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PERSONAGENS:

Matogrosso: Compositor de samba vindo do Mato Grosso, trabalha em canteiro de obras e vive em alojamento
junto de seus companheiros. É espirituoso, camarada e otimista. Apesar dos sonhos de sucesso,
quer se casar e constituir família com Inês, uma mulata que é sua grande paixão.

Inês: Jovem geniosa que trabalha numa tecelagem no Brás e mora no Morro da Casa Verde com os
pais, dois sambistas que pretendem montar uma escola de samba. É decidida a mudar de vida,
mesmo que seja preciso casar sem amor. É a melhor amiga de Iracema.

Iracema: Jovem etérea, órfã de pai e mãe, vive com os tios desde pequena. Trabalha na mesma tecelagem
de Inês. É apaixonada por Joca e sonha em se casar de véu e grinalda. É otimista e acredita que
todos têm força para mudar os seus destinos.

Joca: Paulistano frágil, trabalha na construção civil apesar da pouca saúde, pois, após a morte do pai,
ajuda a mãe que mora no Jaçanã, e que não dorme enquanto ele não chegar. É o melhor amigo
de Matogrosso e é apaixonado por Iracema, com quem quer se casar.

Dito: Pedreiro no canteiro de obras, vindo de Minas Gerais, mora no alojamento, é solitário e acredita
que se trabalhar para o progresso do país será reconhecido por isso. Tem medo de amar e não ser
correspondido. Dito jura que nunca se casará.

Beleza: Ex-sambista, o bahiano foi “salvo” da boemia por Tereza, sua mulher, a quem ama e para quem,
ironicamente, trabalha. Cansado de deixar seus sonhos para trás, resolve pegar uma oportunidade
que surge e se lança, novamente, na tentativa de uma carreira artística.

João: Filho de italianos, mora no Bixiga (perto do Córrego da Saracura), é casado com Isabel e tem cinco
filhos. Recebe entidades da umbanda e faz premonições, só não acerta o seu próprio destino.
Após uma inundação em seu barraco, se torna fiscal da prefeitura.

Moacir: Carioca que tenta a vida em São Paulo. Foi vencedor de um programa de calouros mas trabalha
como pedreiro. Só pensa em mulher e está sempre encrencado com seus diferentes casos. Está
de casamento marcado mas corre um boato de que já é casado.

Eugênia: Jovem saudosista, sofre com lembranças da época em que morava perto do viaduto Santa
Efigênia. Ao conhecer Moacir, ganha um samba e uma promessa de casamento. Após entregar-
se, vê que foi enganada e planeja vingança com apoio de sua família italiana.

Gabriela: Jovem mimada, filha de um bem-sucedido mecânico de automóveis da Vila Ré. Quer porque quer
se casar com o Moacir, por isso, marca um casamento black-tie com tudo pago pelo pai. Gabriela
é compulsiva e come tudo à sua volta. Toda a família tem medo dela.

Malvina: Verdadeira mulher de Moacir, mãe de seus sete filhos e de mais um que está por vir. Malvina é
uma mulher sofrida que vem do Rio de Janeiro para desmascarar o marido, fato previsto por João
numa premonição. Malvina somente não imagina a surpresa que a aguarda.

Ozébio: Abandonado por Maria, sua mulher, acredita que ter sido abandonado foi o melhor que poderia ter-
lhe acontecido na vida, entregando-se às noitadas e à bebida até que, sem dinheiro, sem amigos e
sem futuro, vira um mendigo no Centro.

Seo Zé: Pai de Inês. Sambista do Morro da Casa Verde. É constantemente acusado pela filha de ser
irresponsável por sonhar em fundar uma Escola de Samba. É um homem alegre, que apesar de
sentir que está ultrapassado, não desiste do sonho de ser sambista.

Dona Maria: Esposa de Seo Zé. Mãe de Inês. Apoia o marido em tudo. Ela também é sambista e entusiasta da
ideia de formar uma Escola de Samba. Não entende porque a filha rejeita tanto a sua origem do
morro. No entanto, seu enorme coração, a tudo aceita.

Tia e Tio: Tios de Iracema. Responsáveis por criá-la desde pequena quando os pais faleceram
num acidente de carro. Eles trabalham muito e estão sempre cansados. São viciados em
rádio, por isso, não prestam atenção ao que a sobrinha lhes diz.

Arnesto: Advogado que teve o seu nome colocado numa das canções de Adoniran Barbosa, a
conhecida “Samba do Arnesto”, um dos maiores sucessos do cantor. Segundo o
homenageado, ele nunca convidou ninguém para samba nenhum no Brás.

Adoniran: Uma representação de Adoniran Barbosa.

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Vozes do Rádio: “Histórias das Malocas”

Giuseppe Pernafina – motorista de táxi


Charutinho – malandro do Morro do Piolho
Terezoca – uma parceira de Charutinho
Pafunça – outra parceira de Charutinho

Vinheta – Locutor – Voz do morro – Megafone – Voz demolição – Voz oficial de justiça

Núcleo casamento do Moacir:

pai italiano
mãe italiana
mãe da Gabriela
pai da Gabriela

Participações:

Dona boa – mulher vaidosa que passa nas ruas e quer atenção

seo Gervásio – mestre de obras no canteiro onde os homens trabalharam

seo Manuel – português dono de pensão na Avenida São João

Núcleo feminino:

costureira 1 - mariposa 1 - fã 1

costureira 2 - mariposa 2 - fã 2

costureira 3 - mariposa 3 - fã 3

Núcleo masculino:

vendedor 1 – gerente – assistente – juiz – empregador 1 – homem 1 – fã 1 – policial

vendedor 2 – diretor – garçon – empregador 2 – homem 2 – fã 2 – gerente 2

vendedor 3 – padre – empregador 3 – homem 3 – fã 3 – garçon

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PRÓLOGO

Senta, senta, senta


Senta porque em pé não dá pra ver, iaiá
Senta, senta senta
Senta que eu paguei quero sentar
Senta, senta, senta
Senta porque em pé não dá pra ver, iaiá
Senta, senta senta
Senta que eu paguei quero sentar

Senta, senta, senta


Senta o home e a mulher
Senta todo mundo
Só criança fica em pé
Vamos acabar com a confusão
Quem não pagou,
Fica fora ou vai pro chão (chão, chão)

Senta, senta, senta


Senta porque em pé não dá pra ver, iaiá
Senta, senta senta
Senta que eu paguei quero sentar
Senta, senta, senta
Senta porque em pé não dá pra ver, iaiá
Senta, senta senta
Senta que eu paguei quero sentar

“Senta, senta” (Cachimbinho/Pinguim/Adoniran Barbosa)

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ATO 1

CENA 1: Num Domingo, Matogrosso e Inês discutem no salão de baile.

Matogrosso - Fica só mais um pouquinho, Inês...

Inês - (num rompante) Eu tenho qui ir imbora, Matogrosso!

Matogrosso - (insiste) Só mais uma e a gente vai.

Inês - Meu pai ´inda m´isgana.

Matogrosso - Eu posso ti deixá inteirinha na porta da sua casa.

Ines - Nem qui a vaca tussa!

Matogrosso - Qui injustiça, minha bravinha... (rouba-lhe um beijo)

Inês - (afastando-o) É sempre a mesma coisa!

Matogrosso - Olha lá! A Iracema e o Joca! (acena para os dois)

Inês - Eu vou chamá a Iracema pra ir imbora! (tenta sair)

A orquestra inicia mais uma música. Matogrosso puxa Inês para a pista de dança.

Fica mais um pouco amor. Eu ainda não dancei com você


Somos quase vizinhos. Fazemos o mesmo caminho
Vamos me dê sua mão. Quando o baile acabar
Eu deixo você no seu portão

Eu não vou pedir mas se você quiser me dar


Aquele beijo ao qual eu faço jus. Espero você entrar
Acender e apagar a luz. Abrir a janela e me dizer:
Boa-noite, Zé. Até amanhã se Deus quiser. Tá tudo legal

“Fica mais um pouco amor” (Adoniran Barbosa)

Ao fim da música, o casal deixa a pista de dança.

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Iracema e Joca conversam num canto do salão.

Iracema - A Inês tá me olhando de cara feia, Joca.

Joca - (admira-lhe o rosto) Linda.

Iracema - (observando Inês) Logo ela me chama, Joquinha.

Joca - Linda, linda, linda.

Iracema - (rindo) Bobo.

Joca - Bobo, bobo, bobo.

Iracema - Vamos lá, Joca? Antes que a Inês fique nervosa.

Joca - Pra onde você quiser ir, eu vou. (tenta erguê-la)

Iracema - Me coloca no chão, Joca!

Joca - (ergue-a) Eu vou te levar até o céu!

Iracema - Para, Joca! (apreensiva) Cuidado com o seu pulmão...

Joca - (gira Iracema no alto) Deus precisa ver o que ele criou!

Iracema - Eu tô com medo, Joca!

Joca - Linda de todo jeito. Eu te amo, Iracema!

Abraçam-se e beijam-se ternamente, sendo observados por Inês e Matogrosso.

Inês - (admirada) Olha! A Iracema e o Joca!

Matogrosso - (tenta beijá-la) Nós devia é fazê o mesmo...

Inês - (afastando-o) ´Cê num pega cedo no batente, não?!

Matogrosso - Nós vamo imbora tudo junto! (incisivo) Mi beija!

Inês dá um beijo na ponta do nariz de Matogrosso, que tenta agarrá-la.

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Inês chama por Iracema.

Inês - (alto) Vam´bora, Iracema?!

Matogrosso - (agarrando-a) Eles ´tão beijando. Mi beija!

Inês - Iracema! (em tom mais alto) Eu vou imbora sozinha!

Matogrosso - Deixa a Iracema e o Joca em paz. Olha pra mim! (faz beicinho)

Inês - ´Cê tá ridículo fazendo beicinho, Matogrosso!

Matogrosso - (dramatiza) “Por que não beijas esses lábios sedentos de ti?”

Inês - (repele-o) Era só o qui mi faltava: homi romântico.

Matogrosso tenta beijar Inês à força. Inês foge em direção à Iracema e Joca.

Inês - (pegando-a no braço) Vam´bora, Iracema! Já tá tarde!

Joca - A gente vai levar vocês!

Inês - (ironiza) ´Inda si tivesse carro, ia lá.

Iracema - Já tá quase na hora do último trem.

Joca - Jura? (espantado) Já são quase onze horas?!

Iracema - Desde que você foi morar no Jaçanã, o baile acaba mais cedo.

Joca - (tristemente) Quando meu pai morreu, lá foi o único lugar que a
gente pode pagar. E olha que a minha mãe ainda trabalhava, Iracema...
num tá fácil! Você foi a melhor coisa que me aconteceu! (abraça-a)

Iracema - (afaga-lhe os cabelos) Tadinho!

Inês - (Irritada) É sempre assim! Na hora d´imbora o Matogrosso some!


Depois num qué qui eu fique brava?! Ô, morro di vida!

Iracema - A Inês fala assim, mas não larga lá do Morro da Casa Verde.

Inês - Eu num tenho iscolha... eu vivo lá, né, Iracema?!

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Matogrosso chega na roda gingando.

Matogrosso - Eu quero entrá nesse samba da Casa Verde!

Joca - O Matogrosso é sambista! Vai se acostumando, Inês...

Inês - Sambista folgado! Meu pai vai fazê pele di tamborim di você!

Matogrosso - Folgo em sabê! (gira o corpo em torno de Inês)

Inês - Safado! (faz-lhe um carinho bruto na cabeça)

Joca - Esse tem alma de artista, Inês!

Inês - Di artista o inferno tá cheio! (riem)

A orquestra inicia uma nova música após um breve intervalo.

Iracema - (eufórica) É o samba do Adoniran!

Inês - Desse eu gosto!

Matogrosso - Intão, salve o Adoniran!

TODOS - SALVE O ADONIRAN!!!

Todos dançam animadamente no meio do salão. Os homens cantam.

De tanto levar frexada do teu olhar


Meu peito até parece sabe o quê?
Tauba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar

Teu olhar mata mais do que bala de carabina


Que veneno estriquinina que peixeira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automóver
Mata mais do que bala de revórvere

“Tiro ao Álvaro” (Oswaldo Molles/Adoniran Barbosa)

Ao terminar a música, Inês chama por Iracema.

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Inês - (enfática) Agora vam´bora?!

Iracema - Eu só ´tava esperando você!

Matogrosso - Eu também... só ´tava isperando você! (todos riem)

Iracema - (para Joca) O Matogrosso é tão engraçado.

Inês - (intromete-se) Isso aí num vale nada, Iracema.

Matogrosso - (orgulhoso) Meu peso vale ouro!

Joca - O Matogrosso é sambista de primeira, Iracema!

Iracema - (emocionada) Eu adoro samba! Acho tão lindo!

Matogrosso - Só a Inês num bota fé...

Inês - Tô iscaldada di conversa di sambista...

Joca - O Matogrosso ainda vai ser uma lenda do samba!

Matogrosso - Esse é meu chapa!!! (levanta Joca num abraço)

Iracema - Cuidado! (apreensiva) O Joca é muito frágil!

Inês - Esses dois...

Iracema - São como dois irmãos.

Inês - Igual você e eu, Iracema!

Iracema - Ô, minha amiga! (abraçando-a) É tão bom ouvir isso. Você sabe
qu´eu sou sozinha... só tenho os meus tios e vocês.

Inês - ´Cê sabe qui lá em casa todo mundo ti adora, Iracema!

Iracema - Eu também, Inês. Eu amo vocês! (abraça a amiga)

Matogrosso - (belisca Inês) Agora, ´cê qui num qué mais imbora, Inês?!

Inês - (dá-lhe um tapa nas costas) BESTA!!!

Caminhando, as duas mulheres acompanham os homens até a estação.

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Matogrosso - Qual é a boa pro Domingo qui vem?

Iracema - A gente podia ir pro Jardim da Luz! Vamos gente?

Joca - Com você eu vou até o fim do mundo, Iracema!

Matogrosso - O Arnesto nos convidou prum samba... (cutuca Joca)

Joca - É... ele mora no Brás! A gente podia ir pra Luz e depois pro Brás.

Iracema - Por mim pode ser!

Inês - Mas será qui num vai dá xabú, Matogrosso? Esses seus amigos...

Matogrosso - Eu boto a mão no fogo pelo Arnesto! O Joca conhece!

Joca - É melhor apertar o passo porque assim vamos perdê o trem.


Deus me livre perdê o trem! (faz o nome do pai) Vocês sabem que
minha mãe num dorme enquanto eu não chegar! (começa a correr)

Matogrosso - Isquenta a cabeça não, qui a gente sempre pega o trem!

Inês - Uma hora perde... (ouvem o apito do trem)

Iracema - Com o metrô vai ficar tudo muito mais rápido... (todos riem)

Inês - A distância vai continuá a mesma. Pobre sempre mora longe!

Joca - (para e diz à Iracema) Você mora... (tosse) no meu coração!

Joca tem uma crise de tosse.

Iracema - Joca?! Tá sem ar?! Tem que se cuidar, meu amor!

Joca - Não é nada, não. Logo passa. (tosse ainda mais)

Iracema - (acariciando-lhe) Pede pra tua mãe te fazer um xarope...

Joca - Você é o meu remédio, Iracema!

Iracema abraça Joca.

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Matogrosso também para de correr e segura Inês, romanticamente, nos braços.

Inês - Isso é hora di pará, Matogrosso?! Olha o trem, homi!

Matogrosso - (Interrompe-a) Eu... quero casá com você, Inês...

Iracema e Joca observam a cena.

Joca - Já vi tudo. Isso só podia dar em casamento.

Iracema - (preocupada) E você não devia ficar exposto ao vento...

Inês e Matogrosso se abraçam.

Matogrosso - Junta comigo qui a gente constrói nosso futuro!

Inês - Eu junto! Eu junto! (beijam-se)

Iracema e Joca aplaudem à distância.

Joca - Num falei?!

Iracema - (alisa-lhe os cabelos) Você é sensível...

Joca - Sou nada. Você é que é um anjo!

Iracema - Eu ti amo tanto, Joca!

Apito de trem.

TODOS - O treeeeeeeeeeem!

Sons de máquina fumegando e de engrenagens férreas.

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Os casais despedem-se efusivamente.

Matogrosso - (acenando) Eu ti amo muito, dimais mesmo, Inês!

Inês - Eu também... (baixinho) quero ti amar!

Último apito. O trem entra em movimento.

Joca - Nem fui e já tô com saudade, Iracema!

Iracema - Domingo a gente se vê!

Joca - Iracema, meu amor: cuidado ao ´travessar essas ruas!

Iracema - Adeus Joquinha. Manda um beijo pra sua mãe, e vê se não vai
fazer muito esforço na obra.

Joca - Adeus Iracema, adeus!

Joca canta.

Não posso ficar nem mais um minuto com você


Sinto muito amor mas não pode ser
Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas. Só amanhã de manhã

Além disso mulher tem outra coisa


Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar

“Trem das onze” (Adoniran Barbosa)

As mulheres caminham na penumbra. Luz cai lentamente.

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ENTRECENA: Despertar dos trabalhadores na madrugada. Homens e mulheres
caminham sob densa neblina, outros esperam condução nas paradas de ônibus.

“Quando Deus fez o homem quis fazer um vagolino que nunca tinha fome
e que tinha no destino nunca pegar no batente e viver folgadamente
O homem era feliz enquanto Deus assim quis
mas depois pegou o Adão tirou uma costela e fez a mulher
Desde então o homem trabalha pra ela
Vai daí o homem reza todo dia uma oração:
Se quiser tirar de mim alguma coisa de bão
Que me tire o trabalho a mulher não”

O dia amanhece plenamente. As pessoas caminham nas ruas envolvidas por


sons urbanos: trem, metrô, ônibus, carros, buzinas, vozes. Cantam.

Pogressio Pogressio
Eu sempre escuitei falar
Pogressio vem do trabalho
Então amanhã cedo nóis vai trabalhar

Homens e mulheres de variadas profissões destacam-se na multidão.

Quanto tempo nóis perdeu na boemia


Sambando noite e dia contando uma rama sem parar
Agora escuitando o conselho da mulher
Amanhã vou trabalhar se Deus quiser
Mas Deus não qué

Todos cantam.

Pogressio Pogressio
Eu sempre escuitei falar
Pogressio vem do trabalho
Então amanhã cedo nóis vai trabalhar

“Conselho de mulher” (João Belarmino dos Santos/Oswaldo Molles/Adoniran Barbosa)

Todos desaparecem entre os prédios, lojas, fábricas e canteiros de obras.

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CENA 2: Segunda-feira, na obra. Os dois amigos conversam enquanto trabalham.

Matogrosso - (mistura a massa) Esses patrão só sabe EXPLORÁ A GENTE!

Joca - Fala baixo, Matogrosso. Vai acabá perdendo o emprego.

Matogrosso - Ganhando o qui a gente ganha, num dá nem pra levantá barraco!

Joca - Eu chamei a Iracema pra morá comigo e com a minha mãe.

Matogrosso - Lá no Jaçanã? Isso num vai dá certo, Joca...

Joca - A Iracema gosta da minha mãe. Ela não tem mãe, nem pai.

Matogrosso - A Inês também num ´guenta mais morá com a família dela.

Joca - Parece até que a Inês não gosta da família dela. Gosta?!

Matogrosso - A Inês diz qui a casa dela vive cheia. Assim num dá pra gostá! Eu
mesmo: num ´guento mais morá c´aqueles marmanjo. Eu quero tê minha
casa, Joca. Só eu e minha mulherzinha!

Joca - A Iracema gosta... (suspira) ela é a pessoa mais linda do mundo!

Matogrosso - Tá apaixonado mesmo!

Joca - Você num tá apaixonado, não?

Matogrosso - Eu só sei qu´eu tenho muita vontade di beijá e acarinhá a Inês,


(volta a si) Mas a mulher é uma fera!

Joca - Ela falou que casa com você?

Matogrosso - Falou qui casa mais num falou qui mi ama...

Joca - E você liga pra isso?

Matogrosso - E não, Joca? Eu quero sê muito amado. (riem)

Joca - Eu acho qui tô sendo amado pela primeira vez na vida...

Matogrosso - A Iracema ti ama, Joca!

Joca - Graças a Deus!

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Dito, Beleza e João entram animados na conversa.

Dito - Intão... foi bão o baile?

Matogrosso - Mais qui bom, Dito! (aponta) Olha só a cara do Joca!

Joca - (aéreo) O que foi?!

Beleza - Está abestalhado?!

Matogrosso - O nome disso é Iracema!

Dito - Nome di feiticera das água! ´Doidô o home!

Beleza - Eu estou doido é de fome! (esfrega a barriga) Num vejo a hora de


ver o que a minha nêga mandô na marmita.

João - É na marmita qui a genti vê si vale a pena casá, meu!

Apito do almoço. Movimentação dos trabalhadores.

No enxadão da obra bateu onze hora.


Vamo se embora João. Vamo se embora João.
No enxadão da obra bateu onze hora.
Vamo se embora João. Vamo se embora João.

O quê você trouxe na marmita Dito?


Trouxe ovo frito Trouxe ovo frito.
E você Beleza o que é que você trouxe?
Arroz com feijão e um torresmo à milanesa da minha Tereza.

Vamos almoçar sentados na calçada.


Conversar sobre isso e aquilo. Coisas que nóis não entende nada.
Depois puxá uma paia. Andar um pouco pra fazer o quê?
É dureza João. É dureza João. É dureza João. É dureza João.

O mestre falou que hoje não tem vale não!


Ele se esqueceu que lá em casa não sou só eu...
O mestre falou que hoje não tem vale não!
Ele se esqueceu que lá em casa não sou só eu...

“Torresmo à milanesa” (Adoniran Barbosa/Carlinhos Vergueiro)

Depois do almoço, todos deitam na calçada para descansar e conversar.

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Moacir chega na roda e puxa assunto com Matogrosso.

Moacir - Maixs... si nãum é o meu sambixsta preferido?!

Matogrosso - ´Inda num posso dizê qui sou sambista, Moacir.

Moacir - Merrmão, quem pode se darr a exste luxo? E minha labuta aqui?!

Matogrosso - Você já ganhô concurso di calouro, tem até fã! Eu preciso fincá os
pé no chão. Vou casá, Moa!

Moacir - Ixsto qualquer um faixz! Quero verr é serr sambixsta di verrdade.


Lá no Rio, samba é coisa di Tradição, cum “T” maiúxsculo, maixs aqui,
qualquerr um canta samba. Vê aí o tal Adoniran Barrbosa!

Matogrosso - Sempre botando lenha nessa rixa, hein, Moacir?!

Moacir - Maixs nãum é merrmo? Vê só: qui malandro dixz qui nãum pode
ficarr “nem maixs um minuto” cum o broto purrque tem qui ficarr cum a
MÃE?! Parece o Joca, merrmão! (risos)

Joca - Não me mete na sua conversa fiada, Moacir!

Moacir - (para Matogrosso) Você consegue quebrarr exste bairrixsmo até


purr serr matogrossense! Nãum tem “tradição”, maixs tem futuro!

Matogrosso - É, mas ´inda vou trabalhá muito... Quero casá, tê filhos...

Moacir - Sonhoxs pequenoxs, Matogrosso!

Joca - (interfere) Sonhos realistas!

Moacir - Pra que terr pouco se você pode terr tudo e TODAXS?!

Matogrosso - Eu só quero a minha Inêis!

Moacir - Você fala ixsto agora! Casa pra verr o qui é bom pra tosse!

Joca - (acusa-o) Você diz que casar não é bom, mas vive casando!

Moacir - Vivo namorando, casarr é outra hixstória!

Beleza, Dito e João acordam de seu cochilo e entram na conversa.

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Beleza - A marmita tava boa, mas eu digo pur experência própia: casá é
furada! Eu cantava feito passarinho, mas aí, no dia que a barriga dos fio
ficô vazia, a nêga me chamô na xincha. Num foi fácil saí da boemia,
mas, graças ao meu sinhô do Bonfim, eu consegui! (faz o nome do pai)

Dito - Pur isso qu´eu num caso...

Moacir - Quem foi boêmio sempre tem lugarr na boemia, Beleza!

Beleza - Ih, minha voz num é mais a mesma, nêgo.

Moacir - Sua voixz nãum pode serr piorr qui a du Adoniran!

Dito - Ouvi no radim que aquele lá tem voiz di ´companhá difunto!

Moacir - Qui ixsto sirrva di exstímulo pra você cantarr, Beleza!

João tem um tremelique e agarra o braço de Matogrosso.

João - NÃO SE AMARRA! (revira os olhos) UMA MULHER VAI ACABAR


COM O TEU SAMBA! (fora de si) O nome dela dá samba, mas no título,
vejo um: MANÉ! (gargalha possuído)

Matogrosso - O Jão incorporô di novo!

Dito - Qui foi, Jão?! Tá doidim, homi?

João - Qui qui foi?! (voltando a si) Vocês sabe qu´eu sô d´umbanda, né?

Beleza - Você num é italiano, João?

João - Sô filho di oriundi, meu, mais sô d´oxóssi, catsso!

Dito - Oriunda o quê, Jão?!

João - Oriunda nada, meu! Oriunda nada!

Beleza - (para Dito) Oriundi é um desses italiano “chegado”, nêgo!

Apito de fim do horário de almoço. Moacir sai.

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Matogrosso e Joca discutem.

Joca - (enraivecido) Fica dando trela pr´esse Moacir...

Matogrosso - O Jão é qui veio c´umas conversa isquisita!

Joca - (ensimesmado) Esse cara é mó garganta...

Matogrosso - Quem?! O Jão?

Joca - Não! Tô falando do carioca!

Matogrosso - O carioca é bacana, Joca. Isso é uma rixa ridícula...

Na tecelagem, Iracema e Inês conversam enquanto trabalham.

Iracema - Tô tão apaixonada, Inês. E você?

Inês - Num sei.

Iracema - Como “num sei”?! Você falou pro Matogrosso que queria casar.

Inês - Quero casá, mi livrá daqui, do pai, di tudo!

Iracema - Seo Zé te adora. E a Dona Maria, então? Ai, se eles ouvem isso!

Inês - Meu pai e minha mãe são uns folgado, Iracema!

Iracema - Seus pais são legais, Inês. A tua casa é tão animada.

Inês - Você acha tudo legal, Iracema. Eu num vejo a hora di saí di lá.

Iracema - Não pode casar sem amor. Isso não é justo com o Matogrosso.

Inês - Eu gosto dele. Só num sei si é amor. Eu nunca amei pra sabê...

Iracema - Eu vou morar com o Joca e com a mãe dele.

Inês - Eu num suporto morar nem com a minha mãe...

Iracema - Nós somos diferentes, Inês. Eu fiquei tão orfá cedo que nem me
lembro da minha mãe. (enxuga lágrimas) E a mãe do Joca é um amor.

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Inês - Disculpa, Iracema. (muda de assunto) Você podia dormí em casa
no fim di semana!

Iracema - Pra mim podia ser bom. Sua casa é mais perto da Luz. (pensa)
Duro é pro Joca que sempre morou no Centro e foi morar no Jaçanã...

Inês - A família caiu depois qui o pai dele morreu, né?

Iracema - É. O pai do Joca tinha venda no Centro, mas foi desapropriado


pra passar o metrô, o homem enfartou e morreu, coitado. A mãe também
logo ficou doente, parou de trabalhar e os dois foram morar de aluguel,
lá no Jaçanã. O Joca trabalha de pedreiro porque tem de se virar, Inês.

Inês - Mas ele também num pode carregá a mãe nas costas, Iracema.

Iracema - (muda de assunto) Eu espero o fim de semana pra ver o Joca...

Inês - Fim di semana é coisa di pobre! Rico aproveita a semana inteira!

Sirene anuncia o fim do expediente. As colegas de trabalho se despedem.

Iracema - Até amanhã, meninas!

Costureiras - (em uníssono) Até amanhã, Iracema!

Inês - Até amanhã!

Timidamente, apenas uma das colegas se despede de Inês.

Maria - Até amanhã, Inês...

Inês - Até amanhã, Maria!

Maria - (resignada) Se deus quiser...

Inês - Se Deus quisé, Maria!

O batalhão de mulheres toma a rua. Um homem espera por Maria com uma rosa
nas mãos, na porta da tecelagem. Os dois se beijam romanticamente e, depois,
desaparecem na multidão. A noite cai. Um outro homem surge procurando por
alguém perdido na escuridão. Luz cai.

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ENTRECENA: No Morro da Casa Verde, Inês e Iracema preparam-se para dormir.
Ouvem um programa no rádio. No quintal acontece o ensaio da escola de samba.

VINHETA: “E a Rádio Record – Estação PRB-9 de São Paulo – passa a


transmitir, neste momento: Histórias das Malocas.”

LOCUTOR: No capítulo de hoje, Giuseppe Pernafina, motorista de táxi do Largo do


Paissandu, faz seus prognósticos pessimistas para o futuro:

GIUSEPPE - “Eh vae mar. Vae mar a vida, vae mar... te digo eu que a vida vae mar,
porque vae mar mesmo. Porque quando vae mar, vae mar é porque vae mar
mesmo... Estou aqui no ponto desde cinco de la matina, e ainda num virei a
chave – e tenho uma dor no amolar esquerdo, que não sei se abestraio ele ou
se faço uma anistia gerar,.. por isso te digo que vae mar”
(transcrição)

Subitamente, Inês desliga o rádio. O som da escola de samba invade o ambiente.

Inês - Vamos dormir porque amanhã a genti acorda cedo.

Iracema - A gente acorda cedo todo dia...

Inês - (ouvindo o samba) Ouviu? O samba mi persegue!

Iracema - Também, você vive no meio do samba... não tem como fugir!

Inês - Eu ´tava pensando, Iracema... será qui o Matogrosso gosta


mesmo di mim ou ele só qué entrá no samba do Morro da Casa Verde?

Iracema - Você pensa cada coisa, Inês...

Inês - Também tem genti qui casa com pobre por interesse.

Iracema - O Matogrosso só falta se arrastar por você, Inês...

Inês - Eu num sou boba não, Iracema!

Iracema - Só você, Inês...

Inês - Eu tenho ziriguidum!

Apagam a luz. Som da bateria da escola de samba retumba no escuro.

20
CENA 3: Domingo de Sol. Jardim da Luz. Matogrosso e Joca esperam por Inês e
Iracema. Matogrosso olha o relógio da estação várias vezes.

Joca - (aponta o relógio) Qué vendê?

Matogrosso - Elas ´tão demorando...

Joca - (rindo) Elas num ´tão nem cinco minutos atrasadas...

As duas chegam por trás e tapam seus olhos com as mãos.

AS DUAS - Adivinha!

Joca - (delicadamente) Minha florzinha!

Matogrosso - (brincando) Minha MARIA-BRIGONA!

Inês - CHATO! (dá-lhe um tapa nas costas)

Iracema puxa Joca para o lado.

Iracema - Que dia lindo, né?

Joca - Ainda mais agora que você chegou.

Inês - (interrompe-o) Tá falando bonito, é Joca?

Joca - Eu sou romântico... mas o Matogrosso é poeta!

Iracema - Você tem de conhecer o pai da Inês, Matogrosso!

Matogrosso - Ela num mi chama pra ir lá.

Iracema - O seo Zé faz questão de ter genro-sambista!

Inês - (brava) Iracema!

Matogrosso - Por mim, eu entro no samba e na família!

Inês - Meu pai ti mata si aparecê lá!

21
Iracema - A Inês é que é a fera da casa dela. (risos)

Inês - (desconversa) Vamos passeá? Eu adoro o Jardim da Luz!

Joca - Antes quero mostrá o que eu comprei! (tira uma câmera do bolso)

Iracema - (encantada) Uma Polaroid?!

Joca - E a primeira foto tem que ser sua!

Inês - (irônica) Ainda se fosse a chave de um carro...

Iracema - Eu não acredito, Joca! Eu sonhei que você tirava uma foto minha!

Joca - Assim?! (ameaça bater uma foto)

Iracema - Assim não, Joca! Tem de ser no meio das flores. (posiciona-se)

Joca - Uma flor no meio das flores. (brinca)

Joca tira uma foto de Iracema em pose singela. Em poucos instantes tem a foto
nas mãos. Os casais se afastam. Iracema e Joca passeiam de mãos dadas.

Iracema - Guarde para sempre este retrato, Joca!

Joca - Vai ser meu amuleto da sorte. (beija a foto)

Iracema - Você gastou uma nota preta nessa máquina, né?

Joca - Não tem preço que pague uma foto sua, Iracema.

Iracema - (acariciando-lhe o rosto) Você é uma graça.

Joca - A minha mãe perguntou de você.

Iracema - O que ela perguntou?

Joca - Quando a gente casa, quando você vai morá com a gente...

Iracema - E o que você disse?

Joca - Eu falei que no mês que vem.

Iracema - (aflige-se) Mas eu nem falei com a minha família ainda...

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Joca - Eu vou comprar as alianças nessa semana e vou pedir sua mão.

Iracema - Eu devo contar pra eles antes. Eles são os responsáveis por mim.
E também tem uma coisa, Joca...

Joca - (preocupado) O que foi, Iracema?!

Iracema - Eu quero casar de noiva mesmo que seja só no civil.

Joca - (animado) A gente passa na rua das noivas e compra um vestido!

Iracema - Eu já tenho o meu vestido... (timidamente) eu mesma fiz.

Joca - Você é a pessoa mais linda do mundo, Iracema.

Iracema - E você é o meu mundo, Joca.

Os dois beijam-se ternamente. Perto dali, Inês e Matogrosso brincam na grama.

Inês - Você é bonito! (apalpando-lhe os braços) Grandi e bonito!

Matogrosso - Ninguém nunca falou qu´eu sou bunito...

Inês - (olhando-lhe a face) Mas é.

Matogrosso - Você é bunitona também.

Inês - E você fala bonito.

Matogrosso - Sabe o qui eu faço bunito também? Tocá cavaco e compô!

Inês - Isso é coisa di malandro, num é não?!

Matogrosso - Você acha?

Inês - Meu pai diz qui é.

Matogrosso - Mas ele num é sambista?

Inês - É, mas diz qui é tudo malandro, inclusive ele! (riem)

O casal conversa animadamente.

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Matogrosso - Eu sou sambista e num sou malandro, sou trabalhadô!

Inês - Meu pai dá duro pela escola e num ganha nada, só gasta.

Matogrosso - Tem gente qui ganha muito dinheiro c´o samba...

Inês - Mais aí tem qui ter talento, né? ´Cê tem talento?

Matogrosso - (faz um gesto obsceno) Meu talento é enorme!

Inês - (dá-lhe um tapa no braço) Safado!

Matogrosso - Intão, escuta essa e mi diz...

Inês - Quero ver se o samba é bom pra levá pro meu pai...

Matogrosso - Isso é um teste?! (brinca)

Inês - Não, mas se for muito ruim, eu gongo! (riem)

Matogrosso cantarola a canção e se acompanha ao cavaquinho.

Com a corda Mi do meu cavaquinho


Fiz uma aliança pra ela. Prova de carinho
Com a corda Mi do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela. Prova de carinho

Quantas serenatas
Eu tive que perder,
Pois o cavaquinho
Já não pode mais gemer.

Quanto sacrifício
Eu tive que fazer,
Para dar a prova pra ela
Do meu bem querer.

“Prova de carinho” (Adoniran Barbosa/Hervé Cordovil)

Enquanto Matogrosso canta, Iracema e Joca conversam.

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Iracema - Você fala bem. Por que não trabalha numa loja ou restaurante?

Joca - Eu? (admirado) Eu não levo jeito pr´essas coisa, não...

Iracema - Você não nasceu pra carregar peso, Joca. O Matogrosso sim...

Joca - O Matogrosso é poeta, Iracema. Escuta isso... (faz silêncio)

Iracema - (após um tempo) Olha como vocês levam jeito pra outras coisas...

Joca - Mas pra quem não tem estudo, não dá nem pra ser artista.

Iracema - Mas você estudou, não estudou?

Joca - Eu só fiz até a quinta... e você?

Iracema - Fiz o colegial completo. Posso te ensinar o que eu sei...

Joca - Você já ´tá me ensinando.

Abraçam-se. Subitamente, Matogrosso para de tocar e retira algo do bolso.

Matogrosso - Eu queria ti dá um presente... (encabulado) Num é caro quinem


a câmara do Joca, mas é o símbolo do meu amor!

Inês - (quase sem prestar atenção) Seu samba é bom!

Matogrosso - Foi do meu cavaco qui saiu esse presente...

Matogrosso entrega-lhe uma delicada aliança feita da corda MI do cavaquinho.

Inês - ´Cê é doido, Matogrosso?!

Matogrosso - Eu sou doido por você, Inês! Gostô da aliança?!

Inês - Num é como eu pensava, mais... é bonita!

Matogrosso - Depois compro uma aliança verdadeira. (beijam-se)

Inês - Quero ti levá pra conhecê meu pai e minha mãe!

Matogrosso - (feliz) ´Tava na hora!

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Inês - E eu acho qui... aceito casá com você, Matogrosso.

Matogrosso - (levanta-se empolgado) Você casa cumigo, Inês?

Inês - Eu caso. Eu vou pra onde você quisé.

Matogrosso - E o teu pai?

Inês - Eu fujo se for preciso!

Matogrosso - Mulher minha num tem qui fugí di casa pra casá!

Inês - E o qui você vai fazê?

Matogrosso - Eu infrento a fera! Vou lá na sua casa e peço sua mão pro teu pai.
Levo aliança di verdade. Tudo nos conformes. Você vai sê minha, Inês!

Beijam-se. Logo, Matogrosso e Inês aproximam-se de Iracema e Joca.

Matogrosso - E intão, cambada?! Vamos lá pro Brás?

Joca - Tá mais do que na hora!

Inês - Eu tô com uma baita fome e eu com fome viro fera!

Iracema - Lindo o samba que você tocou, Matogrosso.

Matogrosso - Gostou, Iracema?! (orgulhoso) Fiz pra Inês!

Inês - Você viu a aliança qui ele mi deu?

Iracema - (encantada) Ó, que linda prova de amor!!!

Inês - A Iracema acha tudo lindo! Vive no mundo da Lua...

Joca - (ajoelha-se) A Iracema é a minha Lua...

Matogrosso - Ih! Tá louco di amor! (risos) Vam´bora genti qui já tá tarde!

Primeiros acordes do “Samba do Arnesto”. Matogrosso, Inês, Iracema e Joca


caminham bastante para chegar ao endereço. Após algum tempo chegam a uma
casa abandonada e, cansados, dão com a cara na porta. Inês fica irritada.

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Inês - Qui presepada é essa, Matogrosso?!

Iracema - Quem foi que nos convidou pra essa festa?

Joca - Sei lá, Iracema... isso é coisa do Matogrosso!

Matogrosso - Num mi põe no meio dessa sozinho, Joca!

Inês - Quem afinal é amigo desse Arnesto?

Matogrosso - (sem graça) Ninguém! A genti ouviu uma conversa lá na obra...

Joca - Que ia ter uma festa na casa de um tal de Arnesto.

Inês - Nessa maloca?!

Matogrosso - Disseram qui o homi era adevogado...

Joca - Que ia ser tudo na faixa...

Irada, Inês explode com Matogrosso.

Inês - Só você pra trazê a genti na casa di quem você nem conhece!
Mas se tivesse educação, esse Arnesto deixava um bilhete na porta!

Iracema - A gente podia ter ficado mais tempo na Luz...

Matogrosso - Disculpa, Iracema...

Joca - É, gente. Disculpa...

Inês - Disculpa nada! Eu vou é imbora!

Matogrosso - Espera, Inês...

Inês vai embora enfurecida sem aceitar as desculpas. É seguida por Iracema, que
é seguida por Joca. Matogrosso, sozinho, acerta os acordes de sua composição.

27
ENTRECENA: Arnesto aparece e conversa com Matogrosso.

Arnesto - Você conhece o senhor Adoniran Barbosa?

Matogrosso - Quem mi dera...

Arnesto - Ele é o compositor dessa canção que você acabou de dedilhar.

Matogrosso - Num é mesmo! Essa é minha! DO MATOGROSSO!

Arnesto - Ah, o da “Saudosa maloca”...

Matogrosso - (exalta-se) O quê? Maloquero, não! Num mi ofende!

Arnesto - Não, não. Desculpe-me. É mesmo tudo muito confuso!

Matogrosso - Minha cabeça ´tá girando...

Arnesto - Eu sou aquele que todos chamam de Arnesto...

Matogrosso - Nós ia num samba na sua casa...

Arnesto - E quem os convidou?

Matogrosso - Ninguém, não sinhô... nós ´tava indo assim... meio di penetra.

Arnesto - E eu é que levo bronca da moça nervosinha?!

Matogrosso - Ela é nervosa mesmo. Cum fome, intão...

Arnesto - Vocês não têm culpa! Isso é coisa do senhor Barbosa!

Matogrosso - Intão o sinhô dá licença qui tenho qui encontrá meus amigo...

Arnesto - Mande um abraço para o Joca e diga para a Iracema tomar,


mesmo, muito cuidado ao atravessar essas ruas...

Matogrosso - Mando sim.

Arnesto - Só mais uma pergunta: E eu que não convidei ninguém pra


samba nenhum?! Como fico?!

Matogrosso - Paciênça, Arnesto! Paciênça!

28
CENA 4: Segunda-feira no canteiro de obras. Beleza canta o “Samba do Arnesto”.

O Arnesto nos convidou prum samba ele mora no Brás


Nóis fumo e num incontremo ninguém
Nóis vortemos cuma baita duma reiva
Da outra veiz nóis num vai mais. Nóis num semos tatu

Noutro dia encontremo com o Arnesto


Que pediu descurpa mais nóis num aceitemo
Isso não se faiz Arnesto nóis num se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta

Um recado anssim: Ói turma num deu pra esperar


Ah duvido que isso...num faz mar... num tem importância
Assinado em cruiz porque num sei escrevê. Arnesto
“Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa/Alocin)

Moacir - (chegando) Maixs qui samba du crioulo doido é exste, Beleza?

Beleza - É o samba do Matogrosso, Moacir!

Dito - Onti, ele chegô dum samba qui num ´conteceu, tocô e cantô a
noite toda. Quase qui ninguém drumiu aqui no ´lojamento.

Moacir - Prum samba qui nãum aconteceu, até qui rendeu baxstante!

Beleza - O samba é esquisito mas tem ginga!

Dito - Diz qui vai ti convidá pra cantá numa festa, Moací.

Beleza - (surpreso) Numa festa?!

Moacir - Voixz ele tem, purr que ele mexsmo num canta, Dito?

Dito - Diz qui ´ocê tem mais experiênça...

Beleza - (para si) Um preto cantava melhor...

Moacir - Ele querr é se apoiarr no meu prexstígio. Se eu nãum exstivesse


arrumando pra casarr até topava uma aventura, maixs agora...

Beleza - Mas você já num é casado, Moacir?

Moacir - Veja bem: se-pa-ra-do. Solidão nãum é merrmo cumigo, Beleza!

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Joca chega na roda e coloca um saco de cimento no chão.

Joca - (ofegante) Só pode casá, de novo, se for separado ´legalmente´.

Dito - Ói... o Joquinha falano difícir.

Moacir - Vai casarr também, rapaixz?

Beleza - Contra quem, Joca? Iracema?! A rainha do mar?

Joca - Contra ninguém, Beleza! A favor!

Dito - (num rompante) Eu vou morrê soltero!

Moacir - Qui é ixsto, Dito? Até o Joca vai casarr!

Dito - Mas eu não! Sou sózim...

Moacir - (para Joca) E você, Joca? Tá fixsgado?

Joca - Tô. E você? Também num tá, não?

Moacir - Eu sempre exstou fixsgado, meu caro!

Beleza - Você que num tome rumo. Moacir, Moacir...

Moacir - Eu nãum tô dizendu qui vou até me casarr?

Dito - ´Cé é doido! Já contei trêis mulher sua desde qui te conheço!

Moacir - Doido é o Matogrosso! Ouvixste o samba novo, Joca?

Joca - O “Samba do Arnesto”? (orgulhoso) Eu vi esse samba nascer!

Beleza - Mó barato!

Moacir - Intão, afinal, o samba é dele mexsmo ou dexste tal de Arnexsto?

Joca - Não foge do assunto, Moacir. Você já não é casado lá no Rio?

Moacir - Você nãum tem ninguém, nãum Joca?! Vê si me deixa im paixz!

Joca - Eu tenho um amor e uma mãezinha que, todo dia, me diz: “Deus
te abençoe, meu filho”, coisa que você num tem faz tempo!

30
Matogrosso chega na roda.

Matogrosso - (para Moacir) Já decorô o samba, Moacir?

Moacir - Decorarr? Eu nem cunheço exste samba...

Joca - (alfineta) Todo mundo já conhece!

Dito - Ih, o Beleza canta interinho.

Beleza - (cantarola) O Arnesto nos convidou prum samba, ele mora no


Brás. Nóis fumo e não encontremo ninguém... Tá na cachola!

Matogrosso - E intão? ´Bora cantá?

Moacir - Ondi e quando?

Matogrosso - Domingo, lá no Morro da Casa Verde!

Moacir - Impussível, merrmão!

Matogrosso desespera-se.

Matogrosso - Pelamordedeus Moacir, num faz isso cumigo!

Moacir - Dexsculpe, maixs Dumingo tenho comprumisso, merrmão!

Dito - (tenta ajudar) Num é pra enchê laje! É só pra cantá, Moací!

Matogrosso - Eu preciso di você pra conquistá o pai da Inês.

Moacir - Aí é qui eu nãum vou merrmo...

Matogrosso - Tá com medo é, Moacir?

Moacir - Dumingo vou sairr cum Eugênia, filha d´um carrcamano du Bixiga!

Dito - Mais num é co´a Gabriela qui ´ocê vai casá?

Moacir - Era... (titubeia) É!

Dito - E num é com a Malvina qui ´ocê era casado?

31
Moacir - Maixs é cum a Eugênia qui eu vou sairr, ora.

Matogrosso - Você num pode me deixá na mão, Moacir! O pai da Inês vai fazê
uma iscola di samba! Já imaginô nosso samba virando enredo?

Moacir - Samba teu, Matogrosso! (decidido) Nãum vou! Dumingo vou sairr
cum a Eugênia pra verr o viaduto Santa Ifigênia! Ela morou lá quando
criança e tem uma noxstalgia incrível.

Joca - (indignado) É um tarado mesmo!

Matogrosso - Eu num acredito qui você num vai cantá por causa di mulher.

Moacir - Eu SÓ canto purr causa di mulherr, Matogrosso.

Dito - (indignado) Pur isso qu´eu num caso!

Matogrosso - (para Moacir) Amigo da onça!

Joca - (para Matogrosso) Isso é pra você ver quem é amigo de verdade!

Moacir - O mundo me condena e ninguém tem pena... (sai cantando)

Matogrosso, Joca, Dito e Beleza ficam atarantados.

Matogrosso - E agora? Domingo já taí e num tenho cantor pro samba.

Joca - Eu avisei! (pensa) Escuta: o pai da Inês nem te conhece e você


qué chegá assim? Trocando a filha por um samba?

Matogrosso - O home é sambista. Eu sô sambista. É assim qui tem qui sê!

Joca - A Iracema diz que a família da Inês é bacana.

Matogrosso - (cobre o rosto com as mãos) Sem o Moa, tô perdido...

Joca - Até parece que ele fez alguma coisa. Eu vi o samba nascer!

Matogrosso - (sem prestar atenção) Como canta bem... pena que é safado!

Beleza - Isso é verdade!

Matogrosso - E agora? Quem vai cantá Domingo lá na Casa Verde?!

32
Dito - (espontaneamente) O Beleza canta esse samba...

Joca - É! O Beleza sabe o samba, tem voz bonita e essa cara...

Matogrosso - (caindo em si) É verdade... canta, Beleza?

Beleza - (animado) Eu?! Claro qu´eu canto! Por quê não?

Matogrosso - (abraça-o) Graçasadeus! Pedi até vale pra comprá as aliança...

Joca - E o Dr. José Aparecido deu?

Matogrosso - Deu chorado! Pede pro Seu Gervásio! Ele é mais bacana.

Joca - A cidade tá crescendo e todo mundo quer crescê também...

Matogrosso - (imita grávida) Pra enchê ela de filho!!!

Apito do almoço. Mais tarde, na tecelagem...

Inês - Vocês vão lá em casa no Domingo, né?! Num nóivo sem você!

Iracema - Tenho certeza que o Matogrosso falou a mesma coisa pro Joca!

Inês - A verba SEMPRE tá curta mas o pai vai fazê um churrasquinho...

Iracema - Você já contou que o Matogrosso vai te pedir em casamento?!?

Inês - Falei que ia levá o Matogrosso em casa pra todo mundo conhecê.
Aí, o Matogrosso pede minha mão e o pai nem tem como negá.

Iracema - Você é doida mesmo, Inês!

Inês - Eu quero é cuidá da minha vida, Iracema!

Iracema - Nós vamos pedir para que vocês sejam nossos padrinhos!

Inês - Ai, mais a gente num tem dinheiro pra isso, Iracema...

Iracema - Vocês não precisa se preocupar porque vai ser só no civil.

Inês - E as roupa? Os presente?

Iracema - Suas presenças é o que importa.

33
Inês - Só você, Iracema! (abraçam-se) Contou pros teus tios?

Iracema - Ainda não... acho que vou contar hoje.

Inês - Tá com medo?!

Iracema - (muda de assunto) E você? Não tá?! Domingo já taí!

Inês - Eu sô mulher di tê medo, Iracema?

Iracema - Queria ser como você, Inês...

Sirene anuncia o fim do expediente. As colegas de trabalho se despedem. As três


costureiras que são colegas de trabalho na tecelagem parecem as parcas a
desenrolar, cozer e cortar os fios da vida.

Iracema - Até amanhã, meninas!

Todas - (em uníssono) Até amanhã, Iracema!

Costureira 1 - Qui você terá ainda uns dias... (para outra) viu a Maria, minina?

Costureira 2 -´Tão dizendo qui ela sumiu cum homi... que caiu na boemia!

Costureira 3 - Deus mi livre, dexô o marido procurano pur ela, noite e dia...

Inês - A Maria sumiu daqui purque vocês são um bando di fofoquera!

Iracema - (temerosa) Pelamordedeus, Inês! Para com isso!

Costureira 1 - Essa daí tá cada dia mais mal-educada!

Costureira 2 - Essa é do tipo da Maria!

Costureira 3 - Num para im casa mais qui trêis dia! (mulheres riem)

Inês sai enfurecida seguida por Iracema e o batalhão de mulheres da tecelagem.


Na rua, veem o marido de Maria, feliz, cercado por mulheres, a beber e a cantar:
Depois que aquela mulher me deixou, minha vida melhorou... ref. “Asa Negra” (AB)

34
ENTRECENA: Iracema entra na sala e vê os tios que ouvem atentamente ao rádio.

Terezoca - Me diga uma coisa Charutinho? O qual que é a receita para fazer uma
letra de samba?

Charutinho - Bom, pá escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que ter uma
condição principal.

Terezoca - É saber fazer as rimas, é?

Charutinho - Pá escrevê uma boa letra de samba... sentida... humana. A gente tem
de sê, em primeiro lugal... narlfabeto. Só se for narlfabeto, escreve bem.
(transcrição)

Quem vai pra escola de samba se matriculá


Não precisa sabê lê, escrevê ou multiplicá
Letra de samba não tem caligrafia
Letra de samba não tem datilografia
O que o samba tem que ter
Vou lhe dizer pra você
É cabrocha gingando, sacolejando, derretendo o gelo
Provocando muita dor de cotovelo
Quem vai pra escola de samba pra sê bacharé
Não precisa de latim
Não precisa nem de papé
Letra de samba não qué papé nenhum
Nem caneta Parker 51
O que o samba tem que ter
Vou lhe dizer pra você
É cabrocha gingando, sacolejando, derretendo o gelo
Provocando muita dor de cotovelo

“Letra de Samba” (Adoniran Barbosa/Oswaldo Moles)

A tia e o tio riem a valer. Iracema sai do quarto mas não é percebida.

Iracema - Tia! Tio! Tô saindo pra dormir fora! Na casa da Inês!

Tia - (sem paciência) Tá, tá, vai com Deus!

Tio - Esse Charutinho é muito engraçado!

Iracema parte deixando os tios fascinados frente ao rádio.

35
Cena 5: Sábado, no Morro da Casa Verde, Seo Zé afina o violão no quintal.

“Vai Nêga. Fala que o pai mandou, viu? Vai lá e fala que o pai mandou.”

Acende o candiero, ó nêga. Alumeia o terreiro, ó nêga


Vai avisar o pessoal que hoje vai ter ensaio geral
Acende o candiero, ó nêga. Alumeia o terreiro, ó nêga
Vai avisar o pessoal que hoje vai ter ensaio geral

Vai depressa Maria. Antes que fique tarde


Daqui a pouco escurece e não dá pra avisar ninguém
Na volta não esquece de falar com a Dona Irene
E passar pelo armazem trazer um pacote de vela e um litro de querosene

Desta vez não pode acontecer o que aconteceu da outra vez


Foi uma coisa incrível. O ensaio parou porque faltou combustível
Desta vez não pode acontecer o que aconteceu da outra vez
Foi uma coisa incrível. O ensaio parou porque faltou combustível

Acende o candiero, ó nêga. Alumeia o terreiro, ó nêga


Vai avisar o pessoal que hoje vai Ter ensaio geral
Acende o candiero, ó nêga. Alumeia o terreiro, ó nêga
Vai avisar o pessoal que hoje vai Ter ensaio geral

“Vai fia. Fala que o pai mandou, viu? Não vai trazer combustível de avião, nega.
Vai falar que o pai mandou. Pra trazer daquele mel bom que matou o vigia, viu?
Só pra nóis. Mas não demora viu fia. Fala que o pai mandou. Pai mandou”

“Acende o candieiro” (Adoniran Barbosa)

Inês e Iracema se arrumam no quarto.

Inês - Ai, Iracema. Eu tô nervosa. Será qui o Matogrosso vem mesmo?

Iracema - É claro que vem, o Matogrosso é homem, Inês!

Inês - Tá ficando tarde. Tá ameaçando caí um toró, num tá?!

Iracema - Não são nem seis. Água é bom... abençoa!

Inês - Deus ti ouça! Deus ti ouça!

Vozes de Seo Zé e Dona Maria, pais de Inês, ecoam do lado de fora.

Seo Zé - Fiiiiiiiia!!! Cadê o rapaiz?

36
Inês - Deve tá chegando, pai.

Dona Maria - (ao longe) As coisa tão quase pronta. A batata já tá assando.

Seo Zé - O pessoar do samba já tá chegano...

Iracema - Vamos descer, Inês?

Inês - Tô bonita?!

Iracema - Tá linda, amiga!!!

Inês e Iracema saem do quarto e encontram Seo Zé e Dona Maria.

Seo Zé - Só lôco pra dexá uma beleza dessas isperano, né Iracema?

Dona Maria - Num sei não si nóis num vai tê surpresa hoje... ´cê tá grávida, fia?

Seo Zé - ´Cê num cunhece a educação da sua fia, não?

Dona Maria - A Inês nunca traiz moço im casa... agora vem assim.

Iracema - O Matogrosso é muito bacana, Dona Maria. É amigo do Joca. Eu


tenho certeza que vocês vão adorar.

Seo Zé - Nome di homi ele tem. Agora, si é sambista, tem qui sê dos bom
purque num quero tê uma vergonha na minha família.

Inês - Ele num é só sambista, pai... também é trabalhadô!

Seo Zé - É bom sê trabaiadô! Mas si fô ruim di samba num dexo casá!

Inês - Pai?!... (brava) Num mi dexa nervosa!

Dona Maria - Tá atrasado o moço, hein?!

Inês - Mãe?! Vê si vocês num vão istragá tudo, hein?!

Dona Maria - Nóis?! A genti faiz tudo direitinho, Inês... (riem)

Inês - (irônica) Faiz mãe, eu sei...

37
Viaduto Santa Efigênia. Moacir chega correndo.

Eugênia - Você tá atrasado, Moacir...

Moacir - (ofegante) Deixsculpe, doçura, você nem sabe! Unxs malucoxs


queriam mi levarr à força prum pagode. Fugi pra estarr aqui!

Eugênia - Estava aqui olhando o viaduto...

Moacir - Goixstou?

Eugênia - Não sei... fiquei melancólica.

Moacir - (abraçando-a) Não fique triste, meu amorrzinho... sabe qui eu


quiixs marrcarr aqui pra você verr como ficou bunito o viaduto. Sabe qui
eu fixz um samba pra marrcarr eixste momento?

Eugênia - Jura? (entusiasmada)

Moacir - O qui eu nãum faria pra aplacarr a tua dorr?

Eugênia - Você não me deixa sofrer...

Moacir - Nãum deixo. (dançando em torno dela) Minha linda...

Eugênia - Você não me deixa chorar...

Moacir - Só di alegria. (rodopiando-a pela cintura)

Beijam-se romanticamente. Moacir canta para Eugênia.

Venha ver. Venha ver Eugênia


Como ficou bonito o Viaduto Santa Efigênia
Venha ver. Venha ver Eugênia
Como ficou bonito o Viaduto Santa Efigênia

Foi aqui que você nasceu. Foi aqui que você cresceu.
Foi aqui que você conheceu o seu primeiro amor
Eu me lembro que uma vez você me disse
Que no dia que demolissem o viaduto
De tristeza você usava luto
Arrumava sua mudança e ia embora pro interior
Quero ficar ausente. O que os olhos não vê o coração não sente

“Viaduto Santa Efigênia” (Alocin/Adoniran Barbosa)

38
No Morro da Casa Verde, o pagode está “pegando fogo” no fundo do quintal.
Matogrosso chega com o cavaquinho na mão, acompanhado de Joca e Beleza.
Estão esbaforidos. A chegada chama tanto a atenção que para o samba.

Iracema - (aponta) Olha eles chegando, Inês!

Inês - Eu mato o Matogrosso!

Matogrosso - (tenta fazer graça) Num diz qui mi mata qu´eu desafino...

Seo Zé - Já chegô parano o samba, fio?

Matogrosso - Disculpe, sinhô!

Seo Zé - (apresenta-se) Seo Zé! Pai da inês!

Matogrosso - Intão, o sinhô é o famoso “Seo Zé”?

Seo Zé - Num vem cum adulação... (aponta) Veio armado do cavaquinho?

Matogrosso - E do melhor cantor qu´eu conheço: o BELEZA!

Seo Zé - Tem pinta di sambista! Mas... (graceja) Beleza?!

Matogrosso - Beleza! Sabe cumé... (procura as palavras)

Enquanto Matogrosso é apresentado à mãe de Inês. Iracema conversa com Joca.

Iracema - Por que vocês demoraram tanto?!

Joca - O Matogrosso tava insaiando o Beleza...

Iracema - E esse nome? Não combina, ele é tão... (ri) Vocês são loucos.

Joca - Lôco é o Matogrosso!

Iracema - Será que eles vão agradar?!

Joca - Isso é o qui nós vamos ver...

Seo Zé pede para que Matogrosso e Beleza cantem o “Samba do Arnesto”.


Matogrosso e Beleza arrasam. Ao final, todos cantam o samba com entusiasmo.

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Inês - (aplaudindo-os) Será qui meu pai gostô?

Iracema - (cochichando) A cara dele não tá das melhores...

Seo Zé se levanta com a cara amarrada. Matogrosso e Beleza estão apreensivos.


Dona Maria se aproxima do marido. Iracema olha para Joca. Beleza está pálido.

Seo Zé - (pausadamente) Eu só tenho uma coisa a dizê desse samba: ele


é tão bão... qui eu tenho a ´pressão queu já ouvi antis, im argum lugá!
(silêncio) mais acho qui é só ´pressão. Viva o Matogrosso!!!

Todos vibram e cantam o “Samba do Arnesto”.

Dona Maria - (empolgada) O cantô é bom dimais e esse samba tem futuro!

Beleza - (humildemente) ´Brigado!

Seo Zé - E o Matogrosso tá aprovado como sambista e genro!!!

Todos festejam. Em cena paralela, Eugênia e Moacir caminham no viaduto.

Moacir - Goixstou?

Eugênia - Do samba?

Moacir - De mim.

Eugênia - Gosto.

Moacir - Maixs di mim qui du Viaduto?

Eugênia - (Rindo) Seu bobo.

Moacir - Querr casarr cumigo?

Eugênia - Cê tá louco, Moacir?

Moacir - Você naum goxsta merrmo di mim...

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Eugênia - Claro que gosto!

Moacir - Casa?!

Eugênia - Caso!

Moacir - Duvido!

Eugênia - Claro que caso!

Moacir - Prova qui mi ama!

Eugênia - Provo! Você diz isso pra todas?

Moacir - Todaxs?! (indignado) Só tenho você, amorrzinho...

Eugênia - Nem no Rio?

Moacir - Em lugarr nenhum du meu coração!

Eugênia - Você é tão sensível, Moacir...

Moacir - Casa cumigo intão, broto...

Beijam-se. No Morro da Casa Verde, Matogrosso para novamente o samba.

Seo Zé - (surpreso) Parô o samba di novo, fio?! Anssim num dá!

Matogrosso - (em voz alta) Eu tenho algo a declará: quero pedi a mão da Inêis!

Seo Zé - (humorado) Coitadinha da fia! Só a mão? Leva ela intera!

Inês - (nervosa) Pai...

Dona Maria - É brincadera do pai, fia. É purque gostô do rapaiz.

Seo Zé - Mais, mi diga uma coisa fia: ocê qué mesmo casá?

Inês - (aflita) O Matogrosso é tudo qu´eu quero, pai!

Seo Zé - Intão... qui Deus abençoe ocêis!

Todos aplaudem e festejam.

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Moacir e Eugênia beijam-se na cama de um hotel.

Eugênia - (acariciando-lhe o rosto) E quando vamos nos casar, amor?

Moacir - Ãh?! (levantando-se da cama) Logo... daqui unxs anoxs.

Eugênia - (senta-se) Tudo isso? Meu pai não vai gostar de saber...

Moacir - (vestindo-se) Nãum vai gostarr amorr, nãum vai! Intão, nãum
conta nada. Agora exspera aí qui eu vou trazerr unxs pãexs quentexs!

Eugênia - Vou esperar, meu amor...

Moacir - Espera deitada.

Eugênia - Deitada, Moacir, deitada. (encolhe-se entre os lençóis)

Moacir - Isso... deitada.

Moacir sai do quarto. No morro da Casa Verde, uma roda de samba resiste. O pai
canta. A música funde-se ao nascer do dia.

Silêncio é madrugada
No morro da Casa Verde a raça dorme em paz
E lá embaixo meus colegas de maloca
Quando começa a sambar não pára mais
Silêncio. Silêncio é madrugada
No morro da Casa Verde a raça dorme em paz
E lá embaixo meus colegas de maloca
Quando começa a sambar não pára mais

Valdir vai buscar o tambor


Laércio trás o agogô
Que o samba na Casa Verde enfezou
Silêncio. Silêncio é madrugada
No morro da Casa Verde a raça dorme em paz
E lá embaixo meus colegas de maloca
Quando começa a sambar não pára mais
Que o samba na Casa Verde enfezou.
Que o samba na Casa Verde enfezou
Que o samba na Casa Verde enfezou.
Que o samba na Casa Verde enfezou

“No Morro da Casaverde” (Adoniran Barbosa)

FIM DO PRIMEIRO ATO

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ENTREATO

Eugênia permanece deitada durante todo o intervalo. Aos poucos, passa a


demonstrar impaciência. Ao soar o terceiro sinal que anuncia o início do
Segundo Ato, Eugênia sai da cama e se retira, indignada, cortina adentro.

ATO 2

CENA 1: Palecete no Bixiga. Uma família italiana aguarda ansiosa a chegada de


Eugênia, a jovem filha do casal. O patriarca canta apesar de irritado.

"Gioconda, pitina mia,


Vai brincar alí no mare, í no fundo,
Mas atencione co os tubarone, ouvisto
Capito meu San Benedito"

Piove, piove,
Fa tempo que piove qua, gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E vuoi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui

Ti ricordi, gioconda,
Di quella sera in guarujá
Quando il mare ti portava via
E me chiamaste
Aiuto, marcello!
La tua gioconda a paura di quest'onda

“Samba italiano” (Adoniran Barbosa)

Subitamente, Eugênia entra no salão enrolada em lençóis de hotel. Eugênia relata


ao pai o acontecido entre ela e Moacir. Por seus gestos dramáticos, percebe-se
que a família está irada. No fim da canção estão todos com sorriso maquiavélico.

Pai italiano - Niuno farabuto imbroglia figlia mia! (grita) LA GUERRA!!!

Mãe italiana - Padre mio... (furiosa) La vendetta! LA GUERRA!!!

Eugênia - Eu quero VINGANÇA! A GUERRA!!!

A família italiana se retira enfurecida.

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No canteiro de obras, os amigos conversam animadamente.

Moacir - E exstá todo mundo convidado pro meu casamento!!! (festejam)

Dito - Qué dizê qui eu tamém tô convidado pro seu casamento, Moací?!

Moacir - Ixsto é pra moxstrar pra vocêxs qui sou amigo di toduxs!

Beleza - Esse aí continua só na brilhantina e na vaselina!

Dito - (aponta para Beleza) E esse aqui, desdi qui cantô “O Samba do
Arnesto”, num cabe mais im si!

Joca - Cantou mais que muita gente aí!

Beleza - (abre um sorriso) Cantei mesmo!!!

Joca - O Beleza tá famoso na Casa Verde!

Matogrosso - Esse sim provô qui é amigo di verdade.

Joca - Ao contrário de muita gente aí!

João - Nessa você saiu perdendo, hein, Moacir?

Moacir - Ganhei uma joia chamada Eugênia, merrmão!

Dito - Mais você já num é casado, Moací?

Moacir - Meu casamento tá marrcado pra daqui duaxs semanaxs!

Matogrosso - Vai casá c´a Eugênia?!

Moacir - (desconversa) Vou casarr é cum a Gabriela...

Joca - Eu pensava que sua mulher chamava Malvina...

Dito - Afinar, tô ou num tô convidado presse casamento?

Joca - (indignado) Eu vou é logo pedir meu adiantamento, isso sim!

João - Eu também vô! Mas só depois di você Joquinha...

Joca é seguido por João.

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Moacir também se revela indignado.

Moacir - Qual é a du Joca, merrmão?!

Dito - Ah, o Joca é muito amigo do Matogrosso...

Moacir - E eu? Nãum sou, nãum?!

Matogrosso - Na hora qui eu mais precisei, você me deu as costas!

Moacir - Ixsto é injuxsto! Eu ainda vou provarr qui vocêxs exstão erradoxs!

Matogrosso - O Joca é qui tinha razão...

Enquanto Moacir sai irritado, Joca volta arrasado.

Beleza - Que foi, Joca?

Joca - Pedi adiantamento e o chefe negou. Sou um azarado mesmo!

Matogrosso - Disse qui era pras aliança?! Explicô tudo?

Joca - Expliquei! (revoltado) Todo mundo conseguiu, menos eu.

Matogrosso - Fica assim não, Joquinha, Eu divido com você o meu salário!

Joca - Não é justo! (grita) CAMBADA DE EXPLORADOR!!!

Matogrosso - Cuidado, Joca, qui eles ti manda imbora...

Joca - Não era você que tava todo revoltado uns dia atrás?

Matogrosso - Tava Joca, mas fazê o quê?! Nóis precisa do dinheiro!

Dito - Pur isso qui a gente trabaia duro aqui. O negócio lá fora tá brabo!

Joca - Ninguém reconhece! (grita) GENTE INGRATA!

O grito chama a atenção de Moacir que volta curioso.

Moacir - O qui exstá acontecendo aqui, merrmão?!

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Joca, irritado, canta.

Joca - Se você num tá entendendo / O que o papagaio tá dizendo / Eu


tô. Posso até lhe traduzir / Currupaco, papaco, paco / Vê se não me
enche o saco. “Currupaco (gente curiosa)” (Elzo Augusto/ Adoniran Barbosa)

Joca sai em disparada. Na tecelagem, Iracema e Inês conversam animadamente.

Iracema - Tô animada, Inês! Acho que vai dar tudo certo.

Inês - Tomara, Iracema!

No autofalante, Iracema é chamada a comparecer na portaria da tecelagem.

Autofalante - SENHORITA IRACEMA, FAVOR COMPARECER À PORTARIA!

Iracema corre apreensiva, ao chegar à portaria depara-se com Joca transtornado.

Iracema - Que foi, Joquinha?! O que aconteceu? Conta! tô tão aflita...

Joca - O nosso casamento, Iracema... (chora) pedi adiantamento pra


comprar aliança, dar entrada nos papel e o seo José Aparecido negou!

Iracema - Calma, Joca! (acalma-o) A gente tem todo o tempo do mundo!

Joca - Vim aqui pensando naquilo que você me falou, de arrumar outro
tipo de trabalho. Você acha que eu levo jeito mesmo pra outra coisa?!

Iracema - Você não nasceu pra trabalhar de pedreiro, Joca!

Joca - Quero arrumar um noturno de garção. Será que eu consigo?

Iracema - É claro que consegue! Você podia procurar na avenida São João.

Joca - Vou mandar aquela obra pro inferno! (ajoelha-se) Eu num quero
mais viver um dia sem você, Iracema. Com você eu tenho força!

Iracema - Você vai conseguir! Você merece, Joca, você merece!

Joca parte cheio de esperanças.

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Enquanto isso, os amigos conversam na obra.

Matogrosso - O Joquinha saiu depois do almoço e num voltô mais...

Dito - Num si preocupa qui o Joca sabe o qui faiz.

Matogrosso - Num sei não, Dito... o Joca tá c´o miolo meio mole!

João - (chega na roda) Aposto qui tão falando di mulher!

Beleza - Antes fosse...

Dito - Despois qui virô cantô tá choveno na sua horta, Beleza?!

Beleza - Tudo Maria-microfone, viu Dito?!

João - Quem num sabe di nada é a sua Tereza...

Beleza - Nem brinque, João! Tê num pode nem sonhá em sabê...

João - Mas vai SABÊ...

João sacoleja, cai e começa a rolar no chão e a gargalhar. Todos se apavoram.

Matogrosso - Vixe Maria, gente! O Jão incorporô di novo!

João - (revira os olhos) TÊ VAI SABÊ!!! (gargalha)

Beleza - (apavorado) O que ele disse?! O que ele disse?!

João - Eu disse: QUI OCÊ TEM OTRAS MULHÉÉÉR!!! (gargalha mais)

Beleza - Mas eu num tenho, ôxi!!!

João - MAIS VAI TÊ... despois do sucessio! MUITO SUCESSIO!!!

Dito - Virge-cruiz! O homi tá ´demoniado!

João - ÊH-ÊH!

Moacir chega na roda curioso.

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Ao vê-lo, João aponta-lhe o dedo e o acusa.

João - ADÚRTERO!

Moacir - Qui é ixsto, Juão?! Exstá mi exstranhando?!

Matogrosso - O Jão tá incorporado, Moa!

João - (gira) ESSE HOME VAI SÊ PAI FORA DO CASAMENTO! ÊH-ÊH!

Moacir - Dexsde quandu o Juão tem isso?!

Beleza - Desde sempre Moacir, desde sempre.

João - (voltando aos poucos a si) O QUI FOI? Tô tonto...

Matogrosso - Num foi nada não, Jão...

João - Não tô muito bom... hoje tem jogo do coringão!!! Passo mal, meu!

Matogrosso - Você é o italiano mais preto qui eu conheço, Jão! Mora no Bixiga
mais mora numa maloca no córrego da Saracura; é branco mas
incorpora preto véio; é da Vai-Vai e, ainda por cima, é corintiano!

Todos riem. Na rua, passa uma mulher. Moacir assovia para ela.

Matogrosso - (reprimindo-o) Ô Moa, num isquece do qui o Jão falô...

Moacir - Dexsde qui parrticipei do concurrso falam muito di mim!

Matogrosso - Mais num é fama di cantor qui tá correndo pur aí, não...

Moacir - Nãum?! É fama do quê?!

Matogrosso - Fama di enganadô di mulher!

Moacir - Eu só falo o qui elaxs querem ouvirr... Veja só: Ô goxstosa!

A mulher que está prestes a entrar no ônibus, olha para trás e manda um beijo.

Moacir - Viu? Exstá vendo! Nãum sou só eu o culpado!!! Elaxs goxstam!!!

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CENA 2: Joca caminha à procura de emprego nas ruas do Centro. Muita gente
passa por ele, cartazes anunciam produtos diversos, vozes, buzinas. A cidade
alucinada, também a Joca, alucina.

Joca - Eu mereço um lugar ao Sol nessa cidade!

Vendedor 1 - Olha a rapadura, rapaz, qui a vida é dura!

Vendedor 2 - Olha o cimento qui o céu é cinzento!

Vendedor 3 - Olha o sonho! Olha o sonho! A vida é sonho!

Joca entra em um bar movimentado da avenida São João. Vai até o balcão.

Joca - Por favor, eu queria falar com o gerente...

Gerente - Sou eu mesmo! (sem olhá-lo) Fala rápido que o bar tá lotado.

Joca - (decidido) Tô procurando emprego de garção!

Gerente - (olha-o finalmente) E você tem experiência?

Joca - Eu não tenho mas...

Gerente - (joga-lhe um avental) Bota esse avental e vai pro salão!

Joca - Mas já?

Gerente - (irritado) Quer trabalhar ou não quer? Agora rapaz!

Joca - Quero, moço, quero!

Gerente - Depois nós conversamos! Observe os garçons e faça igual!

No salão, Joca logo passa a atender as mesas. Os clientes estão animados.

"silêncio, charóp,
Afinal de contas finarmente,
Nóis viemos aqui pra beber ou pra conversar"

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Não me amole rapaz
Não me amole
Não me amole
Deixa de conversa mole
Agora não é hora de falá
Nóis viemos aqui
Prá beber ou prá conversá?

Quem gosta de discurso


É orador (é isso aí bixo)
Quem gosta de conversa
É camelô (falou psiu)

Agora não é hora de falá! O home tá pagando, vamo aproveitá.


Nóis viemos aqui prá bebê ou prá conversá?
O que eu combinei foi o seguinte:
nóis viemos aqui pra bebê e não conversar.

“Nóis viemos aqui pra quê?” (Adoniran Barbosa)

Mais tarde, preocupado, Joca olha o relógio do bar e vai até o gerente.

Joca - Desculpe senhor, mas preciso ir embora, senão perco o trem...

Gerente - Vai rapaz! Esteja aqui amanhã as seis horas da tarde!

Joca - (muito feliz) Obrigado, senhor! Obrigado!

Joca sai do bar pulando de alegria. O dia amanhece no alojamento.

Matogrosso - Sábado é o casamento do Moa...

Dito - Eu num intendi nada daquela história do Jão.

Matogrosso - Falô qui o Moa vai fazê filho FORA DO CASAMENTO?

Dito - Pur isso queu num caso! Casá pra fazê fio fora? SAI FORA!

Matogrosso - Você vai vivê a vida intera aqui, Dito?!

Dito - Eu gosto! Isso pra mim é uma família. E quando é o seu casório?

Matogrosso - Num vô casá, vô juntá. É bem mais barato! (riem)

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Apito. Os dois saem do alojamento. Joca chega agitado e os encontra.

Matogrosso - Apareceu o desaparecido!

Joca - (sussurra) Preciso contá, gente: arrumei outro emprego!

Dito - Qué morrê di tanto trabalhá?!

Matogrosso - Emprego di quê?!

Joca - De garção, lá na avenida São João!

Dito - E você sabe sê garção?!

Joca - É mais fácil que carregá pedra! Comecei ontem mesmo!

Matogrosso - (tristemente) Vou ficá sem você aqui, Joca?!

Joca - (ironicamente) Você tem o Moacir...

Matogrosso - (emocionado) Não brinca! Você é meu melhor amigo, Joca!

Joca - Você também, Matogrosso! (os dois se abraçam)

João chega na roda e puxa conversa com os amigos.

João - Tão comemorando o quê?

Joca - A nossa amizade! (enxuga umas lágrimas) E o futuro!

Matogrosso - (recompondo-se) Sabê do futuro é c´o Jão...

João - (assustado) Num brinca com essas coisa, Mato...

Matogrosso - O homi tem uns tremilique e adivinha tudo.

Joca - Podia tentá, João? Tô precisando saber as coisa.

João - Eu tenho medo, meu...

Dito - Tenta Jão... num si acovarde!

Joca - (estende-lhe os braços) Vai Jão, pega no meu braço...

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Hesitantemente João pega no braço de Joca. Concentra-se silenciosamente.

João - (fala baixo) Você vai trabalhá num bar da avenida São João.

Dito - Viu como ele é bom?!

Logo, João mostra um semblante muito sério.

Joca - E o qui mais, Jão?

Matogrosso - É, conta pra gente!

João - (tem um tremelique) Mais nada, Joca!

Joca - Você viu mais alguma coisa? Conta Jão.

João - Não! Num vi nada! Dá licença! Dá licença!

Num repelão, João afasta-se de Joca e foge em disparada. Moacir aparece.

Moacir - Eixste Juão exstá ficando maluco, merrmão?

Joca - Parece qui ele viu alguma coisa e não contou...

Moacir - Nãum exsquenta a cachola qu´isso aí é tudo bobagem!

Dito - Lembra o qui o Jão disse d´ocê, Moací?!

Joca - Disse que você vai ser dismascarado!

Moacir - Intriga da oposição!

Apito do almoço. Matogrosso e Joca conversam sentados na calçada, enquanto


Iracema e Inês conversam na tecelagem.

Iracema - Eu sinto que tá acontecendo alguma coisa com o Joca...

Inês - Deve sê tão bom tê um telefone. Era só ligá e perguntá. (riem)

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Enquanto isso, na calçada em frente à construção.

Joca - Tô com uma vontade di falar com a Iracema...

Matogrosso - Liga pra ela.

Joca - Tá loco?! Eles num gosta.

Matogrosso - Fala qui tem um “assunto importante” com a Iracema!

Joca vai até o orelhão e disca. Na tecelagem, é anunciado nos autofalantes.

AUTOFALANTE: - Senhorita Iracema, comparecer URGENTEMENTE ao escritório.

Iracema corre aflita em direção ao escritório e atende ao telefone.

Iracema - (sôfrega) Alô?! Joca?!

Joca - Disculpa ligá mas eu precisava ti contá...

Iracema - Quase morri! (esbaforida) Conta, Joca! Não me deixe mais aflita!

Joca - Arranjei emprego de garção na São João!

Iracema - (radiante) Não falei que ia dar certo, Joca?!

Joca - Tive sorte! (orgulhoso) Ontem mesmo já trabalhei!

Iracema - (chorosa) Eu não disse que você conseguia, Joca?!

Joca - Então, tá triste por quê, Iracema?

Iracema - Estou feliz! (enxuga as lágrimas) Vou passar todo dia lá!

Joca - Todo dia vai ter adeus até a gente casar... (choroso)

Joca - Falou com seus tios?

Iracema - Hoje falo! Sem falta! Agora preciso desligar... Adeus, Joca!

Joca - Adeus, Iracema!

Iracema desliga o telefone e volta correndo para o trabalho.

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ENTRECENA: À noite, os tios de Iracema ouvem rádio quando ela chega.

Iracema - Tio? Tia?! Posso falar com vocês?

Tia - Vê bem Iracema, agora é hora das “Histórias das malocas”.

Iracema - Mas ainda nem começou! Semana que vem...

Tia - Você sempre quer conversar nessa hora...

Iracema - É a hora que posso... eu trabalho o dia inteiro, tia.

Tia - Nós também, por isso a gente quer descanso. Não pode?

Iracema - Eu só queria dizer que na semana que vem...

Tia - (num gesto brusco) Pssst! Pssst! Silêncio!

Tio - Depois a gente conversa filha...

Iracema sai da sala entristecida. Os tios ouvem atentamente ao rádio.

VINHETA: “E A RÁDIO RECORD – ESTAÇÃO PRB-9 DE SÃO PAULO – PASSA A


TRANSMITIR, NESTE MOMENTO, COMO EM TODAS AS SEXTAS
FEIRAS, ÀS 21 HORAS: HISTÓRIAS DAS MALOCAS.”

PAFUNÇA - Charuto! Ocê é o cara mais vagolino que já apareceu no morro do Piôio.
Ocê é um vagabundo de corpo intêro!

CHARUTINHO - Brigado pela infolmação!

PAFUNÇA - Ocê vê o trabáio... Já sai correndo como se fosse corredô da São Se


Veste! Escuita uma coisa: ocê já trabaiô argum dia em sua vida?

CHARUTINHO - Eu? Se eu trabaiei? Bão... Qué dizê... Eu... Eu já tive munto perto do
trabáio... Já tive na fila dos que se escreve pá sê olhêro do corpo de bombêro
em junho, pra vê se balão cai... E porvoca incêndio!

PAFUNÇA - Vagolino! Forgado! Discanço de aposentado! Praça da Priguiça!

CHARUTINHO - Num faiz mal, num tem importança!

Os tios de Iracema riem das estrepulias de Charutinho.

54
CENA 3: No outro dia, Joca e Iracema caminham nas ruas do Centro.

Joca - Você me deu sorte, Iracema! (súbito) Falou com os seus tios?

Iracema - Isso eu ainda não consegui... eles só prestam atenção ao rádio.

Joca - Enquanto isso, a gente prepara as papelada, a minha mãe tá


arrumando o nosso quarto...

Iracema - Vou adorar. Não preciso nem ver... (mudando de assunto) fiz um
crediário, Joca! Logo tô pronta pra casar!

Joca - Você é um anjo, Iracema!

Ao tentar levantá-la no ar, Joca tem uma crise de tosse.

Iracema - Ai meu deus, Joca! Dormir pouco tá te fazendo mal.

Joca - (recuperando-se) Tenho é que trabalhar.

Iracema - Não pode só trabalhar, tem que descansar...

Joca - Depois que a gente casar, eu descanso.

Iracema - Por falar nisso... não é hoje o casamento do tal Moacir?!

Joca - É sim.

Iracema - A gente não vai? O Matogrosso e a Inês vão...

Joca - A gente nem se bica! Digo que ´tava trabalhando...

Os dois caminham, romanticamente, de mãos dadas.

Iracema - Eu só tô pensando em quando a gente casar, eu toda de branco,


a gente junto: eu, você e sua mãe... seremos felizes!

Joca - Você é perfeita, Iracema! Perfeita!

Iracema - Sua mãe ouve rádio?

55
No alojamento, Dito conversa com Beleza enquanto engraxa os sapatos.

Dito - Dá os seus sapato qu´eu engraxo pro casamento, Beleza!

Beleza - Eu num vou ao casamento do Moacir não, Dito!

Dito - Vai pra onde Beleza? ´Cê nunca teve lugá pra ir...

Beleza - (irritado) Curioso! Vô num programa de calouro! Vô cantá, Dito!

Dito - Minha boca é um túmbalo... aberto!

Beleza - Se o meu sinhô do Bonfim me ajudá... vô subir a escada da glória!

Dito - Mais um qui vai imbora... daqui a pouco num tem mais ninguém...

Beleza - E você, Dito? Não vai sair dessa vida, não?

Dito - Tem genti qui nasce pra cigarra, mais a maioria é formiga, Beleza.

Beleza - Uma pena, Dito, uma pena. (conformado) Bem... adeus Dito!

Beleza sai. Enquanto isso, Matogrosso desmonta os móveis do quarto de Inês.

Matogrosso - Aluguei nossa casinha! Vamo levá tudo pro nosso canto!

Inês - Finalmente! A genti casa no civil e pronto. Vô mudá di vida...

Matogrosso - (ensimesmado) Quem diria?! Você e eu casando?!

Inês - Você mete as cara! Mi tirô daqui im menos di trêis semanas!

Beijam-se. Os pais de Inês batem à porta.

Dona Maria - (chorosa) Ô fia... já tão levando as coisa?!

Inês - Tamo, mãe! A genti precisa tomá rumo na vida, né pai?!

Seo Zé - A gente vai ficá cum saudade até da sua vergonha da gente...

Inês - Ô pai...

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Inês se atira aos braços do pai, chorando. Um raio estala. Acaba a luz na casa.

Dona Maria - Cruiz credo! Virge Maria! Creemdeuspaitodopoderoso!

Seo Zé - (enxugando as lágrimas) Chorá no escuro é menos mar!

Dona Maria - No escuro num dá pra fazê mudança...

Seo Zé - Dá pra fazê uns sambinhas...

Dona Maria - Num tem coisa melhó pruma noite sem luz!

Seo Zé - Melhó tem... (riem)

Pai começa a soar uns acordes ao violão. Gritam da rua.

VOZ DO MORRO - Vai tê samba aí, Dona Maria?

Dona Maria - Fazê o quê? Tamo tudo sem luz! (abre a porta) Entra fio!

Inês - (vindo do quarto) Trouxe umas vela pra iluminá!

Seo Zé - É melhó a gente cantá pra espantá a dor...

Lá no morro quando a luz da light pífa


A gente apela pra vela, que alumeia também (quando tem)
Se não tem não faz mal. A gente samba no escuro
Que é muito mais legal (e é natural)
Quando isso acontece
Há um grito de alegria
A torcida é grande pra luz voltar
Só no outro dia

Mas o dono da casa


Estranhando a demora e achando impossível
Desconfia logo que alguém passou a mão no fuzíl
No relógio da luz
“A luz da Light” (Adoniran Barbosa)

Todos cantam.

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Moacir e Gabriela recebem os convidados do casamento num salão iluminado da
Mooca. Logo, chega o pessoal da construção, acompanhado por várias pessoas.
Matogrosso também chega com a turma da Casa Verde.

Moacir - Qui é ixsto, Dito? Chamou todo o meio da conxstrução civil?

Dito - Sô sozinho mais sô bem relacionado, Moací! Tá todo mundo aí...

Moacir - E você, Juão?! Nem sabia qui tinha tantoxs filhoxs...

João - Sete! Já tá tudo ispalhado pur aí, os pestinha...

Moacir - Si nãum é o Matogrosso cum a turrma da Casa Verrde em peso?!

Matogrosso - Num tá feliz di nos ver não, Moacir?

Moacir, disfarçando a irritação, encaminha o bando para a festa.

A turma da favela convidaro-nos


para irmos assistir o casamento
da Gabriela com o Moacir
arranjemos uma beca preta
e um sapato branco
bem apertado no pé
E se apreparemos para ir
na catedral lá da Vila Ré

Chega um grupo em black-tie.

Pai italiano - É qüi il casamento della Gabriela com il Moací?

Moacir - Eu sou o noivo! O senhorr é convidado di quem? Posso saberr?!

Eugênia - (sai de trás do pai) É ELE PAI!

Mãe italiana - (irada) Della donna abandonatta num hotel della Santa Ifigênia!

Pai de Gabriela - Tem uma genti mal-encarada nesses convidados do Moacir...

Mãe de Gabriela - É pouco pra Gabriela! Quem manda casar com qualquer um?

Moacir engole a seco. A família entra na festa.

58
Gabriela tem um surto e anuncia o início do casamento.

Gabriela - Eu quero casar agora! (imperiosa) Vem aqui AGORA, Moacir!!!

Moacir - Calma, querida! A feixsta exstá apenaxs começando...

Pai de Gabriela - (para o padre) Casa logo a minha filha!

Mãe da Gabriela - Casa logo, senão, ela enlouquece!

O padre inicia o casamento.

quando os noivos estavam no altar


o padre começou a perguntar
Umas coisas assim em latim:
“Quarque um de vós aqui presente
Tem alguma coisa a falar contra esses bodes”

Nisso, uma mulher invade a cerimônia cercada por sete crianças.

“Seu padre apare o casamento


O noivo é casado, pai de 7 arrebento
Fora o que está vir. O pai é esse aí, o Moacir”

Moacir - Malvina!? Qui você exstá fazendo aqui cum axs criançaxs?!

Malvina - (mostra a barriga) Vim só pra ti dixsmaxscararr, Moacirr!

Pai italiano - (aponta para Eugênia) Veja il bucho dessa aqüi! O pai é o Moací!

Pai da Gabriela - E essa barriga aqui?! (aponta Gabriela) Filho de Moacir!

TODOS - PEGA!! CASTRA! CASTRA!

Que vexame, a noiva começou a soluçar


Por que o noivo não passou no exame nupciar
Já acabou-se a festa Por que nós descobriu
Que o Moacir era casado 5 veiz lá no estado do Rio

“O casamento do Moacir” (Adoniran Barbosa)

Moacir foge. Os grupos brigam entre si. Raios e trovões caem sobre a cidade.

59
ENTRECENA: Estúdio de uma emissora de rádio.

DIRETOR: - Manda entrar o próximo!

Assistente - É um tal di Beleza!

DIRETOR - BELEZA?! Que raio de nome é esse?

Beleza entra no estúdio.

Beleza - Com licença... eu sô o Beleza, sinhô.

DIRETOR - Com essa cara?

Beleza - É a única qu´eu tenho, sinhô.

DIRETOR - E você canta, rapaz?

Beleza balança a cabeça afirmativamente.

DIRETOR - A coisa aqui é técnica!

Assistente - Não faz o diretor perdê tempo não, rapaz...

DIRETOR - O que você vai cantar?

Beleza - “O samba do Arnesto”!

DIRETOR - Arnesto é o autor?

Beleza - Não. O samba é do Matogrosso!

DIRETOR - É cada uma...

Assistente - GRAVANDO!

Aos primeiros acordes do samba a luz cai.

60
CENA 4: no canteiro de obras, Matogrosso e Joca conversam animadamente.

Matogrosso - Nunca vi presepada maior, Joquinha! Dessa veiz o Moa si superô!


Trêis mulher?! Nem eu acreditei!

Joca - Eu sempre falei qui esse Moacir não era boa coisa!

Matogrosso - Além da Gabriela embuchada, apareceu a Eugênia, aquela lá do


viaduto Santa Ifigênia, com a italianada toda e a mulher do Moacir! A
verdadêra. Lá do Rio. Mãe di sete arrebento!

Joca - Nisso... é mais uma que o Jão acertou.

Em cena paralela, na tecelagem, Inês conversa com Iracema.

Inês - Aí você precisava vê a cara da Gabriela, Iracema...

Iracema - Deus me livre! Coitada! Eu acho que morria!

Inês - Eu matava! Mais antes dava é uma surra nos trêis!!!

Iracema - Essa Malvina... ´tava mais pra Amélia, hein?!

As duplas interagem como se estivessem juntas.

Matogrosso - É nessas hora qu´eu num troco minha Inêis pur nada!

Joca - Deus me livre de perdê a Iracema!

Inês - Sabe, Iracema... agora tô feliz com o Matogrosso!

Iracema - Que bom, Inês! Bem na hora que vocês vão juntar.

Matogrosso - Sábado eu levo a Inês embora!

Inês - É. Vamo assiná no cartório no Sábado.

Joca - Não vai ter festa nem nada?

Matogrosso - Não vamo cair no mesmo erro do Moaci...

61
Foco novamente na conversa dos dois amigos.

Joca - E o Moacir?! Se explicou?!

Matogrosso - O danado desapareceu! Pulô o muro e fugiu!

Joca - É um danado mesmo! Não veio nem trabalhá?!

Matogrosso - É mesmo?! Pur falar nisso, cadê a turma toda?

Nisso, Dito chega agitado.

Dito - Ói tulma! Ceis tão sabeno da maior?!

Matogrosso - Qual é a boa, Dito?!

Dito - ´Cê vai cai duro, Mato...

Joca - Conta logo Dito, para de fazê fita...

Dito - O Beleza fez teste pra cantô numa rádio e... passô!!!

Matogrosso - O Beleza!!! (eufórico) Num acredito!

Dito - E sabe o qui ele cantô?!

Joca - O quê?!

Dito - “O samba do Arnesto”!

Matogrosso - Filadap...! (irado) TRAÍRA!!!

Dito - Já tão tocando na rádio! Tá mó sucesso!

Matogrosso - (subitamente feliz) Jura, Dito?! Meu samba?!

Joca - E cadê o Beleza?!

Dito - Contrataro ele, pur isso, nem veio mais trabaiá!

Joca - Mas assim?

Matogrosso - Nesse mundo di artista é tudo assim...

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Joca - E você Mato?! Como fica?

Dito - lembra qui o Jão falô qui o Beleza ia fazê muito sucesso?!

Joca - As profecia do Jão funciona mesmo!

Dito -´Ocêis viro o Jão?!

Joca - Não?! O qui aconteceu?

Dito - Tá na pior, coitado... prevê a glória dos otros mais num


prevê as pópria tragédia...

Matogrosso - Que aconteceu, Dito?

Dito - O temporal di Sábado. Derrubô seu barracão! Dexô desabrigado.

João chega na roda completamente arrasado.

João - O córrego da Saracura subiu e levô tudo.

Matogrosso - Mas, ocêis num tinha nada!

João - Eu tinha muita coisa...

Dito - O Cibide tinha mais... tá cuma mão na frente otra atrais.

Joca - Você ainda tem saúde, mulher, filhos.

João - Muito filho pra criar, pouca mulher e saúde pra amá!

Não reclama
Contra o temporal
Que derrubou teu barracão
Não reclama
Guenta a mão joão
Com o cibide
Aconteceu coisa pior
Não reclama
Pois a chuva
Só levou a tua cama
Não reclama
Guenta a mão joão
Que amanhã tu levanta
Um barracão muito melhor

63
C'o cibide coitado
Não te contei?
Tinha muita coisa
A mais no barracão
A enxurrada levou seus
Tamanco e o lampião
E um par de meia que era
De muita estimação
O cibide tá que tá dando
Dó na gente
Anda por aí
Com uma mão atrás
E outra na frente

“Aguenta a mão João” (Adoniran Barbosa)

Ao final da música os amigos se divertem com o fato.

Matogrosso - Cumé qui você acerta tudo e num adivinha qui vai chovê?

João - Tô mudando di ramo, Matogrosso! Adivinhação num é comigo! Vô


pra Prefeitura. Depois di tanto reclamá das inchente mi chamaro pra ser
fiscal di águas e esgotos! Disso eu entendo: já entrei muito pelo cano!

Joca - Ô João, antes diz pra mim o qui você viu...

João - Não Joquinha! Não vem com essa, de novo, não. Adeus!

De repente, João pega um pacote.

João - (ao Matogrosso) Minha mulher mandô você intregá isso pra Inês!

Dito - Esse Jão tá cada veiz mais maluco, mess...

Joca - Faz que faz e não me conta nada...

Matogrosso - Talvez num tenha nada pra contá.

João - Tem uma coisa... si vocês tivé juízo também deve saí daqui...

Matogrosso - Isso é mais uma previsão, Jão?

João - Não! Isso é VISÃO mesmo!

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Matogrosso - Desembucha home...

João - Tô sabeno qui tá vindo aí a mão di obra especializada.

Dito - Ah, o Seo Gervásio num fazia isso co´a gente, não...

Joca - Larga di sê besta, Dito. Lógico que fazia!

Dito - Será? Trocá tudo nóis aqui pur robô?!

Joca - Robô, nada! Vão mandá nóis tudo imbora! Vão pegá otros melhor!

Dito - Eu num querdito nisso... ah, não!

Joca - Outro dia, o seo José Aparecido mi negô vale.

João - Eu já tô indo. Adeus turma! Precisando, pode contá!!! Qualquer


coisa procura o João Saracura, fiscal da Prefeitura!

Dito - Aqui tudo acontece duma hora pra otra...

O amigo desaparece entre os muros da obra.

Matogrosso - Vou sentir saudade do Jão...

Dito - Eu tamém vô senti saudade desse dismiolado.

Joca - Fiquei com medo do qui ele disse...

Matogrosso - Num era ocê qui num tinha medo di perdê imprego?

Joca - Eu só tenho medo é di perdê a Iracema...

Dito - Como eu num tenho nada... nada tenho medo di perdê!

Silêncio.

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ENTRECENA: casa dos tios de Iracema. Os tios estão sentados a ouvir rádio.

VINHETA: “E A RÁDIO RECORD – ESTAÇÃO PRB-9 DE SÃO PAULO – PASSA A


TRANSMITIR, NESTE MOMENTO, COMO EM TODAS AS SEXTAS
FEIRAS, ÀS 21 HORAS: HISTÓRIAS DAS MALOCAS.”

LOCUTOR: - Enquanto isso, no Morro do piolho, Charutinho assusta Pafunçinha!

PAFUNÇA - Qui isso? Si um burro avuasse pelo feumamento azur... se a carne-seca


baxasse de preço... Se um sobremarinho tivesse drumino na minha istêra... Eu
não ia senti tanto espanto. Charuto... Tu... Trabaiano?...

Os tios riem. Iracema chega e tenta interrompê-los.

Iracema - Olá, gente... preciso falar com vocês.

Tia - Agora não, Iracema!

Tio - O Charutinho tá trabalhando?! Que piada!

Os tios colam o ouvido ao rádio.

CHARUTINHO - Pois é... tudos mundo diz que trabaio é bão, que trabaio não habilita,
que trabaio é bacana... eu arresorvi fazê uma aventura no mundo imorar do
trabaio!

PAFUNÇA - Intão, tá na hora das onça virá tapete! Eu nem acridito. Eu vô contá pá
tudos mundo que ocê... saiu da risca!

CHARUTINHO - Conta, nega, conta. Vai e conta que eu entrei na imensa fila dos otário
que trabáia.

Os tios estão às gargalhadas. Iracema sai da sala.

Tia - Esse Charutinho...

Tio - É uma piada mesmo!... (lembra) O que a Iracema queria?!

A tia faz um sinal pedindo silêncio também ao marido.

66
CENA 5: Sábado no cartório, casamento de Matogrosso e Inês.

Juiz - Eu os declaro marido e mulher! Podem se beijar!

TODOS - Viva os noivos! VIVA!!!

Beijam-se. Grande burburinho em torno aos noivos.

Dona Maria - A fia finarmente consiguiu o qui queria...

Seo Zé - Vivê bem longe da famía...

Dona Maria - Si ela vai sê feliz eu num sei...

Seo Zé - Fizemo tudo o qui a gente podia fazê...

Dona Maria - Si ela errá a porta tá aberta...

Seo Zé - Si acertá tamém, num dê a presença incerta.

O outro casal, Iracema e Matogrosso, conversa romanticamente.

Iracema - Daqui a pouco é nossa vez, Joca.

Joca - Já falô com sua família?

Iracema - Desisti! Acho que se eu sumir eles nem percebem.

Joca - Nem brinca, Iracema. Minha mãe pergunta di você todo dia...

Iracema - Vamos marcar logo? Depois falo com eles!

Joca - Pra daqui um mês no máximo! Qui tal?

Declaração de Inês no meio do beijo.

Inês - Eu ti amo, Matogrosso... (baixinho) finalmente!

Matogrosso - Eu também ti amo, Inêis!

67
Uma rádio capta, incidentalmente, o “Samba do Arnesto” no cartório.

Matogrosso - Ouve! É o “samba do Arnesto”!

Joca - É o Beleza cantando!

Inês - Caramba!

Iracema - Agora o Matogrosso vai ficar famoso!

Dito - Ê, amigão!!!

Seo Zé - Agora o Matogrosso tá grandão e pode levá nóis tudo pro Bixiga!

Dona Maria - Leva ô num leva, Matogrosso?!

Matogrosso - Eu?! Mais como eu vô pagá?

Seo Zé - Vamo gastá pur conta, ora! (entusiasmados) ´Cê tá famoso!

Dito - O Jão falou qui o BELEZA ia fazê muito sucesso...

Inês - Num vai pela cabeça dos meus pais, Mato!

Matogrosso - Intão, vamo... (hesitante) por quê, não?!

Joca - Cê tá loco, Matogrosso?!

Matogrosso - Vamo gastá pur conta!!!

ALGUNS - É o maior! É O MAIOR!!!

Matogrosso é retirado do cartório carregado no colo por um bando de gente.

Joca - Vambora, Iracema? Eu ´inda tenho qui trabalhá...

Iracema - Eu vou com você até a São João.

Joca - Eu não vou assistir o Matogrosso fazer loucura!

Iracema - Espero que tudo acabe bem...

68
Matogrosso e Inês estão sentados em torno de uma mesa de samba no Bixiga
cercados pela família da noiva e por amigos de última hora.

Seo Zé - Nóis viemo aqui pra bebê ou pra conversar?

Dona Maria - Desce aquela qui matô o guarda!

Dito - Vamo bebemorá?!

Matogrosso - Desce a birra! Desce a BIRRA!!!

Em cena paralela, Iracema e Joca conversam a caminho da Avenida São João.

Joca - Olha só o qui eu trago sempre comigo. (mostra a foto)

Iracema - Você é o melhor homem do mundo Joca.

Joca - Eu ti amo, Iracema.

Iracema - Eu também Joca, mas agora eu preciso ir porque quero ver se


consigo falar com meus tios.

Despedem-se e Iracema sai do bar. No Bixiga, Matogrosso canta o “Samba do


Arnesto” exatamente no momento em que chega a conta.

Matogrosso - (para o garçon) Eu sô o autor do “Samba do Arnesto”...

Garçon - E daí?!

Matogrosso - Daí qui ´cê vai cobrá di mim?! Eu até cantei o samba!

Garçon - Desculpe senhor, mas não damos cortesia à artistas.

Matogrosso - Mais eu...

Garçon - Tem de pagar!

Matogrosso - (assovia) Pé na táuba, cambada!!!

Matogrosso sai correndo sendo seguido por toda sua turma.

69
Enquanto isso, Iracema está saindo do bar quando Joca chama a sua atenção.

Joca - IRACEMA! Cuidado ao ´travessar essas ruas!

Iracema - Não se preocupe, Joca. Eu tomo cuidado.

Joca - Adeus, Iracema!

Iracema - Adeus, Joca!

Iracema sai. Lá fora, o vento e a neblina fria começam a tomar a cidade. Em cena
paralela, Moacir aparece na penumbra e bate na porta de casa. Chama por
Malvina. Ninguém responde. Esmurra a porta. Desolado, canta.

Moacir - Joga a chave meu bem / Aqui fora tá ruim demais


Cheguei tarde. Perturbei teu sono / Amanhã eu não perturbo mais

“Joga a chave meu bem” (Adoniran Barbosa)

Malvina abre a porta. Moacir encontra a mulher sentada na cama ao lado dos
filhos. No chão, malas, trouxas de roupa e utensílios domésticos espalhados.

Malvina - Maixs di uma semana sem notícia, Moacirr? Exstava indo imbora!

Moacir - Eu exstava trabalhando...

Malvina - Mintira, Moacir! Nãum apareceu lá nem um dia!

Moacir - Arranjei outro imprego, mulherr... fiquei cum verrgonha!

Malvina - Verrgonha?! (em prantos) Acabô Moacirr!

Moacir - Nãum fala ixsto, Malvina! Nem brincando...

Malvina - Eu vou voltarr pro Rio! Vou imbora cum oxs piquenoxs.

Moacir - Malvina, você nãum vai mi abandonarr! Nãum pode!

Malvina - Você é muito cínico, Moacirr!

Moacir - Nãum fala assim, Malvina, depoixs se arrepende. (tenta abraçá-la)

Malvina - (recua) Você exstá cum cheiro di mulherr! Nãum ti quero maixs!

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Moacir acolhe Malvina em seus braços. Malvina tenta resistir.

Moacir - Malvina. Você nãum vai mi abandonarr.

Malvina - Deixa eu irr embora, Moacirr!

Moacir - Nãum pode. Sem você como é qui eu ficarr?

Malvina - E eu?! Como fico, Moacirr?!

Moacir - Exstá fazendo maixs di deixz anoxs qui nóixs exstamoxs juntoxs!

Malvina - Di qui adianta?!

Moacir - Daqui você nãum sai. Minha vida sem você nãum vai.

Malvina - Cansei, Moacirr!

Moacir - Malvina. Fica aqui cum o teu nêgo, Malvina. Lá fora a vida é dura
sozinha, filha. Malvina. Malvina. Pensa bem nêga. Pensa bem.

Malvina - Eu nãum acredito maixs naxs tuaxs promessaxs.

Moacir - Tudo vai melhorarr pra nóixs! Eu vou mudarr!

Malvina - Toda veixz você dixz ixsto!

Moacir - Arrumei emprego numa fábrica di cerâmica! Coisa fina!

Malvina - Di qui adianta si você é um caxsca grossa?!

Moacir - Vou provarr a você e aoxs meuxs amigoxs qui eu nãum sou!

Malvina - Vai serr difícil...

Moacir - Você pode acreditarr! Eu vou mudarr!

Malvina - Vai sim, meu amorr... vai sim.

O casal se beija na penumbra do quarto.

FIM DO SEGUNDO ATO

71
ENTREATO

Rebenta uma forte chuva sobre a cidade e diferentes situações acontecem.


Iluminada por raios, Iracema caminha na avenida São João. Matogrosso, ao fugir
sem pagar a conta na cantina é seguido por um grupo de homens. Joca serve,
tranquilamente, à mesa no bar. Os tios de Iracema, em casa, ouvem rádio.

Matogrosso corre desesperado, entra num beco onde é cercado por grupo,
apanha e ouve: “Esquece essa história de Samba do Arnesto!”. Enquanto isso,
Beleza é ouvido nos aparelhos de rádio de toda a cidade. Iracema assusta-se
quando percebe um clarão em sua face. Ouve-se o frear brusco do automóvel e
uma pancada forte. Na casa dos tios de Iracema, eles têm a impressão de que a
sobrinha chegou, a tia pergunta: “Iracema?! É você?! Quer conversar hoje?”,
mas logo percebem que foi apenas um vento. Preocupam-se.

Escuridão total até que surge uma luz que ilumina uma longa escada. Na
base da escada aparece Beleza, de óculos escuros e roupas extravagantes.
Beleza canta enquanto um grupo de tietes atira-lhe flores gritando seu nome:
“Beleza! Beleza!”

Na São João, um corpo ensanguentado jaz ao chão.

Pela escada da glória eu subi


Lutei com dificuldade, venci
Devo agradecer ao criador que me ajudou
Hoje não sou mais um sofredor

Sei, já sou feliz e vivo a gargalhar


Sim por isso eu vivo a cantar porque
A felicidade veio me procurar

“Escada da Glória” (Adoniran Barbosa/ Edmundo Cruz)

72
ATO 3

CENA 1: Joca bebe num bar da Av. São João enquanto é observado por Iracema.

Bom dia tristeza


Que tarde tristeza
Você veio hoje me ver
Já estava ficando até meio triste
De estar tanto tempo longe de você

Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar

“Bom dia tristeza” (Adoniran Barbosa/Vinícius de Moraes)

Joca chora. Iracema tenta consolá-lo. O garçon se aproxima da mesa.

Garçon - Vai mais uma aí, amigo?!

Joca - (enxuga as lágrimas) Bota aquela qui matô o guarda!

Iracema - Não adianta ficar assim, Joca. Acontece com todo mundo...

Joca - (desolado) Eu num tenho mais nada na vida.

Iracema - Beber não resolve nada! (tristemente) Sua mãe não ia gostar.

Joca - Minha vida acabô!

Iracema - Não diga isso...

Joca - Iracema... (sofrido) Ai, qui saudade.

Iracema - Eu tô aqui do seu ladinho, Joca...

Iracema tenta abraçá-lo mas Joca se abaixa e pega um pacote.

Joca o desembrulha e tira de seu interior um par de meias e um de sapatos.

73
Iracema - O que é isso Joca?!

Joca - Tá tudo aqui o qui restô...

Iracema - (curiosa) Essas meias?! Meus sapatos?!

Joca - (num suspiro) Ai, ai...

Iracema - (assustada) Por que tem sangue neles, Joca?!

Joca - Foi duro, Iracema. Foi duro.

Joca acaricia os sapatos e chora.

Iracema - Joca?! Tô com medo.

Joca - (lamenta) Ai, Iracema!

Iracema - Joca! Fala comigo! (olha-o de frente) Você não tá me vendo?!

Joca - ... meu amor.

Joca beija os sapatos ternamente.

Iracema, eu nunca mais eu te vi


Iracema meu grande amor foi embora
Chorei, eu chorei de dor porque
Iracema, meu grande amor foi você

Iracema levanta-se, confusa.

Iracema, eu sempre dizia


Cuidado ao travessar essas ruas
Eu falava, mas você não me escutava não
Iracema você travessou contra mão

Uma luz vinda do céu assusta Iracema.

74
E hoje ela vive lá no céu
E ela vive bem juntinho de nosso Senhor
De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos
Iracema, eu perdi o seu retrato.

Estarrecida, Iracema ouve o relato do acontecido na Av. São João.

“- Iracema, fartavam vinte dias pra o nosso casamento


Que nóis ia se casar
Você atravessou a São João
Veio um carro, te pega e te pincha no chão
Você foi para Assistência, Iracema
O chofer não teve curpa, Iracema
Paciência, Iracema, paciência”

“Iracema” (Adoniran Barbosa)

Iracema toca no ombro de Joca, mas seu amado não a percebe.

Iracema - Entendi... eu vou então.

Joca - Qui vai sê de mim sem a Iracema?

Iracema - Vou ver se encontro os meus pais, a sua mãe...

Joca - Meu amor se foi...

Iracema - Eu te amo tanto.

Joca - (beija os sapatos) Adeus, Iracema...

Iracema - Adeus, Joca... cuida do pulmão...

Joca - Deus sabe o que faz, Iracema.

Iracema caminha para a luz e desaparece.

Subitamente Matogrosso entra no bar em que Joca está, carregando nas mãos
um cavaquinho e se entusiasma ao rever o amigo. Joca demonstra apatia.

75
Matogrosso - Joca!!! Inda bem qui eu ti incontrei homi!!! Você sumiu!

Joca - (desanimado) Eu queria morrê... pra quê vivê sem a Iracema?

Matogrosso - Eu sube Joca... vi na banca di jornal.

Joca - Deus só leva os bom... você sôbe da minha mãe?!

Matogrosso - A sua mãe também morreu?

Joca - Na semana siguinte. Num guentô mi vê sofrê.

Matogrosso - Pur isso qui você sumiu... andei tudo atráis d´ocê. Fui lá no bar!

Joca - Num tô mais lá! Saí do Jaçanã também! Tô na São João agora.

Matogrosso - Tá melhor qui eu, Joca. Paga uma cachaça aí?!

Joca faz um aceno para o garçon e pede duas cachaças.

Joca - Deus sabe o qui faz, Matogrosso...

Matogrosso - Mais mulher não! Sabe o qui a Inêis feiz?! A Inêis mi abandonô!

Joca - Pelo menos não morreu...

Matogrosso - Antis tivesse morrido...

Joca - (alterado) Num diz isso! Si ti deixô deve tê tido algum motivo.

Matogrosso - Passei pur uns mau-bocado desde qui eu tive aqueles poblema.

Joca - C´o “Samba do Arnesto”?!

Matogrosso - (irritado) É! Esse maldito samba só mi meteu em confusão! Tudo


purque eu peguei sem querê, uma melodia qui já existia. O Beleza disse
qui era minha, aí viero atrais di mim, genti di gravadora...

Joca - Pra ti contratá?!


Matogrosso - PRA MI BATÊ, isso sim!

Joca - E batêro?!

76
Matogrosso - Só num batêro mais purque eu fugi e fui tirá satisfação c´o
Beleza!

Joca - E como ele tá?!

Matogrosso - (irado) Tá metido! Mi esnobô, mi humilhô.

Joca - Sucesso subiu pra cabeça?!

Matogrosso - Bem qui o Jão avisô!

Joca - Só num avisô qui a Iracema ia sê ´tropelada...

Matogrosso - Nem qui o Beleza ia levá uma facada minha!

Joca - (assustado) Matogrosso!!! ´Cê indoidô, homi?!

Matogrosso - Pegô di leve, mais o froxo deu parte. Eu fui preso, Joca! Fui
fichado. (revoltado) Quando saí num consegui mais emprego! Daí, caí na
bebida, comecei a quebrá tudo em casa! Até qui eu bati na Inêis.

Joca - Sabia qui tinha motivo pra ela tê fugido. E como foi qui ela sumiu?

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio


pro lampião
Pode me esperar Mané
Que eu já volto já
Acendi o fogão, botei água pra esquentar
E fui pro portão
Só pra ver Inez chegar
Anoiteceu e ela não voltou
Fui pra rua feito louco
Pra saber o que aconteceu
Procurei na Central
Procurei no Hospital e no xadrez
Andei a cidade inteira
E não encontrei Inez
Voltei pra casa triste demais
O que Inez me fez não se faz
E no chão bem perto do fogão
Encontrei um papel escrito assim:
- Pode apagar o fogo Mané que eu não volto mais!

“Apaga o fogo mané” (Adoniran Barbosa)

Matogrosso chora. Joca pede mais uma rodada de cachaça. O garçon serve-os.

77
Matogrosso - Ainda fui despejado purque era a Inês qui tava pagando tudo com
a tecelagem... Só mi sobrô o cavaquinho. Agora tô vagano pur aí...

Joca - Então, hoje você vai dormí lá no meu quarto, no hotel.

Matogrosso - ... meu amigão!

Joca - (brinda) Pra afogá as mágoa! (respira fundo) E eu qui nunca mais
posso vê a Iracema?

Chega a conta, Joca paga cambaleante.

Joca - (Expondo a carteira) Enquanto pudé, eu pago! EU PAGO!

Matogrosso - Quando eu pudé ti devolvo em dobro! EM DOBRO!

Os dois amigos saem do bar cambaleando.

Joca - Lembra qui o Jão preveu TUDO?

Matogrosso - E dizem qui virô fiscal da Prefeitura. Um desperdiço.

Joca - Lembra qui ele preveu qui o Moacir ia sê dismascarado?

Matogrosso - Ô! Como isquecê o casamento do Moacir?

Joca - Nunca mais você viu aquele safado?!

Matogrosso - Nunca mais... e faiz tão poco tempo.

Joca - Lembra qui o Jão preveu até qui o Beleza ia fazê sucesso?!

Matogrosso - Só num preveu a facada!

Joca - Quase qui você vira marginal, Matogrosso. (abraçando-o)

Os amigos riem enquanto caminham cambaleantes pela Av. São João.


ENTRECENA: chegada de Inês ao Morro da Casa Verde carregando várias malas.

Inês - (gritando) Mãe! Pai!

78
Seo Zé - (na janela) É a fia! Já vai, fia!

Dona Maria - (em off) GRAÇAS A DEUS!

Inês - MÃE! PAI!

Seo Zé e Dona Maria aparecem na porta.

Seo Zé - Ondi ´ocê si meteu, fia?!

Dona Maria - Ocê apanhô e sumiu!

Seo Zé - A gente num sabia mais ondi ti procurá...

Dona Maria - Fia, o qui aconteceu?!

Mãe eu estou aqui a fim de lhe avisar


que minha vida com ele não tem mais jeito não
oh mãe! ele não trabalha, não faz nada
só aparece de madrugada,
todo alcoolatrado, e o corpo fechado
depois dorme até as três
levanta, lava a cara, toma café
vai pra rua outra vez

acha que é uma beleza


entrar em casa destruindo tudo
outro dia rasgou a minha blusa de veludo
e as duas combinação
que eu ganhei da mulher do joão [...]

“Mãe eu juro” (Adoniran Barbosa)

Inês - Ô mãe, ô pai... posso voltá pra casa?!

Seo Zé - Entra fia! Entra. Sai desse sereno.

Inês abraça os pais ternamente. Entram para o barraco.


CENA 2: Matogrosso e Joca caminham bêbados. Soa uma sirene da polícia.
Matogrosso se assusta, olha para os lados e para trás.

Matogrosso - Tem muito ladrão aqui no Centro.

79
Joca - Você sabe ondi anda o Dito?!

Matogrosso - Sei nada! Tá todo mundo ispaiado.

Joca - Tinha vontade di ficá perto da Iracema, da minha mãe...

Matogrosso - Num fala bobage, home. Mulher nenhuma merece isso!

Joca - A Iracema merece, minha mãe merece...

Ao dobrar a esquina, a dupla depara-se com um grupo de mulheres da noite.

Mariposa 1 - Vai um carinho aí, amorecos?!

Mariposa 2 - Qui tal um cobertô di oreia nessa noite fria?

Mariposa 3 - Ou os bonecos querem algo mais intenso?!

As mariposa quando chega o frio


Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansá

Eu sou a lâmpida
E as muié é as mariposa
Que fica dando vorta em vorta de mim
Todas noite só pra me beijá

As mariposa quando chega o frio


Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda, roda e dispois se senta
Em cima do prato da lâmpida pra descansá

Tá muitu bom...
Mas num vai si acostumá, viu
Dona mariposinha?

“As mariposa” (Adoniran Barbosa)

Matogrosso e Joca logo chegam à porta do hotel.

Matogrosso - Viu as mariposa, Joca?!

Joca - Nunca mais vou ter outra mulher! (para) Tô viveno aqui...

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Matogrosso - Num é caro morá em hotel não, Joca?!

Joca - A janela dá pra esquina da Iracema. Enquanto pudé, eu pago!

Matogrosso - E quantos dia dá isso?

Joca - Dá pra uns... trêis dia.

Matogrosso - Vô arranjá um imprego e a gente sai daqui!

Subitamente, Joca começa a tossir e desfalece nos braços de Matogrosso.

Joca - (fora de si) Eu num quero mais nada cum nada, Matogrosso!

Matogrosso - Discansa! Vai fazê bem pr´ocê. Amanhã você levanta bom!

Joca - Se Deus quiser...

Matogrosso - Deus ti ouça!

Matogrosso auxilia Joca a subir a escada. Na manhã seguinte, Matogrosso


levanta cedo e sai para a rua à procura de emprego. Joca, no entanto, não se
levantará durante os próximos três dias. Na rua, Matogrosso pega longas filas e a
resposta é quase sempre a mesma.

Matogrosso - Eu tô procurando emprego, moço, qualqué emprego.

Empregador 1 - Cê já teve preso?! Não, não dá, não...

Matogrosso - Eu tô regenerado, moço... por favor!

Empregador 1 - Por favor, retire-se!

Cena paralela: no Morro da Casaverde, Inês conversa com a mãe.

Dona Maria - ´Cê sente falta do Matogrosso, fia?

Inês - Tô cum mais saudade da Iracema, mãe.


Matogrosso tem uma nova discussão com outro empregador.

81
Empregador 2 - O senhor desculpe, mas as vagas já foram preenchidas.

Matogrosso - Mais tava vaga... pur que num diz logo qui é purque já fui preso?!

Empregador 2 - O senhor saia daqui ou eu chamo a polícia!

Matogrosso - Chama! Quem sabe assim eu vô preso di novo?!

Cena paralela: Inês desabafa com a mãe.

Inês - Fora daqui comi o pão qui o diabo amassô.

Dona Maria - A vida já é dura, pra quê sofrê mais, fia?

Matogrosso caminha desnorteado no Centro da cidade. Para num boteco.

Matogrosso - Tem um emprego pra mi arrumá aí?!

Empregador 3 - Aqui num tem emprego, não! Só cachaça!

Matogrosso - Intão, bota uma cachaça! Eu quero enchê a cara! (chora)

Empregador 3 - Bebe que a vida é amarga!

Matogrosso - (bebe) Si a Inês num fosse tão cabeça dura, eu pidia disculpa!

Repique de tamborim soa num beco distante no Morro da Casa Verde.

Inês - (também chora) Si ele num fosse tão cabeça dura... eu perdoava!
No quarto do hotel, Joca recebe a visita do gerente português.

Manuel - Ó seo Jóca, aminhã exstáis a vincer a exstadia.

Joca - Vamu pagá, seu Manuel.

Manuel - E, ó pá, tenxs um gajo difrente im vosso quarto?

Joca - É o Matogrosso! É meu amigo, quase irmão.

Manuel - Ora poixs, vaixs ter qui pagaire dubrado!

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Seo Manuel sai do quarto, ao cruzar Matogrosso que chega, repete a ameaça.

Manuel - Teinxs até aminhã prã pagaire vosso quarto, gajo! Até aminhã!

Matogrosso entra no quarto. Joca continua deitado.

Joca - O dinhero acabô, Matogrosso...

Matogrosso - Mais ocê num disse qui dava pra uns treiz dia?

Joca - Disse, mais m´inganei...

Matogrosso - (fungando) Caramba, Joca!

Joca - E o seo Manuel disse qui vamo tê qui pagá dobrado!

Matogrosso - Qui chero di merda é esse? Ocê num levantô nem pra cagá?

Joca - Eu nem percebi, comecei a tossí e quando vi já tinha saído.

Matogrosso - Qui enrascada... e a gente num tem dinhero pra pagá!

Joca - A gente sai dessa. Deus ajuda!

Matogrosso - Qui Deus ajuda, Joca?! Deus só impurra a gente pra baxo!

Joca - Bate na boca!

Matogrosso - Amanhã vamô tê qui si virá pra saí daqui!


Matogrosso levanta-se na madrugada para procurar emprego, mas a cena do dia
anterior se repete, de forma acelerada e alucinada.

Matogrosso - Eu tô procurando emprego moço, qualqué emprego.

Empregador 1 - O senhor desculpe, mas as vagas já foram preenchidas.

Matogrosso - Pur que num diz logo qui é purque já fui preso?!

Empregador 2 - Cê já teve preso?! Não, não dá, não... por favor, retire-se!

Matogrosso - Intão bota uma cachaça!

Empregador 3 - O senhor saia daqui ou eu chamo a polícia!

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Matogrosso, arrasado, observa um cordão de homens que segue uma moça.

Dona boa, Dona boa


Dona boa vem pro cordão
E não fique assim a toa

Quando você aparece


Na avenida são joão
Até o sol enlouquece
Se esquece da obrigação

Dona boa, Dona boa


Dona boa vem pro cordão
E não fique assim a toa

Vejo você em toda a parte


Quero você no meu cordão
Pra ser a porta-estandarte
Carregar o meu coração

Dona boa, Dona boa


Dona boa vem pro cordão
E não fique assim a toa

“Dona Boa” (Jota Aimberê/Adoniran Barbosa)

Os homens logo desaparecem e Dona Boa passeia sozinha. Matogrosso aparece.

Matogrosso - Bom dia!

Dona Boa - Não vai me dizer que eu também ofusquei o seu dia?

Matogrosso - Não, num vô dizê.

Dona Boa - Não me diga que se eu não existisse, Deus teria de inventar?

Matogrosso - Não, num vô dizê isso!

Dona Boa - E qual é o trocadilho infame que você vai usar pra me cantar?

Matogrosso - PASSA A BOLSA QUISSO É UM ASSALTO, DONDOCA!

Dona Boa grita. Matogrosso foge. Logo, está no quarto no hotel com a bolsa.

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Matogrosso - Olha Joca, consegui o dinhero pra pagá o seo Manuel...

Joca - (alheio a tudo) Qui bom, Matogrosso... Parabéns!

Nisso, ouvem o som de sirene. Logo ouvem um tropel na escada e uma voz forte.

Policial - (em off) ABRAM A PORTA QUE TÁ TUDO CERCADO!

Manuel - (em off) Ó pá! Ningãim sai sin pagaire a ixstadia!

Matogrosso abre a porta e se entrega com as mãos sobre a cabeça.

Joca - Qui ´cê feiz, Matogrosso?!

Dona Boa - Esse daí teve a audácia de me assaltar e nem dar uma cantada!

Policial - (para Matogrosso) Pra cadeia malandro!

Matogrosso - (sendo levado algemado) Cuida do cavaquinho, Joca!

Joca - Eu cuido, Matogrosso! Eu cuido!

Matogrosso sai sob porrada. Joca é jogado na calçada da avenida São João, em
cima do colchão sujo. Ao seu lado, um homem maltrapilho o observa.

Ozébio - Eu sô Ozébio. (pausa) Perdeu mulhé, famía ô foi dispejado?

Joca - Os trêis!

Ozébio - ´Cê si ´costuma... (pausa) ´cê toca violão?

Joca - É cavaquinho! Num é meu, não. É do meu amigo Matogrosso.


Ozébio - (para si) Mais um qui tem amigo invisíver... (pausa) ´Cê é alejado?
Dá pra ganhá dinhero na rua “si fazeno di alejado”...

Joca - Sô não... (tem uma crise de tosse)

Ozébio - Ih, já veio pra rua bichado?! Pneumonia? (pausa) Aqui num
dura...

Joca - Num quero durá.

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Ozébio - Si ocê num durá posso pegá o cochão e o violão?

Joca - O colchão pode pegá, mas o cavaquinho é do Matogrosso... se eu


morrê... faz favor de entregar...

ENTRECENA: morro da Casa Verde. No rádio está tocando “Escada da Glória”.

Inês - Pur causa desse aí qui o Matogrosso perdeu a cabeça!

Seo Zé - O Beleza consiguiu sucessio!

Dona Maria - A gente também tem qui vê o otro lado das coisa... num é certo
abandoná o rapaiz assim, sem conversá...

Inês - Eu dexei um bilhete perto do fogão.

Seo Zé - É muita farta di consideração...

Seo Zé - A gente ti ama, fia. Mais nóis vai atrais do rapaiz...

Acaba a luz no Morro da Casa Verde.

CENA 3: Noite. Joca continua jogado sobre o colchão na rua. Ozébio o sabatina.

Ozébio - Onde é qui tá o seu amigo invisíver?

Joca - O Matogrosso tá na cadeia. Ele si meteu numa robada!

Ozébio - Robô ô foi robado?

Joca - Robô... coitado.

Ozébio - Logo tá solto si num tivé antecedenti... tem?

Joca - Tem... tentativa di assassinato!

Ozébio - Intão já era... vai sê amigo invisíver pra sempre!

Joca - É... (pausa) E você, Ozébio? Pur que tá na rua?

Ozébio - Posso dizê qui uma Maria foi o motivo e a cachaça foi a causa!

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Joca - Ninguém é dono do destino!

Ozébio - E as lembrança são as curpada das nossa derrota. (delira) Nem


lembro qui caí na boemia! Gastei o qui pudia e num pudia!

Joca - Tudo em mulher e cachaça?!

Ozébio - (rindo) E muito mais! E TUDO MAIS!

Joca - Pur isso é qui agora tá na sarjeta?!

Ozébio - Calma lá! Ainda tô na calçada! Faiz muita diferença!

Uma limusine para na rua. Um grupo animado cerca o carro.

Fã 1 - Me dá um autógrafo, pelamordedeus!

Fã 2 - Meu nome é Glória! Canta “Escada da Glória” pra mim!

Fã 3 - Esse filho é teu, Beleezaaa!!!!!!

TODOS! - Beleza!! BELEZA!!!


Os mendigos observam a cena da calçada.

Joca - Quem tá naquele carro?!

Ozébio - É o Beleza! O cantor!

Joca - Preciso falá com ele!

Ozébio - Haha... quem num gostava di falá c´o Beleza?!

Joca tenta erguer-se.

Joca - Segura aquele carro! Eu conheço ele!

Ozébio - Qué mi dizê qui ocê conhece artista? Papudo! (incrédulo)

Todos abrem passagem ao fantasma que Joca parece ser. Ao chegar ao carro,
bate no vidro. Ao vê-lo, o agora riquíssimo cantor, abre-o.

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Beleza - Joca?! Esperava isso do Matogrosso, mais não d´ocê!

Joca - Você precisa tirá o Matogrosso da cadeia, Beleza!

Beleza - ´Cê tá doido, Joca?! Qui culpa tenho si ele mi deu uma facada?

Joca - Foi você qui colocô ele nessa enrascada!

Beleza - Qui culpa tenho si ele plagiô a música do seo Adoniran?

Joca - Quem mandô você í na radio e cantá a música?!

Beleza - Eu num tinha repertório... precisava cantá alguma coisa!

Joca - Ninguém sobe sozinho, Beleza! (irado) Cadê todo mundo? Seus
amigos? Seus filhos? Cadê a Tereza? Dexô tudo lá no Morro do Piolho?

Beleza - Num sei do que ´cê tá falano... (para o chofer) Toca o carro!

Beleza manda o chofer tocar o carro.


Nisso, chegam Dona Maria e Seo Zé com um violão embaixo do braço.

Seo Zé - Ô Beleza! ´Bora ouví uma canção minha?

Beleza - Num dá tempo, velho!

Seo Zé - Nem pra ouví um verso? Esse pode sê seu próximo sucessio, fio.

Dona Maria - Num lembra di nóis lá do morro da Casa Verde?

Beleza - Vagamente... mas tô cheio di samba pra gravá!

Seo Zé - Intão proveita e grava mais o meu!

Beleza - O seu tempo já passô vovô! O sinhô é uma CINZA, mora?!

Seo Zé - Eu inda sô uma brasa! Basta assoprar...

Beleza ri e fecha a janela do carro. Joca novamente o interpela.

Joca - Pelamordideus, Beleza! Pur nossa antiga amizade.

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Beleza - Pur aquela amizade vô dá uns trocado pr´ocê comprá umas rôpa.

Joca - Eu tô pidindo pur nosso amigo qui tá veno o sol nascê quadrado.

Beleza - E também pra comprá um rádio pra ouví os meus sucesso!

Joca - Bem qui o Matogrosso disse qui você tinha mudado...

Beleza - Agora dá licença qui eu tenho qui dá atenção pras minhas fãs.

Joca - ´Ocê tá rico, num tem medo di mais nada!

Beleza - Meu sinhô do Bomfim valei pur mim!

Joca - Vai precisá rezá muito pra redimi suas culpa, Beleza!

Beleza - Eu lavo minhas mão! Adeus, Joca!

Beleza joga um punhado de dinheiro pela janela do carro. Ozébio pega as notas.
Seo Zé fica entristecido.

Joca - Esse Beleza é um boçal!

Dona Maria - Ele é da Bossa Nova?!

Seo Zé - (chora) Num é, mais é igual! Os jóvi num qué sabê di nóis!

Dona Maria - Inté parece qui eles num vão invelhecê...

Seo Zé - Despontô lá no meu terrero...

Dona Maria - Viveno e aprendeno, fio! (muda de assunto) Como você tá, fio?

Joca - Minha vida num tem mais valia.

Seo Zé - É duro vê ocêis mindingano! A Iracema morta...

Dona Maria - É muita tristeza presse nosso coração...

Seo Zé - Mais vamo fazê samba até morrê!

Joca - (tristemente) Eu só queria ajudá o Matogrosso!

Dona Maria - A gente não qué o mal do Matogrosso...

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Joca - O coitado tá arrependido!

Dona Maria - Isso só ela pode dizê! Nóis queria podê ajudá vocêis!

Ozébio - Num percisa si preocupá cumigo não, dona...

Seo Zé - A gente pricisa í, mulhé!

Dona Maria - A gente vai mais nóis vorta!

Seo Zé - Pra tirá ocêis desse lugá.

Ozébio - (para Joca) Todo mundo diz isso... e nunca volta.

Joca - Eu não espero mais nada do mundo...

O casal vai embora. Ozébio e Joca dormem sob o colchão.


ENTRECENA: Toca a campainha na casa dos tios de Iracema, é Inês.

Inês - Boa noite! Disculpa incomodá o discanso d´ocêis...

Tia - Entra, filha! Faz tanto tempo que não vem ninguém aqui em casa.
(chama o marido) Marido! Desliga o rádio, faz um café pra moça!

Inês - Num pricisa, é rápido, só vim purque uma coisa mi impurrô.

Tio - Senta! Fique à vontade.

Inês - Eu vim purque desde qui a Iracema morreu...

Tia - Nem me fale, minha filha! Nem me fale...

Inês - muita coisa aconteceu com o Joca...

Tio - Uma pena... a gente nem conheceu o rapaz...

Inês - Acontece qui a mãe dele também morreu e ele tá jogado pur aí...

Tia - Fazer o quê, não é? Cada um com o seu destino...

Inês - Vocês precisa ajudá o Joca... pela memória da Iracema!

Tio - O que ´cê qué qui a gente faiz? Trazê o estranho pra casa?

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Inês - Claro! A Iracema ia ficá muito feliz.

Tia - A Iracema nunca foi muito feliz, garota. Não ia sê agora!

Tio - (espantado) A Iracema não gostava nem de rádio!

Inês - Bem qui ela dizia qui ocêis só dava atenção pro rádio...

Tio - Isso é passado mocinha... o negócio agora é a televisão!

Tia - (abre a porta) E dá licença que está na hora de nossa novela!

Tio - (Possuído) No futuro estaremos plugados 24 HORAS POR DIA!

Inês sai do apartamento estarrecida.

CENA 4: Joca está deitado sobre o colchão na avenida São João. Ozébio chega.

Ozébio - Joca! Ô, Joca! Levanta!

Joca - Tá pensando qui eu sô Lázaro?

Ozébio - Arranjei um lugá coberto pra gente! Vai fazê bem pra sua tosse.

Joca - Tem qui andá muito?

Ozébio - É um casebre abandonado na rua Aurora!

Joca - Aurora mi faiz lembrá da Iracema... Lembrá da Iracema mi dá


vontade di ficá deitado...

Ozébio - Vambora qui si a gente demorá muito vão fazê negócio co´tro.

Joca - Qui negócio? Tamo pagando?

Ozébio - Craro, né Joca?! ´Cê acha qui abrigo di vagabundo é di graça?

Joca - E como é qui a gente tá pagano isso?

Ozébio - C´a bufunfa do Beleza! Lembra, não?!

Joca - Pelo menos pra alguma vai serví aquele dinhero maldito!

Ozébio - Dinhero num é maldito, maldito é os usos...

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Joca - ´Cê é cheio das filosofia... e si o Matogrosso vortá?

Ozébio - Ele logo vai ficá sabendo pra onde a gente foi...

Joca - E vai tê lugá pra ele lá?

Ozébio - Pagando sempre tem.

Joca se levanta e começa a caminhar e a tossir. Ao passar na porta de um bar,


Joca entra. Um garçon arruma as mesas enquanto é observado pelo gerente.

Garçon - (para Joca) Pois não, senhor?! Posso ajudá-lo?

Joca - Eu só quero uma aguardente!

Gerente - (ao garçon) Diga que não vendemos aguardente no balcão!

Joca - Intão a gente senta! (senta-se) Num tem poblema, não!

Ozébio - A gente qué tomá DUAS cachaça! LOGO CEDO!

Gerente - (ao garçon) Isso não é permitido! Tire-os daqui!

Garçon - (para Joca) Senhor, por favor. Retire-se do restaurante!

Joca - (ao gerente) Sou o Joca! Já bebi muito aqui!

Gerente - (ao garçon) Esse senhor está espantando os clientes!

Joca - E eu num sô mais cliente, não?!

Garçon - (impaciente) Senhor, por favor, retire-se!

Joca - Eu já bebi muito aqui! (irado) GENTI INGRATA!

Ozébio - Dexa está! Um dia esses tamém entra na máquina di moê gente!

Joca tem uma crise de choro e tosse. Fazem o restante da caminhada em


silêncio. No caminho, Joca se apega a um cachorro que o acompanha.

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No local, que está lotado, Joca tem dificuldade para ajeitar o seu colchão.

Joca - Tá apertado dimais aqui!

Ozébio - ´Cê queria excrusividade? Aqui tem até lugá pra tomá banho!

Joca - Banho pra quê? Num é tudo mindigo mesmo?

Ozébio - Não. Aqui tem famia intêra...

Homem 1 - Hoje teve ordem despejo na favela!

Homem 2 - Foi uma ordem superior!

Homem 3 - Essa gente aqui tava tudo no sereno...

Joca - Eu acho qui prefiria ficá na rua!


O lugar está tão apertado que Ozébio ajeita-se sobre o colchão de Joca.

Ozébio - Aqui ninguém morre de fome, toda noite tem sopão.

Joca - Pra quem queria morrê, tô mi alimentano dimais...

Ozébio - Pra quem vive do lixão qui nem eu...

Joca - ´Ocê come lixo, Ozébio?

Ozébio - Grande coisa! Quem num come lixo hoje em dia?

Joca - (enérgico) Pode saí do meu cochão!

Ozébio - (indignado) Hum... desse cochão tudo sujo di merda?!

Joca - Merda minha! Meu cochão!

Ozébio - ´Cê si acha só purque tem um cochão todo cagado!

Joca - E um cobertô, um cavaquinho, e... um cachorrinho de estimação!

Ozébio - Seu metido! Vô fazê churrasquinho desse cão!

Joca - Ah, mais num vai, não...

Os dois brigam e são expulsos do abrigo jogandos escada abaixo.

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Ozébio - Tá vendo o que você consiguiu?! Fomo expurso!

Joca - Grandes coisa! Prefiro ficá na rua!

Ozébio - ´Cê vai vê quando batê a fome!

Joca - Quando batê a fome eu vô comê bem longe daqui...

Ozébio - ´Cê num é capaz nem di andá com as sua perna...

Joca - Eu quero é morrê igual a Iracema!

Joca levanta-se e caminha cambaleante, quando ouve uma voz conhecida.


Matogrosso - Num faiz isso, Joca!

Joca - Matogrosso! Meu amigo!

Joca aproxima-se e abraça o amigo.

Matogrosso - Caramba, Joca! Você ainda num tomô banho?!

Joca - Agora eu sô mindingo, Matogrosso!

Ozébio - Eu falei qui ele divia aceitá o abrigo qu´eu arrumei...

Matogrosso - Quem é o seboso, Joca?

Joca - Esse daí colô ni mim...

Ozébio - Mais si num sô eu ´cê já tava morto e sepurtado!

Os três se sentam no meio-fio e conversam.

Ozébio - (estende a mão) Eu sô Ozébio!

Matogrosso - (cumprimenta-o) Brigado pur tê cuidado do Joca... (para Joca)


Obrigado Joca, pur tê cuidado do cavaquinho...

Joca - Num foi fácir, Matogrosso! Mas, como você saiu da cadeia?

Matogrosso - (para Joca) Acredita qui o Beleza foi lá e retirô a quexa?

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Joca - Parece qui ainda sobrô alguma coisa naquele coração...

Ozébio - (levanta-se) Agora, ânimo, cambada! Vamo procurá uma morada!

Matogrosso - Ondi? Não vejo a hora de encontrá um lugá pra gente ficá?!

Ozébio - Conheço um palacete assobradado aqui perto!

Joca - Assombrado? Pra mim qui já tô com o pé mais lá do qui cá, num
faz diferença!

Os três riem.
Os três e o cachorro caminham em direção ao palacete.

Matogrosso - Onde você arrumô esse cachorro, Joca?

Joca - Ele mi siguiu pelas rua, o danadinho...

Ozébio - Eu disse qui ia fazê churrasquinho dele.

Matogrosso - Esse aí tem dono! É cachorro bem tratado!

Joca - O dono dele agora sou eu!

Ozébio - (para) Chegamus no nosso palacete assobradado!

Entram no palacete. Enquanto arrumam o novo abrigo os três conversam.

Ozébio - Lar, doce, lar!

Matogrosso - Tenho saudade dos amigo: Dito, Jão, Moací...

Joca - (espantado) Até do Moacir?!

Matogrosso - O Moací era bom moço... só queria si divertí.

Joca - Ele disse qui IA PROVÁ isso pra gente... provô?!

Matogrosso - Sei lá! Nunca mais vi nenhum deles!

Joca - Eu também nunca mais vi ninguém!

Ozébio - Ninguém qué sê conhecido de mindingo!!!

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ENTRECENA: Moacir e João conversam em um bar na avenida São João.

Moacir - Nóixs somoxs oxs únicoxs qui rexstaram daquela turrma, Juão...

João - Desde qui virei fiscal da Prefeitura, nunca mais vi ninguém!

Moacir - Eu arranjei o meu dinheiro, trabalhando o ano inteiro numa


cerâmica, fabricando potes...

João - Daí comprou um terreninho lá na Mooca?

Moacir - Dez de frente, dez de fundos... construí minha maloca,!

João - Graças ao amigão aqui qui conseguiu alvará da Prefeitura!

Moacir - Foi você que arranjou tudo pra mim!!! (pensativo) Meu amigão...
sabe, Juão? Fico pensando por onde andará Joca e Matogrosso? Soube
qui andaram jogadoxs na São João, vendo o sol quadrado na detenção...

João - Nem gosto de falar desse assunto, Moacir...

Moacir - ´Cê tem medo do qui previu?

João - Eu num previ nada! (irritado) ´Cê quer saber, sinto falta do Dito!

Moacir - Ih, esse pode tê até morrido! O rapaxz era sozinho, mó exquisito!

João - Vira essa boca pra lá!

Moacir - Queria encontrarr o Matogrosso pra dexsfazerr maux


entendidoxs.

João - Eu fico de olho quando passo nas malocas...

Moacir - Si incontrá cum elexs, avise do meu abrigo de vagabundoxs!

João - Vai oferecer sua maloca?

Moacir - Minha maloca já exstá legalizada, ninguém pode demolir! Ofereço


aos vagabundos que não têm onde dormir... “Abrigo de vagabundos” ( B)

João - Bonito! Isso dá samba!

Moacir - Minha vida num tem maixs nada a ver cum o samba, Juão!

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CENA 5: Dito, o velho amigo aparece, em cena paralela, visitando o canteiro de
obras onde trabalhou. Está tudo diferente e modernizado.

Dito - Ô seo Gervásio. Lembra d’ eu?

Seo Gervásio - Claro que lembro, Dito! E os outros rapazes,? Matogrosso, Joca,
Moacir, João? Do Beleza eu sei. Todo mundo sabe!

Dito - Nunca mais vi meus amigo, seo Gervásio! Pur isso mesmo é qui
eu quis vortá aqui pra trazê notícias minha. Sô muito ´gradecido pur
aquele dinheiro qui o seu José Aparecido mi deu anos atrais.

Seo Gervásio - Deu nada, Dito! Aquilo era seu fundo di garantia! Era seu direito!

Dito - Era direito, mais nunca ninguém mi deu nadim! Sô ´gradecido!

Dito entrega uma carta ao Seo Gervásio.

"seu Gervásio,
Se dr José Aparecido aparecer por aqui
Cê dá esse bilhete a ele
Pode lê, num tem segredo nenhum
Pode lê seu gervásio"

Venho por meio destas mau traçadas linhas


Comunicar-lhe que eu fiz um samba pra você
No qual eu quero expressar toda a minha gratidão
E agradecer de coração
Por tudo que você me fez
E o dinheiro que um dia você me deu
Comprei uma cadeira lá na praça da bandeira
Alí vou me defendendo
Pegando firme dá pra tirar mais 1000 por mês
Casei, comprei uma casinha lá no ermelindo,
Tenho três filhos lindos
Dois são meu, um é de criação,
Eu tinha mais coisas pra lhe contar
Mas vou deixar, pra uma outra ocasião,
Não repare a letra
A letra é de minha mulher
Vide verso meu endereço
Apareça quando quiser

“Vide verso meu endereço” (Adoniran Barbosa)

Ao fim da música, Dito vai embora melancolicamente. Escurece.

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Matogrosso, Joca e Ozébio conversam sentados no palacete assobrado.

Ozébio - Eita, maravilha esse palacete!

Matogrosso - Um teto só nosso! Desse aqui ninguém mi tira!

Ozébio - Até a hora qui eles entra co´a polícia...

Matogrosso - Num quero nem sabê di polícia!

Nisso, assustam-se com barulhos vindos da porta.

Ozébio - Quem tá aí? FALA LOGO SINÃO A GENTE ATIRA!

Matogrosso - Atira o quê? A gente num tá armado! Tá?!

Ozébio - Atira qualqué coisa qui tivé na mão.


Joca - Num mi joga escada abaixo di novo!

Matogrosso - ALTO LÁ! Ninguém invade nosso palacete anssim.

Ozébio - Si é mindingo vai tratano di dá o pira e arranjá otro lugá!

Joca - Si é fantasma vai tratano di assombrá em otra freguesia!

Voz - Peteleco!

Ouvem mais passos na escada e uma voz rouca que balbucia algo.

Ozébio - Essa voz...

Joca - Essa voz é di acompanhá difunto...

Voz - Peteleco! PETELECO!

Matogrosso - Conheço essa voiz di argum lugá...

A voz rouca chega ao topo da escada. É um senhor de chapéu, cachecol e


gravatinha borboleta. É Adoniran Barbosa.

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Matogrosso - Seo ADONIRAN?!

Nisso, o cachorrinho pula nos braços de Adoniran.

Adoniran - PETELECO?! ´Cê tá aqui?!

Peteleco abana o rabo fortemente.

Adoniran - (para todos) Beleza, cambada?!

Matogrosso - (ríspido) Num mi vem cum BELEZA!

Matogrosso se afasta e, calado, observa o homem seriamente.

Adoniran - „Brigado pur tê cuidado do Peteleco pra mim!

Joca - Peteleco?!

Adoniran - Peteleco, sim sinhô! Cachorrinho compositô!

Joca - (para Adoniran) Esse cachorrinho é meu, seo senhô...

Adoniran - Num pode sê fio, esse é o Peteleco, meu melhor amigo!

Joca - Ele tá aqui passano fome comigo... É MEU!

Adoniran - Sem o Peteleco, minha mulhé, a Matilde, chora o dia intero...

Joca - E o qui vai sê di mim sem o... Peteleco?

Ozébio - Num reclama da vida, Joca. Olha aqui o seo Adoliran...

Adoniran - Eu moro perto e posso trazê o Peteleco na maloca abandonada...

Matogrosso - (ríspido) Abandonada nada, ou NÓIS NUM TAMO AQUI?!

Ozébio - O sinhô num pode dá umas pila pra gente, seo Adoliran?

Adoniran - Posso trazê uns filé miau... sabe como é vida di artista.

Matogrosso - (ríspido) VIDA MALDITA! (acalmando-se)

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Adoniran - Por que tanta raiva, fio...

Matogrosso - Seo Adoniran... (tristemente) Disculpa...

Adoniran - Desculpá, o quê?

Matogrosso - Tê plagiado o “Samba do Arnesto”.

Adoniran - ´Ocê qui feiz isso, fio?

Matogrosso - Foi. Foi o sinhô qui mandô mi dá aquela sova?

Adoniran - Eu?! Mandá batê?! Isso é coisa di quem num sabe conversá.

Matogrosso - Batêro, mas num tive culpa! Foi sem querê qui plagiei a música.

Adoniran - Num tem poblema, fio. A música é boa mesmo...

Matogrosso - Eu tinha um sonho di sê compositô...

Adoniran - Sei como é... Ninguém queria nada cumigo tamém.

Matogrosso - Agora nóis tá aqui tudo acabado...

Adoniran - Eu vô tentá ajudá ocêis. Deixa qu´eu volto. Simbora, Peteleco.

Ozébio - (cochicha) Volta nada, ninguém volta...

Adoniran - Eu volto.

Matogrosso - Nóis vai ficá aqui, esperano.

Joca - Eu espero o Peteleco!

Ozébio - Pra mim pode trazê só o filé miau!

Adoniran Barbosa vai embora. Subitamente ouvem batidas fortes na porta.

Ozébio - Essa casa tá frequentada, hein?

Matogrosso - Tomara qui num seja a polícia...

Voz - Aqui é a Prefeitura com ordem do fiscal JOÃO SARACURA!

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Joca - Num ´credito! Ordem do nosso amigo?!

Voz - Este palacete está condenado! AMANHÃ VEM ABAIXO!

Matogrosso - Vamo tê qui saí?! Vamo, di novo, pra rua da amargura?

Ozébio - Num fica assim, qui amanhã nóis arranja otro lugá!

Joca - Ocê divia sê corretô mobiliário!

Os três conversam a noite inteira. Pela manhã, ouvem pancadas na porta.

Megafone - SAIAM QUE ESTE IMÓVEL SERÁ DEMOLIDO!

Matogrosso - Gente ruim! Dexa tudo destruído!

Megafone - ESTA É UMA AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE!

Matogrosso - Tudo pra tirá a gente daqui!

Ozébio - Vamo, Matogrosso! Sinão eles demoli co´a gente dentro!

Megafone - SAIAM QUE ESTE IMÓVEL SERÁ DEMOLIDO!

Matogrosso - Pur mim morria aqui mesmo, eu já sô cimento!

Joca - Vê eu: tô morrendo desde o início e continuo vivo!

Matogrosso - Vão destruí tudo! Tamos perdidos...

Megafone - SAIAM TODOS DO IMÓVEL AGORA!

Joca e Ozébio saem. Matogrosso sai com as mãos erguidas como bandido.
Os três sentam-se defronte ao palacete. Um curioso aproxima-se.

Homem - O que aconteceu aí? Tão demolindo tudo?!

Ozébio - (aponta) O mesmo qui aconteceu ali...

Matogrosso - E pensá qui eu construí tanto prédio pra depois demoli...

Joca - Isquenta não, Matogrosso... um dia a gente chega lá...

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Matogrosso - Chega lá ONDE, Joca?

Joca - Sei lá... mas que um dia a gente chega, chega...

Se o senhor não tá lembrado


Dá licença de contá
Que aqui onde agora está
Este edifício arto.
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Foi aquí, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímo nossa maloca
Mas, um dia, nóis nem pode se alembrá
Veio os home co'as ferramenta
O dono mandô derrubá
Peguemo todas nossas coisa
E fomo pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei
Os home tá co'a razão
Nóis arranja outro lugá
Só se conformemo
Quando o Joca falou
"Deus dá o frio conforme o 'cobertô'"
E hoje nóis pega as páia
Nas grama do jardim
E pra isquecê nóis cantemo assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vida
“Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa)

102
EPÍLOGO

Amanhece outro dia. O senhor Adoniran Barbosa aparece trazendo marmitas,


acompanhado de Peteleco, mas encontra apenas os escombros do palacete.

Adoniran - Pra onde será qui foram aqueles moços, Peteleco? Justo agora
queu vim pra ajudá. (balança os ombros) Que pena, Peteleco! Fazê o
quê?! Pacença, Peteleco, pacença...

Adoniran observa os escombros do palacete, e, antes de sair, diz:

Adoniran - Essa será pra sempre UMA SAUDOSA MALOCA!

Fecha o pano.

FIM

103
UMA SAUDOSA MALOCA (canções/personagens-intérpretes)

PRÓLOGO: “Senta, senta” = BANDA

ATO1: “Fica mais um pouco amor” = Matogrosso + Joca


“Tiro ao Álvaro” = MATOGROSSO
“Trem das onze” = JOCA
“Conselho de mulher” = BANDA
“Torresmo à milanesa” = BELEZA
“Prova de carinho” = MATOGROSSO
“Samba do Arnesto” 1 = MATOGROSSO
músicas incidentais: “Asa Negra” = OZÉBIO
“Letra de Samba” = BANDA
“Acende o candieiro” = SEO Zé
“Viaduto Santa Efigênia” = MOACIR
“No Morro da Casaverde” = Seo Zé + Dona Maria + Matogrosso + Beleza

ENTREATO: PAGODE DO INTERVALO

ATO 2: “Samba Italiano” = Banda + Pai Italiano


música incidental: Currupaco paco (gente curiosa) = Joca
“Nóis viemos aqui pra quê?” = OZÉBIO
“A luz da Light” = Seo Zé + Dona Maria
“O casamento do Moacir” = Matogrosso
“Aguenta a mão João” = JOCA
música incidental: “Joga a chave meu bem” = Moacir

ENTREATO: “Escada da glória” = BELEZA

ATO 3: “Bom dia, tristeza” = BANDA


“Iracema” = JOCA
“Apaga o fogo mané” = Matogrosso
“Mãe, eu juro” = INÊS
“As mariposa” = Matogrosso + Joca
“Dona Boa” = BANDA
Música incidental: “Abrigo de vagabundos” = Moacir
“Vide verso meu endereço” = DITO
“Saudosa Maloca” = Ozébio + Matogrosso + Joca

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