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O IMPÉRIO DA REPRESENTAÇÃO: A VIRADA
CULTURAL E A GEOGRAFIA
Resumo: Visamos, neste artigo, demonstrar como a ascensão da pós-modernidade e da chamada virada cultural
mudaram muitos aspectos teóricos das ciências humanas, em um nítido movimento de afastamento de algumas
premissas do marxismo, provocando transformações importantes na geografia cultural. Veremos que se reafirma a
perspectiva de que a cultura é algo móvel e indefinível em detrimento de visões que encontravam essências
imutáveis para cultura, que serviam muitas vezes com instrumento de dominação social. Para isso, comparamos o
pensamento de Harvey e Jameson sobre a pós-modernidade, bem como algumas elaborações de Duncan e Mitchell
sobre a nova geografia cultural. Finalmente, oferecemos algumas críticas aos pontos estabelecidos no debate
incorporado pela nova geografia cultural.
Palavras-chave: virada cultural, nova geografia cultural, pós-modernismo, cultura, ontologia.
Introdução________________________
No presente artigo buscaremos
“Mas não adianta fingir que tudo o elucidar alguns pontos da história da
que conhecemos sobre o tempo e o geografia cultural que nos permitam
espaço, ou melhor, a história e a compreender o impacto da virada cultural
geografia, é mais do que outra coisa, nas ciências sociais, em especial, na
imaginativo.”
geografia anglo-saxã. Muito longe de
Edward W. Said “Orientalismo”, 2007
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esgotar esse complexo tópico da teoria modernidade com seu multiculturalismo,
social contemporânea, almejamos explorar relativismo cultural e presentificação da
apenas alguns de seus aspectos, uma vez utopia e, finalmente, demonstraremos
que muitos pesquisadores brasileiros e como tais elementos foram trabalhados
estrangeiros assimilaram, total ou pelos geógrafos, alguns mais ligados ao
parcialmente, algumas de suas marxismo, outros mais distantes dessa
características, sem uma ponderação perspectiva, vista como “superada”. Por
crítica. É possível verificar que cada vez fim, realizaremos alguns apontamos
mais estamos estudando situações críticos sobre o debate da cultura na pós-
pontuais na geografia cultural – alguns modernidade.
supostos radicais críticos encontram
geografias ao versarem sobre a novela das Da superação do superorgânico à busca
oito, mas não tratam nem da alienação, de um novo sentido para cultura _____
nem da indústria cultural de massas,
muito menos de classes sociais – sem nos Qualquer um que tenha se
referirmos à totalidade social e às interessado minimamente pela história da
articulações entre o político, o econômico geografia cultural pôde perceber que este
e o cultural. Tentaremos elucidar como a subcampo da geografia surgiu
virada cultural pode ter relação com esse estabelecendo um contato muito intenso
processo, impondo um conceito de cultura com a antropologia. Torna-se cada vez
que tudo engloba e que não possui mais comum a leitura do texto de Linda
exatamente uma ontologia. Paralelamente, McDowell (1995) e sua exposição das
é interessante a consideração de R. Jacoby linhas gerais do desenvolvimento da
(2001) de como atualmente ao invés de um geografia cultural, pois diferentemente do
comprometimento social, muitos que se poderia sugerir, o projeto inicial de
pesquisadores têm se engajado em temas Sauer era propô-la como equivalente da
de pesquisa que são divertidos ou geografia humana, portanto, um ramo de
interessantes, mesmo que sua relevância nossa disciplina mais amplo do que um
social seja restrita. subcampo, que seria meramente posto ao
Inicialmente, veremos lado da geografia política ou econômica.
considerações sobre a geografia cultural Apesar de Sauer ter feito sua
clássica e seu conceito de cultura, a seguir graduação na Alemanha, segundo seu
exploraremos o impacto da pós- próprio relato, o contato com a obra de
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Ratzel ocorrerá nos Estados Unidos. O A biogeografia que se relaciona
geógrafo alemão lhe seria apresentado com os problemas da sociedade encaminha
pelos antropólogos cuja convivência e o o pensamento saueriano para o uso do
intercâmbio com Sauer foram longos e método ecológico, outro tema que
profícuos, notadamente, nas figuras de compõem sua agenda de interesses. De
Alfred Kroeber e R. Lowie. Contudo, volta aos Estados Unidos, Sauer se depara
destaca-se o fato de que Sauer foi com um ambiente intelectual onde o
influenciado pelo pensamento geográfico determinismo – ou ambientalismo como
alemão que lhe foi contemporâneo e não consta em algumas traduções para o
seria um exagero dizer que sua obra português – dominava, em função das
buscou construir um síntese das suas heranças intelectuais deixadas, seja por E.
principais posições metodológicas, apesar Semple, seja por Ellsworth Huntington,
de seu contato tardio com o pensamento devido às interpretações dadas à obra de
ratzeliano. De um lado, O. Schülter e sua Ratzel. Talvez isso explique o
geografia da paisagem fornecem subsídios distanciamento temporário entre Sauer e o
para que Sauer reafirme o papel do criador da antropogeografia.
método morfológico para o estudo Sauer não encontra apenas a
geográfico, porém, o mero estudo das referência de Ratzel dentre os
formas não é suficiente para compreender antropólogos, pois eles ofertam uma teoria
a complexidade do espaço, uma vez que sobre a cultura, que foi incorpora
são incorporadas as contribuições de rapidamente como fundamento para o
Alfred Hettner sobre a diferenciação de estudo das sociedades indígenas
áreas, sendo a paisagem e o estudo de americanas. Além de uma preocupação
outras variáveis não estritamente formais com os povos “tradicionais”, a teoria da
importantes para a delimitação das cultura e seu apelo histórico ajudam Sauer
chamadas áreas culturais (ETGES, a compreender a formação do território
2012)1. Paralelamente a essas opções de estadunidense e os hábitos dos imigrantes
método, o pensamento de E. Hahn sobre a e colonizadores. A teoria da antropologia
difusão, distribuição e domesticação de cultural de Kroeber vê a cultura como
plantas e animais pelo homem também são uma entidade autônoma da própria
incorporadas, expondo Sauer sociedade, mas em níveis mais básicos
indiretamente a uma problemática afim analisa a sociedade e seus idiomas como
das preocupações ratzelianas. mecanismo de troca simbólica, assim como
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o indivíduo e sua psicologia para difusão de traços culturais, de forma a
compreender a formação de sua identidade problematizar leituras de alguns
social. Esses temas são extremamente evolucionistas que tendem a ver as
importantes, sendo que mesmo atualmente culturas de maneira mais ou menos
a antropologia não perdeu de vista a isolada. A novidade da difusão acompanha
preocupação com a linguística ou com a o uso indiscriminado do chamado método
psicologia, o que fica muito nítido ao comparativo, que permite observar a
analisar pensadores como Claude Lévi- correspondência de características
Strauss ou Roy Wagner. culturais. Uma vez transmitidos, os traços
Curiosamente, A. Kroeber foi culturais sofreriam adaptações e
discípulo de Franz Boas, que por sua vez, assimilações, sendo possível estabelecer
fora aluno de Ratzel, sob forte influência, círculos culturais (kulturkreis) de povos
portanto, da geografia. Sendo assim, a que trocaram determinados traços.
antropogeografia e seu temas clássicos Claramente, tais concepções se
como a difusão, a compreensão dos povos articularam com a “superioridade racial”
com e sem Estado, a dispersão e de alguns povos e a concepção que certos
diferenciação das “raças” tiveram um grupos seriam mais inventivos do que
grande impacto tanto na geografia, quanto outros. Contudo, se o termo círculo
na recém formada antropologia. Vemos cultural parece estranho aos ouvidos do
então que ambos campos também geógrafo, na antropologia, Leo Frobenius,
compartilham ideias e vocações F. Graebner e W. Schmidt trataram de
imperialistas, ora mais explícitas, ora mais usá-lo sistematicamente, inclusive
tênues. Nesse sentido, Boas teve o papel ressaltando o critério formal para
de desmascarar o conceito de raça e averiguar a materialidade da difusão
manter uma firme posição a favor da (ERICKSON e MURPHY, 2015, p. 60-
democracia e do interesse científico em 64). Franz Boas tem razão de desconfiar
compreender as culturas americanas, em dos abusos do método comparativo, que
rápido processo de aculturação. muitas vezes intercruzou traços culturais
Um fato que nos chama a atenção, em contextos espaciais completamente
ao consultamos um manual de história da distintos – mais tardiamente, com T.
teoria antropológica, é que nosso Hägerstrand, a geografia sofreria mais um
controverso Ratzel tem um valor claro na ciclo de preocupações com o tema da
antropologia. Ele introduz o tema da difusão, agora focado na técnica.
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A chamada antropologia cultural, autodeterminante e determinante da
impulsionada por Boas e continuada por sociedade.
Kroeber e outros, forneceu para a Do mestre Boas, a antropologia
geografia cultural uma definição de cultural perpetua a abordagem das áreas
cultura supraorgânica, ou seja, a cultura culturais que conferem a Sauer um
seria uma entidade acima da sociedade e parâmetro para o recorte regional, além da
com total autonomia para determiná-la em incorporação do historicismo, vigorosa
suas formas estéticas, linguísticas, bem tradição do pensamento alemã.
como sua psicologia social. Da mesma Relacionada à área se desdobra a célebre
forma que o Estado-nação de Ratzel era divisão entre paisagem natural e cultural,
compreendido como uma metáfora separando a percepção do geógrafo a
orgânica, a cultura para Kroeber é similar partir de uma dicotomia básica que
a um organismo que nasce, cresce e morre, permite compreender como a cultura é
o que infelizmente pode oferecer uma capaz de modificar a natureza e a
interpretação de que o desaparecimento de sociedade, compondo formas que se
determinadas culturas, como a dos traduzem, por exemplo, no habitat. Diga-
indígenas americanos, seria algo normal, se de passagem, Sauer problematizou o
daí a importância de se catalogar essas método positivista incorporando alguns
manifestações. Isso induz Roy Wagner, elementos da fenomenologia como, por
mais contemporaneamente, a afirmar que exemplo, a indissociabilidade entre sujeito
a antropologia cultural tenderia a e objeto, o que deriva em uma série de
acumular a cultura em um grande museu, imperativos que seriam fundamentais para
em busca de sua essência autêntica, que ao a geografia, como a realização de trabalho
final não passa de uma invenção do de campo ou ainda o ensino da percepção,
próprio antropólogo. Como vemos, ou seja, a experiência empírica como um
Kroeber problematiza pouco a origem das elemento fundamental para a elaboração e
culturas, mesmo que ele confira um papel refutação do saber (SAUER, 2000a).
importante à linguagem em um contexto A preocupação com o indivíduo fez
que a cultura independe da sociedade e com que Sauer concatenasse a ideia de
que, portanto, tautologicamente, sua habitat e hábito social, em seu famoso
própria existência basta como explicação texto sobre a colonização da fronteira
para o seu surgimento e desenvolvimento. interna dos Estados Unidos (LEIGHLY,
A essência da cultura é a própria cultura, 1963). A aculturação, tema tradicional da
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antropologia cultural, aparece relações entre natureza e sociedade e,
discretamente, por exemplo, quando é consequentemente, o pensamento de
possível perceber a absorção, dentre Ritter, Ratzel e Vidal de la Blache.
colonos europeus, de técnicas agrícolas e Humboldt coloca o fundamento de uma
hábitos dos povos indígenas. Nesse texto segunda tradição, não antropocêntrica,
sintético e primoroso, se demonstra a que se dedica aos aspectos físicos e
nítida inter-relação entre geografia naturais, tais como a geomorfologia. A
cultural e histórica no projeto intelectual última tradição, que Sauer declara sua
de Sauer, sendo que o percurso histórico filiação, é a da corologia de Hettner, ou
demonstra como o território seja, de que a geografia seria uma ciência
estadunidense se formou com base nas da diferenciação de áreas. No entanto, essa
diferenças entre as áreas culturais, onde se análise oculta alguns balizamentos que
encontram os imigrantes aculturados, que Sauer fez sobre as tradições geográficas da
desvelam paisagens naturais. antiguidade. É evidente sua valorização do
Contrapondo-se a Hartshorne com pensamento de Heródoto como alguém
esse posicionamento, Sauer disputa o que já se dedicava à diferença de áreas e
legado de Hettner na geografia norte- também Aristóteles, cuja obra inspirou,
americana. Enquanto o primeiro despreza em seu pensamento, a instrumentalização
o conceito de paisagem e a ideia de uma da ideia de estrutura, processo, forma e
geografia histórica, Sauer de maneira função, utilizados para a análise da
inovadora defende que a geografia pode morfologia da paisagem, possibilitando
usar seu arsenal teórico para estudar seu encadeamento com elocubrações
seções temporais, de forma a contribuir históricas. É possível identificar ainda
com uma restituição do processo claramente a influência de Goethe e seu
formativo das morfologias paisagísticas. método morfológico, valorizado pelo
Nesse sentido, o pensamento saueriano próprio Sauer, além da estima pelas ideias
não é nada simplista, uma vez que, assim do romantismo alemão como o apreço pela
como Hartshorne em seu The Nature of vida campestre e a desconfiança do mundo
Geography, ele tenta identificar grandes moderno.
tradições geográficas. No artigo “A Ainda sobre a relação entre
geografia cultural”, nosso autor delineia psicologia e cultura, seara de interesse
três tradições, uma que se relaciona à para Boas e Kroeber, é possível se deparar,
temática do ambientalismo, envolvendo as de maneira indireta no texto sobre o
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homestead act (LEIGHLY, 1963), com o pontos altos da questão foi a gestão de I.
tema da personalidade. Sauer demonstra Bowman na União Geográfica
claramente como a frente pioneira que Internacional, no início do século XX, em
ocupou o território estadunidense que o tema da colonização, da ocupação
desenvolveria uma personalidade própria territorial ou da geografia do pioneirismo
a partir de suas culturas e hábitos, análise ganhou destaque, juntamente com a
também aplicada ao México, no seu discussão sobre o habitat. Isaiah Bowman,
célebre texto, The personality of Mexico. nos Estados Unidos e Albert Demangeon,
Tal preocupação relembra claramente o na França, foram importantes
estudo clássico do historiador Frederick articuladores do tema que encontrou ecos,
Jackson Turner que buscou encontrar o por exemplo, na geografia de Pierre
significado histórico da fronteira para a Monbeig, ou ainda, na de Leo Waibel
sociedade estadunidense, ou seja, como a (NOGUEIRA, 2013, p. 222).
mentalidade dos migrantes teria auxiliado Voltando a Sauer, como podemos
na formação territorial e, até certa medida, perceber, nosso autor trocou o
na composição ideológica de uma nação. É ambientalismo por uma espécie de
interessante perceber que Turner chamou determinismo cultural, no entanto, não
a atenção de Plekhânov que também podemos negar que o diálogo com a
realizou um estudo semelhante sobre a antropologia enriqueceu enormemente a
fronteira interna russa e suscitou uma geografia. Aqui esboçamos aspectos
preocupação grande no campo geográfico. sociais de sua geografia cultural e
Da mesma forma, não podemos deixar de histórica, contudo, Sauer desenvolveu de
ressaltar que a ideia de personalidade forma profícua temas ligados às mudanças
cultural teve desdobramentos na ambientais e à dispersão de cultivos na
antropologia estadunidense. América. Sauer acumulou um grande rol
O tema da colonização foi de suma de experiência de campo no intuito de
importância para a geografia em vários compreender a magnitude histórica e
países do mundo. No início do século XX, geográfica da ação e dispersão humana no
a colonização se refere aos países com continente americano.
domínios de além-mar, mas também aos Alguns comentadores destacam
países que buscavam ocupar os vazios que uma parte substantiva da obra de
demográficos, fazendo avançar a fronteira Vidal de la Blache se dedicava a
interna e colonizar o interior. Um dos compreender espaços que ainda não
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haviam se modernizado, uma vez que o dois autores, apesar de eles serem bastante
estudo das estruturas regionais e os distintos – seriam elucidativas.
gêneros de vida seriam drasticamente De qualquer forma, Sauer abriu
alterados após os conflitos mundiais do uma rica seara para o estudo da cultura
século XX. Além disso, a difusão de sob o viés geográfico, incorporando
inovações no campo das comunicações e elementos da antropologia de Kroeber, de
dos transportes induziriam o contato Franz Boas e retrabalhando arcabouço de
cultural cada vez mais intenso. Se de Vidal Ratzel sob um viés até então inexplorado
de la Blache se destacou parte de sua obra nos Estados Unidos. Como vimos, a
sobre o arcaico campo francês, deixando incorporação de elementos
em segundo plano temas como a indústria epistemológicos da fenomenologia
ou as cidades, Sauer, por sua vez, se incentivou o desenvolvimento da
dedicou mais ou mundo rural dos colonos geografia humanística, por parte de seus
e dos indígenas, no tocante à sua discípulos. Paralelamente, Sauer tinha
conformação histórica, do que aos espaços clareza, no final da vida, que a cultura
modernos. Nesse sentido, sua geografia estava se tornando cada vez mais
também era voltada para o passado, ou homogênea, ou seja, sua diversidade
melhor, deixou de lado os processos de estava sendo erodida, substituída por
modernização. Mas, como vemos Sauer e padrões cada vez mais rígidos e
Vidal de la Blache tinham um especial uniformizados.
apreço pela difusão e pela circulação e,
igualmente, não se pode negar a dimensão Como ocorre a virada? ______________
cultural do gênero de vida, fortemente
atrelada ao regionalismo e aos hábitos da No Brasil, a geografia humanística
cultura popular campestre. Da mesma e determinadas correntes da geografia
forma, alguns discípulos de Vidal de la cultural ganharam força no início da
Blache se aproximaram da ecologia, como década de 1990, um pouco após à
foi o caso de Max Sorre. Assim, nos parece valorização de leituras pós-modernas
que uma comparação entre essas duas aplicadas à geografia, que chegavam
geografias e suas raízes – pode-se seletivamente do exterior. Essa recepção
identificar, por exemplo, um pano de contrastava com uma geografia crítica que
fundo neokantiano no pensamento dos entrava em fase de refluxo em função da
reconquista da democracia no Brasil e,
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posteriormente, devido ao fim da União Curiosamente, aqui temos um afastamento
Soviética. Passada a onda crítica, o lento do marxismo, mas, ao mesmo tempo,
modismo dá lugar a outra voga no uma mistura de alguns de seus elementos
mercado do capital cultural acadêmico da com os debates da pós-modernidade.
geografia, colocando o marxismo fora da Como nos coloca McDowell (1995), na
moda. chamada nova geografia cultural, de uma
Contrariamente ao que se poderia forma geral, podemos identificar uma
pensar, nos Estados Unidos, como reação linha mais ligada ao estudo da paisagem e
à nova geografia surgiu tanto o grupo da outra vinculada aos chamados estudos
geografia radical, quanto o da geografia culturais.
humanística. É justamente nesse contexto McDowell coloca justamente como
que uma parte da geografia cultural vai as modernizações e o capitalismo se
sofrer drásticas mudanças recebendo impuseram em vários lugares do mundo,
influências do marxismo, do alterando o modo de vida tradicional. A
existencialismo e, gradativamente, das nova geografia cultural tenta responder a
teorias pós-modernas que começavam a esse processo de mudança, uma vez que o
ganhar força. Entendemos aqui que, êxodo rural, a industrialização e o
apesar dos contatos e correlações, a surgimento das metrópoles globais
geografia humanística, ligada à alterou drasticamente a mentalidade e a
fenomenologia, manteve contatos com a cultura dos grupos humanos, impondo-
antropologia – vide a obra de Yi-fu Tuan lhes um alto grau de complexidade. Assim,
–, porém compôs um campo de estudos enquanto a escola da paisagem se dedica à
mais diverso, que propunha refundar as compreensão de seus significados
bases epistemológicas da geografia. cambiantes que formam um discurso de
Assim, a chamada nova geografia múltiplos significados, para aqueles que se
cultural, com preocupações e temáticas um inspiram nos estudos culturais, o
tanto distintas da humanística ou da pensamento de Gramsci no tocante às
geografia cultural “tradicional”, surge, hegemonias no campo da cultura tem
como nos coloca Barnett (1998), em um grande relevância, admitindo-a como um
cenário posterior à onda mais radical da complexo contraditório e plural.
geografia crítica, ou seja, no final da Acrescenta-se ainda a abordagem
década de 1980, diante de um marxismo contextualista e materialista da produção
que se torna cada vez mais enfraquecido. da cultural de R. Williams, que possui
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fundamental importância. Assim, o coautoria de Ley, publica, em 1982, um
cotidiano, a vida material, as novo artigo fazendo um ataque frontal ao
representações sociais e a identidade marxismo estruturalista que até então era
passam a ser o foco de algumas questões, predominante na geografia crítica. Os
incorporando, muitas vezes, o debate pós- autores tentam, de forma inusitada,
moderno. demonstrar como, do ponto de vista
Para compreender a mutação e o filosófico, o marxismo seria uma forma de
arrefecimento do marxismo, é importante conhecimento em si essencialista, porque
notar que esse processo se relaciona, entre assim como no supraorgânico cultural, o
outros fatores, com o texto de Duncan estruturalismo cria entidades como o
(1980), que apesar de ter sido publicado capital ou a luta de classes que direcionam
tardiamente se comparado aos tempos o desenvolvimento humano. Essas
áureos da escola saueriana, propõe um explicações holísticas e as referências à
ataque frontal à concepção de cultura totalidade, categoria clássica do
adotada pela geografia. No célebre artigo, marxismo, disporiam entidades reificadas
Duncan expõe claramente a natureza e que, portanto, dificultam a percepção da
essencialista e tautológica da cultura para realidade. Assim, a grande narrativa das
Kroeber, em que muitas perguntas ficam estruturas sociais, da totalidade e do pré-
sem resposta, por exemplo, como surgem estabelecimento do funcionamento social
as culturas diante do fato de elas serem atrapalham a compreensão do mundo
entidades autônomas da sociedade. empírico. Duncan e Ley direcionam parte
Apesar da contribuição de Duncan, de sua crítica ao estruturalismo de David
se cria um impasse diante da definição do Harvey, no entanto, é importante ressaltar
que seria a cultura. Inicia-se então um que diferentemente do usual, que consistia
novo ciclo de diálogos interdisciplinares em contrapor a perspectiva do marxismo
com a antropologia, com o pós- estruturalista althusseriano ao
modernismo e com os chamados estudos pensamento de E. P. Thompson, sob um
culturais. Para entendermos um pouco apelo humanista da história, Duncan e Ley
mais o espírito do tempo que predominava tentam problematizar o holísmo e a
na geografia estadunidense da época, cabe reificação não necessariamente se
ressaltar que apenas dois anos após a referindo ao arcabouço marxista. Na nossa
divulgação do texto sobre o opinião, isso é mais um sinal de
supraôrganico, Duncan, agora com afastamento entre o marxismo e a
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geografia, que estaria supostamente natureza que seria uma invenção humana,
ultrapassado, utilizando categorias ou seja, se confunde a realidade material
reificadas, assim como a geografia cultural com a representação desta materialidade,
de Sauer utilizava um conceito de cultura dimensão única que resta diante de uma
supraorgânica. Abrir mão da contribuição antropologia simétrica. As culturas seriam
marxista é tentar soterrar um dos mais então meros convencionalismos que
importantes momentos do modulam nossa significação do mundo,
desenvolvimento de nossa disciplina. uma ideia presente na pós-modernidade. O
Destaca-se ainda que na década de poder da representação se torna uma
1980 é possível encontrar relevantes questão central:
balanços e revisões sobre o conceito de
cultura. Temos o livro de Raymond Esse novo comeco e igia reunir de
Williams, Culture & Society, de 1983, um forma mais consistente a critica da
estudo que certamente contribuiu para a representacao como forma de
consolidação dos chamados estudos conhecimento e forma de poder. Ou
Isso faz com que a análise dos textos, das constantemente escapulindo de nós.
Existem sempre significados
representações que tentam em vão
suplementares sobre os quais não
apreender a complexidade da vida, se
temos qualquer controle, que surgirão
direcionem cada vez mais para o uso do
e subverterão nossas tentativas para
chamado método hermenêutico, ou seja, a
criar mundos fixos e estáveis (HALL,
análise minuciosa do texto – uma 1998, p. 41).
representação – que tenta propor
ordenações para seu sentido, compondo
interpretações possíveis. Dessa forma:
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Como vemos, o relativismo triunfa Com vimos, Eagleton está coberto
mais uma vez e a verdade não passa de um de razão quando afirma que o fetiche pela
mero ponto de vista. O enfoque no método teoria busca preencher o distanciamento
hermenêutico é um impulso para a virada da realidade concreta em função do
linguística em que, novamente, as afastamento da totalidade. A perspectiva
representações são enfatizadas. Sendo do relativismo cultural e do “fim das
assim, podemos vislumbrar que a virada grandes verdades” desarma um conceito
cultural, a linguística e a espacial se ligam de análise fundamental para o marxismo: a
sob uma mesma perspectiva ideologia, pois, uma vez que tudo é
epistemológica. relativo, não é mais possível se falar em
Sobre o espaço, Jameson (2006) uma falsa consciência.
demonstra como temos a constituição de Como pudemos conferir, Jameson
espaços urbanos e construções pós- acaba impulsionando o fato cultural para o
modernas onde se vê a mistura e a centro da reflexão e de uma forma geral a
referência a diversos estilos cultura seria o elemento modulador da
arquitetônicos. Esse autor tem o hábito de economia e da política. A nosso ver, tal
comentar longamente como tais espaços perspectiva não pode ser levada às últimas
são compostos e como eles mesmos são consequências uma vez que a sociedade
metáforas de alguns aspectos de nossa sofre múltiplas determinações. Colocar a
sociedade. Ao mencionar a grandiosidade cultura sem ontologia no centro da
de algumas construções e o fluxo de análise, significa evocar uma entidade que
informações sensoriais e formas, ele ao mesmo tempo pode significar tudo ou
demonstra como existe uma dissociação nada e que, portanto, nos elucida pouco
entre corpo e espaço – nesse caso sobre o funcionamento da sociedade.
específico de um edifício analisado –, uma Entretanto, acreditamos que a riqueza de
vez que nossa cognição não consegue Jameson está na afirmação de que toda a
inteiramente assimilar toda a informação cultura hoje está sofrendo um processo de
disposta pela forma arquitetônica. Isso mercadorização.
ocorreria também com nossa sociedade e
as redes de informação do capitalismo que Considerações finais: diversidade,
são ultracapilarizadas, transportando uma indefinição e resignação _____________
quantidade de informação absurda.
meio intelectual e financiar parte da esquerda ERICKSON, Paul A.; MURPHY, Liam D. História
insatisfeita com o socialismo real, apoiando direta da teoria antropológica. Petrópolis, Editora Vozes,
2015.