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CONTE:XTO ·PASTORAL

Suplemento
do Jornal
CONTEXTO
PASTORAL n11 28
Setembro/outubro
de 1995

@
da violência

Fundamentalismo
rallgloso, naocrlstandade
e o cerceamento de
liberdade de pensamento
e de expressio em nome
de "verdades" absolutas
aio aspectos relacionados
com um tipo de vlolincla
nem sempre percebida e
multo menos analisada.
Debate apresenta a
dlscussio desse outro
lado da vlolincla.
Páglnas3a 12

PARA BARRAR
AVIOL~NCIA
Exemplos no movimento
de Jesus mostram a
desistência de uur a
vlolincla, em prol de uma
'cauu boa', a do Reino de
Deus. O teólogo luterano
Miiton Schwantes
'passeia' pelÓ tema da
11lolincla em algumas
aasugens da Bfblla, do
~ntlgo e
to Novo Testamento. ·
>áglna 13
2 Apresentação CONTEXTO PASTORAL

VIOLÊNCIA DISFARÇADA
Quando o assunto é violência, não é muito difí- e por vezes arrogante, baseada em verdades
cil abordá-lo, desde que se prefira ir pelo cami- únicas e imutáveis, toma possíveis a persegui-
nho mais óbvio e analisar o sem~número de fa- ção e a exclusão daqueles que delas não com-
tos e acontecimentos que se apresentam diaria- partilham ou que não cantam no mesmo tom.
mente aos olhos de todo o mundo. Afinal, crian- No campo religioso, isso se mostra com mui-
ças têm sido exterminadas, guerras têm destruí- ta freqüência no fundamentalismo. E não é pri-
do povos e nações, bandidos e traficantes têm vilégio de uma ou outra tradição, já que tanto no
promovido a morte na luta pelo poder das dro- islamismo como no protestantismo, po~ ~xem­
gas, trabalhadores têm sido tratados como es- plo, o fenômeno está presente, mesmo que de
cravos, jovens são chacinados durante bailes formas e com desdobramentos diferentes. No
fank. Quem não se lembra, por exemplo, do caso protestante, a apropriação do conceito de
massacre da Candelária e da chacina em Vigário verdade por parte de um grupo, tendo como
Geral, no Rio de Janeiro? da matança de presos base a leitura literal de um texto inerrante (Bí-
em Carandiru, São Paulo? de denúncias de tra- blia) e a correspondente doutrina tida como cor-
balho escravo no norte do País? ou quem não reta, tem sido instrumento de divisão e de per-
está acompanhando os intermináveis conflitos seguição no interior das instituições religiosas.
da Bósnia? No caso da Igreja Católica, assistimos ao que
A violência, portanto, está aí, para quem qui- poderíamos chamar de neocristandade, cuja
ser ver ou dela ouvir falar. Porém, além dessa força tem sido notória no pontificado do papa
violência explícita, há outra, mais sutil e mais João Paulo II no sentido de fortalecer o poder
velada, mas que tem também efeitos devastado- romano e as posições por vezes fechadas sob o
res. Trata-se daquela em que a visão absolutista ponto de vista teológico diante de novidades
que a abertura da Igreja ao mundo permite co-
nhecer. Para o stablishment eclesiástico, mais
do que o adversário externo ou , o concorrente, o ,
DEBATE Conaelho editorial inimigo é o dissidente, aquele que é capaz de
Suplemento do jornal José Bittencourt Filho recriar outras tradições dentro da mesma comu-
Contexto Pastoral nº 28 Clóvis Pinto de Castro nidade e assim abalar os fundamentos da tradi-
Setembro/outubro de Marcos lnhauser
1995 Rafael Soares de Oliveira
ção oficial.
É por esse caminho - ousado - da reflexão
Publicação de KOINONIA Editor sobre a violência disfarçada que o Suplemento
Presença Ecumênica e Paulo Roberto Salles DEBATE decidiu trilhar para tratar o tema. Se,
Serviço (Rua Santo Garcia (MTb 18.481) por um lado, representa um rumo controvertido
Amaro, 129 - 22211-230
- Rio de Janeiro RJ, Tel: Edltorea assistentes
e difícil, por isso mesmo sem conclusões ou
021-224-6713 e fax: Beatriz Araujo Martins verdades absolutas, por outro, vale a originali-
021-221-3016) e Centro Jeth.er Pereira Ramalho dade de tocar em um ponto bastante importante
Evangélico Brasileiro de quando o que se busca é uma reflexão teológi-
Estudos Pastorais - Editora de arte co-pastoral a respeito da missão da Igreja e da
CEBEP (Rua Rosa de e dlagramadora
Gusmão, 543-13073-120 Anita Slade
forma como se relaciona com o mundo.
- Campinas SP Completam o material deste Suplemento
Tel. e fax: 0192-411459). Redator duas breves, mas contundentes, reflexões sobre
Carlos Cunha as guerras civis e atentados terroristas que mar-
Coordenadora
cam o "século terrível", na percepção do autor,
da Unidade Secretária de redaçio
de Comunlcaçio Beatriz Araujo Martins
o jornalista Newton Carlos, e sobre a pena de
de KOINONIA morte, elaborada com a lucidez pelo também
Magall do Nascimento Fotolito e lmpreaaio jÓrnalista Jânio de Freitas.
Cunha Tipológica Comunicação
Integrada
Coc.rdenador geral
do CEBEP Tiragem
Luiz Carlos Ramos 1o mil exemplares
CONTEXTO PASTORAL 3

O FUNDAMENTALISMO
PROTESTANTE
Antonio Gouvea Mendonça

O título acima parece indicar sectária ~ sistema doutrinário Não se pode encaixilhar
que o fundamentalismo protes- rígido. As "seitas evangélicas"
todas as manifestações
tante é apenas um dos funda- são tão diversas entre si que di-
mentalismos contemporâneos ficultam a construção de um religiosas concorrentes
que vêm sendo estudados pelos conceito que sirva de parâme- com a religião
especialistas nas diversas reli- tro adequado de análise para majoritária, sob o
giões mundiais, assim como todos os fenômenos religiosos conceito genérico de
nas chamadas "novas expres- de matriz cristã que se afastem "seitas evangélicas"
sões religiosas". Autores de re- das principais tradi-ções.
conhecido mérito acadêmico Aliás, "seitas evangélicas" já
vêm confundindo as coisas e, constitui em si mesmo concei-
ao englobar essas novas ex- to cheio de ambigüidades, pois outras coisas, ameaçavam a
pressões religiosas dentro do que, tanto "seita" como "evan- · cultura tradicional, o que não
contexto amplo de "seitas gélica" são hoje termos suspei- se deve co~fundir com o com-
evangélicas" e, ao mesmo tem- tos de falta de rigor semântico. plexo de forças conflitantes no
po, introduzi-las no universo O uso deles exige sempre pre- interior do próprio islamismo
mais extenso ainda de "seitas cisões preliminares. que, à semelhança de outras re-
fundamentalistas'', cometem O terceiro equívoco decorre ligiões, produzem seu teor de
triplo equívoco. do fato de a maioria das análi- opressão, repressão e margina-
ses serem feitas do ponto de lização, cujos agentes são a
Equívocos e preconceitos. O vista da cultura e do cristianis- multiplicidade de seitas com
primeiro é tomar como unívo- mo tradicionais, vistos sem maior ou menor poder de criar
co o. termo fundamentalismo prévia crítica como tolerantes, "verdades". O estigma de funda-
aplidando-o a toda a forma de liberais e democráticos. mentalismo para o Islã constitui
pensamento ou ação que se Além desses equívocos, um uso metafórico do Ocidente
aproxime de modelos de com- essa maneira generalizada de para designar a resistência aos
portamento repressivo, discri- usar o termo fundamentalismo, seus interesses vários a respeito
minatório ou até violento, como além de erros conceituais, traz do Oriente Médio, com todos os
o caso do islamismo atual; o consigo preconceitos que obs- atos de violência daí decorren-
equívoco, neste caso, parte do curecem o problema atual do tes.
pressuposto de que a raiz dessas fundamentalismo. O segundo preconceito é o
diversas formas de violência é O primeiro preconceito é o de encaixilhar todas as mani-
exclusivamente a religião de confronto de culturas num festações religiosas concorren-
quando pode haver razões de mundo globalizado, quando o tes com a religião majoritária,
outra ordem, presentes na cul- fundamentalismo é usado . sob o conceito genérico de
tura e expressas na religião. como forma de explicação de "Seitas evangélicas'', no exten-
O segundo equívoco está comportamentos culturais re- so, e portanto pouco com:..
em chamar todas as expressões sistentes a mudanças e defensi- preensivo, conceito de funda-
religiosas cristãs ou paracristãs vos de tradições muito fortes, mentalismo. Do posto privile-
contemporâneas de seitas isto é, quando uma cultura rea- giado que lhes proporcionam
evangélicas fundamentalistas ge a agressões externas, seja as tradições e as instituições
quando, em si mesmas, pouco violentas ou sutis. No caso do religiosas históricas, os estu-
ou nada têm de fundamentalis- Oriente Médio, por exemplo, o diosos confundem concorrên-
tas, pois que não trazem traços fundamentalismo islâmico sur- cia religiosa com fundamenta-
básicos do fundamentalismo ge como resposta religiosa mo~ lismo num momento em que
como, por exemplo, o absolu- bilizadora de forças contra in- este termo assume conotações
tismo da Bíblia; a intolerância teresses do Ocidente que, entre pejorativas quando, na sua ori-
i
.1
4 CONTEXTO PASTORAL

gem, denota posição teológica eliminação dos desvios. Neste IX (1864). Em 1948, em Ams-
rigorosa e, sob este ponto de sentido, todas as revoluções re- terdã, as forças fundamentalis-
vista, digna de respeito. Como ligiosas e os movimentos sec- tas mundiais fundaram o Con-
já foi dito acima, as "seitas tários são fundamentalistas cílio Internacional de Igrejas
evangélicas" não podem, no porque pretendem recuperar, Cristãs, cuja constituição, em
seu todo, ser chamadas funda- na sua pureza, as verdades fun- seu Preâmbulo, acusa as igre-
mentalistas porque faltam a damentais esquecidas. É por jas cristãs, no seu todo, seja de-
muitas delas traços de identifi- isso que o fundamentalismo nominações ou igrejas locais,
cação fundamentalista. Poder- protestante tem como lema "a de estarem comprometidas
se-ia acrescentar que elas nem fé uma vez dada aos santos" com a apostasia do modernis-
sequer possuem sistemas de (Judas 3). O protestantismo, ao mo e de se terem afastado das
doutrina organizados, típicos grandes doutrinas da Reforma.
do fundamentalismo original. No ano seguinte ao da fun-
O terceiro preconceito é o O núcleo do pensamento dação do Concílio Internacio-
de que as religiões cristãs tra- nal de Igrejas Cristãs, Carl
fundamentalista é retorno
dicionais estão fora do univer- Mclntire, principal líder do
so dos diversos fundamentalis- e purificação. Volta às movimento, publicou um livro
mos e ainda constituem redu- origens e eliminação dos intitulado Modern Tower of
tos de tolerância e liberdade a desvios. Neste sentido, Babel (1949), em que acoima o
despeito dos múltiplos estudos todas as revoluções Conselho Mundial de Igrejas
já feitos a respeito do funda- religiosas e os de ser o centro do modernismo
mentalismo original e de seus e de ter se tornado apóstata
movimentos sectários
efeitos. Hoje, estando o campo como a Igreja Católica na épo-
religioso minado por múltiplas são fundamentalistas ca da Reforma. Aliás, é o que
formas de religião mais atraen- ele diz com todas as letras nou-
tes para a massa desamparada tro livro publicado em 1955
da população, o fundamenta- (Servants of apostasy), em que
lismo das religiões tradicionais longo de sua história de quas~ compara o movimento ecumê-
direciona sua intolerância no quinhentos anos, teve de en- nico com a Grande Babilônia
sentido das "seitas evangéli- frentar vários inimigos como o (Apocalipse 18.2). BmModern
cas'', esquecendo-se de que seu iluminismo, o liberalismo, a tower of Babel, Mclntire afir-
próprio fundamentalismo é ciência moderna e o modernis- ma que havia "fortes seme-
que criou múltiplas formas de mo de modo geral. Só que o 1hanças entre as condições
violência ao construir "verda- protestantismo sempre reagiu a atuais e as do século XVI,
des" absolutas. esses movimentos de maneira quando Lutero elevou sua voz
diferente da Igreja Católica: contra a apostasia da Igreja
O fundamentalismo é um fe- quando esta se opunha, embora Romana " (p.268). Continua
nômeno do protestantismo com perdas, de maneira frontal Mclntire: "Temos uma aposta-
que, como tal, serve de parâ- aos "inimigos da fé", o protes- sia protestante do século XX.
metro para o estudo de todas as tantismo se acomodava, se A Bíblia foi sobrecarregada de
formas de absolutismos reli- ajustava e, às vezes, se com- instituições humanas. Ela foi
giosos e culturais que desper- prometia com os novos rumos reduzida a pedaços pela crítica
tem a nossa atenção. É, portan- do mundo moderno. Não se humana. Em ambos os casos, a
to, necessário voltar sempre à pode negar que a monumental autoridade da Bíblia foi des-
história do protestantismo do teologia protestante do século truída" (idem). Nesse mesmo
século XIX e acompanhar o XIX se deve a esse constante texto Mclntire chega ~ dizer
desenrolar do seu pensamento diálogo com a modernidade. que os fundamentalistas estão
nas suas várias etapas a fim de Mas, exatamente por causa mais próximos da Igreja Cató-
refrescar o conceito de funda- desse compromisso com a mo- lica do que do Conselho Mun-
mentalismo para que se possa dernidade foi que as alas con- dial de Igrejas porque "os cató-
usá-lo de maneira adequada. servadores do protestantismo 6 licos acreditam no nascimento
O núcleo do pensamento acusaram da heresia do moder- virginal de Cristo' e, portanto,
fundamentalista é retomo e pu- nismo quase cem anos após a na Bíblia. Os modernistas não.
rificação. Volta às orige ns e publicação do Syllabus por Pio Mesmo que a Reforma nos se-
CONTEXTO PASTORAL Análise 5

pare do catolicismo romano, gação. Ficando só na história noutro contexto religioso, tam-
ainda assim estamos mais pró- do pensamento cristão, basta bém proclamou sua visão de
ximos dele do que do Conselho citar dois exemplos importan- instrumento divino para esten-
Mundial de Igrejas. Isto só tes dessa concepção dualista der o reino de Deus - o "Rei-
para enfatizar a extensão da da humanidade. Santo Agosti- no de Deus por Portugal".
apostasia do protestantismo" nho, na sua visão panorâmica Durante a Guerra Fria e adi-
(idem, p.268). da história humana, concebeu visão ideológica do mundo em
duas facções da humanidade capitalismo e socialismo, as ví-
Fundamentalismo versus cul- inspiradas em atitudes mentais timas da violência foram os po-
tura ameaçada. Essa descri- e morais divergentes consti- vos mais fracos que, colocados
ção corresponde à segunda tuindo, na sua metáfora, o Es- sob a dependência de uma ou
fase do fundamentalismo, tado de Deus e o Estado terre- outra facção, não tinham como
quando ele se organiza mun- no. Este é temporal e quase se defender das "verdades" que
dialmente por meio do Concí- sempre demoníaco ; aquele, · lhes eram impingidas pelas
lio Internacional de Igrejas transcendental e divino. Os ho- mais variadas formas. Pouco
Cristãs e, ao eleger o Conselho mens se distribuem por esses antes da queda do socialismo
Mundial de Igrejas como prin- dois reinos. João Calvino se- político, a nação mais podero- ·
cipal inimigo, transforma-o em guiu na mesma linha ao dividir sa do mundo preparou-se para
paradigma de todos os adver- a humanidade em eleitos e não- o Annagedon, batalha final en-
sários de uma cultura ameaça- eleitos. Mais tarde, calvinistas tre os dois reinos do mundo, o
da pelo "autoritarismo" (a rea- como Coceius (1603-1669) e de Deus e o do demônio, quan-
ção da cultura norte-americana Francisco Turretino (1623- do o Bem venceria o ~ai defi-
à Igreja Católica foi historica- 1687) defenderam a idéia de nitivamente. Os pregadores
mente mais política do que re- que Deus fizera um pacto com eletrônicos constituíram a voz
ligiosa. O monarquismo católi- Adão pelo qual toda a sua pos- profética da iminência desse
co constituía ameaça à demo- teridade teria vida eterna ou momento decisivo da história.
cracia) católico romano, pelo corrupção conforme sua obe- Como profetas bíblicos, con-
comunismo e pela contracultu- diência ou desobediência ao clamaram seu povo a voltar às
ra. Essa fase se caracteriza pela referido pacto. Em meados do tradições ameaçadas pelo mo-
defesa da cultura norte-ameri- século XVII, teólogos purita- dernismo à salvação da própria
cana. Os braços do fundamen- nos reunidos na Abadia de cultura, mas usando os recur-
. 1 se esten dem, entao
ta 1ismo - , Westminster, em Londres, pro- sos eletrônicos de comunica-
pelo mundo e por todos os duziram a Confissão de Fé de ção de massa, estenderam tam-
meios possíveis. Tratava-se de Westminster, cujo eixo teológi- bém sua mensagem ao mundo
garantir a hegemonia de uma co é a Teologia do Pacto, que buscando alianças para a cru-
cultura sobre o resto do mundo. veio a ser o documento teológi- . zada do Bem contra o Mal.
Foi dito que o fundamenta- co por excelência do presbite-
lismo tem como núcleo o retor- rianismo mundial. Essa divisão ideológica do
no e purificação e, por isso, na A Teologia do Pacto trazia mundo, que por suas origens
fase acima descrita, o funda- em si a concepção muito forte historicamente recuadas, cons-
mentalismo protestante quer de Povo Escolhido através de titui a primeira fase do funda-
purificar-se eliminando seus sucessivos pactos entre Deus e mentalismo, ultrapassa a se-
inimigos a pretexto de retomar determinados grupos humanos gunda fase e com ela se con-
à pureza da Reforma do século para a consecução do desígnio funde na medida em que, por
XVI. Mas, uma análise um divino de estabelecer seu reino meio da mensagem religiosa ·
pouco mais profunda do funda- entre os homens. Algumas na- de matriz protestante, aponta
mentalismo pode nos conduzir ções chegaram a crer terem de modo muito nítido para pro-
a um princípio que pode estar sido escolhi,jas para executar jetos políticos da liderança do
por debaixo de todos os movi- esse plano divino, entre elas os mundo ocidental. Este fato é
mentos de idéias que partem do Estados Unidos, segundo seus recente na história. Essa's duas
conceito e divisão radical entre próprios historiadores. De pas- fases ou facetas do fundamen-
bem e mal, bons e maus. É o sagem, é bom lembrar que Por- talismo têm como característi-
ponto de partida de todas as tugal, no período histórico de cas comuns uma pesada ideo-
classificações: afirmação/ne- sua expansão mundial, embora logia política de âmbito uni-
6 An,llse CONTEXTO PASTORAL

versai sempre muito bem movimento de despertamento O "movimento evangélico"


apoiada em sistemas teológi- religioso que se prolongou de já trazia em si duas caracterís-
cos. o Movimento de Carl meados do século XVIII até ticas do futuro movimento fun-
Mclntire foi uma reartão com meados do século XIX, a ciên- damentalista: a não-institucio-
intenções mundiais contra a cia moderna e o liberalismo nalização, porque se constituía
ameaça de deslocamento do teológico. Essa divisão tem in- de indivíduos que, em qual-
poder religioso-político, tam- tenção meramente didática quer denominação cristã e sem
bém mundial, para a Europa, porque, de fato, os três são fa- sair dela, aceitassem seus prin-
cujos interesses poderiam diri- ces de um mesmo monstro que cípios teológicos fundamen-
gir o movimento ecumênico levou o nome de modernismo e tais. Tratava-se, portanto, de
para direções não desejadas que assustou tanto protestantes um movimento de retorno e
pelas forças conservadoras como católicos. Estes, como purificação que, como ondas,
norte-americanas. sempre, reagiram em nome da abafaria os desvios da verda-
Entretanto, entre essas duas tradição e por meio de encícli- deira fé e garantiria a presença
fases que, de fato, se confun- cas, entre elas o Syllabus (1864) da Igreja verdadeira em meio
dem entre si, diferenciando-se e a encíclica Barromeo (1910), às heresias que desfigurav~m a
somente pela fonte ideológico- ambas condenando especifica- Igreja. Não é o caso de se enu-
política, há um núcleo religio- mente o modernismo. Os pro- merar aqui a lista dos princí-
so que tem de ser entendido testantes, em nome da Reforma, pios de fé do "evangelicalis-
sob pena de permanecer obscu- reagiram em defesa da Bíblia. mo", mas é suficiente mencio-
ro o conceito de fundamenta- A reação protestante, embo- nar os mais constantes no futu-
lismo, fenômeno religioso mo- ra possa ser entendida sob â ro fundamentalismo: a autori-
derno de · cunho protestante dupla face da defesa da Bíblia dade, suficiência e inspiração
norte-americano e, se quiser- e da reta doutrina, tem suas raí- da Bíblia, e a bem-aventurança
mos tornar mai!\ precisa ainda zes no "movimento evangéli- eterna dos justos e a punição
a sua origem, de inspiração co" surgido na Inglaterra em eterna dos ímpios.
calvinista e presbiteriana, pois meados do século XVIII como Em 1812, foi criado, pela
foi no seio dessa tradição que reação ao relaxamento do clero Assembléia Geral da Igreja
ele surgiu e se expandiu. anglicano e aos avanços do Presbiteriana dos Estados Uni-
O fundamentalismo, como movimento de retomo à "Santa dos, o Seminário Teológico de
fenômeno religioso, pertence à Igreja Católica" representado Princeton, de cujo plano cons-
história da religião norte-ame- pelo movimento tratariano de tava a preservação da fé con-
ricana e à cultura religiosa que Oxford. Mas, tanto anglicanos signada na Confissão de Fé de
se construiu na América do como evangélicos, logo tive- Westminster e seus catecis-
Norte a: partir da colonização ram pela frente um movimento mos, e a especialização no co-
puritana oriunda da Inglaterra: muito forte e de características nhecimento positivo da Escri-
de modo mais preciso, do puri- teológicas liberais liderado por tura, a fim de defendê-la da crí-
tanismo calvinista muito forte teólogos importantes como, tica moderna e dos assaltos da
no centro geográfico inicial da por exemplo, Frederick D. "controvérsia deísta". O Semi-
colonização e reforçado pelas Maurice (1805-1872). Esse nário de Princeton manteve-se
imigrações posteriores de movimento chamado de "so- fiel aos seus planos iniciais por
presbiterianos irlandeses e es- cialismo cristão", afinado com quase um século pelo menos.
coceses. O fundamentali smo o pensamento de Robert Owen Seus teólogos, todos defenso-
do calvinismo ortodoxo, como (1771-1858), embora sem mui~ res da ortodoxia presbiteriana,
movimento de retomo e purifi- ta força, percorre os subterrâ- estenderam sua influência con-
cação, foi uma reação planeja- neos do protestantismo até os servadora por todo o cenário
da e vigorosa contra alguns ini- nossos dias. É curioso que esse protestante norte-americano
migos da ortodoxia que, a par- movimento, insurgindo-se durante o século XIX. No fim
tir de fins do século XVII, fo- contra a idéia de que as leis co- desse século e nas primeiras
ram ameaçando de vários mo- merciais eram intocáveis por- décadas do atual, a ortodoxia
dos a cultura religiosa que se que, como leis naturais, eram protestante assumiu formas
formara no período colonial. divinas, pareciam prenunciar a que constituíram e definiram o
Esses inimigos foram três: as atual reação contra as leis do fundamentalismo em suas li-
novas tendências teológicas do mercado. nhas atuais. A genialidade de
CONTEXTO PASTORAL Análise 7

C. I. Scofiéld(1843-1921)pro- para um desfecho apocalíptico e repressão, 1979), moveram


duziu sintomia entre a Teolo- em que a história chegará ao perseguições internas, com
gia do Pacto, presente na Con- fim com a premiação dos bons prejuízos individuais em rela-
fissão de Fé de Westminster e a punição dos maus. Essa vi- ção à instituição, e cheg:iram
(cap. VII) e a totalidade da Bí- são dualista, mas abstrata, ins- mesmo a oferecer seus mem-
blia, dividindo-a em sete dis- trumentaliza a concretização, bros à repressão política como
pensações ou pactos. A Bíblia entretanto, de uma divisão po- · se fossem inimigos do Estado.
de Scofield , publicada em lítica do mundo também em A institucionalização do
1909, juntamente com The duas partes antagônicas como fundamentalismo, além da for-
Fundamentais (Coisas Funda- aconteceu entre capitalismo e mal declaração da "plenária
mentais), publicados entre socialismo, na Guerra Fria e no inspiração das Escrituras nas
1909 e 1915, ao todo doze li- conflito Ocidente/Oriente. Isso línguas originais, suas conse-
vretos, constituem o marco acontece, como de fato aconte- qüentes inerrância e infalibili-
central ideológico do funda- ceu, quando uma grande potên- dade" (Artigo 11,a, da Consti-
mentalismo protestante. Sua tuição do Concílio Internacio-
institucionalização, como já nal de Igrejas Cristãs), traz ou-
vimos, ocorreu em 1948, em tra afirmação muito importante
Amsterdã, com a constituição O fundamentalismo para se compreender melhor a
do Concílio Internacional de contém uma teologia da razão da violência institucio-
Igrejas Cristãs. história que se constitui nal promovida pelo fundamen-
A Bíblia de Scofield, base em rigoroso dualismo talismo no interior das igrejas.
do fundamentalismo radical, entre a ordem de Deus A alínea K do mesmo Artigo da
ao traçar a história humana Constituição diz que é "neces-
como sucessão de fracassos na
e a desordem humana sária a manutenção, de acordo
relação do homem com Deus, em constante conflito, com a Palavra de Deus, da pu-
volta à antiga concepção de caminhando ambas reza da Igreja na vida e na dou-
duas histórias, uma das ações linearmente para um trina". Assim, a apropriação do
redentoras de Deus e outra da desfecho apocalíptico conceito de pureza (verdade)
desobediência ~umana. Uma . por parte de um grupo, tendo
ordem divina e uma desordem como base a leitura literal de
humana, cujo desenvolvimen- um texto inerrante e a corres-
to linear desemboca apocalip- eia capaz de mobilizar parte do pondente doutrina tida como
ticamente na bem-aventurança mundo, assume culturalmente correta, tem sido instrumento
eterna dos justos e na condena- a ideologia fundamentalista. de divisão e de perseguição no
ção também eterna dos ímpios. Ao macrofundamentalismo interior das instituições reli-
de caráter cultural e político giosas. O fundamentalismo, 'a
Fundamentalismo e violên- corresponde um microfunda- propósito da doutrina da iner-
cia. Agora, um balanço final mentalismo institucional e in- rância, criou mais uma divisão
destas breves considerações dividual. É muito raro que uma no seio das igrejas: de um lado,
sobre um movimento tão am- instituição assuma identidade "os que amam a Bíblia" (os que
plo e importante por causa de fundamentalista, pode, porém, aceitam a inspiração plenária)
·seus extensos desdobramentos no jogo de poder, cair nas mãos e "os que não amam a Bíblia"
para além dos limites exclusi- de indivíduo ou grupo de indi- (os liberais, mode!"Ilistas e to-
vamente religiosos. Em pri- víduos imbuídos de idéias fun- dos os que aceitam o método
meiro lugar, o fundamentalis- damentalistas de retomo e pu- crítico).
mo contém uma teologia da rificação que tudo farão para
história que se constitui em ri- alijar os que .preferem outras Antonio G. Mendonça, presbiteria-
no, é chefe do Departamento de Ciên-
goroso dualismo entre a ordem idéias. Foram exemplos disto, cias da Religião do Instituto Ecumêni-
de Deus e a desordem humana em passado recente, igrejas co de Pós-Graduação do IMS (São
em constante conflito, cami- que, em nome da reta doutrina Bern:irdo do Campo/SP).
nhando ambas linearmente (Rubem Alves, Protestantismo
8 Anállse CONTEXTO PASTORAL

TENTANDO ENTENDER
O CONSERVADORISMO CATÓLICO
Pedro Ribeir"l de Oliveira

Após um período marcado por tralizadora, autoritária, dona mo. Fazendo uma breve análi-
grandes mudanças internas, a da verdade, que se impõe es- se de sua nova forma, que não
Igreja Católica Romana foi magando os dissidentes como é uma simples repetição do
acometida por um surto parali- se fossem inimigos. Este é um passado mas uma criação re-
sante. O processo de restaura- fenômeno recente nas grandes cente para fazer face a uma si-
ção desencadeado com o pon- religiões mundiais, e sua expli- tuação mundial original, quero
tificado de João Paulo II tem cação constitui hoje um desa~ aqui abrir pistas para sua expli-
abafado todo sopro vital na fio para os cientistas sociais. cação sociológica.
Igreja. As autoridades eclesiás- Dada a complexidade e a novi-
ticas - do papa ao vigário- dade do tema, não podemos ter A CRISE RELIGIOSA NO
coadjutor - encontram-se em a pretensão de elucidá-lo aqui, MUNDO CONTEMPORÂNEO
atitude defensiva diante do mas, partindo da análise do A gênese do atual conservado-
mundo e das demandas de efe- atual conservadorismo católi- rismo católico situa-se nos em-
tiva participação de religiosas, co, podemos esboçar um qua- bates preparatórios do Concí-
leigos e leigas nos assuntos in- dro da crise das grandes reli- lio Vaticano II. Com grande
ternos da Igreja. É bem verda- giões no mundo pós-industrial. perspicácia, J. O. Beozzo (In-
de que as Comunidades Ecle- Primeiramente, convém ex- dícios de uma reação conser-
siais de Base (CEBs) e pasto- plicitar os conceitos que guiam vadora) analisa-lhe o desen-
rais populares ainda se ampa- a análise. Há quem veja nesses volvimento a partir de um gru-
ram em amplos setores do epis- movimentos novas versões do po de bispos firmemente in-
copado e do clero; mas é tam- antigo "fundamentalismo" crustrado na Cúria romana,
bém verdade que a Igreja que norte-americano . Seguindo, embora minoritário no conjun-
foi uma força histórica dos po- porém, as conclusões de Ivo P. to do colégio episcopal, e que
bres na sociedade, está perden- Oro, em seu recente estudo so- constituiu o núcleo da reação
do seu dinamismo. Aos poucos, bre o tema (O outro é o demô- contra as teses renovadoras
vai-se tomando uma instituição nio - considerações socioló- quase sempre vitoriosas em
que só é levada a sério por seus gicas acerca do conceito de plenário. Ao longo do pontifi-
próprios dirigentes, querendo fundamentalismo), prefiro re- cado de Paulo VI, aquele grupo
provar a todo custo que sempre servar o conceito de funda: foi ganhando terreno e termi-
teve, tem e terá razão. mentalismo para aquele fenô- nou conquistando o controle
Esse movimento conserva- meno particular, nascido nos do aparelho eclesiástico, quan-
dor não ocorre unicamente no anos 1910-15 como reação do um de seus membros, o ar-
campo católico romano. Tam- contra a teologia que então ga- cebispo Wojtyla, foi eleito
bém no Protestantismo, no Is- nhava terreno nas denomina- papa. Sua forte personalidade,
lamismo e no Judaísmo há mo- ções protestantes ao articular a sua capacidade em lidar com
vimentos similares, cujos fé cristã com a ciência e os va- as massas e sua experiência
adeptos abrem mão de valiosas 1ores modernos, e falar de polonesa de resistência religio-
conquistas da modernidade, "neofundamentalismo", para sa contra a modernidade im-
como a razão, a crítica, a liber- designar os movimentos simi- posta pelo sovietismo, fizeram
dade individual e a democra- lares que hoje ocorrem em di- dele uma figura de proa do
cia, para aceitarem a doutrina ferentes comunidades religio- Ocidente, conferindo renovada
de uma autoridade que lhes dê sas, também em reação contra credibilidade ao conservado-
segurança diante de um mundo o diálogo com a modernidade. rismo católico.
em crise. Embora guardem as Mas como neste artigo refiro- O sucesso desse movimento
especificidades de cada tradi- me unicamente ao Catolicismo que se auto-intitulou de "res-
ção religiosa, cria-se neles Romano, usarei apenas a cate- tauração católica" pede uma
uma corrente fortemente cen- goria geral de conservadoris- explicação. Se a maioria do
CONTEXTO PASTORAL Análise 9

episcopado católico deu a vitó- milhões de seres humanos, Para o establishment


ria às teses renovadoras no aquele é um campo fora do al- eclesiástico, mais do que
Concílio, por que nos anós de cance dos seres sagrados que
1970 se teria deixado derrotar
o adversário externo ou
por milênios pareciam deter o
na prática eclesiástica? Por que poder de dar a felicidade a o concorrente, o inimigo
o episcopado católico, tão va- quem a eles piedosamente re- é o dissidente, aquele
lente na defesa dos direitos hu- corresse. Nem mesmo o Deus que é capaz de recriar
manos fora da Igreja, tornou-se da tradição judaico-cristã con- outras tradições dentro
pusilânime ao sofrer interven- segue cumprir sua promessa de da mesma comunidade e
ções da Cúria romana? Por vida longa e feliz sobre a face
assim abalar os
que, tendo condenado o movi- da terra. Vida longa e feliz en-
mento integrista em torno à fi- contra quem age racionalmen- fundamentos da tradição
gura do bispo Lefêbvre, permi- te sobre a natureza e sobre as oficial
tiu que seu conteúdo fosse su- relações humanas, pois o pro-
tilmente reincorporado à pas- gresso, o desenvolvimento das
toral romana sob a forma de re- forças produtivas, a liberdade, os movimentos carismáticos,
forço da identidade católica? a democracia, as riquezas, a os antigos e novos sincretis-
Para explicar essa volta a um saúde e tudo mais que o mundo mos (por exemplo, com tradi-
catolicismo anterior ao Concí- pode oferecer alcançam-se ções orientais, ameríndias, ca-
lio Vaticano II, é preciso levar pelo esforço humano, sem ne- balísticas), a "Nova Era'', e
em consideração a crise en- cessidade de submissão às in- tantos outros movimentos
frentada pelas instituições reli- junções religiosas. . pseudo-religiosos (auto-ajuda,
giosas nos últimos vinte anos. Assim, as antigas religiões terapias, magia), cada qual a
O contexto dessa crise é o foram praticamente confinadas seu modo oferecendo a quem
avanço recente do sistema à esfera privada. Elas se atêm vive imerso na concorrência de
mundial de mercado e a "pós- aos relacionamentos interpes- todos contra todos pelo su~s­
modernidade", que é sua ex- soais, à vida sexual e afetiva, so no mercado esquemas de
pressão cultural (ver texto aos cuidados corporais, ao pensamento e de comporta-
Mundialização, exclusão e equilíbrio psicológico, enfim, mento ritual que lhes propi-
conciliação: desafios da con- a todo aquele setor da vida co- ciem paz interior. Antigas e no-
juntura). Essa realidade nos tidiana cujo cenário é o espaço vas correntes religiosas estão
obriga a revisitar a Teoria da doméstico. Nele, sim, energias oferecendo tranqüilidade de
Secularização, que marcou a positivas e negativas, fadas e consciência e conforto espiri-
Sociologia nos anos de gnomos., espíritos bons e maus, tual, tendo em vista transfor-
1950/60. Ela é atravessada anjos e demônios, e tantos ele- mar existências conturbadas
pela afirmação da racionalida- mentos do nosso imaginário em biografias serenas. E nesse
de que expulsa da esfera públi- simbólico têm plena vigência processo de adaptação às no-
ca os elementos religiosos que ajudando a construir o sentido vas demandas religiosas gera-
lhe serviam de fundamento. De da nossa biografia. As religiões das pela tensão existencial do
fato, as bolsas de valores e de não desapareceram na socieda- jogo do mercado, são as reli-
mercadorias, o mercado finan- de de mercado: apenas deixa- giões tradicionais as mais afe-
ceiro, as empresas, enfim, as ram que a razão moderna ocu- tadas, pois seus postulados, en-
instituições que efetivamente passe a rua e voltaram para a rijecidos pelo tempo, freqüen-
regem a vida social parecem casa .onde sempre estiveram à temente tomam-se obstáculos
fora do alcance das religiões. O vontade. ao atendimento dos desejos
que têm os santos a ver com o Agora confinadas ao mundo d0s fiéis em potencial. Este é, a
preço do café na Bolsa de Lon- privado, cabe às antigas reli- meu ver, o caso do Catolicismo.
dres? ou os gnomos com a taxa giões pouco mais do que a Religião que sempre preten-
de juros? ou os orixás com o construção do sentido das bio- deu interpretar o projeto de
déficit do Tesouro dos EUA? grafias, e nisso elas se deparam Deus para a humanidade, o Ca-
Apesar de ali estarem em jogo com um quadro nc,vo, no qual tolicismo vive hoje uma grave
relações sociais que condicio- são levadas a competir com no- crise de natureza polítit:a: O
nam o emprego e as condições vas formas de expressão e ma- que tem a dizer à sociedade .
de vida, saúd~ e bem-estar de nipulação do sagrado. Aí estão moderna fundada sobre o mer-
10 Anállse CONTEXTO PASTORAL

cado mundializado? que boa religiosos que com ele concor- de perenidade imutável ao ca-
notícia tem a anunciar? rem. É nesse esforço de adapta- tolicismo de formato romano.
De tudo o que foi plantado ção que procuro explicar o atual Trata-se, portanto, de um
no pontificado de João XXIII, impulso do conservadorismo conservadorismo que não é
o fruto mais importante para o católico. uma simples repetição do pas-
diálogo com o mundo moderno Seu elemento central é a sado, mas uma resposta do sta-
talvez tenha sido a Teologia da busca de uma identidade qul? blishment eclesiástico às novas
Libertação. Projeto que deixou não pode ser perdida. A figura condições da religião no siste-
para trás o antigo modelo de do papa desempenha papel im- ma mundial de mercado. Ele
Cristandade e progressivamen- portantíssimo nesse processo, afirma uma identidade capaz
te abriu-se para·uma perspecti- deixando em segundo plano de distinguir a Igreja Católica
va macroecumênica e ecológi- tudo o que possa colocar em dos outros sistemas religiosos
ca, foi entretanto ' desacredita- xeque a afirmação da única concorrentes, fundando-a so-
do pelo stablishment eclesiás- identidade católica (por exem- bre uma tradição que não possa
tico e hoje só encontra acolhi- plo, pluralismo, ecumenismo, ser questionada. Na realidade,
da favorável nas periferias do colegialidade episcopal, mi- essa tradição, como toda tradi-
sistema. Herança profética de nistérios leigos, em suma, os ção, é uma recriação. Isto é, a
homens e mulheres que renun- valores e institutos decorrentes autoridade eclesiástica atua
ciam ao sonho do consumo su- da afirmação da Igreja como como um filtro que faz a tria-
pérfluo, a Teologia da Libertação povo de Deus). Universaliza- gem da verdadeira e da falsa
denuncia o caráter predatório e se, então, a identidade romana tradição, ou seja, os elementos
desumanizante de um mercado como única identidade católi- que lhe convém manter e os
entregue às suas próprias leis, ao ca, num processo que parece que prefere esquecer. Ao fazê-
mesmo tempo em que anuncia e recuperar Pio IX e o Concílio lo, está reinventando uma tra-
celebra a utopia de uma humani- Vaticano I. O Catecismo Uni- dição que deverá ser imediata-
dade capaz de submeter o mer- versal e o novo Código de Di- mente universalizada e pereni-
cado à sociedade democratica- reito Canônico, barrando o es- zada, de modo a ocultar-se seu
mente organizada. forço de inculturação católica caráter recriado.
entre os povos da periferia, são Este caráter precário da tra-
O CONSERVADORISMO um bom exemplo dessa identi: dição reinventada, que precisa
COMO REINVENÇÃO dade. que só pode fundar-se so- ser escamoteado para que ela
DA IDENTIDADE bre o universalismo monolítico possa ser vista como verdadei-
Não querendo assumir o ônus romano. Meio importante para ra e única tradição, explica o
da crítica profética ao mundo assegurar essa identidade é autoritarismo que acompanha
dominado pelo mercado, e afirmar sua perenidade, como o conservadorismo. Para o sta-
tampouco aceitando submeter- se o Catolicismo sempre tives- blishment eclesiástico, mais do
se à desconfortável situação de se sido o mesmo, sem conhecer que o adversário externo ou o
ser apenas um entre os vários mudanças ao longo da própria concorrente, o inimigo é o dis-
sistemas religiosos disponíveis história. O revigoramento de sidente, aquele que é capaz de
nas prateleiras de bens simbó- símbolos em uso antes do Con- recriar outras tradições dentro
licos, o stablishment católico cílio Vaticano II, (por exem- da mesma comunidade e assim
vive a crise de credibilidade de plo, as vestes clericais e reli- abalar os fundamentos da tra-
sua mensagem. O projeto da giosas), a reafirmação das nor- dição oficial. Aí reside, a meu
"nova evangelização" não traz mas eclesiásticas como imutá- ver, o cerne do embate entre as
nada de realmente novo, exce- veis (por exemplo, impedi- forças conservadoras hoje he-
to uma maior dose de volunta- mento do sacerdócio a mulhe- gemônicas na Igreja Católica
rismo de seus agentes. Não res e pessoas casadas) e a reva- Romana e seus incômodos se-
sendo capaz de inovar na men- lorização de certas práticas re- tores proféticos que, em nome
sagem, faz hoje um redobrado ligiosas (reza do terço, devo- de uma tradição alternativa, re-
esforço de reafirmação de sua ções marianas, peregrinações), clamam igual catolicidade.
identidade, na expectativa de bem como os obstáculos a
Pedro Ribeiro de Oliveira é profes-
que ela venha a colocar o Cato- qualquer inovação litúrgica; sor no mestrado de Ciência da Reli-
licismo em plano superior aos são parte desse amplo processo gião da UFJF e integrante da equipe de
sistemas religiosos e pseudo- que pr~tende conferir o caráter assessoria do ISER.
CONTEXTO PASTORAL Análise 11

VIOLÊNCIAS
Milton Schwantes

Vocês me pediram tratar o lhança de Deus. Não entendo NEM SIM, NEM NÃOl
tema da violência na Bíblia. nossa querida Bíblia deste jei- Por isso, já de começo, já na
Um assunto bem vasto é este. to. Ela não me é algo seme- entrada da visita, desisto de
Mas, antes de dizer algo sobre lhante a Deus, algo como uma querer defender irrestritamente
o tema como tal, permitam-me imagem. É sinal no caminho, os montões de violências ex-
descrever a chegada a ele. importante para caminhar pressas pela Bíblia, página a
A chegada é uma arte pró- rumo ao ponto de chegada. página. Desisto de querer tor-
pria. Cada visita a uma pessoa É algo como companhia no ná-la, no mais, um manual de
tende a ser uma surpresa. Afi- caminho. De tão maravilhosa . não-violência. Seria querer
nal, cada novo encontro traz no- que é sua luz, de tão fortes que transformá-la em algo que ela
vidades, graças a Deus. Cada são suas chamas, não convém não é. Mas, também desisto de
passo, uma nova experiência. E fixar-se em sua luminosidade, querer difamá-la, simplesmen-
o jeito da chegada pode marcar porque luz de chama atrapalha te, como se fosse sedenta de
os assuntos da visita. a vista. Luz e chamas são antes sangue. Alguém poderia querer
Por isso, permitam-me algu- para iluminar nossos passos, jogá-la fora, após ler o livro de
mas notas iniciais, coisas da para favorecer nossos cami- Josué.
chegada. nhos, para alumiar os pés.
A Bíblia está a caminho. Por
isso, as comunidades do Mes- Na Bíblia temos histórias
UM LIVRO A CAMINHO sias Jesus, desde seus come-
que, nos caminhos da
É verdade, isso que vou dizer ços, adotaram a Bíblia Hebrai-
aqui na entrada bem que pode ca, o Antigo Testamento. As- vida, buscam brechas
assustar uns e outros. Mesmo sim mostraram que estavam a para barrar a violência
assim, preciso dizê-lo, pois caminho. E não encerraram o
sem essas coisas até me seria Novo Testamento só com os
difícil tratar do assunto. evangelhos e as cartas pauli- Não digo simplesmente que
Quero dizer que este livro, nas. Não, foram incorporando bíblico seria o que trata de paz
esta Bíblia, é um sinal no cami- também outros documentos, e shalom. Isso também se lê,
nho, é uma placa na estrada. cartas e livros que expressa- sem dúvida. Que lindas são to-
Ela reúne experiências a ca- vam de diversas maneiras a fé. das as experiências e frases de
minho. Em Levítico a gente lê Além de Paulo, acolheram a paz, sem fim. Disso a Bíblia
"vós sois para mim estrangei- Tiago, para marcar as diferen- está cheia. Flores de paz temos
ros e peregrinos" (25.23). Em ças. Tudo isso mostra que estes em Cantares. Flores de paz te-
Pedro (Primeira Carta) as co- textos bíblicos são letras no ca- mos em Jesus que apontava
munidades são chamadas de minho. São mais espírito que para os lírios do campo (Ma-
peregrinas; as pessoas das co- letra. teus 6.28).
munidades são "forasteiras da Com o assunto da violência, Não digo simplesmente que
dispersão" ( 1.2). essa nossa Bíblia está a cami- tipicamente bíblico seria o que
Ora, a própria Bíblia é qual nho. Não encerrou o assunto lá trata de sangue e de vingança,
" forasteiro", está a caminho. em suas primeiras páginas do ou, quiçá, que típico do Antigo
Ao menos assim leio este ma- Gênesis, quando nos é contado Testamento seria a violência,
ravilhoso livro. É assim que ele que Caim matou Abel. Nem enquanto no Novo Testameuto
vai soltando palavras de liber- mesmo fecha o assunto nas úl- prevaleceria a doçura da paz.
dade para mim. timas páginas quando com san- Engana-se quem assim quer
Se ele fosse a própria chega- gues e violências nos são pin- simplificar as coisas. Quem
da, então a gente estaria no pe- tados quadros apocalípticos, acha que o Novo Testamento
rigo de querer transformá-lo a no Apocalipse de João. fala só dessa doçura da paz,
ele mesmo em algo absoluto, O assunto da violência está deve ainda não ter lido seu
sagrado, corno se fosse à seme- a caminho, na Bíblia inteira. Novo Testamento, com seus
12 CONTEXTO PASTORAL

frimento justamente desse


Abel=Nada. Defende-o. A his-
tória de Deus conosco é, por-
tanto, a defesa da vida ameaça-
da, daquilo e daqueles que pa-
recem ser Abel=N ada, mas que
em Deus são tudo, merecedo-
res de defesa.
E Caim? A gente poderia ler
a história enaltecendo Abel e o
Deus que não o deixa cair em
esquecimento. E poderia levar
ao esquecim~nto o brutão do
Caim. A lógica aí seria: Vida a
Abel, morte a Caim! Só que
esta logicazinha não traria ne-
nhuma novidade. Só inverteria
algum detalhe.
Caim é condenado, naquela
história de Gênesis 4. E essa
condenação implica vir a ser
como Abel, nada e desprotegi-
do. Caim vira Abel.
Mas, justamente aí está pro-
tegido. Ao Caim, condenado a
ser como Abel, não se pode
perseguir nem matar. Leva o
sinal da proteção de Deus.
Caim é um protegido de Deus!
Neste sentido, Gênesis 4
Jeaua diz nio à vlolincla 'delicada' doa dlacfpuloa que Impediam
não joga um contra o outro,
H crianças de ae aproximarem delea não defende Abel e sentencia
Caim. Protege a um e a outro.
"ais", ou seus "arreda Sata- gumas paisagens na dobra da Barra a violência.
nás". estrada. Nesta perspectiva haverá
Simplificações que só co-. A história de Caim e Abel que se ler a Bíblia como livro a
nhecem "sim" ou "não" tran- não por acaso está nas primei- caminho. Nele temos histórias
qüilamente podemos deixar ras páginas da Bíblia (Gênesis que, nos caminhos da vida,
para quem deseja deformar 4). Esta história é uma espécie buscam brechas para barrar a
consciências com programas de chave para abrir a casa da violência. Algumas histórias
do tipo: Ligue e diga "sim"; Bíblia. É guia de leitura. conseguem fazê-lo de jeito me-
ou: Ligue e diga "não". Isso Abel é nome-símbolo. Sig- lhor, outras nem tanto. A todas
pode até dar prêmios, mas para nifica, a rigor, "nada'', vento haveria que se ler à luz de Abel
a leitura da Bíblia no assunto vazio. Nome mesmo é o dç e de Caim.
da violência é violência. Caim. O nome do irmão, Abel, É verdade, quando você lê o
Bíblia é, pois, livro de cami- atribui a este falta de signifi- livro de Josué e o de Juízes a
nho. Andando é que se vêem cado. impressão pode ser a de que a
paisagens, aliás sempre novas. Este Abel=Nada, sendo violência não tem fim. Há ver-
morto, não traria "prejuízo" dadeiras chacinas.
maior. Afinal, sendo Nada, já Elas ainda ficam mais im-
CENAS A CAMINHO nascera para sumir. Quem lhe pressionantes, quando a gente
Sugiro, pois, que olhemos para dá sumiço, estaria, por assim se dá conta de que na conquista
algumas cenas a caminho, ai- dizer, "colaborando". das Américas justamente esses
Contudo, Deus escuta o so- livros de Josué e de Juízes, nas
CONTEXTO PASTORAL Análise 13

mãos de guerreiros cristãos, bíblica. Prefiro reconhecer que Jesus escolhe uma trilha pró-
desempenharam um terrível também nossa Bíblia é uma pria. Não adere à opressão ro-
papel. Foram usados para justi- linguagem a caminho, emitin- mana nem a adota como hori-
ficar o extermínio de povos in- do sons que nem sempre são os zonte de esperança. Mas tam-
dígenas. melhores. Pois, querer absolu- bém não se alia aos guerrilhei-
Tenho ouvido duas manei- tizar a Escritura, justamente ros para ir à guerra anti-roma-
ras de lidar com a desmesurada em suas narrações do tipo das na. A gente de Jesus vai pores-
violência desses dois livros bí- de Josué e de Juízes, tende a trada própria, marcada pela de-
blicos. Uns dizem: Estes dois eternizar, pelo caminho da reli- sistência de usar a violência
livros referem-se somente à gião, os descaminhos da vio- em prol de uma 'causa boa', a
morte dos reis e das elites ca- lência. do Reino de Deus.
nanéias. E há bons argumentos Por fim, uma cena a mais. Neste contexto a cena de
para esta tese: Afinal, no he- Uma que me parece chegar Marcos 10.13-16 me parece
braico o termo "habitantes" bem ao fundo da tragédia da muito típica. Aí estão os discí-
pode ser traduzido por "gover- pulos de Jesus rodeando o
nantes" (ver Juízes 1.27). E, de Mestre e impedindo que as
fato, os massacres mencionam crianças se acheguem a ele.
preferencialmente os "reis" O movimento de Jesus Aqueles que parecem estar
(ve.r Josué 12). Neste sentido, não adere à opressão nos caminhos do Novo rele-
os livros de Josué e de Juízes romana, mas vai por gam a um segundo plano, à ex-
não estariam 'comemorando' a estrada própria, marcada clusão, os pequeninos. Violên-
morte da população cananéia, pela desistência de usar cia!
mas narrando uma guerra con- a violência em prol Essa violência embutida no
tra os opressores e reis. Há dia a dia é revelada por Jesus:
probabilidade histórica para de uma 'causa boa', "Deixai vir a mim os pequeni-
esta tese. a do Reino de Deus nos". Desses pequeninos é o
Outros dizem: Sim, aí há Reino de Deus.
muita violência. Mas essa vio- Aí se processa uma profun-
lência é contada nesses livros violência. Penso em uma cena da novidade. Num cenário
de Josué e de Juízes justamente dos discípulos de Jesus. com'.l que corriqueiro aparece
para ser superada! Falando da Por certo, o grupo dos discí- o que é violência: A exclusão
violência, esses livros estariam pulos representa uma dessas das crianças!
querendo barrá-la. Também sementes que promovem a paz, E elas teriam sido margina-
essa é uma boa hipótese. Afi- que desconstroem violência. lizadas violentamente pelos
nal, sublimação de terror e Os evangelhos mostram passo discípulos? Não, de forma ne-
agressão pode não ajudar a hu- a passo como os discípulos e nhuma. Foram repreendidas
manização. Pelo contrário, discípulas do Mestre de Nazaré 'delicadamente'!
pode atrapalhá-la. Seria, pois, experimentam um mundo A Bíblia revela também essa
uma das vantagens de nossa novo, um mundo do shalom. violência 'delicada' que nem
Bíblia hebraica a de evocar a No evangelho de Marcos esse parece ser tão violenta, porque
violência, a de narrá-la em co- mundo da paz poderá estar sen- já foi feita cotidiana e, por isso,
res e detalhes. Justamente por do expresso pelos "anjos que é tão profundaménte violenta.
isso, a Bíblia hebraica teria serviam" a Jesus em pleno de- Há muitas outras cenas so-
ajudado tanto a uma profunda serto (1.13). Jesus é um desses bre o assunto da violência.
humanização da cultura. Fa- que "servem" os seus para que Cada cena - um sinal. Siga
lando dos porões é que se so- experimentem o reino, este pelo caminho. Marquei algu-
terra entulho. mundo de paz. mas cenas. Marque outras!
Há, pois, maneiras diferen- Isso é algo muito especial
tes de ver a violência descrita no movimento de Jesus. Em
em Josué e Juízes. Pessoal- meio ao cenário de imperialis-
mente, prefiro reconhecer os mo e às guerrilhas judaicas Milton Schwantes é biblista, teólogo
limites da própria linguagem anti-romanas, o movimento de luterano e integrante de KOINONIA.
14 Anállse CONTEXTO PASTORAL

SÉCULO TERRÍVEL
Newton Carlos

Um ex-secretário de Estado de portar armas". Não só Okla- inglês, "foi presente indesejá-
americano, o scholar Zbig- homa. Há a guerra santa contra vel da universidade de Ayacu-
niew Brzezinski, calcula que o aborto. Num dos tantos talk cho '', de uma classe média
desde 1914 foram mortos 197 shows de rádio da direita reli- educada e supostamente civili-
milhões de seres humanos em giosa americana, hoje uma de zada.
guerras entre países e civis, suas armas mais poderosas, Também as brigadas verme-
além de expurgos, como o sta- Roy McMillan, chefe do lhas italianas e alemães. Ne-
linista,_terrorismos e massa- Christian Action Group, admi- nhum sistema político ou eco-
cres. "O ·mais violento século tiu "cortar a garganta de médi- nômico conseguiu, neste sécu-
da história", segundo William cos que fazem aborto" e decla- lo, atender a anseios de muitos
Golding, Prêmio Nobel inglês, e incansáveis milhões. O so-
ou "o mais terrível", na palavra cialismo soviético fracassou
amargurada do filósofo Isaiah "miseravelmente". Nos países
Berlin. Tanto o Camboja tor- A questão da violência capitalistas, avançados e não
nou-se campo de extermínio, não se coloca à direita avançados, aumentam as dis- .
entre muitas outras barbarida- ou à esquerda, mas tâncias entre ricos e pobres.
des, como nos últimos dez Vide Estados Unidos. No de-
em alienação, fúria,
anos tombaram assassinados bate sobre o personal respon-
250 mil cidadãos dos Estados frustrações e sability act, que trata da ajuda
Unidos, perda maior do que na até insanidade do governo aos pobres ameri-
segunda guerra. canos, o deputado John Mica,
No atentado no metrô de Tó- da direita republicana com o
quio rompeu-se o tabu sobre rou justificável matar juízes da controle do Congresso, empu-
uso de armas químicas em atos Corte Suprema que permitem nhava cartaz dizendo "não dê
terroristas contra populações isso. Clínicas e médicos já fo- comida aos jacarés". O mesmo
civis. "Com isso o mundo mu- ram alvejados e o próprio pre- aviso, afixado nos pântanos da
dou e certamente não para me- sidente "está em perigo", na Flórida, procura preservar a
lhor", diz Kyke B. Olson, do opinião nada desprezível de · capacidade do réptil de virar-
Centro de Controle das Armas McMillan. se por conta própria.
Químicas e Biológicas, de Referência à posição de O deputado acha que o atual
Washington. Jornais japoneses Clinton, favorável ao direito welfare dos Estados Unidos,
convidaram Olson a examinar de escolha das mulheres. Clin- segundo ele baseado na carida-
o que aconteceu em Tóquio e ton caiu de pau em cima das de e no não-trabalho, altera
ele logo advertiu que se "abre" "emissões de ódio" da extre- igualmente a ordem natural das
uma nova fase de violência e ma-direi ta, logo depois do coisas. Logo, não dê comida
horror. atentado de Oklahoma; mas os aos pobres. Não bastasse tudo
Pede que os governos, como que se voltam para este século isso, o Arms Trade News diz
medida de redução de riscos, de "massacres e guerras", que o mundo se transforma
se incorporem à Chemicals como o agrônomo francês num supermercado de armas.
Weapons Convention, de des- René Dumont, especialista em Só o barril de pólvora, que é o
truição das armas químicas, Terceiro Mundo, e o jornalista Oriente Médio, com suas le-
mas o universo oficial não pa- Richard Harwood, insistem em giões de miseráveis, compra-
rece interressado no assunto. que a questão não se coloca à rá até o final do século armas
Tampouco milicianos ame- direita ou à esquerda, mas em no valor de 64 bilhões de dó-
ricanos, retratados no livro The alienação, fúria, frustrações e lares.
Silent Brotherhood, aceitam até insanidade. O mortífero
que o governo federal acabe Sendero Luminoso, escreve
com seu "direito sacrossanto · Eric Hobsbawm, historiador Newton Carlos é jornalista.
CONTEXTO PASTORAL Análise ·15

O DIREITO DE MATAR
Janio de Freitas ·

A cada artigo contestando a fe- nos notórios. Aos policiais de aterrorizada, esconde-se sob a
rocidade oficial como solução mentalidade tão bem conheci- cama e os policiais, pressentin-
para a criminalidade no Rio, ou da, é dado o poder que a recusa do aí um presença, atiram e
em qualquer lugar, é invariável constitucional à pena de morte matam. A julgar pelo seu silên-
a reação numerosa: "venha nega aos próprios magistrados. cio a respeito, aos que celebra-
morar no Rio, venha ser assal- Mas em 24 horas 'vinha o ram o poder policial de matar
tado e vamos ver se a sua opi- primeiro efeito do novo poder. não importou que fosse apenas
nião não muda". Isso mesmo A descrição da cena é inesque- ·um assustado menino de dez
passou-se mais uma vez, a pro- cível: supostos marginais em anos. Importante foi omitir
pósito do direito dado às polí- fuga invadem um casebre, uma providências e cobranças que
cias fluminenses de matar sem das três crianças moradoras, pudessem resultar em embara-
risco de punição ("Não quero ços (em punição, nunca) para o
que meus policiais sejam puni- matador.
dos" - Marcello Alencar, go- Nenhum poder é Admitamos, não mais do ·
. vemador do Estado, sobre o as- maior do que o poder que pelo tempo de um parágra-
sassinato de 13 marginais que de vida e morte fo, que a violência policial a
se ofereciam à rendição). granel seja capaz de resolver o
Você, leitor, já foi assalta- problema da criminalidade ur-
do? Já. teve o cano de um 38
engatilhado na sua testa? Já
teve roubado um carro novo?
Já teve a casa invadida e rouba-
da? Já foi imobilizado por ar-
mas e levado como um seqües-
trado? Tem um filho que já foi
assaltado quatro vezes? Se já
passou por tudo isso, não se
gabe: seu currículo apenas em-
pata com o meu, que não está
todo aí. Vê-se que não preciso
mudar para o Rio - é evidente
que moro nele e, mais, vizinho
de uma favela . E, para quem
duvide, tenho testemunhas de
que, apesar dessa condição to-
pográfica, continuo vivo. Por
isso mesmo, contrário à con-
cessão do direito de vida e
morte a quem quer que seja.
Nenhum poder é -maior do
que o poder de vida e morte.
Este é, no entanto, o poder ago-
ra posto explicitamente nas
mãos dos policiais do Rio por
Marcello Alencar, com apoio
também explícito do ministro
do Exército, de meios de co- '
municação cariocas e até de
um alto prelado, além dos me- Chacina em Nov1 lguaçu/RJ: pai olha filho• 111aaalnado1
16 Análise CONTEXTO PASTORAL

bana. Quantos milhares, nesse dem-se, conforme as linhas, rias favelas, inclusive em pon-
caso, terão que ser mortos? entre os que têm assaltos todos tos nobres). E as abandonam
Porque é incalculavelmente gi- os dias e os que têm quase to- todas na degradação, porque as
gantesco o contingente dos que dos os dias. Os donos silen- ciclovias e outras fresquices é
vivem entre a pequena e a ciam sobre os assaltos a restau- que fazem o marketing nos
grande marginalidade crimino- rantes, hotéis, lojas, mas os ca- meios de comunicação sempre
sa. A morte de uns intimida os sos são corriqueiros. É um gra- voltados para as boas classes
demais? Engano. Todos agem ve equívoco, portanto, atribuir sociais.
embalados pelo tóxico, que re- o problema da criminalidade Os equívocos de muitos e a
duz ou anula o instinto de con- só aos traficantes. A inseguran- hipocrisia de outros alimentam
servação e dá a audácia para o ça vem, sobretudo, dos assal- o conto do vigário que é o po-
ato sem limites. Isso já foi dito tantes e ladrões. liciamento contra assaltos e
por muitos deles, naquelas en- roubos. No centro do Rio,
trevistas ·em que se dizem como de São Paulo e demais
conscientes de que a morte os A concessão do direito grandes cidades, encontram-se
apanhará cedo, porque estão de matar nega nas ruas pontos de compra de
para o que der e vier. É a ma- jóias, relógios, canetas caras,
neira, a que foram levados, de
autoridade e inteligência
óculos. Nos subúrbios e na pe-
sentir-se gente e heróicos. - os dois únicos riferia do Grande Rio vêem-se
O problema da criminalida- atributos que podem placas propondo "compra de
de urbana é todo ele muito resolver o problema ouro, colares, pulseiras, alian-
complicado. E sua complexi- da criminalidade ças, anéis". Em plena rua e
dade está envolta em equívo- em qualquer lugar nessas bibocas estão os recep-
cos de muitos, hipocrisias de tadores em ação, comprando o
outros e vigarices que unem produto dos trombadinhas e as-
bandidagem e "autoridades". saltantes. Os ferros-velhos de
Disputas a bala por pontos de É equívoco de uns e hipocri- carros novos são a mesma coi-
drogas fazem o escândalo da sia de outros. Para estes, que sa. E por que não há ação con-
criminalidade. Atribuir o pro- estão instalados no poder pú- tra eles? Quando, de raro em
blema do Rio a essas disputas blico, é menos embaraçoso raro, acontece uma, o comum é
é, porém, um dos ta;·s equívo- atribuir tudo a bandos de trafi- policiais e PMs por trás do ne-
cos que só dificultam ais. As cantes infiltrados nas favelas. gócio. O que explica a prolife-
disputas são localiza s, bem Assim encobrem sua absoluta ração, tão mais rentável do que
delimitadas mesmo e casio- omissão, por descaso mesmo, o trabalho regular, da delin-
nais, hoje aqui, amanhã ali. A nas medidas preventivas, de qüência urbana.
insegurança generalizada, e ordem socioeconômica, e re- A violência é o oposto da
pior, provém de outra generali- pressivas, de ordem policial, autoridade. E também da inte-
zação: o assalto, o roubo, cujo contra o tipo de criminalidade ligência. A concessão do direi-
desfecho nunca se sabe se será que mais produz a insegurança to de matar nega autoridade e
a perda apenas material. e o medo generalizado. inteligência - os dois únicos
No Rio de hoje, só os insen- As favelas são celeiros des- atributos que podem resolver o
satos não têm algum medo ao ta criminalidade por culpa di- problema da criminalidade no
estacionar ou desestacionar o reta e única dos governadores e Rio e em qualquer lugar.
carro. Parar em sinal de trânsi- prefeitos que as deixam cres-
to é um perigo. Andar a pé por cer e multiplicar-se incessante
qualquer rua, qualquer mesmo, e infinitamente, para não per-
der votos e até ganhá-los Janio de Freitas é jornalista da Folha
é risco permanente. Motocicle- de São Paulo .
ta com dois homens? não deixe (como prefeito, Marcello Texto publicado na "Folha de São
se aproximar. Os ônibus divi- Alencar tomou-se autor de vá- Paulo'', dia 14/5/95.

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