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CONTINGÊNCIA E INFINITO
Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Caixa Postal 8105
SÃO PAULO, SP
calberto@usp.br
Abstract: The purpose of this paper is to discuss the role of mathematical infinity in the
constitution of Leibniz`s doctrine of contingency. We try to show the sense in which
mathematical infinity is essential for the elaboration of a notion of contingency that derives from
the very general nature of the truth.
I
Dos três constituintes da noção leibniziana de liberdade – a inteligência, a
espontaneidade e a contingência 1 – foi quase sempre sobre este último que
recaiu a suspeita dos intérpretes. Afinal, se a “substância livre” é o único
1LEIBNIZ, Essais de Théodicée, III, par. 288; 1969, p. 290: “...a liberdade, tal como a
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exemplo, entre os seres criados, de algo que por uma espécie de “milagre
privado” não tem o seu comportamento previsível a partir de nenhuma “lei
subalterna da natureza” 2 , se o agente humano é capaz de atos voluntários e
pode determinar-se a agir após uma deliberação apoiada no entendimento,
compreende-se mal como este privilégio do espírito frente às outras substâncias
seja compatível com a doutrina da noção individual completa. Era esta
compatibilidade, justamente, que Arnauld obstinava-se em não entender – no
que ele era, feitas as contas, desculpável. Afinal, a “noção completa” só pode
suscitar a imagem de um mundo habitado por uma necessidade “mais do que
fatal”. Como falar em liberdade, em espontaneidade e em escolha, se já estava
inscrito em minha noção individual que as paixões iriam sobrepor-se ao meu
entendimento, que eu iria pecar e certamente ficar mal falado? Da mesma
maneira, com que direito lamentar o fatum mahumetanum e apresenta-lo como
uma fatalidade absurda e insuportável quando se reconhece, singelamente, que
“tudo é produzido por um destino fixo” e que “é tão infalível o que ocorrerá,
antes que ocorra, como é infalível o que ocorreu, depois de ocorrido” 3 ? Agora,
recomendar que na ação nós sigamos a nossa razão já que, se o futuro é
determinado, não sabemos como ele o é nem conhecemos o que está previsto e
resolvido, pode significar simplesmente o reconhecimento de que a liberdade
não passa de uma ficção oriunda da ignorância e que a última palavra, nessa
questão, já fora dada por Espinosa.
Mas, a bem da verdade, o que vale essa objeção? A impressão de
fatalismo e o mal-estar de Arnauld só ganham sentido sob o horizonte da
“liberdade cartesiana”. É apenas quando se admite, antecipadamente, a
existência de uma região da experiência onde a indeterminação seria de direito,
que a compatibilidade entre noção completa e liberdade torna-se não só
enigmática como trivialmente impossível. Sendo assim, o que não se consegue
entender, no fundo, é como pode haver, ao mesmo tempo, liberdade e
determinação, e desde então tenta-se harmonizar, absurdamente, a liberdade de
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“Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 52: “...a conexão dos acontecimentos, se bem que ela seja
certa, não é necessária, e sou livre para fazer ou não fazer esta viagem; pois se bem que
esteja incluído em minha noção que eu a farei, também está incluído ali que eu a farei
livremente”.
7LEIBNIZ, “Sobre a liberdade”; 1998, p. 331.
8Cf. ROSS, 1989; CARRIERO, 1993 e 1995. Tendo obtido a sua “luz” nas
Investigações gerais de 1686, Leibniz não deixa de confessar, contudo, em um texto datado
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verificar como ela adquire seu sentido no interior do leibnizianismo, e que papel
ela desempenha na arquitetônica do “sistema”. E para isso é preciso voltar por
um momento à doutrina da noção completa, avaliar por que ela não representa
uma exigência descabida e recensear, sobretudo, as condições em que ela recebe
a sua cidadania filosófica, visto ser ali que se desdobra o cenário onde se
locomove a questão da contingência.
II
A doutrina da noção completa seria o resultado do entrelaçamento entre
a “natureza geral da verdade” – como inclusão do predicado no sujeito – e a
universalização máxima do princípio de razão? Essa interpretação é correta, mas
ela certamente permanece parcial e abstrata enquanto se deixa de relembrar que
não há determinação completa de uma substância isolada, mas apenas de uma
essência inserida em um “mundo” que ela exprime de seu “ponto de vista” e,
assim, se diferencia integralmente das outras substâncias. Era exatamente este
um dos tópicos que Leibniz insistia em frisar a Arnauld 9 . O que significa dizer
que a “noção completa” não se refere ao domínio do simples possível, mas ao
domínio do compossível. A noção completa será até mesmo um conceito
essencial à compossibilidade. Sem uma noção “perfeita” que envolva todos os
predicados passados, presentes e futuros de cada substância, seria impossível
para Deus decidir em função de um saber totalmente determinante: as
substâncias viriam à existência isoladamente e colocar-se-ia o problema de sua
“ligação” post festum. Por isso, é a mesma coisa afirmar que toda substância tem
sua noção completa e que Deus cria um conjunto de compossíveis. Se Deus
de 1699 ou de 1703, que a sua “solução” mereceria algumas palavras a mais. Cf.
LEIBNIZ, “Conversações sobre a liberdade e o destino”; 1990, p. 30:
“Definitivamente, existe um admirável segredo da natureza, que representa a fonte da
contingência, aquilo que os escolásticos procuravam outrora ao tratar de radice
contingentiae e que eu espero poder explicar claramente algum dia”.
9LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 41 : “Pois cada substância individual
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elegeu entre infinitos indivíduos possíveis aqueles que melhor convêm aos seus
desígnios supremos, não se deve dizer que ele decidiu que Pedro renegaria ou
que Judas seria traidor; ele apenas decretou, em relação aos outros possíveis, que
viriam à existência Pedro que renegaria e Judas que trairia. Sem noção perfeita, a
compossibilidade não significaria nada, e sem compossibilidade o “mundo”
daria lugar a uma soma de decretos caprichosos. E é isso que não
compreendem aqueles que vão protestar contra o “fatalismo”.
Mas se é assim só há substância, estritamente falando, ali onde existe
exclusão de toda indeterminação. Por isso Arnauld erra ao contentar-se com
uma noção geral para circunscrever a essência de um indivíduo, supondo que
basta uma referência ao “pensamento” para concluir que “eu sou eu”. Não
ocorre aqui como na noção específica de esfera, onde distinguimos as
propriedades essenciais (a eqüidistância do centro) e as propriedades acidentais
(o tamanho do diâmetro). É de maneira muito rápida que se exclui de minha
noção individual a viagem que eu farei, quer dizer, que se aplica ao indivíduo os
critérios que valem para a noção específica. Certamente, não é tão fácil ser
profeta quanto ser geômetra. Mas por que não reconhecer que a indeterminação
é apenas de fato, ao invés de insistir em declarar que ela seria de direito? Essa
insistência redundaria em relegar a singularidade no acidental, – ela significaria,
portanto, declarar que a singularidade deste mundo é indeterminável. Se existe
unidade do mundo e logo determinação universal, por que a noção incompleta
seria a única de direito determinável? Abaixo de qual patamar seria preciso
conceder a existência do indecidível? Só se conserva o nome do indivíduo
quando se admite que ele não é o integralmente determinável. Ou ainda: o
integralmente diferenciável. Caso contrário, o mundo seria aquele do
determinismo: um horizonte de inteligibilidade incompleta que nos permite
pensar, até certo ponto, a unidade das leis, mas não a solidariedade das séries
singulares.
É por isso que é preciso repensar a noção de substância. Nos Novos
Ensaios, Leibniz relembrará que não é nem um pouco surpreendente que não se
possa dizer o que é o puro sujeito em geral, uma vez que se separou dele todos
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10LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humain, II, 23; 1966, p. 186.
11LEIBNIZ, Discours de métaphysique, par. 8; 1972, p. 167: “É verdade que quando
vários predicados se atribuem a um mesmo sujeito, e este sujeito não se atribui a
nenhum outro, nós o chamamos de substância individual; mas isso não é suficiente e
uma tal explicação é apenas nominal”.
12Cf. MERCER e SLEIGH, 1995, p. 94.
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13Cf. LEIBNIZ, “Da natureza da verdade”; 1982, p. 348: “Se uma noção é
completa, isto é, tal que se possa a partir dela dar razão de todos os predicados do
próprio sujeito ao qual essa noção é atribuída, ela será a noção de uma substância
individual. Pois a substância individual é um sujeito que não inere a outro sujeito,
enquanto outros inerem a ela, de forma que todos os predicados de um mesmo sujeito
são todos os predicados da mesma substância individual; pode-se, portanto, dar sua
razão a partir da noção da substância individual, e somente a partir dela”.
14Cf. LEIBNIZ, “Sobre a liberdade, o destino e a graça de Deus”; 1990, p. 85:
“Nesta noção completa de Pedro... estão contidas não apenas os aspectos essenciais ou
necessários, que decorrem das noções incompletas ou específicas e são demonstradas a
partir dos termos, de modo que o seu contrário implica em contradição, mas também
os aspectos existenciais, por assim dizer, ou contingentes, visto que só há noção
perfeita ou completa da natureza da substância individual, e porque ela contém todas as
circunstancias individuais, mesmo contingentes, até as mais pequenas e porque de outra
maneira ela não seria última nem seria distinguida de não importa qual outra... pois a
noção que permanecesse indeterminada na menor circunstancia não seria ultima mas
poderia ser comum a dois indivíduos distintos”.
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15Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Arnauld”; 1978, p. 46: ”Eu não entendo de forma
alguma outra conexão do sujeito e do predicado do que aquela que existe nas verdades
as mais contingentes, quer dizer, que há sempre algo a se conceber no sujeito que serve
para dar razão de porque este predicado ou acontecimento lhe pertence ou porque
aquilo aconteceu antes que não”.
16Cf. LEIBNIZ, “Quinto escrito a Clarke”; 1978, p. 418-9.
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que “nós supomos que é da natureza de uma tal noção perfeita compreender tudo,
afim de que o predicado esteja ali incluído” 18 . Na correspondência com
Arnauld, a desenvoltura parece ir mais longe: “eu suponho que essa noção é
expressamente fabricada, de modo que dela se possa deduzir tudo aquilo que me
acontece” 19 . Mas com que direito fazer essa “suposição”? A resposta a Arnauld
é simples: “eu dei uma razão decisiva que, em minha opinião, faz as vezes de
demonstração; é que sempre, em toda proposição afirmativa verdadeira,
necessária ou contingente, universal ou singular, a noção do predicado está
compreendida de alguma maneira na noção do sujeito” 20 . Se a conexão indicada
pela noção completa é uma exigência mínima – e não exorbitante – é porque
não se pede mais ligação aqui “do que aquela que se encontra a parte rei entre os
termos de uma proposição verdadeira” 21 . É notável que Arnauld confesse ter
ficado “impressionado sobretudo” com essa razão, para a comemoração de
Leibniz: o Sr. Arnauld “rendeu-se” à verdadeira noção de substância. Mas vale a
pena verificar como se produziu esta súbita conversão.
Arnauld defende a indeterminação contra aquilo que lhe parece ser um
sistema necessitarista. Como confunde determinado e necessário, ele recusa-se a
colocar no mesmo plano aquilo que pertence invariavelmente à minha essência
e os predicados variáveis. Para Leibniz não é essa a questão: simplesmente, deve
haver uma razão a priori pela qual é a mim, de direito, que cabe esse predicado.
Ninguém pode se contentar com o “sentimento interno” de que é o mesmo em
diferentes momentos do tempo, o mesmo que fez esta viagem. É preciso que
meus predicado sucessivos sejam predicados de um mesmo sujeito 22 . A tese
parece ser metafisicamente perigosa? Trata-se de sustentar que todos os
acontecimentos são univocamente distribuíveis, de direito, sem condição de
tempo, e universalmente determináveis: por que, a este sujeito, este
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algum fundamento da conexão dos termos de uma proposição, que deve se encontrar
em suas noções. Este é o meu grande princípio, sobre o qual acredito que todos os
filósofos devem permanecer de acordo, e do qual um dos corolários é este axioma
vulgar de que nada acontece sem razão...”.
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causa nas coisas corresponde à razão nas verdades. É por isso que freqüentemente a
causa é chamada de razão...”.
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39Cf. LEIBNIZ, “Sobre a liberdade”; 1998, p. 332-3: “No caso das verdades
contingentes ... se bem que o predicado esteja no sujeito, todavia ele nunca pode ser
demonstrado a partir deste, e nunca se chega a reconduzir a proposição a uma equação,
quer dizer, a uma identidade: sua resolução, ao contrário, se prolonga ao infinito.
Apenas Deus vê, não, bem entendido, o fim da resolução, que não existe, mas pelo
menos a ligação dos termos, que dizer, o envolvimento do predicado no sujeito, pois
ele ve tudo o que está na série”.
40Cf. LEIBNIZ, “Sobre a característica e a ciência”; 1998, p. 162: “...assim como no
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“Com efeito, se admitimos a noção de Necessidade que todo mundo admite, segundo a
qual são necessárias aquelas coisas cujo contrário implica em contradição, se depreende
facilmente da natureza da demonstração e da consideração da análise, que podem
existir verdades irredutíveis, por meio de alguma análise, à identidade ou ao princípio
de contradição, mas que precisam de uma série infinita de razões, conhecida a fundo
apenas por Deus; e essa é a natureza de todas as coisas que se chamam livres ou
contingentes”.
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47Visto que a determinação é a certeza objetiva, quer dizer, uma verdade que pode
ser conhecida (Teod. I, 36), Deus regula a equivalência entre a determinação e a certeza,
mas de forma alguma a equivalência entre a determinação e a necessidade. “A
preciência em si mesma não torna a verdade mais determinada; ela é prevista porque
ela é determinada, porque ela é verdadeira; mas ela não é verdadeira porque é
prevista”(Teod. I, 38). “Essa determinação vem da própria natureza da verdade, e não
poderia prejudicar a liberdade” (Teod., I, 37). Melhor ainda: mesmo se os futuros
contingentes não dependessem dos decretos de Deus, ainda assim haveria, para ele,
“meios de prevê-los”: ele os veria tais como eles são na região dos possíveis (Teod., I,
42). No campo da verdade tudo é determinado, quer dizer, de direito previsível. Mas só
se poderia falar em necessidade se fossem imagináveis apenas os possíveis pertencentes
ao sistema de compossíveis que foi escolhido. Se não houvesse outro mundo, o
determinado seria o necessário. Como a preciência vige de direito em todas as partes,
ela não poderia incidir sobre os compossíveis deste mundo e transformá-los em
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compreendem não apenas este universo mas ainda todos os outros que possam ser
concebidos, o todo indeterminado é anterior às divisões... A continuidade
unitariamente regrada, se bem que ela só seja suposição e abstração, forma a base das
verdades eternas e das ciências necessárias”.
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50 Carlos Alberto Ribeiro de Moura
50LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humaine, III, 3, par. 6-7; 1966, p. 248-9.
51LEIBNIZ, Nouveaux essais sur l’entendement humaine, III, 3, par. 6-7; 1966, p. 248-9.
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que pudesse ser mais confortável para nosso conhecimento finito: a diversidade
é sempre variedade, nunca simples dispersão, a pluralidade de essências não é
justaposição de idênticos porque cada uma delas é afetada, desde o início, de
uma intensidade que lhe é própria, e em função da qual existe o melhor
conjunto de compossíveis 52 . Se a pluralidade não fosse infalivelmente signo de
diferença qualitativa ou de diferença de intensidade dos componentes, só haveria
superlativo quantitativo e não determinação a melhor. Haveria coleção de possíveis
arbitrariamente feita, mas o “combate dos possíveis” seria sem razão. Apenas essa
hipótese da intensidade das essências, quer dizer, da diversidade qualitativa inicial, é
compatível com a aplicação do princípio de razão suficiente 53 . Mas ao mesmo
tempo ela acarreta a admissão de uma instância de escolha: só haverá saída racional
para o desfecho do combate se houver diversidade qualitativa universal, mas essa
arbitragem não pode ocorrer sem uma balança. A finalidade decorre do postulado
da heterogeneidade qualitativa: sem a discriminação inicial dos “graus de essência”,
se a existência não fosse julgada a mais harmoniosa, se ela não significasse “agradar a
Deus”, a possibilidade de sempre poder determinar não estaria garantida. Se
determinar não consiste em circunscrever os limites de regularidade de um
funcionamento, mas em recolocar cada coisa no lugar que a torna distinta das
outras, no centro da rede infinita de suas diferenças, então Deus, por sua escolha, é
o fiador dessa determinação completa.
Mas se é assim, a regulação do universo não significa o desdobramento de
um destino morno. Tivéssemos alcançado o “ponto de perspectiva” a partir do
qual a ordem se manifesta, sua extrema variedade ainda fascinaria, as surpresas nos
esperariam. Surpresas, mas não o irracional nem o imprevisível. E se isso nos causa
estranheza, é porque temos o hábito de localizar a necessidade ali, a contingência
aqui, como se não fosse a mesma verdade, a mesma legislação que regesse os dois
domínios, como se fora das leis só houvesse a indeterminação, logo, como se a
cientificidade supusesse a anulação ou a colocação entre parênteses da variedade, e
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52 Carlos Alberto Ribeiro de Moura
54Cf. LEIBNIZ, Essais de Théodicée. II, 213; 1969, p. 247: A bondade e a beleza não
tanta variedade quanto é possível, mas com a maior ordem que se possa, quer dizer,
este é o meio de obter tanta perfeição quanto se pode”.
56Cf. LEIBNIZ, “Leibniz a Sofia Carlota”; 1978, p. 348: “...toda a minha filosofia...
é fundada em dois ditos tão comuns quanto aquele do teatro italiano, de que ali é
exatamente como aqui, e este outro, de Tasso: che per variar natura è bella, que parecem se
contrariar, mas que é preciso conciliar entendendo um do fundo das coisas, o outro das
maneiras e aparências”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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