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de
ANTÓN TCHÉKHOV
tradução de
VADIM NIKITIN
Tonia Carrero,
e cultiva a memória
de Seu Onésimo e Klávdia Gouriánova.
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PERSONAGENS
Pausa.
Lhuba Raniêvskaia passou cinco anos no estrangeiro, sei lá como é que está
agora... Ela é uma boa pessoa. Tão acessível, tão simples... Lembro que,
quando eu era um rapazinho de uns quinze anos, o meu falecido pai – que
tinha uma vendinha aqui na aldeia – me deu um murro na cara, e o meu
nariz começou a sangrar. A gente tinha vindo fazer não sei o quê nos
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arredores, e ele estava de cara cheia. Lhuba Raniêvskaia, lembro como se
fosse agora, ainda mocinha, tão magrinha, me trouxe aqui, pra esse mesmo
quarto, o quarto das crianças. Ela me disse: “Não chora não, camponesinho,
que antes de casar sara.”
Pausa.
Camponesinho... Pois é, o meu pai era mesmo mujique, mas eu estou aqui,
de colete branco e bota amarela. Focinho de porco no bufê chique. Acabei
de ficar rico, muito dinheiro no bolso, mas olhando de perto – cem por
cento mujique. (Folheia as páginas de um livro.) Fui ler esse livro e não
entendi nada. Estava lendo e peguei no sono.
DUNIÁCHA – Já os cachorros não dormiram a noite inteira. Farejam a
chegada dos donos.
LAPÁKHIN – O que é que há, Duniácha?
DUNIÁCHA – As minhas mãos estão tremendo. Vou desmaiar.
LAPÁKHIN – Você é delicada demais, Duniácha. Se veste como feito
madame, e se penteia toda... Assim não pode. Você tem que se situar.
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Ouvem-se duas carruagens aproximarem-se da casa. Lapákhin e Duniácha
saem rapidamente. Palco vazio. Começam a chegar barulhos dos
aposentos vizinhos. Firs, que tinha ido receber Lhuba na estação,
atravessa o palco apressadamente, apoiado numa bengala; veste uma libré
antiga e uma cartola; fala sozinho, mas não se distingue uma palavra do
que diz. Os barulhos fora de cena vão aumentando. Uma voz: “Por
aqui...” Entram Lhuba, Ánia e Charlotta, que traz um cachorrinho numa
corrente, todas vestindo roupas de viagem; Vária, vestindo um lenço e um
sobretudo, Gáief, Píchtchik, Lapákhin, Duniácha, que traz uma mala e
uma sombrinha, e uma empregada com o resto das coisas. Todos
atravessam o quarto.
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DUNIÁCHA – Esperamos tanto... (Tira o sobretudo e o chapéu de Ánia.)
ÁNIA – Não durmo há quatro noites... Que viagem... Nessa época faz frio
demais.
DUNIÁCHA – Você foi embora na quaresma... Tinha tanta neve, tanto
gelo... E agora? Minha querida! (Ri e beija-a.) Esperei tanto por você,
minha alegria, meu amor... Não agüento nem mais um minuto, tenho que
lhe dizer uma coisa agora...
ÁNIA (mole) – Lá vem mais alguma coisa...
DUNIÁCHA – Epikhodof, o guarda-livros, logo depois da Páscoa, me
pediu em casamento.
ÁNIA – Ah, sempre a mesma coisa... (Ajeita o cabelo.) Perdi todos os
grampos... (Ela está muito cansada, a ponto de cambalear.)
DUNIÁCHA – Eu já nem sei o que pensar. Ele me ama, me ama tanto!
ÁNIA (olha docemente para a porta do seu quarto) – O meu quarto, as
minhas janelas, é como se eu nunca tivesse saído daqui. Eu estou em casa!
Amanhã de manhã vou acordar e correr pro jardim... Ah, se eu pudesse
dormir! Não dormi a viagem toda de tão ansiosa.
DUNIÁCHA – Piotr Trafímof chegou anteontem.
ÁNIA (alegre) – Pétia!
DUNIÁCHA – Dorme na casa de banhos, ficou por lá. Disse que não
queria incomodar. (Olha no seu relógio de bolso.) Eu tinha que acordar ele,
mas dona Vária não deixou. Ela disse: não acorda ele.
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VÁRIA – Bom, graças a Deus, chegaram. Você de novo em casa. (Fazendo
carinho.) A minha alminha voltou! A princesa voltou!
ÁNIA – Foi horrível.
VÁRIA – Imagino!
ÁNIA – Saímos daqui na Semana Santa, naquele frio. Charlotta não parava
de falar, a viagem toda fazendo aquelas mágicas. Não sei pra que você pôs
a Charlotta na minha cola...
VÁRIA – Meu anjo, você não podia viajar sozinha. Com dezessete anos!
ÁNIA – Chegamos em Paris, e lá fazia frio também, e nevava. O meu
francês é um desastre. Mamãe mora num quinto andar. Entro lá e mamãe
está recebendo a visita de uns franceses, umas madames, um padre velho
com bíblia e tudo, muita fumaça, nenhum aconchego. De repente fiquei
com tanta pena de mamãe, tanta pena, que abracei a cabeça dela, bem forte,
e não podia mais largar. Depois mamãe me fez carinho, e chorou...
VÁRIA (entre lágrimas)– Não fala, não fala...
ÁNIA – A casa de campo perto de Menton ela já vendeu, e agora não tem
mais nada, nada. Eu também não tenho mais nem um centavo. Mal
conseguimos fazer a viagem de volta. E mamãe não entende! Quando
parávamos pra almoçar nas estações, ela fazia questão dos pratos mais
caros, e deixava fortunas de gorjeta. Charlotta também. Iacha também
exige a sua parte. É horrível. O criado de mamãe, lembra?... também voltou
conosco...
VÁRIA – Eu vi o mascarado.
ÁNIA – Mas então? Já pagamos os juros?
VÁRIA – Que nada.
ÁNIA – Meu Deus, meu Deus...
VÁRIA – Em agosto a propriedade vai a leilão...
ÁNIA – Meu Deus...
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LAPÁKHIN (mete a cabeça pela porta e bale) – Mééé... (Sai.)
VÁRIA (entre lágrimas) – Ah, se eu pego esse... (Sacode o punho.)
ÁNIA (abraça Vária, baixinho) – Vária, ele já te pediu em casamento?
(Vária balança negativamente a cabeça.) Mas ele te ama... Por que é que
vocês não se acertam de uma vez, o que é que vocês estão esperando?
VÁRIA – Sabe, acho que isso não vai dar em nada. Ele tem muito o que
fazer, nem presta atenção em mim... Que vá com Deus, não quero nem vê-
lo, é difícil pra mim... Todos falam do nosso casamento, todos me dão
parabéns, mas na realidade não há nada, é tudo um sonho... (Muda de tom.)
O seu broche parece uma abelha.
ÁNIA (melancólica) – Foi mamãe que comprou. (Vai para o seu quarto e
fala alegremente, com jeito de criança.) Em Paris eu voei de balão!
VÁRIA – A minha alminha chegou! A princesa voltou!
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IACHA (vai atravessando o palco, delicadamente). Pode-se passar por
aqui?
DUNIÁCHA – Nem dá pra te reconhecer, Iacha. Você ficou tão
estrangeiro!
IÁCHA – Hum... E quem é você?
DUNIÁCHA – Quando você foi embora daqui, eu era assim... (Faz um
gesto indicando a altura a partir do chão.) Duniácha, filha de Fiôdor
Kazôiedof. Você não lembra de mim!
IÁCHA – Hum... Que pepinozinho! (Olha em torno e abraça-a; ela grita e
deixa cair um pires. Iacha sai rapidamente.)
VÁRIA (junto às portas, com voz de censura) – O que é que aconteceu
agora?
DUNIÁCHA (entre lágrimas) – Quebrei um pires...
VÁRIA – Isso dá sorte.
ÁNIA (saindo do seu quarto) – É melhor avisar mamãe: Pétia está aqui...
VÁRIA – Dei ordem pra não o acordarem.
ÁNIA (pensativa) – Seis anos atrás morreu o nosso pai, e um mês depois o
meu irmão Gricha... Ele tinha só sete aninhos e se afogou no rio. Mamãe
não agüentou, foi embora, foi embora sem olhar pra trás... (Estremece.)
Como eu entendo mamãe, se ela soubesse! (Pausa.) E Pétia Trafímof era o
professor de Gricha, pode trazer todas aquelas lembranças...
FIRS (vai até a cafeteira, todo preocupado). Madame vem aqui... (Calça
luvas brancas.) O café está pronto? (Severo, para Duniácha.) Você! E o
creme?
DUNIÁCHA – Ah, meu Deus... (Sai depressa.)
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FIRS (atabalhoado em torno da cafeteira) – Você é um trapo, Duniácha...
(Resmunga pra si mesmo.) Chegando de Paris... O patrão também ia a
Paris... a cavalo... (Ri.)
VÁRIA – O que foi, Firs?
FIRS – O que deseja? (Alegre.) Madame voltou! Esperei tanto! Agora eu já
posso morrer em paz... (Chora de alegria.)
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LAPÁKHIN – Até hoje só havia senhores e mujiques no campo, mas agora
surgiram os veranistas. Todas as cidades, mesmo as mais pequenas, estão
cercadas de colônias de férias. Em vinte anos esses veranistas vão se
multiplicar até não poder mais. Por enquanto o veranista fica só tomando
chá na varanda, mas daqui a pouco vai transformar o seu hectare em
fazenda, e aí sim esse seu cerejal vai ser feliz, rico, um luxo...
GÁIEF (indignando-se) – Que absurdo!
VÁRIA – Mamãe, dois telegramas pra senhora. (Separa uma chave e abre
com um retintim o armário antigo.) Aqui.
LHUBA – De Paris. (Rasga os telegramas, sem lê-los.) Paris acabou...
GÁIEF – Você sabe quantos anos tem esse armário, Lhuba? Semana
passada eu puxei a gaveta de baixo e dei de cara com uma data pirografada.
Esse armário tem exatamente cem anos de vida. E então? Hein? Podíamos
até comemorar o centenário. É um ser inanimado, mas, afinal, é um
armário de livros.
PÍCHTCHIK (espantado) – Cem anos... Imagine!...
GÁIEF – Pois é... Isso sim... (Apalpando o armário.) Honrado armário
querido! Salve a tua existência, que por mais de cem anos tem servido aos
ideais da virtude e da justiça. Teu silencioso chamado ao trabalho fecundo
nunca fraquejou ao longo desses cem anos, sustentando (entre lágrimas) na
nossa família o ânimo e a fé num futuro melhor e nos formando de acordo
com os ideais da virtude e da consciência social.
Pausa.
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LAPÁKHIN – É...
LHUBA – Você não mudou nada, Leonid.
GÁIEF (meio embaraçado) – A bola da direita no canto! Mato na caçapa
do meio!
LAPÁKHIN (olhando o relógio) – Bom, está na minha hora.
IACHA (dá um remédio para Lhuba) – Quem sabe a senhora queira tomar
as pílulas agora...
PÍCHTCHIK – Não se deve tomar medicamentos, minha amada... não
fazem mal nem bem... Me dê aqui... caríssima. (Pega as pílulas, derrama
todas na mão, sopra, coloca-as na boca e engole-as com kvass.) Pronto!
LHUBA (assustada) – O senhor enlouqueceu!
PÍCHTCHIK – Tomei todas as pílulas.
LAPÁKHIN – Que comilão! (Todos riem.)
FIRS – O patrão esteve conosco na Páscoa e secou meio pote de pepinos
em conserva... (Resmunga.)
LHUBA – Do que é que ele está falando?
VÁRIA – Resmunga assim há três anos. Já estamos acostumados.
IACHA – Idade avançada.
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FIRS (limpa Gáief com uma escova, sentenciosamente) – O senhor botou
as calças erradas outra vez. O que é que eu faço com o senhor?
VÁRIA (baixinho) – Ánia está dormindo. (Abre uma janela, devagarinho.)
Já tem sol, não faz mais frio. Olha, mamãe: que árvores maravilhosas! E o
ar, meu Deus! E os estorninhos estão cantando!
GÁIEF (abre outra janela) – O jardim está todo branco. Você não
esqueceu, não é, Lhuba? Essa longa aléia vai reto toda a vida, como uma
correia esticada brilhando nas noites de luar. Lembra? Você não esqueceu,
não é?
LHUBA (olha o jardim pela janela) – Ah, minha infância, minha pureza!
Era aqui que eu dormia, no quarto das crianças, era daqui mesmo que eu
olhava esse jardim, a alegria acordava comigo toda manhã, e o jardim
continua igual, nada mudou. (Ri de felicidade.) Todo branco, todo branco!
Ah, meu jardim! Depois de um outono escuro e chuvoso e um inverno
gélido, você está jovem de novo, cheio de alegria, os anjos do céu não te
abandonaram... Se eu pudesse tirar do peito e dos ombros todas essas
pedras, se eu pudesse esquecer o meu passado!
GÁIEF – É, e vão vender esse jardim pra pagar as dívidas, por estranho que
pareça...
LHUBA – Olha! Ali! É mamãe andando... de vestido branco! (Ri de
felicidade.) É ela.
GÁIEF – Onde?
VÁRIA – Pelo amor de Deus, mamãe.
LHUBA – Não tem ninguém, foi impressão minha. Lá, à direita, na curva
que dá no quiosque, aquela árvore branca se inclinou, parecia uma mulher...
GÁIEF – Minha irmã ainda não perdeu a mania de jogar dinheiro fora.
(Para Iacha.) Sai, minha flor, você está cheirando a galinha.
IACHA (com um risinho) – E o senhor, Leonid Gáief, não mudou nada.
GÁIEF – Quem? (Para Vária.) O que foi que ele disse?
VÁRIA (para Iacha) – A sua mãe veio da aldeia e desde ontem está na ala
dos criados, esperando pra te ver...
IACHA – Deus a livre e guarde... lá mesmo!
VÁRIA – Que vergonha!
IACHA – Grande coisa. Que volte amanhã. (Sai.)
VÁRIA – Mamãe continua igualzinha, não mudou nada. Se deixar, ela dá
tudo.
GÁIEF – É...
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Pausa.
Se há muitos remédios pra uma mesma doença, quer dizer que a doença
não tem cura. Eu penso, penso, já queimei a pestana de tanto pensar; tenho
muitos recursos, um monte deles, ou seja, nenhum. E se recebêssemos uma
herança de alguém, e se casássemos Ánia com um homem bem rico, e se
fôssemos a Iaroslav tentar a sorte com a tia condessa... Afinal, a tia é podre
de rica.
VÁRIA (chora) – E se Deus ajudasse.
GÁIEF – Sem choradeira. A tia é muito rica, mas não gosta de nós.
Primeiro que a minha irmã se casou com um advogado e não com um
nobre...
Não se casou com um príncipe. Um, aliás, que não tinha nada de príncipe, e
ela, diga-se de passagem, nunca foi exatamente uma santa. Lhuba é boa,
simpática, charmosa, eu adoro ela, mas, por mais atenuantes que a gente
invente, verdade seja dita, ela é um monstro, literalmente uma pervertida.
Isso a gente vê nos menores movimentos dela.
VÁRIA (sussurrando) – Olha Ánia na porta.
GÁIEF – Quem?
Pausa.
Incrível, entrou alguma coisa no meu olho direito... não estou enxergando
bem. E na quinta-feira, quando eu estava no fórum...
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Entra Ánia.
Entra Firs.
Pausa.
Dormiu!... (Toma Ánia pelo braço.) Vamos pra caminha... Vamos!... (Vai
levando Ánia.) A minha alminha caiu no sono! Vamos...
Saem.
Pano.
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SEGUNDO ATO
Pausa.
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EPIKHODOF (toca violão e canta) – “Que me importa o tumulto do
mundo, que me importam amigos e inimigos...” Como é bom tocar um
bandolim!
DUNIÁCHA – Que bandolim? Isso é um violão. (Olha num espelhinho e
se empoa.)
EPIKHODOF – Pra quem está louco de amor, isso é um bandolim...
(Cantarola.) “Ah, se o meu coração pudesse ter o calor de um outro
coração...”
Pausa.
Pausa.
Pausa.
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Ando inquieta, não paro de me preocupar. Eu era menina ainda quando
comecei a trabalhar pros patrões, me desacostumei da vida simples, as
minhas mãos são brancas, branquinhas, como as de uma dama. Fiquei
delicada, sensível, nobre, tudo me dá medo... É terrível. E se você me
enganar, Iacha, não sei o que será dos meus nervos.
IACHA (beija-a) – Meu pepinozinho! É claro que toda moça deve saber de
si, e não há nada que eu goste menos do que uma moça de comportamento
duvidoso.
DUNIÁCHA – Eu me apaixonei loucamente por você, Iacha, você é tão
culto, sabe falar de tudo.
Pausa.
Pausa.
Que bom fumar um charuto no ar puro... (Escuta.) Vem vindo gente... São
os patrões...
Vai pra casa, como se tivesse ido tomar banho no rio; por aqui, senão você
cruza com eles e vão pensar que eu tinha um encontro com você. Isso eu
não admito.
DUNIÁCHA (tosse baixinho) – O charuto me deu dor de cabeça... (Sai.)
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Iacha fica sentado perto da capelinha. Entram Lhuba, Gáief e Lapákhin.
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LAPÁKHIN – Eu não sei se choro, se grito ou se vou ter um troço. Não
agüento mais! Vocês me torturam! (Para Gáief.) Sua tia velha!
GÁIEF – Quem?
LAPÁKHIN – Tia velha! (Quer ir embora.)
LHUBA (assustada) – Não, não vá embora, fique mais um pouco, querido.
Eu lhe peço. Quem sabe inventemos alguma coisa!
LAPÁKHIN – Mas aqui não nada o que inventar!
LHUBA – Não vá embora, eu lhe peço. Com o senhor aqui pelo menos é
mais divertido...
Pausa.
Pausa.
Pausa.
GÁIEF – Me ofereceram uma vaga no banco. Seis mil por ano... Ouviu?
LHUBA – Você? Mas você já está num banco...
Lembro que todo mundo estava feliz, mas feliz por quê? Nem os próprios
felizes sabiam.
LAPÁKHIN – Antigamente era muito bom. Pelo menos tinha chicote.
FIRS (sem ouvir) – E como não? Aos senhores os mujiques, aos mujiques
os senhores, mas agora é cada um por si, não se entende nada.
GÁIEF – Fica quieto, Firs! Amanhã eu preciso ir à cidade. Prometeram me
apresentar a um general que pode nos fazer um empréstimo em letras de
câmbio.
LAPÁKHIN – Não vai dar certo. E o senhor não vai conseguir cobrir os
juros, pode ter certeza.
LHUBA – Está delirando. Não existe general nenhum.
Todos se sentam.
Todos riem.
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LHUBA – O senhor precisa de gigantes...? Eles são bons só nos contos de
fada – na vida real assustam.
Pausa.
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LAPÁKHIN (zangado) – Toda vergonha tem a sua decência!
LHUBA (atônita) – Toma, aqui... (Procura no porta-moedas.) Não tenho
prata... Não importa, toma essa de ouro...
O VIAJANTE – Profundamente agradecido. (Sai.)
Risos.
Pausa.
Pausa.
Pensa, Ánia: o seu avô, o seu bisavô e todos os seus antepassados eram
senhores de escravos, proprietários de almas vivas; de cada cereja desse
jardim, de cada folha, de cada tronco, são seres humanos que te espiam;
você não ouve as vozes...? Ser proprietário de almas vivas – isso
transformou todos vocês, aos que viveram antes e aos que vivem agora,
tanto que a sua mãe, você e o seu tio já não percebem que vivem em dívida,
por conta de outros, por conta daquelas pessoas que vocês não deixam
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passar além da soleira da porta... Estamos atrasados pelos menos duzentos
anos, ainda não temos absolutamente nada, nem sequer uma relação
resolvida com o passado; só sabemos filosofar, nos queixamos da saudade
ou bebemos vodca. Mas é tão claro... Pra começar a viver no presente,
primeiro é preciso redimir o nosso passado, acabar com ele, e só é possível
redimi-lo pelo sofrimento, por um trabalho extraordinário, incansável.
Entenda isso, Ánia.
ÁNIA – A casa em que moramos já não é a nossa casa há muito tempo; eu
vou embora, dou a minha palavra.
TRAFÍMOF – Se você tem as chaves da casa, joga-as no rio e vai embora.
Livre como o vento.
ÁNIA (encantada) – Como você falou bonito!
TRAFÍMOF – Acredita em mim, Ánia, acredita! Eu ainda não cheguei aos
trinta, sou jovem, ainda sou um estudante, mas já tive que agüentar tanta
coisa! Quando vem o inverno, eu passo fome, fico doente, inquieto, viro
um mendigo; o destino me levou e eu fui... E a cada minuto, dia e noite, a
minha alma sempre esteve cheia de pressentimentos indefiníveis. Eu
pressinto a felicidade, Ánia, eu já posso ver a felicidade...
ÁNIA (pensativa) – A lua está nascendo.
Pausa.
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A felicidade, ela vem vindo, está cada vez mais perto, eu já ouço os passos
dela. E se nós não a virmos, se nós não a conhecermos, pra que chorar?
Outros hão de vê-la!
Saem.
A voz de Vária: “Ánia! Ánia!”
Pano.
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TERCEIRO ATO
Uma sala de estar, separada do salão por um arco. O lustre está aceso.
Ouve-se tocar na ante-sala a orquestra judaica, a mesma que foi lembrada
no segundo ato. É noite. No salão dançam o grand-rond. A voz de
Píchtchik: “Promenade à une paire!” Entram na sala de estar: o primeiro
par, Píchtchik e Charlotta, o segundo, Trafímof e Lhuba, o terceiro, Ánia e
o funcionário dos correios, o quarto, Vária e o chefe da estação, e assim
por diante. Vária chora baixinho e, dançando, enxuga as lágrimas. No
último par está Duniácha. Atravessam a sala de estar. Píchtchik grita:
“Grand-rond, balancez!” e “Les cavaliers à genoux et remerciez vos
dames!”
Firs, de fraque, traz água de Seltz (água mineral gasosa) numa bandeja.
Entram Píchtchik e Trafímof na sala de estar.
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PÍCHTCHIK – E daí...? O cavalo é um bom animal... um cavalo pode ser
vendido...
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LHUBA (cantarola uma lesguinka) – Por que Leonid está demorando
tanto? O que é que ele ficou fazendo na cidade? (Para Duniácha.)
Duniácha, ofereça um chá aos músicos...
TRAFÍMOF – É bem provável que o leilão nem tenha acontecido.
LHUBA – Os músicos chegaram fora de hora, começamos o baile fora de
hora... Bom, deixa estar... (Senta-se e cantarola baixinho.)
CHARLOTTA (dá um baralho a Píchtchik) – Aqui o senhor tem um
baralho; pense numa carta qualquer.
PÍCHTCHIK – Já pensei.
CHARLOTTA – Agora embaralhe as cartas. Muito bem. Passe o baralho
pra cá, meu caro senhor Píchtchik. Ein, zwei, drei! Agora coloque a mão no
seu bolso lateral...
PÍCHTCHIK (tira uma carta do seu bolso lateral) – Oito de espadas, isso
mesmo! (Espantado.) Imagine!
CHARLOTTA (coloca o baralho na palma da mão e dirige-se a Trafímof)
– Rápido! Qual é a carta de cima?
TRAFÍMOF – A de cima? É... dama de espadas.
CHARLOTTA – Certo! (Bate na palma da mão e o baralho desaparece.)
Hoje está fazendo um tempo tão bom!
Uma enigmática voz de mulher, como que vinda de sob o chão, responde-
lhe: “É mesmo, senhora, o tempo está excelente.”
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VÁRIA – Vovó lhe autorizou por procuração a comprar no nome dela e a
transferir da dívida. Ela fez isso por Ánia. E eu tenho certeza, Deus vai
ajudar, titio vai comprar tudo de volta.
LHUBA – A vovó de Iaroslav mandou quinze mil pra comprar a
propriedade no nome dela – em nós ela não confia –, mas esse dinheiro não
basta nem pra pagar os juros. (Cobre o rosto com as mãos.) O meu destino
está sendo decidido hoje, o meu destino...
TRAFÍMOF (provoca Vária) – Madame Lapákhin!
VÁRIA (zangada) – Estudante eterno! Duas vezes expulso da
universidade!
LHUBA – Mas pra que ficar zangada, Vária? E daí que ele te chame de
madame Lapákhin? Se quiser, case-se com Lapákhin, ele é um homem
bom, inteligente... Se não quiser, não se case; ninguém te obriga a nada,
minha alma...
VÁRIA – Eu levo isso muito a sério, mamãe, temos que ser diretos. Ele é
um homem bom, eu gosto dele.
LHUBA – Então se case com ele. Não sei o que é que você está esperando.
VÁRIA – Mamãe, não posso eu mesma pedi-lo em casamento. Já faz dois
anos que todos me falam dele, todos, mas ele não diz nada... ou faz piada.
Eu entendo. Ele está ficando rico, vive ocupado, não tem tempo pra mim.
Se eu tivesse dinheiro, pelo menos um pouco, cem rublos que fosse,
largava tudo e iria embora pra longe. Pra um convento.
TRAFÍMOF – Que beatitude!
VÁRIA (Para Trafímof) – Um estudante tem que ser inteligente! (Em tom
suave, com lágrimas.) Como você ficou feio, Pétia, como você envelheceu!
(Para Lhuba, já sem chorar.) Só que não posso ficar sem fazer nada,
mamãe. Cada minuto tenho que fazer alguma coisa.
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Entra Iacha.
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Ouve-se alguém subir correndo uma escada na ante-sala e de repente cair
com um estrondo. Ánia e Vária gritam, mas no mesmo instante ouvem-se
risos.
Ánia e Vária dançam juntas. Entra Firs e coloca a sua bengala perto da
porta lateral. Entra também Iacha, vindo da sala de estar, e observa a
dança.
Entra Ánia.
ÁNIA (agitada) – Um homem disse agora na cozinha que o jardim das
cerejeiras foi vendido hoje.
LHUBA – Pra quem?
ÁNIA – Não disse. Foi embora. (Começa a dançar com Trafímof, e ambos
saem dançando para o salão.)
IACHA – Conversa fiada de um desses tiozinhos. Um estranho.
FIRS – E Leonid Gáief ainda não chegou. Estava com um casaco leve, de
demi-saison, pode pegar um resfriado. Ah, o verdor da juventude!
LHUBA – Vou morrer agora. Vai lá, Iacha, e descobre pra quem a
propriedade foi vendida.
IACHA – Mas ele já foi embora faz tempo, o tiozinho. (Ri.)
LHUBA (com leve enfado) – Mas qual é a graça? Por que a felicidade?
IACHA – É que Epikhodof é muito engraçado. Cabeça oca. Vinte e duas
desgraças.
LHUBA – Firs, se venderem a propriedade, pra onde é que você vai?
FIRS – Pra onde a senhora mandar.
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LHUBA – Que cara é essa? Você não está bem? Talvez fosse melhor ir
dormir...
FIRS – É... (Com um risinho.) Eu vou dormir, e quem é que vai servir, e
quem é que vai dar as ordens? Sou só eu pra casa inteira.
IACHA (para Lhuba) – Lhuba Raniêvskaia! Permita-me por gentileza
fazer-lhe um pedido! Se a senhora for novamente a Paris, me leve consigo,
por obséquio. Pra mim, ficar aqui é decididamente impossível. (Olhando
em volta, a meia voz.) Eu nem preciso dizer, a senhora pode ver com os
próprios olhos, o país é atrasado, o povo não tem moral, além do tédio, é
claro, a cozinha é uma vergonha, e por aqui ainda passa esse Firs
resmungando uma porção de inconveniências. Me leve consigo, por favor!
Entra Píchtchik.
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DUNIÁCHA (parando para empoar-se) – A senhorita Ánia me manda
dançar – muitos cavalheiros, poucas damas –, mas quando eu danço, Firs
Nikoláievitch, a minha cabeça roda, o coração dispara, e agora o
funcionário dos correios me disse uma coisa que eu fiquei sem fôlego.
A música aquieta-se.
VÁRIA – Você ainda não foi embora, Epikhodof? Mas, realmente, você é
um homem que não se dá ao respeito. (Para Duniácha.) Sai, Duniácha.
Primeiro você vai jogar bilhar e quebra um taco, depois fica passeando pela
sala como se fosse um convidado.
EPIKHODOF – Com o perdão da expressão, a senhora não pode me
castigar.
VÁRIA – Eu não estou castigando, eu estou falando. Você só sabe ficar
andando de um lugar pra outro, e trabalho, nada. Nós mantemos aqui um
guarda-livros, não sei pra quê.
EPIKHODOF (ofendido) – Se eu trabalho, se eu ando, se eu como, se eu
jogo bilhar – isso só pode ser colocado em discussão por gente mais velha e
que entende do assunto.
VÁRIA – Você tem a coragem de me dizer uma coisa dessas!
(Enfurecendo-se.) Você tem a coragem? Quer dizer que eu não entendo
nada? Ponha-se daqui pra fora! Imediatamente!
EPIKHODOF (acovardando-se) – A senhora faça o favor de expressar-se
de modo mais delicado.
VÁRIA (fora de si) – Fora daqui, imediatamente! Fora!
Vinte e duas desgraças! Não quero nem sombra de você aqui! Não quero
botar os olhos em você nunca mais!
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Epikhodof saiu; atrás da porta, a sua voz: “Eu vou dar queixa da
senhora.”
Ah, você quer voltar? (Apanha a bengala que Firs deixou junto da porta.)
Vem... Vem... Vem, eu te mostro... Ah, você vai? Vai ou não vai? Toma...
(Brande a bengala, ao mesmo tempo que entra Lapákhin.)
LAPÁKHIN – Muitíssimo obrigado.
VÁRIA (zangada e zombeteira) – Perdão!
LAPÁKHIN – Não foi nada. Muito obrigado pelas boas-vindas.
VÁRIA – Não há de quê. (Afasta-se, depois olha em volta e pergunta
suavemente.) Eu não machuquei, machuquei?
LAPÁKHIN – Não, não foi nada. Mas vai ficar um galo bem grande.
Entra Lhuba.
A porta da sala de bilhar está aberta; ouvem-se o bater das bolas e a voz
de Iacha: “A sete e a dezoito!” Gáief muda de expressão, já não está
chorando.
Estou morto de cansaço. Me ajude a mudar de roupa, Firs. (Vai para o seu
quarto pelo salão, seguido de Firs.)
PÍCHTCHIK – E o leilão? Conta!
LHUBA – O jardim das cerejeiras foi vendido?
LAPÁKHIN – Foi.
LHUBA – Quem comprou?
LAPÁKHIN – Eu comprei.
Pausa.
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Eu comprei! Por gentileza, senhoras e senhores, um pouco de paciência,
tudo está meio embaçado na minha cabeça, não consigo falar direito... (Ri.)
Chegamos ao leilão, Deriganôf já estava lá. Leonid Gáief tinha só quinze
mil, e Deriganôf fez logo um lance de trinta mil acima da dívida. Vejo qual
é o negócio é esse, compro a briga e faço um lance de quarenta mil. Ele,
quarenta e cinco. Eu, cinqüenta e cinco. Ele vai subindo de cinco em cinco,
e eu de dez em dez... Bom, terminou. Eu fiz um lance de noventa mil acima
da dívida, e arrematei. Agora o jardim das cerejeiras é meu! Meu!
(Gargalha.) Deus do céu, o jardim das cerejeiras é meu! Me digam que eu
estou bêbado, que eu perdi o juízo, que tudo isso é fantasia... (Bate com os
pés no chão.) Não riam de mim! Se o meu pai e o meu avô levantassem
agora do caixão e vissem o que está acontecendo... O seu Iermolai, o
Iermolai batido, semi-analfabeto, que corria descalço em pleno inverno,
esse mesmo Iermolai comprou a propriedade que é a coisa mais bonita do
mundo. Eu comprei a propriedade onde o meu avô e o meu pai foram
escravos, onde eles não entravam nem pela porta da cozinha. Eu estou
dormindo, eu estou vendo coisas, isso é só miragem... Isso é fruto da sua
imaginação, perdida nas trevas do desconhecido... (Ergue o molho de
chaves e sorri carinhosamente.) Largou as chaves; quer mostrar que aqui
ela já não é a dona... (Faz tilintar o molho.) Bom, mas tanto faz.
Ei, músicos, toquem, eu quero ouvir vocês! Venham todos assistir Iermolai
Lapákhin descendo o machado no jardim das cerejeiras, e as árvores
caindo por terra! Vamos construir colônias de férias, e os nossos netos e
bisnetos vão ver aqui uma vida nova... Música, maestro!
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Música. Lhuba deixou-se cair na cadeira e está chorando amargamente.
(Com repreensão.) Por que, por que a senhora não me ouviu? Minha pobre
amiga, tão boa, agora não tem mais volta. (Com lágrimas.) Ah, tomara que
tudo isso passe logo, tomara que essa nossa vida desastrada e infeliz arrume
logo um jeito de mudar.
PÍCHTCHIK (pega-o pelo braço, a meia voz) – Ela está chorando. Deixa
ela sozinha, vamos pro salão... Vamos... (Pega-o pelo braço e leva-o para
o salão.)
LAPÁKHIN – O que é que há? Música, alto e bom som! Que tudo seja
como eu quero! (Com ironia.) Olha aqui o novo senhor, o proprietário do
jardim das cerejeiras! (Sem querer, empurrou uma mesinha e quase
derrubou um candelabro.) Eu posso pagar! (Sai com Píchtchik.)
Não ficou ninguém no salão nem na sala de estar, a não ser Lhuba, que
está toda encolhida na sua cadeira, chorando amargamente. A música toca
baixinho. Entram rapidamente Ánia e Trafímof. Ánia se aproxima da mãe e
se ajoelha diante dela. Trafímof permanece no limite do salão.
ÁNIA – Máma!... Máma, você está chorando? Minha querida, boa, linda,
minha mãe, eu te amo... eu te quero tanto bem... O jardim das cerejeiras foi
vendido, não existe mais, é verdade, é verdade, mas não chora, mamãe,
você ainda tem a vida pela frente, você ainda tem a sua alma, tão boa, tão
pura... Vamos embora daqui, nós duas, vamos!... Nós plantamos um novo
jardim, mais deslumbrante que esse, você vai ver, vai entender, e a alegria,
uma alegria mansa, profunda, vai pousar na sua alma, como o sol no fim da
tarde, e você vai sorrir, máma! Vamos, meu amor! Vamos!...
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Pano.
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QUARTO ATO
GÁIEF – Você deu a bolsa pra eles, Lhuba. Assim não pode! Assim não
pode!
LHUBA – Eu não me segurei! Eu não me segurei!
Saem ambos.
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LAPÁKHIN (para a porta, à saída deles) – Por favor, eu lhes peço
encarecidamente! Uma tacinha de despedida. Me esqueci de comprar na
cidade, e na estação só achei uma garrafa. Por favor!
Pausa.
Pausa.
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Entra Trafímof, de casaco, vindo de fora.
TRAFÍMOF – Acho que já está na hora. Os cavalos estão prontos. Mas que
inferno, onde é que estão as minhas galochas? Sumiram. (Para a porta.)
Ánia, as minhas galochas! Não estou achando!
LAPÁKHIN – E eu estou indo pra Khárkof. Vou com vocês no mesmo
trem. Em Khárkof passo o inverno todo. Fiquei aqui batendo papo com
vocês, estou exausto de não fazer nada. Sem trabalho eu não agüento, não
sei o que fazer com as mãos; ficam assim, bobas, parecem de outra de
pessoa.
TRAFÍMOF – Já estamos indo embora, e o senhor logo vai poder retomar a
sua proveitosa labuta.
LAPÁKHIN – Bebe uma tacinha.
TRAFÍMOF – Não.
LAPÁKHIN – Quer dizer que agora você vai pra Moscou?
TRAFÍMOF – É. Acompanho todos até a cidade, e amanhã embarco pra
Moscou.
LAPÁKHIN – É... Com certeza os professores estão esperando só você pra
começarem as aulas!
TRAFÍMOF – Não é da sua conta.
LAPÁKHIN – Há quantos anos você estuda na universidade?
TRAFÍMOF – Invente outra. Essa é batida demais. (Procura as galochas.)
Sabe, talvez não nos vejamos mais, e por isso deixe eu lhe dar um conselho
de despedida: pare de chacoalhar os braços! Perca esse costume –
chacoalhar. E esse negócio de construir colônias de férias, calculando que
com o tempo os veranistas vão cultivar essa terra – imaginar uma coisa
dessas também é chacoalhar... No fim das contas, apesar dos pesares, eu
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gosto de você. Você tem dedos finos, delicados, dedos de artista, e uma
alma fina, delicada...
LAPÁKHIN (abraça-o) – Adeus, meu caro. Obrigado por tudo. E, pro caso
de você precisar, deixe eu lhe dar um dinheiro pra viagem.
TRAFÍMOF – Pra quê? Não vou precisar.
LAPÁKHIN – Mas você não tem nenhum!
TRAFÍMOF – Tenho, sim. Eu lhe agradeço. Recebi por uma tradução.
Aqui, ó, no bolso. (Inquieto.) E as minhas galochas, nada!
VÁRIA (do outro quarto) – Toma essa sua porcaria! (Joga no palco um
par de galochas de borracha.)
TRAFÍMOF – Mas pra que ficar zangada, Vária? Hum... Essas não são as
minhas galochas!
LAPÁKHIN – Na primavera eu plantei mil hectares de papoula, e agora
tive um lucro de quarenta mil, líqüidos. E quando as papoulas deram flor...
que quadro! Então, já que faturei quarenta mil, estou lhe oferecendo um
empréstimo, não vai me fazer falta. Pra que empinar o nariz? Eu sou um
mujique... comigo não tem cerimônia.
TRAFÍMOF – O seu pai era mujique, o meu era farmacêutico, o que não
quer dizer coisa nenhuma.
Deixa, deixa... Pode me oferecer até vinte mil, que eu não aceito. Eu sou
um homem livre. Tudo isso que vocês, ricos e pobres, consideram tão
sublime e tão precioso não tem o menor poder sobre mim – é como o pó
que flutua no ar. Eu posso passar muito bem sem você, posso ignorar você,
sou forte e orgulhoso. A humanidade caminha pra a verdade mais alta, pra a
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felicidade mais alta que possa haver aqui na terra, e eu estou nas primeiras
filas!
LAPÁKHIN – Você também?
TRAFÍMOF – Eu também.
Pausa.
DUNIÁCHA – Pelo menos uma olhadinha pra mim, Iacha. Você vai
embora... vai me abandonar... (Começa a chorar e atira-se ao pescoço
dele.)
IACHA – Chorar por quê? (Bebe champanhe.) Daqui a seis dias, Paris de
novo. Amanhã pegamos o expresso e... ah!, se vissem a gente... Nem posso
acreditar. Vive la France!... Esse lugar não é pra mim, não consigo viver
aqui... não tem jeito. Já vi ignorância demais – pra mim chega. (Bebe
champanhe.) Chorar por quê? Se você se comportar direito, não vai mais
chorar.
DUNIÁCHA (empoa-se, olhando num espelhinho) – Me manda uma carta
de Paris. Você sabe como eu te amei, Iacha, como eu te amei! Eu sou uma
criatura delicada, Iacha!
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IACHA – Vem vindo gente. (Ocupa-se com a bagagem e cantarola
baixinho.)
GÁIEF – Já está na nossa hora. Falta pouco. (Olhando para Iacha.) Que
cheiro de arenque é esse?
LHUBA – Daqui a uns dez minutos, já vamos entrando nas carruagens...
(Lança um olhar pelo aposento.) Adeus, casa querida, adeus, meu velho
avô. Vai passar o inverno, vai chegar a primavera, e você não vai estar mais
aqui, vão te derrubar. Essas paredes viram tanta coisa! (Beija
calorosamente a filha.) Meu tesouro, você está luminosa, os olhos
brilhando como dois diamantes. Você está contente? Bem contente?
ÁNIA – Muito! Vida nova, mamãe!
GÁIEF (alegre) – Agora de fato está tudo bem. Antes da venda do jardim,
todos nós vivíamos preocupados, sofrendo, mas depois que a questão foi
resolvida definitivamente, irrevogavelmente, todos nos acalmamos, e até
ficamos alegres... Eu sou um ótimo funcionário do banco, agora eu sou um
financista... a amarela na caçapa do meio, e você, Lhuba, apesar dos
pesares, está com um aspecto muito melhor, sem dúvida.
LHUBA – É. Os meus nervos melhoraram, é verdade.
Estou dormindo bem. Leve as minhas coisas, Iacha. Está na hora. (Para
Ánia.) Minha menina, nós nos vemos logo... Vou viver em Paris com o
dinheiro que a sua avó de Iaroslav mandou pra compra da propriedade –
viva a sua avó! –, mas esse dinheiro não vai dar por muito tempo.
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ÁNIA – Você vai voltar logo, mamãe... não é verdade? Eu vou estudar
muito, vou passar nos exames do liceu, e depois vou trabalhar e ajudar
você. Vamos ler livros juntas... Não é verdade? (Beija as mãos da mãe.)
Nas noites de outono vamos ler muitos livros, e pra nós vai se abrir um
mundo novo, maravilhoso... (Devaneia.) Volta, mamãe...
LHUBA – Volto, minha jóia. (Abraça a filha.)
Entra Lapákhin, e Charlotta cantarola baixinho uma canção.
“Uá!... uá!...”
Eu tenho tanta pena de você! (Joga a trouxa no lugar onde estava.) Então
por favor o senhor me arranje um lugar. Assim não dá.
LAPÁKHIN – Arranjamos, Charlotta Ivánovna, não se preocupe.
GÁIEF – Todos estão nos abandonando... Vária vai embora... de repente
somos inúteis.
CHARLOTTA – Na cidade eu não tenho onde morar. É preciso ir embora...
(Cantarola.) Tanto faz...
Entra Píchtchik.
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LAPÁKHIN – Prodígio da natureza!...
PÍCHTCHIK (arquejando) – Ah, me deixem tomar fôlego... estou
exausto... Meus respeitáveis... Um pouco d’água...
GÁIEF – E um pouco de dinheiro também, não é? Pelo amor de Deus,
livrai-me da tentação...
PÍCHTCHIK – Já faz um tempinho que não venho aqui... belíssima... (Pra
Lapákhin.) Você aqui... fico feliz em te ver... homem de vastíssima
inteligência... toma... aqui... (Dá um dinheiro a Lapákhin.) Quatrocentos
rublos... Fico devendo oitocentos e quarenta.
LAPÁKHIN (dá de ombros, perplexo) – Estou sonhando... Onde é que
você arrumou isso?
PÍCHTCHIK – Um instante... Que calor... Um fato extraordinário. Uns
ingleses descobriram na minha terra uma tal argila branca... (Para Lhuba.)
E pra senhora quatrocentos... linda, espantosa... (Dá o dinheiro a Lhuba.) O
restante, depois. (Bebe água.) Agora mesmo um rapaz no vagão dizia que
um... um grande filósofo recomenda pular dos telhados... “Pula!” – diz ele,
e aí é que são elas. (Espantado.) Imagine! Água!...
LAPÁKHIN – Que ingleses são esses?
PÍCHTCHIK – Aluguei pra eles um terreno de argila pelo período de vinte
e quatro anos... Agora me desculpem, estou com pressa... Tenho que tocar
em frente... São tantos... O Znôikof... o Kardamônof... Estou devendo pra
todos... (Bebe.) Saúde... Passo aqui na quinta-feira...
LHUBA – Agora vamos pra cidade, e amanhã eu cruzo a fronteira...
PÍCHTCHIK – Como? (Alarmado.) Por que pra cidade? Esses móveis...
essas malas... Bom, tudo bem... (Entre lágrimas.) Tudo bem... Gente de
imensa inteligência... esses ingleses... Tudo bem... Seja feliz... Que Deus
lhe ajude... Tudo bem... Tudo acaba nesse mundo... (Beija a mão de
Lhuba.) E, quando chegar aos seus ouvidos a notícia do meu fim, lembre-se
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desse... desse cavalo e diga: “Existiu nesse mundo um fulano assim,
assado... Simeônof-Píchtchik... que Deus o tenha...” Que tempo
esplendorosíssimo... É... (Vai saindo fortemente desconcertado, mas volta-
se no mesmo instante e fala da porta.) Dáchenka mandou lembranças...
(Sai.)
LHUBA – Agora podemos ir. Viajo levando duas preocupações. A primeira
é Firs doente. (Olhando o relógio.) Ainda temos cinco minutos...
ÁNIA – Mamãe, já mandaram Firs pro hospital. Iacha cuidou disso hoje de
manhã.
LHUBA – A minha segunda aflição é Vária. Ela se acostumou a levantar
cedo pra trabalhar, e agora, sem nada pra fazer, é um peixe fora d’água.
Ficou magra, pálida, e vive chorando, coitada...
Pausa.
O senhor sabe disso muito bem, Iermolai Lapákhin; o meu sonho era...
casá-la com o senhor, e tudo indicava que o senhor também queria o
casamento. (Sussurra no ouvido de Ánia, esta meneia a cabeça para
Charlotta, e saem ambas.) Ela ama o senhor, o senhor gosta dela, e eu não
sei, não sei por que vocês dois parecem se evitar. Não entendo!
LAPÁKHIN – Pra dizer a verdade, eu também não entendo. É tudo tão
estranho... Se ainda há tempo, eu estou pronto agora mesmo... E chega,
vamos acabar com isso de uma vez por todas; e, sem a senhora aqui, sinto
que nunca vou conseguir fazer o pedido.
LHUBA – Ótimo. Não leva mais que um minuto, só um minuto. Vou
chamar Vária aqui...
LAPÁKHIN – Tem até champanhe. (Olhando as tacinhas.) Vazias, alguém
já bebeu.
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Iacha tosse.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
Uma voz , na porta, vindo de fora: “Iermolai Lapákhin!...”
Vária, sentada no chão, pôs a cabeça sobre uma trouxa de roupas e soluça
baixinho. A porta se abre e entra Lhuba, cautelosamente.
LHUBA – E aí?
Pausa.
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VÁRIA (já não está chorando, enxugou os olhos) – É, mamãe, está na
hora. Se vocês não perderem o trem, eu chego ainda hoje na casa dos
Ragúlin...
LHUBA (para a porta) – Ánia, o seu casaco!
Entra Ánia, depois Gáief e Charlotta. Gáief veste um casaco pesado com
um bachlyk (uma espécie de capuz com abas longas). Entram a empregada
e cocheiros. Epikhodof ocupa-se das bagagens.
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GÁIEF – Uma vez, quando eu tinha seis anos, fiquei sentado aqui nessa
janela no dia da Santíssima Trindade olhando o meu pai ir pra igreja...
LHUBA – Levaram tudo?
LAPÁKHIN – Parece que sim. (Para Epikhodof, vestindo o casaco.) Veja
lá, Epikhodof, que tudo fique em ordem.
EPIKHODOF (com voz rouca) – Pode ficar tranqüilo, Iermolai Lapákhin!
LAPÁKHIN – Que voz é essa?
EPIKHODOF – Fui beber água e veio alguma coisa junto.
IACHA (com desprezo) – Que ignorância...
LHUBA – Nós vamos embora – e aqui não fica nem uma alma...
LAPÁKHIN – Até a primavera.
VÁRIA (arranca de um pacote um guarda-chuva, como se ela fosse
brandi-lo contra alguém; Lapákhin faz que se assusta) – O que é isso? O
que é isso?... Eu nem pensei...
TRAFÍMOF – Senhores, vamos pras carruagens... Já é hora! O trem já vai
chegar!
VÁRIA – Pétia, olha aí as suas galochas, ao lado das malas. (Com
lágrimas.) Que imundas, que velhas...
TRAFÍMOF (vestindo as galochas) – Vamos, senhores!...
GÁIEF (muito perturbado, com receio de chorar) – O trem... a estação...
Croisé na do meio, douplet na branca, na caçapa do canto...
LHUBA – Vamos!
LAPÁKHIN – Todos aqui? Não ficou ninguém lá? (Tranca a porta lateral
esquerda.) Aí dentro tem coisas guardadas, a gente tem que trancar tudo.
Vamos!...
ÁNIA – Adeus, casa! Adeus, vida velha!
TRAFÍMOF – Salve, vida nova!... (Sai com Ánia.)
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Vária percorre o aposento com o olhar e sai sem pressa. Saem Iacha e
Charlotta com o cachorrinho.
Lhuba e Gáief ficaram a sós. Como se tivessem ansiado por esse momento,
atiram-se um nos braços do outro e soluçam contidos, baixinho, com
receio de serem ouvidos.
LHUBA – Já vamos!...
Saem.
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Palco vazio. Ouvem-se o barulho de todas as portas sendo trancadas e, em
seguida, as carruagens afastando-se. Instaura-se o silêncio. Em meio ao
silêncio ressoa o golpe surdo de um machado numa árvore, solitário e
triste. Ouvem-se passos. Da porta da direita surge Firs. Veste, como
sempre, casaca e colete branco, mas calça chinelas. Está doente.
Pano.
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