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Elementos orientadores das reformas da proteção social


na América Latina

Guiding elements in the reforms of social protection


in Latin America

Alejandra Pastorini CORLETTO

Resumo: Identifica e analisa alguns dos principais elementos constitutivos das


reformas da proteção social implementadas nos países do Cone Sul da América
Latina. Com essa finalidade, busca entender a lógica que orienta a proteção social na
contemporaneidade, ou seja, os princípios e concepções ídeo-políticas que
fundamentam e guiam as políticas e programas sociais do atual formato de proteção
social nesses países do continente latino-americano. Essas mudanças estão associadas
às transformações societárias atuais, decorrentes da crise do padrão de acumulação,
que condicionam e orientam as propostas de reforma dos formatos de proteção
social.
Palavras-chave: Questão social. Política social. Proteção social. América Latina.

Abstract: Identifies and analyzes some of the main components of social protection
reforms implemented in the Southern Cone countries of Latin America. For this
purpose, seeks to understand the logic that guides the social protection in
contemporary, the principles and ideopolitical concepts that justify and orient social
policies and programs in the current format of the social protection in those Latin
America countries. Such changes are associated with the current societal changes ¬
tions stemming from the crisis of accumulation patterns, which influence and guide
the reform proposals of the formats of social protection.
Keywords: Social Issues. Social Policy. Social protection. Latin America.

Recebido em 11.05.2010. Reformulado em 28.06.2010. Aprovação final em 15.07.2010.


Assistente social. Doutora pelo Programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro. Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
, Vitória, v. 2, n. 1, p. 133-149, jan./jun. 2010
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Alejandra Patorini Corletto

Introdução

T
endo em vista as considerações ração as especificidades e singularidades
antecipadas no resumo deste arti- que dão características particulares às
go, busca-se pensar alguns dos propostas de reformas em cada território
principais elementos que guiam as mu- nacional. As sociedades latino-
danças contemporâneas da proteção so- americanas possuem importantes dife-
cial nos países do Cone Sul da América renças que dependem da forma como se
Latina. De modo particular, pretende-se processou a entrada de cada uma delas
analisar, por um lado, os fundamentos na ordem capitalista, das particularida-
das reformas dos desenhos de proteção des históricas da formação político-
social que vêm sendo implementadas econômica de cada sociedade nacional,
desde o final dos anos 1980 e início dos das características e trajetórias dos sujei-
90, as quais alteraram os formatos tradi- tos políticos, dentre outras.
cionais, hegemônicos até a década de
Entretanto, os organismos internacionais
1980; por outro lado, busca-se identificar
como o Fundo Monetário Internacional
os traços fundamentais que assumem as
(FMI), o Banco Interamericano de De-
políticas sociais, nesta primeira década
senvolvimento (BID) e o Banco Mundial
do século XXI, os quais indicam uma re-
(BIRD) – importantes entidades que de-
orientação das reformas da proteção so-
finem e orientam parte significativa das
cial implementadas na maioria dos paí-
atuais reformas da proteção social nesses
ses da região, na década anterior.
países, mediante empréstimos financei-
Entende-se que além das características ros, bancos de informações e assistência
comuns que os quatro países do Cone técnica, programas de assessoria, consul-
Sul da América Latina possuem, trata-se toria e aconselhamento, assim como por
de um continente conformado por um meio do acompanhamento, monitora-
conjunto heterogêneo de países, diversos mento e avaliação dos programas e polí-
e variados. Desta forma, por entender a ticas implementados – insistiram ao lon-
região como unidade na diversidade, go da década de 1990 em sugerir de for-
que contém particularidades e traços ma impositiva um modelo único de re-
comuns, buscou-se refletir e problemati- forma no continente1.
zar as transformações na proteção social
e identificar alguns dos elementos que Porém, desde inícios do século XXI, estes
guiam as mudanças em curso nesses paí- organismos redefinem os eixos orienta-
ses. dores da nova concepção de proteção
social tendo como base: o reconhecimen-
Pensar a América Latina – como uma u-
nidade na diversidade – requer entender 1Para aprofundar a análise acerca da participação
seus traços e trajetórias comuns (enquan- dos organismos internacionais na definição das
to países capitalistas, dependentes e peri- políticas públicas na América Latina, consultar:
féricos), mas levando em conside Pastorini e Galizia (2006), Pastorini (2002) e
Galizia (2004).
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to da não materialização das promessas ção das classes e setores de classes; pela
das novas políticas sociais neoliberais em estrutura das coalizões e alianças políti-
incorporar os setores excluídos e reduzir cas; e pelo legado histórico e cultural.
a pobreza; a importância de estarem a-
Neste contexto, temos como fundamento
tentos à diversidade entre as realidades
a premissa de que a partir da segunda
dos países da região (entendendo que
metade dos anos 1980 e inícios dos 90
cada país terá que adequar essas diretri-
aconteceram mudanças expressivas no
zes fazendo opções, escolhas e discutin-
mundo capitalista3 que afetaram signifi-
do qual será a melhor estratégia, segun-
cativamente a política econômica dos
do sua realidade e história); a necessida-
países latino-americanos, incidindo de
de de incentivar novas formas de coesão
forma reveladora no desenho da prote-
social (por meio de elaboração de pactos
ção social hegemônico até a década 1980.
de governabilidade e expansão das bases
Tal como falamos anteriormente, no sé-
de apoio dos governos no legislativo e na
culo XXI se inaugura uma nova série no
sociedade em seu conjunto); e o estímulo
processo de reformulação da proteção
às iniciativas inovadoras de proteção so-
social na região, cujo ponto de partida é
cial (ex: redes de proteção básica, pro-
a crítica tanto dos formatos de proteção
gramas de transferência de renda, em-
social tradicionais (entendidos como se-
preendedorismo) destinadas aos grupos
letivos, corporativos, fragmentados e, em
denominados como vulneráveis.2 Essas
alguns casos, dualistas e excludentes)
diretrizes constituem os parâmetros
quanto das políticas sociais (focalizadas,
compartilhados pelos diferentes países
compensatórias e emergenciais) defendi-
da região que, adequados a cada reali-
das pelos pensadores neoliberais desde
dade local como forma de responder às
meados dos anos 1980 e ao longo da dé-
particularidades e aos níveis de desen-
cada de 90. Esse conjunto de críticas,
volvimento de cada país, guiarão as mu-
compartilhado por pensadores e técnicos
danças na proteção social, neste início de
pertencentes a diferentes campos de
século.
pensamento, embasam (ou embasaram)
É possível constatar que, na prática, cada em grande medida as mudanças da pro-
país vem implementando tais reformas teção social em curso implementadas
com algumas diferenças, adaptando as pelos chamados governos progressistas4.
diretrizes e sugestões gerais propostas à
realidade nacional específica. Este pro- 3 A referência deste trecho diz respeito ao
cesso de adaptação, por sua vez, é condi- conjunto de transformações societárias que
cionado: pelo desenvolvimento econômi- incidem na produção e reprodução da sociedade
co de cada formação social e pela corre- que tem seu marco na recessão generalizada da
lação de forças dos diferentes sujeitos economia capitalista mundial que se inicia na
década de 1970. Destacamos dentre essas
envolvidos; pela organização e mobiliza-
mudanças: reestruturação produtiva,
financeirização do capital, difusão do ideário
2Esses elementos mencionados encontram-se neoliberal e reformas dos Estados.
definidos em vários relatórios e documentos, tais 4 Estamos fazendo referência aos governos de:
como: BANCO... (2006), BIRD (2006), PNUD N. Kirchner e Cristina F. de Kirchner (na Argen-
(1990). tina), Luiz Inácio Lula da Silva (no Brasil), Lagos
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Diante destas reflexões, busca-se pensar social na América Latina porém, neles
alguns dos principais elementos que gui- predominam a busca por entender as
am as mudanças contemporâneas da particularidades de cada país, as análises
proteção social nos países do Cone Sul comparativas entre as diferentes experi-
da América Latina. Neste contexto de ências nacionais ou até, em alguns casos,
transformações societárias, pretende-se arriscam-se classificações desses modelos
compreender a lógica que orienta a pro- ou regimes protetivos. No entanto, gran-
teção social na contemporaneidade nos de parte dos analistas identifica as políti-
países do Cone Sul da América Latina, cas de proteção social dos países do Cone
ou seja, analisar os princípios e concep- Sul da América Latina como componente
ções ídeo-políticas que fundamentam e de experiências pioneiras, uma vez que os
guiam as políticas e programas sociais mesmos começaram a implementar seus
que integram o atual formato de prote- mecanismos de proteção na década de 20
ção social nesses países do continente do século passado5, antecipando-se à ins-
latino-americano. tauração da proteção social em alguns
dos países desenvolvidos (MESA-LAGO,
Dessa forma, estruturaremos nossas re-
1986; ESPING-ANDERSEN, 1995;
flexões em duas seções. Primeiramente,
FLEURY, 1994; FILGUEIRA, 1997). Exis-
apresentaremos as principais caracterís-
te consenso nesses estudos de que o de-
ticas da proteção social nesses países nos
senho de proteção social que predomi-
momentos da sua emergência e expan- nou nesse grupo de países buscou res-
são. Em seguida, levaremos a discussão
guardar principalmente os trabalhadores
nosso entendimento acerca do processo urbanos com vínculos formais de em-
de reforma da proteção social, princi-
prego, e os que realizavam atividades
palmente, a partir da década de 1990, nos setores entendidos como fundamen-
indicando as particularidades e diferen-
tais e estratégicos para o desenvolvimen-
ças das propostas e diretrizes que guia-
to econômico de cada um dos países. En-
ram as reformas da proteção social na
tretanto, os formatos de proteção social
última década do século XX (guiadas pe-
tinham como características centrais: de-
las idéias de focalização na pobreza, sele-
sigualdade no acesso aos serviços e bene-
tividade, privatização de serviços e des-
fícios em função da renda proveniente
concentração da gestão) e as redefinições
do salário, das contribuições e do poder
estratégicas da primeira década do sécu-
lo XXI (orientadas pelas idéias de equi- 5Dentre a legislação aprovada e implementada
dade, solidariedade com os mais vulne- nesse período, é possível destacar: cobertura de
ráveis e justiça social). acidentes de trabalho: na Argentina (1915), Brasil
(1919), Chile (1916) e Uruguai (1914); seguro ma-
ternidade/doença: na Argentina (1934/74), Brasil
(1923), Chile (1958) e Uruguai (1914); proteção à
Transformações societárias e velhice: na Argentina (1904), Brasil (1923), Chile
proteção social (1924) e Uruguai (1928); proteção à invalidez: na
Argentina (1944), Brasil (1923), Chile (1924) e
São muitos os estudos acerca da proteção Uruguai (1928); pensão por morte: na Argentina
(1944), Brasil (1923), Chile (1924) e Uruguai
e Bachelet (no Chile) e T. Vázquez (no Uruguai). (1928). Ver González Roaro (2003).
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de pressão de cada categoria; alta dis- social segmentada, desigual e corporati-


criminação e exclusão dos trabalhadores va, apoiada principalmente nas idéias do
sem vínculos formais de emprego e dos seguro bismarkiano. Esses dois pilares
trabalhadores rurais6; financiamento da proteção social eram complementados
bi/tripartite e administração do Estado; com os programas de assistência (públi-
alta burocracia e presença de práticas cos e/ou privados) orientados para as
orientadas por relações clientelistas e/ou populações mais pauperizadas e aos tra-
assistencialistas; forte presença de políti- balhadores sem vínculos formais de em-
cas permanentes como saúde, previdên- prego, não protegidos pela previdência
cia social (aposentadoria e pensões por social e pela política de saúde a ela vin-
invalidez e morte) e, em alguns casos, culada.
educação7.
Em países como Argentina, Chile e Uru-
Tendo como um dos principais pilares da guai, até a década de 1970, a proteção
proteção social a previdência (aposenta- social incluía parcelas significativas da
dorias, pensões e seguros contra aciden- população economicamente ativa (70%,
tes de trabalho) direcionada, sobretudo, 75% e 95%, respectivamente). Contudo, a
aos trabalhadores urbanos com vínculos realidade brasileira era outra, pois existia
formais de emprego (e, em muitos casos, um alto grau de desproteção social – isto
seus familiares) e articulada, na maior se levarmos em consideração, dentre ou-
parte das vezes, com a assistência médi- tros fatores, a extensão e a heterogenei-
ca8, foi se consolidando uma proteção dade territorial, o alto percentual de tra-
balhadores sem vínculos formais de em-
6Importa destacar que Argentina e Uruguai
prego e os elevados índices de pobreza.
incorporam ao sistema de proteção social, ao
longo da década de 1940, parte dos trabalhadores
Foi dessa maneira que se consolidou, no
autônomos, domésticos, rurais e profissionais Brasil, um sistema dual de atendimento
liberais por meio do reconhecimento do direito altamente excludente9.
de proteção à velhice, invalidez e morte.
7Em países como Argentina e Uruguai (e, em

menor medida, no Chile) a educação pública assistência médica no Uruguai. A presença de


(gratuita e obrigatória) foi uma área prioritária de imigrantes europeus nos países do Cone Sul é
investimento do Estado e uma estratégia central uma variável importante para se entender tanto a
na conformação dos Estados nacionais. A criação, organização da classe trabalhadora quanto a pro-
em 1896, da Caixa Escolar de Aposentadorias e teção social nesses países.
Pensões, no Uruguai, poderia servir de exemplo 9Mesa-Lago (1986), na sua clássica tipologia das

da importância que adquiriu a educação nesse experiências de proteção social na América Lati-
contexto. Como afirma Papadopoulos (1992, na, identifica dentre os países pioneiros: Argenti-
p.37), ‚*...+ sua centralidade, do ponto de vista na, Chile, Uruguai e Brasil. Por sua vez, Filgueira
político, talvez radique no estímulo que o Estado (1997), fazendo uma apropriação crítica dessas
dava a uma atividade fundamental para a socia- análises, afirmará que os três primeiros países
lização das novas gerações e para a transmissão mencionados tiveram experiências de proteção
de certos valores básicos para o fortalecimento da social caracterizadas pelo universalismo estratifi-
identidade nacional‛. cado, porém, a experiência brasileira integraria,
8Para pensar o caso da Argentina é importante junto com México, o grupo de países com regi-
levar em consideração as Obras Sociais e as expe- mes duais de proteção social. Filgueira (1997),
riências das mutualidades, modalidade que tam- levando em consideração a heterogeneidade ter-
bém influenciou e influencia até os dias de hoje a ritorial (entre estados e regiões) desses países, em
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Mesmo levando em consideração essas Esse modelo particular contribuirá para


diferenças mencionadas, é possível afir- definir as características da proteção so-
mar que a proteção social nestes quatro cial na região. No processo de desenvol-
países teve como referência as primeiras vimento econômico e social, o Estado
experiências protetivas das sociedades assumiu um papel central, passando a
européias originadas em fins do século ser um dos principais impulsionadores
XIX, consolidadas ao longo da primeira da modernização capitalista e assumindo
metade do século XX e expandidas até importante presença na regulação dos
meados dos anos 1970. Entretanto, é im- conflitos.
portante destacar que nesta região do
Até os anos 1970, estes países do Cone
continente latino-americano a proteção
Sul já tinham consolidado suas estrutu-
social nem sempre esteve apoiada no re-
ras de proteção social que buscavam dar
conhecimento dos direitos de cidadania
cobertura às necessidades do trabalho e
de forma ampla, mesmo existindo, na
do capital, por intermédio do atendimen-
maior parte dos países do Cone Sul, um
to de algumas das manifestações da ques-
anseio pela universalização da cidadania.
tão social contribuindo, ao mesmo tempo,
Nesta ótica, não são poucos os autores
com a redução das tensões sociais. Desta
que alertam sobre as diferenças entre os
forma, as políticas de proteção social
processos de emergência, expansão, con-
conquistadas pelos trabalhadores orga-
solidação e reformas dos sistemas de
nizados que lutavam por pão e trabalho
proteção social na Europa e as limitadas
não podem ser reduzidas a uma política
experiências, mesmo que pioneiras, de
providente (ZUBILLAGA, 1996); de forma
Estados sociais na América Latina que se
contrária, as políticas sociais serão en-
originaram num contexto de industriali-
tendidas aqui como expressão da corre-
zação tardia, no capitalismo periférico,
lação de forças numa dada sociedade,
nos marcos do imperialismo.
num determinado momento histórico.
A proteção social na região se consolida
Lembremos que as políticas sociais fo-
ao longo do período que se inicia nas dé-
ram utilizadas como instrumentos que,
cadas de 1920-30 e se expande até os a-
ao mesmo tempo em que atendiam parte
nos 1970. Como afirma Filgueira (1997,
das reivindicações e demandas da classe
p.6), ‚[...] um modelo particular de polí-
trabalhadora10, contribuíram para conso-
tica ‘keynesiana’ orientou boa parte dos
modelos de desenvolvimento na Améri- 10 Nos países do Cone Sul e, principalmente, no
ca Latina [...]; o modelo substitutivo de Uruguai, Argentina e Chile (este último com suas
importações articulado teoricamente no especificidades que o distanciam, de certa forma,
paradigma Cepalino e nas contribuições dos dois casos anteriores) é necessário considerar
de Raúl Prebish‛. a organização dos trabalhadores (operários,
profissionais liberais, servidores públicos e
mineiros) e a luta social como variáveis centrais e
determinantes no processo de estruturação da
termos de desenvolvimento do mercado formal, proteção social e da participação do Estado na
do Estado e da proteção, trabalhará com a idéia arbitragem dos conflitos. Desde finais do século
de que essa dualidade também se reproduz no XIX, estes países contavam com uma importante
interior dos sistemas protetivos. sindicalização e organização política que
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lidar um projeto de integração nacional ses, a participação do Estado na adminis-


que se organizava sob a exploração do tração e arbitragem dos conflitos, o fi-
trabalho assalariado. No entanto, vários nanciamento bi/tripartite e os anseios
autores advertem que o processo de pela universalização da cidadania.
construção nacional na América Latina,
Entende-se que este segundo conjunto de
apoiado na idéia de cidadania associada
características mencionadas é também
com a liberdade individual e igualdade
componente importante a ser considera-
como princípios de justiça, de forma con-
do ao se analisar os formatos da proteção
trária às sociedades européias, não foi
social hegemônicos até os anos 1980, nes-
completo, ou seja, foi um processo incon-
tes países de América Latina. No entanto,
cluso11, que contribuiu para a reprodução
esses elementos também serão funda-
de alguns traços característicos das nos-
mentais para entender as razões que mo-
sas sociedades de economia dependente,
vem as principais pressões reformulado-
tais como: altos níveis de desigualdades
ras da proteção social nesses territórios
sociais, exclusão, autoritarismo e pouca
vindas seja dos técnicos neoliberais, dos
integração. Traços que terão ponderações
defensores da terceira via, quanto dos
diferentes em cada formação social parti-
organismos multilaterais.
cular.
A partir da segunda metade dos anos
Como falamos anteriormente, os dese-
1970, diante do novo contexto político-
nhos de proteção social desenvolvidos na
econômico mundial – caracterizado pela
região até então se caracterizavam por:
recessão generalizada, pelo esgotamento
corporativismo, existência de diferentes
do crescimento norte-americano do pós-
status de cidadania e exclusão de alguns
guerra e sua perda de hegemonia, pela
setores da sociedade das estruturas pro-
crise dos welfare state e pela crise do socia-
tetivas. Contudo, este formato de prote-
lismo real –, os Estados reguladores pas-
ção tinha também como pilares funda-
sam a ser duramente questionados e res-
mentais: a busca por estruturar meca-
ponsabilizados pela crise que atinge o
nismos de proteção social redistributivos
mundo capitalista. Todavia, entende-se
orientados pelo atendimento dos riscos
que este questionamento está relaciona-
coletivos, o princípio da solidariedade
do com o conjunto de respostas formula-
entre diferentes grupos e setores de clas-
das e implementadas pelo grande capital
permitiu o reconhecimento da legislação monopolista (a saber: reestruturação
trabalhista e significativos níveis de proteção produtiva, financeirização do capital e
social. difusão do ideário neoliberal)12 apresen-
11 Segundo Bustelo (2004, p.170), ‚Na Europa a
tado como a alternativa de superação da
cidadania não somente é um princípio de
integração política, mas também, e crise.
principalmente, de organização básica
unificadora da vida social que se gerava através
da ‘cultura do trabalho’: venda da força de 12 Netto e Braz (2007) trabalham de forma deta-
trabalho, sal{rio e proteção‛. Neste sentido, lhada a combinação desses três elementos consti-
autores como Castel (1998) trabalham com a tutivos da estratégia que o capital monopolista
noção de sociedade salarial para se referir às implementou como forma de responder à neces-
sociedades européias. sidade de alterar a onda longa recessiva.
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A transformação no perfil e funções do o corporativismo, a existência de diferen-


Estado faz parte desse conjunto de mu- tes status de cidadania e a exclusão de
danças exigidas pela nova forma de es- alguns setores da sociedade das estrutu-
truturação do capital monopolista. As- ras de proteção social. Entretanto, exis-
sim, junto com as metamorfoses produ- tem diferenças importantes. O principal
zidas na esfera da produção para elimi- alvo da crítica desses organismos inter-
nar os limites impostos ao processo de nacionais e dos técnicos a eles vinculados
valorização e acumulação do capital, tor- concentra-se naqueles elementos que se
na-se necessário uma reforma do Estado identificou como pilares fundamentais
que continua a assumir importantes fun- da proteção social vigente até então: pro-
ções nesse novo padrão de desenvolvi- teção dos riscos coletivos, a solidarieda-
mento. de, a participação direta do Estado na
administração e arbitragem dos conflitos,
O discurso ideológico de satanização do o financiamento bi/tripartite e a partici-
Estado coloca a reforma como um proces-
pação dos trabalhadores no controle das
so natural e necessário, desvinculando-a
estruturas de proteção social.
do projeto político-econômico do grande
capital e do conjunto de decisões políti- Essas críticas não são inteiramente novas
cas tomadas pelos nossos governantes. – algumas delas fazem parte do arcabou-
As propostas de reformulação da prote- ço conceitual e do conjunto de princípios
ção social – orientadas pelos organismos político-ideológicos dos pensadores libe-
internacionais, pelos técnicos neoliberais rais, hoje refuncionalizados.
e reflexões despolitizadas – apoiadas nos
programas de privatizações, no acirra-
mento da focalização e na administração Diretrizes das propostas de
da pobreza, buscam uma redução da reforma da proteção social
participação do Estado como provedor
direto no atendimento das mazelas da A reflexão acerca das alterações no dese-
questão social e contribuem com a remer- nho de proteção social no Cone Sul da
cadorização, quase que absoluta, dos América Latina obriga-nos a pensar no
serviços sociais, alimentando ao mesmo conjunto de mudanças econômicas, polí-
tempo a segmentação e a fragmentação ticas e sociais ocorridas nas décadas de
da proteção social. 1970 e 1980, assim como nas formas em
que, historicamente, os Estados se orga-
Os diagnósticos dos problemas e/ou fa- nizaram para assumir a responsabilidade
lhas dos formatos de proteção social que de manter a acumulação do capital e ga-
foram hegemônicos até os anos 1980, rea- rantir as condições de produção e repro-
lizados por esses organismos e técnicos dução dos trabalhadores atendendo par-
neoliberais e/ou defensores da opção da te das expressões da questão social. Mui-
terceira via, indicam alguns elementos tas vezes, percebe-se que os estudos que
críticos também identificados como pro- têm como objeto a proteção social e as
blemáticos pelos setores defensores da intervenções do Estado concentram-se
universalização da proteção social públi- nas particularidades das manifestações
ca, dentre os quais é possível mencionar:
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da questão social em cada país ou preocu- sociais, em todos esses países as políticas
pam-se em realizar análises comparati- de proteção social foram utilizadas como
vas entre as formas de regulação e/ou mecanismos para regular o mercado, a
participação estatal. força de trabalho e os ciclos econômicos,
assim como foram úteis instrumentos
Apesar das diferenças entre países, existe
para reforçar, desenvolver e legitimar os
uma insistência por parte dos organis-
Estados, pouco institucionalizados, me-
mos internacionais, dos técnicos e dos
diante obtenção do consenso e integração
teóricos em apresentar a região como um
social. Nesse sentido, entendemos que
bloco homogêneo; dessa forma, buscam- essas políticas públicas não podem ser
se e/ou propõem-se alternativas comuns
concebidas de forma simplificada como
para enfrentar as principais questões e- medidas tomadas e/ou implementadas
conômicas, políticas e sociais contempo-
pelo Estado, num momento específico do
râneas. Em alguns casos, também são seu desenvolvimento histórico, que dei-
apagadas as diferenças entre as experi-
xava de ser liberal e transformava-se em
ências de proteção social no continente
intervencionista, atendendo às deman-
latino-americano e as européias, contri-
das e pressões dos trabalhadores (PA-
buindo dessa forma com a homogeneiza-
PADOPULOS, 1992).
ção das críticas à intervenção do Estado e
das propostas de reformulação da prote- Na verdade, tinha-se como objetivo or-
ção social em ambos os continentes. ganizar a nação do ponto de vista insti-
tucional, político, econômico, social e
No entanto, como explicitado anterior-
cultural em função das necessidades do
mente, o processo de construção das ex-
desenvolvimento econômico capitalista.
periências de proteção social nos países
Nesse processo, o Estado e as políticas
do Cone Sul da América Latina foi dife-
públicas assumem uma função central.
rente daquele acontecido nos países eu- Trata-se de um modelo estadocêntrico que
ropeus. No primeiro grupo de países,
tem como eixos: proteção do risco coleti-
não se seguiram modelos únicos nem vo, solidariedade e universalização da
puros, pelo contrário, foram experimen-
proteção social como parte de um con-
tados formatos híbridos13 de proteção
junto de condições necessárias para ga-
social – portanto, não houve nesses paí-
rantir a acumulação.14 É esse o modelo
ses um desenvolvimento e uma expansão
que a partir dos anos 1980 passa a ser
única, linear nem unidirecional.
amplamente criticado na tentativa de
Apesar das diferenças entre as formações substituí-lo por um outro, mercadocêntrico
(FILGUEIRA, 1997).
13Quando falamos de formato híbrido, estamos
fazendo referência àquelas experiências domina- São essas mudanças na proteção social
das por uma convivência (em alguns casos, equi-
librada) de diferentes traços e características pre- Como diz Netto (1996), no período dos mono-
14

dominantes em cada um dos diferentes regimes pólios, percebe-se uma mudança na atuação do
ou modelos de proteção social (por exemplo: Estado que passa a assumir novas funções eco-
assistencial, bismarckiano e beveridgiano ou libe- nômicas diretas e indiretas; no entanto, lembre-
ral, conservador e social-democrata, dependendo mos que essas funções encontram-se organica-
das classificações tidas como referência). mente imbricadas com as funções políticas.
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que se buscará analisar, destacando os Segundo os defensores das reformas, es-


principais elementos que guiam as pro- tas transformações – que na prática im-
postas de reforma no Cone Sul da Amé- plicam mudanças na produção, organi-
rica Latina, lideradas pelos organismos zação do trabalho e nas formas de extra-
internacionais e pelos técnicos moneta- ção de sobre-trabalho – estariam indi-
ristas e/ou reformistas. cando o fim da centralidade da luta de
classes; portanto, existiria nas análises
Os pacotes de respostas propostos ao
destes pensadores uma evidente ruptura
longo dos anos 80 e 90, que fazem parte
com a idéia de pertencimento de classe
das chamadas políticas de ajuste estrutural, dos setores subalternos, demandan-
orientados para a solução dos denomi-
tes/destinatários da proteção social. Nes-
nados novos problemas sociais (como: ta concepção, estes sujeitos fariam parte
exclusão social, desemprego estrutural, nova
de um agregado heterogêneo de indiví-
pobreza), vinculam-se a uma suposta apa- duos com trajetórias particulares e inte-
rição de uma nova questão social.15 Para
resses individuais, portanto, não seria
esses técnicos e pensadores, as mudanças
possível identificar interesses comuns
societárias e as novas problemáticas esta-
entre eles – denominador comum capaz
riam colocando em xeque as formas tra-
de conduzi-los a uma mobilização e lutas
dicionais de responder às manifestações
coletivas, negando assim a possibilidade
da questão social. Estas mudanças estari-
de representação coletiva e interesses
am indicando a necessidade de se repen- comuns (ROSANVALLON, 1995).
sar os desenhos de proteção social pre-
dominantes até então, que tinham como A partir dessas reflexões, e na presença
figura central o Estado como agente pro- das transformações que atingem a socie-
vedor direto do conjunto de bens e servi- dade contemporânea 16, os defensores das
ços coletivos destinados a atender as ne- reformas afirmam que mudar o Estado e
cessidades dos cidadãos. suas formas de regulação é um imperati-
vo natural e inevitável. Nesse contexto,
Dentre os motivos que justificam as mu- apresenta-se como alternativo ao Estado
danças propostas pelos técnicos e teóri-
provedor e assegurador, um Estado ativo
cos neoliberais defensores das reformas,
que tenha capacidade para direcionar
destacam-se, além das transformações
suas ações de proteção social para os in-
societárias, a heterogeinização dos sujei-
divíduos mais necessitados, para aqueles
tos destinatários da proteção social (de-
que se encontram em situação de vulne-
sempregados de longa data, jovens sem
rabilidade e/ou precariedade. Essas reflexões
ocupação, famílias chefiadas por mulhe-
res, idosos não incluídos na previdência,
Das principais mudanças identificadas pelos
16

novos pobres, etc.) e suas trajetórias es- autores, destacam-se: entrada da mulher no mer-
pecíficas e variadas que os conduziram à cado de trabalho; aumento das famílias monopa-
situação de exclusão na sociedade con- rentais e, dentre elas, as chefiadas por mulheres;
temporânea. alargamento da esperança de vida e envelheci-
mento da população; crescimento do desempre-
go; altos índices de jovens que não trabalham
Para aprofundar a discussão acerca do debate
15 nem estudam; crescimento da pobreza e miséria;
da ‚nova questão social‛. Ver Pastorini (2004). agravamento da violência.
, Vitória, v. 2, n. 1, p. 133-149, jan./jun. 2010
143
Elementos orientadores das reformas da proteção social na América Latina

apóiam-se na idéia de que os mecanis- vertical e horizontal) guiadas pela lógica


mos e formas de regulação e intervenção da garantia dos direitos. Essa mudança
do Estado vigente, até década de 1980 proposta encontra-se intimamente articu-
(dentre eles, as políticas de proteção so- lada com as idéias da necessidade da re-
cial), não seriam estratégias válidas para definição dos sujeitos como conseqüên-
atender às necessidades dos indivíduos. cia do suposto fim da guerra entre classes,
Desse modo, alguns analistas e gover- do fim da classe como fenômeno histórico e
nantes sugerem de forma imperativa, da idéia da inutilidade do conceito [de clas-
seguindo as diretrizes propostas pelos se] para a análise da sociedade (BADARÓ,
organismos internacionais, uma refor- s/d, p. 7). Diferentes autores apregoando
mulação dos desenhos de proteção soci- o fim da centralidade do trabalho servem de
al. Importa destacar que os formatos de apoio para alguns pensadores e técnicos
proteção implementados não serão idên- afirmarem que os sujeitos não mais per-
ticos em todos os países e continentes, tencem a classes, nem a coletivos, nem
mas todos eles terão como preocupação a constituem forças sociais – portanto, teri-
focalização das ações na pobreza e na am que ser pensados como indivíduos
exclusão social, por meio daquelas colo- em situação de vulnerabilidade, indiví-
cadas em prática por um conjunto de duos estes pertencentes a uma família
programas fragmentados, compensató- e/ou comunidade onde predominam re-
rios, emergenciais e paliativos realizados lações (ou laços) de sociabilidade debili-
em parceria entre os poderes públicos e tadas, enfraquecidas ou rompidas.
as organizações da sociedade civil (OS-
Os mentores das reformas de orientação
CIP, organizações sociais etc.).17
neoliberal afirmam que perante esta no-
Esse esforço focalizador18 virá em substi- va realidade faz-se necessário redefinir
tuição da idéia de prevenção, atendimen- as formas de organizar a proteção social.
to e proteção dos riscos coletivos, um dos As propostas de transformação da prote-
pilares de sustentação das formas tradi- ção social fazem parte de um projeto de
cionais de proteção social redistributivas reforma maior que inclui: as reformas
(vinculadas com a noção de solidariedade dos Estados, os programas de reestrutu-
ração produtiva, o incentivo ao desen-
17 Estas atividades, por não serem consideradas volvimento do capital financeiro. Estes,
exclusivas do Estado, poderão ser desenvolvidas por sua vez, são entendidos aqui como
também pelo setor ‚privado não lucrativo‛, cujo
elementos centrais de um novo padrão
funcionamento está regido pelas estratégias de
publicização e desconcentração.
de desenvolvimento capitalista tendentes
18 Nesse contexto, os diferentes governos da A- a reduzir os limites da valorização e a
mérica Latina começam a desenvolver, em con- encontrar novas formas de manter a a-
junto com os programas de reformas estruturais, cumulação de capitais. Nesse contexto, o
os programas e ações na área de assistência, den-
Estado passa a reorganizar suas funções
tre os quais assumem destaque os programas de
transferência de renda condicionados, focaliza-
diretas na economia e as indiretamente
dos na pobreza (ex.: Programa Bolsa Escola, no econômicas.
Brasil; Pronasol e Oportunidades, no México; Plan
Nacional de Alimentación e Jefes y Jefas de Hogar, na Contudo, a partir da segunda metade
Argentina). dos anos 1990, e ao longo da primeira
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Alejandra Patorini Corletto

década do século XXI, tais organismos A idéia de igualdade social perseguida


mais uma vez evidenciam a necessidade pelos Estados reguladores (entendida
de rever as estratégias ortodoxas neolibe- como igualdade de direito, proteção ou
rais, cuja correção dos rumos apóia-se no resultados, a depender da forma predo-
reconhecimento da necessidade de uma minante de cada Estado) difere daquela
participação mais ativa do Estado refun- que orienta o novo desenho proposto
cionalizado, que assuma a responsabili- neste início de século; as reformas em
dade da retomada do crescimento das curso orientam-se por uma outra con-
taxas de lucro, promovendo a equidade e cepção: trata-se de uma igualdade de opor-
a justiça social.19 tunidades (não de condições econômicas,
nem de propriedade ou acesso à riqueza,
Nesta lógica, o Estado para ser justo não poder ou participação, nem mesmo de
poderá mais ser um assegurador, nem ter
tratamento) que poderá ser atingida a-
uma função redistributiva, uma vez que través de uma equidade de tratamento.
os princípios asseguradores (que orien-
Desse modo, isto poderá ser alcançado
tavam a tradicional proteção social) co-
por meio da viabilização de um trata-
mo justiça, solidariedade e risco coletivo
mento equivalente ou diferenciado (o
teriam desabado (ROSANVALLON,
que não significa igual nem universal)
1995).
como forma de garantir as condições mí-
De forma contrária, seria necessário pen- nimas para que os indivíduos mais fragi-
sar numa outra estrutura de proteção lizados ou vulneráveis adquiram força e
social embasada numa lógica solidarista, vigor para participar do mercado (de
apoiada na refundação da solidariedade trabalho, consumo de bens e serviços)
com os mais vulneráveis que permita e/ou sobreviver de forma assistida.
reconhecer, tolerar e compensar as dife-
Essas idéias podem ser exemplificadas
renças entre os indivíduos. 20 Neste es- com as palavras de Gordon Brown, im-
quema, a justiça (enquanto norma para a
portante representante da Terceira Via,
repartição) não implicará um tratamento quando contrasta a igualdade de resul-
igualitário nem uma igualdade de gozo
tado (que orientou algumas das experi-
de direitos; pelo contrário, o tratamento
ências de Welfare State) com a igualdade
terá que ser diferenciado como forma de
de oportunidades, a saber: a igualdade
dar aos indivíduos vulneráveis (em situ-
de resultados não incide sobre as causas
ação de miséria, pobreza ou precarieda-
da pobreza, requer uma imposição pres-
de) os meios para modificar o curso de
crita e centralista dos resultados, preo-
suas vidas, superar uma ruptura e/ou
cupa-se pouco com o esforço e o mérito,
prever um problema.
ao mesmo tempo em que o Estado esta-
ria impondo oportunidades e não as ofe-
recendo; entretanto, no segundo caso, a
19 Essa tarefa passa a ser assumida como um
compromisso dos diferentes governos no Cone
igualdade de oportunidades teria de ser
Sul da América Latina, desde inícios do século promovida pelos governos, e incluiria 3
XXI. tipos de igualdade: 1) ‚[...] proibição
20 Os Relatórios do BIRD (2006) e PNUD (1990)
formal da discriminação na base de atri-
expressam de forma clara essas concepções.
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Elementos orientadores das reformas da proteção social na América Latina

butos distintos [...]‛ (gênero, raça, credo igualdade de resultados, convivendo de


etc.), 2) ‚[...] fomento da meritocracia, forma harmônica com as desigualdades
onde a distribuição de rendas refletiria o estruturais da sociedade vigente – ou
talento e o esforço individual [...]‛, 3) seja, com a desigual distribuição entre
‚[...] igualação dos recursos para garantir classes da riqueza socialmente produzi-
a concorrência *...+‛ (CALLINICOS, 2003, da e com a apropriação privada.
p. 54-55). Assim, a igualdade de oportu-
Por outro lado, neste formato proposto, o
nidades (preferida por G. Brown), teria
mercado assume um lugar de destaque,
que ser promovida pelos governos (por
uma vez que se entenderá que o bem-
exemplo: serviços de educação e qualifi-
estar dos sujeitos depende da liberdade
cação profissional, ou flexibilização da
individual (pensada como ausência de
contratação e incentivos aos empresá-
impedimento para o livre arbítrio22) e das
rios) como forma de garantir aos indiví-
condições que os indivíduos tenham pa-
duos as condições necessárias para se
ra participar, concorrer e fazer uso das
tornarem mais competitivos na socieda-
suas virtudes, talentos, dons naturais e
de de mercado, fomentando a meritocra-
capacidades (condições denominadas
cia, o esforço individual e incentivando a
como sorte bruta), mas também depende-
concorrência, como estratégias para for-
rá das suas opções pessoais (mérito, es-
talecer as possibilidades de modificar
forço e escolhas). Por entender que os
suas vidas e contribuir com a prosperi-
indivíduos são responsáveis pelas suas
dade econômica.21
opções pessoais e não pela sorte bruta, os
Importa destacar, por um lado, que as governos teriam que oferecer oportuni-
intervenções apoiadas na idéia da igual- dades àqueles indivíduos vulneráveis,
dade de oportunidade se distanciam da considerados vítimas da sorte bruta, na
preocupação com a igualdade de condi- tentativa de reparar ou compensar uma
ções e até mesmo da preocupação com a carência ou um risco, que os tornaram
diferentes e fragilizados para o exercício
do livre arbítrio.
21 Estas idéias embasam muitas das propostas
que estão sendo implementadas nos países do Desta forma, as desigualdades sociais
Cone Sul, no qual seus governantes, desde inícios
são transformadas em diferenças indivi-
do século XXI, concentram os esforços em aten-
der as necessidades das populações mais pobres duais decorrentes da sorte bruta e natura-
mediante as que foram postas em prática pelos lizadas, desvinculando-as da exploração
programas de transferência de renda focalizados
na pobreza. O destaque que vem assumindo esse 22Werneck Vianna (2008, p. 123-128) explica co-
tipo de intervenção no social faz parte de um mo no campo da reflexão acerca das políticas
processo maior, que denominamos aqui de ‚as- sociais tanto quanto no das proposições confron-
sistencialização‛ da proteção social, o qual impli- tam-se duas concepções de igualdade (uma en-
ca uma mudança na relação entre público e pri- tendida como resultados mais igualitários e a
vado que, por seu turno, tem como par dialético a outra como iguais oportunidades para todos) e
privatização de outras políticas sociais como pre- duas concepções de liberdade (como ausência de
vidência, educação e saúde. Este processo integra restrições ao exercício do livre arbítrio e como
o conjunto de respostas às necessidades coloca- exercício positivo do livre arbítrio); essas concep-
das pelo grande capital para superar a crise.Ver ções distintas darão lugar a diferentes formas de
Pastorini e Galizia (2006). conceber a relação entre liberdade e igualdade.
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Alejandra Patorini Corletto

e da apropriação privada da riqueza so- Indicamos no início das nossas reflexões


cialmente produzida23. que, apesar das diferenças entre os paí-
ses, há certa obstinação nos estudos e
Neste esquema analítico, o reconheci-
propostas dos organismos internacio-
mento das diferenças e a tolerância com
nais, técnicos e teóricos, em analisar a
o outro diferente (considerado como ne-
América Latina como um grupo homo-
cessitado, vulnerável ou vítima) passam
gêneo; modo pelo qual as chamadas polí-
a ser elementos fundamentais para estru-
ticas de ajuste estrutural e reformas pro-
turar as estratégias governamentais cor-
postas foram iguais para todos os países
retivas que permitirão atingir o bem- da região. Também, por vezes, as dife-
estar dos indivíduos, sem alterar o nú-
renças entre as experiências de proteção
cleo duro das desigualdades sociais, ou social no continente latino-americano e
seja, sem interferir na dinâmica capitalis-
as européias são desconsideradas, ho-
ta. Essas estratégias de proteção social mogeneizando as críticas aos Estados em
não serão responsabilidades diretas, nem
ambos os continentes. A prédica acerca
exclusivas, do Estado, mas teriam que ser
do fracasso das experiências de Estados
desenvolvidas em comunhão com a soci-
reguladores nos países europeus foi uti-
edade civil de diferentes formas. Nesse
lizada como discurso ideológico para
esquema, não há lugar para as políticas
alavancar as reformas da proteção social
públicas universalistas, nem mesmo re-
na América Latina, nos anos 1980 e 90.
distributivas.
Como vimos no decorrer do trabalho, o
modelo de proteção social hegemônico
Considerações finais no Cone Sul, até os anos 1980, e o que
fora implementado nos anos 1990, pas-
As reflexões anteriormente realizadas sam a ser confrontados neste início do
permitem identificar alguns dos elemen- século XXI, tanto no espaço da reflexão
tos centrais que orientam as principais quanto no âmbito propositivo, com um
propostas de mudanças da proteção so- novo desenho fundado nas idéias de e-
cial em alguns países da América Latina, quidade, solidariedade (com os mais
especialmente, naqueles onde os dese- vulneráveis) e justiça ancorada em con-
nhos protetivos foram implementados na cepções de liberdade individual, igual-
entrada do século XX e estruturados com dade de oportunidades, princípio da di-
base em políticas sociais permanentes ferença e responsabilidade dos cidadãos.
(tais como política de saúde, previdência Tendo por base tais idéias e princípios,
social e educação) direcionadas a atender busca-se desenhar os novos formatos da
os riscos coletivos, tendo a solidariedade proteção social, sugeridos pelos mento-
e a redistribuição como valores-guia e res das reformas a serem implementadas
veículos para a universalização da prote- no Cone Sul da América Latina.
ção social.
Desta forma, é possível afirmar que esse
formato proposto contribui com a natu-
23Para aprofundar a discussão acerca das noções
de desigualdade e igualdade na sociedade ralização das classes e das desigualda-
capitalista, consultar: Callinicos (2003). des, uma vez que a exploração e a apro-
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Elementos orientadores das reformas da proteção social na América Latina

priação privada da riqueza, núcleo duro 1990, são questionadas por não assegura-
das desigualdades sociais nas sociedades rem serviços de forma homogênea, por
capitalistas, são ocultadas sob a máscara estarem preocupadas com as ações de
das idéias da sorte bruta (e das diferenças assistência focalizadas nos mais pobres e
que dela decorrem) e das opções pesso- com perder de vista a responsabilidade
ais dos indivíduos. do Estado com a provisão das ações de
proteção. Tomando essas críticas como
Por outro lado, a liberdade substantiva
ponto de partida, a reforma proposta
que permitiria o exercício positivo do
neste início do século XXI busca estrutu-
livre arbítrio é reduzida à liberdade for- rar um formato de proteção social que
mal entendida como ausência de empeci-
tenha como pilar fundamental um con-
lhos para o exercício da livre escolha in- junto de ações de proteção básica (acesso
dividual. Nessa concepção, compete aos
a transferências de renda, serviços de
governos oferecer e promover oportuni- saúde básicos e ensino fundamental) di-
dades aos indivíduos vulneráveis (con-
recionadas ao atendimento das necessi-
cebidos como vítimas da sorte bruta) para
dades imediatas das populações vulne-
participar da livre concorrência e fomen-
ráveis e daquelas que vivem situações de
tar a meritocracia, o esforço individual e
precariedade, decorrentes de circunstân-
potencializar as escolhas individuais (en-
cias que independem a realização das
tendidas como responsabilidades das
suas opções pessoais (como talentos,
opções pessoais dos indivíduos). No en- dons naturais, capacidades).
tanto, estes pensadores não levam em
consideração o contexto, circunstâncias e Entretanto, na tentativa de romper com o
condições sociais que determinam as es- corporativismo e a histórica exclusão de
colhas, preferências e eleições dos indi- alguns setores da população dos siste-
víduos. mas de proteção social tradicionais, re-
força-se ou criam-se sistemas altamente
As reformulações da proteção social na
fragmentados que deixam de fora do
atualidade apóiam-se nas críticas tanto âmbito da proteção social um contingen-
aos formatos tradicionais de proteção
te significativo da população, que não
social quanto ao formato proposto pelos
podendo aceder ao mercado para satis-
técnicos de inspiração neoliberal. Os
fazer suas necessidades sociais (educa-
principais alvos de crítica do tradicional
ção, saúde, aposentadorias etc.) acaba
modelo de proteção social concentram-se
sem alternativa no atual modelo propos-
na busca por assegurar os riscos coleti-
to.
vos, na solidariedade intra/entre classes,
na participação direta do Estado na ad- Estas idéias-guia fazem parte de uma
ministração e arbitragem dos conflitos, proposta de reforma maior vinculada à
no financiamento bi/tripartite e na parti- própria dinâmica da sociedade capitalis-
cipação dos trabalhadores no controle ta; portanto, como afirma Harvey, ‚certos
das estruturas de proteção social. processos sociais dominantes promovem
e se apóiam em certas concepções de jus-
Por sua vez, as políticas sociais neolibe-
tiça e de direitos, contestar esses direitos
rais, implementadas nos anos 1980 e particulares é contestar os processos so-
, Vitória, v. 2, n. 1, p. 133-149, jan./jun. 2010
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Alejandra Patorini Corletto

ciais a que são inerentes‛ (2008, p. 193). eficiencia, residualismo y cidadania


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