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O IMPÉRIO DA REPRESENTAÇÃO: A VIRADA
CULTURAL E A GEOGRAFIA

 BRENO VIOTTO PEDROSA*

Resumo: Visamos, neste artigo, demonstrar como a ascensão da pós-modernidade e da chamada virada cultural
mudaram muitos aspectos teóricos das ciências humanas, em um nítido movimento de afastamento de algumas
premissas do marxismo, provocando transformações importantes na geografia cultural. Veremos que se reafirma a
perspectiva de que a cultura é algo móvel e indefinível em detrimento de visões que encontravam essências
imutáveis para cultura, que serviam muitas vezes com instrumento de dominação social. Para isso, comparamos o
pensamento de Harvey e Jameson sobre a pós-modernidade, bem como algumas elaborações de Duncan e Mitchell
sobre a nova geografia cultural. Finalmente, oferecemos algumas críticas aos pontos estabelecidos no debate
incorporado pela nova geografia cultural.
Palavras-chave: virada cultural, nova geografia cultural, pós-modernismo, cultura, ontologia.

Introdução________________________
No presente artigo buscaremos
“Mas não adianta fingir que tudo o elucidar alguns pontos da história da
que conhecemos sobre o tempo e o geografia cultural que nos permitam
espaço, ou melhor, a história e a compreender o impacto da virada cultural
geografia, é mais do que outra coisa, nas ciências sociais, em especial, na
imaginativo.”
geografia anglo-saxã. Muito longe de
Edward W. Said “Orientalismo”, 2007
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esgotar esse complexo tópico da teoria modernidade com seu multiculturalismo,
social contemporânea, almejamos explorar relativismo cultural e presentificação da
apenas alguns de seus aspectos, uma vez utopia e, finalmente, demonstraremos
que muitos pesquisadores brasileiros e como tais elementos foram trabalhados
estrangeiros assimilaram, total ou pelos geógrafos, alguns mais ligados ao
parcialmente, algumas de suas marxismo, outros mais distantes dessa
características, sem uma ponderação perspectiva, vista como “superada”. Por
crítica. É possível verificar que cada vez fim, realizaremos alguns apontamos
mais estamos estudando situações críticos sobre o debate da cultura na pós-
pontuais na geografia cultural – alguns modernidade.
supostos radicais críticos encontram
geografias ao versarem sobre a novela das Da superação do superorgânico à busca
oito, mas não tratam nem da alienação, de um novo sentido para cultura _____
nem da indústria cultural de massas,
muito menos de classes sociais – sem nos Qualquer um que tenha se
referirmos à totalidade social e às interessado minimamente pela história da
articulações entre o político, o econômico geografia cultural pôde perceber que este
e o cultural. Tentaremos elucidar como a subcampo da geografia surgiu
virada cultural pode ter relação com esse estabelecendo um contato muito intenso
processo, impondo um conceito de cultura com a antropologia. Torna-se cada vez
que tudo engloba e que não possui mais comum a leitura do texto de Linda
exatamente uma ontologia. Paralelamente, McDowell (1995) e sua exposição das
é interessante a consideração de R. Jacoby linhas gerais do desenvolvimento da
(2001) de como atualmente ao invés de um geografia cultural, pois diferentemente do
comprometimento social, muitos que se poderia sugerir, o projeto inicial de
pesquisadores têm se engajado em temas Sauer era propô-la como equivalente da
de pesquisa que são divertidos ou geografia humana, portanto, um ramo de
interessantes, mesmo que sua relevância nossa disciplina mais amplo do que um
social seja restrita. subcampo, que seria meramente posto ao
Inicialmente, veremos lado da geografia política ou econômica.
considerações sobre a geografia cultural Apesar de Sauer ter feito sua
clássica e seu conceito de cultura, a seguir graduação na Alemanha, segundo seu
exploraremos o impacto da pós- próprio relato, o contato com a obra de
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Ratzel ocorrerá nos Estados Unidos. O A biogeografia que se relaciona
geógrafo alemão lhe seria apresentado com os problemas da sociedade encaminha
pelos antropólogos cuja convivência e o o pensamento saueriano para o uso do
intercâmbio com Sauer foram longos e método ecológico, outro tema que
profícuos, notadamente, nas figuras de compõem sua agenda de interesses. De
Alfred Kroeber e R. Lowie. Contudo, volta aos Estados Unidos, Sauer se depara
destaca-se o fato de que Sauer foi com um ambiente intelectual onde o
influenciado pelo pensamento geográfico determinismo – ou ambientalismo como
alemão que lhe foi contemporâneo e não consta em algumas traduções para o
seria um exagero dizer que sua obra português – dominava, em função das
buscou construir um síntese das suas heranças intelectuais deixadas, seja por E.
principais posições metodológicas, apesar Semple, seja por Ellsworth Huntington,
de seu contato tardio com o pensamento devido às interpretações dadas à obra de
ratzeliano. De um lado, O. Schülter e sua Ratzel. Talvez isso explique o
geografia da paisagem fornecem subsídios distanciamento temporário entre Sauer e o
para que Sauer reafirme o papel do criador da antropogeografia.
método morfológico para o estudo Sauer não encontra apenas a
geográfico, porém, o mero estudo das referência de Ratzel dentre os
formas não é suficiente para compreender antropólogos, pois eles ofertam uma teoria
a complexidade do espaço, uma vez que sobre a cultura, que foi incorpora
são incorporadas as contribuições de rapidamente como fundamento para o
Alfred Hettner sobre a diferenciação de estudo das sociedades indígenas
áreas, sendo a paisagem e o estudo de americanas. Além de uma preocupação
outras variáveis não estritamente formais com os povos “tradicionais”, a teoria da
importantes para a delimitação das cultura e seu apelo histórico ajudam Sauer
chamadas áreas culturais (ETGES, a compreender a formação do território
2012)1. Paralelamente a essas opções de estadunidense e os hábitos dos imigrantes
método, o pensamento de E. Hahn sobre a e colonizadores. A teoria da antropologia
difusão, distribuição e domesticação de cultural de Kroeber vê a cultura como
plantas e animais pelo homem também são uma entidade autônoma da própria
incorporadas, expondo Sauer sociedade, mas em níveis mais básicos
indiretamente a uma problemática afim analisa a sociedade e seus idiomas como
das preocupações ratzelianas. mecanismo de troca simbólica, assim como
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o indivíduo e sua psicologia para difusão de traços culturais, de forma a
compreender a formação de sua identidade problematizar leituras de alguns
social. Esses temas são extremamente evolucionistas que tendem a ver as
importantes, sendo que mesmo atualmente culturas de maneira mais ou menos
a antropologia não perdeu de vista a isolada. A novidade da difusão acompanha
preocupação com a linguística ou com a o uso indiscriminado do chamado método
psicologia, o que fica muito nítido ao comparativo, que permite observar a
analisar pensadores como Claude Lévi- correspondência de características
Strauss ou Roy Wagner. culturais. Uma vez transmitidos, os traços
Curiosamente, A. Kroeber foi culturais sofreriam adaptações e
discípulo de Franz Boas, que por sua vez, assimilações, sendo possível estabelecer
fora aluno de Ratzel, sob forte influência, círculos culturais (kulturkreis) de povos
portanto, da geografia. Sendo assim, a que trocaram determinados traços.
antropogeografia e seu temas clássicos Claramente, tais concepções se
como a difusão, a compreensão dos povos articularam com a “superioridade racial”
com e sem Estado, a dispersão e de alguns povos e a concepção que certos
diferenciação das “raças” tiveram um grupos seriam mais inventivos do que
grande impacto tanto na geografia, quanto outros. Contudo, se o termo círculo
na recém formada antropologia. Vemos cultural parece estranho aos ouvidos do
então que ambos campos também geógrafo, na antropologia, Leo Frobenius,
compartilham ideias e vocações F. Graebner e W. Schmidt trataram de
imperialistas, ora mais explícitas, ora mais usá-lo sistematicamente, inclusive
tênues. Nesse sentido, Boas teve o papel ressaltando o critério formal para
de desmascarar o conceito de raça e averiguar a materialidade da difusão
manter uma firme posição a favor da (ERICKSON e MURPHY, 2015, p. 60-
democracia e do interesse científico em 64). Franz Boas tem razão de desconfiar
compreender as culturas americanas, em dos abusos do método comparativo, que
rápido processo de aculturação. muitas vezes intercruzou traços culturais
Um fato que nos chama a atenção, em contextos espaciais completamente
ao consultamos um manual de história da distintos – mais tardiamente, com T.
teoria antropológica, é que nosso Hägerstrand, a geografia sofreria mais um
controverso Ratzel tem um valor claro na ciclo de preocupações com o tema da
antropologia. Ele introduz o tema da difusão, agora focado na técnica.
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A chamada antropologia cultural, autodeterminante e determinante da
impulsionada por Boas e continuada por sociedade.
Kroeber e outros, forneceu para a Do mestre Boas, a antropologia
geografia cultural uma definição de cultural perpetua a abordagem das áreas
cultura supraorgânica, ou seja, a cultura culturais que conferem a Sauer um
seria uma entidade acima da sociedade e parâmetro para o recorte regional, além da
com total autonomia para determiná-la em incorporação do historicismo, vigorosa
suas formas estéticas, linguísticas, bem tradição do pensamento alemã.
como sua psicologia social. Da mesma Relacionada à área se desdobra a célebre
forma que o Estado-nação de Ratzel era divisão entre paisagem natural e cultural,
compreendido como uma metáfora separando a percepção do geógrafo a
orgânica, a cultura para Kroeber é similar partir de uma dicotomia básica que
a um organismo que nasce, cresce e morre, permite compreender como a cultura é
o que infelizmente pode oferecer uma capaz de modificar a natureza e a
interpretação de que o desaparecimento de sociedade, compondo formas que se
determinadas culturas, como a dos traduzem, por exemplo, no habitat. Diga-
indígenas americanos, seria algo normal, se de passagem, Sauer problematizou o
daí a importância de se catalogar essas método positivista incorporando alguns
manifestações. Isso induz Roy Wagner, elementos da fenomenologia como, por
mais contemporaneamente, a afirmar que exemplo, a indissociabilidade entre sujeito
a antropologia cultural tenderia a e objeto, o que deriva em uma série de
acumular a cultura em um grande museu, imperativos que seriam fundamentais para
em busca de sua essência autêntica, que ao a geografia, como a realização de trabalho
final não passa de uma invenção do de campo ou ainda o ensino da percepção,
próprio antropólogo. Como vemos, ou seja, a experiência empírica como um
Kroeber problematiza pouco a origem das elemento fundamental para a elaboração e
culturas, mesmo que ele confira um papel refutação do saber (SAUER, 2000a).
importante à linguagem em um contexto A preocupação com o indivíduo fez
que a cultura independe da sociedade e com que Sauer concatenasse a ideia de
que, portanto, tautologicamente, sua habitat e hábito social, em seu famoso
própria existência basta como explicação texto sobre a colonização da fronteira
para o seu surgimento e desenvolvimento. interna dos Estados Unidos (LEIGHLY,
A essência da cultura é a própria cultura, 1963). A aculturação, tema tradicional da
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antropologia cultural, aparece relações entre natureza e sociedade e,
discretamente, por exemplo, quando é consequentemente, o pensamento de
possível perceber a absorção, dentre Ritter, Ratzel e Vidal de la Blache.
colonos europeus, de técnicas agrícolas e Humboldt coloca o fundamento de uma
hábitos dos povos indígenas. Nesse texto segunda tradição, não antropocêntrica,
sintético e primoroso, se demonstra a que se dedica aos aspectos físicos e
nítida inter-relação entre geografia naturais, tais como a geomorfologia. A
cultural e histórica no projeto intelectual última tradição, que Sauer declara sua
de Sauer, sendo que o percurso histórico filiação, é a da corologia de Hettner, ou
demonstra como o território seja, de que a geografia seria uma ciência
estadunidense se formou com base nas da diferenciação de áreas. No entanto, essa
diferenças entre as áreas culturais, onde se análise oculta alguns balizamentos que
encontram os imigrantes aculturados, que Sauer fez sobre as tradições geográficas da
desvelam paisagens naturais. antiguidade. É evidente sua valorização do
Contrapondo-se a Hartshorne com pensamento de Heródoto como alguém
esse posicionamento, Sauer disputa o que já se dedicava à diferença de áreas e
legado de Hettner na geografia norte- também Aristóteles, cuja obra inspirou,
americana. Enquanto o primeiro despreza em seu pensamento, a instrumentalização
o conceito de paisagem e a ideia de uma da ideia de estrutura, processo, forma e
geografia histórica, Sauer de maneira função, utilizados para a análise da
inovadora defende que a geografia pode morfologia da paisagem, possibilitando
usar seu arsenal teórico para estudar seu encadeamento com elocubrações
seções temporais, de forma a contribuir históricas. É possível identificar ainda
com uma restituição do processo claramente a influência de Goethe e seu
formativo das morfologias paisagísticas. método morfológico, valorizado pelo
Nesse sentido, o pensamento saueriano próprio Sauer, além da estima pelas ideias
não é nada simplista, uma vez que, assim do romantismo alemão como o apreço pela
como Hartshorne em seu The Nature of vida campestre e a desconfiança do mundo
Geography, ele tenta identificar grandes moderno.
tradições geográficas. No artigo “A Ainda sobre a relação entre
geografia cultural”, nosso autor delineia psicologia e cultura, seara de interesse
três tradições, uma que se relaciona à para Boas e Kroeber, é possível se deparar,
temática do ambientalismo, envolvendo as de maneira indireta no texto sobre o
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homestead act (LEIGHLY, 1963), com o pontos altos da questão foi a gestão de I.
tema da personalidade. Sauer demonstra Bowman na União Geográfica
claramente como a frente pioneira que Internacional, no início do século XX, em
ocupou o território estadunidense que o tema da colonização, da ocupação
desenvolveria uma personalidade própria territorial ou da geografia do pioneirismo
a partir de suas culturas e hábitos, análise ganhou destaque, juntamente com a
também aplicada ao México, no seu discussão sobre o habitat. Isaiah Bowman,
célebre texto, The personality of Mexico. nos Estados Unidos e Albert Demangeon,
Tal preocupação relembra claramente o na França, foram importantes
estudo clássico do historiador Frederick articuladores do tema que encontrou ecos,
Jackson Turner que buscou encontrar o por exemplo, na geografia de Pierre
significado histórico da fronteira para a Monbeig, ou ainda, na de Leo Waibel
sociedade estadunidense, ou seja, como a (NOGUEIRA, 2013, p. 222).
mentalidade dos migrantes teria auxiliado Voltando a Sauer, como podemos
na formação territorial e, até certa medida, perceber, nosso autor trocou o
na composição ideológica de uma nação. É ambientalismo por uma espécie de
interessante perceber que Turner chamou determinismo cultural, no entanto, não
a atenção de Plekhânov que também podemos negar que o diálogo com a
realizou um estudo semelhante sobre a antropologia enriqueceu enormemente a
fronteira interna russa e suscitou uma geografia. Aqui esboçamos aspectos
preocupação grande no campo geográfico. sociais de sua geografia cultural e
Da mesma forma, não podemos deixar de histórica, contudo, Sauer desenvolveu de
ressaltar que a ideia de personalidade forma profícua temas ligados às mudanças
cultural teve desdobramentos na ambientais e à dispersão de cultivos na
antropologia estadunidense. América. Sauer acumulou um grande rol
O tema da colonização foi de suma de experiência de campo no intuito de
importância para a geografia em vários compreender a magnitude histórica e
países do mundo. No início do século XX, geográfica da ação e dispersão humana no
a colonização se refere aos países com continente americano.
domínios de além-mar, mas também aos Alguns comentadores destacam
países que buscavam ocupar os vazios que uma parte substantiva da obra de
demográficos, fazendo avançar a fronteira Vidal de la Blache se dedicava a
interna e colonizar o interior. Um dos compreender espaços que ainda não
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haviam se modernizado, uma vez que o dois autores, apesar de eles serem bastante
estudo das estruturas regionais e os distintos – seriam elucidativas.
gêneros de vida seriam drasticamente De qualquer forma, Sauer abriu
alterados após os conflitos mundiais do uma rica seara para o estudo da cultura
século XX. Além disso, a difusão de sob o viés geográfico, incorporando
inovações no campo das comunicações e elementos da antropologia de Kroeber, de
dos transportes induziriam o contato Franz Boas e retrabalhando arcabouço de
cultural cada vez mais intenso. Se de Vidal Ratzel sob um viés até então inexplorado
de la Blache se destacou parte de sua obra nos Estados Unidos. Como vimos, a
sobre o arcaico campo francês, deixando incorporação de elementos
em segundo plano temas como a indústria epistemológicos da fenomenologia
ou as cidades, Sauer, por sua vez, se incentivou o desenvolvimento da
dedicou mais ou mundo rural dos colonos geografia humanística, por parte de seus
e dos indígenas, no tocante à sua discípulos. Paralelamente, Sauer tinha
conformação histórica, do que aos espaços clareza, no final da vida, que a cultura
modernos. Nesse sentido, sua geografia estava se tornando cada vez mais
também era voltada para o passado, ou homogênea, ou seja, sua diversidade
melhor, deixou de lado os processos de estava sendo erodida, substituída por
modernização. Mas, como vemos Sauer e padrões cada vez mais rígidos e
Vidal de la Blache tinham um especial uniformizados.
apreço pela difusão e pela circulação e,
igualmente, não se pode negar a dimensão Como ocorre a virada? ______________
cultural do gênero de vida, fortemente
atrelada ao regionalismo e aos hábitos da No Brasil, a geografia humanística
cultura popular campestre. Da mesma e determinadas correntes da geografia
forma, alguns discípulos de Vidal de la cultural ganharam força no início da
Blache se aproximaram da ecologia, como década de 1990, um pouco após à
foi o caso de Max Sorre. Assim, nos parece valorização de leituras pós-modernas
que uma comparação entre essas duas aplicadas à geografia, que chegavam
geografias e suas raízes – pode-se seletivamente do exterior. Essa recepção
identificar, por exemplo, um pano de contrastava com uma geografia crítica que
fundo neokantiano no pensamento dos entrava em fase de refluxo em função da
reconquista da democracia no Brasil e,
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posteriormente, devido ao fim da União Curiosamente, aqui temos um afastamento
Soviética. Passada a onda crítica, o lento do marxismo, mas, ao mesmo tempo,
modismo dá lugar a outra voga no uma mistura de alguns de seus elementos
mercado do capital cultural acadêmico da com os debates da pós-modernidade.
geografia, colocando o marxismo fora da Como nos coloca McDowell (1995), na
moda. chamada nova geografia cultural, de uma
Contrariamente ao que se poderia forma geral, podemos identificar uma
pensar, nos Estados Unidos, como reação linha mais ligada ao estudo da paisagem e
à nova geografia surgiu tanto o grupo da outra vinculada aos chamados estudos
geografia radical, quanto o da geografia culturais.
humanística. É justamente nesse contexto McDowell coloca justamente como
que uma parte da geografia cultural vai as modernizações e o capitalismo se
sofrer drásticas mudanças recebendo impuseram em vários lugares do mundo,
influências do marxismo, do alterando o modo de vida tradicional. A
existencialismo e, gradativamente, das nova geografia cultural tenta responder a
teorias pós-modernas que começavam a esse processo de mudança, uma vez que o
ganhar força. Entendemos aqui que, êxodo rural, a industrialização e o
apesar dos contatos e correlações, a surgimento das metrópoles globais
geografia humanística, ligada à alterou drasticamente a mentalidade e a
fenomenologia, manteve contatos com a cultura dos grupos humanos, impondo-
antropologia – vide a obra de Yi-fu Tuan lhes um alto grau de complexidade. Assim,
–, porém compôs um campo de estudos enquanto a escola da paisagem se dedica à
mais diverso, que propunha refundar as compreensão de seus significados
bases epistemológicas da geografia. cambiantes que formam um discurso de
Assim, a chamada nova geografia múltiplos significados, para aqueles que se
cultural, com preocupações e temáticas um inspiram nos estudos culturais, o
tanto distintas da humanística ou da pensamento de Gramsci no tocante às
geografia cultural “tradicional”, surge, hegemonias no campo da cultura tem
como nos coloca Barnett (1998), em um grande relevância, admitindo-a como um
cenário posterior à onda mais radical da complexo contraditório e plural.
geografia crítica, ou seja, no final da Acrescenta-se ainda a abordagem
década de 1980, diante de um marxismo contextualista e materialista da produção
que se torna cada vez mais enfraquecido. da cultural de R. Williams, que possui
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fundamental importância. Assim, o coautoria de Ley, publica, em 1982, um
cotidiano, a vida material, as novo artigo fazendo um ataque frontal ao
representações sociais e a identidade marxismo estruturalista que até então era
passam a ser o foco de algumas questões, predominante na geografia crítica. Os
incorporando, muitas vezes, o debate pós- autores tentam, de forma inusitada,
moderno. demonstrar como, do ponto de vista
Para compreender a mutação e o filosófico, o marxismo seria uma forma de
arrefecimento do marxismo, é importante conhecimento em si essencialista, porque
notar que esse processo se relaciona, entre assim como no supraorgânico cultural, o
outros fatores, com o texto de Duncan estruturalismo cria entidades como o
(1980), que apesar de ter sido publicado capital ou a luta de classes que direcionam
tardiamente se comparado aos tempos o desenvolvimento humano. Essas
áureos da escola saueriana, propõe um explicações holísticas e as referências à
ataque frontal à concepção de cultura totalidade, categoria clássica do
adotada pela geografia. No célebre artigo, marxismo, disporiam entidades reificadas
Duncan expõe claramente a natureza e que, portanto, dificultam a percepção da
essencialista e tautológica da cultura para realidade. Assim, a grande narrativa das
Kroeber, em que muitas perguntas ficam estruturas sociais, da totalidade e do pré-
sem resposta, por exemplo, como surgem estabelecimento do funcionamento social
as culturas diante do fato de elas serem atrapalham a compreensão do mundo
entidades autônomas da sociedade. empírico. Duncan e Ley direcionam parte
Apesar da contribuição de Duncan, de sua crítica ao estruturalismo de David
se cria um impasse diante da definição do Harvey, no entanto, é importante ressaltar
que seria a cultura. Inicia-se então um que diferentemente do usual, que consistia
novo ciclo de diálogos interdisciplinares em contrapor a perspectiva do marxismo
com a antropologia, com o pós- estruturalista althusseriano ao
modernismo e com os chamados estudos pensamento de E. P. Thompson, sob um
culturais. Para entendermos um pouco apelo humanista da história, Duncan e Ley
mais o espírito do tempo que predominava tentam problematizar o holísmo e a
na geografia estadunidense da época, cabe reificação não necessariamente se
ressaltar que apenas dois anos após a referindo ao arcabouço marxista. Na nossa
divulgação do texto sobre o opinião, isso é mais um sinal de
supraôrganico, Duncan, agora com afastamento entre o marxismo e a
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geografia, que estaria supostamente natureza que seria uma invenção humana,
ultrapassado, utilizando categorias ou seja, se confunde a realidade material
reificadas, assim como a geografia cultural com a representação desta materialidade,
de Sauer utilizava um conceito de cultura dimensão única que resta diante de uma
supraorgânica. Abrir mão da contribuição antropologia simétrica. As culturas seriam
marxista é tentar soterrar um dos mais então meros convencionalismos que
importantes momentos do modulam nossa significação do mundo,
desenvolvimento de nossa disciplina. uma ideia presente na pós-modernidade. O
Destaca-se ainda que na década de poder da representação se torna uma
1980 é possível encontrar relevantes questão central:
balanços e revisões sobre o conceito de
cultura. Temos o livro de Raymond Esse novo comeco e igia reunir de
Williams, Culture & Society, de 1983, um forma mais consistente a critica da
estudo que certamente contribuiu para a representacao como forma de
consolidação dos chamados estudos conhecimento e forma de poder. Ou

culturais. No campo da antropologia, seja, e igia renunciar a representacao

confirmando pontos de vista relativistas, nao porque e falsa ou ficcional, nem

Roy Wagner em seu A invenção da mesmo porque e sempre uma relacao

cultura, de 1975, revisado e ampliado em de poder que concede a alguem o


direito de representar outrem, mas
1981, faz um balanço e atualiza o conceito
sim porque a representacao faz parte
de cultura como uma invenção humana,
do conjunto de prolongamentos das
mais precisamente, do antropólogo que
relacoes de poder que o Ocidente
forja uma representação que é oferecida à
capitalista esta eleceu dentro do te to
sua sociedade. Cabe fazer então uma
antropologico com as demais
indagação de quais são as motivações que
sociedades do planeta. E justamente o
fomentam a criação da representação
reconhecimento do carater imanente
cultural, que produz uma série de
das relacoes estabelecidas pelo poder
significados e sentidos que nunca são
com o te to antropologico que teria
estáticos, estão sempre se modificando e podido a rir linhas de fuga para o
interagindo com outras culturas. O antropologo escritor, uma ve que ele
homem cria sua própria realidade e por estaria as voltas com as relacoes de
sua vez é recriado por ela, sendo que poder no espaco parcialmente so seu
Wagner relativiza a própria ideia de
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controle, o proprio te to realidade se torna em grande parte um
antropologico. Nesse sentido, teria problema metafísico em detrimento da
sido possivel levantar uma questao ao realidade empírica, como defende
mesmo tempo epistemologica, etica e Eagleton.
politica: como proceder de modo a nao
reproduzir, no plano da producao de Pós-modernidade: cultura, linguagem e
conhecimento antropologico, as espaço ____________________________
relacoes de dominacao a que os
grupos com quem os antropologos Para compreendermos a
trabalham se acham submetidos?
reafirmação da corrente pós-moderna nos
(GOLDMAN, p. 199-200)2.
Estudos Unidos é essencial a leitura da
obra de Cusset (2005), pois é claro que
Para Wagner, a todo momento a
muitas análises do pós-modernismo dizem
invenção cultural acompanha um processo
respeito aos aspectos da sociedade
de sua própria naturalização e
estadunidense, contudo, fica evidente que
essencialização, ou seja, inventamos
a partir de meados da década de 1960 e
constructos metafísicos os quais realmente
após Maio de 1968, temos uma infiltração
acreditamos. Sendo assim, a própria
cada vez mais intensa de novidades
ciência moderna, independente de sua
intelectuais como a obra de Althusser3,
eficácia seria apenas mais um discurso,
Foucault, Derrida, Barthes, Sartre, dentre
uma forma de representação do mundo
outros, no ambiente intelectual das
que baliza nossa existência. Ganha força
ciências humanas dos Estados Unidos.
então o relativismo caro à pós-
Como demonstra Cusset, essas influências
modernidade, em que não existe a
foram pungentes primeiramente na teoria
verdade, pois todas as representações e
literária e nos estudos religiosos, para
discursos são meros pontos de vista ou
gradativamente adentrarem nas ciências
formas de dominação. Independente disso,
sociais como um todo. Como bem
cabe ter em mente que a virada cultural
sabemos, a geografia incorporou o
vai assimilar o complexo arcabouço que
marxismo tardiamente se comparada às
busca relacionar a antropologia, a
outras ciências sociais, e, nesse
psicologia, a linguística, a filosofia e a arte
movimento, o estruturalismo marxista
para a compreensão da cultura. Na pós-
teve uma ampla força, contrapondo-se ao
modernidade, vemos então como a
marxismo ortodoxo, ou seja, aquele
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propagado pelo socialismo real. Isso fica método pós-moderno. Mas, antes de
claro ao se observar algumas posturas de vermos o significado desses elementos,
Richard Peet e as coletâneas organizadas cabe elucidar o que seria exatamente a
no auge da chamada geografia radical, no pós-modernidade. Deparamo-nos com um
final da década de 1970 (PEDROSA, debate complexo, que se pretende um
2013). projeto intelectual múltiplo, com várias
Contudo, ao se observar a revista tendências, e, ao mesmo tempo, um novo
Antipode, em seus primeiros anos de período da história da humanidade em que
publicação, é possível perceber seu relapso alguns aspectos da modernidade se
com o formalismo científico com o desenvolveram exacerbadamente. De
objetivo de questionar o status quo e as maneira sintética, se pode dizer:
formas tradicionais de produção do
conhecimento. Como tentamos Pós-modernidade é uma linha de
demonstrar em outra ocasião (PEDROSA, pensamento que questiona as noções

2013), existiu um movimento para isolar clássicas de verdade, razão, identidade


e objetividade, a ideia de progresso ou
determinadas tendências da geografia
emancipação universal, os sistemas
radical estadunidense que fugiam do
únicos, as grandes narrativas ou os
esquadrinhamento do marxismo
fundamentos definitivos de explicação.
estruturalista, como é o caso de William
Contrariando essas normas do
Bunge, que posteriormente desenvolve seu iluminismo, vê o mundo como
célebre estudo sobre o gueto negro de contingente, gratuito, diverso,
Detroit, Fitzgerald, de 1971, obra pouco instável, imprevisível, um conjunto de
debatida no Brasil. No seu estudo culturas ou interpretações
encontrarmos tendências debatidas após a desunificadas gerando um certo grau
virada cultural, como, por exemplo, a de ceticismo em relação à objetividade

preocupação com gênero, classe e “raça”. da verdade, da história e das normas,


em relação às idiossincrasias e a
Assim, por uma série que questões
coerência de identidades. Essa
conjunturais e históricas – a queda do
maneira de ver, como sustentam
muro de Berlim, por exemplo – e debates
alguns, baseia-se em circunstâncias
internos – a crítica do marxismo
concretas: ela emerge da mudança
estruturalista – a nova geografia cultural histórica ocorrida no Ocidente, para
de certa forma acompanha a virada uma nova forma de capitalismo – para
cultural e absorve vários aspectos do o mundo efêmero e descentralizado da
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tecnologia, do consumismo e da desprovida de qualquer tipo de essência.
indústria cultural, no qual as Com o pacote multiculturalista, a nova
indústrias de serviços, finanças e geografia cultural se depara com uma
informação triunfam sobre a produção
premissa generalizada pelo pós-
tradicional, e a política clássica de
modernismo, cujas origens estão na
classes cede terreno a uma série difusa
própria antropologia com o chamado
de „políticas de identidades‟
relativismo cultural. A valorização das
(EAGLETON, 1998, p. 7).
culturas, o abandono das ideias de etapas
históricas, do desenvolvimento de uma
Como podemos notar na citação
forma geral e reafirmação da concepção de
acima, o abandono das grandes narrativas
que a história não traz progressos,
e a perda de um sentido de totalidade faz
acompanha a premissa de que no campo da
com que os grupos sociais sejam
cultura toda e qualquer hierarquia deve
analisados por suas culturas que se
ser abandonada. O relativismo cultural
autovalidam e cuja definição é fluída e
clássico, caro a Boas, defende que nenhum
completamente sem essência. São as
antropólogo consegue compreender ou
próprias práticas humanas e sua
valorar completamente a cultura do outro,
diversidade que convalidam a cultura, daí
uma vez que ele próprio não pode
o elogio à pluralidade e ao
abandonar sua própria cultura, por mais
multiculturalismo. Cabe notar, como
que se esforce para isso. Nesse sentido,
Eagleton, que tal premissa tem seu caráter
quando os pós-modernos levam essa
crítico e emancipatório, permitindo a
premissa às últimas consequências
desconstrução de várias entidades que
observamos que a cultura, com seu
foram reificadas como determinadas
significado fluído e efêmero, passa a ser
culturas imperiais, que se utilizaram de
mais um fator de descrição da situação de
concepções etnocêntricas para a
determinada localidade do que
dominação, ou o conceito de “raça”
propriamente um elemento explicativo,
utilizado muitas vezes para justificar
pois ela não tem efeito causal na dinâmica
desigualdades sociais e ações excludentes.
social. Assim sendo, “a racionalidade que
Contudo, a pós-modernidade leva
serviria para avaliar nossas crenças de fora
esse ponto às últimas consequências
só opera dentro dessas crenças, é em si um
afirmando que a cultura não teria uma
produto delas, e, portanto, um julgamento
ontologia própria, ou seja, seria

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corrupto e parcial até não poder mais” Dessa forma, supostamente a
(EAGLETON, 1998, p. 43). problemática da luta de classes se
No tocante à história, ela deixa de esvanece, as grandes narrativas são
existir como uma grande narrativa, mas abandonadas, a ideia de uma totalidade
isso não significa que os pós-modernos a social se torna ao mesmo tempo uma falsa
abandonem completamente, ou seja, os verdade e uma verdade falsificadora.
fatos sociais são historicizados com o Alguns autores reconhecidamente
objetivo de se escapar da História com um financiados pelo serviço de contra-
sentido teleológico, com um enredo espionagem dos Estados Unidos como
finalista. O recuo diante da totalidade, a Daniel Bell (SAUNDERS, 2008)4 vão
ênfase nos fragmentos da realidade e a defender o surgimento de uma sociedade
desconstrução de uma ideia de verdade faz pós-industrial, em que as máquinas
com que se reafirme, segundo Eagleton, substituem a mão de obra e o proletariado
um fetiche pela epistemologia. Assim, os ascende a trabalhos mais intelectualizados
problemas concretos seriam uma mera e menos danosos nos escritórios – tese
questão de representação, pois com a sagazmente refutada por H. Braverman.
descrença nos movimentos sociais, Nesse contexto, David Harvey
sujeitos aos dissabores da história, publica seu famoso A condição pós-moderna,
teríamos uma nova conjuntura: de 1992, e, apenas um ano antes, Fredrick
Jameson, um crítico literário que teve
Aí entraria com grande probabilidade influência na geografia anglo-saxã, publica
algumas formas de idealismo para O pós-modernismo: ou lógica cultural do
substituí-las [os experimentos capitalismo tardio5 de 1991. Uma
políticos com suas racionalidades e
comparação aprofundada dessas duas
malogros], mas de um tipo
obras nos brindaria certamente com um
convenientemente moderno: numa
excelente balanço dos recuos e dos parcos
época em que se falar de „consciência‟
avanços da teoria pós-moderna, ou
perdeu o sex-appeal, seria mais
aconselhável falar do mundo como precisamente, qual foi a avaliação desses
uma construção do discurso, digamos, intelectuais de um novo tempo e de um
e não da mente, ainda que em muitos ambiente intelectual que busca até hoje se
aspectos no final não fizesse diferença impor.
(EAGLETON, 1998, p. 22). Na primeira obra, Harvey cunha
sua famosa e pressão “compressão espaço-
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temporal” para descrever o fenômeno da de mentalidade social e de funcionamento
melhoria dos transportes e das do capitalismo, impulsionado pela acepção
comunicações em escala global. Harvey de que as grandes utopias sociais teriam se
reafirma as consequências drásticas do transformado em pesadelos totalitários,
toyotismo como uma nova reestruturação sendo que, atualmente, a utopia sofreria
produtiva que se impõe em escala global, um processo de presentificação constante,
dissociando administração, pesquisa e pautado, por exemplo, na reafirmação
produção. O autor critica a pós- imediata das diferenças sociais. Em
modernidade, mas acaba assimilando segundo lugar, com a quebra do acordo de
também alguns aspectos propagandeados Bretton Woods e com a emissão de
como, por exemplo, o elogio à diferença e dólares de maneira independente por parte
a importância do multiculturalismo. dos Estados Unidos, teríamos a perda do
Jameson, por sua vez, expõe uma parâmetro do lastro de valor das moedas
tese que é mais ousada e que a nosso ver em escala internacional, sendo assim, o
ilustra o impacto da virada cultural nas valor econômico do câmbio só pode ser
ciências sociais como um todo. O pós- estabelecido por comparação a outras
modernismo defende, sob uma certa moedas. De forma similar ao relativismo
perspectiva, uma implosão das áreas do cultural, supostamente teríamos um
conhecimento e isso fica nítido na obra de relativismo econômico e uma crença no
Jameson que é crítico literário, mas para fato de que o valor real das moedas se
explicar o novo período recorre à arte, à baseia em comparações, tendo em vista a
filosofia, à literatura, à psicologia, ao invalidade relativa do padrão monetário
cinema e, finalmente, à arquitetura para baseado em ouro-dólar. Como vemos, a
compreender as transformações na lógica cultural se impõe diante desse
cultura. O autor demonstra como a pós- importante imperativo econômico. Por
modernidade ganha fôlego após o maio de fim, diferentemente de épocas passadas o
1968, o choque do petróleo de 1973 e no capitalismo exacerbaria seu imperativo de
subsequente gradual abandono do padrão transformar tudo em mercadoria, nesse
dólar firmado em Bretton Woods. Para sentido, a cultura é sistematicamente
Jameson, o capitalismo tardio ganharia reificada e transformada em uma
uma lógica cultural por pelo menos três mercadoria sem essência. Para ilustrar
motivos; primeiramente, a sociedade pós- esse processo Jameson demonstra duas
industrial significa de fato uma mudança obras de arte que retratam sapatos, uma
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de Van Gogh6 que retrata um par de único e pessoal, já que a própria
calçados camponeses como sendo um pessoalidade se torna mercadoria. Dessa
autêntico instrumento de trabalho do forma, cessa a capacidade de criação
campo, em que a materialidade encontra artística e só nos resta a recomposição das
sua autenticidade na historicidade e no peças do passado, recombinações que
sentido que o ser humano o dota. tentam, em vão, criar algo novo. Assim,
Paralelamente, ele exibe outra obra, em ganha força contra a essencialização
que se avista uma sequência quimérica de cultural a ideia de pastiche, que mais do
sapatos industrializados com diferentes que uma mera mímica se refere ao
cores, de autoria de Andy Warhol7, em processo de criação com base na mistura
que claramente os calçados de estilos e referências do passado.
industrializados, amontoados e diversos Jameson reafirma sem pudores: “ao menos
são uma mercadoria sem essência, algo empiricamente, que nossa vida cotidiana,
vendável, onde o processo de produção nossas experiências psíquicas, nossas
esconde a face humana do uso do sapato linguagens culturais são hoje dominadas
como extensão do corpo humano e pelas categorias de espaço e não pelas de
ferramenta de trabalho. Dessa forma, o tempo” (JAMESON, 1996, p. 43). Isso nos
capitalismo estaria cada vez mais mostra como mais adiante teremos a
reificando e mercadorizando a cultura em chamada “virada espacial”, reafirmando o
todas as suas esferas como um imperativo interesse nesta categoria diante das
para sua existência. problematizações da epistemologia pós-
Se o arquétipo psicológico moderna.
predominante na modernidade é a Como vemos, apesar de Jameson
paranóia, Jameson e Harvey estão de ser um crítico literário e estar versando
acordo que na pós-modernidade o que sobre as transformações culturais, parece
predomina é a esquizofrenia de um sujeito que essas explicações e mudanças do
que se encontra descentrado, fragmentado campo das artes foram transpostas para a
em sua múltipla identidade e angustiado explicação do mundo social. A afirmação
com a superficialidade de uma cultura cada de que o espaço tem mais importância que
vez mais imagética. A desconstrução o tempo na sociedade contemporânea se
proclama então a morte do sujeito, o fim deve ao imediatismo e a incapacidade do
do ego e da individualidade empática e sujeito de organizar coerentemente sua
afetiva, assim como o estilo individual, do experiência pessoal, em função da
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predominância do caráter esquizofrênico O que modernos filósofos da
da cultura atual. linguagem – como Jacques Derrida,

Nesse sentido, Jameson absorve a influenciados por Saussure e pela


„virada linguística‟ – argumentam é
ideia da hiperrealidade, em que a realidade
que, apesar de seus melhores esforços,
como representação é produzida como um
o/a falante individual não pode,
discurso. Assim, pode-se derivar a
nunca, fixar o significado de uma
concepção de que o passado não nos é
forma final, incluindo o significado de
mais acessível, pois a história é mera sua identidade. As palavras são
representação, nos restando apenas a „multimoduladas‟. Elas sempre
análise do texto, sendo a própria realidade carregam ecos de outros significados
intangível e inseparável das que elas colocam em movimento,
intencionalidades do próprio ato de apesar de nossos melhores esforços
representar. As redes globais, por para cerrar o significado. Nossas

exemplo, transmitem notícias compondo afirmações são baseadas em


proposições e premissas das quais nós
uma visão de mundo “cuja comple idade
não tempos consciência, mas que são,
está além da capacidade de leitura da
por assim dizer, conduzidas na
mente humana normal através de
corrente sanguínea da nossa língua.
conspirações labirínticas de agência rivais
Tudo que di emos tem um „antes‟ e
de informação que são autônomas, mas um „depois‟ – uma „margem‟ na qual
fatalmente inter-relacionadas” outras pessoas podem escrever. O
(JAMESON, 1996, p. 64). Surge então significado é inerentemente instável;
uma não diferenciação entre a realidade ele procura o fechamento (a
material e a realidade material da identidade), mas ele é constantemente
linguagem, ou seja, ambos se equivalem. perturbado (pela diferença). Ele está

Isso faz com que a análise dos textos, das constantemente escapulindo de nós.
Existem sempre significados
representações que tentam em vão
suplementares sobre os quais não
apreender a complexidade da vida, se
temos qualquer controle, que surgirão
direcionem cada vez mais para o uso do
e subverterão nossas tentativas para
chamado método hermenêutico, ou seja, a
criar mundos fixos e estáveis (HALL,
análise minuciosa do texto – uma 1998, p. 41).
representação – que tenta propor
ordenações para seu sentido, compondo
interpretações possíveis. Dessa forma:
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Como vemos, o relativismo triunfa Com vimos, Eagleton está coberto
mais uma vez e a verdade não passa de um de razão quando afirma que o fetiche pela
mero ponto de vista. O enfoque no método teoria busca preencher o distanciamento
hermenêutico é um impulso para a virada da realidade concreta em função do
linguística em que, novamente, as afastamento da totalidade. A perspectiva
representações são enfatizadas. Sendo do relativismo cultural e do “fim das
assim, podemos vislumbrar que a virada grandes verdades” desarma um conceito
cultural, a linguística e a espacial se ligam de análise fundamental para o marxismo: a
sob uma mesma perspectiva ideologia, pois, uma vez que tudo é
epistemológica. relativo, não é mais possível se falar em
Sobre o espaço, Jameson (2006) uma falsa consciência.
demonstra como temos a constituição de Como pudemos conferir, Jameson
espaços urbanos e construções pós- acaba impulsionando o fato cultural para o
modernas onde se vê a mistura e a centro da reflexão e de uma forma geral a
referência a diversos estilos cultura seria o elemento modulador da
arquitetônicos. Esse autor tem o hábito de economia e da política. A nosso ver, tal
comentar longamente como tais espaços perspectiva não pode ser levada às últimas
são compostos e como eles mesmos são consequências uma vez que a sociedade
metáforas de alguns aspectos de nossa sofre múltiplas determinações. Colocar a
sociedade. Ao mencionar a grandiosidade cultura sem ontologia no centro da
de algumas construções e o fluxo de análise, significa evocar uma entidade que
informações sensoriais e formas, ele ao mesmo tempo pode significar tudo ou
demonstra como existe uma dissociação nada e que, portanto, nos elucida pouco
entre corpo e espaço – nesse caso sobre o funcionamento da sociedade.
específico de um edifício analisado –, uma Entretanto, acreditamos que a riqueza de
vez que nossa cognição não consegue Jameson está na afirmação de que toda a
inteiramente assimilar toda a informação cultura hoje está sofrendo um processo de
disposta pela forma arquitetônica. Isso mercadorização.
ocorreria também com nossa sociedade e
as redes de informação do capitalismo que Considerações finais: diversidade,
são ultracapilarizadas, transportando uma indefinição e resignação _____________
quantidade de informação absurda.

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Ao consultar o dicionário de regional, problematizar a relação homem-
geografia humana (GREGORY et alli, meio. Obviamente, Claval representa
2009, p. 134-135), encontramos um apenas uma das propostas, mas isso nos
verbete específico para a virada cultural parece uma boa mostra do impacto da
que nos demonstra sua reafirmação no virada na geografia.
final da década de 1980 e o surgimento da Como vimos acima, James Duncan
nova geografia cultural. O verbete ressalta tem um papel importante no processo de
a existência de um culturocentrismo, ou crítica à geografia saueriana e ao
seja, a cultura teria mais peso na marxismo, propondo novos paradigmas de
determinação dos fenômenos políticos e funcionamento para a geografia cultural.
econômicos, como tentamos expor. O Cabe destacar que mesmo com a crítica a
tema da diferença e a tríade “raça”, classe Sauer, muitos elementos da geografia
social e gênero adentram o campo saueriana persistem no pensamento de
geográfico como baliza para uma nova Duncan, notadamente o conceito de
dialética social, que dispõe de situações tão paisagem, contudo, mais do que uma
diversas quanto se pode combinar essas dicotomia entre a paisagem natural e
variáveis, todas com igual importância. O cultural, Duncan insiste agora no
verbete destaca ainda como a cultura é simbolismo e na cultura como uma
transformada em mercadoria e como o invenção social que resulta na criação dos
exército estadunidense usou estratégias signos. A paisagem seria dotada então de
culturais para dominar países insurgentes uma retórica simbólica resultado da
no Oriente Médio. Outro fato importante, construção consciente ou inconsciente da
destacado por Barnett (1998) é a inclusão ação humana, sendo ela o reflexo do que a
de um capítulo sobre a virada cultural em sociedade quer lembrar ou esquecer, em
um célebre manual de história do uma mensagem que compõe o habitat
pensamento geográfico8. humano. Contudo, Duncan (2004)
Além do mundo anglo-saxão, a problematiza a intersubjetividade e a
geografia francesa também incorpora a valoração da paisagem para os que
tendência, como vemos em Paul Claval pertencem ao lugar e para os de fora,
(2002), que defende uma geografia plural demonstrando a pluralidade e dubiedade
que explora os saberes vernaculares, ou que os seus signos possuem. Claramente,
seja, conhecimentos particulares de cada seu projeto de análise cultural, enfocada
povo, para, através de um enfoque na paisagem abre um franco diálogo com a
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antropologia, semiótica, estudos culturais, impacto da virada cultural nas ciências
história da arte e teoria literária, como o humanas e demonstra como o método
próprio autor coloca (DUNCAN, 2004, p. hermenêutico e a metáfora da paisagem
135). como texto foram instrumentalizadas. O
A paisagem para Duncan teria o pós-modernismo é até certa medida um
papel de produzir e reproduzir a cultura, elogio à superficialidade como coloca
ganhando novos significados e Jameson, uma vez que a hermenêutica não
remodelações de acordo com os contextos é profunda, percorrendo necessariamente
sociais e históricos. Assim, a cultura é um múltiplas superfícies para compor a
sistema de criação de signos e Duncan intertextualidade.
(2004) sujeita a geografia ao campo Nesse contexto, Mitchell (1999)
discursivo que embasa as práticas sociais e publica um texto cujo efeito suscitou
dá sentido ao lugar e ao habitat. Através ampla polêmica, pois basicamente o autor,
do uso da linguagem, Duncan enfatiza de clara filiação marxista, defende a ideia
pelo menos três elementos derivados da que a cultura não existe, pois ela não
análise do texto para pensar a paisagem: possui ontologia, sendo um mero aparato
(1) a alegoria entre forma da paisagem e discursivo e ideológico à serviço da
símbolo, (2) a sinédoque, um tipo de dominação social. Mitchell mostra como a
metonímia que envolve a relação entre cultura abrange uma grande quantidade
todo e parte, e (3) a herança cultural de elementos sociais, sem termos uma
carregada pela paisagem. As formas definição nítida de sua abrangência, uma
paisagísticas modulam a tradição social e a vez que ela reflete as relações de poder
sua memória (DUNCAN, 2004). através da construção das diferenças e isso
Assim, a geografia física é deixada ocorre através do processo de reificação,
para trás na reafirmação da disciplina ressaltado acima.
como uma ciência social, pois a própria É interessante ver então os
natureza é compreendida como uma resultados do debate do texto de Mitchell,
representação construída socialmente. A pois temos figuras como Peter Jackson
metáfora linguística ganha força na análise que concordam com a cultura sem
da paisagem, assim como o conceito de ontologia, muitas vezes apropriada e
cultura ganha uma centralidade criada pela classe dominante, cuja
fundamental. O desenvolvimento da obra natureza é ideológica, sendo um
de Duncan é justamente uma amostra do instrumento de dominação. Porém,
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Jackson demonstra como Mitchell corre o conhecimento da realidade” (BARNETT,
risco de perder o sentido material da 1998, p. 380).
cultura e cair em uma armadilha “onde as Além desses apontamentos,
únicas lutas são sobre linguagem e Barnett coloca que a nova geografia
políticas de representação” (MITCHELL cultural está cada vez mais perdendo uma
et alli, 1999, p. 56), admitindo que a identidade e se diluindo nos estudos
própria materialidade do espaço é usada culturais, como se ambos campos
ideologicamente para reafirmar ou estivessem produzindo conhecimentos
“naturali ar” determinados valores. similares, abrindo mão de categorias
Cosgrove, por sua vez, critica o autor por geográficas. Igualmente, Barnett saúda
limitar a cultura apenas às relações de como uma das vantagens da virada
poder e assim empobrecer a ideia de cultural o enfraquecimento das referências
imaginário geográfico que ficaria restrito clássicas – como Marx e Freud, por
à lógica social, abandonando a criação de exemplo – em detrimento do intelectual
intersubjetividades responsáveis pelas especializado, concomitantemente ao
diferenças mais diversas. Da mesma surgimento de uma nova geração de
forma, ele não problematiza a dialética pensadores sem grande renome. Na sua
entre cultura e natureza. James Duncan e opinião, essa seria a confirmação da
Nancy Duncan, igualmente, endossam chamada morte do sujeito, aclamada pelos
vários argumentos de Mitchell e pós-modernos, em que a individualidade
demonstram como a cultura é difícil de ser da obra e do estilo se esvanece. Nesse
definida, sendo necessário o cuidado para sentido, concordamos com o ponto de
não reificá-la ou essencializá-la, ou seja, vista de Jacoby (1990) em que fica claro o
conferir-lhe um efeito causal para explicar silêncio dos intelectuais e a perda de
a sociedade. figuras públicas que propunham agendas
Vemos então que a cultura é uma de debate e opiniões para a sociedade, tudo
representação ou um conjunto de isto, em função da escassez de projetos
representações criadas, para alguns, intelectuais mais amplos, ou ainda, pelo
ideologicamente e, para outros, meros fato dos pesquisadores cada vez mais
pontos de vista que se sobrepõem, pois a abordarem temas interessantes, mas não
preocupação agora é com “(…) o papel da necessariamente relevantes. Outro
linguagem, do sentido e da representação argumento importante, que se contrapõe à
na constituição da „realidade‟ e morte do sujeito, é que continuamos a ter
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pensadores mais ou menos valorizados em encontrada através da história e dos
todos os campos do conhecimento. Don diversos intercâmbios realizados pelos
Mitchell (2000), em seu balanço sobre a povos.
história da geografia cultural, defende que A aristocracia e a burguesia
o impacto da virada foi justamente o apelo criaram culturas de classe e, nesse sentido,
aos temas políticos não tratados pela o iluminismo carrega valores burgueses,
escola de Sauer. Isso é verdadeiro, mas assim como a cultura pós-moderna traz
parcialmente, uma vez que persistem consigo valores ligados ao modo de vida
estudos pontuais em que se perdem estadunidense e a efemeridade do
categorias de síntese importantes como a capitalismo financeiro. O próprio processo
de totalidade. de invenção e mercadorização da cultura
Contudo, nesse debate, alguns têm carrega expressamente valores afins da
medo de que Mitchell apenas tenha financeirização – diversificação dos
reelaborado o velho esquema marxista da investimentos, teste de assimilação do
infra e super-estrutura. Se de fato ele produto no mercado, escolha pelo maior
fizesse isso, nos sentiríamos satisfeitos, lucro –, bem como do relativismo cultural,
mas o grande problema que nos resta é a que tem a capacidade de suspender
indefinição da cultura. Como vemos, qualquer tipo de reificação ou preconceito
temos um problema teórico com a virada para fazer negócios ou criar mercadorias a
cultural, pois a cultura não pode ser partir de todas as culturas do mundo.
definida porque está em constante Obviamente, nesse processo, a convivência
transformação, abrangendo a esfera entre distintas culturas se torna cada vez
política e econômica. A nosso ver o mais complexa. Cabe lembrar que as
problema se põe de outra forma: em diversas culturas se formaram por um
primeiro lugar é extremamente ingênuo longo processo de trocas culturais ora
acreditar que a cultura é uma quimera que mais intensos, ora mais lentos e que,
muda incontrolavelmente, mas é portanto, seria um equívoco falar de
igualmente pobre o pensamento que culturas híbridas, em determinados
acredita em autenticidades ou em uma contextos, uma vez que isto pressupõe a
essência pura e imutável. A solução do mistura de duas culturas puras.
problema é um meio de caminho, É necessário ainda fazer uma
rompendo com a pós-modernidade, em reflexão sobre o tema controverso do
que a natureza da cultura pode ser multiculturalismo, pois como Jacoby
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(2001) demonstra, a cultura estadunidense a tríade classe, gênero e “raça” ganha cada
tem uma enorme capacidade de aculturar vez mais força nas políticas de diferença,
seus imigrantes e, igualmente, cabe pensar no entanto, a classe social posta em
como é possível identificar várias culturas questão não é mais uma categoria
diferentes se todas estão assentadas na histórica e não se discute mais a
mesma estrutura econômica, com consciência de classe. A classe para a pós-
objetivos semelhantes e com ideias modernidade é uma categoria ligada aos
similares sobre o que é ser feliz ou bem- perfis profissionais e aos padrões de
sucedido. O multiculturalismo surge então consumo, uma vez que não temos mais um
como um produto da assimilação ou sentido histórico. Como mostram Jacoby,
yanquização, estando ele próprio Eagleton e Jameson, o resultado é uma
institucionalizado (os ítalo-americanos, presentificação da utopia na diversidade
por exemplo), mas sem existir, de fato, social, sendo que "o futuro fica parecendo
uma diversidade de culturas na sociedade o presente com mais opções” (JACOBY,
estadunidense. 2001, p. 62). Ora, a diversidade e a
Contudo, ao admitir a cultura distinção social sempre existiram e vão
como algo invariavelmente transitório, existir, uma vez que são fruto da
corremos o risco de ofuscarmos o fato de imaginação humana, mas elas não têm o
existirem fenômenos de longa duração que poder de explicar a gênese das
podem mudar de aparência, mas em desigualdades entre os povos e atingem
essência permanecem iguais. Por exemplo, apenas parcialmente o âmago da
o caudilhismo latino-americano é algo que dominação social, uma vez que este
infelizmente faz parte da nossa tradição imperativo pode ter uma legitimação
cultural e mesmo que ele se reinvente, representacional, mas ao fim e ao cabo
persiste por um longo prazo com suscita desigualdades materiais. Como
fundamentos mais ou menos semelhantes. ressalta Eagleton, a seleção dos valores
O mesmo pode ser dito no próprio culturais do relativismo cultural é neutra e
racismo, ou seja, as resignificações tem isso implica na incorporação ou
marcos históricos claros. manifestação de valores elitistas e
Como vimos, agora a ideologia tem autoritários.
menos peso diante do relativismo e se O grande problema que nos surge
celebra a diversidade já que as culturas são é o medo de Eagleton, que está cada vez
até certa medida herméticas. Notamos que mais presente: a permissibilidade do
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relativismo e a sua aversão à política, em cultura pós-moderna, que certamente tem
alguns casos, abre cada vez mais as portas um impacto diferencial no mundo. Perde-
para o ressurgimento do fascismo. O se uma relação dialética da difusão cultural
respeito à diferença tem o lado positivo do entre o global e o local, justamente porque
reconhecimento dos oprimidos e os a totalidade é jogada em segundo plano.
mecanismos que dão voz aqueles que antes Uma crítica que se faz imperativa, é a
não tinham, mas, significa uma releitura da pós-modernidade como uma
convivência com o cinismo da elite, que cultura imperialista, pois como ressalta
cada vez mais se esconde no jogo cultural Eagleton o antietnocentrismo
da diferença, justamente em função de estadunidense possui em si uma dimensão
uma relativa fusão entre a cultura popular etnocêntrica. Paralelamente, é impossível
e a alta cultura. A classe social continua a negar que os pastiches, tão apreciados por
ser uma categoria de sumária importância Jameson, privilegiam em suas referências
para compreensão do mundo a cultura e o modo de vida europeu e
contemporâneo, porque nas últimas estadunidense.
décadas assistimos a uma brutal Etnocentrismos à parte,
reconcentração de renda e, nos últimos certamente a preocupação com a simetria
anos, uma ascensão ininterrupta da direita cultural traz importantes inovações e
no Brasil e no mundo. Pois bem, o pontos de vista para as ciências sociais, no
problema então não é teórico, nem entanto, o estudo do espaço e da cultura
metafísico, e sua solução naturalmente se não pode substituir elementos essenciais
encontra nos movimentos políticos de em nome de uma paralização conformista
massa. Alguns poderiam argumentar e particularizante diante das
sobre a necessidade de uma teoria representações. Por fim, o sentido de
revolucionária, que certamente se faz totalidade deve ser resgatado para que se
necessária, mas ao nosso ver o mais compreenda as dissimetrias da difusão
importante é ter dimensão da retração que cultural e a dialética entre o local e o
a esquerda sofreu. global. Igualmente, não se pode negar que
Apesar de Jameson ser um bom a técnica, criada de forma extremamente
analista da cultura, expondo ideias concentrada, tem uma dimensão cultural
complexas, ele submete a esfera da como nos colocava o bom e velho Sauer.
economia e da política englobando-as na Finalmente, assim como outras esferas da
cultura, além de superestimar o papel da sociedade, a cultura possui uma ontologia
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bem delimitada calcada na história que se ou indiretamente, por exemplo, ilustres figuras

coaduna com as ideologias, com a como Hanna Arendt e Arthur Koestler.


5 Para a compreensão da gênese da pós-
consciência e com a luta de classe, se
modernidade, se faz necessário ainda a consulta da
materializando em seus diversos aspectos célebre obra de Perry Anderson, As origens da
e visões, vencedoras e perdedoras, naquilo pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
que chamamos de formação sócio-espacial. 6 Trata-se de “O par de sapatos” de 1886.
7 Trata-se de “Diamond Dust Shoes” de 1980.
8 Trata-se do livro de Roland John Johnston e
NOTAS ________________________________
James D. Sideway, Geography & Geographers, que
até hoje é reeditado.
* Professor da Universidade da Integração Latino-
Americana, geógrafo e doutor em geografia
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________
humana formado pela Universidade de São Paulo.
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pesquisa e se interessa sobre a história da progress in human geography?” in Antipode, 30:4,
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marxismo fora e dentro da universidade. COSGROVE, Denis. Cultural geography: a critical
introduction. Oxford: Blackwell Plubishing, 2000.
1 Cabe ressaltar que Leo Waibel influenciado pela
geografia das paisagens também se sente ___________, Denis E. “Em direção a uma
geografia cultural radical” in Espaço e Cultura, nº 5,
insatisfeito por suas limitações, mas
1999.
diferentemente de Sauer, que busca uma explicação
CUSSET, François. French theory. Paris: La
mais complexa na cultura, Waibel incorpora a
Decouvérte, 2005.
teoria econômica à sua geografia para
DUNCAN, James. “A paisagem como sistema de
complexifica-la (ETGES, 2012).
criação de signos” in CORREA, R. L. e
2 É importante notar que esse questão também foi ROSENDAHL, Z. Paisagens, textos e identidade. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2004.
posta pelos teóricos pós-coloniais como, por
exemplo, Spivak no tocante aos estudos _______, James. “The supraorganic in american
cultural geography” in Annals of the Association of
subalternos.
American Geographers, vol . 70, nº 2, 1980.
3 Alguns intérpretes defendem que o pensamento
DUNCAN, James e LEY, David. “Structural
de Althusser teria, a longo prazo, criado uma cisão
marxism and human geography: a critical
no marxismo entre o estudo da cultura, ou seja, da assessment” in Annals of the Association of American
superestrutura e da economia política. Geographers, vol . 72, nº 1, 1982.
4 Saunders demonstra com clareza como o serviço EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo.
secreto estadunidense conseguiu se infiltrar no Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

meio intelectual e financiar parte da esquerda ERICKSON, Paul A.; MURPHY, Liam D. História
insatisfeita com o socialismo real, apoiando direta da teoria antropológica. Petrópolis, Editora Vozes,
2015.

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THE EMPIRE OF REPRESENTATION: THE CULTURAL TURN AND THE GEOGRAPHY


ABSTRACT: WE AIM TO DEMONSTRATE HOW THE POSTMODERNISM AND THE SO CALLED CULTURAL TURN ASCENSION
CHANGED THEORETICAL ASPECTS OF HUMAN SCIENCES, MOVING AWAY FROM MARXISM, PROVOKING SHIFTS IN CULTURAL
GEOGRAPHY. WE WILL SEE THE AFFIRMATION OF CULTURE AS AN EVER CHANGING AND INDEFINABLE SOCIAL TRAIT,
CONTRARY TO THE CULTURE AS AN IMMUTABLE ESSENCE, CONCEPTION USED AS A WAY TO PRODUCE SOCIAL DOMINATION.
TO COMPREHEND THESE TWO PERSPECTIVES WE COMPARE THE THOUGHT OF D. HARVEY AND F. JAMESON ABOUT POST-
MODERNITY AND SOME CONSIDERATION OF DUNCAN AND MITCHEL ABOUT NEW CULTURAL GEOGRAPHY. FINALLY, WE OFFER
SOME CRITICAL POINTS ESTABLISHED BY THE NEW CULTURAL GEOGRAPHY DEBATE.
KEY-WORDS: CULTURAL TURN, NEW CULTURAL GEOGRAPHY, POST-MODERNISM, CULTURE, ONTOLOGY.

L’EMPIRE DE LA REPRESENTATION: LA TOURNEE CULTURELLE ET LA GEOGRAPHIE


RESUME: DANS C’EST ARTICLE ON VEUT DEMONTRER COMMENT L’ASCENSION DE LA POSTMODERNITE ET DE LA TOURNEE
CULTURELLE ONT CHANGE ASPECTS THEORIQUES DES SCIENCES HUMAINES, DANS UN CLAIR MOUVEMENT D’ENLEVEMENT DE
QUELQUES PREMISSES DU MARXISME, PROVOCANT D’IMPORTANTES TRANSFORMATIONS A LA GEOGRAPHIE CULTURELLE. ON
VERRA QUE L’AFFIRMATION DE LA PERSPECTIVE DE LA CULTURE COMME UNE CHOSE MOBILE ET INDESCRIPTIBLE, S’OPPOSE
A LA CULTURE STATIQUE ET ESSENTIALISTE, QUI SERT PARFOIS A LA DOMINATION SOCIALE. POUR ÇA, ON COMPARE LA
PENSEE D’HARVEY ET JAMESON SUR LA POSTMODERNITE, BIEN COMME QUELQUES ELABORATIONS DE DUNCAN ET MITCHELL
SUR LA NOUVELLE GEOGRAPHIE CULTURE. FINALEMENT, ON OFFRE LES POINTS CRITIQUES ETABLIS SUR LE DEBAT
INCORPORE PAR LA NOUVELLE GEOGRAPHIE CULTURELLE.
MOTS-CLES: TOURNEE CULTURELLE, NOUVELLE GEOGRAPHIE CULTURELLE, POSTMODERNISME, CULTURE, ONTOLOGIE.

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