em que o útil pare- seu herdeiro (falo do Sátrio que foi patrono dos territórios
ce entrar em conflito com o honesto. Quão poucas vezes, piceno e sabino, nome tristemente célebre daqueles tem-
em verdade, deparamos com pessoas que, ante a perspec- pos!/'. Ora, não seria justo que os primeiros cidadãos rece-
bessem a fortuna e a Sátrio·só tocasse o nome. Se aquele
69. Casos relativos a esses contratos de boa-fé deixavam grande parte que não impede a injustiça e não a repele para longe dos
da decisão a critério do juiz. A bilateralidade das relações de boa-fé significa- seus quando pode age injustamente ~ conforme expliquei
va também que a possibilidade de outra ação por parte do defensor sempre em meu primeiro livro75 ~, que dizer daquele que não ape-
existia.
70. Os edis cuidavam dos mercados e, valendo-se do procedimento for- nas deixa de repeli-la como a encoraja? A mim, até as he-
mular, julgavam ações para anular a venda de gado e escravos cuja posse
fosse falsificada, O roubo perpetrado por um escravo era considerado de res-
ponsabilidade de uma terceira pa!te (o senhor). 73. Hortênsia, falecido c. 50 a.C., e Crasso, falecido em 54 a.C., respec-
71. Os herdeiros não er.tm respons~veis pelas faltas dos escravos que tivamente. Ver "Notas Biográficas".
tivessem acabado de herdar e cujos erros, portamo, poderiam desconhecer. 74. Ver "Notas Biográficas", "Sátrio".
72. Cf. Ill.62, nota 58. 75. L23, 1.28-9.

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ranças autênticas parecem desonestas se foram consegui- que o consular Caio Fímbria fora nomeado juiz de Marco
das com lisonjas astuciosas ou serviços simulados. Lutácio Píntia, cavaleiro romano78 inquestionavelmente ho-
Às vezes, em tais casos, sucede que uma coisa pareça .nesto que se obrigara num contrato sob a cláusula '·Se não
útil e outra honesta. Nada mais falso, pois idêntica é a fosse homem de bem" 79 • Fímbria declarou que jamais julga-
regra da utilidade e da honestidade. 75. Quem não anali- ria semelhante causa por receio, ou de macular a repmação
sar essa questão acuradamente não evitará a fraude e o de um homem honrado ou de parecer decretar que qual-
crime. Com efeito, se pensar assim: "De fato isto é hones- quer um é homem de bem, quando na verdade isso impli-
to, mas aquilo é vantajoso", ousará erradamente separar coi- ca inumeráveis deveres e méritos. Em conseqüência, a esse
sas ligadas pela natüreza, o que é fonte de ludíbrios, male- homem de bem - concebido igualmente por Fímbria e. não
fícios e crimes. XIX. De so11e que se o homem de bem apenas por Sócrates -, nunca parecerá útil o que não é
pudesse, com um estalar de dedos, introduzir seu nome honesto.
nos testamentos dos ricos, não se valeria de semelhante Um homem assim não fará, ou sequer pensará, aquilo
poder ainda quando tivesse certeza de que ninguém sus- que não ousar tornar público. Feia coisa é os filósofos du-
peitaria disso. Mas se desses a Marco Crasso força tal que, vidarem do que nem os rústicos duvidam] Vem daí o pro-
com um estalar de dedos, fosse inscrito como herdeiro - vérbio, já surrado, a propósito de alguém a quem se gaba a
ele, que em verdade não o era -, o homem saltitaria no boa-fé e a bondade: "Com ele se pode jogar até no escuro."
fólUm, crê em mim 7". Já o homem justo e aquele que con- Que significará isso senão que nada é vantajoso se for in-
sideramos bom77 nada tomaria de outro para beneficiar-se. decente, ainda que se possa obtê-lo sem contestação? 78.
Quem disso se admira confessa não saber o que seja um Percebes, por esse provérbio. que não se deve perdoar
homem de bem. nem ao famoso Gigesfl:) nem àquele que imaginamos. mais
76. Na verdade, porém, aquele que desejasse esclare- acima, poder com um estalar de dedos arrebatar wda:- as
cer as confusües do espírito a si próprio explicaria que o heranças? Assim como a coisa torpe não pode ser honesta
homem de bem é o homem útil na medida de suas possibi- ainda que permaneça sigilosa, assim a coisa desonesta não
lidades e só prejudica alguém quando provocado pela in- pode ser útil ao arrepio da natureza.
justiça. "Mas quê~ Não prejudica ninguém aquele que mi- XX. 79- Mas, sendo consideráveis as vantagens, há mo-
nistra veneno para afastar os herdeiros legítimos e tomar- tivo de errar? Caio Mário estava longe da esperança do con-
lhes o lugar?" Dirá alguém: "Não faria então o que é útil e sulado, havendo decorrido já sete anos desde sua pretura,
proveitoso?" "Ao contrário, deve entender que nada de in- e não parecia disposto a disputar aquele cargo. Quinto Me-
justo pode ser útil e proveitoso. Quem não aprender isso tela, seu comandante, homem e cidadão eminente de quem
não será homem de bem." 77. Em criança, ouvi de meu pai
78. Ver p. 151. not"<~ 53.
76. Cr-<~SSO foi além da intriga para ser nomeado herdeiro; qui..-; ser iru;- 79. Aposta quo:: o vencedor recuperaria e o perdedor entregaria ao Estado.
crito fu/.samente mun tesr.tmento (como em 73) e depois dançar no fórum (cf. muito comum no antigo direito roma.110 e usada também pam resolver dispute<>
1.14'5) como condição pam reçeber a heraÕ.ç<t (lli.93). extrajudiciais çomo esta. em que e~tava em jogo 1.1ma reputação pesso::;l.
77. Ver I.20. nota 26, para ·'homem justo'' como "homem bom". 80. Ver III.38-9.

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era legado, enviou-o a Roma 81 . Diante da assembléia, Mário recia-lhe muito útil. Mas hã para todos os casos uma regra
acusou-o de protelar a guerra e prometeu que, se fosse única, que desejo conheças bem: que o aparentemente útil
eleito cônsul, em pouco tempo entregaria Jugurta, vivo ou não seja torpe e que o torpe não seja aparentemente útil!a.
morto, ao poder do povo romano. Assim foi que esse ho- Como?'. Podemos julgar o primeiro Mário homem de bem
mem se tomou de fato cônsul; no entanto, afastou-se da boa- e também este? Abre e aciona tua inteligência para desco-
fé e da justiça ao atrair, mediante falsa acusaçãoj o ódio so- brir que imagem, forma e noção de homem de bem existe
bre um cidadão excelente e digno. nela. Cabe ao homem de bem, em provei~o próprio, men-
80. Também nosso Gratidiano deixou de cumprir o de- tir, acusar, usurpar, ludibriar? De modo algum, é claro.
ver de homem de bem quando era pretor e os tribunos da 82. Haverã então algo tão precioso, interesse tão cobi-
plebe convocaram o colégio de pretores&l para regular a si- çado que justifiquem a perda do brilho e da fama de
tuação monetãria de comum acordo. Na época, com efeito, homem de bem? Haverã então algo que essa pretensa utili-
a flutuação da moeda era tal que ninguém sabia ao certo o dade possa trazer em compensação da perda da fama. hOn-
que possuía. Redigiram juntos um édito prevendo penas e rosa, da supressão da boa-fé e da justiça? Qual, então, a di-
julgamentos, decidindo que subiriam todos aos rastros após ferença entre transformar-se de homem em besta ou mos-
o meio-dia. Dispersados os demais, Mário, indo direto da trar, sob a aparência humana, a crueldade de uma fera?
sessão para os rastros, promulgou sozinho o oue fora esta- XXI. Mas quê! Aqueles que desprezam todas as coisas jus-
belecido em comum. Pois isso, fica sabend~, lhe trouxe tas e honestas, logo que conseguem algum poder, não fa-
grande honra: estátuas em todos os bairros, velas e incenso zem o mesmo que aquele que desejou ter como sogro um
diante delasll.l. É preciso dizer mais? Ninguém nunca foi tão homeril. por cuja audãcia ele próprio pudesse tornar-se po-
caro à multidão. deroso?'!' Parecia-lhe útil alcançar o mãximo de poder à
81. Eis o que, por vezes, conturba as decisões, pois o custa da hostilidade inspirada por outro; mas não percebia
que viola a eqüidade não parece tão importante, ao passo quanto isso era torpe e injusto para a pátria. Quamo ao so-
que o que daí resulta assume grandes proporções, a ponto gro, tinha sempre nos lãbios os versos gregos das Fenícias.
de Mãrio não achar excessivamente torpe antepor o favor que citarei como puder e talvez sem arte, mas de modo a
popular aos colegas e tribunos da plebe. Jã tornar-se côn- transmitir o essencial66 :
sul em virtude disso- era o que então se propunha ~ pa-
Pois, se o direito deve ser violado, para reinar
É que deve sê-lo. No mais, respeite-se a piedade.
81. O intervalo mfnimo entre essas magistraturas, observado por Ckero, .. ;,
era de dois anos. Somente Cícero afirma que Mário se valeu da astúcia para
garantir o comando contra Jugtl!ta: Salústio e Plutarco dizem que Metelo o in- 84. Ver p. 140, nota 29.
sultara quando ele lhe revelou suas ambições consulares. 85. Pompeu, que se casou em 59 a.C. comjúUa, filha de César, quan-
82. Nessa época {85 a.C.), havia seis pretores. Os dez tribunos convida- do este, na qualidade de c6nsul, recorria à força para fazer aprovar os de-
vam-nos a sentar-se nos bancos baixos que eles próprios ocupavam (os ma- cretos que ratificavam os tratados de Pompeu no Oriente e assentavam se·~s
gistrados superiores ocupavam cadeiras). Os rostra eram a tribuna do fórum. veteranos.
83. A adoração de homens vivos não era um costume dos romanos, que 86. C!cero traduz em latim os versos 524-5 pronunciados por Etéoçie:>
a consideravam antes como honras extravagantes. nas Feníc1,as de Euripides.

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Ele merecia morrer", pois excetuou justamente o pior diz Ácio. A qual realeza? Àquela (rue foi legitimamente
dos crimes! transmitida por Tântalo e Pélope9n. Imaginas quão mais
83. Por que, então, tratamos dessas insignificâncias - numerosos foram os inimigos desse rei que, com o exérci-
heranças, comércio, vendas fraudulentas? Eis aí o homem to do povo romano, oprimiu o próprio povo romano. obri-
que quis ser rei do povo romano e senhor de todas as na- gando a servi-lo uma cidade não apenas livre, mas ainda
ções, o que por fun conseguiu!*' Louco será quem sustentar senhora de nações? 85. Que máculas de consciência julgas
ser honesta essa aspiração, pois aprovará então o aniquila- que ele tinha na alma, e que feridas? Como pode a vida de
mento das leis e da liberdade, julgando gloriosa essa horrí- um homem ser-lhe útil quando tal é a condição dessa vida
vel e detestável opressão. Quanto àquele que confessa não que aquele que a suprimir alcançará o pico do favor e da
ser honesto reinar numa cidade que foi livre e deveria con- glória? Se, pois, não são úteis as coisas que mais parecem
tinuar a sê-lo, mas que tal é útil a quem consiga fazê-lo, sé-lo, dado que estão eivadas de vergonha e torpeza, deve-
com que recriminações, ou antes, com que invectivas me es- mos estar suficientemente convencidos de que nada que
forçarei para afastá-lo do erro? Será então possível, 6 deu- não é honesto é útil.
ses imortais, que aproveite a alguém o mais vergonhoso e XXII.86. De fato, esse julgamento foi feito várias ve-
tétrico parricídio da pátria quando aquele mesmo que o zes, como ocorreu a Caio Fabrício, cônsul pela segunda
perpetrou é chamado "pai" pelos concidadãos oprimidos?,;>;l vez, e ao nosso Senado durante a guerra de Pirro. Quando
Portanto, a utilidade deve regular-se pela honestidade, e de o rei Pirro declarou espontaneamente guerra ao povo ro-
maneira tal que essas qualidades pareçam diferenciar-se mano, ficando o império como prêmio do conflito com um
pelo nome, mas identificar-se pelo significado. monarca magnânimo e poderoso, um Irânsfuga apareceu
84. Segundo a opinião do vulgo, não sei de utilidade no acampamento de Fabrício e prometeu-lhe, em troca de
maior que reinar. Em contrapartida, quando chamo a razão recompensa, voltar secretamente, como viera, ao arraial de
para junto da verdade, nada encontro de mais inútil para Pirro para envenená-lo. Fabrício devolveu-o ao rei e seu
quem alcança isso injustamente. Pois serão úteis para al- ato foi louvado pelo Senado. Contudo, se procurarmos a
guém as angústias, as inquietudes, os terrores diurnos e no- aparência exterior e a idéia costumeira da utilidade, aquela
turnos, uma vida repleta de embustes e perigos? renhida guerra e aquele formidável inimigo do império te-
riam sido eliminados por um único trânsfuga; mas seria
Muitos são iníquos e hostis à realeza,
grandemente vergonhoso e desonroso, após rivalizar em
Poucos os benévolos,
,
__ - méritos com ele, vencer um adversário não pelo valor e sim
pelo crime~ 1 • 87. Que era, pois, mais útil a Fabrício (que foi
87. Embon! os m~muscritos trag<1m "Etéodes, 01.1 antes, Eur!pides··, o su- para nossa cidade o que Aristides foi para Atenas)~ 2 e ao
jeito da frase é provavelmente César.
88. N<l verdude, César jamais aceitou o título de rex, termo odioso aos
ro!llilnos desde a exP'..J!Sào do último Tarqü!nio, mas esse t!mlo lhe era atri-
buído por se1.>S inimigos com o sentido de "tirano". 90. A peça de Ácio tratava provavelmente de Atreu, de~cenden;e de
89. César foi chamado "Pai da Piitri'l" ;1pós sua vitória final na guerrn Til.malo por seu filho Pélope (ver "Notas Biográficas").
dvi\. em 45 a.C. O titulo também foi conferido a Cícero em 63, n·lo sem opo- 91. O incidente ocorreu em 278 ·a.C. Cf. 1.38 sobre Pino.
92. Ambos eram apelidados de 'Justo" (IIL16). Cf. !11.49.
siçào.

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nosso Senado, que jamais separou a utilidade da dignida- sa dos transpadanos era justa, acrescentando porém: "Ven-
de: lutar contra o inimigo com armas ou venenos? Se se ça a utilidade!" Melhor se houvera demonstrando que tal
deve buscar o comando tendo em vista a glória, exclua-se causa era injusta, uma vez que não beneficiava a república,
o crime, onde não pode haver glória; mas se se busca o do que sustentando que era útil mas iníqua9'.
poder pelo poder, não importando os meios, ele não será XXIII-89. O sexto livro de Hecatão Sobre os deveres
útil associado à ignomínia. está repleto de questões deste tipo: "É próprio do homem
Portanto, não foi útil a decisão de Lúcio Filipo, filho de de bem, em tempos de máxima penúria, não alimentar
Quinto, a propósito das cidades que Lúcio Sila, em troca de seus escravos?"' Examina ambos os lados do problema, mas
dinheiro, libertou após consultar o Senado: elas seriam tri- por fim é pela utilidade, a seu ver, que cumpre regular o
butadas novamente e nós não devolveríamos o dinheiro. O dever, preterindo assim a humanidade. Pergunta: "Se for
preciso lançar alguma carga ao mar, lançar-se-á antes um
Senado assentiu; vergonha para o império! Mais valia, com
cavalo precioso ou um vil escravozinho?" Aqui, o interesse
efeito, a lealdade dos piratas que a dos senadores9'. "Mas, do patrimônio toma um rumo, a humanidade outro%.
considerando-se que nossas rendas aumentaram, aquilo foi "Se, num naufrágio, o tolo agan·ar uma prancha, o
útil!" Até quando se dirá que é útil o que não é honesto? sábio lha arrebatará se puder?"
88. O ódio e a infâmia serão de utilidade para um império Diz ele que não, achando que seria iníquo 97 •
que deve ser sustentado pela glória e pela benevolência "Mas quê! O dono não tomará o que é seu?"
para com os aliados? "De forma alguma, não mais do que se quisesse, em
Eu muitas vezes discordo até mesmo de meu amigo Ca- alto-mar, atirar fora um passageiro a pretexto de que o na-
tão. Penso que era defender com obstL.J.açào excessiva o vio lhe pertence. Com efeito, até o porra de chegad8., o
tesouro e as rendas recusar tudo aos arrecadadores e muito nâvio não pertence ao proprietário e sim aos passageiros ..,
aos aliados, quando deveríamos nos mostrar generosos 90. "E se houver uma única prancha para dois náufra-
para com estes e agir para com aqueles do modo como cos- gos: nenhum dos dois a tomaria para si ou um a cederia
tumávamos agir para com os nossos próprios colonos (tan- ao outro?"
to mais que essa união de classes importava ã salvação da "Que um a ceda, mas àquele cuja vida seja mais útil,
república)9<. Também agiu mal Curiào ao afirmar que a cau- em interesse próprio ou da república."

93. Nos anos 70 a.C., quando a sucessão de guerras levou Roma a uma 95. Para o episódio, ver "'Notas Biográficas" em "Escribônio Curião". Este
crise financeira, os territórios isentados de tributo por Sila em troca dos paga- pode ter alegado que quem concedesse a cidadania aos transpadanos adqui-
mentos efetuados durante a Primeira Guerra iVIitridática tiveram seus impostos riria imens-o poder, o que contrariava os interesses da república. Emborã a
restabelecidos. Os piratas libertavam seus cativos mediante resgate. Cf. tam- sugestão de Cícero reforce o argumento de Curião, não justifica a adoção
bém ll.40. dessa política por pane de Roma (p. 144, nota 34).
94. Para os dois incidentes, ver ":"--otas Biogrãfk:as•·, "Marco Pórcio Ca~o. o 96. Como os dois primeiros casos envolvem obviamente a regra de
Jovem". Os a!Tecadadores de impostos eram o grupo mais organizado da or- Hecatào (UI.63.l, a lei e o costume deviam permitir ao senhor sacrificar os
dem eqüestre (ver p. 27, nota 57), cujo apoio à ordem senatorial Cicero consi- t:~cravos domésticos em lugar de exaurir sua fortuna e impedi-lo de sus~entar
dera importante. A comparação com os colonos deve-se a que os proprietários ·,1 própria f.tmllia. Ver p. 24, nota 52.
Wlilllnos, em anos de safra ruim, costumavam não cobrar o a!Tendamento. 97. Cf. !II.29-30.

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"Que acontecerá se as condições forem idênticas para do homem de bem. Tais são, mais ou menos, as controvér-
os dois?" sias jurídicas dos estóicos. "Ao vender um escravo é preci-
"Não haverá conflito, pois um cederá a sobrevivência so declarar seus defeitos, não os que, em caso de omissão,
ao outro como se a tivesse perdido por jogo ou sorteio." acarretariam a devolução nos termos do direito civil, mas
"Como?! Se o pai espoliar um templo e lesar astuciosa~ estes: é mentiroso, jogador, ladrão, beberrão?" Um crê ser
mente o erário, o fllho revelará o crime aos magistrados?" necessário dizê-lo, o outro nãow•. 92. "Se alguém que ven-
"Isso certamente é sacrilégio, mas o filho defenderá o de ouro julga vender latão, o homem de bem adverti-lo-á
pai se este for acusado." do engano ou comprará por um denário o que vale mil?" Já
"Então a pátria não está acima de todos os deveres?" vimos o que penso disso 103 e quais são as discussões entre
"Decerto que não, pois é do interesse da pátria que os os filósofos que nomeei.
cidadãos sejam fiéis a seus pais." 911 xxrv. Deve-se sempre preservar os pactos e compro-
"E se o pai tentar tomar o poder absoluto e trair a missos que, como dizem os pretores, "não foram estabele-
pátria, deverá o filho calar-se?" cidos pela força nem pelo mau dolo" 1w? Se um indivíduo
"Não, mas conjurará o pai a não fazê-lo. ~ada conse- der a alguém um remédio para hidropsia e exigir que, se
guindo, censurá-lo-;3. e até o ameaçará. Ao fim, se a empre- for curado por ele, nunca mais volte a usá-lo e se, após
sa significar a ruína da pátria, preferirá a salvação desta à curar-se realmente, alguns anos depois contrair a mesma
daquele." 99 doença e não conseguir aut01ização para voltar a usá-lo,
91. Hecatão pergunta ainda' 0 ~: "Se um sábio houver re- que deverá fazer? Como o indivíduo que recusasse permis-
cebido inadvertidamente moedas falsas por verdadeiras, ao são seria desumano e em nada ficaria prejudicado. poderá
perceber isso irá pagar com elas seu credor?" _Diógene~ ~!~ o doente preservar sua vida e sua saúde.
que sim; Anúpatro, com quem concordo, d1_z que nao . 93. Se um sábio for solicitado por alguém que o fará
"Aquele que, conscientemente, vender u~ v1_nho passado herdeiro de cem milhões de sestércios a dançar, antes de
do ponto deverá esclarecer o comprador? Dtóg~nes ac~a aceitar a herança, em plena luz do dia no fórum, diante de
que não é preciso, mas Antipatro afirma que sena própno todos' 0' , e ele o prometer temendo não ser inscrito no tes-
tamento, fará o que prometeu ou não? Gostaria que não
houvesse prometido, o que a meu ver seria condizente com
98. Cf. 1.159, nota 138. . . sua dignidade! Como prometeu, se achar vergonhoso dan-
99. r-;"a visão de Cicero, o pai se colocaria fora do cuuüo das obrtgações
humanas se se tornasse um tirano. çar no fórum, faltar à promessa será mais honesto do que
100. Nos cJ.sos relatados em 91-2 e nos debatidos por Diógenes e~­
típatro em III.51-2, um dos parceiros da transação comercial se mostra ret!-
cente sem com isso idringir a lei. 102. Não há contradição com III.71 (ver p. 158, nota 70), pois o vende-
101. !\essa época era ilegal, pela Lex G_ornelia defalsis, falsificar moedas dor teria de revelar roubos pelos quais o senhor era responsável, não o hãbi-
de prata, ser conivente com o crime, vendê-las ou comprá-la;> (Dig. XlVlll.10._9), to de roubar o senhor (Dig. XXI.l.S2).
sendo facultado não aceitã-las (Paulo, Srmt. V.25.1). Por 1sso Cicero exphca 103. Como em Ill.57. Cícero apela para <t regra de procedimento (lll.21 l:
que 0 homem sábio aceitou as moedas fulsas sem saber, portanto legalmente. não se deve lllcrar ã custa de outrem.
É de presumir que pagar com elas U!ml d1vida seria explomr algum<~. brecha 104. Cf. 1.32, L40, Ill.l07, Il!.ll0-13.
legal. 105. Cf. 1.145 e lll.75, nota 76.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ Dosckveres - - - - - - - - - ----------Liurolll---,----------

receber a herança, a menos que consagre o dinheiro à re- por mera aparência de prudência, parecem úteis mas com-
pública numa conjuntura importante. Não é de modo al- prometem a justiça, penso ter discorrido suficientemente.
gum vergonhoso até mesmo dançar quando está em vista o Como, no primeiro livro, foi a partir de quatro fontes
interesse da pátria. que fizemos decorrer os deveres da honestidade, apegue-
XXV.94. Em verdade, não devem ser cumpridas as mo-nos a essas fontes para ensinar até que ponto o que pa-
promessas que não são úteis aos beneficiários. O Sol, para re_c~ útil sem s~-lo é contrário à virtude. Discutimos a p-ro-
voltarmos às fábulas, disse a seu filho Faetonte que faria poslto da prudencia que a malícia deseja imitar, como tam-
tudo que ele quisesse; e ele quis conduzir o carro do pai. bém da justiça, que é sempre útil'" 9. Restam duas divisões
Subiu nele mas, antes de flffilar-se, foi consumido por um da hbnestidade, uma das quais distinguimos na grandeza e
raio. Quão melhor seria se o pai não cumprisse a promes- excelência de alma, a outra na firmeza e equilíbrio que re-
sa! Que dizer da promessa de Netuno que Teseu reclamou? sultam do autodomínio e da temperança.
Netuno lhe apresentara três desejos à escolha e Teseu XXVI.97. Parecia útil a Ulisses - pelo menos é o que
desejou a morte de seu filho Hipólito, suspeito de cortejar contam os poetas trágicos, pois em Homero, melhor auto-
a madrasta. Realizado o desejo, Teseu mergulhou em pesa- ridade, não existe nenhuma suspeita do gênero a respeito
do luto 106 • desse herói - simular loucura para escapar ao exército"".
95. E Agamenão? Tendo consagrado a Diana aquilo N~o era u_ma decisão honesta, n_:.as útil. dirá talvez alguém,

que de mais belo nascesse aquele ano em seus domínios, remar e vtver folgadamente em Itaca com os pais. a esposa
sacrificou Ifigênia, nascida justamente então, e que nada e o filho! Julgas que alguma honra possa ser cor..1para-da a
superava em formosura. Mais valia não cumprir a promes- essa tranqüilidade em meio a tantos trabalhos e perigos
sa que concordar com um crime tão hediondo. Portanto, constantes? Por mim a considero despreúvel e dispemáveL
nem sempre é bom cumprir as promessas ou devolver os pois, não sendo honesta, nem chega a ser útil. 98. Que
depósitos. Se alguém que te confiou a espada quando são achas que Ulisses escutaria se houvesse persistido naquela
pedi-la quando insano, entregá-la seria insensatez e retê-la, simulação? Embora haja realizado os mais brilhantes feitos
um dever107 • Se aquele que te confiou dinheiro fizer a guer- na guerra, teve de escutar as seguintes palavras de Ájax:
m contra a pátria, devolverás o depósito? Não, penso eu,
Ele, que deu causa a esse juramento, como sabeis,
pois assim agirias contra a república, que deve constituir a
Foi o único a infringi-lo.
principal afeiçào' 011 • 96. Assim, muitas coisas que parecem Fez-se de louco para não apresentar-se.
honestas por natureza tornam-se, conforme as circunstân- E se a argúcia penetrante de Palamedes
cias, desonestas. Cumprir as promessas, afermr-se aos acor-
dos e devolver os depósitos deixam de ser ações honestas
quando já não são úteis. Mas com respeito às coisas que, 109. Só agora Cícero revela que, a partir de 40. esteve discutindo as duas
primeiras virtudes, sabedoria e justiça, não em seqüência. mao ao mes1no :en:-
po (ver p. 95, nota 37). Em todo o livro, enfatiz.a-se ~~justiça. Ver "lntrod~lÇf<o··
pp. XXVI ss.
lCXí. Cf. 1.32.
107. O exemplo é tirado de República I. de Platão. 110. Essa história é contada pelos trágicos gregos Sófocles e E~lríp~d<:-.<"
108. Cf. 1.57-8; I.160; III.89. pelos latinos Pacúvio e Ácio.

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- - - - - - - - - - - D o s deveres----------- __________ Livroiii----------

7'-"ão desmascarasse a impudente solércia desse homem, jura..-nento, não era senador. "Ó homem inser.sato ··. bradou
Continuaria a ludibriar a lei da fé sagrada."' alguém, "que se opõe ao que lhe ê útil!" Régulo acrescen-
tou que não convinha devolver os prisioneiros. homens jo-
99. Para ele, com efeito, melhor foi bater-se não ape- vens e bons chefes, ao passo que ele já estava consumido
nas com os inimigos, mas também com as ondas (o que de pela velhice. Sua autoridade impressionou. os prisionelros
fato fez), que desamparar a Grécia, unida para guerrear os foram retidos e ele próprio voltou a Cartago, sem que o
bárbaros 112 • contivesse a afeição da pátria ou dos familiares. Não igno-
Mas esqueçamos as fábulas e os exemplos estrangei- rava, decerto, que ia se entregar a um ini.rnigo crudelíssimo
ros, e examinemos o que nós próprios realizamos. Marco e a suplícios terríveis, mas achava que um juramento deve
Atílio Régulo, quando cônsul pela segunda vez, foi captu- ser mantidom. Assim, enquanto o matavam conservando-o
rado na África em uma emboscada armada pelo espartano acordado, encontrava-se em melhor situação do que em
Xantipo, que combatia sob as ordens de Amílcar, pai de casa, prisioneiro encanecido e consular perjuro.
Aníbalm. Sob juramento, enviaram-no ao Senado: se certos 101. "Mas foi insensato não apenas não recomendar a
prisioneiros de elevada categoria não fossem devolvidos devolução dos prisioneiros, mas até desaconselhá-la!" Como
aos cartagineses, ele próprio voltaria a Cartago. Em Roma, assim? E se isso fosse útil à república? O que é prejudicial ã
a coisa lhe pareceu útil, mas enganosa, como o demonstra- república pode ser útil ao cidadão? xxvm. Os homens,
ram os fatos. Tratava-se disto: permanecer na pátria, viver quando dissociam a utilidade da honestidade, pervertem os
em casa com a esposa e os filhos, e ser ex-cónsulJ~< consi- fundamentos da natureza. Todos, com efeito, buscamos a
derando o desastre militar que sofrera um acaso da guerra. utilidade, somos atraídos por ela e não podemos agir de
Quem nega que tudo isso seja útil? E tu, que pensas? A força outro modo. Quem evitaria as coisas úteis? Ou antes, quem
e a grandeza de alma o negam. XXVll.lOO. Exiges acaso não as perseguiria com o maior empenho? Mas como só
fiadores mais sólidos? Em verdade, é próprio dessas virtu- podemos encontrar as coisas úteis na esfera do mérito, da
des não espantar-se com nada, olhar do alto todas as vicis- conveniência e da honestidade, colocamos essa esfera no
Situdes humanas e jamais considerar acima das forças do primeiro e mais elevado plano, considerando o título de
homerr.. aquüo que lhe possa acontecer. utüidade não tão brilhante quanto necessário.
Que fez então Rêgulo? Dirigiu-se ao Senado, expôs o 102. Que há, pois (perguntaria alguém), no juramento?
objeto de sua missão, recusou-se a dar oficialmente um pa- Tememos acaso a cólera de Júpiter? Todos os filósofos têm
recer porque, enquanto estivesse ligado ao inimigo por um isto em comum, não apenas aqueles que afirmam que a di-
vindade em nada se envolve e nada impõe aos outros, mas
111. julgamento das armas, de Pacúvio. também aqueles para quem ela faz e aciona alguma coisa:
112. Na Odtsséia de Homero, V.365 ss., Ulisses luta contra as ondas para
alcançar a nado a terra dos feácios.
113. Cicero confunde o pai de Arubal cOm o Amilcar mais antigo que 115. Embora Cícero deva discutir a coragem e a magnanimidade (96),
comandou na batalha de 255 a.C., na qual Régulo caiu prisioneiro. agora começa a concentrar"se no juramento (cf. 102-10), que traz à consicieD-
114. ;\lo Senado, os ex-cônsules eram chamados a opinar antes dos ~o a justiça (tambêm em III.15). Volta a tratar da coragem de Rêgulo em 1:c.
outros ex-magistrados. e final de 115.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Lfvrom _ _ _ _ _ _ _ _ __

a divindade nunca se irrita e nunca prejudica'~~. Além disso, te, com a divindade por testemunha, isso deverás cumprir.
.';. em que a cólera de Júpiter prejudicaria mais Régulo que o Aqui não se trata, está visto, da cólera dos deuses, que não
próprio Régulo? Assim, não houve nenhuma influência da existe, mas da justiça e da boa-fé. Ênio o disse de maneira
religião para reduzir a nada uma tão grande utilidade. Esta- ..: ··
..
notável:
ria evitando agir com torpeza? Para começar, ·'dos males o
menor"! Portanto, naquela torpeza não houve tanto mal Ó boa-fé nutriz e alada, juramento de Júpiter!
quanto naquele sacrifício. Lê-se em Ácio:
A.o:;sim, quem viola o juramento viola a Boa-Fé que nos-
~ Quebraste a fé? sos antepassados, segundo o discurso de Catão, quiseram
- Não a empenhei nem a empenho a um infiel.""
entronizar no Capitólio, ao lado de Júpiter Ótimo Máxirno 12 ~.
105. "De fato, porém, nem a cólera de Júpiter prejudi-
Embora ditas por um rei ímpio, essas palavras são mui- caria mais Régulo que o próprio Régulo." Certamente, se o
to acertadasm. único mal fosse sofrer. Ora, os filósofos de maior autorida-
103." Acrescentam ainda: como poderíamos dizer apa- de não somente afl.l11lam que este não é o sumo mal como
rentemente úteis coisas que não o são, eles dizem aparen- neg<~.m que seja um malm. Portanto, não vituperes Régulo,
temente honestas coisas que não o são. Assim, parece ho- eu te peço, pois ele não é nesse caso uma testemunha me-
nesto voltar para o sacrifício a fim de sustentar um jura- díocre: deve ser levado muito a sério. Quem de maior au-
mento; mas não é porque o que foi extorquido pela violên- toridade acharíamos que o primeiro dos romanos, o qual
cia do inimigo não pode ser ratificado' 19 . Acrescentam ainda voluntariamente se entregou ao sacrifício para sustentar um
que tudo que é muito útil se torna honesto, mesmo que an- juramento?
tes não o parecesse. Isso se alega contra Régulo. Mas exa- Quanto ao dito "Dos males o menor", isto é, agir antes
minemos as primeiras críticas. torpe que calamitosamente, haverá mal maior que a torpe-
XXIX.104. "?'J"ão era preciso temer que a ira de Júpiter za? Se houver na deformidade do corpo algo que repugne,
prejudicasse, pois ele não costuma irar-se nem prejudicar." quão mais não repugnarão a depravação e a fealdade da
Esse argumento, na verdade, não vale mais contra o jura- alma envilecida! 106. .Assim, aqueles que tratam essas ques-
mento de Régulo que contra qualquer outro juramento. En- tões com veemência ousam dizer que o único mal é a tor-
tretanto, num juramento, devemos ver não o que é de te- peza, ao passo que os indulgentes não hesitam em qualifi-
mer, mas o que é de valorizar; ele é, com efeito, uma afir- cá-lo o sumo mal. Quanto às palavras
mação de caráter religioso e o que prometeres formalmen-
:-rão a empenhei nem a empenho a um infiel,
116. Cf.ll.12 e "Sumário'', pp. JG..I-XL!I. ,
117. Fala de Atreu a Tiestes no Atreu de Acio. 120. O culto ã Fides teve um santuário erigido em 249 a.C .. no :nom.-
118. Régulo fora capturado numa emboscada (99); os cartagineses eram Capitolino, perto do templo de Júpiter. Perdeu-se o discurso de Carão, o .A.r:l!:élG
geralmente considerados um povo pérfido (cf. I.38). 121. Os estóicos em oposição aos peripatétlcos, no in!cio de Fr\ '.·~,.
119. Ver firu1.l de I.3Z. "5U.!'.1âriO", pp. JG..I-JG..Il.

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----------Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - L i v r o J J / _ _ _ _ _ _ _ _ __

o poeta as utilizou bem porque, em se tratando de Atreu, a todo o direito fecial e muitos outros direitos se a olicaYam
fala devia convir à personagem. 11as se assumirmos que não tanto quanto a nós. Não fosse assim, jamais o Sena~o emr~~
existe fé passível de ser empenhada a um infiel, cuidemos garia, acorrentados, homens ilustres ao inimigo"(. XXX.109.
para não buscar um pretexto ao perjúrio~ l. 2
Tito Vetúrio e Espúrio Postúmio, quando cór.sules pela se-
107. Há também um direito ela guerra, devendo-se mui- gunda vez e após a batalha infeliz das Forcas Caudinas -
tas vezes observar a fé do juramento feito ao inimigo. De fa- nossas legiões passaram sob o jugo -, concluíram a paz com
to, o que foi jurado com o espírito decidido a cumpri-lo deve os samnitas e, por essa razão, lhes foram entregues: ha·viam
ser cumprido; de outro modo, não haverá perjúrio. Assim, se agido sem ordem do povo e do Senado. Nas mesmas cir-
não entregas a piratas o resgate estipulado por tua vida, não cunstâncias, Tibério l\"umício e Quinto Mélio, então tribunos
atentas contra a boa-fé, mesmo que tenhas jurado fazê-lo, da plebe, foram ent..c--egues também porque o acordo se fize-
pois o pirata não é contado no número dos inimigos de guer- ra a seu conselho. Dessa forma se poderia recusar a paz
ra, sendo como é inimigo comum de todosm. Com ele, não samnita. De :este foi o próprio Postúmio, que ia ser entre-
devemos compartilhar nem fé nem juramento. lOS. jurar em gue, quem defendeu e promoveu essa entrega 127 .
falso não é cometer perjúrio; mas jurar "na alma e na cons- Caio Mancino, anos depois, fez o mesmo: sem autori-
ciência", segundo a fórmula usada entre nósl 24 , e não cumprir, zação do Senado concluíra um pacto com os numantinos e
isso é perjúrio. Diz Eurípides com propriedade: ele próprio apoiou a proposta. que c condenava a ser en-
tregue, apresentada por Lúcio Fúrio e Sexto Atílio em virtude
jurei com a língua, trago uma alma que não jurou"'. de um senadoconsulto. Aceita a proposta, foi entregue ao
inimigo 12 ~. Agiu mais honestamente que Quinto Pompeu: en-
Régulo, por certo, não deveria abalar com um perjúrio contrando-se este em idêntica situação, por sua súplica a lei
as convenções e leis que disciplina..rn a guerra e o trato do não foi aplicada. Nesse caso, a utilidade aparente venceu a
inimigo. Combatia um adversário justo e legítimo, ao qual honestidade, ao passo que nos anteriores o prestígio da ho-
nestidade superou a utilidade aparente.

122. Cf. I.35-8.


123. Cf. p. 97, nota 40. Mais tarde, quando a guerra e a invasão fomenta- 126. Ver I.36, nota 43, sobre o código dos feciais. Em 109, Cícero forne-
ram o banditismo, os juristas acharam necessãrio declarar que nenhuma aç.!o ce exemplos de 321 (Forcas Caudinas) e 136 (Mancino), além de um contra-
de divisão de propriedade poderia ser movida pelos saqueadores Cpmedo- exemplo de 139 a.C. Registrando-os fora da ordem cronológica, dã a impres-
nes). pois não havia nenhum contrato ou ajuste válido com eles (Dtgesto são de que os padrões morais romanos haviam declinado (ver "Introdução",
X.3.7-4). p. XXXl).
124. Ex antml tul smtentia era uma fórmula usada nos juramentos sole- 127. Segundo T1t0 Lívio, rx.S ss., a paz era urna sponsio, urna promessa
nes. Ckero não afirma que alguém possa quebrar promessas que não teve de negociar, garantida pelas vidas e bens dos oficiais romanos envolvidos no
intenção de fazer no momento, mas que certos tipos de juramento não preci- ato. A paz referida foi invalidada por Roma porque não contara com a apro-
sam ser mantidos: por exemplo, os juramentos feitos a individues que não vação do povo romano. O; homens foram entregues para liberar Roma de
obedecem às normas da sociedade. No entanto, seria perjúrio quebrar uma toda obrigação moral.
promessa solene feita espontaneamente a uma pessoa adequada, tal como 128. O caso Mancino, ao contrário do primeiro, envolvia um tratado ter-
um inimigo legitimo; então, o espírito estaria ·'decidido a cumpri-la". Cf. 107. mal, mas manteve-se o precedente a fim de não haver rompimento do ap.we
125. Hipólito 612. sem compensação ao inimigo.

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;"·1- - - - - - - - - - - - - - - - ê l l ' ·~·,.-.----------------- ·····•· ·- - ·-······- -···-
::>>···
ii
----------Dos deveres---------- - - - - - - - - - - - Livro!JJ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

110. "Mas não se deveria ratificar o que foi obtido


··r/.. diligências e admoestações dos censores, que a nada da-
';~~~
mediante violência." "Como se, verdadeiramente, a violên- vam mais atenção que ao juramento.
cia conseguisse algo do homem corajoso!" 1'9 112. Lúcio Mâniio, filho de Aula, após sua ditadura, foi
"Por que, então, dirigiu-se ao Senado quando tinha a acusado pelo tribuno da plebe Marco Pompônio de ter
intenção de dissuadi-lo da entrega dos prisioneiros?"'31J "Cen- acrescentado alguns dias a seu mandato. Era acusado tam-
surais justamente o que de mais magnânimo havia nele. bém de ter isolado do convívio dos homens a seu filho Tito
Não se ateve ao próprio julgamento, mas assumiu a causa (mais tarde chamado Torquato), obrigando-o a viver no
como se o julgamento fosse do Senado. E se ele não agisse campo. Quando o fl.lho adolescente soube dos aborreci-
em pessoa como conselheiro desse Senado, os prisioneiros mentos do pai, correu a Roma e, ao romper do dia, bateu à
por certo teriam sido devolvidos aos cartagineses. Régulo, porta de Pompônio. Informado de sua chegada, Pompô-
então, permaneceria são e salvo na pátria. Mas como não nio, crendo que o rapaz lhe traria, por cólera, alguma quei-
achou que isso fosse útil à pátria, concluiu ser mais hones- xa contra o pai, saltou do leito e, afastando as testemunhas,
to obedecer e suportar o que se sabe. Afirma-se: "O que é fez vir Tito à sua presença. Mas este, ao entrar, logo sacou
muito útil torna-se honesto." Ao contrário: é honesto, não da espada e jurou que o mataria ali mesmo se não jurasse
se torna. !\ada que seja honesto deixa de ser ao mesmo inocentar o pai. Aterrado, .?ompônio jurou. Em seguida,
tempo útil- e não é honesto porque é útil, ·mas útil porque apresentou a causa ao povo, explicou por que iria renun-
é honesto. ciar ao processo e ordenou a soltura de Mânlio. Tal era, na
Assim, entre inúmeros exemplos admiráveis, ninguém época, o valo! do jurai?ento. Tito Mânlio foi aquele que, às
escolheria com facilidade outro mais louvável e eminente margens do Arrio, ganhou seu epíteto ao arrebatar o colar
do que esse. XXXI.Hl. Todavia, dentre todos os méritos de um gaulês que o provocara e perecera às suas màos.
de Rég.Jlo, só este é digno de admiração: o ter ele aconse- Sob seu terceiro consulado os latinos se viram derrotados e
lhado a retenção dos prisioneiros. Seu retorno nos parece postos em fuga à beira do Vésere. Era um grande entre os
hoje admirável, mas na época ele não poderia agir de outro grandes e, indulgentíssimo para com o pai, revelou-se acer-
modo. Portanto, o elogio não vai para o homem e sim para bamente severo para com o filho!.''.
os tempos. Com efeito, nossos antepassados não quiseram XXXII.113. Mas, assim como Régulo deve ser louvado
outro vínculo mais estreito, para promover a fé, do que o por respeitar seu juramento, assim cumpre escarmentar
juramento. Mostram-no as disposições das Doze Tábuas, aqueles dez que (a ser verdade) não regressaram após Aní-
mostram-no as leis sagradas, mostram-no os pactos pelos bal tê-los enviado ao Senado em seguida à batalha de Ca-
quais empen.c~amos a fé até aos inimigos, mostram-no as nas. Com efeito, haviam jurado regressar ao acampamento
tomado pelos cartagineses se não conseguissem obter que
os prisioneiros fossem resgatados. Contudo, nem todos os
129. Cf. 103. Em I.32, Clcero admitia que a justiça não exige o cumpri-
mento dos juramentos feitos sob coação. Aqui, defende a atitude de Régulo
não como jw;ta, mas como heróica {d. p. 173, nota 115} já que o sábio não 131. Mânlio condenou o filho à mo1te por desobedecer às s•.1a~ <xéc:~;
considera;\ dor como um mal, ni!o pode ser forçado a agir injustamente. no Vésere, em 340 a.C. Embora um pal romano pudesse fazê-lo !ec;:t!;:·,ot::
130. Cicero volve à primei111. objeção (101). Clcero considera cruel esse ato. aliás desaprovado ainda no sén;J,, :, .t ..:

178 179
>..
---------Dos deveres--------- ---------~ Livrom _ _ _ _ _ _ _ _ __

autores concordam no relato. Políbio, um dos melhores, afir- midade com o que parecia necessário à sua pessoa e não à
ma que dos dez personagens nobilissimos então enviados, república, ou se resolvesse permanecer em casa - não são
nove voltaram, embora o Senado nada houvesse decidido1'.:. úteis porque são infamantes, vergonhosos e torpes.
O outro, que logo após deixar o acampamento regressara XXXIII.116. Resta a quarta parte da divisão do deco-
como se houvesse esquecido alguma coisa, permaneceu em ro, que consiste na conveniência, na eqüidade, na modés-
Roma. Julgava, mas erroneamente, que aquele regresso o tia, na continência e na temperança. Haverã alguma coisa
isentava do juramento: a fraude reforça, não suprime o per- útil que seja contrária ao conjunto dessas virtudes? No en-
júrio. Foi então uma rusga tola, contrafação perversa da pru- tanto, na esteira de Aristipo, os cirenaicos e os filósofos
dência. ?or isso o Senado decretou que aquele velhaco fosse chamados anicériosl.ll afirmaram que todo bem reside no
conduzido, acorrentado, perante Aníbal. prazer, cuidando que a virtude é louvável na medida em
114. E o que é mais: Anfual mantinha prisioneiros oito que produz p'razer. Entre os tardios floresceu Epicuro como
mil homens, que não tinham sido capturados no campo de defensor e prombtor de uma doutrina quase idêntica. Con-
batalha ou fugido da morte, mas deixados no acampamen- tra esses deve-se combater, como se diz, "a pé e a cavalo",
to pelos cônsules Paulo e Varrão. O Senado não quis resga- se se deseja defender e preservar a honestidade. 117. Pois
tã-los, embora pudesse fazê-lo a baixo custo, a fim de in- se não apenas a utilidade, mas toda felicidade da vida resi-
culcar em nossos soldados a necessidade de vencer ou mor- dem numa sólida constituição física e na certeza futura
rer. O mesmo Políbio escreve que, ao saber disso, Aníbal dessa solidez, como escreveu Metrodoro, é certo que a uti-
esmoreceu ao ver que o Senado e o povo romano, no de- lidade - que julgam soberana - entrará em conflito com a
sastre, mostravam tamanha grandeza de alma. Assim é que, honestidade.
no confronto com a honestidade, tudo que parece útil aca- Primeiramente, que lugar reservaremos ã prudência?
ba superado. 115. Entretanto Adlio, que escreveu sua his- Procurando gozos por toda parte? Que infeliz servidão da
tória em grego, afirma que muitos .mais retornaram ao acam- virtude, escrava do prazer! E qual será a função da prudên-
pamento, valendo-se da mesma rusga para se isentarem do cia? A de escolher criteriosamente os prazeres? Supondo-se
juramento, sendo por isso gravados pelos censores de to- que não há nada mais agradável que isso, podemos imagi-
das as ignomínias. nar algo mais torpe? Junto de que:n afirma que o sofrimen-
Encerremos aqui esse assunto. Com efeito, ficou evi- to é o sumo mal, que lugar ocupa a coragem, que despre-
dente que os atos praticados com ânimo receoso, abatido, za as dores e as penas? Por mais numerosas, com efeito,
submisso, alquebrado - como seria o comportamento de que sejam as passagens onde Epicuro fale corajosamente,
Régulo se, a propósito dos prisioneiros, agisse de confor- como de fato fala, do sofrimento, não devemos considerar
o que ele diz mas o que para ele seria lógico dizer, já que
fez do prazer a medida dos bens e da dor a medida dos
132. Em 216, após a derrota romana em Canas. Em 1.40 (ver nota 51),
Cícero não menciona versões alternativas e conta a hist61ia de modo diferen- males. É como se eu o ouvisse discorrer sobre o autocon-
te de Políbio (Vl.58 ss.) e Acílio: todos permaneceram em Roma e foram gra-
vados de infimia pelos censores (como em Tito l.ivio, XXII.61.9), mas apenas
um tentou o embuste. 133. Ver "Not<ts Biográficas··, "Anicéris".

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---------Dos dever~---------
trole e a temperança: sem dúvida fala muitas coisas em mite essa associação, repele-a, afasta-a. A ni.edida dos bens
.> muitos lugares, mas "a água não cone", conforme o ditado. e dos males, que deve ser simples, L.ão pode constituir
Pois como elogiaria a temperança um homem que coloca o uma mistura ou combinação de elementos díspares. Mas
sumo bem no prazer? Com efeito, a temperança é inimiga sobre essa questão, sem dúvi.da im}Xlrtante, discorri ampla-
dos desejos, e os desejos são amantes do prazer. mente em outro lugar'>fl. Volto, pois, ao assunto.
118. Ora, nesses três domínios, os tais filósofos tergi- 120. Portanto, já dissertamos o bastante sobre a ma-
versam como podem, e não sem argúcia'·''1: apresentam a neira de resolver uma situação quando o aparememente
prudência como a ciência que fornece os prazeres e repele útil entra em conflito com o honesto. Mas mesmo se disser-
as dores. Mostram a coragem, de certa forma, como a ma- mos que o prazer também tem aparêncürde utilidade, não
neira de desdenhar a morte e suportar o sofrimento10ô. Não poderá ligar-se à honestidade porque - concedamos-lhe
sem dificuldade, mas da melhor maneira possível, introdu- alguma coisa -, embora tenha certo valor como tempero,
zem a temperança: sustentam que a intensidade do prazer seguramente não tem nenhuma utilidade.
tem por alvo a eliminação da dor. Quanto 2. justiça, ela va- 121. Ganhas um presente de teu pai, Marco, meu fi-
cila ou antes cai por terra, bem como todas as virtudes que lho, presente que considero de valor inestimável. Vejamos,
dizem respeito à comunidade e aos vínculos sociais do gê- porém, como o acolhes. Em verdade terás de admitir estes
nero humano 1J6 • De fato, nào poderá haver bondade, gene- três livros, como hóspedes, entre as lições de Cratipo:J~. As-
rosidade, cortesia ou amizade 1·1' se essas virtudes não forem sim como e1e ouvirias se eu fosse pessoalmente a Atenas -
buscadas por si mesmas, mas relacionadas ao prazer e à o que teria feito se, em altos brados, a pátria não me cha-
masse de volta no meio do caminhogu -, assim, uma vez
utilidade.
Resumamos em poucas palavras. 119. Como ensina- que com estes volumes minha voz parte para ti, tu lhes
mos que não existe utilidade contrária à honestidade dize- concederás o tempo que puderes - e isso farás, se o quise-
mos que todo prazer é contrário à honestidade. A m~u ver, res. Quando eu tiver certeza de que este gênero de saber te
agrada, em pouco tempo estarei contigo, segundo espero.
mais censuráveis são Califonte e Dinômaco por pensarem
Mas, enquanto estiveres longe, de longe te falarei. Adeus
que encerrariam o debate se associassem o prazer à hones-
tidade, como o animal ao homem A honestidade não ad- então, meu Cícero, e fica sabendo que me és muito caro,
mas muito mais o serás se te alegrares com estas obras e
preceitos.
134. Embora Cícero inicie ~eu ataque aos hedonistas ao tratar da quarta
virtude, pois considera a buoca do prazer incompatível com a modésti~l e a
conveniência . julga que eles violam todas as qu~ttro virtudes.
135. Epicuro afirmava que, mesmo na agonia final, colocaria o prazer
acima da dor.
<:
136. Cícero sust~nta que os epicuristas podem acomodar, embora isso
138. Definibusll contém uma crítica geral da ética epicurista; V.21-2 rr:tt;;
seja implausível, três das viJtudes, mas nào a justiça, a mais importante (cf.,
i·, da combinação do pr~zer com a virtude na definição da finalidade da vicb
porém, p. 142, nota 321. Em pmticular, para Cícero, a abstenção da vid~ públi-
139. Cf. Ll-2. O jovem Cícero fala de seus apontamentos de ~llh\ r.:l c~:
ca contiariava uma das exigências básicas da justiça (p. ex., 1.28).
respondência com Tiro (Fam. XVI.21.8).
137. lns\nuaçào maliciosa, pois os epicuristas valorizavam muito o pr:>-
140. Ver '·Introdução", pp. XIV-XIX.
zer derivado da amizade.

182 183
Notas biográficas
._,-,

(Estas notas incluem apenas nomes mencionados no texto do De


officiis. Para os filósofos gregos, consultar também o "Plano da
obra" e o "Sumário das doutrinas das escolas helenísticas".)

ACÍLIO, Caio (meados do século II a.C.). Senador e escritor romano


que SeiViu de intérprete quando a famosa embaixada ateniense,
composta de fl.lósofos, dirigiu-se ao Senado em 155 a.C. Escreveu,
em grego, uma história que cobria o período desde os primórdios
da civilização itálica até 182 a.C., mais tarde traduzida para o latim.
ÁCIO (170-c. 90 a.C.). Escritor romano, aclamado principalmente por
suas tragédias. Fragmentos de 46 delas chegaram a:é nós. l;tilizou
modelos gregos, notadamente Eurípides, com liberdade. e tam-
bém escreveu sobre temas romanos. Cícero o conheceu na juven-
tude.
AFRICA:~O. VerCORNÉLIO CIPIÃO AFRICANO.
AGA.i\iENÃO. Rei de Micenas ou Argos, que na Ilíada de Homero co-
manda a expedição grega contra Tróia. A tradição segundo a qual
sacrificou sua filha Ifígênia não se encontra em Homero. O sacrifí-
cio ocorreu porque o adivinho Calcas responsabilizou, pela cal-
maria que paralisava a frota, uma ofensa de Agamenão a Ártemis
(a Diana dos romanos) enquanto caçava. A mãe de Ifigênia, Cli-
temnestra, assassinou por vingança o marido quando de seu vito-
rioso regresso de Tróia.
AGESILAU (440-360 a.C.). Como rei de Esparta desde 399, conheceu
o sucesso militar contra os persas e os beócios até ser decisiv-a-
mente derrotado por Epaminondas, na batalha de Leuctras. Sua:.
virtudes foram celebradas por seu amigo Xenofonte no Agesilau.

185
-------~Dos deveres'--------- - - - - - - - - - - Noras biogrZ!(fcas _ _ _ _ _ _ _ _ __

ÁGIS rv. Tornou-se rei de Esparta em 244 a.C. Tentou aumentar a carreira de Milão ilustra o emprego da violência organizada na
força de trabalho e reduzir as desigualdades de riqueza, restau- vida polftica do final da repóblica. Sua rixa com Clódio terminou
rando a "Constituição de Licurgo", o que implicava o cancelamen- com a morte deste pelas mãos dos partidários de Milão, em 52.
to das hipotecas. Foi deposto e executado por ordem dos éforos Embora Ckero o defendesse em seu julgamento, a hostilidade de
em 241. Pompeu assegurou sua condenação. Em 48, voltou a Roma vindo
Á)AX. Herói de grande força e coragem que na Ilíada de Homero de Massília, para promover reformas econômicas radicais, mas foi
contrapõe-se a Ocilsseu (Ulisses) numa luta que simboliza o com- preso e executado em Cosa.
bate entre a força e a astúcia. Na peça de Sófocles do mesmo no- Ar\'TÍGONO (c. 382-301 a.C.). l'm dos generais de Alexandre, o
me, enlouquece e se mata quando as armas de Aquiles, jã morto, Grande, e pai de Demétrio Poliocertes. Depois da morte de Ale-
são dadas a Odisseu e não a ele. xandre, tentou reunificar o Império, mas foi derrotado e morto na
ALBÚCIO, Tito. Pretor, c. 105 a.C. Depois de governar a Sardenha em batalha contra os generais rivais, entre os quais Cassandro.
c. 104, foi condenado por extorsão e enviado para o exílio em ANTÍPATRO (397-319 a.C.). Colaborador íntimo, política e militar-
Atenas, onde cultivou sua paixão pelas letras gregas e a filosofia mente, de Filipe II da Macedônia e de seu filho Alexandre. Assu-
epicurista. miu o comando depois da morte deste. Os dois volumes de cartas
ALEXANDRE, o Grande (356-332 a.C.). Seu pai, Filipe Il, a quem Slh a seu filho Cassandro se perderam.
cedeu no trono da Macedônia, deu-lhe Aristóteles como tutor. ANTÍPATRO DE TARSO. Sucessor de Diógenes da Babilônia como di-
Grande general, fundou um vasto impétio ultramarino, conquis- retor da escola estóica de Atenas, em meados do século II a.C., e
tando 0 Império Persa, inclusive o Egito, e anexando áreas do no- professor de Panécio, que o sucedeu. Defendeu-se por escrito das
roeste da Índia. Sua natureza violenta e vlngati.va levou-o a crimes críticas de Carnéades, o diretor cético da Academia.
que empanaram sua reputação gloriosa. ANTÍPATRO DE TIRO. Filósofo estóico com quem Catão es::udou
ALEXANDRE DE FERES. Govemante de Feres, na Tessália (369-358 filosofia moral e política na juventude: Não confundir com o An-
a.C.). casou-se com sua sobrinha Tebe, filha de seu predecessor típarro mais velho, citado acima.
Jasão. Ela o assassinou, auxiliada por seus três irmãos. Al\lTÔ::-:!IO, Marco. Cônsul em 99 a.C. e avô de Marco Antônio. l\a
AJ.\1ÍLCAR (Barca). Pai de Aníbal. Célebre general cartaginês que en- visão de Cícero, foi um dos maiores oradores de sua época, sendo
frentou Roma pelo controle da Sicília entre 247 e 229/8 a.C., du- o outro Lúcio Lidnio Crasso, que aparece dialogando com ele no
rante a Primeira Guerra púnica, e, depois da deJTota cartaginesa De oratore. Defendeu C. :'-lorbano em 95 a.C. e foi assassinado
em 241, pelo controle da Espanha. Na última campanha foi acom- depois da volta de Mário a Roma em 87.
panhado por seu filho. . APELES. Renomado pintor grego do século IV a.C. Morreu em Cós,
ANÍBAL (247-c. 182 a.C.). Grande general cartag:inês. Herdou do pa1 quando fazia uma cópia aperfeiçoada de seu quadro de Afrodite
a política imperialista em relação à Espanha e o ódio a Roma. Ao (Vênus).
capturar uma cidade aliada de Roma, Sagunto, precipitou a Segun- AQUÍUO, Mânio. Depois de servir sob as ordens de Mário na guerra
da Guerra Púnica (218-201), durante a qual invadiu a Itália pelo contra os cimbros, foi seu colega de consulado em 101 a.C. Em-
norte. Não conseguindo separar os aliados de Roma, finalmente bora lograsse reprimir uma revolta de escravos naquele ano. na
evacuou a Itália e foi derrotado em Zama, norte da África, por Ci- Itália foi acusado mais tarde de peculato; defendido por Mário e
pião, o Africano, em 202. Antô~io, acabou absolvido. Serviu numa missão à Ásia cuja finali-
ANICÉRIS. Filósofo da Escola Cirenaica, fundada por A!istipo. Mor- dade era induzir Nicomedes da Babilônia a atacar Mitridares, que
reu em 283 a.C. Modificou a doutrina, mas manteve o prazer como aprisionou e eliminou Aquílio em 88.
finalidade da vida. AQUÍUO GALO, Caio. Senador, jurista e, como Cicero, pupilo de Q.
ÂNIO MILÃO, Tito. Um dos aliados políticos de Ckero que se opôs a Múdo Cevola, o pontifice. Depois de exercer o cargo de pretor
Clódio e propiciou o retorno de acero do exílio, em 57 a.C. A em 66 a.C., no mesmo ano que Ckero, devotou-se ao Dirdco.

186 187
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Notas biográficas _ _ _ _ _ _ _ _ __
________ Do,""-'-------- .;,'
··i
do a rendição de C. Hostílio Mancino aos numantinos, na Espa-
Criou as formulae de dolo maio que permitiam a cada parte alegar nha, como expiação pelo repúdio do Senado ao tratado feito com
a má-fé da outra num processo (cf. De natura deorum III.74) e eles por Mancino.
também simplificou os processos de anulação de dívidas. ATREV. Pai de Agamênon. De acordo com a mitologia grega, levou
ARATO (271-213 a.C.). Depois do assassinato de seu pai em 264, par- sua farrúlia à desgraça assassinando os filhos de seu irmão Tiestes
tiu para Argos, de onde voltou para libertar a terra natal, Sicione, e servindo sua carne num banquete ao qual este foi atraído por
do jugo de Nícocles, o último de uma série de tiranos. Evitou no- fraude ou, na versão de III.102, por juramento.
vas dissensões civis conseguindo dinheiro de Ptolomeu Filadelfo, AUFÍDIO ORESTES AUREilANO, Cneu. Edil em 79 a.C., tornou-se
do.Egito. vmculou Sidone à Liga Aquéla, da qual se tornou chefe. pretor em 77, mas aparentemente nunca alcançou o consulado,
ARISTIDES. Político ateniense do século V a.C., freqüentemente de- apesar de sua popularidade como edil.
nominado "o Justo" por sua reputação de honestidade. Foi gene- AURÉLIO COTA, Caio. Político romano cuja técnica oratória foi elo-
ral na batalha de Maratona, em 490 a.C., e ocupou o posto de ar- giada por Cícero em várias obras retóricas. Companheiro de L. Li-
conte em 489. Derrotado em seu conflito pol!tico com Temísto- cínio Crasso na juventude, foi exilado e mais tarde perdoado por
cles. foi condenado ao ostracismo em 482, mas, chamado de volta Sila. Como cônsul, em 75 a.C., apoiou a demanda popular pela
às ~ésperas da invasão de Xerxes, cooperou com Temístocles na devoluç~o de poderes ao tribuno da plebe. Defende a posição
vitória de Salamina em 480 e, mais tarde, na reconstrução de cética acadêmica no De natura deorum, de Cicero.
Atenas. Arquiteto da Liga Délia, fixou o tributo para os Estados- BARDÍUS. Chefe ilírico que fundou um reino no norte da Macedônia
membros. Mon-eu pobre. no século IV a.C. Morreu lutando contra Filipe Il da Macedônia.
:'; ARISTIPO. Tradicionalmente, o fundador da Escola Cirenaica, no fL- BRUTO. Ver ]ÚNIO BRUTO.
nal do século V a.C., e companheiro de Sócrates. Ensinou que o CAIJCRÁTIDES. Comandante da frota espartana quando os atenien-
prazer sensual era uma finalidade adequada para a vida. ses, em 406 a.C., obtiveram a grande vitória de Arginusas. na costa
ARJSTÓTELES (384-322 a.C.). Nascido em Estagira, na Calcídica, estu- da Ásia Menor, dois anos antes da derrota final na Guerra do
dou na Academia de Atenas até a morte de Platão. Fundou o Peloponeso.
Liceu a Escola Peripatética. Seu ensino era enciclopédico; desen- CALIFONTE. Filósofo grego que tentou reconciliar as visões epicuris-
volve~ as disciplinas da ética, política, história, 1-etórica, poética, ta e estóica sobre a finalidade da vida, afirmando que a virtude é
psicologia, filosofia natural e metaffsica. Fundou també~ o estudo .1! inicialmente procurada como um meio para o prazer, mas depois
sistemático de meteorologia, lógica e zoologta. Seus diálogos po- se torna um fim em si mesma. As datas de sua vida são incertas.
pulares, hoje perdidos, estavam ainda disponíveis nos tempos de CAlJPSO. Ninfa que, na Odisséia de Homero, detém o herói por sete
Cícero. Os "trabalhos esotéricos" que hoje conhecemos, no entan- anos na ilha Ogígia.
to, podem ter sido pouco estudados até uma ediçã~ deles ser ~:_-e­ CAlPÚRNIO LANÁRIO Püblio. Provavelmente o mesmo oficial que
parada por Andrônico, assistido pelo amigo de C1cero, Trramao, serviu na Espanha e~ 81 a.C. sob as ordens de C. Ânio.
talvez depols da morte de Cícero. , CALPÚR.."\!IO PISÃO, Lúcio. Fez aprovar a primeira lei sobre extorsão
ATÍLIO RÉGULO, Marco. Como cônsul em 267 a.C., tomou BrundJ- como tribuno da plebe em 149 a.C. Cônsul em 135 e censor em
sio. Cônsul novamente em 256, lutou com sucesso cono:a Cartago, 120. Sua obra Annales narrava a história de Roma desde as ori-
mas acabou deJTOtado e capturado em 255. Cinco anos mais tarde, gens até a época do autor, datando o declínio da moralidade de
depois que alguns nobres cartagineses foram aprisionados, foi en- Roma de 154 a.C.
viado a Roma para negociar seu resgate, sob Juramento de r_eto.r- CÂ..'liO, Caio. Cavaleiro romano conhecido apenas em III.58-9, epi-
nar se não persuadisse o Senado. A história de seu auto-sacri.flcJo sódio claramente datado (em III.60) como anterior a 66 a.C.
' ··~· CASSANDRO (358-297 a.C.). Filho de Antípatro. Serviu a Alexand:e.
foi também celebrada por Horácio nas Odes III.S.
ATÍLIO SERR&."lO, Sexto. Cônsul em 136 a.C., ele e seu colega, com o Grande, na Ásia e, depois da morte de seu pai, resistiu ao plano
0 apoio do Senado, apresentaram à assembléia o édito autorizao-

189
188
---------Dosdrmeres--------- - - - - - - - - - - - N o t a s biográficas-----------

de Antígeno de reunificar o império de Alexandre, lutando pam em Heródoto (nossa principal fonte para os eventos de 481-479
preservar seu próprio poder na Macedônia e na Grécia. :.C.), foi transmitido pelo orador Demóstenes (Sob1·e a coroa 204).
CATÀO. VerPÓRCIO CATÃO. CLAUDIO CENWMALO, Tibério. Conhecido apenas por III.66, um
CÁTULO. VerLLlÁCIO CÁTIJLO. episódio datável como anterior a 91 a.C., ano em que morreu
CECÍLIO METELO MACEDÓNICO, Quinto. Em 146 a.C., celebrou seu
Pórcio Catão, ali mencionado.
triunfo sobre o rei da Macedônia. Em 143, como cônsul, lutou
CLÁUDIO MARCELO, Marco. Cônsul cinco vezes, matou em comba-
com sucesso contra os numantinos e em 131 tornou-se censor. te singular o rei dos ínsubros (tribo da Gália) em 223 a.C., tornan-
Opôs-se à tentativa de Tibério Graco de assegurar, media,nte lei
do-se então o terceiro e último general a obter os spolia opima
popular, o legado do rei Átalo de Pérgamo para o programa de
("espólios abundantes"). Em 212, capturou Siracusa, na Sidlia,
distribuição de terras.
durante a Segunda Guerra Fúnica.
CECÍLIO METELO NUMÍDICO, Quinto. Como cônsul em 109 a.C.,
logrou alguns sucessos contra Jugurta na África, mas foi depois CLÁUDIO FULCRO, Caio. Como edil em 99 a.C., exibiu elefantes no
substituído no comando por Caio Mário, indicado por voto popu- Circo Máximo pela primeira vez. Tornou-se cônsul em 92.
lar. Contrariamente a 111.79, outras fontes afinnam que Metelo in- CLEÓMBROTO. Comandante espartano na batalha de Leuctras, quan-
sultou Mário quando este pediu permissão para voltar a Roma a do os tebanos chefiados por Epaminondas impuseram uma desas-
fim de candidatar-se ao consulado. Em 100, Metelo foi o único trosa derrota aos lacedemônios. Sua temeridade deveu-se ã vontade
senador que se recusou a jurar observância à Lei Agrária de Sa- de afastar suspeitas de simpatia pelo inimigo.
tumino. Exilado, foi chamado de volta um ou dois anos depois. CLÓDIO FULCRO, Públio. Na verdade um membro da fam11ia patri-
Cícero via nele um modelo para seu próprio exílio e regresso. cia dos Clãudios, valeu-se da pronúncia popular de seu nome
CÉSAR, Calo. Filho de Lúcio. Ver )ÚUO CÉSAR ESTRABÃO VOPIS- para, mais tarde, transferir-se para a classe dos plebeus e tornar-se
CO, Caio. tribuno da plebe em 58 a.C. Nessa qualidade conseguiu o exílio
CÍCERO (filho). VerTÜLIO CÍCERO. de Cicero, que apresentara provas contra ele num processo por
CÍMON. Político ateniense da primeira metade do século V a.C. Filho sacrilégio em 61. Entre outras medidas democráticas, apresentou
de Milcíades, vencedor da batalha de Maratona em 490, destacou- uma lei contra os magistrados que condenassem cidadãos roma-
se após a vitória final sobre a Pérsia em 480/490. Suas vitórias na- nos à morte sem julgamento, como Cícero flzera com os conspira-
vais dilataram o poderio ateniense e asseguraram um período de dores de Catilina. Depois da colÚerência de Luca em 56, apoiou a
paz com a Pérsia. Sua admiração por Esparta, conservadorismo coalizão de Pompeu, César e Crasso. Em 52, quando era candida-
constitucional e liberalidades aristocráticas provocaram a oposição to ã pretura, foi assassinado pelos partidários de Milão.
de seus rivais políticos democráticos. COCLES. VerHORÁCIO.
CIPIÀO. VerCORNÉLIO CIPIÀO. COLATINO. VerTARQÜÍNIO COLATINO.
CIRCE. ~a Odisséia de Homero, ninfa que reteve o herói Ulisses em CÓNON. Almirante ateniense de fms do século V a.C. Depois que os
sua ilha por um ano. atenienses foram derrotados por Esparta em 405, tentou obter a
CIRO. Fundador do Império Persa, que governou entre 559 e 529 ajuda persa e acabou por derrotar os espartanos em 394.
a.C. Era, para os gregos, um modelo de comandante militar, ape- CO&">ffiLIO CIPIÃO, Cneu. Suposto irmão mais novo de Públio Cor-
sar de tê-los submetido na costa da Ásia Menor. Xenofonte f.tz nélio Cipião (1), cônsul em 222 a.C. Foi morto na Espanha duran-
dele um retrato idealizado na Educação de Ciro, obra muito po- te a Segunda Guerra Púnica, após derrotar o irmão de Aníbal, As-
pular em Roma. drúbal, e capturar Sagunto em 212.
CIRSILO. Ateniense apedrejado até a mOLte por seus concidadãos CORNÉLIO CIPIÃO, Fúblio (1). Como cônsul em 219 a.C., lutou e
quando propôs a rendição ao rei persa Xerxes, em lugar da eva- morreu ao lado de seu innão Cneu. Foi pai de Cipião Mricano, cue
cuação da cidade e a resistência. O relato, que não se encontra finalmente derrotou Aníbal.

190 191
--------------------Drud~r~-------------------- ------------------- Noras biográficas-------------------

CORNÉLIO CIPIÃO, Püblio (2). Filho mais velho do Africano. Emi- CORI\'ÉLIO LÊNTULO ESPÍNTER, Púb!io. Como edi! em 63 a.C., ano
·~ nente orador, escreveu uma história em grego, mas a má saúde do consulado de Cícero, deu grandes espetáculos. Cônsul em 57,
impediu-o de seguir a carreira pública. Adotou o filho mais velho apoiou ativamente o retomo de Cícero do exílio.
de Lúcio Emílio Paulo. COM'ÉLIO SILA, Lúcio (c. 138-78 a.C.), o Ditador. Após exercer o
CORNÉLIO CIPIÀO AFRICANO, Públio (236-184/3 a.C.). Usualmente consulado em 88 e marchar sobre Roma com seu exército para
refelido por Cícero como o "primeiro" ou "mais velho" Africano. garantir o comando contra Mitridates, rei do Ponto, concluiu a paz
Eleito ainda muito jovem para o comando na Espanha, durante a de Dárdano com o rei e invadiu a Itália em 84. DeJTotou seu ini-
Segunda Guerra Púnica, obteve brilhantes sucessos. Cônsul em migo politico Mário e tornou-se ditador em 82. Tratou primeira-
205 a.C., invadiu a África, apesar da oposição senatorial, e, em mente da proscrição de seus inimigos, confiscando-lhes as pro-
202, derrotou Aníbal na batalha de Zama, pelo que recebeu o cog- priedades e negando-lhes o benefício da lei. Em 81, implantou um
programa legislativo destinado a ampliar o controle político do
nome de Africano. Em 194 foi cônsul novamente, acompanhou
Senado. Cícero deplorava seus métodos, mas respeitava suas leis.
seu irmão Lúcio que tinha o comando do Oriente e viu-se envol-
CORi'rÉUO SILA, Públio. Parente do Ditador, lucrou muito com as
vido no processo por má conduta movido contra este. proscriÇÕes e ajudou a fundar uma colônia de veteranos em Pom-
CORKÉUO CIPIÃO AFRICANO EMlLIA.~O, Públio. Como seu nome péia. Eleito cônsul em 65 a.C., ficou permanentemente desquali-
indica, era filho de Lltcio Emílio Paulo e foi adotado por Públio ficado para o cargo apôs ser acusado de suborno na eleição. Em
Coméiio Cipião (2). Em 147 a.C., durante a Terceira Guerra Púnica, 62, julgado como sequaz de Catilina, foi defendido com sucesso
conseguiu eleger-se cônsul sem ter exercido nenhum dos cargos por C1cero. Mais tarde, tomou o panido de César na luta contra
inferiores. Conquistou e destruiu Cartago em 146. Cônsul nova- Pompeu.
mente em 134, partiu para a difícil guerra da Espanha, onde des- CRASSO. VerLICÍKIO CRASSO.
truiu a cidade de Numância em 133. Ao retomar a Roma no ano CRATIPO (Marco Túlio Cratipo). Eminente filósofo ?erip>Ctético nasci-
seguinte, desaprovou francamente os métodos de Tibério Graco e, do em Pérgamo. Inscrições existentes nessa localidade irlonr.~m
em 129, defendeu a causa dos italianos que haviam perdido suas que tomou o nome da familia de C1cero após obter de César "
terras pela legislação dos Gracos. Foi encontrado morto, havendo cidadania romana, por intercessão daquele (cf. Plurarco. Cícero
se espalhado rumores de assassinato. Com base em sua anúzade 24). Originalmente discípulo de Antíoco de Ascalão. abandonou ;t
com o historiador grego Políbio, nos anos de juventude, e com o Academia e ensinou como peripatético em Mitile~e, na ilha cie
filósofo Panécio, na década de 130, Cícero imaginou-o um político Lesbos, em julho de 51 a.C., quando conheceu Cícero que se diri-
que combinava patriotismo, moralidade e bom senso com a cultu- gia para sua província da Cilícia. Pertencia a uma classe social que
ra grega, e fê-lo o principal interlocutor do De re publica. se dava muito bem com os aristocratas romanos, entre os quais
Pompeu e Bruto. Cícero persuadiu o Areópago a convidá-lo para
CORNÉLIO CIPIÃO NASICA, Públio. Filho de Cipiào )J"asica Serapião.
lecionar em Atenas, onde foi professor e companheiro do filho de
Cônsul em 111 a.C., morreu nesse mesmo ano. Ckero elogiou-o :;. Cícero: jantava com ele (Fam. XVI.21.3) e oferecia-se para acom-
por sua inteligência (Brutus 128), e Posldônio, por sua virn.lde. panhá-lo em viagem (Fam. XTI.16.2).
CORNÉLIO CIPIÀO NASICA SERAPIÀO, Públio. Neto de Cipião Mri- CRISIPO (25()...207 a.C.). Terceiro diretor da Stoa, depois de Zenão e
cano Co Velho) e sobrinho dos irmãos Gracos, foi pontifex maxí- Cleantes. Foi considerado o segundo fundador da Escola Estóica
mus (chefe da religião do Estado) e cônsul em 138 a.C. Quando porque, em seus volumosos escritos, dispôs as doutrinas em per-
Tibério Graco tentou reeleger-se tribuno em 133 e foi acusado de feita ordem lógica.
aspirar ã tirania, tomou a lei em suas próprias mãos e conduziu um CVRIÃO. Ver ESCRIBÓNIO CURIÃO.
bando de senadores contra Tibério, que foi assassinado no confli- DÂMON. Pitagórico de Siracusa. Sua amizade por Fíntias foi demons-
to. Considerado um vilão pelo povo, partiu pam a Ásia como em- trada - segundo uma versão, deliberadamente testada - quando
baixador, por designação do Senado, e morreu em Pérgamo. se ofereceu como refém em gamntia da apresentação do amit<CI.

192 193
_ _ _ _ _ _ _ _ _ Notas biográficas _ _ _ _ _ _ ___
---------------D>~---------------

que havia sido sentenciado ã morte por Dionlsio II, tirano de Si- putação ficou comprometida pelo fato de Platão ter malogrado na
racusa. tentativa de exercer influência sobre ele e seu filho (;.;baLxo).
DÉCIO MUS, Públio. Pai e filho do mesmo nome se sacrificaram por DIONÍSIO TI. Filho de Dionísio I e tirano de Siracusa (367-344 a.C.)
Roma, o pai em batalha contra os latinos em 340 a.C., o fllho em que rejeitou os ensinamentos de Platão e a influênci~ de seu tio
combate contra os samnitas, úmbrios e seus aliados em 295 (Tito Díon. Após o governo temporário deste, regressou a Siracusa em
Uvio VIII.9, X.28). 347, mas foi derrotado por Timoleào em }±4. Vh.,eu exilado em
DEMÉTRIO FALÉRIO. Filósofo peripatêtico e politico ateniense. De- Corinto por muitos anos.
signado por Cassandro, então governante da Macedônia, como DRUSO. VerÚ\110 DRUSO.
chefe absoluto em Atenas por dez anos (317-307 a.C.), fez aprovar ÉACO. Na mitologia grega, avô de. Aquiles. Tornou-se juiz nos In-
leis sob a influência de Teofrasto, mas foi deposto quando Demé- fernos.
trio Poliocertes tomou Atenas. Cícero o elogiou como um exemplo ÉUO TUBERÃO, Quinto. Sobrinho de Públio Cornélio Cipião
raríssimo de rei-filósofo (Leg. ITI.14). Durante algum tempo ocu- Emiliano e disdpulo do filósofo estóico Panécio. Foi senador e ex-
pou um cargo na biblioteca de Alexandria. celente advogado. Na opinião de Cícero, a austeridade estóica afe-
DEMÉTRIO POLIOCERTES (336-283 a.C.). Sucedeu a seu pai, Anti- tou negativamente a oratória de Tuberão (Brut. 117).
gano, como rei da Macedônia, em 294. Seguiu a politica paterna EMÍLIO ESCAURO, Marco (1). Político de fms do século IJ a.C. e iní-
de reconquista do Império de Alexandre, mas os macedônios o cio do I, a quem Clcero muito admirava. Oriundo de família aris-
abandonaram pelos invasores Lisúnaco e Pirro. tocrática empobrecida, chegou a cônsul em 115 a.C. e a censor
DEMÓSTENES (384-322 a.C.). Orador ateniense particularmente ad- em 109. Conhecido por sua política conservadora, aparece em
mirado por Cícero (veriSÓCRATES). Salústio como um desonesto intrigante.
DIANA. Deusa itãlica identificada com a Ártemis grega, a caçadora. EMÍLIO ESCAL~O, Marco (3). Filho do anterior. Como edil em 58
DICEARCO. Filósofo peripatético siciliano do século IV a.C., discípu- a.C., promoveu jogos particularmente magníficos. Pre:or em 56.
lo de Aristóteles e contemporâneo de Teofrasto. Restam-nos ape- foi em 54 defendido com sucesso por Cícero, em um julgamento
nas fragmentos de suas obras. onde era acusado de extorsão durante seu governo na Sardenha.
DINÓMACO. Filósofo grego de época incerta, que tentou reconciliar Em 52, foi condenado por crime eleitoral, cometido durante sua
as visões epicurista e estóica sobre a finalidade da vida. Nas fontes campanha para o consulado.
· antigas, é em geral citado juntamente com Califonte. EMÍLIO LÉPIDO LMANO, Mamerco. Cônsul em 77 a.C., após ser
DIÓGENES DA BABILÔNIA (c. 240-152 a.C.). Discípulo de Crisipo e anteriormente derrotado para o cargo, talvez em 78, em virtude de
mestre de Antipatro de Tarso, que o sucedeu como diretor da Stoa não ter exercido as funções de edil, que proporcionavam grande
em Atenas. Junto com o acadêmico Carnéades e o peripatético popularidade.
Critolau. foi enviado como embaixador a Roma em 155 a.C., para EMÍLIO PAULO, Lúcio (1). Como cônsul em 219 a.C., alcançou bri-
pleitear ·a suspensão de uma multa imposta a Atenas pelo saque lhante vitória na Segunda Guerra ;lírica. Mas em 216, novamente
de Oropo. cônsul, estava no comando durante a terrível derrota romana em
DÍO:'\f (c. 408-354 a.C.). Tio de Dionísio II, tirano de Siracusa. Mos- Canas, frente a Aníbal. Foi morto na batalha.
trou-se vivamente impressionado pelos ensinamentos de Platão, EMÍliO PAUW, Lúcio (2). Pai natural de Públio Cornélio Cipião
que visitou a cidade em 389 a.C. Tentou fazer de seu sobrinho um Emiliano. Em seu terceiro consulado (168 a.C.), pôs termo à Ter-
rei-fllósofo, mas acabou exilado. Atacou Siracusa de surpresa em ceira Guerra Macedônica com a vitória de Pidna, reservando-se
357, valendo-se da ausência de Dionísio, e passou ele próprio a como despojos pessoais apenas a biblioteca do rei Perseu. Seu
governar no estilo autocrático, o que levou seu colega acadêmico triunfo foi empanado pela morte de seus dois filhos mais novos.
Calipo a assassiná-lo em 354. Os dois mais velhos foram adotados por Fábio e Comélio Cipião.
DIOhiSIO I. Tirano de Siracusa. Estendeu o dorrúnio siracusano por ÊNIO. Primeiro poeta latino a escrever um poema épico, Annales,
toda a Sicília e sul da Itália, tornando próspera sua cidade. Suare- em doze livros, utilizando como metro o hexâmetro grego. Tam-

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--------------~Drud~~----------------- - - - - - - - - - - N o t a s biográficas _ _ _ _ _ _ _ _ __

bém escreveu peças, das quais é extraída a maioria das citações assassinou e ocupou seu posto em 86 a.C.). Primei:·o de sua famí-
de Qcero, como se percebe pela metrificação. lia a alcançar a dignidade consular, serv:u como colega de Mário
EPAMINONDAS. Figura notável na restauração da importância políti- em 104 a.C. Em seguida governou uma pro>·ínci:t. s.:ndo poste-
ca de sua terra natal, Tebas, durante os anos 370 a.C. Na batalha de riormente acusado de extorsão e absol"l"ido. ).Jorreu em 91. Ckero
Leuctras, em 371, derrotou decisivamente o exército espartano inva- elogia seu bom senso e sua firmeza como orador e senado: em
sor e prosseguiu a campanha para libertar a Arcãdia e a Messênia do Brutus 129.
jugo lacedemõnico. FAETONTE. Na mitologia grega, filho de Hé!ics (5ol). Cj'..l<: lhe per;r.t-
EPICURO (341-271 a.C.). Cidadão ateniense nascido em Samos, fun- tiu dirigir seu carro por um dia. Foi morto por Zeus (Júpiter) quan-
dou em Atenas, em 307, uma escola filosófica chamada "O Jardim" do sua inabilidade para controlar os cavalos lü.lOrtais ameaçou in-
por causa de suas doutrinas. Em termos éticos, ensinava que a cendiar o mundb.
finalidade da vida era o prazer, embora interpretasse a vida praze- FALÁR!S. Tirano de Agrigento, na Sicília, durante o segundo ql.lomd
rosa quase como austera. Adotou e aperfeiçoou a teoria atômica do século VI a.C. Também governou Hirnera antes de ser apedre-
de Demócrito jado até a morte por seus súditos. Erd famoso pela crueldàde e
ERILO. Ver HERILO. dizia-se que assava suas vítimas dentro de um touro de bronze,
ESCAURO. Ver EMÍLIO ESCAL"RO. FILIPE. Filho de Antígeno e irmão de Demétrio Poliocertes.
ESCR1BÓNIO CURIÃO, Caio. Após combater sob o comando de Sila FIUPE II. Rei da Macedônia (359-336 a.C.) e pai de Alexandre, o
no Oriente, tomou-se cônsul em 76 a.C. e censor em 61. O inci- Grande. Unificou a Macedônia, aperfeiçoou o desempenho tãtico
dente registrado por Cícero em III.88 deve ser anterior â sua morte de suas tropas e, graças a uma combinação de força e diplomacia,
em 53 e posterior a 89, quando a maioria dos transpadanos pas- conquistou a Grécia. Foi assassinado quando estava prestes a con-
sou a gozar dos direitos latinos, enquanto o resto da Itália, inclu- duzir os exércitos aliados da Macedônia e da Grécia contra o Im-
sive ao sul do Pó, recebia plena cidadania romana. Como censor pério Persa.
em 65, Marco Licfnio Crasso apoiou sem sucesso a reivindicação F1UPO. Ver MÁRCIO FILIPO.
de cidadania romana por pàrte daquele povo, a qual lhe foi final- FÍNTIAS. Ve1·DÂMON.
mente garantida por Júlio César em 49. FÚFIO, Lúcio. Mencionado muitas vezes por Cícero como um orador
ESOPO. Ator famoso, mais comedido que seu contemporâneo Ró~cio medíocre. Não teve êxito em sua acusação a Mânio Aquilio.
e, portanto, inadequado para o papel de Ájax, que segundo a len- FÚR10 F1LO, Lúcio. Cônsul em 136 a.C. com Sexto Atflio Serrano.
da enlouqueceu. Deu a Ckero lições de dlcçilo. Apresentou à assembléia, junto com seu colega, o decreto que
EURÍPIDES (c. 485-406 a.C.). Poeta trágico grego. Das oitenta peças autorizava a entrega de Hostflio Mandno aos numantinos. Ele pró-
que escreveu, a maioria tragédias, restam-nos dezenove. Cícero prio o acompanhou e, como um dos interlocutores do De re publi-
cita aqui As fenícias e Hipólito. ca, relata o episódio QII.28).
FÁBIO LABEÃO, Quinto. Cônsul em 183 a.C. Em Brutus 81, Cícero GIGES. Rei da Lídia (c. 685-657 a.C.). Conquistou o trono e fundou a
menciona uma pessoa desse nome, provavelmente seu filho, ver- dinastia Mermnada após assa.~sinar o rei Candaules com a coope-
sacia em leis, literatura e antiguidades. ração da esposa deste. Cícero utiliza a versão da República de Pla-
FÁBIO M.ÂXIMO VERRVCOSO, Quinto. Recebeu a alcunha de Cun- tão, segundo a qual Giges era um caçador que executou a façanha
tacto1· (Contemporizador) devido à tãtica que utilizou para deter graças a um anel m.ãgico que o tornava invisível. Heródoto afirma
Aníbal dtlrante a Segunda Guerra P(mica. Como ditador em 217 a.C. que ele teve a oportunidade por servir na guarda real.
e, mais tarde, durante seu terceiro e quinto consulados, moveu GRACO (1). VerSEMPRÓNIO GRACO.
uma guerra de desgaste, levando Roma a recuperar-se das desas- HECATÃO. Filósofo estóico de Rodes, disdpulo de Panécio. A ele
trosas derrotas nas batalhas do lago Trasimeno (217) e Canas (216). são atribuldas obras sobre ética, incluindo a mencionada em III.63
FABRiCIO LUSCINO, Caio (chamado "ex-cônsul" por Cícero para dis- e 89, das quais, porém, só subsistem fragmentos (muitos deles de
tingui-lo de seu famoso contemporâneo de mesmo nome, que o atribuição problemática).

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---------Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Notas biogr4ficas _ _ _ _ _ _ _ _ __

HÉRCULES. Nome latino do herói mítico grego Héracles, conhecido paz por intermédio de seu questor Tibério Semprônio Graco.
por seus doze trabalhos e outros feitos de força e resistência. Cíce- Quando o Senado repudiou o tratado por sugestão de Cornélio
ro alude em I.118 a uma tradição segundo a qual ele seria um dos Cipião Emiliano, Mancino aceitou o decreto apresentado pelos
muitos filhos de Júpiter, o rei dos deuses. cônsules de 136, Lódo Fúria Filo e Sexto Atílio Serrano, que o
HERILO de Cartago. Discípulo do filósofo estóico Zenão e fundador entregava ao inimigo como expiação. Mas os numantinos o de>"ol-
de uma seita estóica dissidente que desapareceu por volta de 200 veram e ele foi mais tarde readmitido no número dos cidadtos
a.C. Sobre suas doutrinas heterodoxas, ver I.6. roman05, voltando a ocupar cargos púbEcos.
HERÓDOTO. Primeiro historiador grego, nascido em Halicarnasso. IFIGÊNlA. Ver AGA..l\1ENÀO.
Compôs, na segunda metade do século V a.C., uma história das ISÓCRATES (436-338 a.C.). Grande orador acenleme. do qLial :es:arr::
relações entre gregos e persas até a derrota destes em Platéia e vinte e um discursos. Era rival de De:nós:e1:es, a c~:~:;; po:1:ica dt
Mícale, em 479 a.C. hostilidade para com a Macedônia se opunha. fa1·o~eceoKio '~n::2.
HESÍODO. Poeta grego que viveu na Beócia provavelmente durante campanha conjunta da Grécia e da :'V!acedônia contra O.'> pers~'.s.
a segunda metade do século VIII a.C. Seus poemas mais notáveis )ASÃO de Feras. Como tirano de Feras, na Tessália. entre c. 385-.3~0
são a Teogonta, sobre as relações entre os deuses, e Os trabalhos a.C., esforçou-se por criar e governar um Estado tessãlico unido.
e os dias. sobre a vida no campo. mas seus desejos mais ambiciosos foram calados pela mão de um
HIPÓLITO. Na mitologia grega, filho de Teseu e da amazona Hipóli- assassino.
ta. Muitas tragédias antigas, inclusive a de Eurlpides, que chegou JOVE, ou Júpiter. Deus romano identificado com o Zeus grego, rei
até nós, contam a história da paixão que sua madrasta, Pedra, nu- dos deuses, protetor dos tratados e juramentos.
triu por ele. Vendo-se rejeitada, Pedra lançou-lhe acusações falsas JUGL'RTA. Designado pelo rei Micipsa, morto em 118 a.C., como um
que enfureceram Teseu quando este regressou a casa e levaram-
dos três governantes conjuntos da 1\umídia, na África. Matou um
no a usar um dos três desej05 anteriormente garantidos a ele por
deles e moveu guerra ao outro. A opinião pública por fim forçou
Netuno, o deus do mar, para obter a morte de Hipólito. O deus
o Senado a tomar uma atitude enérgica e enviar contra ele Quinto
enviou um monstro marinho para matã-lo.
Cecília Metelo (depois Num1dico). Mais tarde Caio Mãrio obteve
HOMERO. Poeta cego, autor da Ilíada e da Odisséia segundo a tradi-
esse comando por voto popular (107 a.C.), mas )ugurta só foi cap-
ção grega. O periodo de vida de Homero, o local de seu nasci-
mento e a autoria comum dos dois poemas jã suscitavam contro- turado em 105. Conduzido no triunfo, foi depois estrangulado em
vérsias nos tempos antigos. Não resta dóvida de que os poemas, Roma.
na forma em que os conhecemos, contêm material cuidadosamen- JÜUO CÉSAR, Caio (o Ditador). Orgulhava-se de seu parentesco, por
te selecionado do acervo de contos tradicionais e unificado por casamento, com caio Mário e tomou o partido dos populares na
um grande artista antes de 700 a.C. política. Além de obter as magistraturas ordinárias, foi eleito ponti-
HORÁCIO COCLES. Segundo a tradição romana, guerreiro que fex maxtmus em 63 a.C. graças ao pródigo emprego de subornos.
defendeu a ponte do .Tibre com uma só mão contra o exército de Nesse ano, suspeitas de seu envolvimento na conspiração de
Lars Porsena, invasor etrusco (Tito Uvio, li. lO). Catilina foram alimentadas por sua oposição à pena capital para os
HORTÊNSIO HORTALO, Quinto (114-50 a.C.). Cônsul em 69 a.C., foi conjurados, no debate senatorial presidido por Cícero. Fez aprovar,
o maior orador de s"J.a geração até ser superado por Cicero. ã força, uma legislação radical durante seu consulado em 59 e,
Possuía um estilo florido e ricamente ornamentado, além de uma mais tarde, formou uma coalizão com Pompeu e Crasso, comu-
memória magnífica. Cícero, cujas boas relações com o rival mais mente conhecida como "primeiro triunvirato". Invadiu a Itãlia em
velho foram atribuidas por Nepos ã amizade comum com Ático 49, recusando-se a entregar seu comando na Gãlia e dispondo-se a
(Atttcus 5), presta-lhe uma tocante homenagem no Brutus. enfrentar acusações políticas. Nos intervalos da guerra civil cont:-a
HOSTÍLIO .MANCINO, caio. Como cônsul em 137 a.C., foi derrotado Pompeu e seus aliados, fez aprovar grande número de leis e pro-
pelos numantinos no leste da Espanha e negociou um tratado de clamou-se ditador. Foi assassinado em 15 de março de 44 a.C.

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----------Dosdeve1·es---------- - - - - - - - - - N o t a s biogrâftca.s - - - - - - - - - -

JÚLIO CÉSAR ESTRABÀO VOPISCO, Caio. Eminente orador, aparece locutor do De oratore. Cicero admirava igualmente sua política
como principal interlocutor no De oratore de Cícero, onde discor- conservadora moderada. Crasso foi colega de Q. Múcio Cévola, o
re sobre a inteligência. Após acusar T. AJbúcio com sucesso na ju- pontífice, na edilidade, na pretura e finalmente no consulado, em
ventude, tornou-se edil em 90 a.C. e tentou, no ano seguinte, can- 95 a.C., quando legislou contra aliados que tentavam se passar
didatar-se ilegalmente para o consulado, sem haver ocupado a por cidadãos. Sua Lex Licinia Mucia Irritou os italianos e foi a
pretura. Foi assassinado depois do retorno de Má1io a Roma, em causa da Guerra Social, que durou quatro anos. Em 92, como cen-
87. Por parte de sua mãe Pompília, era meio-irmão de Q. Lutácio sor, proibiu o ensino de retórica em latim. Faleceu em 91, quando
Cãtulo (1). apoiava o programa do tribuno Lívio Druso, que desejava fazer
JÚKIO BRUTO, Lúcio. Tradicional fundador da República Romana. concessões a vários grupos hostis, inclusive os i:alianos.
Chefiou a ievolta contra os reis Tarqüínios e foi dos primeiros LICÍNIO CRASSO DIVES, Marco. Aliado de Sila na guerr:J. civi: contra
cônsules de Roma. Ao descobrir que seus filhos conspiravam com Mário, durante os anos 80 a.C. Suprimiu a revolta dos escrnvos
os sobrinhos de seu colega consular L. Targüínio Colatino, matou- liderada por Espánaco no início dos anos 70 e nesse mesmo ano
os e obrigou o colega a abdicar do cargo e afastar-se de Roma. tornou-se c6nsul juntamente com Pompeu. Foi membro do cha-
Fez aprovar uma iei que bania todos os Tarqüínios. mado "Primeiro Triunvirato" (ver JÚLIO CÉSAR), ocupou o consu-
JÚI\10 BRUTO. Marco. Filho de um célebre jurista e membro da fa- lado novamente em 55 e pereceu em 54, quando exercia um
núlia de L. Júnio Bruto (acima). Também era relacionado, de ma- comando especial na Síria contra os partas. Em Deflnibus III.75,
neira ince1ta. com o M. Júnio Bruto que assassinou César, o dita: Cícero faz um jogo de palavras com seu nome de farrúlia, Dives
dor. Ativo na segunda metade do século I a.C., adquiriu má repu- ("Rico"), ao sugerir que foi por ganância que se esforçou para
tação por assumir regularmente o papel de acusador. obter aquele comando (cf. III.73 e 75). Em I.25, Cícero descreve
JÚNIO PE~O, Marco. Como tribuno da plebe em 126 a.C., apresen- sua cupidez como um meio de influência política, visão reafirma-
tou uma lei, com a oposição de C. Semprônio Graco, para impe- da pelo historiador Salústio, que mostra as conseqüências de seus
dir não-cidadãos de residir em cidades romanas e expulsar os que empréstimos e presentes a muitos senadores (Catilina 48.5). Su-
já ali se encontravam. punha que Cícero alimentara os rumores de seu envolvimento
J(l\10 SILANO, Décimo. Edil em 70 a.C. e c6nsul eleito em 63, foi o com os partidários de Catilina, acusação que Cícero teria féito nas
.;:, ,-·.
primeiro a falar na sessão do Senado convocada pelo c6nsul Cíce- memórias secretas, inéditas por ocasião de sua morte.
ro para decidir o destino dos conspiradores aliados de Catilina. LICÍI\10 CRASSO DIVES, Públio. Pai do anterior. Como foi c6nsul em
Prop6s a pena de morte, mas mudou de idéia influenciado pelo 97 a.C., deve ter patrocinado seus jogos magníficos quando edil
discurso de Júlio César, que defendia a prisão perpétua. em c. 103 01.57). Suicidou-se após a vitória de Mário e Cina em 87.
LÉLIO, Caio (chamado "O Sábio"). Amigo intimo de Cornélio Cipião LICÍN10 LÚCULO, Lúcio. Proeminente aliado de Sila na juventude,
Emiliano, serviu sob suas ordens no cerco de Cartago em 146 a.C. promoveu jogos esplêndidos como edil em 79 a.C. Eleito c6nsul,
Como pretor, lutou no oeste da Espanha contra Viriato e em 140 recebeu um comando especial do Senado contra o rei Mitridates
tornou-se c6nsul. Em 132, integrou a comissão senatorial encarre- do Ponto. Obteve notáveis êxitos militares, mas um motim das tro-
gada de punir os sequazes de Tibério Sempr6nio Graco. Cícero pas e interesses opostos em Roma, alimentados por sua taxação
faz dele c principal interlocutor do Laelius de amicitia e partici- eqüitativa da Ásia, provocaram sua substituição por Pompeu.
pante do De 1·e publica. Ckero se considera um Lélio para o Ci- Retirou-se em 59 para uma vida de luxo em suas vilas de Túsculo
pião Pompeu (Fam. V.7). e Miseno. Ckero faz dele o porta-voz das idéias de Antioco de
LÊNTUD. VerCORNÉUO LÊNTULO ESPÍI\'TER. Ascalão, que o acompanhou em suas campanhas no Oriente. na
LICÍI\IO CRASSO, Lúcio (140-91 a.C.). Cicero, que estudara com pro- primeira edição das Academtcae.
fessores escolhidos por ele em sua própria casa, considerava Cras- LICÍ:'JIO LÚCULO, Marco. Irmão mais novo do anterior. Após sua ado-
·-·-.'.'
so o maior orador da geração precedente e fê-lo o principal inter- ção, tomou o nome de Marco Terêncio Vanão Lúculo. També;r-,

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----------------Dru~~---------------- ~~~~~~~~~~-Notas bio!Jráficas ~~~~~~~~~~-

aliado de Sila, foi edil no mesmo ano, pretor em 76 e cônsul em optimates no Senado, opôs-se à modificação das leis de Sila, ao
73. Em 71, obteve o triunfo por suas vítórias como procônsul na comando especial de Pompeu em 67 e 66 e às tentativas de seu
Macedônia. · colega de censura, em 65, de conceder cidadania romana aos
LICURGO. Lendário codificador da constiruição de Esparta e de suas transpadanos. Foi derrotado por Júlio César na eleição para ponti-
origlnais instituições militares e sociais. São variadas e confusas as fex maximus, em 63, e dai por diante sua influência declinou até
tradições antigas sobre a data de suas reformas. a morte, ocorrida em c. 61. Cícero lhe atribui a tarefa de defender
LISA.'i!DRO (1). General e político espartano. Comandante da esqua- a filosofia no Hortenstus e, originalmente, fê-lo um dos interlocu-
dra nas últimas etapas da Guerra do Peloponeso, conseguiu final- tores das Academica; mas, ante as criticas pela sabida falta de
mente a ajuda persa e derrotou os atenienses em Egospótamo, em -;:
conhecimentos filosóficos de Cátulo, transferiu esse papel para si
405 a.C. Após bloquear o Pireu quando da rendição de Atenas em mesmo na segunda edição.
404, instituiu na cidade o governo dos Trinta. Sua ambição provo- LUTÁCIO PÍ)ITJA, Marco. Cavaleiro romano que viveu na segunda
cou a reação de Esparta. Morreu durante a Guerra Corlntia. metade do século I a.C. Tudo que se sabe dele é a história narra-
LISANDRO (2), o éforo. Como um dos éfOros anualmente eleitos, da em IH.7, anterior à morte de C. Flávio F'unbria em 91 a.C. e tal-
apresentou decretos para implementar as reformas do rei Ágis IV, vez posterior a seu consulado em 104 a.C.
em meados do século III a.C. MAMERCO. Ver EMÍLIO LÉPIDO MAMERCO.
LÍSIS. Filósofo pitagórico do século IV a.C., de Tarento, sul da Itália. MÂNCIA. Possivelmente o mesmo Hélvio Mãncia referido em De ora~
Quando sua seita foi perseguida, fugiu para a Grécia, onde foi tore II.266 e 274 como um mestre do dito espirituoso nos anos 90
mestre de Epaminondas em Tebas. ·-· _- a.C. Mais tarde, assoberbado pela idade e por stla baixa origem (o
LÍVIO DRUSO, Marco. Filho do tribuno da plebe de 122 a.C. Adotou pai era um ex-escravo), chamoc; ?ompeu de "ass2.ss::1o adolescen-
a politica dos populares contra C. Semprônio Graco e defendeu os te". A identiftcação em 1.109 é problemática porqt.:e ele 2parec-e . .ao
interesses do Senado como tribuno em 91, mas de modo mais lado de três senadores de elevado 1:ascimer:w. como exemplo de
imaginativo. Seu programa buscava satisfazer·as queixas de dife- "grande poder" combinado com bom trato social: se isso esti\·er.
_rentes grupos, oferecendo terras aos pobres, parte das funções correto, ou Mância era senador, apesar de sua origem. ou o "gran-
judiciais aos senadores, possibilidade de acesso ao Senado para de poder" deve ter sido, nesse caso, sua franqueza per.t!<Jme.
alguns cavaleiros e cidadania para os italianos. Encontrou em Ro- MANCINO. VerHOS1iUO MANCINO.
ma oposição por todos os lados, acabando· por ser assassinado. MAA1JO CAPITOLINO IMPERIOSO, Lúcio. Ditador em 362 a.C. Em
Suas leis foram derrogadas. 362 a.C. foi levado a julgamento perante a assembléia popular pelo
LÚCULO (1). VerLICÍNIO LÚCULO. tribuno Marco Pompônio (verPOMPÓKIO).
LCTÁCIO CÁTULO, Quinto (1). De família nobre, mas arruinada, tor- MÂNLIO IMPERIOSO TORQUATO, Tito. Filho do anterior, acusado
nou-se cônsul em 102 a.C., após três derrotas eleitorais. Auxiliou inclmive de maltratar o filho. Salvou seu pai e conquistou a alcu-
Caio Mário a vencer a batalha final contra os cimbros, em 101. Em nha de Torquato ao matar um gaulês em combate singular e ter-
87 opôs-se a Mário e Cina, foi ameaçado com um processo e sui- mar-lhe o colar (torques) como despojo. Foi cônsul trés vezes. Na
cidou-se. Escreveu em prosa e verso, interessando-se também por última, em 340 a.C., seu próprio filho desobedeceu-lhe as ordens
filosofia e artes, como sabemos graças a Cícero, especialmente no e enfrentou o inimigo em combate singular em batalha contra os
De oratore. Como Cicero, era partidário da Academia cética; é a latinos em Véseris. Por causa disso, Mânlio condenou-o à morte.
visão dele que seu filho expõe na primeira edição das Academica. MARCELO. Ve-r CLÁUDIO MARCELO.
LUTÁCIO CÁTLiLO, Quinto (2). Filho do anterior. Era aliado de Sila e .MÁRCIO FILIPO, Lúcio. Depois de atuar como demagogo na qualidade
seu candidato fuvo1ito para o consulado de 78 a.C. Quando seu de tribuno da plebe em 104 a.C., tornou-se um formidável co;;-
colega, Marco Emílio Lépido, tomou-se revolucionário, Cátulo der- servador, opondo-se, em 91, às medidas moderadas de Livio Dm-
rotou-o com a ajuda de Pompeu. Visto como um dos chefes dos so. Tomou o partido de Sila na luta contra Mário e apoiou a indi-

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"'' ,..
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Notas biogrtjjkas _ _ _ _ _ _ _ _ __
---------Dos d e v e r e s - - - - - - - - -
cação de Pompeu para dois comandos, em 78 contra lépido e em .MINOS. Lendário rei de Creta, que se tornou juiz nos Infernos.
77 contra Sertório. Cícero o ouviu discursando, já velho, no Sena- MINÚCIO BASILO, Lúcio. Serviu sob as ordens de Sila quando este
do. Admirava-o muito. ocupou Roma em 88 a.C. e mais tarde no Oriente, contra Mitri-
MARCO. (CÍCERO). VerTÚLIO CÍCERO. dates. Morreu na Grécia por volta de 70. Cícero refere-se a seu tes-
MÁRIO, Caio (c. 157-86 a.C.). Nascido em Arpino, cidade natal de Ci- tamento na defesa de Verres.
cero, era parente, por casamento, da avó de Cícero. Alcançou as MÚCIO CÉVOLA, Públio. Eminente jurista, como seu ;3ai e se:.: filho.
magistraturas inferiores com dificuldade, apesar do apoio dos foi cônsul em 133 a.C. Tendo aconselhado o [rib:..:no Tibé:io Gra·
co sobre seu projeto agrário. recusoc;-se a usar Ce >"iolênc::c co:c;r;::
Metelos. Quando servia com Metelo Numídico na África, aprovei-
ele, embora mais tarde defendesse a açào C:e Pú·:>:io Cotr:<:iio C-
tou uma desavença no Senado para assegurar sua eleição ao con-
pião 1\""asica Serapiào. Pomljex ma.-.::imw: de ~30 ~ccf SlC.i f:}Gr;e. e!~'
sulado em 107 a.C. e o comando contra Jugurta. Tinha 50 anos.
c. 115, acredita-se que ten21a compilado e p:..;blicar.:o c'- ;.~r:;::;.:::rw,;
Havendo os cimbros invadido a Itália pelo norte, Mãrio foi reelei-
registros pontifícios, chamados annaies maximí.
to cônsul em 104 e em mais quatro ocasiões seguidas. Derrotou os
MÚCIO CÉVOLA, Quinto (1), chamaC:o '·O Áugure·· Primo e .::c:~k:T­
cimbros em 101, mas sua colaboração com políticos radicais du-
porâneo mais jovem do anterior, também foi jurista. E:1.:eado ôe
rante o último consulado, em 100, eclipsou sua reputação. Em 88 Lélio, acredita-se que simpatizasse com os estóicos. Côr~~~d e-.11
tentou arrebatar o comando oriental de Sila e viu-se envolvido em 117, opôs·se ao tribuno radical Saturnino em 100, mas também
uma guerra civil. Em 86, tomou Roma com a ajuda de Cornélio desafiou Sila depois de sua marcha sobre Roma em 88. Já idoso.
Cina e tornou-se cônsul novamente, mas morreu antes de assumir deu lições de direito a Cícero.
o comando do Oriente. MÚCIO CÉVOLA, Quinto (2), chamado "O Pontífice". Filho de Públio
MÁRIO GRAT!DIANO, Marco. Sobrinho por nascimento e adoção de Múcio Cévola (acima), também foi jurista e publícou o primeiro
Caio Mário. Seu pai natural, Marco Gratídio, era cunhado do avô tratado sistemático sobre direito civil. Pa1tilhou os cargos de edil,
de Cicero, com quem conseguiu impedir a adoção do voto secre- pretor e cônsul com L. Licínio Crasso. Como governador da África,
to em Arpino. Como seu pai, era um popularis em política e durante os anos 90 a.C., introduziu uma reorganização que ficou
tomou o partido de Mário contra Sila nos anos 80. Pretor em 85, como modelo para os governos subseqüentes, embora desagra-
publicou um édito impondo uma taxa de câmbio oficial para tro- dasse aos coletores de impostos. Tornou·se pontifex maximus em
cas de bronze por prata durante per1odos de instabilidade finan- 89, mas foi morto em 82, quando sob o comando do cônsul Caio
ceira, desse modo conquistando pópularidade com uma medida Mário.
que deveria ser anunciada em declaração conjunta (III.80). Ko- MtMIO ACAICO, Lúcio. Tomou e destmiu Corinto em 146 a.C., e
vamente pretor em 84, foi morto por ocasião das proscriçôes de abarrotou navios com seus tesow-os artísticos para adornar Roma
SUa de 82. e outras cidades da Itália. Recebeu o nome de Acaico por sua vitó-
MÁXIMO. Ver FÁBIO MÁXIY.IO VERRUGOSO. ria sobre a Confederação Aquéia. Mais tarde foi censor juntamen-
MÉUO, Quinto. Provavelmente, um tribuno eleito em 321 a.C., quan- te com Cipíão Emiliano.
do servia sob as ordens do cônsul por ocasião da derrota imposta Nl""Tl..:'l\'0. Deus itálico identificado com o deus grego do mar, Po-
aos romanos pelos samnitas, nas Forcas Caudinas. (Os tribunos de seidão.
fato não podiam deixar Roma.) NíCOCLES. Tirano de Siracusa, deposto por Arato em 251 a.C.
METELO. VerCECÍLIO METELO. NORBAKO, Caio. Como tribuno da plebe em 103 a.C., apoiou seu
METRODORO DE LÂ.i\I.!PSACO (331-227 a.C.). 0 mais destacado discí- colega radical Satumino. Por contrariar os interesses dos optima-
pulo de Epicuro. Restam apenas fragmentos de suas obras. Cícero tes, foi acusado em 95 por P. Sulpício e defendido por M. Antônio.
considera sua fllosofia como provavelmente mais sensualista que a sob cujas ordens servira como questor. Tornou-Se cônsul em 83
de Epicuro, por causa da ênfase que dá ao prazer corporal. durante a guena civil, mas, derrotado por Sila, fugiu para Rode~.
MILÃO. Ver ÂNIO MILÃO. onde cometeu suicídio.

204 205
---------Dos deveres _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - - - N o t a s biográficas---------

NUMÍCIO, Tibério. Provavelmente tribuno eleito, não tribuno, em tana e à formação da Liga Délia, encabeçada por Atenas. Convo-
321 a.C. (verQCINlO METELO), quando servia sob as ordens do cado a Esparta para responder a uma acusação, refugiou-se num
cônsul no momento do desastre romano nas Forcas Caudinas. templo e jejuou até a morte.
ORESTES. Ver AUFÍDIO ORESTES AL'REUANO, PÉLOPS. Na nútologia grega, filho de Tâmalo e pai de Atreu e
OTÁVIO, Cneu. De família não-senatorial, tornou-se cônsul em 165 Ti estes.
a.C. Seu irmão era bisavô do futuro imperador Augusto. PENO. Ver]ÚNIO PENO.
OTÁVIO, Marco. Provavelmente tribuno da plebe quando alterou a PÉRICLES (c. 495-429 a.C.). Político ateniense. Destacou-se no~ a:1.os
legislação sobre o subsídio do trigo (cf. Brutus 222 e De offictis 460 a.C., quando a democracia atenie.:'_se se ril.d!ca]i.z:Fa e seu
II.72). imperialismo se tornava mais cmel. A :;m-rir de --±'-13, fo~ eleito
PALAMEDES. Herói particularmente engenhoso, muitas vezes asso- anualmente um dos dez generais, até sua morre por t:Jeste. I:liciou
ciado ao astuto Ulisses. Em III.97-8, Cícero refere-se ao episódio um grande programa de constJuções e mergulhou Atenas na G;.;:er-
em que ele desmascara illisses, que se fazia passar por louco a ra do Peloponeso ao resistir às exigências de Esparta e seus alia-
fim de evitar juntar-se à expedição grega contra Tróia. Ulisses atre- dos nos anos 430. Foi orador vigoroso, ao estilo "olímpico"· de sua
lara um asno e um boi ao arado e pusera-se a semear sal; mas, polrtica.
quando Palamedes depositou o filho de Ulisses, Telêmaco, diante PIRRO (c. 319-272 a.C.). Rei do Epiro. Reinou de 297 até sua morte.
do arado, ele interrompeu a encenação. Como vingança, forjou Libertou o Epiro da influência macedônica e ampllou seu tenitódo
uma carta do rei de Tróia a Palamedes, tratando dos termos de sua à custa dos povos vizinhos. Teve menos sucesso ao invadir a Ma-
traição à causa grega, e escondeu dinheiro na tenda de Palame- cedônia. A pretexto de atender a um pedido de ajuda da cidade
des, que foi então condenado à morte pelo exército. grega de Tarento, no sul da Itália. invadü.: este país e alcançou
PANÉCIO (c. 180-109 a.C.). Nascido em Rodes, tornou-se discípulo duas vitórias contra os rom::..:'.OS. Err. 280-2""'9, il"'.Yadiu a Sicília e
de Diógenes da Babilônia em Atenas, e depois de Antipatro de retomou à Itália, sendo por fim àe~rmado deci5ivan:ente em 275.
Tarso, a quem sucedeu como diretor da Stoa em 129. Era amigo em Benevento.
PÍRRON DE ÉUS (c. 365-270 a.C.). Fundador do pirronisrr:o. seg;.:ndo
de Cornélio Cipião Emiliano, a quem acompanhou na embaixada
o qual a suspensão do juizo e das crenças p:·o!l10':e a :'ir.a:iàade
ao Mediterrâneo Oriental em 140/139. Em física, rejeitou as doutri-
ética da tranqüilidade. Não deixou escritos. X os tempos de Cícero.
nas estóicas da divinação e do incêndio universal periódico. Sua
Enesidemo de Cnossos encabeçou uma dissidência do pi;ronis:l:o.
ética privilegiava o progresso moral do homem, não do sábio.
Seus seguidores ficaram mais tarde conhecidos como ""Céticos""
Para o uso dessa doutrina por Cícero, ver a "Introdução". literalmente, "indagadores".
PÁPIO, Caio. Como tribuno da plebe em 65 a.C., fez aprovar uma lei PISÃO. Ver CALPÜRNIO PISÃO.
impedindo que estrangeiros provenientes de fora da Itália (como PITÁGORAS. Nascido em Sarnas, no final do século VI a.C., fugiu da
esta então se defmia) morassem em Roma e promoveu investiga- tirania de Polícrates para Crotona, no sul da Itália, onde fundou
ções contra o exercício ilegal de cidadania. A lei, provavelmente uma ordem filosófica e religiosa da qual os últimos traços desapa-
dirigida na origem contra os colonos do Pó (transpadanos), cuja receram no fmal do século IV a.C. Kão deixou escritos e logo se
reivindicação de cidadania era defendida naquele ano pelo censor tornou uma figura lendária, que suscitava grande curiosidade em
L. Licínio Crasso, foi depois invocada contra o poeta Árquias, a Roma nos dias de Cícero. A idéia de "unídade na pluralidade'"
quem Cícero defendeu com sucesso em 62. (I .56) encontra eco na tese posterior do amlgo como a/ter ego.
PAULO. VerE.lVIÍUO PAULO. PÍTIO. Banqueiro de Siracusa, conhecido apenas por UI.58-9, episó-
PAUSÂ~. Parente mais velho do jovem rei de Esparta, Fleistoa- dio datado corno anterior a 66 a.C. pela pretura de Aquilio, men-
nax, comandou as forças aliadas gregas de terra contra os persas cionada em III.60.
em Platéia, em 479 a.C., e depois a contra-ofensiva grega em 478. PlATÃO (429-347 a.C.). Discípulo de Sócrates e fundador da Acade-
Seu comportamento arrogante levou à rejeição da liderança espar- mia em Atenas. Provavelmente o filósofo de maior influência no

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'·•·
------------------D~d~~------------------ ____________ Notas biogr4ficas - - - - - - - - - - - - -

Ocidente, suscita, em seus diálogos, questões fundamentais de política daquela década como o "Primeiro Triunvirato". Depois da
ética, filosofia, política, epistemologia e metafísica. Os principais morte de Crasso em 54, Pompeu permaneceu nas vizinhanças de
mentores de Cícero, Fílon, Antioco, Panécio e Posidônio, eram Roma, governando sua provinda da Espanha por meio de lega-

( grandes admiradores de Platão, cujas obras República e Leis inspi- dos. Tomou-se cônsul único em 52 e finalmente aliou-se aos sena-
raram os trabalhos homônimos de Cícero. Este citava Platão fre- dores que recusavam concessões a César. Foi esmagadoramente
qüentemente e traduziu algumas de suas obras. derrotado em Farsália e assassinado quando tentava asilar-se no
PLAUTO. Comediógrafo latino do final do século III a.C. Restam-nos Egito. Cícero defendeu sua medida de rest;:mração dos poderes tri-
vinte e uma de suas comédias, livremente baseadas em originais bunfcios em De legibus li, tentou af:~;s!á-:o de César nos anos 50 e.
gregos. por fim, foi juntar-se a ele no Orien:e, durame a Guerra Civil. Ad-
POÚBIO (c. 200-após 118 a.C,). Historiador grego. Foi enviado aRo- mirou-o sempre, embora com algumas resen.:8.s.
ma da Arcádia como um dos suspeitos de simpatizar com o rei POMPÔNIO, Marco. Como tribuno em 362 a.C.. acusou L )1iinlio
Persett da Macedónia, que acabava de ser derrotado pelos roma- perante a assembléia por prolongar sua ditadura além do prazo
nos na batalha de Pidna, em 168. Em Roma, tornou-se amigo de regulamentar e maltratar seu filho. Outras acusações, não mencio-
Cipiào Emiliano e escreveu a história da ascensão do poderio ro- nadas por Cícero em III.112, diziam respeito à religião e ã arreca-
mano desde a Segunda Guerra Púnica até sua época. dação de impostos.
POMPEL', Quinto. Primeiro membro de sua família a ocupar o con- PÔ:-JCIO, Caio. Chefe sarrmita. Em 321 a.C. den-otou um exército
su:ado. cargo em cujo exercício sofreu uma derrota na guerra .., ' -
-~
romano nas Forcas Caudinas e aprisionou-o. Vinte e nove anos
contra os numantinos na Espanha, em 140 a.C. Negociou um tra- mais tarde foi por sua vez capturado, conduzido no tliunfo e exe-
tado que repudiou à chegada de seu sucessor. O Senado aprovou cutado.
seus atos e ele foi absolvido da acusação de extorsão. Tornou-se POPÍLIO LENATE, Marco. Cônsul em 172 a.C.. venceu os lígures
censor em 131. numa campanha brutal.
POMPEU, Sexto. Tio de Pompeu, o Grande. Em Brntus 175, Cícero PÓRCIO CATÂO, Marco (1), o Velho (234-152 a.C.). Primeiro :nem·
informa que ele se dedicou não só à geometria, mas também às bro de sua família a ocupar o consulado (em 196 a.C.), é :1lgumas
leis e à filosofia estóica, precisando que não era orador. O fato de vezes chamado de "Catão, o Censor", pela energia com qLte pro-
semelhante homem evitar a vida pública ilustra a segunda falta que moveu reformas morais no exercício da censura (184). Atribui-se-
Cícero indica em 1.19, embora não o diga explicitamente. lhe, no final da vida, uma hostilidade incompreensível contra
POMPEU .MAGNO, Cneu (Pompeu, o Grande) (106-48 a.C.). Nascido Cartago. Ficou conhecido por sua vigorosa defesa dos valores ro-
no mesmo ano que Cícero, revelou-se um prodígio militar e polí- manos tradicionais e por seu estilo retumbante como orador, mas
tico na juventude, derrotando os inimigos de Sila nos anos 80 e era também um homem mlto e um inovador na literatura, tendo
Sertório, na Espanha, nos anos 70. Cônsul em 70 juntamente com composto um tratado Sobre a agricultura e uma história intitula-
M. Licínio Crasso, trabalhou pela restauração dos poderes do tri- da Origens. Seu retrato é atenuado por Cícero no Cato Maior de
bunato da plebe, retirados por Si.la, e fez com que os tribunais, senectute.
compostos apenas de senadores, incluíssem os cavaleiros. Em 67 PÓRCIO CATÃO, Marco (2). Pai de Catão, o Jovem, e neto do ante-
a.C. a assembléia popular entregou-lhe o comando contra os pira- rior. Tornou-se tribuno da plebe em 99 a.C., mas morreu em 92 ou
tas e recompensou-lhe o brilhante êxito com o comando oriental 91, quando tentava a eleição par-.a o cargo de edil.
contra o rei .Mitridates do Ponto, em 66. Ao retornar a Roma em PÓRCIO CATÂO, Marco (3), 6 Jovem, algumas vezes chamado de
62, enfrentou oposições para assegurar recompensas a seus vete- "Catão de Utica" (95-46 a.C.), Bisneto de Catão, o Velho, acrescen-
ranos e confirmar seus tratados no Oriente. Apoiou Júlio César tou convicções estóicas ao antigo rigor e sentimento moral da cr-,l-
parJ. o consulado em 59 e ambos, juntamente com CrJ.sso, colega dição romana, alcançando assim uma reputação de maior austeri-
de Pompeu no consulado novamente em 55, domlrulram a cena dade ainda. Questor em 64, organizou os registros do tesm.l~o: tri-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ Dos d e v e r e s - - - - - - - - - - - - - - - - - - N o t a s biográficas _ _ _ _ _ _ _ __

buno em 62, aumentou o número dos beneficiãrios da distribui- QUIRINO. VerRÓMll1.0.


ção de trigo. Em 61, Cícero discordou de sua insistência em que RÉGULO. Ver ATÍUO RÉGULO.
os coletores de impostos perdessem a garantia de renovação de RÓML""LO. Fundador lendário de Roma juntamente com seu irmão
seus contratos quando a arrecadação fosse menor que a esperada. Remo, a quem assassinou por saltar as muralhas que ele construí-
Porta-voz da oposição ao "Primeiro Triunvirato", foi afastado de ra ao redor do novo estabelecimento. Após reinar por quarenta
Roma em 58 por uma lei do tribuno Clódio que o enviava a ane- anos, diz-se que desapareceu, tornando-se o det.:.s Qui.rino.
xar Chipre. Trouxe para Roma muitos tesouros e dinheiro dos RÓSCIO A.t\1ERIJ\""0, Sexto. Filho de um próspero cidadão de ..~méria.
bens reais, depois que o rei de Chipre cometeu suicídio. Quando de cujo assassinato foi acusado em 80 a.C. po;- dois parentes. Com
Cícero exigiu a revogação das leis de Clódio (que indulam seu a ajuda de Crisógono, favorito de Si:a, eles haviam de fa:to ass-::gu"
próprio exílio e o confisco de sua casa), alegando a ilegalidade de rado a morte do pai de Róscio inscrevendo-o nas listas de proscri-
seu tribunato, Catão se opôs: Cícero atribui essa atitude, aparente- ção. Cícero defendeu Róscio em sua primeira causa pública. mas
mente OII.88), a seus interesses nos bens que trouxera para Roma. tomando o cuidado de, ao atacar Crisógono, separá-lo de Sila, que
Catào tomou-se pretor em 54, mas não conseguiu eleger-se côn- embora já não fosse ditador era cônsul na ocasião.
sul em 51. Lutou ao lado de Pompeu na Guerra Civil e cometeu RUPÍLIO. Ator conhecido apenas pela referência de Cícero em I.114.
suicídio após ser derrotado em Utica, na África. RUI"ÍUO RUFO, Públio. Estudou com Panédo e seguiu os principias
PÓRCIO CATÀO LICINIANO, Marco. Filho de Catão, o Velho. Prestou estóicos até mesmo em seu austero estilo oratório. Cônsul em 105
serviço militar (1.36) e ocupou as magistraturas inferiores, mas a.C., serviu sob as ordens de Q. Múcio Cévola (2) quando este era
morreu em 152 a.C., após ser eleito pretor para o ano seguinte. governador da Ásia. Foi injustamente condenado por extorsão em
POSIDÓNIO (135-51 a.C.). Nascido em Apaméia, na Síria, tomou-se 92 a.C. por um júri de cavaleiros dominado pelos coletores de
discípulo de Panécio. Viajou por todo o Mediterrâneo, colhendo impostos, os quais haviam sido prejudicados pelas reformas intro-
material para pesquisas cientificas e culturais, indo afinal estabele-
duzidas por Rufo e Cévola. Em seu exílio em Esmirna. escreveu
cer-se em Rodes, onde desempenhou funções sacerdotais. Consi-
memórias e história.
derado o mais importante filósofo estóico de sua época e um polí-
SÁTRIO, Marco, assim chamado após sua adoção pelo cio L. :.Jinúdo
mata, escreveu sobre ética, física, lógica, teologia, psicologia, as-
Basilo (Satriano). Mencionado em III.74 como um pat:ono il:dest-
tronomia, geografia e história. Tmha boas relações com Pompeu e
jado dos territórios piceno e sabino. Cicero o atacou na Se-gunda
Cícero, que o ouviu primeiro em Rodes, quando jovem, e mais
Filípica como aliado de Antônio, por provável envohi~:nemo n.:
tarde tentou sem sucesso convencê-lo a compor um relato sobre
seu (de Cícero) consulado. distribuição de terras dessas áreas aos veteranos. 1\""ão deve ser o
POSTÜMIO ALBI:.'-TO, Espúrio. Cônsul pela segunda vez em 321 a.C., mesmo L. Minúcia Basilo, assassino de César.
foi juntamente com seu colega T. Vetúrio Calvino derrotado nas SEIO, Marco. Cavaleiro romano que, após perder seu status em resul-
Forcas Caudinas. Ambos fizeram um tratado de paz mediante uma tado de uma condenação, foi eleito edil em 74, apesar da oposi-
sponsio (promessa), pela qual eles, além de outros, empenhavam ção da aristocracia. Ganhou popularidade no cargo, subsidiando
suas vidas e propriedades como garantia. Ao regressarem, o Sena- trigo e azeite em um período de escassez provocado pela ação
do acolheu o parecer de Postúmio e os entregou aos samnitas, dos piratas e da guerra.
que porém os devolveram. SEMPRÓNIO GRACO, Caio. Ele e seu irmão Tibério eram filhos de
PRÓDICO DE CEOS. Sofista contemporâneo de Sócrates, autor do Camélia, filha de Cipião Af1icano e madrasta de Cipião Emiliano. So-
famoso mito sobre a escolha de Héracles. bre o pai deles, ver adiante. Caio serviu com Cipião Emiliano na
PTOLOMEU FILADELFO (308-246 a.C.). Tomou-se rei do Egito em Espanha e foi designado em 133 para integrar a comissão agrária
283, sucedendo ao pai, Ptolomeu Sóter, que assegurara o controle do irmão. Como tribuno da plebe em 123 e 122, não apenas reno-
do Egito após a morte de Alexandre, o Grande. Criou a adminis- vou a lei agrária de Tibério como instituiu reformas mais profun-
tração financeira e as instituições culturais ptolomaicas. das. Foi morto em um tumulto em 121. Embora seu movimento

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____________________ Dúsd~n%--------------------- ------------------------------ Notas biográficas ------------------------------

para concessão de cidadania aos italianos tenha fracassado, assim dos Trinta Tiranos. Foi julgado em 399 por um tribunal popular,
como seu projeto para a colônia Junônia, algumas de suas leis sob a democracia restaurada, e condenado por impiedade e cor-
sobreviveram, como a que garantia trigo aos cidadãos a preço es- rupção da juvenrude. Seu discurso em defesa própria e seus últi-
tável e subsidiado. mos dias na prisão foram narrados por seu discípulo Platão, que
SEMPRÔNIO GRACO, Tibério (1). Cônsul em 177 a.C. Célebre gene- também fez do mestre o principal interlocutor da maioria de seus
ral, venceu os celtiberos e fundou a cidade de Gracure na Espa- diálogos. Como Sócrates nada escreveu. é difícil separar sua con-
nha, subjugando mais tarde a Sardenha. Era conhecido por seus tribuição da do próprio Platão. Entretanto. sua pretensão de mda
princípios conservadores e austeridade pessoaL Morreu em 154 saber, seu modo de induzir os i:-.terlocu!Ores ;l tmtar de quescôes
quando seus fllhos sobreviventes, Tibêrio (2) e Caio (acima), ain- eminentemente éticas e sua insistência nos Fob;ema~ da co:1du:a
da eram crianças. humana, apresentados nos primeiros diálogos de P:at:lo. er~m
SEMPRÔNIO GRACO, Tibério (2). Filho sobrevivente mais velho de tidos por Cícero como próprios de seu método (De fin. Il.l ss ..
(1) acima. Como tribuno da plebe em 133 a.C., procurou favore- Rep. I.16). A Academia de Platão, o Perípato de Aristóteles e a Stoa
cer o número decrescente de cidadãos romanos (e provavelmente alegavam filiar-se a ele.
:talianos) qualificados economicamente para o serviço militar me- SÓFOCLES (c. 494-406 a.C.). Político ateniense e também um dos
diame a limitação da propriedade de terras do Estado romano e maiores poetas trágicos gregos. Serviu como tesoureiro imperial e
distribuição do excedente aos pobres. Os métodos que utilizou - foi eleito general por duas vezes, a plimei:ra em 440, quando, ao
~mposição de decretos e reivindicação do legado do rei Átalo de lado de Péricles, ajudou a suprimir a revolta de Samos.
Pérgamo para financiar seu programa fundiãrio - provocaram SOL. Deus romano identificado com o grego HéEos.
queixas, na ocasião e posteriormente. Foi morto em um rumulto, SÓLON. Político e poeta ateniense do começo do século VI. Após
quando trabalhava para reeleger-se tribuno. A opinião de Cícero lutar na guerra de Atenas contra Mégara pela posse de Salamina,
segundo a qual os Gracos foram merecidamente assassinados tomou-se primeiro arconte em 594/3 a.C., quando debelou uma
(II.43, cf. 1.176) remonta a um discurso de Cipião Emiliano sobre crise econômica e política ao abolir a escravidão por dívidas. ba-
Tibério. Cícero condena os irmãos, exceto em alguns discursos di- sear a elegibilidade para cargos públicos na propriedade e não no
rigidos ao povo. nascimento, criar a Boulé (conselho que preparava os u-abalhos
SÉRGIO ORATA, Caio. Astuto comerciante romano do século I a.C. para a assembléia) e estabelecer a Heliaia (reunião do povo como
Foi o plimeiro a usar o lago Lucrino, perto de Baias, na costa assembléia de apelação). Deixou Atenas para viajar por dez anos.
napolitana, para produzir ostras com fins comerciais. O caso rela- Muitas de suas medidas sobreviveram e ele foi considerado mais
,,., tado em 11.69, datado de 91 a.C., ou mais brevemente em De ora- tarde o fundador da democracia ateniense.
tore I.178, deve referir-se a uma casa localizada na região, talvez SULPÍCIO GALO, Caio. Pretor em 169 a.C. e cônsul em 166. Quando
comprada como investimento. Se for idêntico a um processo con- ãs ordens de L. Emílio Paulo em 168, durante as guerras contra a
tra Consídio, o motivo pode ter sido um édito sobre licença de Macedônia, pôs seus conhecimentos de astronomia ·a serviço do
pesca em alguma ãrea da propriedade no lago Lucrino, onde o Es- Estado, predizendo um eclipse lunar e assim evitando o pânico
tado romano possuía direitos de taxação (Valéria Mãxlmo IX.I.l). entre os soldados na véspera da batalha.
A participação dos dois mais famosos oradores da época nesse SULPÍCIO, Públio. Tribuno da plebe em 88 a.C. Era parente do amigo
processo pode ser parcialmente explicada pelo fato de ambos íntimo de Cícero, Ático, e aparece no De oratore como um dos
possuírem propriedades naquela costa. jovens ligados a Uvio Druso, tribuno em 91. Em 91 estreou como
SILA. VerCORNÉLlO Sll.JI•. orador acusando 1\orbano. Em 88 tentou, na esteira de Uvio
SILANO. Ver]ÚUO SILANO. Druso, distribuir os italianos recentemente emancipados pelas tri-
SÓCRATES (469-399 a.C.). Filósofo e cidadão ateniense que demons- bos romanas, mas, ante a oposição encontrada, aliou-se a Mido. a
trou grande coragem tanto sob a democracia quanto sob o regime quem transferira o comando de Sila contra Mitlidates. Quando Sitt

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--------------------D~dew~-------------------- ___________________ Notas biográfic(;js -------------------

marchou sobre Roma, fugiu, mas foi capturado e morto. Suas leis TEOPOMPO. Historiador grego do século rv a.C. De sua obra só nos
foram derrogadas. restam fragmentos. Deu seqüência ao relato de Tuc:dides até 39-l:
TÁ.,"''TALO. Na mitologia grega, filho de Júpiter e pai de Pélope. a.C. e escreveu a história do reinado de Filipe I! da :>!acedônia.
Tendo comido alimento divino, tornou-se imortal. No entanto, em TERÊNCIO (P. Terêndo Afro). Comedióg:afo iarino da p:-'.r:1ei::-a meta-
virtude de inúmeras transgressões à lei dos deuses, foi submetido de do século TI a.C. Nascido no norte da Africa. :oi para Rox.a
a um castigo eterno, o qual, segundo uma das versões, consistia como escravo, sendo depois libertado por seu seni'.or. c,:;o noJ:.le
em fazer com que a comida e a bebida sempre se esquivassem dele aliás não adotou. Suas seis peças sào todas cooédias IiYTemer.Ie
(ser "tantalizado"). baseadas em originais gregos.
TARQÜÍNIO COLATINO, Lúcio. Marido de Lucrécia, cujo estupro TERÊNCIO VARRÂ.O, Caio. Cônsul em 216 a.C.. foi loundo pelo
pelo último rei Tarqülnio levou-o a conspirar contra a monarquia, Senado por não desesperar da repúbllca após a vitória de Aníba~
Formou, com Lúcio Júnio Bruto, o primeiro par de cônsules da em Canas. Segundo uma tradição tardia, assumiu inteira responsa-
nova república. Segundo algumas fontes abdicou do cargo, segun- bilidade pela derrota, já que seu colega consular perecera no
do outras foi deposto, q;.Ler por suspeitas de simpatia para com campo de batalha.
uma conspiração que visava repor os Tarqüínios, quer porque o TESEU. Rei lendário de Atenas, a quem se atribui a reunião dos
simp;es nome de Tarqüínio inspirasse ódios. diversos burgos da Ática em uma unidade política. É herói de
TARQÜÍ:'\liO SOBERBO. Último rei de Roma, que segundo a tradição muitas aventuras: matou o Minotauro de Creta, atacou as amazo-
governou de 534 a 510 a.C. e foi deposto por Lúcio Júnío Bruto. nas e raptou sua rainha Hipólita, que se tornou mãe de seu filho
TEBE. Esposa de Alexandre de Feres, que conspirou para assassiná-lo. Hipólito.
TEMÍSTOCLES (c. 528-462 a.C.). Político ateniense que promoveu a TIMÓTEO. Político ateniense do século rv a.C. Implementou a polí-
supremacia naval de sua pátria após a invasão de Xerxes. Como tica imperialista da Segunda Liga Ateniense, mas foi mais tarde jul-
general em 480 a.C., Temístocles comandou a esquadra ateniense gado e multado. Discípulo de Isócrates, é muitas vezes dog\ado
e persuadiu o comando supremo espartano a lutar em Salamína, e por Cícero como orador.
os atenienses, a evacuar a cidade e enfrentar os persas no mar. TCBERÃO. VerÊUO TUBERÃO.
Embora sua bravura tenha sido celebrada por Ésquilo em Os per- TLUO CÍCERO, Marco. Único filho varão de Cícero. Nasce"!.! em 65
sas (472), foi mais tarde ostracizado e condenado ã revelia por a.C., quando sua irmã Túlia já tinha 13 ou 14 anos. Acompanhou
alegadas intrigas com a Pérsia, para onde fugiu. O rei Artaxerxes o pai à Cillcia em 51 e vestiu a toga !Jtrilis em 49 a.C. Juntou-se
fê-lo governador de Magnésia, onde morreu provavelmente de com o pai a Pompeu, no Oriente, durante a Guerra Civil, e seu
doença, apesar de Cícero aventar a tradição de suicídio. As cartas desempenho militar valeu-lhe os elogios de Pompeu (II.45). Pai e
de Cicero mostram que freqüentemente pensava nele em 49. Com- filho regressaram ã Itália e foram perdoados por César em 47. No
para sua estratégia de retirada ao plano de Pompeu de deixar Ro-- ano seguinte, assumiu um cargo em Arpino, cidade natal da famí-
ma e enfrentar César no Oriente, vendo no exllio e suicídio do lia. Esperava juntar-se a César na Espanha mas, na primavera de
previdente Terrústocles uma indicação do que a ele mesmo pode- 45, Cicero enviou-o à Grécia para completar os estudos, recorren-
ria suceder caso suas expectativas em relação à queda de César se do ao dote de sua mãe Terência para mantê-lo no nível de seus
revelassem falsàs. colegas aristocratas. Enquanto isso, seus pais se divorciaram e sua
TEOFRASTO. Discípulo e sucessor de Aristóteles na direção da Es- irmã Túlia faleceu. Mesmo antes do assassinato de César em mar-
cola Peripatética de Atenas. Apenas sobreviveu urna fração de ço de 44, Cícero planejava visitá-lo em Atenas, e, em 17 de julho,
s"eus escritos, que gozaram de imensa popularidade. Seus interes- realmente se fez ao mar, mas teve de retomar ante uma aparente
ses eram a pesquisa cientffica e a erudição. Em filosofia, seguiu mudança na situação política. Marco serviu com Bruto na guerra
Aristóteles de perto. civil contra Antônio e Otaviano, de modo que se encontrava longe

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----------Dos d e v e r e s ' - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - N o t a s biográficas'----------

de Roma quando o pai foi proscrito e morto em 7 de dezembro de XANTIPO. Soldado mercenário de Esparta que au:-:ilio~! Ca~ago con-
43. Depois da derrota de Bruto em Filipos, em 42, Marco juntou- tra Atílio Régulo, reorganizando seu exército e emp;egando e!.:-
se ao filho mais novo de Pompeu na Sicília. Em 39 foi perdoado fantes e cavalaria para derrotar os ronanos er:1 :55 ç_.C. ,>,pós ess:::.
por Otaviano e regressou a Roma. Otaviano, após derrotar Ao- vitória, deixou Cartago.
XE:'\!OFONTE. Nascido em Atenas., deL-.:ou-a e;.\1 +Jl ·.::.C. <:[o; ex!b-~:o
temia na batalha de Ácio, tomou Marco para colega de consulado
em 399. Partiu para Esparta como amigo do re; Ag-tsLn.l "de:Jo:,;
em 30, ano em que as estátuas e monumentos de Antônio foram
para Corinto, antes de regressar 8 .A..te::as. S·Jas o!Jras Y<::c.s..1m ~obn:
destruidos. (Antônio fora o principal responsável pela morte de
história, temas didáticos, me:nórias (inclusive de Sócr:ne.-;~ e ·.:m
Cícero, embora com o consentimento de Otaviano.) Serviu em
romance histórico, A educação de Ciro (ver CIRO).
seguida como governador da provinda da Ásia. Segundo as evi-
XERXES. Filho de Dario e rei da Pérsia (486-465 a.C.). lnvad:u a Gré-
dências, parece ter sido um jovem dócil e um bom soldado, mas a cia e foi derrotado em Salamina em 480 a.C.
quem faltavam os dotes intelectuais do pai. Reza uma tradição tar- ZENÃO (c. 335-263 a.C.). 1\'ascido em Cítio, em Chipre. Foi o funda-
dia que era um bêbado consumado. (Ver também a "Introdução".) dor da Escola Estóica, assim chamada por causa da stoa poikile,
"ULISSES. 1\·on:e latino do herói grego Odisseu, que na llíada de Ho- uma coltmata decorada onde ele ensinava em Atenas. Restam-nos
me:o escã associado ao estratagema do cavalo de madeira. Na apenas fragmentos de suas obras, mas todas as doutrinas básicas
Odisséia, Yin: bcontãveis aventuras durante os dez anos de sua do estoicismo lhe são atribuídas, sendo porém divulgadas, em sua
''iagem de retorno ao lar, após a Guerra de Tróia. Ao desembarcar maior parte, pelos escritos de Crisipo, duas gerações mais tarde.
em Ítaca disfarçado de mendigo, é tratado como tal pelos criados
e pretendentes de sua es.posa Penélope, até matar esses preten-
dentes e revelar sua identidade. Outras histórias de sua astúcia são
contadas nos poemas tardios do ciclo homérico e da tragédia
grega. Depois que Páris raptou Helena e todos os pretendentes
desta se viram obrigados (por um juramento concebido pelo pró-
prio Ulisses) a lutar em Tróia em favor de Menelau, Ulisses fingiu
loucura para escapar ao compromisso, mas foi desmascarado por
Palamedes (ver).
VARRÃO. VerTERÉNCIO VARRÂ.O.
VETÚRIO CALVINO, Tito, Como cônsul pela segunda vez em 321
a.C., foi aprisionado com seu exército pelos samnitas nas Forcas
Caudinas. Para os termos da sponsio feita aos samnitas, ver POS-
TÚMIO AlBINO.
VIIUATO. Herói nacional português que chefiou seu povo, os lusita-
nos, na luta pela independência contra os romanos, na segunda
metade do século II a.C. Recorrendo à tática das guerrilhas, derro-
tou os comandantes inimigos em 147-145 a.C. Após a campanha
de C. Lélio, houve várias derrotas romanas, inclusive a de Q. Pom-
peu em 143, até concluir-se um tratado em 140, em que se reco-
nhecia Viriato como amigo do povo romano. O Senado, porém, se
recusou a ratificá-lo e, em 139, Q. Servílio Cépio conseguiu que
ele fosse assassinado.

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