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O Jornalismo Mágico de

Gabriel García Márquez


“Lo malo es que en periodismo un solo dato falso desvirtúa
Heloiza Golbspan Herscovitz*
sin remedio a los otros datos verídicos. En la ficción, en
cambio, un solo dato real bien usado puede volver verídicas
a las criaturas más fantásticas”
(Gabriel García Márquez, 1981).

Resumo: Abstract:
Este trabalho discute a literatura e o jornalismo pro- This paper examines the literature and the journalism
duzidos por Gabriel García Márquez, e examina a cria- created by Gabriel Garcia Marquez, focusing on the
ção de um jornalismo literário latino-americano. Para concept of a Latin American literary journalism. It
isso, contrasta o livro “Crônica de uma Morte Anuncia- compares Garcia Marquez’ Chronicle of a Foretold De- 175
da”, de García Márquez, à receita de jornalismo literá- ath to Tom Wolfe’s prescription for literary journalism.
rio prescrita pelo escritor norte-americano Tom Wolfe, The analysis confirms the hypothesis that Chronicle
um dos criadores do new journalism. A análise do livro is an example of “magical journalism”. Also it discus-
confirma a hipótese de que “Crônica” é um exemplo de ses the ethical and professional implications faced by
“jornalismo mágico”. O texto discute também as im- those who cross the boundaries between reality and
plicações éticas e profissionais que enfrentam os que imagination, myth and history, journalism and litera-
trabalham na fronteira entre a realidade e a imagina- ture.
ção, o mito e a história, o jornalismo e a literatura.

Palavras Chave: Keywords


Jornalismo literário, Garcia Marquez, Tom Wolfe, jornalismo literary journalism, Garcia Marquez, Tom Wolfe, magical jour-
mágico nalism
Crônica de Uma Morte Anunciada” É difícil traçar É difícil traçar um perfil daquela geração
é apresentada aqui como um exemplar de escritores. Eles não faziam parte de uma
um perfil daquela
muito peculiar de jornalismo litérario. A escola literária específica, mas compartilha-
geração de
análise do livro confirma a hipótese de vam uma preocupação com a linguagem e a
escritores. Eles não
que “Crônica” é um exemplo de “jornalis- forma bem como uma ênfase em elementos
mo mágico”, combinação entre jornalismo
faziam parte de universais da experiência humana (McMur-
literário e literatura jornalística ao estilo uma escola literária ray, 1987, p. 9). Também compartilhavam
de Garcia Marquez. O texto discute tam- específica, mas uma visão marxista e a crença de que a li-
bém o jornalismo produzido por Gabriel compartilhavam teratura tinha uma papel social na América
Garcia Marquez quando jovem e as impli- uma preocupação Latina (Franco, 1994). Alguns deles come-
cações éticas e profissionais que vivem os çaram sua carreira profissional como jor-
com a linguagem
que trabalham na fronteira entre a reali- nalistas, entre eles Garcia Marquez, Vargas
e a forma bem
dade e a imaginação, o mito e a história, o Llosa, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Ju-
como uma ênfase
jornalismo e a literatura. lio Cortazar e José Donoso (Gonzalez, 1993).
em elementos Grande parte desse grupo tinha formação
Geração Latino-Americana universais da intelectual influênciada pela avant-garde
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Garcia Marquez pertence a uma geração experiência humana européia, a novela francesa e o modernismo
de escritores latino-americanos surgida norte-americano.
na década de 1960, junto com Mario Var-
gas Llosa, Julio Cortazar, Carlos Fuentes, Realismo Mágico
Augusto Roa Bastos, Guillermo Cabrera No entanto, estes intelectuais refinados,
Infante, Alejo Carpentier e José Donoso. que conheciam bem as tendências literárias
Estes escritores transformaram os anos estrangeiras, não abraçaram o realismo
60 na década do boom latino-americano. puro e o naturalismo produzidos no chama-
Seus trabalhos ficaram conhecidos inter- do primeiro mundo. Estes estilos aparente-
na-cionalmente e se tornaram best sellers mente não se ajustavam ao contexto literá-
na América Latina, Estados Unidos e Eu- rio latino-americano. Franco (1994) explica
ropa. O auge da explosão latino-america- que enquanto os escritores europeus defron-
na ocorreu em 1967 com a publicação de tavam-se com uma realidade “normal”, sem
“Cem Anos de Solidão”, de Garcia Mar- surpresas, os escritores latino-americanos
quez. viam-se diante de uma realidade extraordi-

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nária, singular. “A realidade é muito com- de vida latino-americano no qual coisas extra-
plexa e fantástica, a sociedade é muito ordinárias acontecem todo o dia como coronéis
dispersa para que o estilo de Balzac tenha que lutaram 34 guerras e perderam todas...Os
sucesso,” escreveu Franco (1994, p. 311). escritores latino-americanos precisam escrever
Martin (1995) sugere que a realidade lati- sobre essa realidade ao invés de buscar ex-
no-americana não se enquadra no modelo plicações racionais que não representam essa
europeu baseado no capitalismo racional, realidade. Temos que assumir essa realidade
no desenvolvimento progressivo e linear. porque ela tem algo novo para oferecer à lite-
Os escritores latino-americanos daquela ratura universal.”
geração romperam com o realismo tradi-
cional e abraçaram um mundo no qual a Marquez falava do realismo mágico, ter-
fantasia e a realidade fundiram-se para mo mais identificado com seu próprio traba-
formar uma nova esfera chamada realis- lho do que com a obra de outros escritores
mo mágico. No início dos anos 70, os es- latino-americanos. Mas o que é realismo
critores latino-americanos discutiam se mágico? De acordo com Gerald Martin (em
sua narrativa era realista ou fantástica, Fiddian, 1995), realismo mágico é uma nar-
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como expressa o seguinte diálogo entre rativa que não distingue o fantástico do
Vargas Llosa e García Márquez de 1972
Os escritores real, o mito e a história. É considerado um
(Marquez e Vargas Llosa, p. 27-29, tradu- latino-americanos estilo derivado do movimento surrealista.
ção livre): daquela geração Quem conhece a vida na América Latina
romperam com o sabe que o cotidiano surpreende mais do
V.L.: “Você se define como um escritor realista realismo tradicional que a ficção. É difícil ver borboletas amare-
ou ficcionista ou não existe tal distinção? las voando em torno de uma pessoa ou uma
e abraçaram um
G.M.: Em “Cem Anos de Solidão” eu sou um linha de sangue percorrendo o caminho
mundo no qual
escritor realista porque na América Latina da mãe da vítima, como descreveu Garcia
a fantasia e a
tudo é possível, tudo é real...Estamos cerca- Marquez. Mas a mídia registra situações
dos pelo extraordinário, por coisas fantásti-
realidade fundiram- que desafiam o bom senso. Governos auto-
cas...Temos que trabalhar a linguagem e a se para formar ritários perpetuaram a injustiça social e a
técnica literária para incorporar a realidade uma nova esfera brutalidade herdadas do colonialismo. As
fantástica latino-americana em nossos livros chamada realismo forças contraditórias de um subdesenvolvi-
e fazer com que a literatura transmita o estilo mágico. mento acelerado e uma modernização com-
pulsiva descritas por Barbero (1988) apa- Quem conhece a cana absorveu dos racionalistas ingleses o
nham os habitantes numa armadilha que América Latina pragmatismo, o individualismo e o empiri-
os leva a responder aos acontecimentos de cismo, coroando-os com a ética protestante
sabe que o realismo
maneira surpreendente. Quem conhece a (Altschull, 1990). Já a América Latina ab-
mágico não é
América Latina sabe que o realismo mági- sorveu da Espanha e de Portugal os valores
co não é mera distorção da realidade nem
mera distorção da da filosofia grega e da tradição latina que
uma simples incursão abstrata a um mun- realidade nem uma valorizam a retórica, a especulação e o co-
do irracional. Mas anda de braços dados simples incursão nhecimento abstrato (Pierce, 1979). Na se-
com a crença no sobrenatural herdada dos abstrata a um quência histórica, os latino-americanos her-
índios da região e dos escravos africanos, mundo irracional. daram do ideário francês a crença no papel
terminando por tornar-se quase uma esco- da imprensa como instrumento de reforma
lha natural dos povos latino-americanos. social, num estado forte e na vontade coleti-
va (Altschull, 1990).
Jornalismo na América Latina Outras características da sociedades la-
Merrill (1989) argumenta que o jorna- tino-americanas como o catolicismo, o pa-
lismo de um país reflete o sistema políti- triarcalismo, o corporativismo e a imobili-
178
co/econômico e o contexto cultural em que dade social contribuem para definir o tipo
opera. “O jornalismo de uma nação não de jornalismo produzido na região. Tradi-
fica atrás do desenvolvimento geral e dos cionalmente, as autoridades não prestam
valores de uma sociedade, nem excede os contas à população e a opinião pública não
limites permitidos por essa mesma socie- tem respeito pelas mesmas autoridades.
dade” (Merrill, p.108). Assim, o jornalismo Ao contrário da sociedade norte-america-
latino-americano com suas variantes em na, que salienta o papel do indivíduo e da
cada país da região seria um reflexo do liberdade individual enquanto o estado fun-
sistema político, econômico e cultural de ciona numa espécie de “piloto automático” a
cada nação. O mesmo pensamento aplica- serviço da população, as sociedades latino-
se ao jornalismo de outros países. americanas destacam a unidade familiar
Além disso, os alicerces filosóficos que e a rede de parentes e amigos nas quais o
informam a cultura e os valores de uma indivíduo se apoia para defender seus direi-
nação também inspiram o estilo de jorna- tos ante um estado ineficiente e pobre em
lismo que adotam. A cultura norte-ameri- recursos (Freire, 1963; da Matta, 1990). Na

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sociedade norte-americana, auto-suficiên- literatura. Não existia uma separação defi-
cia e autonomia são considerados valores nida entre jornalismo e literatura. A profis-
positivos, isto é, o indivíduo tem o direito são era descrita como uma arte e/ou missão
de perseguir seus sonhos e realizá-los e ((Danton Jobim, 1953; Reyes Matta, 1979).
pode alcançá-los por seu próprio esforço. Atualmente, os grandes jornais seguem
Nas sociedades latino-americanas, auto- controlados por famílias tradicionais que
suficiência e autonomia são percebidos investem também em rádio, revistas, tele-
como sinais de egoísmo e solidão; incenti- visão aberta e fechada e telefonia. Muitas
va-se a interdependência entre as pessoas dessas empresas estão se profissionalizando
e o ato de compartir. e operam com relativa independência dos
governos, mas ainda precisam dos anúncios
Conceito de Notícia de entidades públicas e em alguns países
Robert N. Pierce (1979), professor nor- sobrevivem com empréstimos do governo.
te-americano e estudioso da América La- Em vários momentos da história latino-
tina, observa que a crítica política é uma americano, entretanto, jornais enfrentaram
função quase natural do jornalismo lati- suspen-sões, fechamentos, censura e subor-
179
no-americano, particularmente nos perío- no, além de conviverem com a influência
dos que antecederam as transições demo- indireta de governos, partidos políticos e
cráticas. Na opinião de Pierce, o jornalis- grupos econômicos. Isso explica em parte o
ta latino-americano usualmente rejeita o O conceito estilo politizado e combativo de muitos jor-
rigor do método científico que o autor vê nais, especialmente nos países que enfren-
de notícia na
como pai filosófico do conceito de notícia. taram períodos mais longos de ditaduras
América Latina
Já o conceito de notícia na América Latina militares ou civis.
foi originalmente
teria como pai filosófico as retóricas e as Ao longo da história, Colômbia, Costa
argumentações Grega e Latina. entendido como
Rica e Venezuela foram os únicos países a
O conceito de notícia na América Lati- uma corrente experimentar uma vida política mais está-
na foi originalmente entendido como uma de opinião e vel. Colômbia, no entanto, viveu por quatro
corrente de opinião e o jornalista consi- o jornalista anos sob a ditadura do general Gustavo Ro-
derava-se um intérprete de eventos. Na considerava-se jas Pinilla (1053-1957), um dos períodos em
maioria dos países latino-americanos, a que Garcia Marquez atuou como jornalista.
um intérprete de
imprensa seguiu um modelo de jornalis- Na década de 1950, as sedes dos jornais li-
eventos.
mo francês, mesclando ativismo político e
berais como El Tiempo e El Espectador Isso explica em 1991). Outros acusam o escritor de fazer
foram queimadas. Apesar de ter desfruta- parte o estilo uma interpretação suspeita da realidade
do certa estabilidade política, a transição com o propósito de oferecer aos leitores uma
politizado e
colombiana para a modernidade foi uma percepção irracional da realidade (MCNER-
combativo de
das mais sangrentas no continente sul- NEY, 1989).
americano devido às guerras entre libe-
muitos jornais, Sua produção jornalística de 1947 a 1960,
rais e conservadores de 1899 a 1902 e ao especialmente reunida em cinco volumes entitulados Obra
Bogotazo, uma revolta política violenta re- nos países que Periodistica, publicados em 1982, aponta
gistrada em Abril de 1948 pelo assassina- enfrentaram na direção de McNerney. Em muitos destes
to do liberal Jorge Gaitan que se espalhou períodos mais textos jornalísticos, Garcia Marquez rejei-
pelo país causando a morte de centenas de longos de ditaduras ta a razão e descreve uma realidade quase
pessoas. Em outro episódio em 1979, a de- sobrenatural, distanciando-se dos cânones
militares ou civis.
mocracia colombiana mostrou um grande jornalísticos que estabelecem a objetivida-
poder de repressão ao decretar a prisão de de como ideal da profissão. De acordo com
centenas de artistas e intelectuais (BELL- Sims (1992), as reportagens investigativas
VILLADA, 1990). de Garcia Marquez na década de 1950 com-
180
binavam jornalismo e literatura, com um
O Jornalismo de García Márquez foco no contexto humano. Marquez apresen-
Na juventude, Garcáa Márquez traba- tava uma visão da realidade que simulta-
lhou como colunista a exemplo de outros neamente refletia os fatos e os transcendia,
escritores como Jorge Luiz Borges e Alejo explica Sims.Um exemplo desse estilo é a
Carpentier, e também como repórter in- série sobre o Chocó, a região mais isolada e
vestigativo para os jornais colombianos negligenciada da Colômbia. O Chocó está
El Universal, El Heraldo e El Especta- isolado da floresta amazônica pela cordi-
dor. Também escreveu para as revistas lheira andi-na e é o ponto mais úmido do
Momento e Venezuela Gráfica e para a planeta.
agência cubana de nóticias Prensa Latina O seguinte trecho foi retirado de dife-ren-
(GONZALEZ, em ORTEGA, 1982). Alguns tes partes da reportagem “O Chocó ignorado
críticos alegam que o jornalismo e a ficção pela Colômbia,” escrito por Garcia Marquez
de Garcia Marquez olhavam a realidade e publicado em 1954 pelo jornal El Especta-
sob o mesmo ângulo (OBERHELMAN, dor (MARQUEZ, 1985, pp. 104-108):

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que rompa o sufoco da floresta. Dezoito dias
“Ainda hoje é difícil chegar a Quibdó como atrás, o locutor profissional que lê comerciais
era há 200 anos. Encontrar Quibdó requer num microfone na cidade disse aos habitantes
tanto trabalho quanto há 200 anos. Há três de Quibdó que, ao invés da estrada que pediram
maneiras de chegar lá. Apesar do tempo, do por tanto tempo, iria acontecer exatamente o
progresso e da técnica, a maneira mais ba- oposto: o Chocó seria dividido por um caneta-
rata, viável, e segura ainda é o rio Atrato... ço...Toda a população ouviu a notícia na rua
Quibdó não tem aeroporto: a pista de pouso principal e ficou lá por treze dias cantando,
é o rio Atrato e os aviões que descem ali escutando discursos, tremulando a bandeira
parecem aqueles aviões expedicionários que colombiana...aqui as pessoas aprendem a ler
procuravam por Tarzan... Quando chove—no o código civil...Todos sabem ler e escrever e e
Chocó chove 360 dias por ano—, a água pe- explicam os problemas do Chocó sem ser per-
netra a fuselagem e voar a 800 pés de altura guntados, simplesmente pelo hábito de repeti-
faz a gente sentir-se num naufrágio...O mapa los todos os dias...” (tradução livre).
mostra uma estrada de 160 km que é pura
especulação cartográfica: Medellin-Quibdó. Em longa análise do trabalho de Garcia
Márquez 181
Viajar nesta estrada é sofrer 22 horas horas Marquez como jornalista, Sims (1992) nota
apresentava
de agonia e exaustão em carros cheos de mer- que o autor converte eventos marginais re-
cadorias e animais...Por isso viajar ao Chocó
uma visão da
gistrados em regiões geográficas remotas
tem sido uma aventura fantástica por mais realidade que
como o Chocó no foco central de uma grande
de um século. E ainda é uma aventura a ser simul-taneamente reportagem. Na série sobre o Chocó, o escri-
descoberta...Quibdó é um vilarejo de gente refletia os fatos tor mostrou o descaso e o abandono vivido
civilizada...mas parece um acampamento no e os transcendia, pela população. Produziu uma história de
coração da floresta. Tem casas empoeiradas, explica Sims. Um interesse humano enfocando a tragédia do
feitas de compensado e teto de zinco, ruas Chocó.
exemplo desse
tortas e pessoas que se vestem de branco e Mais do que isso, Garcia Marquez recriou
estilo é a série
carregam guarda-chuvas sob os braços. No o evento inteiro. Ao receber um telegrama
horário de trabalho, os habitantes cozinham
sobre o Chocó, a
do correspondente em Quibdó, capital do
a uma temperatura de 40 graus à sombra... região mais isolada
Chocó, descrevendo a mobilização popular
Há muitos anos, os chocoenses pedem uma e negligenciada da contra a proposta do governo de dividir a
estrada. Não interessa em que direção desde Colômbia. área, El Espectador mandou Garcia Mar-
quez à região para fazer uma reporta- “Tive de explicar posta de divisão do Chocó foi utilizado pelo
gem sobre a mobilização popular. Depois jornal marcando uma nova etapa em seu
a eles que nesta
de viajar por dois dias, o escritor chegou confronto com o governo,” explicou Jacques
cidade miserável
a uma cidade deserta onde nada estava Gilard, segundo quem Garcia Marquez não
acontecendo. Garcia Marquez conta:
todo mundo dormia, precisou inventar nada para descobrir o re-
mas que tínhamos alismo mágico do Chocó (SIMS, 1992).
“Como levei dois dias para chegar até lá e organizado um Uma cidade isolada, sem estradas, ofere-
o fotógrafo se recusava a voltar sem fotos, protesto popular ceu ao escritor as contradições e os elemen-
decidimos de mútuo acordo com Primo Guer- enorme, e foi assim tos surpreendentes que o autor utilizaria
rero (o correspondente local) organizar uma que o Chocó se mais tarde na ficção. O Chocó é “um para-
demonstração popular que foi anunciada doxo administrativo”, escreveu Garcia Mar-
salvou”
com tambores. No segundo dia, espalhamos quez. Quibdó se parece a Macondo, princi-
a informação e no quarto dia chegou um palmente quando Garcia Marquez descre-
exército de repórteres e fotógrafos em busca ve seu passado glorioso e sua “economia
da multidão. Tive de explicar a eles que nostálgica que aprisionou gerações.” (Sims,
neste cidade miserável todo mundo dormia, 1992, p. 143).
182
mas que tínhamos organizado um protesto Depois da série sobre o Chocó, e com o
popular enorme, e foi assim que o Chocó se aval de El Espectador, que apoiava o estilo
salvou” (SIMS, 1992, p. 133). jornalístico de Garcia Marquez, o escritor
seguiu subvertendo normas jornalísticas

Ao fabricar a demonstração popular no e confrontando versões oficiais do governo

Chocó, Garcia Marquez violou várias nor- colombiano como no caso dos soldados co-

mas jornalísticas. Sims explica: “O jorna- lombianos que retornaram da Guerra da

lismo de Marquez não contém dados ofi- Coréia. Na reportagem “Da Coréia à Rea-

ciais dos eventos. É uma crônica humana lidade”, publicada em dezembro de 1954,

da história oficial” (p.147). Garcia Marquez contestou a versão patrió-

El Espectador endorsou a fabricação de tica do governo ao revelar o status de pária

Garcia Marquez sobre o Chocó. Em vários de muitos veteranos e sua inabilidade de se

editoriais e colunas, o jornal denunciou reintegrarem à sociedade colombiana.

periodicamente a situação política da re- Escreveu também “Relato de um Náufra-

gião. “O escândalo provocado pela pro- go”, uma reportagem em série considerada

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uma peça clássica de seu trabalho como trevista.
jornalista, que apareceu pela primeira
vez em 1955 nas páginas de El Especta- “Ele me contava a história e eu o escutava
dor. Publicada em livro em 1970, o relato como um psicanalista. Sabia que havia furos
conta o drama de um marinheiro que so- na história do ponto de vista literário. Base-
breviveu a um acidente com um destróier ando-me em minhas anotações, reconstruí a
colombiano por excesso de peso. As pri- aventura. Nenhuma única frase de “Relato de
meiras notícias davam conta de um aci- Um Náufrago” pertence ao marinheiro Velasco,
dente com o destróier Arc Caldas devido a mas toda a informação veio dele. Minha tarefa
uma tormenta que causou a morte de oito foi conferir um enquadramento literário à his-
marinheiros. Luiz Alejandro Velasco, o Ninguém na tória, dando-lhe estrutura, estilo e a atmosfera
único sobrevivente, passou dez dias a de- redação estava necessária para interessar ao leitor” (SIMS,
riva numa balsa salva-vidas até alcançar interessado em 1992, p.163).
a costa colombiana. ouvi-lo, porque
O governo do ditador Rojas Pinilla apre- Segundo Garcia Marquez, ele e o mari-
o marinheiro
sentou o marinheiro como herói e escon- nheiro concordaram que a história seria
aproveitara a 183
deu as causas do acidente: excesso de peso narrada na primeira pessoa e assinada pelo
oportunidade
por contrabando. A Marinha colombiana escritor. O uso da primeira pessoa serviu à
proibiu o marinheiro de falar à imprensa,
para ganhar uns estratégia da narrativa e elucidou a visão
mas mais tarde Velasco foi à redação de trocados fazendo do escritor sobre a entrevista enquanto gê-
El Espectador contar sua versão do nau- comerciais de nero literário. Disse Garcia Marquez:
frágio. Ninguém na redação estava inte- relógios e sapatos
ressado em ouvi-lo, porque o marinheiro (MCNERNEY, 1989). “A maioria dos jornalistas deixa o gravador
aproveitara a oportunidade para ganhar fazer o trabalho e pensa que está respeitando
Garcia Marquez
uns trocados fazendo comerciais de reló- o desejo do entrevistado ao transcrever palavra
decidiu entrevistá-
gios e sapatos (MCNERNEY, 1989). Gar- por palavra do que ele diz. Não se dão conta
lo em 20 sessões,
cia Marquez decidiu entrevistá-lo em 20 de que seu método de trabalho é desrespeitoso:
sessões, cada uma com seis horas de dura-
cada uma com seis quando alguém fala, hesita, sai pela tangente,
ção, como explica em seu livro. Em 1979, horas de duração, não termina a frase e faz comentários tolos.
o escritor contou como montou a história como explica em Para mim, o gravador deve ser usado apenas
e esclareceu sua visão do processo de en- seu livro. para gravar o que jornalista poderá utilizar
mais tarde, material que ele interpretá e es- “A maioria dos como a tecnologia ou a crise econômica na
colherá para apresentar ao seu modo. Nesse jornalistas deixa vida das pessoas. Estes elementos, na opi-
sentido, é possível entrevistar alguém da ma- nião de Carey (1969), são os que realmente
o gravador fazer
neira como se escreve uma novela ou poema” dão forma aos eventos. Essa é uma tradição
o trabalho e
(SIMS, 1992, p. 163, tradução livre). do jornalismo latino-americano, que con-
pensa que está
Críticos alegam que o jornalismo de trasta com o jornalismo norte-americano,
Garcia Marquez de 1948 a 1955 não ape- respeitando mais interessado em encontrar explicações
nas estabeleceu as bases de seu trabalho o desejo do lógicas e racionais para desvendar o caos, a
literário, como também definiu seu esti- entrevistado ao realidade múltipla e fragmentada.
lo singular de reportagem. Como muitos transcrever palavra Apesar de independente e crítico, o jorna-
outros jornalistas latino-americanos que por palavra do que lismo de Garcia Marquez em seus primór-
entraram para a profissão entre 1940 e dios falha ao não alinhar-se aos princípios
ele diz.”
1970, Garcia Marquez adotava o concei- de veracidade e exatidão. O escritor optou
to de intérprete dos eventos e defensor por organizar ele mesmo a demonstração de
de causas sociais. Essa visão, herdada Quibdó, no Chocó, transformando-a em um
em parte do jornalismo europeu, opõe-se evento com repercussão nacional. Também
184
à noção de objetividade do modelo norte- violou os princípios de veracidade e exati-
americano, inicialmente adotada como es- dão em “Crônica de uma Morte Anunciada”,
tratégia comercial e, mais tarde, incorpo- publicada em 1981, um antes antes de rece-
rada às normas profissionais e a ideologia ber o prêmio Nobel de Literatura. Este livro
de responsabilidade profissional (CAREY, é o mais controvertido da carreira de Garcia
1969). Marquez. É também considerado um traba-
O jornalismo de Garcia Marquez alia- lho menor se comparado a “Cem Anos de
se a uma visão independente e crítica do Solidão”. “Crônica de Uma Morte Anuncia-
repórter, assumindo um papel ativo no da”, analisada neste trabalho, está a meio
processo de comunicar uma cena ou even- caminho entre o jornalismo e a literatura.
to ao público. O escritor distancia-se da Críticos de jornalismo literário alegam que
idéia de objetividade porque não está inte- o livro de Garcia Marquez não se enquadra
ressado na sequência lógica da realidade. na categoria de reportagem literária como
Sente-se livre para contar as emoções hu- o trabalho de um Truman Capote em “A
manas e o impacto de forças impessoais Sangue Frio”, que reconstrói um crime em

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detalhes depois de um exaustivo processo malas as duas mil cartas de amor que nun-
de pesquisa. Garcia Marquez modificou os ca foram abertas, amarradas em pacotes
fatos que ocorreram 30 anos antes com o com fitas coloridas e diz: “Bem, aqui estou.”
intuito de recriar um crime com carac- O enredo é baseado num fato real ocorri-
terísticas de uma tragédia grega (Rabell, do em Janeiro de 1951 na cidade colombia-
1985). na de Sucre, onde a família de Garcia Mar-
quez viveu por dez anos. O escritor estava
Crônica de uma Morte Anunciada
em Cartagena na época do crime, estudan-
“Crônica” narra os eventos que levaram
do direito e ensinando espanhol. Conhecia
ao assassinato de Santiago Nasar, acusa-
todas as partes envolvidas no crime. Era
do de seduzir Angela Vicario que, em sua
amigo do verdadeiro Santiago Nasar desde
noite de núpcias, é devolvida aos pais pelo
a infância. Pensou em escrever um artigo
marido, Bayardo San Román, depois de
ou uma novela sobre o assunto no seu ter-
descobrir que a esposa não era virgem.
ceiro ano de experiência como jornalista,
Interrogada pela mãe, Angela identifica
mas um amigo e editor de jornal sugeriu
Santiago Nasar como o homem que a des-
que esperasse o incidente amadurecer em
virginou. Na manhã seguinte, en-quan- 185
sua mente.
to os moradores descansam de uma festa
Além disso, a mãe de Garcia Marquez te-
monumental que envolveu toda a cidade,
ria pedido ao filho que não escrevesse sobre
os irmãos gêmeos de Angela, Pedro e Pau-
o crime porque não queria ver parentes e
lo, matam Santiago Nasar na porta de sua
memórias pessoais publicadas em um livro.
casa.
O escritor optou A mãe de Santiago Nasar era madrinha de
Embora não se saiba se Nasar realmen-
por organizar uma irmã de Garcia Marquez (DIAZ-MI-
te desvirginou Angela, ele não escapa de
GOYO, 1988; MCNERNEY, 1989; BELL-
seu destino e é sacrificado pelo código de
ele mesmo a
VILLADA, 1990).
honra dos habitantes da cidade. Depois de demonstração de
O incidente verdadeiro foi resumido por
passar três anos na prisão, os dois irmãos Quibdó, no Chocó,
Bell-Villada em 1990 da seguinte forma:
são libertados. Bayardo desaparece e por transformando-
17 anos Angela escreve cartas de amor ao a em um evento “Depois de um ano de romance, Miguel Reyes
marido. Um dia, Bayardo aparece à porta com repercussão Palencia, 29, descendente de uma família
da casa de Angela carregando numa das
nacional. de proprietários de terras, casou-se com a
professora Margarita Chica Salas, 22, Pensou em escrever na, e encontrou-se com os irmãos do escri-
num sábado...Ela a amava, mas também tor, Luis e Margot, que o convidaram para
um artigo ou uma
fora pressionado a casar-se pelos irmãos tomar café. Depois disso visitou sua namo-
novela sobre o
de Margarita (que não eram gêmeos), José rada Nydia Naser, sem sa-ber que José e
assunto no seu
Joaquin e Victor Manuel, pescadores que Victor, irmãos de Margarita, estavam num
ouviram boatos difamando a irmã. Na noite
terceiro ano de armazém em frente à sua casa esperando-o
do casamento, Miguel Palencia ficou bêbado, experiência como para matá-lo.
dormiu o dia inteiro e a noite seguinte. No jornalista, mas Ainda segundo Bell-Villada (1990, pp.
domingo bem cedo acordou no quarto da casa um amigo e editor 189-190), uma multidão estava em frente
de Margarita,viu-a despida ao seu lado e de jornal sugeriu à casa de Cayetano. Sua mãe, Julieta, fora
descobriu que não era virgem. Espancou-a avisada da ameaça de morte contra o filho.
que esperasse
exigindo que confessasse o nome do homem Vendo um dos irmãos de Margarita cami-
o incidente
que a deflorara, mas Margarita recusou-se a nhando em direção à casa, trancou as por-
amadurecer em sua
falar. Miguel devolveu-a à família, apesar dos tas. Quando Cayetano chegou, bateu com
pedidos de que esperasse algumas semanas
mente. força na porta e gritou. Tentou correr mas
para evitar um escândalo. Victor, irmão de foi alcançado por Victor, que o esfaqueou 14
186
Margarita, perguntou à irmã quem a deflo- vezes. Cayetano disse que era inocente an-
rara; ela deu o nome de Cayetano Gentile e tes de morrer. Os irmãos de Margarita se
caiu no choro.” entregaram à polícia, passaram um ano na
cadeia e foram libertados. A família de Mar-

De acordo com Bell-Villada, Cayetano, garita deixou a cidade e a jovem não saiu de

24 anos, era alto, elegante e bonito, filho casa por dois anos. Miguel Palencia casou-

de um bem-sucedido casal de imigrantes se com outra moça e tornou-se um agente

italianos. Fora noivo de Margarita no pas- de seguros; teve 12 filhos e não se arrepen-

sado e amigo pessoal e parceiro de bebe- deu de deixar a primeira mulher. Os habi-

deiras de Miguel Palencia. Na manhã em tantes da cidade acreditaram que Cayeta-

que morreu, Cayetano foi ao porto ver o no desvirginara Margarita.

casal partir em sua lua de mel, mas Mar- Garcia Marquez esperou trinta anos para

garita e Miguel não apareceram. Ali mes- retornar à cena do crime e recolher depoi-

mo no porto, Cayetano enviou uma carta mentos de testemunhas e dos principais

ao pai de Garcia Marquez, em Cartage- envolvidos que sobreviveram à trama. Exa-


minou também o modesto boletim do crime,
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incluindo o comentário do juiz que presi- tes pontos de vista e a cada capítulo intro-
diu o caso e as sete páginas preparadas duz novos elementos. Faz disso um ritual
pela defesa. Por fim, conversou com o ad- de sucessivas repetições criando uma estru-
vogado dos imãos de Margarita, mas ele tura narrativa que prende o leitor: mesmo
já não lembrava quase nada do julgamen- já sabendo do crime, a curiosidade leva-o a
to (MCNERNEY, 1989, BELL-VILLADA, conhecer todos os eventos que precederam
1990). e sucederam o assassinato. A população da
De posse das informações, o escritor cidade sabe que o crime vai acontecer e sua
trocou um sem número de detalhes. San- culpa é o tema principal dessa trágica his-
tiago Nasar ganhou um sobrenome árabe tória. Segundo Bloom (1989), Garcia Mar-
ao invés de italiano, o que o tornou mais quez duvidava da culpa de Cayetano Genti-
exótico e remoto, na opinião de Bell-Villa- le/Santiago Nasar e do desejo dos irmãos de
da. A mãe do escritor tornou-se madrinha Margarita de matar o amigo.
da vítima. Quase todos os personagens Desde o primeiro parágrafo sabe-se que
ganharam novos nomes: Miguel tornou-se Santiago Nasar será assassinado, mas é
Bayardo, os irmãos José Joaquin e Victor preciso ler o livro para saber como e quan-
187
Manuel se transforma-ram nos gêmeos do. O fato de os capítulos não serem nume-
Pedro e Pablo, Margarita tornou-se Ange- rados permitem uma leitura alter-nada. Ao
la e Cayetano, Santiago. mesmo tempo, as informações são ofereci-
A cena do crime mudou de Sucre, cida- Garcia Marquez das de forma lenta e incon-sistente já que
de do interior, para uma cidadezinha sem esperou trinta anos as testemunhas discor-dam de detalhes
nome no mar do Caribe. Garcia Marquez para retornar à cena simples como, por exem-plo, se chovia ou
aumentou o número de documentos que do crime e recolher não no dia da morte de Santiago Nasar.
realmente examinou: 322 de um total de depoimentos de Santiago aparece como alguém que não
500 páginas. Também alterou o final da podia evitar seu destino, um homem marca-
testemunhas e
história reunindo o casal e apresentou-se do, quase um fantasma que mor-rerá para
dos principais
como uma das testemunhas do caso, em- salvar a honra da cidade. Diz o primeiro
bora estivesse longe do lugar no dia do
envolvidos que
parágrafo do livro:
crime (DIAZ-MIGOYA, 1988). sobreviveram à
Nos cinco capítulos não-numerados, o trama. “No dia em que o matariam, Santiago Nasar
autor conta e reconta a história de diferen- levantou-se às 5h30m da manhã para esperar
o navio em que chegava o bispo. Tinha sonha- drama contado a eles por testemunhas seja
Faz disso um ritual
do que atravessava um bosque de grandes completamente diferente da novela...O ponto
de sucessivas
figueiras onde caía uma chuva branda, e de partida é o mesmo, mas sua evolução é dis-
repetições criando
por um instante foi feliz no sonho, mas ao tinta. Me envaidece que o drama de meu livro
acordar sentiu-se completamente salpicado
uma estrutura seja melhor, mais controlado, mais estrutura-

de cagada de pássaros. ‘Sempre sonhava com narrativa que do” (DIAZ-MIGOYO, 1988, p.75).

árvores’, disse-me sua mãe 27 anos depois, prende o leitor:


evocando os pormenores daquela segunda- mesmo já sabendo Em geral, os críticos latino-americanos
feira ingrata”. do crime, a prestam pouco atenção ao fato de que o es-
curiosidade leva- critor modificou o incidente real para adap-
Em Abril de 1981, “Crônica de Uma tá-lo ao seu estilo literário. Diaz-Migoyo
o a conhecer
Morte Anunciada” foi lançado simul-tane- (1988) alega que “Crônica” não tem menos
todos os eventos
amente na Colômbia, México, Argen-tina valor por ser um relato pouco fiel aos fatos
que precederam
e Espanha. No mesmo mês, a revista co- nem menos histórico por seu imaginário
lombiana El Dia publicou uma repor-ta-
e sucederam o
(p.75). Gonzalez (1993) disse que a novela é
gem intitulada “Garcia Marquez o Viu assassinato. “menos uma paródia de retórica jornalísti-
188
Morrer”, escrita pelos jornalistas Julio ca do que um modelo de processo de inves-
Roca e Camilo Calderon. O texto concluía tigação jornalística. Através desse processo,
que Garcia Marquez enriquecera e dra- Garcia Marquez desvenda o papel jogado
ma-tizara os fatos. “Esperamos que esta pela causalidade, pelo destino e a manipu-
repor-tagem permita que os leitores des- lação no jornalismo e na ficção” (p.14).
cubram por si mesmos as diferenças e os Na opinião de Gonzalez, Garcia Marquez,
novos elementos que o autor adicionou”, Vargas Llosa e a escritora mexicana Elena
expli-caram (DIAZ-MIGOYO, 1988, p.75). Poniatowska (também jornalista) empre-
Dias depois, Garcia Marquez fez o seguin- gam o discurso jorna-lístico de duas ma-
te co-mentário sobre a reportagem de El neiras aparentemente opostas. “Uma como
Dia: instrumento de indagação antropológica
“Estou interessado...na comparação entre sobre as raízes culturais, e outra como um
fatos e literatura. O trabalho deles (os retorno às origens da narrativa hispana “
jornalistas) é excelente do ponto de vista (p.125). Nesse sentido, o recurso jornalístico
jornalístico; mas é surpreendente que o utilizado pelas narrativa hispana tem pou-

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ca coisa em comum com o jornalismo lite- gar por que Angela Vicario acusou Santiago
rário norte-americano. Ao contrário, o que Nasar de tê-la deflorado, ou por que Santia-
se poderia chamar de jornalismo literário go não levou em conta os avisos sobre seu
latino-americano exemplificado aqui pelo destino, ou, ainda, por que os irmãos acre-
trabalho de Garcia Marquez, está mais ditaram em Angela apesar das dúvidas que
próximo da tradição que mescla jornalis- existiam sobre sua versão.
mo e literatura como instrumento de crí- Segundo Alonso (1989), “o narrador não
tica social, indagação ética e especulação produz nenhum fato concreto novo que ex-
filosófica sobre a natureza humana. plique a morte de Santiago Nasar. Na ver-
Esse é o caso de “Crônica”, com seu re- dade, se considerado à luz da investigação
lato muito especial de um incidente real. oficial, não há justificativa para recontar a
O escritor colombiano confiou mais em história já que repete as falhas da primei-
sua própria imaginação, em sua intuição ra versão” (p. 258). Mas se Garcia Marquez
e sensibilidade para destacar suas preocu- não se atém aos fatos reais nem encontra
pações éticas e sociais como a respon-sa- O que se explicações para o evento através de sua re-
bilidade coletiva dos habitantes da cidade construção, sua narrativa reproduz a visão
poderia chamar 189
pela morte de Santiago Nasar, combinan- fatalística dos habitantes da cidade em re-
de jornalismo
do-as com a vertente mágica sempre pre- lação ao crime. Santiago Nasar será morto
literário latino-
sente no seu trabalho. É pos-sível que um não importando se é culpado ou inocente,
maior rigor na apuração dos acontecimen- americano (...) porque o destino transcende a culpa, explica
tos ou um pouco mais de objetividade im- está mais próximo Diaz-Migoyo (1982). O escritor queria, aci-
pedissem o escritor de cap-tar as nuances da tradição que ma de tudo, mostrar o aspecto fatalístico da
da dimensão humana. mescla jornalismo tragédia humana. Talvez fosse impossível
Para Diaz-Migoyo (1988), o objetivo de e literatura como recriar a história real do caso trinta anos
Marquez não foi o de prender-se à verdade depois. Garcia Marquez preferiu criar uma
instrumento de
dos acontecimentos, mas sim o de garantir espécie de memória coletiva para contar a
crítica social,
a natureza simuladora de seu relato con- tragédia eximindo-se assim de responder a
indagação ética
siderando como irrelevante a confrontação questões cruciais sobre o crime.
de provas judiciais do fato (p. 76). Garcia e especulação
Marquez não se preocupou em resolver filosófica sobre a Jornalismo literário ou ficção?
as inconsistências do caso, como investi- natureza humana. Jornalismo literário ou romance-reporta-
gem, mais conhecido na década de 1960 Mas se Garcia portanto, criando “um estilo híbrido que al-
como “novo jornalismo”, quando tornou- Marquez não se terna jornalismo literário e literatura jor-
se um gênero popular, é mais identifica- nalística” (p. 120). “Crônica de Uma Morte
atém aos fatos
do com o trabalho de alguns jornalistas Anunciada” explora os significados de um
reais nem encontra
norte-americanos, particular-mente com evento factual e ao mesmo tempo transcen-
Tom Wolfe. Vários escritores produziram
explicações para o de o factual à medida em que o escritor mo-
uma variedade de estilos de jornalismo li- evento através de difica um incidente real. Garcia Marquez
terário. Portanto, não existe uma receita sua reconstrução, não confina a narrativa a uma mera trans-
exata de como fazê-lo nem uma definição sua narrativa crição de fatos; ele adiciona interpretação e
clara do que realmente é. reproduz a visão imaginação à trama.
Weber (1980) explicou o jornalismo lite- fatalística dos Pode-se argumentar também que o escri-
rário como sendo um contraponto comple- tor colombiano emprega os quatro meca-
habitantes da
xo entre história e literatura. Nas décadas nismos prescritos pelo escritor norte-ame-
cidade em relação
de 1960 e 1970 tal combinação resultou ricano Tom Wolfe para se fazer jornalismo
na produção de longas reportagens que
ao crime. literário: a construção de cena por cena, a
utilizavam elementos de ficção formando reprodução de diálogos, o ponto de vista de
190
um gênero híbrido conhecido então como terceira pessoa e o relato dos hábitos, cos-
new journalism. Weber observou também tumes e compor-tamento dos pessoas (RA-
que o jornalismo literário tinha duas ver- BELL, 1985). Estas técnicas empregadas
tentes de narrativa documentada. Em para recons-tituir acontecimentos e o coti-
uma vertente, o escritor tratava o evento diano real das pessoas é, em parte, inspi-
factual simplesmente como evento e não rada nos roman-cistas do realismo social
tirava conclusões sobre a grande quanti- como Balzac, Dickens e Gogol (BIANCHIN,
dade de informação acumulada; em outra 1997).
vertente, o escritor explorava os significa- No primeiro capítulo, Garcia Marquez re-
dos do evento factual através da seleção, cria os eventos que antecedem a morte de
ordenação e interpretação, utilizando téc- Santiago Nasar. Os capítulos seguintes re-
nicas literá-rias. constroem cena por cena do que se passou
Sims (1992) acredita que Garcia Mar- envolvendo os principais perso-nagens e
quez combina a reportagem factual e a culminando com aquele que escreve a au-
técnica literária em seu trabalho. Estaria, tópsia. O escritor utiliza diálogos e o ponto

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de vista da terceira pessoa que, frequen- o realismo mágico tão caro ao autor, des-
temente, é o do próprio autor que aparece tacando os aspectos extraordinários de um
como personagem da novela. Além disso, crime ordinário. O escritor elimina as dis-
“Crônica” relata os hábitos, costumes e tinções entre o fantástico e o real, entre
comportamentos dos habitantes da peque- mito e história. E por isso também modifica
na cidade onde ocorre a trama, com suas personagens e eventos. Mas essa interpre-
divisões sociais e hierárquicas, a domina- tação do livro apresentada aqui não é com-
ção masculina, a submissão feminina, etc. partilhada pelo escritor. Em entrevista à
revista latino-americana Chasqui em 1981,
Conclusão Garcia Marquez disse o seguinte:
Garcia Marquez faz uma fusão mui-
to peculiar entre jornalismo e literatura, “Pela primeira vez consegui um equilíbrio
sendo a última o elemento predominante. perfeito entre jornalismo e literatura e é por
Esta fusão resulta numa narrativa docu- isso que o livro chama-se ‘Crônica de Uma
mentada colorida pela imaginação e a in- Morte Anunciada’....O jornalismo ajuda você
terpretação do autor. A parte jornalística a se manter em contato com a realidade, o que
Garcia Marquez 191
de “Crônica” aborda os eventos como pro- é essencial para o trabalho literário. E vice-
dutos de uma realidade fragmentada que
faz uma fusão
versa, porque a literatura ensina-o a escrever,
desafia a lógica e a ordem. Mas Garcia muito peculiar o que é essencial ao jornalismo.”
Marquez não olha essa mesma realidade entre jornalismo e
com a suposta objetividade e o distancia- literatura, sendo a Em 1981, mesmo ano de publicação de
mento de um jornalista que reconstrói os última o elemento “Crônica”, Garcia Marquez escreveu um
eventos para cumprir seu compromisso predominante. artigo intitulado “Quem Acredita em Janet
com a verdade. Ele prefere vê-la com o Cooke?” sobre a repórter do jornal Washing-
Esta fusão resulta
olhar subjetivo de um escritor que pene- ton Post que devolveu o prêmio Pulizter ho-
numa narrativa
tra a realidade e retira dela a essência ras depois de confessar que sua reportagem
humana, tomando a liberdade de modifi-
documentada
“O Mundo de Jimmy” era inventada.
car personagens e eventos em sua busca colorida pela “...mais além da ética e da política, a audácia
tenaz pela natureza transcendental do imaginação e a de Janet Cooke, mais uma vez, coloca as per-
mero evento. interpretação do guntas de sempre sobre as diferenças entre
A parte literária de “Crônica” enfatiza autor. jornalismo e literatura, que tanto jornalistas
como escritores levamos adormecidas, mas Ele prefere vê- Na época, impressionado com a crise de
sempre a ponto de despertar o coração. De-
la com o olhar consciência da imprensa dos Estados Uni-
vemos começar por perguntar-nos qual é a dos, Garcia Marquez alegava que o rigor
subjetivo de um
verdade essencial em seu relato (o de Janet). puritano dos norte-americanos tinha pro-
escritor que penetra
Para um novelista o mais importante não é duzido o melhor jornalismo do mundo e, ao
saber se o pequeno Jimmy existe ou não, mas
a realidade e retira mesmo tempo, o mais perigoso. Queixou-se
estabelecer se sua natureza de fábula cor- dela a essência do interrogatório a que foi submetido por
responde a uma realidade humana e social humana, tomando um editor da revista Harper’s para checar
dentro da qual podia ter existido....Antes que a liberdade os dados e fontes de um artigo que o escri-
se descobrira a farsa de Janet Cooke, vários de modificar tor produzira sobre o assassinato de Salva-
leitores escreveram ao jornal dizendo que
personagens dor Allende.
conheciam o pequeno Jimmy e muitos conhe- Ainda no artigo sobre Janet Cooke, o es-
e eventos em
ciam casos similares. Isso nos faz pensar.... critor alegava que a norma que regula o
sua busca tenaz
que o pequeno Jimmy não só existiu uma jornalismo e a literatura tem injustiças de
vez, mas muitas vezes ainda que não seja o
pela natureza ambos os lados: “ No jornalismo é preciso
mesmo que inventou Janet Cooke” transcendental do apegar-se à verdade, ainda que ninguém
192
( Garcia Marquez, 1999, p.127-128). mero evento. acredite nela, enquanto na literatura se
A reportagem de Janet Cooke contava pode inventar tudo, desde que o autor seja
a história de um menino de rua viciado capaz de fazer com que o leitor acredite
em heroína. Entre os tantos problemas que seja verdade” (Garcia Marquez, 1999,
que a reportagem apresentava estava a p. 128). Lembrou o caso do novelista John
cena que em a repórter descrevia como Hersey que escreveu uma reportagem sobre
o menino injetava a droga na presença Hiroshima devastada pela bomba atômica
da mãe. Na época o caso transformou-se “tão apaixonante que parecia uma novela”,
num grande escândalo na imprensa nor- e o do jornalista e escritor Daniel Defoe que
te-americana. Mais de vinte anos depois escreveu uma novela sobre Londres devas-
a imprensa dos Estados Unidos enfrenta tada pela peste “tão impressionante que pa-
um escândalo ainda maior com as recen- recia uma reportagem”.
tes acusações de fraude e plágio registra- Para Gabo, como é conhecido o escritor,
das nas redações do New York Times e do há uma linha de demarcação invisível en-
USA Today. tre jornalismo e literatura. É nessa fron-

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teira que se situa “Crônica de Uma Mor- BELL-VILLADA, Gene. Gabriel Garcia Mar-
te Anunciada”. Para alguns, um exemplo quez, The Man and His Work. Chapel Hill, NC:

de ficção com um pé no jornalismo. Para University of North Carolina Press, 1990.

mim, um exemplo de jornalismo mágico


BIANCHIN, Neila. Romance Reportagem, onde
que talvez só Gabriel Garcia Marquez te-
a semelhança não é mera coincidência. Florianó-
nha autoridade e talento para criar. Nós,
polis: Editora da UFSC, 1997.
meros jornalistas, devemos ser mais cau-
telosos ao cruzar a fronteira entre a reali- CAREY, James. The communications revolution
dade e a imaginação, o mito e a história, o and the professional communicator. In Paul
jornalismo e a literatura. Halmos (Ed.), The Sociology of Mass Media Com-
municators. Keele, Great Britain:
* Heloiza Herscovitz University of Keele, 1969.

A autora é professora do Curso de Jor- DAMATTA, Roberto. For an anthropology of


nalismo da UFSC e doutora em Comuni- the Brazilian Tradition. Trabalho escrito para o

cação de Massas pela Universidade da Programa Latino-Americano do Woodrow Wilson

Florida.
International Center, 1990. 193
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devemos ser mais


ALTSCHULL, J. Herbert. From Milton to FRANCO, Jean. An Introduction to Spanish-
cautelosos ao American Literature. Cambridge, Grã-Bretanha:
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entre a realidade
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e a imaginação, o
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