Duas tradições podem ser consideradas na teoria da música
grega: a tradição pitagórica e a tradição aristoxeniana.
A tradição pitagórica centrava-se na teoria dos números e na relação entre a música e o cosmos, preocupando-se também com a influência da música sobre o comportamento humano. O número era visto como a chave para se entender todo o universo espiritual e físico. Segundo Pitágoras: “A música é proporção, algo que se domina pela razão”; “A música é redutível a reduções numéricas, ela reflete a ordem do mundo, mas em retorno, ela influi sobre o coração e sobre o carácter do Homem; ela é um fator moral e social de primeiro plano na educação e na vida pública”. Em termos musicais, esta conceção numérica manifestou-se no cálculo das proporções que caracterizam os intervalos entre as notas.
Figura 1 - Esta ilustração de um
manuscrito do século XIII apresenta Pitágoras na loja de um ferreiro fazendo as medições. A parte inferior mostra um monocórdio e uma espécie de harpa, que representa o poder da música. Pitágoras realizou então uma série de experiências em cordas vibrantes utilizando o monocórdio. Constatou que quanto menor fosse o comprimento de uma corda, mais agudo era o som produzido. Sendo assim, no meio da corda (1/2) encontrava-se o intervalo de oitava, a 3/4 da corda podia-se ouvir o intervalo de quarta e a 2/3 da medida inicial obtinha- se o intervalo de quinta. O tom inteiro era então expresso como a diferença entre a quarta e a quinta, que se concretiza em 9:8. No interior da oitava aparecem assim duas quintas, duas quartas e um tom inteiro, e a oitava torna-se o resultado da soma de um intervalo de quarta com um intervalo de quinta. Os outros intervalos deduzem-se dos três primeiros, mas por causa das suas proporções numéricas complexas são dissonantes. Pitágoras concluiu que as primeiras consonâncias (oitava, quinta, quarta) correspondem à divisão simétrica da corda. Estas consonâncias tinham um significado importante dentro das doutrinas pitagóricas acerca da criação e da substância do Universo, porque nessas proporções (2:1, 3:2, 4:3) estão os números que fazem parte da tetraktys, figura triangular que era para os pitagóricos o símbolo da perfeição (“triângulo perfeito”). No entanto, quando este sistema foi posto em uso surgiu um problema prático. A quarta estava dividida em dois inteiros, mais o remanescente (conhecido como limma). Teoricamente, se a soma de uma quarta e uma quinta perfaz uma oitava, há seis tons inteiros na oitava. Contudo, se a razão de 9:8 foi utilizada para determinar um tom inteiro, então a soma de seis destes tons inteiros concretiza-se um pouco mais acima de uma oitava. Pitágoras acreditava ainda numa música produzida por corpos celestes, a chamada harmonia das esferas. Acreditava que a distância entre a terra e os corpos celestes visíveis a olho nu, assim como as velocidades com que esses corpos giravam à volta de Terra, estavam relacionados entre si com as mesmas relações que caracterizam as notas da escala diatónica. Pensava também que a distância entre os planetas, bem como o seu movimento estavam relacionados com intervalos musicais, e que cada planeta emitia um som proporcional ao seu peso. Estes sons eram completamente concordantes, podendo produzir uma bela melodia. Figura 2 – Harmonia das Esferas Assim, o sistema de sons e de ritmos musicais, sendo regido pelo número, exemplificava a harmonia do cosmos. Por isso, exercia uma grande influência sobre o caráter do Homem. De facto, os antigos gregos consideravam a música como um fator importante para a aquisição de virtudes, daí a sua relevância na educação e na vida pública. Esta tradição teve um grande impacto nos escritos de Gaudêncio (Introdução Harmónica), Ptolomeu (Harmónica) e Platão (República, As Leis e Timeu), entre outros. Platão (c.428-348 a.C.), matemático e filósofo, defendia que a música era indispensável à educação. No entanto, devia ser “bela” e elevar o espírito, através do timbre dos instrumentos, pela forte ou suave acentuação do ritmo e pela diversidade da expressão dos diversos modos. Por isso, Platão considerava que só determinados tipos de música eram aconselháveis. As melodias que exprimissem brandura e indolência deviam ser evitadas na educação dos indivíduos que estivessem a ser preparados para governar o estado ideal. Condena então o ritmo da inovação (a nova música do século V e IV a.C.) e o virtuosismo, pois defendia que a música devia espelhar o divino, portanto, a estabilidade das leis universais. Os fundamentos da música, uma vez estabelecidos, não deviam ser alterados, pois o desregramento na arte e na educação conduzia inevitavelmente à libertinagem nos costumes e à anarquia na sociedade. Um dos diálogos mais famosos de Platão é a República. Nesta obra expõe as suas ideias sobre a organização do estado ideal. Nesse estado, a educação é primordial e a arte, em particular, a música é vista como o meio de alcançar esse ideal educacional. O objetivo da música não é servir o entretenimento superficial, mas ajudar a construir uma personalidade harmoniosa. A tradição aristoxeniana, associada às teorias de Aristóxeno de Tarento (354-300 a.C.), embora possuísse algumas características em comum com a tradição pitagórica, baseava-se na experiência auditiva e não nos raciocínios matemáticos. A verdadeira beleza da música deveria ser encontrada na audição, ou seja, a componente sensorial deve intervir na apreciação dos fenómenos musicais. Colocava a ênfase no treino do ouvido, elemento central para o estudo do fenómeno musical. Aristóxeno recebeu uma influência marcante de Aristóteles, de quem foi discípulo. Aristóteles (séc. 384-322 a.C.) advoga a finalidade artística da música, o seu “sentimento estético”. Explicou o modo como a música age sobre a vontade do Homem, através da doutrina da imitação. Para ele, a música imitava diretamente as paixões ou estados da alma, portanto, quando ouvimos uma determinada peça musical que imita uma determinada paixão, ficamos imbuídos dessa mesma paixão. Por isso, é importante escutar a música adequada, de modo a promover o bom caráter. No entanto, Aristóteles mostrou-se menos restritivo do que Platão quanto aos ritmos e modos a utilizar e acompanhou a música nova. Para Aristóteles, a música é útil na educação mas também como forma de divertimento e de reflexão, desde que o seu uso não se torne excessivo e distrativo. Reconhece, por isso, um prazer puramente estético. Na sua obra Elementos de Harmonia (c.330 a.C.), em três volumes, Aristóxeno refere-se a conceitos como notas, intervalos, géneros, sistemas de escalas, tons, modulação e composição melódica. É considerado o primeiro grande teórico e investigador musical grego. Discordava dos pitagóricos no tratamento matemático usado para a definição dos intervalos musicais, aceitando apenas a existência das concordâncias naturais referentes à oitava, quinta e quarta. Os outros intervalos eram variáveis e ajustados segundo o contexto. Na teoria aristoxénica o intervalo de quarta é a base do primeiro sistema de notas: o tetracorde. Este possuía quatro notas, as duas notas extremas eram fixas e estavam a uma distância de quarta e as duas notas internas eram móveis. Quando as posições dessas notas internas mudavam, surgiam diferentes géneros (gene). Para além destes três géneros, havia também, segundo Aristóxeno, as khroai: nuances ou sombreamentos que eram pequenas variações na organização dos géneros. A partir do tetracorde chegava-se a outros sistemas ou combinações de intervalos maiores e mais complexos. Era possível juntar dois tetracordes por conjunção (synemmena) ou por disjunção (diezeugmena). No primeiro, os dois tetracordes têm uma nota partilhada entre eles, formando assim um sistema de sete notas (heptachordon). No segundo, os dois tetracordes separados por uma nota, chamada de nota ou tom de disjunção - diazeuxis), o que resultava num sistema de oito notas (diapason ou harmonia). No sistema musical grego, o termo “harmonia” tinha um sentido diferente do atual, uma vez que a música era essencialmente monódica. Também não eram simples escalas modais, como nos modos medievais. O termo “harmonia” designou os caracteres de um discurso musical (por exemplo, disposição dos intervalos, altura do som, andamento, timbre, etc.), isto é, as características recorrentes na produção musical de um mesmo âmbito geográfico e cultural. Neste sentido, existiam as harmonias dórica, frígia, lídia, entre outras, cada uma com o seu conjunto de características. Um outro termo utilizado pelos teóricos da música grega é “tonos”. Podia ter significados diferentes, mas em Aristógenes, tonos é a escala na qual uma harmonia pode ser colocada ou reproduzida. Estas escalas foram nomeadas com os mesmos nomes usados para as harmonias. Desde o início que o vocabulário da teoria musical grega tem as suas origens na prática dos instrumentos de corda, como é o caso dos nomes das notas, que vêm da disposição das cordas da lira (khelys): hypate era a corda “superior”, mas aquela que produzia a nota mais grave; parhypate era a corda/nota que estava “junto à hypate”; a lichanos era a corda tocada pelo “dedo indicador”; a mese era a corda “do meio”; a paramese era a nota que estava “junto à mese”; a trite era a terceira corda a partir de baixo; a paranete estava “junto à nete”; e, por fim, na posição mais baixa estava a nete, a corda “nova”, isto é, a “inferior”, mas que tinha o som mais agudo. Um aspeto importante a referir é que o sentido das melodias não eram ascendente, mas descendente. Por isso, à nota “mais alta” ou “superior” correspondia a nota “mais grave”. As notas recebiam estes nomes num sistema de sete ou oito notas. Com o tempo surgiram sistemas maiores, com um número maior de notas, porque, por um lado, o número de cordas da cítara e da lira aumentaram e, por outro lado, a teoria musical foi-se desenvolvendo no final do século VI e ao longo do século V a.C. Neste desenvolvimento foi adicionada uma nota depois da hypate, chamada proslambanomenos. Quando a três tetracordes conjuntos era adicionada uma nota antes da mais grave obtinha-se o sistema perfeito menor (systema teleion elatton). Os três tetracordes eram diferenciados com os seguintes adjetivos, do mais grave para o mais agudo: hypaton (ou seja, “dos sons mais graves”), meson (“dos sons médios”) e synemmenon (“dos sons conjuntos”). Da união de dois pares de tetracordes conjuntos separados por um tom disjuntivo, tendo uma nota adicionada antes da mais grave, surgia o sistema perfeito maior (sistema teleion meizon). Os quatro tetracordes também receberam especificações: hypaton, meson, diezeugmenon (“dos sons da disjunção”) e hyperbolaion (“dos sons mais agudos”). Estes sistemas podiam ser expandidos através da união do sistema perfeito menor com o sistema perfeito maior, o chamado sistema perfeito imutável (systema teleion ametabolon). Cleónides, teórico aristoxénico do final do século II e início do III d.C., definiu dentro do sistema perfeito maior sete “espécies de oitava”. Essas formas eram as combinações intervalares possíveis tomando por base o género diatónico (meio-tom, tom, tom). Os nomes das antigas harmonias gregas foram aplicados a estas sete espécies de oitava. Deste modo, a partir do sistema geral podiam-se criar segmentos de uma oitava, formados por dois tetracordes de estrutura igual. Em função da posição do meio-tom existem três tipos de tetracorde: dórico (tom, tom, meio-tom), frígio (tom, meio-tom, tom) e lídio (meio-tom, tom, tom). A justaposição de dois tetracordes iguais origina uma oitava ou modo, definido pela qualidade dos respetivos tetracordes. É assim que se obtém os três modos fundamentais da música grega: dórico, frígio e lídio. É habitual fazer corresponder o modo dórico a uma escala diatónica descendente de mi a mi, o frígio de ré a ré e o lídio de dó a dó. A estes três modos acrescenta-se um outro modo, assimétrico, o mixolídio, de si a si. Com a deslocação dos tetracordes obtém-se os modos relativos, em que a nota final se encontra uma quinta abaixo: hipodórico (lá a lá), hipofrígio (sol a sol) e hipolídio (fá a fá). No entanto, os géneros de oitava apresentados não exigiam notas com altura fixa. Os cantores adaptavam a Mese (o meio de todo o sistema) à sua voz e os instrumentistas variavam o meio do sistema através da afinação. Por isso, todos estes modos, mais corretamente designados por escalas ou modos de transposição, de acordo com os registos da voz ou do instrumento, podiam-se organizar a partir de qualquer nota. A oitava central mi-mi constituía o âmbito mais comum. O modo dórico não implicava um sinal de transposição, pois coincidia com a oitava mi-mi. Todos os outros modos eram normalmente transpostos para esta oitava de mi, aplicando- se os sinais adequados. Ptolomeu (c.83 d.C. – 161 d.C.) foi quem aproximou as duas escolas de pensamento. Na sua obra Harmónica critica os pitagóricos e os aristoxenianos, deixando claro para o leitor que não quer ser associado a nenhuma dessas correntes. “À luz dessas demonstrações, deve-se criticar os pitagóricos, não pela sua descoberta das razões das consonâncias, pois estão certos, mas onde falharam em atingir o seu objetivo. Por outro lado, deve-se criticar os aristoxenianos, pois eles não concordam que aquelas razões sejam evidentes e, quando as rejeitam, não procuram outras mais seguras, apesar da sua promessa quanto a um estudo teórico da música”. Portanto, critica Pitágoras por chegar a conclusões que não têm qualquer relação com fenómenos observáveis e Aristóxeno por definir intervalos imprecisamente, em vez de utilizar razões matemáticas precisas para os descrever. O ritmo na música vocal grega, pela sua relação estreita com a palavra, dependeu originalmente da métrica: a quantidade das sílabas e palavras é que ditava a duração dos sons. Com o aparecimento da música instrumental foi possível criar um sistema rítmico autónomo. Aristóxeno (Elementos da Rítmica) foi o responsável pela sistematização do ritmo. Este é “a ordem na repartição das durações” e desenvolve-se através do “texto poético, da melodia e do movimento do corpo”. Criou um sistema quantitativo, onde os ritmos são combinações de sílabas Longas e breves formando padrões designados pés métricos. Os pés métricas baseavam-se na alternância sílaba breves e longas: Originalmente, a música grega, como quase todas as culturas musicais da época, conhecia apenas a simples tradição oral. A partir do século VI a.C., contudo, os gregos começaram a utilizar a notação alfabética. Foram criados dois sistemas, um mais antigo para a música instrumental e um mais recente para a música vocal. Ambas as notações são baseadas no alfabeto. O tipo mais antigo, dito instrumental, servia-se em parte de um alfabeto arcaico, usando as letras em posições diversas para indicar as alterações. O segundo tipo, dito vocal, utilizava todo o alfabeto jónico em ordem consecutiva. O mundo grego exerceu uma enorme influência sobre os posteriores Império e República romanos, particularmente depois do domínio romano sobre o continente grego, após 168 a. C. Em termos musicais, isto concretizou-se não só na adoção quase indiscriminada da teoria musical grega como também num elevadíssimo influxo de músicos oriundos da Grécia, muitos dos quais altamente talentosos. Com eles transportou-se algo mais do que a teoria - o drama grego tornou-se muito popular e os músicos imigrantes também levaram os seus instrumentos musicais como acréscimo em relação aos adotados dos Etruscos. No entanto, consta que um dos mais notáveis instrumentos da Antiguidade, o órgão hidráulico, foi inventado em Alexandria por um engenheiro chamado Ctesibios, no século 111 a. C. Semelhante, do ponto de vista da estrutura, a órgão posteriores, a sua característica singularmente engenhosa consistia no uso da pressão da água para assegurar que a circulação do ar permanecia constante. O ar era injectado para um compartimento com uma válvula de sentido único e a pressão da água expelia este ar para os tubos, enquanto os foles se encontravam preparados para injectar mais ar no compartimento. Quando as teclas eram premidas, a parte inferior dos tubos era desimpedida, o que permitia a livre circulação do ar. Por altura do século 1 d. C., dada a expansão do império para oriente, Roma também assistiu à chegada de músicos e instrumentos da Ásia Ocidental e do Norte de África, e o exotismo, aos olhos romanos, de muitas das suas canções e danças deu ímpeto ao desenvolvimento mais aprofundado dos dramas representados em pantomima de então. Estes baseavam-se em larga medida nas tragédias gregas, à semelhança do que acontecia com o imensamente popular teatro mímico. Uma outra importação, após Roma ter conquistado o Egipto em 30 d.C., foi o culto de Ísis, que com ele trouxe o sistro egípcio, a harpa e a flauta longa. Os imigrantes musicais não se limitaram a transportar as suas próprias tradições e a preserva-las intactas, pois o génio da mistura de povos romana consistiu em adoptar e adaptar estas influências e a partir delas produzir uma identidade musical distintamente romana. Foi na assimilação destes elementos díspares por parte de Roma que os desenvolvimentos posteriores na música europeia, incluindo na música dos primórdios da Igreja Católica e nos instrumentos - e, em certa medida, nas formas vocais - dos músicos seculares itinerantes, se basearam. Com o fim do império e com a transformação da cidade em capital do Cristianismo, cessaram as formas sobreviventes do teatro latino, que renasce na igreja com as várias formas de drama litúrgico ou com os cantos de louvores por ocasião de festas religiosas.