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Marcos Antonio de Moraes estreia a coluna mensal Carta pra todo mundo, um namoro
entre o ensaísmo e a literatura, tocando em pontos centrais dos estudos de cartas.
Cartão de visita. Preciso inventar um rosto para o leitor, destinatário destas mensagens.
Em contrapartida, difusamente refletido na tela do notebook, percebo a minha própria
face, a um passo de se tornar escrita, recriação de mim. Encenação? Do professor,
valorizando o diálogo, conservo a indisfarçável intenção de provocar centelhas
imaginativas, mergulhos críticos, autoconsciência. No gosto da palavra, desnudam-se os
meus namoros com a literatura, em voos imaginativos ou memória afetiva de leituras.
Inclinações, (des)encantos, repulsas, estrategicamente partilhados, denunciam traços
biográficos, descontínuos. Quem recebe a mensagem, elabora o meu perfil, a partir dos
indícios que forneço e de tantas projeções pessoais. Sou, por fim, a variável imagem
criada pelo outro. Deste lado do computador, suponho também a figuração de um
correspondente ao mesmo tempo impreciso e singular. Muito prazer. Rememoro gestos
sociais comuns. Abrindo a carteira, ofereço o meu cartão. Nome, profissão, endereço,
número de telefone, e-mail. Papel encorpado, tipografia sóbria, refinada, como ensinam
os manuais de etiqueta. Essa prática está caindo em desuso? Então, anota no seu celular
a minha direção. O gesto cordial historia a primeira aproximação, aspirando a
reencontros. Entre em contato, me escreva, sim?
Endereço não localizado. Mais Monod. Situações corriqueiras: o grupo de jovens, cada
qual com seu celular, interagindo com outros que estão longe dali; no restaurante,
aniquilando o clima amoroso, os namorados voltam-se para as teclas de seus aparelhos;
os colegas, durante a conversa, indiscretamente, procuram consultar a caixa de
mensagens. Circunstâncias de “presença-ausência”, na percepção do filósofo francês.
“A indelicadeza se dá, evidentemente, ao sugerir que o face a face [...] não interessa
tanto para aquele que deseja ficar ‘conectado’ a outras fontes de informação [...], ligado
a outros ‘amigos’, em contato com um ‘outro lugar’ que seria mais agradável que
‘aqui’”. A questão tem nuances sugestivas, afinal “muito frequentemente nesse ‘outro
lugar’ a mesma atitude pode ser observada, posto que nenhum ‘aqui’ parece digno de
simples atenção, plena e inteiriça. [...] é razoável avaliar que todo ‘aqui’ desvaloriza-se
em relação ao ‘agora-em outro lugar’, um agora que ‘se passa sempre em outro lugar’,
melhor do que aqui” (p. 243-4). Qual o endereço do sujeito doentiamente plugado?
Aqui, ali, em nenhum lugar.
Quem fala (ou escreve) o que quer… Monod, ainda. Sim, a carta, não importa em que
suporte, físico ou virtual, caracteriza-se como situação de “risco”. Ao dirigir mensagem
a alguém (ou mesmo a si próprio, no caso do diário íntimo), o que permanecia
resguardado em nosso pensamento torna-se público. A difusão é ato irreversível que
pode resultar em contundentes “efeitos de retorno” (p. 60). A possibilidade de emitir
opiniões em redes sociais (facebook, twitter, entre tantas), para um seleto ou extenso
número de “amigos” e de “seguidores”, deve ser considerada, sem dúvida, uma
conquista democrática. Lançada na “rede” certa percepção pessoal ou avaliação circula
em proporções e velocidade inimagináveis. Pudemos ver de perto a potência da web-
sociabilidade na organização dos protestos de junho de 2013, ou, agora, em tempos de
“rolezinho”. Jean-Claude recupera em seu livro mensagens que resultaram na destruição
da imagem de personalidades públicas. Se quisermos ver, sob um ângulo positivo,
situações de uso inapropriado de postagens, constatamos que ajudam a levantar o debate
sobre questões éticas, principalmente em relação a limites e pertinência do julgamento
pessoal. Aprendemos com erros alheios. Exemplos recentes no Brasil? A roqueira
desafinando ao se referir a certo bairro de São Paulo; o promotor emitindo apreciações
inadequadas em relação a manifestantes nas ruas; a jornalista derrapando ao mencionar
tipos físicos de profissionais estrangeiros. Depois, diante de justas reações de
indignação, deram justificativas na imprensa, achando que não foram compreendidos no
contexto etc.
Tamanho, documento. Twitter, 140 caracteres; SMS, seja objetivo; e-mails extensos
correm o risco de ser lidos superficialmente. Comédia de erros: mensagem longa, leitura
rasa. Esperando a ceia natalina (banquete gordo e farto), depois do animado amigo
secreto, Marina sente-se indisposta. Hospital, emergência. No dia seguinte, no facebook,
recuperando-se, compartilha o susto, a “angina instável”. Nos “comentários”, desejam-
lhe restabelecimento; alguns “compartilham” o feed; ninguém “curte”, não é o caso.
Xavier não tem fcbk; enviou torpedo à amiga, dia 24, boas festas; não recebeu notícia,
tudo bem, férias. Marina, quando pôde, respondeu a Xavier. Texto caudaloso no celular.
Referia-se ao “presente diferente” daquele ano; a aflição superada, “80 por cento de
obstrução em uma ramificação diagonal”, cateterismo etc. Xavier leu apenas o começo e
o final da mensagem: “Olá querido, me perdoe não ter respondido antes [...] que venha
2014 repleto de prosperidade e saúde”. Dedos ligeiros: “Obrigado Marina”. A
convalescente estranhou um pouco. Mais adiante, colega dos dois quis saber da saúde
de Marina e Xavier, desconfiado, recuperou as mensagens dela. Entendeu tudo, os olhos
tinham saltado trechos, a resposta transpirava desconsideração. Era preciso remediar a
coisa: “Marina, me desculpe. O texto grande, pensei que era corrente. Só agora me dei
conta que o texto era seu e que teve problema de saúde. Espero que esteja melhor e que
2014 seja ótimo. Um grande Bj.” Marina é Rosa Mara; Xavier, Jairo; a história é
verdadeira (na minha ficção). Todos passam bem, obrigado.