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(P-078)

O SACRIFÍCIO DE THORA

Autor
KURT BRAND

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O computador-regente convida Rhodan
para um contato pessoal — na verdade, trama
mais um golpe.

Apesar dos repetidos esforços, Perry Rhodan não conseguiu que a


ducha celular do planeta Peregrino fosse aplicada a Crest e Thora. As
experiências neste sentido produziram resultados negativos, pois o
fisiotron não reagia às vibrações orgânicas dos dois arcônidas.
É bem verdade que, há algum tempo, John Marshall e Laury
Marten conseguiram, numa missão perigosa, trazer de Tolimon uma
ampola de soro prolongador da vida... Mas agora, um processo de
decadência tem início no organismo da arcônida, fazendo com que a
droga não produza o efeito desejado...
Aí, então, começa o sacrifício de Thora!

======== Personagens Principais: = = = = = = =


Thora — Conhecida como a boa alma do Império Solar.
Dr. Villnoess — Chefe da Divisão de Hematologia da Clínica
Terrana de Vênus.
General Conrad Deringhouse — Um homem que tem uma missão
a cumprir em Árcon.
Tenente Hendrik Olavson — O talento astronáutico.
Taa-rell — Comandante de Mutral, um planeta fortificado dos
arcônidas.
Ishy Matsu — A jovem telepata.
Perry Rhodan — Será que este homem saberá resistir ao golpe do
destino?
1

O Dr. Villnoess, chefe da Divisão de Hematologia da Clínica Terrana de Port Vênus,


examinou mais um resultado de análise. Lançou um olhar aborrecido para a pilha de
documentos que tinha à sua direita. O maçante trabalho de rotina obrigava-o todos os dias
a abandonar seus laboratórios, e transformar-se num burocrata. O Dr. Villnoess contava
apenas trinta anos de idade. Ainda era muito jovem, quando foi investido nas funções de
chefe da Divisão de Hematologia da Clínica Terrana de Vênus. Muitos colegas tinham-
lhe inveja. Acontece que Villnoess era um dos dez melhores hematólogos do Império
Solar. Graças às suas intensivas atividades de pesquisa, granjeara fama em virtude de
suas descobertas pioneiras no terreno da hematologia. No momento, essas descobertas
estavam sendo submetidas ao teste dos exames clínicos.
Segundo a rotina, extraiu apenas os dados mais importantes do resultado de análise
que tinha à sua frente.

Doença hiperplástica do sistema e LC, tipo F Árcon.


Irreversível.
Tentativas 453 LS/ara falhou.
Expectativa de vida: zero.

Era o núcleo do resultado da análise, e Villnoess esteve a ponto de assiná-lo para


colocá-lo na pilha dos documentos liquidados, quando alguma coisa o fez estremecer.
“Tipo F Árcon”, pensou.
Quem poderia ser o paciente para o qual esse resultado representava uma sentença
de morte?
Era Thora, a esposa de Rhodan!
Villnoess leu a meia voz:
— LC tipo F Árcon.
Depois de respirar profundamente, prosseguiu:
— Tentativa LS/ara falhou.
A sigla LC significava linfocarcinoma, ou seja, um tumor maligno numa glândula
linfática. A letra F indicava o grau de periculosidade da moléstia cancerosa. A palavra
Árcon não significava apenas ser o paciente um arcônida, mas ainda de se tratar de um
tumor que representava um mistério até mesmo para os médicos galácticos, que ainda não
haviam descoberto qualquer remédio contra tal doença.
O Dr. Villnoess enxugou a testa molhada de suor.
Ele, que até então sempre confiara nos diagnósticos dos colegas, sentiu-se tomado
de uma espécie de pânico que o fez desconfiar de sua capacidade de avaliação.
Num gesto apressado, ligou o interfone.
— Peço que os senhores Gonder, Iltar e Vandenbourg compareçam imediatamente à
minha presença.
Dali a pouco, os três médicos entraram juntos. O médico-chefe ainda segurava o
resultado da análise do sangue de Thora.
Nem sequer convidou os colegas a sentarem-se. Ele mesmo não agüentou ficar na
cadeira giratória, que ficava atrás de sua escrivaninha.
— Senhor Iltar — começou em tom hesitante — não pretendo lançar dúvidas sobre
o resultado de seu diagnóstico, mas... — calou-se, sacudiu a cabeça e largou o resultado
da análise. Lançou um olhar indagador para os três colegas.
Acenaram com a cabeça. Compreendiam o chefe, mas não souberam responder à
sua muda indagação.
Finalmente, Villnoess, o médico-chefe decidiu-se:
— Senhores, não posso transmitir este resultado a Perry Rhodan! Como acham que
vou fazer uma coisa destas?
Agora o Dr. Iltar, responsável pelo resultado escrito, não poderia deixar de
pronunciar-se sobre a pergunta do chefe.
— Chefe, compreendemos perfeitamente. Também não gostamos de acreditar nisso,
mas infelizmente a situação é precisamente esta. Dona Thora é uma arcônida, e o tumor
da glândula linfática é um carcinoma arcônida maligno do tipo F. Há cerca de duas horas,
o laboratório de cancerologia de Terrânia confirmou por via telegráfica que, tal qual
acontece em todo aumento numérico dos glóbulos brancos, os granulócitos e monócitos
entraram no sangue na proporção de 5:100. Face a esse resultado, a possibilidade de erro
de diagnóstico é bastante reduzida. Apesar disso...
O Dr. Villnoess recostou-se à escrivaninha. O “apesar disso” e a pausa que se seguiu
a estas palavras não anunciava nada de bom.
— Apesar disso o quê? — pergunto Villnoess em tom áspero. — Fale logo.
— Chefe, há algum tempo, o soro revitalizante dos aras do planeta de Tolimon foi
injetado em dona Thora. O senhor deve estar lembrado de que numa ação arriscada John
Marshall e Laury Marten conseguiram apoderar-se de pequena quantidade desse soro.
— Sim; e daí? — perguntou Villnoess em tom insistente.
Não queria enxergar a ligação entre esses fatos e a doença de Thora, mas no seu
íntimo pensava:
“Tomara que não seja isso! Tomara que não seja!”
O Dr. Iltar prosseguiu em tom hesitante.
— O laboratório de cancerologia de Terrânia manifestou a suspeita de que o tumor F
Árcon tenha surgido em virtude da aplicação do soro, já que alguns dos granulócitos
alterados se assemelham àquela substância misteriosa e não identificada que entra na
composição do elixir.
— Iltar! — o médico-chefe teve de esforçar-se para não perder o autocontrole.
— Quem manifestou essa suspeita? E a pessoa que emitiu esse pronunciamento já
sabe que o paciente é a esposa de Perry Rhodan?
— Foi o professor Eric Manoli, chefe.
Não houve necessidade de responder à última pergunta.
O médico-chefe, Dr. Villnoess, repetiu com a voz rouca:
— O professor Manoli é um dos mais antigos colaboradores de Perry Rhodan. A
ducha celular, que lhe foi aplicada no planeta Peregrino, fez com que se conservasse
jovem. O professor é a maior autoridade no terreno da hematologia. Se Manoli
manifestou uma suspeita, podemos supor que, depois de uma série de investigações mais
de talhadas, essa suspeita venha a transformar-se em realidade.
O médico-chefe respirou pesadamente e passou a mão pela testa.
— Será que devo informar Perry Rhodan de que, naquela oportunidade, não foi
injetado nenhum soro revitalizante nas veias de sua esposa, mas um veneno que provoca
o câncer? Iltar, faça o favor de chamar a central. Preciso falar imediatamente com o
professor Manoli. Acho que ele está em Terrânia, ou não?
A ligação audiovisual só foi completada dali a trinta minutos.
O rosto expressivo e intelectualizado surgiu na tela que se encontrava à frente de
Villnoess. Manoli falava com a voz calma quase indiferente. Removeu as objeções
formuladas pelo médico-chefe da clínica terrana, recorrendo a seu saber fenomenal sobre
todas as facetas da doença mortífera.
— Não se pode dizer que o soro revitalizante dos aras do planeta Tolimon seja um
veneno, Villnoess. Todos os arcônidas têm uma predisposição para a leucemia. Ainda não
sei se isso constitui uma manifestação de degenerescência, ou se representa a resistência
natural do corpo às tentativas de não permitir que a morte se aproxime. Não gosto de
pensar que os dias de Thora estejam contados, pois sei perfeitamente que Perry Rhodan
ama apaixonadamente a esposa, muito embora esta tenha envelhecido repentinamente.
“No entanto, cada coisa tem duas faces, colega Villnoess. A semelhança entre a
substância encontrada no medicamento dos aras e aquela revelada durante a moléstia do
tipo F Árcon fez com que passasse a raciocinar que os soros revitalizantes dos arcônidas
provavelmente funcionam com base num processo dirigido de proliferação. Não acha que
é um aspecto bem interessante, colega?”
Pela primeira vez, depois de se ter tornado médico, Villnoess deu-se conta
plenamente do que vem a ser um pesquisador. As palavras do professor constituíam uma
representação viva nesse sentido. Enquanto ele ainda lutava com a indagação de como
informar Perry Rhodan de que sua mulher morreria em breve, o professor já havia feito
uma pesquisa interessante.
Tal atitude não representava nenhuma blasfêmia. Manoli encarava a morte sob o
ponto de vista de que morrer é apenas uma outra forma de viver.
Uma vez concluída a palestra entre os dois especialistas, o Dr. Villnoess sentiu-se
mais aliviado. Mas, ao refletir sobre a maneira de formular a notícia a ser transmitida a
Perry Rhodan, administrador do Império solar, as velhas dúvidas voltaram a surgir.
Fez três tentativas de redigir um relato em que vibrasse um pouco de sentimento
humano, mas acabou por elaborar um texto que resumia os fatos. Não mencionou a
suspeita manifestada pelo professor Manoli.
Durante sua palestra com Manoli, soubera que Perry Rhodan se encontrava no
planeta Fera Cinzenta, de onde dirigia a missão de observação dirigida contra os druufs.
A mensagem codificada chegou a Perry Rhodan por meio da gigantesca estação de hiper-
rádio de Terrânia, e através de três cruzadores pesados estacionados no espaço, que
serviam de estações retransmissoras.
Rhodan fez um esforço sobre-humano para bloquear sua mente. Naquele instante,
nenhum telepata conseguiria ler seus pensamentos. Não queria que ninguém tivesse
possibilidade de acompanhar sua dor, seu desespero e sua revolta impotente contra o
destino.
Apesar da enorme carga psicológica, Perry Rhodan, administrador do Império Solar,
que criara a gigantesca organização com a força de sua personalidade, conseguiu levar a
bom termo a conferência em que se encontrava.
Dali a três horas, chegou a mensagem vinda do planeta Fera Cinzenta, pela qual
Perry Rhodan confirmou ter recebido a triste notícia. Mais uma vez, a transmissão foi
realizada através de estações retransmissoras instaladas em naves espaciais, a fim de que
Árcon não tivesse possibilidade de valer-se da radiogoniometria para descobrir a posição
da Terra.
O Dr. Villnoess não se espantou ao saber que o chefe, nome pelo qual Rhodan
geralmente era conhecido, não entrou em contato com ele. Seria preferível realizar esse
contato com o professor Manoli.
Menos de vinte e quatro horas, tempo de Vênus, depois desses fatos, o médico-chefe
Villnoess teve de interromper a rotina de trabalho e sair do laboratório antes da hora.
Foi avisado de que o General Deringhouse queria falar-lhe.
Largou imediatamente o trabalho. Sabia quem era o general, e quem o mandara a
Port Vênus.
Conrad Deringhouse, um homem alto e meio magro, fitou o médico-chefe com uma
expressão séria, enquanto este, sentado à frente do general, procurava explicar as
características da doença da senhora Thora Rhodan ao homem não entendido em
medicina.
O cabelo de Deringhouse apresentava o corte típico de militar. As sardas reforçavam
seu aspecto juvenil. O processo natural de envelhecimento foi detido por sessenta e dois
anos, por meio da ducha celular aplicada no planeta artificial Peregrino. Os arcônidas
Thora e Crest, porém, não tiveram permissão de usar o fisiotron, muito embora Perry
Rhodan tivesse feito tudo para que também eles recebessem o presente maravilhoso do
prolongamento da vida pelo espaço de seis decênios.
O Dr. Villnoess concluiu seu relatório. O General Deringhouse fitou-o com uma
expressão pensativa.
— Doutor, se eu o entendi corretamente, supõe-se que a doença incurável de dona
Thora foi provocada pelo soro dos aras do planeta de Tolimon. E é nisso que não consigo
acreditar. Afinal, os médicos galácticos...
Villnoess interrompeu-o abruptamente.
— Já sei o que vai dizer, general. Cabe-me informá-lo de que os médicos galácticos
vêem-se tão impotentes diante do carcinoma F Árcon quanto nós. E nós, os terranos, só
conhecemos o F Árcon por meio da literatura especializada dos aras. Dentro de nosso
arsenal de doenças...
Deringhouse inclinou-se para a frente e perguntou em tom de curiosidade:
— Dentro de quê? — essa pergunta representava uma reação bastante visível à
expressão “arsenal de doenças”, usada nos círculos clínicos.
Villnoess não deixou que a interrupção o perturbasse.
— Arsenal de doenças é uma expressão corriqueira no âmbito da medicina. Mas
voltando ao assunto: desde sua permanência no Império Solar, dona Thora está exposta a
um risco bem maior que seu patrício Crest. Só constatamos esse fato por ocasião do
último exame de sangue realizado em dona Thora. Seria extenuante explicar, general,
todos os fatos que levam a esta conclusão arrasadora. Pediria que não insistisse nesse
ponto. O resultado final é bastante trágico. E a esperança de que os médicos galácticos
possuam um remédio, ou conheçam um capaz de eliminar os efeitos mortíferos do
linfocarcinoma F Árcon, seria puramente ilusória.
“Faz cerca de vinte dias que a maior autoridade dos médicos galácticos no terreno
dos reflexos da meninge, o Dr. Uut-Cin, morreu de carcinoma F Árcon. O senhor pode
confiar na exatidão desta notícia, inclusive no que diz respeito à causa mortis de Uut-
Cin.”
Os dois homens fitaram-se em silêncio.
— Doutor, como poderei transmitir esta notícia ao chefe? Estou a caminho de Fera
Cinzenta, e Rhodan me incumbiu de fazer uma parada em Vênus, a fim de falar com o
senhor. Villnoess... — o General Conrad Deringhouse levantou-se de um salto e
caminhou nervosamente de um lado para o outro.
Este homem, que sabia conservar o sangue-frio, mesmo nas missões mais perigosas,
temia o momento em que se veria diante do chefe, para cumprir a triste tarefa de informá-
lo de que não havia nenhuma esperança para sua esposa.
Deringhouse acompanhara de perto a lenta aproximação humana entre a arcônida
Thora, uma mulher dotada de beleza quase irreal, e Perry Rhodan, o idealizador da
Terceira Potência e criador do Império Solar, que acabaram formando um excelente casal.
Acontece que Perry Rhodan obteve no fisiotron do misterioso planeta artificial
Peregrino a ducha celular prolongadora da vida, que deteve o processo de
envelhecimento. Já em Thora, esse processo iniciou-se de repente, e só podia ser detido
por pouco tempo pelos soros e medicamentos dos homens e dos aras.
Rhodan fizera tudo que estava a seu alcance, a fim de evitar que Thora fosse
atingida pelo triste destino de transformar-se numa mulher velha, enquanto ele
conservava o vigor e a juventude.
Nenhum dos remédios que foram dados a Thora no correr do tempo teve um efeito
duradouro. Todos agiam por um tempo muito mais curto do que os médicos esperavam.
Tornava-se cada vez mais evidente que o organismo de Thora mobilizava todos os
elementos ativos para lutar contra esses preparados.
Sua natureza opunha-se à intervenção.
Subitamente, há três meses, Thora transformou-se numa mulher velha.
Constatou o fato ao amanhecer, antes de encontrar-se com Perry. Na mesa de café,
falaram sobre o assunto. Ela sorriu e sua mão passou sobre a mão de Perry, num gesto de
ternura.
Havia lágrimas em seus olhos, mas sua boca sorria. E, quando segurou a cabeça de
seu homem, fitando-lhe o rosto com seus grandes olhos e infinitamente belos, disse:
— Perry, não posso chorar, pois isso seria um absurdo... Afinal, a seu lado, vivi uma
vida feliz. Não quero esquecer-me de você...
E despediu-se dele.
No mesmo dia, uma nave a levou a Vênus, onde procurou seu bangalô denominado
Árcon, situado a dois mil metros de altura, ao pé da cordilheira de Valta.
Três meses já se haviam passado desde então, e de uma mulher que envelhecia
rapidamente, Thora se transformara numa pessoa acometida de uma enfermidade mortal.
Fazia vinte e quatro horas, tempo de Vênus, que o exame de sangue revelara esse
resultado arrasador.
E agora, o General Deringhouse corria nervosamente de um lado para outro, no
gabinete do médico-chefe Villnoess. Com as mãos cruzadas às costas, aquele general
intimorato tinha medo de apresentar-se ao chefe e dizer-lhe: “Perry Rhodan, sua esposa
não tem salvação.”
— Doutor — Deringhouse parou à frente de Villnoess. — Rhodan também é apenas
um ser humano. Não é uma estátua ou qualquer outra coisa sem vida. Como direi a ele?
Dê-me um conselho.
— Ele já sabe — respondeu o Dr. Villnoess. — Ontem falou com o professor
Manoli.
— Sim, já sabe! — exclamou Deringhouse em tom nervoso. — Mas será que o
senhor não pode imaginar que Rhodan não queira acreditar? Afinal, continua sendo o
marido dela. E Thora é sua esposa. Ele a ama. É pena que o senhor nunca teve
oportunidade de ver como os dois viviam numa bela harmonia. Thora! Sim, Thora, a
arcônida, a mulher que já foi orgulhosa, altiva e reservada, a princesa de uma velha
estirpe de Árcon, ela se transformou na boa alma do Império Solar.
“Quero dizer-lhe uma coisa que pouca gente sabe. Thora guiou nosso chefe, e isso
não por meio de exigências, muito menos por meio de acusações ou recriminações. Ela
simplesmente o conduziu pelo fato de ter sido sua mulher, de ele ter encontrado a seu
lado a felicidade com que sonhava.
“E agora o senhor me diz que tudo isso chegou ao fim? Justamente agora, que o
destino de nosso minúsculo sistema está por um fio?
“Dr. Villnoess, deve haver um meio contra o tal do carcinoma F Árcon!”
O médico-chefe da Divisão de Hematologia interrompeu o general. Ainda
impressionado pelas palavras do oficial, disse em tom deprimido:
— General, morrer é apenas um outro modo de viver.
— É só isso que o senhor tem a me dizer? — perguntou Deringhouse em tom
áspero, para logo em seguida prosseguir: — Doutor, não posso acusá-lo de nada, mas...
— General, no caso de Thora Rhodan não existe nenhum mas...
— Pois então, responda-me: quanto tempo de vida ainda terá a esposa de Perry
Rhodan?
— General, hoje é o dia 4 de outubro de 2.043.
Respirou profundamente.
— A senhora Thora não chegará a ver a primavera de 2.044.
— Quer dizer que terá seis meses?
— Talvez.
— Será que posso visitar dona Thora? Ou existe algum motivo que nos impeça de
voarmos para o bangalô Árcon?
O médico-chefe refletiu ligeiramente.
— Não quero infundir falsas esperanças no senhor ou no administrador, mas tanto
eu como meus colegas somos de opinião de que se deveria confiar uma missão
importante a dona Thora, a fim de que ela não passe, num estado de letargia e desespero
mudo, os últimos meses de sua vida, antes que tenha início o processo de rápida
decadência orgânica.
Deringhouse fumava nervosamente.
— Como devo interpretar essa sugestão, doutor? Será que uma tarefa importante faz
com que um ser humano da raça dos arcônidas mobilize tantas forças que a morte poderá
chegar de repente?
— Neste ponto, não existe a menor diferença entre os homens e os arcônidas,
general. De qualquer maneira, prefiro dar resposta negativa a seu pedido de visitar dona
Thora. O senhor está a caminho de Fera Cinzenta, general. Se na volta passar novamente
por Vênus, traga uma missão importante para dona Thora. Posso garantir que, com isso,
recuperará a vontade de viver...
— Dona Thora ainda não sabe qual é sua doença? — perguntou Deringhouse.
— Sabe desde hoje de manhã. Ela telefonou e...
— E o senhor... Doutor, não é possível! — mais uma vez era o militar que falava,
mas Villnoess não se deixou intimidar.
— Não quis assumir a responsabilidade de pregar uma mentira piedosa para privar
dona Thora do pouquinho de vontade de viver, que ainda lhe resta. Thora sabe que sofre
da doença F Árcon.
— Doutor, eu seria capaz de... — Deringhouse, geralmente tão controlado, fez um
gesto nervoso com o braço.
“Meu Deus”, pensou o médico-chefe. “Como este general deve estimar a esposa de
Perry Rhodan, para deixar-se arrastar a um gesto destes!”
Não se assustou com o movimento, que parecia ser o prenuncio de um soco, pois
compreendia as reações humanas.
— General — respondeu Villnoess. — Desde hoje de manhã, dona Thora está
convencida de que o soro prolongador da vida, que lhe foi aplicado, só deixou de
produzir seus efeitos em virtude do tumor. O senhor compreende o efeito psicológico
dessa maneira de ver as coisas?
Refletiu, depois continuou:
— Para uma mulher, sempre é mais fácil aceitar o fato de que envelhece em virtude
de uma doença do que pela incapacidade de seu organismo reagir aos preparados
biológicos. Peço-lhe que apresente esta ponderação ao administrador.
— E eu lhe peço que procure entender minha reação e minhas recriminações. Está
bem, doutor?
Quando se viu novamente a sós em seu gabinete, o médico-chefe rememorou o
diálogo.
Admirava o General Conrad Deringhouse e compreendia a fibra dos homens que
Perry Rhodan reunira em torno de si. Eram homens sinceros, homens que possuíam suas
virtudes, mas também tinham defeitos. Assumiam a responsabilidade dos seus erros com
uma franqueza que impunha respeito a qualquer pessoa.
Villnoess afastou-se da escrivaninha e dirigiu-se à janela.
O ambiente estava mergulhado no “cinzento”. Até mesmo as cores mais vivas
empalideciam atrás da cerração.
— Até parece uma mortalha — disse Villnoess.
Respirava com dificuldade.
2

O general Deringhouse acabara de livrar-se da triste missão.


Perry Rhodan deu-lhe as costas. No recinto reinava um silêncio acabrunhador, que
parecia pesar sobre os ombros de Deringhouse, como uma carga cujo peso aumenta
constantemente.
O diálogo mantido com o médico-chefe da Divisão de Hematologia da Clínica
Terrana de Vênus fora transmitido quase textualmente ao administrador. Se havia alguém
que tinha o direito de saber tudo, este alguém era Perry Rhodan, o marido de Thora.
De repente, Rhodan disse:
— Faça o favor de me deixar só, Deringhouse. Daqui a uma hora nos encontraremos
para discutir a situação. Fico-lhe muito grato.
Mal a porta se fechou atrás do general, Rhodan entrou em contato com a central de
comunicação audiovisual.
— Transmita a Mr. Bell todas as ligações destinadas a mim. Não quero ser
incomodado.
Fera Cinzenta, o sétimo planeta de Mirta, um sistema que contava um total de
quarenta e nove planetas, era uma base do Império Solar, cujo poderio aumentava a cada
dia. Bilhões já haviam sido investidos no planeta, a fim de transformar este mundo numa
fortaleza armada até os dentes, instalada nas proximidades da frente de superposição
entre o Universo einsteiniano e o dos druufs.
Para Rhodan, esse mundo — situado a apenas vinte e dois anos-luz da zona de
passagem, onde as duas dimensões temporais se sobrepunham e o funil de compensação
energética ia estabilizando-se — representava o principal trampolim para a ação que se
esboçava.
No momento não tinha nada a fazer senão esperar. A seu favor trabalhavam as frotas
de guerra arcônidas e as naves dos druufs, que travavam batalhas encarniçadas nas
proximidades e no interior da frente de superposição.
Ambas as partes que, ao que parecia, se igualavam em forças, registraram pesadas
perdas materiais, mas estas eram compensadas instantaneamente pelas reservas. Nem os
arcônidas nem os druufs viram nada de alarmante nas suas perdas, pois tinham onde
buscar novas unidades.
Mas naquele momento em que Deringhouse lhe confirmou aquilo que o professor
Manoli já dera a entender por ocasião da última palestra, Perry Rhodan não pensou nas
mortíferas batalhas espaciais, nem na situação do planeta.
Seu pensamento estava no planeta Vênus. Diante dos olhos de sua mente, surgiu a
cordilheira de Valta, e o bangalô Árcon.
— Thora...
Estendeu as mãos, entrelaçou os dedos e abaixou a cabeça. Sentado nessa posição, o
homem poderoso do Império Solar queixava-se do destino.
Chamou pela esposa. Sentiu-se cada vez mais tentado a seguir a voz interior que lhe
dizia: “Deixe tudo de lado...”
O homem vinha à tona em Perry Rhodan, o homem desesperado que não se
conformava com o fato de viver por decênios sem envelhecer, enquanto sua esposa era
tragada pela terrível enfermidade.
— Thomas... Thomas!
Viu o rosto de seu filho, o rosto de Thomas Cardif, que tinha vinte e três anos. O
rosto do filho de Thora.
Acontece que o filho se voltara contra o pai — o filho que crescera com o nome
Cardif e só pouco depois dos exames finais que lhe conferiram o grau de tenente da Frota
Espacial Solar soube que Perry e Thora Rhodan eram seus pais. Seu filho ainda não lhe
perdoara por ter sido privado do amor dos pais nos primeiros anos de vida.
— Thomas, meu filho... — balbuciou. Gostaria de ter o filho perto de si, para que
juntos procurassem uma maneira de despedirem-se da mãe e da esposa.
Mas a imagem do filho desvaneceu-se com rapidez da mente de Perry Rhodan.
Procurou trazê-la de volta, mas não conseguiu. Naquele momento, o homem que
corporificava o poderio do Império Solar sentiu-se ainda mais oprimido, pois não contava
com a amizade do filho.
De todos os lados, o sentimento de solidão investia contra ele. A tentação de
abandonar tudo e voar para Vênus, a fim de que Thora não ficasse só nos últimos meses
de vida, essa tentação não ameaçava abalá-lo, mas parecia fazê-lo desmoronar, a ele,
Perry Rhodan, o ídolo de bilhões de seres humanos.
— Sir...! — a voz familiar do chefe da estação de hipercomunicação de Fera
Cinzenta fê-lo retornar à realidade.
— Pois não — disse em tom automático, levantou a cabeça e viu um rosto
conhecido.
— Sir, há dez minutos a estação vem captando uma mensagem do computador-
regente. Avisei Mr. Bell, mas ele me pediu que falasse com o senhor.
“Obrigado, Bell”, pensou Rhodan ao ouvir estas palavras.
Mais uma vez percebeu quanto vale ter um amigo.
Bell devia ter imaginado, sabido ou sentido o que se passava com ele. Talvez
Deringhouse lhe tivesse contado. E aquele procedimento era típico de Bell.
— Sir — disse o chefe da estação de hipercomunicação, enquanto os pensamentos
de Rhodan vagavam ao longe. — O texto da mensagem é o seguinte: “Solicito
comparecimento pessoal.” Esta mensagem é repetida de dez em dez minutos na faixa do
cérebro positrônico e não menciona destinatário nem remetente. Será que é dirigida ao
senhor? Bell acredita que seja.
— Obrigado — respondeu Rhodan, e ficou perplexo ao perceber que sua voz não
perdera o tom familiar. — Já esperava esta mensagem. Não há necessidade de responder.
Desligo.
O dia-a-dia voltara a apoderar-se dele. Os problemas pessoais teriam de ser
colocados em segundo plano. No Império Solar havia uma pessoa que compreendia seus
atos: Thora, sua esposa!
Enquanto fazia a ligação para seu representante Reginald Bell, pensou em sua
mulher.
— Bell, Deringhouse está aí? — perguntou.
— Está. Quer falar com ele?
— Quero falar com vocês dois. Venham para discutirmos a situação.
Quando se viu novamente diante do chefe, Deringhouse espantou-se com o
autocontrole do mesmo. Só as rugas — um tanto acentuadas — de seu rosto revelavam o
esforço que tinha de fazer.
Com um gesto, convidou-os a sentarem-se.
— Bell, você já está informado, mas Deringhouse não — fitou o general, que
aguçou o ouvido.
Sempre que a voz de Perry Rhodan apresentava esse tom metálico, uma missão
perigosa estava iminente.
— Deringhouse, em fins de setembro, manifestei perante o computador-regente de
Árcon o desejo de adquirir cem naves esféricas arcônidas...
— Adquirir...! — exclamou Bell em tom insolente. — Quando o ouço falar assim,
lembro-me de como você adquiriu nossa Titan. Naquela oportunidade, Gucky não usou a
palavra grosseira roubar?
Perry Rhodan sabia o que estava acontecendo na mente do amigo. A observação
galhofeira tinha por fim arrancá-lo do estado de tensão em que se encontrava.
Rhodan aceitou a insinuação de Bell.
— Escute, gorducho — respondeu. Esse tratamento familiar não tinha nada de
extraordinário, mesmo na presença de um general. — Estou perfeitamente lembrado de
que naquela oportunidade foi você quem usou esse tom. E agora você há de se lembrar
das condições em que a Titan nos foi “entregue” pelo cérebro positrônico.
Bell ainda não estava disposto a bater em retirada.
— Desculpe minha alusão, Perry, mas seu plano de “adquirir” cem naves esféricas
de Árcon obrigou-me a pensar na aquisição da Titan. Não pagamos nada por ela. Ou será
que pagamos?
A risada de Deringhouse provava que por ocasião da “compra” da Titan surgiram
certos trâmites pouco usuais nesse ramo de negócios. O general fez um gesto de
assentimento para Bell.
— O.K., Bell — disse Perry Rhodan e voltou a dirigir-se a Deringhouse. — Não
pretendo comprar cem naves de Árcon. O pagamento não será um argumento válido para
o cérebro gigante. Acho que podemos aproveitar a situação surgida junto à área de
superposição. Face à sua programação, o cérebro positrônico não pode compreender a
existência de um plano einsteiniano e de um plano dos druufs, além do fenômeno
representado pela área de superposição. Por isso, minha proposta de celebrarmos um
pacto armado contra os druufs será mais atraente. Pelo seu rosto concluo que deve ter
alguma objeção.
A resposta do general foi proferida em tom sarcástico:
— Na minha opinião, o demônio seria um parceiro mais honesto que o cérebro
positrônico de Árcon. O computador já cumpriu um tratado que seja, chefe?
A resposta de Rhodan parecia contornar a questão.
— Quero adquirir dez supercouraçados da classe Império, com mil e quinhentos
metros de diâmetro, vinte couraçados de quinhentos metros, trinta cruzadores pesados de
duzentos metros e quarenta cruzadores leves da classe Estado.
“Não precisa arregalar os olhos, Deringhouse. Afinal, uma frota de cem naves
desses tipos não representa nada para o Grande Império. Além disso, não nos devemos
esquecer de que o cérebro positrônico deve estar convencido de que, se concluir o
negócio, praticamente apenas emprestará as naves. Está convencido de que um dia as terá
de volta, logo que conquistar o Império Solar.
“O cérebro positrônico não pode agir de outra forma, pois foi programado para isso.
Muitas vezes cometemos o erro de ver algo de vivo nessa gigantesca máquina, porque ela
pensa, extrai conclusões lógicas, não erra nas suas decisões. Isso impõe a nós homens,
que somos dotados de certo instinto de honestidade, a impressão de estarmos lidando com
um sócio. O que acontece é justamente o contrário!
“O pior inimigo que temos na Galáxia é o computador gigante de Árcon, já que ele
foi programado para ver todas as coisas exclusivamente pela perspectiva arcônida, e
utilizar todos os meios para garantir a existência do Grande Império. Ninguém introduziu
qualquer elemento ético no cérebro positrônico.
“A oferta do Império Solar, de celebrar um tratado com Árcon, também será
examinada sob essa tendência fundamental. Eu nunca seria capaz de assumir um
comportamento tão traiçoeiro com uma criatura inteligente, seja qual for seu aspecto.
Porém já me desacostumei de sentir escrúpulos para esse cérebro.”
Deringhouse ficou muito satisfeito. O ponto de vista do chefe deixou-o feliz. Exibiu
um sorriso matreiro, mas seu rosto logo voltou a tornar-se sério.
— Quer dizer que eu...?
O gesto de Perry Rhodan disse tudo.
— O.K., chefe, farei o que estiver a meu alcance para comprar as cem naves de
Árcon. Mas gostaria de formular mais uma sugestão.
— Pois não, Deringhouse — respondeu Rhodan em tom solícito.
— Bem, chefe... — disse o general. Via-se que não se sentia muito à vontade. —
Chefe, minha sugestão... Bem, ela se refere a... Bem, meu vôo para Árcon III não poderia
dar ensejo a uma tarefa para sua esposa, que afinal é uma princesa arcônida?
— Nem pense nisso; em hipótese alguma! — respondeu Rhodan em tom áspero e
empalideceu assustadoramente.
— Foi apenas uma sugestão, Sir — disse Deringhouse a título de desculpas e, no seu
íntimo, praguejou contra a idéia.
Mas Reginald Bell não se manteve em silêncio.
Lançou um ataque frontal contra o amigo, o que constituía um procedimento típico
dele.
— Desde quando você passou a ser egoísta, Perry? — perguntou laconicamente e
lançou-lhe um olhar de desafio.
A pergunta tocou-lhe profundamente.
— Não! — decidiu Rhodan, cerrou o punho e bateu na escrivaninha com tamanha
força que fez as canetas dançarem.
Reginald Bell não se perturbou com isso. Em sua opinião, a idéia de Deringhouse
era excelente.
— Hum... afinal, isso é um dos meios de livrar-se da esposa — atreveu-se Bell a
dizer face a face ao amigo.
Naquele momento, Deringhouse estaria disposto a sacrificar seu posto de general, se
lhe permitissem sair o mais depressa possível.
— Mister Bell...
Perry Rhodan proferiu esse tratamento formal em voz muito baixa, mas Bell berrou:
— Vá para o inferno com seu Mister Bell, Perry!
Este “Perry” foi proferido em tom tão honesto, tão estimulante, tão compreensivo
pelo amigo. E os braços erguidos, que se estendiam em direção a Rhodan, pareciam falar
ainda mais claramente: “Perry, velho amigo, pense um pouco!”
Mas Perry Rhodan não quis ver nem ouvir nada. A terrível acusação de Bell ainda
lhe soava no ouvido:
— ...um dos meios de livrar-se da esposa... Repita, Bell!
Perry Rhodan esteve a ponto de levantar-se, mas Bell foi mais rápido. Com um
salto, colocou-se à frente do amigo.
— Falei como amigo, Perry Rhodan. Era meu dever dizê-lo dessa forma. Ninguém
mais poderia fazê-lo, mesmo que quisesse. Deringhouse poderá dar uma passada por
Vênus e levará sua esposa até Árcon.
Será que você já se esqueceu de que Árcon continua a ser seu mundo?
Bell colocara a mão sobre o ombro de Perry e baixara os olhos sobre ele. Sorria,
mas os olhos continuavam sérios. Fitava-o numa atitude de expectativa.
— Bell, a acusação que você acaba de formular contra mim...
Bell não deixou que Rhodan concluísse.
— Ora, isso é a “terapia do choque”, meu caro. Será que você ainda não me
conhece, Perry?
Rhodan levantou-se. Bell ficou parado, à espera do que estava por vir.
Rhodan foi à janela e olhou para fora. Reginald Bell seguiu-o com os olhos.
Esquecera-se da presença de Deringhouse.
O general pigarreou e procurou encontrar uma maneira de dar o fora.
— Fique aqui, Deringhouse — disse Bell. — Quero pedir-lhe que repita o que o Dr.
Villnoess lhe disse a respeito de Thora. Houve uma alusão a uma tarefa de grande
responsabilidade...
Naquele instante, Rhodan virou-se para eles. Seu rosto se descontraíra, e a boca
nitidamente traçada já não parecia tão rígida.
— Você tem razão, Bell — fez um gesto para o amigo e dirigiu-se a Deringhouse:
— Passe por Vênus e leve minha esposa. Quando o senhor chegar ao bangalô Árcon, ela
já estará informada sobre sua chegada.
Antes disso, visite o Dr. Villnoess e exponha-lhe a natureza da tarefa, que deverá ser
confiada a minha esposa. Ele resolverá se Thora chegará a rever Árcon. Deringhouse,
minha esposa...
Num gesto impulsivo, Perry Rhodan, administrador do Império Solar, estendeu a
mão para seu general. Quando este a segurou, disse:
— Não poderia encontrar melhor amigo que o senhor.
Bell, que investira contra Perry com seu método baseado em marretadas, não
conseguiu reprimir a emoção. Naquele momento, admirava Rhodan.
Com uma única frase dirigida a Deringhouse, Perry dissera mais do que se consegue
exprimir em mil frases.
— Sir — começou o general em tom emocionado. — Fico satisfeito porque o
senhor me confiou esta missão.
— Ainda temos de discutir nosso plano de ação, Deringhouse. Devemos convencer
o cérebro positrônico de que nossa proposta de aliança vale mais que cem naves espaciais
do último tipo. Atlan e eu pensamos o seguinte...
O videofone acendeu-se e transmitiu a notícia de que todos os dirigentes haviam
comparecido para discutir a situação. A seguir, Perry Rhodan dispensou seu general.
Os dois amigos ficaram a sós.
Fitaram-se; não precisaram de palavras para compreender-se. Durante toda a vida,
os dois nunca se sentiram tão próximos como naquele instante.
Sua velha amizade acabara de ser submetida à prova mais dura.
— Vamos — disse Rhodan depois de algum tempo.
O dia-a-dia com seus compromissos e decisões voltou a dominá-los.
Quando surgiu ao lado de Bell, diante de mais de trinta colaboradores, o
administrador não deu a perceber o que acabara de passar-se. Iniciou os debates com uma
precisão inimitável, sem recorrer a apontamentos escritos. Em frases lacônicas apresentou
os pontos nevrálgicos da situação, surgidos nas últimas vinte e quatro horas.
Nessa mesma hora, Deringhouse iniciava o vôo para Vênus.
3

O planador preparava-se para pousar à frente do bangalô Árcon.


A construção alongada, pintada em cores claras, adaptava-se perfeitamente à
paisagem da encosta que se erguia atrás dela, subindo numa altura de quatro mil metros e
terminando num pico de rocha.
A Cordilheira de Valta era formada por gigantescas pedras, fileiras de vulcões ativos
e as nuvens de fumaça que, nos dias de calmaria como aquele, se erguiam tal qual velas
para o excelente ar de Vênus.
O bangalô ficava a dois mil metros de altura. Era uma altitude que na Terra não seria
muito agradável, mas que nesse mundo era ideal, tanto que na construção de sanatórios
costumava-se escolher, sempre que possível, um lugar situado nessa faixa.
O planador pousou suavemente.
O terraço ficava trinta metros adiante.
Estava vazio, embora o dia fosse lindo.
A selva fora “empurrada” para trás, num raio de quinhentos metros.
As grades energéticas invisíveis protegiam os parques, que se estendiam em torno
do bangalô, contra os monstros venusianos, muito abundantes na fauna planetária.
O General Conrad Deringhouse apenas viu um robô junto ao amplo terraço. A
máquina dirigiu suas lentes sobre ele e aproximou-se com seus passos típicos.
Aquele homem mecânico não era inteiramente inofensivo, mas só costumava
demonstrar suas forças depois de realizados diversos controles, pois sua principal missão
consistia em resguardar a vida de Thora contra qualquer perigo.
Tal qual todos os membros da Frota Espacial Terrana, também Deringhouse estava
familiarizado com o trato dos robôs.
Indicou seu número de identificação. No mesmo instante, o robô consultou seu
banco de dados e obteve a informação de que o visitante poderia passar. Enquanto sua
voz quase humana proferia a permissão, os últimos controles, liberados por seu sistema
de lentes, foram postos a funcionar. Antes que desse o primeiro passo em direção à casa,
Deringhouse foi submetido a dezessete exames diferentes.
As grandes portas de vidro estavam fechadas. Não havia uma única janela aberta. O
bangalô parecia uma casa abandonada... abandonada na beleza selvática das montanhas
de Vênus.
Assim que Deringhouse se aproximou da primeira porta, esta abriu-se, deixando-o
passar.
Conhecia o lugar, pois, nos últimos anos, estivera ali várias vezes como convidado
de Thora e Perry Rhodan.
O solário, profusamente iluminado, abriu-se diante dele como um abismo deserto.
Mais uma vez, teve a impressão de estar penetrando numa casa desabitada. Deringhouse
olhou em torno e não conseguiu evitar um ligeiro calafrio.
Atrás do solário, ficava a sala de visitas, decorada pessoalmente por Thora,
conforme seu gosto. Dali resultará uma combinação harmoniosa entre a cultura
habitacional dos arcônidas e o estilo terrano.
Deringhouse bateu à porta da biblioteca. Tinha certeza de que Thora se encontrava
ali.
A biblioteca era seu lugar predileto no interior do bangalô.
Mas ninguém respondeu.
Deringhouse estacou. Subitamente lembrou-se da advertência do médico-chefe:
“General, quando puser os olhos em dona Thora, procure controlar-se.”
Dirigiu-se para a esquerda. Passando por uma escada suspensa, subiu à parte oeste
do bangalô, que ficava num nível dois metros mais elevado.
Enquanto subia pelos degraus à prova de som, sentiu-se deprimido.
Ao sair da escada, o visitante penetrava diretamente num recinto cujas paredes
laterais eram totalmente de vidro.
Naquele instante, quando o General Conrad Deringhouse menos esperava, ele se viu
à frente de Thora!
“Mas seria esta a esposa de Perry Rhodan?”, pensou, interrogando-se.
Uma voz vinda de seu interior gritou para Deringhouse: “General, procure
controlar-se quando puser os olhos em dona Thora.”
— O senhor, Deringhouse?!
Ouviu a voz, e reconheceu a pessoa.
Aproximou-se lentamente de uma anciã de rosto murcho e pequeno, entrecortado
por milhares de rugas. Os lábios pálidos e ressequidos como o resto do rosto esforçaram-
se para sorrir. Uma mão encarquilhada, coberta por uma pele que antes parecia
pergaminho, estendeu-se em sua direção.
“Meu Deus”, pensou Deringhouse, antes abalado que apavorado, enquanto se
abaixava para beijar a mão da esposa do administrador. “Há seis meses esta senhora
ainda era uma jovem e bela mulher.”
— Que bom que veio visitar-me, Deringhouse. Faça o favor de sentar-se.
Deringhouse teve a impressão de que o ligeiro movimento de braço custava um
esforço excessivo àquela mulher.
Nem sequer conseguiu esboçar um sorriso convencional.
Sentiu que a situação o deixava muito inseguro.
Será que, ao contrário do que fora combinado, Perry Rhodan não avisara a esposa de
que o general a visitaria?
— Ah, sim — disse Thora. — Meu marido me prometeu uma surpresa. Acho que
existe alguma ligação com sua visita. O que é mesmo, Deringhouse?
Neste instante, Thora sofreu uma modificação espantosa. A palidez do rosto e das
mãos começou a ceder lugar às cores naturais. As pequenas rugas em seu rosto
diminuíam a cada segundo que se passava. Parecia rejuvenescer, e os belos olhos de
arcônida mostravam-se através de um ligeiro brilho, que entusiasmou Deringhouse,
apesar da insegurança que o mesmo sentia.
Num tom de arrojo quase juvenil, provocado pelas alterações favoráveis que vira
naquela mulher, disse:
— Dona Thora, vim para levá-la para Árcon III. O chefe é de opinião que a senhora
é a pessoa mais indicada para fechar a compra de cem naves com o computador-regente...
Deringhouse sabia pilotar um caça com a mesma facilidade que dirigia um
couraçado da classe Império. Não se tornara general em virtude das boas relações que
mantinha com Rhodan, mas à custa de um trabalho árduo. Era muito versado em todas as
áreas do saber, menos na psicologia feminina, onde costumava ser desajeitado.
Mas nessa hora agira, sem que o soubesse, com uma habilidade que teria causado
inveja a muitos psicólogos, se pudessem ouvir de que maneira transmitiu o recado. O tom
franco e convincente, o sorriso no rosto sardento e os amáveis acenos de cabeça
reforçaram as palavras.
— Quer que eu vá a Árcon?
“Será que Thora se deu conta de que proferira estas palavras em sua língua
materna?”, pensou de modo interrogativo.
A excitação, que tomou conta da mente de Thora, voltou a transformá-la na mulher
jovem, bela e fascinante, que costumava ficar ao lado de Perry Rhodan, merecendo a
admiração de bilhões de seres humanos.
Também para esta hipótese o médico-chefe Villnoess lhe ministrara instruções.
“— General, tenha cuidado para que dona Thora execute sua missão num estado
de tranqüilidade interior. Não se esqueça de que está muito esgotada, e que qualquer
emoção pode representar um grave perigo.”
Lembrando-se disso, Deringhouse prosseguiu com uma habilidade instintiva.
— Dona Thora, a viagem para Árcon e especialmente as negociações com o
computador-regente não serão nada fáceis. Permite que lhe relate ligeiramente de que
maneira seu esposo...
Thora sacudiu a cabeça e colocou a mão no braço de Deringhouse.
— Uma tarefa para mim! Deringhouse, o senhor nem imagina o que isso significa!
Riu como uma moça e logo disse a Deringhouse como se sentia.
— Neste minuto já não me sinto cansada. Consigo mover os braços sem o menor
esforço. Acho que nem preciso chamar Ishy para levantar-me. Poderia oferecer-me o
braço, general?
Este último pedido, proferido em tom de gracejo, tinha um fundo sério. O general
tentou ajudá-la...
— Não, obrigada, não preciso de auxílio.
Logo se pôs de pé. Levantou-se com suas próprias forças, como qualquer outra
pessoa costuma fazer.
— Queira dar-me o braço, general!
Já não o chamou de Deringhouse como antes fizera. Enfatizou a palavra general, e
seus olhos sorriam.
Deringhouse ofereceu o braço a Thora. E ela caminhou a seu lado, leve, segura... e
orgulhosa:
— Deringhouse...
Nunca se dirigira a ele de maneira tão íntima. Ele a fitou de lado e mais uma vez
sentiu-se dominado pela sensação de insegurança.
Desceram pela escada suspensa. Os degraus não representavam qualquer problema
para Thora, que falava enquanto descia.
— Acho que só uma vez me senti tão feliz como hoje. Foi quando soube a quem
pertencia meu coração. É uma pena que Perry não esteja aqui. Se não tiver mais
oportunidade de dizer-lhe, pessoalmente, nesse caso, Deringhouse, transmita-lhe cada
palavra, diga-lhe como me senti forte e... feliz. Quem morre feliz tem uma bela morte.
“Por que estremeceu? Porque falei em morrer? Muito bem; irei a Árcon com o
senhor?”
Deringhouse apressou-se em responder à última pergunta.
— Isso mesmo, dona Thora. Pegaremos a Burma, um cruzador ligeiro da classe
Estado.
Pararam na biblioteca. A mão de Thora descansava levemente no braço de
Deringhouse. Thora fitou-o.
— Durante este vôo o senhor não terá necessidade de mentir para mim,
Deringhouse. Conhece um certo Dr. Villnoess?
Deringhouse apenas conseguiu acenar com a cabeça.
— Pois eu também conheço. E ele me falou num carcinoma F Árcon, que é um tipo
especial de câncer, que ataca apenas os arcônidas. Mas vejo pelo seu rosto que já sabe de
tudo. Não há necessidade de mentir em relação a meu estado. Oh!
Uma porta abriu-se sem o menor ruído, e subitamente viram a graciosa telepata
japonesa Ishy Matsu.
Ishy sorriu.
— Dona Thora!
A telepata leu os pensamentos da arcônida e, ao notar a transformação daquela
mulher marcada pela morte, quase ficou fora de si. Não reprimiu seus sentimentos.
Embora as palavras proferidas em japonês não fossem entendidas, nelas se sentia uma
alegria tão forte que ninguém poderia deixar de percebê-la.
— Deringhouse, quando decolaremos?
A mutante, que não se atreveu a ler os pensamentos do general, lançou-lhe um olhar
de perplexidade. Deringhouse sorriu.
— Amanhã, de Terrânia. E você — fez um gesto em direção a Ishy Matsu — você
acompanhará dona Thora, Ishy.
Quem se lembrasse dos tempos em que Thora era apenas uma arcônida orgulhosa e
arrogante, para a qual os homens não passavam de bárbaros, não poderia deixar de
reconhecer que ela se transformara numa mulher adorável, libertando-se da presunção e
de outros vícios do caráter.
— É claro que Ishy irá comigo, Deringhouse. Permita-lhe que lhe apresente minha
amiga...
Quando viu a mutante, jovem e graciosa, enrubescer de alegria e embaraço,
enquanto fazia uma mesura à sua frente, Thora conseguiu soltar uma gostosa gargalhada.
O general passou uma hora conversando com a esposa do chefe, enquanto nos
outros aposentos se preparava a bagagem de Thora.
4

A nave Burma, um cruzador da classe Estado, com cem metros de diâmetro e


tripulação completa de cento e cinqüenta homens, estava pronta para decolar do grande
espaçoporto de Terrânia. Uma única comporta continuava aberta, à espera de que o
General Deringhouse subisse a bordo. Seria o último. Já havia um atraso de trinta
minutos em relação à hora da decolagem anteriormente fixada, atraso este que tornara
inútil a programação para o primeiro salto do cruzador ligeiro.
Deringhouse, que já se encontrava a caminho da Burma, teve de voltar em virtude
de um chamado. Naquele momento, estava frente a frente com Freyt.
Diante deles, encontrava-se uma mensagem que havia sido concebida em termos
bastante lacônicos e assinada por Perry Rhodan.

Não voe diretamente para Árcon. Emergir na


frente de bloqueio e entrar em contato com o cérebro
positrônico a partir dali. Código Garyloon 010
Árcon.
Rhodan.

Fazia poucos segundos que Deringhouse voltara a colocar a mensagem sobre a


mesa. Agora olhava pensativamente para um canto. O Marechal Freyt, representante de
Rhodan na Terra, pigarreou.
Deringhouse lançou-lhe um olhar indagador.
— O que acha, Deringhouse? — perguntou o marechal.
Aqueles dois homens sabiam o que pensar um do outro. O general poderia falar com
toda franqueza. Apesar disso hesitou.
As instruções surpreendentes de Rhodan deixaram-no preocupado; além disso, não
entendia a finalidade das mesmas. Se Thora não estivesse a bordo, estas não lhe dariam
tanto a pensar. Mas agora todas as circunstâncias pesavam o dobro.
— Será Thora? — perguntou Freyt em tom lacônico.
Deringhouse não se mostrou mais loquaz que seu interlocutor.
— Entre outras coisas — disse.
— É a frente de bloqueio? Ou a ordem em si?
— O senhor o compreende, marechal? Pois eu não compreendo...
Naquele instante, um cruzador ligeiro caiu sobre o espaçoporto de Terrânia. As
massas de ar chicoteadas trovejaram atrás da nave como se dez furacões desabassem
simultaneamente sobre a capital do Império Solar.
O marechal e o general fitaram-se.
Pela maneira de pousar concluíram sobre a identidade do piloto. Entre os milhares
de membros da Frota Espacial só havia um que, vez por outra, não podia deixar de pousar
dessa forma. Era Reginald Bell, chamado oficiosamente de Belly, fato que em nada
afetava sua autoridade.
No mesmo instante, ouviu-se o estalo do videofone. Antes que a imagem se
estabilizasse na tela, uma voz começou a trovejar:
— Freyt, Deringhouse ainda está aí?
— Sim senhor.
— Peça-lhe que me espere. Não demorarei. Desligo.
Freyt virou-se para o lado e num instante entrou em contato com o setor de
vigilância espacial.
— Aqui fala Freyt. Os senhores sabem de que planeta veio Mr. Bell?
— De Fera Cinzenta, marechal.
— Obrigado.
— Hum.
Foi este o único comentário de Deringhouse. Depois puseram-se a esperar. Já
estavam acostumados. Afinal, eram militares.
Reginald Bell penetrou no gabinete do Marechal Freyt, usando a mesma
impetuosidade com que pousara o cruzador ligeiro.
— Foi o chefe quem me mandou.
Acomodou-se na poltrona.
— O senhor se dirigirá às imediações da área de superposição, Deringhouse. O
computador-regente voltou a chamar. Insiste em que Perry Rhodan entre, de lá, em
contato com ele. Logo, antes de iniciar o salto em direção a Árcon, chame o regente pelo
hiper-rádio. Já conhece o código. Face a isso, o grande cérebro não poderá deixar de
admiti-lo como plenipotenciário de Rhodan. Mas não foi por causa destas bagatelas que
realizei este salto forçado para a Terra.
“Deringhouse, o computador-regente de Árcon nunca inspirou muita confiança.
Nem mesmo Rhodan desconfia da “estima toda especial” que nutre por ele; acho que
Atlan também não sabe. Nestas últimas vinte e quatro horas, este monstro calculista
efetuou várias mudanças repentinas em seu comportamento.
“A grande estação de Fera Cinzenta conseguiu interceptar pouco mais de cem
mensagens do cérebro positrônico. Graças ao Serviço de Defesa Solar, tornou-se possível
decifrá-las. Alguma coisa deve estar quebrada na gigantesca máquina, ou então esta se vê
no maior dos apertos. Não existe outra explicação para sua conduta. São ordens,
revogações de ordens, a restauração das ordens revogadas, e assim por diante. Quase
chego a ter pena dos robôs arcônidas pela tremenda confusão que o cérebro vem criando
há várias horas. Evidentemente os druufs notaram que há algo de errado na frente de
bloqueio e apareceram com uma gigantesca frota espacial. Por isso, é de recear que,
dentro de algumas horas, os druufs consigam romper as linhas e destruir a frente de trás.
Bem, senhores, isto é uma coisa; vamos a outro ponto.
“Até que a situação na frente se estabilize um pouco, o tráfego entre Fera Cinzenta e
o sistema solar deve ficar suspenso. Qualquer mensagem de rádio só poderá ser expedida
com autorização escrita do senhor, marechal. Provavelmente, essa suspensão será por
uma questão de horas.
“Deringhouse, o senhor deve estar preparado. É bem possível que o cérebro
positrônico aceite sua oferta, apenas para rejeitá-la no momento seguinte. O senhor é
responsável pelo estado de saúde de dona Thora. Não a exponha demais, mas não a deixe
perceber que o senhor a protege.
“Não o invejo nem um pouco, general. Mas vamos ao motivo que me trouxe à Terra,
Deringhouse. Em Fera Cinzenta captamos a mensagem de um agente. Infelizmente saiu
mutilada. Veio de Aralon.”
Surpresos, Deringhouse e Freyt exclamaram a uma voz:
— De Aralon?
Aralon era o mundo central dos aras, os médicos galácticos. Esse povo de
descendência arcônida era, em relação ao número, o mais poderoso do Grande Império e
o único que produzia medicamentos.
Todo um povo transformara sua disposição natural, para a descoberta dos enigmas
ligados às doenças, num negócio bastante lucrativo; durante milênios vendeu seus
medicamentos a todos os mundos conhecidos da Galáxia em troca de moeda sonante.
Não se podia condenar seu ponto-de-vista, embora este não se harmonizasse com a ética
dos médicos terranos. A fim de não expor seu negócio a qualquer risco, os aras chegaram
mesmo a tomar todas as providências para que as epidemias e as infecções generalizadas
nunca terminassem.
Por várias vezes Perry Rhodan usara mão de ferro para conter nos devidos limites a
esperteza excessiva dos médicos galácticos, que nem em mil anos se esqueceriam das
lições que então haviam recebido. Apesar disso, porém, a desconfiança dos homens face
aos aras continuou latente e inextinguível.
— Aralon! — repetiu Bell em tom zangado, sem procurar dissimular o que sentia
por esse mundo. — A mensagem representa um problema, por estar mutilada. É possível
que em Fera Cinzenta já estejamos vendo fantasmas, mas Perry Rhodan... bem, vocês
conhecem o chefe! Ele está convencido de que essa mensagem expedida pelo agente de
Aralon tem alguma relação com nossa visita a Árcon. Vejam a mensagem.
Esta era formada por quatro palavras, mas só uma delas estava completa.
...chiru... coman... encef... Árcon...
Subitamente Deringhouse sentiu calor.
— Sir — disse em tom exaltado. — Nestes últimos dias recebi algumas aulas de
medicina. E encef... é a “palavra” científica para cérebro.
Fez um movimento súbito com o ombro, como se quisesse sacudir-se.
— Não sei dizer por que tenho tanta certeza de que esta mensagem vai ter alguma
relação com o vôo da Burma. Tenho a impressão de que a gigantesca máquina positrônica
está tramando uma baixeza.
Deve tratar-se de lavagem cerebral ou coisa que o valha. Prossigo no meu
raciocínio.
“O cérebro positrônico exige que nos dirijamos à frente de bloqueio e de lá nos
anunciemos previamente. Ainda não sabe que irei no lugar de Perry Rhodan. Isso elimina
o perigo de sermos destruídos, ao sairmos do hiperespaço, mas em nada reduz o perigo de
sermos atingidos. Mais tarde não será difícil explicar a destruição de uma nave terrana
por meio de uma seqüência de coincidências infelizes. Até lá nossa tripulação estará
morta, enquanto as pessoas mais importantes que se acham a bordo se encontrarão sãs e
salvas, a caminho de Árcon, onde serão submetidas à lavagem cerebral.
“E Thora está a bordo!”
Com esta frase Deringhouse concluiu seu raciocínio.
Fitava alternadamente Reginald Bell e Freyt.
— O senhor sabe ler pensamentos, Deringhouse? — perguntou Bell.
— Não; por quê? — respondeu o general em tom de surpresa.
— Porque Perry Rhodan chegou à mesma conclusão ao ler a mensagem mutilada.
— E o vôo para Árcon com Thora a bordo continua de pé?
— Rhodan confia no senhor, general.
— Obrigado! — respondeu Deringhouse.
Mas o olhar que lançou para Bell dizia muito mais.
— Pois é, general — disse Bell, levantando-se e caminhando pela sala. — Hoje de
manhã queimei a língua com Perry Rhodan. Sei perfeitamente o que significa esse olhar.
Fiz a mesma ponderação a Rhodan. Sabe o que ele me respondeu?
— Respondeu o seguinte: “Deringhouse e a Burma não enfrentarão o menor
perigo, nem exporão Thora a qualquer risco. Não consigo ser egoísta a ponto de
explicar a minha esposa de que sua tarefa foi cancelada porque envolve certos riscos.
‘“Não quero recriminar-me pelo resto da vida por tê-la tirado impiedosamente de
uma condição eufórica, deixando-a num estado de profunda letargia. Se não dispusesse
de um homem como Deringhouse, não teria outra alternativa. Acontece que tenho este
homem, e por isso estou disposto a não retardar a decolagem da Burma.’”
— E agora, General Deringhouse? — falou Bell, lançando-lhe um olhar indagador.
O general também se levantou.
— Quando estamos informados sobre o perigo que nos espera, isso perde a maior
parte de sua periculosidade, Sir. Tomara que este postulado, que já se tornou proverbial,
também tenha aplicação no presente caso. Pois bem! A Burma decolará daqui a pouco.
— Boa sorte! — desejou Reginald Bell, aparentemente deprimido.
— Tudo de bom, Deringhouse! — gritou Freyt.
Os dois homens viram-se a sós. E então aconteceu uma coisa que não ocorrera há
anos. Bell e Freyt foram à janela e assistiram à decolagem da Burma, que mergulhou no
céu azul com uma aceleração extraordinária.
— Faites votres jeux — disse Bell. As palavras seguintes representavam uma mostra
do que se passava em seu interior: — Por que não fui à Burma para apertar mais uma vez
a mão de Thora? Sou um covarde...
Preferiram não olhar um para o outro. Só agora tiveram plena consciência do que
representava Thora para os habitantes do planeta Terra. Justamente agora, que não havia a
menor esperança de revê-la.
Antes que compreendesse o que estava dizendo, Freyt perguntou a Reginald Bell:
— O rapaz já foi informado, Sir?
Reginald Bell virou-se apressadamente.
Seus olhos chamejavam de cólera. Cerrou o punho.
— Quer saber por que não foi, Freyt? Pois eu lhe digo. Porque esse garoto ainda se
recusa a ouvir o pai. Em todo o Império Solar só existe um sujeito obstinado que tem a
audácia de dizer a Rhodan: “Vá para o inferno, não quero vê-lo nunca mais.” E esta
pessoa é justamente seu próprio filho. Mais alguma pergunta, marechal? — indagou em
tom áspero.
— Não senhor! — disse Freyt e esteve a ponto de fazer continência.
— Ora! Deixe isso para lá, Freyt! Meus nervos se descontrolam toda vez que me
lembro do que esse Tenente Thomas Cardif se atreveu a dizer-me. E o que não deve ter
jogado no rosto do pai? Bem, vamos mudar de assunto. Preciso voltar para Fera Cinzenta.
Até a próxima, Freyt.
— Até outra vez, Sir — disse o marechal, e logo se viu só.
5

Joe Pasgin, imediato da nave Burma, já começava a preocupar-se com a demora de


Deringhouse, quando o general entrou na sala de comando do cruzador ligeiro e parou em
atitude pensativa à frente da grande tela de imagem, que estava desligada.
— Faça o favor de pilotar a nave, Pasgin — disse sem virar-se. — E é bom que
saiba logo da novidade. O primeiro destino da Burma será a frente de bloqueio das naves
arcônidas junto à área de superposição.
Joe Pasgin estava prestes a pôr a mão na chave sincronizada. Parou em meio ao
movimento e manteve-se imóvel por algum tempo. As outras pessoas que se encontravam
na sala de comando também interromperam o que estavam fazendo. Todos lançavam
olhares indagadores, perplexos e espantados para o general.
Conrad Deringhouse estava de costas para os homens. Nem mesmo os olhares que
acreditava sentir pousados em suas costas, poderiam fazer com que se voltasse.
— Pasgin, quem é o oficial de armas?
— Big Alden, general. Veio da Titan, onde teve a seu cargo as duas peças de
artilharia do pólo.
— Já é uma pequena vantagem para todos nós. Aliás, a tripulação está completa?
— Está.
— Pois vamos embora, Pasgin. Poderei ser encontrado no meu camarote.
Virou-se e cumprimentou cada um dos homens com um gesto. Um sorriso ligeiro
brincava em torno de seus lábios. E esse sorriso fez bem aos que ali se encontravam.
Assim que retirou-se, a conversa começou a animar-se no interior da sala de
comando.
— Vai ser uma viagem e tanta...
— Tomara que Big Alden seja o número um da Bruma... com este armamento
fraco... e olhem que não gosto de entrar num traje espacial...
— Acontece que dona Thora está a bordo — ponderou outra pessoa. — Não é
possível que... Céus, estrelas e bólidos, nem me lembrava da frente de bloqueio!
Joe Pasgin fitou todos os homens. Também estava preocupado. A volta que teriam
de fazer para passar pela frente de bloqueio antes de chegarem a Árcon não fazia prever
nada de bom. O general dera a perceber que, durante essa missão, teriam de contar com
todas as eventualidades.
Mas a ordem de decolar que Deringhouse acabara de transmitir removeu todas as
preocupações. Teriam de agir.
— Decolagem dentro de cinco minutos! — soou o comando de Pasgin.
Hendrik Olavson ocupava a poltrona do co-piloto. Era um elemento recém-saído da
Academia Espacial, logo promovido ao posto de co-piloto. Pasgin já realizara três vôos
espaciais a seu lado, e sempre mantivera o jovem tenente sob rigorosa observação.
Depois da primeira viagem concluiu que a poltrona de co-piloto não era o lugar certo
para Olavson...
Seu lugar era a poltrona de comando de uma nave da classe Império. Hendrik
Olavson e a nave espacial não eram duas coisas, o homem e a técnica. Olavson e a nave
formavam uma unidade.
Hendrik Olavson possuía um talento natural para tudo que se relacionasse com a
pilotagem de uma nave. Se essa tarefa exigia uma boa dose de concentração de qualquer
outra pessoa, ele a executava como se estivesse brincando.
— Encarregue-se da decolagem, Olavson — disse Joe Pasgin em tom indiferente.
Com um ligeiro sorriso, acrescentou: — Deixe Terrânia de pé.
Hendrik Olavson aceitou de bom grado a brincadeira do imediato. Compreendeu a
alusão de Pasgin. A Burma era uma nave de cem metros de diâmetro e cento e cinqüenta
tripulantes. Sua capacidade de aceleração era tremenda. Gastava apenas cinco minutos
para atingir a velocidade da luz. Era claro que diante dos conjuntos propulsores
superpotentes da nave, que ficavam entre os dos cruzadores pesados e os dos veículos
espaciais da classe Solar, todos os outros equipamentos, que já eram considerados
corriqueiros, tiveram de ser sacrificados, inclusive na parte do armamento.
As naves da classe Estado não eram unidades ofensivas. Eram naves de
reconhecimento de longo curso. Graças ao armamento pouco poderoso, só poderiam
realizar ataques fulminantes e destrutivos, desferindo seus golpes de surpresa, já que sua
aceleração inacreditável lhes permitia desaparecer com extrema rapidez.
O novo neutralizador de vibrações não permitia que as transições fossem detectadas
por meio do novo goniômetro de compensação dos arcônidas. Possuíam uma verdadeira
arma secreta, de natureza defensiva, que era o transmissor fictício de matéria. Mas este só
podia ser utilizado caso existisse outra estação. Além disso, seu alcance era bastante
limitado.
As enormes máquinas da Burma começaram a uivar. Os motores, já aquecidos,
foram regulados para a aceleração máxima. Olavson tirou a mão da chave mestra.
Seu trabalho estava concluído. O resto seria feito pelo dispositivo automático, mas
as respectivas instruções lhe haviam sido transmitidas pelo piloto. A partir daquele
momento, em que a nave se erguia ruidosamente, cada processo era a continuação
harmoniosa do anterior.
A potência dos neutralizadores de pressão foi aumentada automaticamente, a fim de
compensar o aumento vertiginoso da gravitação. Apesar da aceleração tresloucada, que
para essa nave era apenas normal, a gravidade no interior da Burma permaneceu
constante. Mas a cortina de som tornou evidente a todos que a Burma não era outra coisa
senão um gigantesco parque de máquinas comprimido no interior de uma esfera que, mal
e mal, oferecia lugar para que a tripulação de cento e cinqüenta homens pudesse viver e
respirar.
No camarote de Deringhouse e nos demais foi dado o aviso:
— Transição dentro de três minutos.
O general saiu correndo. Estava preocupado com Thora.
Tinha de apressar-se para não ser surpreendido pelo salto a meio caminho, pois o
camarote de dona Thora ficava do lado oposto da nave, e dois conveses abaixo do seu.
Quando se viu à frente de sua porta, faltavam trinta e cinco segundos para o
momento do salto.
Anunciou sua presença, mas em vez de Thora, o rosto de Ishy Matsu surgiu na
pequena tela.
— General? Faça o favor — disse a mutante designada por Rhodan para fazer
companhia permanente a sua esposa.
Deringhouse entrou apressadamente. Estacou na porta.
— Deringhouse, sente-se logo — exclamou Thora em tom exaltado.
Sob a luz suave reinante no camarote seu lindo cabelo voltara a brilhar como
naqueles tempos em que era considerada a bela esposa de Rhodan.
Apontou para a poltrona. Assim que o general tomou lugar, seguiu-se o choque da
transição.
A Burma saiu do hiperespaço. Deringhouse contorceu-se ligeiramente sob os efeitos
da dor da rematerialização, mas Thora não demonstrou qualquer tipo de reação. Parecia
que nem sentira o hipersalto.
A telepata pequena e graciosa mantinha-se nos fundos do camarote. Deringhouse
não dissimulou o espanto que lhe causava o ótimo aspecto de Thora. Parecia irradiar
saúde. Até dava a impressão de estar passando por um processo regressivo de
rejuvenescimento. O general gostaria de acreditar nisso, mas lembrou-se da advertência
do Dr. Villnoess:
“— Quanto mais saudável for o aspecto de dona Thora, mais doente estará. Isso
não passará de um último esforço do organismo, que reúne todas as reservas de energia,
como uma espécie de bruxulear da chama da vida. De qualquer maneira, não podemos
dizer como e de que forma surgirá a morte.”
Deringhouse esteve a ponto de iniciar um diálogo, mas o sistema de
intercomunicação cortou-lhe a palavra.
No momento em que soaram as primeiras palavras saídas do alto-falante, a imagem
da tela assumia contornos estáveis.
— O chefe deseja falar com a senhora, dona Thora! — disse o oficial de plantão no
setor de rádio.
Deringhouse ficou surpreso.
“Rhodan quer falar com a esposa?”, pensou Deringhouse surpreso.
Lembrou-se das inúmeras possibilidades de detectar a presença de uma
hipermensagem, que poderia inutilizar, de um instante para outro, todo o dispositivo da
camuflagem que envolvia o planeta Fera Cinzenta; ou então, o regente de Árcon já estava
sabendo que, quem estava a caminho, era Thora de Zoltral, e não Perry Rhodan.
Subitamente a imagem da tela parou de tremer.
O rosto marcante de Rhodan surgiu nítido.
A teleobjetiva embutida no próprio quadro da tela transmitia-lhe a imagem da
esposa.
Antes que o general pudesse vencer a surpresa causada pelo riso descontraído, leve,
quase juvenil do chefe, ouviu o administrador do Império Solar dizer à esposa:
— É uma pena, Thora, que não possamos fazer a viagem juntos. Até breve, Thora!
— Perry! — exclamou Thora, mas Perry Rhodan já não podia ouvi-la.
A transmissão de hiper-rádio vinda das profundezas do espaço chegara ao fim. A tela
voltou a adquirir o tom cinzento, e a pequena luz de controle existente sob a objetiva
apagou-se.
Apesar de todas as dúvidas e indagações, o General Deringhouse riu e olhou para
Thora. Conseguiu dar uma expressão matreira à sua risada. Reprimiu a perplexidade que
sentia, e nem deixou que o espanto e as indagações angustiosas de Thora viessem à tona.
— Dona Thora, o erro foi meu — disse, fazendo-se voluntariamente de bode
expiatório. — Demorei demais em fornecer-lhe as informações mais recentes sobre nosso
vôo. Permita que repare a falha, e a senhora logo compreenderá o motivo da surpresa que
seu marido acaba de fazer-lhe.
Informou-a na medida que julgava adequada, recorrendo a três quartas partes de
verdade e um quarto de mentiras, nascidas da compaixão. Não mencionou a mensagem
mutilada do agente que trabalhava no planeta Aralon, e também deixou de mencionar o
vôo-relâmpago de Bell à Terra. Encontrou outros detalhes e colocou Perry Rhodan
discretamente no primeiro plano, motivo por que, por mais desconfiada que fosse, Thora
não haveria de duvidar de seu relato.
— Face a isso, o chefe pensou em incumbir outra pessoa da execução dessa tarefa,
dona Thora, mas logo viu que sua viagem a Árcon não envolve maiores riscos, salvo a
aproximação da frente de bloqueio. Depois combinamos que ele lhe enviaria um ligeiro
cumprimento assim que a situação junto à área de superposição estivesse consolidada.
Sinto muito, dona Thora, mas sou um péssimo regente...
Ao dizer estas palavras esboçou um sorriso, enquanto fazia votos de que o mesmo
não fracassasse e pudesse parecer razoavelmente genuíno.
Subitamente seu olhar resvalou para o lado. Viu a telepata Ishy Matsu de pé, atrás de
Thora.
O rosto da jovem japonesa parecia transformado numa máscara. Lera os
pensamentos do general e compreendera que a Burma voava em direção a uma aventura
extremamente perigosa.
— Deringhouse... — Thora segurou a mão do general entre as suas, e seus olhos de
arcônida brilharam num assomo de alegria e felicidade. — Sei perfeitamente que estou
muito doente, mas há anos não me sinto tão bem disposta como agora... e isso apenas
porque houve algo de errado numa regência... Até breve! Estas simples palavras
transformaram uma mulher velha como eu numa jovem. Já faz muito tempo que não vejo
este riso alegre de menino em Perry. Peço-lhe o favor de me deixar só por algum tempo.
Ishy Matsu e o general saíram. Uma vez no corredor, Deringhouse falou sem papas
na língua.
— Ishy, a senhora leu? — perguntou, dirigindo-se à telepata.
— Li, sim, general; contrariei as ordens...
— Deixe para lá. Quer dizer que já sabe o que nos espera. Sabe que não fazia a
menor idéia de que o chefe iria enviar este cumprimento. Em hipótese alguma, dona
Thora deve desconfiar de que menti. Tome todas as providências para que isso não
aconteça, Ishy, e entre em contato com os três médicos de bordo, a fim de que estes usem
qualquer pretexto e se apresentem a dona Thora para realizar um exame de rotina.
Sentiu o chão arder sob os pés. Sem aguardar resposta, foi apressadamente em
direção ao elevador antigravitacional que o conduziu ao pavimento onde ficava a sala de
comando.
No momento em que entrou na sala de rádio da Burma, o oficial de plantão esteve a
ponto de fazer continência. Mas Deringhouse não deu muita importância à saudação.
— Como foi que a mensagem chegou aqui? — perguntou em tom insistente.
— Pelo distorçor dos swoons, general, com quarenta e cinco mil impulsos por
segundo. Além disso, foi condensada num — virou-se e leu a cifra num instrumento —
num microssegundo.
Deringhouse não se deixou impressionar pelos algarismos.
— De onde veio?
— De um cruzador ligeiro, general. Se nossa medição goniométrica for correta, este
deve ficar a cerca de oitocentos anos-luz de Fera Cinzenta, tomando como referência a
situação em que estamos, distância medida pela coordenada phi, que...
Dirigiu-se à sala de comando. Antes de atravessar a pesada escotilha, parou e
pensou:
“Será que, ao enviar o cumprimento a Thora, Rhodan forçara as coisas, confiando
demais no organismo da esposa, que teve de liberar energias para absorver a alegre
surpresa?”
Apertou o passo, pois teria de mandar suspender os preparativos do terceiro salto.
Joe Pasgin, imediato da Burma, lançou-lhe um olhar indagador.
— Não devemos esquecer-nos de que dona Thora está a bordo, senhores! — estas
palavras foram dirigidas a todos os oficiais que se encontravam na sala de comando. —
Daqui a uma hora os médicos apresentarão o resultado de seu exame e informarão
quantas transições dona Thora ainda poderá agüentar.
Pediu ao imediato que se aproximasse do grande mapa astronáutico.
— Nossa posição é mais ou menos esta, Pasgin. Ali fica a zona de descarga, e o anel
de bloqueio das naves de Árcon atinge esta profundidade. Se os médicos nos impuserem
a restrição de, na medida do possível, evitarmos as transições, desligaremos o
neutralizador de vibrações e nos dirigiremos à zona de superposição em três saltos.
Providencie para que no último não percorramos mais de três anos-luz, pois não tenho o
menor interesse em levar a Burma para dentro de uma formação arcônida.
— Está bem. Mas as naves de Árcon não foram informadas sobre nossa chegada? —
perguntou Pasgin em tom de espanto. Ao que parecia, estava preocupado.
— Espero que sim, mas não nos devemos esquecer das ordens contraditórias que o
computador-regente transmitiu nestas últimas horas.
A sala de rádio chamou em meio à palestra.
— Recebemos uma mensagem da estação retransmissora Omega 17.
De início ouviu-se o ruído típico do condensador e do distorçor. Logo seguiu-se uma
voz sonora que disse apressadamente:
— O computador positrônico acaba de concluir a interpretação das ordens do
regente, esclarecidas pelas observações feitas por nós:
“Reagrupamento total das formações das unidades de Árcon. Ampliar a
profundidade do front de 0,7 anos-luz para três anos-luz. Neste momento, Árcon está
enviando enormes reforços. Naves dos druufs procuram romper nossas linhas nos setores
pantera 76 e 73 A. Em hipótese alguma aproximem-se desses setores. Nos demais setores
reina a calma. Porém em todos os lugares os ataques dos druufs devem ser aguardados de
um momento para outro.”
Ouviu-se um forte estalido. Essa importante notícia fora recebida por meio de
hipermensagem expedida por uma nave esférica do Império Solar que se encontrava bem
longe de Fera Cinzenta. Com isso, a situação foi esclarecida. Deringhouse compreendeu
que o computador-regente de Árcon continuava a agir com a lógica fria de sempre,
motivo por que ainda era o aliado mais perigoso que alguém poderia ter.
Aquilo que Reginald Bell e os outros homens do Império Solar, que se mantinham
como observadores em Fera Cinzenta, ao lado de Perry Rhodan, acreditavam ser uma
série de ordens contraditórias, na realidade constituía um conjunto de lances geniais
concebidos pelo cérebro positrônico, cujo pensamento se baseava exclusivamente na
lógica.
Finalmente receberam o pronunciamento dos médicos de bordo. Estes não possuíam
o enorme saber especializado do Dr. Villnoess, chefe da Divisão de Hematologia da
Clínica Terrana de Vênus. No entanto, foram concordes em concluir que a moléstia de
dona Thora chegara a um estágio perigoso, e que se deveria contar com o pior.
Foram de opinião que os efeitos da transição seriam de importância secundária.
— Realizaremos apenas três saltos até o front! — ordenou Deringhouse.
Apesar do pronunciamento e das recomendações dos médicos, preferiu não assumir
qualquer risco.
— Tomara que não cheguemos lá com uma defunta a bordo — disse Joe Pasgin,
dando a entender que a tarefa, que lhe fora atribuída, não lhe agradava nem um pouco.
Os dados relativos ao salto foram introduzidos no computador da Burma. As mãos
delgadas de Hendrik Olavson bateram nas teclas, realizando a programação. Os controles
múltiplos impediam qualquer possibilidade de erro humano.
A atividade de Olavson não pôs em funcionamento qualquer mecanismo automático
de travamento.
A contagem regressiva do cérebro positrônico começou a funcionar. O sistema de
intercomunicação transmitiu a informação de que o próximo salto estava iminente. Na
sala de comando, o silêncio era quase completo, interrompido apenas por ligeiras
informações.
Deringhouse voltou a certificar-se:
— O neutralizador de vibrações foi desligado?
— Foi, general.
Sem saber, Deringhouse exibiu um sorriso astucioso.
O neutralizador de vibrações, um aparelho criado pelos swoons ou homens-pepino,
representava um obstáculo intransponível aos esforços intensos realizados pelo regente,
que pretendia descobrir a posição galáctica da Terra. O goniômetro de compensação —
construído às escondidas e à custa de esforços gigantescos da imensa indústria arcônida, e
que era capaz de, apesar do compensador estrutural, medir os abalos na estrutura espaço-
temporal, provocados pelas transições — seria considerado obsoleto se o Grande Império
tivesse conhecimento da última inovação da frota terrana.
Não se desejava que o computador-regente, sempre desconfiado graças à sua
programação, soubesse que o goniômetro de compensação não levaria à descoberta da
Terra. Por isso, as naves terranas deixavam que as estações goniométricas de Árcon as
localizasse ao saírem do hiper-espaço, mas isso apenas quando se encontravam a uma boa
distância da Terra.
A Burma realizou dois saltos gigantescos em direção à frente de bloqueio, saltos
estes que abalaram a estrutura do Universo. A nave da classe Estado retornou ao espaço
normal a menos de três anos-luz da retaguarda das formações arcônidas.
Deringhouse, que acompanhara as manobras apenas na qualidade de espectador,
ouviu Joe Pasgin chamar a sala de rádio.
— Envie hipermensagem às formações arcônidas do setor espacial Tigre 46.
Anuncie nossa chegada para daqui a quinze minutos. Transmita a senha, o código, etc.
Pasgin entrou em contato com o oficial de armas da Burma, uma nave cujo
armamento era bastante fraco.
— Alden, entre em estado de rigorosa prontidão. A transição será realizada dentro de
14 minutos e 35 segundos. O salto não provocará nenhum choque sensível nos seus
homens. Só abra fogo por ordem minha.
— Entendido! — respondeu Alden, que se encontrava no posto de combate.
Dez minutos antes do salto, uma ordem atravessou a nave:
— Colocar trajes espaciais.
Assim todos ficaram sabendo que a Burma se precipitava para uma perigosa
aventura.
Seguiu-se a transição ligeira de pouco menos de três anos-luz.
O setor do espaço retratado na grande tela da nave empalideceu. A Burma
desmaterializou-se num tempo zero, durante o qual saltou pelo hiperespaço, para retornar
ao estado anterior, provocando nos homens o choque doloroso.
— Isto é um verdadeiro inferno — constatou Joe Pasgin apavorado.
Via a Burma transformada numa nuvem de gás.
Mas Hendrik Olavson conseguiu algo que dificilmente se acreditaria possível. Fez o
cruzador ligeiro descrever uma curva fechada, levando-o para fora da zona perigosa, onde
os raios mortíferos cruzavam-se.
A Burma formava um só conjunto integrado. Era um cruzador ligeiro com uma
enorme capacidade de aceleração. Seus neutralizadores de pressão eram tão potentes
quanto os conjuntos propulsores.
De repente o uivo das unidades energéticas, dos propulsores e dos neutralizadores
rompeu todos os isolamentos acústicos...
Oito raios disparados por naves de guerra passaram a poucos milhares de
quilômetros da Burma!
Subitamente os campos defensivos da pequena nave começaram a rugir. Duas
imensas cascatas de luz desfizeram-se no negrume do espaço.
— Solicitação de oitenta por cento! — exclamou Joe Pasgin em tom exaltado.
Os campos energéticos mal e mal haviam resistido a essa investida de energia
estranha. Seguiu-se um impacto no setor verde e outro no frontal.
— Sala de rádio! O que houve? Por que estão disparando contra nós? — gritou
Pasgin para dentro do microfone.
Enquanto isso Hendrik Olavson realizou uma manobra violenta, atirando o cruzador
ligeiro para fora da rota.
— A senha está sendo transmitida ininterruptamente — respondeu a voz trovejante
vinda do alto-falante.
Deringhouse olhou por cima do ombro do oficial incumbido do rastreamento.
Três gigantescas naves da classe Império aproximaram-se velozmente; tratava-se de
naves de 1.500 metros de diâmetro. Seu poder de fogo era tamanho que poderiam
transformar planetas inteiros em sóis. E a Burma só tinha cem metros de diâmetro!
— Cuidado! — berrou Joe Pasgin.
O grito não foi motivado por qualquer ataque das unidades arcônidas. Fora dirigido
ao co-piloto Hendrik Olavson, que não deveria revelar aos arcônidas, por meio das
mudanças de rota que efetuava, qual era a capacidade de aceleração da Burma.
— Ataque do amarelo 43.78...
O resto da mensagem foi engolido por uma tríplice pancada de fogo. Dali em diante,
o cruzador ligeiro devia sua existência exclusivamente ao fato de que o raio de
desintegração apenas atingira o campo defensivo de raspão.
O indicador de solicitação subiu para cem por cento.
Normalmente essa percentagem significaria o desmoronamento do campo defensivo
energético.
Até mesmo Deringhouse, um general que já atravessara várias centenas de situações
catastróficas, sentiu-se nervoso, pois o próprio coração da Burma começou a gritar.
O aparelho indicara uma solicitação de cem por cento. Dali a uma fração de
segundo, essa cifra já não era correta. A Burma soltara um bramido em seu interior e
dirigira todas as energias disponíveis para fora, a fim de levantar outro campo defensivo.
— Sala de rádio! Sala de rádio!
A voz do imediato parecia atropelar-se, enquanto procurava conseguir contato.
Será que o oficial de armas não ouvira o grito? Ou resolvera também gritar naquele
instante?
Sua voz potente foi ouvida na sala de comando:
— Quando virá a ordem de abrir fogo?
Hendrik Olavson, um homem recém- saído da Academia Espacial, sentia-se no seu
elemento. Jogava com a Burma com a mesma facilidade com que o artista toca seu
instrumento. Foi só graças a ele que as pessoas a bordo continuaram vivas. Parecia prever
a direção da qual viriam os ataques e constantemente realizava as mudanças abruptas. E,
dessa maneira, o cruzador saltava de um lugar para o outro, não sendo atingido por
nenhum raio silencioso e mortífero.
Subitamente os homens, que se encontravam no cruzador ligeiro, perceberam que
haviam saltado para dentro da batalha espacial, travada entre as naves robotizadas dos
arcônidas e as unidades dos druufs.
Nas grandes telas da Burma surgiram minúsculos sóis, que se espalhavam
vertiginosamente para todos os lados. No negrume do espaço, sua claridade só se
mantinha por poucos segundos. Depois de espalhar-se, empalideciam e submergiam.
Eram naves de guerra desintegradas pela reação atômica.
— Vamos embora! — gritou Joe Pasgin para o hábil co-piloto.
O jovem oficial confirmou.
— Tigre 32! — respondeu.
A formulação não poderia ter sido mais lacônica. Pretendia retirar a Burma do setor
espacial Tigre 46 e procuraria atingir o setor Tigre 32. Essas designações de setores,
criadas pela Frota Solar, abrangiam toda a área da zona de superposição e das linhas de
bloqueio.
As unidades energéticas e os conversores da Burma rugiram, e o rugido atravessou
todos os isolamentos acústicos que, em virtude da falta de espaço, não possuíam grande
capacidade de absorção de som. Os motores de propulsão, instalados na protuberância
equatorial, expeliram feixes chamejantes de ondas de impulsos. No momento em que
começavam a impelir a nave terrana em direção ao setor Tigre 32, os instrumentos
localizaram três gigantes da classe Império, que se aproximavam em vôo frontal.
— Fomos identificados! Fomos identificados! — disse a voz rouca saída dos alto-
falantes.
O aviso provinha da sala de rádio. E era claro. Hendrik Olavson, que possuía um
talento natural para tudo que dissesse respeito à pilotagem de uma nave espacial, agiu
imediatamente.
Reduziu a potência dos conversores. Diminuiu a produção das unidades energéticas
para um oitavo de seu potencial. No mesmo instante, os neutralizadores começaram a
rugir, para eliminar a pressão resultante da súbita cessação do processo de aceleração.
— Elmes? — gritou Pasgin em tom indagador para o lado em que ficava o
computador positrônico.
Ali um oficial estava de pé, acompanhando os acontecimentos na grande tela.
Este compreendeu o significado da pergunta.
— Banco de dados do computador sem dispositivo de segurança — respondeu.
Um sorriso feroz surgiu no rosto de Deringhouse, que, em pensamento,
homenageava o computador-regente com todas as pragas de astronauta que conhecia. A
ausência do dispositivo de segurança do banco de dados do computador de bordo evitaria
que o Grande Império pudesse descobrir a posição galáctica da Terra, mesmo por um
infeliz acaso. Sem esse dispositivo, ao menor perigo que ameaçasse o cruzador ligeiro
apagar-se-iam todos os dados que poderiam fornecer qualquer indicação sobre o lugar
galático da Terra.
A escotilha da sala de comando abriu-se.
Deringhouse e Joe Pasgin viraram a cabeça.
Ficaram surpresos ao verem Thora.
Em meio ao ruído da escotilha que voltava a fechar-se, ouviu-se a mensagem da sala
de rádio.
— Mensagem da nave robotizada Ig-Dro 34, classe Império. Desvio para... —
seguiu-se uma série de coordenadas, que foram transmitidas simultaneamente ao
computador de bordo. — Os três supercouraçados nos comboiarão. Qual é a resposta?
Com dois passos, Deringhouse colocou-se à frente do microfone.
— Aqui fala Deringhouse! Transfira a ligação para a sala de comando.
A ligação foi estabelecida imediatamente. A imagem na tela estabilizou-se. Nela se
viu o “rosto” cadavérico de um robô arcônida. Antes que o general pudesse dizer uma
palavra, um lampejo ofuscante surgiu a estibordo.
Um couraçado dos druufs conseguiu romper as linhas arcônidas sem que ninguém o
percebesse e pretendia transformar a Burma num sol...
Nenhuma das pessoas que se encontravam na sala de comando conseguiu ver
qualquer coisa. Os três supercouraçados de Árcon agiram no momento em que foi
desfechado o ataque dos druufs. Sob o tremendo poderio de suas armas, a nave de guerra
vinda da outra dimensão temporal dissolveu-se numa nuvem de gases vermelhos.
No entanto, o inimigo conseguira atingir a Burma.
E mais uma vez, graças à ação de Hendrik Olavson, o impacto não foi direto.
O raio absorveu 95 por cento da potência dos campos defensivos. Ficaram faltando
apenas cinco por cento para que a tremenda energia concentrada do disparo atingisse o
revestimento metálico da Burma.
A nuvem de gases, que brilhava numa luminosidade vermelha, desfez-se
rapidamente. O fogo de artifício provocado pelo impacto do raio dos druufs contra a
Burma e os disparos maciços dos três couraçados robotizados de Árcon transformaram
esse setor do espaço num inferno de luz, calor e violência mortífera.
Enquanto ainda lutava contra o ofuscamento, Deringhouse reconheceu na tela o
sistema de lentes do robô-comandante, que o fitava como se fosse uma coisa.
— Sou o General Deringhouse, do Império Solar, e represento Perry Rhodan. Por
que fomos atacados pelas naves arcônidas, muito embora o regente já lhes deva ter
avisado sobre a chegada de uma nave terrana?
A alma de qualquer robô positrônico é formada pelo X, pelo algarismo
desconhecido, pela lógica insensível. Com uma voz metálica, o comandante do
supercouraçado Ig-Dro 34 forneceu seu número de identificação e respondeu:
— A ordem de desmantelar de qualquer maneira o ataque que o inimigo lança em
três frentes, dada pelo regente de Árcon, tem precedência sobre outras instruções, terrano.
Sigam-nos de perto, para que possamos escoltá-los seguramente para fora da zona de
combate.
Ao que parecia, as boas maneiras também não constavam da programação das
máquinas positrônicas de guerra. O comandante-robô desligou. Só agora, Deringhouse
teve tempo para tomar conhecimento da presença de Thora.
— Dona Thora... — principiou em tom violento, enquanto a fitava, mas o espanto
fechou-lhe a boca...
Viu à sua frente a orgulhosa arcônida Thora de Zoltral, e ainda viu tudo que a
mesma já fora para o Grande Império, antes que o cérebro gigante assumisse o governo
de um reino galático decadente. Foi na qualidade de comandante que ela entrou na sala, e
seu aspecto desmentia os diagnósticos dos médicos.
— General, cavalheiros; acho que está na hora de participar ativamente nas
negociações. Por favor, não deixem que minha presença os perturbe.
Com um sorriso no rosto, aproximou-se de Deringhouse. Por mais atentamente que
a observasse com os olhos críticos, não viu o menor sinal de tensão ou cansaço.
Às suas costas Joe Pasgin e Hendrik Olavson cuidavam para que a Burma seguisse
os três couraçados arcônidas da classe Império, a fim de que a cobertura de fogo dos três
gigantes lhes permitissem sair sãos e salvos da zona de batalha, junto à área de
superposição.
Deringhouse ofereceu-lhe a única poltrona desocupada da sala de comando.
Thora agradeceu com um sorriso. Em voz baixa, para que só ele entendesse,
formulou a pergunta:
— Deringhouse, será que realmente estou doente? Quase não consigo acreditar.
Deringhouse lembrou-se de como a encontrara no bangalô situado ao pé da
Cordilheira de Valta, e também se lembrou da séria advertência formulada pelo médico-
chefe Dr. Villnoess. Mas, agora, vendo Thora à sua frente, meditou:
“Não é uma mulher jovem, mas uma dama, que sabe aceitar com uma elegância
inigualável os sinais de velhice pouco perceptíveis.”
Deringhouse não precisou esforçar-se para retribuir o sorriso. As palavras ditas
saíram-lhe do coração:
— Dona Thora, eu a admiro!
A dura realidade destruiu o encanto do momento... A central de rádio chamou:
— O computador-regente quer falar com o senhor, general.
— Faça o favor de transferir a ligação para cá! — ordenou Deringhouse.
Thora colocou a mão em seu braço.
— Não seria conveniente que eu interferisse nas negociações, Deringhouse?
Naquele instante, o general lembrou-se da mensagem mutilada do agente de Aralon,
e foi por um medo inexplicável, sentido em relação a Thora, que respondeu:
— Sob o ponto de vista tático prefiro que a senhora só apareça em Árcon III, dona
Thora. Por favor, afaste-se um pouco para o lado, a fim de que a objetiva não possa
atingi-la.
A tela destinada às mensagens de hiper-rádio começou a iluminar-se.
Como acontecia todas as vezes que se estabelecia uma ligação com o regente,
surgiram em primeiro lugar os perturbadores modelos coloridos, seguidos pela gigantesca
abóbada metálica, que abrigava o elemento principal do conjunto positrônico.
Sem o menor intróito o cérebro perguntou:
— Onde está Rhodan?
Nem tomou conhecimento da presença de Deringhouse.
Este já estava preparado para as “excentricidades” do grande computador.
— Não pôde vir, regente — respondeu o general com o mesmo laconismo. — Senha
Garyloon 010 Árcon!
— O fato de o senhor conhecer a senha não exclui a verificação da identidade de sua
pessoa. Apresente-se em Árcon III.
O general sabia que sua insistência representava mera perda de tempo, pois que seria
dificílimo remover o computador-regente de qualquer decisão já adotada. Apesar disso,
resolveu formular uma objeção:
— Regente, o senhor já me conhece. Sou o terrano Deringhouse.
O gigantesco mecanismo comunicou em tom uniforme:
— Apresente-se em Árcon III. Identificação indispensável. Temos de estabelecer
entendimentos sobre a entrega de cem naves espaciais.
Tão subitamente como principiara a falar, o grande cérebro desligou, adotando o
objetivismo total que guiava seu procedimento.
Com exceção de Thora, o general era a única pessoa a bordo da Burma que conhecia
as qualidades típicas do computador-regente.
Deringhouse lançou um olhar indagador para Thora, que se mantivera em pé, junto à
poltrona vazia, seguindo atentamente o diálogo.
— Não estou gostando dessas frases, dona Thora! A ordem de comparecer a Árcon
para ser identificado constitui um sofismo que não convence ninguém...
— Bem, não pretendíamos ir a Árcon, Deringhouse? — perguntou Thora em tom de
espanto.
— Naturalmente. E não teria nada a objetar contra o tom de comando usado pelo
cérebro, se ele não tivesse feito tamanha questão de ressaltar que está disposto a negociar.
Já sabemos por várias amargas experiências que o cérebro positrônico sabe mentir com
uma frieza estarrecedora. E a informação de que está disposto a considerar a entrega de
cem naves espaciais não passa de mais uma mentira.
Thora sacudiu a cabeça.
— Minha opinião é outra, Deringhouse. Será que o senhor não se preocupa demais
por minha causa?
Deringhouse teve dificuldade de controlar-se. Não poderia revelar-lhe a verdade.
Se a esposa de Perry Rhodan não estivesse a bordo, as preocupações ligadas ao vôo
para Árcon III estariam reduzidas para um décimo. E, caso ela não estivesse doente, tudo
teria um aspecto diferente, muito menos arriscado. Mas na situação em que se
encontrava, via as coisas pretas, quanto ao futuro da tripulação da Burma.
Resolveu bancar o despreocupado:
— Espero convencer-me logo de que estava enganado em relação ao cérebro.
Afinal, a senhora tem melhores condições de formar um juízo que eu.
Durante três horas, a Burma voou sob a escolta dos supercouraçados, deslocando-se
ao longo das linhas de bloqueio. Teve de desviar-se instantaneamente de dois ataques,
inesperados e violentíssimos, desfechados por naves dos druufs, que conseguiram romper
o bloqueio. Joe Pasgin e Hendrik Olavson tiveram o cuidado de não fornecer o menor
sinal sobre a tremenda aceleração que se escondia no cruzador ligeiro.
Finalmente a Ig-Dro 34 transmitiu uma mensagem lacônica... Informou que o
escoltamento estava concluído. Os supercouraçados robotizados do Grande Império
desapareceram sem despedir-se.
6
O último salto levou a Burma para o centro do grupo estelar M-13.
Essa concentração media noventa e nove anos-luz de diâmetro e compreendia mais
de 30 mil estrelas. Constituía a célula-máter do Grande Império, uma entidade estatal que
tinha todo motivo para julgar-se grande.
A tela da Burma reproduziu o quadro irreal. Os sóis se enfileiravam um ao lado do
outro, e sua densidade produzia uma cintilação, um brilho e um tremeluzir, formando um
espetáculo extraordinário. O leve cintilar da Via Láctea desaparecera; parecia não mais
existir. Em compensação, uma profusão de cores invadiu a sala de comando, depois de
passar pela tela. Era um espetáculo que provocaria admiração até mesmo no mais
empedernido dos astronautas.
O grupo M-13, que servia de sede ao Grande Império dos arcônidas, representava
uma obra grandiosa da criação. As constelações se sucediam em série ininterrupta, e, em
meio às cascatas de luz, era impossível distinguir a olho nu um determinado sol.
Embora tivesse sido construída na Terra, a Burma representava um aperfeiçoamento
da construção espacial arcônida. Por isso, a quantidade perturbadora de estrelas não
impediu que a tripulação resolvesse com a maior facilidade todos os problemas
galatonáuticos. Um verdadeiro conhecedor da astronavegação não teria outra alternativa
senão dobrar-se, numa homenagem muda, diante da tecnologia arcônida e de sua
hipermatemática.
Enquanto os homens da sala de comando ainda se sentiam atraídos pelo colorido do
quadro projetado em três dimensões, o computador positrônico do cruzador leve pôs-se a
trabalhar a fim de determinar qual era a distância ao sistema de Árcon.
O astro central era um sol branco e ofuscante, que possuía vinte e sete planetas. A
importância principal cabia aos primeiros três planetas, que giravam em torno desse sol,
dispostos em forma de triângulo isósceles.
Eram designados pelo mesmo nome do astro central e distinguiam-se pelos
algarismos I a III.
Árcon I, ou o mundo de cristal, um planeta cuja gravitação era semelhante à da
Terra, era o mundo residencial dos arcônidas, enquanto Árcon II abrigava a administração
do Grande Império e ao mesmo tempo servia de entreposto de comércio do grupo M-13.
Já Árcon III não se conhecia igual em toda a Galáxia. Era do mesmo tamanho que
os números I e II, mas era um centro de produção de armas. Lá se fabricavam, nas
grandes esteiras rolantes dos arcônidas, as gigantescas naves de guerra. Nesse mundo
ficava o coração do deus da guerra dos arcônidas — a administração militar, o ministério
espacial e da guerra — e o computador-regente! Por estes fatos tornava-se o mais
importante dos três mundos.
Deringhouse respirou pesadamente ao lembrar-se do enorme mecanismo. Mais uma
vez, deu-se conta do aspecto grotesco da situação. Há alguns decênios da contagem do
tempo terrana, uma instalação positrônica — construída há muitos milênios por cientistas
de ampla visão, e programada ao longo dos séculos — assumiu, com base nessa
programação, o governo do Grande Império. E ninguém se sentiu mais feliz com esse
fenômeno, que seria inadmissível para os homens terranos, que os arcônidas
“supersaturados”, que, dali em diante, passaram a entregar-se mais desinibidamente às
suas orgias, sem dar-se conta de quão profundamente estavam degenerados.
Deringhouse fez uma ligação com Thora. O rosto desta apareceu na tela de controle.
Fitou-o com uma expressão de curiosidade.
— Dona Thora, será que posso pedir-lhe que venha à sala de comando? Pretendo
falar com o cérebro positrônico, daqui a alguns minutos.
Thora limitou-se a acenar com a cabeça. Deringhouse ligou para a sala de rádio:
— Chame o computador positrônico de Árcon — ordenou.
O rosto do operador de rádio, que estava sentado à frente do intercomunicador,
desapareceu da tela de controle.
— Abalos estruturais! — anunciou o setor de rastreamento estrutural. — Cinco
naves.
O salto para o centro de M-13 também foi realizado sem o neutralizador de
vibrações. Dessa forma, as estações arcônidas de Vigilância espacial registraram o abalo
estrutural provocado pela Burma e imediatamente enviaram cinco naves de guerra ao
local, a fim de examinar de perto o forasteiro recém-chegado do hiperespaço.
No mesmo instante, a sala de rádio transmitiu o sinal de identificação da nave
terrana. O dispositivo automático expelia ininterruptamente os respectivos dados.
Os contornos de três cruzadores pesados arcônidas desenharam-se contra o fundo da
cortina de estrelas. Pareciam querer abalroar a pequena Burma, mas subitamente
mudaram de lado e colocaram-se ao lado da nave terrana.
A sala de rádio transferiu as ligações para a sala de comando.
A tela iluminou-se.
Nela surgiu um rosto de robô. Falava, mas o som tinha desaparecido...
Em compensação, a sala de rádio transmitiu uma notícia preocupante.
— O cérebro positrônico não responde ao chamado, mas está falando com uma das
cinco naves.
Finalmente ouviu-se o som da transmissão. A interferência apenas decorrera da
regência exercida pela central de rádio. A informação a ser transmitida a Deringhouse não
deveria chegar a mãos estranhas.
Dona Thora entrou. Mais uma vez, o general não teve tempo de virar o rosto para
ela. Mas no momento em que se colocou a seu lado, pediu-lhe que não se colocasse fora
do alcance da objetiva de televisão.
— ...e vieram a Árcon sob escolta — foram estas as palavras que ainda conseguiu
ouvir.
Antes que Deringhouse conseguisse dizer uma palavra, o robô interrompeu a
comunicação.
— Isso não está muito bom — disse Deringhouse em tom preocupado. — Não
conseguimos entrar em contato com o cérebro positrônico, mas ele acaba de manter uma
palestra com uma das naves robotizadas. Escolta, ora essa! Tenho sérias dúvidas quanto a
isso, dona Thora!
— General! — gritou o oficial de rádio em tom exaltado. — KK-0-763 98 exige que
lhe entreguemos a direção da Burma.
KK-0-763 98 era o robô comandante de uma das naves arcônidas que haviam dito
ao general que iriam escoltar a nave para Árcon.
— Transfira a ligação para cá! — ordenou Deringhouse em tom tão frio que até
mesmo Joe Pasgin, imediato da Burma, se virou para ele e fez um gesto de satisfação.
A tela iluminou-se. Mais uma vez, o rosto indiferente do robô arcônida surgiu.
— Ouça, meu caro — disse Deringhouse. — Diga a seu regente que não somos
arcônidas, mas terranos, e um terrano não gosta de entregar sua nave a um robô.
Estava mostrando que também sabia agir com a descortesia típica de um robô, mas
ao desligar deu-se conta de que, face à sua programação, esses homens mecânicos nunca
se chocavam.
Joe Pasgin e Olavson tiveram de esforçar-se ao máximo para manter a Burma no
centro da formação de naves que a escoltaria para Árcon, sem correr o perigo de colidir
com qualquer uma delas. Era bem verdade que os potentes campos defensivos evitariam
uma colisão direta, mas não queriam passar a vergonha de serem considerados
inexperientes no vôo em formação.
— Então, dona Thora, o que acha dessa exigência? — perguntou Deringhouse com
certo sarcasmo na voz.
— São robôs! — com essa palavra Thora pensou que o assunto estivesse encerrado.
— É um robô! — retificou o general. — O cérebro-gigante. Se existe alguém no
Grande Império que saiba como nós, os terranos, costumamos reagir a qualquer restrição
em nossa liberdade, este alguém é seu simpático regente!
Apesar da situação indefinida em que se encontravam, Thora, cujo estado de saúde
piorara sensivelmente, deu uma risada.
— Deringhouse. Sou da dinastia dos Zoltral e venho de Árcon I, mas considero o
computador-regente um monstro. E acho que o senhor também o considera assim. Mas,
como arcônida que sou, talvez não encare a situação com a mesma coerência e energia
que o senhor, que é um terrano. E olhe que, ultimamente, devo esforçar-me para não me
esquecer totalmente de que não sou filha do planeta Terra.
Foi interrompida pelo astronavegador Merck.
— General, a rota não confere mais. Em psi há um desvio de 0°57’. Nunca vi
tamanhas diferenças nas naves robotizadas.
— Cinqüenta e sete minutos do arco — repetiu Deringhouse em tom pensativo. —
Isso ainda nos levará para dentro do sistema de Árcon, Merck. A que planeta deveremos
chegar com esse desvio?
Thora também teve sua atenção despertada. Como ex-comandante de uma grande
nave de exploração, era uma especialista altamente qualificada nessa área.
Merck fez uma careta.
— O sistema possui vinte e sete planetas. É difícil formular uma previsão a esta
hora. Na melhor hipótese, a mesma poderá ser formulada dentro de meia hora.
Deringhouse preferiu não assumir riscos. Thora estava a bordo, e essa circunstância
orientava seus atos.
A próxima ordem foi dirigida à sala de rádio.
— Daqui a pouco, lhes serão fornecidos os dados sobre o desvio de rota que nos é
imposto e nossa posição atual. Transmitam os mesmos sem comentários à nossa estação
retransmissora mais próxima.
As estações retransmissoras eram naves espaciais terranas que permaneciam em
determinados pontos da Galáxia, segundo um plano cuidadosamente elaborado, a fim de
receber as mensagens dos agentes e transmiti-las à estação seguinte, até que, depois de
muitas andanças, chegassem a Terrânia. Esse procedimento complicado, mas seguro,
evitava a revelação da posição do planeta Terra.
— Já temos o desvio de rota na coordenada chi, general. Um grau e dezoito
segundos. Meu Deus, até parece que vamos pousar em Mutral!
O cruzador ligeiro Burma era um gigantesco conjunto mecânico comprimido numa
esfera, mas sua tripulação de cento e cinqüenta homens possuía um excelente nível
mental. Era formada de elementos altamente qualificados. Mais de duas dezenas de
homens, que faziam trabalhos de pouca relevância, se contavam entre os cientistas mais
competentes de suas especialidades.
— Merck, o senhor conhece seus colegas. Convoque-os. Preciso ter certeza.
Dirigindo-se a Pasgin, perguntou:
— Quanto tempo falta? — a pergunta referia-se ao tempo de vôo para Árcon III.
— Se mantivermos a velocidade atual de 0,89 luz levaremos de cinco a seis horas.
Deringhouse chamou a sala de rádio.
— Ouviu a troca de mensagens?
— Sim, senhor general — soou a resposta, proferida em tom militar.
— Suspenda a mensagem destinada à estação retransmissora até que tenhamos em
mãos a interpretação completa dos dados. Quando isso acontecer, transmita
imediatamente.
De repente, Deringhouse olhou para Thora, que se acomodara numa poltrona. A
sensação de segurança, que tentava aparentar, desaparecera. As ordens do general
deixaram-na preocupada, principalmente as relativas ao desvio de rota em psi e chi.
Ouviu-se o ruído da escotilha que dava do convés para a sala de comando.
Pela primeira vez desde o momento em que a Burma decolara da Terra, a telepata
Ishy Matsu entrou na sala de comando. Sem que Thora o percebesse, Conrad
Deringhouse transmitiu-lhe suas preocupações. Seus pensamentos ficaram expostos
diante dela como um livro aberto.
Ishy fez um sinal com a mão. Deringhouse voltou a dirigir-se a Thora.
— Thora, a senhora confiou demais em suas forças. Por favor, descanse um pouco,
até que... Bem, até que saibamos onde vamos pousar.
No último instante, o general resolvera dizer a verdade, pois neste ponto não se
poderia enganar uma comandante arcônida.
Thora agradeceu a franqueza com um sorriso feminil. Nem se espantou ao ver Ishy
Matsu parada a seu lado. Mas não permitiu que a mutante a ajudasse a levantar-se.
Será que sentia o olhar dos homens, enquanto se erguia da poltrona?
Qual era a origem da vermelhidão doentia de seu rosto? Seria a excitação mental ou
o esforço físico?
Saiu da sala de comando com a mão pousada de leve no braço da bela japonesa.
Assim que a escotilha se fechou atrás dela, Deringhouse começou a praguejar. Tornou-se
grosseiro.
— Senhores, se mais uma vez quiserem permitir-se olhar Thora dessa maneira em
virtude de uma falsa compaixão, os senhores hão de se haver comigo. Dona Thora sofre
de uma doença incurável. Ela sabe, mas não faz questão de que constantemente lhe
lembrem isso por meio de olhares curiosos. Será que me fiz de entendido?
Sentou à frente da grande tela de visão global da Burma, que mostrava o comboio
dos cinco cruzadores pesados arcônidas, representados por pontos nítidos que se
distinguiam em meio ao cintilar do grupo estelar.
— Localização! — gritou o operador do rastreador estrutural.
— Eco de rastreamento. Duas naves, provavelmente do tamanho da Titan,
aproximam-se do amarelo, desenvolvendo quase a velocidade da luz.
— Distância de 1,43 minutos-luz. A sala de rádio chamou:
— Hiperfreqüência do regente voltou à atividade. Troca de mensagens, distorcidas e
condensadas. Agora...
No mesmo instante, a voz do oficial de rádio foi substituída pela do computador-
regente.
— ...à força, para pousar em Mutral. Recorram a quaisquer meios para impedir a
decolagem.
A transmissão da hiperfreqüência do cérebro positrônico chegou ao fim. Graças aos
interceptadores dos swoons, que eram minúsculos aparelhos que num instante
constatavam os impulsos de distorção e suas variações, medindo o grau de condensação,
tornara-se possível ouvir uma mensagem do computador de Árcon.
Para os homens que se encontravam na sala de comando, o aparecimento das duas
naves foi um acontecimento de segunda ordem. Todos os olhares estavam fitos em
Deringhouse, mas este mantinha-se tranqüilamente em sua poltrona e observava a grande
tela de visão global. Parecia não conseguir fartar-se do espetáculo dos inúmeros sóis
reluzentes.
Subitamente estreitou os olhos.
Dois pontos surgiram à sua frente. Dois outros pontos, que se encontravam mais
próximos, desviaram-se para a direita e a esquerda. Eram os dois cruzadores pesados que
formavam a retaguarda do comboio de escoltamento. Cederam lugar aos dois gigantes,
que se aproximavam desenvolvendo quase a velocidade da luz.
— Estão-se aproximando. A aproximação continua. A distância é inferior a quatro
mil quilômetros. Dois mil. Manobra de adaptação dos supercouraçados. Estão
desacelerando lentamente. Seiscentos quilômetros. Trezentos...
De repente ouviu-se a informação, proferida num tom que até parecia de alívio:
— Manobra de adaptação concluída. Encontram-se no amarelo, oitenta quilômetros
atrás de nós.
— É a mesma coisa de sempre — Deringhouse não disse mais nada.
Relativamente jovem, a tripulação da Burma ainda teria de familiarizar-se com a
situação. Havia mais de cinco mil estações de vigilância espacial, o que tornava
impossível a aproximação de qualquer nave sem ser detectada. Além disso, em virtude do
instinto de autoconservação, o regente exigia que qualquer nave, que penetrasse no
sistema, se sujeitasse à escolta. Porém o fato de Deringhouse não comentar a mensagem
do regente, que acabara de ser interceptada, não representava um ato de leviandade, mas
apenas decorria da circunstância de que no momento não poderia tomar qualquer
providência.
O alto-falante emitiu um estalo. A sala de rádio anunciou que a mensagem destinada
à estação retransmissora Sigma 82 acabara de ser expedida em forma distorcida e
condensada.
Deringhouse recostou-se confortavelmente na poltrona e disse:
— Pois bem, senhores. Daqui a pouco conheceremos Mutral. Olhem que nunca me
senti muito bem em Plutão!
Não seria possível falar mais claro.
Mutral, o vigésimo sétimo planeta do sistema de Árcon, era um mundo de gelo,
semelhante a Plutão. Desde os primeiros tempos da astronáutica arcônida, o planeta
servira de fortaleza espacial, que nos seus 15 mil anos de existência rechaçara, no limiar
do sistema, muitos ataques vindos do espaço galático.
Aquilo que os arcônidas, outrora tão arrojados, haviam construído, parecia destinado
a manter-se para toda a eternidade.
Graças ao processo de ensinamento hipnótico a que fora submetido, o General
Conrad Deringhouse não teve necessidade de solicitar dados sobre o mundo de Mutral.
Não teve a menor dúvida de que era lá que a Burma deveria pousar. Só se preocupava em
saber por que motivo o computador-regente se declarara disposto a negociar, e por que
escolhera Mutral como local de negociações.
O robô comandante de um dos cinco cruzadores pesados voltou a chamar. E, mais
uma vez, não pediu, mas exigiu.
Deringhouse deixou que Joe Pasgin decidisse. A reação do imediato da Burma foi a
mesma que o general adotara pouco antes, ao recusar a exigência.
— Forneça os dados. Não costumamos entregar nossas naves a robôs. Quantas
vezes teremos que repetir isto?
A última pergunta de Pasgin foi formulada em vão. O comandante-robô desalmado
respondeu laconicamente:
— Dados seguem.
O computador da Burma realizou a conversão instantânea dos dados para os padrões
terranos.
Seguindo a ordem recebida, o cruzador ligeiro mudou de rota. De repente, o planeta
Mutral surgiu na tela.
Ficava tão distante do sol de Árcon que sua luz não poderia acalentar qualquer
forma de vida. Por isso, não passava de um mundo de gelo extremamente acidentado. Até
mesmo as cordilheiras, de mais de oito mil metros de altura, ficavam cobertas pela
blindagem de gelo. Aquele mundo cinzento, quase negro, que refletia debilmente a luz
dos sóis de M-13, parecia uma terrível ameaça que os aguardava no espaço.
— Isso está começando bem! — disse Joe Pasgin, que mais uma vez observava,
admirado, a bela manobra que Hendrik Olavson fazia para pousar a Burma naquele
inferno de gelo.
Os dados eram fornecidos ininterruptamente pelo rádio. Finalmente a nave foi
atingida pelo raio de tração de Mutral. Em virtude dele, a manobra de pouso seria uma
verdadeira brincadeira.
Os neutralizadores de pressão do cruzador ligeiro começaram a rugir. A nave
desacelerou. Nem uma única vez, o grau de desaceleração ultrapassou o máximo
admissível nas naves arcônidas. Em virtude de sua desaceleração, aparentemente pouco
satisfatória, parecia querer colidir com os campos defensivos dos cruzadores de Árcon.
Com um sorriso no rosto, Deringhouse pediu ao jovem Olavson que não levasse as
coisas longe demais.
Seria seu último sorriso durante este vôo ao sistema de Árcon...
A Burma atingiu o corredor de entrada do planeta. Quatro mil metros abaixo deles
rodava Mutral, o mundo de gelo transformado numa fortaleza espacial. Os cruzadores
pesados afastaram-se, mas a nave terrana foi seguida de perto pelos gigantes espaciais.
Certa vez, Deringhouse ligara a ampliação máxima e examinara com um interesse
profissional os anteparos abertos dos canhões de impulsos e desintegradores das naves
arcônidas. Os veículos de escolta estavam preparados para o combate.
Sabia perfeitamente que Mutral achava-se em estado de rigorosa prontidão. Os
mecanismos de mira automática da fortaleza estacionaria acompanhavam todas as
mudanças de rota da Burma.
Mas os pensamentos do general até pareciam estar sendo trabalhados por um
distorçor. Voltavam constantemente a ocupar-se da mensagem mutilada expedida pelo
agente de Aralon. Por mais que se esforçasse, não conseguia libertar-se desses
pensamentos. Os quatro fragmentos de palavras não queriam sair-lhe da cabeça.
Hendrik Olavson deixou que a nave caísse até dez mil metros acima da superfície do
planeta. Depois ativou os campos antigravitacionais, que deixaram que o cruzador ligeiro
descesse mais oito mil metros, até que seu movimento pendular se compensasse,
restabelecendo o equilíbrio de forças.
Um forte rugido atravessou a nave no momento em que as colunas telescópicas de
apoio foram escamoteadas. A nave terrana foi descendo lentamente. O pouso continuava
a ser dirigido pelo raio de tração. Dessa forma, o lugar em que entrariam em contato com
o solo estava exatamente determinado.
As duas naves de “escolta” da classe Império seguiram-nos como se fossem uma
sombra dupla.
Subitamente iluminaram-se alguns holofotes de potência incrível. O quadrado de
dez quilômetros, mergulhado na ofuscante luz artificial, constituía prova do caráter
inóspito do planeta.
A luz também permitiu aos tripulantes da Burma perceberem que os numerosos
pontos negros, em meio ao gelo reluzente, não eram impurezas, mas representavam os
anteparos abertos de algumas centenas de posições de artilharia.
O cruzador ligeiro da Frota Terrana acabara de pousar no setor central da fortaleza
de Mutral.
O lugar escolhido pelo computador-regente não poderia ser mais seguro.
— Os campos defensivos permanecerão ativados! — ordenou Deringhouse.
Nas dez horas seguintes, a situação não se modificou. As mensagens dirigidas ao
cérebro positrônico ficaram sem resposta. O computador não tinha pressa. Mas a
paciência de Deringhouse tinha limites. E com a décima hora de espera esse limite
esgotou-se.
Enquanto Thora continuava em seu camarote sob os efeitos de um tranqüilizante,
sem desconfiar de nada, o General Conrad Deringhouse entrou na sala de rádio.
Sentou à frente da tela do potente aparelho de hipercomunicação. Virou-se
ligeiramente para os lados e ordenou:
— Ligue para a hiperfreqüência do cérebro positrônico. Vou chamar o regente e... —
não chegou a completar a frase, mas seus gestos diziam mais que um livro.
A ligação com Árcon III foi completada, porém o cérebro não mostrou qualquer
reação. As linhas coloridas confusas, que indicariam a existência de um contato pelo
rádio, deixaram de aparecer na tela. Mas os agentes de Rhodan haviam descoberto, numa
série de missões extremamente perigosas do Serviço de Defesa Solar, que qualquer
chamado atingiria automaticamente o computador-regente, desde que realizado em sua
faixa de freqüência.
— Regente — disse Deringhouse para dentro do microfone. — Fui obrigado a
pousar em Mutral. Antes disso tomei a liberdade de informar Perry Rhodan a este
respeito. Acho que seria sumamente desvantajoso para o resultado das nossas
negociações se...
— Aguarde!
Mesmo o general, uma velha raposa do espaço, não pôde deixar de sentir-se
perplexo diante da resposta inesperada do cérebro positrônico. Mas nem por isso perdeu a
presença de espírito.
— Não esperarei outras dez horas — disse com o mesmo laconismo.
Não houve resposta.
A um sinal de Deringhouse, o oficial de rádio desligou o hipercomunicador.
Ao entrar na sala de comando, o general encontrou reunida toda a equipe de
comando. Desde o pouso, realizado há dez horas, a Burma se encontrava em estado de
prontidão.
Os conjuntos propulsores corriam em ponto morto. Isso consumia energias, mas de
outro lado reforçava a consciência de que se poderia decolar a qualquer momento.
Bastaria aumentar o desempenho dos imensos mecanismos instalados na protuberância
equatorial da nave de cem metros de diâmetro, para que a Burma subisse ao espaço quase
como um raio. Era nisso que residia a força oculta da pequena nave.
Os tripulantes sabiam que Árcon não dispunha de qualquer veículo espacial desse
tipo. O fato de que algumas centenas de peças de artilharia se mantinham apontadas para
a nave terrana não lhes causava maiores dores de cabeça. A bordo, encontravam-se
algumas centenas de dispositivos pequenos, mas de grande eficácia, que seriam capazes
de perturbar o funcionamento dos sensíveis dispositivos de mira dos canhões térmicos, de
impulsos e de desintegração de Árcon.
— Uma ligação para o senhor, general — anunciou o oficial de rádio e transmitiu a
ligação para a sala de comando.
A imagem na tela estabilizou-se. Deringhouse viu um arcônida, que o fitava numa
atitude arrogante.
— Sou Taa-rell, comandante-chefe de Mutral, terrano! — disse num arcônida
impecável. — Aguardo sua visita. Peço-lhe que venha imediatamente, antes que comece
a assistir ao próximo jogo simultâneo.
Conrad Deringhouse foi a calma em pessoa. Conhecia esse tipo de arcônida, que
nada tinha em comum com seus arrojados antepassados. Os novos arcônidas padeciam de
uma perigosa instabilidade biológica e, face à decadência moral e psicológica, cediam
inteiramente à indolência e ao cansaço, fugindo de qualquer tipo de iniciativa ou
responsabilidade. Além disso, viam em todas as criaturas de outras raças, seres de
categoria inferior.
O rosto balofo do arcônida, em cuja boca brincava um sorriso de escárnio, manteve-
se imóvel na tela da Burma. Deringhouse fitou-o demoradamente.
O arcônida não gostou. Abandonando a indiferença característica de sua raça, disse
em tom indignado:
— Terrano, será que preciso repetir quem eu sou?
O general manteve-se imóvel à frente da objetiva.
— Ora, arcônida — respondeu Deringhouse num tom que quase chegava a ser de
compaixão. — O que significa ser comandante de uma bola de gelo? Eu sou um general
da Frota Terrana, e meu chefe é Perry Rhodan!
Por um instante teve-se a impressão de que o arcônida queria despertar de sua
indolência, mas apenas disse em tom de desprezo:
— Rhodan... quem é esse Rhodan?
Deringhouse não teve necessidade de responder.
O rosto balofo do arcônida desapareceu da tela, para ceder lugar a um robô.
— Sou GD-78-P-456 23, senhor! — disse o homem-máquina, a título de
apresentação. — Como comandante das unidades robotizadas estacionadas em Mutral,
devo preveni-lo para que não tente decolar. O Grande Coordenador ordenou que os
senhores não deverão sair do planeta de Mutral. De nossa parte, está tudo preparado para
impedir sua decolagem, se necessário, até pela violência.
A comunicação foi interrompida. A tela voltou a apagar-se. Deringhouse voltou-se
para os homens que se encontravam na sala de comando.
— Acho que, com isso, já estamos suficientemente informados sobre nossa situação.
Por enquanto não vejo nenhum perigo. Só nos resta esperar até que o Grande
Coordenador queira conversar conosco.
A escotilha abriu-se. Deringhouse tinha certeza de que era Thora. Quando viu que,
quem acabara de entrar, era a delicada telepata japonesa, logo se sentiu preocupado.
A jovem lançou-lhe um olhar penetrante, quase autoritário.
— General, há uma hora venho captando impulsos perigosos, cada vez mais
intensos. Será que neste mundo de gelo existem aras?
Deringhouse sentiu-se alarmado com a pergunta.
“A mensagem mutilada de nosso agente no planeta Aralon”, pensou apavorado.
Falando em voz alta, disse:
— Venha comigo, Ishy!
Dali a pouco, estavam sentados frente a frente, no camarote de Deringhouse.
— De que tipo são os impulsos perigosos, Ishy? Acho que não se esqueceu de quem
você deve proteger!
Estas frases deram início a uma série de perguntas. Ishy Matsu não se abalou.
— Os impulsos estão cheios de perigo. Não consegui ler claramente os pensamentos
nem fui capaz de reencontrá-los. Até parece que o planeta Mutral se interpôs com sua
massa entre mim e os outros seres. Não consigo encontrar outra explicação, general.
O sistema de intercomunicação interrompeu a palestra com um chamado da sala de
rádio.
— O cérebro está falando com alguém em Mutral. Infelizmente nosso interceptador
falhou. Árcon III limitou-se a transmitir três impulsos condensados.
Deringhouse lembrou-se da suspeita que a mutante acabara de manifestar.
— O senhor seria capaz de determinar a posição da estação deste planeta de gelo?
O homem que se encontrava na sala de rádio respondeu prontamente:
— Fica nas antípodas, general. Quer os dados precisos?
— Não, obrigado.
O alto-falante ficou em silêncio. Deringhouse e a mutante fizeram um gesto de
compreensão.
— Em hipótese alguma solicitarei a interferência de dona Thora — decidiu o
general.
A telepata objetou em tom exaltado.
— Se fizer isso, prepare-se para levar um cadáver à Terra. Dona Thora não seria
capaz de superar uma decepção dessas. O senhor sabe que é culpado porque de repente
dona Thora voltou a ter o aspecto doentio, general?
— Eu? — indagou Deringhouse em tom de repulsa, mas não conseguiu libertar-se
de um vago sentimento de culpa.
— Sim, o senhor. Tudo aconteceu porque pediu a dona Thora que permanecesse fora
do ângulo de visão da objetiva e fez questão de conversar sozinho com o computador-
regente.
Naquele momento, o sistema de intercomunicação voltou a chamar:
— General, o cérebro quer falar com o senhor. Dona Thora o espera na sala de
comando.
Deringhouse viu neste último fato uma providência do destino.
— Venha comigo, Ishy, e cuide bem de Thora. Pedirei a ela que conduza as
negociações. Peço-lhe que me dê um aviso assim que a conversa em torno das cem naves
se torne demais para ela. Se isso acontecer, entrarei na linha e... O que houve?
Enquanto caminhavam em direção à sala de comando, Ishy Matsu empalideceu de
repente. No momento em que formulava a pergunta, Deringhouse compreendeu que a
telepata estava captando novos impulsos.
O contato com os cérebros estranhos durou apenas alguns segundos, e, durante esses
segundos, o rosto de Ishy Matsu transformou-se numa máscara. Quando fitou
Deringhouse, não havia o menor sinal de percepção extra-sensorial nesse rosto.
— Um grupo de aras chegou a Mutral, general. E sua chegada se relaciona com
nossa presença no planeta. Infelizmente não consegui descobrir...
— Positivo ou negativo? — perguntou Deringhouse laconicamente, embora
conhecesse a resposta de antemão.
— Negativo. Raramente vi tamanho ódio concentrado em pensamentos como neste
contato. Os aras? Não são os médicos galácticos, verdadeiros gênios em sua área?
Deringhouse disse em tom enfático:
— Acontece que os aras se esquecem constantemente dos deveres éticos que um
médico deve cumprir. Descendem dos arcônidas e são tão degenerados quanto estes.
Infelizmente, essa degenerescência teve reflexos criminosos.
Chegaram à escotilha da sala de comando e não mais puderam prosseguir na
palestra.
Deringhouse sentiu que não poderia iniciar um debate no estado psicológico em que
se achava.
Mais uma vez, lembrou-se da mensagem expedida pelo agente do planeta de Aralon,
que chegou mutilada à grande estação de hiper-rádio de Fera Cinzenta. No entanto,
quando cumprimentou Thora com um ligeiro aceno de cabeça e sentou-se ao lado da
esposa de Rhodan, o rosto do general expressava alegria.
Como sempre, a mutante Ishy Matsu manteve-se discretamente a distância. Virou a
cabeça para o lado, a fim de que ninguém pudesse ver seu rosto e, forçando ao máximo
suas faculdades telepáticas, procurou captar os contatos extremamente débeis, a fim de
conseguir ler pensamentos claros, que lhe transmitissem alguma informação.
Conseguiu... porém, imediatamente, o contato foi interrompido. A telepata viu nisso
uma prova de que o planeta era um obstáculo que se interpunha entre ela e a pessoa com
quem acabara de entrar em contato.
Deringhouse fitava ansiosamente a tela, que continuava apagada. Subitamente
estremeceu e voltou a fitar Thora.
Seus olhos passaram pelo rosto ligeiramente avermelhado, que revelava a tensão
íntima, e pousaram no elegante uniforme de comandante de couraçado arcônida que
Thora envergava.
Com esse uniforme vistoso, Thora — membro da dinastia arcônida de Zoltral —
pretendia infundir respeito ao regente.
Será que um mecanismo positrônico que ocupava cerca de 10 mil quilômetros
quadrados poderia impressionar-se?
As insígnias da dinastia de Zoltral brilhavam suavemente em seus ombros. Quando
ela se erguesse, voltaria a ser uma arcônida cônscia de sua personalidade. Agora, sentada
na poltrona articulada, aguardava o início das negociações com o cérebro positrônico. Por
isso, não notou o olhar de admiração de Deringhouse.
De repente o general duvidou dos diagnósticos dos médicos em relação ao caso
Thora Rhodan. Em sua opinião, a regeneração das energias físicas e psíquicas e o
excelente estado de saúde que apresentava naquele momento não poderiam representar a
última cintilância de um impulso vital em extinção.
Será que, na verdade, não padecia de qualquer moléstia da classe das leucemias ou
dos efeitos de um carcinoma do tipo F Árcon? Ou a tarefa, que voltara a dar uma
finalidade à sua vida, produzira uma verdadeira maravilha médica?
Deringhouse ouviu alguém cochichar.
Olhou para trás. Pasgin, Olavson e Merck estavam de pé e conversavam, ao que
tudo indicava a respeito de Thora. Os rostos dos três também exprimiam espanto.
Sentiam-se felizes por verem dona Thora tão concentrada, sadia e vigorosa, à espera do
início das negociações.
De repente o perturbador modelo colorido surgiu na tela, logo seguido pela
conhecida abóbada metálica, onde achava-se o elemento mais importante do gigantesco
cérebro positrônico.
Mais uma vez, o autômato pronunciou-se sem o menor intróito sobre a proposta de
Rhodan.
— O pedido da Terra já está fora de cogitações, mas o Grande Império está disposto
a fornecer quarenta cruzadores leves e trinta pesados do último tipo, além de vinte naves
esféricas de quinhentos metros de diâmetro e dez supercouraçados. Entrega imediata.
“A título de contraprestação, deverão ficar subordinados ao Grande Império: mil
comandantes espaciais terranos, mil oficiais, dois mil especialistas industriais, dois mil
especialistas em mecanismos de propulsão, armas de impulsos e de desintegração, e mais
cinco mil oficiais da frota terrana pertencentes a setores a serem especificados.”
Thora, a princesa da estirpe dos Zoltral e esposa de Perry Rhodan, perguntou em
tom frio e indiferente:
— O que quer dizer com a expressão “ficar subordinados”, regente?
— Face à situação existente nas linhas de bloqueio, o Grande Império vê-se na
contingência de fazer guarnecer os postos mais importantes em nossas naves por
tripulações terranas.
— Qual será a posição que um comandante terrano ocupará num cruzador pesado de
Árcon, regente? — perguntou Thora sem a menor comoção.
Ao vê-la reclinada na poltrona articulada, Deringhouse não pôde deixar de
manifestar a admiração que tributava a essa mulher e a sua postura real. Colocou a mão
sobre a de Thora e apertou-a ligeiramente.
Thora agradeceu com um aceno de cabeça quase imperceptível. Sentiu que esse
gesto demonstrava aprovação da maneira pela qual ela estava conduzindo as negociações.
— Os comandantes terranos exercerão as funções de imediato nas naves arcônidas,
Thora de Zoltral! — respondeu o autômato.
— Não podemos aceitar estas condições, regente, pois face à sua própria natureza
um terrano não concorda em submeter-se ao comando de um robô.
Talvez a voz do gigantesco cérebro positrônico tenha assumido uma tonalidade
irônica, quando ele respondeu:
— Essa afirmativa não encontra apoio em qualquer elemento de prova. O Grande
Império realizou investigações minuciosas sobre a mentalidade dos terranos.
Com estas palavras, o computador gigante confessou pela primeira vez ter realizado
experiências em homens terranos, experiências estas que inevitavelmente levariam à
morte das vítimas.
— Não tenho a intenção de distrair-me com bagatelas, regente — disse Thora,
descartando como que por acaso a terrível informação que o regente acabara de fornecer.
— Poderemos discutir a proposta ora em exame, desde que os mil comandantes terranos
também exerçam as funções de comandante nas naves arcônidas.
Fez-se uma rápida pausa.
Thora e Deringhouse não se atreveram a olhar um para o outro. A esposa de Rhodan,
muito inteligentemente, voltou a falar para que o autômato não recorresse aos bilhões de
contatos positrônicos de seu mecanismo, a fim de elaborar uma resposta à proposta
formulada por último.
— Mas, antes de prosseguirmos nas negociações, na qualidade de representante do
sistema solar, comunico-lhe que se torna necessário revogar a proibição de decolagem
que nos foi imposta, regente!
— A proibição permanece em vigor, Thora de Zoltral...
Thora interrompeu o autômato:
— Meu nome é Thora Rhodan, regente...
No mesmo instante, o cérebro de Árcon III interrompeu a ligação.
— Isto não foi muito hábil de minha parte — confessou Thora em tom ligeiramente
deprimido.
De início Deringhouse sacudiu a cabeça, a título de contradita, mas logo disse:
— É indiferente que as negociações fossem interrompidas agora ou daqui a dez
minutos. Mas para convencer o cérebro de que somos uns ingênuos tentaremos decolar.
Não me arriscarei a apostar que a decolagem não será bem sucedida. Vamos, Pasgin,
Olavson. Não é todos os dias que os tripulantes de uma nave terrana se colocam
voluntariamente numa situação ridícula. Vamos mostrar a esse autômato e a seus súditos
indolentes como a Burma é “fraca”.
Joe Pasgin e Hendrik Olavson acomodaram-se nas poltronas dos pilotos. A ordem de
decolar foi transmitida pelo sistema de intercomunicação da nave. O cérebro positrônico
da Burma trabalhou com uma rapidez espantosa e forneceu aos mecanismos os dados
necessários à decolagem. Seguiram-se as ligações efetuadas por Olavson, que também
foram processadas pelo computador de bordo.
Luzes de controle acenderam-se. Dois aparelhos de alerta começaram a chiar. O
ruído dos mecanismos da nave, cuja potência foi aumentada, modificou-se. O zumbido
tornou-se um uivo agudo e misturou-se ao ruído borbulhante dos propulsores da
protuberância equatorial, que se transformou num forte chiado.
— Decolar com o empuxo normal! — disse Pasgin ao co-piloto.
Um ligeiro tremor percorreu a nave, mas esta não se desprendeu do solo. Energias
tremendas seguravam-na. Era um gigantesco campo de sucção, gerado evidentemente por
projetores ocultos sob o gelo, e que colocara correntes invisíveis em torno do cruzador
ligeiro.
Deringhouse lançou um olhar indagador para o oficial incumbido do controle de
decolagem. O oficial disse:
— Com o empuxo normal o campo de sucção desenvolveu o dobro da potência da
nave, mas sua reação não foi muito rápida.
— Ah! Suspender a tentativa, esperar dois minutos e ligar instantaneamente para o
empuxo normal. Precisamos tentar, senão ainda teremos de pedir socorro ao chefe...
Caramba, acho que o cérebro só espera por isso! Caro autômato, sinto muito, mas não lhe
faremos esse favor.
Olavson puxou a chave mestra para a posição zero, mas logo impulsionou-a para o
lugar marcado “à frente”.
A segunda tentativa estava sendo iniciada.
A Burma saltou para o alto como uma bola de borracha, mas antes que atingisse a
altura de cem metros, o campo de sucção foi regulado para sua força de empuxo. Depois,
desenvolvendo o dobro da energia da nave, que aparentemente funcionava com o
desempenho máximo, não só obrigou esta a parar, mas a forçou a realizar outro pouso,
que mal e mal pôde ser controlado por meio dos apoios telescópicos.
Com exceção de Thora e Deringhouse, que se sentiram entusiasmados com o
resultado da tentativa, os ocupantes da nave pareciam perturbados.
Ao que parecia, o comandante arcônida de Mutral parecia incomodado com a
segunda tentativa de decolagem. Chamou pelo telecomunicador e anunciou que um
comando de robôs estava a caminho, a fim de investigar as ocorrências verificadas a
bordo da Burma.
Thora colocou-se instantaneamente à frente da tela.
— Taa-rell, acho que já nos conhecemos.
Taa-rell, o arcônida de rosto balofo, fitou a orgulhosa mulher, que envergava o
uniforme de comandante.
— Senhora... — gaguejou e ensaiou uma mesura.
— Taa-rell, ordene imediatamente o regresso do comando de robôs! — impôs em
tom enérgico com a voz fria.
O arcônida que se encontrava num subterrâneo da fortaleza de Mutral contorcia-se.
— Senhora, o envio do comando de robôs foi ordenado pelo Grande Coordenador.
Não posso revogar a ordem, pois, em virtude de suas programações, os robôs estão
submetidos diretamente ao regente. Peço encarecidamente...
Com um gesto furioso, Thora desligou. Soltou uma risada amarga.
— Pobre Grande Império! — disse e sacudiu a cabeça.
Big Alden, o oficial de armas da Burma, mostrou que não estava dormindo.
— Localização! — disse pelo sistema de intercomunicação. — Cinqüenta máquinas
de guerra pesadas estão saindo do gelo. O que vamos fazer com elas, general?
Joe Pasgin ampliou a imagem ao máximo.
Uma coluna de robôs de guerra arcônidas caminhava pesadamente sobre a superfície
acidentada de gelo. As fendas de vários metros de largura não representavam qualquer
obstáculo. Quem os visse saltar por cima das mesmas acreditaria que eram artefatos
levíssimos, não máquinas que pesavam várias toneladas.
O revestimento de aço de Árcon brilhou sob a luz ofuscante dos refletores. Esse
material era capaz de resistir a temperaturas até 30 mil graus, e praticamente não era
afetado pelo frio, por mais intenso que fosse.
— O computador-regente nos está enviando uma representação — gritou Pasgin
para o oficial de armas da nave.
Big Alden respondeu com uma praga de astronauta.
Subitamente Deringhouse sentiu que alguém olhava para ele. Virou a cabeça.
Esquecera-se da presença de Ishy Matsu. Esta lhe fez um sinal nervoso para que a
seguisse.
Mas, naquele momento, não poderia retirar-se.
Deu imediatamente o alarma.
— Ativar todos os robôs. Colocar vinte à frente da comporta número três. Atrás
deles outros trinta se manterão em reserva. Os outros aguardarão ordens. Só três dos
robôs arcônidas, que pretendem visitar-nos, terão permissão de subir a bordo.
O indicador de distância da tela de visão global mostrava que as cinqüenta máquinas
de guerra se encontravam perto dos campos defensivos energéticos.
— Ali também só deixaremos passar três! — disse Deringhouse. — Pasgin, tenha
cuidado para que esses autômatos armados não aproveitem a suspensão da nossa barreira
energética, a fim de realizar um avanço. Para mim, um robô arcônida é capaz de qualquer
baixeza, e até hoje sempre me dei muito bem com minha desconfiança.
Teve oportunidade de voltar-se discretamente para a telepata.
Esta lhe fez um sinal que exprimia máxima urgência.
“Venha imediatamente!”, parecia dizer. Deringhouse tomou sua decisão.
— Pasgin, assuma o comando. Irei até a comporta. Obrigado; não preciso de
companhia. Dona Thora, em hipótese alguma a senhora poderá sair daqui. As explicações
serão dadas mais tarde.
Seguiu-se uma verdadeira torrente de comandos. Depreendia-se que o general
considerava a visita dos robôs extremamente perigosa.
Uma vez desencadeado o alarma, a ligação direta entre a sala de comando e todos os
compartimentos da nave iniciou-se.
Deringhouse saiu da sala de comando. Ao passar perto de Ishy Matsu, disse como
que ao acaso:
— Ah, poderá ir comigo, Ishy. Tenho um trabalho para você.
Mal a escotilha da sala de comando fechou-se atrás deles, disparou a pergunta:
— O que houve?
Apesar da pigmentação mongolóide, o rosto encantador de Ishy Matsu parecia
pálido.
— O comando de robôs recebeu ordem para retirar o senhor e dona Thora da nave.
Se necessário, deverá recorrer à violência.
Deringhouse achou essa afirmativa tão chocante que perguntou num tom apavorado
e desconfiado:
— Como soube disso, Ishy?
A telepata não se abalou.
— No momento em que dona Thora conversava com o comandante da base,
consegui pela primeira vez captar alguns impulsos nítidos. Perto de Taa-rell, encontram-
se alguns aras, que receberam ordem do computador-regente para interrogar o senhor ou
dona Thora sobre a posição galáctica da Terra. Receberam instruções para usar o método
da lavagem cerebral.
Big Alden, oficial de armas da Burma, forneceu uma prova em apoio da afirmação
de Ishy Matsu.
— Chamando o general! — soou sua voz potente nos alto-falantes do corredor. —
Localização energética. O planeta Mutral mobilizou todo o armamento contra nossa nave.
No mesmo instante, um furacão de fogo vindo de todos os lados desabou sobre a
Burma. Ao primeiro impacto dos feixes energéticos, alguns dos quais mediam cinqüenta
metros de diâmetro, os campos defensivos da nave romperam-se.
Graças à brevidade do furacão de fogo, a Burma não foi destruída sob o impacto das
energias liberadas. O ataque dirigia-se não contra a nave, mas contra os campos
defensivos. Porém o cruzador ligeiro já não era a mesma nave que fora poucos segundos
antes...
Deringhouse, que correu de volta à sala de comando, ouviu o oficial de armas berrar
pelos alto-falantes:
— Todas as armas inutilizadas. Bocas dos canhões destruídas.
Deringhouse não vira o inferno. Por isso, não compreendia por que de repente a
Burma passou a pender para o lado.
No interior da nave, as unidades energéticas começaram a rugir, os conjuntos de
conversores uivaram, e os propulsores começaram a rumorejar.
A escotilha, controlada por impulsos luminosos, abriu-se abruptamente. Com um
salto, o general colocou-se ao lado de Hendrik Olavson e arrancou-lhe a chave de
comando da mão.
— Não precipitem nada, senhores — disse numa calma tamanha que até parecia
dispor de uma semana para tomar a próxima decisão.
Pegou o microfone do sistema de intercomunicação e gritou:
— Aqui fala o general. Não abram a comporta três. Controle instantâneo. Contatos
com os oficiais. Ativar robôs de trabalho. Desligo.
Tinha uma tarefa especial para Alden, o oficial de armas que já não dispunha de
qualquer arma!
— Alden, compareça à sala de comando. Olavson, por que a Burma está inclinada?
— Devem ter destruído alguns dos apoios telescópicos — respondeu o jovem
tenente numa raiva impotente.
— Quer dizer que o ataque não foi dirigido contra a nave?
— Não. Só estavam interessados em destruir nossos campos defensivos, para que os
robôs pudessem passar.
— Caramba, Olavson, será que esta pancadinha nos colocou fora de ação? Por que
não aumenta a potência dos campos antigravitacionais para que a Burma volte a ficar na
posição normal?
Deringhouse estava furioso.
— Os conjuntos propulsores quatro, sete e onze também estão fora de ação, general.
— Também? Mais alguma coisa? Os geradores de campos antigravitacionais
também?
O telecomunicador chamou.
Mais uma vez, o rosto balofo do comandante arcônida surgiu na tela. Thora, que não
saíra da poltrona articulada, encontrava-se frente a frente com o comandante.
— Senhora — disse o arcônida em tom submisso — peço-lhe que não impeça a
entrada dos robôs em sua nave. Ainda lhe peço encarecidamente que a senhora e seu
general coloquem os trajes espaciais e, acompanhados dos robôs, compareçam à minha
presença, para termos uma palestra. Tudo esta sendo feito por ordem do Grande
Coordenador, senhora.
As últimas palavras, a explicação final, pareciam um grito angustiado.
— O que é que o cérebro quer de nós? — perguntou Thora em tom áspero.
Teve um pressentimento ditado pelo instinto e, com o rosto rubro de cólera e os
olhos chamejantes, disse a Taa-rell:
— Arcônida, você está mentindo para mim. O que pretendem fazer com o general e
comigo? Arcônida, diga a verdade a mim, Thora, da dinastia de Zoltral.
“Meu Deus”, pensou Deringhouse, totalmente perplexo e dominado por uma
insegurança nascida da esperança. “Thora está bem de saúde, tão bem como qualquer
pessoa a bordo. Está rejuvenescendo a cada minuto que passa. Até parece que só agora
o elixir rejuvenescedor está fazendo efeito.”
Taa-rell quase caiu sob as acusações de Thora. Seu rosto balofo revelava os
problemas de consciência com que se defrontava. Mas antes que pudesse abrir a boca e
responder qualquer coisa, outra pessoa que se encontrava em sua companhia desligou o
telecomunicador.
Thora olhou para Deringhouse.
— Como estão nossas chances? — perguntou com o maior sangue-frio.
Sua voz soou forte como outrora. Apesar da situação ameaçadora, conseguiu sorrir
e, num gesto inimitável, afastar uma mecha de cabelo que lhe caía na testa.
— Já enfrentei situações piores — respondeu Deringhouse, esquivando-se
desesperadamente da pergunta.
— Quer dizer que são más e...
Foi interrompida por um anúncio do telecomunicador.
Os geradores de campo antigravitacional voltaram a funcionar.
Thora levantou-se de um salto. Irradiava energia e decisão. Seu rosto tornou-se
corado, sadio. Suas mãos, que em Vênus apresentavam uma aparência carcomida,
estavam fortemente irrigadas pelo sangue.
Hendrik Olavson voltou a colocar a Burma na posição horizontal; a manobra exigia
uma boa dose de perícia, face à falta de um terço dos apoios telescópicos.
— Propulsores quatro e onze reparados! — soou uma informação vinda da
protuberância equatorial da nave. — Avarias do propulsor sete são totais.
— Deringhouse — Thora colocou a mão no braço do general. — Se existe um ser
orgânico que o computador-regente respeite, esse ser é meu marido.
Nesse momento, Thora teria de saber da verdade.
— Todos cometemos o erro de pensar assim, dona Thora! O cérebro positrônico foi
construído por cientistas arcônidas, para resguardar os interesses do Império de Árcon. E
foi programado exclusivamente com esta finalidade. A concepção ética da amizade
sempre lhe será estranha, pois do contrário estaria agindo em desconformidade com sua
programação. E isso, dona Thora, é uma coisa de que um cérebro positrônico jamais será
capaz.
“Querem que a senhora e eu compareçamos à presença de Taa-rell, a fim de sermos
submetidos à lavagem cerebral. O autômato de Árcon III considera tão importante a
descoberta da posição da Terra, que, apesar da situação desesperadora que vem
enfrentando junto à área de superposição, está disposto a arriscar um ataque maciço do
Império Solar para obter essa informação.”
— Já desconfiei de algo semelhante, quando chamei Taa-rell de mentiroso,
Deringhouse. Pelo que o senhor acaba de dizer, só nos resta uma saída, a fuga
precipitada. A que altitude conseguiremos chegar?
Os oficiais da sala de comando fitaram-se. Sentiram-se impressionados pela calma e
coragem de dona Thora. Acabara de perguntar no tom mais natural deste mundo em que
altura a Burma se transformaria numa nuvem de gases, depois de realizada a decolagem
desesperada.
— No momento, nosso problema são os cinqüenta robôs. Pode parecer ridículo, mas
o fato é que só podemos pensar na decolagem depois que os robôs se tiverem retirado, e
eles só se retirarão se a senhora e eu formos com eles, ou...
Deringhouse estacou. Refletiu intensamente.
— Sim, devemos tentar isso. Sala de rádio, entre em contato com o computador-
regente. Transmita a mensagem com o sinal de urgência.
— Sinal de urgência — repetiu o oficial de rádio pelo sistema de intercomunicação.
— Sim senhor.
7

A ligação com Árcon III não foi completada.


Taa-rell voltara a chamar para apresentar o ultimato.
O prazo terminaria dentro de dez minutos.
Lá fora, junto à comporta número 3, cinqüenta máquinas de guerra arcônidas
aguardavam o momento de ingressar na nave.
Os geradores de campo antigravitacional da Burma emitiram um ruído mais forte
que antes, a fim de manter a nave na posição vertical.
Era precisamente nisso que Deringhouse estava pensando.
— Onde e como estão postados os robôs diante da nave? — perguntou numa calma
fingida.
A lente da teleobjetiva da comporta 3 resistira bem ao furacão de fogo. E foi dali
que veio a informação desejada.
— Ah, sim — acabou sendo esta a única reação de Deringhouse, que deixou todos
decepcionados.
Big Alden, o oficial de armas que perdera o emprego, concluiu sua tarefa especial.
Voltou banhado em suor, mas isso não o incomodava. Anunciou em tom de satisfação:
— Os canais energéticos do setor de armamentos foram transferidos para as fases
dos propulsores. Os especialistas em mecanismos de propulsão de impulsos garantem que
a protuberância equatorial não se desprenderá, general.
Deringhouse fez como se não notasse os olhares indagadores que lhe eram lançados
de todos os lados.
— Faltam sete minutos. Acho que já está na hora de fazermos alguma coisa,
senhores. Pasgin!
— Pois não, general! — respondeu o imediato da Burma, olhando para
Deringhouse.
— Os canais de comando das colunas telescópicas de apoio estão todos
interrompidos?
— Naturalmente.
— Muito bem. Preste atenção às instruções que vou transmitir. Aqui fala o General
Deringhouse! — gritou para dentro do microfone do sistema de intercomunicação. —
Nos próximos minutos todos terão de encontrar um lugar firme, que seja suficientemente
seguro, para que nada aconteça no caso de uma súbita modificação da posição da Burma.
Cuidado com os objetos que possam cair. Deverão ser retirados. Desligo.
Pasgin e Olavson pareciam ser os únicos que compreenderam as intenções do
general. Sorriram satisfeitos.
Deringhouse chamou a comporta número 3.
— Encher a comporta com nossos robôs. Assim que a Burma volte a erguer-se faça
sair nossos robôs em direção à entrada do abrigo da qual vieram seus colegas arcônidas.
— Agora já compreendo — disse Thora e acomodou-se na poltrona articulada.
Todos a imitaram, procurando um apoio seguro.
Quando faltavam cinco minutos para escoar-se o ultimato, a Burma, controlada
pelas chaves que Pasgin manipulava no seu painel, encolheu instantaneamente dois terços
das colunas de apoio telescópicas.
No mesmo momento todos os geradores de campo antigravitacional da nave foram
desligados. A escotilha número 3, que continuava fechada, entrou em contato com o solo.
O cruzador tombou para a frente e penetrou profundamente no gelo do mundo de Mutral.
A esfera de cem metros de diâmetro retumbou fortemente. Um barulho infernal saiu
das rochas primitivas desse mundo plutônico. Sob o calor provocado pela pressão de
milhões de toneladas, o gelo derreteu-se e deixou que a Burma afundasse, até bater
ruidosamente contra a rocha.
O fato de que, com isso, cinqüenta robôs arcônidas foram destruídos ou danificados
a ponto de serem transformados em sucata foi apenas um lamentável efeito “colateral”
do fenômeno.
Mas o plano de Deringhouse não deu certo...
Afundada até a metade no gelo, a Burma já não estava em condições de libertar-se
com as próprias forças.
Deringhouse logo reconheceu o erro.
Pelo sistema de intercomunicação ordenou à comporta 1 que fizesse voar trinta
robôs ao mesmo tempo em direção ao objetivo.
A tela de visão global ainda estava ligada para a ampliação máxima. Os tripulantes
fecharam apostas sobre o número dos robôs que conseguiriam chegar à entrada das
fortificações subterrâneas.
Todos sabiam perfeitamente que as instalações arcônidas poderiam lançar menos de
um milésimo de seu potencial contra a Burma, já que tudo fora montado para a defesa de
ataques vindos do espaço. Apenas uns poucos canhões poderiam atirar contra alvos
situados na superfície.
Mas, ao destruírem os campos defensivos ativados à potência máxima, os arcônidas
e seus robôs haviam dado uma prova do que eram capazes mesmo neste terreno.
Trinta máquinas de guerra terranas pairavam sobre seus próprios campos
antigravitacionais. Dirigiam-se e pensavam por eles mesmos. Vindas de três direções
diferentes, embora tivessem partido do mesmo ponto, deslocavam-se vertiginosamente
em direção ao objetivo.
Um feixe energético bem espalhado saiu silenciosamente de uma das numerosas
aberturas escuras que se viam no gelo do mundo de Mutral.
Dois robôs desmancharam-se em nuvens de gases. Um terceiro foi dividido em dois
pela força do raio e caiu.
Surgiram mais dois raios, acompanhados de um forte trovejar. A rocha e o gelo
propagavam o ruído típico dos canhões de impulsos, que expeliam raios escaldantes para
o espaço.
Quatro robôs foram atingidos ao mesmo tempo. Obedecendo à lei física da inércia,
transformaram-se em ofuscantes trajetórias luminosas.
— São raios de desintegração — constatou Hendrik Olavson em tom de surpresa,
quando dois homens mecânicos se gaseificaram subitamente, tornando visíveis os feixes
de ondas mortíferas.
— Dois robôs chegaram ao destino! — exclamou Merck em tom exultante, mas
logo se calou apavorado. No entanto, não tardou em descobrir que as máquinas de guerra
eram muito mais inteligentes do que acreditara.
Não havia mais nenhum robô no ar. Num instante, as máquinas ainda intactas
desapareceram no meio das massas de gelo entrecortadas e passaram a rastejar em
direção ao objetivo à maneira de soldados de infantaria.
— Ataque da direita! — disse Merck em tom muito nervoso.
Oito robôs arcônidas saíram repentinamente de uma entrada do abrigo que até então
permanecera invisível.
Os três primeiros não chegaram a avançar cinco metros. Desmancharam-se sob a
ação dos raios térmicos. Mas depois disso a situação começou a tornar-se crítica...
Mais duas aberturas existentes no gelo cinzento passaram a expelir reforços
arcônidas!
Mais de quarenta robôs defrontavam-se com vinte colegas vindos do planeta Terra.
Nenhum deles sabia o que era coragem ou covardia. Agiam em conformidade com as
instruções incluídas na programação.
— Soltar o segundo grupo! — gritou Deringhouse para dentro do microfone.
Dali a pouco, a comporta 1 anunciou a execução da ordem.
— Ordem cumprida, general. Sondas-cápsulas colocadas fora da nave!
Nenhum dos membros da equipe de comando percebera qualquer disparo. E
ninguém se atreveu a formular uma pergunta a Deringhouse. Apesar do pavor
inimaginável, o espetáculo das formações de robôs, que se combatiam até a destruição,
tinha algo de fascinante.
E era esse espetáculo que decidiria se a Burma voltaria ou não a ver a Terra.
Thora inclinou-se para Deringhouse e perguntou:
— Que sondas-cápsulas são estas? Deringhouse respondeu num tom que quase
chegava a ser de ameaça:
— Daqui a pouco, os arcônidas ficarão admirados, e seus computadores
enlouquecerão. Numa área de cerca de cinqüenta mil quilômetros quadrados deste
maldito mundo de gelo, nenhum aparelho de mira fornecerá dados aproveitáveis aos
canhões.
Thora se mantivera afastada por tanto tempo do dia-a-dia do Império Solar que não
sabia o que fazer com essas palavras. Por isso resolveu pedir explicações.
Mas teve de esperá-las.
— Comportas dois e quatro, soltar robôs.
Deringhouse sentia-se tomado pela febre do caçador, porém, nem por isso, perdeu o
controle da situação. Lembrou-se da pergunta que teria de responder.
— As sondas-cápsulas são transmissores de interferência construídos pelos swoons.
Mas são bem melhores que aqueles que Muzel, o grande amigo de Gucky, soltou em série
no interior da Drusus. Olhe, Thora! Os transmissores já estão funcionando. Viu este raio
de impulso que subiu quase verticalmente? Tomara que a Burma não seja atingida por um
infeliz acaso...
As fúrias do inferno estavam às soltas no mundo gelado de Mutral!
Aquilo que, no início, parecia não passar de uma missão de reconhecimento dos
robôs terranos, transformou-se numa luta arrasadora entre os robôs de guerra da Terra e
de Árcon que, graças à sua direção positrônica, agiam com uma rapidez, precisão e
coerência de que nenhum ser humano seria capaz.
De repente, Deringhouse teve a impressão de que a intensidade da iluminação
artificial do lado de fora estava diminuindo. Thora observara melhor o fenômeno.
— Três robôs avançaram na escuridão. Será que estão destruindo os refletores?
Dali a pouco, sua suposição se confirmou.
Mas, mesmo na escuridão, os homens-máquina saberiam distinguir o amigo e o
inimigo.
Chamas subiram para o céu, explosões gigantescas sacudiram a rocha e o gelo, e
uma pequena parte das fortificações subterrâneas foi destruída numa nuvem avermelhada.
— Santo Deus! — exclamou Merck em tom de surpresa. — Para onde é que eles
estão atirando?
— É um ataque vindo do espaço! — afirmou o oficial que se encontrava junto ao
rastreador espacial. Mas logo viu que o aparelho, que lhe poderia dar uma informação
mais precisa a este respeito, se encontrava bem à sua frente.
O rastreador mantinha-se em silêncio.
— Meu Deus, o que houve com a mira ótica dos arcônidas? — perguntou em tom de
perplexidade. — Contra quem estão atirando?
Merck acabara de formular a mesma pergunta, e ele mesmo já a havia respondido.
Mas de tão espantado que estava, nem se deu conta disso.
Outros canhões abriram fogo. Porém seus raios mortíferos apenas rasgavam o céu e
se mantinham nessa posição absurda. Na frente, atrás e ao lado da Burma, que continuava
mergulhada no gelo, em posição inclinada, a superfície do mundo gelado de Mutral abriu-
se e cuspiu massas de aço de Árcon, fogo e incandescência atômica. Ao que parecia, a
reação em cadeia progredia em sete pontos distintos.
“Qual será o efeito das ondas de compressão no interior das fortificações
subterrâneas?”, indagou-se Deringhouse.
Não tinha a menor esperança de que o comandante-chefe de Mutral e os médicos
galácticos vindos ao planeta por ordem do regente sobrevivessem ao inferno.
Enquanto lá fora tudo rugia e estalava, e enquanto valores imensos eram destruídos
numa questão de segundos, com a Burma por vezes retumbando como um sino, Olavson
fez mais uma tentativa para, por meio do campo antigravitacional, libertar a nave de sua
posição anormal.
Entusiasmado com o êxito, Hendrik Olavson começou a berrar como um menino
muito feliz:
— Estamos saindo! O campo de sucção já não existe. Mais um pouco de força nos
geradores... mais um pouco... agora! Conseguimos...
A esfera metálica de cem metros de diâmetro deu um salto, balançou fortemente e
foi parar sobre as colunas telescópicas de apoio...
“Decolar!”, ia ordenar Deringhouse, que não se importava de deixar para trás uma
ou duas dezenas de robôs.
A ordem de conseguir cem naves de guerra de Árcon era inexeqüível. A tarefa que
tinha pela frente consistia exclusivamente em levar a tripulação da Burma para o espaço,
sã e salva. Apesar disso, porém, Deringhouse não chegou a dar a ordem de decolar.
Três robôs terranos corriam em direção à nave.
Cada um deles segurava nos braços metálicos um arcônida num traje espacial.
— Não decole, Deringhouse!
Deringhouse lançou um olhar de perplexidade para Thora, que tinha a mão pousada
em seu braço. A pressão de seus dedos era bastante intensa. Sua voz fora autoritária, mas
não tivera a intenção de dar-lhe uma ordem; apenas pretendia chamar sua atenção para os
homens-máquina que se aproximavam vertiginosamente.
Naquele instante, Deringhouse duvidou seriamente da integridade de suas
faculdades mentais.
A mulher a seu lado estaria mesmo doente? Mais do que isso, padeceria de uma
doença da classe das leucemias e do carcinoma tipo F Árcon?
Mas não teve tempo para prosseguir nestas reflexões.
Os robôs e suas presas mergulharam na sombra da Burma.
Naquele instante, Mutral parecia explodir!
Um vulcão, que lançou ao espaço repuxos de energia, irrompeu em meio ao gelo e à
rocha, arrancou gritos da terra e fez a Burma balançar, até que os campos
antigravitacionais absorvessem os solavancos do solo.
Numa altura de vários quilômetros, o céu noturno ficou coberto de chamas
convulsas. As labaredas feitas de pura energia subiam constantemente, lançavam ramos
laterais que muitas vezes se aproximavam perigosamente da nave terrana, privada de seus
campos defensivos, para esfacelar-se nas explosões mais fortes que se seguiam.
A gigantesca usina energética subterrânea, que devia fornecer a energia para
milhares de canhões, fora pelos ares. O forte planetário de Mutral não poderia ter sofrido
um golpe mais duro. Mas a inutilização da gigantesca usina de força fatalmente haveria
de ocasionar a intervenção do computador-regente.
O vigésimo sétimo planeta do sistema de Árcon, que era o último, formava um
mundo armado até os dentes e, tal qual todo o enorme sistema defensivo do Império,
consagrado numa experiência de vários milênios, mantinha contato ininterrupto com
Árcon III.
Era impossível que o gigantesco cérebro deixasse de registrar a falha dessa estação
energética. E os homens do Império Solar conheciam perfeitamente seu modo de agir.
— Decolagem de emergência! — gritou Deringhouse.
Seu apelo superou o rugido das rochas que voavam para todos os lados.
A comporta número dois transmitiu uma informação, mas esta submergiu em meio à
barulheira infernal.
O imediato da Burma teve de ceder lugar ao general. Hendrik Olavson manipulou os
controles com uma rapidez tremenda. Os projetores de campos defensivos emitiram um
chiado curto e penetrante, superando todos os outros ruídos.
Depois disso, os potentes campos energéticos voltaram a envolver o cruzador, que
disparava espaço a fora com o desempenho máximo dos mecanismos propulsores.
— Localização pelo rastreador, general. Oito unidades vindas do amarelo.
Era a resposta do computador-regente à destruição de uma das numerosas e potentes
usinas energéticas de Mutral. O gigantesco cérebro positrônico pusera em ação oito naves
de guerra tripuladas por robôs.
— Aproximação do verde e do amarelo. Quatorze unidades.
Agora a Burma passou a dar prova de sua tremenda capacidade de aceleração. E isto
provava que todo o equipamento da nave estava subordinado a essa finalidade primordial.
O computador preparava os dados para o salto.
Um minuto já se passara desde a decolagem. A Burma desenvolvia quase um terço
da velocidade da luz. Mutral caíra no espaço que nem uma pedra, mas agora o planeta
voltava a golpear.
Um raio térmico de diâmetro inacreditável passou a 123°45’ de bordo, a um
quilômetro da nave. Os homens da sala de comando nem tiveram tempo para respirar.
A sala de rádio avisou:
— Chamado do cérebro. Exige nosso regresso para Mutral.
— Quero que o cérebro vá para o inferno — disse uma voz enraivecida e enérgica
de mulher.
Os olhos de Thora Rhodan chamejavam, e estavam fitos na escala que registrava a
aceleração da veloz Burma.
— Vire para phi, Olavson — gritou Deringhouse em tom nervoso.
Sabia perfeitamente que, se conseguissem escapar desse inferno, teriam de
agradecer exclusivamente à sensibilidade genial de Olavson. Se...
Os neutralizadores de pressão chiaram. Uma luz de advertência vermelha acendeu-
se junto ao grande painel de controle. Três sereias de alarma soaram. Olavson bateu com
a mão esquerda contra a chave do conjunto principal.
Na Burma, energias infernais começaram a rugir.
A escala da aceleração subia vertiginosamente. Com toda essa velocidade, o
cruzador ligeiro descreveu uma curva inacreditável.
Subitamente, uma parede incandescente de energia aproximou-se mais depressa do
que o olho humano poderia acompanhá-la. Quatro naves da classe Império haviam
disparado suas salvas de costado contra a pequena Burma... Apenas, deixaram de
considerar a repentina mudança de rota do cruzador terrano!
Os últimos feixes energéticos rasparam o campo defensivo como se fossem um
hálito infernal. Mesmo esse ligeiro contato foi suficiente para levar o desempenho dos
respectivos geradores acima da marca dos cem por cento.
A sala de comando transformou-se num inferno de luzes vermelhas e de sereias de
alarma.
“Tomara que a Burma não exploda, e que a protuberância equatorial da nave não
se desprenda...”, pensou Olavson.
Mutral voltou a disparar...
Teriam sido atingidos?
O corpo da nave retiniu como um sino, mas não se desfez numa reação nuclear.
— Localização no azul...
A potência dos campos energéticos voltara a reduzir-se para cem por cento, mas a
dos propulsores chegava a 107.
Deringhouse estava coberto de suor. Seus olhos ardiam. O olhar ligeiro que lançou
para Olavson, que mantinha uma estranha calma no assento de co-piloto, não conseguiu
tranqüilizá-lo.
Nesse instante, o mecanismo de contagem regressiva do computador de bordo
iniciou sua atividade.
Faltavam trinta segundos para a transição. Ao que parecia, Árcon sabia disso.
Mutral, que já desaparecera na semi-escuridão, ainda disparava com todas as armas
contra a nave fugitiva do planeta Terra. E mais de trinta unidades arcônidas
aproximavam-se em vôo concêntrico, vindas de todos os lados.
As mãos de Hendrik Olavson desfilavam ligeiras sobre o grande painel de comando.
O toque de seus dedos faziam executar manobras tresloucadas, que dificilmente outra
nave jamais fizera. Sempre havia alguma coisa sobrecarregada no cruzador ligeiro: eram
os propulsores, ou o campo antigravitacional, os projetores de campo defensivo, os
neutralizadores de pressão. Era mesmo de admirar que a protuberância equatorial ainda
não se tivesse desprendido.
Faltavam dez segundos para o salto!
Nessa altura foram “recepcionados” por um forte espacial.
Era um dos cinco mil que formavam um cinturão de segurança em torno do sistema,
situado atrás do último planeta, a vinte horas-luz de Árcon.
Cinco raios de impulso passaram perto da nave. Ao que parecia, a Burma se
precipitava para a destruição.
Finalmente chegou o momento da transição.
E no instante em que efetuavam o salto para o hiperespaço, a nave foi atingida;
atingida em cheio...
O impacto se verificou, quando a Burma desmaterializava.
Todo o volume energético de um raio desintegrador, disparado por uma das peças do
supercouraçado arcônida, realizou uma união natural com a energia empregada no salto
da Burma. O efeito destrutivo foi eliminado, mas a energia do salto do cruzador ligeiro
foi multiplicada.
A tripulação sentiu-se dominada pelo martirizante choque da transição. Apenas
Thora parecia não ter sido afetada pelo mesmo.
E foi ela quem exclamou em tom apavorado, enquanto os homens da sala de
comando ainda lutavam contra o mal-estar físico:
— Estamos correndo para dentro de um sol!
De todos os lados, a grande tela de visão global despejava torrentes de luz para o
interior da sala de comando da Burma. Mais uma vez, foi Hendrik Olavson quem reagiu
imediatamente.
Realizou uma transição de emergência, sem dados para o salto e sem formular
maiores indagações. Só depois de voltar pela segunda vez ao espaço normal, passou a
mão pelos olhos e perguntou:
— Será que deveria ter aguardado instruções suas, general?
Antes de responder, Deringhouse observou a grande tela de visão global. O sol para
o qual corriam há poucos segundos estava reduzido a um minúsculo disco luminoso.
— Voar com o senhor é um verdadeiro “martírio”, Olavson — disse Deringhouse,
colocando as mãos no ombro do co-piloto, num gesto de reconhecimento. — Como foi
que recebemos dados incorretos para o salto e, por pouco, não saímos do hiperespaço
para o interior de um sol?
No curso dos decênios e durante suas inúmeras missões, os homens de Perry
Rhodan tiveram oportunidade de familiarizar-se com os fenômenos mais estranhos.
Mas o retorno do hiperespaço, com a simultânea rematerialização no interior de um
sol, era um fato inteiramente novo.
Formulou-se uma indagação ao computador de bordo. O oficial junto ao rastreador
estrutural lançou um olhar desconfiado para seu instrumento.
— Não há mais nenhuma localização, general. E olhe que penetramos no
hiperespaço sem ligar o neutralizador de vibrações, não é mesmo?
O tom em que foram proferidas estas palavras parecia de perplexidade, e
Deringhouse lançou um olhar pensativo para o homem que se encontrava junto ao
aparelho de localização.
Em meio ao silêncio provocado pela curiosidade sobre o que diria o computador,
soou a informação vinda da comporta 2.
— Nossos robôs trouxeram o comandante-chefe Taa-rell e dois aras.
— O chefe vai ficar feliz! — exclamou Merck.
Deringhouse mordeu o lábio.
— E como Rhodan vai ficar feliz! — disse. — Temos de voltar logo com um
arcônida e dois aras. Preferia levar-lhe cem naves novinhas em folha. Caramba! O que
vamos fazer com eles? Não podemos levá-los de volta.
— Cuidarei deles.
A decisão foi de Thora, que logo saiu e fechou a escotilha atrás de si. Os homens da
sala de comando seguiram-na com os olhos, sem dizer uma palavra. Alguns deles
sacudiram a cabeça, num gesto de perplexidade.
Deringhouse resmungou:
— Gostaria de saber o que os médicos constataram em dona Thora. Se ela está
doente, nós estamos prestes a morrer. Haja alguém que compreenda uma coisa destas.
Desisto!
O computador da Burma também desistiu. Limitou-se a pedir novos dados. Segundo
informou, não conseguia chegar a resultado algum com os dados de que dispunha.
Foi então que Deringhouse — um homem que se mantinha jovem graças à ducha
celular que lhe fora aplicada no planeta Peregrino, mas que em experiência envelhecera
mais de seis decênios — enganou toda a tripulação...
Formulou uma tarefa para o computador de bordo.
Havia uma distinção acentuada entre seu problema e o anterior. Não desconfiava de
que, durante a primeira desmaterialização, quando se adaptara quase completamente à
configuração energética do hiperespaço, a Burma sofrerá o impacto direto de um disparo
de canhão de um dos supercouraçados arcônidas.
O computador de bordo teve grande dificuldade em responder à pergunta, pois não
conseguia absorver tão depressa o fato de que, ao desmaterializar-se, a Burma levara ao
hiperespaço todo o volume energético do disparo, convertido num acréscimo indesejável
de 100% na energia do salto.
— Quem dera que alguém dissesse onde estamos! — exclamou o astronavegador
com um gemido.
Lançou um olhar desconfiado para Hendrik Olavson.
Mas o jovem tenente não se abalava por tão pouco.
— O fato é que todos estamos vivos, e não se vê nenhuma nave arcônida. Acho que
é isto que vale.
Face a isso, o comandante-chefe Taa-rell e os dois médicos galácticos
transformaram-se em personagens de segunda ordem. Quase toda a equipe estava reunida
na sala de comando, cercando o computador e esperando que este fornecesse o resultado.
Finalmente a fita de plástico apareceu na fenda de saída. Deringhouse pegou-a
apressadamente. Um pressentimento vago fê-lo acomodar-se na poltrona antes de passar
à leitura. Os sinais codificados lhe eram tão familiares como sua letra.
Subitamente empalideceu. Teve de realizar um esforço tremendo para compreender
o que o computador de bordo acabara de afirmar. Com a voz pesada e deprimida disse:
— Senhores, vamos deixar este problema para nossos físicos. Por favor, não me
perguntem por que ainda existimos.
Merck foi o último a estudar a fita de plástico.
— Isto... até parece que... parece que alguém saltou para fora de um quarto e,
durante o salto, levou um pontapé, para saltar mais depressa.
Gastaram meia hora para determinar a nova posição da nave. Aqueles homens não
se sentiam muito orgulhosos com o novo recorde. Num único salto haviam percorrido 15
mil anos-luz.
A distância entre a Terra e o sistema de Árcon era de 34 mil anos-luz. E agora
encontravam-se a 49 mil anos-luz do Império Solar, e o grupo estelar M-13 ficava entre
eles e a Terra.
Por ocasião do primeiro salto, a Burma certamente sofrerá num dos planos um
desvio de rota de cento e oitenta graus, motivo por que cruzou o hiperespaço em sentido
oposto. Sem dúvida as estações de vigilância espacial de Árcon não deixaram de registrar
o abalo estrutural provocado pelo cruzador leve do planeta Terra, mas por certo não
estabeleceram qualquer ligação entre o fenômeno e a nave Burma. As naves arcônidas
tripuladas por robôs poderiam estar procurando o cruzador ligeiro em qualquer lugar,
menos num ponto situado 15 mil anos-luz atrás de seu sistema.
— Podemos preparar a próxima transição com toda calma — ordenou Deringhouse.
— Mas, desta vez, ligaremos o neutralizador de vibrações. Quero chegar à Terra sem
incidentes, e de lá pretendo ir a Vênus. Preciso conversar com o Dr. Villnoess! Ele nem
desconfia do que o espera...
Suas palavras não prenunciavam nada de bom, embora Deringhouse tivesse motivos
de sobra para alegrar-se com o milagre que acabara de acontecer com Thora Rhodan. Mas
também recordou-se de suas preocupações e angústias, pois não se esqueceu da
advertência de Villnoess:
“— Quanto mais sadia dona Thora parecer, mais doente estará...”
Levantou-se.
— Pasgin, assuma. Vou dar uma olhada nos “visitantes”.
A caminho do camarote de Thora encontrou-se com os médicos de bordo, cujos
rostos exprimiam espanto e confusão. Vinham da direção em que ficava o camarote da
arcônida.
— Então? — limitou-se Deringhouse a perguntar.
O Dr. Brain fez um gesto de perplexidade.
— General, nós... bem, o que quero dizer é que ou eu e meus colegas somos uns
ignorantes, ou então houve um milagre com dona Thora...
— Tolice — interveio o Dr. Elslow em tom exaltado. — Não existe milagre.
Mantenho a opinião de que os sinais de leucemia e o chamado carcinoma F Árcon não
foram outra coisa senão reações retardatárias contra o soro prolongador da vida, que há
bastante tempo John Marshall e a mutante Marten foram buscar em Tolimon, um mundo
dos aras. Será que as coisas podem ser diferentes, senhores? Qual foi o resultado do
hemograma geral? E da radioscopia? Pois então...
O Dr. Elslow defendia energicamente sua opinião, e seus colegas pareciam
impressionados. Deringhouse, que era leigo em medicina, preferiu não participar da
discussão.
— Senhores, gostaria de saber uma coisa: dona Thora está doente ou não? Como
militar não estou interessado no porquê nem no como.
— General, de acordo com os resultados de nosso último exame realizado com dona
Thora, aliás acabamos de estar com ela, não só está bem de saúde, mas vai
rejuvenescendo. Realizamos testes do tecido celular com os aparelhos de análise dos aras.
Não compreendo! Só vi esse tipo de reação nos tecidos celulares de moças jovens, de
menos de vinte anos.
O Dr. Brain custou um pouco a compreender por que Deringhouse lhe bateu no
ombro e, assobiando alegremente, caminhou em direção ao camarote de Thora.
— General — gritou o Dr. Elslow. — O senhor quer falar com dona Thora? Ela já
voltou ao convés H, a fim de prosseguir no interrogatório dos dois aras e do arcônida Taa-
rell.
Deringhouse fez meia-volta, deixou que o elevador antigravitacional o levasse ao
convés H e dirigiu-se ao recinto destinado à guarda dos prisioneiros.
Ficou contrariado ao perceber que o robô de vigilância se encontrava à frente da
porta da cela, o que contrariava todas as regras de segurança.
O homem-mecânico deixou livre a passagem sem que Deringhouse o pedisse.
Deringhouse abriu a porta e ouviu um grito estridente:
— Sua traidora!
No mesmo instante, viu o raio de uma arma de impulsos!
Tirou, num gesto instintivo, sua arma de radiações e disparou contra o homem de
pernas compridas que se encontrava de costas para ele.
O grito de Thora fê-lo passar de um salto ao lado do ara que caía ao solo e esbarrar
na mutante Ishy Matsu.
Os dois viram que Thora Rhodan caía ao chão, mortalmente atingida...
— Meu Deus! Os médicos! Rápido! — gritou Deringhouse em tom de pânico.
Acontece que na cela não havia nenhum botão de alarma.
Ajoelhou-se ao lado de Thora, enquanto Ishy Matsu saía correndo.
Levantou cautelosamente a cabeça da esposa de Rhodan.
Como seu rosto voltara a ser jovem! Mas agora estava terrivelmente pálido. Uma
palidez apavorante.
Abriu os olhos. Seus olhares encontraram-se. Thora procurou sorrir.
Sorriu.
— Perry — disse num cochicho. — Já irei para junto de você, Perry. Aperte-me nos
seus braços, Perry...
Deringhouse pensou que devia gritar “não”, mas sua boca permaneceu muda. Thora
mantinha a cabeça pousada em seu colo, e a luz de seus olhos empalidecia cada vez mais.
— Perry... — disse num sopro.
— Onde estão os médicos? — perguntou Deringhouse em tom de desespero.
— Perry, você é um grande homem! Como sua terra é linda! Thomas... Perry! Perry!
O Dr. Brain entrou correndo, seguido de perto pelo Dr. Elslow. Viram o movimento
mole com que Thora virou a cabeça para a parede e viram a ferida mortal.
Só depois viram o assassino de Thora, um médico galático gravemente ferido.
Não puderam fazer mais nada por Thora Rhodan. Mas os médicos do planeta Terra
agiram em conformidade com seu juramento e fizeram tudo para salvar a vida do
criminoso.
Dominado pela dor e pelo desespero, o General Conrad Deringhouse ajoelhou ao
lado da morta, que ele tanto venerara.
Não compreendia.
Não compreendia como aquela arma fora parar nas mãos do ara; não compreendia
por que, só há poucos minutos, os médicos de bordo lhe haviam dito que Thora passava
por um processo de rejuvenescimento...
Muito perturbado, olhou para o rosto pálido, em cujos lábios se via um sorriso de
saudade.
“Ela chamara por ele... por Rhodan...”, foi o que conseguiu pensar.
Deringhouse engoliu em seco. Sentiu-se incontrolavelmente desesperado.
8

Voaram para Fera Cinzenta.


Dali dirigiram-se à Terra, inclusive Ishy Matsu, a mutante débil e graciosa, que se
vivia acusando ininterruptamente. Acreditava ser a assassina de Thora, pois foi com sua
arma que o ara matou a esposa de Perry Rhodan. O médico galático lhe tirara a pistola do
cinto enquanto passava por ele e, antes que suas faculdades telepáticas lhe permitissem
detectar o pensamento assassino, o raio mortífero atingiu Thora.
Perry Rhodan encarregou-se do velório.
Ficou a sós com a morta. Tivera força suficiente para consolar Ishy Matsu. Dissera
que tudo não passara de uma trágica coincidência. Mas não conseguiu consolar a si
mesmo.
Ficou sentado ao lado do corpo embalsamado e fitou seu rosto jovem, que, naquele
momento, era de uma beleza irreal.
Ficou assim durante horas.
Durante dias!
E durante esses dias, um mausoléu surgiu no ponto da lua terrana em que Thora de
Zoltral, a comandante de uma nave exploradora arcônida, tivera de realizar um pouso de
emergência. Não se tratava de um monumento suntuoso. Seu efeito provinha da
simplicidade e da singeleza das linhas.
Era a expressão, concretizada em pedra, aço e plástico, de quem fora Thora Rhodan!
Thora Rhodan, a boa alma do Império Solar!
Será que Perry Rhodan já deixara de pensar na área de superposição, nos perigos
que ameaçavam a Galáxia?
Será que o golpe do destino o derrubara — a ele, o administrador de um império em
expansão?
Bell, seu melhor amigo, não conseguiu libertá-lo da dor.
Crest, que com Thora fora o único sobrevivente da expedição arcônida, já não sabia
o que fazer da vida. Depois que a Burma pousou em Fera Cinzenta, alguém dissera que,
ao ser assassinada, Thora fora uma mulher jovem e sadia.
Rhodan nunca deveria saber disso.
Mas Rhodan descobriu; e descobriu toda a verdade. O boato tinha um fundo de
verdade, e aquilo que antes fora apenas um boato tornava ainda mais trágica a morte de
Thora.
A Drusus levou o cadáver de Thora à Lua.
Pai e filho encontraram-se junto ao túmulo da mãe e esposa. Perry Rhodan estendeu
a mão ao filho, e os olhos do homem mais poderoso do Império pediram perdão a
Thomas Cardif, um tenente da frota espacial com vinte e quatro anos de idade.
Thomas Cardif fez como se não visse o olhar, nem a mão que lhe era estendida.
Ao lado de um homem dilacerado pela dor encontrava-se um jovem bastardo, frio,
orgulhoso e presunçoso. Era dominado pelo sangue da mãe. Ela, que crescera para além
de si mesma, transformando-se na boa alma do Império Solar, não mais via a hora de
amargura do marido.
Muito lentamente, Perry Rhodan foi retirando a mão.
Mais uma vez, viu o jovem que se encontrava a seu lado, e que era seu filho de
carne e osso, da cabeça aos pés. Depois voltou a enxergar através do material
transparente o rosto rígido e amoroso de Thora.
Não viu que Reginald Bell, um bom homem, mas muito impulsivo, apertou o pulso
de Thomas Cardif e o obrigou por meio da pressão inexorável de seus dedos a colocar-se
atrás do pai, cuja mão se recusara a apertar.
Thomas Cardif veio para perto de Crest, o arcônida. E então teve de ouvir duas
palavras que Crest pronunciou como se fossem uma maldição:
— Seu arcônida!
Ninguém desconfiava de que Perry Rhodan também pensava em Árcon.
Pensava no grande computador, naquele monstro positrônico que cobria uma área
superior a 10 mil quilômetros quadrados, e que, com sua fria lógica, governava um
gigantesco império cósmico.
Meio inconsciente, ainda sob os efeitos do tremendo abalo, Rhodan sentiu
cristalizar-se em sua mente um pensamento de ódio, cujo alcance ainda não percebia.
Mas logo tudo se tornou confuso e irreconhecível; só restava a certeza de estar só.
Naquele instante olhou para o lado.
E viu, em vez do filho, o amigo Reginald Bell!
E bilhões de seres humanos que fitavam as telas viram que o rosto enrijecido de
Perry Rhodan se descontraiu, parecendo suspirar aliviado.
Bilhões de seres humanos perceberam, na hora mais amarga de Perry Rhodan, que o
administrador do Império Solar era um homem como qualquer outro...

***
**
*

Thora, que já fora inimiga implacável dos terranos, para


depois transformar-se na boa alma do Império Solar... morreu!
E sua morte representa o início de uma série de rudes
golpes para o administrador do Império Solar!
Em O Inferno Atômico, título do próximo volume da série,
sérios problemas têm de ser resolvidos.

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