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Entrevistas

As raízes do atraso
José Pastore
Paciência, generosidade
e solidariedade
Mario Sergio Cortella
Inversão de valores
Eduardo Meinberg de
revista da espm • ano 20 • edição 91 • nº1 • JANEIRo/FEVEREIro 2014 • R$ 28,00 Albuquerque Maranhão Filho
“Nossa missão vai muito além
da geração de energia”
Jorge Miguel Samek

Por que somos


como somos
É possível transformar o Brasil?

Artigos
O Estado mastodôntico:
o poder dos poderes
Ética: a matéria-prima de
que o Brasil mais se ressente
Reformar é preciso
Tumulto ético: um país
em busca de rumo
Revolução de valor
O que as religiões podem
fazer por um mundo melhor?
Agenda para um
novo contrato social
O que está acontecendo com os
nossos jovens profissionais?
A cultura do bem estar bem
Bem ou mal, as marcas educam!
O verdadeiro sítio do
picapau verde-amarelo
We are anonymous – razão
de ser e razão de Estado
Consumidores indignados:
ativismo digital e consumo
consciente
O casamento da indústria
cinematográfica com o
marketing internacional
O poder dos internautas
O elo mais forte da
corrente do bem
Torne sua
empresa sócia
da AAMAC
e ganhe
algo em
troca: cultura.

1966.15.8 - Ismael NERY, Figura, c. 1927/28, óleo sobre tela, Coleção MAC USP
A AAMAC conta com um programa de adesão voluntária
para pessoas físicas e jurídicas interessadas em participar
das atividades do Museu de Arte Contemporânea da USP.

Você também pode fazer parte deste grupo seleto.


Quer saber como? Acesse o site e saiba mais.

aamac .org.br
editorial
EXPEDIENTE

Por que é tão difícil


Conselho Editorial
Francisco Gracioso – Presidente
Alexandre Gracioso
Hiran Castello Branco

transformar o Brasil?
Thomaz Souto Corrêa
J. Roberto Whitaker Penteado
(MTB no 178/01/93)

Coordenação Editorial

S
Lúcia Maria de Souza

Editora Assistente e nossos políticos fossem éticos no trato da coisa pública, como já pedia
Anna Gabriela Araujo Aristóteles, os impostos cairiam pela metade no Brasil. Se os governos res-
Edição de Arte peitassem o cidadão, teríamos tido um Procide, antes do Procon. Se respei-
Mentes Design tássemos mais o mérito, teríamos de apelar menos ao “jeitinho”. Se investíssemos
Revisão na pré-escola, daríamos um salto no ensino fundamental. Se nossos advogados
Anselmo Teixeira de Vasconcelos fossem menos prolixos, a Justiça brasileira seria muito mais ágil. Finalmente, se
Antonio Carlos Moreira
Mauro de Barros não tivéssemos um complexo de vira-lata, a indústria brasileira não teria perdido
para os estrangeiros US$ 100 bilhões só no ano passado.
Redação
Rua Dr. Álvaro Alvim, 123
São Paulo – SP – CEP 04018-010
Tel.: (11) 5085-4508
Poderíamos ir muito além, nessa lista de expectativas que nunca se realizam. Por
Fax: (11) 5085-4646 que será que é tão difícil mudar as coisas em nosso país? Será que deixaremos
e-mail: revista@espm.br
um dia de assistir à malversação do dinheiro público, ao apego a ideologias ultra-
Comercial passadas e à vitória das mediocridades, a que já se referia Rui Barbosa? Muitos
MidiaOffice
Julio Cesar Ferreira
acreditam que sim, mas, como pensam os nossos colaboradores, impõe-se uma
(11) 9 92224497 condição: para transformar o país, teremos antes de mudar alguns de nossos
juliocferreira@uol.com.br
valores, crenças e atitudes.
Impressão
Referência Gráfica
orcamento@referenciagrafica. Mas mudar nossos valores não será uma tarefa fácil. Os sociólogos dizem que é
com.br preciso pelo menos uma geração para que os valores de uma sociedade comecem
Distribuidor Exclusivo a mudar. Até agora, pelo menos, estamos aprofundando cada vez mais a distância
FC Comercial e Distribuidora S.A. que nos separa das nações que hoje estão na vanguarda do mundo. Por exemplo,
Operação em Bancas o último estudo da Unesco sobre a qualidade de ensino no mundo coloca países
Assessoria asiáticos nos sete primeiros lugares, enquanto nós ficamos com o 58º lugar na
Edicase
www.edicase.com.br lista. Agora surge a notícia de que a China acaba de desbancar os Estados Unidos
como a maior potência comercial do mundo. Os asiáticos são hoje o motor do
Revista da ESPM
Publicação bimestral da Escola Su- progresso humano, e a vantagem que possuem são os seus valores sociais e pes-
perior de Propaganda e Marketing.
Os con­­ceitos emitidos em artigos
soais. Até parece que a “ética protestante” de que falava Max Weber transferiu-se
assinados são de exclusiva respon- para o Oriente.
sabilidade dos respectivos autores.

Professores, pesquisadores, consul­ No entanto, desejamos encerrar este editorial com uma nota de otimismo. Nas pá-
tores e executivos são convidados a
apresentar matérias sobre su­as es-
ginas que se seguem, o leitor encontrará análises críticas, mas também propostas
pecialidades, que venham a contribuir e sugestões de mudanças, feitas por grandes juristas, acadêmicos e empresários.
para o aperfeiçoamento da teoria e da
prática nos campos da administração
Convidamos ainda vários homens públicos a se manifestar, mas eles preferiram
em geral, do mar­k­eting e das comuni- silenciar. Aparentemente, os políticos são os que mais temem, ou menos desejam,
cações. In­for­ma­ções sobre as formas e
condições, favor entrar em contato com transformar o Brasil.
a coordenadora editorial.

Francisco Gracioso
Presidente do Conselho Editorial

PARA ASSINAR, LIGUE: (11) 5085-4508 OU MANDE UM FAX PARA: (11) 5085-4646 - www.espm.br/revistadaespm
instituição mantenedora

associados conselho deliberativo diretoria executiva


• Adriana Cury • José Bonifácio de Oliveira Sobrinho • Armando Ferrentini – Presidente da ESPM
• Alex Periscinoto • José Carlos de Salles • Alex Periscinoto
• Altino João de Barros Gomes Neto • Armando Strozenberg • J. Roberto Whitaker Penteado
• Andrea Salgueiro Cruz Lima • José Heitor A­ttilio Gracioso • Dalton Pastore Presidente
• Antonio Fadiga • Judith Brito • Décio Clemente
• Antonio Jacinto Matias • Luiz Antonio Viana • João Vinicius Prianti
• Alexandre Gracioso
• Armando Ferrentini • Luiz Carlos Brandão • José Carlos de Salles Gomes Neto
Vice-presidente acadêmico
• Armando Strozenberg Cavalcanti Júnior • Luiz Marcelo Dias Sales
• Claudio de Moura Castro • Luiz Carlos Dutra • Luiz Lara
• Elisabeth Dau Corrêa
• Dalton Pastore • Luiz Lara • Roberto Duailibi
• Décio Clemente • Luiz Marcelo Dias Sales • Sérgio Reis Vice-presidente
• Francisco Gracioso • Marcello Serpa administrativo-financeira
• Francisco Mesquita Neto • Octávio Florisbal conselho fiscal
• Giancarlo Civita • Orlando Marques Titulares • Hiran Castello Branco
• Jayme Sirotsky • Percival Caropreso • Luiz Carlos Brandão Vice-presidente institucional
• João Batista Simon Ciaco • Roberto Duailibi Cavalcanti Jr. – Presidente
• João Carlos Saad • Roberto Martensen • José Heitor Attilio Gracioso • José Francisco Queiroz
• João De Simoni Soderini Ferracciù • Saïd Farhat • Percival Caropreso Vice-presidente de marketing
• João Roberto Marinho • Sérgio Reis Suplente e comunicação
• João Vinicius Prianti • Waltely Longo • Adriana Cury
janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 7
Índice
O Estado mastodôntico:
o poder dos poderes
Ives Gandra da Silva Martins

O povo brasileiro não manda,


nada decide e tudo suporta. Mas,
na democracia que idealizo para
meu país, o cidadão deveria ser
o senhor absoluto de todos os
direitos sobre os governantes

shutterstock
Pág 16

Ética: a matéria-prima de
que o Brasil mais se ressente
José Renato Nalini Revolução de valor estabelecer novos compromissos
Arthur Meucci e Clóvis de Barros Filho
Na crise contemporânea de valores, éticos entre os cidadãos do mundo
a ética perdeu lugar por inúmeras As novas gerações querem conversar, e, assim, garantir a sobrevivência
razões. Mas ainda há esperança de questionar e propor soluções para dos seres humanos na Terra
que o comportamento ético recupere tudo: política, educação, produtos,
Pág 78
sua valia, ante a permanência de serviços e até na maneira como as
sintomas, como o amor nutrido no empresas gerenciam seus recursos
seio das famílias financeiros e humanos. Saiba como O que está acontecendo
isso ocorre, na prática com os nossos jovens
Pág 24
profissionais?
Pág 48
Alexandre Prates
Reformar é preciso O líder que não dedicar tempo à
Saïd Farhat Especial – O que as educação dos jovens profissionais
religiões podem fazer
O sistema político vigente no Brasil a continuará reclamando e colhendo
ninguém representa. Precisamos de
por um mundo melhor? os frutos de uma gestão que não
Anna Gabriela Araujo
uma reforma urgente, mas não basta acompanha as mudanças. Não
dizer ”ladrão não pode ser eleito”. É A Revista da ESPM foi a campo precisamos mudar os valores que
preciso criar um modelo de política avaliar qual é o papel da religião regem nossa sociedade, apenas
baseado na honradez e na verdade. É na sociedade do século 21 e como vivê-los, de fato
difícil. Mas não impossível os princípios e valores religiosos
Pág 82
influem no comportamento das
Pág 30
famílias brasileiras. Confira o que
pensam os seguidores de oito A cultura do bem estar bem
Tumulto ético: um país igrejas diferentes Newton Branda
em busca de rumo Pág 58 O empreendedor Luiz Seabra
Renato Caporali
conseguiu construir uma das
O Brasil atravessa a mais grave crise empresas mais admiradas do Brasil:
ética de sua história, fruto de sua
Agenda para um a Natura. Seu segredo é simples:
formação cultural. Será inevitável
novo contrato social mais do que inaugurar uma loja
Oded Grajew
transformar a questão ética em para vender cosméticos, ele optou
um problema nacional, a ser tratado Hoje, no início do século 21, por praticar o ”bem estar bem” no
de forma estruturada e inovadora necessitamos, claramente, de um dia a dia de suas operações
Contrato Social, que possa
Pág 40 Pág 90

8 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Bem ou mal, como valores fundamentais
as marcas educam! e inalienáveis dos homens,
Gustavo Pinto são perseguidos pelos jovens,
que não querem seguir cegamente
Entrevistas
A marca de cigarros Vila Rica deixou
modelos vindos de longe
de existir faz tempo, mas o seu
comercial de 1976 ainda é lembrado Pág 100
por muitos brasileiros, por meio da
frase: ”Gosto de levar vantagem em
tudo, certo?”. Isso mostra que marcas
Consumidores indignados:
ativismo digital e consumo
10
transmitem valores e exercem um consciente As raízes do atraso
papel vital na educação Fábio Mariano Borges José Pastore
Pág 92 Os brasileiros aprenderam que
as redes sociais são um eficiente
O verdadeiro sítio do campo de manifestações, denúncias
picapau verde-amarelo e reclamações contra as empresas,
Rose Lee Hayden uma vez que são respondidas com

32
maior agilidade e melhor qualidade, se
A humanidade entrou em uma nova
comparadas aos canais tradicionais
fase: o ”Tecnofeudalismo”. Agora,
quem não está onde o dinheiro ou Pág 106 Paciência, generosidade
a informação trocam de mãos é
e solidariedade
classificado como ”servo”. Diante O casamento da indústria Mario Sergio Cortella
desse cenário, a realidade brasileira cinematográfica com o
descrita nas obras de Monteiro marketing internacional
Lobato parece muito atual Edmir Kuazaqui
Pág 96 O ”Pensar globalmente e agir
localmente”, de Philip Kotler, tem salvo
We are anonymous – razão
de ser e razão de Estado
muitas produções cinematográficas
norte-americanas do fracasso 52
Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos irremediável
Inversão de valores
Veja como a democracia e a liberdade, Pág 112 Eduardo Meinberg de
Albuquerque Maranhão Filho

Seções
INSC|ESPM
O poder dos internautas 118 70
Alumni ESPM
O elo mais forte da Corrente do Bem 122 “Nossa missão
vai muito além da
Leitura recomendada 130 geração de energia”
Jorge Miguel Samek
Ponto de vista
Competição ou solidariedade 134

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 9


entrevista | josé pastore

José Pastore
Cargo: sociólogo formado pelas Escola de Sociologia
e Política de São Paulo (1960), Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1961) e
Universidade de Wisconsin (EUA), onde completou o Ph.D.
Atuação: professor (aposentado) da Faculdade de
Economia e Administração e pesquisador da Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas, ambas da USP. É
membro efetivo da Academia Paulista de Letras
Carreira: Além de lecionar na USP desde 1977, trabalhou
como pesquisador e professor visitante em inúmeras
universidades nacionais e estrangeiras, como a
Universidade de Brasília, a Escola de Sociologia e Política
de São Paulo e as Universidades de Wisconsin, Yale
e Califórnia. Escreveu mais de 400 ensaios e artigos
publicados nos campos da educação, relações do
trabalho e recursos humanos

10 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


As raízes do atraso
O
que Sérgio Buarque de Holanda nos ensina sobre um país que resiste
à meritocracia, se apega ao protecionismo e despreza a produtivida-
de? Para o sociólogo José Pastore, a chave para entender o presente
polarizado — e um futuro preocupante — está no “espírito da apropria-
ção”, um legado infeliz do Brasil Colônia.
Cientista social formado pela Universidade de São Paulo, com Ph.D. em socio-
logia pela Universidade de Wisconsin, Pastore é professor titular da Faculdade
de Economia e Administração da USP desde 1977. Do cruzamento entre o soci-
ólogo e o economista, nasceu um especialista em relações do trabalho e desen-
volvimento institucional. Consultor da área de recursos humanos, ele tem 35
livros e mais de 200 artigos técnicos publicados sobre o mundo do trabalho, que
lhe valeram uma cadeira na Academia Paulista de Letras. É também articulista
do jornal O Estado de S.Paulo.
Foi dessa tribuna que, recentemente, Pastore disparou críticas às lideranças
sindicais brasileiras por uma oposição, muitas vezes violenta, a sistemas meritocrá-
ticos que propõem remuneração especial aos profissionais que entregam melhores
resultados — sobretudo em categorias de alto impacto social, como professores da
rede pública de ensino. Em entrevista à Revista da ESPM, o sociólogo deixa claro
que seu inconformismo é menos direcionado aos sindicalistas em si do que a uma
sociedade que se intimida diante deles e não leva adiante as reformas que podem
relocar o país na rota dos ganhos de produtividade e, consequentemente, da compe-
titividade internacional. “O Brasil insiste em detonar todos os planos de remunera-
ção que são atrelados ao desempenho das pessoas”, afirma ele.
Para analisar esse impasse, Pastore lança mão da história: “Temos uma cultura
tradicionalmente baseada na crença de que as únicas proteções que funcionam
são aquelas garantidas pelo Estado”, detalha o professor, projetando riscos futu-
ros. “Se nós não mudarmos os estímulos, para instigar mais criatividade e produ-
tividade, o Brasil não tem muita chance, não”, avalia o economista.

Por Alexandre Teixeira


Foto: Divulgação

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 11


entrevista | josé pastore

Alexandre — No fim de outubro, o se- lada ao desempenho. Não só dos pro- apenas quatro vezes. A palavra “pro-
nhor escreveu um artigo para O Estado fessores, mas em outras áreas. Será dutividade” aparece duas vezes e a
de S.Paulo em que pergunta, retorica- que o Brasil é o único certo? Porque palavra “eficiência”, uma. Então, veja
mente, se “O Brasil é o único certo”. O outros países, apesar da resistência, que na nossa Carta Magna já há essa
texto critica a oposição arraigada de sin- estão conseguindo avançar e fazer concepção de que a lei é para garantir
dicatos brasileiros quanto à meritocracia contratações ligadas ao desempenho. mais direitos do que deveres.
e à busca de ganhos de produtividade.
No seu entender, esse apego ao que cha- Alexandre — Talvez a resistência à me- Alexandre — A nossa Constituição
ma de “remuneração desvinculada de ritocracia seja mais presente em nossa dificulta a introdução da meritocracia
desempenho” é um fenômeno brasileiro? sociedade. na sociedade?

Pastore — É um fenômeno internacio- Pastore — Na nossa sociedade, ela é Pastore — Há, dentro da nossa Consti-
nal. Existe uma tendência mundial vitoriosa. Nos países avançados, não. tuição, muitas fontes de agravamento
de os sindicatos quererem manter a Ela é debatida, mas já se veem avan- da desigualdade e do protecionismo.
remuneração homogênea ou isonô- ços no sentido de superá-la. Por exemplo: como você pode ex-
mica, desvinculada de produtividade. plicar racionalmente o fato de estu-
Alexandre — A resistência à merito- dantes da classe média alta e da elite
Alexandre — É o que temos visto em cracia não é nova no Brasil, mas tem passarem pelas melhores escolas
Nova York e em outras grandes cidades se tornado até violenta. Que valores médias, que custam muito dinhei-
americanas, onde os professores resis- o senhor entende estarem por trás da ro, e, na hora em que entram numa
tem à ideia de se estabelecerem rankings postura de professores do Rio de Janeiro universidade pública, como a USP,
de melhores escolas e premiar os profis- que ficaram em greve por três meses e reivindicam, batem o pé e conseguem
sionais com resultados acima da média. invadiram a Câmara Municipal duas gratuidade? Isso é garantido pela lei.
vezes, justamente porque não querem Uma lei de má qualidade, no meu
Pastore — Sim, mas, ao mesmo tempo ser avaliados e submetidos a esse siste- entender, porque ela exacerba a de-
em que há resistência dos sindicatos, ma meritocrático? sigualdade. O Brasil não tem falta de
há avanços nas negociações. Nos Es- leis, tem falta de leis de boa qualidade.
tados Unidos, muitas cidades já estão Pastore — Temos uma cultura baseada
contratando professores com base na crença de que as únicas proteções Alexandre — Quando vivemos, em ju-
no desempenho. É o caso também da que funcionam são aquelas garan- nho, as grandes manifestações popula-
Coreia do Sul. tidas pelo governo. Isso tem raízes res de rua, a presidente Dilma Rousseff
históricas. Durante o período colo- levantou, por poucos dias, a bandeira
Alexandre — Em que sentido o senhor nial, tudo era garantido pelo Estado. da convocação de uma assembleia cons-
faz essa provocação: se o Brasil seria o Arrastamos essa herança cultural até tituinte. A ideia de se mexer na nossa
único país certo? hoje. Se analisarmos a Constituição Constituição lhe parece boa?
Federal do Brasil, verificaremos que
Pastore — O Brasil insiste em detonar a palavra “direito” aparece 76 vezes, Pastore — Muita coisa poderia ser me-
todos os planos de remuneração atre- enquanto a palavra “dever” é citada lhorada sem mexer na Constituição.
Agora, se houver disposição para pro-
duzir uma Constituição mais moder-
Se analisarmos a Constituição Federal do Brasil, na e ajustada ao mundo globalizado
e competitivo, eu nada tenho contra.
verificaremos que a palavra “direito” aparece Mas não sinto que o ambiente seja
76 vezes, enquanto a palavra “dever” é citada este. Se houver a mudança, é capaz de
apenas quatro vezes termos mais protecionismo, porque

12 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


os nossos constituintes vão visar o A ideia do equilíbrio entre direitos e deveres,
voto, e não o país.
que há na cultura anglo-saxônica, é praticamente
Alexandre — Alguns dos valores dos desconhecida entre nós. No campo do trabalho,
sindicalistas que o senhor criticou são isso é bem mais claro
compartilhados por uma parcela impor-
tante dos estudantes, a qual tem se mos-
trado ainda menos disposta a negociar. contra a ideia de conquista negociada, seja tão grave quanto na indústria,
Em São Paulo, alunos da USP arromba- baseada no desempenho e no aperfei- está aquém do padrão internacional.
ram a porta da reitoria, na base da mar- çoamento. O Brasil tem chances de ir Nossos serviços são precários e caros.
retada, porque o Conselho Universitário bem na economia, mas tem ido mal
não mudou a forma de escolha do reitor. do ponto de vista institucional. Alexandre — O que está por trás dessa
estagnação tão prolongada da produti-
Pastore — A juventude é parte dessa Alexandre — Só que muitos problemas vidade no Brasil?
cultura do garantismo legal. Tudo institucionais acabam vazando, por
tem de ser garantido, sem nenhuma assim dizer, para a economia. Pastore — Em primeiro lugar, é a falta
contrapartida de responsabilidade e de investimento em pesquisa e ino-
deveres. A ideia do equilíbrio entre Pastore — Sem dúvida. O Brasil não vação. A indústria fica defasada. Em
direitos e deveres, que há na cultura está isolado no mundo, onde parcei- segundo lugar, é a baixa qualificação
anglo-saxônica, é praticamente des- ros e concorrentes estabelecem uma média dos trabalhadores. Por último,
conhecida entre nós. No campo do competição selvagem, baseada em ainda há muita empresa que trabalha
trabalho, isso é bem mais claro. Nossa inovações, pesquisas e conquistas. com administração retrógrada.
tradição trabalhista é a de estabelecer Estamos ficando isolados dessas ca-
todos os direitos por lei, e não por deias globais de valor. Isso acontece Alexandre — O fato de a qualificação
negociação. Na nossa legislação, só porque não temos uma estimulação média do trabalhador brasileiro ser bai-
há dois direitos negociáveis: salário e da criatividade, do desempenho. xa tem relação com a entrada de muita
participação em lucros e resultados. gente no mercado formal de trabalho?
Todo o resto é fixado por lei, como se Alexandre — Isso resulta na estagna-
fosse uma tarifação. Isso é diferente ção da produtividade da indústria. Pastore — O tema é bem complexo.
em países avançados, onde uma parte Uma linha de raciocínio diz que nos
pequena é garantida por lei e o restan- Pastore — A produtividade só cresceu, últimos dez anos o Brasil estimulou
te, tradicionalmente, é negociado. na indústria brasileira, na década de o crescimento baseado no consumo,
1970. Dos anos de 1980 para cá, ela por meio de linhas de crédito, redu-
Alexandre — Já se falou muito sobre evoluiu de forma desprezível. Ultima- ção do IPI e desoneração da folha de
reforma trabalhista no Brasil, mas ela mente, está parada. Parece até um ele- pagamentos. O estímulo ao consumo
sumiu do debate político. trocardiograma de morto, enquanto gerou muitas oportunidades de tra-
a produtividade de outros países está balho no setor de serviços, mas, como
Pastore — Não vejo evolução nesse disparando, em especial a da China na maioria dos casos são serviços
campo. O Brasil está vivendo uma cri- e a da Alemanha — um dos países que de baixa qualidade, as pessoas que
se institucional no que tange aos va- pagam os salários mais altos no mun- entraram no mercado de trabalho
lores que sustentam as instituições, do. Lá, a produtividade é tão alta, que também têm baixa qualificação. En-
a Justiça do Trabalho, a legislação é barato pagar salários mais elevados. tão, na média geral, isso compromete
do trabalho, a área educacional etc. No Brasil, é caro pagar mesmo os salá- a produtividade total do país. Essa é
Nós temos uma invasão crescente rios mais baixos. Na área de serviços, uma posição teórica defendida por
do garantismo legal, que se choca embora a baixa produtividade não muitos economistas de respeito.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 13


entrevista | josé pastore

Alexandre — Isso, por si só, não seria como a Embrapa, a economia brilha, tividade. Nós ficamos estagnados. Se
negativo. As pessoas podem até não ser o país se desenvolve e desponta como nós não mudarmos os estímulos, para
qualificadas, mas é melhor vê-las incor- líder mundial. Se você mantém tudo instigar mais criatividade e produtivi-
poradas à força de trabalho, não? na base da proteção, tudo garantido dade, o Brasil não terá muita chance.
por lei ou pelo Estado, os agentes
Pastore — Melhor dentro do trabalho econômicos são pouco estimulados Alexandre — Qual é o peso de fatores
do que fora. Agora, no trabalho, elas a inovar. O Brasil sofre desse mal, se- históricos na relação dos brasileiros com
adicionam pouco. Em relação aos cularmente. Aqui, existe um excesso o trabalho?
nossos concorrentes internacionais, de proteção. Para usar a palavra mais
elas nos deixam para trás. A corrida certa, de protecionismo. Pastore — Não há dúvida de que o que
é em relação a um ponto móvel. Por acontece hoje tem raízes no passado. O
exemplo: enquanto aumentamos em Alexandre — Olhando por uma pers- peso da história é grande. Fomos um
1% a nossa produtividade, o coreano pectiva histórica mais ampla, o senhor país por muito tempo colonizado por
registra um ganho de 5% por lá. O acredita que estamos vivendo um mo- um povo extremamente autoritário,
alemão também, o japonês idem. mento turbulento numa rota de evolu- que instigava pouco a criatividade. A
Não podemos dizer que está melhor ção da nossa democracia que um dia empresa moderna dá aos empregados
porque eles [os trabalhadores pouco nos levará a ser uma sociedade mais as linhas gerais do trabalho. Quem
qualificados] estão trabalhando. Mas meritocrática e inovadora? Ou será que tem de encontrar as soluções são eles.
em função daquilo que o país precisa, estamos limitados, por uma questão his- Historicamente, nunca tivemos essa
como parte da economia global, isso tórica e cultural, em nossa capacidade cultura de autonomia. Na escravidão,
significa pouco, bem pouco. de avançar por essa via? o senhor definia a tarefa específica que
o escravo tinha de cumprir. Essa raiz
Alexandre — O senhor começou a res- Pastore — Eu não tenho bola de cris- histórica vai longe.
ponder à pergunta sobre a estagnação tal, mas penso que o Brasil chegou
da produtividade falando de inovação. a um ponto desafiador. O modelo de Alexandre — Fica a sensação de que
Na realidade, os índices de inovação proteção pelo Estado não dá mais uma parcela da nossa cultura nacional é
que tenho visto estão caindo, e não au- conta de manter a eficiência da eco- parte oculta do que chamamos de custo
mentando, com a provável exceção do nomia. Não há condições de se cons- Brasil, em termos de competitividade.
setor agropecuário, no qual a inovação truir uma economia mais eficiente
é importante por conta da Empresa com esse protecionismo estatal que Pastore — Concordo.
Brasileira de Pesquisa Agropecuária inibe a inovação, a criatividade, o
(Embrapa). No último ranking interna- desempenho, a produtividade e o Alexandre — De onde mais vêm essas
cional de inovação, o Brasil perdeu po- avanço. Nos últimos 20 ou 30 anos, o crenças e esses valores que fazem o Bra-
sições e aparece apenas no 56º lugar... mundo disparou. A produtividade da sil ser o país que é hoje?
Coreia do Sul, por exemplo, é quase
Pastore — O caso da agropecuária tão alta quanto a da Alemanha. O Pastore — Aqui vou me valer do Sér-
foi bem lembrado, porque mostra mundo em desenvolvimento foi con- gio Buarque de Holanda. Temos uma
que, quando você investe em ideias, vergindo para altos níveis de produ- cultura que começou com o espírito
da apropriação. Ele teve um aspecto
predatório muito grande para o cres-
O Brasil está vivendo uma crise institucional cimento do país no período do Brasil
Colônia. Teve também reflexos na for-
no que tange aos valores que sustentam mação da personalidade do brasileiro.
as instituições, a Justiça do Trabalho,
a legislação do trabalho, a área educacional Alexandre — Aproveito sua capacida-

14 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


de de análise: é possível mudar valores Se você mantém tudo garantido por lei ou pelo
tão arraigados de um povo?
Estado, os agentes econômicos são pouco estimulados
Pastore — Estamos vendo muitos a inovar. O Brasil sofre desse mal secularmente.
países mudando valores. Em relação Aqui, existe um excesso de proteção
à educação, ao trabalho, à ética pes-
soal. É o caso da China, da Coreia do
Sul, de Israel e de alguns países da Alexandre — Por essa análise, não há trabalho, como o senhor avalia o papel
América Latina, como o Chile. São saída. Se os valores do eleitorado são da iniciativa privada como indutora de
países que estão avançando. Não te- de manutenção desse status quo e a mudanças?
nho bola de cristal, mas sei que uma exigência do processo democrático é
mudança desse tipo só pode dar cer- atender a esses anseios, não vamos nos Pastore — Temos todos os tipos de
to se acontecer de baixo para cima. mover, vamos? empresário. Temos os empresários
Ou seja, se for induzida da economia avançados, querendo melhorar o
para a sociologia, da infraestrutura Pastore — Esta é uma pergunta angus- capital humano do país. Isso é impor-
material para a superestrutura de tiante que faço para mim mesmo. tante não só para as empresas, mas
valores. Precisamos sofrer mais para também para o desenvolvimento da
entender melhor a necessidade de Alexandre — O Brasil é um dos poucos nação. Você vê muito empresário que
concorrer e competir. Na hora em países, entre as grandes economias, que investe dinheiro próprio em pesquisa
que o país passar por um choque têm uma Justiça do Trabalho indepen- e desenvolvimento. Vê empreende-
grande, talvez comece a mudar. dente. De algum modo, isso é parte do dores que se arriscam bastante, mas
problema? ao lado deles está uma grande quanti-
Alexandre — O senhor mencionou a dade de empresários que continuam
China, que passa por transformações Pastore — É parte sim, mas o Brasil querendo o protecionismo governa-
profundas. Este exemplo, porém, leva a não é o único. Outros países tam- mental. Aqui, você pode incluir até al-
uma discussão relevante: como lideran- bém têm Justiça do Trabalho, mas a gumas multinacionais, que vêm aqui
ças políticas identificadas com valores maneira como a nossa opera é bem buscar a proteção do governo.
meritocráticos e com o aumento da peculiar.
produtividade, da inovação e da cria- Alexandre — O que o Brasil tem a
tividade poderiam promover reformas Alexandre — Por quê? ganhar enfrentando o desafio de uma
igualmente profundas num ambiente transformação cultural pró-meritocra-
democrático, onde não cabe a ideia da Pastore — Porque a nossa Justiça do cia, pró-livre iniciativa, pró-produtivi-
coerção de cima para baixo? Trabalho tem poder normativo. Quer dade?
dizer, ao dar uma sentença, o juiz tem
Pastore — No caso da China, que tem a competência de expandi-la para Pastore — O país ganharia mais liber-
um regime autoritário, os governan- toda uma categoria ou toda uma re- dade, mais competência, melhores
tes perceberam que só podem sobre- gião. Isso não existe em outras Justi- condições para concorrer no mercado
viver se a economia se desenvolver. ças do Trabalho, até onde eu entendo. mundial, empregos melhores, educa-
Enquanto isso, no Brasil, o gover- ção de boa qualidade, saúde e segu-
nante sabe que a economia só pode Alexandre — A partir de esforços pon- rança como não existem hoje.
crescer e se desenvolver enquanto tuais, como programas de treinamento
lhe garantir votos. Para garantir o de aprendizes do Senai/Senac, e de Alexandre — E qual será a consequên-
voto, o governo tem de satisfazer os casos conhecidos de empresas cha- cia de manter o rumo atual?
valores do eleitorado — que são os mando para si a responsabilidade por
valores da proteção e do estatismo. melhorar a educação da sua força de Pastore — Estagnação.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 15


Política
O Estado mastodôntico:
o poder dos poderes
No modelo ideal de democracia, o cidadão deveria ser o senhor absoluto de
todos os direitos sobre os governantes e estes, apenas seus servidores. Mas isso
está bem distante do retrato que os políticos apresentam hoje no mundo inteiro.
A democracia atual é apenas menos ruim que a ditadura
Por Ives Gandra da Silva Martins

O
Estado moderno é um Estado mastodôntico. repercussão que o mesmo triste fenômeno, quando ocorre
Seja desenvolvido, seja emergente, o Estado nos governos de direita. O episódio do mensalão foi uma
moderno é mais do que a sociedade. Pesa- exceção, graças ao equilíbrio de poderes que a Constitui-
lhe mais do que lhe presta serviços. Não ção garantiu. Simone de Beauvoir, no seu livro Os man-
representa o desejo de seu povo, mas sim de quem detém darins (Editora Nova Fronteira, 2002), mostrava como na
o poder. A democracia que o caracteriza é apenas a demo- França do pós-guerra tudo justificava o ataque à direita,
cracia de acesso. O eleitor é chamado a votar e depois não mesmo quando não merecia, e tudo justificava esconder
tem mais participação nas decisões do governo. os defeitos da esquerda, mesmo quando valeria a pena
Há, por outro lado, por parte de parcela da mídia uma divulgá-los por uma questão de equilíbrio e de justiça.
forte tendência a valorizar os governos socialistas e a des- Raramente, vimos os governos de esquerda colocarem
valorizar os governos de economia de mercado, até por em prática os teoremas “redistributivistas”. Quase sem-
força de uma realidade na qual os jornalistas nada têm a pre a única distribuição que praticam tem como benefi-
perder, de um lado, e a livre concorrência nada tem que ciários seus adeptos e correligionários, que se enquistam
ver com a ideologia propriamente dita, de outro. nos governos após a conquista do poder. Como disse Rui
A preferência ideológica pela esquerda de muitos inte- Falcão, inteligente e perspicaz líder da esquerda no Bra-
lectuais é, de rigor, uma preferência psicológica, farta- sil, “não há administração pura”, e as administrações de
mente enraizada numa inveja subconsciente, ou seja, de esquerda são mais impuras do que as administrações de
não se ter o mesmo sucesso que outros têm, em função da direita e menos eficientes.
falta de criatividade e inveja da criatividade dos outros, Por outro lado, nas economias de mercado, nem sem-
ou seja, aqueles que têm permitido o progresso da socie- pre se tem uma visão clara dos objetivos. Entretanto,
dade. Deseja-se retirar recursos de quem soube ganhar, elas costumam ser mais bem-sucedidas que os regimes
trabalhando, justificando tal “ideal” com o rótulo de “dis- de esquerda. Essas economias de mercado também são
tributivismo”. É mais fácil, portanto, ser de esquerda do mais geradoras de emprego e desenvolvimento, lem-
que de direita, quando os que invejam os bem-sucedidos brando que os países que obtiveram maior sucesso eco-
não conseguem ter o mesmo nível de sucesso. nômico não são socialistas. Por outro lado, os governos
A tendência, por outro lado, dos governos de esquerda socialistas que assumiram economia de mercado nos
de controlarem a mídia decorre do desconforto de terem moldes de governos capitalistas só conseguiram cres-
shutterstock

suas mazelas expostas pelo jornalismo investigativo. cer quando deixaram de ser socialistas, praticando as
É de lembrar, entretanto, que a corrupção, o cliente- mesmas técnicas e mecanismos dos governos liberais.
lismo e a ineficiência dos governos de esquerda têm menor Foi o que ocorreu com a China.
Política

O caminho para a partilha redistributivista da esquerda


— que, a meu ver, seria justa, se fosse o homem diferente —
só pode ser aberto, sob a ótica das teses socialistas, pelo
princípio de que se tem de tirar recursos dos ricos — que são
considerados párias — para entregá-los aos pobres, desde
que sejam eles, os socialistas, a administrar tais riquezas
destinadas à redistribuição. Tal redistributivismo, base-
ado “na inveja e no ódio” aos mais ricos, jamais irá gerar o
espírito próprio das partilhas, que precisam estar alicer-
çadas no altruísmo e no amor. Assim, seria justo.
Por essa razão, as entidades assistenciais sem fins
lucrativos, formadas por voluntários cuja única ideolo-
gia é servir, são muitíssimo mais úteis que os “profissio-
nais da ideologia redistributivista” em causa própria.
Os ideólogos da esquerda que pretendem tirar dos ricos
para dar aos pobres, exatamente aqueles recursos que são
geradores de empregos, são ineficientes no trato do social

latinstock
e pouco altruístas, a não ser com seus fiéis correligioná-
rios. Por outro lado, os ricos, infelizmente, só trabalham
para o social quando têm os faróis da mídia e da comuni-
cação a afagar suas vaidades, desdobrando-se, açulada-
mente, para frequentar as páginas das revistas e dos jor- Simone de Beauvoir, no seu livro Os mandarins, mostrou
como na França do pós-guerra tudo justificava o ataque
nais, em que exibem, como pavões, os sinais exteriores à direita, mesmo quando não merecia e tudo justificava
de suas riquezas. esconder os defeitos da esquerda
Nada melhor, para estimular a inveja da esquerda, do
que o fútil exibicionismo da direita rica, as mulheres osten-
tando plásticas rejuvenescedoras, roupas caríssimas e Quase todos os políticos têm projetos pessoais e utili-
frequentando festas fenomenais e os homens acolitando zam-se de seus eleitores para realizá-los. A demagogia é a
esta folclórica manifestação de futilidades e desperdícios. essência da sua pregação. Já não se importam em ser trans-
E, de rigor, esta classe social composta de invejosos da parentes ou altruístas, mas apenas em impressionar bem.
esquerda e de exibicionistas da direita vai se tornando, jun- A imagem do político não é construída a partir de sua
tamente com aqueles que exercem o poder, ou seja, políti- atuação como homem público, mas aquela que o asses-
cos e burocratas, um enorme peso morto que a sociedade sor de imprensa, o homem da publicidade, denominado
deve suportar, além do Estado e do governo, que são apenas “marqueteiro” da mídia, constrói.
os próprios detentores do poder e jamais o próprio poder. Nada é tão distante do político atual quanto a imagem
que os homens de mídia por ele contratados edificam
Os políticos perante o público e que deve ser seguida à risca para que
Uma das características do Estado mastodôntico da atu- tenha viabilidade eleitoral.
alidade é a sua classe política. Em outras palavras, o eleitor vota não no político como
ele é, mas na imagem dele produzida por especialistas
em ilusões. Criam um herói cinematográfico e vendem
Um dos aspectos da corrupção esta imagem, como se fosse de um idealista dedicado à
pátria e aos interesses da comunidade.
reside na gradativa insensibilidade Uma vez eleito, seu compromisso com o eleitorado deixa
que o corrupto vai adquirindo, como de existir e só será retomado nos últimos meses de seu man-
o drogado, nos seus desvios de conduta dato para, novamente contratando os “especialistas da ilusão”

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divulgação

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Rui Falcão, presidente do PT: ”Não há administração Margaret Thatcher governou a Inglaterra de 1979 até 1990,
pura. Até nas empresas existe política, disputa de poder, e só perdeu por ter acreditado que o aumento de tributação
mediações. Às vezes, o empresário admite até prejuízos do seria irrelevante para a Grã-Bretanha. O povo reagiu e a
ponto de vista da eficiência para poder ganhar lá na frente” ”Dama de Ferro” acabou derrotada

— muitas vezes “os especialistas da mentira” —, venderem e infidelidade partidária seu ideal de vida, razão pela qual,
sua imagem de dedicado cidadão e agente público exemplar. por pensar somente em si e pouco nos representantes e
Em qualquer país do mundo democrático e especial- na pátria, não auxilia o desenvolvimento da nação, nem
mente no Brasil, os melhores marqueteiros são os que a solução dos grandes problemas.
vencem as eleições e são disputados a peso de ouro. Dir-se-á que esse é um mal necessário da democracia,
À evidência, o compromisso do marqueteiro é com sua pois, de tempos em tempos, deve correr atrás de novos
profissão, “vender ilusões”; não tem nenhuma vinculação eleitores, mas, para tanto, conta sempre com os mar-
com os ideais dos candidatos que “produz”. queteiros de ocasião.
Por essa razão é que a democracia, no mundo, é uma Há de se convir, entretanto, que a verdadeira democracia
singela democracia de acesso, tanto mais frágil quanto está longe do retrato que os políticos da atualidade no mundo
mais o regime vincular-se às soluções presidenciais e inteiro apresentam — decididamente um péssimo retrato.
não parlamentares. E a democracia atual é apenas menos ruim que a ditadura.
É que, no sistema parlamentar de governo, a alternân-
cia no poder é mais rápida e só nele permanece o político Os burocratas
consistente. Margaret Thatcher governou a Inglaterra Outro aspecto a conformar o Estado mastodôntico é o
durante 11 anos e apenas perdeu por ter acreditado que papel dos burocratas: os servidores públicos de carreira.
o aumento de tributação seria irrelevante. O povo rea- Aqueles que entram no serviço público, muitas vezes,
giu e ela foi derrotada. vivem sem maior interesse pela sociedade, e pensam
O político — a maioria, visto que há sempre algumas apenas em sua aposentadoria para gozar, com folga, o
exceções — é alguém que faz do carreirismo, fisiologismo repouso futuro.

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Política

São, de rigor, os integradores do poder, como diria Alvin


Toffler, no livro Terceira onda (Editora Record, 2001). Os
políticos só governam, alicerçados em sua ação.
Quase sempre oferecem muita resistência a qualquer
mudança. Acostumados dentro de determinadas rotinas,
a mudança causa-lhes calafrios e são os primeiros a tentar
bloqueá-las. Sua concepção é casuística, em que o cargo
dá dignidade à pessoa. A grande maioria é honesta, mas
atribui à administração pública — que confundem com o
poder — um papel mais relevante do que à própria sociedade.
Neste aspecto reside o grande problema. O burocrata
pensa que a sociedade está a seu serviço. E, à evidência,
seu poder, no tempo, confunde-se com seu direito.
Como os políticos passam e os burocratas permanecem,
são eles os verdadeiros formuladores das políticas gover-
namentais, principalmente nos países parlamentaristas.
Integram o poder, com que, normalmente, se identifi-
cam, e terminam confundindo seus próprios interesses
com aqueles da nação, em confusão que reduz a cidada-
nia a expressão inferior.
Concursados ou escolhidos para serem “servidores
públicos”, como determina a expressão, no mais das
vezes, passam a exercer o poder burocrático como se cou- interesse político e não por vocação funcional. E, nesse
besse à nação servi-los, e não o contrário. O povo é que caso, a identificação com o poder é muito maior. São, em
acaba ficando à disposição desses detentores do poder, verdade, os verdadeiros senhores da máquina administra-
por meio de tributos ou das exageradas exigências buro- tiva, nos países onde não há burocracia profissionalizada.
cráticas, criadas para aumentar seus quadros e justificar O melhor caminho para reduzir os efeitos nocivos da
ações, em muitos casos, desnecessárias e inibidoras das identificação do burocrata com o poder reside na deno-
potencialidades da sociedade. minada “burocracia profissionalizada”, em que há car-
Os governantes, políticos e burocratas, quase sempre reira funcional e mérito no seu exercício.
agem de comum acordo. Cada alteração de poder, pelos O certo, todavia, é que, no Brasil, não temos burocracia
políticos, não corresponde a idêntica alteração por parte profissionalizada, a não ser nas carreiras militares, no Ita-
dos burocratas, que deixam os quadros funcionais em maraty, no Judiciário e no Ministério Público. Os cargos de
menor número do que aqueles que neles entram pelas confiança, que representam os postos mais altos da admi-
mãos de novas administrações. E os concursados, efetiva- nistração pública, são preenchidos por pessoas que quase
dos e estáveis não há, sequer, como pensar em afastá-los. nunca são funcionários de carreira, mas ligadas aos políticos.
No livro Concept of law (Oxford University Press, 1997), Essa experiência não tem sido boa.
Herbert Lionel Adolphus Hart explica que, nos Estados
democráticos, as leis são feitas para serem aplicadas a Os aproveitadores
governantes e governados, mas, como são feitas pelos Assim como a ditadura, a democracia é um sistema de
governantes, quase sempre são aplicadas contra os gover- governo em que vicejam os aproveitadores. Aqueles que,
nados e a favor dos governantes. através da bajulação, pequenos ou grandes golpes, inte-
De rigor, é o que ocorre com a burocracia. E a burocracia resses e, algumas vezes, ações condenáveis, aproximam-
não profissionalizada — que é formada pelos correligio- se dos poderosos.
nários dos partidos vencedores — é ainda pior, na medida Entre estes, se distinguem, em primeiro lugar, os cor-
em que tais burocratas só se tornaram burocratas por religionários. Aqueles que fazem da militância política

20 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


População protesta contra a política de Cristina Kirchner,
acusada de querer silenciar a imprensa argentina
com a Lei de Mídia, que limita a atuação dos
conglomerados de comunicação no país

sejam suas mentiras, mais letais. E são admirados por este


seu talento, à disposição de democracia de acesso, que
nada tem a ver com a real democracia do povo, aquela que
permite o permanente controle de seus representantes.
Uma terceira categoria de aproveitadores são aqueles
que financiam as campanhas para depois usufruírem da
partilha do “butim”. Tais aproveitadores sabem que o finan-
ciamento de campanha é um investimento necessário para
conseguir polpudos contratos públicos, posteriormente.
No Brasil, a permanente dispensa de licitação por
razões de urgência quase sempre beneficia os financia-
dores de campanha, principalmente daqueles partidos
que, na oposição, se apresentavam como paladinos da
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moralidade. Os paladinos da moralidade só o são quando


militam na oposição. Na situação, são sempre patroci-
nadores da imoralidade.
Um quarto tipo de aproveitador representa a categoria
utilitária seu objetivo de vida. Não têm prestígio para dos que buscam o emprego oficial, não por mérito próprio,
concorrer às eleições, mas suam a camisa para conse- mas por ser amigo dos poderosos.
guirem ser lembrados pelos vencedores. Por outro lado, A Constituição do Brasil, por exemplo, impõe concurso
não têm competência para o exercício de cargos de con- público para acesso a cargos públicos, mas as exceções
fiança, como ministros ou secretários de Estado. Sua espe- relativas aos cargos de confiança e as assessorias espe-
cialidade, como as hienas que acompanham os grandes ciais são tantas, que não há governante que não traga uma
predadores, é usufruir da carniça política. legião de aproveitadores para partilhar o poder.
Nas ditaduras, a visibilidade de tais aproveitadores é Tais aproveitadores querem o emprego público e,
maior, visto que não há controle externo. para tanto, “competência e ética” são substituídas por
Nas democracias, eles são mais engenhosos, mais astu- “amizade e bajulação”. Por isso, um correto servidor de
tos, mais perspicazes. Vivendo projetos próprios e não os carreira, que não faça política, termina sua vida pública
da nação, não pensam em outra coisa senão em enriquecer, como chefe de seção, enquanto o bajulador do poder
mantendo-se à tona, razão pela qual sua fidelidade polí- poderá chegar aos postos mais altos da administração.
tica não é maior do que foi a fidelidade conjugal de Messa- Outros “espécimes” de aproveitadores existem, tendo
lina. São a escória dos governos, em vestes alcandoradas. preferido, todavia, apenas descrever, neste curto artigo,
Uma segunda classe dos aproveitadores são os mar- apenas alguns deles.
queteiros. Os que fabricam os candidatos. Nada é menos
verdadeiro que o candidato produzido para uma eleição Os corruptos
pelos marqueteiros. São os “vendedores de mentiras”, A política leva muita gente à corrupção. O poder público
dos quais os políticos atuais não podem prescindir para também. Burocratas e políticos correm sérios riscos de
ganhar as eleições. Os marqueteiros têm duas funções: resvalarem para a corrupção. Nela se incluem, também,
manter incólume seu candidato e destruir o candidato a corrupção afetiva, o nepotismo, as concessões por vai-
oposto. Balançam entre suas duas habilidades maiores, dade humana, além do que é mais comum, a corrupção
ou seja, a mentira e a distorção. Quanto mais eficientes pura e simples por dinheiro.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 21


Política

Cristo teve 12 apóstolos. Um deles o traiu. Era exata- Política e corrupção. Poder e corrupção. Burocracia e
mente o que cuidava da bolsa, manipulava o dinheiro. Pode corrupção. São características permanentes dos homens
ter sido uma coincidência, mas, em face do livre arbítrio que dominam os povos, considerando-se mais dotados
que Deus outorga a todos os seus filhos, foi ele mal usado. que a sociedade para subir na vida, à custa dela.
E vendeu Cristo por dinheiro, tendo se arrependido — não
como Pedro — e, no desespero, cometeu um segundo ato O povo
tresloucado, o suicídio. O povo pouca atuação consciente tem, nos destinos
Lord Acton, ao dizer que o poder corrompe e o poder dos governos. Seja nas ditaduras, seja nas democracias.
absoluto corrompe absolutamente, não fez senão afirmar Nas democracias, à evidência, há um verniz de atua-
o óbvio. Um dos aspectos interessantes da corrupção ção, reduzida à participação na escolha dos governan-
reside na gradativa insensibilidade que o corrupto vai tes, que, todavia, é fantasticamente manipulada pelos
adquirindo, como o drogado, nos seus desvios de conduta. marqueteiros de ocasião.
Adolf Hitler, no dia 27 de abril de 1945 — três dias antes A manipulação para a conquista do poder é a carac-
de seu suicídio —, fez uma observação anotada por seus bió- terística maior da democracia de acesso, sendo o verda-
grafos, segundo relatos daqueles que ficaram no “bunker” deiro eleitor dos candidatos o seu homem de comunica-
com ele, que serve para mostrar a insensibilidade que o ção social. A obra do candidato, seu desempenho, sua
poder vai gerando. Disse: “Se de alguma coisa tenho de personalidade, são quase sempre reconfigurados para
me arrepender é de ter sido tão generoso com as pessoas”. melhor, pelo marketing político.
No mundo inteiro, todos os preços públicos são maio- O povo não manda, nada decide, tudo suporta. Grande
res do que os preços privados, porque neles está incluído parte dele não tem condições de julgar o que é verdade e
o preço da corrupção. Os corruptos recebem uma porcen- o que é mentira nas campanhas eleitorais.
tagem paga por fora. Nos países emergentes, a incapacidade popular é ainda
Manuel Ferraz de Campos Salles foi um presidente maior e a manipulação mais fácil. Conforme o grau cul-
brasileiro que entrou rico na política e saiu pobre. A tural ou as tradições dos povos, as manipulações podem
grande maioria dos políticos — que só vivem de política gerar fanatismo e dependência a líderes carismáticos.
e com subsídios e vencimentos parcos, se comparados Nesses países, os que controlam a opinião pública são
aos padrões internacionais — entra pobre na política e os que auxiliam os governantes a governar, indepen-
dela sai rico. dentemente do povo.
Nunca se falou tanto em ética no mundo e nunca se viu Não significa, todavia, que o povo não seja manipu-
tantos problemas espoucarem nesse campo, diariamente, lado, nos países desenvolvidos. As fortunas que se gastam
desvendando corruptos, na burocracia e na política. nas campanhas eleitorais são ainda maiores do que nos
Outro aspecto negativo é a conotação ideológica. emergentes, e a elite dos grandes grupos empresariais,
Quando os órgãos responsáveis pelo combate à corrup- sindicais e de interesses corporativos da administração
ção têm preferências ideológicas, passam a ser seletivos. termina por conduzir as eleições não necessariamente
Lutam para descobrir a podridão dos que tenham ideo- para o melhor, mas quase sempre para o candidato que
logia diferente e escondem a podridão dos que pensam contratou o melhor publicitário. Quem decide a eleição,
como eles, tornando-se — mesmo que não recebendo pois, não é o povo, mas o homem da propaganda.
dinheiro do poder — corruptos de outra espécie, ou seja, Prometer, em política, não compromete. Todos os can-
“corruptos ideológicos”. didatos sabem que seu compromisso com o programa de
campanha é nenhum. Por isso prometem tudo e quase
nada cumprem.
Na democracia que idealizo para meu A omissão das elites e a permanente incapacidade do
povo de distinguir entre “marketing” e “verdade”, além da
país, o cidadão deveria ser o senhor de falta de mecanismos jurídicos para controle dos deten-
todos os direitos sobre os governantes e tores do poder, tornam a sociedade, de rigor, mero ins-
estes, apenas seus servidores trumento de domínio dos políticos.

22 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


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Por essa razão, talvez, é que prestar serviços públicos como nas ordens hospitalares da Idade Média, servir ao
não seja a primeira preocupação dos governantes, mas povo deveria abdicar de seus privilégios e ter como meta
sim a de manter o poder a qualquer custo, sendo certo o bem da sociedade, e não o próprio bem. Caso contrário,
que, se houver tempo e se o dinheiro não for totalmente seria melhor continuar fora da política e do governo, pois o
desperdiçado, algo se fará, de preferência obras de “visi- serviço público exige “sacerdotes”, e não “aproveitadores”.
bilidade eleitoral”, mais do que de conteúdo cívico. Dessa Na verdadeira democracia, quem merece o tratamento
forma, uma “obra faraônica”, que dê visibilidade, é mais de “Sua Excelência” é o cidadão. Não o agente público,
importante do que multiplicar pequenas escolas para edu- quer seja ocupante de cargo administrativo ou eletivo, eis
cação do povo, visto que seu “retorno político” é pequeno. que sua presença nos quadros de qualquer dos poderes
O povo, em outras palavras, é apenas um elemento da atu- só se justifica enquanto sirva ao povo, e nunca quando
ação dos políticos, para ser manipulado em causa própria, passe a usufruir do poder como coisa própria, perse-
valendo os programas sociais apenas para promovê-los. guindo inimigos e privilegiando amigos.
Estou absolutamente convencido de que o povo só Na verdadeira democracia, os direitos individuais deve-
participará de uma democracia real no momento em que riam ser garantidos por governos preocupados na promoção
puder controlar os governos e os governantes se reco- da sociedade. Apenas no dia em que os cidadãos tiverem
nhecerem como seus servidores. Em verdade, todos os consciência de que são mais importantes do que qualquer
governantes são apenas e exclusivamente “servidores” burocrata ou político, é que poderão implantar o verdadeiro
do cidadão. Não são seus senhores feudais. Devem-lhe regime democrático. Até lá, serão apenas “administrados”.
respeito. Devem-lhe prestar contas por sua represen-
tação. E devem honrar o mandato recebido de acordo
com o programa apresentado na campanha eleitoral. Ives Gandra da Silva Martins
Na democracia que idealizo para meu país, o cidadão Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.
deveria ser o senhor absoluto de todos os direitos sobre os É presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio
governantes e estes apenas seus servidores. Quem quisesse, de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio)

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Família

Ética: a matéria-prima
de que o Brasil mais se ressente
Haverá futuro para a ética no mundo que sepulta os valores e repudia princípios tradicionais?

Por José Renato Nalini

24 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


O
declínio dos valores é fenômeno universal Onde foram parar os valores? Há oito anos, Jerome
e de evidente constatação. Os fundamentos Bindé organizou uma obra cujo título retrata essa inquie-
da civilização concebida como progresso tante indagação: Para onde vão os valores? (Instituto Pia-
e evolução contínua ruíram. Proclama-se get, 2006). No passado, a família era o nicho apropriado
enfaticamente um crescente rol de direitos humanos, ao cultivo do respeito, da consideração e do devotamento
alicerçados em valores básicos, quais sejam a inviolabi- a bens da vida intangíveis, mas considerados essenciais
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lidade da vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade e ao convívio saudável. No artigo La Famille, escrito em
a segurança. Ao mesmo tempo, denota-se o desprestígio 1956, Claude Lévi-Strauss, um dos maiores intelectuais
que eles merecem no cotidiano. do século 20, assinalou: “A vida familiar apresenta-se

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 25


família

em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo


naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito dis-
tantes dos nossos. [...] A família, ao repousar sobre a união
mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um
homem, de uma mulher e de seus filhos, é um fenômeno
universal, presente em todos os tipos de sociedade”. Tal
citação aparece em Textes de et sur Claude Lévi-Strauss, reu-
nidos por Raymond Bellour e Catherine Clément (Editora
Gallimard, 1979). As mães eram as primeiras pedagogas,
treinadoras sociais de uma prole que aprendia a se relacio-
nar de forma civilizada. O ingresso na escolarização era
uma etapa ulterior, que não prescindia do preparo prévio
e insubstituível do berço.
Houve muitas fases na evolução/involução da famí-
lia. Mas a verificação de seu estágio atual não é sempre
gratificante. Se a mãe, ao conquistar autonomia, relegou
a domesticidade a segundo plano, o pai também perdeu
autoridade. “À família autoritária de outrora, triunfal ou
melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de
feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças
recalcadas. Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que

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a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si
mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, auto-
biográfico, individualizado, cuja grande fratura a psica-
”Ao contrário de todos os outros bens que buscamos tendo
nálise tentará assumir durante todo o século 20”, escla- em vista outra coisa, a felicidade é buscada por ela mesma:
rece Elisabeth Roudinesco, no livro A família em desordem é o soberano bem. Naquilo em que não há acordo é sobre a
(Editora Zahar, 2003). sua natureza e a definição do que ela é”
A vida era estável e tranquila. A sociedade ainda provin- Aristóteles
ciana era em grande parte caracterizada por sólidos hábi-
tos rurais. As cidades repartiam com o campo uma popu- Abordemos, ainda que superficialmente, algumas delas.
lação equilibrada, ainda incólume à intensa urbanização, A revolução feminina garantiu à mulher uma legítima
semeadora de extensas áreas conurbadas e problemáticas. e altaneira posição na sociedade. Não se justificava man-
Poucas décadas atrás os brasileiros habitavam o interior. tê-la em situação de inferioridade legal, pois a diferença
De repente, houve uma explosão das urbes e, com ela, a de sexos não interfere na identidade comum. Ambos
implosão do caráter. São múltiplas as causas e não se mos- integram a espécie humana. Todavia, um dos efeitos
tra viável quantificar a influência de cada uma delas na perversos dessa conquista de espaços foi a entrega do
erosão axiológica hoje disseminada e reconhecida pelos infante educando a mentores nem sempre igualmente
que se preocupam com os índices civilizatórios aferíveis capazes na formação das novas gerações.
numa sociedade complexa como a brasileira. A Igreja, que sempre desempenhou um papel relevante
na consolidação de objetivos coincidentes com a moral
tradicional, começou a perder autoridade. De uma aliança
Poucas décadas atrás os brasileiros que, em algumas hipóteses, chegou à promiscuidade,
habitavam o interior. De repente, houve uma ruptura entre Estado e Igreja e, pior ainda,
entre Igreja e Sociedade e entre Igreja e Família.
houve uma explosão das urbes e, O agnosticismo não impede uma conduta ética irre-
com ela, a implosão do caráter preensível. Mas a confissão religiosa representa uma

26 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


consistente alavanca para um comportamento hígido. A
esperança de recompensa transcendente constitui efi-
ciente estímulo para o conduzir-se na imanência do bom
proceder. Não é demasia recordar a surrada frase: “Se Deus
não existe, tudo é permitido”.
A morte de Deus foi anunciada por Friedrich Nietzsche,
a morte do homem foi proclamada por Michel Foucault e a
morte da história por Francis Fukuyama. Por isso mesmo
é que nossa era chegou a ser chamada de a grande deso-
rientação. Era do descartável, do efêmero e de uma cul-
tura hiper, na conhecida linguagem de Gilles Lipovetsky.
O capitalismo selvagem produziu uma cultura de
hiperconsumo, situação bem analisada pelo pensador
contemporâneo: “Até os anos 1970, os bens adquiridos
e os símbolos do consumismo eram prioritariamente
familiares: o carro, os aparelhos domésticos, o telefone,
a televisão, o equipamento de som hi-fi. A era hipermo-
derna caracteriza-se por uma nova revolução consumista
em que o equipamento concerne essencialmente aos
indivíduos: o computador pessoal, o telefone móvel, o
i-Pod, o GPS de bolso, os videogames, o smartphone”,

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apontam Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, no livro A
cultura-mundo — resposta a uma sociedade desorien-
tada (Companhia das Letras, 2011). O significado de
”Ah, que sabeis da felicidade do homem, vós almas
tal mudança é o controle exclusivamente pessoal do confortáveis e bondosas! Pois felicidade e infelicidade são
tempo livre, a dedicação voltada ao próprio interesse duas irmãs gêmeas que, ou bem crescem juntas, ou então,
e a edificação de um mundo egoísta. como é o vosso caso, continuam pequenas juntas!”
Simultaneamente, acentuam-se as desigualdades e a Nietzsche
exclusão é a regra mais observada em todas as socieda-
des de hoje. A legião dos despossuídos é muito superior noite, da solidão, do abandono e do isolamento”, observa
à casta dos que sobrevivem com facilidade e não pade- o autor de A política do rebelde — tratado de resistência e
cem de escassez dos bens da vida. Autores como Michel insubmissão (Editora Rocco, 2001). Embora a realidade por
Onfray são bastante cáusticos ao comentarem o aumento ele focada seja a de Paris, cujos banlieues são tomados por
dos moradores de rua: “Sujos, hirsutos, fedorentos, vesti- uma turba marginalizada oriunda das colônias, aqui no
dos de farrapos, amarrados como embrulhos, protegidos Brasil a situação não é muito diversa. Com a agravante
por artefatos que são também uma colagem de dejetos, os de que a droga se disseminou por todos os ambientes e
mendigos aumentam frequentemente sua claudicação multiplica os sem perspectiva que renunciam a qualquer
pelo uso do álcool como único viático, único revigorante valor e ocupam espaços públicos e desvãos privados.
permitido para atravessar as provas do frio, da fome, da Aqueles que poderiam e deveriam se preocupar com
os ideais da igualdade são os que mais se beneficiam
da crescente desigualdade. Ávidos de poder, não hesi-
A legião dos despossuídos é muito tam na espoliação dos mais fracos. Traduz a formata-
ção do tipo ideal de homem para o exacerbado capi-
superior à casta dos que sobrevivem talismo reinante: “Seu retrato é conhecido: iletrado,
com facilidade e não padecem de inculto, ávido, limitado, sacrificando-se às palavras
escassez dos bens da vida de ordem da tribo, arrogante, seguro de si, dócil, fraco

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 27


família

com os fortes, forte com os fracos, simples, previsível, cônjuges — que às vezes escolhem não ser pais — se prote-
amante arrebatado dos jogos e dos estádios, devoto do gem dos eventuais atos perniciosos de suas respectivas
dinheiro e sectário do irracional, profeta especializado famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio,
em banalidades, em ideias curtas, tolo, néscio, narci- reflexivo, festivo ou útil, e frequentemente precedido de
sista, egocêntrico, gregário, consumista, consumidor um período de união livre, de concubinato ou de experi-
de mitologias do momento, amoral, desmemoriado, ências múltiplas de vida comum ou solitária”, assegura
racista, cínico, sexista, misógino, conservador, reacio- Elisabeth em sua obra.
nário, oportunista, portador ainda de alguns traços da Luc Ferry vai além. Após concluir que o século 20 agiu
mesma natureza que definem um fascismo ordinário”, como um ácido, eliminando valores tradicionais, com a
acrescenta Michel Onfray. desconstrução dos princípios da igualdade, liberdade e
Entretanto, no discurso e na retórica prevalece o tom fraternidade, ele afirma que a reconstrução desses valo-
de preocupação com os excluídos. Desde a doação de ali- res ou ideias reside exatamente no âmbito da vida pri-
mentos, desvinculada do “ensinar a pescar”, até ao midi- vada. Para o autor de Famílias, amo vocês — política e vida
ático mecenato de quem se diverte em nome da filantro- privada na era da globalização (Editora Objetiva, 2008),
pia. A caridade é um espetáculo cínico, a servir mais a não se deve abandonar a preocupação com o coletivo e
quem o protagoniza do que ao pretenso destinatário. os grandes projetos. Ao contrário: “Simplesmente nossa
Pois “na falta de justiça, o sentimento promovido como relação com o coletivo, sob o efeito da história da família
caritativo se apoia nas associações de voluntários, nas moderna, mudou de sentido: a exemplo da preocupação
sociedades de caridade, as doações solicitadas por meio ecológica, ela se formula hoje em todos os campos, em
de grandes espetáculos nos quais o mundo midiático, termos de ‘gerações futuras’. A questão poderia simples-
entrando em cena, exacerbando o sistema, distribui os mente ser formulada da seguinte maneira: que mundo
emolumentos de uma noite sob pretexto humanista de queremos deixar para nossos filhos a partir de agora?”,
tornar a miséria suportável. E quando uma coisa parece questiona Ferry. Os valores da vida privada tendem hoje
suportável, torna-se difícil, impossível, impensável sua a se tornar universais. Podemos e devemos inventar
supressão”, esclarece Elisabeth Roudinesco. outras possibilidades.
Existe perspectiva de recuperação dos valores diante Isso interfere na aceitação do afeto para a formação de
desse quadro apenas em poucos pontos abordados? novos núcleos familiares e também na forma de se enca-
Otimistas enxergam horizonte alvissareiro. No livro rar a educação. “Se quero que meus filhos se esforcem
A família em desordem, Elisabeth mostra que há futuro na escola, não é, confesso, pela grandeza da França ou a
para a família: “Para aqueles que temem mais uma vez serviço da ideia republicana, mas para eles próprios... e
sua destruição ou sua dissolução, objetamos, em contra- para os outros, para aqueles com quem compartilharão
partida, que a família contemporânea, horizontal e em a vida, porque estou convencido de não haver existên-
‘redes’, vem se comportando bem e garantindo correta- cia bem-sucedida, nem vida comum digna desse nome,
mente a reprodução das gerações”. Os jovens ainda se sem uma considerável quantidade de trabalho porque
casam. O divórcio não fez desaparecer a instituição do a gente se humaniza e se civiliza”, define Ferry no livro
casamento. É que, “despojado dos ordenamentos de sua Famílias, amo vocês.
antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, O surgimento de grupos que têm idênticas preocu-
tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual os pações em relação a temas que afligem a todos — meio
ambiente, consumo de drogas, criminalidade, violência,
falta de emprego, saúde, educação — mostra que ninguém
Não depende de ninguém está sozinho quando projeta o porvir.
a restauração interna da crença A espécie humana sabe o que é metamorfose. Tem
exemplos na biologia e consegue enxergar a urgência
no mundo mais fraterno, se cada de um futuro expungido das máculas que contaminam
um de nós começar a agir assim a civilização. A síntese da perplexidade presente já foi

28 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Ela virá mediante o exercício contínuo de uma capa-
cidade de indignar-se e de não transigir com o mal. Não
depende de ninguém a restauração interna da crença no
mundo mais fraterno, se cada um de nós começar a agir
assim. A começar na própria família. Grupo sanguíneo
ou cimentado no afeto. Cada núcleo familiar é uma incu-
badora da felicidade possível sobre o planeta.
Ao tomar conhecimento de que a Venezuela criou um
Ministério da Suprema Felicidade, comecei a questionar
qual seria o meu conceito de felicidade. Assim como a ideia
de justiça é mais nítida quando se experimenta a injustiça,
o conceito de felicidade é menos tangível do que a sensa-
ção de infelicidade. Essa é uma questão recorrente e inso-
lúvel, como aponta a observação de Nietzsche: “Ah, que
sabeis da felicidade do homem, vós, almas confortáveis
e bondosas! Pois felicidade e infelicidade são duas irmãs
gêmeas que, ou bem crescem juntas, ou então, como é o
vosso caso, continuam pequenas juntas!” — que é citada
por Christophe André em Viver feliz — a construção da feli-
cidade (Editora Martins Fontes, 2006).
Ser feliz é um estado de espírito que poucos seres
latinstock

humanos conseguem atingir, nada obstante se possa


justificar a vida como a eterna busca da felicidade. Para
os que têm consciência, empenhar-se em realizar a sua
”A família, ao repousar sobre a união mais ou menos
duradoura e socialmente aprovada de um homem, cota-parte para tornar a vida alheia um pouco menos
de uma mulher e de seus filhos, é um fenômeno universal, atormentada e angustiante é caminhar rumo à conse-
presente em todos os tipos de sociedade” cução da própria felicidade.
Claude Lévi-Strauss A felicidade é um fim em si mesma. A eudemonia dos
gregos, que Aristóteles conseguiu definir: “Ao contrário de
traduzida por Edgar Morin, em A via para o futuro da todos os outros bens que buscamos tendo em vista outra
humanidade (Editora Bertrand Brasil, 2013): “A gigantesca coisa, a felicidade é buscada por ela mesma: é o soberano
crise planetária é a crise da humanidade que não conse- bem. Naquilo em que não há acordo é sobre a sua natureza
gue atingir o estado de humanidade”. Daí a proposta da e a definição do que ela é”. Esse trecho de Ética a Nicômaco
metamorfose: “Quando um sistema é incapaz de tratar aparece também na obra de Christophe André. Para aquele
seus problemas vitais, ou ele se degrada, se desintegra, que se reconhece parte integrante de um convívio de ética
ou se revela capaz de suscitar um metassistema apto deficitária, suprir essa carência pode ser um atalho para
a tratar de seus problemas: ele se metamorfoseia”, diz sentir-se mais feliz. Além disso, reconhecer-se finito, frágil
Morin. Os realistas dirão que é difícil converter o mundo e dependente, cultivar bons hábitos, amar e querer bem,
insensato, egoísta, consumista, narcisista, materialista enamorar-se da experiência vital, tudo isso também cons-
numa fraterna comunhão de seres humanos cônscios titui boa receita. Se alguém descobrir outra, mais eficiente
de sua fragilidade e do quão efêmera é sua vida sobre e fácil, por favor, partilhe a descoberta comigo.
a Terra. Por isso, a probabilidade maior seria a desin-
tegração do sistema civilizatório, corroído pelo abuso
dos recursos naturais, todos finitos e perecíveis. Mas, José Renato Nalini
ainda que improvável, não é impossível a metamorfose. Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP)

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 29


legislação

marcos de paula / estadão conteúdo


Reformar é preciso
O que falta para o Brasil? Vergonha na cara para elaborar uma nova Constituição, que seja capaz
de resolver questões como a imunidade política e a improbidade dos administradores públicos
Por Saïd Farhat

H
á algumas semanas discutimos na ESPM no desenvolvimento da sociedade humana. E, em par-
um tema da maior importância e atuali- ticular, na vida política de toda uma sociedade.
dade: “Como (não) sou representado no Con- Creio que, com maior ou menor intensidade, todos
gresso Nacional”. Na verdade, ninguém se sentimos — no sistema político que deveria represen-
sente politicamente representado por quaisquer órgãos tar-nos, no governo e no parlamento — a falta de res-
de um país cujo sistema eleitoral beneficia os políticos peitabilidade e honradez; de representatividade legí-
que não se pejam de lançar mão de dinheiro público. tima do povão que os elege; das aspirações; dos fatos
E, ainda mais importante, fazer leis — ou executá-las e da adoção de políticas de interesse nacional e não
em benefício de determinados interesses minoritá- pessoal ou regional; e de sua implementação.
rios ou individuais. Quero dizer: o que aí está não representa ninguém.
Essa questão, da mesma forma que o tema desta edi- Na reunião passada da ESPM, declarei claramente que o
ção da Revista da ESPM, toca fundo na importância da nosso sistema eleitoral não nos representa — individual
observação de elementos éticos, morais e institucionais ou coletivamente. Muito menos os cidadãos responsáveis

30 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


que imaginam possível fazer uma reforma política digna A reforma política da qual precisamos
desse nome. Não isso que anda por aí. Não é simplesmente
criar leis novas aplicáveis às mais antigas violações da lei.
não poderá ser superficial nem
Precisamos de uma reforma política, sim, a qual come- realizada sem a participação direta
çaria com a reforma da mentalidade daqueles que se dedi- e objetiva da opinião pública
cam à política. Não apenas nos instrumentos de funcio-
namento de um sistema no Brasil. Não bastaria dizer
“ladrão não pode ser eleito”. É preciso realmente criar dispor dos meios necessários para que as questões de
um sistema político baseado na honradez e na verdade. improbidade se arrastem durante anos, percorrendo
É difícil, mas não impossível. instâncias criadas para punir crimes menores.
A pedra de toque de tal sistema seria, para começo de O que mais precisamos no Brasil de hoje pode ser
conversa, a certeza de que todo crime será punido. Não representado por uma frase popular: “vergonha na cara”.
falo das dezenas ou centenas de autores de pequenos Mas isso não se adquire de uma hora para outra. E muito
delitos arrebanhados nas rondas policiais. Quero, sim, menos diante de exemplos concretos e numerosos de
a certeza de que todo criminoso, independentemente pessoas que, tendo ferido a ética, não acabam na cadeia,
de quem seja, pague pelo seu erro. Não basta ser rico ou mas sim na condição de “visitantes” da cadeia. Não por
vários anos, conforme diz a lei, mas por um par de anos,
meses ou dias, como resultado concreto dos processos
criminais contra os poderosos, se estes jamais chegarem
à solução final. É só esperar uns dias. São somente os ricos
e os poderosos aqueles capazes de continuar “brigando”
em todas as instâncias judiciais — nacionais ou estran-
geiras — e valendo-se de todos os recursos e embaraços
ao progresso da ação penal.
Não desejo um sistema ditatorial. Mas, sim, sonho e
aspiro por um regime democrático baseado na verdade,
a partir da igualdade do valor das pessoas — e, conse-
quentemente, dos votos — e das práticas políticas dos
titulares de mandato.
Nossos problemas têm de ser entendidos em toda a sua
extensão política, econômica e social. Para ser válida, a
reforma política da qual precisamos não poderá ser super-
ficial nem realizada sem a participação direta e objetiva
da opinião pública. Precisamos partir da confissão dos
nossos problemas e garantir os meios legais para sua cor-
reção. Quer dizer, precisamos de uma nova Constituição
que resolva questões como a imunidade política e a impro-
bidade dos administradores públicos. Uma Constituição
pensada e refletida para ser um instrumento de progresso,
não apenas material, mas também político, social e ético.
Quer dizer, precisamos começar da estaca zero. Fora
latinstock

disso, tudo é brincadeira, como estamos por ver nos dias


que se aproximam.
No dia da Proclamação da República, o presidente do
Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, determinou
a prisão dos envolvidos no esquema do Mensalão. Segundo Saïd Farhat
o Datafolha, a prisão é aprovada por 86% dos brasileiros Jornalista, advogado e empresário

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 31


entrevista | Mario Sergio Cortella

Mario Sergio
Cortella
Formação: filósofo, com mestrado e
doutorado pela PUC-SP
Atuação: professor titular de teologia e
ciências da religião da PUC-SP desde 1977,
professor convidado da Fundação Dom
Cabral. É consultor e conferencista nas
áreas de filosofia, ciências da religião, ética,
responsabilidade social, liderança, educação
e gestão do conhecimento. Dentre suas
obras estão: Não nascemos prontos (Editora
Vozes, 2006), O que a vida me ensinou
(Editora Saraiva, 2010) e Pensar bem nos faz
bem! – volumes 1 e 2 (Editora Vozes, 2013)
Carreira: militante desde sempre da
causa da educação, atuou por 32 anos no
Departamento de Teologia e Ciências da
Religião da PUC-SP. Foi assessor especial e
chefe de gabinete do professor Paulo Freire
na Secretaria Municipal de Educação de São
Paulo (1989-1991), a quem substituiu no
cargo de secretário (1991-1992)

32 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Paciência, generosidade
e solidariedade

“E
u tenho aquilo que se chama esperança ativa. Aquela que se
vai buscar e que não fica esperando.” É assim, sem esconder
uma grande dose de otimismo, que se define Mario Sergio
Cortella, um personagem incomum dentro do meio acadêmico
brasileiro. Prestes a completar 60 anos, Cortella já fez um pouco de tudo desde sua
infância em Londrina, no Paraná.
Passou pela vida monástica em um convento, até que decidiu se dedicar ao mundo
dos livros, abraçando a filosofia e a teologia. É professor titular de teologia e ciências da
religião da PUC-SP desde 1977 e militante da causa da educação. Na política, foi secre-
tário de Educação da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993),
por quem nutre enorme admiração devido à sua postura ética na política.
Autor de diversos livros, consultor e palestrante requisitado, Cortella tem na ética
um de seus temas preferidos. Tanto que sua próxima obra, em parceria com o advo-
gado e jornalista Clóvis de Barros Filho, a ser lançada em março, tem como título
Ética e vergonha na cara. “O livro não fala só sobre ética na política, mas também em
como devemos tratá-la no cotidiano, em benefício das pessoas”, destaca o autor.
Foi um pouco sobre moral, “vergonha na cara” e Black Blocks que girou esta en-
trevista concedida à Revista da ESPM. Comunicador nato, com voz de locutor, Cor-
tella reconhece que nossos valores como nação passam por um momento crucial,
mas enxerga uma luz no fim do túnel. Para o filósofo, a mudança vai ganhar fôlego
quando três valores que já tivemos no passado — solidariedade, paciência e genero-
sidade — resgatarem nosso espírito de comunidade. “Em 30 anos de democracia, o
Brasil avançou mais do que em toda a sua história e o brasileiro está cada vez mais
ciente de seus direitos. A novidade não é mais a corrupção, mas a apuração. Não é
mais a sujeira. É o início da limpeza.”

Por Arnaldo Comin


Foto: Divulgação

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entrevista | Mario Sergio Cortella

Arnaldo — Os protestos de junho sur-


giram como uma esperança de que o
brasileiro iria, enfim, erguer-se contra
a ineficiência do Estado. Seis meses
depois, o que restou foi um rastro de
vandalismo autoritário, disfarçado por
um discurso anarquista. A “primavera
brasileira” caiu no esquecimento?

Cortella — No esquecimento não


cairá. Mas com certeza houve um
arrefecimento. Nos primeiros pro-
testos havia um movimento com
pauta, estrutura e partido político

latinstock
por trás. Era justamente a questão da
tarifa de transportes. Então tudo co-
meçou com um tema candente para A violência imposta pelos Black Blocks durante as manifestações populares
a vida coletiva. A reação policial, que acabou esvaziando o Movimento Passe Livre, em meados do ano passado
foi desmedida e pouco inteligente,
transformou o que era o movimento teção policial. Poder andar no meio Cortella — Os protestos de junho
de uns em uma causa de muitos. Isso da avenida Paulista, protestar sobre do ano passado representaram uma
levou muita gente para as ruas e, qualquer coisa, sem risco e com am- crítica às pessoas que aí estão. Ago-
nesse segundo momento, o aparato paro da polícia. Mas aí veio o tercei- ra precisamos iniciar um movimen-
policial reagiu de maneira inversa. ro movimento, e esse foi negativo. to contra as pessoas que votaram
Não como cúmplice, mas calado e Quando aquilo que era uma eclosão naqueles que provocaram os pri-
sem reação. A partir daí, tivemos um democrática atraiu a presença de meiros atos. Vamos às fontes: não
segundo fenômeno muito interes- “democracidas”. E quando o “demo- vivemos em uma ditadura e todos
sante do ponto de vista da filosofia. cracídio” entrou em cena, com os que estão no poder foram eleitos.
Black Blocks e outros, aquilo que era O cidadão precisa fazer da política
Arnaldo — Que fenômeno foi esse? democracia voltou a ser risco. Entra- algo cotidiano, e não episódico.
mos na violência, na brutalidade, Nas cidades, isso é mais fácil em
Cortella — Fomos autorizados a ir que esvaziou esse movimento, por- função da proximidade da Câmara
para as ruas. Isso era uma coisa que que a rua ficou perigosa de novo. Aí a dos Vereadores. Em nível estadual
não acontecia há muito tempo nas manifestação perdeu fôlego. e federal, é mais complicado, mas
grandes cidades e, de repente, as não inviável. Precisamos fazer um
pessoas foram levadas às ruas, com Arnaldo — O que o senhor achou da acompanhamento mais efetivo do
ou sem algo concreto para reivindi- reação da classe política em geral? Legislativo e do Executivo. Afinal,
car. Isso virou programa com pro- Voltou tudo ao que era antes? as pessoas acompanham as nove-
las, os seus ídolos, e também devem
exercer esse papel em relação às
Num primeiro instante, a categoria política se pessoas públicas. A classe política,
encontrou em estado de tensão, mas depois embora esse termo não seja ade-
quado, ficou em estado de tensão.
relaxou. Afinal, ela tem muito mais medo Enfim, ninguém poderia imaginar
da mídia do que de qualquer movimento popular que rota tudo aquilo ia tomar.

34 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Arnaldo — Mas teve pouco efeito nas A imprensa livre gera uma capacidade de divulgação
práticas políticas, não é fato?
e de persistência, que aumenta o volume de
Cortella — Nisso, os Black Blocks denúncias. As plataformas digitais aumentaram a
deram uma contribuição imensa à fiscalização e detecção dos ilícitos
inércia, com um argumento abso-
lutamente frágil ao se colocar como
anarquistas. O anarquismo é um declarada, ou mais automática, ro- Cortella — Mas não vejo isso como
pouco mais sério do que a lógica da bótica. A ideologia como se colocava uma implosão da ideologia. Ela vem
depredação. Quem leu Errico Ma- antes, com o socialismo, o comunis- à tona de outro modo, como no cam-
latesta, Pierre-Joseph Proudhon e mo, o anarquismo, o liberalismo, po da sustentabilidade. Veja a Rede:
Mikhail Bakunin sabe que anarquis- todo esse conjunto foi diluído numa antes que ela entrasse firme na
mo não é ausência de ordem, mas de solução “química”, que gerou essa possibilidade de fazer parte do apa-
opressão. Se existe uma coisa muito nova mistura. Embora ela não seja relho de Estado, estava congregando
organizada, é o anarquismo. E temos simplesmente a realpolitik, tornou- pessoas em torno de novas ideias em
prova disso a partir dos movimentos -se algo mais integrado à vida das economia, na ação do Estado. Até
que surgiram no Brasil. No meu Es- comunidades. Portanto, uma apro- que entrou na realidade política do
tado de origem, o Paraná, tivemos a ximação maior da ideologia com cotidiano. Isso não é conformidade,
experiência de vida comunitária da a vida das pessoas. Aquilo que já é inteligência para não desaparecer.
Colônia Sicília (1890-1893). Em São foi chamado de direita e esquerda,
Paulo, há cem anos o movimento com seus exageros — o comunismo Arnaldo — Por que no Brasil é tão
anarquista chegou a construir es- dentro do socialismo e o conser- difícil falar em ética e moral, sem que
colas na Zona Leste. Voltando aos vadorismo dentro do liberalismo isso soe como hipocrisia ou falso mo-
protestos, num primeiro instante, — sempre teve certo distanciamento ralismo? Como estão nossos valores
a categoria política se encontrou da população, algo mais teórico. fundamentais de nação?
em estado de tensão, mas depois Hoje, no Brasil, a percepção é a de
relaxou. Afinal, ela tem muito mais que um conjunto de pessoas adere Cortella — Aí, sim, temos uma gran-
medo da mídia do que de qualquer a ações mais libertadoras, com um de novidade, que é a recusa ao apo-
movimento popular. capitalismo de partilha, e outro en- drecimento ético que a população
carna aquele liberalismo do século se dá, e dá aos outros. A ideia de que
Arnaldo — Boa parte da esquerda bra- 19, da meritocracia exclusiva, da vale qualquer coisa porque somos
sileira assumiu o discurso da realpoli- ausência de direitos sociais, do indi- assim. Estamos adotando valores
tik, tolerante à corrupção e aos interes- vidualismo exacerbado. E que esses mais republicanos. A novidade hoje
ses de grandes setores econômicos, os dois mundos acabam se conectan- não é a corrupção, mas a apuração.
mesmos que combatia no regime mili- do. Quando Paulo Maluf ainda não Não é a sujeira. É o início da limpe-
tar. Já na ala da direita é raro ver uma era petista, você tinha um recorte za. Nas últimas duas décadas, nós
liderança que defenda com todas as da situação. Hoje, temos na prisão tivemos fatos sequenciais de que a
letras temas clássicos como a reforma pessoas com um histórico na luta expressão máxima da impunidade,
tributária e as bases do pensamento democrática e outras, fora da prisão, “acabar em pizza”, não aconteceu.
liberal. A ideologia acabou no Brasil? que simbolizaram a fratura ética. Ao contrário, teve presidente do
Isso não significa que uma coisa au- Congresso renunciando, prefeitos
Cortella — A ideologia não acaba, toriza a outra. É só uma constatação. afastados, cidadãos no campo do
se você a imaginar como um con- empresariado encontrados em deli-
junto de ideias que justifica a ação Arnaldo — Acaba sendo difícil identi- to e punidos. Mas o conjunto ainda
política. Ela pode ser consciente, ficar ideologias nesse contexto. é pequeno para a quantidade de

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 35


entrevista | Mario Sergio Cortella

ocorrências. Ainda assim, não vejo


que estamos nos degradando, muito
pelo contrário.

Arnaldo — Estamos, então, construin-


do valores positivos para a sociedade
brasileira?

Cortella — Tivemos três fatores im-


portantes para isso: imprensa livre,
plataformas digitais e o maior nível
de informação e de escolarização.
Porque o número de patifes de uma

shutterstock
nação é menor que o de não patifes
em larga escala. O número de pes-
soas que degradam a convivência
não chega a 10% daqueles que fazem Em outubro de 2013, a polícia do Rio de Janeiro trabalhou para manter a segurança
exatamente o contrário. São as do Consulado dos Estados Unidos durante as manifestações populares
pessoas que trabalham, que con-
tribuem com a sociedade, que são Cortella — Nós somos um país que nos definimos como contribuintes,
gentis com o outro. A imprensa livre tem 513 anos, mas que não tem 30 o que é estranho, já que imposto é
gera uma capacidade de divulgação anos de democracia, de mecanismos algo obrigatório. O norte-americano
e de persistência, que aumenta o vo- que conduzam uma partilha mais se define como tax payer, há uma
lume de denúncias. As plataformas eficaz daquilo que é coletivamente diferença de postura. Essa percep-
digitais aumentaram a fiscalização produzido. Nos primeiros 389 anos, ção do aparelho de Estado a nosso
e detecção dos ilícitos. A formação ou éramos uma colônia ou um im- serviço é muito recente. Além disso,
escolar da população, que aumen- pério. Nos primeiros cem anos da há 50 anos não éramos uma das dez
tou nas últimas décadas, contribui República, a participação popular nações economicamente mais po-
contra a alienação. era muito restrita. A primeira elei- derosas do planeta. Se não éramos,
ção geral no Brasil é de 1989. Então, é porque não tínhamos também as
Arnaldo — Mas ainda temos uma nosso aparelho de Estado ainda é condições mínimas de educação,
Justiça que não condena, uma polícia muito imperial ou colonial. saúde etc. Muitos de nossos índices
que é violenta, mas que não prende não são satisfatórios, mas a ver-
os grandes criminosos, um magistério Arnaldo — De que forma isso acon- dade é que, até pouco tempo, não
que dá aulas, mas não ensina, e um tece? tínhamos essa visão de partilha. No
sistema de saúde que, quando atende, momento em que se começa a colo-
cura pouco. Por que é tão difícil conser- Cortella — O Estado opera mais no car direitos como o Sistema Único
tar esses problemas? campo do favor que do direito. Aqui, de Saúde (SUS), quando se impõe
a ideia da educação para todos e a
Constituição de 1988 cria novos
A polícia passa boa parte do tempo, por conta da patamares de direitos, entramos no
campo da judicialização.
legislação e pelo modus operandi, cuidando do
patrimônio em vez das pessoas. Há um uso muito forte Arnaldo — O Estado, então, começa a
da estrutura de repressão em defesa patrimonial ter mais consciência de seus deveres?

36 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Cortella — Quando se fala no di- A política partidária perdeu o encanto para
reito à creche, isso vai para os jor-
as novas gerações e restaram apenas algumas
nais, a Vara da Infância pressiona
o poder público, e esse movimento pessoas com suas histórias pessoais, com uma atitude
leva a u ma constatação desses até de heroísmo. Aliás, o heroísmo mudou de foco
di reitos. Nós somos u ma popu-
lação — sem brincar de Poliana —
muito capaz. Conseguimos criar a escala dos negócios ilegais e de uma no campo da “consumolatria”. Então,
sexta maior economia do planeta polícia que é patrimonialista. o problema é que há forças agindo
ocupando apenas a posição de nú- na mesma direção. Tivemos um au-
mero 66 em educação. Para quem Arnaldo — O Estado ainda não se vê mento significativo das cidades nas
acha que há u m v íncu lo d i reto como defensor do cidadão? últimas décadas, um aumento do
entre educação e desenvolvimen- anonimato das pessoas e do desco-
to, quando formos a décima em Cortella — A polícia passa boa parte nhecimento do aparato policial em
educação seremos a maior econo- do tempo por conta da legislação e relação aos cidadãos. Isso gera um
mia do planeta? Obviamente, não pelo próprio modus operandi, cui- adensamento que favorece esse tipo
funciona assim. Mas estamos se- dando do patrimônio em vez das de eclosão. E a droga é decisiva nisso,
guindo em um caminho positivo. pessoas. Exemplo banal: se você liga porque ela por si só gera uma grande
para um serviço policial e diz que cadeia que favorece a violência.
Arnaldo — Um fenômeno importante o menino da casa vizinha está apa-
que vem ocorrendo no Brasil é o pa- nhando do pai, vai demorar a apa- Arnaldo — O senhor costuma citar a
radoxo da violência e da distribuição recer alguém. Se você liga dizendo frase do Tom Jobim de que o “sucesso
de renda. Embora a qualidade de vida que há um assalto a banco — que tem no Brasil é uma ofensa”. De onde vem
tenha melhorado para a maioria da seguro —, em um minuto aparecem esta percepção?
população, os índices de criminalidade dez viaturas. Há um uso muito forte
explodiram. Isso põe por terra a teoria da estrutura de repressão em defesa Cortella — Isso é uma herança do pa-
clássica de que a violência é fruto da do patrimônio privado. Isso faz par- trimonialismo ibérico. Vale lembrar
pobreza? te da nossa formação. que somos uma sociedade fundada
com três forças divergentes. O euro-
Cortella — A pobreza em si não é Arnaldo — A violência se deve essen- peu, que veio para tirar e sair rápido;
um fator de violência, assim como cialmente à ineficiência do Estado? o indígena, que queria que todo
a riqueza não representa o seu blo- mundo fosse embora; e o africano,
queio. A nação mais poderosa do Cortella — É verdade que onde se ofe- que foi trazido à força e queria voltar
planeta tem o sistema penitenciário recem melhores condições de sobre- para casa. Não nascemos com o es-
mais extenso. Os níveis de violência vivência você reduz os motivos que pírito de formação de uma nação, e
dentro dos Estados Unidos não são levam à violência. Mas é difícil ima- é diverso da formação de uma nação
como os nossos de maneira isolada, ginar que um menino de periferia mais jovem que a nossa, a norte-
mas no conjunto mostram um nível das grandes cidades irá se convencer -americana, cujo grupo de pioneiros
de agressividade muito elevado. a estudar, trabalhar e ter acesso a veio para fundar outro lugar e viver
A partilha de bens que oferecem todos os bens que deseja com um nele. A tal ponto de usar a palavra
bem-estar social, essa sim é um ou dois salários mínimos no fim do “novo” — “Nova Inglaterra, Nova
elemento que colabora para a dimi- mês. No campo da droga, ele recebe York, Nova Jersey” — como maneira
nuição da violência. O que favorece isso em menos de uma semana, de fixação. É claro que houve o con-
em grande medida a questão dessa apenas fazendo entrega. E com isso flito com indígenas, a escravização,
violência é a circulação em larga ele pode ter tudo aquilo que o seduz mas numa escala diversa da nossa.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 37


entrevista | Mario Sergio Cortella

Arnaldo — Temos um problema de que precisa transar com o diretor positivas. Nós tivemos homens e mu-
origem, é isso? para conseguir o papel. A ideia do lheres de ideologias e ainda os temos
mérito pessoal, em vez do favor do — como a Luiza Erundina, com quem
Cortella — Num primeiro momento, mandante, vai ser muito rara no eu convivi muito tempo, ou ainda
a nossa sociedade foi submetida a nosso cotidiano. Daí a frase do Tom a Marina Silva, que são mulheres
um Estado ibérico, depois a grandes Jobim de que o sucesso é uma ofen- de causas. Mas a política partidária
capitanias hereditárias e, por fim, a sa. Isso foi uma cultura dissemina- perdeu o encanto para as novas ge-
sesmarias. Cada uma com um pro- da pela própria elite, para descarac- rações, e restaram apenas algumas
prietário nomeado por ordem im- terizar o mérito das pessoas de fora pessoas com suas histórias pessoais,
perial ou por direito de herança. E o do seu círculo. com uma atitude até de heroísmo.
número de proprietários sempre foi Aliás, o heroísmo mudou de foco.
pequeno. Então, ou a população se Arnaldo — Embora haja essa descon-
submetia a esse proprietário numa fiança sobre a meritocracia na nossa Arnaldo — Não temos mais heróis?
relação servil, ou não sobreviveria. cultura, o empreendedorismo vem se
Muito mais do que gerar um povo tornando um valor muito admirado Cortella — As celebridades, que nos
pacífico, esse arranjo de sobrevi- no Brasil. Fazendo um paralelo à vida anos de 1970 eram os músicos, os ar-
vência gerou um povo desarmado. pública, na redemocratização, figuras tistas que faziam oposição ao regime
O que chamamos de pacifismo na de destaque, seja do pensamento mais ditatorial, migraram para o esporte,
nossa história é muito mais uma à esquerda ou à direita, tiveram papel a TV. Existe outro tipo de admira-
impossibilidade de reação. Não é importante na política. Passados 30 ção. Por isso, nossos heróis ficaram
casual que as regiões mais politiza- anos, fica a sensação de que as pessoas no século 20. O Obama, que surgiu
das do Brasil estão no Sul, onde a de maior talento e empreendedoras como um movimento de redenção
estrutura comunitária, do pequeno não querem mais fazer parte da polí- histórica, não manteve o mesmo
proprietário, que se associa a outros tica. O mesmo vale para boa parte do fôlego na sua reeleição. É interessan-
em cooperativas, é marcante. Ali há funcionalismo público, que já foi pres- te notar que nos países do mundo
uma marca maior de escolarização, tigiado socialmente. O governo não islâmico, sob forte repressão, estão
um enfrentamento maior do poder atrai mais as pessoas brilhantes? surgindo as novas heroínas. No Bra-
central. No entanto, onde não tive- sil, essa nova geração que chega não
mos essa condição é que de fato o Cortella — Até 30 anos atrás tínha- vê a participação na política parti-
modelo colonial se impôs. mos uma causa coletiva, que era o dária como honrosa. Por outro lado,
enfrentamento da ditadura. O pro- há sim a defesa de causas em outro
Arnaldo — Então, quem se destaca pósito era forte e a política surgia campo. O número de organizações
nesse ambiente acaba sendo malvisto? como serviço, não como benefício. não governamentais que canalizam
Não acredito que tenhamos perdido o desejo de mudança tornou o meio
Cortella — Ele vai ser percebido isso, mas se deslocou para a área do político mais restrito para essa mi-
como o amigo do rei. Na área mili- Ministério Público, onde a entrada litância. Então, não houve o fim do
tar, é o famoso “peixinho”, o amigo de pessoas com um ideal mais forte sonho, mas o poder público não é
do comandante. A história da atriz levou a uma série de turbulências mais o canal exclusivo.

Arnaldo — A clássica Lei de Gérson


No Brasil, essa nova geração que chega não vê resiste a esses novos tempos?

a participação na política partidária como honrosa. Cortella — Ela perdeu o encanta-


Por outro lado, há sim a defesa de causas em outro mento original. No início, numa so-
campo. O poder público não é mais o canal exclusivo ciedade que era emergente, deixan-

38 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


do o capitalismo do século 19 rumo Há 30 anos, um professor era reconhecido pelo seu
à visão de consumo do século 20, a
conhecimento. Hoje não consegue comprar um carro,
sensação de vantagem era sedutora.
Era uma sociedade que começava a
que é um símbolo de realização. Isso significa que ele
pregar esse individualismo exacer- não é mais admirado da mesma maneira
bado. A Lei de Gérson de “levar van-
tagem em tudo” tinha o seu encanto.
Mas isso foi se perdendo porque o outros profissionais. Antigamente, Arnaldo — O senhor é otimista com
individualista clássico está deixan- no interior, as pessoas mostravam esse resgate de valores?
do de ser admirado. Levar vantagem a casa da diretora da escola para as
não deve ser em tudo, nem de qual- visitas. Essa situação foi agravada Cortella — Bastante. Eu tenho aquilo
quer modo. pela bai xa remuneração dessas que se chama de esperança ativa,
profissões. O que podemos ter é que é buscar em vez de aguardar.
Arnaldo — Voltando aos valores, o a reinvenção dos nossos polos de E esse otimismo não vem da inge-
que é necessário para que figuras de admiração. Existe uma valorização nuidade. Pelo contrário, ele vem da
alta relevância social, como professo- das pessoas que se apoiam em cau- consciência de que estamos em meio
res, médicos e policiais, readquiram a sas sociais, como as ONGs. Mas isso a um processo de agravamento de al-
admiração que já tiveram no passado? vai depender bastante do papel dos guns horrores. Esses momentos aju-
meios de comunicação nessa divul- dam a mudar a percepção coletiva.
Cortella — É impossível recuperar gação de ações positivas. Há um esgotamento do modelo atual
essa imagem, porque essas profis- e, seja por convicção ou coerção, essa
sões eram as que estavam mais per- Arnaldo — Que valores o Brasil pre- mudança está acontecendo.
to das pessoas. Era o policial que te cisa resgatar e adaptar aos novos
conhecia e cumprimentava na rua. tempos? Arnaldo — De que forma isso ocorre?
Era o professor, o médico de família.
Essa hiperdimensão populacional, Cortella — Temos de resgatar três Cortella — Vou te dar dois exemplos
o aumento das cidades, levou a uma grandes valores relacionados com banais. Vai fazer 20 anos que existe
perda desse tipo de relacionamento. a vida comunitária. O primeiro é a no Brasil a lei do cinto de segurança.
A descentralização dos serviços le- solidariedade, que nos afasta do in- No começo, as pessoas chegaram a
vou ao anonimato e acabou com esse dividualismo exacerbado. Há tam- comprar camisas do Vasco ou da Pon-
tipo de relacionamento duradouro. bém a paciência. Estamos numa te Preta para não usar o cinto. Todo
sociedade muito apressada, em que mundo dizia que essa lei não ia pegar.
Arnaldo — Perdemos esse espírito de se deseja tudo agora. Paciência não Naquele tempo tinha multa, como é
comunidade? quer dizer lerdeza, e sim o tempo hoje, só que ninguém usa mais o cinto
de maturação da convivência. O pensando na multa. Ele se incorporou
Cortella — A ideia de sucesso mi- terceiro deles é a generosidade. ao cotidiano. Há 20 anos, num auditó-
grou do trabalho para o benefício Porque a solidariedade não é ne- rio haveria a placa “Pede-se para não
das pessoas em direção à realização cessariamente generosa. A pessoa fumar”. Há dez anos, a placa diria “É
financeira. Há 30 anos, um profes- generosa é aquela que partilha. Isso proibido fumar”. Agora não tem placa.
sor era reconhecido pelo seu conhe- foi representado por muito tempo Então, somos capazes de produzir
cimento. Hoje não consegue com- com aquele costume de preparar malefícios e benefícios. Karl Marx
prar um carro, que é um símbolo um bolo de fubá à tarde e levar para cunhou no século 19 a frase que hoje
de realização. Isso significa que ele o vizinho. Esses valores foram se me acalma: “A humanidade nunca se
não é mais admirado da mesma ma- perdendo em função de um indivi- coloca diante de problemas que ela já
neira. O mesmo se dá em relação a dualismo mais marcante. não tenha condições de resolver”.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 39


Educação

No Rio de Janeiro e em
São Paulo, ônibus têm sido
incêndiados com frequência por
manifestantes que invadem
as ruas das grandes cidades
para protestar contra tudo: do
dinheiro gasto na construção de
estádios para a Copa, da falta de
médicos, da baixa qualidade do
transporte público...

40 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Tumulto ético:
um país em
busca de rumo
A sociedade brasileira atravessa a mais
grave crise ética de sua história, fruto da
formação cultural da nação. Será inevitável
transformar a questão ética em problema
nacional, a ser tratado de forma estruturada
e com métodos inovadores
Por Renato Caporali

É
preciso admitir: a sociedade brasileira patina
em profunda e complexa desordem ética. Não
significa que tenhamos sido melhores no pas-
sado, muito pelo contrário. Também não é cor-
reto afirmar que não estejam ocorrendo avanços, sobretudo
no que se refere à dimensão republicana da ética social.
Mas, sim, que predomina a percepção difusa de que o país
não está conseguindo avançar na prática de uma socie-
dade mais respeitosa dos valores que compartilha. Em
muitos domínios a coisa parece ter estancado. Em outros,
como no quesito violência, o problema se agrava dia a dia.
As relações políticas se tornaram caóticas, as instituições
que legislam o país estão sendo vilipendiadas por seus pró-
prios atos. Um deputado, no passado, era alguém respeitado.
Hoje é de antemão suspeito. O próprio Congresso tornou
sabedoria proclamada a lei da natureza de que não importa
a qualidade da última legislatura, a seguinte será pior.
Mas seria grave equívoco focar a questão da ética só
para o campo político. Predomina, atualmente, em quase
todos os domínios, uma situação de tumulto ético. As
manifestações recentes, para exprimir críticas e expor
demandas, terminavam destruindo o que estava em
volta, inclusive o que cobravam do governo, como ôni-
shutterstock

bus e pontos de ônibus. Isso não é exclusivo do Brasil, é


provavelmente global, mas não há como negar que aqui
acontece com força especial.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 41


Educação

divulgação

Campanha ”Conte até 10”, desenvolvida para diminuir os índices de violência do Brasil. Dados do Conselho Nacional
do Ministério Público mostram que ocupamos o primeiro lugar no ranking mundial de homicídios. Em 2010,
quase 50 mil pessoas foram mortas no país, o que equivale a um massacre do Carandiru por dia durante um ano

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divulgação
latinstock

Parado em uma avenida de São Paulo, motorista Segunda fase da campanha ”Conte até 10” leva
de ônibus espera o fim de mais um protesto na cidade, o projeto até as escolas brasileiras. Com um game
torcendo para que seu veículo não seja depredado ou e uma cartilha, a iniciativa visa criar uma cultura
incendiado pelos manifestantes de paz entre adolescentes e jovens

Comecemos pelo pior, aquele que é certamente o maior degradação material e desorganização dos presídios. Con-
problema social brasileiro. O nosso desrespeito pela vida trapomos ao desprezo pelo que se passa nos presídios a leni-
é algo que espanta o mundo. Chega a ser impressionante ência na execução de penas. Um paradoxo aparentemente,
a facilidade com que se saca uma arma e se puxa o gatilho mas as prisões são tão monstruosas que correntes jurídicas
para matar. É um grau de violência injustificado, selvagem, construíram a teoria de que o ideal é não prender. Lugares
irracional. Fizemos um Estatuto do Desarmamento que onde se deveria construir a ressocialização do criminoso,
se tornou a lei menos levada a sério nas últimas décadas, reordenando sua psique, os presídios se tornaram proces-
com as armas fluindo abundantes para os bandidos. Esta- sos de consolidação e agravamento da atitude criminosa.
tísticas apontam para o dobro de crimes violentos do que E não dá para argumentar que essa violência se resuma à
a Organização das Nações Unidas (ONU) considera situ- marginalidade, pois, nos conflitos cotidianos, normais na
ação de virtual guerra civil. A queda da violência, aqui e vida social, um estado de exasperação e passionalidade nos
acolá, se faz mais pela externalização dos problemas do coloca quase sempre na iminência de agressões, a ponto de
que por sua solução. fazermos campanhas publicitárias para que as pessoas “con-
E não há como falar em criminalidade sem constatar tem até dez” antes de partirem para a violência.
o outro lado, que é a crueldade e o desleixo com que trata- É notório o fracasso na oferta dos serviços públicos mais
mos os que cometeram crimes pelo estado de superlotação, essenciais. Ressalta a falta de constrangimento com que

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Educação

mônica zarattini / estadão conteúdo


pessoas se apropriam da coisa pública nos vários níveis Vista aérea da Casa de Detenção no Complexo do Carandiru,
de governo. Nada de inédito ou recente. Aqui se trata durante ação realizada pelo PCC (Primeiro Comando da
Capital), em fevereiro de 2001, que promoveu uma série
de cultura herdada, ancorada nos costumes, mas antes de rebeliões em diversos presídios de São Paulo
parecia haver um pouco mais de decência. O combate
legal e pela imprensa, nos últimos anos, foi vigoroso,
mas não parece ter produzido efeitos consistentes. Pelo pior e mais grave nos estratos superiores porque as res-
menos, não ainda. Nesse domínio, muita gente percebe ponsabilidades são maiores, mas é ampla e irrestrita.
a última década como uma involução. Quase todos os estudiosos da nossa cultura, de padre
No campo dos direitos econômicos, para dar exem- Vieira a Joaquim Nabuco, de Raimundo Faoro a Darcy
plo em evidência, vimos o seguro-desemprego se tornar Ribeiro, passando por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto
fonte vigorosa de gastos do Estado, item oneroso, que Freire, já sustentavam que a formação cultural brasileira era
representa duas vezes o orçamento do Bolsa Família, problemática. Uma corte carcomida por séculos de estabi-
no mesmo momento em que a economia alcança pleno lidade sebastianista governara as colônias, enviando o que
emprego. Como explicar que um maior nível de emprego conseguisse de aventureiros. Poucas famílias dominavam
leva a maior gasto com o seguro-desemprego? Simples: os todas as terras, com poder de impor sua vontade como lei.
trabalhadores, tendo boas ofertas de emprego, começaram Já foi notado que a palavra “brasileiro” exprime pro-
a se demitir para acumular o seguro ao salário de outro fissão ou atividade, não nacionalidade. É como ferreiro,
emprego, este informal. Uma fraude, tornada corriqueira. padeiro, fazendeiro e banqueiro, diferente de italiano,
inglês, alemão ou chinês. E profissão, sabe-se, organiza
A origem da crise atitudes em torno de interesses, não de convicções. Essa
A lista de problemas é tão extensa que é preciso partir do gente veio conquistar o país disposta a tudo, inclusive
fato de que isso não é fenômeno recente. Tem origens pro- matar e escravizar sua força de trabalho. Não nutriam
fundas na formação da sociedade, na cultura das elites e apreço por escolas, muito menos aqui, no além-mar.
do Estado. E — é preciso admitir — também está na base Claudio de Moura Castro, sempre que pode, alerta que
da população. A crise ética brasileira não tem classe. É nosso deficit educativo chega em um navio de Portugal,

44 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


dida sampaio/ estadão conteúdo
país que mais tardiamente na Europa se preocupou com Tumulto no plenário do Congresso Nacional:
a educação nacional. todos de pé conversando, enquanto os oradores
se sucedem. Esse tipo de cena deve sugerir ao
Os povos nativos, totalmente despreparados para opor mundo a imagem de um país esculhambado
resistência à ocupação de suas terras, consumiram as
forças em não ser escravizados. Os africanos, a quem os
europeus recorreram para expandir os negócios, foram responsabilidade e dever como fundamentos da vida
submetidos à mais violenta transumância da história da política e profissional foi registrada por Monteiro Lobato
humanidade, combinada às mais cruéis formas de desa- em Jeca Tatu a propósito da Transladação da Corte; a pri-
culturação. Já não vinham de um continente propriamente vatização dos recursos do Estado, herança lusitana pro-
estruturado, o que se constata no fato de que os portugue- funda como mostrou Faoro; a incapacidade de planejar
ses (e todos os outros) não embrenhavam o continente seriamente, uma tendência à permanente desordem,
para capturar seus escravos. Trocavam-nos por cachaça, que tanto incomodava Sérgio Buarque de Holanda. Não
rum, açúcar e fumo em entrepostos costeiros. Aliás, a há ilustração melhor que o tumulto do plenário do Con-
qualidade dos produtos desse comércio é sugestiva da gresso Nacional: todos de pé conversando, enquanto os
perversidade do processo. oradores se sucedem, imagem que deve sugerir ao mundo
Mais tarde, os imigrantes, vindos de muitas origens, um país completamente esculhambado, se tiverem
deseducados, lutando tenazmente por uma emancipa- palavra com significado semelhante nos seus léxicos.
ção econômica que lhes levaria reconhecimento social, O resultado histórico abrange uma extensa lista de
não puderam contribuir muito para a consolidação de situações aberrantes: verbas para situações de emergên-
valores compartilhados, a não ser alimentando aquele cia desviadas; merendas escolares transformadas em
que talvez tenha se tornado o mais nobre traço do povo uísque, equipamentos abandonados em hospitais, obras
brasileiro — a tolerância. inacabadas. Desleixo, desmazelo e negligência como tra-
Esse melting pot, submetido à marcha forçada moder- ços palpáveis de um jeito de ser. Perdoem a dureza das
nizadora do século passado, tornou-se um caldei- palavras, mas o Brasil precisa enfrentar seu drama moral.
rão de tumultos éticos. Essa ausência das noções de Não vamos avançar atenuando a gravidade do problema.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 45


Educação

shut terstock
Escolas viram palco de violência entre estudantes, que muros. Existe coisa mais patética do que uma televisão
utilizam celulares para registrar confrontos e postá-los enjaulada no teto da sala de aula?
na internet. Estudo revela que um terço dos alunos já
sofreu alguma forma de violência dentro da sala de aula Aulas tumultuadas, métodos e técnicas ultrapassa-
dos, a escola termina por se divorciar de um ambiente de
esforço e produtividade. A lassidão se impõe ao ímpeto
Nas escolas, onde as gerações se formam, a desestru- educativo. Com certeza, o problema da escola brasileira
turação moral alcança níveis alarmantes. É possível não é apenas de ordem moral, mas eu sugiro uma hipó-
dar como exemplo inúmeros episódios mais ou menos tese: esse deficit técnico não tem apenas fundamento
escabrosos, escolhidos a gosto no cotidiano das escolas técnico, tem também dimensão moral. A criação de um
do país, envolvendo alguma forma de desrespeito, inti- ambiente moralmente mais denso não pode, não tem
midação e violência. Fiquemos com a notícia publicada como ser prejudicial à escola brasileira.
nos jornais no dia em que escrevi este artigo: um terço A questão não seria se devemos ou não dar mais espaço,
dos estudantes já sofreu alguma forma de violência den- tempo e estatuto aos temas éticos, isso poderia ser con-
tro das escolas. O número de professores agredidos se siderado resolvido. O verdadeiro problema é metodoló-
aproxima dessa proporção e, se a agressão for apenas gico. Como fazer isso? Como criar (a expressão “recriar”,
moral, a incidência dispara. A violência nas escolas é como vimos, não seria pertinente) a atmosfera de uma
problema crescente e não está perto de ser revertida. sociedade ética? Como manter o diálogo em tom refle-
O nível de absentismo dos professores revela desejo xivo para que os debates não desandem para agressões
de fuga do ambiente de trabalho, a categoria se sen- precipitadas? Como preparar professores, líderes e ges-
tindo, mais que desmotivada, acuada, aviltada, des- tores para esse novo campo de reflexão, fazendo com que
respeitada. Alunos os desafiam, às vezes com audácia compreendam seu papel de orientadores, e não de juízes
inaudita, numa reversão lamentável do ethos histórico donos da verdade?
da escola, desde sempre fundado no respeito ao mestre. Cultivar a atitude tolerante como base do diálogo,
Pais frequentemente reagem a repreensões em nota ou celebrar o trabalho bem-feito, o zelo, o esmero e a per-
comportamento dos filhos agredindo professores. A severança é um caminho. Praticar a atitude prudente
desorganização transparece na degradação material (como somos imprudentes!) e o conceito de responsa-
das escolas, na falta de zelo com o ambiente físico. Gra- bilidade para construir uma ponte entre a vida profis-
des cercam os bens de valor, cercas elétricas alteiam os sional, a vida política e a vida privada. Transformar o

46 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


latinstock
conceito de responsabilidade no conceito mais básico Em junho de 2013, enquanto policiais bloqueiam
da vida social. Urbanidade e polidez valorizadas como os arredores do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro,
mulher protesta contra a precariedade dos
atitudes que pavimentam o direito à franqueza, à diver- sistemas públicos de saúde e ensino
gência e à crítica e não como justificativas para a insin-
ceridade. Ao fim e ao cabo, valores ancestrais depura-
dos por séculos de reflexão filosófica contrapostos aos justiça, as boas qualidades do espírito. Compreender as
valores modernos, em diálogo. virtudes da sociedade aberta, combinar a liberdade à res-
O maior desafio será criar um ambiente para supera- ponsabilidade, cultivar os valores do mundo do trabalho,
ção do despreparo para abordar questões éticas, pois as refletir sobre o que leva a uma vida mais feliz. Antes de
atuais gerações praticamente não tiveram contato for- buscar precipitadamente respostas, temos de reencon-
mal com esse tipo de tema. A pedagogia contemporânea trar serenamente as perguntas. Falta repovoar o mundo
sequer designa um nome para esse campo da educação, com as palavras que permitem dar significado à dimen-
que inexiste na maior parte das escolas como objeto de são ética da vida. O que existe, dizia Guimarães Rosa, são
estudo, mas o nome certo é educação moral, campo da as palavras. Sem palavras o homem não se humaniza.
reflexão humana que estimula o indivíduo a aprimorar Esse trabalho de formação poderia e deveria ser feito
seu caráter e lhe dá conceitos para isso. dentro e pelas famílias, mas as famílias são parte do pro-
No Brasil, ela desapareceu desde os anos de 1980. blema. A missão passa então para as instituições, escolas,
Antes da ditadura, era a moral de um mundo em extinção, empresas e repartições. Será uma luta social, uma ideo-
apavorada ante a desestruturação da moral herdada. Na logia, com métodos novos e fins possivelmente inéditos.
década de 1970, foi uma combinação primitiva de dou- Mas tenhamos claro: sem a educação brasileira entrar
trina autoritária, com moralismo cívico e reacionarismo massivamente no jogo, com consciência da dimensão
social, totalmente divorciada da revolução libertária que histórica desse movimento pedagógico, não haverá muita
se produzia nas novas gerações. O edifício dessa ética perspectiva. Essa é uma tarefa para duas gerações.
ultrapassada ruiu de cima a baixo com a modernização
dos costumes, e isso foi muito bom. O problema foi não
termos colocado nada no lugar. Renato Caporali
Economista, mestre em filosofia e doutor em desenvolvimento
É preciso perscrutar o que a sabedoria humana, formada sustentável. Atualmente contribui com a Unesco no Projeto
ao longo de milênios, foi definindo como bem comum, Sesi de Ética na Educação para o Mundo do Trabalho

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 47


Responsabilidade social

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Mobilização contra o aumento
das tarifas de ônibus
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Indígenas também reivindicam
seus direitos nas capitais do país
Brasileiros ao redor do mundo
aderiram aos protestos
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Estudantes da USP exigitem


eleições diretas para re or Manifestantes em São Paulo
48 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014 apoiam causas sociais
Revolução de valor
Nova geração de brasileiros protesta na tentativa de romper com valores éticos arcaicos e
opressivos, trazendo à tona a discussão do que a sociedade considera como certo ou errado
Por Arthur Meucci e Clóvis de Barros Filho

P
oucas vezes vivemos um momento histórico maior participação nas decisões. Parece-nos que essa
tão fértil para discutirmos os valores éticos. hora chegou.
Em um país de origem colonial, tão submisso
aos mandos e desmandos dos conquistadores Repensando os valores
europeus e da nossa elite, um espírito de libertação se Quando somos convidados pelas empresas para rever
apossou dos nossos corações. Os movimentos sociais que seus códigos de ética, ou ajudá-las, duas perguntas sem-
tomaram as ruas do país foram o anúncio da mudança. pre aparecem: por que gastar dinheiro buscando os valo-
Trabalhadores exigindo transporte público de qualidade, res da instituição se podemos jogar palavras bonitas no
estudantes da Universidade de São Paulo (USP) reivindi- banner do MVV (sigla corporativa para Missão, Visão e
cando, bravamente, eleições diretas para reitor, profes- Valores) e escrever um código de ética, em forma de leis,
sores no Rio de Janeiro parando a cidade por melhores dizendo tudo aquilo que se pode ou não fazer? Por que é
salários e condições de trabalho, minorias enfrentando tão importante termos valores?
os agentes repressivos do Estado e exigindo o respeito Essas questões são muito mais reveladoras do que o senso
aos seus direitos políticos como seres humanos e cida- comum entende por ética. A primeira pergunta revela o
dãos. A mobilização para apoiar as causas sociais como caráter fascista da atual sociedade de mercado, pois todas
o Movimento Passe Livre, Parto Humanizado, Comissão as boas e más ações que um trabalhador pode exercer
da Verdade, entre outras reivindicações sociais, mostra deveriam se enquadrar em disposições legais. O filósofo
que nossa juventude não é tão egoísta como dizem. Neste Immanuel Kant (1724-1804), bem como o movimento Positi-
Brasil que deseja romper com valores éticos arcaicos e vista (1855-1947) que deu forma às nossas instituições, nos
opressivos, surge a esperança de podermos discutir aquilo ensinou que ética é liberdade, reflexão, consciência e livre
que consideramos certo ou errado de uma maneira mais escolha, ao passo que o direito é a antiética em essência,
participativa e inclusiva. pois, quando normatiza as ações, ele restringe a liberdade
Contagiados por esse espírito primaveril de renova- de decidir. Há decisões éticas que podem ser ilegais, como
ção, os agentes do mercado também começaram a ques- lutar pela liberdade e pela democracia em uma ditadura,
tionar os valores corporativos e as práticas comerciais bem como há ações legais e antiéticas, como prender e exe-
legitimadas até pouco tempo. Não estamos falando de cutar judeus na Alemanha nazista ou segregar e assassinar
decadência da sociedade ou do fim do capitalismo, mas palestinos em um Estado sionista. Um código jurídico não
daquilo que o economista checo Joseph Schumpeter pode ser considerado um código de ética, pois ambos pos-
(1883-1950) conceituou como processo de destruição cria- suem lógicas e objetivos distintos.
dora. Em outras palavras, para uma sociedade ou mer- A segunda pergunta, sobre a importância do valor,
cado se desenvolver, é necessário o rompimento com os revela lacunas importantes na formação acadêmica dos
sistemas antigos e a adequação às novas tecnologias e profissionais de mercado — problema este que não deve
comportamentos. Logo, o fenômeno das redes sociais ser creditado somente às universidades, mas também
e colaborativas não ficaria restrito somente ao mundo às políticas públicas de educação que excluíram a filo-
virtual. O aumento de interação entre o cliente e o site sofia do ensino médio.
visitado não iria ocorrer apenas na Web 2.0. Em algum Os valores éticos são conceitos de referência para que
momento esse modelo iria contagiar todas as empre- possamos orientar nossas ações em circunstâncias nas
sas fora da internet e os trabalhadores cobrariam uma quais não há uma resposta pronta para um problema.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 49


Responsabilidade social

Vamos analisar o seguinte exemplo: o leitor recebeu


R$ 100 mil de uma venda e, com esse dinheiro, pode
investir em um fundo muito rentável. Mas o filho do
seu melhor amigo está muito doente e ele lhe pediu
dinheiro para pagar o tratamento e continuar vivo.
Investir o dinheiro ou ajudar seu amigo... o que fazer?
Nessas horas, o valor que você carrega ou defende lhe
ajudará na tomada de decisão. Se o leitor cultiva o valor
da amizade, tende a emprestar o dinheiro para o seu
amigo. Afinal, você não conseguirá dormir enquanto o
filho dele não melhorar. Porém, se o seu valor é a prospe-
ridade, você vai para a igreja com seu amigo pedir uma
ajuda divina e entrega o dinheiro para o seu investidor.

latinstock
Se você não tivesse claro os seus valores, não saberia o
que fazer. Pior, o leitor poderia ter atitudes incoerentes a
cada novo problema, o que transmitiria uma certa inse-
Trabalhadores exigem transporte público de qualidade e
gurança sobre sua personalidade. Os valores que esco- protestam contra o aumento das passagens em todo o país
lhemos para viver ajudam a traçar nosso futuro, nossa
identidade e nossas relações sociais. consegue pagar corretamente seus trabalhadores e
fornecedores.
Valores não são tão simples assim! Se o supermercado comprar esse leite, mais caro que
Agora parece tudo mais fácil, afinal é só escolher uma os concorrentes, ele atentará contra dois de seus valores:
lista de valores para defender e bola para frente. Acha- Lucro e Disciplina. Com as outras marcas, o supermercado
mos os certos, entre cinco e dez, para que possamos lucra mais — entre 35% e 40% — e pela lei de mercado ele
ter certeza sobre como agir. Ledo engano... Apesar de não pode cobrar muito mais caro pelo leite menos lucra-
parecer tão simples, há um grau de complexidade. Ima- tivo. O leite desejado pelos consumidores afeta os lucros
gine que um supermercado de alto nível elabore uma do supermercado. Além disso, o valor Disciplina diz que é
lista de cinco valores indispensáveis, como orientação preciso que os funcionários de um setor se organizem para
e identidade do seu negócio: Lucro, Humildade, Disci- obter um lucro presumido. Opa... Se os clientes compra-
plina, Determinação e Responsabilidade Social. Agora, rem mais leite da marca menos lucrativa, o setor de lati-
pense na seguinte situação: um grupo de consumidores cínio do supermercado não bate as metas impostas, por
se manifesta pedindo um leite de determinada marca. mais que se organizem. O que fazer? Nesse caso, não há
Como preza pelo valor Humildade, a empresa deve ouvir resposta pronta, pois um valor conflita com outro.
os clientes e atender à demanda. Mas existe um pro- Vamos imaginar que, por conta da expansão de sua
blema, pois a fabricante de porte médio não consegue rede, esse supermercado tenha quebrado outros merca-
fazer um preço muito abaixo do seu valor de mercado dos menores e, com isso, gerado o desemprego em uma
— até 25% — pois não tem um portfólio de produtos. A determinada região. Seu valor Responsabilidade Social
empresa só fabrica esse leite e é com a venda dele que entra em jogo e a empresa cria programas educacionais

A nova geração de consumidores e trabalhadores não aceita mais


ordens sem sentido, horários fixos, produtos padronizados e metas
pelas quais eles não se motivam em cumprir – cada vez mais
as empresas investem em programas motivacionais, sem sucesso

50 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


para capacitar esses desempregados. Até aqui há uma Nos últimos três anos, nossa consultoria ética em
excelente adequação entre os valores e as decisões da diversas organizações constatou o anseio dos traba-
empresa. Porém a rede acabou comprando produtos lhadores em participar ativamente das decisões que
menos lucrativos por conta de uma recessão econômica os afetam. A figura do chefe seguro de si, experiente
no setor. Os lucros caíram consideravelmente, e os acio- e que bate metas vem perdendo lugar para a figura do
nistas exigem o cumprimento de um dos valores, o Lucro. líder que conversa e cativa seus colegas de trabalho. Os
Ora, para normalizar os lucros, seria preciso cortar os impactos dessas mudanças culturais, e as formas como
programas de Responsabilidade Social... Aqui também as empresas lidam com elas, resultaram no livro O exe-
não há uma resposta, uma vez que não há valores mais cutivo e o martelo (Editora HSM, 2013), que trata da ética
importantes do que outros. Optar por um dos valores seria nos negócios posicionada na contramão dos discursos
como dizer que há cores mais importantes do que outras dominantes no campo.
ou grupos humanos melhores do que outros. Tanto os tra- Nossa sociedade não aceita mais respostas prontas
balhadores quanto os clientes vão olhar para a empresa para seus problemas, nem o discurso de especialistas
e questionar: “E agora? Que valor vocês vão respeitar?”. que se propõem a responder. Não aceita mais as demo-
Nessas situações, as decisões terão de ser bem pen- cracias representativas, onde escolhe porta-vozes para
sadas e justificadas pela direção do estabelecimento. lhe representarem no condomínio ou no Estado. Como
nas redes sociais, as pessoas querem ter o direito de ser
Participação revolucionária escutadas e de escolherem seu próprio destino. Não
O que mais incomoda a alta cúpula das organizações são desejam mais produtos formatados, como os tradicio-
as insubordinações das novas gerações. Afinal, querem nais sorvetes de palito, querem produtos singulares,
trabalhar quando querem, da forma mais conveniente como as sorveterias que fazem sorvetes personaliza-
possível e no que gostam — sem usar uniforme ou roupa dos a pedido dos clientes. Querem montar seu próprio
social. Para manter esses funcionários na organização hambúrguer, estilizar as roupas que compram, mudar
é preciso ter jogo de cintura e ser bom em negociação. a cor dos celulares que usam. Os velhos discursos éti-
Eles são os novos representantes da geração digital 2.0, cos não são mais aceitos pela sua falta de sentido. São
que não se enquadram nos arcaicos padrões da geração rejeitados em nome de uma anarquia libertária que des-
baby boomer. Pior, representam os novos consumidores constrói poderes e autoridades preestabelecidas. Não
ativos e exigentes. aceitamos mais uma “ordem pública” alheia aos nossos
Quando esses novos profissionais digitais chegaram interesses. A ética do século 21 quer ser radicalmente
ao mercado de trabalho, legitimados pela expansão da democrática, inclusiva e participativa – mais humana
internet, eles iniciaram os questionamentos das auto- e menos serviçal. Na prática, isso significa que os valo-
ridades, hierarquias e planos de carreira. Não demorou res das organizações que sobreviverem às mudanças
para eles mudarem a cultura organizacional de uma ins- serão cada vez mais negociados.
tituição. A nova geração de consumidores e trabalhado-
res não aceita mais ordens sem sentido, horários fixos,
produtos padronizados e metas pelas quais eles não Arthur Meucci
se motivam em cumprir — cada vez mais as empresas Mestre em filosofia pela USP e doutorando em educação, arte e história
investem em programas motivacionais, sem sucesso. As da cultura pelo Mackenzie. Psicanalista, consultor e editor-chefe do
Espaço Ética, professor de filosofia corporativa e ética do HSM e professor
novas gerações querem conversar, questionar e propor conferencista da ECA/USP. É coautor do livro O executivo e o martelo:
soluções para tudo: política, educação, produtos, servi- reflexões fora da caixa sobre ética nos negócios (Editora HSM, 2013).
ços e, para desespero dos velhos gestores, na maneira
como as empresas gerenciam seus recursos financeiros Clóvis de Barros Filho
e humanos. Se as empresas não escutam seus funcioná- Doutor em direito pela Universidade de Paris e doutor em comunicação
pela ECA/USP. É conferencista e consultor do Espaço Ética, consultor
rios, elas podem perdê-los para o concorrente. Com isso, de ética da Unesco, professor de filosofia corporativa e ética do HSM,
perdem também a capacidade de conseguir entender os professor livre-docente da ECA/USP e coautor do livro O executivo e o
novos públicos consumidores. martelo: reflexões fora da caixa sobre ética nos negócios

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 51


entrevista | Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho

Eduardo Meinberg de
Albuquerque Maranhão Filho
/ agência istoé

Formação: doutorando em história social pela USP, mestre em história


pela Udesc (2010), especialista em marketing e comunicação social
Atuação: membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR),
do GT História das Religiões e Religiosidades da Associação Nacional de
História (GTHRR/ANPUH) e da Associação dos Cientistas Sociais de Religião
gabriel chiarastelli

do Mercosul (ACSRM). Integrante da comissão editorial da Revista Brasileira


de História das Religiões, e da Plura – Revista de Estudos de Religião, e
autor de A grande onda vai te pegar: marketing, espetáculo e ciberespaço
na Bola de Neve Church (Fonte Editorial, 2013)

52 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Inversão de valores

E
le explorou a Amazônia e subiu o Alto Rio Negro para conhecer co-
munidades indígenas que agora se identificam como evangélicas.
Analisou as quatro últimas edições da Expo Cristã, entrevistando
expositores, artistas e também um grupo chamado Evangelho
Puro e Simples, liderado por Paulo Siqueira, cujo slogan é “O $how tem que
parar”. Estudou o avanço das igrejas neopentecostais no Brasil e acompanhou
as travessias religiosas de acadêmicos que se tornaram agnósticos e ateus a
partir de sua entrada na academia, abdicando de cargos eclesiais diversos,
como pastores, freiras e diáconos.
No decorrer dessa peregrinação ao mundo das religiões, Eduardo Meinberg
de Albuquerque Maranhão Filho participou ativamente de diversas delas.
Hoje é editor de duas publicações sobre religião, a Plura — Revista de Estudos de
Religião, da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), e a Revista
Brasileira de História das Religiões e Religiosidades, da Associação Nacional de
História (ANPUH).
Recentemente, ele entrou em uma espécie de “Guerra Santa” com as igrejas
neopentecostais. Seu “pecado” foi ter escrito o livro A grande onda vai te pegar
— marketing, espetáculo e ciberespaço na Bola de Neve Church (Fonte Editorial,
2013), que sofreu uma tentativa de censura por parte da Igreja Bola de Neve
(BDN). Em outubro do ano passado, a igreja criada em 1999, pelo surfista
Rinaldo Luiz de Seixas, o apóstolo Rina, tentou impedir, na Justiça, o lança-
mento da obra que mostra o conservadorismo existente no discurso aparen-
temente liberal da maioria das igrejas neopentecostais. Resultado: a ação foi
indeferida e o livro do historiador teve sua primeira tiragem esgotada. Nesta
entrevista, ele fala sobre os novos valores religiosos do povo brasileiro.

Da Redação
Foto: Gabriel Chiarastelli

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 53


entrevista | Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho

Revista da ESPM — No livro, o se- ros, caracterizados pela mobilidade


nhor mostra como o discurso das igre- e costura religiosa, principalmente,
jas neopentecostais vem angariando por meio da mídia e da política.
cada vez mais fiéis. Com base em seus No caso da BDN, a plataforma de
estudos, como você define o movimen- promoção midiática exponencial
to evangélico, em geral, no Brasil? não é a tevê, e sim o ciberespaço.
Assim, é uma igreja muito mais “ci-
Eduardo — Meus estudos sobre reli- berespacial” ou “cibernética” que as
giões e religiosidade não se restrin- demais, comumente chamadas de
gem à Bola de Neve Church (BDN). “igrejas eletrônicas”. A BDN aponta
A BDN é um estudo de caso que de- para o fenômeno das religiões e da
monstra o crescimento e a potência religiosidade no e do ciberespaço.
das igrejas evangélicas, sobretudo É uma igreja de jovens para jovens,
das consideradas neopentecostais, uma igreja alternativa, que tem o

divulgação
na sociedade brasileira atual. Há, que chamo de discursos derretidos
contudo, diferenças entre a BDN e congelados, relativos à aparente
e outras igrejas neopentecostais, flexibilização das leis. É algo como
como a Igreja Universal do Reino de um “vinho velho em odres novos”. Livro que a Bola de Neve Church
Deus (IURD), a Igreja Mundial do Há uma casca nova, que envolve um tentou censurar apresenta
as estratégias utilizadas pelas
Poder de Deus (IMPD), a Igreja Inter- conteúdo conservador. igrejas neopentecostais para
nacional da Graça de Deus (IIGD), e a conquistar seguidores
Associação Vitória em Cristo (Avec). Revista da ESPM — De maneira ge-
Mas todas as igrejas neopentecostais ral, qual é a influência da religião nos esse público. O Festival Promessas
se amparam em teologias como a da valores dos brasileiros? é um reflexo disso. Outro exemplo
prosperidade, da cura e libertação, é a novela Amor à Vida, que usou a
da batalha e do domínio espiritual. Eduardo — Hoje, a religião influen- personagem de Carolina Kasting, a
cia a mídia, que influencia o público Gina, para conquistar a simpatia dos
Revista da ESPM — E qual é o im- e assim por diante, em um processo crentes. Na trama, ela se converte
pacto do crescimento das igrejas neo- contínuo. A Rede Globo, por exem- por meio de oração de aceitação a Je-
pentecostais na sociedade brasileira? plo, até pouco tempo atrás, motivada sus e ainda recebe um convite de na-
pela concorrência da Rede Record, moro de um líder da igreja, seguido
Eduardo — O Brasil é um país que do Edir Macedo, quando mencionava de um beijo de novela. Amor à Vida
se define como laico, mas tem como os evangélicos em sua programação, também apresentou um romance en-
uma de suas maiores características geralmente era a partir de um discur- tre Thales (interpretado por Ricardo
o sentimento religioso da maior par- so pejorativo e desdenhoso. Com o Tozzi) e sua ex-noiva, já desencarna-
te de seu povo. E é inegável a potên- crescimento e a maior participação da, Nicole (Mariana Ruy Barbosa).
cia que o discurso religioso tem na política dos evangélicos, a Globo tem Em outro capítulo, o personagem
constituição da maioria dos brasilei- investido numa aproximação com Jacques (Julio Rocha) fala a Pilar (Su-
sana Vieira): “Eu quero entrar em sua
casa, eu quero entrar em sua vida”.
Uma das características marcantes do “perfil Aparentemente, remete à canção
de Regis Danese que pede a Jesus:
religioso” do brasileiro é a mobilidade e a bricolagem. “Entra na minha casa, entra na mi-
Outra, infelizmente, é a intolerância à diversidade nha vida”. Curiosamente, algumas
em seus múltiplos marcadores sociais horas após a exibição deste capítulo,

54 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


a emissora apresentou o filme Nosso Infelizmente, o que mais observo são igrejas
Lar, baseado no livro espírita homô- que dificultam o acesso e a inclusão igualitária.
nimo de Chico Xavier. Assim, a Glo-
bo faz sua própria bricolagem reli-
Se tais igrejas são representantes de Cristo na
giosa, atendendo a diferentes nichos Terra, por que não costumam agir como ele agiu?
de mercado. O discurso religioso
do festival e da novela reverbera na
constituição de valores individuais e uma das religiões tem, idealmente, queda tende a ser revertido nos próxi-
coletivos, no imaginário e cotidiano como credo, em quais valores são mos anos?
popular brasileiro. baseadas. Um valor comum a muitas é
o amor, o acolhimento. Se pensarmos Eduardo — Creio que a Igreja Cató-
Revista da ESPM — Como o senhor nesses como bases das instituições lica Apostólica Romana retomará o
define nossa sociedade? religiosas, o papel ideal das religiões crescimento por meio de Francisco,
deveria ser o de ensinar o amor, o um papa identificado com o povo, al-
Eduardo — É uma pergunta difícil, respeito à diversidade e acolher in- guém que deve reforçar a fé católica
por sua amplitude e complexidade. distintamente, abrir a porta aos que graças a seu carisma e facilidade de
Uma das características marcantes batem e convidar os que estão seden- se comunicar e se apresentar midia-
do “perfil religioso” da sociedade tos e famintos a se sentarem à mesa ticamente. As igrejas evangélicas
brasileira é a mobilidade e a bricola- e banquetearem. No caso da igreja pentecostais e neopentecostais,
gem. Outra é a intolerância à diver- cristã, quem estaria ao lado de Jesus especialmente as Assembleias de
sidade, com destaque, entre outras, hoje? Travestis, bêbados, garotas de Deus, a IURD (Igreja Universal do
à intolerância religiosa, que, por sua programa, anões, albinos, mendi- Reino de Deus), a IIGD (Igreja Inter-
vez, costuma ser imbricada a outros gos, cegos, michês, lésbicas e gays, nacional da Graça de Deus) e a IMPD
marcadores, como nível econômico, amputados, paraplégicos, adictos, in- (Igreja Mundial do Poder de Deus),
identidade de gênero e orientação digentes... Ou seja, de acordo com os continuam em destaque. E com
sexual. As expressões religiosas preceitos em que creem evangélicos algo em comum: o uso da teologia
brasileiras têm como característica e católicos, Jesus acolheria a todos do domínio, na qual o que importa
potente a intolerância ao diferente. os interessados em sua Boa Nova, é conquistar espaços na política e
E, obviamente, a discriminação do com todo o aconchego do universo. na mídia, procurando influenciar a
diferente não é prerrogativa apenas Infelizmente, o que mais observo são sociedade de todas as formas pos-
dos religiosos. Faltam, como valores igrejas que dificultam ou impossibi- síveis, até por meio da educação.
praticados, o respeito às diversas litam, de formas diversas, o acesso Atualmente, a situação das igrejas
formas de diversidade em relação a e inclusão igualitária. Se tais igrejas brasileiras pode ser caracterizada
marcadores sociais, o amor ao próxi- são representantes de Cristo na Terra, pelo esforço de se conquistar uma
mo e o seu acolhimento sem querer por que não costumam agir segundo o fatia do mercado religioso e, por ve-
modificar-lhe no que ele não deseja Evangelho? Respeitar, acolher e amar zes, do mercado secular, já que estes
ser modificado. deveria ser a função, não somente de têm se imbricado cada vez mais. Isto
católicos e evangélicos, mas, ideal- se dá pela oferta e atendimento a
Revista da ESPM — Qual deveria mente, de todas as pessoas, indepen- demandas específicas de adeptos e
ser o papel da religião na vida das dentemente de seus credos religiosos. fiéis consumidores.
famílias brasileiras?
Revista da ESPM — A Igreja Católi- Revista da ESPM — Quais são os
Eduardo — Analisar qual deveria ser ca Apostólica Romana ainda é a mais principais desafios a serem enfrenta-
o papel da religião na vida das famí- influente no Brasil, mas tem perdido dos pelas igrejas, atualmente, para
lias requer que se pense o que cada fiéis a cada ano. Esse movimento de ampliar sua participação no Brasil?

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 55


entrevista | Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho

Ao adotar um discurso liberal e uma


prancha como altar, a igreja criada
em 1999,
Eduardo Meinberg: ”O papel ideal das religiões pelo
deveria sersurfista e apóstolo
o de ensinar o amor, o
Rina, cresceu e hoje conta com 200
respeito à diversidade e acolher indistintamente, sem acusações ou julgamentos”

latinstock
unidades e 60 mil fiéis

Eduardo — O principal desafio pro- igrejas que tocam heavy metal, como a em um colégio de freiras. Frequentei
vavelmente seja conquistar uma “re- Crash Church, é possível que surja um por quase uma década a Federação
ligious share of market” e consolidar grupo evangélico especializado em Espírita de São Paulo, fazendo vários
e manter sua marca no mercado. É um subgênero, como o doom metal. Há de seus cursos. Conheci a wicca,
atentar à concorrência e estar apto igrejas que se denominam inclusivas bruxaria natural, almas e angola,
a se reinventar, flanqueando os con- LGBT, e é plausível que surja uma co- candomblé, umbanda e hinduísmo
correntes, como já ensinavam Jack munidade evangélica que tenha como e transitei por diversas igrejas evan-
Trout e Al Ries. Em um contexto de público-alvo os travestis. E daí por gélicas. Abdiquei de um seminário
igrejas que têm basicamente o mesmo diante: para públicos não atendidos, é teológico no exterior, da Calvary
público, é comum que se reproduzam possível que novas agências religiosas Chapel, que me formaria pastor, para
características que já dão certo em ou- sejam criadas para acolhê-los. fazer minha pesquisa de mestrado
tras igrejas e que se procure inovar em sobre a Bola de Neve Church. Aliás, a
outros aspectos. E, como lembram os Revista da ESPM — Depois de es- Calvary Chapel é outra igreja que tem
estudiosos do paradigma americano tudar tantos movimentos religiosos, a os surfistas como principal nicho
da economia religiosa, para nichos que conclusão você chegou? mercadológico e que pesquisei, as-
mercadológicos não detectados, a ten- sim como os Surfistas de Cristo. Hoje,
dência é que surjam igrejas especiali- Eduardo — Pessoalmente, eu parti- nada tem um sentido acabado ou
zadas nestes. Após o aparecimento de cipei de diversas religiões. Fui criado definitivo para mim. Assim como as
expressões religiosas que pesquisei
e que se encontram em processo de
Atualmente, a situação das igrejas brasileiras pode ebulição e derretimento identitário,
ser caracterizada pelo esforço de se conquistar uma assim somos nós, pessoas em contí-
fatia do mercado religioso e, por vezes, do mercado nua (des/re)construção identitária.
secular, já que estes têm se imbricado cada vez mais Eu pelo menos sou.

56 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


HISTÓRIA QUE FALTAVA
As pessoas capazes de ler este texto
provavelmente gostarão de conhecer a história
destas letras, do papel em que elas estão impressas
e das técnicas de impressão que tornaram possível
esta página, pois quando estas histórias se fundiram
na prensa de Gutemberg, deram início a uma
revolução que mudou o mundo
.

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especial | religiões

O que as religiões podem


fazer por um mundo melhor?
Dos dez mandamentos cristãos à lei de causa e efeito do budismo. Embarque conosco em uma
viagem pelo mundo da fé e descubra como as principais religiões estão adaptando – ou não –
seus valores e princípios às novas regras ditadas pela sociedade moderna

Por Anna Gabriela Araujo

C
om explicações cada vez mais detalhadas não tenho religião porque todas representam um conto de
sobre a vida em sociedade, o funcionamento fadas. Sou adepto da espiritualidade e sigo um provérbio
da mente humana e a origem da Terra e do que diz: ‘Reze como se tudo dependesse de Deus. Mas aja
universo, a ciência vem desvendando antigos como se tudo dependesse de ti’.”
mitos e fincando sua bandeira em teorias antes exploradas Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
apenas pelas religiões. Recentemente, mais uma barreira (IBGE) comprovam os efeitos desse movimento. O Censo
entre o céu e a terra foi derrubada pelos cientistas que de 2010 aponta uma redução acentuada de poder da
conseguiram reproduzir em laboratório a partícula de Igreja Católica no Brasil, que teve uma retração de 22% no
Deus. Pela teoria que explica como as partículas adquirem número de fiéis nas últimas duas décadas. Ainda assim, o
massa, o belga François Englert e o britânico Peter Higgs país manteve o posto de maior nação católica do mundo,
ganharam o prêmio Nobel de Física em 2013. Mas qual é o com 123 milhões de fiéis, o que corresponde a 64,6% da
impacto que esse tipo de descoberta tem na preservação população brasileira (ver tabela na página 60).
dos valores de uma sociedade e como esse movimento está Nesta reportagem especial, a Revista da ESPM foi a campo
alterando os princípios religiosos mais rígidos? para avaliar qual é o papel da religião na sociedade do
Em O livro das religiões (Editora Cia. das Letras), Victor século 21 e como os princípios e valores religiosos influem
Hellern, Henry Notaker e Jostein Gaarder mostram que, no comportamento da sociedade brasileira.
embora as religiões se mantenham vivas, áreas cada vez Antonio Miguel Kater Filho, diretor executivo do Instituto
maiores da vida social e cultural têm saído de sua influência. Brasileiro de Marketing Católico, foi um dos entrevistados
“Além de os princípios religiosos terem perdido influência e falou sobre o posicionamento atual da Igreja Católica.
na vida social, também os conceitos éticos ensinados Presente na história do Brasil, desde o seu descobrimento, o
pelas religiões não afetam mais as questões sociais. Este catolicismo contribuiu para a formação cultural, artística,
processo é conhecido como secularização”, asseguram os social e administrativa do país e agora está tendo de rever
autores. “Tais atos têm efeitos diversos sobre as pessoas. seus conceitos para continuar existindo. “Hoje, a grande
Alguns mantêm sua crença religiosa, mas traçam uma maioria dos católicos não consegue enumerar metade dos
linha divisória entre a religião e a ciência. Outros rejeitam dez mandamentos. Como você pode seguir e acreditar em
a religião e se tornam ateus ou agnósticos. E há ainda algo que desconhece?”, questiona o profissional que há mais
aqueles que incorporam a consciência científica à sua fé de 30 anos atua no segmento. “A Igreja precisa reaprender
religiosa. Será que somos menos religiosos hoje do que a pregar os valores cristãos, que devem ser ajustados ao
éramos cinquenta anos atrás?”, questionam os autores. perfil das famílias modernas”, assegura Kater Filho.
Para Mario René Schweriner, líder da área de A recomendação do especialista em marketing católico
humanidades e direito da ESPM, a resposta é sim. “Muitas vale de lição para todas as igrejas, que sofrem com o aumento
pessoas chegaram à conclusão de que não precisam de da concorrência gerada por novos movimentos religiosos.
uma religião, e sim de espiritualidade. Eu, por exemplo, “Eles afirmam que são universais e aplicáveis a todos, se

58 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


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janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM


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especial | religiões

intitulam como ‘a religião das religiões’”, explica um dos Além de os princípios religiosos terem
capítulos de O livro das religiões. “Com frequência, a ideia
perdido influência na vida social,
é de que as velhas religiões já esgotaram seus papéis, pois
cada uma, por si só, contém apenas uma fração da verdade. os conceitos éticos ensinados pelas
Dessa forma, essa nova religião é a revelação final, a última religiões não afetam mais a sociedade
resposta, a verdade plena e completa.”
Para Schweriner, a maioria das religiões continua com
os mesmos valores e princípios de quando surgiram. Malafaia alerta: “Os brasileiros estão confundindo
“Karl Marx dizia que a religião é o ópio do povo. Na liberdade com libertinagem. Em qualquer sociedade
verdade, a religião é o esteio da sociedade, que está cada moderna democrática, valores que estão relacionados
vez mais perdida diante do excesso de informação que ao caráter e à família tradicional ainda são mantidos
recebe todos os dias”, avalia o professor da ESPM, que com muita força, mesmo com o bombardeio da mídia
está escrevendo um livro sobre ciência e religião. Nesse para um novo paradigma”.
novo cenário, a Igreja Pentecostal parece ter encontrado Depois de ser questionada por Charles Darwin na teoria
a fórmula sagrada de falar a língua do povo. De acordo da seleção natural das espécies, criticada por Friedrich
com o Censo de 2010, do IBGE, a religião que mais Nietzsche, em sua tese de que “Deus está morto” e ignorada
ganhou adeptos nos últimos 40 anos foi a evangélica, por Karl Marx quando ele expôs sua visão materialista
que já representa 22,2% da população brasileira, ante de mundo, a religião enfrenta agora um de seus maiores
os 5,2% de participação que possuía na década de 1970. desafios: a adaptação de antigos valores aos tempos
O destaque fica com a Assembleia de Deus e seus 12 modernos. Confira, a seguir, como oito grandes religiões
milhões de fiéis espalhados pelo Brasil. Um dos líderes estão trabalhando em prol da preservação dos princípios
mais atuantes dessa igreja, o pastor pentecostal Silas éticos e morais da sociedade brasileira.

Ranking brasileiro das religiões

Posição Religião Número Número


em 2010 de adeptos de adeptos
em 2010 em 2000

1 Católica Apostólica Romana 123.280.172 124.980.132


2 Sem religião 14.595.979 12.492.403
3 Assembleia de Deus 12.314.410 8.418.140
4 Igreja evangélica não determinada 9.218.129 2.674.356
5 Outras igrejas evangélicas de origem pentecostal 5.267.029 1.840.581
6 Espírita 3.848.876 2.262.401
7 Igreja Evangélica Batista 3.723.853 3.162.691
8 Igreja Congregação Cristã do Brasil 2.289.634 2.489.113
9 Igreja Universal do Reino de Deus 1.873.243 2.101.887
10 Igreja Evangelho Quadrangular 1.808.389 1.318.805
11 Igreja Evangélica Adventista 1.561.071 1.209.842
12 Outras religiosidades cristãs 1.461.495 471.065
13 Testemunha de Jeová 1.393.208 1.104.886

60 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Posição Religião Número Número
em 2010 de adeptos de adeptos
em 2010 em 2000

14 Igreja Evangélica Luterana 999.498 1.062.145


15 Igreja Evangélica Presbiteriana 921.209 981.064
16 Igreja Deus é Amor 845.383 774.830
17 Não determinada e múltiplo pertencimento 643.598 357.648
18 Religiosidade não determinada/mal definida 628.219 383.953
19 Ateu 615.096 -
20 Católica Apostólica Brasileira 560.781 500.582
21 Umbanda 407.331 397.431
22 Igreja Maranata 356.021 277.342
23 Igreja Evangélica Metodista 340.938 340.963
24 Budismo 243.966 214.873
25 Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias 226.509 199.645
26 Igreja o Brasil para Cristo 196.665 175.618
27 Comunidade Evangélica 180.130 -
28 Candomblé 167.363 127.582
29 Novas religiões orientais 155.951 151.080
30 Católica ortodoxa 131.571 38.060
31 Igreja Casa da Benção 125.550 128.676
32 Agnóstico 124.436 -
33 Igreja Evangélica Congregacional 109.591 148.836
34 Judaísmo 107.329 86.825
35 Igreja Messiânica Mundial 103.716 109.310
36 Igreja Nova Vida 90.568 92.315
37 Tradições esotéricas 74.013 58.445
38 Tradições indígenas 63.082 17.088
39 Espiritualista 61.739 25.889
40 Outras novas religiões orientais 52.235 41.770
41 Islamismo 35.167 27.239
42 Outras evangélicas de missão 35.167 34.224
43 Evangélica renovada não determinada 30.666 -
44 Declaração de múltipla religiosidade 23.461 -
45 Outras declarações de religiosidade afro-brasileira 15.379 -
46 Outras religiosidades 11.306 15.484
47 Outras religiões orientais 9.675 7.832
48 Hinduísmo 5.675 2.905

Fonte: Censo 2010 x Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 61


especial | religiões

Budistas

Para toda ação, uma reação!


B
aseado na ideia de que a morte não é a extinção, Não temos o direito de invadir a mente e a vida das
e sim uma continuidade da mente, que existe pessoas alegando boas intenções”, relata o discípulo
antes mesmo da composição do cor po, o do Templo Zu Lai, que no Brasil não consegue formar
budismo encara os problemas da sociedade moderna novos monges por conta das regras rígidas impostas
como uma consequência do principal mandamento pela linhagem chinesa do budismo.
dessa filosofia milenar: a lei de causa e efeito. “Quando Para explicar como essa filosofia de vida reage
a pessoa tem consciência de que tudo o que faz ou fala aos problemas do mundo, ele cita um famoso ditado
gera um impacto na sociedade, é capaz de reconhecer que diz ser possível aprender algo por meio de dois
o que causa a aflição mental, física e nas relações caminhos: “Ou você medita e aprende ou sofre e entende”.
interpessoais, refletir sobre o assunto e mudar seu “Infelizmente, a maioria das pessoas escolhe o caminho
comportamento para ser feliz, do sofrimento, enquanto o
viver em harmonia e contribuir correto é agir como uma abelha,
para a felicidade do próximo”,
Budismo que suavemente pousa na flor e
observa Aristides dos Santos extrai o néctar, sem danificá-la.
Dias, relações públ icas do Início do movimento: por volta do Mas é necessário ter na mente,
Templo Zu Lai, maior templo século 6 a.C. no corpo, na fala e na ação
budista da A mérica Latina. uma postura adequada para
“ Todo cor po é um agregado Fundador: Siddharta Gautama, alcançar o despertar da mente
de matéria, um ajuntamento o peregrino que ficou conhecido iluminada.”
de terra, fogo, ar e água. O que como Buda ao andar pelo norte Ele a lega que, se todo
você come vem da terra, o que da Índia apontando a cura para o empresário, político e cidadão
você bebe vem dos rios, o que sofrimento: meditação, sabedoria, praticasse esse conceito, as
você respira vem dos ventos e o compaixão e moralidade empresas ser ia m menos
fogo interno é um empréstimo poluentes e predatórias; as
do calor do sol. Essa é a lei da Budismo em números: o Brasil relações políticas honestas;
interdependência, que mostra possui 244 mil budistas, segundo o e os traba l hadores, menos
como afetamos uns aos outros. Censo de 2010 do IBGE explorados. “O homem erudito
Não adianta poluir o ar ou o ganha coisas todos os dias,
rio, porque você vai precisar Mensagem: ”É preciso meditar e nq u a nt o o homem sá bio
respirar desse ar e beber dessa para se regenerar. E refletir perde algo diariamente. Esse
água.” constantemente para não ser mais é o caminho: o que perco é o
Segundo o jorna lista que um escravo da lei de causa e efeito” que vai me possibilitar ter um
trocou a profissão pelo budismo, ganho real no futuro.”
a sociedade vem evoluindo D i a s lembra a i nd a que,
material e tecnologicamente, sem esse entend i mento a
mas está se envolvendo em um modo de vida que vai caminhada fica mais longa e difícil, mas não impossível.
gerar uma série de transtornos e dificultar a realização “O que impede a pessoa de mudar é ela própria. Símbolo
espiritual coletiva. “Por mais elogiáveis e nobres que do budismo, a flor-de-lótus nasce no pântano e, apesar
sejam os ensinamentos budistas, não temos como de florescer no meio da imundice, ela desabrocha bela
impor esse ponto de vista para a sociedade, porque a e perfumada. Por ser impermeável, você pode enchê-la
liberdade humana e o livre arbítrio são pontos sagrados. de lama, que ela jamais ficará manchada!”

62 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Católicos

O redescobrimento do Brasil
D
e todas as religiões, o catolicismo parece o que vejo são muitas famílias desestruturadas, sem
ser a que mais sente a mudança nos hábitos referenciais éticos, morais e cristãos. As pessoas
e atitudes da sociedade brasileira. Com 123 perderam o referencial do que é certo ou errado.
milhões de seguidores no Brasil, a Igreja Católica Agora, cabe à Igreja resgatar esses valores e instituí-
Apostólica Romana está encolhendo. Nos últimos dez los no dia a dia dos fiéis”, explica Kater Filho, citando
anos perdeu 12,2% de seu público, o que, segundo o como exemplo o trabalho do papa Francisco, que em
Censo de 2010, do IBGE, representa cerca de 1,7 milhão dezembro de 2013 foi eleito a personalidade do ano
de fiéis a menos. O levantamento mostra que, em 1970, pela revista Times. “Suas atitudes têm mostrado para
91,8% dos brasileiros eram católicos, fatia que em 40 o clero que para reaproximar a Igreja de seus fiéis é
anos diminuiu para 64,6%. preciso descer do presbitério e caminhar no meio da
Para A ntonio Miguel plateia. A mensagem é clara:
Kater Fi l ho, não se t rata não cabe ao padre julgar o fiel,
de u m problema rel ig ioso, e sim dar misericórdia a ele.”
Igreja Católica
e sim genérico, que af lige a De acordo com o estudioso,
Apostólica Romana
sociedade como um todo. “A o novo papa é pragmático e
influência nefasta dos meios de Início do movimento: no será capaz de provocar uma
comunicação está destruindo mundo, o catolicismo surgiu há mudança tão grande quanto
o que a Igreja levou séculos aproximadamente dois mil anos. a gerada pelo Concí lio
para construir. O egoísmo e No Brasil, está presente desde o Vaticano II, na década de 1960.
o hedon ismo represent a m descobrimento do país Organizado pelo papa João
uma espécie de epidemia no XXIII, esse grande evento foi
pa ís, cuja popu lação nut re Igreja católica em números: 123 promovido com o objetivo de
u m e x t r e mo desca so p e l a milhões de católicos frequentam modernizar a Igreja e atrair os
vida. Basta ver a quantidade as 12 mil paróquias e dioceses cristãos afastados da religião. E
de v ít i mas que mor rem no brasileiras foi assim que, a partir de 1966,
trânsito todos os anos”, avalia a missa deixou de ser rezada
o profissional que há mais de Mensagem: ”Pai, perdoai-os porque em latim, sendo adaptada ao
30 anos ensina técnicas de eles não sabem o que fazem” idioma de cada país, com o
ma rket i ng em i nst it u ições padre de frente — e não mais
catól icas. “A f idel idade no de costas — para o público. “A
casamento está fora de moda. Igreja precisa reaprender a
Roubar para obter algum tipo de vantagem não é mais pregar os valores cristãos para famílias modernas,
visto como um pecado pela maioria da população, da que muitas vezes representam apenas um aglomerado
mesma forma que alguém que encontra uma carteira de pessoas que se conhecem, morando sob um mesmo
cheia de dinheiro na rua, e a devolve, acaba virando teto. Essa é a oportunidade que temos de descomplicar
capa de revista. Hoje, o que deveria ser normal virou os processos e simplificar o discurso católico, com o
exceção e aquilo que antes era visto como anormal intuito de plantar no coração das pessoas uma semente
virou regra.” de valor que pode mudar o mundo. Afinal, como disse
Nesse cenário, os valores supremos do catolicismo Madre Teresa de Calcutá, em um encontro promovido
parecem andar na contramão. “Realizo encontro de pela ONU, o que falta no mundo não é o pão, e sim o
casais em igrejas católicas desde a década de 1970 e amor ao próximo”, assegura Kater Filho.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 63


especial | religiões

Judeus

Tradição milenar adaptada


N
a religião monoteísta mais antiga do mundo, os mas a simbologia é diferente em cada época. Há 500 anos,
rituais começam cedo. Já no oitavo dia de vida, os rabinos faziam a mesma coisa, mas em um contexto
os meninos participam do Brit-Milá, que marca diferente de mundo, porque estavam diante da Inquisição,
o ingresso na comunidade judaica por meio da aliança da emancipação, das Cruzadas...”, compara Sternschein.
entre Deus, Abraão e seus descendentes. E esta é só a Segundo ele, uma das mudanças mais significativas da
primeira de muitas cerimônias promovidas pelo povo atualidade é o fato de a mulher ter ganho mais espaço dentro da
judeu, há mais de quatro mil anos. Mas qual é a influência comunidade judaica. Já existem rabinas com papel relevante
dos 613 mandamentos hebraicos no comportamento das nas sinagogas. “O judaísmo é muito plural. Não existe um
famílias brasileiras do século 21? papa judeu e jamais existirá, porque todo mandamento
De acordo com o rabino Ruben Sternschein, vice-presidente pode ser interpretado de diferentes formas, o que restringe
da Congregação Israelita Paulista a autoridade do rabino à leitura e
(CIP), o judaísmo sempre procurou ao estudo dos textos sagrados da
adaptar suas crenças às mudanças Judaísmo Torá. É por isso que brincamos:
físicas, emocionais ou espirituais onde tem dois judeus tem quatro
de uma pessoa ou sociedade, que Início do movimento: surgiu na ou cinco opiniões diferentes.”
representam novas possibilidades Palestina, há cerca de quatro mil anos Para o povo judeu, a palavra
de interpretação de antigos valores. responsabilidade tem um grande
“Tecnologia, liberalismo, consumo Congregação Israelita Paulista (CIP): peso, principalmente durante
e individualismo. Tudo tem seu lado foi fundada em 1936 e segue os o Rosh Hashaná, o ano-novo
bom e deve ser encarado como uma fundamentos do judaísmo judaico, que representa um
oportunidade para a prática dos liberal não ortodoxo. Hoje, a CIP momento de reflexão sobre
valores judaicos.” Como exemplo, é a maior comunidade judaica liberal os erros cometidos no ano
ele cita o Shabat, dia de descanso da América Latina anterior. “O judaísmo ensina
semanal dos judeus. “Antigamente, que uma pessoa nunca termina
aos sábados não podíamos sair de Judaísmo em números: 107.329 de interpretar o sentido de algo.
um perímetro determinado e a pessoas se declaram judeus no Brasil É preciso estudar o mesmo texto
refeição deveria ser realizada em diversas vezes até chegar a uma
família. Visando à preservação da Mensagem: ”Não faça a seu próximo verdade mais lapidada que a
reunião familiar e dos encontros aquilo que não gostaria que fosse anterior, porque as aparências
sociais, essa obrigação deixou de feito a você!” nem sempre revelam toda
existir. Reinterpretamos os rituais verdade, ainda mais em um país
para que nossa história dialogue que é conhecido pelo famoso
com os desafios do mundo atual.” jeitinho brasileiro”, assegura o rabino adepto do judaísmo
O judaísmo é uma tradição que preza a ação, por meio liberal não ortodoxo. “O povo brasileiro é simpático
de seus rituais. Juntos, esses rituais representam o modo e amigável, mas foge dos conflitos e não gosta muito
de vida do povo judeu. “Expressamos nossos valores daqueles que denunciam e apontam problemas. Esse tipo
essenciais por meio de símbolos presentes em festividades, de comportamento esbarra em algumas questões éticas,
como a Pessach, a Páscoa judaica, quando, durante sete e é aí que entram os valores do judaísmo em busca de uma
dias, refletimos sobre a saída dos judeus da escravidão sociedade melhor.” Afinal, como costumava afirmar o
no Egito e a importância da liberdade de escolha. Ainda rabino Hilel ao interpretar a Torá: “Não faça a seu próximo
hoje, cumprimos cada passo desse ritual de dois mil anos, aquilo que não gostaria que fosse feito a você!”.

64 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Luteranos

O valor da família brasileira


O
reverendo Egon Kopereck, presidente da Igreja sua análise crítica, ele cita os meios de comunicação como
Evangélica Luterana do Brasil (IELB), cita uma causadores de grande parte do problema. “Muitas vezes,
frase do teólogo e pensador Renato Collyer a mídia em geral, subliminar ou abertamente, introduz
para explicar as mudanças que estão ocorrendo nos valores éticos e morais distorcidos dos princípios cristãos,
valores e princípios religiosos: “Mesmo que os valores por meio de novelas, filmes, reportagens que entram em
da sociedade estejam deturpados, em desacordo com os nossos lares sem nenhuma reserva, sem o menor escrúpulo,
preceitos bíblicos, os filhos de Deus devem refletir sua e acabam afetando crianças, adolescentes, jovens e toda
divina vontade, agindo com amor e compaixão, e não se a estrutura familiar. Isso acaba destruindo os princípios
rendendo ao mundo, tentando adequar-se a ele”. Segundo que regem e deveriam soberanamente permanecer na
Kopereck, esse é o grande problema da sociedade moderna. manutenção da célula mater da sociedade, que é a família.”
“Infelizmente, muitas religiões O reverendo afirma ainda
que se dizem cristãs, em vez de que a religião cristã tem um
influenciar o mundo com suas Igreja Evangélica grande desafio na formação e
convicções, deixaram o mundo Luterana do Brasil conservação dos reais valores
entrar em seus princípios e agora (IELB) da sociedade moderna. “Cabe
querem adaptar a Palavra de Deus à Igreja Evangélica Luterana
a esse novo mundo, perdendo Início do movimento: 1900 do Brasil não se adaptar aos
assim a essência dos valores conceitos liberais e mundanos,
éticos e morais, fundamentados Fundador: pastor Christian J. mas com firmeza, exemplo
e alicerçados na Bíblia Sagrada, o Broders, missionário da Igreja de vida e atitudes coerentes
livro-chave da fé cristã.” Luterana – Sínodo de Missouri, demonstrar, ensinar e propagar
Para ele, os valores supremos dos Estados Unidos valores que dignifiquem o ser
não mudam, nem se adaptam humano e o façam viver com
a novos conceitos e princípios IELB em números: 524 paróquias, decência e ordem, respeitando
modernos liberais. “A mensagem 2 mil congregações e pontos de a vida e os nobres princípios
da Igreja Luterana é sempre a pregação, 892 pastores e 240 mil de um lar, de uma família,
mesma e aponta para a graça membros constituídos por um homem e
de Deus que em Cristo Jesus uma mulher, abençoados com
nos trouxe paz, perdão, vida Mensagem: ”Cristo para todos” filhos”, assegura Kopereck.
e s a l v aç ão . Es s e a mor de “Toda a colheita começa pelo
Deus precisa ser anunciado, plantio. Se eu semeio pouco,
proclamado por todos os meios com certeza, vou colher pouco!
e caminhos, pois não há esperança para um mundo melhor, Então, o plano da Igreja Evangélica Luterana do Brasil
destituído dessa verdade e desses princípios.” para o seu crescimento passa por essa ideia: semear
Kopereck explica que, segundo Lactâncio e Agostinho mais o Evangelho, falar mais da nossa fé, convidar
(séculos 3 e 4 d.C.), o termo religião vem do latim religare e mais pessoas para conhecerem esta mensagem e, além
significa “religar o ser humano com Deus”. “Hoje, muitas de falar e testemunhar, efetivamente praticar e viver
filosofias de vida são enquadradas em religião, mas não têm essa fé cristã, num mundo onde os reais valores dessa fé
relação alguma com esse conceito. Parece estar havendo uma cristã estão em crise, sendo abandonados e pisoteados
acomodação, um retroceder, um esvaziamento na prática e por conceitos e ideologias liberais e vulgares.”
no testemunho cristão, o que é, no mínimo, lamentável.” Em

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 65


especial | religiões

Messiânicos

O que importa é ser feliz!


“A
o longo de três mil anos, a humanidade outras palavras, valores religiosos não são negociáveis.
veio se afastando da Lei da Natureza, O que deve ser flexível, porém, é a maneira como a
que é a Lei do Un iverso, a vontade obra de Deus é desenvolvida e difundida. Esta, sim,
de Deus, a verdade.” Essa é a base do discurso da deve acompanhar a mudança dos tempos, para dar
Igreja Messiânica Mundial do Brasil, que trabalha respostas aos problemas enfrentados pela sociedade
para transformar materialistas em espiritualistas, contemporânea”, detalha Manabe. “Assim, nossa missão
egoístas em altruístas, e assim restituir ao planeta o consiste em proporcionar ao ser humano uma abertura
seu equilíbrio original. Segundo o reverendo Mitsuaki para a transcendência da vida, transmitindo ao homem
Manabe, esse é um trabalho a consciência e a experiência
árduo, uma vez que a sociedade de que nossa existência vai
brasileira segue uma tendência muito além daquilo que os cinco
mundial, na qual o egoísmo e Igreja Messiânica sentidos conseguem perceber.
o materialismo ficam cada vez Mundial do Brasil Para nós, o verdadeiro valor da
mais evidentes. “Estes dois fé reside na vivência e aplicação
sentimentos são, sem dúvida, Início do movimento: 1954 no Japão
diária de seus princípios. Viver
a fonte primária de todos os e 1955 no Brasil
a fé em família e criar no lar um
sofrimentos. A corrupção, por ambiente no qual prevaleça o
exemplo, um dos problemas que Fundador: Mokiti Okada, chamado
respeito à vida, em toda sua
mais incomodam os brasileiros, pelos messiânicos Meishu-Sama,
abrangência, é fundamental.
tem origem no pensamento de que, em português, significa
Buscamos sempre o caminho da
que, em nome de defender seus ”Senhor da Luz”
união, em prol da concretização
interesses particulares, uma de um mundo melhor, de um
pessoa pode passar a prejudicar Igreja Messiânica em números:
Paraíso Terrestre.”
o interesse de outras.” Manabe 2,5 milhões de messiânicos e 507
A partir dessa lógica, a Igreja
explica que esse pensamento se unidades (chamadas de Johrei
Messiânica considera todos
alicerça na certeza de que “se Centers) em todo o mundo
os percalços e conquistas da
tudo for benfeito e não se tornar humanidade como estágios
público, não tem problema”, Mensagem: ”A construção
preparatórios. “São degraus
comenta o reverendo, que é vice- do Paraíso Terrestre – um
para se alcançar o Céu na Terra
presidente da Igreja Messiânica
mundo isento de doença, miséria
e o momento atual e toda a
Mundial do Brasil. “Um homem
e conflito”
s u a cont u rbação t a mbém
verdadeiramente religioso sabe fazem parte desse processo”,
que Deus tudo pode, tudo sabe asseg ura o reverendo. “De
e em tudo está. Portanto, o que todas as instituições capazes
mais falta à nossa sociedade é a consciência de que de influenciar a formação de valores da sociedade,
nós, seres humanos, e todos os seres da criação, somos a religião ainda é aquela que trabalha os valores
parte de um todo. E que, sendo assim, não nos resta mais essenciais da vida humana, contemplando sua
alternativa senão trabalhar em prol da felicidade de dimensão transcendental. Conceber a vida como um
todos.” mero fenômeno dos mundos físico e psicológico é
Para os messiânicos, os valores religiosos são pautados uma visão limitante e incapaz de conduzir o homem
na verdade revelada por Deus, e esta é imutável. “Em à completude e à verdadeira felicidade.”

66 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Muçulmanos

Em busca de rendição
E
m árabe, Islã significa “rendição” ou “submissão” islamismo e foram trazidos ao país pelos escravos, mas
às regras e aos desejos de Deus, chamado pelos o que prevalece em todo o território nacional é o famoso
muçulmanos de Allah. Ainda assim, o mundo sincretismo religioso. “Valores como família, honra e
islâmico aparece com frequência nas manchetes dos hospitalidade são um marco na cultura brasileira. O
jornais por conta de uma guerra milenar travada entre a islamismo tem se preocupado em manter seus dogmas
minoria xiitas e sunitas (que representam mais de 90% da vivos nos muçulmanos que aqui vivem. Afinal, além
população muçulmana em todo o mundo). Segunda maior de ser uma religião, o islamismo é um estilo de vida
religião do mundo, com mais de 1,3 bilhão de adeptos, o moderado, no qual atende e supre as necessidades da
islamismo foi fundado na Arábia, matéria e da alma.”
pelo profeta Maomé, no início Para Majdoub, este sincretismo
do século 7. Seus fiéis seguem religioso é a base dos valores
os rígidos preceitos do Alcorão, Sociedade Beneficente atuais da sociedade brasileira.
o livro que reúne as escrituras Muçulmana “São valores que vão se perdendo
sagradas que, segundo a crença na mesma proporção em que
islâmica, Maomé recebeu das Início do movimento: 1927
a religião perde importância.
mãos do anjo Gabriel. Todo É preciso resgatar os valores
muçulmano deve seguir as Fundadores: Primeiro, os palestinos
supremos imutáveis, como
cinco obrigações principais do Hosni Adura e Darwich Gazal
verdade e fé, que a sociedade
islamismo: acreditar em Allah fundaram a Sociedade Beneficente
moderna foi deixando para trás,
e no profeta Maomé; rezar cinco Muçulmana Palestina, que em 1929
pois eles servem como freio
vezes por dia; jejuar durante passou a ser chamada de Sociedade
moral a impulsos que hoje têm
o d ia no mês sag rado dos Beneficente Muçulmana (SBM).
sido a causa de tanta violência,
muçulmanos, o Ramadã; dar A primeira mesquita do Brasil foi
como a inveja, a ganância e a
esmola aos pobres; fazer uma inaugurada em 1952
luxúria”, avalia o muçulmano.
peregrinação à cidade de Meca “Para isso, todas as religiões
ao menos uma vez na vida. SBM em números: 1,5 milhão de
desempenham um importante
Alli Ahmad Majdoub, gestor fiéis, segundo a Federação Islâmica
papel na sociedade, pois criam
da Mesquita Brasil, explica que, Brasileira. Cerca de 50 mesquitas e
laços de solidariedade, tolerância
ao contrário do que aparece nas mais de 80 centros islâmicos estão
e amor ao próximo!”
mídias, a religião muçulmana
espalhados pelo país
No caso da religião muçulmana,
prega a paz e a tolerância e uma a Mesquita Brasil tem intensificado
das obrigações dos seguidores
Mensagem: ”Só há um Deus, e
a interação com a comunidade em
do islamismo é promover o
Maomé é seu Profeta”
geral por meio de inúmeras ações,
bem e reprimir o mal. “Nossa como mostras culturais, palestras,
preocupação é estreitar laços aulas de religião e língua árabe.
com as dema is rel igiões e “Nossos planos têm se pautado
costumes, principalmente para mostrar que, assim na desmistificação da religião, mostrando que ela e seus
como as outras religiões, o islamismo quer o bem do seguidores procuram fazer o bem ao próximo. Para tanto
Brasil e de seu povo. Queremos ajudar na construção a Mesquita Brasil tem sido um núcleo de propagação de
de uma sociedade justa e fraterna.” Ele acrescenta valores essenciais ao convívio pacífico entre os povos”,
ainda que alguns valores dos brasileiros têm origem no assegura Majdoub.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 67


especial | religiões

Pentecostais

Liberdade não é libertinagem!


O
pastor pentecostal Silas Malafaia alerta: “Estamos dessa forma. E a Igreja tem dado uma ideia disso para que
vivendo um momento muito perigoso, no qual as pessoas possam viver a plenitude desses mundos.”
os valores que nortearam toda a história da Presidente da Central Gospel, ele pretende lançar 70
nossa sociedade estão sendo jogados no lixo em uma livros no decorrer do ano. “Não existe outro instrumento
velocidade grandiosa”. Para ele, esse movimento é uma tão poderoso para a formação de crenças, caráter, valores
tentativa de mudar o paradigma judaico-cristão, que e comportamento como a Palavra de Deus. À medida que
norteia o mundo ocidental, para ampliamos a produção da Palavra
um paradigma humanista-ateísta. de Deus, nós conquistamos esses
“Os brasileiros estão confundindo objetivos”, assegura o pastor, que
liberdade com libertinagem. Em Igreja Assembleia de mudou a estrutura de sua editora
qualquer sociedade moderna Deus Vitória em Cristo para ampliar a distribuição desses
democrática, valores que estão livros. “Com o lançamento do
relacionados ao caráter e à família Início do movimento: a Assembleia programa Revendedor, em quatro
tradicional ainda são mantidos de Deus foi criada em junho de meses, mais de 50 mil pessoas
com muita força, mesmo com o 1911, em Belém do Pará, pelos se cadastraram para revender
bombardeio da mídia para um missionários suecos Daniel Berg e nossas obras em todo o Brasil.”
novo paradigma. Está faltando nos Gunnar Vingren, Com planos de abrir mil
brasileiros o respeito aos limites igrejas da Assembleia de Deus
que a sociedade dá a cada cidadão ADVEC em números: é hoje a maior nos próximos dez anos, ele
para que possamos viver bem.” igreja pentecostal do Brasil, com 12,3 diz esta r preocupado com
Um dos líderes mais atuantes milhões de seguidores, segundo o alguns dados relacionados à
da Igreja Assembleia de Deus, o Censo de 2010 do IBGE juventude brasileira. “Hoje, no
coordenador e apresentador do Brasil, um em cada quatro jovens
programa Vitória em Cristo (que é Mensagem: ”Cheios do Espírito com idade entre 10 e 18 anos é
transmitido há mais de 30 anos), Santo, cumpriremos nossa dependente do álcool. O número
acredita que a religião possui missão bíblica de adoração a de mães solteiras adolescentes
grande responsabilidade para o Deus, comunhão com os irmãos, é alarmante. A quantidade de
desenvolvimento e bem-estar da evangelização dos povos, jovens envolvidos em outros
família e da nação como um todo. discipulado dos salvos, vigilância e tipos de droga é chocante.”
“Ela fornece ao ser humano a base oração até Jesus voltar” E aproveita para lançar um
de valores para entender que as desafio: “Se qualquer sociólogo
coisas não são relativizadas e ou jornalista quiser comparar
mostra que alguns valores são um grupo de dez mil jovens que
absolutos. Quando cada pessoa tem sua própria escala de são membros de igrejas evangélicas com outros dez mil que
valores, isso acaba trazendo problemas para a sociedade. não têm seus valores associados a essa religião, chegará à
Esse senso que a religião fornece de autoridade, respeito, conclusão de que as mazelas que têm destruído milhões
integridade e obediência é uma contribuição importante.” de brasileiros não atingem os jovens compromissados com
De acordo com Malafaia, o evangelho tem a ver com a mensagem do evangelho. Quanto mais promovermos
a vida do indivíduo como um ser biológico, psicológico, a educação cristã, menos problemas teremos. Desafio
sociológico e espiritual. “Jesus falou sobre esses quatro qualquer sociólogo ou jornalista a comprovar o que
mundos. Deus, no Antigo Testamento, tratou com Israel estou falando!”.

68 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Presbiterianos

Falta fazer a lição de casa...


P
ara um dos líderes da Igreja Presbiteriana Unida penúltima geração. “E a geração do consumismo nem
(IPU), o pastor Derval Dasilio, a religião tem menos percebe que ela mesma está sendo usada e, posteriormente,
influência do que se imagina na formação dos valores será jogada fora pela sociedade da ganância, que não acredita
da sociedade brasileira. “Aqui, a religião é vista como um em solidariedade nem tem apreço pela coletividade.”
problema estatístico, em porcentuais, nos quais o catolicismo Dasilio afirma ainda que o jovem é o exemplo mais
decresce e o evangelicalismo sobe nas pesquisas. Mas a desalentador da composição dos modelos atuais da religião.
religião não é um fenômeno mensurável, em sua essência. “Em uma pesquisa recente, a personalidade de um pastor
Budismo, confucionismo, protestantismo ou catolicismo são pentecostal evangélico milionário aparece em primeiro
veículos de grande importância lugar na preferência e admiração
na preservação de valores que de jovens evangélicos. Jesus Cristo,
sustentam a vida na Terra”, explica fora do pódio da fé, ocupa o quinto
o pastor da igreja criada na década Igreja Presbiteriana lugar nessa pesquisa.”
de 1970, com base no trabalho Unida do Brasil (IPU) Depois de apontar o problema,
missionário do reverendo Ashbel ele apresenta a solução. “O exercício
Green Simonton, que no século 19 Início do movimento: década de 1970 da solidariedade foi dinamitado,
trouxe o presbiterianismo para o como um velho edifício, do topo
Brasil. “Tais são os descaminhos Origem: reverendo Ashbel Green à base. É exatamente aí que a
e as negações dos valores que Simonton, em 1859, fundador do religião se torna importante,
sustentam o planeta e seus presbiterianismo no Brasil porque estabelece modelos
habitantes, que somos obrigados de comunhão, solidariedade,
a lamentar a falta de influência IPU em números: o Brasil possui compaixão e misericórdia.” A lição
da religião para transformar o 921.209 presbiterianos de casa da sociedade atual inclui
mundo e a sociedade. É inócua ainda: compreender a diversidade
a religião estatística, enquanto Mensagem: ”Igreja reformada sociológica das confissões cristãs,
desejaríamos o interesse essencial sempre se reformando” islâmicas, judaicas, budistas etc.;
difundido, nos valores religiosos observar e respeitar as múltiplas
ancestrais da misericórdia, tendências eclesiásticas ou
compaixão, gratuidade, generosidade e solidariedade. religiosas; cooperar em ações que combatam as tendências
Estes, sim, garantem a transformação e a sobrevivência explícitas na liberalidade para o consumo de qualquer coisa.
da humanidade e do planeta.” “Essa é a meta a ser perseguida. Custe o que custar!”
Segundo ele, o problema está na sociedade do consumo Autor do livro Jaime Wright: o pastor dos torturados (Editora
irresponsável. “Vivemos em uma sociedade sitiada pelo Metanoia, 2012), Dasilio usa como exemplo a trajetória
dinheiro e entregue ao materialismo hedonista. O show daquele que foi um dos principais representantes da Igreja
religioso proclama: ‘Cristo é 10, o DVD é 30’. E, por trás da Presbiteriana Unida do Brasil. Pastor da IPU desde 1986,
religião de mercado, um forte incentivo à competição e ao Wright era chamado de “meu bispo para assuntos ecumênicos”
sucesso: ‘A palavra de vitória foi liberada a nós’, cantam no por dom Paulo Evaristo Arns, com quem trabalhou em
religious show business, na missa ou nos cultos evangélicos.” projetos como Brasil: nunca mais (Editora Vozes), livro que
Nesse contexto, a característica fundamental, em termos denunciou a tortura imposta a milhares de brasileiros
de “valores” morais e religiosos, é que os “valores” são contrários ao regime militar. “Jaime amava a comunhão das
materializados em bens de consumo desnecessários e religiões, quando elas se empenhavam na libertação e na
continuamente substituíveis, como um smartphone de defesa dos direitos fundamentais do homem e da mulher.”

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 69


entrevista | Jorge Miguel Samek

Jorge Miguel Samek


Cargo: diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional.
Formação: engenheiro agrônomo pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR), em 1978.
Currículo: iniciou sua carreira no Instituto de Terras,
Cartografia e Florestas do Estado do Paraná (ITCF),
em 1978, quando exerceu a chefia do Escritório
Regional de União da Vitória e a chefia do Escritório
Regional de Morretes. Em 1983, foi chefe de gabinete
da Secretaria Estadual de Agricultura do Paraná.
Três anos depois, assumiu o cargo de secretário
municipal de Abastecimento e presidente da Centrais
de Abastecimento do Paraná (Ceasa/PR). Em 1988,
elegeu-se vereador de Curitiba pelo PMDB. De 1992 a
1998, reelegeu-se por três vezes vereador de Curitiba
pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2002, foi
eleito deputado federal do Estado do Paraná pelo
PT. No ano seguinte, renunciou ao mandato para
assumir a direção geral da Itaipu Binacional

70 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


“Nossa missão vai muito
além da geração de energia”

P
restes a completar 40 anos, a Itaipu Binacional carrega em seu DNA os
valores de duas nações, que juntas administram a maior usina geradora
de energia limpa e renovável do planeta. Produzindo quase 100 milhões
de MWh por ano, o empreendimento, que começou a ser construído em
1974, faz muito mais do que transformar as águas do rio Paraná em energia elétrica.
Ciente do impacto que suas operações causam nas regiões onde atua, a Itaipu inves-
te em uma série de programas, projetos e ações de responsabilidade socioambien-
tal. “Como ocorre com todo termo que passa a ser usado sem parcimônia, sustenta-
bilidade virou uma palavra oca, servida ao gosto do freguês. Na Itaipu, temos busca-
do ressignificar essa palavra por meio de práticas diárias baseadas em princípios e
valores”, comenta Jorge Miguel Samek, diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional.
Ele, que tem planos de transformar a usina na geradora de energia limpa e
renovável com melhor desempenho operativo e as melhores práticas de susten-
tabilidade do mundo, afirma que o caminho para a obtenção dessa meta passa,
obrigatoriamente, por uma política de sustentabilidade bem estruturada. No
caso da Itaipu, está apoiada em quatro eixos: a busca da excelência operativa; a
produção de energia renovável e limpa; o desenvolvimento da comunidade; e a
prática da sustentabilidade, como princípio e valor, de dentro para fora. “O que
preconizamos, em última instância, é uma mudança de mentalidade, que se re-
flita tanto na atuação dentro da empresa quanto na comunidade, como cidadãos
ativos e engajados”, assegura o engenheiro agrônomo que desde 2003 está à frente
das operações brasileiras de Itaipu. Nesta entrevista, Samek fala sobre projetos
socioambientais, veículos elétricos, investimento em novas fontes renováveis de
energia e o papel das empresas na formação de valores de uma sociedade.

Por Francisco Gracioso


Foto: Divulgação

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 71


entrevista | Jorge Miguel Samek

Francisco Gracioso — Qual é o papel sustentabilidade. De que maneira os Gracioso — Na prática, o que está sen-
de grandes empresas, como a Itaipu, na inúmeros investimentos feitos em pro- do feito para a obtenção dessa meta?
propagação de valores éticos, morais e gramas socioambientais contribuem
sociais de uma nação? para a construção de um mundo me- Samek — Introduzimos indicadores
lhor e para a formação de uma consci- claros de sustentabilidade em todas
Samek — No mundo atual, toda e ência de responsabilidade coletiva para as etapas do processo de gestão.
qualquer empresa pública ou privada o futuro? Pelo décimo primeiro ano consecu-
precisa estar atenta aos valores e exi- tivo, estamos produzindo o nosso
gências da sociedade, em constante Samek — Nos últimos dois anos, Itai- Relatório de Sustentabilidade, rela-
evolução. É uma questão de sobrevi- pu ratificou e ampliou a sua liderança tivo ao exercício de 2013, seguindo
vência. Quando uma empresa deixa mundial de geração de energia, baten- as diretrizes da Global Reporting
de refletir os valores e as preferên- do o seu próprio recorde de produção. Initiative (GRI). Esse relatório é
cias da sociedade, perde a sua função Em 2012, havíamos superado o nosso produzido com a participação direta
primordial e entra em franco declí- recorde de 2008, com uma produção de empregados de todas as áreas e
nio. A fuga da clientela é só uma con- total de energia de 98.287.128 de envolve representantes das comu-
sequência dessa perda de identidade. megawatts-hora (MWh). No ano pas- nidades e municípios localizados na
Para uma empresa pública de grande sado, estabelecemos um novo recor- área de influência de Itaipu. Avalia-
porte, como a Itaipu, as responsa- de, com uma produção acumulada de mos, portanto, com critério e rigor
bilidades são ainda maiores. Nosso 98.630.035 MWh, o que nos aproxima técnico, nossas ações e práticas
papel é gerar energia elétrica de qua- ainda mais de atingirmos a marca corporativas, com especial atenção
lidade, com responsabilidade social impressionante de 100 milhões de para os projetos de responsabili-
e ambiental, contribuindo, assim, MWh. Do ponto de vista da eficiência dade socioambiental. Ao longo da
para o desenvolvimento sustentável em geração de energia limpa e reno- última década, também elaboramos
do Brasil e do Paraguai. Como empre- vável, Itaipu é um caso de sucesso o Sistema de Gestão da Sustentabili-
endimento binacional, Itaipu traz no sem paralelo no mundo, motivo de dade (SGS) e a Política de Sustenta-
seu DNA o compromisso com a inte- orgulho para brasileiros e paraguaios. bilidade. Nosso compromisso com
gração. Hoje, as sociedades brasileira Temos bons motivos para comemorar a construção de um mundo melhor
e paraguaia compartilham alguns neste ano os 40 anos de criação de e com a formação de uma nova
valores básicos, como o apreço à de- Itaipu e 30 anos do início de operação consciência coletiva, sensível aos
mocracia e à ética da transparência, da usina. A visão definida no nosso desafios de preservar o planeta, está
da inclusão social e do respeito às planejamento estratégico estabelece refletido nas práticas corporativas
diferenças. A Itaipu tem atuado em que, até 2020, a Itaipu Binacional se e individuais. Esse engajamento
consonância com esses valores. consolidará como a geradora de ener- legitima os investimentos que rea-
gia limpa e renovável com melhor lizamos em programas, projetos e
Gracioso — Maior geradora de energia desempenho operativo e as melhores ações de responsabilidade socioam-
limpa e renovável do planeta, a Itaipu práticas de sustentabilidade do mun- biental.
figura entre as companhias brasileiras do, impulsionando o desenvolvimen-
que mais investem em programas de to sustentável e a integração regional. Gracioso — No ano passado, a Itaipu
conquistou o prêmio Pintou Limpeza,
do grupo Estado, na categoria empresa
Com a disseminação da tecnologia do biogás cidadã, por conta de suas ações susten-
táveis. Na sua visão, o que é uma empre-
e o desenvolvimento de utilitários elétricos, sa cidadã? Que valores éticos, morais e
as propriedades rurais poderão conquistar sociais a companhia visa transmitir por
autossuficiência energética meio dessas iniciativas?

72 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


latinstock
Samek — Empresa cidadã é aquela A mobilidade passa necessariamente pelo uso
que exerce a sua função econômica
crescente de fontes renováveis de energia. A Itaipu
e desempenha a sua missão institu-
cional com responsabilidade social e coopera no desenvolvimento do veículo elétrico, de
ambiental. É aquela que trabalha em olho nos benefícios que ele traz para a sociedade
prol do bem comum, dos interesses
da coletividade, que se preocupa com
os impactos das suas operações e 365 dias por ano, com a grande van- uma espécie de almoxarifado no
atividades nas comunidades direta- tagem de que a mesma quantidade de qual estocamos a nossa matéria-pri-
mente afetadas e no meio ambiente, água que entra nos dutos forçados re- ma. De 1991 a 2013, cerca de US$ 4,6
adotando medidas mitigadoras, cor- torna ao leito do rio Paraná abaixo da bilhões foram destinados pela Itaipu
retivas e compensatórias. A Itaipu, casa de força. Os municípios que ti- para o pagamento de royalties no
por exemplo, tem um reservatório veram parte do seu território coberto Brasil. Igual valor foi distribuído no
que ocupa uma área de 1.350 quilô- pelo espelho d’água do reservatório Paraguai para a mesma finalidade.
metros quadrados no seu nível nor- estão sendo compensados por meio Também desenvolvemos o Programa
mal, afetando diretamente 16 muni- do pagamento de royalties. Na práti- Cultivando Água Boa, um conjunto
cípios na margem brasileira. A água ca, essa compensação financeira é de ações socioambientais nos 29 mu-
estocada no nosso reservatório é a devida pela interdição, para outros nicípios da Bacia do Paraná 3 (BP3),
matéria-prima que utilizamos para fins econômicos, da área alagada onde vive uma população de um mi-
produzir energia elétrica durante para a formação do reservatório, lhão de pessoas.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 73


entrevista | Jorge Miguel Samek

Gracioso — Desde 2004, a Itaipu desen- dentro do conceito de Smart Grid. Os governos têm criado incentivos
volve, em parceria com a Fiat, um proje- Temos atuado em conjunto com fiscais para tornar os preços desses
to que transformou um Palio Weekend as empresas parceiras de forma veículos mais competitivos. A Itaipu
em um veículo elétrico. Embora exista coordenada e sinérgica, alinhando deseja que as montadoras fabriquem
demanda, ainda é inviável a comercia- esforços e compartilhando expe- mais carros utilizando tecnologia
lização desse tipo de automóvel, devido riências, com o objetivo de tornar limpa e que as fábricas de baterias e
aos custos elevados de produção. O que a tecnologia acessível e estimular eletroeletrônicos produzam os insu-
a Itaipu tem feito para levar essa experi- novas iniciativas empresariais. Em mos necessários para a montagem
ência ao mercado? poucos anos, com a disseminação de carros não poluentes no Brasil,
da tecnologia do biogás e o desen- seguindo a tendência internacional.
Samek — O projeto de desenvolvi- volvimento de utilitários elétricos,
mento de veículo elétrico de Itai- as propriedades rurais poderão con- Gracioso — Pesquisas indicam que, em-
pu teve início em agosto de 2004, quistar autossuficiência energética, bora valorize iniciativas sustentáveis, o
com a assinatura de um acordo gerando energia elétrica a partir do consumidor brasileiro não está disposto
de cooperação técnica com a em- biogás e substituindo combustíveis a pagar muito mais por um produto
presa de energia suíça, a KWO. A fósseis para abastecer os veículos. ou serviço “verde”, ou ainda amigo do
partir daí, abriu-se a possibilidade meio ambiente. Tomando como base o
de diversas parcerias com empresas Gracioso — No início de 2013, a Itaipu impacto gerado pelo uso dos veículos
de diferentes especialidades que pu- divulgou ter planos de desenvolver a elétricos na Itaipu, como o senhor avalia
dessem agregar valor ao Programa cadeia do carro elétrico no país. Como essa questão?
VE. Entre elas estão empresas do estão as negociações para o desenvolvi-
setor elétrico, institutos de pesqui- mento desse projeto? Samek — Os consumidores estão
sa, fábricas de baterias, componen- cada vez mais conscientes da impor-
tes eletroeletrônicos, motores etc. Samek — A Itaipu é uma empresa tância de fazer escolhas inteligen-
A Fiat foi a primeira montadora a geradora de energia que vem atuando tes, que levem em conta os impactos
integrar-se ao acordo de cooperação como um agente catalisador desse dos produtos e serviços no meio
técnica Itaipu/KWO, desenvolven- movimento para auxiliar o processo ambiente. Assim como já ocorreu
do o primeiro protótipo do Pálio de desenvolvimento da tecnologia com produtos tecnologicamente
elétrico. Hoje, cerca de 5% da frota do veículo elétrico no Brasil e no sofisticados, como o computador e,
de Itaipu é composta por veículos Paraguai. Se observarmos o que está mais recentemente, o telefone ce-
elétricos (carros, um caminhão e acontecendo no mundo, é fácil cons- lular — que foram tornando-se mais
um miniônibus elétrico, um off-road tatar que todas as grandes empresas acessíveis à medida com o aumento
Agrale Marruá elétrico e até um ôni- automotivas já vêm trabalhando da escala e a redução dos custos
bus elétrico híbrido a etanol). Além em projetos de desenvolvimento de de produção —, o veículo elétrico
de protótipos de demonstração, a carros híbridos e elétricos. A com- também irá tornar-se competitivo. O
Itaipu vem desenvolvendo soluções petição é acirrada. Em vários países, veículo elétrico traz como vantagens
de infraestrutura para interação do já existem modelos 100% elétricos a emissão zero de gases que geram
veículo elétrico com a rede elétrica, ou híbridos sendo comercializados. efeito estufa e a economia dos recur-
sos naturais. A mobilidade passa ne-
cessariamente pelo uso crescente de
Para nós, da Itaipu, sustentabilidade não é fontes renováveis de energia. Dessa
forma, a Itaipu incentiva e coopera
uma ferramenta de marketing. É um novo no desenvolvimento do veículo elé-
paradigma ainda em construção, que exige um trico de olho nos imensos benefícios
reaprendizado dos indivíduos e das instituições que ele traz para a sociedade.

74 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Gracioso — Como a questão da susten- Se quisermos crescimento, o consumo agregado,
tabilidade no mundo dos negócios está
tanto residencial quanto industrial, terá de crescer.
inserida nos valores éticos, morais e
sociais do Brasil? O Brasil precisa realizar pesados investimentos em
geração e transmissão – e vem fazendo
Samek — Hoje, o tema da susten-
tabilidade permeia a agenda da
sociedade civil, dos governos, das da empresa quanto na comunidade, Luz para Todos, que acaba de com-
organizações internacionais e do como cidadãos ativos e engajados. pletar dez anos, alcançou resultados
mundo corporativo. Ocupa, por- Para nós, da Itaipu, sustentabi- expressivos, viabilizando mais de
tanto, o centro dos debates sobre lidade não é uma ferramenta de 3,75 milhões de ligações de energia
desenvolvimento, respondendo, marketing. É um novo paradigma elétrica e beneficiando diretamente
em grande medida, às preocupa- ainda em construção, que exige um 15 milhões de brasileiros. Ainda não
ções suscitadas pelos fenômenos reaprendizado dos indivíduos e das alcançamos a universalização do
desafiantes do aquecimento global instituições. acesso, mas estamos bem perto des-
e das mudanças climáticas. A co- sa meta. Para garantir o crescimento
munidade científica internacional Gracioso — Desde 2001, quando tive- sustentável nas próximas décadas,
chegou a um consenso no que tange mos racionamento de energia no Brasil, o Brasil deverá continuar amplian-
ao reconhecimento de que essas o consumo consciente e a redução do do a sua capacidade de geração de
alterações que colocam em risco a desperdício de eletricidade estão na energia elétrica. O Plano Nacional
sustentabilidade da vida em nosso agenda nacional. Reduzir o consumo de Energia 2030 projeta a demanda e
planeta é consequência direta da energético também é prioridade em oferta de energia pelos próximos 25
ação humana. Como frear e reverter inúmeras indústrias. Ao mesmo tempo, anos. Se quisermos crescimento, o
esse processo permanecem uma nosso consumo per capita de energia é consumo agregado, tanto residencial
questão em aberto. O que sabemos baixo pelos padrões internacionais e mi- quanto industrial, terá de crescer.
é que precisamos fazer algo e, não lhões de brasileiros não estão ligados no O Brasil precisa realizar pesados
agir, não é uma opção viável. Como grid nacional, ou até estão, mas muito investimentos em geração e trans-
ocorre com todo termo que passa a precariamente. O desafio do país é au- missão — e vem fazendo. Reduzir o
ser usado sem parcimônia, susten- mentar ou diminuir o consumo? desperdício e promover a eficiência
tabilidade virou uma palavra oca, energética não são medidas antagô-
servida ao gosto do freguês. Na Itai- Samek — A questão energética está nicas. Ao contrário, são essenciais
pu, temos buscado ressignificar essa no centro do debate sobre desen- para garantir a soberania energética
palavra por meio de práticas diárias volvimento sustentável, e o Brasil do país nas próximas décadas.
baseadas em princípios e valores. é um dos protagonistas, o que fi-
Concretamente, a nossa política de cou sobejamente demonstrado na Gracioso — Por ser um empreendimento
sustentabilidade está apoiada em Rio+20. Temos de aprender com os binacional, Itaipu demanda um alinha-
quatro eixos: a busca da excelência erros cometidos pelos países desen- mento entre os governos do Brasil e do
operativa; a produção de energia re- volvidos e não repeti-los. É verdade Paraguai. Há pouco mais de um ano,
novável e limpa; o desenvolvimento que o consumo per capita de energia tivemos um risco de desalinhamento,
de nossa comunidade; e a prática da elétrica no Brasil é baixo, sobretudo quando o então presidente paraguaio,
sustentabilidade, como princípio e quando comparado com os indica- Federico Franco, afirmou que não pre-
valor, de dentro para fora. O que pre- dores dos países desenvolvidos. Mas tendia mais fornecer energia barata ao
conizamos, em última instância, é o consumo residencial vem aumen- Brasil nem à Argentina, de quem o Para-
uma mudança de mentalidade, que tando, refletindo o aumento de renda guai é sócio na usina de Yacyretá. Como
se reflita tanto na atuação dentro das famílias brasileiras. O Programa andam as relações Brasil-Paraguai?

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 75


entrevista | Jorge Miguel Samek

Samek — As relações bilaterais entre com a progressiva redução do volume ção à Criança e ao Adolescente. Nos
Brasil e Paraguai vivem um momento de energia proveniente de Itaipu. últimos dez anos, graças às políticas
favorável. Desde a posse do presiden- Aliás, Itaipu já respondeu por 25% do promovidas pelo governo, a mudan-
te Horacio Cartes, em 15 de agosto mercado brasileiro. Hoje, a sua par- ça foi notável, especialmente em Foz
do ano passado, já foram realizados ticipação é de 17%, percentual que do Iguaçu. Existem problemas? Cer-
pelo menos cinco encontros entre ele deverá continuar caindo em razão tamente que sim. Mas o turismo que
e a presidente Dilma Rousseff. Esse da ampliação do parque gerador na- movimenta a economia da região
entrosamento entre os dois chefes cional e da diminuição do excedente tem contribuído para gerar empre-
de Estado também se reflete na área de energia comprada de Itaipu, que o gos, renda e inclusão social. O trade
diplomática e nas relações empresa- Paraguai não utiliza para o seu pró- turístico de Foz do Iguaçu é um dos
riais entre os dois países. Outro fator prio consumo. parceiros mais ativos no combate à
muito favorável é a fase de prosperi- exploração de crianças e adolescen-
dade vivida pela economia do Para- Gracioso — Itaipu Binacional é parte tes. O que estamos fazendo é reforçar
guai, que registrou em 2013 o terceiro de um esforço para aumentar o turismo as iniciativas que vimos realizando
maior crescimento econômico do na região de Foz do Iguaçu. Um esforço desde 2003. Uma ação coordenada
mundo, com uma taxa de aumento bem-sucedido, por sinal. O efeito cola- dos governos e organizações sociais
de 14,1%, de acordo com o Banco teral disso é o turismo sexual e a pros- dos três países tornará mais eficaz o
Mundial. É sabido que a demanda por tituição infantil. Os países da Tríplice esforço para erradicação da explora-
energia acompanha de perto o cres- Fronteira acabam de anunciar que vão ção de crianças e adolescentes.
cimento da economia. A economia trabalhar juntos no combate a esse tipo
brasileira, por exemplo, cresceu 2,2% de exploração. Esta é uma questão de Gracioso — No futuro, como deverá ser
em 2013, mas o consumo de energia sustentabilidade para o setor de turis- a matriz brasileira de produção de ener-
aumentou 3,5% e foi puxado pelo con- mo. Como enfrentá-la? gia elétrica?
sumo residencial, o que reflete o uso
de mais eletrodomésticos pelas fa- Samek — Estudos mostram que di- Samek — Nos anos 1980, foi orques-
mílias que tiveram aumento de renda minuiu drasticamente, nos últimos trada uma campanha internacional
nos últimos anos. Se o Paraguai man- dez anos, o número de crianças e contra grandes projetos de hidre-
tiver essa trajetória de crescimento adolescentes em situação de risco létricas em países em desenvolvi-
acelerado, logo vai utilizar para o seu social. Hoje, a sociedade brasileira mento. Grupos poderosos e bem
próprio consumo uma parcela cres- está mais consciente e atenta para financiados se mobilizaram para de-
cente de 50% da energia produzida combater o problema. Em Foz do negrir a opção brasileira pela hidre-
por Itaipu a que tem direito. É natural, Iguaçu, um dos principais destinos letricidade, sob o falso argumento de
portanto, que as lideranças do país turísticos do país, a situação social que seria social e ambientalmente
expressem o desejo de aproveitar essa era muito preocupante no início de insustentável. Com um discurso
abundância de energia para acelerar 2003, quando fui convidado para pseudamente comprometido com a
o seu desenvolvimento. O Brasil deve assumir Itaipu. Na ocasião, uma das defesa do meio ambiente, conquis-
estar preparado para suprir o seu pró- primeiras iniciativas que tomei foi a taram importantes aliados locais em
prio aumento de demanda, contando implantação do Programa de Prote- movimentos sociais e ambientais
que defendiam interesses legítimos
de populações atingidas pela im-
Reduzir o desperdício e promover a eficiência plantação de projetos de grande por-
te e reivindicavam uma legislação
energética não são medidas antagônicas. ambiental mais rigorosa. O Brasil
Ao contrário, são essenciais para garantir a pagou um alto preço pela paralisação
soberania energética do país nas próximas décadas dos investimentos na construção de

76 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


divulgação
novas hidrelétricas. A conta chegou O país ficou literalmente às escuras e descobriu que
na forma do apagão de 2001, quando
precisava de energia para voltar a crescer. A falta
o país ficou literalmente às escuras e
descobriu que precisava de energia
de planejamento custou muito caro e teve graves
para voltar a crescer. A falta de pla- consequências. Mas serviu para acordar o Brasil
nejamento custou caro e teve graves
consequências. Mas serviu para
acordar o Brasil, que voltou a investir apoiada na hidreletricidade pelas pujante, tem um enorme potencial a
em grandes projetos, indispensáveis próximas décadas. ser aproveitado, tanto eólico e solar
para assegurar seu crescimento. O quanto da biomassa. Nesse novo
país tem uma grande vantagem com- Gracioso — Quais papéis seriam confia- contexto, Itaipu continuará servindo
parativa, que é a sua matriz energéti- dos às energias hidráulica, térmica, so- como um bom exemplo de projeto de
ca baseada predominantemente em lar, renovável (bagaço de cana) e eólica? grande escala que concilia excelência
fontes renováveis. A Rio+20 marcou E que papel seria desempenhado pela na geração de energia com responsa-
uma inflexão no debate sobre hidre- Itaipu nesse novo contexto? bilidade socioambiental. Ao mesmo
letricidade, reconhecida hoje pelos tempo, continuaremos investindo
organismos internacionais como Samek — Devemos realizar investi- no desenvolvimento de novas fontes
uma fonte limpa e renovável. Por- mentos em novas fontes renováveis. renováveis, especialmente na área do
tanto, a matriz brasileira de energia Um país de clima predominantemen- biogás. Mas esse é um tema apaixo-
elétrica deve continuar fortemente te tropical, com uma agropecuária nante para outra entrevista.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 77


sustentabilidade

”Nós já destruímos quase a metade


das grandes florestas, que são os
pulmões do mundo, e muitas das
mais importantes e extensas áreas
latinstock

verdes do planeta vivenciam um


acelerado ritmo de destruição”

78 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Agenda para um
novo contrato social
O mundo clama por uma nova ética, uma nova atitude perante a vida, para que possamos
de fato assumir a responsabilidade de cuidar de nós mesmos e do planeta Terra

Por Oded Grajew

H
á 250 anos, Jean-Jacques Rousseau escre- centenas de anos. Destruímos centenas de milhares de
veu o Contrato Social, uma proposta de uma espécies de plantas e animais. Cerca de 50 mil espécies
nova ordem fundada em conduta moral desaparecem todos os anos e, em sua maior parte, em
e liberdade civil que estabelecia conven- decorrência de atividades humanas.
ções buscando a concórdia entre as pessoas que vivem Produzimos uma sociedade planetária escandalosa-
em sociedade. Rousseau foi um dos grandes filósofos mente e crescentemente desigual: 1.195 bilionários valem,
do Iluminismo e o Contrato Social foi uma das obras que juntos, 4,4 trilhões de dólares, ou seja, mais ou menos o
marcaram o ideário da Revolução Francesa. Tal aconte- dobro da renda anual dos 50% mais pobres. Em termos de
cimento deu início à Idade Contemporânea ao abolir a renda, o 1% dos mais ricos da humanidade recebe o mesmo
servidão e os direitos feudais e proclamar os princípios que os 57% mais pobres.
universais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, Nossos gastos militares somam US$ 1,464 trilhão por
frase de autoria de Rousseau. ano (e crescem a cada ano), equivalentes a 66% da renda
Hoje, no início do século 21, necessitamos claramente anual dos 50% mais pobres. Apesar disso, a criminalidade,
de um novo Contrato Social. Razões não nos faltam. Nós os conflitos, as guerras e ameaças bélicas não param de
já destruímos quase a metade das grandes florestas, que atingir as populações de todos os continentes.
são os pulmões do mundo, e muitas das mais importan- Há um sentimento quase generalizado na população
tes e extensas áreas verdes do planeta vivenciam um ace- mundial de que os governos estão a serviço de poderosos
lerado ritmo de destruição. Uma área maior que Bangla- interesses econômicos que financiam suas campanhas
desh é destruída por madeireiras todos os anos. Também
emitimos imensas quantidades de dióxido de carbono
e de outros gases causadores de efeito estufa na atmos-
fera, iniciando assim um ciclo de aquecimento global e
instabilidades climáticas. Nós causamos um gigantesco
buraco na camada de ozônio. Por causa disso, os níveis de
UV têm chegado a altos recordes, o que ameaça a vida de
vários organismos. Temos solapado a fertilidade do solo
e sua capacidade de sustentar a vida: 65% da terra culti-
vada foram perdidos e 15% das terras do planeta estão em
latinstock

processo de desertificação. Soltamos dezenas de milhares


de novos produtos químicos no ar, na terra e na água do
planeta, muitos dos quais são tóxicos, por muitos anos,
envenenando lentamente os processos de vida. Produ- ”Emitimos imensas quantidades de dióxido
de carbono e de outros gases causadores de efeito
zimos grandes quantidades de dejetos nucleares, que estufa na atmosfera, iniciando assim um ciclo de
continuarão a ser perigosamente radioativos por muitas aquecimento global e instabilidades climáticas”

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 79


sustentabilidade

eleitorais (os 1%), não representam mais os interesses


coletivos e da maioria das pessoas (os 99%), e aplicam ”Produzimos uma sociedade planetária
políticas que aceleram a desigualdade e a destruição do escandalosamente e crescentemente desigual:
planeta, além de alimentarem os conflitos. em termos de renda, o 1% dos mais ricos da
humanidade recebe o mesmo que os 57% mais pobres”
Os organismos internacionais são vistos e sentidos
pela sociedade como organizações pouco democráticas
que estão a serviço dos interesses de poucas e podero-
sas nações e da manutenção e aprofundamento do atual
modelo danoso de desenvolvimento.
Pela primeira vez na história da humanidade, existe
uma ameaça concreta à continuidade de nossa espécie.
Essa ameaça só pode ser contornada pelo entendimento
da gravidade da situação e pela convergência em torno
de novos princípios, valores e prioridades que possam
conseguir a aglutinação de forças políticas e sociais sufi-
cientemente amplas e fortes, capazes de evitar a degra-
dação do planeta e da vida humana. Essa aglutinação
deveria se formar em torno de um pacto, um novo Con-

latinstock
trato Social para estabelecer novos compromissos éti-
cos entre os cidadãos do mundo, novas formas de lidar
com conflitos e choques de interesses, uma nova relação
entre governos e sociedade, entre governos nacionais e
um novo pacto “intergeracional”. O primeiro deles é promover e perseguir a constru-
Para se materializar, um novo Contrato Social deve- ção de uma sociedade mais igualitária, definindo fai-
ria comprometer toda a sociedade, pessoas e organiza- xas mínimas de renda e patrimônio (que ofereçam uma
ções públicas e privadas com uma agenda pautada em qualidade de vida digna a todos), e máximas bastante
cinco pontos essenciais. próximas. Para dar uma ideia do potencial de uma dis-
tribuição de riqueza justa, a Organização das Nações
Unidas (ONU) acaba de sugerir a criação de uma taxa
anual de apenas 1% sobre as fortunas individuais de US$
1 bilhão ou mais. Essa pequena taxa que não mudaria
em nada o nível de vida dos bilionários, representa-
ria uma ajuda importante para os países mais pobres,
estimada entre US$ 40 bilhões e US$ 50 bilhões por
ano! Ao terminar seu livro, Rousseau faz a seguinte
observação: “O pacto fundamental, em vez de destruir
a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma
igualdade moral e legítima a desigualdade física que a
natureza pode pôr entre os homens, fazendo com que
estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em
latinstock

talento, se tornem iguais por convenção e por direito”.


Aliás, foi o compromisso com uma maior igualdade
”Destruímos centenas de milhares de espécies entre os cidadãos que levou os países escandinavos da
de plantas e animais. Cerca de 50 mil espécies condição de nações mais miseráveis da Europa para os
desaparecem todos os anos e, em sua maior parte, primeiros lugares em qualquer classificação mundial
em decorrência de atividades humanas”
sobre qualidade de vida.

80 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


”Nossos gastos militares somam

latinstock
US$ 1,464 trilhão por ano (e crescem
a cada ano), equivalentes a 66% da
renda anual dos 50% mais pobres”

Outra ação crucial é abolir todos os armamentos e Para aqueles que possam considerar essas propostas
gastos militares, colocar todos esses recursos a serviço utópicas e irrealistas, que talvez não tenham a dimensão
da promoção da justiça social e acordar que nenhuma da necessidade e urgência de mudança de rumo, de um
disputa entre pessoas, organizações e governos seja novo Contrato Social, vale a pena reler o comunicado que
decidida pela violência e que nenhuma autoridade seja um grupo de 1,6 mil cientistas, incluindo mais de cem
exercida pela força. ganhadores do Prêmio Nobel, emitiram em 1992, o War-
O terceiro item da agenda desse novo Contrato Social ning to Humanity (de lá para cá, os indicadores ambien-
deve eliminar qualquer interferência do poder econô- tais e da desigualdade só pioraram):
mico nos processos eleitorais. A partir disso, todos os “Não mais de uma ou poucas décadas nos restam antes
candidatos passam a ter à disposição os mesmos recur- que a oportunidade para prevenir os perigos que agora
sos financeiros para fazer suas campanhas. nos ameaçam seja perdida, e com isso perspectivas para
Mais um ponto importante desse acordo a ser firmado: a humanidade serão terrivelmente diminuídas [...]. Uma
toda geração precisa se comprometer a deixar para a pró- nova ética se faz necessária — uma nova atitude para cum-
xima um planeta com maior cobertura florestal, com mais prir nossa responsabilidade de cuidar de nós mesmos e
recursos naturais, com menores emissões de gases causa- da Terra. Esta ética deve motivar um grande movimento
dores de efeito estufa, com um buraco menor na camada e convencer líderes, governos e pessoas relutantes em
de ozônio, com uma maior superfície de terra cultivável, efetuar mudanças”.
com uma menor quantidade de emissão de produtos quí-
micos que envenenam o ar, a terra e a água do planeta,
com a eliminação de dejetos nucleares e com o aumento Oded Grajew
Empresário, coordenador geral da secretaria executiva da
da quantidade de espécies de plantas e animais. Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos.
Por último, todos os organismos internacionais devem É idealizador do Fórum Social Mundial e da Fundação Abrinq.
objetivar como sua única missão perseguir o cumpri- Também integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social (CDES)
mento de todos os compromissos acima citados.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 81


Ambiente corporativo

O que está acontecendo com


os nossos jovens profissionais?
Enquanto a sociedade vive uma crise de valores, as empresas lutam para minimizar
os frequentes conflitos com os jovens talentos da geração Y, que nasceram e foram
educados nesse contexto. Confira quais os impactos dos três “Is” da nova geração
de profissionais no mundo corporativo
Por Alexandre Prates

82 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


A
o preencher o recibo de pagamento de uma demonstram claramente — muito claramente mesmo —
corrida, o taxista me pergunta: “O senhor que estamos vivendo uma séria crise de valores. Mas é
quer que eu faça o recibo com esse valor preciso esclarecer um ponto importante: a crise não se
mesmo?”. Uma mulher corta a fila para dá pelo fato de não conhecermos os valores que regem
embarcar no voo e finge estar atenta ao celular, pois uma sociedade, uma família, uma empresa, e sim pela
ela mesma não consegue encarar a vergonha do seu nossa incapacidade de viver esses valores em nossas
ato. Em um restaurante, desses com mesas bem dispu- vidas. Nos exemplos citados acima, posso afirmar que
tadas, um rapaz aguarda um casal pagar a conta para todas as pessoas, sem exceção, sabiam o que era certo
sentar-se à mesa. Durante um instante de distração, fazer. Mas cortar a fila é mais fácil; roubar a empresa
duas garotas tomam a frente e sentam-se, disfarçam (sim, isso é roubo!), solicitando um valor a mais no
como se não soubessem o que tinha acontecido. Ao recibo do táxi, é mais rentável; ignorar a existência
observarem que o rapaz se afastou, elas riem da situa- de alguém para sentar-se mais rápido à mesa é mais
ção, pois foram mais “espertas”. cômodo. Fazer o que é certo dá trabalho.
Eu poderia citar vários outros exemplos que se apre- Você pode pensar que esses são exemplos banais e que
sentam todos os dias diante dos nossos olhos, que não interferem em nada na sociedade, mas permita-me
explicar. Quando alguém corta a fila na sua frente, você
fica enfurecido e, se pudesse, brigaria, xingaria e faria a
pessoa repensar o que fez. Logo, o sentimento das pes-
soas quando fazemos isso é o mesmo e, pouco a pouco,
quando esses pequenos exemplos acontecem, vamos
desacreditando do potencial do ser humano. Como se
já não bastassem as notícias de corrupção, violência
e pobreza que nos afetam diariamente, ainda somos
“presenteados” com comportamentos de completo
descaso com o ser humano, todos os dias, em qual-
quer ambiente.
Em face disso, algo fica muito claro: estamos vivendo
uma crise de importância aos valores que regem uma
sociedade. Não precisamos mudar os valores, apenas
vivê-los de fato, em nosso cotidiano, seja nas organi-
zações, nas famílias, nas escolas, no lazer, enfim, em
todos os contextos que nos cercam.

A geração perdida
Enquanto você lê este artigo, certamente se questiona:
“como mudar isso?”. Eis a pergunta mais relevante de
todas. Os valores são fruto das nossas crenças — aque-
les ensinamentos e experiências que tivemos desde a
nossa infância e que são responsáveis pela formação
do nosso caráter e, como consequência, das nossas
intenções e comportamentos. As nossas crenças nos
acompanham por toda a vida e determinam como pen-
shutterstock

samos, sentimos, agimos, enfim, quem somos. Mudar


uma crença é a mais desafiadora tarefa do desenvolvi-
mento humano, pois requer uma forte consciência dos

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 83


Ambiente corporativo

seus atos e consequências, além de um grande desejo e no mundo corporativo e que estão ocasionando sérios
muita determinação para transformar uma realidade. conflitos na relação profissional-empresa. Denominei
E quanto mais o tempo passa, maior se torna o desa- tal situação como os “3 ‘Is’ da nova geração”. É impor-
fio, pois a dificuldade aumenta, ao passo que as cren- tante enfatizar que não estou rotulando, apenas exter-
ças são mais internalizadas com as experiências, notí- nando a angústia de muitos líderes que se veem perdi-
cias e sensação de que o mundo é assim e precisamos dos diante da inconstância de diversos jovens talentos.
fazer parte do jogo. Sem mais delongas, vamos a eles:
Por mais doloroso que possa ser, serei direto, sem
romantismo: a geração atual jamais viverá os valores Impaciência — “Ou me satisfaz imediatamente, ou
que acreditamos vitais para uma sociedade mais justa não quero!” Essa é a sensação transmitida por muitos
e digna. Estou me referindo àqueles que já estão con- jovens dessa geração. “Ou a empresa me oferece opor-
taminados e que insistem em abdicar do que é certo tunidade de crescimento rapidamente, ou estou fora,
em prol do que é mais fácil e vantajoso para si. Para procuro outra.” Esse pensamento de curto prazo pode
essas pessoas, existem as leis, as normas, as regras, prejudicar (e muito) a carreira dos jovens profissionais.
que são impostas para substituir a falta de bom-senso Nesse caso, é preciso distinguir muito bem pressa de
e respeito aos valores. Além disso, existe a maior de ambição. Ter ambição é saudável, mas a pressa para
todas as armas: o contraponto comportamental — ou conquistar aquilo que se deseja, sem pensar nas con-
seja, a indignação daqueles que insistem em fazer o sequências a longo prazo, é perigoso.
certo, que dizem “NÃO” ao jeitinho, que reprimem a
injustiça, que praticam a gentileza, que, por incrível Inconsistência — Este, infelizmente, é outro com-
que pareça, respeitam o próximo. E a boa notícia é que portamento presente em muitos jovens dessa geração.
existem muitas pessoas com valores firmes e capazes Apesar da enxurrada de informações a que somos sub-
de lutar por essa conscientização. E isso já tem acon- metidos diariamente, a incapacidade crítica de alguns
tecido com uma certa frequência. As pessoas já têm jovens é assustadora. As redes sociais, que podem ser
se indignado e externado isso com mais afinco, pois uma rica fonte de informação e troca de visões sobre
estão mais conectadas e encontram alternativas para diversos temas, têm sido, a meu ver, pouco exploradas.
serem ouvidas. Basta analisarmos quem são as pessoas mais seguidas
no Twitter ou ainda perguntar a um jovem quais veícu-
A geração influenciada los de comunicação ele acessa com frequência. E não
É fato que essa crise de importância aos valores trouxe precisa ir muito longe para identificar esse comporta-
graves consequências, que prefiro não enumerar aqui, mento: ao final de uma palestra, por melhor que ela seja,
pois quero trazer a discussão para o mundo corporativo, abra para perguntas e calcule o percentual das pessoas
foco deste artigo, e salientar um problema vivenciado que se manifestam. Não chegaremos a 5%! Talvez esse
por muitos líderes: a influência dessa crise na nova gera- seja o comportamento mais preocupante dessa nova
ção de profissionais. Muitos deles, rotulados pelo mer- geração, pois a cada dia os atos de julgar, criticar, inovar
cado de geração Y, nasceram e foram educados nesse e decidir estão nas mãos de poucas pessoas. E quando
contexto. Com isso, apresentam algumas caracterís- ouço um empresário dizer que o que mais lhe preocupa
ticas que frequentemente valido em minhas atuações para o futuro da sua empresa é a falta de profissionais

Estamos vivendo uma crise. Não precisamos mudar os valores,


apenas vivê-los de fato, em nosso cotidiano, seja nas
organizações, nas famílias, nas escolas, no lazer, enfim,
em todos os contextos que nos cercam

84 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Jovem atravessa túnel multimídia na sede
da Zynga, a gigante americana do mundo dos
games, que conhece como poucos os impactos
gerados pelos ”três ‘Is’ da nova geração”:

latinstock
impaciência, inconsistência e iniciativa

qualificados, constato que a maior desqualificação de simples pergunta: “Por quê?”. Uma pergunta simples,
todas é a incapacidade crítica, a visão curta. mas que abre inúmeras oportunidades para a evolu-
ção profissional.
Iniciativa — Nem todo comportamento da nova
geração de profissionais é negativo, pelo contrário. Transformando empresas
Eu ouço constantemente elogios e vejo comporta- A melhor de todas as notícias ainda está por vir: temos
mentos dignos de reconhecimento. Infelizmente, a uma geração ainda em formação, com a mente aberta
iniciativa está presente na minoria, mas quando este para receber os ensinamentos necessários e seguir o
comportamento se apresenta, é bonito de ver. Chega caminho certo. O que estou querendo dizer é que jamais
a emocionar ver os jovens organizando grandes even- mudaremos aqueles que não desejam participar dessa
tos nos centros acadêmicos, enquanto outros não se transformação, mas que muitos jovens estão dispostos
dão nem ao trabalho de assistir às palestras. É incrí- a isso. Portanto, qual é a solução?
vel vê-los permanecer após o evento para conversar Precisamos investir na educação das pessoas. Isso
com o palestrante, pedir dicas, tirar dúvidas, solicitar mesmo, na educação! Nós, líderes, precisamos compre-
contato para conversar posteriormente, enfim, pen- ender que estamos diante de um deficit educacional no
sando no futuro. E certamente esse comportamento Brasil. As escolas nunca foram tão precárias, logo, os
será revertido para as suas carreiras: se empenharão, jovens saem do ensino básico sem aprender o básico.
aprenderão e, como consequência, crescerão pes- As universidades formam técnicos sem qualquer noção
soal e profissionalmente. E o que mais me admira de mercado e visão de carreira. Os pais, cada vez mais
nesse comportamento é a capacidade de fazer uma ausentes, terceirizaram a educação de seus filhos e,

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 85


Ambiente corporativo

Ao final de uma palestra, por melhor que ela seja, abra para
perguntas e calcule o percentual das pessoas que se manifestam.
Não chegaremos a 5%! Talvez este seja o comportamento
mais preocupante dessa nova geração

consequentemente, os jovens chegam ao mercado de é uma atribuição que você não pode deixar de exercer
trabalho cada vez menos preparados cientificamente, com afinco.
profissionalmente e, principalmente, moralmente. O tempo que você dedicar ensinando as pessoas
Então, compreenda que o líder que não dedicar tempo sobre carreira, mercado, estratégia e resolução de pro-
e energia à educação dos jovens profissionais conti- blemas retornará a você como resultado. A energia que
nuará reclamando e colhendo os frutos de uma gestão
que não acompanha as mudanças. Permitir-me-ei não Escritório do Google, na Califórnia (EUA), é exemplo
entrar na discussão se educar é papel ou não do líder, de como é possível criar um ambiente de
mas não posso me furtar em dizer que, independente- aprendizado constante, que permita às pessoas
pensarem ”fora da caixa”
mente de se você concorda ou não, educar as pessoas

latinstock

86 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


latinstock
Funcionário na sede do Facebook, na Califórnia (EUA). projeto, a uma empresa e quão gratificante é lutar por
Inaugurada em janeiro de 2012, a área oferece inúmeros alguma coisa na qual se acredita.
benefícios e espaços de trabalho descontraídos para atrair
as mentes mais brilhantes e criativas do mundo Além disso, é preciso que cada um — profissional e
empresa — faça a sua parte. Todos têm uma enorme res-
dispensar incluindo as pessoas nas decisões será recom- ponsabilidade e uma grande oportunidade para trans-
pensada com o engajamento. O seu desprendimento formar o cenário atual. No entanto, é preciso também
em dar feedback, elogiar, reconhecer e conversar será dar um choque de gestão nas organizações e preparar
valorizado com a evolução do seu time. Agora, se você a liderança para os novos tempos.
me perguntar qual é o maior de todos os ensinamen- Deixe claras as oportunidades profissionais que a
tos que você pode trazer para as pessoas, eu digo que o sua empresa oferece e apresente os caminhos para se
primordial são os valores. Quanto mais firmes estive- chegar lá: o desenvolvimento pessoal e profissional
rem os valores de uma pessoa, mais claro estarão para necessário, a formação requisitada, as atitudes e os
ela os motivos pelos quais vale a pena se entregar a um resultados valorizados pela corporação. E seja muito

Quanto mais firmes estiverem os valores de uma pessoa,


mais claro estarão para ela os motivos pelos quais vale a pena
se entregar a um projeto, a uma empresa, e quão gratificante
é lutar por alguma coisa na qual se acredita

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 87


Ambiente corporativo

shut terstock
transparente. Muitas vezes, a sua empresa não ofe- a tão sonhada transformação na sociedade. Os pais,
rece grandes chances de crescimento na hierarquia, as escolas, as universidades, as empresas, os meios
mas pode proporcionar ao profissional uma grande de comunicação, todos têm um papel fundamental na
bagagem de experiência. O que falta, na maioria das construção desse novo cenário. Aos que acreditam
organizações, é uma comunicação transparente e, em nessa transformação cabe a dedicação na educação
muitos casos, simplesmente comunicação. das pessoas, na transmissão e no fortalecimento dos
Crie um ambiente de aprendizado constante, que valores que impulsionam a nossa sociedade. Aos que
permita às pessoas pensarem “fora da caixa”. Não não acreditam, ao menos não atrapalhem subvertendo
discuta apenas os processos, ajude os profissionais a os valores por meio de comportamentos que denigrem
evoluírem e pensarem em mercado, clientes, estraté- o ser humano e exemplifiquem a sua falta de moral.
gias, enfim, é preciso provocá-los para que ampliem Permitam que os jovens enxerguem a possibilidade
a sua visão e enxerguem o mercado, tornando-os de uma vida mais digna, justa e com um propósito
assim mais estratégicos e visionários. muito claro: conquistar o sucesso contribuindo para
Valorize a iniciativa, permita e reconheça a participa- um país verdadeiramente desenvolvido.
ção e, mais do que isso, permita o erro. Um ambiente de
forte repreensão nunca deixará florescer a inovação e a
atitude de ir além. Se quer ter iniciativa sem erros, basta Alexandre Prates
Master Coach, palestrante, sócio-fundador do Instituto de
investir na formação das pessoas. Não tem segredo! Coaching Aplicado (ICA), sócio do Grupo Alquimia e autor do livro
Por fim, precisamos de líderes com valores fortes e A reinvenção do profissional – tendências comportamentais do
com um grande desejo de liderar, de fato, para que haja profissional do futuro (Editora Novo Século, 2012)

88 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Transforme seu conhecimenTo.
Transforme sua carreira.
Transforme o mundo.
faça Pós-Graduação na ESPM.

InScrIçõES abErtaS.
w w w. e s p m . b r / p o s
Posicionamento

A cultura do bem estar bem


As pessoas querem trabalhar em uma empresa na qual elas acreditam, querem estar em
sinergia com as crenças da organização. Fazer parte de uma organização que cultiva a
cultura do Bem estar Bem só me leva a crer que eu também quero isso para mim

Por Newton Branda

R
ecentemente, a Natura oficializou a aquisi- distribuía rosas brancas, junto com um cartão que dizia
ção da empresa australiana Aesop. Foi a pri- que ele estaria pensando em seus clientes.
meira vez que a empresa realizou esse tipo Essa cultura empresarial baseada na qualidade das
de movimentação e o negócio só se concre- relações que a gente reconhece está presente por todas
tizou porque havia uma crença de que o acordo era uma as partes. Estava presente na década de 1960 e vem evo-
boa decisão a ser tomada. Acontece na nossa vida pessoal luindo para o que existe hoje.
e também ocorre nas organizações. Assim como os nossos valores pessoais vão evoluindo
A compra dessa empresa foi profundamente estudada com o tempo, o mesmo acontece com as organizações. É
e analisada, principalmente no que se refere à identifica- muito importante reforçar que, se os valores da empresa
ção da proximidade de valores. Não faria sentido para a em que você trabalha não estão de acordo com os seus
Natura adquirir uma empresa que não estivesse de acordo valores pessoais — sim, aqueles que herdamos da nossa
com os seus próprios valores. E será em torno desses
valores comuns que a nossa cultura também irá evoluir.
Entendemos a cultura como algo vivo, dinâmico, que se
transforma. O desafio está em transformar e manter coe-
rência com os valores essenciais. É nesse momento que
entram a integridade, a credibilidade, o exemplo. Em 2013,
com orgulho e humildade, recebemos o reconhecimento
como A Empresa mais Admirada no Brasil. Ser uma empresa
exemplar não é algo que se constrói de uma hora para outra.
Estamos falando sobre a contínua construção de um papel
na sociedade coerente com os valores do Bem estar Bem.
Ao longo de mais de 40 anos, a Natura vem construindo
esses valores calcados na cultura do Bem estar Bem, que
significa estabelecer uma relação harmoniosa consigo
mesmo, com seu corpo e com o mundo ao redor. Isso signi-
fica interagir com as pessoas e valorizar as relações. “Nós
pensamos em você. Pense em nós” — Luiz Seabra, sócio e
fundador da Natura, já havia pensado nisso em 1969, quando
a empresa foi criada.
Não era uma simples loja na rua Oscar Freire. Era uma
divulgação

loja na qual o dono estava do lado de fora, interagindo com


as pessoas, convidando-as para entrar. A abordagem?
Ia além de ficar na porta com um sorriso no rosto. “Seu Campanha da Natura mostra o poder dos relacionamentos
Luiz”, como é carinhosamente conhecido na companhia, para a prática do conceito Bem estar Bem

90 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


É importante sempre ter em mente
a Nossa Essência, é ela que nos guia.
As expressões variam, os valores
evoluem, mas a essência é a mesma

vive em outra tribo e que passa a fazer parte daquela nova


cultura traz a novidade e a riqueza do diverso, do externo.
Sempre existe algo a complementar e colaborar no que diz
respeito ao modo como levamos nossas vidas, como rea-
lizamos nossas atividades. E é na relação com o outro que
encontramos a fonte que nos ajudará a crescer e a evoluir.
É importante sempre ter em mente a Nossa Essência, é
ela que nos guia. As expressões variam, os valores evoluem,
mas a essência é sempre a mesma. A Natura tem isso em
mente. Estamos presentes em diversos países da América
divulgação

Latina e na França. É claro que tudo o que está em nossa


volta nos influencia e muda as nossas ações quando se
trata de determinados conceitos. Mas temos de ter como
Criada nos anos 2000, a linha Natura Ekos vai ao encontro foco o essencial, a origem, o DNA de nossa marca.
da cultura de sustentabilidade da empresa, que passou Ao pensarmos em conceito, um bom exemplo é a cria-
a investir em produtos de origem 100% vegetal
e insumos que fazem parte da cultura brasileira ção da linha Natura Ekos, nos anos 2000. De certa forma, a
criação dessa linha, que vai ao encontro da cultura de sus-
tentabilidade da Natura, influenciou o contexto externo.
família e dos contextos de vida e que vamos lapidando com Também temos essa responsabilidade. Pela primeira vez,
o tempo —, a relação fica muito mais difícil de dar certo. uma empresa brasileira estaria dedicada a criar produtos de
As pessoas querem trabalhar em uma empresa na qual origem 100% vegetal, utilizando insumos que fazem parte
elas acreditam, querem estar em sinergia com as cren- da cultura brasileira, daquilo que é natural, que é nosso.
ças da organização. Fazer parte de uma empresa com a É importante perceber que existe uma relação de mão
cultura do Bem estar Bem só me leva a crer que eu tam- dupla na cultura. Ela se expressa de diferentes maneiras,
bém quero isso para mim. em diferentes contextos. Se ela for sempre embasada nos
“Gostamos do mundo, dos dons da vida, da música, da mesmos valores, os comportamentos serão reconhecidos.
amizade, do elo que nos une...” É mais um dos trechos do Somos dotados do poder de criar, de transformar aquilo
cartão que Luiz Seabra entregava aos seus novos clien- que não existe em realidade. É da nossa natureza. Reali-
tes. E quem é que não gosta? Essa é a força da semente zar é o que nos impulsiona, é o que faz a vida ter sentido.
da cultura que foi plantada lá no início das atividades da Mas só conseguimos tornar real aquilo em que acredita-
Natura. É a origem de toda a cultura que foi sendo vivida mos. É característico da espécie humana.
e disseminada com o passar dos anos. Também convivemos em uma sociedade repleta de ritu-
A nossa cultura é a expressão da Nossa Essência, da nossa ais, comungamos valores, trocamos experiências, com-
razão de ser. Pensar como ela pode ser entendida e inter- partilhamos histórias. Essa é a força motriz da crença.
pretada externamente também é tarefa de quem faz parte É a partir daí que passamos a criar, a fazer a diferença!
dessa cultura. É interessante pensar na metáfora de uma
tribo. Quem faz parte de determinada tribo muitas vezes
não consegue vivenciar o que há fora dela. Um indivíduo que Newton Branda
Gerente de cultura da Natura

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 91


Branding

shutterstock

92 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Bem ou mal,
as marcas educam!
Deseducar é a frequente sina de quem educa sem refletir sobre o que faz. Considerando que
toda marca transmite algum ensinamento, as estratégias de marketing irão precisar ter mais
profundidade e densidade de pensamento para a mensagem fazer sentido aos consumidores

Por Gustavo Pinto

D
efinir o sentido dos termos a serem usados é seu poder de fascínio e resta cada vez menos espaço no
a primeira tarefa a que deve se dedicar quem cotidiano das famílias ao diálogo sobre os valores.
deseja se fazer entender. Em seu título, o É nesse cenário que se insere a comunicação das mar-
artigo afirma que marcas educam, logo é cas. A necessidade comercial que move marcas a comu-
preciso aclarar o significado do verbo “educar”. A palavra nicar é algo óbvio e que todos desde sempre sabem. A evi-
vem do latim educere, ex (fora) e ducere (conduzir, levar). dência simples dessa motivação natural induz à suposição
Em sua origem etimológica, educar então descreve um de que a questão do sentido da comunicação de marcas se
movimento do interior em direção ao exterior, isto é, esgote aí. Uma dimensão implícita e sutil, mas de crucial
expressa o desenvolvimento de aptidões, a capacitação, relevância, tende a ser ignorada.
a tarefa de ajudar alguém a se aprimorar. Educação tam- Toda a comunicação de marcas transmite valores,
bém implica instruir, termo que em sua origem descreve mesmo quando ignora que o faz. Valores transmitidos
um movimento em direção oposta, do exterior ao inte- inconscientemente numa comunicação massiva podem
rior, no prover de conhecimentos. Num e noutro caso, a gerar desastres. Quase quatro décadas se passaram, a
educação envolve sempre o compartilhamento de valo- marca já não existe, mas os brasileiros que assistiram
res que estruturam e dão sentido ao que se desenvolve ao comercial em 1976 ainda hoje recriminam a frase
e ao que se adquire. A educação ajuda a formar um ser que não se quer esquecida: “Gosto de levar vantagem
humano íntegro, capaz de, por toda a vida, tornar ativos em tudo, certo?”.
e eficazes seus potenciais, para assim ser contributivo a Quem transmite valores exerce uma parte vital da
si mesmo, à sociedade e aos seus semelhantes. Os valo- educação. Vejamos mais um exemplo de valores que são
res são as fundações de sentido sobre as quais o prédio transmitidos não intencionalmente, mas que nem por
da educação deve se apoiar. isso têm menos poder de influência: quando alguns pri-
No passado, os valores eram transmitidos primeiro vate labels restringem sua comunicação à informação do
pela família e, em seguida, pela escola. Ambas mudaram preço, comoditizam tudo o que oferecem. A mensagem
muito. A visão humanista do ensino foi atropelada pelo implícita numa comunicação que se restringe apenas a
pragmatismo de resultados, que passou a pressionar as preço é que no interior daquela categoria nada se distin-
escolas para a prioridade da transmissão de conheci- gue de mais nada senão pelo preço. Mais grave ainda, esta
mentos que, ao final do ciclo escolar, capacitem o aluno mensagem no fundo induz à conclusão de que preço é a
ao vestibular, restando cada vez menos espaço para os medida que determina o valor de tudo.
valores. É significativo que tantas escolas hoje apresen- Quem escolhe a estratégia de comunicar somente
tem o sucesso de seus ex-alunos nos vestibulares mais preço deveria antes refletir se essa lhe parece ser a melhor
disputados, como evidência de excelência. Nas famílias maneira de educar as futuras gerações, se é assim que
modernas, todos os membros correm para cumprir agen- queremos que nossos filhos vejam o mundo e façam suas
das sobrecarregadas. Nas horas livres, o on-line exerce escolhas de vida. Deveríamos nos perguntar se dessa

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 93


Branding

propor, nem um pensamento a alumiar a perplexidade


de seu público?
Quando no período da Guerra do Vietnã a Coca-Cola
pôs no ar um comercial em que jovens de diferentes
etnias cantavam juntos pela paz, ela ousou dizer em 30
segundos coast-to-coast o que contrariava o establish-
ment. Os americanos que se identificaram com a men-
sagem, aqueles que discordaram, todos souberam que
essa marca afirmou sua crença numa hora grave da his-
tória. Grandes gestos é que revelam as grandes marcas.
Hoje o consumidor está mais consciente da responsa-

divulgação
bilidade econômica, social e ambiental das empresas, e
cada vez menos propenso a aceitar o silêncio da omissão.
O que as marcas não dizem, estronda eloquente. Quem
Comercial de 1976 do extinto cigarro Vila Rica, que deu
origem à famosa Lei de Gerson, com a frase que não se quer não diz, fala alto no que cala. As redes sociais estão vivas
esquecida: ”Gosto de levar vantagem em tudo, certo?” e atentas. Nelas todos podem cobrar. Um post é o bastante
para estremecer pregões nas bolsas de valores mundo
forma estamos contribuindo para ajudar a formar seres afora. Os consumidores que cresceram on-line vão cada
humanos melhores, uma sociedade melhor, enfim, se é vez mais deletar as marcas avestruz, aquelas que ante
nessa direção que acreditamos estar o futuro que dese- uma “tormenta” se calam como se nada estivesse acon-
jamos para as próximas gerações. tecendo, enquanto gastam milhões de reais em comer-
Essas são questões fundamentais a qualquer plano ciais que algumas vezes se resumem a um exercício de
estratégico de marca que esteja consciente de sua res- autoglorificação. “Ei acorda, você está vivendo onde,
ponsabilidade na transmissão de valores. Marcas obvia- em Marte?”, é o que essa garotada desabrida vai dizer
mente têm de comunicar para defender ou expandir seu ao perceber que uma marca poderosa foge das grandes
market share. Só não deveriam ignorar que, queiram ou questões do nosso tempo. A contagem regressiva já está
não, sempre quando comunicarem farão mais do que em curso. O consumidor está se tornando mais crítico,
apenas perseguir seus intentos comerciais. não vai demorar a cobrar uma comunicação responsá-
Ao longo do século passado, as empresas ganharam vel, consciente, veraz e capaz de manter uma interlocu-
protagonismo cada vez maior, na economia, na política ção corajosa com as questões da atualidade. As marcas
e na questão ambiental. O peso de uma empresa como precisam assumir a responsabilidade de pensar o que é
a Samsung no PIB da Coreia é um exemplo do poder que relevante para o consumidor e saber como responder.
algumas empresas passaram a ter na vida das nações. No Japão, um acidente de carro causado por um moto-
Sendo assim, esperaríamos que as marcas passassem rista alcoolizado vitimou uma família. Uma célebre
a falar desde uma visão análoga à de estadistas. No indústria lançou em seguida uma bebida cujo sabor
entanto, poucas marcas hoje enfrentam, na comunica- era inspirado em cerveja, sem entretanto pretender ser
ção, os grandes dilemas e problemas da atualidade, com uma cerveja sem álcool. A bebida se chamava Mu, que
os quais se debatem seus consumidores. Então, as mar- significa Nada (conceito central na metafísica budista).
cas dessas empresas tão poderosas nada têm a dizer, a A comunicação falava não apenas de “nenhum teor de
álcool”, mas de nenhum descuido com a vida humana
que é sagrada. A bebida foi um sucesso. Os concorren-
Nas horas livres, o on-line exerce tes se esforçaram para entender essa receita de sucesso.
Os japoneses queriam afirmar em gestos o seu repúdio à
seu poder de fascínio e resta cada irresponsabilidade que originara a tragédia, e a indústria
vez menos espaço no cotidiano das soube responder oferecendo a oportunidade. Um fato do
famílias ao diálogo sobre os valores cotidiano inspira uma inovação de produto, num país

94 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


brasileiro está cada dia mais instruído, não apenas por
termos maior percentual da população frequentando
escolas. Hoje, o ensino já não acontece apenas nas salas
de aula. Ocorre a qualquer hora e on-line. Consumidor
mais instruído significa também cidadão mais ques-
tionador e exigente.
Recentemente, Philip Kotler disse que o marketing
precisa recorrer à antropologia, à sociologia, à psicolo-
gia. Isso é importante, mas não suficiente. Para que os
conhecimentos aportados por essas disciplinas possam
se tornar plenamente fecundos ao marketing, é pre-

divulgação
ciso construir uma análise cultural, que supõe criar as
sinapses interpretativas entre as contribuições das três
disciplinas, para então chegar à compreensão do caldo
Comercial da Coca-Cola com jovens de diferentes etnias
cantando pela paz, veiculado durante a guerra do Vietnã, cultural em que se insere o consumidor. Essa síntese
mostrou a crença da marca numa hora grave da história interpretativa é tarefa da ciência do sentido, a filosofia.
Sem um questionamento sério do sentido, que é a essên-
onde o consumidor exige sentido até mesmo da bebida cia do saber e da prática filosófica, o marketing corre o
que se quer escolhida por ele. risco de continuar chafurdando em chavões da moda.
Vivemos um turbulento momento de transição na civiliza- Estratégia de marketing vai requerer cada vez mais pro-
ção, quando os indivíduos são desafiados por mudanças cada fundidade e densidade de pensamento.
vez mais aceleradas que dissolvem até mesmo os modelos Tudo isso porque as marcas educam. E o fazem sem-
de convívio que fundamentaram sociedades por séculos ou pre, independentemente de que o saibam ou queiram.
milênios. A família patriarcal, que perdurou no Brasil desde Deseducar é a frequente sina de quem educa sem refle-
a chegada dos primeiros colonizadores que aqui se radica- tir sobre o que faz.
ram, está desaparecendo no curso apenas de décadas, e nin- Para concluir, é preciso ressaltar que mesmo o que
guém ainda pode saber como será o novo modelo familiar. possa aqui soar à primeira vista inusitado, na verdade
As ideologias que incendiaram paixões no século 20 nada tem de inaugural. Muito ao contrário. Não precisa-
envelheceram, utopias ruíram. mos ir longe para encontrar os precedentes. No Brasil,
Mundos desabam, novos mundos surgem de repente. mais de quatro décadas atrás, o presente artigo pouco
Vetustas instituições são questionadas. Valores tradicio- traria de novidade para Luiz Seabra, quando então fun-
nais se esfumam. Muitas pessoas estão perplexas, outras dava a Natura, para Max Feffer, quando promovia cur-
angustiadas, inseguras, e buscam uma palavra que as ajude sos de filosofia, arte e história para os gestores da Com-
a pensar. Sobre tudo isto que é tão relevante e desafiador panhia Suzano e para Roberto Irineu Marinho, quando
para o seu público, empresas que têm tanto poder sobre ainda jovem ressaltava a importância da filosofia e das
os rumos do mundo, o que dizem na fala de suas marcas? ciências humanas para a visão de comunicação da Globo.
O que uma marca diz precisa ser significativo e rele- Assim fazem os verdadeiros precursores. Eles sabem
vante para o consumidor. Só assim a comunicação enquanto muitos ignoram, e ignoram as incompreen-
poderá ser contributiva para a marca. O consumidor sões que alguns então lhes dedicam. Eles ousam fazer
quando muitos duvidam, e seguem inovando quando
tantos passam a imitá-los.
Quem escolhe comunicar somente
pelo preço deveria refletir se essa Gustavo Pinto
lhe parece ser a melhor maneira de Sócio da ConcretoBrasil, Inteligência de Mercado para Soluções de
Marketing (www.concretobrasil.com.br), conferencista convidado nas
educar as futuras gerações Universidades de Berkeley, Oxford, Calgary, Lausanne, Viena e Otani-Kyoto

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 95


Mundo

A Emília, do
Sítio do Picapau
Amarelo, é a
personagem
favorita de
Monteiro Lobato
e, sem dúvida, a
divulgação

mais malandra
de todas

96 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


O verdadeiro sítio
do picapau verde-amarelo
A obra infantil de Monteiro Lobato explica a baderna atual em que vive o Brasil.
Na teoria, é o país mais democrático dos Brics. Já, na prática, apresenta um
dos mais frágeis compromissos com valores cívicos e liberais

Por Rose Lee Hayden

I
magino que você tenha tomado conhecimento da entram também os países africanos com abundantes
reportagem sobre o Brasil que a revista The Econo- recursos naturais — países cujos líderes se perpetuam no
mist publicou no dia 28 de setembro de 2013. “Bra- poder, cujo povo é verdadeiramente pobre e oprimido,
zil’s future. Has Brazil blown it? ” não é o primeiro enquanto uma riqueza obscena vai parar nas mãos das
artigo a falar do protecionismo, da corrupção e de outras truculentas máfias no comando.
mazelas brasileiras. Preciso lembrar do mundo árabe, do Oriente Médio e de
Mas o fato é que, analisando o panorama mundial, é outros lugares abençoados com o petróleo? Contar com
fácil concluir que o Brasil não está sozinho — embora, recursos naturais nessa escala está mais para uma maldi-
infelizmente, o país não esteja fazendo jus a seu poten- ção do que uma vantagem competitiva. Basta dizer que os
cial. Talvez vá sempre ser “o país do futuro”, enquanto os países africanos desprovidos dessa dádiva tendem a ser
Estados Unidos, temo, sejam “o país do passado”, dados um pouco mais livres do que as nações do mundo árabe.
o impasse político e a crescente desigualdade social. Já a “democracia liberal” pode se tornar selvagem à
Ao que parece, a raça humana entrou numa nova fase. medida que o fosso entre “ricos” e “pobres” aumenta.
É o que chamo de “tecnofeudalismo”: quem não está onde Segundo Nicholas Kristof, do The New York Times, em
o dinheiro ou a informação trocam de mãos é classifi- termos estatísticos, a distribuição de renda nos Estados
cado como “servo”. Além de limitada, a mobilidade social Unidos é praticamente igual à da Nigéria e à da Guiana.
depende, cada vez mais, do berço ou da educação. A maio-
ria dos países, incluindo a Itália, regrediu para um sistema
de “castas” — que, embora não reconhecido abertamente
como tal, é, a meu ver, uma realidade.
Nesse cenário, há, ainda, o crescimento do “capitalismo
de Estado” versus o “capitalismo liberal”. O capitalismo
de Estado tem graus distintos de autocracia, opressão
e protecionismo. Tal fato é apontado em outra grande
reportagem publicada pela The Economist, em janeiro
de 2012, que recebeu o título de “The visible hand”. Rús-
sia e China são, na prática, o que chamo de “cleptocra-
cias”. Ali, a nação é despojada de seus recursos e o país
é governado por autocratas que não só se apossam da
riqueza nacional, como também impõem todas as regras
”Brazil’s future. Has Brazil blown it?”, artigo da revista
e se certificam de que praticamente não haja imprensa The Economist aborda o protecionismo, a corrupção
livre, mobilidade pessoal, liberdades etc. Nessa categoria e outras mazelas brasileiras

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 97


Mundo

E o abismo entre ricos e pobres está aumentando a cada Cenas da vida real
ano, como aponta a reportagem especial “For richer, for O perfil demográfico do país também pesa muito nessa
poorer”, publicada na The Economist, em outubro de 2012. história. Em certas nações, a população dobra a cada 12
Quando o mito da mobilidade social é derrubado, é anos e metade tem menos de 22 anos de idade. Algumas
natural que o jovem se sinta desiludido e que o grau de — sobretudo aquelas nas quais a religião patriarcal e os
compromisso cívico despenque. É triste ver que, na Itá- autocratas religiosos querem permanecer no século 7
lia, Silvio Berlusconi é basicamente admirado — e a men- e desfrutar ao mesmo tempo do século 21, desde que a
sagem é: a pilantragem compensa! mulherada não possa dirigir — estão ideologicamente
Para que uma nação seja uma “democracia liberal”, é condenadas (os sauditas obviamente acham que pilotar
preciso transparência e, creio eu, bastante sorte na loteria um carro faz mal para nossos ovários).
histórica. Fico pensando como seria o Brasil se tivesse sido Para completar, há o destino do qual compartilhamos
“descoberto” pelos ingleses e fosse uma nação protestante... enquanto humanos — incluindo aí os luditas, que se recu-
E, sim, ter esse jeito “malandro” — ou “furbo”, como sam a aceitar que a Terra está se aquecendo e a turma do
dizem na Itália — é mais a regra do que a exceção. Um “Agora eu!”, cuja atitude não é boa para o futuro. Em geral,
mau exemplo produz coisas ainda piores. os mais velhos não dão a mínima para os jovens — seus
É interessante analisar a baderna atual pela ótica de netos, talvez até seus filhos. O crescimento populacio-
Monteiro Lobato, cuja visão do Brasil e dos valores do país nal na Rússia e na China é, na verdade, negativo, assim
apresentava sempre dois lados. O escritor obviamente ata- como na Europa, no Japão e na Coreia.
cava a corrupção e tudo o mais — e defendia a industriali- E é aí que a educação e a ESPM entram em cena. Apesar dos
zação e a “modernidade”. Por outro lado, era basicamente pesares, vocês ao menos educam o jovem. Seria muito inte-
um protecionista, para quem o petróleo não podia ser ressante saber o que esses jovens acham do tema “valores”.
nada além do que “nosso”. Em certos temas, era tido como Afinal, ficar reclamando — como os italianos fazem o
um “chato”, mas no Sítio do Picapau Amarelo, Pedrinho é tempo inteiro — só produz depressão, inação e acomoda-
o bom cidadão, o homem moderno. Já Emília, a persona- ção. É verdade que, no mundo todo, as novas gerações pare-
gem favorita de Lobato, é sem dúvida a mais malandra de cem meio preguiçosas, razão pela qual desisti de lecionar
todas, como mostro no livro A literatura infantil de Monteiro na Fordham University, em Nova York. Não suportava a
Lobato: uma pedagogia para o progresso (Instituto Cultu- indiferença e a falta de motivação e curiosidade intelec-
ral ESPM, 2012). A panóplia de personagens do autor tem tual dos alunos — que se encaravam como consumido-
muito a ver com o tema desta edição da Revista da ESPM. res, não estudantes. Na cabeça deles, estavam gastando

98 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


divulgação
É interessante analisar a baderna atual da
sociedade brasileira pela ótica de Monteiro
Lobato, que atacava a corrupção e tudo o mais,
e defendia a industrialização e a “modernidade”
um bom dinheiro para “comprar uma credencial” que martírio de exames de admissão cria um sistema educacio-
franquearia seu acesso ao mundo “tecnofeudal”, no qual nal que premia o decoreba e inibe a expressão do talento.
essa credencial é sinônimo de mobilidade social — ou, no Faltou dizer que o Brasil é o país mais democrático
mínimo, que preservaria seu lugar na ordem social, evi- dos Brics. E aí está a ironia — ser tão democrático no sen-
tando assim o seu rebaixamento. tido externo e ter um compromisso tão frágil com valo-
Se o aluno é um “consumidor”, o que passa a ser o pro- res cívicos e liberais na prática. Com efeito, o dilema ao
fessor? Alguém obrigado a dar nota boa aos pupilos, ainda redor do mundo é manter “eleições” e o aparato da demo-
que estes não mereçam, para não correr o risco de ser cracia liberal desvinculados da realidade econômica e
reprovado pela turma e ir parar na rua? E, agora que mais sociocultural da nação.
da metade do corpo docente das universidades america- Todo mundo tem o governo que merece, incluindo os
nas é “adjunta” — gente sem compromisso com a institui- Estados Unidos. Em vez de cruzar os braços, o jovem devia
ção, sem estabilidade, sem benefícios —, enquanto uma estar se lançando à política, criando uma alternativa para
turminha de administradores e de professores ganha o cenário atual. Veja tudo o que minha geração mudou:
fortunas (e o custo de um diploma universitário sobe a direitos civis, movimento antiVietnã, e tudo embalado
um ritmo espantosamente maior do que o da inflação), pelo rock’n’roll e por Woodstock, pela cultura, pela música
mudou muito o perfil da universidade. e muito mais. Sim, vocês podem, e devem fazer!
Não vou entrar numa arenga sobre o ensino a distân-
cia, pois minha opinião sobre o tema não é definitiva e
ninguém pode negar que o aluno com um diploma de Rose Lee Hayden
Harvard tem vantagem sobre o colega com outro tipo de Integrou o Corpo de Paz do governo de Jimmy Carter, foi professora,
divulgadora e produtora de TV para ensino de idiomas, e hoje é consultora
canudo, mesmo o primeiro tendo sido um aluno medíocre. internacional, escritora, especialista na obra de Monteiro Lobato e autora
Enquanto isso, na Ásia, tem aluno que se suicida se não do livro A literatura infantil de Monteiro Lobato: uma pedagogia para o
for admitido à escola secundária ou à faculdade certa e o progresso (Instituto Cultural ESPM, 2012)

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 99


História

Michelle Bachelet é reeleita


no Chile, em uma eleição
presidencial que colocou em
debate a voz das ruas. Agora,
ela terá de responder ao
latinstock

grito de milhares de jovens,


que clamam, em alto e bom
tom, seus sonhos de rebeldia

100 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


We are anonymous –
razão de ser e razão de Estado
Das manifestações que tomaram as ruas e avenidas do Brasil à Alemanha nazista,
quantos sonhos foram assassinados por movimentos políticos durante a história?
Por Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos

P
assados 40 anos do golpe de Estado contra o Apesar de sua aparente consolidação econômica e
presidente chileno Salvador Allende, a memó- política, o Chile vive no olho do furacão das injustiças.
ria política tanto da esquerda quanto da direita Os protestos estão trazendo ao cenário político temas
continuam vivas e em lados opostos. Desta de extrema atualidade, tais como: o aborto; o casamento
vez, o paradoxo raia ao paroxismo, onde duas mulheres homoafetivo; as greves dos trabalhadores; e as respos-
amigas de infância, unidas por uma mesma tragédia, vêm tas violentas por parte dos organismos de repressão. A
lutar pela presidência da República do Chile em campos enorme abstenção dos jovens nesta eleição mostra uma
antagônicos. Uma vez mais a alternância entre esquerda falta de confiança na classe política, como nunca se viu
e direita se sucede, sem aportar câmbios significativos a no Chile, o descrédito dos políticos e sua corrupção.
um sistema político injusto, excludente e desigual. Essa Em 1888, Friedrich Nietzsche produziu sua penúltima
contenda eleitoral foi realizada dentro das estreitas mar- obra escrita antes de perder a “razão”: O crepúsculo dos
gens de uma Constituição autoritária e com a tutela das ídolos — Ou como se filosofa com o martelo (Companhia das
Forças Armadas, verdadeiro Estado dentro do Estado. Letras, 2006). Sereno e funesto no tom, como um demônio
Essa eleição presidencial colocou em debate a voz das ruas que ri, o texto é a suprema exceção entre os livros. Não
no Chile. Agora, a presidente reeleita Michelle Bachelet terá há nada mais subversivo, substancioso, independente
de responder ao grito de milhares de gargantas de jovens, que e funesto do que ele. “Se alguém quiser ter alguma ideia
clamam, em alto e bom tom, seus sonhos de rebeldia: uma a respeito, de maneira mui breve, como tudo estava de
Assembleia Constituinte; o fim da Constituição de Augusto ponta-cabeça antes de mim, comece por essa obra (Ecce
Pinochet, de 1980; educação gratuita, laica, obrigatória e de Homo). Aquilo que chamo de ídolo no título é simples-
qualidade; saúde igualitária para todos os cidadãos; previ- mente tudo o que foi chamado de verdade até hoje” (a
dência social justa para todos; abertura dos arquivos das velha verdade chegou ao fim).
Forças Armadas sobre o paradeiro dos desaparecidos; a ver- Se por verdade aceitamos o bem comum, sendo este
dade sobre a utilização do gás Sarin em dirigentes políticos fundamentalmente um conjunto de condições estrutu-
de oposição; e o fim do enorme orçamento das Forças Arma- rais que se expressa na justiça da sociedade, as condições
das, obtido diretamente das vendas do cobre, sem nenhum e a justiça devem ser garantidas por meio da comunidade
controle por parte da sociedade civil ou política. política, que também deve assegurar o acesso ao bem
O momento não poderia ser mais delicado, quando uns comum a todos. Assim, a justiça promovida pelo bem
riem e outros choram, pelo triste aniversário do golpe militar, comum é a virtude por excelência da cidade, do cidadão
que foi apoiado pela Agência Central de Inteligência (CIA, na e do político. Desse modo, seria absurdo que aqueles que
sigla em inglês), dos Estados Unidos, com cerimônias som- detêm o poder (imperium) político representem somente
brias para honrar a memória de mais de três mil desapareci- grupos de interesse de indivíduos, sobretudo se esses
dos, produto do golpe militar, que pôs fim a um dos sonhos grupos são aqueles que se apropriam do bem comum. É o
mais lindos e democráticos das últimas décadas, somente caso dos mensaleiros, envolvidos no escândalo do men-
comparável com a frustração do sonho da Primavera Árabe. salão, em que as penas são brandas e com privilégios.

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 101


História

divulgação
Movimento jovem Cenas de A lista de Schindler (à esquerda) e
A vida é bela (à direita), filmes que nos dão pistas
Em Nietzsche, a ideia do “martelo” ou no caso do martelo
para entender os mistérios da mente humana,
“sagrado” de Thor representa uma declaração de guerra, capaz de produzir episódios como o Holocausto
uma luta sem quartel, contra a moral cristã e os erros da
filosofia e das ideias presentes no mundo atual. O espí-
rito de luta pode ser observado no subtítulo da obra, pois e inesgotável, já que “o fato de o desejo localizar-se, neces-
a palavra “martelo” deve ser entendida como um tipo de sariamente, num objeto ausente (e de os fins serem sempre
marreta capaz de eliminar e destroçar os ídolos. Colo- provisórios) elimina a possibilidade da identificação da feli-
cando os juízos de valor sobre a vida como imbecilidades, cidade como um modo de agir e introduz, inevitavelmente,
o autor nos demonstra que tais valores nem sequer exis- uma lógica de resultados. “Tudo o que os homens fazem é
tem. Esses valores, tratados pela religião como um todo, em nome da aquisição de algo que julgam um bem para si
são apenas sintomas da doença da ilusão da realidade. próprios”, como mostra Yara Fratteschi, em A física da polí-
Nas mensagens da juventude brasileira transmitidas tica: Hobbes contra Aristóteles (Unicamp, 2008).
durante o mês de junho do ano passado, em São Paulo, Para tratar do aspecto moral do estado de natureza,
temos a expressão de uma insatisfação crescente da Thomas Hobbes objetivamente define que bom é o objeto
política partidária e seus atores, que são corruptos e desejado e mau, o objeto da aversão. Nesse caso (os desejos
não representam esses jovens. O homem não quer viver dos jovens), os sujeitos estão submetidos ao subjetivismo
melhor para suprir uma falta, mas simplesmente para dos valores (daí a enorme variedade de reivindicações em
positivar seu desejo, que, sendo positivado, é insaciável. seu movimento), estabelecendo o sujeito (a ser alcançado)
O Estado, que deveria ser o tutor do bem comum e dis- como critério avaliativo. A partir dessa determinação,
tribuí-lo de forma equitativa, acaba sendo o defensor do pode-se concluir que não existe uma moral absoluta ou
bem comum das minorias. A defesa dos direitos huma- universal, pois o objeto desejado é definido como bom ou
nos é uma causa justa, mas o Estado, que deveria levar mau, de acordo com o sujeito desejado.
adiante essa causa, é um dos principais violadores dos Para nossos jovens, que com seus dedos ágeis correndo
direitos humanos. pelos teclados de seus celulares comunicaram-se, saíram
A felicidade para os jovens não consiste simplesmente às ruas em muitas cidades do mundo, explica-se esse
na concretização do desejo, mas em sua contínua marcha fenômeno sociológico como uma identidade em si na pro-
(leia-se procura), pois tal realização abre caminho para cura de mutações dentro de uma ação global de multidão.
outro desejo, que cessará apenas com a morte. O desejo Pedindo o impossível e obtendo o possível, com a redução
adquire, portanto, um caráter sempre provisório, insaciável da tarifa do ônibus, o sonho utópico desses jovens levanta

102 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


divulgação
o espírito de maio de 1968. Explicar esse fenômeno não é A hierarquia católica é decisiva
tarefa fácil em países tão diferentes como Egito, Tunísia,
no plantio do ódio antissemita,
Líbia, Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda, França, Chile ou
Brasil. Este acontecer planetário é um chamado de aten- sobretudo no século 20. Tal atitude
ção às classes políticas desses países, para não matar os dura até o triunfo do nazifascismo
“sonhos”, como aconteceu com a Primavera Árabe, pois
as consequências podem ser terríveis se esta frustração denunciar a espionagem dos serviços secretos a presi-
utópica cai em mãos de fundamentalistas. dentes e ministros de países amigos.
O futuro e o desenvolvimento do mundo estão em jogo.
A luta dos jovens é um espelho de nosso passado recente. Realidade utópica
A democracia e a liberdade, como valores fundamentais O ideal utópico, ou os sonhos dos direitos humanos uni-
e inalienáveis dos homens, são perseguidas pelos jovens, versais, que o sistema hegemônico propõe como ideal
que não querem seguir cegamente modelos ou receitas vin- prático, apresenta elementos de falsidade, injustiça e
dos de longe. Os países desenvolvidos aparecem, a partir desajustes, por meio de seus aparelhos ideológicos de
dessa ótica, como sendo portadores de um modelo civi- informação. É um modelo que apresenta sinais eviden-
lizatório a ser implantado pelos demais povos, por meio tes de esgotamento e fracasso, logo, não pode ser apre-
da civilização, no qual a riqueza transforma-se no fetiche sentado como modelo universal de humanização. Pen-
da mercadoria e, consequentemente, objeto do desejo. sar os direitos humanos a partir da realidade histórica
Os direitos dos jovens, que também são humanos, não significa pensá-los com base em sua realidade utópica.
podem ser atendidos aleatoriamente, beneficiando apenas A história não deve ser refeita com critérios morais. Os
uma parcela de sua população. Somente em uma demo- direitos humanos são elementos ideológicos de uma
cracia o grito de rebeldia desses jovens não será calado. práxis humana e é algo que se adquire como possibili-
Uma sociedade democrática está sempre em movimento, dade, por um processo de realização em que os povos
debatendo e definindo novas prioridades e desafios, dese- são sujeitos de si mesmos com suas paixões, por meio
jando constantemente novas realizações. Somente uma de lutas políticas, sociais e jurídicas.
democracia poderia eleger um indígena como presidente Os homens agem conforme as suas paixões, que são,
da Bolívia e um afro-americano nos Estados Unidos. no modelo hobbesiano, movimentos de aproximação
Somente em uma democracia mulheres podem se eleger (apetite), ou de repulsa (aversão), em relação a um objeto
presidentes de países latino-americanos com forte voca- (democracia). Esses movimentos (jovens) seriam de um
ção “machista”. Somente em uma democracia se pode desejo contra uma aversão. Esses dois elementos resultam

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 103


História

de um discurso mental, ou seja, associações mentais (ima- justificam a escolha da racionalidade:


gens bombardeadas pela mídia) que fariam com que esses
jovens mantivessem uma relação com o objeto do desejo • O desejo de escapar das leituras mecanicistas de Maquia-
como fato, capaz de resultar em uma ação de desejo ou vel, que associam a razão de Estado a ele.
aversão (frustração).
“O esforço para obter a paz, durante o tempo em que o • A necessidade de tomar uma distância entre as “duas”
homem tem esperança de alcançá-la, fazendo, para isso, razões de Estado e seus conflitos, particularmente o que está
uso de todos os ajustes e vantagens da guerra, é uma acontecendo com a abertura dos mercados e a concentração
norma ou regra geral da razão. A primeira parte dessa de renda internacional.
regra encerra a lei fundamental da natureza, isto é, pro-
curar a paz e segui-la. A segunda, a essência do direito • O motivo de o pensamento moderno ter profundas raízes
natural, que defendemos por todos os meios possíveis”, na teologia medieval, particularmente no referente à ética
detalha Hobbes em Leviatã (Editora Martin Claret, 2009). e sua influência político-filosófica.
Nesse sentido, o desejo é o esforço que vai em direção
a algo que o causa, e assim a definição desse conceito A hierarquia católica é decisiva no plantio do ódio antis-
reúne e sintetiza todas as paixões, que estão voltadas para semita, sobretudo no século 20. Tal atitude dura até o triunfo
aquilo que as causa. Dessa forma, a esperança também é do nazifascismo. Essa aliança com os regimes autoritários
um desejo, assim como o amor, a coragem, a confiança, a e totalitários vai se estender, com os regimes de Franco,
ambição, a benevolência, a cobiça, a ânsia de vingança e Salazar e os coronéis gregos. Razões de Estado ordenam o
a curiosidade. Todas essas paixões são formas distintas acordo de Latrão, em que se reconhece por parte do italiano
de manifestações do desejo. fascista Benito Mussolini a soberania papal sobre o Vaticano
Quantos sonhos foram assassinados por movimentos e a Concordata de Império com o austríaco nazista Adolf
políticos durante a história? Há 80 anos, na Alemanha, Hitler em 1933. Nesta última, os sacerdotes são assimila-
um jovem nazista tentava compreender por que grandes dos aos funcionários estatais. Surge então a identificação
pensadores alemães elogiaram um judeu chamado Bento entre Deus, raça, povo, Estado e governantes. Essa visão
Espinosa — filósofo português que despertou a curiosidade vai concretizar-se com a ascensão de Pio XII ao trono de
dos ideólogos do nazismo. A história é contada na obra de São Pedro, “amigo” da Alemanha e conhecido por outros
Irvin D. Yalom, O enigma de Espinosa (Editora Agir, 2013). como o “papa nazista”, que terá um papel relevante na fuga
Com a preocupação de explicar a transformação de valo- de um grande número de criminosos nazistas em direção
res por meio dos processos civilizatórios, não podemos ao continente latino-americano, e com passaportes outor-
simplesmente associar a razão de Estado com Maquiavel, gados pela administração da Santa Sé. “Papa cauteloso,
no sentido da individualização na figura do Príncipe. Ten- ou omisso, ao não defender os jovens padres católicos que
taremos investigar a existência da razão de Estado como denunciavam o extermínio dos doentes mentais”, define
ação por meio da história, como fato e em momentos dife- o filósofo Roberto Romano, no livro Os nomes do ódio (Edi-
rentes. Essa questão merece um exame mais aprofundado, tora Perspectiva, 2009).
posto que desde o século 16 existem duas formas de racio- Se voltarmos no tempo para entender a história de
nalidade, uma guerreira e outra econômica. Espinosa, veremos que em seus escritos o filósofo admi-
Por que remontar-nos às instituições romanas ou rado por Goethe afirma: “O direito do Poder (imperii) ou
à Idade Média? — “de La Cité à l’État”. Três aspectos do Soberano não é senão o próprio direito de Natureza,
determinando-se não pela potência de cada um dos cida-
dãos tomados à parte, mas da massa (Multitudinis) diri-
A democracia e a liberdade, como gida como por uma só mente”. Isto é, assim como em cada
um em estado natural, o corpo e a mente possuem tanto
valores fundamentais, são perseguidas direito quanto potência, assim também é com o poder:
pelos jovens, que não querem seguir cada cidadão ou súdito tem tanto menos direito quanto
modelos vindos de longe mais a própria cidade for potente. Consequentemente,

104 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


segundo o direito civil, cada cidadão não pode ter nem como um imperativo moral. Nesse sentido, o verdadeiro
fazer senão aquilo que pode reivindicar por um decreto poder de um soberano emerge das circunstâncias excep-
comum da cidade. É o que explica o texto Tratado político cionais dentro da história. O soberano deve tornar-se um
presente no livro Espinosa, da coleção Os pensadores (Edi- verdadeiro legislador, em vez de um mantenedor da lei,
tora Abril Cultural, 1973). O direito é medido pela propor- sendo apto a mobilizar a população contra um eventual
ção direta de poder que seja efetivamente exercido: tem-se inimigo; foi o caso de Pinochet, ao promulgar a Constitui-
direito a tudo quanto se tenha poder para obter e manter. ção de 1980, em vigor até hoje, no Chile. Nela, as margens
E o direito de cada um vai até onde se estender seu poder. de transformação são quase nulas ou impossíveis, e os
acordos políticos são restritos a seu marco delimitatório.
A lei da exceção Na argumentação autoritária da crença nazista havia o
Um dos juristas do nazismo, Carl Schmitt (1888-1985), tratamento que os judeus recebiam antes de sua aniquilação
disse: “A exceção é mais interessante que a regra. A regra física. Em um processo tortuoso de humilhação mental, os
não prova nada; a exceção prova tudo”. Schmitt argu- nazistas primeiro destruíam os judeus em sua dignidade,
mentava que a possibilidade de discórdia coexiste com reduzindo-os a um nível sub-humano, transformando-os no
a de aliança e neutralidade. Ele considerava o indivíduo que se denominava “muçulmanos”. Viravam uma espécie
potencialmente perigoso e, com isso, havia um constante de “mortos-vivos” e deixavam até de reagir aos estímulos
risco político e uma permanente possibilidade de guerra. mais básicos, passando gradualmente a não sentir mais
Schmitt admitia que essa constante perspectiva deveria sede, fome ou desejo de viver. Só quando passavam a existir
ser o guia último e definitivo para o soberano, que teria mais por força do hábito do que por um instinto natural de
de estar sempre pronto para ela, a guerra. sobrevivência, eles eram mortos, como cita Slavoj Zizek, no
A esfera política é um mundo antagônico, não apenas um livro Alguém disse totalitarismo? Cinco intervenções do (mau)
domínio independente no qual os cidadãos interagem, como uso de uma noção (Editora Boitempo, 2013).
as esferas da sociedade civil ou de comércio. A lei tem de O Holocausto é classificado como um mistério, con-
agir de forma adequada, por meio das cortes e de sua buro- siderado o coração das trevas de nossa civilização, se
cracia associada em condições normais. Mas na política tomarmos como exemplo os filmes A lista de Schindler
existem condições excepcionais, até mesmo o caos, onde ou A vida é bela como pistas para entender os mistérios
as cortes (tribunais) não estão equipadas para fazer julga- da mente humana e seus perfis psicológicos de um per-
mentos bons e rápidos. Alguém deve ter a possibilidade de sonagem tão controverso como foi Adolf Eichmann “ente
suspender a lei durante circunstâncias excepcionais. Sch- do mal” (ver a obra de Daniel Jonah Goldhagem: Os car-
mitt alegava que isso era parte do papel do soberano: ele rascos voluntários de Hitler, Companhia das Letras, 1997).
possui a autoridade definitiva para decidir quando a situ- Hannah Arendt tinha razão em sua problemática tese
ação está “normal” ou “excepcional”, podendo, assim, ditar sobre a Banalidade do Mal, no caso deste personagem,
quando certas leis devem ou não ser aplicadas. no qual não encontramos nada de monstruoso, pois não
Ao colocar a vida acima da liberdade, Schmitt argumen- passava de um burocrata fazendo parte de uma maquina-
tou que a legitimidade do soberano não depende apenas ria da morte. Nietzsche volta a levantar-se e nos grita que
da aplicação da lei, mas de sua habilidade para proteger “Deus está morto!” e que fomos nós que o matamos com
o Estado e seus cidadãos. Os judeus, comunistas, homos- nossa hipocrisia, covardia e falta de fé no ser humano.
sexuais, ciganos e loucos eram um perigo para a raça Deus morreu nos fornos crematórios!
ariana. Consequentemente, a “solução final” colocava-se Para construir um mundo ético e com valores morais,
é preciso que conheçamos o passado, para entender o
presente e poder sonhar o futuro.
Os judeus, comunistas, homossexuais,
ciganos e loucos eram um perigo para Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos
a raça ariana. Logo, a “solução final” Professor da ESPM-SP, doutor pela Universidade de Paris
em história social, pós-doutor pela USP em política
colocava-se como um imperativo moral internacional e comparada, especialista em ética pela PUC

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 105


Sociedade

shutterstock

106 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Consumidores indignados:
ativismo digital e
consumo consciente
Crescem as reclamações dos consumidores quanto ao atendimento, serviços e produtos
nas redes sociais. Os consumidores estão ficando mais exigentes ou são as empresas
que não conseguem compreender e se adaptar aos novos tempos?

Por Fábio Mariano Borges

N
os últimos vinte anos, passamos a conviver As mudanças não param por aí, afinal estamos pas-
com uma avalanche inédita de mudanças. sando por uma profunda crise. Ao contrário do sentido
Desde a segunda metade da década de 1980 comum, uma crise, segundo a sociologia, não é um período
vimos a explosão da Aids; a queda de símbo- negativo nem positivo. Não representa uma evolução,
los do separatismo como o Muro de Berlim; a decadência mas o marco de um momento de passagem no qual valo-
de um império econômico e social, caso da ex-União Sovi- res, comportamentos, modelos, sistemas e instituições
ética; marcantes atentados terroristas num território con- se reconfiguram e se transformam, levando para outros
siderado como um dos mais protegidos do nosso sistema formatos e orientações. Não sabemos o tempo de dura-
— os Estados Unidos; a derrocada econômica da Argentina ção desta crise, nem com precisão quais serão seus fru-
— modelo de prosperidade na América do Sul; a liberta- tos, mas é certeiro que não seremos mais os mesmos.
ção, proclamação e morte de Nelson Mandela, símbolo O xeque-mate também está sendo dado para os negó-
da paz e da luta contra o racismo; a ascensão econômica cios. Os modos de condução e atuação das empresas têm
do dragão Chinês; a reconfiguração do mapa geográfico mudado profundamente. Temas que pertenciam a um ter-
mundial; a passagem do fax e da máquina de datilografar reno utópico de crenças e ideologias foram incorporados
para o computador; a explosão das redes digitais trazendo como estratégicos pelas lideranças das organizações:
novas atitudes e formas de sentir; os 15 minutos de fama cidadania; bem-estar comum; meio ambiente; susten-
para qualquer anônimo; o rompimento transgressor dos tabilidade; cuidado social; diversidade; aceitação e tole-
direitos autorais; o império do novo design; a obrigatorie- rância; respeito e transparência; consumo consciente;
dade da tolerância e do politicamente correto; o bullying; consumo responsável; e consumo com responsabilidade
os bipolares; a decadência dos fumantes; a fertilização in social. Esses termos mostram um movimento no qual o
vitro; o transsexualismo; o acesso mais fácil à reposição consumidor é qualificado com base nas suas escolhas
hormonal; a longevidade; a cultura do corpo e da malha- no consumo e não somente no seu poder de compra.
ção acompanhada do aumento da obesidade; a dissolu- Como estratégia de reputação de marca e relacio-
ção do antagonismo entre esquerda e direita; a queda da namento com o cliente, as empresas têm abordado e
credibilidade das instituições; a decepção com as ideolo- divulgado a responsabilidade no consumo. Daí como
gias políticas e os seus representantes; a transformação no mundo corporativo, já é comum nos depararmos
da composição familiar; a importância da mulher na eco- com o chamado marketing social ou Marketing con-
nomia e outras esferas da vida... tra a pobreza — como indica o próprio nome do livro

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 107


Sociedade

escrito por Philip Kotler e Nancy Lee (Editora Book- produção e uso da mão de obra produtiva, impacto no
man, 2009) —, entre outras correntes da disciplina do bem-estar da sociedade, consequência e impacto no
marketing, visando aproximar as ações das empresas meio ambiente, como também os direitos de inclusão
ao contexto cidadão-consumidor. É importante des- no consumo através de um acesso mais igualitário aos
tacar que esse movimento das empresas nem sempre bens por meio do poder de compra ou ajuste dos preços.
representa uma consciência cidadã de seus líderes na Foram diversos os casos dos consumidores em levante
condução dos negócios, mas, em geral, uma adaptação contra as empresas: movimentos dos norte-americanos
aos temas que compõem a pauta de interesse daqueles em oposição à indústria e comércio que utilizavam a mão
que são consumidores em potencial. de obra escrava (1764), e ainda antes, em 1756, a cha-
O consumidor que parecia tão passivo, no aguardo de mada War of Independence, contra os produtos impor-
ter suas necessidades e desejos satisfeitos e atendidos tados da Inglaterra; a criação da New York Consumers
pelas empresas, agora palpita, participa do processo League em 1891, com a formação de guias de empresas
criativo e de produção, interfere nas táticas de consumo que tinham posturas reconhecidas como éticas para a
e, mais do que reclamar da qualidade dos produtos ou época; as diversas manifestações pela Europa que atra-
serviços, denuncia as empresas que não correspondem vessaram o século 19 lutando pela qualidade da água,
aos princípios da cidadania, direitos humanos, bem-es- pão e leite, entre outros bens de primeira necessidade;
tar social e ambiental. uma série de boicotes contra as empresas e até mesmo
contra o consumo, desde o nascimento do boicote, em
Manifestação on-line 1878, passando por diversos, frequentes e marcantes
É nas redes sociais que os consumidores têm encon- momentos no século 20, quando grandes corporações
trado um palco para debate e reivindicações quanto ao multinacionais sofreram ataques de consumidores.
consumo e à conduta das empresas. Crescem os posts O que há de novo é o uso do terreno cibernético para
espontâneos nas redes sociais, em especial no Face- a manifestação dos consumidores. Nas redes sociais,
book, denunciando empresas, compartilhando recla- são frequentes os depoimentos e denúncias de cidadãos
mações contra marcas e produtos, relatando casos de comuns contra empresas, pelos mais diferentes motivos
mau atendimento e assim, com a legitimidade própria que apresentam, desde uma insatisfação particular e
e única de um consumidor — que não tem interesses pontual até delações sobre exploração de mão de obra
comerciais, mas quer somente orientar os amigos e ou trabalho escravo, uso na composição dos produtos
conhecidos —, recomenda ou não produtos e marcas e, de insumos ou itens que comprometem ou ameaçam a
muitas vezes, convida os demais para boicotes. saúde das pessoas, todo tipo de impacto nocivo ao meio
Essa voracidade dos consumidores não é recente, ambiente, como o uso de animais em testes laborato-
mas representa um embate presente ao longo da histó- riais, poluição de recursos naturais, desmatamento,
ria e da genealogia do consumidor. A escritora Michele entre vários outros tipos de reclamação. O tempo tam-
Micheletti, por exemplo, abordou o tema em 2003, no bém certificou o óbvio para os consumidores: a força do
livro Political virtue and shopping. Individuals, consume- coletivo é maior do que o ensejo individual.
rism and collective action (Editora Palgrave Macmillan). O coletivo aparece no meio digital de forma variada
Segundo ela, esse movimento não fica restrito à insatis- e, por que não dizer, criativa. Há páginas na rede social
fação do comprador quanto ao produto ou serviço rece- Facebook que incitam o boicote contra empresas diver-
bido, mas envolve questões relacionadas aos modos de sas, como O Boticário (www.facebook.com/pages/

Os modos de condução e atuação das empresas têm mudado


profundamente. Temas que pertenciam a um terreno
utópico de crenças e ideologias foram incorporados como
estratégicos pelas lideranças das organizações

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Em agosto de 2011, a
Zara foi autuada pelo
Ministério do Trabalho
e Emprego (MTE) em
48 infrações – entre
elas, superexploração
de empregados, uso
de mão de obra de
menores de 16 anos e
discriminação étnica.
As denúncias foram
feitas pelos internautas

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Nas redes sociais, são frequentes os depoimentos e denúncias de cidadãos
comuns contra as empresas, pelos mais diferentes motivos que
apresentam, desde uma insatisfação particular e pontual até delações
sobre exploração de mão de obra ou trabalho escravo

Boicote-Boticário), contra o consumismo em geral (www. obra de menores de 16 anos e discriminação étnica. De
facebook.com/BoicoteOConsumismo). Também é possí- acordo com a análise dos auditores, ficou claro que o tra-
vel encontrar sites mais estruturados originados da orga- tamento dispensado aos indígenas quéchua e aimará,
nização da sociedade civil que acabaram dando origem contratados pela rede, era indigno, caracterizado por
a órgãos ou associações civis que cuidam de denunciar jornadas extenuantes e ambiente de trabalho degra-
e fiscalizar as empresas. Os exemplos mais significati- dante, em comparação com os funcionários brasilei-
vos são o site Reclameaqui (www.reclameaqui.com.br) e ros — conforme descrição feita no relatório de autua-
o recente BoicotaSP (www.boicotasp.com). ção publicado no Diário Oficial de 16 de agosto de 2011.
Essas reações dos consumidores no ambiente digi- A marca nacional de calçados e acessórios Arezzo é
tal colecionam resultados efetivos na pressão exercida outro exemplo. Na primeira quinzena do mês de abril,
junto às empresas, no âmbito do coletivo e da atuação também de 2011, a empresa lançou uma coleção com o
da empresa na sociedade. Alguns casos recentes ilus- título de PeleMania, que tinha como destaque o uso de
tram esses movimentos. Em agosto de 2011, após cres- peles de raposa e coelho na confecção de sapatos, bol-
centes denúncias do público pelo meio digital, a rede sas e echarpes. Mais uma vez, as redes sociais no meio
de lojas multinacional Zara foi autuada pelo Ministério digital demonstraram ser um canal rápido para convo-
do Trabalho e Emprego (MTE) em 48 infrações — entre car um boicote contra a marca. No Facebook foi criada
elas, superexploração dos empregados, uso de mão de a página “Boicote Arezzo”. No dia 18 de abril, a marca

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 109


Sociedade

ocupou o primeiro lugar nos Trending Topics do Brasil,


sendo o assunto mais comentado no microblog Twitter.
Antes mesmo de sofrer qualquer fiscalização oficial,
a Arezzo se pronunciou publicamente com pedido de
desculpas e retirou a coleção do mercado. A reação da
empresa corresponde ao que destaca o pesquisador Mon-
roe Friedman, em um artigo publicado no livro Political
virtue and shopping, de Michele Micheletti: “Manifesta-
ções dos consumidores, como os boicotes, preocupam
muito mais as empresas na proteção da credibilidade
da marca do que quanto às perdas financeiras” (Using
consumer boycotts to stimulate corporate. Policy changes:
marketplace, media and moral considerations).
Há dois anos, o movimento ”Boicote Arezzo”, feito pelos
consumidores no Facebook, levou a empresa a retirar do
Ativismo digital contra as empresas mercado sua coleção PeleMania, que tinha como destaque
A tarefa das empresas no gerenciamento de crises tem o uso de peles de raposa e coelho na confecção de sapatos,
se expandido cada vez mais para as redes sociais. Aí bolsas e echarpes
entram os social media, profissionais que, entre as diver-
sas tarefas, estão dedicados a responder aos posts que se ou clientes dessas marcas. Estamos nos deparando,
referem à empresa. então, com um conceito de consumidor diferente do
Esses depoimentos e compartilhamentos contra as que é entendido e praticado pelas empresas, que con-
marcas nas redes sociais têm gerado alguns aprendiza- sideram como consumidor aquele que tem relação
dos. Os consumidores aprenderam que as redes sociais comercial com a sua marca. Toma a cena, então, o
são um campo eficaz de manifestações, denúncias e cidadão que, no papel de consumidor, reclama e acusa
reclamações contra as empresas, uma vez que são res- as empresas. Este, que talvez nunca se converta em
pondidos e atendidos com maior agilidade e melhor cliente da marca, deve agora ser ouvido e até atendido
qualidade, se comparado com os canais tradicionais em suas reivindicações.
(SAC, ouvidoria, atendimento ao cliente). Isso acon- O exercício do ativismo digital no consumo também
tece porque, preocupadas com a reputação da marca, pode ser um exercício para o uso das redes sociais,
as companhias têm investido em profissionais dedi- com o objetivo de motivar e organizar manifestações
cados a acompanhar as redes sociais. Em geral, esses que não tenham como tema o consumo, mas que tam-
profissionais têm uma qualificação melhor que a dos bém podem flertar com temáticas políticas e sociais.
contratados para atender aos consumidores nos canais Daí, termos visto casos como a chamada “Primavera
tradicionais. Árabe”, ou mesmo as manifestações populares que
Em estudo quantitativo realizado em três casos de aconteceram no final do primeiro semestre de 2013
ativismo digital (Arezzo, Zara, O Boticário), com o e, em geral, organizadas e anunciadas no ambiente
objetivo de traçar o perfil desses ativistas, é possível cibernético.
notar que 70% dos que postaram ou compartilharam O empoderamento do consumidor como um agente
informações contra essas empresas não eram usuários responsável e consciente pelo bem-estar econômico e

A reputação da marca toma uma importância e um sentido singular


no século 21, bastante divulgado pelas redes sociais, no tocante a temas
que até então o setor privado lucrativo não se dedicava tanto: cidadania,
sustentabilidade, responsabilidade social, ética, bem-estar coletivo

110 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Passamos de uma sociedade de
consumo para uma sociedade de
consumidores. Como consumidores,
estamos destinados a reclamar

quando não se trata de um problema particular, e sim


de uma ação da empresa que fere os princípios desses
consumidores.
As empresas ainda não sabem precisamente como
tratar esses casos, pelos seguintes motivos: em geral, os
ativistas não são seus clientes, logo o impacto nas ven-
das não é garantido. Trata-se de ações novas num meio
novo. A maioria das empresas teme que, ao atender às
reivindicações, acabe por transferir um poder desme-
dido para os consumidores.
A reputação da marca toma uma importância e um
sentido singulares no século 21, bastante divulgado
pelas redes sociais, no tocante a temas que até então o
setor privado lucrativo não se dedicava tanto: cidada-
nia, sustentabilidade, responsabilidade social, ética,
bem-estar coletivo.
O consumidor moderno é resultado de lutas por
direitos, acesso e poder de escolha. As crises têm for-
Internautas boicotam empresas e marcas no Facebook por mado um consumidor que, agora, pode ser sujeito no
qualquer motivo: as manifestações vão do consumismo consumo, quando acessa a cidadania plena nas rela-
exacerbado à denúncia de preços abusivos e produtos de ções de compra. A cidadania, por sua vez, assim como
baixa qualidade. Esse tipo de movimento deu origem a sites
como o Reclameaqui e o BoicotaSP o consumidor, também é permanentemente reconfi-
gurada pela sociedade. A luta então é constante. Pas-
samos de uma sociedade de consumo para uma socie-
social do coletivo, ainda que não esteja sendo enten- dade de consumidores.
dido explicitamente como um poder político na esfera Como consumidores, estamos destinados a recla-
do consumo com impacto na esfera pública, tem ins- mar. A questão é como cada empresa lida com esse
pirado consumidores a assumir uma atitude de maior conflito. O conflito é inevitável e envolve a crise. Mas
vigilância e atenção quanto aos itens consumidos, seja essa crise pode ser motivadora para a tomada de cons-
no seu sistema de produção, qualidade dos insumos ciência e transformação, não do capitalismo para outro
ou consequências para o bem-estar geral. Essa inspi- sistema, mas para um capitalismo justo. Neste sentido,
ração tem se materializado com pouca efetividade no esse conflito é bem-vindo. Afinal, onde não há conflito
comportamento de compra, porque nem sempre há não há vida!
como substituir um produto ou marca por outra (que
é o sentido original do boicote). Além disso, o preço
competitivo e a conveniência ainda são muito valori- Fábio Mariano Borges
Especialista em pesquisa e comportamento do consumidor, é professor
zados nas relações de compra. Mas é importante desta- na ESPM, FGV, FIA-USP e Faap, doutorando em sociologia do consumo
car que já há entre os consumidores um sentimento de na PUC-SP, mestre em ciências sociais (PUC-SP), publicitário (ESPM) e
alerta e reivindicação em relação às empresas, mesmo pós-graduado em marketing (ESPM) e ciências sociais (USP)

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 111


Entretenimento

O casamento da indústria
cinematográfica com
o marketing internacional
Ao longo do tempo, o cinema americano acertou seus passos e partiu rumo ao
mercado externo com o objetivo de maximizar lucros e evitar a falência de estúdios
Por Edmir Kuazaqui
112 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014
Sucesso de crítica e bilheteria,
Batman Begins, de Christopher
Nolan, arrecadou US$ 200
milhões nas primeiras semanas
de veiculação, em 2005. O bom
desempenho deu origem a
divulgação

trilogia Batman, o cavaleiro


das trevas, que gerou um lucro
excepcional para a Warner
janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 113
Entretenimento

M
arketing internacional é um conceito de sua exibição nas salas de cinema, como a venda direta
criado por Philip Kotler, na década de para a televisão. Episódios como o do Portal do Paraíso,
1980, que traduz a importância de as de Cimino, acabaram obrigando as grandes produtoras
empresas desenvolverem suas estraté- a adotar critérios mais seletivos na escolha das produ-
gias e negócios globalmente. Na década seguinte, a sua ções, além de otimizar custos, reduzir despesas e optar
frase “Pensar globalmente, agir localmente” marcaria por outros meios de veiculação. Tais critérios foram
definitivamente essa ideia. requisitos para a obtenção de financiamentos e seguros
Como professor de administração e relações interna- bancários, com a imobilização dos recursos financeiros
cionais, defendo a tese de que o conceito não deve ser apli- do estúdio durante o período da produção e comerciali-
cado somente à exportação (como boa parte das empresas zação do filme. Passaram a ser efetuadas parcerias com
e pessoas o faz), mas a todos os segmentos de negócios. empresas de produtos (como brinquedos) e venda de espa-
No setor cinematográfico mundial, por exemplo, essa ços dentro dos filmes, a título de exposição de marcas.
ideia tem ganhado espaço, pois antes a receita local das A partir de 2006, o crowdfunding se tornou uma opção
bilheterias dos cinemas era a mais importante para o de financiamento, não necessariamente relacionada dire-
negócio. Em segundo lugar, vinha a venda das produ- tamente aos riscos comerciais finais, mas como forma
ções para a televisão, diferentemente do que ocorre hoje, rápida para viabilizar a produção de um filme. Essa ideia
quando prepondera o pensamento global. Assim, já foi o do jornalista americano Michael Sullivan consiste num
tempo em que uma produção podia ocasionar a falência funding cujos recursos são obtidos a partir de empresas
de um estúdio de cinema, como ocorreu com Heaven’s
Gate (Portal do Paraíso, 1980), de Michael Cimino, que
custou em torno de US$ 50 milhões para o estúdio Para-
mount, mas rendeu apenas cerca de US$ 1 milhão no
mercado americano, fazendo com que o estúdio pedisse
concordata. Já em 2012, John Carter, produção de US$ 200
milhões, foi um retumbante fracasso do estúdio Disney,
que nem por isso faliu. O filme custou, ainda, outros US$
100 milhões em marketing totalmente equivocado, que
influenciou negativamente nos resultados do estúdio no
referido período. Mundialmente, deveria faturar pelo
menos US$ 700 milhões para recuperar o capital. Che-
gou a US$ 269 milhões. O erro foi tão grave que forçou a
demissão do presidente do estúdio, Rich Ross.
Com base em alguns artigos publicados em revistas
especializadas, como Preview, Monet, Cinema Brasileiro
e a saudosa Set, e em fontes virtuais (como a IMDb, por
exemplo), apresento a seguir um panorama atual da indús-
tria cinematográfica, em especial a norte-americana, e
seus desdobramentos contextualizados com o marke-
ting internacional.
No cinema contemporâneo, existem várias formas
divulgação

de lançar uma obra no mercado nacional e no exterior.


No passado, as produções da maioria dos países eram
direcionadas exclusivamente para o respectivo mer-
cado doméstico, e poucos eram os filmes que tinham Em 1980, Michael Cimino gastou US$ 50 milhões
para produzir Heaven’s Gate e levou o estúdio
condições de serem conhecidos fora das fronteiras de Paramount a pedir concordata, pois o filme rendeu
seu país de origem ou de ter um destino diferente, além apenas US$ 1 milhão no mercado americano

114 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


divulgação
Apesar de seu heroísmo e seus efeitos especiais, John Carter – Entre dois mundos se transformou em um grande
desastre de bilheteria. Lançada em 2012, a produção, de US$ 200 milhões, faturou bem menos que o esperado,
mas nem por isso levou o estúdio da Disney à falência

e, principalmente, pessoas físicas comuns (e outras nem Independentemente das críticas a respeito desse tipo
tanto, como o diretor e produtor Steven Soderbergh). Esses de financiamento (pois existem riscos para os pequenos
“doadores” obtêm reciprocidade na divisão dos lucros ou investidores e, às vezes, por serem milhares de doadores,
recebem outras formas de pagamento, como produtos há dificuldade para citá-los no final do filme), esse novo
autografados ou um jantar com o diretor do filme. Exem- formato permite ao público ter acesso a filmes diferentes
plo disso foi o filme Veronica Mars: A jovem espiã, longa- daqueles feitos pelas grandes produtoras, sempre preo-
-metragem inteiramente financiado por fãs da série de TV cupadas com a Taxa Interna de Retorno (TIR) e outros
homônima, que será lançado no dia 14 de março de 2014. indicadores econômicos financeiros em detrimento da
Segundo os sites Kickstarer, Catarse e Cineasta.cc, a campa- disseminação cultural que um filme pode gerar.
nha de arrecadação na internet rendeu o montante de US$
5,7 milhões, para o diretor Rob Thomas, que, em março do O caminho de uma obra
ano passado se uniu à atriz Kristen Bell, protagonista do De olho nos resultados financeiros, no merchandising
seriado americano — que foi exibido entre 2004 e 2007 —, e no mercado de vídeo e redes de tevê, os empresários
para lançar a tal campanha. Em apenas quatro horas, eles da indústria cinematográfica americana focalizam seus
receberam US$ 1 milhão em doações — metade da meta esforços no lançamento dos filmes em outros países.
inicial que havia sido estipulada por Thomas. O sucesso Deixam de lado os filmes de arte, que necessitam de um
da ação de crowdfunding motivou outros produtores, dire- trabalho todo especial e representam menos de 1% do
tores e atores a procurar essa forma de financiamento. faturamento do cinema mundial, para priorizarem as

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 115


Entretenimento

grandes produções hollywoodianas e, em menor escala,


as bollywoodianas. Também chamadas de blockbuster e
mainstream, essas superproduções se caracterizam pelo
forte apelo no roteiro, pela presença de atores e atrizes
consagrados, por constituírem cerca de 80% do cinema
mundial e terem um esquema operacional bastante sim-
plificado de atuação nos mercados externos.
Geralmente, a estreia local ocorre em grandes feriados
nacionais e é precedida por campanhas publicitárias de
milhões de dólares. O filme remake Gojira, isto é, God-
zilla, estreou no Memorial Holiday, em 1998, seguindo
a mesma estratégia de Independence Day, da dupla Dean
Devlin e Roland Emmerich. O filme, antes de ser lan-

latinstock
çado, teve uma apresentação especial no encerramento
do Festival de Cannes, em 1998. A partir do próximo ano,
os dois filmes terão remakes, com linguagem atualizada
Rich Ross, presidente do estúdio Disney, foi demitido após
para a geração Y. Um ano antes da estreia de Independence o fracasso do filme John Carter – Entre dois mundos, que
Day, o filme Jurassic Park: The Lost World foi lançado nesse deveria faturar US$ 700 milhões para recuperar o capital.
mesmo final de semana e faturou, em bilheteria, US$ 90 Mas atingiu apenas uma receita de US$ 269 milhões
milhões, tornando-se o segundo maior sucesso de 1997.
Esses exemplos mostram que, inicialmente, o marketing bastante diferente de produtos e serviços convencionais,
deve ser concentrado localmente, sendo válidas diferen- pois geralmente sua primeira fase é caracterizada por um
tes ações para que a bilheteria se realize de forma efetiva. grande período de pesquisa e planejamento, que culmina
Outro exemplo é o filme Batman Begins, de Christopher na pré-produção. Todas as fases seguintes, considerando
Nolan, que obteve boa bilheteria na semana de estreia, somente o filme, são curtas, mas exigem esforço e con-
em 2005, porém, quando projetado convencionalmente, trole antecipados e pesados. Essa etapa envolve desde a
o valor arrecadado não justificaria uma sequência. Entre- comunicação prévia para gerar demanda primária, na
tanto, a propaganda informal positiva dos que assistiram ocasião do lançamento, até outras produções concorren-
ao filme e a classificação CinemaScore fizeram com que a tes diretas e indiretas, implicando também negociação
bilheteria se repetisse nas três semanas seguintes, ultra- prévia com o distribuidor. Exemplo dessas características
passando a marca de US$ 200 milhões, o que justificou o diferenciadas é o filme João e Maria, de Tommy Wirkola,
investimento em novas produções sobre o mesmo tema. cuja bilheteria nos EUA não justificaria uma sequência,
Depois da estreia local, o filme parte para ser lançado porém a bilheteria mundial, aliada ao baixo custo da pro-
mundialmente. Tal estratégia costuma ser precedida por dução, sugere que esta possa ocorrer.
press releases, inserção de reportagens em veículos de Hoje, as superproduções americanas utilizam inúmeros
comunicação, visitas de atores e diretores, apresentações canais de distribuição. Um deles é o pay-per-view. Depen-
especiais (para a obtenção de crítica favorável pelos dife- dendo da duração do sucesso do filme e dos esquemas de
rentes influenciadores de opinião) e grandes ações promo- merchandising, essa é uma possibilidade, depois de um
cionais no intuito de cativar o público em geral. Às vezes, período de três a seis meses. Outra possibilidade é o sell
uma certa confidencialidade torna o evento mais atrativo. through, isto é, a comercialização para uso doméstico,
Produções como Guerra Mundial Z, de Marc Foster, e O depois de no mínimo outros três meses.
Homem de Aço, de Zack Snyder, garantem exposições, às Já os DVDs oferecem recursos extras para os apaixona-
vezes espontâneas, nos meios de comunicação, melho- dos por cinema. Além do filme, eles apresentam uma série
rando o resultado das bilheterias regionais. A bem da ver- de conteúdos adicionais, visando estimular a compra em
dade, o Ciclo de Vida do Produto (CVP) cinematográfico é pacotes especiais. O Hulk, de Ang Lee, rendeu em torno de

116 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


na arrecadação das bilheterias, ora pela falta de criativi-
dade e inovação nos roteiros, ora pelos erros de marketing
regional e internacional, os investidores do setor muda-
ram suas estratégias em relação aos seus investimentos,
bem como a forma de captação de receita. As produções
passaram a ser realizadas em locais em que há facilidade
de obtenção de incentivos fiscais e custos menores. Além
disso, a receita agora é avaliada no desempenho total no
mercado internacional, uma vez que a bilheteria mundial
tem aumentado numa proporção maior (6%, em 2012) do
que a dos Estados Unidos, muito pelo crescimento dos
emergentes, como China e Rússia, e também pela novi-

divulgação
dade gerada pelo formato 3-D.
Observa-se que houve uma mudança na lógica dos estú-
dios, com a diversificação dos meios de divulgação. Nessa
nova ótica, as sequências de Capitão América e Thor serão
O filme Veronica Mars: A jovem espiã estreia em março
como o primeiro longa-metragem inteiramente financiado possíveis, considerando o mercado global e outros pro-
por fãs da série de TV. Em apenas dez horas, a campanha dutos de sustentação, como Os Vingadores. Atualmente,
na internet arrecadou US$ 2 milhões em doações os mercados mais significativos e alvo das estratégias
são: China, Japão, Reino Unido, França, Índia, Alema-
US$ 130 milhões nas primeiras semanas no mercado ame- nha, Coreia do Sul, Rússia, Austrália e Brasil. Agora, de
ricano, não se constituindo necessariamente num filme nada adianta desenvolver estratégias altamente criati-
de grande bilheteria, porém vendeu mais de seis milhões vas de comunicação integrada e de marketing interna-
de DVDs na semana de lançamento no mesmo mercado, cional se não houver a oferta de um bom produto ao mer-
tornando-se um grande sucesso no segmento de home video cado consumidor. É isso que ocorre com X-Men Origens:
e possibilitando uma sequência. Nesse caso, destina-se a Wolverine e a refilmagem de The Day the Earth Stood Still,
dois tipos de público: aqueles que comercializam e outros, que pecam pela qualidade do roteiro, ritmo da história e,
como as pessoas físicas, para entretenimento. principalmente, pelos conceitos nada criativos para os
Em outra frente, a TV a cabo é utilizada em um segundo tempos atuais. O primeiro desvirtua o perfil do anti-he-
momento. Mais de um ano após o lançamento, o filme rói e o segundo não estabelece vínculo com a sociedade
é exibido na TV a cabo. Depois de mais um ano, a super- atual. Se a versão original de Robert Wise (baseada no
produção vai para a TV aberta, gerando o aluguel perió- conto Farewell to the Master, de Harry Bates) debatia poli-
dico e renovável a partir da negociação de pacotes com ticamente a Guerra Fria e nuclear, a refilmagem parte do
filmes e seriados. pressuposto de que estamos impactando a natureza, mas
Ainda é possível realizar um relançamento, como, necessitamos de redenção, sem que, contudo, haja uma
por exemplo, a versão do diretor e remasterização, como discussão aprofundada sobre o assunto. E pensar que
ocorreu com a trilogia Star Wars ou Gone With the Wind, os especialistas da área cinematográfica ainda tentam
recomeçando um novo ciclo de vida nos cinemas. Fato entender a queda sucessiva das bilheterias... O roteiro
é, por exemplo, que a atualização da tecnologia 3-D em é simples: basta pensar no marketing internacional e,
Avatar (2010), de James Cameron, impulsionou um novo principalmente, no respeito ao público!
ciclo de vida comercial a outros filmes, como a trilogia
Jurassic Park, em 2013.
Edmir Kuazaqui
Doutor e mestre em administração, pós-graduado
Sem um final feliz? em marketing, professor da ESPM, autor de livros,
Como o mercado americano tem sofrido quedas sensíveis consultor e presidente da Academia de Talentos

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 117


INSC|ESPM

O poder dos internautas


Veja como está a (in)satisfação dos consumidores brasileiros
em 23 setores da economia, que, juntos, representam 23% do PIB
Por Marcelo D’Emidio

A
o analisarmos a evolução do INSC|ESPM nas seguintes áreas: vestuário (-7,9%); bancos (-7%);
nos últimos 19 meses, nota-se uma ten- energia elétrica (-5,1%); drogarias (-3,7%); supermer-
dência descendente nesse índice que cados (-3,5%); aviação (-3,1%); construtoras (-2%); per-
mede a satisfação do consumidor com sonal care (-1,4%); lojas de departamentos (-0,8%); e
base em informações do mundo virtual. Esse indica- indústria automobilística (-0,7%). Os demais setores
dor estuda a satisfação dos internautas em relação apresentam um aumento do índice de satisfação
aos serviços prestados e a produtos comercializa- de seus consumidores. Entre os destaques estão
dos por 96 grupos empresariais de 23 setores, que as categorias de transporte metropolitano (+4,1%);
representam 23% do PIB brasileiro. De acordo com bebidas (+2,7%); saneamento básico (+2,6%); indústria
o levantamento, o índice alcançou seu menor nível alimentícia (+1,3%); indústria farmacêutica (+1,2%);
em junho de 2013 e depois apresentou uma recu- e indústria digital (+1%).
peração nos quatro meses seguintes, como mostra O ponto fora da curva foi o setor de aviação, que
o gráfico 1. No último mês de outubro houve uma cresceu entre agosto e setembro, mas em outubro
queda de 2,4 pontos percentuais, quando o INS- teve queda de 3,1 pontos percentuais, atingindo 49,8%
C|ESPM passou de 56% em setembro para 53,6%. de satisfação entre os internautas. Como é possível
Em 19 meses, 13 dos 23 setores pesquisados regis- observar no gráfico 2 (na página 120), este valor está
traram retração. As principais quedas ocorreram abaixo da média histórica do mercado de aviação.

118 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


A Evolução do INSC Brasil
Evolução do INSC em um período de 19 meses terminado em outubro de 2013

60%

55%

50%

INSC Linear INSC


45%
ABR/12

mai/12

jun/12

jul/12

ago/12

set/12

out/12

nov/12

dez/12

fev/13

mar/13

abr/13

mai/13

jun/13

jul/13

ago/13

set/13

out/13
jan/13

shutterstock

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 119


INSC|ESPM

O estudo mostra ainda que essa queda está fortemente Esse desempenho abaixo da média é mais um exem-
ligada às críticas relacionadas à qualidade no serviço pres- plo do impacto das redes sociais na sociedade e do poder
tado por um dos players. As reclamações estavam centra- que o consumidor tem atualmente. A queda no segmento
das em problemas rotineiros do segmento, como a demora bancário foi causada pela baixa satisfação com uma das
no atendimento, o tratamento sem cortesia, a lentidão dos maiores instituições financeiras do Brasil, que foi mani-
sites e as filas de espera. Outro fato interessante que ocor- festada por um cliente. Um internauta, bem influente nas
reu no mercado da aviação foi uma piora na percepção dos redes sociais, fez duras críticas às altas tarifas praticadas
preços das passagens. Como em setembro de 2013 muitas por um determinado banco, e isso acabou desencadeando
companhias aéreas fizeram diversas ações de desconto, uma reação em cadeia, com outros internautas relatando
no mês seguinte a percepção de preço alto acabou se tor- problemas similares. Apenas o post inicial do internauta
nando mais intensa, o que impactou diretamente o índice descontente gerou aproximadamente 600 retweets.
de satisfação do consumidor. O segmento de bebidas apresentou comportamento
Após registrar seu melhor resultado no mês de setem- inverso. Após uma queda acentuada em setembro, no mês
bro, o setor bancário apresentou uma forte queda de 7% seguinte, o setor se registrou um aumento de 2,7 pontos per-
no INSC|ESPM, atingindo 45,1% (ver gráfico 3). centuais em relação ao mês anterior (ver gráfico 4).

GRÁFICO 2 | Satisfação do setor de aviação


70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
ABR/12

mai/12

jun/12

jul/12

ago/12

set/12

out/12

nov/12

dez/12

fev/13

mar/13

abr/13

mai/13

jun/13

jul/13

ago/13

set/13

out/13
jan/13

GRÁFICO 3 | Satisfação do setor bancário


60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
ABR/12

mai/12

jun/12

jul/12

ago/12

set/12

out/12

nov/12

dez/12

fev/13

mar/13

abr/13

mai/13

jun/13

jul/13

ago/13

set/13

out/13
jan/13

120 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


GRÁFICO 4 | Satisfação do setor de bebidas
88%
86%
84%
82%
80%
78%
76%
74%
72%
ABR/12

mai/12

jun/12

jul/12

ago/12

set/12

out/12

nov/12

dez/12

fev/13

mar/13

abr/13

mai/13

jun/13

jul/13

ago/13

set/13

out/13
jan/13
GRÁFICO 5 | Satisfação do setor de transporte metropolitano
50%
45%
40%
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
ABR/12

mai/12

jun/12

jul/12

ago/12

set/12

out/12

nov/12

dez/12

fev/13

mar/13

abr/13

mai/13

jun/13

jul/13

ago/13

set/13

out/13
jan/13

O aumento na satisfação dos consumidores foi reflexo Após alcançar seu menor resultado em setembro de 2013,
do melhor desempenho de duas das quatro empresas ana- o setor teve uma leve recuperação no último mês de outu-
lisadas pelo INSC|ESPM. Os acontecimentos que contribuí- bro. Pode-se inferir que esse crescimento está fortemente
ram para o crescimento estão relacionados ao lançamento relacionado ao anúncio de que a presidente Dilma Rousseff
de uma nova cerveja com maior teor de álcool e à redução irá investir grande volume de recursos no sistema metro-
das menções negativas sobre uma possível falha no engar- viário de São Paulo. Outro ponto positivo foi o metrô de São
rafamento de produtos, que ocorreram em grande escala Paulo ter lançado um aplicativo que apresenta o status das
em setembro de 2013. Apesar do crescimento de 2,7 pontos estações em tempo real. Por outro lado, o setor ainda apre-
percentuais, denúncias de trabalho escravo na construção senta muitas menções negativas referentes a problemas de
de uma fábrica de um dos players do setor repercutiram de linhas, filas, demoras e outras questões que já se tornaram
forma extremamente negativa nas redes sociais. rotineiras para os usuários de transporte público.
Por último, o setor de transporte metropolitano regis-
trou um crescimento de 4,1 pontos percentuais, chegando
a 24% de satisfação de seus consumidores em outubro do Marcelo D’Emidio
ano passado, como indica o gráfico 5. Professor de marketing e pró-reitor de graduação da ESPM

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 121


Alumni ESPM | Felipe Sollito Ventura

arquivo pessoal

Felipe Sollito Ventura, o ex-aluno da ESPM,


que desde criança atua como voluntário da AACD,
arrecadando moedas para o Teleton

122 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


O elo mais forte
da corrente do bem
Valores transmitidos pela família Ventura ajudaram a transformar “Felipinho”
em um dos maiores voluntários do Brasil. Com apenas 8 anos, ele virou exemplo
ao doar em rede nacional seu cofrinho de moedas ao Teleton. Hoje, aos 22, o ex-aluno
da ESPM é um dos protagonistas do trabalho desenvolvido pela AACD
Por Anna Gabriela Araujo | Fotos arquivo pessoal

R
ecentemente, uma onda de solidariedade e ainda faltavam R$ 3 milhões para a meta do Teleton
invadiu os Estados Unidos. Tudo começou ser alcançada, ele foi até o quarto, pegou seu cofrinho,
no ano 2000, após o lançamento do filme contou as moedas com a ajuda do seu pai Francisco
Pay it forward (Passe adiante), inspirado no e perguntou para sua mãe Deborah: “Esse cofrinho é
livro homônimo de Catherine Ryan Hyde. Na trama, que meu? Eu posso doar todas essas moedas para o Tele-
no Brasil ganhou o título de A Corrente do Bem, um garoto ton?”. Ao ouvir um sim como resposta, Felipe só sos-
resolve colocar em prática uma ideia simples para mudar segou quando conseguiu fazer o pai levantar do sofá
o mundo. Incentivado por seu professor, o pequeno Tre- em pleno domingo chuvoso e levá-lo até uma agência
vor McKinney (interpretado por Haley Joel Osment) cria bancária para doar os R$ 75 em moedas, que estavam
um jogo de gentilezas, no qual cada pessoa deve retribuir em seu cofrinho. Francisco levou o filho na unidade do
a outros três indivíduos um favor recebido e assim sucessi- Bradesco montada na sede da TV Cultura, onde o Tele-
vamente. Não demorou para esse jogo de “passar adiante” ton estava sendo transmitido. Quando chegaram ao
sair das telas de cinema e ganhar adeptos tanto na vida real local, cruzaram com uma produtora do programa. Ao
quanto no mundo virtual. Logo o movimento ganhou um ver Felipe descer do carro com seu cofrinho, ela gostou
dia, o Pay it Forward Day, comemorado sempre na última da história e armou tudo para que a doação fosse feita
quinta-feira de abril, que em 2011 promoveu a prática de ao vivo e em rede nacional.
mais de três milhões de atos de gentileza em todo o mundo. No palco, o menino de apenas 8 anos fez sua doação e
Tem de tudo: de pessoas distribuindo abraços e flores na encantou os telespectadores ao aceitar o desafio proposto
rua até gente pagando almoço para desconhecidos com pelos apresentadores Silvio Santos e Hebe Camargo de no
o objetivo de fazer o dia de alguém mais feliz. ano seguinte doar dois cofrinhos — com o dobro de moe-
Muito antes da ficção virar realidade, o Brasil já possuía das — para o Teleton. “Senti vontade de fazer alguma coisa
a sua Corrente do Bem, que foi inspirada em um gesto de por aquelas crianças. Mas isso só aconteceu por influência
solidariedade de uma criança. Seu protagonista atende pelo da minha família. Meus pais aprenderam certos valores
nome de Felipe Sollito Ventura. Hoje, o publicitário formado com os pais deles, que eu, seguramente, vou passar para os
pela ESPM figura entre os maiores e mais famosos volun- meus filhos”, comenta ele, que na época acabou ganhando
tários da iniciativa criada pela Associação de Assistência o apelido de “Felipinho” do próprio Silvio Santos e o título
à Criança Deficiente (AACD), no final da década de 1990. de “embaixador do bem”. “Meu avô Wilson foi meu grande
E tudo começou quando ele tinha apenas 8 anos de idade. incentivador, além de meu ídolo. Quando ele comprava
Em 1999, enquanto assistia à segunda edição do Tele- alguma coisa, pedia o troco em moedas para colocar no
ton — programa criado para arrecadar doações para a cofrinho do Teleton”, lembra o publicitário.
AACD —, Felipe deu início a um questionamento que Desse pequeno gesto surgiu a ideia de mobilizar o
mudaria para sempre a vida da família Ventura. Ao ouvir público infantil a ajudar os deficientes físicos aten-
o Silvio Santos dizer que o programa estava acabando didos pela A ACD. Batizada de Corrente do Bem, a

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 123


Alumni ESPM | Felipe Sollito Ventura

divulgação
O filme Pay it forward (Passe adiante) conta a história “Quando entro em uma das unidades da AACD, sinto
de um garoto americano que resolve colocar em uma emoção enorme de saber que ajudei a construir
prática uma ideia simples para mudar o mundo
aquelas instalações e que alguns atendimentos serão
feitos graças à minha doação.”
campanha passou a instalar cofrinhos em escolas
públicas e privadas, estabelecimentos comerciais, O contador de moedas
drogarias, pedágios, hipermercados, aeroportos, esta- A trajetória de Felipe comprova a veracidade de um dos
ções do Metrô e restaurantes para arrecadar doações. mais famosos ditados populares: “A educação vem do

Raio-x de Felipe Sollito Ventura

1991 1998 2000 2001


Em 26 de março, No dia 16 de maio, O garoto retorna ao Nesse ano, ele doou
Felipe Sollito Ventura assiste ao lado da Teleton com dois R$ 540 e, logo depois,
nasce na cidade mãe Deborah e do pai cofrinhos e R$ 320 em sofreu um acidente
de São Paulo Francisco a transmissão moedas, superando o que o fez ficar em uma
da primeira desafio proposto pelo cadeira de rodas por seis

1999
edição do dono do SBT meses
Teleton, pelo
SBT. Na ocasião, Felipe doa os R$ 75
o evento em moedas do seu
arrecadou R$ cofrinho no palco do
14,8 milhões Teleton e promete
ao Silvio Santos que
voltará no ano seguinte
para doar o dobro

124 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


No Brasil, Felipinho virou protagonista da Corrente uma doação. Ela cresceu, se casou, teve um filho, e a tra-
do Bem ao doar seu cofrinho de moedas para o Teleton, dição não só continuou, como também foi ampliada. Com
quando tinha apenas oito anos de idade
o apoio do marido Francisco, Deborah colocou o filho
Felipe para assistir ao Teleton desde os seus primeiros
berço”. Sua mãe, Deborah Sollito Ventura, aprendeu anos de vida. O objetivo era ensinar ao mais novo mem-
com a mãe dela a doar tempo e dinheiro para as pessoas bro da família Ventura a valorizar a vida, além da impor-
carentes. Sempre que a família viajava para Atibaia, no tância de ajudar ao próximo. A estratégia surtiu efeito
interior de São Paulo, passava em um orfanato para fazer mais rápido do que Deborah imaginava.

linha do tempo

2004 2005 2006


A mochila é substituída Felipe entra no palco O peso da mala
por uma mala de mão, do Teleton com uma aumenta na
que nesse ano levou mala cheia de dinheiro: mesma proporção
R$ 5,5 mil em moedas R$ 7,3 mil em moedas da doação de Felipe,
doadas por parentes e que chega a R$ 10 mil
amigos de Felipe

2002 2003
O marketing da AACD Os R$ 2,7 mil
cria a Corrente do arrecadados são
Bem para incentivar transportados ao palco
crianças a ajudar a do Teleton em uma
entidade mochila

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 125


Alumni ESPM | Felipe Sollito Ventura

Em 1999, Felipe doou R$ 75. No ano 2000, ele voltou


ao Teleton para cumprir a promessa que fez ao vivo e em
rede nacional de doar o dobro. Seu empenho foi tão grande
que acabou arrecadando R$ 320 em moedas. No palco,
firmou um novo compromisso com o dono do SBT para o
ano seguinte. E assim, Felipe foi estimulado a juntar cada
vez mais moedas. Em 2001 doou R$ 540. Depois, R$ 1,5
mil, R$ 2,7 mil e assim progressivamente.
Em 15 anos de programa, ele já realizou a doação de mais
de R$ 100 mil em moedas que conseguiu com parentes
e amigos. Em 2013, arrecadou R$ 30 mil, montante que
representou um total de 40 mil moedas. E o desafio para
este ano é juntar R$ 32 mil. Quem conta tanta moeda? Os
pais, tios e amigos de Felipe, que com o tempo transfor-
mou a contagem das moedas em um grande evento fami-
liar. “Em 2013, reunimos 18 voluntários em casa. Juntos,
levamos seis horas para contar 240 quilos de moedas.”
Mais do que arrecadar moedas, o que Felipinho fez foi
mudar a história de sua família e de milhares de crian-
ças, jovens e adultos de todo o Brasil. Isso porque seu tra-
balho voluntário chamou a atenção do departamento de
marketing da AACD, que resolveu aproveitar a esponta-
neidade do garoto para lançar a campanha Corrente do
Bem, que passou a ser divulgada por meio de palestras
em escolas públicas e particulares.
A contagem de moedas virou uma tradição na
A primeira vez que apresentou o trabalho da AACD casa do publicitário, que em 15 anos de programa
em público, o garoto tinha apenas 11 anos de idade. “No já arrecadou mais de R$ 100 mil em doações

Raio-x de Felipe Sollito Ventura

2007 2008 2011


O garoto do ”cofrinho” A doação de moedas Agora, a quantidade de
bate um novo chega a R$ 15,5 mil moedas é tão grande,
recorde: R$ 13,5 mil que nenhuma mala
em moedas, que aguenta o peso! Assim,
precisam ser a produção do SBT fez

2009 2010
divididas em duas uma caixa de acrílico
malas para serem para armazenar as
entregues no palco Felipe começa a cursar Com a ajuda de seus doações que chegaram
do Teleton a ESPM. Na faculdade, pais, avós, tios e amigos, a R$ 22 mil
estimula os amigos a Felipe junta mais de
doar seus ”cofrinhos de R$ 20 mil, num total
moedas” ao Teleton de 30 mil moedas

126 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Quero usar minha experiência
para apresentar um programa
de TV voltado para contar histórias
de pessoas dispostas a fazer o bem

primeiro ano, conseguimos arrecadar R$ 60 mil só com


palestras que fiz em 28 pré-escolas.” A partir daí, Felipe
não parou mais de promover a Corrente do Bem. O pro-
jeto foi crescendo junto com ele, que hoje ministra pales-
tras da pré-escola até a universidade. E todas começam
da mesma forma: “Olá. Sou Felipe, formado em propa-
ganda e marketing pela ESPM e voluntário da AACD...”.
Pelas contas da família Ventura, ele já falou para mais
de 20 mil crianças. “Muitas delas nem sonham o que é a
AACD. O que eu faço é mostrar o trabalho da associação,
em quais projetos o dinheiro doado é aplicado e como a
união de todos os cofrinhos é capaz de construir um hos-
pital. É uma lição de vida!”
Apenas em 2013, a iniciativa arrecadou quase R$ 1,5
milhão. “As pessoas querem ajudar, mas não sabem como
e acabam vendo nessa ação um canal facilitador para a
doação chegar até a AACD.”
Neste ano, a família Ventura iniciou uma revisão no
Adriane Galisteu, que apoia a Corrente do Bem, visita a ótica
orçamento para ampliar ainda mais a Corrente do Bem, da família Ventura. Na outra imagem, os pais de Felipe
que irá rodar o Brasil promovendo palestras em locais onde comemoram a formatura do filho, ex-aluno da ESPM

linha do tempo

2012 2013
Corrente do Bem arrecada Com suas palestras em escolas,
mais de R$ 400 mil Felipinho bate um novo recorde ao
e conquista o Prêmio reunir quase R$ 1,5 milhão para a
Marketing Best de AACD. Além disso, ele também doou
Responsabilidade Social para a entidade R$ 30 mil em moedas
e Felipe doa R$ 25 mil em
moedas ao Teleton

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 127


Alumni ESPM | Felipe Sollito Ventura

a AACD não está presente. Como é um trabalho voluntá-


rio, todas as despesas com as viagens sempre são pagas
pelos pais de Felipe, proprietários da Ótica Ventura. Res-
ponsável pelo marketing da loja, o ex-aluno da ESPM tam-
bém aproveita para praticar o bem no negócio da família
ao promover uma festa de Natal para crianças carentes e
o projeto “Visão em Ação”, que todos os anos leva mais de
1,5 mil crianças carentes ao oftalmologista e oferece os
óculos para aqueles que precisam . “Ter cursado a ESPM
me deu toda bagagem necessária para entender o marke-
ting como um todo, e como a partir dele conseguimos
mudar muitos outros fatores dentro da empresa de meus
pais. Além disso, fiz grandes amigos na ESPM, o que com
certeza foi meu maior presente!”
Todo esse trabalho voluntário rendeu ao protagonista
da Corrente do Bem uma legião de fãs. Luara, vítima de
Osteogenesis imperfecta, ou a popular doença dos “ossos
de vidro”, faz parte desse fã-clube. “Aceito ser líder desse
projeto por saber que meu trabalho ajuda a amenizar o
sofrimento de famílias como a da Luara, que basta fazer
um movimento mais brusco para quebrar algum membro
do corpo. Seu sorriso é a minha recompensa.”

Projeto de vida
Logo quando nasceu, Luara quebrou alguns ossos. Ainda
na maternidade, a mãe soube da deficiência da filha. O pai
não aceitou o problema e abandonou a família, deixando
Luara e seu irmão mais velho aos cuidados da mãe, que
passou a trabalhar dobrado para sustentar os filhos. Na
AACD é comum ver mães que cuidam sozinhas de seus
filhos deficientes e ainda enfrentam o preconceito dentro
da própria casa. Felipinho também foi vítima de precon-
ceito, e essa talvez seja a grande diferença que ele tem em
relação aos demais voluntários da AACD.
Dois anos depois de doar seu cofrinho de moedas para o
Teleton, ele caiu na casa do avô, ficou paraplégico e passou
a sentir na pele toda essa discriminação. “Felipe estava
brincando com as primas na casa dos avós. Durante uma
corrida, tropeçou, caiu e no chão ficou. Fomos para o hos-
pital Albert Einstein e lá os médicos disseram que o fato
de Felipe não sentir as pernas era um trauma do tombo e
que isso passaria em algumas horas. Voltamos para casa
e ele passou o domingo inteiro deitado, sem mexer as
Há 11 anos, Felipinho começou a dar palestras em escolas,
pernas”, lembra Deborah, que no dia seguinte retornou para divulgar o trabalho da AACD, por meio da Corrente do
ao hospital, onde permaneceu com o filho por 12 dias. Bem. Desde então, ele já falou para mais de 20 mil crianças

128 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Sem receber um diagnóstico preciso do ocorrido e após
inúmeros exames, Deborah resolveu levar Felipe para
casa e consultar o ortopedista da família. “O diagnóstico
foi preciso: uma torção na vértebra. Como era criança,
meu filho poderia voltar a andar em até seis meses. Caso
contrário, teria de aprender a conviver com o problema.”
Para desespero da família, Felipe permaneceu na cadeira
de rodas por 180 dias e voltou a andar apenas no sexto
mês. Durante esse período, Deborah e Francisco ouviram
muitos comentários do tipo: “Seu filho é tão lindo. Pena
que está numa cadeira de rodas!”. Já para Felipe a experi-
ência serviu para ele dedicar ainda mais tempo à causa
da AACD. “Descobri que a deficiência está dentro de cada
um de nós. Ela existe, principalmente, dentro das pessoas
preconceituosas”, assegura o voluntário, explicando que é
por isso que a AACD foca seu trabalho em ações que trans-
cendem os limites naturais da reabilitação.
Reabilitação, capacitação, sustentabilidade e integra-
ção social de pessoas com deficiência física. Esses são os
quatro pilares que há 63 anos mantêm a entidade, que foi
criada pelo médico Renato da Costa Bomfim. A partir de
1998, a iniciativa ganhou um grande aliado: o Teleton, uma
maratona televisiva criada na década de 1960 pelo ator
americano Jerry Lewis para conscientizar a sociedade a
respeito das possibilidades de um deficiente físico e esti-
mular a população a realizar doações.
Já na primeira edição, a campanha desenvolvida em
parceria com o SBT rendeu R$ 14,8 milhões e possibili-
tou o início do processo de expansão das atividades da
associação. No ano passado, o evento — que apresenta
24 horas de programação ininterruptas na TV — arreca-
dou R$ 26,9 milhões, valor que está sendo destinado à
manutenção das 16 unidades da AACD, além da amplia-
ção do Hospital AACD de Abreu Sodré.
E, se depender do empenho de Felipinho, a entidade
ainda terá muitos anos de vida pela frente! “Meu sonho é
ser presidente da AACD”, revela o voluntário. Enquanto
ganha experiência para assumir tal função, ele segue coor-
denando a área de marketing da Ótica Ventura e gravando
um projeto-piloto de uma atração que pretende lançar
ainda em 2014. “Atuo no Terceiro Setor há 15 anos. Quero
usar minha experiência para apresentar um programa
de TV voltado para a inclusão social. O objetivo é contar
Na época da faculdade, ele aproveitou o Trote Solidádio
para, junto com seus amigos da ESPM Social, realizar um
histórias de pessoas dispostas a fazer o bem e estimular
pré-exame oftalmológico em crianças carentes o surgimento de novos ‘Felipinhos’ em todo o Brasil!”

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 129


leitura recomendada

Magistratura e ética O grande livro Líder empreendedor


José Renato Nalini do marketing Dave Ramsey
Francisco Alberto Madia de Souza
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160 páginas – R$ 39,90 Editora M.books, São Paulo – 2013 2013 – 368 páginas – R$ 29,90
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da Justiça de São Paulo, José Rena- A obra garante aos leitores as infor- ao patrão faz parte dos sonhos de
to Nalini, o livro traz a reflexão de mações mais relevantes e atuais so- muita gente. Líder Empreendedor é
importantes juristas, jornalistas e bre as melhores práticas do marketing o relato de alguém que investiu todo
professores acerca de temas relacio- e tem por preocupação maior possibi- o seu dinheiro, seu conhecimento
nados à ética, desenvolvendo novas litar a compreensão de sua essência; e sua dedicação ao sonho de se
perspectivas e contribuindo para que o verdadeiro sentido de suas práticas. estabelecer como empresário. E fra-
os juízes brasileiros ampliem seus Isso possibilitou ao autor converter cassou, mas não desistiu. Hoje, dono
horizontes. Grandes nomes das áreas essas práticas permanentes de todos de uma companhia com centenas de
do direito, da filosofia, do jornalismo e os dias dos últimos 33 anos numa funcionários, milhões de clientes e
da sociologia discutem uma questão matriz de planejamento de marketing, uma receita de milhões de dólares, o
premente, fundamental e de interesse sobre todos os aspectos revolucio- autor descreve sua trajetória desde
de todos: os problemas éticos – espe- nária, a dos 12 ”Ps” em duas outras a empresa simples, que funcionava
cificamente relacionados ao mundo matrizes que tratam especificamente na mesa de sua sala de estar, até a
jurídico. O livro está organizado em 13 de branding; na organização da tra- construção de um império que hoje
artigos e tem a contribuição dos co- jetória do marketing em 12 gerações; alcança níveis extraordinários de
laboradores Ethevaldo Siqueira, José e na produção de um conhecimento sucesso financeiro. Em 15 capítulos,
Neumanne Pinto, Luiz Paulo Rouanet, genuíno, único, de total qualidade e efi- Ramsey destaca passos importan-
Luiz Werneck Viana, Oswaldo Giacoia cácia comprovada porque decorrente, tes para o sucesso, com base em
Junior, Regis de Morais, Renato Janine exclusivamente, da prática. situações e problemas reais da rotina
Ribeiro, Ricardo Dip, Roberto Romano, corporativa.
Sandro Vaia, Sergio Paulo Rouanet e Francisco Alberto Madia de Souza é diretor-
Welis Guerra Filho. presidente do Madiamundomarketing, Dave Ramsey é autor de três best-sellers
presidente da Academia Brasileira de da lista do jornal The New York Times:
José Roberto Nalini é presidente do Tribunal Marketing, criador do Prêmio Marketing Financial Peace, More than Enough e The
de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Best e jurado do Prêmio Colunistas Total Money Makeover

130 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


Diário de um consultor Gestão de pessoas Dê um startup na sua vida
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de projetos de consultoria, com base na O livro mostra que a meritocracia é vital sil, pelo escritório Weigel Coaching,
experiência do autor, adquirida em mais para a excelência organizacional e que apontou que apenas 15% das pesso-
de 25 anos de atuação profissional. Por ela demanda metodologias de avalia- as se dizem completamente satis-
meio de uma narrativa simples e direta, ção de potencial, de desempenho e de feitas no trabalho. Os dados foram
a obra vai além da teoria ao oferecer coaching, associadas a outras práticas comprovados pelo autor, por meio de
ao leitor exemplos práticos de como da gestão de pessoas. De acordo com o palestras que fez pelo Brasil sobre
realizar uma consultoria em qualquer autor, são os talentos humanos, indivi- o tema ”Pessoas de atitude fazem
tipo de empresa. O autor ainda traz duais, ou reunidos em equipes, os prin- o que gostam”. No livro, Tiago relata
um conceito de gestão apoiado em três cipais responsáveis por gerar riqueza sua experiência como vencedor do
fatores: sistemas, processos e com- nas organizações e, por extensão, nos programa Aprendiz 4 – O sócio e
portamento, com o qual será possível países. A obra é recomendada para pro- mostra o passo a passo para o leitor
melhorar a gestão de qualquer tipo de fissionais e executivos de várias áreas abrir sua própria startup. Mas não
empresa e, por consequência, conseguir (marketing, vendas, finanças, produção, qualquer uma, e sim um negócio di-
a continuidade dela no mercado. Obra logística e RH), interessados na gestão ferenciado que agregue algo na vida
de relevante interesse para gestores de RH e na atração, retenção e desen- das pessoas.
de empresas e consultores, ou ainda volvimento de profissionais e talentos.
para quem quer começar a carreira de Tiago Aguiar é mestre em direito das
consultor de maneira mais tranquila. Ugo Franco Barbieri é graduado em relações econômicas internacionais,
administração, direito, psicologia e filosofia, com especialização em negócios
João Coelho é engenheiro eletricista, executivo e diretor de administração e internacionais pela New York University.
pós-graduado em planejamento e gestão recursos humanos. É sócio da Horton Criador e apresentador do programa
estratégica. O consultor também International, empresa de Executive Search, de TV e internet Atitude BR, sobre
é professor de cursos de graduação e Assessment e Coaching, presente em empreendedorismo e professor
pós-graduação nas áreas de administração, mais de 30 países, e autor de diversas convidado de empreendedorismo na B.I.
produção, logística e vendas publicações sobre gestão de pessoas International

janeiro/fevereiro de 2014 | Revista da ESPM 131


leitura recomendada

A distintividade das marcas Se eu fosse brasileiro Crônicas de propaganda


Lélio Denicoli Schmidt Hugh Thomas Humberto Mendes

Editora Saraiva – São Paulo – 2013 Editora Soberana, Londrina – 2013 Editora nVersos, São Paulo – 2013
320 páginas – R$ 64,00 80 páginas – R$ 24,90 176 páginas – R$ 32,00

No mundo das marcas, ainda são Eis um livro que não se constituirá em A obra reúne artigos publicados pelo
dispersos os estudos que procuram best-seller, nem será encontrado em autor durante os últimos 20 anos em
entrelaçar a literatura jurídica com todas as livrarias. Mas merece ser co- alguns dos maiores veículos de comu-
os conhecimentos nas áreas da lin- mentado aqui. Hugh Thomas exerceu nicação do país. Entre os temas recor-
guística, comunicação, marketing e cargos executivos em grandes empre- rentes, estão a liberdade de expressão
outras disciplinas. Colaborando para sas e ainda hoje seu nome é lembrado, comercial e a ética na publicidade.
ampliar o entendimento do direito com respeito, no meio profissional. Atu- Preocupado com o futuro da profissão,
marcário, o livro busca esclarecer as- almente, Thomas é um cidadão aposen- Mendes afirma que não há mais gran-
pectos relacionados ao uso concreto tado, que aproveita o tempo disponível des publicitários como Ítalo Bianchi,
da marca no mercado e à percepção para fazer (e publicar) suas reflexões. Caio Domingues, Emil Farhat, Renato
por ela gerada. Nesse sentido, o uso Esse inglês, que passou a maior parte Castello Branco, Dora Pollack, David
reiterado pode atribuir distinção a da vida no Brasil, escreveu um verda- Ogilvy e Claude Hopkins. ”Os grandes
expressões que inicialmente não deiro manual, dirigido a nós brasileiros, profissionais estão acabando. De vez
continham tal característica, con- sobre como ”dar um jeito” no país. De em quando surgem novos, mas é uma
ferindo-lhe o que se convencionou fácil leitura, o livro ”pensa” o Brasil como luta danada para que eles cresçam.
denominar de secondary meaning. se fosse uma empresa privada – e, claro, Por isso, digo: sejam éticos e se dedi-
Da mesma forma, o uso inadequado é inviável de ser implementado. Sem quem para fazer história na profissão”,
da marca pode levar uma empresa a querer estragar o prazer da sua leitura, comenta o publicitário, que iniciou sua
perder toda a força distintiva que sua eis uma de suas recomendações: redu- carreira nos anos 1950, trabalhando
marca inicialmente possuía, trans- zir o número de deputados, de 513 para com artes gráficas, e atuou por mais de
formando-a em um nome banal e co- 337, o de senadores dos atuais 81 para 20 anos em agências e grandes grupos
mum, que é a chamada vulgarização. 54, e o de ministérios, dos inacreditá- editoriais, como Abril, Manchete e Visão.
veis 39 para apenas quatro: Segurança,
Lélio Denicoli Schmidt é advogado, Economia, Produção e Bem-estar. Uma Humberto Mendes é vice-presidente
especialista em processo civil pela PUC- viagem pela utopia brasileira – que vale executivo da Federação Nacional das
SP, e professor da PUC-RJ e da FGV-SP a pena fazer. (JRWP) Agências de Propaganda (Fenapro)

132 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


ponto de vista

Competição ou
solidariedade

divulgação
Luiz Ernesto Gemignani

“Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós competição em todos os seus gestos e, principalmente,
chega para uma breve visita, sem saber por quê, parece que banaliza as virtudes, entre elas a justiça, a generosida-
às vezes por um propósito divino. Do ponto de vista da vida de, a humildade, o respeito pelo outro e o bom-senso.
cotidiana, porém, existe uma coisa que sabemos de fato: que Vivemos uma crise de valores, reconhecem todos,
estamos aqui pelo bem dos outros” mas nos recusamos a encarar o problema. “Vamos
Albert Einstein levando”, como aquele que atravessa a ponte estreita

D
sem olhar para baixo para não cair.
e uma visão estritamente mecanicista, do- Parece evidente que o que tem sido feito não é su-
minante em boa parte do século 20, em que ficiente e que precisamos encontrar novos caminhos
as empresas eram comparadas a máquinas para atuar não apenas sobre o acessório, mas sobre o
e as pessoas a engrenagens, evoluiu-se nas últimas principal, considerando o nosso planeta e o bem-estar
décadas para a compreensão de que as organizações de todos os seus habitantes como a razão de ser final
são sistemas vivos, integrantes de sistemas sociais da existência do próprio homem.
complexos dos quais dependem e pelos quais são Essa mudança, que é do corpo e da alma, é profun-
responsáveis. da, mas não impossível. É equivocada a ideia de que
Essa visão disseminou-se de forma relativamente a biologia evolutiva defina a competição como a razão
ampla na sociedade, levando, entre muitas outras da evolução das espécies. Pesquisas recentes reconhe-
iniciativas, à maior transparência das práticas empre- ceram que a colaboração sempre esteve presente e foi
sariais e à definição de novos e mais amplos critérios fundamental para que a nossa espécie evoluísse. Em
para a aferição do desempenho das empresas. outras palavras, a colaboração, ou, se preferirem, a
Essas realizações representaram um significativo solidariedade, é tão parte da natureza humana quanto
progresso, que se traduziu em mudança para melhor a competição.
no comportamento das lideranças, dos investidores As empresas, em seu conjunto, são hoje, talvez, a
e dos consumidores. mais poderosa instituição do planeta. Desse poder
Ainda estamos longe, entretanto, de sermos a so- derivam uma grande esperança e a intransferível
ciedade da qual, efetivamente, nos orgulharíamos de responsabilidade de as organizações serem agentes
fazer parte. Com o propósito de estabelecermos uma efetivos de transformação da sociedade.
economia de mercado que busca, por meio da liberdade Transformação que deve começar nelas próprias
e da eficiência, o bem-estar de todos, acabamos nos pela incorporação, de forma verdadeira e corajosa:
tornando uma sociedade de consumo, que precifica em seus propósitos, do compromisso verdadeiro pela
tudo, fomenta a natureza predatória do homem, a criação de um mundo melhor; em suas estratégias, do
equilíbrio sábio entre o presente e o futuro, a competi-
ção e a solidariedade, a parte e o todo; em sua cultura
organizacional, da prática efetiva e intransigente dos
A colaboração foi fundamental para valores e virtudes que quer ver presentes na sociedade.
a evolução da espécie. Em outras
palavras, a solidariedade é tão parte da
Luiz Ernesto Gemignani
natureza humana quanto a competição Presidente do conselho de administração da Promon S.A.

134 Revista da ESPM | janeiro/fevereiro de 2014


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