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Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

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FORMAÇÃO HISTÓ- sobre o direito penal do autor e do


fato, tendo em vista que, não obs-
RICA DA CULPABI- tante se tratar a culpabilidade, pelo
LIDADE: A PASSA- menos no discurso, um juízo sobre o
autor do fato, parece-nos que na
GEM DA CONCEP- aplicação da pena temos uma culpa-
ÇÃO PSICOLÓGICA À bilidade do autor, o que é impensá-
NORMATIVA E SUAS vel dentro de um estado democráti-
co de direito.
RELAÇÕES COM A
MEDIDA DA PENA Palavras-chave: culpabilidade; medida da
pena; direito penal do auto e do fato.
HISTORICAL FORMATION
OF CULPABILITY: THE Abstract
This study aims to examine the formation
TRANSITION FROM PSI- of the concept of culpability from its auton-
COLOGICAL TO NORMA- omy as independent element of illicitness,
TIVE CONCEPCTION which culminated in the design of psycholog-
AND ITS RELATIONS ical culpability, even the outlines given by
WITH THE EXTENT OF the normative conception. The thrust of this
study is the complex relationship between
PENALTY culpability and measure of the sanction,
which leads us to the discussion of criminal
Leonardo Siqueira1 law of the author and the fact, considering
that, despite dealing with culpability, at
Resumo least in discourse, a judgment about the
O presente trabalho visa examinar a author of fact, it seems that the measure of
formação do conceito de culpabili- the sanction, we have a culpability of the
dade a partir da sua autonomia co- author, which is unthinkable in a demo-
mo elemento independente da anti- cratic state of law.
juridicidade, que culminou na con-
cepção psicológica da culpabilidade, Keywords: culpability, measure of the sanction;
até os contornos dados pela concep- criminal law of the author and the fact.
ção normativa. O fio condutor do
presente estudo é a complexa rela- 1. INTRODUÇÃO
ção entre a culpabilidade e a medida
da pena, o que nos leva a discussão A importância da culpabili-
dade como categoria autôno-
1Mestre e Doutor em Direito pela ma no sistema do delito foi
UFPE. Professor de Direito Penal e
fundamental para a dogmática
Processual Penal e Coordenador
Adjunto do Curso de Direito da penal que caminha no sentido
Faculdade Damas da Instrução de um direito penal humanitá-
Cristã. Advogado.
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rio e garantista, a tal ponto É importante salientar que


que a doutrina chega a afirmar Liszt, como todos os causalis-
que a distinção entre antijuri- tas, faz uma separação entre a
dicidade e culpabilidade foi a manifestação da vontade e a
principal conquista da ciência vontade propriamente dita.
penal alemã2, que foi elabora- Segundo os adeptos dessa
da, ainda no século XIX, por corrente, a manifestação da
Franz Von Liszt. vontade significa apenas o
A separação entre a ilicitu- impulso da vontade, ou, para
de e a culpabilidade só foi ficar mais claro, um movimen-
possível em virtude da ideia de to voluntário isento de coação.
Liszt de colocar o conceito de Já o conteúdo da manifestação
ação como pedra angular da da vontade, não era analisado
teoria do delito, onde a condu- na ação, e sim num momento
ta humana funcionaria como posterior.
um conceito de enlace entre Do conceito de ação de
os elementos do crime. O Liszt podemos extrair três
autor definia o ato como con- elementos primordiais, quer
duta voluntária que causa uma dizer, a manifestação da von-
modificação no mundo exteri- tade, o nexo de causalidade e
or. Num primeiro momento, a o resultado. A relação entre o
ideia de ato pressupõe a mani- resultado e a manifestação da
festação da vontade, isto é, vontade pode existir objeti-
livre de violência física ou vamente e subjetivamente. No
psicológica e motivada pelas seu aspecto objetivo, a relação
representações3. entre os elementos existe em
face de o resultado ter sido
causado ou não impedido pela
2 ROXIN, Claus. Culpabilidad y pre- manifestação da vontade,
vencion en derecho penal. Madrid: Insti-
tuto editorial Reus, 1981, p. 187.
3 LISZT, Franz Von. Tratado de penal, tendo em vista que só com a
derecho penal. Tradução de Luis Jimé- ideia de ato ou ação, podemos exclu-
nez de Asúa. Madrid: Editorial Reus, ir, de plano, condutas que para o
1927, tomo II, p. 285. Apesar de não direito penal não são valoradas co-
concordarmos com o conceito de mo penalmente relevantes, como o
ação causalista, é inegável o avanço caso, por exemplo, da coação física
alcançado por eles para a dogmática irresistível.
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examinado a partir da relação também no século atual, a


de causalidade. Já sob o pris- culpabilidade passou por vá-
ma subjetivo, a relação se rias modificações que acaba-
afirma quando o agente, no ram por transformá-la em um
momento da manifestação da conceito muito complexo e
vontade, previu ou poderia repleto de alternativas.
prever o resultado, ou, no Com a concepção normati-
dizer de Liszt, quando culpa- va, superando, assim, a ideia
velmente o agente causou ou original de Liszt, deixamos de
não evitou o resultado, conju- lado um conceito meramente
gando aqui os elementos dolo descritivo para termos uma
e culpa4. culpabilidade normativa que
Dessa forma, tínhamos de tem como base a reprovabili-
um lado a ilicitude que possuía dade, permitindo, dentre ou-
caracteres unicamente objeti- tros fatores, a possibilidade de
vos, sendo entendida como graduação, iniciando, de forma
um ato – no seu aspecto obje- decisiva, uma íntima relação
tivo – contrário ao direito, e a com a aplicação da pena.
culpabilidade que é criada e Nesse espeque, quando fa-
desenvolvida como detentora lamos da relação entre culpa-
apenas de elementos subjeti- bilidade e medida da pena
vos, sendo assim, uma relação temos que distinguir a culpabi-
psíquica que ligaria o autor ao lidade como elemento do cri-
fato criminoso. me da culpabilidade como
Sem sombra de dúvidas a medida da pena. Como ele-
concepção causalista e as suas mento do crime, tomando
variações foram importantes como marco o finalismo, es-
na construção dogmática da tuda-se os seus pressupostos –
teoria do delito como a que imputabilidade, potencial
temos nos dias de hoje, toda- consciência da antijuridicidade
via, ao longo do século XX e e exigibilidade de conduta
diversa – que afirmam ou não
a existência de uma ação cul-
4 LISZT, Franz Von. Tratado de pável.
derecho penal. Tradução de Luis Jimé-
nez de Asúa. Madrid: Editorial Reus, Já como medida da pena,
1927, tomo II, p. 290. entendemos a culpabilidade
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como um elemento que indica da culpabilidade e, por conse-


quais são os fatores que pos- guinte, da pena6.
suem relevância para a magni- Nessa toada, poder-se-ia
tude da pena no caso em con- questionar a necessidade de
creto. Dessa forma, aderimos um exame da culpabilidade no
ao entendimento de Juarez seu aspecto formal, que este
Cirino quando afirma que o trabalho pretende fazer. Con-
legislador pátrio, bem como a tra essa argumentação, pode-
doutrina que segue esse en- mos afirmar que a passagem
tendimento, comete uma im- da concepção psicológica para
propriedade metodológica ao um conceito normativo de
definir a culpabilidade, no culpabilidade é de primordial
momento da aplicação da pe- importância para entendermos
na, como uma simples cir- as mudanças ocorridas no
cunstância judicial5. tocante ao estudo do tema,
Então, distinguir a culpabi- especificamente como é feita a
lidade como elemento do cri- medição da pena no caso em
me da culpabilidade para a concreto, que só possível de
medida da pena não quer, de ser entendido, ao nosso sentir,
forma alguma, insinuar que se percebermos e examinar-
tais conceitos são totalmente mos as profundas modifica-
separados um do outro. Muito ções trazidas a partir de 1907.
pelo contrário. O elo que os É de se ressalvar que não
liga está no conceito material vamos nos deter em todos os
de culpabilidade, uma vez que aspectos das teorias da culpa-
esse elemento é primordial bilidade, apenas nos pontos
para própria existência do que tenham relevância para a
crime, e, em virtude da sua medida e aplicação da pena, o
possibilidade de graduação, que já restringe o objeto de
pode levar a uma diminuição estudo do presente artigo.
Igualmente, não vamos aqui
fazer um simples estudo des-
critivo dos pensamentos, a
5 SANTOS, Juarez Cirino. Direito
penal: parte geral. Curitiba: ICPC, 6 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte
2007, p. 561. general. Madrid: Civitas, 1997, p.814.
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partir de um viés evolutivo, e 2. A CONCEPÇÃO PSI-


sim, buscaremos examinar COLÓGICA DA CULPABI-
essas concepções e levá-las até LIDADE E SUA RELAÇÃO
as “últimas conseqüências”, COM A MEDIDA DA PENA
com questionamentos que
acreditamos de extrema pro- Possuir o status de científi-
eminência. co levava necessariamente, em
Por fim, é importante es- virtude dos imperativos da
clarecer, como acima explici- época, a criação de um concei-
tado, que vamos estudar a to de culpabilidade que se
culpabilidade em dois grandes diferenciasse dos demais ele-
momentos: na concepção psi- mentos do crime, notadamen-
cológica; e na concepção te, nesse caso, da antijuridici-
normativa. Sabemos que dade. O ambiente da época
grande parte da doutrina inclui influenciou uma construção da
uma terceira classificação, que teoria do delito que partia de
seria intermediária entre a uma divisão em duas partes
psicológica e a normativa, que se manifestavam separa-
quer dizer, a teoria psicológi- damente em face da percepção
co-normativa. Apesar da cor- pelos sentidos, quer dizer, a
reção deste posicionamento, parte externa e a parte inter-
vamos manter a divisão men- na7.
cionada em virtude do fio A autonomia da culpabili-
condutor da tese, já que as dade dependia da sua capaci-
mudanças significativas no dade de se manter estanque e
tocante a relação entre culpa- totalmente separado do con-
bilidade e pena são melhores ceito de ilicitude, levando, o
percebidas com a separação que não poderia ser diferente,
proposta. a uma concepção psicológica
da culpabilidade. Assim, as
exigências do ambiente positi-

7MIR PUIG, Santiago. Derecho penal:


parte general. Barcelona: TECFOTO,
1998, p. 540.
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vista da época restariam cum- Percebe-se que esse concei-


pridas. to é descritivo e uma mera
Ao discorrer sobre essa te- imputação subjetiva, o que
oria, Asúa afirma que não não permite a quantificação da
basta que o resultado possa culpabilidade e, por conse-
ser objetivamente referido ao guinte, é imprestável na medi-
ato de vontade do agente, mas da da pena privativa de liber-
é imprescindível que se encon- dade. Apesar dos adeptos da
tre uma ligação subjetiva8, concepção psicológica afirma-
quer dizer, uma relação entre rem que a medida é possível,
o fato e o seu autor. Dessa tendo em vista que as espécies
forma, o dolo e a culpa ga- de culpabilidade – o dolo e a
nham um especial relevo den- culpa – levam a uma gradação,
tro da concepção psicológica, pois o dolo é mais grave do
que são considerados como que a culpa – o que não deixa
espécies do gênero culpabili- de ser correto –, é importante
dade. salientar que dentro dessa
Liszt afirma que a culpabi- teorização, mais do que espé-
lidade é um dos caracteres do cies ou graus de culpabilidade,
crime e que é produto de um estamos tratando de distintas
longo desenvolvimento ainda culpabilidades, o que nos leva
inacabado, e o seu aperfeiço- a afirmar que não se pode
amento mede o progresso do falar de maior ou menor cul-
direito penal. Por fim, o autor pabilidade10.
chega ainda a afirmar que sem Essa crítica acaba por mos-
culpa não é possível aplicar trar à fragilidade da concepção
uma pena privativa de liberda- psicológica no tocante a me-
de9. dida da culpabilidade e, evi-
dentemente, da pena, pois
falar de graduação por dolo ou
8 ASÚA, Luis Jiménez. La ley y el culpa, dentro dessa teoria, não
delito. Caracas: Editorial Andrés quer dizer em medição da
Bello, 1945, p. 447.
9 LISZT, Franz Von. Tratado de

derecho penal. Tradução de Luis Jimé- 10 ASÚA, Luis Jiménez. Tratado de


nez de Asúa. Madrid: Editorial Reus, derecho penal. Buenos Aires: Editorial
1927, tomo II, p. 378. Losada, 1956, tomo V, p. 264.
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culpabilidade, e sim, diferentes não cumprindo qualquer fun-


culpabilidades, o que não é a ção de garantia13.
mesma coisa. Nesse espeque, a necessi-
A pergunta que fica é se dade de defesa social estava
dentro de uma mesma culpa- realmente muito presente nos
bilidade – dolosa ou culposa – doutrinadores da época, a tal
é possível a sua medição. Ci- ponto que uma culpabilidade
tando novamente Asúa, den- diferente da criada se tornaria
tro da concepção psicológica disfuncional para os objetivos
também não é possível a me- almejados. Citando novamen-
dição da culpabilidade, tendo te Liszt, esse autor afirma que
em vista que o dolo eventual, a agravação da reincidência,
por exemplo, é considerado em termos de gradação da
com um dolo, e não um dolo sanção penal, leva em conside-
menor11 12. A possibilidade de ração “... não só o fato a jul-
graduação da culpabilidade só gar, senão também a sua his-
será possível com o surgimen- tória, não só o resultado mate-
to da teoria normativa, como rial, senão também e em pri-
veremos a seguir. meiro lugar a intenção delituo-
Por outro lado, a concep- sa do agente.” 14
ção psicológica da culpabilida- Essa citação reflete bem os
de não é capaz de frear o po- objetivos da teoria psicológica,
der punitivo do Estado, muito como dissemos acima. E mui-
pelo contrário, acreditamos to mais. É perceptível, ainda
que esse conceito estava orien- que não assumida claramente,
tado para uma defesa social, a influência do pensamento do
positivismo criminológico
italiano, até porque não temos
uma culpabilidade que julgue
11 Idem, p. 177.
12 É importante salientar que com a
concepção finalista da ação ficou 13 SALAS, Jaime Couso. Fundamentos
clara a possibilidade de se graduar o del derecho penal de culpabilidad. Valen-
dolo e a culpa. Todavia, isso só foi cia: Tirant lo blanch, 2006, p. 37.
delineado a partir da ideia de um 14 LISZT, Franz Von. Tratado de

injusto pessoal, onde o desvalor da direito penal alemão. Tradução de José


ação pode e deve ser medido a partir Higino Duarte Pereira Campinas:
das espécies de dolo e culpa. Russel, 2003, p. 164
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o autor pela ação delituosa que manifestas e, também, não


cometera, e sim, uma aprecia- declaradas, que esses mesmos
ção primordialmente sobre o discursos podem trazer.
indivíduo, ou como diz Liszt, É aqui, talvez, um dos pon-
sobre a sua história. tos mais importantes e igual-
mente intrigantes do estudo da
3. A TEORIA NORMA- concepção normativa da cul-
TIVA DA CULPABILIDADE pabilidade e sua relação com a
E SUAS RELAÇÕES COM A aplicação da pena. É comum
MEDIDA DA PENA PRIVA- citar que essa teoria, diferen-
TIVA DE LIBERDADE temente da anterior que estava
voltada a uma ideia de defesa
A obra de Reinhard Frank social, é garantista, tendo em
é considerada como o marco vista o seu potencial de limitar
inicial da teoria normativa da e justificar racionalmente o
culpabilidade, e sua importân- poder de punir do Estado e
cia – especialmente no tocante por consequência da pena
a medida da pena – não pode privativa de liberdade.
ser desprezada. Todavia, no Contudo, esses mesmos
caminho traçado por Asúa, aspectos considerados como
não podemos falar em apenas garantistas – que não negamos
uma teoria normativa, porém, –, podem, porém, servir para
de várias teorizações15. Sendo fins que aumentem a violência
assim, e é imprescindível res- e a discriminação operadas
saltar, não vamos nos preocu- pelo sistema penal, ou seja, é
par especificamente com as possível que as variantes dessa
diferenças entre as diversas concepção preste um desser-
teorias normativas, mas as viço aos mesmos objetivos
suas relações no tocante a almejados, incluindo aqui po-
aplicação da pena, mostrando sicionamentos que manifesta-
o discurso oficial de cada uma mente declaram que a culpabi-
das teorizações e desvelando lidade não deve justificar o
conseqüências, apesar de não poder de punir do Estado,
mas apenas limitá-lo.
15 ASÚA, Luis Jiménez. Tratado de
derecho penal. Buenos Aires: Editorial Essa afirmação vale para a
Losada, 1956, tomo V, p. 156. variante que é comumente
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denominada culpabilidade do tiva, isto é, a obra de Reinhard


autor, que só foi possível uma Frank datada de 1907. O autor
teorização mais elaborada, começa a sua obra falando
dogmaticamente falando, e rapidamente sobre a concep-
que ainda é perceptível em ção psicológica e acaba por
várias construções atuais, a demonstrar algumas contradi-
partir da normatização da cul- ções existentes, com o objeti-
pabilidade, tendo em vista as vo de mostrar as limitações
pesadas críticas aos positivis- dessa teorização e, com isso,
tas e a sua periculosidade soci- poder desenvolver uma teoria
al, base da responsabilidade nova com uma importante
criminal dessa escola. Como mudança de foco, tendo em
vamos examinar, temos várias vista que, agora, a culpabilida-
concepções normativas da de não seria mais uma mera
culpabilidade que funcionam descrição de um fato psíquico
como equivalente funcional da – como queriam os causalistas
periculosidade, todavia isto adeptos da teoria psicológica –
não é dito as claras ou expres- , e sim, um vínculo normativo
samente afirmado, mas é desse fato psíquico.
construído sob a égide de uma Vale salientar, como faz
teorização que, em tese, deve- Brandão, que a culpabilidade
ria limitar o poder de punir do não deixa de ser “psíquica”, o
Estado. Ainda é importante que ocorre, por certo, é que a
questionar se, talvez, a con- partir de Frank esse mesmo
cepção normativa da culpabi- “fato psíquico” não vai ser
lidade não leva, em todos os mais descrito ou explicado, e
casos, a um necessário exame sim, valorado pelo sistema
da personalidade do agente jurídico16, a partir dos valores,
que comete um fato típico e e isso é fundamental para a
ilícito, desembocando, assim, nossa crítica posterior, estabe-
numa culpabilidade e num lecidos pelo próprio sistema.
direito penal do autor.
As respostas para tais ques-
tões só podem ficar mais cla- 16 BRANDÃO, Cláudio. Curso de
ras se remontarmos para a direito penal: parte geral. Rio de Janeiro:
origem da concepção norma- Forense, 2010, p. 230.
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E Frank faz isso exemplifi- as relações nas quais se encon-


cando com dois casos que trava o autor no momento do
ocorrem no cotidiano. Assim fato –, que, obviamente, não
se expressa o autor17: são abarcadas pelo dolo.
Dessa forma, a culpabilida-
Um caixeiro de um de passa a girar em torno do
comércio e um porta-
dor de valores realizam, conceito de reprovabilidade
cada um pelo seu lado, ou, melhor dizendo, um juízo
uma defraudação. Este de reprovação ao executor do
último possui uma boa fato. Para se falar de culpabili-
vida e não tem família, dade, além do elemento subje-
mais vários amores sun-
tuosos. O primeiro, por
tivo – dolo e culpa – e da im-
outro lado, vive apenas putabilidade, é necessário o
a vida, tem uma mulher juízo de reprovabilidade, que é
enferma e vários filhos feito valorando a normalidade
pequenos. Apesar de das circunstâncias concomi-
cada um deles saber que
se apropriou ilicitamen- tantes18, levando a conclusão
te de dinheiro alheio, que são essas circunstâncias
com relação ao dolo que levam a um aumento,
não existe diferença al- diminuição ou até mesmo
guma (...). exclusão da culpabilidade.
Nesse ponto surgem duas
Após citar esses dois casos,
questões interessantes: a pri-
Frank começa a desenvolver a
meira se refere ao conceito de
ideia que a categoria culpabili-
situação de normalidade; a
dade é algo muito maior do
segunda, e, talvez, a mais im-
que o dolo e a culpa, pois co-
portante, é quem define essa
mo se percebe dos exemplos
normalidade ou não. No to-
supracitados a culpabilidade
cante a primeira indagação,
do caixeiro seria menor em
Frank responde falando sobre
relação ao portador de valores,
o que é situação de anormali-
tendo em vista as circunstân-
dade, definindo-a como as
cias concomitantes – que são
circunstâncias concomitantes
17 FRANK, Reinhard. Sobre la estruc-
tura del concepto de culpabilidad. Buenos
Aires: BdeF, 2004, p. 28 18 Idem, p. 40-41.
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que para o autor significam provar o autor por algumas


um perigo19. ações realizadas sob circuns-
Em relação à segunda tâncias de certa anormalida-
questão, o autor se posiciona de20.
ao rebater possíveis objeções É perceptível que a culpa-
as ideias aqui expostas e de- bilidade passa a ter um cunho
fendidas por ele. Frank, depois ético indisfarçável, pois, mes-
de falar sobre normalidade ou mo com o advento do positi-
não das circunstâncias con- vismo, conforme afirma
21
comitantes, afirma que alguém Adeodato , não se nega uma
poderia se opor a ideia de que postura antiética do direito,
uma situação de perigo pode mas apenas, e o pensamento
levar a exclusão da reprovabi- de Frank segue esse caminho,
lidade, argumentando no sen- que o conteúdo não está fixa-
tido de que esse conceito não do por uma instância superior,
conseguiria explicar a punição por um suposto direito natural
para o excesso na legítima que serviria de critério hetero-
defesa, onde a situação de referente. É o próprio direito
excepcionalidade – ou de risco positivado que define o seu
– é evidente. próprio conteúdo ético, den-
Ao responder essa questão, tro das várias possibilidades
o autor nos dá uma contribui- existentes e igualmente possí-
ção valiosíssima, tendo em veis.
vista que ele argumenta no Falando de direito penal, a
sentido que é o legislador que culpabilidade normativa passa
determina quais são as cir- a ser o elemento de valoração
cunstâncias concomitantes e ética feito pelo julgador, que
em que grau estas devem se passa a examinar, a partir das
dar para serem consideradas escolhas feitas pelo próprio
como anormais e, portanto, sistema, se a conduta é digna
passíveis de excluir ou diminu-
ir a culpabilidade, já que a
ideia central permanece idênti- 20Idem, p. 42.
ca, a de que não se pode re-
21 ADEODATO, João Maurício.
Ética e retórica: para uma teoria da dog-
mática jurídica. São Paulo: Saraiva,
19 Idem, p. 51. 2006, p. 135.
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de ser reprovada ou não. que isso será feito no momen-


Freudenthal já afirmava que o to oportuno.
direito é o mínimo ético e que Esse olhar para a concep-
a reprovação depende desse ção normativa da culpabilida-
conceito, pois, em alguns ca- de não é novo, e Goldschmidt
sos onde não é possível a re- tenta superá-lo ao defender a
provação ética, não será ideia que essa teorização não é
igualmente possível a reprova- ética, e sim, jurídica. Fala esse
ção jurídica22. autor que a reprovabilidade
A questão aqui seria a rela- sobre a conduta é feita a partir
ção entre a culpabilidade nor- da distinção entre norma jurí-
mativa e a medida da pena, dica e norma de dever. En-
pois, ao que parece, maior será quanto a norma jurídica de-
a culpabilidade quanto mais se termina uma conduta externa
afasta a conduta – ou poderia conforme essa norma, a de
dizer a personalidade – dos dever exige que o particular se
parâmetros éticos definidos motive pelas representações
pelo direito, levando, dessa de valor jurídico, e não por
maneira, a uma pena maior. O motivos opostos, sendo a cul-
inverso também seria correto, pabilidade uma vinculação
ou seja, quanto mais próxima normativa de um fato psíqui-
é a conduta dos valores éticos co, onde os estados anímicos
estabelecidos, menor é a cul- seriam colocados dentro de
pabilidade e a pena, podendo, uma escala de valores23.
inclusive, chegar a sua exclu- Segundo Cirino24, a distin-
são. Agora, se a concepção ção operada por Goldschmidt
normativa da culpabilidade entre norma jurídica e norma
leva indelevelmente a uma de dever, possibilitou funda-
ditadura ética, não vamos por mentar a reprovação do autor
ora discutir, tendo em vista na consciência da antijuridici-

23 GOLDSCHMIDT, James. La
22 FREUDENTHAL, Berthold. Concepción Normativa de la Culpabilidad.
Culpabilidad y Reproche em Derecho Buenos Aires: BdeF, 2002, p. 91-92.
Penal. Buenos Aires: BdeF. Tradução 24 SANTOS, Juarez Cirino. A moder-

de José Luis Guzmán Dalbora. 2003, na teoria do fato punível. Lumen Juris;
p. 99. ICPC: Curitiba, 2005, p. 203.
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dade do tipo de injusto reali- Goldschmidt, traz a baila uma


zado, e, da mesma forma, ba- discussão assaz e importante,
sear a exigibilidade de motiva- que, nesse primeiro momento
ção conforme a norma de será apenas suscitada e rapi-
dever na normalidade das cir- damente discutida, já que
cunstâncias do fato. examinaremos detidamente no
Não discordamos do posi- momento oportuno. Estamos
cionamento acima aventado, aqui debatendo a(s) fun-
todavia isso não quer dizer ção(ões) do valor no discurso
que a teorização de Goldsch- da norma jurídica.
midt supera as críticas de que O termo exigibilidade, que
a culpabilidade é, no fundo, para Goldschmidt26 seria, de
um processo eticizante. Isso forma bem esquemática, a
fica claro pela análise assaz possibilidade de se comportar
oportuna de Asúa25, quando conforme a norma de dever, é
ele afirma que, segundo uma fórmula que não serve
Goldschmidt, a culpabilidade como guia de ação, apesar da
temo como conteúdo a não sua importância como uma
motivação pela representação técnica comunicativa de alto
do dever jurídico, apesar da valor, pois o termo, de forma
exigibilidade, consistindo o relativamente precisa, desvela
elemento normativo como o os comportamentos que são
juízo sobre a existência de exigidos e aqueles que não o
semelhante oposição. A análi- são. O que se está querendo
se seria feita a partir de cada aqui dizer é que se por um
caso em concreto levando em lado o conceito de exigibilida-
consideração as circunstâncias
do fato e o indivíduo com as
suas qualidades e conhecimen-
26 Vale salientar que o conceito, da
forma que foi desenvolvido por esse
to. autor, é a base para as teorias mais
Essa citação de Asúa, que modernas sobre a culpabilidade, isto
reflete o posicionamento de se pudermos falar de teorias inova-
doras, pois, sob a perspectiva aqui
estudada, como veremos, os posici-
25 ASÚA, Luis Jiménez. Tratado de onamento posteriores não se afas-
derecho penal. Buenos Aires: Editorial tam em demasia do que já estava
Losada, 1956, tomo V, p. 166. posto.
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de não é dotado de univocida- mesma forma, permite, com


de tendo em vista que ele se certa precisão, determinar
exprime por fórmula, já por quais são os comportamentos
outro lado, promove a própria que serão reputados como
comunicação, por mais para- exigíveis e inexigíveis, sem a
doxal que pareça, pois rompe necessidade de um número
com as infinitas prescrições infindáveis de normas que os
que poderiam surgir a partir comportamentos poderiam
das diferenciações operadas gerar, levando a uma disfunci-
pelos vários comportamentos onalidade para o próprio sis-
possíveis, que não podem ser tema jurídico.
satisfatoriamente regulados Isso fica claro com as de-
27
por normas . nominadas pela doutrina cau-
Essas expressões difusas, sas supralegais de inexigibili-
em virtude da sua imprecisão dade de conduta diversa, onde
e fluidez conceitual, permitem todas as hipóteses são abarca-
a harmonização de disposições das não por dispositivos le-
legais que, em tese, são con- gais, mas pela expressão gené-
trapostas, mantendo a retórica, rica. A doutrina cita – e aqui
por exemplo, da unidade e da não queremos, pelo menos
não contradição do ordena- nesse momento, entrar na
mento jurídico. discussão se existem mais ou
Falando especificamente de menos casos – como hipóte-
direito penal, a expressão exi- ses de exculpação supralegal
gibilidade – o que ocorre tam- os seguintes: fato de consciên-
bém com a expressão antijurí- cia; provocação da situação de
dico – permite conciliar, por legítima defesa, desobediência
exemplo, a coação moral irre- civil; conflito de deveres; esta-
sistível com a norma proibiti- do de necessidade exculpante;
va contida no artigo 121 do excesso na legítima defesa real
código penal brasileiro. Da ou putativa, ambos causados
por perturbação, medo ou
susto.
27 FERRAZ, Tércio Sampaio. Direito, Isso poderia levar a um
retórica e comunicação: subsídios para uma
pragmática do discurso jurídico. Saraiva: caminho que desembocasse
São Paulo, 1997, p. 108. numa argumentação no senti-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 157

do de uma “abertura sem limi- A exigibilidade não é nor-


tes” para o exame de todos os mativa, ela não encerra ne-
eventos que ocorrem na reali- nhum juízo de valor, afirma
dade, permitindo identificar Henkel, muito pelo contrário,
outros e incontáveis casos de ela é formal, genérica e não é
inexigibilidade de conduta dotada de conteúdo específi-
diversa. Não achamos, porém, co, ela não assinala o conteú-
que assim seja a operatividade do específico da decisão, mas
do sistema jurídico, o que nos resplandece e ilumina o cami-
leva a entrar na discussão das nho para tanto, a partir da sua
funções do valor dentro da real função de ponderação dos
funcionalidade do sistema, critérios valorativos, sendo,
perpassando também pelo dessa maneira, um princípio
caráter eminentemente persu- jurídico regulativo29.
asivo, e não informativo, do Para corroborar o posicio-
discurso jurídico. namento defendido, o autor se
Contudo, antes de aden- vale de vários elementos pre-
trarmos nessa discussão, é de sentes nos mais variados ra-
extrema relevância separar o mos do ordenamento jurídico.
posicionamento que passare- Para ficarmos apenas em um
mos a defender do desenvol- exemplo, podemos citar o
vido por Heinrich Henkel. O conceito de justa causa, que
autor, na sua principal obra28, Henkel vai buscar no direito
discorre sobre a exigibilidade a civil, com o propósito de
partir de um prisma novo e comprovar a tese acima refe-
diferente dos posicionamentos rida.
até então existentes, ou seja, O autor fala que a lei esta-
para ele a exigibilidade não belece nos contratos de servi-
seria um simples elemento ços, por exemplo, a revogação
normativo da culpabilidade, e extraordinária, tornando-a,
sim, um princípio que se apli- dessa maneira, autorizada,
ca a todos os ramos do direito.
29 HENKEL, Heinrich. Exigibilidad e
28 HENKEL, Heinrich. Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico
inexigibilidad como principio jurídico regulativo. Buenos Aires: BdeF, 2005,
regulativo. Buenos Aires: BdeF, 2005. p. 73.
158 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

desde que tenha “justa causa”, explicar o “fato psíquico”,


o que, apesar de ser extrema- mas valorá-lo a partir dos va-
mente genérica, é vital para a lores estabelecidos pelo pró-
própria operacionalidade do prio ordenamento jurídico.
sistema jurídico, que se esface- Propositadamente deixa-
laria caso fosse necessário – na remos de lado as discussões
verdade impossível – que a lei sobre o conceito de valor,
estabelecesse taxativamente defendemos a ideia que os
cada uma dessas possibilida- valores são formulas integra-
des. É nesse momento que doras e sintéticas para a repre-
entra o conceito de exigibili- sentação do consenso social,
dade, a partir dos parâmetros não valem por si só ou como
acima referenciados, que servi- entidades, mas é um processo
ria para dar concretude e indi- seletivo das informações em
car, caso a caso e individual- curso31.
mente considerado, a possibi- Nesse caminho podemos
lidade ou não de incidência, falar na função modificadora e
dando concretude a esses ele- justificadora dos valores, con-
mentos30. soante Tércio Sampaio Fer-
Não discordamos que o raz32. Segundo o autor, o valor
termo exigibilidade seja uma pode ser colocado como inva-
fórmula genérica – na verdade riante e, assim, utilizado como
acreditamos que isso é um critério para a seleção dos
ponto positivo e imprescindí- comportamentos, isto é, em
vel –, porém não podemos face do valor, as condutas são
aceitar o posicionamento de selecionadas. Todavia, esse
Henkel quando afirmara que processo seletivo pode ocorrer
esse elemento é neutro. de maneira inversa, no sentido
É nesse ponto que toma- que invariante não é mais o
mos caminhos opostos. De-
fendemos que a exigibilidade é 31 FERRAZ, Tércio Sampaio. Direito,
um conceito normativo e va- retórica e comunicação: subsídios para uma
lorativo, exatamente porque pragmática do discurso jurídico. Saraiva:
não se busca descrever ou São Paulo, 1997, p. 111.
32 FERRAZ, Tércio Sampaio. Função

social da dogmática jurídica. Max Limo-


30 Idem, p. 65-66. nad: São Paulo, 1998, p. 180.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 159

valor, e sim o comportamento. Se, por exemplo, um


Aqui o valor surge para justifi- guia de alpinismo deixa
de salvar a vida de um
car o comportamento, sempre grupo de dez pessoas,
que este ocorra. No primeiro que estava sob a sua
caso temos a função modifi- responsabilidade, o qual
cadora e, no segundo, a justifi- se encontrava em peri-
cadora. go atual motivado por
uma força da natureza,
Deixando de lado os moti- para salvar a vida de seu
vos pelos quais a função justi- filho, que também se
ficadora, pelo menos desde a encontra em situação
modernidade até agora, aca- de perigo, num local
bou se sobressaindo em rela- próximo ao do grupo,
não é possível falar em
ção à modificadora, apesar de estado de necessidade
nem sempre ser simples essa previsto no artigo 24 do
“perfeita” distinção, tendo em código penal brasileiro
vista o caráter persuasivo e como causa de justifi-
estratégico do discurso jurídi- cação. Com efeito, o
bem jurídico sacrificado
co, temos que quando falamos – vida de dez pessoas –
especificamente sobre a exigi- é de maior valor que o
bilidade – ou a culpabilidade bem jurídico preserva-
no seu viés normativo – per- do – vida de uma única
cebemos que a função justifi- pessoa. Todavia, no ca-
so concreto, é inexigível
cadora é amplamente utilizada, que um pai deixe o seu
deixando-se de lado a modifi- filho perecer para salvar
cadora, mesmo nos discursos as vidas de outras pes-
onde o emissor sequer atenta soas. Por isso, reconhe-
para tal distinção. ce-se aí uma causa su-
pralegal de inexigibili-
Podemos citar como o dade de outra conduta
clássico exemplo do estado de para excluir-se a culpa-
necessidade exculpante, assim bilidade do agente.
colocado33:
Percebe-se aqui que qual-
quer comportamento onde o
agente “privilegie” os filhos –
33 BRANDÃO, Cláudio. Curso de podemos incluir aqui também
direito penal: parte geral. Rio de Janeiro:
Forense, 2010, p. 259. os pais, numa situação inversa,
160 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

mas semelhante –, teremos lhantes ao narrado, sob o ar-


um valor(família) que serve gumento que não existiria um
para desculpar e justificar a dever jurídico de se comportar
exclusão da exigibilidade e, conforme as normas de dever.
conseqüentemente, do crime. Mas efetivamente isso não
Perceptível que estamos num ocorre. Os valores precisam,
discurso que toma o valor na para que o discurso dogmático
sua função justificadora, tendo seja dotado de objetividade e,
em vista que toda vez que por conseguinte, persuasivo,
aparecer um comportamento ser neutralizados, agora não de
no molde descrito – este to- forma explícita e evidente,
mado como invariante – surge porque não seria retoricamen-
um valor para justificá-lo. te atraente, mas de forma on-
Situação diversa seria se no de a mensagem pode ser en-
lugar do filho estivesse um coberta e recebida ao mesmo
sobrinho, pois, nesse caso, tempo, denominada, segundo
não apareceria um valor para Warat34, “condição retórica de
justificar a ação como digna de sentido”, que seria um conjun-
inexigibilidade. Nesta hipóte- to de regras retóricas com a
se, o “dever jurídico”, para finalidade de produzir o con-
ficarmos nas palavras de vencimento nos discursos
Goldschmidt, exigiria uma jurídicos. Nesse espeque, te-
motivação oposta a salvaguar- mos as representações ideoló-
da do ente, passando o agente gicas como um elemento ex-
a ter a sua conduta qualificada tremamente persuasivo e que
como criminosa e digna de legitimam as decisões judiciais.
reprovabilidade. Para o autor, ideologia seria
Poder-se-ia argumentar que “o conjunto mais ou menos
a função modificadora permi- coerente de crenças que o
tiria uma calibração da exigibi- grupo social invoca para justi-
lidade na questão acima susci-
tada, pois, se tomarmos o va-
lor como invariável(família), 34 WARAT, Luis Alberto. Introdução
poderíamos abarcar também geral ao direito: interpretação da lei, temas
para uma reformulação. Sergio Antonio
as condutas de tios que salvem Fabris Editor: Porto Alegre, 1994, p.
os sobrinhos em casos seme- 115.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 161

ficar seus atos e respaldar as plexidade é a condição de


suas opiniões, isto é, as cren- existência do próprio sistema
ças funcionam como motiva- jurídico como hoje pensamos,
doras ou racionalizadoras de e este busca reduzir a própria
determinados comportamen- complexidade do meio, a par-
tos sociais”35. tir de um sistema de informa-
Isso nos permite entender ções especializadas e estrutu-
a afirmação de Tércio Sam- ras que se auto-reproduzem37.
paio Ferraz, quando o autor A ideologia é uma forma ex-
fala que a ideologia atua, no tremamente importante para o
campo dogmático, como um controle de expectativas, que
elemento estabilizador das seria impossível com a abertu-
expectativas, tendo em vista ra que os inúmeros valores
que a ideologia funciona como existentes proporcionam, ten-
uma valoração sobre os valo- do em vista que eles selecio-
res, uma metacomunicação nam os problemas que serão
que limita as inúmeras possibi- vistos como problemas pelo
lidades que os valores – que próprio sistema.
são expressões abertas, refle- É claro que a ideologia
xivas e instáveis – poderiam também traz dificuldades, pois
levar36. alguns problemas não são
Vivemos numa sociedade vistos pelo sistema como tais,
cada vez mais complexa, sem o que leva, necessariamente, a
as bases de uma ética comum uma neutralização da busca
que se perdeu gradativamente. para a sua solução38. Essa so-
O consenso, dentro dos mais lução só será pensada quando,
diversos grupos sociais, é de em um dado momento histó-
difícil obtenção e o direito rico, as expectativas ideológi-
passou a ter que responder aos cas sofrem conturbações e o
anseios das mais diversas es- sistema jurídico passa a ver
tirpes. Esse aumento de com-
37 LUHMANN, Niklas. La sociedad de
la sociedad. Cidade do México: Edito-
35 Idem, p. 116. rial Herder, 2007, p. 626.
36FERRAZ, Tércio Sampaio. Função 38 FERRAZ, Tércio Sampaio. Função

social da dogmática jurídica. Max Limo- social da dogmática jurídica. Max Limo-
nad: São Paulo, 1998, p. 183. nad: São Paulo, 1998, p. 186-187.
162 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

aquela situação conflituosa Talvez, e isso já pode ser


como um problema. detectável, esse sentido ideo-
Assim, podemos afirmar lógico de família pode estar se
que a ideologia acaba por jus- modificando pela “pressão”
tificar a função modificadora social que passa o sistema
ou, até mesmo, modificar a jurídico, tendo o jurista, o
função justificadora dos valo- doutrinador e o juiz que lidar
res, fixando e organizando-os, com os “novos” problemas40,
enfim, gerando a possibilidade como o caso repetidamente
de sistematização do próprio suscitado. Assim, as condutas
discurso jurídico dogmático39. que serão consideradas com
Voltando para a seara pe- reprováveis ou não passarão
nal, percebemos o quão a ide- por mudanças, mas várias
ologia afeta a questão da valo- outras permaneceram “esque-
ração da reprovabilidade, pois, cidas”, ou melhor dizendo,
mesmo que analisemos os não serão vistas pelo sistema
valores na sua função modifi- como um problema ou infor-
cadora, voltando para o caso mação.
do tio que salva o sobrinho na Então, a afirmação ampla-
situação já suscitada, e que mente difundida, que afirma o
tomemos o valor como inva- enriquecimento da culpabili-
riável – a família – percebe- dade pela inclusão da repro-
mos que esse é ideologizado, vabilidade como elemento
pois a família é vista, ainda central, permitindo assim que
que se pesem as mudanças
propostas e já difundidas na 40 Atualmente, vários doutrinadores
doutrina jurídica sobre esse que estudam o direito de família
assunto, sob uma perspectiva mostram que este conceito vem, ao
cristã, tradicional por excelên- longo dos últimos anos, mudando.
Eles enfatizam que a família em si
cia, traduzida como marido, não está em crise, e sim, o modelo
mulher e filhos, excluindo, clássico que via no matrimônio
dessa maneira, todos os de- cristão a única possibilidade de se
mais. constituir uma família. FACHIN,
Luiz Edson. A família fora de lugar.
Disponível em
<http://www.ibdfam.org.br> aces-
39 Cf. Idem. so em 24 de janeiro de 2012.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 163

seja a análise do indivíduo vel ou não já está previamente


dentro das circunstâncias do determinado pelas próprias
fato, o fator para se afirmar a estruturas do sistema jurídico
reprovabilidade ou não, e que penal, em contraposição ao
só com a concepção normati- afirmado pela doutrina tradi-
va é possível a limitação para a cional que diz que a reprova-
imposição da pena41, deve ser bilidade depende da análise do
examinada com cautela. caso em concreto, o que per-
Não discordamos das van- mitiria uma exculpação de
tagens e superioridade da con- inúmeras e incontáveis hipóte-
cepção normativa sobre a psi- ses não previstas pelas pró-
cológica, mas a culpabilidade, prias estruturas do sistema
como desenvolvida a partir de penal. Vimos que essa afirma-
Frank, é um poderoso instru- ção, apesar de amplamente e
mento de controle de compor- exaustivamente difundida, não
tamentos socialmente diferen- condiz com a realidade, a par-
ciados, uma vez que privilegia, tir de uma diagnose do sistema
com exclusão da responsabili- penal.
dade penal ou, até mesmo, a A limitação é criada pelo
aplicação de pena mais leve, próprio sistema jurídico, que
certos padrões de comporta- define previamente, a partir
mentos sociais considerados das suas estruturas, que com-
como aceitáveis pelo próprio portamentos são dignos de
sistema jurídico penal. aplicação da pena. É claro que
Isto comporta a ideia que a somente com a concepção
limitação imposta pela culpa- normativa da culpabilidade
bilidade ao poder de punir do podemos ter essa delimitação
estado é mais ficta do que real, – o que de certa forma, rea-
tendo em vista como se confi- firma o seu caráter limitador
gura a reprovabilidade e o do poder de punir –, o que era
juízo de valor dela derivado, impossível na concepção psi-
vez que aquilo que é reprová- cológica.
Da mesma forma, como já
deixamos transparecer, a teo-
41 SALAS, Jaime Couso. Fundamentos
del derecho penal de culpabilidad. Valen- ria normativa permite a mu-
cia: Tirant lo blanch, 2006, p. 90. dança e, até mesmo, a inclusão
164 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

de novos “casos” de inexigibi- cia do sistema jurídico penal


lidade de comportamento depende de uma seletividade
diverso. Mas, e queremos en- operativa, que essas fórmulas
fatizar, essa abertura para no- difusas permitem.
vos casos de exculpação não é Pode-se dizer que a teori-
feita de forma aleatória, como zação aqui adotada, e essa
parece deixar transparecer a crítica é bastante difundida,
doutrina. Definitivamente, não legitima um sistema jurídico
é somente o caso em concreto penal que é seletivo, arbitrário
o elemento fundamental para e estigmatizante por natureza.
se afirmar a exigibilidade, ten- Acreditamos nestas caracterís-
do em vista que o sistema ticas inerentes a qualquer sis-
jurídico é valorativo por exce- tema penal, inclusive duvida-
lência, levando-o, assim, a mos, dentro do contexto soci-
fazer recortes da realidade, ou al, histórico e político atual,
seja, se aquele caso em concre- um direito penal sem esses
to – e esta é a sua importância caracteres, até mesmo porque
– está abarcado pelo recorte nos parece que existe uma
que o valora como inexigível, íntima relação entre a forma
assim será tratado. punitiva e o sistema de produ-
É uma ilusão a ideia que ção42, e, por isso, como não
defende a possibilidade de vemos até o momento o fim
casos infindáveis, a depender do capitalismo num horizonte
das peculiaridades da situação próximo, defendemos a ideia
ou de múltiplos outros fatores, de um direito penal mínimo e
pois, se assim fosse, não exis- garantista, mantendo a sua
tiria sistema jurídico penal. violência intrínseca controlada
Não pretendemos dizer por limites específicos e bem
como o direito penal, ou o delineada.
sistema jurídico em geral, de- De certa forma, a crítica
veria ser, mas como, dentro acima suscitada perde o seu
dos parâmetros de uma socie-
dade cada vez mais complexa
e com linguagens cada vez
42 Cf. KIRCHHEIMER, Otto; RU-
SCHE, Georg. Punição e estrutura
mais especializadas, é. A pró- social. Rio de Janeiro: Editora Revan,
pria funcionalidade e existên- 2004.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 165

valor quando percebemos que isto, o direito penal seletivo,


falar sobre a dogmática penal, violento, arbitrário e estigma-
sobre qualquer viés que seja, é tizante continua atuando sem
legitimar o direito penal posto. pudor. Por isso, devemos pro-
Não queremos defender ou curar trabalhar com a dogmá-
legitimar aqui qualquer teori- tica penal para diminuir ao
zação sobre o sistema penal, máximo a incidência dele.
principalmente aquelas que Sendo assim, acreditamos
podem ser classificadas como que a partir do pressuposto
expressão de um direito penal teórico adotado conseguimos
máximo, mas, apenas, mostrar perceber e evitar a chamada
que qualquer exame da dog- culpabilidade do autor, ex-
mática penal é justificar, mes- pressão de um direito penal
mo que minimamente, a sua antigarantista, que a concep-
existência. ção normativa da culpabilida-
Também não adotamos as de tal como comumente traba-
teorizações que defendem o lhada pode engendrar, até
abolicionismo do direito pe- mesmo com consequências
nal, apesar de concordarmos nefastas no tocante a aplicação
com as críticas feitas por seus da pena.
autores ao sistema penal. Esse viés antigarantista da
Acontece que, como já especi- concepção normativa da cul-
ficado, não vemos como den- pabilidade é, por vezes, citado
tro da sociedade em que vi- por alguns teóricos, que afir-
vemos a possibilidade de abo- mam que esta teoria pode
lir o sistema punitivo como levar a uma valoração que
conhecemos. encontre na personalidade o
O direito, e primordialmen- principal móvel do delito43.
te o penal, não pode prescin- Contudo, estes mesmos auto-
dir da sua aplicação prática, res defendem que é possível
pois é para ela que devem ser evitar essa análise da persona-
criadas as teorizações, e as lidade, ao afirmar que a culpa-
correntes que defendem a
extinção completa do sistema 43 SALAS, Jaime Couso. Fundamentos
punitivo atual é utópico e ina- del derecho penal de culpabilidad. Valen-
plicável na prática, e, enquanto cia: Tirant lo blanch, 2006, p. 82.
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bilidade é um juízo sobre o como a desenvolvida por


autor, mas o objeto de valora- Mezger.
ção seria o fato. Zaffaroni poderia argu-
A intenção é das melhores, mentar – como realmente o
mas, a partir de um exame faz no seu Tratado – que a
mais detido desde os primór- personalidade é um elemento
dios da concepção normativa, importante na medida da cul-
percebe-se que a análise da pabilidade, mas com papéis
personalidade sempre esteve diferentes, a depender se es-
presente, muitas vezes de uma tamos na seara de uma culpa-
forma mais explícita outras bilidade do fato ou do autor.
tentando disfarçar o indisfar- Assim continua o autor afir-
çável. mando que quando se trata de
E aqui, discordamos de Za- culpabilidade do ato a perso-
ffaroni quando ele parece nalidade é apenas um dos
concentrar principalmente as elementos que indicam o âm-
suas críticas a teoria normativa bito de autodeterminação do
a construção desenvolvida por autor, não se tratando de uma
Mezger, ao afirmar que ela reprovação sobre a personali-
funcionaria como equivalente dade, como faz a culpabilidade
funcional da periculosidade, do autor45.
tendo em vista a defesa de Para justificar o posiciona-
uma pena maior para os habi- mento defendido, o autor
tuais e reincidentes44. Defen- ilustra com um exemplo que,
demos que a teoria normativa devido a sua importância,
da culpabilidade, como desen- transcrevemos:
volvida até o presente mo-
mento, funciona, às vezes As consequências práti-
cas da ponderação da
mais outras menos, como personalidade em uma
equivalente da periculosidade. culpabilidade do ato,
Parece óbvio que, muitas ve- com relação à concep-
zes, não de forma tão explícita
45 ZAFFARONI, Eugenio Raúl.
44 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general.
Manual de derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 1988, tomo V,
Buenos Aires: Ediar, 2005, p. 662. p. 307.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 167

ção da culpabilidade do relação psíquica que estaria


autor, são fartas de di- situada fora da personalida-
ferenças, pois o ato
mais próprio da uma de47, o que denota a sua inten-
personalidade, aquele ção de incluir a personalidade
que já é um hábito e como fator, talvez o mais im-
demanda ao homem portante, a ser considerado na
certo esforço para con- culpabilidade.
seguir se omitir, será
mais reprovável – e,
Quando fala sobre o caixei-
por fim mais punível – ro de um comercio e um por-
para a culpabilidade do tador de valores que subtraem
autor, que não reprova um determinado valor, caso
o ato, e sim a persona- este já referido outrora, ele
lidade inclinada ao ato,
por outro lado será afirma que a culpabilidade do
menos culpável para segundo é maior tendo em
uma culpabilidade do vista a sua situação financeira
ato, que se reprova o estável e suas inclinações lu-
ato, que no âmbito de xuosas. O autor continua
um hábito pessoal, é
menos livre, pois requer
afirmando que se essas incli-
um maior esforço para nações se referirem a mulheres
evitá-lo46. e vinho, estas circunstâncias
incrementam a culpabilidade
Esse argumento de Zaffa- do agente48.
roni é poderoso, todavia não Acreditamos que não res-
condiz com a construção do tam dúvidas que essas inclina-
conceito normativo da culpa- ções que devem ser conside-
bilidade, inaugurado em 1907. radas são, no fundo, um exa-
Vejamos, então, tomando me sobre a personalidade do
como referencial os próprios agente, se está é reprovável ou
autores dessa concepção. não, partindo dos motivos e,
O próprio Frank, na sua sobretudo, do caráter do agen-
obra sobre o tema, afirma que
os adeptos da teoria psicológi- 47 FRANK, Reinhard. Sobre la estruc-
ca conceituam a culpabilidade tura del concepto de culpabilidad. Buenos
como essencialmente uma Aires: BdeF, 2004, p. 27.
48 FRANK, Reinhard. Sobre la estruc-

tura del concepto de culpabilidad. Buenos


46 Idem, p. 307. Aires: BdeF, 2004, p. 28.
168 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013.

te, como já afirmava Asúa49. de do julgamento imposto a


Com outras palavras, se a per- Mezger. A ideia defendida
sonalidade do agente é incli- pelo autor argentino é assaz
nada para uma vida regada a garantista, mas, além de não
mulheres e bebidas, teremos condizer com a construção
uma culpabilidade maior, o normativa da culpabilidade tal
que vai de encontro com a como vista, não teve eco, pelo
tese de Zaffaroni, pois, se menos de forma amplamente
levarmos em relevo o exemplo majoritária, nas decisões dos
citado pelo penalista argenti- nossos tribunais, que seguem a
no, essas circunstâncias deve- orientação desenvolvida a
riam levar a uma diminuição partir de Frank, e aprofundada
da culpabilidade, e não o con- por Mezger.
trário. Talvez, e de forma bastan-
Se Frank deixa a entender te perspicaz, Mezger tenha
que a reprovabilidade se dá percebido melhor do que mui-
sobre o caráter do agente, tos até onde poderia levar a
deixando o fato de lado, auto- concepção normativa da cul-
res posteriores o fazem de pabilidade, e assim o fez com
maneira ainda mais explícita e muita competência, diga-se de
direta. Freudenthal, por passagem.
exemplo, afirma que a análise Por tudo o que já foi dito,
da exigibilidade é feita de discordamos diametralmente
acordo com as características da teorização do autor, mas,
da personalidade do agente50, ao mesmo tempo, ela é impor-
nos moldes de Frank. tantíssima para percebermos
Isso justifica a crítica feita a até onde a normatização da
Zaffaroni sobre a exclusivida- culpabilidade, tal como a de-
senvolvida a partir de Frank,
49 ASÚA, Luis Jiménez. Tratado de
pode levar. Isso também não
derecho penal. Buenos Aires: Edito- quer dizer, reforçamos, que a
rial Losada, 1956, tomo V, p. 165. normatização da culpabilidade
50 FREUDENTHAL, Berthold. seria um passo para trás, ape-
Culpabilidad y Reproche em Derecho nas que do jeito que foi feita é
Penal. Buenos Aires: BdeF. Tradução
de José Luis Guzmán Dalbora. 2003, perigosa e com um viés anti-
p. 77. garantista.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 7, jan-jun. 2013. | 169

Mezger51 começa a expor a base, para ficarmos apenas


sua tese sobre a culpabilidade nesses exemplos.
afirmando que ela seria a ex- Mais surpreendente ainda
pressão desaprovada da per- é, com raras exceções52, como
sonalidade do agente, e conti- explicar que a própria doutrina
nua, afirmando que a culpabi- que defende a culpabilidade
lidade radica não na cabeça do do fato aceita e legitima o
homem que comete o fato acima referido não enxergan-
delituoso, mas na cabeça dos do qualquer problema, como
outros homens, aqueles que se harmonia existisse. Encai-
julgam. E termina dizendo que xa-se perfeitamente, tal como
este elemento é uma situação a mão e a luva, o conceito de
fática valorizada normativa- culpabilidade de Mezger –
mente. expressão da personalidade –
É notável como a nossa le- e a legitimação de uma pena
gislação e a prática dos nossos maior para os reincidentes.
tribunais acabaram por con- Fica só no discurso a ideia que
vergir com essa concepção da a culpabilidade seria um juízo
culpabilidade e sua relação de reprovação sobre o indiví-
com a medida da pena, apesar duo, mas que teria como
dos mais variados discursos objeto de valoração o fato
teóricos buscarem repudiá-lo e típico e ilícito, quando se per-
mostrar como ele não foi acei- cebe que o incremento na
to pela legislação pátria. Como culpabilidade tendo em vista,
explicar, então, a reincidência unicamente, a vida pregressa
como uma circunstância que do agente, distancia-se, a per-
agrava a pena, ou, até mesmo, der de vista, do fato concreto.
no artigo 59 do código penal
brasileiro, a valoração dos
maus antecedentes como ele-
mento na fixação da pena 52 Cf. FREITAS, Ricardo de Brito
Albuquerque. “Reincidência e re-
pressão penal”. In: FRANCO, Al-
berto Silva; NUCCI, Guilherme de
51 MEZGER, Edmund. Tratado de Souza(org.). Direito Penal: penas e
derecho penal. Madri: Revista de Dere- punibilidade. São Paulo: Editora Re-
cho Privado, 1935, tomo II, p. 2-5. vista dos Tribunais, 2010.
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Aliás, o próprio Mezger53 te quando comparado com o


defende um exame sobre o discurso teórico.
fato. Segundo o autor, dando E não é crível a afirmação
continuidade ao seu pensa- contrária, no sentido de que as
mento, a culpabilidade é um doutrinas posteriores a Mez-
juízo de referência, que de ger “consertaram” as falhas,
maneira imediata se refere ao até porque, com o advento do
injusto penal (conduta típica e finalismo, a concepção norma-
ilícita), e de forma mediata a tiva da culpabilidade, tal como
personalidade e ao caráter. O Frank, Freudenthal e
objeto do juízo é o ato, e esse Goldschmidt a desenvolve-
é a expressão da personalidade ram, fora mantida nos seus
daquele que o realiza. principais aspectos. Na verda-
Por outro lado, a exclusão de, houve inclusive um apro-
da reprovabilidade só ocorre- fundamento, pois, até antes de
ria quando as circunstâncias Welzel, tínhamos a inclusão
exteriores fossem de tal forma do dolo e da culpa nesse ele-
forte, que até mesmo um ho- mento do crime, situação que
mem de caráter firme não deixou de existir com a dou-
pudesse resistir54. trina final da ação, tendo em
Nenhum outro autor, a vista que esses elementos psi-
nosso ver, desnudou de forma cológicos foram deslocados
tão precisa os perigos que a para a tipicidade, deixando a
concepção normativa da cul- culpabilidade apenas com
pabilidade, tal como a explici- elementos normativos.
tada, traz. Defendemos, inclu- Ou mesmo com as contri-
sive, a ideia que na prática buições das doutrinas pós-
brasileira a culpabilidade se finalistas, que muito mais do
aproxima demais da concep- que criticar a teoria normativa
ção desenvolvida por Mezger, da culpabilidade, acaba por
o que se mostra desconcertan- incluir novos elementos, co-
mo, por exemplo, Roxin55, que
53 MEZGER, Edmund. Tratado de
derecho penal. Madri: Revista de Dere- 55 Cf. ROXIN, Claus. Culpabilidad y
cho Privado, 1935, tomo II, p. 20. prevencion en derecho penal. Madrid:
54 Idem, p. 53. Instituto editorial Reus, 1981.
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insere a culpabilidade num informações – os casos em


contexto mai- concreto – que definem se há
or(responsabilidade), passando ou não exigibilidade, mas elas
a ser analisada junto de ques- deixam sempre em aberto a
tões preventivas e funcionan- possibilidade de mudança, de
do apenas como limite da pe- aprendizagem, pois vivem
na, não mais como fundamen- constantemente irritando o
to. sistema, permitindo assim a
Reiteradamente defende- sua capacidade de evoluir, de
mos uma culpabilidade nor- buscar sempre um desenvol-
mativa, todavia sob um prisma vimento teórico. Mas essa
diferenciado. Procuramos possibilidade de aprendizagem
demonstrar as incongruências, acaba por estimular as pró-
falhas e, principalmente, os prias operações autopoiéticas
perigos da normatização da do sistema jurídico, pois são
culpabilidade como a temos elas, em última instância, que
até hoje. Por isso procuramos permitem ou não a aprendiza-
estudá-la sob uma ótica dife- gem e a mudança56, e não o
rente, buscando explicar a contrário.
função do valor na discussão No campo oposto, temos o
da norma jurídica, como fora discurso de Fernanda Palma.
feito. Para a autora, a funcionaliza-
ção do direito penal estabili-
4.CONCLUSÃO zaria um terreno instável por
natureza ela defende a possibi-
A guisa de uma conclusão, lidade que determinados esta-
podemos dizer que é o pró- dos subjetivos individuais le-
prio sistema jurídico, a partir vem a exculpação mesmo que
das suas próprias estruturas, não previstos pelo sistema,
que define quais as condutas pois, ainda para ela, caso se
são dignas de reprovabilidade comprovasse empiricamente a
ou não. Isso não quer dizer
que essa clausura operacional
significa proferir um total fe- 56 LUHMANN, Niklas. La sociedad de
chamento em relação ao meio. la sociedad. Cidade do México: Edito-
Definitivamente não são as rial Herder, 2007, p. 626-627.
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falta da liberdade da vontade de possibilidades, gerando,


não existiria culpabilidade57. dessa forma, expectativas
Para tanto, ela cita um ca- normativas percebidas pelo
so, dentre vários, onde as teo- observador.
rizações sobre a culpabilidade Esse conceito funcional da
normativa parecem não reper- norma, entendida aqui como
cutir no sentido da possibili- uma expectativa de conduta
dade de sua exclusão. Ela fala que se estabiliza mesmo que
sobre os casos onde o agente contra os fatos, deixa de lado
tem uma família desregrada e qualquer perquirição a respei-
vive num bairro guetizado, de- to dos motivos, e podemos
fendendo a possibilidade de incluir da personalidade ou
exclusão da culpa em casos de caráter, que levaram o agente a
comprovação empírica da falta cumprir ou não com as nor-
da liberdade da vontade58. mas, uma vez que elas não
Seguimos o caminho opos- asseguram um comportamen-
to, como ficou claro pela po- to conforme elas, mas, sem
sição da autora. O que é re- prejuízo, protege quem tem
provável não é determinado essa expectativa59. Os motivos,
pelo caráter do indivíduo e a personalidade ou o caráter
nem pelos os motivos que o não serão analisados quando
levaram a cometer aquele fato um agente comete um fato
típico e ilícito, isso é irrelevan- delituoso para se definir a
te a partir do pressuposto teó- exigibilidade, mas, apenas, se a
rico defendido. partir do recorte valorativo da
Quando se fala de juízo de realidade feito pelo próprio
valor, não o tomamos aqui sistema, aquele indivíduo, na-
sob as mais variadas perspec- quelas circunstâncias, terá ou
tivas, tendo em vista o papel não a sua conduta reputada
da ideologia que acaba neutra- como reprovável.
lizando essa gama infindável Vale salientar que o concei-
to de norma trabalhado aqui,
57 PALMA, Fernanda. O princípio da
desculpa em direito penal. Coimbra: 59 LUHMANN, Niklas. El derecho de
Edições Almedina, 2005.. la sociedad. Cidade do México: Edito-
58 Idem, 2005. rial Herder, 2006, p. 191-192.
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diferencia-se da tradição jurí- se a norma é de acordo com


dica quando afirma que ao os seus valores morais, ou
normativo se contrapõe o reputada como contrária a
fático. Aqui trabalhamos com moral61.
a ideia de que o oposto ao É possível se cumprir ou
normativo é o cognitivo, pois não a norma por infindáveis
o conceito de norma surge motivos, mas isso não impor-
com relação à distinção da tante, como visto. Podemos
possibilidade de reação frente dizer que temos aqui uma
a uma frustração de uma ex- concepção cética do conceito
pectativa. Se a reação a frus- de norma, até porque qualquer
tração é de aprendizado, com tentativa de generalização na
a sua respectiva renúncia, es- busca de se exigir comporta-
tamos ante uma expectativa mentos conforme a norma é
cognitiva; por outro lado, caso impossível em virtude das
à reação a frustração é a pró- inúmeras possibilidades que
pria manutenção da expectati- levaram os indivíduos a
va, apesar do desengano, fa- agirem. Um posicionamento
lamos em expectativa norma- cético, como o adotado, é,
tiva60. gnosiologicamente falando,
Dessa forma, o conceito de mais prudente.
norma é o resultado da opção Uma crítica muito comum
que tem um observador, que é feita a construção aqui de-
só se atualiza empiricamente, fendida, como já referenciada,
quando um terceiro distingue mas que acreditamos ser ne-
entre a expectativa normativa cessário trazer a baila nova-
e cognitiva, conforme visto. mente. Muitos autores falam
Não há a necessidade de se que tal posicionamento acaba-
perquirir os motivos pelos ria por legitimar qualquer in-
quais o agente não cumpriu a tervenção penal, por mais
norma, se ele acredita na sua violenta que possa ser. Essa
legitimidade, ou, até mesmo, afirmação não está completa-

60 LUHMANN, Niklas. El derecho de 61 Idem, p. 191.


la sociedad. Cidade do México: Edito-
rial Herder, 2006, p. 190.
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mente errada, todavia, não é FERRAZ, Tércio Sampaio.


inteiramente correta. Direito, retórica e comunicação:
Qualquer construção jurí- subsídios para uma pragmática do
dico-penal legitima mesmo discurso jurídico. Saraiva: São
que minimamente a interven- Paulo, 1997.
ção punitiva. Mas isso está __________. Função social da
longe de aceitar qualquer for- dogmática jurídica. Max Limo-
ma de incidência penal, prin- nad: São Paulo, 1998.
cipalmente quando afirmamos FRANK, Reinhard. Sobre la
e nos contrapomos ao proces- estructura del concepto de culpabili-
so de eticização operada pelo dad. Buenos Aires: BdeF,
conceito normativo de culpa- 2004.
bilidade como o conhecemos. FREITAS, Ricardo de Brito
Não conseguimos perceber Albuquerque. “Reincidência e
como seria possível, tomando repressão penal”. In: FRAN-
como parâmetro o nosso con- CO, Alberto Silva; NUCCI,
texto social, político e econô- Guilherme de Souza(org.).
mico, defender as teses aboli- Direito Penal: penas e punibilidade.
cionistas sem cair numa peri- São Paulo: Editora Revista dos
gosa quimera. Tribunais, 2010.
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