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"

STORIA E CINEMA:
um debate metodológico*

Mônica Almeida Kornis

poderia ser uma companhia para esses


1. Introdução grandes personagens que constituem a So­
ciedade do historiador: a rtigos de leis, Ira­
ão é possível ignorar o impacto cau­ tados de comércio, dcc\amções lniniste­
sado pela criação e difusão do cine­ riais, ordens operacionais, discursosu•
ma e outros meios de comurucação de Lembrando que várias décadas se passa­
massa na sociedade do século XX. Como ram e que hoje todos vão ao cinema, Ferro
objeto industrial, essencialmente, reprodu­ alerta porem para a desconfiança que ainda
zível e destinado às massas, o cinema re­ pairava no início da década de 1970: "de
volucionou o sistema da arte, da produção que realidade o cinema é verdadeiramente
à difusão. Entre as mudanças ocorridas na a imagem?,,2
sociedade nas primeiras décadas deste sé­ A questão central que se coloca para o
culo, o historiador inglês Eric Hobsbawn historiador que quer trabalhar com a ima­
inclui o surgimento das artes de massa em gem cinematográfica diz respeito exata­
detrimento das artes de elite, e destaca o mente a este ponto: o que a imagem refle­
cinema, que iria influir decisivamente na te? ela é a expressão da realidade ou é uma
"maneira como as pessoas percebem e es­ representação? qual o grau possível de ma­
truturam o mundo"" rupulação da imagem? Por ora, essas per­
O historiador francês Mare Ferro adver­ guntas já nos são úteis para indicar a parti­
te contudo para o desprezo das pessoas cularidade e a complexidade desse objeto,
cultivadas do início do século pelo "cine­ que hoje começam a ser reconhecidas.
mat6grafo". O filme era considerado "co­ De maneira geral, os documentos vi­
mo uma espécie de atração de feira", de suais são utilizados de forma marginal e
cujas imagens não se reconhecia nem mes­ secundária pelos estudos hist6ricos. Pierre
mo o autor. Segundo ele, "a imagem não Sorlin, historiador francês, observava em

• A primeira versão deste texto foi lida pelos professores lsmai l Xavia" e João Luí. Vieira, • quem Igradeço ai afticu e
.ugC5tÓCI.

Eslwdos Jlist6ricos, Rio deJancir� vol. 5, n. 10, 1992, p. 237-250.


238 ESlUDOS msTÓRlCOS -1992110

meados da década de 1970 que na maior a Éco/e des A1IIUlJes enriqueceodo o es­
-

parte dos trabalhos de história a iconogra­ tudo e a explicação das sociedades através
fia tornara-se um anexo da bibliografia, o das representações feitas pelos bomens em
que o levava a reclamar: ''Nenbum histo­ determinados momentos históricos. Foi s
riador cita um texto sem situá-lo ou comen­ essa mesma concepção que impulsionou
\á-lo: em contrapartida, alguns escl&iu;i­ um campo ainda mais vasto de reflexão, o
mentos puramente factuais são gerabnente da história do imaginário.
suficientes para a ilustração.'.3 Podemos ir ANova História ampliou também o con­
mais longe e perguntar: a imagem é neces­ teúdo do termo documento "há que tomar
-

sariamente uma ilustração? a palavra 'documento' no sentido mais am­


Não caberia nos limites deste trabalho plo, documento escrito, ilustrado, transmi­
discutir de maneira mais ampla e profunda tido pelo som, a imagem ou de qualquer
a questão da linguagem visual e da imagem outra maneira' ,6 - e sobretudo destacou a
e Sl13S várias manifestações em diferentes necessidade da crítica do documento. Para
momentos históricos como forma de ex­ Le Goff, "o documento não é qualquer
pressão e comurucação. Asemiologia trou­ coisa que fica por ronta do passado, é um
xe uma contribuição fundamental ao estu­ produto da sociedade que o fabrirou segun­
do desse tema, que só muito recentemente do as relações de forças que aí detinham o
começou a despertar a atenção dos histo­ poder. Só a anãlise do documento enquanto
riadores brasileiros.4 De toda forma, o que documento permite à memória roletiva re­
é importante registrar é que hoje se admite cuperá-lo e ao historiador usá-lo cientifica­
que a imagem não ilustra nem reproduz a mente, isto é, com pleno ronbecimento de
realidade, ela a reconstrói a partir de uma causa". inspirado na noção de documen­
linguagem própria que é produzida num to/monumento de Micbel Foucault, Le
dado contexto histórico. Isto querdizerque Goff afmua: "O documento é monumento.
a utilização da imagem pelo historiador Resulta do esforço das sociedades históri­
pressupõe uma série de indagações que cas para impor ao futuro - voluntária ou
vão muito além do reconbecimento do g/a­ involuntariamente - determinada imagem
maur dos documentos visuais. O historia­ de si próprias. No limite, não existe um
dor deverá passar por um processo de edu­ documento verdade. Todo documento é
cação do olhar que lhe possibilite "ler" as mentira. Cabe ao historiador não fa:rer o
Imagens. papel de ingênuo ( ...) É precisocomeçarpor

Por outro lado, o debate que teve lugar demonstrar, demolir esta montagem (a do
no campo de reflexão da história ao longo monumento), desestruturnr esta ronstrução
das décadas de 1960 e 1970 destacou a e analisar as condições de }'rodução dos
importância da diversificação das fontes a documentos-monumentos."
serem utilizadas na pesquisa histórica. O Foi sobretudo no dominio da história
movimento de renovação da historiografia das mentalidades, como mostra Michel
francesa denominado "Nova História" te­ \bvelle, que a iconografia apareceu romo
ve como uma de suas mais importantes fonte privilegiada.8 Por outro lado, os es­
características a identificação de novos ob­ tudos do imaginário passaram a destacar a
jetos e novos métodos, contribuindo para importância de se dar um novo tratamento
uma ampliação quantitativa e qualitativa aos documentos literários e artísticos, ne­
dos domínios já tradicionais da história. gando a idéia de que estes fossem meros
Foi no âmbito da Nova História que a reflexos de uma época.9 Em poucas pala­
história das mentalidades ganbou um im­ vras, todo esse movimento renovador rela­
pulso maior-apesar de já enunciada desde tiviwu o domíruo quase soberano da fonte
IUSTÓRlA E CINEMA 239

escrita e propôs o tratamento dos docu­ do Museu de Arte Mnderna do Rio de


mentos em função das reflexões específi­ Janeiro, aconteceu em 1979 e destacou
cas que lhe eram dirigidas. sobretudo a importância da documentação
Embora não desenvolva uma reflexão que pode ser obtida através dos fIlmes.
mais profunda sobre a relação entre histó­ Procurando avançar um pouco mais além
ria e cinema, Vovelle menciona que o fIlme dessa constatação, Paulo Sérgio Pinheiro
pode ser considerado um documento his­ afirmava: "Tratar da fonte cinematográfica
tórico, e saúda a aproximação dos historia­ é outra coisa: é dinamitar essa concepção
dores com a semiologia e a psicanálise, de ilustração do cinema em termos de re­
n
como forma de ampüar seu campo de in­ flexão histórica."

vestigação e �roeeder a uma renovação Em 1983, sob a org aniza ção da Casa de
metodológica. O Nesse contexto de abertu­ Rui Barbosa e da Cinemateca do M"seu de
ra da história para novos campos, o fIlme Arte Moderna, reaüzou-se uma mesa-re­
adquiriu de fato o estatuto de fonte precio­ donda intitulada "Cinema corno fonte de
sa para a compreensão dos comporiamen­ História. História como fonte de Cinema",
tos, das visões de mundo, dos valores, das na qual se diSCl.ltiu corno analisar um filme
t2
identidades e das ideologias de uma socie­ do ponto de vista da história. Reconbe­
dade ou de um momento histórico. Os cia-se a necess idade de uma diversificação
vários tipos de registro fílmico - ficção, das fontes, e particularmente a importância
documentário, cinejornal e atualidades - da fonte iconográfica para o estudo da
vistos corno meio de representação da his­ história. Os historiadores presentes, entre
tória, refletem contudo de forma particular os quais José Murilo de Carvalho, Francis­
sobre esses temas. Isto significa que o fIl­ co Iglésias e Rosa Maria B arbosa de Araú­
me pode tomar-se um documento para a jo, dirigiram suas intervenções, em ünhas
pesquisa histórica, na medida em que arti­ gerais, para os seguintes aspectos: a visão
cula ao contexto histórico e social que o de mundo que o produtor e o realizador
produziu um conjunto de elementos intrín­ imprimem ao filme, a produção e a tecno­
secos à própria expressão cioomatográfica. logia do filme, a autenticidade ou não do
Esla definição é o ponto de partida que ftime histórico, a capacidade do filme de
pennite retirar o filme do terreno das evi­ mostrar além do que o próprio cineasta
dências: ele passa a ser visto como uma defme corno objetivo e de um fragmento
construção que, como lal, altera a realidade revelar algo que escapa à mensagem cen­
através de uma articulação entre a imagem, traI. Em comunicação inspirada sobretudo
a palavra, o som e o movimento. Os vários nos trabalhos de Marc Ferro, José Luiz
elementos da confecção de um fIlme - a Werneck da Silva não s6 reforçou a impor­
montagem, o enquadramento, os movi­ tância do fIlme como fonte para o trabalho
mentos de câmera, a iluminação, a utiliza­ do historiador, mas também indicou alguns
ção ou não da cor-são elementos estéticos aspectos que devem ser considerados por
que formam a ünguagem cinematográfica, aquele que quer lidar com esse tipo de
conferindo-lhe um significado específico fonte: é preciso reconhecer que existe uma
que transforma e interpreta aquilo que foi manipulação ideológica prévia das ima­
recoriado do real. gens, assim como uma articulação da lin­
No Brasil, realizaram-se dois encontros guagem cinematográfica com a produção
voltados para a discllssão do cinema como do filme e com o contexto de sua realiza­
fonte para a história. O primeiro, patroci­ ção.t3 Os cineastas e críticos de cinema
nado pela Embra fdme, Fundação Cinema­ lambém trouxeram questões importantes
teca Brasileira de São Paulo e Cinemateca ao debate. O cineasta Sílvio Tendler adver-
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tiu que no campo da história não se traba­ tographie historique".14 Integrante da


lhava com a imagem e com o cinema, equipe dos inventores do cinema, os Ir­
enquanto desde o início do século os ci­ mãos Lunúere, Matuszewski defendia o
neastas perceberam o valor documental do valor da imagem cinematográfica, que era
cinema, assim corno a possibilidade de a por ele entendida corno testemunho ocular
história ser tema para a ficção. O crltico verídico e infalível, capaz de controlar a
Iean-Claude Bernadet destacou a impor­ tradição oral. Para ele, "o cinematógrafo
tância da análise do filme enquanto lingua­ não dá talvez a história integral, mas pelo
gem, do papel do cinema enquanto agente menos o que ele fornece é incontestável e
social e das condições internas e externas de uma verdade absoluta".IS Sustentando
de produção do filme. o argumento de que a fotografia anima da
Não bouve contudo entre nós um esfor­ era autêntica, exata e precisa, Matuszewski
ço de sistemati7JIção dessas idéias, e sobre­ pretendia criar um "depósito de cinemato­
tudo um debate propriamente metodológi­ grafia histórica" a ser organi7JIdo a partir
co sobre as questões que envolvem a rela­ da seleção dos eventos importantes da vida
ção entre cinema e história. Só mais recen­ pública e nacional considerados de interes­
temente começou a surgir um esforço se histórico. Ele julgava que o evento fú­
conjunto de historiadores e profissionais mado era mais verdadeiro que a fotografia,
da área de comunicação -especificamente na medida em que esta última adnútia re­
aqueles voltados para o campo da teoria toques. Deve-se observar contudo que Ma­
cinematográfica -no sentido de incentivar tuszewski atribuía esse valor ao fúme do­
a discussão· sobre o tema via projetos de cumentário que, aliás, era a produção do­
tese de mestrado e doutorado. minante na época.
Na tentativa de introdnzjralguns pontos Décadas mais tarde, ainda no tempo do
para a ampliação desse debate, iremos re­ cinema mudo, o debate entre os cineastas
constituir aqui como foi pCicebido histori­ russos Dziga Vertov e Serguei Eisenstein
camente o valor documental do cinema e traria contribuições importantes para uma
levantar algumas questões teórico-meto­ defllÚção da nature7JI da imagem cinema­
dológicas que lancem alguma luz sobre a tográfica, situando-se num pólo oposto ao
relação entre cinema e história. Nosso es­ do princípio de autenticidade do registro de
forço, assim, será o de sistemati= as dife­ Matuszewski. Ambos entendiam que o fú­
rentes concepções e abordagens do tema, me é uma construção. Para Eisenstein, "a
sem a pretensão de esgotar uma ampla montagem é o princípio vital que dá signi­
dis<:nssão que avança sobretudo entre teó­ ficado aos planos puros",16 ou seja, o filme
ricos e reali7JIdores de cinema. seria criado a partir de sua montagem, e
não poderia então ser visto como uma re­
produção fiel da realidade. Seria a lingua­
gem criada pela montagem que, segundo
2. O filme como registro da ele, nos levaria a uma verdadeira análise
realidade do funcionamento da sociedade. Embora
compartilbasse da idéia de que o filme não
O primeiro trabalbo de que se tem notí­ é a cópia fiel da realidade e sim uma cons­
cia relativo ao valor do filme como docu­ trução feita por seu realizador, Dzjga Ver­
mento histórico data de 1898, foi escrito tov só adnútia no cinema documentário a
pelo câmera polonês Boleslas Matuszews­ capacidade de expressar a realidade: a
ki e se intitula "Une nouvelle source de montagem se utili7JIva das imagens capta­
l'histoire: création d'uo dépõt de cinema- das pela câmera sobre uma dada realidade.
HISTÓRIA E CINEMA 241

Já nos anos 70 Marc Ferro iria referir-se 1947, Kracaner escrevia De Caligari a
a e&<a polêmica para reforçar sua aJgUmen­ Hitler (publicado no Brasil em 1988 por
tação de que tanto o cinema documentário Jorge 7;lhar), cuja tese central era a de que
como o de ficção devem ser objeto de uma o cinema expressionista alemão refletia os
análise cultural e social, refutando a idéia de arlSeios da sociedade alemã da década de
que o primeiro gênero seria mais objetivo e 1920 prenunciando a ascensão do nazis­
retrataria fielmente a realidade.17 Por ora, mo. Kracauer considerava que os filmes de
interessa-nos somente registrar o debate ficção refletiam de forma imediata a men­
acerca da natureza da imagem cinematográ­ talidade de uma nação, estabelecendo as­
fica entre dois importantes nomes do cinema sim uma relação direta entre o filme e o
empenhados não só em (aur cinema mas meio que o produz.
também em refletir sobre sua experiência. Segundo Sorlin, o impacto do trabalho
Na década de 1920, surgiram indícios de Kracauer pode ser medido pelo fato de
de que algurlS historiadores passavam a que a sociologia do cinema continua a
reconhecer o cinema como fonte de conhe­ estabelecer relações de homologia entre os
cimento histórico. Prova disso foi o inte­ filmes e o meio que lhes dá origem. Preva­
resse pelo filme como documento histórico leceria então a idéia de que os cineastas não
demorlStrado por um grupo de historiado­ copiam a realidade mas, ao trarlSpô-la para
res que compareceu aos encontros do Con­ o filme, revelam seus mecanismos20 Iden­
gresso Internacional das Ciências Históri­ tificado com uma concepção realista do
cas realizados entre os anos de 1926 e cinema, KIacauer acreditava ainda que es­
1934. Sua atenção concentrava-se contudo te distinguia-se das artes tradicionais por
na busca de condições para a preservação ser fiel à realidade de uma época: como a
de filmes nos arquivos que viriam a ser fotografia era sua matéria-prima, o cinema
criados. É possível afirmar que sua con­ era o único instrumenlo capaz de registrar
cepção do valor do filme era a mesma de a realidade sem deformá-la. Em outro tra­
Matuszewski, isto é, o filme era visto como balho, Kracauer relacionava a tarefa do
registro da realjdade. Esse aJgUmento é historiador à do fotógrafo, corlSiderando
reforçado pela observação do historiador que ambos deviam examinar meticulosa­
inglês Anthony A1dgate, de que aqueles mente os detalhes e os fatos objetivos. A
historiadores estavam voltados exclusiva­ imaginação do historiador, assim como a
mente para os filmes de atualidades - mais do fotógrafo, devia ser "sada para servir
tarde denominados cinejornais - e não da­ aos fatos.21 Essa identidade entre mentali­
vam atenção aos filmes de ficção, aos do­ dade e realidade/filme viria a ser questio­
cumentários ou a qualquer tipo de recorlS­ nada mais tarde sobretudo por Sorlin, que
tituição histórica feita pelo cinema. A1dga­ iria relativizar tanto a verdade trazida pela
te demonstra como prevalecia a noção de fotografia quanto uma relação harmônica
que o material existente nos filmes de atua­ entre filme e público.
lidades estava livre da influência pessoal Ao longo da década de 1950, sobretudo
de seus realizadores.18 na Inglaterra e na Alemanha, um número
Karnten Fledelius COrlStata ainda que, maior de historiadores passou a reconhecer
apesar do movimento de valorização da nos filmes um valor histórico. O inglês Sir
história social e das mentalidades iniciado Arthur Elton declarou a importância do
em meados da década de 1920, foi um estudo dos filmes de ficção e do documen­
jornalista, Siegfried Kracauer, quem trou­ tário, nivelando-o ao estudo dos hierogli­
xe alguns novos elementos para a discus­ fos e dos pergaminhos.22 Entretanto, se­
são da relação cinema e história.19 Em gundo Fledelius, os artigos desses historia-
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dores voltavam-se sobretudo pam o que se as questões inerentes à utilização dos do­
deveria fazer e não para como fazê-lo, cumentos cinematográficos inseriu-se, co­
apesar da observação do alemão Fritz Thr­ mo vimos, no campo de preocupações da
veen no sentido de que o filme só seria Nova História francesa. Em 1968, Marc
aceito como documento histórico na medi­ Ferro publicou na revista Annales um arti­
da em que f05Se desenvolvida uma meto­ go intitulado "Sociélé du xxe siêcle et
dologia baseada no princípio da tradicional histoire cinématographique" no qual, refe­
crítica às fontes históricas23 rindo-se ao culto excessivo do documento
Em resumo, o reconhecimento do valor escrito, que julgava ter levado os historia­
documental do cinema se ateve ao longo de dores a utilizarem técnicas de pesquisa
todo esse tempo l identificação da imagem válidas para o século passa do, alertava que,
por ele produzida com a verdade obtida para a época contemporllnea, estavam l
pelo regisbo da câmera. Prevaleceu portan­ disposição documentos de um novo tipo e
to o princípio definido por Matuszewski ao com uma nova linguagem que traziam urna
[mal do século XIX. Na realidade, a discus­ nova dimensão ao conhecimento do passa­
são sobre a linguagem cinematográfica es­ do.25 Por oubo lado, fora da França, Niels
teve restrita aos produtores de imagens - os Skyum-Nielsen elaborou em 1966 um tra­
cineastas - e aos teóricos do cinema. Foi balho publicado em dinamarquês em 1972
somente a partir de meados da década de que, segundo Aedelius, foi o primeiro livro
1960 que a discussão propriamente meto­ voltado para a crítica da fonte audiovisual.
dológica sobre a relação cinema-história Era uma obm que se enquadrava nas preo­
passou a existir, tendo como ponto central cupações de Terveen na década de 1950
a questão da natureza da imagem cinema­ acerca da necessidade de um trabalho me­
tográfica. Para Sorlin, o impacto produzido tndológico sobre o tema.26 Durante a dé­
pela criação e difusão da televisão, que cada de 1970 aumentou a produção histo­
colocou as imagens no espaço doméstico, riográ fica sobre a relação cinema e história
fez com que os cientistas sociais não mais e houve um esforço mais evidente ara .p,
pudessem ignorar o mundo da câlnera.24 tratar o cinema na sua complexidade.
Por oubo lado, os próprios caminhos que a As diversas abordagens que serão aqui
teoria do cinema passava a trilhar, sobretu­ examinadas possuem alguns aspectos em
do com a difilsão da semiologia, implica- comum, muito embom o tratamento poste­
111m a adoção de novos princípios no campo rior demonstre claramente suas particula­
das reflexões sobre a imagem, com reflexos ridades. Um primeiro aspecto é o reconhe­
em outros domínios do conhecimento, in­ cimento de que, tratado como documento
clusive a história. Observe-se contudo que histórico, o filme requer a formulação de
as novas abordagens nessa área pelcorre- novas técnicas de análise que dêem conta
111m caminhos específicos, e é isso que de um conjunto de elementos que se inter­
Iremos exarrunar a seguIr. põem entre a câmera e o evento filmado.
• • •

As circunstâncias de produção, exibição e


recepção envolveriam toda uma gama de
variáveis importantes que deveriam ser
3. A busca de um método de considemdas numa análise do filme. Na
trabalho base desta postura, evidentemente, está a
recusa ao princípio de que a imagem é
O reconhecimento do cinema como um reflexo imediato do real, e que portanto ela
novo objeto da análise histórica e sobretu­ tmduz • verdade dos ratos. Um segundo
do o esforço de examinarrnais atentamente aspecto comum é o reconhecimento de que
IDSTORIA E CINEMA 243

todo filme é um objeto de análise para o relação entre autor/tema/espectador. Nesse


historiador. Com isso, não só os cinejomais sentido, "o imaginário é tanto história
e documentários, mas também os nImcs de quanto História, mas o cinema, especial­
ficção, se tomam objeto de análise históri­ mente o cinema de ficção, abre um exce­
ca, em última instância pelo fato de ne­ lente caminho em direção aos campos da
nhum gênero fílmico encerrar a verdade, história psicossocial nunca atingidos pela
não importa que tipo de operação cinema­ análise dos documentos".30
tográfica lhe deu origem. Essas observações de Ferro mostram­
A escolha do historiador e realizador de nos sua identidade com os novos campos
dOCl",..,ntários Marc Ferro como primeiro de investigação privilegiados pela Nova
autor a ser analisado não é fortuita. A pri­ História, o da história das mentalidades e
meira referência ao debate sobre cinema o da história do imaginário. Embora seu
como fonte para a história a chegar ao nOllle não seja imediatamente associado a
Bmsil foi seu artigo"O filme, uma contra­ esse grupo - pelo menosnão existe nenhu­
análise da sociedade?" publicado na cole­ ma evidência formal nesse sentido - Ferro
tâneaHistórÚl: novos objetos, cuja primei­ demonstra a importância do mOle como
ra edição é de 1976. Na década de 1980, o
fonte reveladora das crenças, das intenções
próprio Ferro fez palestras aqui. Seus es­ e do imaginário do homem. Foi ainda se­
critos espalham-se po r livros e artigos pu­
guindo essa trilha que, numa de suas expe­
blicados em revistas e coletâneas, sem que
riências como realizador de cinema, uma
exista um trabalho mais sistematizado em
série denominada "Une histoire de ia mé­
tomo de sllas contribuições. Esse fato não
dicine", Ferro deixou claro que o que o
impede que se extraia as linhas principais
mme mostrava era uma determinada visão
de suas reflexões.
daquela ciência.
O primeiro ponlo a destacar é o esforço
Um outro aspecto importante em seus
de Ferro paIlI demonstrar que o f.lme cons­
trabalhos é a afinna ção de que o mme é um
titui um documento para a análise das so­
agente da história, e não só um produto.
ciedades, muito embora não Caça p.!! rte"do
Ferro demonstra como os nImes, através
universo mental do historiador".28 Ferro
de uma representação, podem servir à dou­
aponta uma série de elementos que com­ t
trinação e ou à glorificação? Ao mesmo
provam a importância do uso do cinema
como documento histórico e insiste na par­ tempo, observa que desde o momento em
que os dirigentes políticos compreende­
ticuaridade do trabalho com esse tipo de
fonte. Privilegia também o uso do fa1me de ram a função que o cinema poderia exe,cer,
ficção na análise histórica por julgar van­ eles tentaram se apropriar do meio, colo­
tajosas as possibilidades analítiOls que es­ cando-o a seu serviço. A primeira tentativa
se gênero traz consigo, como reações crí­ teriam sido os numerosos mrnes de propa­
ticas, dados sobre freqüência aos cinemas ganda produzidos ao longo da Primeira
e uma variedade de informações sobre as Guerra Mundial. Foram contudo os sovié-
ticos e posteriormente os nazistas que, se­

condições de produção, nem sempre dis­


poníveis em rela o aos cinejomais e aos gundo ele, conferiram ao cinema um esta­

documentários.2 Evocando o imaginário, tuto privilegiado de instrumento de propa­
presente para ele em qualquer gênero fil­ ganda e de formação de uma cultura para­
mico, como uma das Corças dirigentes da leia?2 Ferro ressalta que o cinema pode ser
atividade humana, procura demonstrar co­ também um agente de conscientização, o
mo é através da forma que o mme atua no que seria mais útil nas sociedades de regi­
terreno da imaginação e se estabelece a me político mais fechado?3

244 ESlUOOS I:DSTÓRlCOS 1992110
-

Para Ferro, a contribuição maior da aná­ O método de articulação dessas variá­


lise do filme na investigação histórica é a veis excede assim a tradicional abordagem
possibilidade de o historiador buscar o que das ciências humanas, e daí a importáncia
existe de não-visível, uma vez que o filme do trabalho interdisciplinar de historiado­
excede seu próprio conteúdo. Ao conside­ res, lingüistas, sociólogos e antropólogos
rar esse elemento como uma das particula­ ao qual Ferro se referia em seu artigo nos
ridades do filme, Ferro reafirma seu pres­ A nnaie< em 1968. Analisar o filme juntan­
suposto de que a imagem cinematográfica do o que é Iilme -planos, temas - com o
vai além da ilustração, que ela não é somen­ que não é filme -autor, produção, público,
te coolirmação ou negação da informação crítica regime político - é o objetivo de
j
do documento escrito. O filme para Ferro Ferro. 7 Seu procedimento analítico é mais
fala de uma outra história: é o que ele chama detalhado em relação ao documentário e à
38
de contra-história, que torna possível uma flCção, sendo que os elementos levanta­
contra-análise da sociedade. Para ele, o fIl­ dos para o primeiro gênero atingem um
me revela aspectos da realidade que ultra­ grau maior de sistematização.
passam o objetivo do realizador, além de, A análise de um Iilme de montagem ne­
por trás das imagens, estar expressa a ideo­ =ita, seguodo ele, de duas operações dis­
logia de uma sociedade. Ferro defende as­ tintas: O estudo e a crítica dos documenlos
sim que, através do filme, chega-se ao ca­ utilizados no filme, e a crítica de sua inserção
ráter desmascarador de uma realidade polí­ no filme, que não é necessariameate contem­
tico e social. Como exemplo, ele analisa o porânea da produção dos documentos. Ferro
filme soviético Tchapaev (1934), tentando alerta para a presença de elemenlos compli­
demonstrar como se construía naquelecaso cadores para esse procedimento, na medida
uma ideologia staünista. em que pode haver também inserção de
Na busca do não-visível de um filme imagens c/ou enlrevistas que se realizam
proposta por Ferro, que instrumentos o duran1e a execução do filme. Um filme de
historiador deve usar para proceder à aná­ moolagem comporta assim vários tipos de
lise histórica? Considerando que por sua documen1os fílmicos e também não-<:inema­
própria natureza a imagem cinematográfi­ tográficos, e cada um desses tipos pode ter
ca dá um novo tipo de informação, distinta sido extraído de seqüências já montadas, e é
do documento escrito, Ferro propõe uma possível agregar-lhes uma série de elemen­
abordagem do filme como uma imagem­ tos, como cenas de filmes de ficção e entre­
objeto, como um produto cujas significa­ vistas, por exemplo.
35
ções não são somente cinematográficas Em relação à crítica histórica e social
Recusando-se a tratar o filme e sua relação dos documentos, Ferro procura examinar
com a sociedade e a história como uma as imagens através da crítica de autencida­
obra de arte, Ferro também se afasta de de, de identificação e de análise. A primeira
uma análise semiológica, estética ou ligada traz em si uma ambigüidade, posto que as
à história do cinema. Seu objetivo é exa­ pessoas podem saber ou não saber se estão
minar a relação do flime com a sociedade seodo filmadas. Existem ainda outros ele­
que o produz/conSome, articulando entre si mentos, sobretudo para o caso dos cioejor­
realização, audiência, financiamento e nais, que permitem verificar se o documen­
36
ação do Estado, isto é, variáveis não-<:i­ to é ou nao reconstituído ou modificado.
nematográficas (condições de produção, São eles os ângulos das tomadas (podem
formas de comercialização, censura etc.), revelar o número de câmeras Ulilizadas,
e a própria especificidade da expressão sabendo-se no caso de atualidades conta-se
cinematográfica. com um único operador); a distância das
IUSTÓRlA E CINEMA 245

diferentes imagens de um mesmo plano Embom partindo de alguns pressupos­


(antes da mom, a passagem de um plano tos em comum com Ferro, o tmbalho de
distante pam um próximo não podia ser Pierrc Sorlin caminha numa direção opos­
feita de uma só vez); as condições de lei­ ta, como veremos a seguir. Negando
tum da imagem se existe montagem e/ou exaustivamente que a postum do historia­
reconstituição c de iluminação; a intensi­ dor possa se confundir com a de um mero
dade da ação (um documento com ritmo espectador diante de uma tela de cinema
seria manipulado, ao passo que um plano­ ou de televisão, Sorlin procum definir cer­
seqüência não montado comportaria ne­ tos pammetros pam a análise fílmica. Para
cessariamente tempos mortos); o grão da ele, é atmvés da indagação de como indi­
película (contrnstes mais definidos podem víduos e grupos compreendem o seu tem­

indicar que não houve trucagem, além do po que se toma possível dermir o estudo do
cinema como um documento de história
que podem sofrer alternções após sucessi­
social. Nesse sentido, ele critica de forma
vas cópias). Ferro considera a crítica de
bastante contundente o empiricismo das
identificação - que deve vir após a crítica
análises que supõem o filme como reOexo
de autenticidade - mais fácil pam o histo­
de uma realidade histórica, recusando-se a
riador: é a busca da origem do documento,
estabelecer assim uma homologia entre o
sua data, identificação de personagens e
filme - instrumento de expressão ideológi-
locais e interpretação do conteúdo. A críti­ - 39
,
ca - e uma lormaçao ·1. Nesse caso,
SOCla
ca analítica englobaria o exame da fonte
sua crítica volta-se mais diretamente pam
emissom, das condições de produção e de
doiS tipos de abordagem: a da história do
recepção, na medida em que Ferro parte do 40
cinema e a da sociologia histórica.
pressuposto de que não existe documento
Em relação ao primeiro caso, Sorlin
politicamente neutro ou objetivo. Finali­
observa que um arrolamento das escolas,
zando, ele destaca a importãncia da anãlise
gêneros, temas, autores, obras-primas, bio­
da realização do filme, que consiste na
gmfias, técnicas etc. não seria de gmnde
decodificação do conjunto de imagens e
utilidade parn os historiadores preocupa­
sons: a seleção de entrevistas, a montagem,
dos em desvendar a relação do filme com
a natureza das questões abordadas, a sono­
a sociedade. No segundo caso, seriam in­
rização, são elementos citados por Ferro suficientes os elementos com que a socio­
pam a execução desta tarefa. logia do cinema lida, como dados econô­
Na análise do fúme de ficção, Ferro micos, inOuência da conjuntum política e
confere importãncia às camcteristicas da o público. É no interior desse campo que
sociedade que o produziu e o consome e da ele situa o já citado trabalho de Kracauer
própria obm, além da relação entre os au­ (De Caligari a Hitler) que identificam nos
tores do filme, a sociedade e o próprio filmes de uma época a mentalidade daque­
filme. Mais de uma vez Ferro refere-se a le momento histórico.
Tchapaev, na tentativa de resgatar o esque­ Parn Sorlin, essas análises desembocam
ma de construção não-visível do filme: no seguinte impasse: ou descrevem a socie­
resume o argumento, relata os comentários dade e verificam a descrição nos fibnes, ou
produzidos na época de sua exibição, ela­ analisam os filmes e encontram na estrutum
bom um inventário das seqüências que social os elementos que lhes demm origem.
demm origem àqueles comentários, e con­ O imobilismo desse esquema se funda, se­
fronta com a intenção dos autores parn gundo ele, não só por razões teóricas - não
procurar esclarecer o conteúdo do fúme há uma reflexão sobre os materiais usados
em relação à sua ideologia latente. pelo filme e sobre a sua relação com O públi-
246 FSlUDOS mSTÓRlCOS - 1991/10

co mas também pela insuficiência de mé­ meios de expressão: sons, vozes, palavras�
4>
-

todos, embora reconheça a importância do , . ULS


cantos, muslca . tru mentaI , rui'd os et c
.
registro etnográfico no filme
. Além disso, partindo de uma distinção en­
É na busca de um método que Sorlin tre o filme e a fotografia, Sorlin observa
acredita na contribuição da semiótica, a que o filme encadeia várias fotografias,
ciência dos signos usados na comunicação, seodo que cada plano dispõe-se a várias
para resgatar os diversos signos que com­ . interpretações, embora a posição do plano
põem um filme e que, uma vez classifica­ numa cadeia de vários outros induza a uma
dos, permitiram a sua leitura. Entretanto, certa leitura em função da montagem do
ele próprio pondera sobre a dificuldade de filme, do jogo de câmera e dos diálogos.
se chamar de "signo" toda a série de ele­ Em resumo, a realidade que o filme expres­
mentos visuais e sonoros que o cinema sa é resultado de uma série de processos
44
coloca e que não necessariamente se orien­ que a transformam.
tam para estabelecer uma comunicação . Nessa mesma linha, um outro elemento
Alguns elementos poderiam traduzir uma que Sorlin acrescenta é o de que o filme é
manifestação não-intencional, e ainda as­ realizado por uma equipe e deve ser consi­
sim ser capazes de esclarecer de maneira derado todo o circuito de financiamento,
indireta um fenômeno social. Além disso, filmagem e dislribuição. Essa é uma outra
a imagem supera a comunicação dos atores razão para que a análise do filme não se
na medida em que a expressão cinemato­ resuma nem à intenção do diretor nem à
gráfica possui uma série de elementos que análise do conteúdo do filme a partir de seu
41
lhe são específicos Para ele, a imagem roteiro. Pelo contrário, ele deve ser exami­
propõe um grande número de mensagens, nado como um trabalho acabado -na sua
cabendo ao historiador re.grupar certos combinação de elementos visu.,is e sono­
elementos icônicos selecionados dentro de ros -e pelos efeitos que produz
.
um conjunto maior. Retomemos agora de uma fO ffi18 mais
Sorlin defende o uso de semiótica como global a questão de como, para Sorlin, o
instrumento de análise, ressaltando contu­ filme traz uma forma de representação do
do que cabe ao historiador definir com os real. A análise de todas as variáveis men­
critérios próprios de sua pesq uisa o eixo de cionadas leva-o a considerar os filmes co­
sua análise
. mo conjuntos onde a inserção de cada ele­
rado por um grupo interdisciplinar integra­ mento possui um significado, o que cria a
do por Sorlin sobre o filme Outubro, no necessidade de apreenderas esquemas que
que coube aos historiadores "superar a ten­ presidiram a relação e a organização das
tação da leitura empírica e imediata para diferenteS partes que o constituem. O fihne
responder às exigências teóricas dos semi­ possui um texto visual-que merece, assim
óticos e aos semiólicos descobrir certos como o texto escrito, uma análise interna­

limiles de uma explora o puramenle in­ e, como artefato cultural, possui sua pró­
terna do texto fílmico"
. pria hislória e um contexto social que o
Ao negar a exislência de um modelo de cerca
.
análise, Sorlin procura articular os meca­ fílmica para a história social
.
nismos inlemos da própria expressão cine­ lin, é necessário haver um mínimo de teo­
matográfica com a configuração ideológi­ rização e a definição de u m método adap­
46
ca e o meio social nos quais os filmes-um tável ao objeto de estudo . Para ele, é
a um, ou por grupos -se inserem. A espe­ através da análise da justaposição dos có­
cificidade da linguagem do cinema consis­ digos do filme e dos códigos específicos de
te para ele na utilização conjunta de vários uma época que o filme se torna uma fonte
HlSlÚRIA E CINEMA 247

de estudo fundamental para o historiador contrário ao estabelecimento de uma ho­


que pretende examinar a mentalidade de mologia entre filme e mentalidade de uma
um determinado momento histórico. sociedade num dado momento histórico,
Além de estudar o cinema neo-realista Sorlin procura um sistema de leitura dis­
italiano e alguns filmes históricos, Sorlin tinto de Ferro. Sorlin procura o auxilio da
examinou as mudanças sociais ocorridas semiótica como forma de desvendar a lin­
na França e na Itália durante a década de guagem do filme, ao passo que Ferro acaba
1960 através dos filmes Pierrot Le Fou por concentrar-se na análise contextual. A
(1965) e O Eclipse (1962), tentando mos­ "busca do não-visível" de Ferro está intrin­
trar como esses filmes são pa rte dessas secamente ligada a uma análise do conteú­
transformações. Ap6s identificar as várias do do filme e ao contexto de produção, e
seqüências que compõem cada filme, ele muito embora remeta-se à importância da
analisa as particularidades da produção linguagem cinematográfica, parece:nos
desses filmes e a maneira como é feita a que Ferro acaba por não integrar todos
caracterização dos personagens e de seu esses elementos entre si. A seleção de cer­
estilo de vida. Refere-se também à técnica tos aspectos que lhe parecem significativos
que produz a linguagem dos filmes. A títu­ afastam-no de uma análise dirigida à pró­
lo de comparação, Sortin utiliza algumas pria construção do filme e à relação sincm­
fontes tradicionais do historiador, como Dica e diacrônica de seus elementos. Sor­
por exemplo dados estatísticos sobre temas lin, por sua vez, conduz sua análise ness.
referentes a mudançascomportamentais. A direção, possivelmente em busca de maior
presença do carro como um elemento fun­ rigor no tratamento das imagens.
damentai da sociedade contemporânea e a Entre os historiadores ingleses, os estu­
mudança da imagem feminina são alguns dos mais significativos sobre a relação his­
dos aspectos que fomecem subsídios à tória e cinema demonstram por outro lado
análise de Sorlin sobre o descompasso en­ uma total recusa de análises do tipo estru­
tre as imagens produzidas e a própria reali­ tural. Com base nos trabalhos de Anthony
dade. Em resumo, Sorlin observa que as Aldgate, Jeffrey Richards e Arthur Mar­
imagens são uma reOexão em tomo do wick, é possível traçar as linhas gerais
mundo que as cerca, ao mesmo tempo em dessa outra abordagem do tema.
que recriam uma possível porém imaginá­ Em seus pressupostos, essas análises
ria visão de alguns aspectos da sociedade, assemelham-se àquelas já mencionadas.
que é apenas uma entre as várias visões Nenhum gênero fílmico é objetivo, e a
48
possíveis. São assim as hipõteses de pes­ realidade apresentada é fruto de uma sele­
quisa que, para ele, norteiam o historiador ção e de um controle prévios. É dada uma
na busca dos conjuntos significantes no ênfase bastante grande no exame da inter­
interior do filme. ferência da censura, dos produtores e dos
É possível concluir que o reconheci­ patrocinadores e de outros eventuais gru­
mento de Sorlin da contribuição de Ferro pos de pressão envolvidos na produção de
no sentido de trazer o cinema para o campo cada filme.
da história, e o avanço de seus trabalhos em Segundo essa abordagem, o valor do
relação a seus predecessores, como Kra- filme para o historiador reside na sua capa­
49 . 'fi
cauer, 030 slglUlcam uma 1'd entl'dade cidade de retratar uma cultura e dirigir-se
-

com seus métodos de trabalho. Em co­ a uma grande audiência na condição de


mum, a idéia de que a imagem não copia a meio de controle social e de transmissorda
realidade e de que a cJimera revela aspectos ideologia dominante da sociedade. Nesse
que ultrapassam as evidências. Entretanto, senlido, Richards e Aldgate consideram
248 ES11JDOS IUSTORlCOS - 1991/10

três aspectos fundamentais para a análise detenTÚnado. A questão da linguagem ci­


do filme: a) os elementos que compõem o nematográfica e de sua especificidade não
conteúdo, como roteiro, direção, rotogra­ encontra assim um lugar no esquema ana­
fia, música e atuação dos atores; b) o con­ lítico acima descrito.
texto social e político de produção, assim Porseu lado, os trabalhos realizados nos
como a própria indústria do cinema: e c) a Est"dos Ulúdos ao longo da década de
recepção do filme e a recepção da audiên­ 1 980, que obtiveram uma grande repercus­
cia, considerando a influência da critica e são entre os historiadores europeus, vol­
a reação do público segundo idad �sexo, tam-se sobretudo para a análise do objeto
classe e universo de preocupações. cinema, centrando-se na história do cine­
Richards é bastante categórico em sua ma norte-americano e na própria indústria
crítica à análise estruturalista disseminada cinematográfica, e procurando articular as
sobretudo na França em meados da década relações entre os lúveis econôllÚco e so­
53
de 1 960 e na década seguinte no campo da cial, tecnológico e estético Nos limites
teoria do cinema. Ele defende que através do presente trabalho, fica apenas a menção
de Um.1 história contextual do filme a partir a essa tendência que deverá ser tratada em
da exploração do contexto que o produz, o momento posterior.
filme toma-se importante para a história A título de conclusão, constatamos a
social. Identi ficado também com essa con­ diversidade de questões que se colocam ao
cepção, A1dgatc desenvolveu uma análise historiador que aceita o desafio em traba­
sobre como os cinejom.1is britânicos abor­ lhar com documentos visuais e lida com a
daram a Guerra Civil Espanhola, destacan­ imagem cinematográfica. Mesmo reco­
do sobretudo a indagação em tomo da nhecendo que a sociedade contemporânea
51
manipulação da imagem. Ambos confe­ está absolutamente mergulhada num mun­
rem ainda uma grande importância a lodos do de imagens, esta é uma proposta de
os materiais biográficos para o estudo do trabalho inovadora e ousada.
filme. A1dgate ressalta o valor das cartas,
diários, memorandos etc. ligados à produ­
ção do filme como fontes para o exame dos
aspectos educacionais, sociais, políticos e Notas
ideológicos nele contidos. Marwick por
sua vez valoriza em seu trabalbo sobre dois 1 . Entrevista concedida a Nioolau Scvcenko

filmes ingleses realizados em 1 959 e 1 960 para o jornal Fol"a d. S. Paulo, 04/06/1988.

a correspondência entre produção e órgãos 2. Mace Ferro, " O filme, uma contra-análise

de ccnsura, a comparação do filme com o da sociedade?", in História: novos objetos, dic.


11.
Jacqucs Le Go(f e Pierre Nora, 3 cd'J Rio de
livro que deu origem ao roteiro, as interfe­
Janeiro, Francisco A1vcs, 1988, p.201 e 202.
rências da produção e a escolha dos atores
3. Picrre Sarlio, Sociologie du cinéma, Paris,
juntamente com o contexto da época, co­
Éditions Aubicr Montaigne, 1977, p.39.
mo fonna de, através dos filmes, revelar os
4. Como exemplo, podemos citar o trabalho
problemas da sociedade emergente no fi­
52 de Antônio Ribeiro de Oliveira Júnior. "A ima­
nal da década de 1950 e início dos 60.
gemcomo discurso", in Ciro Flamadan Cardoso
Aabordagem desses autores destaca as­ e Antônio Ribeiro de Oliveira Júnior, Também
sim a importãncia do papel de uma série de com a imagem se faz IJislÓriQ, Cadernos do
variáveis que se interpõem na produção de ICHFiUfF n" 32, selembro 1990.
um filme, demonstrando toda a manipula­ S. Para oonsideraÇÕC5 mais gerais acerca do
ção ideológica construída em tomo das nascimento e desenvolvimento da história das
imagens a partir de um contexto lústórico mentalidades e a discussão de seu conceito, ver
HISTÓRIA E CINEMA 249

Philippe Aries, "L'histoire dcs mentalités", in La riques, Stutlgart, 25 aoOt au 1Çlseptembrc 1985,
nouvelle flistoire. dic. Jacques Le Gotf. Bruxe­ p.l81.
las, Éditions Complexc, 1988.
20. Plerrc Sortin, op.cit, p.48.
6 . Ch. Samaran, citado por Jacqucs Le Gorr
21 . J.Dudley Androw, op.cit., p.132.
"Docurncnto!Mo numenlo", in Enciclopédia Ei­
naudi. Porto, Imprensa Nacional, Casa da Moe­ 22. Citado por François Garçon e Pierre Sor­
da, 1984, vol.l: Memória e História, p.98. lin "L'historien et les archives filmiques", Rê\IUe
d 'Hislo;re Moderne el Contemporaine, tome
7 . Lc Goff, "'Documento/Monumento",
op.dt., p.J02 e 103.
XXVIII, avril-juin 1981, p.344.

8. Ver Michel Vovelle, ". oonografia c história 23. Kar.;'en Fledelius, op.cit., p.!81.

das mentalidades", in Ideologias e mentalida­ 24. Pierre Sortin, "aio à I'éaan. ou I' histo­
des, São Paulo, Brasiliense, 1987. rien dans le nair". Rêvue d'Histoire Modenfe et
9. Ver Jacques te Goff, entrevista a Micbcl Conlemporaine, tome XXI, avril-juin 1974,
Cazenave in Hisloire el imaginaire, Paris, Radio p.252.
France/Édilíons Poicsis, 1986. 25. Annales, Économies, Sociétés, Civilisa­
10. Michel Vovelle, ap.cil. tions, n23, mai-juin 1968, p.581-585.

11. Citado por Sérvul o Siqueirn, "Notícia do 26. Karsten Fledelius. op.cit., p.18l. O autor
Simpósio sobre o Gnema e a Memória do Bra­ cita ainda uma antologia dos alemães Moltmann
sil", in Carlos Augusto M. Calil, Sérvulo Siquei­ e Reimers. de utilidade para o historiador do
ra, Hans Harnstaedt e outros, Cinema/eca audiovisual, alertando contudo que a metodolo­
imaginária, dnema e memória, Rio de Janeiro. gia utilizada por alguns autores da coletânea (oi
Embrafilrne/ODD, 1981, p.30. contestada.

12. "Cinema como fonte de história, história 27. Em 1970 teve início a edição da reviSL.1
como fonte de cinema .... Caderno de crítica, americana Film and lIistory c, onze anos mais
Fundação Cinema Brasileiro, mimeo. tarde, a publicaç.lo da /listorical Joumal of
13. José Luiz Wemcckda Silva, '"Do despre­ Film, Radio and Telcvision, revista oficial d<t
zo ao temor: o filme como fonte para o historia­ International Association for Audio-Visual Me­
dor", Hütória em cadernos. Mestrado d e dia in Ilistorical Rescarcb and Education (IAM­
História IFCS/UFRJ , vol.lI, n2.1, janeiro-agosto HIST), entidade criada em 1977.
1984. 28. Marc Ferro, "O fi Ime, uma contra-análise
14. Publicado em Cultures, vol. 2, n2. 1 , Pa­ da socied<tde?", op.cit., p.199.
ris/Neuchâtel, Presses de l 'Uncsco!La Bacon­
29. Marc Ferro, "ll1e fiction film and histo­
niêre, 1974.
rical analyscs", op.cil., p.80.
1 5 . Idem, ib., p.237.
30. Idem, ib. p.8 I . Ver também de Marc
1 6 . J. Dudley Andrew, As principais teorias Ferro, Analyse de {11m, ana/yse de sociélés, Pa­
do cinema - uma introdução, Rio de Janeiro, ris, Hachettc, 1975, p.13.
Jorge Zahar Editor lida., 1989, p.61.
3 1 . Mare Ferro, Cinéma et "istoire, Paris,
1 7 . Mace Ferro, "The Getion film and histo­ Denocl-Gonthier, 1977, p. I I -12.
rical analysis", in I1le historian and film, 00.
Paul Smith. Cambridge University Prcss, 1976,
32. Ferro observa que Outubro (1927) de
S,Eisenstei n foi feito sob a encomenda de Stalin
p.81-82.
parn comemor<tção dos dez anos da Revolução
18. Anlhony Aldgale, Cinema and history: Russa. Segundo ele, os nazist.as foram ainda
Brilish Newsreds and lhe Spanislt Civil War, mais longe: uma vez no poder, conferiram ao
London, Scholar Press, 1979, p.5-6. [ilme um C'itatuto de objeto cultural superior,
19. Karsten Fledelius. "Film and history - an com o papel de meio de informação. "Goebbels
introduction to lhe Iheme", in Rapports (I) - e I litler passavam dias inteiros no ci nema". afir­
Comité lnlemational des Sciences l 1istoriques, ma ferro. Gocbbels chegou a di rigir a produção
XVI� Congres International des Sciences I listo- de alguns filmes. Idem, ib., p.85-86.
250 ES lUDOS HlSTÓRlCOS - 1992/10

46. Pierre Sorl io. Soci% gie du Cinema,


• •

33. Idem, ib., p.13, e Mace Ferro Histoire


sous surveillance. Paris, Calmano-Uvy, 1985, p.293.
p.98. 47. Pierre Sorlin e Arthur MalWick, "Social
34. Mace Ferro, "O fi l me, uma contra-análise change in 1960's Europe: [our feature films",
da sociedade?", ap.cit., p.213, eAna/yse defilm, Repporls (I), XVI' Congres lotemational dos
ana/yse de sociétés, ap.cit., p.l1. Sciences Historiques, StuUgart, du 25 AoOt au
35. Idem, ib., p.203 e p.lO. 1'" Septembre 1985, p.215-239.

36. Mace Ferro, "Film as ao agent, product 48. Idem, ib., p.234.
and source Df history". ]oumal Df Contempo­ 49. Pierre Sorlin, Sociologie du cinéma,
.
rany Hislory, vol .l8, n�9,july 1983, p.357-358. op.cit., p.50.
37. Mace Ferro, AnaJyse de [ilm, analyse de 50. JefIrey Richards e Anthony A1dgate, Besl
sociétés, ap.cit., p.lI e "O filme, uma oontra­ of British: cinema and soc;ely. 1930-/970, Ox ­
análise da sociedade?", ap.cil., p.203. ford, Basil Blackwell, 1983, p.8.
38. Marc Ferro, A na /yse defilm, analyse des
5 1 . Anlhony A1dgate, Cinema and hislory:
sociétés, ap.cit, p.1 9-38. British newsreels and lhe Spanish Civil War,
39. Pierre Sorlio, "C1io a !'écran, ou I'bisto­ London, Sebolar Press, 1979.
ricn dans l e noir", ap.cit., p.268.
52. Pierre Sorlin e Arthur Marwick, "Social
40. Pierre Sorlin, Sociologie du ânémo, change in 1960's Europe: four feature films",
op.cit., p.43-5 1 . op.cit.
41. Idem, ib., p.51-54 e p.56. 53. Entre os mais citados figuram D. Bord­
42. Michele Lagny, Marie-C1airc Ropars et well, l.Staiger, K.Thompson, The classical
Pierre Sorlin, "Octobre: quelle bistoire?", La Hollywood style: film, style and mode olproduc­
Rêvue du Cinéma - Image el Son, nº" 312, dec. tion to 1960, Londres, Routledge and Kegan
1976, p.43. Sorlin expressa ainda a sua preocu­ Paul, 1985� Lary May, Screening oul lhe past:
pação com a história do cinema, no sentido de lhe birth 01 mass cullure and lhe mo/ion picture
que esta Dão dêas costas para a teoria e vice-ver- industry (1896-1920), Oxford Uoivcrsity Press.
o
sa, em "Promenade dans Rome", IRIS, vol.2. n- 1980, e loho O'Conoor and Martin A. lackson
2, 2" semestre 1984, p.5. (ed.), American Hislory/American Cinema, in­
43. Pierre Sorlio, Sociologie du cinéma, terpreling lhe Hollywood image, Nova York,
op.cit., p.61�2. 1979.

44. Pierte Sorlio, The film in hislory: resta­


ging lhe past, Oxford, Basil Blackwell, 1980,
Mônica Almeida Kornis é mestre em ciência
p.26.27. política pela Unicamp e pesquisadora do
45. Idem, ib., p.31. CPDOC/FGY.

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